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Considerado um santo pelos seus pacientes e colegas de profissão, o Dr. Simon Ellerbee, eminente psiquiatra nova-iorquino, não parecia ser do género de pessoa que pudesse vir a encontrar um fim tão violento - o esfacelamento do crânio.
Um crime estranho e ardiloso em que cada possível suspeito possuía um álibi firme e o motivo do assassino mostrava-se imperscrutável. com o crime nos cabeçalhos dos jornais e nem sequer o mais pequeno vislumbre de uma pista, a Polícia estava a receber pressões no sentido de encerrar rapidamente o caso Ellerbee. Portanto, fizeram o que tinham a fazer: chamaram Edward X. Delaney, detective reformado.
O assassínio de Ellerbee era, como Delaney se apercebeu imediatamente, um género de crime fora do comum - refinado e discreto, no entanto, horrendo. A encantadora esposa do Dr. Ellerbee, psicóloga, exigia à Polícia progressos na resolução do caso, mas não podia prestar nenhum contributo à investigação, até, sob a insistência de Delaney, concordar em quebrar o seu silêncio profissional e providenciar-lhe uma lista com os seis pacientes potencialmente mais violentos do médico que costumavam visitá-lo tardiamente. Seis almas sofredoras: um ex-pugilista, açoitador crónico da mulher; um bonito rapaz dotado de um quociente de inteligência anormal; uma mulher obcecada por fantasias e pelo ocultismo; um veterano do Vietname; uma jovem meiga com uma mãe monstruosamente possessiva; e um cavalheiro impotente com um gosto requintado pelos jantares e pela decoração. Qual destes seis pacientes tinha destruído a sua única fonte de salvação? Qual deles sabia demasiado sobre o homem que se encontrava por trás do divã? E qual deles transformara a arrasadora dor íntima em raiva num acto de terror brilhantemente urdido que iria desafiar as capacidades inigualáveis de Edward X. Delaney?
Capítulo primeiro
O céu de Novembro sobre Manhattan mostrava-se extremamente carregado e prestes a desfazer-se em chuva densa. A noite negra era atravessada por trovões dispersos e raios faiscantes que a transformavam abruptamente em dia. O Dr. Simon Ellerbee, diante da janela do seu gabinete, perscrutava a rua repleta de vida que se avistava mais abaixo. Apenas via o reflexo do seu próprio rosto preocupado.
Não teria sido capaz de afiançar como tudo começara, ou quando. Ele, que sempre fora tão seguro, ali estava, naquela altura, vivendo momentos de desespero tremendo...
Todos os corações possuem recantos obscuros onde a morte de um ente querido é, ocasionalmente, desejada, onde o riso ofende, e até a beleza se torna uma afronta.
Regressou para junto da sua secretária. Esta encontrava-se atravancada de papéis e cassettes contendo gravações: registos das análises feitas aos seus doentes. Olhou para aquele amontoado de receios, raivas, paixões, pavores. Agora a sua própria vida pertencia ali, partilhando daquela desordem, quando uma vez fora ordenada e serena.
Começou a caminhar a passadas largas, de um lado para o outro, com as mãos profundamente enterradas nos bolsos, a cabeça inclinada. Ponderava sobre a situação em que se encontrava, o limite das opções que lhe restavam. Ocorreu-lhe um pensamento pungente: "Como é que se recorre a ajuda profissional quando se é um profissional?"
A alma anseia pela pureza, no entanto todos nós andamos sequiosos do que é condimentado e exótico. O mal não passa de uma palavra, e o que ninguém vê, ninguém sabe. A não ser que Deus seja um bisbilhoteiro.
Estendeu-se ao comprido sobre o canapé que alguns dos seus pacientes teimavam em usar, embora ele considerasse aquele tipo clássico de psiquiatria "deitada" extravagante e, muitas vezes, contraproducente.
Mas ali estava ele, esticado ao comprido, ainda a tentar acalmar os pensamentos tumultuosos que se debatiam no seu íntimo e não
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se saindo melhor do que todas as pessoas perturbadas que tinham ocupado aquele mesmo leito proustiano.
Soltando um resmungo, levantou-se do canapé para retomar o passeio. Voltou a deter-se em frente da janela. Deparou-se-lhe apenas a escuridão varrida pela chuva.
O problema, reflectiu, estava em aprender a reconhecer a incerteza. Ele, o mais racional dos homens, devia adaptar-se à variabilidade de um mundo em que nada era seguro, em que tudo estava nas mãos do acaso. Podia haver satisfação em viver dentro desses parâmetros - seguir às apalpadelas, rumo a um fim vagamente vislumbrado. E que se isso não é arte, então o que é?
A campainha da porta soou três vezes no andar de baixo - o sinal combinado para todos os visitantes noctívagos tardios. Começou a andar, em direcção ao gabinete da recepcionista, a fim de carregar no botão que abria a porta de entrada. Em seguida, retirou a corrente e destrancou a porta que dava da suite onde funcionava o seu consultório para o corredor.
Precipitou-se para o quarto de banho e olhou-se ao espelho, ajeitando a gravata e alisando o cabelo cor de areia com a palma das mãos húmidas. Voltou para junto da porta aberta, a fim de receber a sua visita com um sorriso.
Mas quando a porta se abriu e ele viu de quem se tratava, deixou escapar um som espesso, estrangulado, da garganta. Levou rapidamente as mãos ao rosto, cobrindo-o para esconder a sua estupefacção. Virou-se, de ombros descaídos.
O primeiro golpe apanhou-o mesmo no alto da cabeça. Fê-lo tropeçar para a frente, e os joelhos vergaram-se-lhe. Um segundo golpe deitou-o por terra, fazendo-o cair de rosto para baixo sobre a alcatifa espessa.
A arma continuou a subir e a descer, esmagando-lhe o crânio. Mas nessa altura já o Dr. Simon Ellerbee estava morto, desaparecidos todos os sonhos, desvanecidas todas as dúvidas, esclarecidas todas as perguntas.
Capítulo segundo
Na manhã daquela segunda-feira, o céu mostrava-se límpido; um sol de camba pairava ao longe e os pedestres deslocavam-se
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com as abas dos casacos abertos a agitarem-se ao vento. Sentia-se uma brisa fria, mas Nova Iorque vivia a agitação que acompanha o princípio do Inverno, com as lojas a prepararem-se para o Natal e os vendedores ambulantes a apregoarem pretzels quentes e castanhas assadas.
Edward X. Delaney, ex-chefe de detectives, sentia a aceleração. A cidade, a sua cidade, começava a mover-se mais rapidamente, mudando o tempo de andante para con anima. O odor a dinheiro pairava no ar. Era a estação dos gastos - e os comerciantes que não conseguissem vencer nas seis semanas seguintes, nunca mais lá chegariam.
Caminhou com dificuldade pela 2ª Avenida, o sobretudo pesado a pender-lhe dos ombros de artilheiro. Na cabeça, sólida e firmemente enfiado, levava o seu chapéu mole de feltro. Os pés, enormes e chatos, encaixavam-se no interior de botas de cano alto em pele de canguru. Um homem de ar sério que mais parecia um monsenhor do que um ex-polícia. Excepto que os polícias nunca são ex-.
O tempo frio deliciava-o, assim como todas as lojas de comida que tão rapidamente se estavam a propagar por Manhattan. Cada dia que passava parecia trazer uma nova mercearia coreana, uma pastelaria francesa, uma casa de comida pronta-a-levar japonesa. E bons acepipes, também - cogumelos delicados, frutas fortemente perfumadas, petiscos condimentados.
E os pães! Isso é o que Edward X. Delaney mais apreciava. Ele sofria, tal como Mónica, sua mulher, costumava dizer, de "senilidade de sanduíche", e aquela súbita irrupção de pães preparados de fresco representava um desafio à sua imaginação.
Pita, brioche, muffins, challah fofos e pesados pães de centeio integral. Pães em forma de cone, maiores do que um punho, e pães com o mesmo formato mas de centeio integral alemão, do tamanho de conchas de doze centímetros. Variedades de massa fofa que se dissolviam na língua e outras, granulosas, que caíam no estômago com um baque.
Deteve-se numa meia dúzia de lojas, comprando isto e aquilo,
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enchendo o seu saco das compras em rede. Depois, receoso da reacção que a mulher pudesse ter diante da sua prodigalidade, retomou o caminho de casa. Na mente levava a visão de algo novo: salmão fumado dentro de um croissant estaladiço, talvez com uma fatia fina de cebola de Vidalia e um pedacinho de maionese para variar.
Aquele homem curvado, poderoso, botas pesadas a baterem no pavimento, parecia nada ver quando, na realidade, não deixava escapar o mais pequeno pormenor. Ao passar pelo edifício da
251ª Esquadra - a sua velha esquadra - e ao aproximar-se da sua casa de arenito castanho-avermelhado, reparou que em frente desta estava um Bulck negro ilegalmente estacionado. Dois polícias uniformizados no assento da frente. Olharam-no de relance e sem interesse.
Encontrou Mónica empoleirada num banco, ao balcão da cozinha, a consultar o seu arquivo de receitas.
- Tens uma visita - disse-lhe ela.
- Ivar - respondeu ele. - Vi o carro dele. Onde está?
- No escritório. Ofereci-lhe uma bebida ou café, mas ele não quis nada. Disse que esperaria por ti.
- Podia ter telefonado primeiro - resmungou Delaney, içando o saco das compras para cima do balcão.
- Que trazes aí dentro? - perguntou ela.
- Uma miscelânea. Coisinhas.
Ela inclinou-se para a frente a fim de cheirar.
- Puf! Que cheiro é esse?
- Talvez seja do chouriço de sangue.
- Chouriço de sangue? Que horror!
- Não estejas já a dizer mal sem provares primeiro. Inclinou-se para depositar um beijo na nuca da esposa.
- Importas-te de arrumar esta tralha, querida? vou lá dentro ver o que Ivar quer.
- Como é que sabes que ele quer alguma coisa?
- Ele nunca viria aqui só para dizer "Olá". Dessa tenho eu a certeza.
Pendurou o casaco e o chapéu no armário do vestíbulo, e a seguir atravessou a sala que dava para o escritório, situado na parte de trás da casa. Abriu e fechou a porta silenciosamente, durante um momento pensou que o primeiro-comissário-adjunto Ivar Thorsen estivesse a dormitar.
- Ivar- disse Delaney em voz alta. - Que prazer em ver-te. O comissário - conhecido no departamento como o Almirante -
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abriu os olhos e levantou-se da poltrona que estava ao lado da secretária. Sorriu debilmente e estendeu a mão.
- Edward - disse -, estás com muito bom aspecto.
- Gostaria de poder dizer o mesmo de ti - respondeu Delaney, observando o outro homem com atenção. - Fazes lembrar algo que o gato arrastou para dentro de casa.
- Calculo - disse Thorsen, suspirando. - Já sabes como é a vida no centro da cidade, e ainda por cima não tenho andado a dormir muito ultimamente.
- Bebe um copo de cerveja preta ou vinho do Porto antes de ires para a cama. É o que de melhor existe no mundo para a insónia. E por falar nisso, já passa do meio-dia e fazia-te bem beber qualquer coisa.
- Obrigado, Edward - disse Thorsen, agradecido. - Um pouco de uísque vai saber-me optimamente.
Delaney foi buscar dois copos e uma garrafa de Glenfiddish ao bar. Sentou-se na cadeira rotativa da secretária e serviu os dois copos com uma porção de uísque simples. O vidro retiniu ao fazerem a saudação habitual, antes de tomarem um gole da bebida.
- Ah! - deliciou-se o Almirante, voltando a instalar-se na sua poltrona. - Não me importava de apanhar uma bebedeira com isto.
Era um homem esmerado, meticuloso. O cabelo branco-prateado, de bela aparência, estava cuidadosamente escovado para cada um dos lados da risca que o atravessava. Sob as sobrancelhas brancas, olhos azuis-pálidos perscrutavam o mundo. Normalmente apresentava uma pele de bebé, e tinha um nariz aquilino e um maxilar que pareciam ter sido recortados de uma folha metálica. Mas naquele momento viam-se linhas de preocupação, pregas, bolsas.
- Mónica almoçou com Karen há dias atrás - observou Delaney. - Disse-me que ela estava óptima.
- O quê? - inquiriu Thorsen, olhando para cima com ar distraído.
- Karen - disse Delaney suavemente. - A tua mulher.
- Oh... sim - respondeu Thorsen, soltando uma risada confusa. - Desculpa, não estava a ouvir.
Delaney inclinou-se para o seu convidado, mostrando preocupação.
- Ivar, está tudo bem?
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- Entre Karen e eu? Não podia estar melhor. Lá na cidade? Não podia estar pior.
- Mais politiquices de merda?
- Isso mesmo. Mas desta vez não do gabinete do presidente da Câmara; é mesmo do Departamento. Queres que te conte?
Na verdade, Delaney não tinha vontade nenhuma de ouvir nada que se referisse àquele assunto. As lutas internas que se travavam no interior dos escalões mais elevados do Departamento da Polícia de Nova Iorque tinham sido a razão que o levara a reformar-se mais cedo. com os ladrões e os assassinos sabia ele lidar; não estava interessado em perder tempo com o labirinto bizantino das panelinhas e cabalas do Departamento. Todas aquelas intrigas. Todas aquelas ambições sem disfarce e ódios ferventes.
Fora nas fileiras civis mais baixas dos sargentos, tenentes e capitães que conhecera o stress da pressão política - de dentro e de fora do Departamento. Fora capaz de viver com ele, de o rejeitar quando podia, de o aceitar quando não lhe restava outra solução.
Mas nada o preparara para os jogos violentos que eram levados a cabo nos lugares de nomeação. Quando recebera as folhas de carvalho que lhe conferiam o grau de inspector-adjunto, fora atirado para um cockpit onde a competição era feroz, onde o mais pequeno passo em falso podia significar o fim de uma carreira de vinte anos, e os combatentes emborcavam Maalox como se de um belo Beaujoulais se tratasse.
E à medida que foi subindo até às duas estrelas de assistente-chefe, a tensão foi complementada com a responsabilidade. Não só devia executar o trabalho, e fazê-lo soberbamente, como também tinha de estar a olhar sempre para trás, por cima do ombro, para ver quem é que lá poderia estar com uma faca e um sorriso.
Depois recebera as três estrelas de chefe de detectives e desejara apenas que o deixassem fazer o seu trabalho o melhor que podia. Mas foi obrigado a gastar demasiado tempo a acalmar os seus nervosos superiores e políticos civis, suficientemente mesquinhos para lhe tornarem a vida num inferno se não conseguisse deitar a mão ao tipo que lhes assaltara o sobrinho.
Edward X. Delaney não fora capaz de suportar semelhante tipo de pressão, de modo que devolvera o seu distintivo. A culpa, reconhecera mais tarde, fora, provavelmente, sua. Era mental e emocionalmente incapaz de "continuar". Possuía um temperamento
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que o fazia exaltar-se por tudo e por nada, um sentido muito profundo da sua própria dignidade e uma fé absoluta nos seus talentos e métodos de detective para trabalhar um caso.
Ele não se podia mudar a si mesmo, assim como não podia mudar o Departamento. Portanto, afastara-se antes que lhe aparecessem úlceras, tentando manter-se ocupado, esforçando-se por esquecer o que fora. No entanto...
- Claro, Ivar - disse com um sorriso forçado -, gostaria que me falasses sobre o assunto.
Thorsen bebeu nova golada de uísque.
- Conheces o chefe de detectives Murphy?
- Bill Murphy? Claro que o conheço. Fizemos a Academia juntos. bom homem. Labutador, talvez, mas com uma concepção correcta das coisas.
- Tem os papéis metidos desde o princípio do ano. Tem um cancro na próstata.
- Ah, Jesus - exclamou Delaney. - Mas que desperdício. Tenho de o ir ver.
- Bem... -continuou o Almirante, olhando atentamente para a sua bebida -, Bill pensou que conseguia aguentar-se até ao princípio do ano, mas não me parece que seja bem sucedido. Tem passado tanto tempo fora que tive de pôr lá um chefe de detectives substituto para manter o gabinete a funcionar. O comissário diz que considerará como baixa permanente a partir de Dezembro.
- Quem é que o está a substituir? - perguntou Delaney, começando a ficar interessado.
Thorsen ergueu os olhos para ele.
- Edward, lembras-te de quando se costumava dizer que, em Nova Iorque, os irlandeses tinham a polícia, os judeus as escolas e os italianos o Departamento de Saúde Pública? Bem, as coisas mudaram, mas não assim tanto. Continua a haver uma velha guarda de irlandeses no Departamento, e esta encarrega-se de zelar pelos seus. Recusam-se a aceitar as alterações demográficas que tiveram lugar nesta cidade: o número de negros, hispânicos, orientais. Quando chegou a altura de indicar um chefe de detectives substituto, eu escolhi um "duas estrelas" chamado Michael Ramon Suarez, calculando que tal ajudaria as relações com a comunidade. Suarez é um porto-riquenho, tem estado à testa de cinco esquadras da Bronx e o seu trabalho tem sido estupendo. O chefe de operações, Jimmy Conklin, quis que o
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comissário optasse por Terence J. Riordan, que tem nove esquadras de Brooklyn. De modo que a contenda foi deveras acesa.
- Posso imaginar - disse Delaney, servindo ambos nova quantidade de uísque. - Quem levou a melhor?
- Eu - respondeu Thorsen. - Pus Suarez em chefe substituto. Calculei que ele faria um bom trabalho, e que quando chegasse a altura ser-lhe-ia dada a sua terceira estrela e nomeá-lo-ia chefe de detectives efectivo. Um grande encorajamento para os hispânicos. E o presidente da Câmara adoraria.
- Ivar, devias ter-te metido na política.
- Foi o que fiz - observou Thorsen com um sorriso velhaco.
- E então? Não passaste por aqui apenas para me dizeres que levaste a melhor sobre os irlandeses. Qual é o problema?
- Edward, leste os jornais do fim-de-semana? Ou viste televisão? Aquele psiquiatra que foi assassinado. O doutor Ellerbee?
Delaney fitou-o.
- Li a notícia. Foi apanhado no seu próprio consultório, não foi? E não muito longe daqui. Imaginei que tivesse sido um viciado à procura de drogas.
- Claro - anuiu Thorsen. - Essa foi a ideia que toda a gente teve. Deus sabe até que ponto é frequente. Mas Ellerbee não tinha drogas nenhumas no seu consultório. E não se viram sinais de entrada forçada, quer na porta da rua, quer na que dá para o consultório. Não estou a par de todos os detalhes, mas tudo indica que ele deixou entrar alguém que conhecia e esperava.
Delaney inclinou-se para a frente, fitando o outro homem.
- Ivar, a que propósito é que vem tudo isto? O teu interesse no homicídio de Ellerbee? Acontece quatro ou cinco vezes por dia naquela zona. Nunca pensei que te preocupasses dessa maneira com um assassínio.
Thorsen levantou-se e começou a passear nervosamente pela divisão.
- Não se trata apenas de mais um assassínio, Edward. Poderá significar problemas. Por muitas razões. Ellerbee era um homem rico, culto, que possuía muitos amigos colocados naquilo a que se chama "lugares importantes". Era um indivíduo muito cívico. Realizava trabalho não remunerado em clínicas, por exemplo. A esposa, que, a propósito, é psicóloga no activo, e uma das mulheres mais belas que já vi em dias da minha vida, está a tornar-nos a vida num inferno. E como se isso não bastasse, o pai de Ellerbee é Henry Ellerbee, o tipo que construiu as Torres
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Ellerbee na Quinta Avenida e possui mais prédios em Manhattan do que tu e eu temos em meias. Tem andado a fazer a cabeça de toda a gente em água, do governador para baixo.
- Sim, eu diria que tens realmente alguns problemas.
- E o busílis - prosseguiu Thorsen, continuando a passear de um lado para o outro -, o busílis reside no facto de se tratar do primeiro grande homicídio que o chefe de detectives substituto Michael Ramon Suarez tem de resolver.
- Oh! Oh! - exclamou Delaney, recostando-se de novo na sua cadeira rotativa e começando a balançar-se suavemente para a frente e para trás. - Agora vamos ao cerne da questão.
- Certo - concordou o Almirante, quase raivosamente. O cerne da questão. Se Suarez falha esta, não haverá maneira possível nesta terra de Deus de o fazer ganhar uma terceira estrela e um cargo efectivo.
- E tu farás figura de parvo por teres estado, mais do que ninguém, na origem da sua nomeação.
- Certo - repetiu Thorsen. - É melhor ele sair-se desta rapidamente, caso contrário cairá em desgraça, e eu com ele.
- Tudo muito interessante - observou Delaney. - E então? O Almirante resmungou, voltando a sentar-se na poltrona.
- Edward, não estás a facilitar-me nada as coisas.
- A facilitar que coisas? - inquiriu Delaney inocentemente. Foi nessa altura que tudo veio impetuosamente ao de cima.
- Quero que dês a tua ajuda no caso Ellerbee - disse o primeiro-comissário-adjunto. - Ainda nem sequer pensei na maneira de levar a ideia à prática; primeiro, quis discuti-la contigo. Edward, já me safaste anteriormente, pelo menos duas vezes. Sei que fui muito chato para ti relativamente ao facto de o fazeres para o Departamento ou apenas para te manteres activo e não te transformares num reformado de cérebro mole. Mas desta vez estou a fazer-te este pedido na base da nossa amizade. Estou a pedir-te um favor, de velho amigo para velho amigo.
- Estás a pedir-me uma ova, Ivar - disse Delaney lentamente. - Eu nunca teria chegado tão longe sem a tua protecção. Eu sei disso e tu sabes que eu sei.
Thorsen esboçou um gesto vago.
- Coloca a questão como desejares. O que importa é que eu preciso da tua ajuda e estou a pedi-la.
Delaney deixou-se ficar em silêncio durante um momento, olhando as enormes mãos que espalmara no tampo da secretária.
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- Estou a ficar com manchas de fígado - observou com ar ausente. - Ivar, falaste com Suarez acerca desta questão?
- Sim, já falei com ele. Cooperará a cem por cento. A sua sobrevivência depende deste caso e ele sabe-o. Dispõe de alguns homens capazes, no entanto nenhum tem a tua experiência e perícia. Ele aceitará toda a ajuda que puder arranjar.
- Está a tratar pessoalmente do caso Ellerbee?
- Assim que a guerra começou, ele ficou pessoalmente envolvido. Não teve outro remédio. Mas daquilo que me disse, a única coisa de que dispõem neste momento é de um cadáver.
- Aconteceu sexta-feira à noite?
- Exacto. O homem foi morto por volta das nove da noite. Aproximadamente. Segundo o médico legista.
- Há mais de quarenta e oito horas - observou Delaney pensativamente. - E, a cada minuto que passa, fica mais frio. Isso significa que as probabilidades de solução estão a decrescer.
- Eu sei.
- Qual foi a arma utilizada pelo assassino?
- Um tipo qualquer de martelo.
- Um martelo? - admirou-se Delaney. - Não uma faca, uma arma? Alguém levou um martelo para o consultório dele?
- Assim parece. E esmagou-lhe o crânio.
- Normalmente o martelo é uma arma utilizada por homens
- disse Delaney. - As mulheres preferem facas ou veneno. Mas nunca se sabe.
- Então, Edward? Dás-nos a tua ajuda? Delaney ajeitou o corpo pesado com dificuldade.
- Se o fizer, e repara que eu disse se, não sei de que modo poderá ser. Não disponho de cobertura. Não me posso pôr aí às voltas a interrogar as pessoas ou a desinquietá-las. Por amor de Deus, Ivar, não passo de um reles civil.
- Esse problema pode ser resolvido - disse Thorsen teimosamente. - Antes de mais nada é preciso que te convenças a aceitar o caso.
Delaney inspirou o ar profundamente, deixando-o depois sair.
- vou dizer-te uma coisa - observou. - Antes de te dar um sim ou um não, deixa-me falar com Suarez. Se não conseguirmos entender-nos, é melhor tirares daí o sentido. Se encarreirarmos bem, considerarei a tua proposta. Sei que não é a resposta que desejas, mas de momento é a única que posso dar-te.
- Para mim já não é nada má - disse o comissário prontamente.
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- Telefonarei a Suarez, combinarei o encontro e voltarei a falar contigo. Obrigado, Edward.
- Por quê?
- Pelo uísque - respondeu Thorsen. Que mais havia de ser? Depois de o Almirante sair, Delaney foi para a cozinha. Mónica
saíra, mas deixara um bilhete na porta do frigorífico, preso por um pequeno porco magnético:
"Pato assado com nozes para o jantar. Estou de volta daqui a duas horas. Não comas demasiadas sanduíches."
Ele sorriu ao ler a recomendação. Mas normalmente jantavam às sete horas e ainda mal passava da uma e trinta. Uma sanduíche não estragaria, certamente, o apetite para o pato assado. Ou até mesmo duas.
Mas contentou-se com uma - a que chamou "Especial"; sardinhas norueguesas em azeite de oliveira italiano sobre pão de centeio alemão, com uma camada de finas fatias de cebola espanhola e um pouco de molho francês.
Comeu esta construção inclinado sobre o lava-loiças, de modo a não ter dificuldade em fazer desaparecer os pingos de gordura. A acompanhar a sanduíche, e para preservar o sabor internacional, bebeu uma garrafa de cerveja Molson, canadiana. Terminado o repasto, arrumada a cozinha, desceu à cave, a fim de procurar os jornais dos dois últimos dias, onde voltaria a ler as notícias que relatavam o assassínio do Dr. Simon Ellerbee.
Pouco depois da meia-noite, Mónica subiu ao quarto de dormir que ambos ocupavam no segundo piso. Delaney fez a ronda do costume, apagando as luzes e verificando as janelas e os fechos da porta. Nem mesmo os dos quartos vazios onde os filhos da sua primeira mulher, Bárbara (agora falecida), tinham dormido - quartos mais tarde ocupados pelas duas filhas de Mónica -, ele descurou.
Em seguida, regressou ao quarto principal. Mónica, nua, estava sentada ao toucador, escovando o cabelo espesso e escuro. Delaney acomodou-se na beira da cama, terminou o cigarro e ficou a observá-la, sorrindo com prazer. Começaram a conversar com as frases curtas que utilizavam na intimidade.
- Soubeste das pequenas? - perguntou.
- Talvez amanhã.
- Devíamos telefonar, não?
- Ainda não.
- Temos de começar a pensar no Natal.
- Comprarei os postais se os escreveres.
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- Queres ir para o chuveiro primeiro?
- Vai tu andando.
- Esfregas-me as costas?
- Mais tarde. Deixa-me uma toalha seca.
A única luz do quarto provinha de um candeeiro que se encontrava sobre a mesinha-de-cabeceira. O tecido colorido e sedoso do quebra-luz proporcionava à iluminação uma luminescência rosada. Delaney observava o jogo das luzes reflectido nas costas fortes da esposa, enquanto esta, de braços levantados, procedia religiosamente às cem escovadelas do costume.
Era uma mulher robusta, com um corpo harmonioso: ombros e ancas largos, peito farto e uma cintura respeitável. Pernas musculosas que terminavam em tornozelos finos. Havia nela uma solidez afável que Delaney muito apreciava. Reflectiu, não pela primeira vez, na sorte que tivera com as mulheres: primeiro Bárbara e agora Mónica - duas felicidades.
Ela despiu o robe de flanela e foi para a casa de banho, detendo-se por um instante a fim de olhar para ele por cima do ombro e piscar-lhe o olho. Ele, quando ouviu o chuveiro começar a funcionar, começou a despir-se lentamente. Desapertou as botas de cano alto, tirou as meias brancas de algodão. Retirou a pesada corrente de ouro e o relógio de tampa do casaco. A volumosa corrente pertencera a seu avô, o relógio de bolso a seu pai. Este parara cinquenta anos atrás; desde então, Delaney nunca mais sentira desejo de o voltar a pôr a funcionar.
A seguir despiu o fato escuro de lã, grosso como um cobertor de exército. Camisa branca com colarinho engomado. Gravata de seda encorpada, de uma cor que se situava entre o escarlate e o violeta, como um vidro de janela manchado e empoeirado. Pendurou tudo cuidadosamente, deslocando-se pelo quarto em ceroulas com o comprimento de bermudas, e camisola interior de malha de Balbriggan com meia manga.
Mónica chamava-lhe mastodonte e ele supunha que o era. Agora havia uma barriga - não grande, mas que, ainda assim, estava ali. Tinha uma camada de gordura nova sobre músculo velho. Mas as pernas continuavam suficientemente fortes para correr, e os ombros e braços suficientemente poderosos para fazerem frente a um ataque mortífero.
Aceitara a inevitabilidade da idade. Não o que esta fazia à sua mente, já que estava convencido de que a conservava arguta como sempre. Mais arguta. Temperada pela experiência e reflexão. Mas não restavam dúvidas de que o corpo estava a decair. No entanto,
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não valia a pena relembrar os seus tempos de jovem polícia, em que era capaz de subir uma escada de serviço a correr, saltar grandes distâncias ou derrubar algum gorila que lhe quisesse refazer o rosto.
O seu rosto... As linhas estavam agora mais vincadas, começando a parecer que tinham sido escavadas num pedaço de carvalho por um machadinho de esculpir. Mas o cabelo cinzento, cortado em brossel, ainda se mantinha espesso, e o Dr. Hagstrom assegurava-lhe, uma vez por ano, de que o coração continuava a bater vigorosamente.
Mónica saiu da casa de banho com o robe vestido, e sentou-se diante do toucador, começando a pôr creme no rosto. Edward foi para o chuveiro, detendo-se para lhe tocar no ombro com um dedo. Apenas um toque.
Tomou banho rapidamente, lavando o cabelo rijo com champô. A seguir vestiu o seu pijama - flanela fina, as calças munidas de um cordão na cintura, o casaco abotoado com a mesma precisão de um Norfolk.
Quando saiu, Mónica já se encontrava na sua cama, sentada e com as costas apoiadas a almofadas. Tirara a garrafa de Rémy de dentro da mesinha-de-cabeceira, enchendo dois pequenos cálices de cristal com uma porção de conhaque.
- Deus te abençoe - disse ele.
- Cheiras bem - observou ela.
- Nada mais do que sabonete.
Ele baixou o termostato, abriu a janela alguns centímetros. Em seguida enfiou-se na sua própria cama, ajeitando-se do mesmo modo que a mulher.
- Então, conta-me lá - pediu ela.
- Conto-te o quê? - perguntou ele, admirado.
- Filho da mãe - respondeu ela. - Sabes muito bem a que me refiro. Que é que Ivar Thorsen queria?
Edward contou-lhe. Mónica escutou atentamente.
- Ivar fez muito por mim - concluiu ele.
- E tu muito por ele.
- Somos amigos - disse ele. - Quem é que mede essas coisas?
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- Diane Ellerbee - respondeu Mónica. - A mulher, a viúva do homem que foi assassinado, eu conheço-a.
- Tu conhece-la! - exclamou ele, estupefacto.
- Bem, conhecer talvez não seja a palavra exacta, mas já a encontrei. Ela deu uma palestra para um dos meus grupos. O tema sobre que se debruçou foi a atracção entre rapariguinhas e cavalos.
- Cavalos?
- Edward, não estou a brincar. As rapariguinhas sentem-se atraídas por cavalos. Adoram montá-los e tratar deles.
- E como foi que a senhora Diane Ellerbee explicou o fenómeno?
- A doutora Diane Ellerbee. Havia muito de Freud metido na questão, e outras coisas. Se estiveres interessado, procurarei nos meus apontamentos.
- Nem por isso. Que foi que achaste dela?
- Muito inteligente, muito eloquente. E possivelmente a mulher mais bonita que vi até hoje. De cortar a respiração.
- Exactamente as palavras que Ivar utilizou. Deixaram-se ficar em silêncio durante alguns momentos, beberricando os seus conhaques, reflectindo.
- Vais aceitar a missão?
- Bem, como já te disse, primeiro quero falar com Suarez. Se conseguirmos entender-nos e se arranjarmos um processo de eu poder actuar como... consultor, talvez aceite. Poderá ser interessante. Que achas?
Ela virou-se de lado, de modo a poder olhar para o marido.
- Edward, se a vítima tivesse sido um zé-ninguém, será que Ivar e o Departamento se davam a todo este trabalho?
- É provável que não - admitiu ele. - Mas a vítima foi um homem branco. Rico, culto, influente. A sua viúva tem andado a armar um chinfrim lá no Departamento, o pai, que tem muito poder, tem feito o dobro do chinfrim. Portanto, o Departamento está a reunir as tropas.
- Achas que é justo?
- Mónica - disse Edward pacientemente -, imagina que um drogado, com um passado cheio de porcaria, é encontrado assassinado num beco. O homem tem um cadastro do comprimento de um braço e sobre ele impendem suspeitas quase confirmadas de assassínios, roubos, violações e Deus sabe que mais. Achas realmente que o Departamento deseja gastar o valioso tempo dos seus homens a tentar descobrir quem é que o
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queimou? Vá, deixa-te disso! Eles ficam satisfeitíssimos de cada vez que lixo como esse é retirado das ruas.
- Imagino... - disse Mónica lentamente. - Mas apenas não me parece certo que todas as atenções se concentrem nos ricos e influentes.
- Vai mudar o mundo - disse Edward. - Foi sempre assim e sempre será. Eu sei que tu consideras todos iguais. Talvez o sejamos aos olhos de Deus e segundo a lei. Mas nem tudo está assim tão definido. Algumas pessoas esforçam-se por ser seres humanos bons, decentes, mas outras não passam de escumalha. Os polícias, com orçamentos e pessoal limitado, reconhecem essa realidade. Será assim tão estranho ou ultrajante que desejem despender mais tempo e esforços para protegerem os anjos em detrimento dos demónios?
- Não sei - respondeu Mónica, perturbada. - A mim soa-me a elitismo. Além disso, como é que podes dizer que o doutor Ellerbee era um anjo?
- Não sei se o era. Mas também não me parece que fosse o contrário.
- No fundo, sentes-te fascinado por tudo isto, não sentes?
- Trata-se apenas de uma coisa que me ajudará a manter ocupado - disse ele com ar indiferente.
- Tenho uma ideia melhor para te manter ocupado - disse, ela, fitando-o intencionalmente.
- Eu alinho - respondeu ele, sorrindo.
Capítulo terceiro
O pequeno e estreito prédio situado no extremo oriental da Rua 84, entre York e a East End Avenue, pertencia conjuntamente à Dra. Diane e a Simon Ellerbee. Depois da sua compra, que se efectuara em 1976, tinham gasto mais de cem mil dólares em renovações, raspando as onze camadas de tinta do apainelamento de pinho, restaurando a linda escadaria e redesenhando o interior de modo a providenciarem quatro passagens entre pisos.
O primeiro piso, que ficava ao cimo de três degraus de pedra que partiam do passeio, era ocupado pela Galeria Piemonte. Esta exibia e vendia tecelagem feita à mão, colchas e peças antigas de cerâmica americana. Não era uma empresa rentável, funcionando
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quase como um passatempo para duas requintadas senhoras de idade que, obviamente, não necessitavam dos rendimentos provenientes daquele empreendimento comercial.
O consultório da Dra. Diane Ellerbee ficava no segundo andar, e o do Dr. Simon Ellerbee no terceiro. Ambos os pisos tinham sido remodelados a fim de incluírem divisões para habitação. A sala de estar, a sala de jantar e a cozinha ficavam no segundo; os dois quartos de dormir e outra sala de estar no terceiro. Cada andar possuía duas casas de banho.
As suites profissionais de ambos os andares eram quase idênticas: um pequeno escritório exterior para a recepcionista, e um gabinete interior, grande e espaçoso, para o médico. Os gabinetes da Dra. Diane Ellerbee e do Dr. Simon Ellerbee podiam estabelecer ligação entre si através de um intercomunicador.
O quarto e último andar do prédio era um apartamento particular, utilizado como ponto de passagem por um produtor de filmes da costa ocidental, que raramente ali ia.
Para além daquele prédio, os Ellerbees também possuíam uma vivenda de campo perto de Brewster, Nova Iorque, Era uma vivenda estilo Túdor, de tijoleira e estuque, situada num terreno de quatro acres e meio, arborizado e atravessado por um riacho de torrente rápida. O edifício principal tinha dois quartos de dormir no rés-do-chão e dois, de visitas, no segundo andar. Acoplada à casa havia uma garagem para três carros. Nas traseiras desta, ficava um pátio de azulejos e uma piscina aquecida.
Ambos os Ellerbees adoravam jardinagem, e o jardim inglês que cultivavam era um dos lugares mais bonitos das redondezas. Tinham um casal de empregados, imigrantes polacos, que vivia fora. O marido fazia de guarda e procedia a tarefas de manutenção. A mulher trabalhava como governanta e, ocasionalmente, como cozinheira.
Os Ellerbees tinham o hábito de ficar na casa da Rua 84 durante os dias da semana - e, em ocasiões raras, aos sábados. Normalmente partiam para Brewster às sextas-feiras, ao fim da tarde, voltando para Manhattan aos domingos à noite. Ambos passavam todo o mês de Agosto na sua casa de campo.
Os Ellerbees possuíam três viaturas. O Dr. Simon conduzia um Jaguar XJ6 verde-garrafa, último modelo, e a Dra. Diane um Mercedes-Benz SEL 3.5, de 1971, preto e prateado. Os dois carros ficavam, de um modo geral, guardados numa garagem de Manhattan. O terceiro veículo, um jipe station, era mantido na residência de Brewster.
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Na sexta-feira em que o Dr. Ellerbee fora assassinado, este dissera à mulher - de acordo com o depoimento por esta prestado à Polícia - que tinha um paciente marcado para o princípio dessa noite. Sugerira-lhe que fosse para Brewster assim que estivesse despachada, que mais tarde ele iria lá ter. Informara-a tencionar sair às nove da noite, o mais tardar.
A Dra. Diane afirmara ter deixado Manhattan aproximadamente às seis e trinta da tarde. Descrevera a viagem para norte de "feroz" devido ao vento, que soprava a sessenta quilómetros à hora, e à chuva torrencial. Chegara à sua casa de campo por volta das oito da noite. Calculou que a tempestade atrasasse o marido, no entanto esperava por ele por volta das dez e meia, onze horas.
Às onze e meia afirmou ter ficado preocupada com a demora e ter telefonado para o consultório do marido. Ninguém atendeu. Ligou mais duas vezes, obtendo o mesmo resultado. Por volta da meia-noite telefonou para a esquadra da Polícia de Brewster, perguntando se tinham notícia de algum acidente de automóvel envolvendo um Jaguar XJ6. Não tinham.
Cada vez mais preocupada, ligou para a garagem de Manhattan, onde os Ellerbees costumavam guardar os carros. Depois de esperar vários minutos, o empregado de serviço nocturno informou-a de que o Jaguar do Dr. Ellerbee não fora retirado; continuava no seu estacionamento.
"Estava a ficar desvairada", contou mais tarde aos detectives. "Pensei que ele tivesse sido assaltado ao dirigir-se para a garagem. Já acontecera uma vez."
De modo que, cerca da uma e um quarto da madrugada, a Dra. Diane ligara ao Dr. Julius K. Samuelson. Este era psiquiatra, viúvo, amigo íntimo e hóspede frequente dos Ellerbees. O Dr. Samuelson também era presidente da Associação Psiquiátrica de Nova Iorque. Vivia num apartamento na esquina da Rua
79 com a Madison Avenue.
Samuelson acabara de chegar de um concerto com o Grupo de Cordas de Estugarda, que tocara no Carnegie Hall, pelo que não foi acordado pelo telefonema de Diane Ellerbee. Quando esta lhe explicou a situação, ele concordou imediatamente em apanhar um táxi e ir até aos consultórios dos Ellerbees a fim de tentar descobrir o paradeiro do Dr. Simon ou ver se havia algum problema.
Samuelson relatou ter chegado ao prédio da parte oriental da Rua 84 cerca da uma e quarenta e cinco da manhã. Pedira ao condutor do táxi para esperar. Ainda continuava a chover torrencialmente.
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Ao sair do carro ficara com os pés enfiados numa torrente de água proveniente de uma sarjeta, mas apressara-se, atravessando o passeio e subindo os três degraus que conduziam à entrada da frente. Encontrou a porta aberta.
"Não escancarada", contou aos detectives. "Talvez uns cinco ou sete centímetros."
Samuelson tinha cinquenta e seis anos, era um homem baixo e franzino, mas não lhe faltava coragem física. Subiu determinadamente a escada mal iluminada forrada a alcatifa que ia até ao consultório do Dr. Simon, no terceiro andar. Encontrou a porta que dava para este completamente escancarada. No interior, deparou com o corpo dilacerado.
Primeiro, certificou-se de que Ellerbee estava realmente morto. Depois, servindo-se do telefone da secretária da recepcionista, ligou o 911. O telefonema foi registado à uma e cinquenta e quatro.
Todos os factos acima referidos foram incluídos nos relatórios apresentados nos jornais e nos noticiários da televisão local que se seguiram ao assassínio.
Capítulo quarto
Delaney plantou-se do outro lado da rua, em frente da casa do chefe-adjunto Suarez, que ficava na parte oriental da Rua 87, uma transversal da Lexington Avenue. Perscrutou a habitação, sabendo exactamente a disposição que tinha; ele crescera num edifício muito parecido com aquele.
Era uma construção de pedra castanha de seis andares, com um lanço de oito degraus de pedra, de sacada, que dava para a entrada da frente. Originariamente, o edifício fora um prédio de apartamentos com dois apartamentos seguidos um ao outro em cada andar, que se estendiam da parte da frente à de trás e cujas divisões davam, quase todas, para um longo corregor.
"Apartamentos de água fria", como por vezes lhe chamavam. Não porque não dispusessem de água quente; tal não faltava quando se tinha um senhorio humano. Mas a banheira coberta ficava a um canto da cozinha, e a toilette fora de portas, no corredor, servindo os dois apartamentos.
Já restavam poucas casas de pedra castanha como aquela em
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Manhattan. Tinham sido demolidas para no seu lugar erguerem arranha-céus de cimento e vidro para cooperativas de habitação, ou serem compradas a preços horrendos num processo chamado "gentificação", e convertidos em algo que garantisse uma cobertura de seis páginas a quatro cores no Architectural Digest.
Edward X. Delaney não estava muito certo de que tal pudesse ser considerado progresso - mas não lhe restava a menor dúvida de que significava mudança. E se se era contra a mudança, havia que lamentar os felizes dias que já lá iam, em que a totalidade de Manhattan não passava de uma zona de pasto para gado vacum. Ainda assim, ele permitiu-se uma pequena pontada de nostalgia ao recordar a infância que passara num edifício muito semelhante àquele que via do outro lado da rua.
Apercebeu-se imediatamente de que as pessoas que ali viviam estavam a travar uma batalha corajosa contra a influência maligna da cidade. Não se viam inscrições nas paredes. Janelas lavadas e cortinados limpos. Hera envasada no topo da sacada (os vasos estavam presos por correntes ao gradeamento). Os recipientes de plástico do lixo que se viam junto da parede do edifício mostravam-se limpos e tinham tampas. Via-se, em todos os detalhes, tratar-se de uma habitação asseada, aconchegada, com um ar de modesta prosperidade.
Delaney atravessou a rua lentamente, reflectindo que se tratava de uma casa um tanto deslocada para um chefe substituto do Departamento da Polícia de Nova Iorque. A maioria das figuras importantes do Departamento vivia em Queen ou, quando muito, em Staten Island.
A placa onde a campainha se incrustava estava areada e o intercomunicador funcionava com eficiência. Quando carregou no botão do 3B, ao lado do qual se alinhava o nome meticulosamente dactilografado de M. R. SUAREZ, ouviu uma voz de criança perguntar:
- Quem é?
- Edward X. Delaney - disse, inclinando-se de modo a falar directamente para a pequena grelha redonda.
Ouviu-se um ruído estático, o som de passos. A seguir, o fecho interior da porta zumbiu, permitindo-lhe entrar. Subiu ao terceiro piso.
O homem que o aguardava à entrada do apartamento era uma figura quixotesca: alto, magro, com uma expressão simultaneamente tímida, suplicante, melancólica.
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- Senhor Delaney? - inquiriu ele, estendendo uma mão ossuda. - Sou Michael Ramon Suarez.
- Chefe - disse Delaney. - Muito gosto em conhecê-lo. Apreciei o facto de me mandar passar por aqui; sei como deve andar atarefado.
- Para mim é uma honra receber a sua visita em minha casa, senhor - disse Suarez com cortesia formal. - Espero que o facto não tenha tido nenhum inconveniente para si. Teria ido encontrar-me consigo de boa vontade.
Delaney sabia que assim era; de facto, a sugestão fora feita pelo comissário-adjunto Thorsen. Mas Delaney queria encontrar o chefe substituto na sua própria casa, de modo a ter uma ideia da vida que este levava fora do Departamento: uma maneira de avaliar um homem tão boa como outra qualquer.
O apartamento parecia enxameado de crianças - cinco delas com idades compreendidas entre os três e os dez anos. Delaney foi apresentado a todas: Michael Júnior, Maria, Joseph, Carlo e Vita. E quando a Sra. Rosa Suarez entrou, trazia um bebé ao colo que se chamava Thomas.
- O seu grupo de basquetebol privativo - comentou Delaney, sorrindo. - com um substituto.
- Rosa queria fazer pontaria para uma equipa de futebol - disse Suarez sem expressão. - Mas aí tive de me impor.
Obrigaram o hóspede a sentar-se na melhor cadeira e, apesar dos seus protestos de que já tinha jantado, trouxeram-lhe café e uma bandeja com bolinhos estaladiços polvilhados de açúcar refinado. Toda a família, incluindo o bebé, tomou café com leite condensado. Delaney preferiu o seu simples.
- Delicioso - pronunciou, após a primeira chávena. Chicória, senhora Suarez?
- Um pouco - respondeu ela em voz débil, baixando os olhos e corando para gáudio de Delaney.
- E estes - continuou Delaney, levantando um dos doces. De fabrico caseiro, não?
Ela anuiu.
- Adoro - disse ele. - Sabe, os Italianos, os Franceses e os Polacos têm coisas muito parecidas.
- É apenas massa de farinha - disse Suarez. - Mas Rosa faz a melhor.
- Concordo plenamente - afirmou Delaney, pegando noutro. Pôs os garotos a falar da escola e, enquanto estes tagarelavam,
teve oportunidade de observar o que o cercava.
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Não era um apartamento luxuoso, mas nada se lhe podia apontar. Paredes de um verde-claro. Um crucifixo enorme. Um quadro de veludo negro pintado com o que parecia ser uma vista da Praia de Waikiki. Linóleo estampado a cobrir o chão. Mobília de madeira de laranjeira que tinha, obviamente, sido comprada num conjunto de cinco peças.
Nada daquilo satisfazia o gosto de Delaney, mas ele entendia que nenhum polícia honesto com seis filhos podia comprar cadeiras estilo Luís XIv ou carpetas de Aubusson. O importante é que se tratava de um lar acolhedor e limpo, as crianças estavam todas bem alimentadas e vestidas. Delaney teve a percepção imediata de que era uma família feliz, com amor suficiente para dar e vender.
As crianças pediram licença para verem uma hora de televisão
- uma comédia especial -, prometendo irem depois para os respectivos quartos, os mais novos para dormir, os mais velhos para fazerem os seus trabalhos de casa. Suarez fez-lhes a vontade e, em seguida, conduziu a sua visita até à retaguarda do apartamento, onde ficava a cozinha ampla, fechando a porta.
- Aqui poderemos gozar de um pouco de paz e sossego - disse.
- As crianças não me incomodam - observou Delaney. Também tenho duas minhas, juntamente com duas enteadas. Gosto de crianças.
- Sim - observou o chefe -, reparei no facto. Queira sentar-se aqui, por favor.
A cozinha era suficientemente espaçosa para acomodar uma enorme mesa de armar, onde toda a família cabia. Delaney reparou que havia um comprido fogão a gás com vários bicos, um forno microndas, um processador de alimentos e tachos e panelas suficientes para alimentar uma companhia de marines. Calculou que a boa comida devia encontrar-se entre os primeiros lugares na lista de prioridades da família Suarez.
Sentou-se numa das fortes cadeiras de madeira. O chefe começou subitamente a falar.
- Tratei-o por senhor Delaney - disse. - Espero não o ter ofendido.
- Claro que não. É o que eu sou: um senhor. Não disponho de título nenhum.
- Bem... sabe como é - disse Suarez com o seu sorriso retorcido -, há polícias reformados que preferem ser tratados
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pela patente em que serviam: capitão, chefe, delegado... e daí por diante.
- Senhor está bem para mim - disse Delaney alegremente. - Não passo de um civil como os outros.
- Não exactamente.
Encontravam-se sentados à mesa, em frente um do outro. Delaney via, diante de si, um homem de rosto comprido, com o áspero cabelo negro penteado para trás, pondo a descoberto uma testa alta. O bigode farto pendia-lhe. Pele cor de azeitona e olhos escuros como carvão molhado. Uma boca repleta de fortes dentes brancos.
Também viu o sorriso triste, desesperado, e os sinais de stress: um tique que ocasionalmente lhe repuxava o canto esquerdo da boca, olheiras salientes, rugas a sulcarem-lhe a fronte. Suarez era um homem sob pressão - e começava a dar mostras disso. Delaney não saberia dizer como é que ele dormia - se é que dormia alguma coisa.
- Chefe - disse -, quando estava no activo, costumavam chamar-me o Tomates de Ferro. Nunca consegui perceber muito bem o significado dessa alcunha, mas imagino que se devia ao facto de eu ser um filho da mãe metediço e refilão. Insistia em fazer as coisas a meu modo. Criei muitos inimigos.
- Foi o que me constou - observou Suarez suavemente.
- Mas esforcei-me sempre por ser frontal e não cair em contradições. Portanto, agora quero dizer-lhe o seguinte: no que diz respeito ao caso Ellerbee, esqueça o que o comissário-adjunto Thorsen lhe referiu. Não sei até que ponto ele exerceu pressão sobre si, mas se não quer a minha colaboração diga-o imediatamente. Não ficarei ofendido. Não me sentirei insultado. Diga-me apenas que prefere trabalhar no caso sozinho, que eu ficar-lhe-ei grato por uma tarde agradável e pela oportunidade que me deu de o conhecer a si e à sua bela família. Depois deixá-lo-ei em paz.
- O comissário Thorsen tem sido muito bom para mim - disse Suarez. - Melhor do que o senhor poderá alguma vez imaginar.
- Uma ova! exclamou Delaney, furioso. - Thorsen está a tentar safar-se a ele mesmo e o senhor sabe-o muito bem.
- Realmente - concordou Suarez -, é verdade. Mas isso não é tudo. Há quanto tempo se reformou, senhor Delaney? Cinco anos?
- Há um pouco mais do que isso.
- Então não pode estar a par das modificações que têm
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ocorrido no Departamento, e ainda estão a verificar-se. Um terço do total dos polícias presentemente no activo tem menos de cinco anos de experiência. Os velhos requisitos de altura não têm sido respeitados. Agora, temos polícias baixos, negros, mulheres, hispânicos, orientais, homossexuais. Simultaneamente, cada vez vamos tendo mais polícias possuidores de graus académicos. E homens e mulheres que falam línguas estrangeiras. É uma revolução, e eu sou totalmente a favor dela. Delaney permaneceu em silêncio.
- Estes jovens possuem motivações - continuou Suarez. Eles estudam a lei e tiram cursos de sociologia, psicologia e relações humanas. Isso não pode deixar de ser vantajoso para o Departamento. Não acha?
- Mal não pode fazer - respondeu Delaney. - A cidade está a mudar. Se o Departamento não acompanhar essa mudança, irá por água abaixo.
- Sim - disse o chefe, inclinando-se para a frente. Exactamente. Thorsen também se dá conta desse fenómeno. Portanto, tem estado a fazer o que pode sempre que tem possibilidades de renovar o Departamento, a fim de que este possa reflectir a nova cidade. Tem vindo a empurrar mais polícias da minoria para as ruas e a fazer avançar as minorias para postos mais elevados. Postos especialmente importantes. Acha que eu hoje teria duas estrelas se não tivesse sido a protecção de Thorsen? Nem pensar! Portanto, quando o senhor me diz que ele está a tentar safar-se a ele mesmo trazendo-o para o caso Ellerbee, eu digo que sim, que é verdade. Mas também é para proteger algo em que ele acredita profundamente.
- Thorsen é um sobrevivente - disse Delaney com rudeza. - E um lutador astuto. Não se preocupe com Thorsen. Devo-lhe tanto quanto o chefe. Sei perfeitamente contra o que ele se ergue. Combate a mafia irlandesa de cada vez que vai para o centro da cidade. Aqueles tipos lembram-se da maneira como o Departamento era há trinta anos atrás, e é assim que desejam que ele permaneça: um reino irlandês. Eu posso dizê-lo porque também sou irlandês, mas travei as minhas próprias batalhas contra harpias colocadas em lugares elevados. Concordo com tudo o que disse. Apenas o aconselho a que não se deixe levar pelos outros. Mande Thorsen à fava, e a mim também. Se quer trabalhar no caso Ellerbee sozinho, diga-o. Ou vence, ou não. Seja como for, será à sua maneira. E Deus sabe que se eu
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participar não há garantia absolutamente nenhuma de que possa ser de alguma utilidade a si, a Thorsen ou ao Departamento. Reinou o silêncio, até que Suarez disse em voz baixa:
- Admito que, na altura em que o comissário Thorsen sugeriu, pela primeira vez, a sua participação neste caso, senti-me insultado. Conheço a sua reputação, evidentemente. O registo de fichas confidenciais sobre a sua pessoa. Ainda assim, pensei que Thorsen queria dizer, no fundo, que não tinha confiança em mim. Estive quase a afirmar-lhe que não desejava receber ajuda nem de si, nem de ninguém mais; trataria do caso Ellerbee pessoalmente. Por sorte, contive-me, vim para casa, pensei no assunto e discuti-o com Rosa.
- Fez muito bem - comentou Delaney. - As mulheres podem não entender nada da política de um departamento policial, mas de pessoas percebem elas, e muito, e é desse material que o Departamento é formado.
- Bem... - disse Suarez, suspirando -, Rosa fez-me ver que se tratava, para mim, de uma questão pessoal. Disse que se eu falhasse no caso Ellerbee, todas as pessoas desta cidade diriam: "Olha, o hispanicozeco não é capaz de fazer nada de jeito." Aconselhou-me a aceitar toda a ajuda de que pudesse dispor. E também há outra coisa. Se o caso Ellerbee for resolvido, Thorsen tentará arranjar-me uma terceira estrela e a designação de chefe de detectives efectivo quando Murphy se reformar. Tinha conhecimento deste facto?
- Sim, Thorsen contou-me.
- Portanto, existem muitos motivos envolvidos: políticos, étnicos, pessoais. Não posso, com honestidade, dizer-lhe qual é o mais forte. Daí que tenha dedicado a toda esta questão muitas horas de profunda reflexão.
- Aposto que sim - disse Delaney. - É uma decisão de grande responsabilidade.
- Outro factor... - continuou Suarez. - Tenho alguns homens muito bons na minha secção.
- Eu próprio treinei muitos deles.
- Eu sei. Mas nenhum dispõe do seu talento e experiência. Não o digo para lhe dar graxa; é a verdade. Falei com vários detectives que trabalharam consigo em muitos casos. Todos eles foram unânimes em considerar o mesmo: "Se tiver hipóteses de arrebanhar Delaney, não hesite!" Portanto, foi isso que me levou a, finalmente, tomar uma decisão. Se estiver disposto a ajudar-me no caso Ellerbee, agradecerei a sua colaboração com profunda
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gratidão e dar-lhe-ei toda a cooperação que estiver ao meu alcance.
Delaney inclinou-se para a frente, fitando Suarez.
- Tem a certeza?
- Absoluta.
- Dá-se conta de que posso falhar? Pode crer que não era a primeira vez. Longe disso.
- Compreendo perfeitamente que isso pode acontecer.
- Muito bem, então vamos aos pormenores. Tenho acompanhado o caso nos jornais. Lendo nas entrelinhas, não diria que tem muito por onde pegar.
- Muito? - admirou-se Suarez. - Nós não temos nada!
- Deixe-me dizer-lhe o que sei sobre o caso. Depois me corrigirá se eu estiver enganado.
Falando rapidamente, Delaney resumiu o que lera nos relatos dos jornais e ouvira nos noticiários da televisão. Suarez escutou atentamente, sem interromper. Quando Delaney terminou, o chefe disse:
- Sim, é o que se sabe. Algumas das localizações no tempo que referiu estão um tanto afastadas da realidade, mas não o suficiente para tornar os factos muito diferentes.
Delaney anuiu.
- Agora diga-me aquilo que não contou aos jornalistas.
- Várias coisas - disse Suarez. - Podem ter, ou não, muito significado. Em primeiro lugar, a vítima disse à mulher que ficava em Manhattan porque estava à espera de um paciente tardio, que o visitaria na noite de sexta-feira. Encontrámos a sua agenda de marcações na secretária. O último paciente com consulta combinada estava para as cinco da tarde. Para depois dessa hora não havia ninguém. A recepcionista diz que não é fora do comum. De vez em quando o doutor recebia aquilo que designava de "apelos de crise". Um paciente que se encontrasse verdadeiramente aflito telefonava e dizia que tinha de ver o psiquiatra imediatamente. O médico marcava a consulta e esquecia-se de a referir à recepcionista. Seja como for, esta saía às cinco, depois de o último paciente inscrito ter chegado.
- Hum... hum - murmurou Delaney. - Podia acontecer...
- O segundo aspecto é o seguinte: o médico legista pensa que a arma do assassínio foi um martelo de pena redonda. Sabe o que isso é?
- Um martelo de pena redonda? Claro que sim. Tem uma saliência arredondada num dos lados da cabeça.
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- Correcto. Perguntei e informaram-me que esse tipo de martelo é utilizado para ajustar metal, como acontece quando se tira uma amolgadela de um guarda-lama. Ellerbee sofreu golpes múltiplos no cimo e na parte de trás da cabeça com a pena redonda. Encontraram-lhe muitos ferimentos redondos, semelhantes a perfurações.
- Golpes múltiplos? Alguém que continuou a dar-lhe com o martelo mesmo depois de ele estar morto?
- Sim. O médico legista classifica o ataque de "frenético". Muitos mais golpes dos que eram necessários para o matar. Mas isso não é tudo. Já Ellerbee estava morto e tudo indica que o assassino o fez rolar até ficar de barriga para cima, e agrediu-o mais duas vezes nos olhos. Um golpe em cada um.
- Coisa bonita - comentou Delaney. - A pena redonda do martelo foi utilizada nos olhos?
- Foi. Quando o doutor Samuelson encontrou o cadáver, este estava de costas, os olhos completamente destruídos.
- Está bem - disse Delaney. - Mais alguma coisa que não tenha revelado à imprensa?
- Sim. Quando Samuelson descobriu o corpo, ligou para o nove um um e depois desceu novamente as escadas a fim de esperar pelos polícias. Um carro com dois agentes uniformizados respondeu. Penso que foi neste ponto que tivemos um pouco de sorte: os dois polícias, os primeiros a aparecerem em cena, cumpriram à risca as regras que vêm no livro. Um deles não se despegou de Samuelson e do taxista, certificando-se de que estes não arrancavam. Entretanto, telefonou a pedir ajuda, informando que tinha em mãos um caso de denúncia de homicídio. O segundo homem subiu as escadas para confirmar o assassínio. Lembra-se de como chovia torrencialmente na sexta-feira à noite? Bem, o agente que subiu as escadas reparou que a alcatifa estava cheia de pegadas ensopadas de água que se estendiam desde o átrio, pela escada acima, até ao terceiro andar. Portanto, fez os possíveis por se deslocar rente à parede, de modo a poder preservá-las.
- Essa foi inteligente - observou Delaney. - Quem é ele? - Um negro enorme, enorme - disse Suarez. - Falei com
ele, fez-me sentir um anão.
- Santo Deus! - exclamou Delaney, atónito. - Não diga que se chama Jason T. Jason?
Foi a vez de Suarez se mostrar surpreendido.
- Precisamente. Conhece-o?
- Oh, raios, sim. Trabalhámos juntos. Chamava-lhe Jason dois.
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Um tipo com miolos. Aquilo ali é bom material de detective, que não restam dúvidas. Ele nunca pisaria nada que pudesse servir de prova.
- Bem, não o fez. Portanto, quando os peritos chegaram, eles conseguiram eliminar as pegadas molhadas que ele deixara na alcatifa da escada e no gabinete da recepcionista onde o corpo foi encontrado. Um dia mais tarde, também tinham eliminado as do doutor Samuelson. Este calçava sapatos de sair e possuía pés muito pequenos. O mais curioso é isto: restaram dois conjuntos de pegadas molhadas não identificadas na alcatifa.
- Dois conjuntos?
- Absolutamente. As fotos provam-no. Ellerbee recebeu a visita de duas pessoas naquela noite. Ambos calçavam botas de borracha ou galochas. Manchas indistintas, mas não restam dúvidas de que foram feitas por duas pessoas diferentes.
- Filho da puta! - exclamou Delaney. - Macho ou fêmea? Suarez encolheu os ombros.
- com botas de borracha ou galochas, quem é que pode dizer? Mas estavam realmente lá dois conjuntos de pegadas depois das de Samuelson e Jason serem eliminadas.
- Dois conjuntos de pegadas - repetiu Delaney pensativamente. - Que acha que se terá passado?
- Não faço a menor ideia. O senhor faz?
- Não.
- Bem - disse Suarez -, acabei de lhe dar todas as informações que não foram comunicadas. Agora, vamos combinar a maneira como iremos providenciar a sua assistência nesta investigação. Diga-me o que preferiria que eu desenvolverei todos os esforços para lhe proporcionar o que puder.
Conversaram durante mais meia hora. Concordaram que seria contraproducente conduzir duas investigações separadas sobre o mesmo crime.
- Estaríamos a pisar os calcanhares um ao outro - disse Delaney.
De modo que tentariam coordenar os respectivos esforços, ficando Suarez no comando e Delaney oferecendo sugestões e trocando impressões com Suarez tão frequentemente quanto o evoluir da situação o permitisse.
- Aqui está aquilo de que preciso - disse Delaney. - Antes de mais nada, de uma viatura do Departamento, não identificada. Depois, desejo que o sargento Abner Boone funcione como meu assistente, servindo de oficial de ligação entre mim, o chefe
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e o seu pessoal. Neste momento ele está à frente de uma unidade em Manhattan. Quero-o a trabalhar para mim.
- Não há problema - concordou Suarez. - Conheço Boone. bom homem. Mas ele...
Calou-se. Delaney fitou-o com firmeza.
- Eu sei - disse. - Boone andou metido numa enrascada. Mas voltou ao bom caminho por sua própria iniciativa. Casar ajudou. Há mais de dois anos que não toca numa bebida. Eu e a minha mulher visitamo-lo duas ou três vezes por mês, e pode crer no que lhe digo: o homem está limpo.
- Se mo garante - murmurou Suarez em tom de desculpa. Então, não hesitemos, recrutemos o sargento Boone.
- E Jason Dois - disse Delaney. - Quero dar uma oportunidade a esse tipo; ele merece.
- Uniformizado?
Delaney reflectiu por um momento.
- Não. Roupas civis. Preciso de Boone e de Jason porque eles dispõem de um escudo. Podem mostrar os seus distintivos e fazer-me chegar a sítios onde nunca poderia pôr os pés como civil. E também quero ver cópias de tudo o que tenha sobre o caso: relatórios, memorandos, fotografias, o post mortem, falsas confissões, pistas, a porcaria toda.
- Pode ser feito - disse Suarez, anuindo. - Mas claro que compreende que tenho de fazer passar tudo primeiro pelo comissário Thorsen.
- Claro. Mantenha-o a par. Isso impedi-lo-á de andar sempre em cima de mim.
- Sim - observou Suarez tristemente -, e de mim. Delaney soltou uma risada.
- Inconvenientes inerentes à profissão - disse. Voltaram a recostar-se, descontraindo.
- Diga-me, chefe, o que fizeram até agora?
- A princípio - disse Suarez -, pensámos que se teria tratado de um drogado à procura de material. Portanto, investigámos essa possibilidade a fundo. Não houve resultados. Procurámos a arma do crime em todos os caixotes do lixo e sarjetas existentes numa área de dez quarteirões. Nada. Ninguém vira nada. Verificámos as matrículas de todos os carros estacionados perto da cena do crime e contactámos os respectivos proprietários. Mais uma vez, nada. Eliminámos, mais ou menos, as suspeitas que recaíam sobre a esposa e o doutor Samuelson; os álibis deles são válidos. Agora estamos a desenvolver esforços para interrogarmos
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todos os pacientes da vítima. Tencionamos fazer o mesmo com os antigos. São quase uma centena. É uma tarefa demorada, difícil.
- Tem de ser feita - observou Delaney com ar sombrio. E quanto aos amigos e colegas de profissão do morto?
- Sim, esses também. Até agora ainda não descobrimos nada. Terá oportunidade de verificar por si próprio quando consultar os relatórios. Há ocasiões em que penso que não há esperança.
- Não - disse Delaney -, a esperança é algo que nunca desaparece. De tempos a tempos, quando menos se espera, aparece-nos uma pista. Lembro-me de um caso em que trabalhei quando era detective de duas estrelas. Tratou-se de uma jovem mulher que foi morta no Central Park. O aspecto mais estranho residia no facto de ela ser quase careca. Não conseguimos descobrir o motivo até falarmos com os amigos dela, que nos disseram que ela tinha um cancro e andava a fazer tratamentos de quimioterapia. Também nos informaram que normalmente ela usava uma cabeleira postiça loura. Parecia que aquele caso não nos conduzia a lado nenhum até que, três semanas mais tarde, uma esquadra da zona levou a cabo uma operação fora de horas e prendeu um travesti que usava uma cabeleira loura. Um dos polícias que procedeu à prisão lembrava-se do assassínio que tivera lugar no Central Park e telefonou para nós. A cabeleira era a mesma. Tinha o nome do fabricante numa pequena etiqueta interior. De modo que interrogámos o travesti. Este não tinha dado cabo da mulher, mas disse-nos a quem é que tinha comprado aquela cabeleira, o que nos permitiu deitar a mão, finalmente, ao autor do crime. Foi uma questão de sorte, de pura sorte. Quero com isto dizer que o mesmo poderá acontecer neste caso Ellerbee.
- Rezemos para que assim seja - murmurou Suarez melancolicamente.
Pouco depois, Delaney levantou-se. Os dois homens trocaram um aperto de mão. Suarez disse que iria combinar imediatamente tudo com Thorsen e que telefonaria a Delaney na manhã seguinte.
- Obrigado - disse ele com solenidade. - Pela sua honestidade e pela sua bondade. Estou convencido de que podemos trabalhar optimamente juntos.
- Claro que podemos - observou Delaney com sinceridade. - Lá acontecerá gritarmos um com o outro de vez em quando, mas queremos os dois a mesma coisa.
Na sala de estar, a Sra. Rosa Suarez encontrava-se sentada em frente do aparelho de televisão, a tricotar tranquilamente. Delaney
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agradeceu-lhe a hospitalidade e sugeriu que ela e o marido fossem visitar um dia a sua casa.
- Isso seria muito agradável - disse ela, sorrindo timidamente. - Mas com as crianças e o bebé... Bem, talvez possamos dar um jeito.
- Façam por isso - recomendou ele. - Tenho a impressão de que a senhora e a minha mulher se irão dar muito bem.
Ela fitou o marido. Se houve algum sinal entre eles, Delaney não se apercebeu.
À porta, Rosa pousou uma mão no braço de Delaney.
- Obrigada pela sua ajuda - disse ela em voz baixa. O senhor é um homem bom.
- Não estou muito certo de que seja assim
- Eu estou - disse ela suavemente.
observou ele.
Capítulo quinto
Estavam a tomar um pequeno-almoço de ovos mexidos com cebola. Delaney mastigava ruidosamente uma bagel com manteiga.
- Quais são os teus planos para hoje? - inquiriu indolentemente.
- Compras - respondeu Mónica prontamente. - com Rebecca. O dia todo. Almoçaremos em qualquer lado. vou arranjar os postais e os presentes de Natal para as crianças.
- Óptimo.
- Que gostarias que eu te desse no Natal?
- Eu? Eu já tenho tudo.
- Isso é o que tu pensas, convencido. E que tal um bonito estojo para cachimbo da Dunhilll
Ele reflectiu sobre a sugestão.
- Não está mal pensado - admitiu. - Aquele que eu tenho há muito tempo está a cair aos bocados. Um em marroquim escuro seria boa ideia. E tu, de que gostarias?
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- Por favor - implorou ela -, não me dês mais perfumes de supermercado. Faz-me uma surpresa. Vais às compras?
- Não, ficarei mais um pouco por aqui. Suarez disse que telefonaria e eu não quero sair antes disso.
- Que te apetece para o jantar?
- Sabes de uma coisa que já não comemos há muito tempo? Galinha com natas e biscoitos de manteiga com...
- Puré de batata e ervilhas - completou ela, rindo. - Uma refeição perfeitamente principesca. Um judeu a preceito nunca seria apanhado pela morte a comer um prato desses.
- Tem paciência - disse-lhe ele. - Acabei de passar pelo sofrimento de um pequeno-almoço judeu, ou não foi?
- Mas que sofrimento - troçou ela. - Devoraste esse... Mas, nesse momento, o telefone tocou, e ele levantou-se para ir
atender.
- Daqui fala Edward X. Delaney - disse. - Sim, chefe... bom dia... Falou? E qual foi a reacção dele? Óptimo. Óptimo. Eu já calculava que aceitasse. Sim, esperarei por eles. Obrigado, chefe. Depois digo-lhe alguma coisa.
Desligou, voltando-se para Mónica.
- Thorsen deu o okay a tudo. Arranjaram-me o carro, e Boone e Jason Dois virão trabalhar comigo, por intermédio de Suarez, em requisição temporária. Neste momento estão a munir-se do material que está nos arquivos e provavelmente estarão aqui antes do meio-dia.
- Posso falar de Abner a Rebecca?
- Claro. Ele provavelmente já lhe contou.
- Estás feliz com esta missão, Edward?
- Feliz! - exclamou ele, surpreendido perante a palavra empregada. - Bem, lá satisfeito, estou. Sim, creio que me sinto feliz. É agradável ser convidado para desempenhar uma tarefa.
- Eles precisam de ti - disse ela resolutamente.
- Não há garantias. Alertei Thorsen e Suarez para esse facto.
- Mas não há dúvida de que o desafio te entusiasma verdadeiramente .
Edward encolheu os ombros.
- Para ti vai ser de caras - assegurou-lhe Mónica.
- De caras? - observou ele, sorrindo. - Estás a dar mostras da idade que tens, querida. Os polícias já não resolvem os casos de caras, assim como os repórteres já não arranjam furos jornalísticos. Isso são águas passadas.
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- Então, adeus - disse ela -, já que estou assim tão ultrapassada. Arrumas tu a cozinha. Eu vou às compras.
- Gasta dinheiro - recomendou ele. Diverte-te.
Edward limpou tudo, desde as migalhas à loiça e à máquina de fazer café. Gritou um adeus a Mónica quando esta saiu, e depois foi para o seu gabinete ler o Times da manhã e fumar um charuto. Mas a certa altura pousou o jornal por momentos e pôs-se a pensar.
Não se podia dizer que fosse um desafio, como Mónica lhe chamara; era mais do que isso.
Centenas, milhares de pessoas morriam diariamente em guerras, revoluções, atentados terroristas, disputas religiosas; nas auto-estradas, nas suas casas, ao caminharem pelas ruas, nas suas camas. Mortes inevitáveis, algumas delas, apenas acidentes. Mas um número demasiado elevado delas resultava de violência deliberada.
Então, para que estar preocupado com o assassínio de um único ser humano? Apenas mais um algarismo numa longa parada de algarismos. Não exactamente. Edward X. Delaney pouco podia fazer relativamente a guerras; não podia pôr cobro ao extermínio massivo. O seu talento particular incidia no homicídio individual. Acontecimento e vingador combinavam completamente.
Uma vida não devia ser suspensa antes do seu tempo pelo assassínio. Aí é que estava o cerne da questão.
Edward voltou a pegar no jornal, interrogando-se sobre se não estaria a tecer razões fantásticas que nenhuma relação tinham com a verdade. Os seus motivos podiam ser tão complexos como os que haviam levado Michael Ramon Suarez a procurar a sua ajuda.
Por fim, o senso comum fê-lo duvidar de todas aquelas tolas deambulações filosóficas, remetendo-o para o essencial: tinham limpo o sarampo a um tipo, Delaney era um polícia, o seu trabalho era procurar o assassino. Aí estava algo que definia a validade do seu papel: duro, simples e compreensível. Podia contentar-se com isso.
Terminou a leitura do jornal e o charuto mais ou menos ao mesmo tempo e colocou ambos de parte. O Times trazia uma reportagem a uma coluna sobre o caso Ellerbee na secção da "Grande Cidade". Baseava-se principalmente nas tiradas indignadas proferidas por Henry e Diane Ellerbee, acusando o Departamento da Polícia de Nova Iorque de ausência de progressos na resolução do assassínio.
O chefe de detectives substituto Suarez era citado como tendo
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dito que o Departamento estava a investigar várias "pistas prometedoras", e que esperavam chegar, em breve, a "conclusões significativas". O que significava, como Delaney bem entendia, conversa fiada de polícia que nada sabia: "Ainda não descobrimos patavina nem sabemos para onde nos havemos de virar."
Os dois agentes chegaram um pouco depois do meio-dia, carregados de caixas de cartão atadas com cordel. Delaney conduziu-os directamente ao seu gabinete, onde empilharam as caixas em cima umas das outras. Só depois disso é que tiveram oportunidade para apertarem as mãos, sorrindo entre si. Os dois polícias vinham à paisana e Delaney foi pendurar os seus anoraques e bonés no armário do vestíbulo. Ainda estavam de pé quando ele voltou ao gabinete.
- Sentem-se, por amor de Deus - disse. - Sargento, estive consigo há dez dias atrás, pelo que sei como se encontra. A propósito, Mónica hoje foi sair com Rebecca, para gastarem o nosso dinheiro. Jason, já não o vejo... há quanto tempo? Quase dois anos. Não me diga que perdeu algum peso?
- Talvez uns quilitos, senhor. Nunca pensei que se notasse.
- Bem, está com óptimo aspecto. A família está okayl
- Não podia estar melhor, obrigado. Os meus dois rapazes estão a espigar como trigo. Só sabem falar de basquetebol.
- Não os contrarie - aconselhou Delaney. - Tem ali bons jogadores em embrião.
Os dois agentes não fizeram quaisquer perguntas sobre o que se tratava e o que estavam ali a fazer, e Delaney sabia que não o fariam. Mas sentiu que lhes devia uma explicação pela sua presença.
Contou-lhes, resumidamente, que o chefe de detectives substituto estava a braços com mais problemas do que aqueles de que podia tratar, e que o comissário Thorsen pedira a Delaney que desse uma ajuda no caso Ellerbee, pois estava a ser constantemente importunado pela viúva e pelo pai da vítima, ambos pessoas de influência.
Delaney não fez qualquer referência à étnica implacável e às guerras políticas que estavam a desencadear-se nos postos de topo do Departamento da Polícia de Nova Iorque. Boone e Jason pareceram aceitar com prontidão suficiente a sua explicação parcial.
- Sargento - disse Delaney -, o senhor prestar-me-á
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assistência durante as investigações e servir-me-á de elemento de ligação com os homens de Suarez. Lembre-se, ele é que está no comando; eu sou apenas um consultor civil. Jason, você andará por aqui e por ali, por todo o lado onde for necessário. Estas atribuições são temporárias. Se o caso for resolvido ou eu for corrido, vocês os dois retomam o vosso trabalho habitual. Okayl
- Por mim está bem - respondeu Jason Dois.
- Servirá de férias - observou o sargento Boone. - Trabalhar só num caso.
- Férias uma ova! vou fazer-vos a vida negra! Agora, a primeira coisa que nós os três vamos fazer é passar em revista todos os papéis que dizem respeito ao caso Ellerbee. Leremos todos os escritos, examinaremos todas as fotos. Daqui a uma hora, mais ou menos, fazemos um intervalo. Tenho umas sanduíches e umas bebidas preparadas. Depois, voltaremos ao trabalho até esvaziarmos as caixas. A seguir, sentar-nos-emos para trocar impressões e definir as prioridades.
Deitaram mãos ao trabalho, abrindo as caixas de cartão, empilhando os documentos fotocopiados sobre a secretária de Delaney. Este lia cada documento em primeiro lugar e depois passava-o a Boone, que lhe dava uma vista de olhos antes de o entregar ao agente Jason. A maior parte do material não passava de notas breves sobre o assunto, o que não deu muito trabalho a analisar. Mas o post mortem do médico legista e os relatórios dos peritos eram mais extensos e levaram mais tempo a digerir.
Delaney fumou novo charuto e os dois polícias contentaram-se com cigarros, que fumaram uns atrás dos outros. O gabinete ficou cheio de fumo e Delaney levantou-se para ligar o exaustor de fumos da janela do fundo. Mas não houve conversa pelo meio; trabalharam sem interrupção durante mais de uma hora. Depois, fizeram um intervalo para almoçar. Delaney trouxe uma travessa com sanduíches que preparara anteriormente e latas de cerveja Heineken para si e para Jason. Abner Boone bebeu uma garrafa de soda.
Delaney acomodou os pés em cima da secretária.
- Jason - disse -, você fez um trabalho dos diabos ao conservar aquelas pegadas molhadas e intactas na alcatifa.
- Obrigado, senhor.
- Penso que o seu relatório referiu praticamente todos os pormenores. Não deixou nada de fora, pois não?
- Não - disse o agente lentamente. - Não que me lembre.
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- Quando subiu as escadas - insistiu Delaney - e entrou no gabinete da recepcionista chegou-lhe ao nariz algum odor?
- Odor? Bem, estava uma noite diabolicamente molhada. O interior daquela casa cheirava a humidade. Quase a mofo...
- Mas não notou alguma coisa fora do comum? Perfume, incenso, cheiro de cozinhados, algo do género?
O corpulento negro franziu o sobrolho.
- Não consigo recordar-me de nada fora do normal. Somente da humidade.
- Aquela galeria de arte no primeiro andar, a porta estava fechada?
- Sim, senhor. Assim como a que dá para o consultório da doutora Diane Ellerbee, no segundo andar. E a do apartamento particular do quarto piso. A porta do consultório da vítima era a única que se encontrava aberta.
- Ele jazia de costas?
- Exactamente, senhor. Não era coisa bonita de se ver.
- Sargento - disse Delaney, rodando a cadeira de modo a ficar de frente para Boone -, que acha daqueles dois golpes de martelo nos olhos? Depois de o pobre homem estar morto.
- A mim isso parece-me perfeitamente simples. Simbolismo. O assassino queria cegá-lo.
- Claro - concordou Delaney. - Mas depois de ele estar morto? Essa é que é difícil de entender.
- Bem, Ellerbee era um psiquiatra que lidava com uma série de pessoas mentalmente perturbadas. Pode ter sido um paciente que pensou que ele estava a ver de mais.
Delaney fitou-o.
- Esse ponto de vista é interessante e plausível. Oiçam, ainda restam três sanduíches e temos mais cerveja e soda. Porque não acabamos de comer e trabalhamos ao mesmo tempo?
Pouco depois das três da tarde, chegaram ao fim da tarefa e começaram a arrumar de novo todo o material nas caixas de cartão. A seguir, sentaram-se novamente e olharam uns para os outros.
- Então? - perguntou Delaney. - Que acham da investigação que fizemos até aqui?
Boone inspirou profundamente o ar.
- Não gosto de tecer acusações contra ninguém - disse, hesitantemente -, mas parece-me que o chefe Suarez não tem andado a orientar bem os seus homens. Por exemplo, a doutora Ellerbee, no seu depoimento, diz que telefonou ao doutor Julius
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Samuelson cerca da uma e um quarto da madrugada. O tipo que está encarregue de confirmar o facto vai ter com o Samuelson e pergunta: "A doutora Diane ligou para si à uma e um quarto da madrugada?" E Samuelson responde: "Sim, ligou." Mas que espécie de rebaldaria é esta? Sabe-se lá se os dois não estão metidos no assunto e a protegerem-se um ao outro? Ela afirma que lhe telefonou da residência de Brewster. É uma chamada de fora de Manhattan. Portanto, por que razão não foi alguém verificar os registos da Companhia dos Telefones a fim de se certificar de que ela foi feita?
- Exacto! - exclamou Jason T. Jason com voz alta. O mesmo para a garagem onde os Ellerbees guardavam os automóveis. O vigilante de serviço nocturno diz: "Sim, ela telefonou." Mas ninguém investigou a fim de ver se essa chamada foi feita de Brewster. Trabalho desmazelado, desmazelado.
- Concordo - comentou Delaney aprovadoramente. E Samuelson disse que tinha estado num concerto no Carnegie Hall quando Ellerbee foi morto. Mas não vi uma única referência, dentro daquelas caixas de cartão, que me mostrasse que alguém foi investigar. E se ele estava sozinho, será que algum dos presentes o viu lá? Ficou com a outra metade do bilhete? Poderá o pessoal do Carnegie Hall localizar a sua presença ali naquela noite? O chefe Suarez disse que já tinha eliminado, mais ou menos, a viúva e Samuelson como suspeitos. Uma ova! Ainda temos muito que andar antes de os ilibarmos. Não culpem Suarez; ele tem milhentas outras coisas na cabeça para além do assassínio de Ellerbee. Mas com uma coisa concordo: até aqui, foi uma porcaria de investigação.
- E então? - perguntou Boone. - Por onde é que começamos?
- Jason - disse Delaney, apontando-lhe um dedo grosso -, você fica com a viúva. Verifique as duas chamadas que ela afirma ter feito de Brewster. E aproveite para falar com o agente de Brewster com quem ela diz ter falado a perguntar se tinha havido algum acidente na auto-estrada. Certifique-se de que ela ligou para ele e como é que ele achou que ela estava. Se lhe pareceu histérica, fria, furiosa, qualquer coisa. Boone, você fica com Samuelson e o álibi por este apresentado. Veja se consegue descobrir se alguém o acomodou realmente no Carnegie Hall na altura em que Ellerbee foi morto.
- Acha que a viúva e Samuelson podem estar a mentir? perguntou Jason.
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- Oh, Jesus - exclamou Delaney. - Eu minto, você mente, Boone mente, toda a gente mente. Faz parte da condição humana. Na maior parte das vezes são coisas sem importância, pequenas ajudas para que a vida nos seja mais fácil de suportar. Mas, neste caso, temos um cadáver nas mãos. Sim, a viúva e Samuelson podem estar a mentir, mesmo que não sejam os criminosos. Talvez tenham outras razões. Vamos descobrir.
- Que tenciona o senhor fazer? - perguntou o sargento Boone, curioso.
- Eu? Eu quero estudar estes depoimentos sobre o problema que o doutor Samuelson teve com os poderes legais do Departamento. O diferendo fundamentou-se na relação médico-paciente, que, segundo a lei, se pressupõe ser sagrada. Mas temos aqui um caso em que o médico foi morto e os peritos apanharam o seu livro de marcações. De modo que agora possuímos os nomes dos seus pacientes. No entanto, Samuelson reclamou que os arquivos eram confidenciais. Os advogados do Departamento disseram que não; foi cometido um assassínio e a opinião pública exigia que os pacientes fossem interrogados. Se bem o entendo, chegaram a um consenso: os pacientes podem ser investigados, mas só serão interrogados se concordarem com isso, porque o interrogatório pode envolver a enfermidade de que padecem, a razão pela qual andavam a consultar, antes de mais nada, o doutor Ellerbee. É uma linda questão legal que poderia manter um pelotão de advogados ocupado por um ano. Mas segundo as combinações feitas, agora podemos investigar o paradeiro de cada doente na altura em que o doutor Ellerbee foi morto, mas não podemos fazer-lhes perguntas ou examinarmos os registos sem sua autorização. Ora digam-me lá se isto não é lixado de todo!
- Acha que os pacientes concordarão em responder a um interrogatório? - perguntou Boone.
- Penso que se Ellerbee foi assassinado por um dos seus pacientes, ele acederá a responder a perguntas, imaginando que, se recusarem, os polícias farão recair imediatamente as suas suspeitas sobre ele.
- Oh, caramba! - exclamou Jason com uma risada. - Acha que os maluquinhos são capazes de semelhante raciocínio?
- Antes de mais nada, não sabemos até que ponto os seus pacientes são chanfrados. Em segundo lugar, uma pessoa pode ser completamente varrida e, ainda assim, ser capaz de pensar com tanta racionalidade como qualquer homem ou mulher considerado normal. Lembro-me de um tipo que era um cérebro de computadores.
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Quero dizer, um génio. Todo o seu trabalho envolvia lógica matemática. Mas tinha uma fraqueza: gostava de violar rapariguinhas. com excepção desse ponto, era um gigante intelectual. Portanto, não se convençam de que todos os pacientes de Ellerbee são idiotas.
- Quando é que começamos com a lista dos pacientes, senhor? - inquiriu Jason.
- Outra coisa - disse Delaney, ignorando a pergunta de Jason. - Não encontrei nenhum indício naquelas caixas de cartão que me levasse a pensar que alguém tencione submeter a vítima, a sua viúva, o pai e o doutor Samuelson aos registos.
- Santo Deus! - exclamou Boone. - com certeza não pensa que pessoas daquelas têm cadastro, pois não?
- Não, não penso, mas nunca se sabe, pois não? Portanto, tem de ser feito. O mesmo para as duas recepcionistas dos Ellerbees, as velhotas que são donas da galeria de arte, e o tipo que tem o apartamento do topo alugado. Sargento, encarregue-se você dessa questão. Vasculhe-os a todos nos registos. Entretanto, concentremo-nos nas pessoas que vivem e trabalham na casa da cidade. E também em Samuelson e no pai de Ellerbee. Depois de os termos despachado, alargaremos a investigação aos amigos, conhecidos e pacientes de Ellerbee.
Falaram durante mais algum tempo, discutindo a maneira como iriam dividir a utilização do carro do Departamento e como se manteriam em contacto uns com os outros. Delaney incentivou os homens a que lhe telefonassem a qualquer altura do dia ou da noite se tivessem algum problema ou alguma informação para lhe comunicar.
Depois de os dois agentes saírem, Delaney voltou ao seu gabinete. Ligou ao comissário Thorsen, com o qual o puseram imediatamente em contacto.
- Muito bem, Ivar - disse Delaney. - Começámos.
- Graças a Deus - congratulou-se o Almirante. - Se eu puder fazer alguma coisa para ajudar, é só dizeres.
- Há uma coisa - disse Delaney. - O Departamento tem um psiquiatra a trabalhar por sua conta, não tem?
- Claro - respondeu Thorsen. - O doutor Murray Walden. Criou programas de reabilitação para alcoólicos e drogados. E tem um serviço de apoio à família. Um homem muito activo e inovador.
- Doutor Murray Walden - repetiu Delaney, apontando o
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nome no seu calendário de secretária. - Importas-te de lhe telefonar a dizer que eu vou ligar para ele?
- Claro que o farei.
- Ele cooperará?
- Absolutamente. Já examinaste os arquivos, Edward?
- Já. Uma vez.
- Viste tudo?
- Muitas lacunas.
- Era o que eu receava. Tu resolverás esses senãos, não é verdade?
- É para isso que me pagam. A propósito, Ivar, quanto é que me pagam?
- Uma caixa de Glenfiddish - respondeu Thorsen. E talvez uma medalha do presidente da Câmara.
- A medalha que se lixe - observou Delaney. - Ficarei com o uísque.
Desligou depois de prometer ao comissário que o manteria informado de qualquer evolução nas investigações. A seguir, deu uma arrumação nas coisas, levando a travessa das sanduíches vazia, as latas de cerveja e a garrafa de soda para a cozinha.
De volta ao seu gabinete, olhou para as caixas de cartão contendo os registos do caso Ellerbee com desagrado. Ele sabia que toda aquela papelada acabaria por ser dividida segundo os assuntos e arrumada em pastas de arquivo individuais. Podia ter pedido a Boone e a Jason para o fazerem, mas era trabalho monótono e sem interesse e ele não queria que eles perdessem o entusiasmo com burocracias.
Levou cinco minutos a encontrar os dois documentos de que andava à procura: a troca de correspondência e notas entre o Dr. Julius K. Samuelson e os advogados do Departamento focando a questão da confidencialidade médico-paciente, e as fotocópias tiradas ao livro de marcações do Dr. Simon Ellerbee.
Depois de reler os papéis, Delaney ficou definitivamente convencido de que o chamado compromisso era ridículo e inoperável. Um detective não teria possibilidade de investigar um possível suspeito sem o interrogar directamente. Decidiu ignorar aquele entrave, e se tivesse de meter o nariz em seara alheia e alguém refilasse, ele enfrentaria o problema quando este surgisse.
O que lhe despertou mais interesse foi o facto de Samuelson ter apresentado a sua argumentação relativa à inviolabilidade dos arquivos de Ellerbee na qualidade de presidente da Associação
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Psiquiátrica de Nova Iorque. Ele era, com efeito, um profissional a preservar éticas profissionais.
Mas Samuelson também era uma testemunha envolvida num caso de assassínio de um amigo da vítima. Em nenhuma parte da correspondência referiu o seu ponto de vista pessoal no que dizia respeito à investigação dos pacientes de Ellerbee tendo em vista a detecção do criminoso.
Ainda mais intrigante, as opiniões da Dra. Diane Ellerbee sobre a questão nunca eram mencionadas. Admitindo que a senhora era psicóloga e não psiquiatra, ainda assim a ausência de objecções da sua parte sugeria que estava disposta a aceitar que os pacientes do marido fossem interrogados.
Delaney afastou os papéis para o lado e recostou-se na sua cadeira giratória, mãos presas atrás da cabeça. Admitiu que sentia uma impaciência irracional para com advogados e médicos. Na sua longa carreira de detective, eles tinham muitas vezes bloqueado, por vezes impedido, as suas investigações. Recordou ter falado no problema com Bárbara, sua falecida mulher.
"Raios os partam! Como é que um tipo pode tornar-se advogado, médico, ou mesmo cangalheiro, para o caso tanto faz. Vivem os três à custa das misérias humanas, ou não é assim? Quero dizer, eles só ganham dinheiro quando as outras pessoas têm problemas jurídicos, estão doentes ou morrem."
Ela fitara-o firmemente.
"Tu és um polícia, Edward", dissera. "É assim que ganhas a vida, não é verdade?"
Ele ficara a olhar para ela, depois rira contritamente.
"Tens toda a razão", respondera-lhe ele. "Eu é que sou um idiota."
Ainda assim, advogados e médicos não se encontravam entre o género de pessoas que preferia. "Aves de rapina", chamava-lhes.
A análise mais aprofundada do livro de registos de Ellerbee mostrou-se mais compensadora. Era uma agenda anual e Delaney, começando pelo primeiro dia do ano, tentou fazer uma lista de todos os pacientes que tinham consultado o médico. Utilizou um bloco de apontamentos de folhas amarelas, onde, em colunas ordenadas, escreveu nomes, frequência das consultas e marcações canceladas.
Foi uma tarefa árdua e quando chegou ao fim, mais de uma hora depois, examinou as páginas amarelas com o auxílio dos seus óculos de ler, sem saber muito bem o que diabo tinha ali.
Havia pacientes que consultavam Ellerbee com uma periodicidade
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regular. Alguns de dois ou três em três meses. Outros, uma vez por mês. Alguns, semana sim, semana não. E também semanalmente. Muitos, duas ou três vezes por semana. Dois pacientes, cinco vezes por semana!
Além disso, havia nomes de pacientes que apareciam referidos na agenda de marcações uma ou duas vezes e depois desapareciam. E havia entradas onde se lia simplesmente: "Clínico". O horário de trabalho do médico estendia-se, de um modo geral, entre as sete da manhã e as seis da tarde, cinco dias por semana. Mas, por vezes, trabalhava até mais tarde, e também aos sábados.
Não era de surpreender que todo o mês de Agosto tivesse um risco de ponta a ponta e sobre ele se lesse a palavra FÉRIAS escrita exultantemente.
Delaney tinha conhecimento, através de outros relatórios, que o Dr. Ellerbee cobrava cem dólares por cada sessão de quarenta e cinco minutos. Seguia-se um intervalo de quinze minutos para recuperar, depois passava ao paciente seguinte. A Dra. Diane Ellerbee cobrava setenta e cinco dólares pelo mesmo período de tempo.
Fez uns cálculos por alto. Partindo do princípio de que tanto o Dr. Simon como a Dra. Diane Ellerbee davam cinquenta consultas por semana, os dois auferiam de uma soma anual de cerca de quatrocentos e vinte mil dólares. Uma bela maquia, que não explicava totalmente a casa da cidade, a mansão do campo em Brewster, os três carros.
Mas a vítima tivera por pai Henry Ellerbee, a quem pertencia uma linda fatia de Manhattan. Talvez o papá entrasse com uma mesada ou houvesse algum depósito envolvido na questão. E talvez a Dra. Diane Ellerbee possuísse fortuna pessoal. Delaney não dispunha de nenhuns dados relativos aos antecedentes desta.
Veio-lhe à lembrança um velho detective, Alberto di Lucca, um tipo muito experiente, que lhe transmitira imensos conhecimentos. Isso fora há muitos anos atrás, na altura em que Big Al e ele andavam a trabalhar na zona de Little Italy. Um dia, calcorreavam eles a Mott Street, palitando os dentes depois de se empaturrarem de linguine com molho de mexilhão no Umbertos, Delaney expressou simpatia pelas pessoas miseravelmente vestidas que via à sua volta.
"Parece que nem um penico têm para mijar", comentou.
Big Al riu.
"É o que tu pensas, não é? Estás a ver aquele sujeito velhote ali encostado à ombreira da padaria, do outro lado da rua? Tem as
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calças tão gastas que se podia ler o jornal através delas. Pois bem, ele é o dono daquela padaria, que não faz outra coisa senão dar dinheiro. E também acontece que possui três mil da AtT."
"Estás a brincar!"
"Não estou", dissera Di Lucca, abanando a cabeça. "Não julgues pelas aparências, moço. Nunca se sabe."
Big Al tivera razão. Quando se tratava de dinheiro, nunca se sabia. Um mendigo podia ser um milionário, e um janota a dar um jantar para oito pessoas no Lutèce podia encontrar-se mesmo à beira da falência.
Portanto, talvez o casal Ellerbee tivesse fontes de rendimento que os homens de Suarez não se tinham ainda posto a investigar. Mais uma lacuna que não podia deixar de ser preenchida.
Edward X. Delaney gostara de Michael Ramon Suarez, gostara da mulher e dos filhos deste. Mas até ver, a investigação conduzida pelo chefe de detectives substituto fora um desastre.
Ofendia o sentido de ordem de Delaney. Tomou consciência de que ele e os seus dois assistentes teriam, na realidade, de começar quase a partir do nada.
Terminou o resto já quente da sua cerveja e, em seguida, dirigiu-se à cozinha, sentando-se à mesa. Fez votos para que Mónica não se esquecesse dos seus biscoitos de manteiga.
Capítulo sexto
- Daqui fala Edward X. Delaney - disse. Ouviu-se um murmúrio divertido.
- E daqui é o doutor Murray Walden - disse uma voz rouca. - Thorsen informou-me de que o senhor telefonaria. Em que lhe posso ser útil, senhor Delaney?
- Pode dispensar-me uma hora do seu tempo?
- Preferia emprestar-lhe dinheiro, e nem sequer o conheço. Imagino que quer já para hoje, não?
- Se possível, doutor.
Fez-se silêncio durante instantes.
- vou fazer-lhe uma sugestão. Tenho de ir à parte norte da cidade a uma audiência. O intervalo está previsto para a uma da tarde, o que significa que terminará por volta das duas, o que por sua vez quer dizer que a essa hora estarei tão esfomeado que não
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serei capaz de ver direito. Esta sua questão, poderíamos discuti-la durante o almoço?
- Claro que podemos - respondeu Delaney, preferindo não ter que o fazer.
- Delaney, esse nome é irlandês. Certo?
- Certo.
- Gosta de comida irlandesa?
- Alguma - disse Delaney cautelosamente. - Desde que não seja carne enlatada e couve, a que sou alérgico.
- Quem é que não é? - comentou Walden. - Há um pub irlandês no East Side, o Eamonn Dorans. Conhece?
- Conheço e adoro. Eles têm cerveja..C. eBushmill de rótulo negro, se uma pessoa é conhecida do barman.
- Bem, pode encontrar-se lá comigo por volta das duas e meia? Calculo que a essa hora já a enchente do almoço esteja despachada, o que nos permitirá arranjar uma mesa para conversar.
- Parece óptimo. Obrigado, doutor.
- Não terá dificuldade nenhuma em me identificar - disse Walden jovialmente. - Serei o único tipo no local sem cabelo.
Não estava a brincar. Quando Delaney entrou pelo bar dentro e olhou em redor, avistou um homem sozinho, instalado numa mesa de dois lugares. O crânio do indivíduo era completamente nu. Um bigode negro, de dimensões não superiores a uma escova de máquina de escrever, não compensava aquela particularidade.
- Doutor Walden? - perguntou.
- Edward X. Delaney? - inquiriu o homem por sua vez, levantando-se e estendendo a mão. - Prazer em conhecê-lo. Sente-se. Acabei de mandar vir duas das tais cervejas J.C. a que fez referência. Okay?
- Não podia estar melhor.
Sentados, inspeccionaram-se um ao outro. Walden sorriu subitamente, exibindo uma boca repleta de dentes demasiado bons para serem verdadeiros. Depois, passou a palma da mão pela calva reluzente.
- Não sou o Yul Brynner ou o Telly Savalas - observou. Mas ainda me restavam tão poucos cabelos que os mandei à fava e rapei tudo.
- E que tal uma cabeleira? - sugeriu Delaney.
- Não, quem é que precisa de uma coisa dessas? Um sinal de insegurança. Contento-me em ter a cabeça como está. As pessoas têm facilidade de me fixar.
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A empregada trouxe as cervejas e o cardápio. O psiquiatra da Polícia consultou o relógio de pulso, aproximando-o bem dos olhos.
- Prometi-lhe uma hora - disse ele -, e é o que vai ter; nem mais, nem menos. Portanto, mandemos vir já as coisas e vamos dar início à conversa.
- Por mim, está bem - disse Delaney. - Eu opto pela carne assada às fatias e mal passada, com fritos caseiros e uma salada de tomate e cebola à parte.
- Podem vir duas doses, por favor - pediu Walden à empregada. - Agora vejamos - disse a Delaney -, o que se passa? Thorsen pareceu-me nervoso.
- É acerca do assassínio do doutor Simon Ellerbee. Conhecia o homem?
- Não éramos amigos pessoais, mas encontrei-o duas ou três vezes a título profissional.
- Como lhe pareceu ele?
- Muito, muito talentoso. Um homem prendado. Grande pensador. Da última vez em que o encontrei, tive a sensação de que andava com problemas, mas quem é que os não tem?
- Problemas? Alguma ideia sobre o que poderia ser?
- Não. Mas mostrava-se calado e taciturno. Não tão extrovertido como das vezes anteriores em que estive com ele. Mas talvez tivesse tido um dia mau. Acontece com todos nós.
- Deve ser penoso lidar com... pessoas perturbadas, todos os dias.
- Pessoas perturbadas! - exclamou o Dr. Walden, voltando a mostrar de novo a fiada de dentes. - Não ia a dizer "tarados", "chanfrados" ou "pirados", pois não?
- Sim, ia - admitiu Delaney.
- Diga-me uma coisa - disse Walden, depois de a empregada colocar os alimentos sobre a mesa -, já alguma vez teve sentimentos de culpa, depressão, tristeza, pânico, medo ou ódio?
Delaney fitou-o.
- Claro que sim.
O psiquiatra fez um gesto de anuência.
- Pois teve, tal como eu, tal como qualquer pessoa. Os leigos pensam que os psicoterapeutas lidam com lunáticos desvairados. Na realidade, a grande maioria dos nossos pacientes são pessoas vulgares que estão a passar pelas mesmas emoções que o senhor já sentiu, mas num grau exagerado. Tão exagerado que se torna superior às suas forças. É por essa razão que, se dispõem de
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dinheiro, consultam um terapeuta. Mas tarados, chanfrados e pirados é que eles não são.
- Acha que a maioria dos doentes do Ellerbee eram assim, essencialmente gente vulgar?
- Bem, não examinei os registos - disse o Dr. Walden cautelosamente -, mas quase apostava que sim. Oh, claro, poderá ter tido alguns casos mais graves, esquizofrénicos, pacientes com disfunções psicossexuais, personalidades múltiplas: material exótico desse género. Mas apostaria em como a maior parte dos seus casos consistia em tipos humanos como os que acabei de descrever: aqueles que não conseguiam controlar sozinhos os seus traumas emocionais.
- Diga-me uma coisa, doutor - disse Delaney -, Simon Ellerbee era psiquiatra e sua mulher, sua viúva, é psicóloga. Qual é a diferença?
- Ele era formado em Medicina; a sua viúva, não. E imagino que os seus estudos e treino fossem diferentes. Se estou bem informado, ela especializou-se em psicologia infantil e realiza sessões de terapia de grupo para pais. Ele era um analista clássico. Não estritamente freudiano, mas analiticamente orientado. Não podemos deixar de ter em conta que existem dezenas de técnicas terapêuticas.. O psiquiatra pode escolher uma e nunca se desviar dela ou pode ir desenvolvendo gradualmente uma amálgama da sua lavra que ele sinta conduzir a melhores efeitos. Trata-se de uma questão muito pessoal. Não sei exactamente de que maneira Ellerbee trabalhava.
- A propósito - observou Delaney, quando a empregada apresentou a conta -, este almoço é por minha conta.
- Nunca tive a menor dúvida - disse Walden alegremente.
- Há pouco disse que os pacientes de Ellerbee eram, provavelmente, pessoas vulgares. Considera alguma pessoa desse género capaz de violência? Quero dizer, contra o analista.
O Dr. Walden recostou-se, tirou uma cigarreira de prata do bolso interior do casaco e abriu-a.
- Não acontece com frequência - disse -, mas lá aparece. A ameaça está sempre presente. Aqui há uns anos, em mil novecentos e oitenta e um, quatro psiquiatras foram assassinados pelos seus pacientes num período de seis semanas. Assustador. Existem muitas razões que podem levar a essa situação. A psicanálise pode ser uma experiência muito penosa, pior do que tratar um dente com o nervo a descoberto, acredite-me! O terapeuta sonda, sonda. O paciente resiste. O tipo que está por trás da
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secretária está a tentar obrigá-lo a revelar coisas horríveis que foram mantidas enterradas durante anos. Às vezes o paciente ataca o médico por este o magoar. Aí está uma razão. Uma outra é a de o paciente recear que o terapeuta fique a saber demasiado sobre ele ao perscrutar a sua alma secreta.
- O que lhe vou dizer é a título confidencial - observou Delaney com gravidade -, porque são aspectos ainda não difundidos junto da imprensa. Depois de Ellerbee estar morto, o assassino voltou-o de barriga para o ar e atingiu-o mais duas vezes, nos olhos, com um martelo de pena redonda. Um dos meus assistentes alvitrou que tal se devesse a uma tentativa de pretender cegar o médico por este ter visto, ou estar a ver, demasiado. Que acha desta teoria?
- Muito perceptiva. E deveras possível. Eu penso que a maior parte das agressões dirigidas contra terapeutas partem, completa e absolutamente, de psicopatas. De facto, a maioria dos ataques tem lugar em prisões e enfermarias hospitalares para doentes mentais criminosos. No entanto, um grande número deles recorre aos consultórios caríssimos dos psiquiatras de Park Avenue. E o que é pior, por vezes a família do psiquiatra é ameaçada e, ocasionalmente, atacada.
- É capaz de calcular a percentagem dos terapeutas que tenham sido agredidos pelos pacientes?
- Posso fazer uma conjectura por alto. Entre um quarto e um terço. Mas é só uma conjectura.
- Já alguma vez foi atacado, doutor?
- Uma vez. Um homem atirou-se a mim com uma faca de caça.
- Como é que resolve uma situação dessas?
- Trago comigo um revólver pequeno. Ficaria surpreendido se soubesse o número de psiquiatras que adoptam este sistema de protecção. Ou mantêm um na gaveta da secretária. Normalmente, uma conversa lenta, pacificadora, pode fazer ultrapassar uma situação perigosa, mas nem sempre.
- Porque é que o tal tipo se atirou a si com uma faca?
- Tínhamos chegado a um ponto de ruptura na sua terapia. Ele tinha um fraco pela filha de quinze anos e não conseguia ou não desejava admitir o facto. Mas continuava a levar as roupas dela a prostitutas, fazendo-as vestir como a filha. Triste, muito triste.
- Ele acabou por admiti-lo? - perguntou Delaney, fascinado.
- A muito custo. Pensei que estava a reagir bastante bem; andávamos a dialogar sobre a questão. Foi então que, cerca de
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três semanas mais tarde, ele saiu do meu consultório, foi para casa e rebentou com os miolos, servindo-se de uma espingarda. Não penso no caso com muita frequência, apenas duas ou três vezes por dia.
- Jesus! - exclamou Delaney com admiração. - Como é que consegue suportar esse tipo de pressão?
- Como é que um homem faz cirurgia de coração aberto? Entra para a sala de operações e espera que tudo corra pelo melhor. Oh, há mais um motivo que leva os pacientes a agredirem, por vezes, os seus terapeutas. Abrange uma espécie de transferência. O doente pode ter sido uma criança maltratada ou odiar os pais por qualquer outra razão. Ele transfere a sua hostilidade para o terapeuta que o está a obrigar a trazer o seu ódio à superfície e a falar dele. O médico transforma-se no parente abusador. Inversamente, o paciente pode identificar-se com o pai agressivo e tentar tratar com o psiquiatra como se este fosse uma criança indefesa. Como já lhe disse, são muitas as razões que podem levar um doente a atacar o seu terapeuta. E para lançar ainda mais confusão na sua cabeça, acrescentarei que algumas das agressões têm sido levadas a cabo sem qualquer razão minimamente discernível.
- Mas a questão principal - insistiu Delaney - reside no facto de os ataques criminosos perpetrados contra psiquiatras não serem tão raros como à primeira vista se pode imaginar e de, nessa conformidade, ser bem possível que o doutor Ellerbee tenha sido vítima de um dos seus pacientes.
- É possível - concordou Walden.
Nessa altura, Delaney, ao ver o médico olhar de relance para o seu relógio de pulso, disse:
- Devo avisá-lo de que posso voltar a incomodá-lo novamente, se necessitar do seu conselho.
- Sempre que quiser. Continue a pagar-me os almoços que eu sou todo seu.
Levantaram-se da mesa e trocaram um aperto de mão.
- Obrigado - agradeceu Delaney. - A sua ajuda foi inestimável.
- A sério? - admirou-se o Dr. Murray Walden, passando a mão pelo crânio calvo. - É muito agradável sabê-lo. Uma palavra final de precaução: se está a pensar em interrogar os pacientes de Ellerbee, não entre a matar. Conduza as coisas com muita suavidade. Fale com calma. São pessoas que já se sentem
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suficientemente ameaçadas mesmo sem terem de estar a tratar com um desconhecido.
- Não me esquecerei desse aspecto.
- Claro - acrescentou Ealden pensativamente -, que poderão aparecer alguns com os quais obterá melhores resultados se os tratar com brusquidão, gritando-lhes e intimidando-os.
- Santo Deus! - exclamou Edward X. Delaney. - Não há nada de definido na sua profissão?
- Absolutamente nada - respondeu Walden.
Capítulo sétimo
Encontravam-se os três sentados no gabinete de trabalho, inclinados para a frente, atentos.
- Muito bem, Jason - disse Delaney -, avança você primeiro.
O agente negro folheou o bloco de notas de bolso, procurando as páginas pretendidas.
- A viúva está ilibada, tanto quanto as tais chamadas de Brewster o podem garantir. Telefonou realmente para a garagem de Manhattan à hora indicada. Fez o mesmo para o doutor Samuelson, mais tarde. A Companhia dos Telefones tem um registo. Falei com o polícia de Brewster que recebeu a chamada dela perguntando se este sabia de algum acidente de automóvel envolvendo o marido. Ele diz que ela não parecia histérica, mas dava mostras de estar preocupada e ansiosa. Daí não há mais nada. Então, só para me entreter, passei pela garagem de Manhattan para perguntar a que horas é que a senhora fora buscar o carro na sexta-feira à noite.
- Boa ideia - comentou Delaney aprovadoramente.
- Bem, ela tirou o carro às vinte e duas horas, o que se aproxima bastante do depoimento apresentado. Não encontrei lacunas de espécie alguma.
- Belo trabalho - disse Delaney. Sargento? Boone examinou o seu bloco de notas.
- Samuelson também parece limpo. Antes do concerto, jantou com dois amigos no Russian Tea Room. Estes afiançaram a sua presença. Ele é que escolheu a mesa e depois pagou com um cartão de crédito. Dei uma vista de olhos à sua assinatura e à cópia
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com que o restaurante ficou do cartão. Tudo bate certo. A seguir, Samuelson e os amigos foram ao concerto. Dizem não se ter ausentado em nenhuma ocasião, o que provavelmente é verdade porque depois de este terminar passaram os três pelo St. Moritz para a última bebida da noite. Tudo isto cobre o espaço de tempo relativo à morte de Ellerbee, pelo que penso que podemos riscar o doutor Samuelson.
Delaney não proferiu palavra.
- Agora, quanto aos registos criminais... - prosseguiu o sargento -, investiguei Ellerbee, a viúva, o pai, as duas recepcionistas, as duas velhotas que são donas da galeria de arte no primeiro andar, o encarregado que se ocupa do edifício em Kgimepart-time, e o tipo que tem o apartamento de topo alugado. O único que tem cadastro é este último, o produtor cinematográfico da costa ocidental que se serve daquele apartamento quando vem à cidade. Chama-se J. Scott Hergetson e as suas infracções são menores: violações de trânsito, incomodou os cidadãos na via pública, pôs-se a urinar no meio desta sob o efeito de uma grande bebedeira, e uma vez andou metido numa questão de droga. Aconteceu numa discoteca a que passaram uma busca. Ele foi dentro juntamente com mais cinquenta pessoas. Nada de especial. As acusações foram retiradas.
- Portanto, é o que há? - perguntou Delaney.
- Não é exactamente tudo - disse Boone, folheando o seu bloco de notas. O médico legista diz que Ellerbee morreu perto das nove da noite. Estes são os locais onde todas estas pessoas afirmam ter estado nessa altura...
"A doutora Diane Ellerbee estava em Brewster, à espera de que o marido chegasse.
"Henry Ellerbee encontrava-se num jantar de caridade no Plaza Hotel. Confirmei a sua presença no mesmo às nove da noite.
"O doutor Samuelson estava no concerto do Carnegie Hall. Confirmado.
"Uma das recepcionistas estava em casa a ver televisão com a mãe. A mamã diz que sim, que é verdade. Quem sabe?
"A outra recepcionista afirma que se encontrava enfiada com o namorado no apartamento deste. Ele diz que assim era. Quem sabe?
"O encarregado diz ter estado no seu clube a jogar às cartas. Os outros tipos que participaram no jogo dizem que sim, que ele esteve lá.
"As duas senhoras que dirigem a galeria de arte participavam
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num jantar particular juntamente com oito outras pessoas ligadas à assistência médica. a sua presença foi confirmada. Além disso, as duas são tão frágeis que não me parecem capazes de ter podido levantar um martelo de pena redonda.
"O produtor que vive no apartamento participava num festival cinematográfico no Sul de França. A sua presença ali foi confirmada pelas notícias e fotografias que vieram nos jornais. Risca-se.
"E é tudo."
Delaney olhou, admirativamente, de Boone para Jason e deste de novo para o primeiro.
- Para que diabo precisa Suarez de mim? Vocês os dois são capazes de resolver este caso sozinhos. Bem, aqui está o que eu tenho. Não é grande coisa.
Transmitiu-lhes um resumo da conversa que tivera com o psiquiatra da Polícia e contou-lhes o que o Dr. Walden dissera relativamente à incidência de ataques que os terapeutas sofriam por parte dos seus pacientes.
- Ele calculou que cerca de um terço, um quarto de todos os psiquiatras já sofreu agressões. Essas percentagens parecem válidas. Depois daquilo que vocês acabaram de me dizer, começo a pensar que a melhor hipótese que nos resta é a lista de doentes do doutor Ellerbee.
A seguir, disse que Walden concordara com a teoria de Boone referente à questão dos golpes de martelo nos olhos: podia ser um esforço simbólico para cegar o médico.
- Depois de este estar morto?
- Bem, Walden é de opinião de que a maioria dos ataques levados a cabo contra terapeutas são da responsabilidade de psicóticos. Não lhe falei dos dois conjuntos de pegadas não identificadas. Isso poderia significar que temos dois psicóticos a trabalhar em conjunto, ou que Ellerbee recebeu dois visitantes naquela noite, a horas diferentes. Alguma ideia?
Jason e Boone olharam um para o outro, depois abanaram negativamente a cabeça.
- Muito bem - disse Delaney bruscamente. - Aqui está o que vamos fazer a seguir. Quero ver a casa da cidade e conhecer a doutora Diane Ellerbee. Talvez as duas coisas se possam fazer ao mesmo tempo. Sargento, que tal telefonar agora para ela? Diga-lhe que gostaria de lhe falar o mais breve possível, no âmbito da investigação que está a desenvolver sobre a morte do marido. Não refira a minha presença nessa ocasião.
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Boone, em vez de ir procurar o número do telefone de Diane Ellerbee às caixas de cartão, optou por consultar a lista telefónica de Manhattan. Identificou-se e pediu para falar com a doutora. Acabou por dar o número do telefone de Delaney. Depois desligou.
- Ela está com um paciente - informou. - A recepcionista disse-me que daria o recado à doutora assim que esta estivesse livre.
- Esperaremos - disse Delaney. - Não deverá demorar mais de quarenta e cinco minutos. Entretanto, há uma coisa sobre a qual pretendo obter mais informações. Boone, conheces um detective chamado Parnell? Creio que o primeiro nome dele é Charles.
- Oh, raios, sim! - exclamou o sargento, sorrindo. Conheço-o. Chamam-lhe Daddy Warbucks. Ainda está no activo.
- é esse mesmo - disse Delaney. Virou-se para Jason.
- Não se pode esquecer de que há detectives que fazem uma boa carreira especializando-se. Quanto a esse tal Parnell, ele é um perito financeiro. Se se deseja saber o estado das economias de uma pessoa, ele não tem dificuldade em se inteirar de tudo. Tem contactos com bancos, accionistas, agências de crédito, auditorias, e, tanto quanto sei, com o Fisco. Sabe como decifrar transferências de bens, testamentos e relatórios de homologações testamentárias. É precisamente o tipo de que precisamos para passar a pente fino a situação financeira do falecido e da sua viúva. Sargento, conte ao chefe Suarez todos os passos que demos até agora, não deixe nada de fora, e depois peça-lhe para mandar Daddy Warbucks investigar as finanças do morto e da doutora Diane Ellerbee.
Fez uma pequena pausa para reflectir. Depois acrescentou:
- E já agora também sobre o doutor Julius K. Samuelson. Vejamos a quanto monta a sua conta bancária.
- Será feito - disse Boone, tomando algumas notas rápidas no seu bloco de apontamentos.
- Senhor- disse Jason, hesitante -, importa-se de nos dizer das razões que o levam a dar este passo?
- Cui bono - respondeu Delaney prontamente. - Quem é que beneficia? Neste caso, quem é que fica a ganhar com a morte de Simon Ellerbee? Não estou a afirmar que o motivo deste crime tenha sido o dinheiro, mas também não é de todo impossível. Sem dúvida que este tem estado na origem de muitos homicídios, em
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que o criminoso acaba por ser um dos membros da família ou um beneficiário. É uma coisa que tem de ser investigada.
- vou deitar imediatamente mãos a... - começou Boone a dizer, quando o telefone o interrompeu.
- Deve ser a doutora Diane - disse Delaney. - É melhor o senhor atender, sargento.
Este falou com brevidade, desligando o telefone logo a seguir e voltando-se para os outros dois.
- Às seis da tarde de hoje - informou. - A essa hora já terá terminado as consultas.
- Como é que ela lhe pareceu? - perguntou Delaney.
- Furiosa. A tentar manter-se controlada. Não estou nada ansioso por este encontro, senhor.
- Tem de ser feito - disse Delaney teimosamente. - Dizem que a senhora é uma autêntica beldade, se é que isso lhe serve de alguma consolação. bom, dispomos de cerca de oito horas. Boone, porque não contacta com Suarez para ele pôr Charles Parnell a trabalhar nos relatórios financeiros? Jason, você fica com o carro e vai até Brewster. Os Ellerbees têm um casal de trabalhadores que lhes toma conta da casa. O homem procede aos trabalhos de manutenção e funciona no exterior da casa. Deve ter uma arrecadação ou oficina nas proximidades.
- Oh! Oh! - exclamou Jason. - O senhor quer saber se ele tem algum martelo de pena redonda, certo?
- Certo! E se assim for, ainda está na posse dele? Nesse caso, traga-o consigo.
- Oh, sem dúvida - disse Jason.
- E enquanto estiver por lá, dê uma vista de olhos à casa e ao terreno circundante. Gostaria de conhecer a sua impressão sobre ambas as coisas.
- Já estou de saída.
- E eu também - disse Boone, enquanto os dois agentes se levantavam para sair.
- Sargento, encontro-me consigo no prédio dos Ellerbees às cinco e meia. Isso permitir-nos-á dar uma olhadela às redondezas antes de nos encontrarmos com a viúva.
- Lá estarei - prometeu Boone.
Depois de saírem, Delaney voltou para o seu gabinete e olhou para as caixas de cartão com aversão. Tinha de ser feito, mas era tarefa que abominava.
Deitou mãos ao trabalho, separando os registos e guardando-os em pastas de arquivo separadas: a vítima, a Dra. Diane Ellerbee, o
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Dr. Julius Samuelson, os relatórios e fotografias do médico-legista, os relatórios, fotografias e o mapa dos peritos, os depoimentos de todos os interrogados. Depois, acrescentou notas da conversa tida com o Dr. Murray Walden e o que o sargento Boone e Jason T. Jason lhe tinham acabado de transmitir.
O trabalho decorreu com maior rapidez do que aquela que previra e, cerca do meio-dia e meia hora, tinha um monte de pastas de arquivo razoavelmente arrumadas, dentro das quais se encontravam todos os dados conhecidos sobre o assassínio do Dr. Simon Ellerbee. Era tempo, reconheceu, de uma sanduíche.
Foi à cozinha, abriu o frigorífico e inteirou-se das possibilidades. Só lá encontrou uma única cebola, dura que nem uma pedra, mas que podia ser grelhada. E ainda havia algumas fatias de carne de porco assada. Um pouco de salada de batata alemã. Alho-porro que podia cortar às fatias. Talvez um pedacinho de rábano silvestre.
Juntou todos os elementos e comeu inclinado sobre o lava-loiça. Mónica teria ficado furiosa, mas saíra a fim de ir fazer trabalho voluntário num hospital local. Andava constantemente a censurá-lo por aquele seu vício, e tinha razão; ele estava demasiado pesado. Era difícil convencê-la de que o conde de Sandwich fora um dos grandes benfeitores da civilização.
Regressou ao gabinete, onde ficou a olhar para o monte de ficheiros que diziam respeito ao caso Ellerbee.
Tinha o pressentimento inquietante de que aquele caso iria estar repleto de "pontas soltas". Era a designação que ele dava às investigações em que nada podia ser dado como certo, em que não conseguia ser determinado com precisão. Uma centena de suspeitos, uma centena de álibis, e ninguém podia dizer sim ou não.
Uma pessoa tinha de viver com aquela confusão e, se tivesse um bocado de sorte, arredar o que era desprovido de significado e o que não tinha nenhum interesse, deixando ficar apenas o importante. Mas como distinguir uma coisa da outra? Pistas falsas e tempo perdido em busca de rastos que se desvaneciam. Entretanto, Thorsen tencionava ter o crime completamente resolvido por ocasião das festas. Para que o seu homem pudesse ser promovido.
Dois conjuntos de pegadas não identificadas e dois golpes nos olhos da vítima. Teriam esses dois factores algum significado? Ora, Ellerbee dissera à mulher ter um paciente marcado para tarde, querendo referir-se, presumivelmente, a alguém que o iria consultar depois das seis horas da tarde. Mas morrera
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aproximadamente às nove horas. Teria ele esperado todo aquele tempo por um paciente tardio? Alguém que teria chegado, digamos, por volta das oito e trinta.
Não havia sinais de entrada forçada. Portanto, Ellerbee abrira a porta a alguém, alguém que aguardava. Uma pessoa ou duas? E porque teriam deixado a porta da rua aberta ao saírem?
- Foi o mordomo - disse Delaney em voz alta, puxando em seguida o bloco amarelo para si e colocando os óculos para começar a anotar os factos que diziam respeito aos aspectos ainda por esclarecer.
Era uma lista longa, deprimente. Ficou a olhar para ela, incomodado pela sensação de que devia estar a falhar o óbvio.
Recordou-se de um caso de que tratara fazia alguns anos. A Amsterdam Avenue fora perturbada por uma série de roubos à mão armada; seis pequenas lojas tinham sido atingidas num espaço de dois meses. Tudo indicava que era o mesmo cowboy a efectuá-los, um jovem punk com bigode à Fu Manchu, portador de uma pistola niquelada.
Um dos seis locais que reivindicou ter sido vítima de assalto à mão armada foi uma mercearia familiar próximo da Rua 78. Os proprietários viviam num apartamento que ficava nas traseiras da mesma. A velhota abria as portas todos os dias às sete e meia. O marido normalmente juntava-se a ela, atrás do balcão, entre meia a uma hora mais tarde.
Nessa manhã específica, contou o velhote, a mulher fora abrir a loja como de costume. Ele estava a vestir-se quando ouviu um tiro de pistola, correu para a loja e encontrou-a estendida por trás do balcão. A caixa registadora estava aberta, disse, e cerca de trinta dólares em notas e moedas tinham desaparecido.
A velhota estava morta, tendo recebido no peito o que se provou ser uma bala de revólver calibre trinta e oito. Delaney e o seu companheiro da altura, um detective de segundo grau chamado Loren Pierce, atribuíram o crime ao punk estilo Fu Manchu da pistola reluzente. Não tinham possibilidades de se pôr a guardar todas as pessoas lojas da Amsterdam Avenue, mas passaram a vigiar atentamente as redondezas, gastando muitas das suas horas de lazer a calcorrear as ruas, de olho em todos os tipos de bigode.
Até que, por fim, tiveram sorte. O ladrão tentou limpar uma charcutaria, não reparando que o filho do dono desta se encontrava, de joelhos, fora do campo de visão, por trás de uma pilha de caixas de cartão, arrumando materiais nas prateleiras. O filho
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levantou-se e atingiu o punk na cabeça com uma lata de fiambre de dois quilos. Foi o fim da onda de crimes.
Descobriu-se que o punk era um viciado em cocaína em pó, pelo que roubava para sustentar um hábito diário que lhe custava quinhentos dólares. E o que ainda era mais interessante, a sua arma niquelada era de calibre vinte e dois, e tinha o cano tão sujo que lhe teria esfacelado a mão se tentasse disparar.
Os detectives Delaney e Pierce olharam um para o outro e amaldiçoaram a sua sorte. Depois voltaram à mercearia familiar, mas só depois de investigarem e descobrirem que o velhote dispunha de uma licença para ter um revólver de calibre trinta e oito no seu estabelecimento. Exerceram pressão sobre ele, e o homem confessou quase imediatamente.
"Ela estava sempre a chatear-me", queixou-se ele.
Era sobre probabilidades como essa que Delaney pensava ao preocupar-se com a ausência do óbvio. Ele e Pierce deviam ter-se informado imediatamente se o homem tinha alguma licença de porte de arma. Esclarecer logo de início as pequenas coisas só podia trazer convenientes. Era um erro partir do princípio de que todos os criminosos eram grandes cérebros; a maioria era estúpida.
Ponderou todos os factos conhecidos no caso Ellerbee e não foi capaz de nada de simples e óbvio que lhe tivesse escapado. Pensou que o caso provavelmente estava ligado ao carácter do morto e ao relacionamento deste com os seus pacientes.
Reflectiu durante algum tempo e admitiu que sentia um desprezo irracional pelas pessoas que procuravam auxílio para os seus problemas emocionais. Ele nunca o faria; estava convencido disso. A morte de Bárbara, sua primeira mulher, deixara-o de rastos durante muito tempo. Mas saíra da fossa pelos seus próprios meios.
No entanto, não hesitava em procurar ajuda para males físicos. Um vírus, uma pontada no fígado, uma lesão cutânea que não sarava, e lá ia ele consultar um especialista. Então porquê aquele desdém para com as pessoas que levavam os seus tormentos interiores até um profissional da matéria?
Porque, supunha Delaney, havia um elemento de medo no seu preconceito. Psicólogos e psiquiatras lidavam com algo que não era visível. Existia um mistério e pavor. Era como levar o cérebro a um bruxo. Contudo, Delaney sabia que se queria chegar a conclusões no caso Ellerbee, não podia deixar de cultivar e evidenciar simpatia para com aqueles que frequentavam bruxos.
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Saiu cedo de casa, decidindo ir a pé até ao prédio dos Ellerbees, onde se encontraria com Abner Boone. Estava um dia enevoado, apresentando uma cobertura de nuvens espessa como a pele de um elefante. No ar pairava um cheiro a neve, e o vento forte de noroeste fê-lo deitar a mão ao seu chapéu de feltro mais de uma vez.
Obedecendo a um impulso, parou numa loja de ferragens da 1ª Avenida. Todos os empregados estavam ocupados, circunstância que ele muito apreciou. Encontrou um mostruário de martelos e escolheu um de pena redonda. Deixou-o ficar na mão, balançando-o suavemente de cima para baixo. Eram muitas as ferramentas utilitárias que podiam fazer as vezes de armas letais. Interrogou-se o que viria primeiro. Se tivesse de se deitar a adivinhar, diria que as armas é que tinham evoluído para as ferramentas.
Aquela pequena saliência reluzente podia efectuar uma perfuração no crânio de um homem se manejada com força suficiente
- sobre esse facto não restavam dúvidas. Um homem tê-lo-ia feito com facilidade, mas também uma mulher que fosse forte e determinada. Voltou a colocar o martelo no lugar, não tendo ficado a saber absolutamente nada.
Boone estava à sua espera em frente da casa, no passeio do outro lado da rua. Aconchegava-se dentro do seu casacão, mãos nos bolsos, ombros encurvados.
- Este vento é um horror - observou. - Estou aflito dos ouvidos.
- Eu sinto o frio é nos pés - disse Delaney. - Queixa de polícia velho. Os pés são os primeiros a dar de si. Falou com Suarez?
- Sim, senhor. Pelo telefone. Ele estava atarefadíssimo com um milhão de outras coisas.
- Imagino.
- Parece-me ser um homem paciente. Muito delicado. Pediu-me que eu lhe agradecesse em seu nome por se manter em contacto com ele e pelos esforços que desenvolveu até aqui.
- E quanto a Parnell?
- Vai pô-lo a trabalhar de imediato nos relatórios financeiros. Penso que ficou um pouco embaraçado por não ter pensado ele mesmo na hipótese. ,
- Tem que baste de preocupações - disse Delaney com ar ausente, olhando para o outro lado da rua. - Esta é então a casa. Aquele edifício de pedra cinzenta?
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- Exactamente, senhor.
- É mais pequeno do que eu pensava. Vamos dar uma volta por aí antes de entrar.
Caminharam até à East End Avenue, inspeccionando os edifícios que se erguiam de ambos os lados da Rua 84. O quarteirão continha um misto de prédios de apartamentos com vestíbulos em mármore, casas de pedra castanha em muito mau estado, uma escola, edifícios elegantes, outros de aspecto degradado e alguns estabelecimentos comerciais nas esquinas que davam para a avenida.
Olharam para o East River, viraram-se e voltaram para York.
- Muitas passagens entre edifícios - observou Boone. Vestíbulos abertos e átrios com as portas exteriores destrancadas. O assassino poderia ter entrado para algum deles a fim de se refugiar da chuva.
- É possível - concordou Delaney. - Mas então como é que ele entrou no edifício dos Ellerbees? Não se viram indícios de entrada forçada. O que dá que pensar é o que o criminoso fez depois de cometido o acto. Afastou-se debaixo de chuva, deixando a porta aberta? Ou tinha um carro estacionado nas proximidades? Ou se calhar foi a pé por York ou por East End para apanhar um táxi? Ambas as avenidas têm dois sentidos.
- Meu Deus, senhor - exclamou o sargento -, com certeza não está a pensar verificar os registos dos táxis daquela noite, pois não? Que empreitada!
- De momento não o faremos, mas pode vir a tornar-se necessário. Além disso, não devia haver assim tanto táxi a trabalhar nessa noite de sexta-feira. Não estava só a chover; havia uma autêntica inundação. Bem, esta rua não nos vai dar esclarecimentos nenhuns. Vamos falar com a viúva. São quase seis horas.
A porta exterior do prédio dos Ellerbees estava destrancada e dava para um átrio iluminado, onde se encontravam as caixas do correio e uma campainha de metal polido. Boone experimentou a porta interior.
- Fechada - informou. - Esta foi a porta interior que o doutor Samuelson encontrou aberta quando chegou.
- Bela porta - comentou Delaney. - Carvalho clareado com vidro cortado a bisel. Já pode tocar, sargento.
Boone carregou no botão que se via ao lado de uma placa impecavelmente impressa com o nome: DRA. DIANE ELLERBEE.
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A voz feminina que se fez ouvir em resposta, pareceu inesperadamente alta:
- Quem é?
- Sargento Abner Boone, do Departamento da Polícia de Nova Iorque. Falei consigo ontem de manhã.
Ouviu-se um zumbido e eles empurraram a porta. Detiveram-se, por instantes, na entrada. Delaney experimentou a porta que dava para a Galeria Piemonte. Estava trancada.
Olharam em redor com curiosidade. O vestíbulo e a escada estavam cobertos por uma alcatifa de óptima qualidade. A iluminação era fornecida por um pequeno candeeiro de cristal que pendia do tecto alto.
- Muito bonito - comentou Delaney. - E olha para aquele corrimão. Alguém fez ali um belo trabalho de restauro. Bem, vamos subir. Sargento, você é quem conduz a conversa.
- Não me deixe esquecer nada - pediu Boone com voz ansiosa.
Delaney soltou um resmungo de concordância.
A mulher que os cumprimentou diante da porta aberta do segundo andar era alta, formal. O cabelo louro entrançado, que usava recolhido no alto da cabeça, fazia-a parecer ainda mais alta.
Uma valquíria, foi a reacção inicial de Delaney.
- Posso ver a vossa identificação, por favor? - perguntou com voz seca.
- com certeza - respondeu Boone, entregando-lhe a sua carteira contendo o distintivo e a identificação.
Ela inspeccionou as duas coisas com toda a atenção, fechou a carteira e devolveu-a a Boone.
- E o senhor, quem é? - perguntou.
Delaney não se deixou intimidar pelo tom superior, agressivo, da voz da mulher. De facto, admirou os cuidados a que ela se dava; a maior parte das pessoas teria aceite as credenciais de Boone sem questionar quem quer que o acompanhasse.
- Edward X. Delaney, minha senhora - disse com voz tranquila. - Sou um consultor civil a prestar assistência ao Departamento da Polícia de Nova Iorque na investigação da morte do seu marido. Se tem alguma dúvida, por mais pequena que seja, sugiro-lhe que telefone para o primeiro-comissário Ivar Thorsen ou para o chefe de detectives Michael Ramon Suarez. Ambos confirmarão as minhas afirmações. O sargento Boone e eu podemos esperar aqui fora enquanto faz a chamada.
Ela olhou-os fixamente.
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- Não - disse -, isso não será necessário. Acredito nos senhores. Acontece apenas que desde... desde que aquilo aconteceu, tenho tomado cuidados especiais.
- Faz muito bem - concordou Delaney.
Entraram para o gabinete da recepcionista, reparando os dois que a Dra. Diane Ellerbee corria o fecho duplo da porta depois de todos se encontrarem no interior da divisão.
- Minha senhora - inquiriu Delaney -, este piso tem a mesma disposição que o do... que o de lá de cima?
- Ainda não o viram? - perguntou ela, admirada. - Sim, as instalações do meu marido são idênticas. Não em termos de decoração ou mobília, evidentemente, mas a disposição das divisões é a mesma.
Conduziu-os até ao seu consultório, deixando a porta de comunicação que dava para o gabinete da recepcionista aberta. Convidou-os a sentarem-se em duas poltronas de costas baixas, forradas a cretone.
- Não são muito confortáveis, pois não? - comentou ela, sorrindo pela primeira vez: uma sombra de sorriso. - É deliberado. Não quero que os meus pacientes mais jovens caiam na indolência. Essas poltronas obrigam-os a contorcerem-se e a mudarem de posição. Penso que é produtivo.
- Doutora Ellerbee - disse Boone solenemente, inclinando-se para a frente -, gostaria de lhe apresentar as minhas condolências e as do senhor Delaney relativamente à trágica morte do seu marido. Que era, na opinião de todos, um homem notável. Solidarizamo-nos consigo na sua perda.
- Obrigada - retorquiu ela, sentando-se atrás da secretária como uma rainha. - Agradeço a vossa gentileza. Ficar-vos-ia ainda mais grata se descobrissem a pessoa que matou o meu marido.
Delaney aproveitou a troca de palavras para ir examinando o consultório, tentanto, no entanto, não dar demasiado nas vistas.
A sala parecia-lhe excessivamente limpa, quase ao ponto da esterilidade. As paredes estavam pintadas num tom creme, a carpeta era de um bege-claro. Havia uma árvore-da-borracha (que parecia artificial) num vaso de palhinha. A única decoração de que as paredes dispunham era de duas ampliações de Roschach, que pareciam tão abstractas como caligrafia japonesa.
- Ambos - continuou Boone - lemos várias vezes o depoimento que prestou aos investigadores da Polícia. Não queremos que nos responda às mesmas perguntas. Mas eu
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gostaria de dizer que, ocasionalmente, depois de um acontecimento chocante como este, as testemunhas vêm a recordar, dias e até meses mais tarde, detalhes adicionais. Se conseguir acrescentar algum pormenor às suas afirmações, seria extremamente útil que contactasse connosco de imediato.
- Espero sinceramente que não levem meses a encontrar o assassino do meu marido - observou ela asperamente.
Fitaram-na inexpressivamente, e ela soltou uma pequena risada desprovida de alegria.
- Sei que tenho sido muito chata para a Polícia - disse. E Henry também, o meu sogro. Henry Ellerbee. Mas não pareço capaz de reprimir a minha raiva. Tenho passado toda a minha vida profissional a ensinar pacientes a ultrapassarem as injustiças deste mundo. Mas agora que elas se abateram sobre mim, mal as consigo suportar. Talvez esta experiência me torne uma terapeuta mais eficiente. Mas devo dizer-lhe com toda a honestidade que no momento nada mais senti para além de raiva e de um desejo de vingança, emoções que nunca experimentei antes e que não estou a conseguir controlar.
- É perfeitamente compreensível, minha senhora - disse Boone. - Acredite-me, estamos tão ansiosos quanto a senhora por identificar o assassino. Foi por essa razão que solicitámos este encontro, na esperança de que possamos saber algo mais de si que facilite a nossa investigação. Antes de mais nada, será demasiado penoso falar do seu marido?
- Não - disse ela com ar decidido. - Pensarei e falarei de Simon o resto dos meus dias.
- Que tipo de homem era?
- Um ser humano deveras superior. bom, meigo, dotado de uma compaixão imensa pela infelicidade das outras pessoas. Penso que todos os colegas que o conheciam ou contactaram reconheciam que se tratava de um homem muito dotado. Para além desse facto, possuía uma mente excepcional. Era capaz de chegar à origem de um problema psiquiátrico com rapidez tal que muitos dos seus colegas designavam o facto de instinto.
Enquanto ela ia falando, Delaney escutava-a, observando-a muito atentamente. Ivar Thorsen e Mónica não o tinham enganado: Diane Ellerbee era dotada de uma beleza deslumbrante.
Um perfil suavemente desenhado, digno de uma moeda. Olhos azuis-celestes que pareciam mudar de coloração consoante o estado de espírito. Um olhar directo, desafiador. Uma pele de porcelana. Uma boca generosa que prometia sorrisos e beijos.
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Vestia um saia-casaco de corte impecável de fazenda de flanela, no entanto uma lona não teria podido esconder a sua figura. Ela não se movia, flutuava.
O que era mais desconcertante, quase assustador, era a sua perfeição. Ela era uma valquíria, pensou ele firmemente. Era uma escultura de Brancusi, algo sereno que atraía o olhar com a sua forma e acalmava com a sua superfície. "Maravilhosa" era a palavra que lhe ocorria, significando algo ligado ao encantamento. Sobrenatural.
- Não interprete mal as minhas palavras - disse ela, brincando com uma esferográfica que tinha na secretária e olhando para ela. - Não quero que Simon dê a impressão de ter sido um homem perfeito. Não o era, claro. Tinha os seus momentos de mau humor. Acessos de silêncio. Explosões de raiva raros, mas ocasionais. Mas durante a maior parte do tempo era um homem alegre, conciliador. Quando estava deprimido, normalmente era porque sentia estar a falhar com algum paciente. Propunha-se objectivos muito elevados e quando via que o seu potencial estava a ficar aquém do que era necessário para os atingir, ia-se abaixo.
- Notou alguma alteração nele, digamos, durante os últimos seis meses ou um ano? - perguntou Boone.
- Alteração?
- No seu comportamento, na sua personalidade. Comportava-se como um homem preocupado ou, talvez, como um homem que recebeu sérias ameaças contra a sua vida?
Ela reflectiu por um momento.
- Não - respondeu, por fim -, não me dei conta de nenhuma mudança.
- Doutora Ellerbee - disse Boone gravemente -, neste momento estamos a investigar os pacientes do seu marido, de acordo com os termos acordados numa negociação que teve lugar entre o doutor Samuelson e o Departamento. Tem conhecimento desse compromisso?
- Oh, sim - respondeu ela. - Julie falou-me dele.
- Considera possível que um dos pacientes possa ter sido o assassino?
- Sim, é possível.
- Já alguma vez a doutora foi atacada por um dos seus doentes?
- Já aconteceu.
- E como é que resolveu a questão?
- Deve compreender - disse ela com um sorriso fatigado -,
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que a maioria dos meus pacientes é constituída por crianças. Ainda assim, a minha primeira reacção foi a de me proteger a mim própria. E eu sou uma mulher forte. Recuso-me a deixar que me ataquem ou agridam.
- Responde à violência com a violência para se defender?
- Exactamente. Admirar-se-ia se soubesse até que ponto essa técnica pode ser eficaz.
- A senhora e o seu marido costumavam falar de negócios quando estavam juntos e a sós?
- Negócios? - inquiriu ela, à medida que o sorriso se lhe tornava progressivamente mais rasgado e encantador. - Sim, falávamos de negócios, se se refere à discussão dos nossos casos. Era um hábito constante. Ele procurava as minhas reacções e conselhos e eu os dele. Sargento, esta não é uma profissão que se suspenda quando fechamos a porta do consultório para irmos para casa.
- A razão que me levou a fazer-lhe essa pergunta é a seguinte. O seu marido tinha um grande número de pacientes, principalmente se incluirmos todos aqueles que já não recorriam aos seus serviços. vou gastar muito tempo e vou ter muito trabalho a investigá-los a todos. Contávamos que pudesse ajudar-nos a acelerar o processo. Se o seu marido discutia os seus casos consigo, como já afirmou que fazia, não se importa então de seleccionar os pacientes que pense serem capazes-de violência?
Ela permaneceu em silêncio, fitando os dois, enquanto os dedos compridos, afilados, brincavam com a caneta sobre o tampo da secretária.
- Não sei - respondeu ela com ar preocupado. - É um assunto delicado, envolvendo éticas médicas. Não sei até que ponto devo ir. Neste momento não dou nenhuma resposta afirmativa. Acho melhor recorrer a outras opiniões. À de Julius Samuelson, por exemplo. Se agisse por impulso, diria, raios, que sim, que faria qualquer coisa que possa ajudar. Mas não quero cometer nenhum erro. Posso dar-vos a resposta mais tarde? Não devo demorar mais de um dia ou dois.
- Quanto mais cedo, melhor - disse Boone, olhando depois rapidamente para Delaney a fim de lhe dar a saber que terminara.
Este, que ficara bem impressionado com a maneira como o sargento conduzira o interrogatório, inclinou-se para a frente na poltrona e, cerrando as mãos uma na outra, entre os joelhos abertos, fitou a Dra. Diane Ellerbee.
- Doutora - disse -, tenho uma pergunta para lhe fazer,
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uma pergunta muito pessoal que poderá considerar ofensiva. Mas tem de ser feita. O seu marido era-lhe fiel?
Ela atirou a esferográfica para cima da secretária. Esta caiu no chão, mas ela não se deu ao cuidado de a ir apanhar. Viram-na ficar rígida, os maxilares cerrados. Os olhos azuis-celestes pareceram escurecer. Fitou Edward X. Delaney.
- O meu marido era-me fiel - respondeu em voz alta e clara. - Fiel desde o dia do nosso casamento. Sei que muita gente diz que a esposa é sempre a última a saber, mas eu juro-lhe que sei que o meu marido nunca me traiu. Fizemos com que o nosso casamento resultasse, ele era feliz. Eu era fiel a Simon e ele era-me fiel.
- Não tiveram filhos? - perguntou Delaney.
Ela fez um pequeno trejeito. De dor, de desagrado?
- O senhor ataca logo em força, não ataca? - observou secamente. - Não, não tivemos filhos. Por incapacidade minha. Isso irá ajudar a encontrar o assassino do meu marido?
Delaney pôs-se de pé e, um segundo depois, o sargento Boone levantou-se com um salto.
- Doutora Ellerbee - disse Delaney -, quero agradecer a sua colaboração. Não lhe posso garantir que as informações que acaba de nos prestar sejam úteis na nossa investigação, mas nunca se sabe. Indicar os nomes dos pacientes do seu marido que considerasse capazes de violência homicida, seria uma óptima ajuda.
- Falarei com Julie - respondeu ela, anuindo. - Se ele concordar, ligarei para si o mais depressa que puder.
Boone entregou-lhe o seu cartão.
- Eu posso ser contactado através desse número, doutora, ou, se não estiver, é só deixar recado. Obrigado pela ajuda, minha senhora.
No exterior, caminharam no sentido oeste da York Avenue, punhos enfiados nos bolsos, ombros encolhidos contra o vento cortante.
- bom trabalho - comentou Delaney. - Conduziu as coisas de maneira impecável.
- Uma mulher muito, muito linda - disse Boone. - Mas a que conclusões é que chegamos? Nenhumas.
- Não estou bem certo. Foi interessante. E, sim, não há dúvida de que é uma bela mulher.
- Acha que ela estava a dizer a verdade, senhor? Acerca da fidelidade do marido?
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- Porque não? Você é fiel a Rebecca, não é? E eu sei que o sou em relação a Mónica. Nem todos os maridos andam a dormir por aí com outras. Sargento, acho melhor marcar uma entrevista com o doutor Samuelson o mais breve possível. Talvez o possamos convencer a aconselhá-la a escolher os nomes dos malucos que constam na lista de pacientes do marido.
- Ela parece ter as opiniões dele em elevada consideração.
- Oh, também reparou nesse facto, não reparou? Continuaram por York. Boone seguiu para o norte da cidade,
onde ficava o seu apartamento. Delaney voltou a pé para casa.
Deixara um bilhete a Mónica, avisando que devia vir tarde e que fosse jantando se tivesse fome.. Mas ela esperara pelo marido, mantendo o guisado de vitela com cebola quente no forno.
Enquanto comiam, Delaney contou-lhe o que se passara na entrevista com a Dra. Diane Ellerbee. Queria ver a reacção dela.
- Ela parece uma mulher debaixo de uma grande tensão - disse Mónica quando Delaney terminou o relato da entrevista.
- Oh, raios, sim. A morte do marido afectou-a bastante. Quanto a isso não restam dúvidas. Por esse motivo tem chateado tanto o Departamento. Ao menos fica com a sensação de que está a fazer alguma coisa. Tanto Abner como eu reparámos que ela tem uma confiança excessiva no doutor Samuelson. Está certo que ele é o presidente de uma importante associação profissional, no entanto ficámos com a sensação de que ela não quer tomar nenhuma iniciativa sem o consultar previamente. Uma relação curiosa. Abner vai marcar uma reunião com Samuelson. Talvez fiquemos na posse de mais dados.
- Acreditas nela quando te diz que o marido lhe era fiel?
- Não tenho nenhuma razão para não o fazer - respondeu ele cautelosamente.
- Nunca me chegou aos ouvidos o mais ligeiro rumor acerca deles - disse Mónica. - Esse tipo de acontecimento costuma acabar por constar de uma maneira ou outra.
- Imagino que sim. Mas penso que a doutora Diane Ellerbee é uma mulher muito complexa. Vai requerer muito estudo.
- Não suspeitas dela, pois não, Edward? Ele suspirou.
- Oh, raios, suspeito de toda a gente. Já sabes, eu acredito nas percentagens, e estas dizem que a maior parte dos homicídios são cometidos por familiares ou amigos. Portanto, claro, a viúva não pode deixar de ser considerada suspeita. Mas agora, admito, não
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tenho o mais pequeno indício que me leve a duvidar da sua inocência. Bem, ainda só vamos no princípio.
Ajudou Mónica a arrumar a cozinha e colocou a loiça na máquina de lavar. Depois foi para o seu gabinete, onde se serviu de um pequeno Rémy, colocando depois os óculos de leitura. Escreveu um relatório completo sobre o interrogatório da Dra. Diane Ellerbee, guardando-o depois na pasta de arquivo onde o nome desta se encontrava impecavelmente escrito.
Foi interrompido por duas vezes. O primeiro telefonema veio de Boone, que o informou ter marcado uma reunião com Samuelson para as sete horas da manhã seguinte.
- Sete da manhã! Mas a essa hora ainda eu estou a sair da cama.
- Eu também - disse Boone lugubremente. - Mas parece que estes psiquiatras começam o dia cedo, para darem consultas aos pacientes antes de estes irem para o trabalho.
- Bem, está combinado, lá estaremos às sete. Qual é o endereço?
A segunda chamada veio de Jason, que acabara de chegar à cidade, vindo de Brewster.
- Não encontrei nenhum martelo de pena redonda, senhor informou. - O empregado da casa diz que não tem nenhum, nem nunca teve. Estou convencido de que está a ser verdadeiro.
- Provavelmente - concordou Delaney. - Era só uma jogada que eu tinha de verificar.
- E a vítima não era muito dada a trabalhos de mecânica prosseguiu Jason. - Possuía, no máximo, um martelo de orelhas e uma chave de fendas, entre cinco a dez ferramentas, no máximo. Sempre que tinham necessidade de proceder a alguma reparação, nem que fosse apenas mudar uma anilha, chamavam o guarda para se encarregar da tarefa.
- Chegou a ver a casa?
- Oh, sim, senhor. Não é tão grande como eu imaginava, mas é realmente uma beleza. Mesmo com todas aquelas árvores nuas, uma pessoa pode imaginar como não será na Primavera e no Verão. Muito terreno com um pequeno e lindo regato a atravessá-lo. Pátio, jardim, piscina, tudo o que é preciso.
- Na verdade, deve ser - observou Delaney. - Tenho de ir até lá dar uma vista de olhos. Jason, temos Parnell a trabalhar nos antecedentes financeiros dos dois Ellerbees e do doutor Samuelson. O que eu gostaria que agora fizesse era investigar os seus antecedentes pessoais. Idades, locais de nascimento, familiares
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vivos, educação, carreiras profissionais, etc. A maior parte dos elementos pode você recolhê-los no Quem É Quem, registos de faculdades, universidades e hospitais, livros do ano de sociedades profissionais e de quaisquer outras fontes que possa imaginar. Vá o mais fundo que considere necessário.
- Bem... claro - disse Jason, hesitante. - Mas olhe que nunca fiz nada do género antes.
- Então, é tempo de aprender. Não exerça demasiada pressão sobre as pessoas, mas também não deixe que estas lhe comam as papas na cabeça. Será uma boa oportunidade para estabelecer contactos. Nunca se sabe quando é que voltará a precisar de recorrer novamente a eles.
- Deitarei mãos ao trabalho logo pela manhã. Para quando é que deseja este material, senhor?
- Para ontem - respondeu Delaney. - Durma bem. Pouco depois da meia-noite, no quarto do andar de cima,
Delaney foi para o chuveiro antes de Mónica, deixando esta a escovar o cabelo em frente do toucador. Assim que terminou, entrou na casa de banho, que ficara aberta, encontrando-o a examinar-se a si mesmo no espelho de corpo inteiro.
- Agora tenho a certeza de que conheceste Diane Ellerbee hoje - disse Mónica.
Ele sorriu melancolicamente.
- Tu realmente sabes como magoar um tipo, não sabes? Ela riu e deu-lhe uma palmadinha no ombro nu.
- Para mim estás bem, papá.
- Papá! - exclamou ele, simulando ultraje. - Eu te dou o "papá"!
Lutaram por momentos um com o outro à gargalhada, beijaram-se.
Mais tarde, quando já se encontravam nas respectivas camas, Delaney disse:
- Bem, ela é uma mulher bela. Inacreditavelmente bela. Corrige-me se estiver errado, mas não pode a beleza em excesso ser uma maldição?
- Como?
- Sempre acreditei que uma jovem mulher que fosse tremendamente bonita não possuiria incentivo para desenvolver a mente, os talentos ou as capacidades. Quero dizer, as pessoas ficariam a adorá-la automaticamente. Apareceria um tipo qualquer que a levaria consigo e lhe compraria tudo o que ela desejasse, portanto,
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onde arranjaria ela ambição para querer ser alguém? Pensaria merecer a sua boa sorte, que a sua boa aparência duraria sempre.
- Bem, obviamente não foi o que aconteceu com Diane Ellerbee. Ela é uma profissional respeitada e tem capacidade intelectual para dar e vender. Talvez haja mulheres bonitas que seguem por esse caminho que descreveste, mas não ela. Construiu a sua boa sorte à própria custa. Já te disse que a ouvi falar, e a mulher é brilhante.
- Não achas que há algo de frio e desprendido nela?
- Fria e desprendida? Não, não fiquei nada com essa impressão.
- Talvez eu não tenha escolhido bem os adjectivos. Enérgica e segura. Concordarias com esta definição?
- Sim - respondeu Mónica, depois de reflectir um pouco. Mas claro que uma psicoterapeuta tem de ser segura, ou, pelo menos, dar essa impressão. Não encontrarias muitos pacientes se te mostrasses tão neurótico como eles.
- É provável que tenhas razão - admitiu ele. - Mas ela tem qualquer coisa que me perturba. É a mesma sensação com que fico sempre que vejo uma grande pintura ou escultura na Metropolitan. Sob o ponto de vista visual é agradável, mas há ali algo de misterioso. Nunca fui capaz de descobrir do que se tratava. Sou capaz de olhar para uma pintura e apreciá-la verdadeiramente, mas também há ocasiões em que me entristece. Faz-me pensar na morte.
- As coisas muito belas levam-te a pensar na morte?
- Às vezes.
- Já alguma vez consideraste a possibilidade de procurar ajuda profissional?
- Nunca - respondeu ele, rindo. - Tu é que és a minha terapeuta.
- Achas que Diane Ellerbee é mais bonita do que eu?
- Nem pensar - respondeu ele sem hesitar. - Para mim, tu és a mulher mais bela do mundo.
- Realmente sabes viver, não sabes, espertalhão?
- Podes crer - disse ele, acercando-se dela.
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Capítulo oitavo
O apartamento do Dr. Samuelson ficava no décimo oitavo andar de um prédio de esquina da Rua 79 com a Madison Avenue. O seu consultório era no rés-do-chão do mesmo edifício. Não era estranho, para ele, descer para trabalhar, no elevador automático, com um camisolão de lã esburacado e velhos sapatos de quarto.
Delaney e Boone abrigaram-se por momentos debaixo da marquise de um edifício, tentando proteger-se da chuva de granizo que estivera a cair durante toda a noite.
- Só para nos divertirmos um bocado com a coisa - disse Delaney -, atiremo-nos ambos a este tipo. Perguntas curtas, violentas, sem sequência lógica. Vamos a ele de todos os ângulos.
- De modo a que ele não seja capaz de se prevenir? perguntou Boone.
- Em parte para isso. Mas principalmente por nos ter obrigado a levantar tão cedo numa manhã miserável como esta.
O Dr. Samuelson abriu, pessoalmente, a porta do seu consultório; não se viam sinais visíveis de ter recepcionista. Pegou-lhes nos casacos e chapéus molhados e pendurou-os noutra divisão. Acompanhou-os até um gabinete interior, dentro do qual todos os móveis pareciam ter sido acumulados, e não seleccionados. O local tinha um ar abafado e as poucas peças antigas de qualidade estavam a precisar de ser restauradas. Uma coruja-das-torres embalsamada enfeitava o cimo de uma estante de livros.
No consultório, para além de um velho canapé de crina de cavalo, coberto por um cobertor índio, havia duas decrépitas poltronas de encosto móvel. Samuelson empurrou estas de modo a ficarem de frente para a sua secretária gigantesca. Sentou-se a esta, numa poltrona de orelhas forrada com um cabedal castanho já gasto.
O sargento Boone mostrou as suas credenciais, apresentou Delaney e explicou o papel deste na investigação.
- Oh, sim - disse Samuelson com voz de entoação estridente. - Depois de receber o seu telefonema ontem à noite, achei melhor proceder a algumas averiguações. Vêm os dois altamente recomendados. Estou disposto a colaborar, evidentemente, mas já disse à Polícia tudo o que sabia.
- Relativamente aos acontecimentos de sexta-feira à noite observou Delaney -, altura em que Ellerbee foi assassinado. Mas existem questões que não estão incluídas no seu depoimento.
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- Por exemplo - disse Boone -, até que ponto conhecia a vítima?
- Muito bem. Desde os tempos em que foi meu estudante em Boston.
- Conhecia bem a mulher? - perguntou Delaney.
- Naturalmente. Visitávamo-nos com frequência aqui em Nova Iorque, e fui muitas vezes seu hóspede na casa que têm em Brewster.
- Acha que Ellerbee pode ter sido morto por um paciente? inquiriu Boone.
- É possível. Infelizmente, os ataques aos psiquiatras não são tão pouco comuns como isso.
- Era um casamento feliz? - quis saber Delaney.
- Os Ellerbees? Sim, bastante feliz, um casamento bem sucedido. Amavam-se um ao outro e, evidentemente, possuíam o elo de ligação adicional que lhes era proporcionado pelo trabalho que desenvolviam.
- Que tipo de paciente teria atacado Ellerbee? - indagou Boone.
- Um psicopata, por certo. Ou alguém temporariamente perturbado pelo trauma resultante da análise deste. Por vezes, é um processo extremamente penoso.
- Disse um psicopata. Acredita que o assassino era um homem? - interpelou Delaney.
- A natureza do crime aponta para aí. Mas podia ter sido uma mulher.
- Diane Ellerbee também foi sua aluna? - perguntou Boone.
- Não, foi aluna de Simon. Foi assim que se conheceram, quando ele ensinava.
- Foi ele que a convenceu a iniciar a prática da sua própria profissão? - inquiriu Delaney.
- Ele persuadiu-a, sim. Muitas vezes brincávamos sobre a sua relação Pigmalião-Galateia (1).
- Quer dizer que foi ele que a criou?
- Claro que não. Mas reconheceu os seus predicados, os seus talentos como terapeuta. Antes de o conhecer ela era praticamente, segundo creio, uma diletante. Mas ele viu nela algo que achou dever ser encorajado.
* (1) Personagens mitológicas. Pigmalião, escultor da ilha de Chipre que resolveu viver num celibato absoluto. Vénus, para se vingar, tornou-o loucamente apaixonado por uma estátua de nome Galateia. Vénus, comovida com as súplicas de Pigmalião, deu vida à estátua e Pigmalião casou com Galateia. n. do E.) *
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Tinha razão. Ela fez, está a fazer, um belo trabalho.
- Que acha dos dois golpes de martelo feitos nos olhos da vítima? - quis saber Delaney.
Samuelson mostrou os primeiros sinais de incómodo naquela saraivada de perguntas rápidas. Remexeu em alguns papéis e eles notaram que as mãos lhe tremiam ligeiramente.
Era um homem pequeno, de ombros estreitos e uma cabeça desproporcionalmente grande, equilibrada sobre um pescoço fino. Tinha a pele acinzentada e usava óculos de aros de metal, com lentes espessas, que lhe aumentavam os olhos. Possuía um cabelo ruivo, ondulado, que parecia ter sido cuidadosamente secado.
Bebeu um gole de café e pareceu recuperar o seu equilíbrio.
- Que foi que perguntou? - inquiriu.
- Aqueles dois golpes de martelo nos olhos da vítima poderão ter sido uma tentativa simbólica de cegar o morto?
- É uma possibilidade.
- Acha que Simon Ellerbee era fiel à mulher? - indagou Delaney.
- Claro que era fiel! Assim como ela a ele. Já lhe disse que era um casamento feliz, bem sucedido. Esse tipo de união existe. Realmente não vejo de que modo tudo isto poderá ajudar-vos a encontrar a pessoa que cometeu este acto vil.
- Diane Ellerbee era mais jovem do que o marido? perguntou Boone.
- Cerca de oito anos. A diferença não era muita.
- Ela é uma bela mulher. Mas tem a certeza de que era fiel? - inquiriu Delaney.
- Claro que tenho a certeza. Nunca houve qualquer mexerico sobre eles, o mais ligeiro rumor. E eu era o melhor amigo que eles tinham. Teria ouvido ou reparado em alguma coisa do género.
- Notou alguma alteração em Simon Ellerbee nos últimos seis meses, um ano? - interrogou Boone.
- Não, nenhuma alteração.
- Nervosismo? Medo? Acessos de silêncio súbitos ou explosões de raiva? Alguma coisa deste tipo? - insistiu agora Delaney.
- Não, nada.
- Alguma vez ele lhe disse que tinha sido ameaçado por um dos seus pacientes? - questionou Boone.
- Não. Era um homem extremamente competente. Estou
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certo de que teria sabido resolver semelhantes ameaças, se as houvesse.
- O doutor alguma vez foi casado? - perguntou Delaney.
- Uma vez. Minha mulher morreu de cancro há vinte anos. Nunca mais voltei a contrair matrimónio.
- Filhos? - interpelou Boone.
- Um filho, morto num acidente de automóvel.
- Quer dizer que os Ellerbees eram a única família que possuía? - discorreu Delaney.
- Tenho irmãos e irmãs. Mas os Ellerbees eram amigos muito íntimos. Duas pessoas maravilhosas. Amava-os a ambos.
- Nunca discutiam? - quis saber Boone.
- Claro que discutiam, de vez em quando. Qual o casal que o não faz? Mas sempre com bom humor.
- Naquela noite de sexta-feira, quando foi ao prédio dos Ellerbees e subiu lá acima, ouviu alguma coisa? Como se alguém ainda estivesse no andar, a movimentar-se? - perguntou Delaney.
- Não, não ouvi nada.
- Sentiu algum cheiro fora do comum? Perfume, incenso, algum odor corporal pronunciado, o que quer que fosse? indagou Boone.
- Não. Só cheirava a humidade. Estava uma noite muito chuvosa.
- Não se viam sinais de entrada forçada, o que nos leva a concluir que a vítima abriu a porta da rua para alguém de quem estava à espera e conhecia - disse Delaney. - Voltemos agora a encarar a possibilidade de algum dos pacientes do doutor Ellerbee lhe ter posto termo à vida. Queremos que a doutora Diane dê uma vista de olhos à caixa de fichas do marido e escolha aquelas que pertencerem aos pacientes que ela considerar capazes de cometerem um assassínio.
- Sim, ela informou-me dessa pretensão. Ontem à noite.
- Ela confia na sua opinião. Irá aconselhá-la a colaborar? inquiriu Boone.
- Já o fiz. A lei impede-a de lhes facultar os arquivos do marido, mas penso que, neste caso, a opinião pública exige que, pelo menos, ela apresente o nome das pessoas que considere capazes de violência. Os senhores ficarão de posse da lista completa e parto do princípio de que investigarão todos os suspeitos.
- Investigar uma quantidade tão vasta de álibis é quase
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impossível, portanto agradecemos-lhe que encoraje a doutora Ellerbee a colaborar. Ela respeita, obviamente, as suas opiniões. O doutor representa uma figura paternal para ela? - questionou Delaney.
O Dr. Samuelson, recuperada a confiança, descontraiu-se. Os olhos aumentados reluziram, por trás das lentes espessas.
- Oh, duvido - respondeu calmamente. - Diane é uma mulher muito independente. A sua beleza aquece-lhe o coração. Mas é muito inteligente e capaz. Simon era um homem cheio de sorte. Disse-lho muitas vezes, facto com o qual concordava.
- Obrigado pela sua ajuda - disse Delaney, levantando-se abruptamente. - Esperamos poder consultá-lo novamente se precisarmos de mais informações.
- Claro que podem. Sempre que o desejarem. Acham que têm possibilidades de descobrir a pessoa que fez isto?
- Se tivermos sorte - respondeu Delaney.
No exterior, percorreram a Madison Avenue até chegarem a uma casa de lanches que ainda não tinha esgotado a lotação com a multidão dos pequenos-almoços. Ambos mandaram vir café simples e donuts com geleia, levando ambas as coisas para uma pequena mesa de tampo de fórmica encostada à parede forrada a azulejos.
- Estou orgulhoso consigo - comentou Delaney.
- Por que razão.
- Sabia o que era aquela questão de Pigmalião e Galateia. Boone riu.
- Deite as culpas para as palavras cruzadas. Ficamos com uma infinidade de informações inúteis.
- Coisa engraçada - observou Delaney -, mas ainda a noite passada falei com Mónica sobre o facto de tantas mulheres bonitas fazerem carreira exclusivamente pelo facto de serem bonitas. Mas pelo que Samuelson disse, foi Simon quem convenceu Diane de que, para além de boa aparência, também tinha miolos.
- Parece-me que o bom doutor está apaixonado por ela.
- Isso não seria difícil. Mas que hipóteses temos nós? Viu as fotos de Ellerbee nos registos? Um tipo grande, bem-parecido. Comparado com ele, Samuelson parece um gnomo.
- Talvez seja por essa razão que ele lhe deu cabo do canastro
- disse Boone.
- Está verdadeiramente convencido desse facto?
- Não. E você?
- Não estou a ver possibilidade - respondeu Delaney. -
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Mas há muita coisa que não consigo compreender nesta questão. Por exemplo, perguntei a Samuelson se Simon tinha acessos de silêncio e explosões de raiva. Essa frase foi decalcada, quase palavra a palavra, das afirmações prestadas por Diane. Esta disse que o marido era um homem adorável, mas que, ocasionalmente, sofria de acessos de silêncio e explosões de raiva. Samuelson, pressupostamente um amigo chegado, diz que nunca reparou em nada do género.
- Talvez pensasse que não tinha importância ou, quem sabe, estaria a proteger a memória do amigo morto?
- De momento diria que podemos riscar Diane e Samuelson
- comunicou Delaney -, a não ser que Parnell ou Jason apareçam com alguma coisa que nos faça mudar de ideias. Tal facto faz com que os pacientes da vítima sejam a nossa melhor aposta. Importa-se de telefonar à viúva e combinar um encontro para que ela nos faculte a lista dos possíveis agressores?
- Claro. Também acho melhor contactar com o pessoal de Suarez e saber quantos pacientes é que eles já despacharam.
- Certo. Sabe, até agora ainda está tudo muito vago. Apercebe-se disso, não é verdade?
- Não me resta nenhuma dúvida.
- Nada de concreto - disse Delaney de mau humor -, nada de definido. Realmente, esta é a parte mais chata de um caso: a abertura, quando tudo se resume a conversa.
- Não temos grande pressa em o esclarecer - disse ; o sargento. - Ou temos?
Delaney não tinha vontade nenhuma de lhe dizer que tinham -
que aquilo deveria estar resolvido no fim do ano se o comissário Thorsen queria a terceira estrela para Michael Suarez, mas o
sargento era um homem arguto e com certeza a par das políticas
do Departamento.
- Apenas gostava de despachar este assunto depressa - disse ele em tom casual -, admitir o insucesso e regressar à minha rotina. Pode deixar-me em casa?
- Claro - disse Boone -, se conseguir pôr aquele monte de sucata a trabalhar.
O sargento tinha trazido o seu carro pessoal, um velho e gasto Buick que comprara num leilão que a cidade fizera de veículos usados. Mas o motor pegou e ele deixou Delaney à porta de casa.
- Depois telefono-lhe, senhor - disse. - Assim que marcar alguma coisa com a doutora Diane.
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- Óptimo - respondeu Delaney. - E informe Suarez da conversa que tivemos com Samuelson. Prometi mantê-lo a par.
Mónica encontrava-se na sala de estar, a assistir a um debate de mulheres na televisão.
- Qual é o tema esta manhã? - inquiriu Delaney jovialmente. - Ejaculação prematura?
- Muito engraçado - disse Mónica. - Que tal se saíram com Samuelson?
Sentiu-se tentado a contar à mulher os comentários feitos à relação Pigmalião-Galateia dos Ellerbees, mas não fez referência ao facto, receando que desse a impressão de parecer exultação maligna da sua parte.
- Não encontrámos nada a que nos pudéssemos agarrar - respondeu ele. - Apenas matéria de carácter geral. Esta noite conto-te.
Foi para o seu gabinete, sentou-se à secretária e escreveu um relatório completo sobre o interrogatório feito ao Dr. Julius K. Samuelson, esforçando-se por recordar as palavras exactas do psiquiatra.
Havia algo naquela entrevista que o perturbava, no entanto não conseguia, por muito que tentasse, descobrir do que se tratava. Releu o relatório com as perguntas e as respostas, mas não foi capaz de determinar o que o intrigava. Mas estava convencido de que havia ali alguma coisa.
A sua inquietação indefinida derivava das características que rodeavam todo o caso, pensou. Até ali, a investigação do assassínio do Dr. Simon Ellerbee nada mais apresentava do que reflexos obscuros e variações ténues. O malfadado caso era uma aguarela.
A maior parte dos homicídios eram óleos - grandes, arrasadoras manchas de pigmento aplicadas com um pincel grosso ou uma espátula. Os assassínios eram, de um modo geral, actos totais, repletos de brutalidade, o resultado de paixões desmedidas ou pecados capitais.
Mas aquele assassínio tinha qualquer coisa de romanesco, algo de literário e gentil, como se tivesse sido urdido por Henry James.
Talvez, admitiu Delaney, ele se sentisse daquela maneira pelo facto de o crime ter tido lugar num elegante prédio citadino e não num andar miserável infestado de baratas. Ou talvez porque as pessoas envolvidas eram nitidamente educadas, inteligentes e com o dom de mentirem calmamente, se tal servia os seus objectivos.
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Mas um assassínio era um assassínio. E talvez um caso delicado, educado como aquele, precisasse de um polícia velho, pesadão e casmurro para acabar com toda aquela simulação refinada e encostar o assassino artificioso, perceptivo e refinado contra a maldita da parede.
Capítulo nono
- Devíamos começar a pensar no Dia de Acção de Graças - disse Mónica ao pequeno-almoço. - Está aqui não tarda. Um peru, suponho...
- Oh... sei lá - respondeu Delaney lentamente.
- E que tal um ganso?
- Um ganso assado - observou ele com ar sonhador. Talvez acompanhado com arroz solto e maçãs embebidas em conhaque. Parece óptimo. Tu preparas o ganso que eu encarrego-me das maçãs. Okay?
- Está combinado.
- As meninas vêm cá abaixo?
- Não, vão a casa de um amigo. Mas passarão o Natal aqui.
- Óptimo. Gostarias de convidar Rebecca e Abner para o jantar do Dia de Acção de Graças? Não conseguimos comer um ganso inteiro sozinhos.
- Aí está uma boa ideia. Creio que eles ficarão muito satisfeitos. E quanto a Jason e à família?
- Esse tipo dava cabo de um ganso sozinho. Mas se convidar Boone, teria de fazer o mesmo com Jason. Desconfio que ele desejará passar essa noite com a família, mas vou confirmar e depois digo-te.
- Quais são os teus planos para hoje, Edward?
- Quero ficar por aqui, não se vá dar o caso de Abner telefonar a dizer-me quando é que vamos falar com a doutora Diane. Aonde é que tu vais?
- Mais compras de Natal. Quero ter tudo despachado para depois poder descontrair e tirar proveito do período das festas.
- Diverte-te - disse ele -, enquanto as contas não chegam. Foi para o gabinete ler o Times da manhã e fumar o seu charuto
do pequeno-almoço. Ia a meio dos dois quando o telefone tocou. Contava que fosse Boone, mas não era.
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- Fala Edward X. Delaney - disse.
- bom dia. Daqui é o detective Charles Parnell.
- Oh, sim. Como está?
- Óptimo. E o senhor?
- Vai-se sobrevivendo - respondeu Delaney. - Provavelmente não está recordado, mas nós já nos encontrámos. Foi na festa de despedida que o sargento Schlossman deu quando se reformou.
- Claro - concordou Parnell, rindo. - Lembro-me, sim. Tentei enfiar uma garrafa de quarto de litro de Schaefer e vomitei por cima do novo uniforme do capitão Rogers. Desde essa altura que nunca mais tive nenhuma promoção! Oiça, Abner Boone disse que o senhor queria uns relatórios financeiros sobre determinadas pessoas envolvidas no caso Ellerbee o mais depressa possível.
- Não me diga que já os tem?
- bom, eu posso não ser eficiente, mas lá rápido sou. Tenho uma única página dactilografada sobre cada um deles. Não é da Dun Bradstreet, mas já lhe pode dar uma ideia do que deseja saber. Estava a pensar em levá-los até aí a fim de os podermos examinar juntos. Depois, se precisasse de mais alguma coisa, bastava dar-me as coordenadas.
- Claro - disse Delaney prontamente. - Estarei aqui toda a manhã. Tem o meu endereço?
- Sim. Daqui a meia hora estou aí.
Delaney voltou a acender o charuto e acabou a leitura do Times. Foi um timing perfeito; acabara de dobrar meticulosamente o jornal e de se dirigir à sala de estar para o deixar para Mónica consultar mais tarde, quando a campainha da porta soou.
O detective Daddy Warbucks trazia um chapéu de coco de aba debruada e um sobretudo de trespasse, de fazenda cinzento-amarelada.
Ao ver Delaney pestanejar, Parnell sorriu.
- É o meu uniforme - explicou. - Trabalho com banqueiros e accionistas. Ajuda a parecer que pertenço ao mesmo clube. Fora de serviço uso unsjeans coçados e um camisolão velho.
- Há anos que não via um chapéu de coco - observou Delaney, admirado. - Em si fica estupendo.
Depois de o casaco e o chapéu do detective ficarem pendurados no armário do vestíbulo, o detective mostrou-se em toda a sua elegância conservadora: um fato de três peças em fazenda de flanela azul-marinho com uma risca fina, camisa azul-clara de
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colarinho e punhos engomados, uma gravata finamente tecida e sapatos pretos reluzentes.
- Às vezes sinto-me um palhaço com esta fatiota - disse ele, seguindo Delaney de volta ao gabinete -, mas parece impressionar as pessoas com quem lido. Linda casa o senhor tem aqui.
- Obrigado.
- Ocupa a casa toda?
- Exacto.
- Se alguma vez quiser alugar um andar, fale comigo. Eu, a mulher e os dois miúdos estamos enfiados num prédio sem elevador, no West Side.
Mas os seus comentários eram desprovidos de amargura, e Delaney percebeu que se tratava de um homem jovial e de boa índole.
- Diga-me uma coisa - perguntou a Parnell -, esse fato cai-lhe tão bem que não percebo onde é que traz a arma.
- Aqui - disse Daddy Warbucks.
Virou-se, ergueu a ponta do casaco e mostrou um revólver de cano curto seguro por um coldre de cinto, aconchegado na curva das costas.
- Não dá muito jeito para sacar rapidamente, mas sempre é uma segurança. Usa a sua?
- Só em ocasiões especiais - respondeu Delaney. - Oiça, posso arranjar-lhe alguma coisa. Café, uma Coca-Cola]
- Não, mas obrigado. Estou cheio de café até aos olhos, esta manhã.
- Bem, então - disse Delaney - é melhor sentar-se nessa poltrona e pôr-se à vontade.
- Estou a sentir o cheiro de fumo de charuto - disse Parnell -, portanto, creio que não se importa de que fume um cigarro.
- Faça favor.
Delaney aproveitou o espaço de tempo que o detective gastou a acender o cigarro para analisar o homem.
Cabelo cortado à escovinha e salteado de branco e preto. Rosto de feições rudes, com sulcos profundos na face e rugas de riso aos cantos dos olhos. Uma expressão suavemente inocente. Uma fealdade rude, mas não desprovida de encanto. Parecia do género de homem óptimo para convidar para uma festa.
- Bem... - disse Parnell, inclinando-se para abrir a pasta de documentos -, como é que deseja fazer? Prefere ler a matéria primeiro ou dou-lhe um resumo?
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- Penso que é melhor começar primeiro por um sumário respondeu Delaney. - Depois farei as perguntas, se tiver algumas.
- Okay - concordou Pamell. - Começaremos pelo doutor Julius K. Samuelson. O seu valor líquido ronda o milhão. Cavalheiro entendido nas questões de dinheiro e muito cauteloso. Títulos do Tesouro e acções isentas de impostos. É dono dos edifícios onde tem a habitação e o consultório. Mantém demasiado dinheiro na conta-corrente, mas, como já referi, é um financeiro à moda antiga. Não tem bens, não foge aos impostos, não é dado a extravagâncias. Fez algumas doações irrevogáveis a empreendimentos de caridade, tudo para hospitais dotados de importantes centros de investigação psiquiátrica. Nada de extraordinário. Nada de interessante. Alguma pergunta?
- Creio que não - disse Delaney. - Tenho ideia de que não deu uma vista de olhos ao testamento dele, pois não?
- Não, isso não tenho eu possibilidade de fazer. Já tive sorte em saber das tais doações de caridade. Realmente, não me parece que Samuelson tenha alguma coisa de interesse para si, senhor. Quero com isto dizer que ele não é podre de rico, mas também não anda a tinir.
- Provavelmente tem razão - disse Delaney, suspirando. E quanto aos Ellerbees?
- Ah! - exclamou Charles Parnell -, aí é que a coisa se torna medianamente interessante. Se estava a pensar na possibilidade de a mulher ter morto o marido para se apropriar dos seus bens, pode tirar daí o sentido. Ele estava a sair-se bem, mas ela é dona de muita massa.
- A sério? - admirou-se Delaney. - Como é que a conseguiu?
- O pai morreu, deixando uma soma modesta à mãe. Dois anos mais tarde esta faleceu. Ela também tinha algum dinheiro junto. Diane Ellerbee foi a única herdeira. Depois, passado um ano, uma tia solteirona esticou o pernil, e aí é que Diane aceitou realmente nojackpot. Só da tia foram três milhões.
- Diane era filha única?
- Tinha um irmão mais novo, que foi morto no Vietname. Ele não tinha família constituída, nem mulher, nem filhos, melhor dizendo, de modo que ela ficou com os berlindes todos.
- Quantos berlindes? - perguntou Delaney.
- O testamento do marido ainda não foi validado, mas mesmo
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sem a parte que ela vai receber através deste, calculo que essa senhora deva ter muito perto de cinco milhões.
- Ena! - exclamou Delaney. - Bonita e rica.
- É mesmo - comentou Parnell -, e é ela mesma que orienta os seus dinheiros. Não tem nenhum gestor ou consultor financeiro a fazê-lo por ela. E tem-se saído muito bem. È suficientemente esperta para diversificar, portanto está metida em tudo: acções, obrigações, propriedades, isenções fiscais, fundos mútuos, títulos municipais, promissórias... tudo o que puder imaginar.
Delaney abanou a cabeça, surpreendido.
- Bonita e rica e astuta.
- Pode crer. E tem coragem. Alguns dos seus investimentos são ao acaso, mas tenho de admitir que consegue mais ganhos do que perdas.
- E quanto à vítima? - inquiriu Delaney. - Quanto é que ela tinha?
- Tal como Samuelson, não estava nada mal. Mas nada que se comparasse com a mulher. Calculo que os seus bens valham cerca de meio milhão, deduzidos os impostos. Tem aqui um aspecto interessante: ela é que lhe tratava dos investimentos.
- Não me diga! - admirou-se Delaney, mostrando-se pensativo logo a seguir. - Sim, isso è muito interessante.
- Talvez ele não dispusesse de tempo ou apenas não sentisse grande desejo de juntar um pé-de-meia. Seja como for, ela saiu-se tão bem com ele como com ela própria. Não têm contas conjuntas. Está tudo separado. Nem sequer os rendimentos.
- E quanto ao pai dele? - quis saber Delaney. - Deixou alguma coisa a Simon?
Daddy Warbucks sorriu.
- Henry Ellerbee, o grande milionário dos bens imóveis? Essa é para rir. Tive de fazer uma investigação sobre o estado financeiro dele aqui há uns meses atrás. É um cowboy autêntico. Tem um milhão de negócios a funcionar e não possui dois níqueis de seu. Perdeu o controle das Torres Ellerbee, que estão completamente hipotecadas. Se todos os credores lhe exigirem o pagamento das dívidas ao mesmo tempo, o único sítio que ele terá para dormir será o Tribunal das Falências. Aposto em como o senhor e eu temos mais dinheiro do que ele. Ajudar Simon em alguma coisa? Nem pensar! O mais provável é que estivesse a receber ajuda do filho. Bem, é tudo quanto tenho. Deseja fazer mais alguma pergunta?
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Delaney reflectiu por momentos.
- Não me parece. Pelo menos, para já. Se não se importar de me deixar os seus relatórios, depois passarei uma vista de olhos por eles. Pode ser que depois disso precise da sua ajuda em mais alguns detalhes.
- Claro - concordou Parnell. - Estou à sua disposição. Arranjar-lhe-ei todos os pormenores de que necessitar.
- Óptimo - disse Delaney. - Ficar-lhe-ei muito grato. Fitou o detective com curiosidade. - Gosta deste tipo de trabalho?
- Adoro-o - respondeu o homem sem hesitar. - O senhor sabe quanto eu ganho por ano. Meter o nariz nas questões privadas de dinheiro dos outros é uma espécie de vida de fantasia para mim. Sinto-me fascinado pela riqueza, e imagino de que maneira a governaria, se a tivesse!
- Neste momento está a trabalhar em alguma coisa de interessante?
- Oh, sem dúvida, - disse Daddy Warbucks. - É uma beleza. Uma aldrabice ligada à computadorização de cheques. Este tipo trabalhava na secção de computadores de um grande banco de Manhattan. Percebe de bancos e percebe de computadores, certo? Portanto começa a forjar cheques fictícios, abrindo três ou quatro contas em bancos de Nova Iorque com nomes falsos e bilhetes de identidade forjados, que compra na rua. Principia modestamente, com um investimento de dez mil. Passados seis meses, aproveitando-se do trânsito dos valores, começa a desviar habilmente depósitos e transferências que montam a um quarto de milhão.
- Santo Deus! - exclamou Delaney. - Pensei que existissem medidas de segurança contra isso.
- São os valores em trânsito! - exclamou Parnell. - Esses belos, maravilhosos valores em trânsito! Não há salvaguarda possível contra eles. Seja como for, à semelhança da maioria dos indivíduos a efectuarem saques fictícios sem base em transacções, este tipo não podia parar. Teria tido possibilidade de converter tudo em dinheiro, agarrar nos seus proventos e partir para o Brasil. Mas a operação estava a decorrer tão bem que decidiu entrar a matar. Começou então a abrir contas em Nova Jérsia, Connecticut e daí por diante. Quanto mais prolongada a permanência de valores em trânsito, maiores os lucros. Depois, apercebeu-se de que, se tivesse contas na Califórnia, teria mais dez dias ou duas semanas a seu favor. De modo que, durante as férias, foi
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de avião até à costa ocidental e abriu uma dezena de contas, utilizando o mesmo nome falso que em Nova Iorque e dando as referências dos bancos daquela cidade! E esta?
- Como disse, é uma beleza!
- O mais divertido é o que vem a seguir - disse o detective. Nessa altura o vigarista já tinha tantas contas e tantos nomes, com cheques a voarem por todo o país, que não conseguia ter controle sobre o paradeiro de todos eles. Portanto, escreveu o seu próprio programa, que introduziu num dos computadores do banco onde trabalhava. O seu programa pessoal só podia ser activado por uma palavra de código, e ele era a única pessoa que a conhecia. Agora, temos, portanto, o computador do seu banco a fazer funcionar a aldrabice deste tipo. Consegue acreditar que ele obteve um total de mais de dois milhões antes de o telhado lhe cair em cima?
- Como é que o apanharam?
- Foi por acidente. Uma tipa espertinha do Arizona, que tinha por tarefa controlar depósitos e transferências de vulto realizadas para fora do estado. Ela esteve doente durante uma semana e, quando regressou ao serviço, encontrou a secretária cheia de papéis.
"Deitou mãos ao trabalho, começando por dividir tudo segundo os números das contas. Reparou que todos aqueles depósitos e transferências, feitos pela mesma pessoa, começavam, gradualmente, a aumentar. Apercebeu-se do que devia ser e deu o alarme. Vai levar pelo menos um ano a esclarecer a confusão. Entretanto, o tipo definha na prisão porque nem dinheiro tem para pagar a fiança. E alguns meses atrás poderia ter recolhido a massa toda e fugido com dois milhões. Penso que não foi só a ganância que o fez prosseguir. Creio que ficou completamente fascinado pelo jogo. Queria apenas ver até onde poderia chegar.
- Um caso interessante - concordou Delaney.
- Sim, mas neste momento a confusão é geral. Quero dizer, todos os estados onde ele operou querem um pedaço da sua pele, para além dos federais, dos bancos e Deus sabe quem mais. O mais engraçado é que ninguém perdeu um tostão. De facto, toda a gente fez dinheiro porque ele manteve os depósitos falsos a funcionar até transferir os fundos. A única pessoa a perder foi o vigarista. E essa perda cifrou-se apenas nos seus dez mil dólares iniciais. Há uma moral algures por aí, mas eu não sei qual é.
Delaney ofereceu uma cerveja a Parnell, mas o detective
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recusou com relutância, dizendo que tinha de ir até à Wall Street para almoçar com dois importantes árbitros de câmbio.
Entregou três relatórios escritos à máquina e o seu cartão para o caso de serem necessárias mais informações. Dirigiram-se para o corredor e Delaney ajudou Daddy Warbucks a colocar o seu elegante chapéu.
- É realmente uma bela casa - disse Parnell, olhando em redor. - Gostaria de ter uma exactamente assim. Bem, pode ser que um dia aconteça.
- Mas não comece a brincar com cheques - avisou Delaney.
- Eu, nem pensar- disse o detective, rindo. - Não disponho do capital inicial. Além disso, não sei trabalhar com computadores.
Apertaram as mãos e Delaney agradeceu ao outro homem a ajuda. Parnell retirou-se, chapéu de coco ajeitado com uma inclinação garbosa, pasta de documentos a balançar.
Delaney voltou para a cozinha, sorrindo. Apreciara a companhia de Daddy Warbucks. Interessava-se sempre pelos casos em que se ocupavam os outros detectives, especialmente novas investigações e técnicas criminais inovadoras.
Preparou uma sanduíche "molhada", inclinando-se sobre o lava-loiças, para a comer. Fatias de carne enlatada da Argentina com uma camada de chucrute e algumas batatas fritas para mastigar ruidosamente. E mostarda Dijon. Tudo entre duas fatias grossas de pão de centeio. Empurrado com cerve}aHeineken.
Terminado, limpou a cozinha e voltou para o gabinete. Colocou os óculos e pôs-se a ler os relatórios financeiros que Parnell lhe entregara. Não viu nada de importante que Daddy Warbucks não tivesse referido no seu resumo oral.
O detective tinha razão: a ideia de Diane Ellerbee ter morto o marido pelos bens deste não fazia sentido; ela era dez vezes mais rica e Delaney não a via como uma mulher gananciosa.
Portanto, supunha, por ali não ia a lado nenhum. Só se Jason T. Jason aparecesse com alguma coisa nas biografias, a única saída era prosseguir a investigação pelos pacientes de Ellerbee.
E, nesse momento preciso, o telefone tocou. Daquela vez era Abner Boone. Disse que a Dra. Diane Ellerbee os receberia nessa noite, às nove horas.
- E que tal ir buscá-lo quinze minutos antes - sugeriu Boone.
- É melhor ser meia hora - disse Delaney. - Charles
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Parnell passou por aqui e eu quero pô-lo ao corrente do que descobrimos.
Capítulo décimo
Delaney virou-se de lado, no assento da frente, no lugar do pendura, fitando Abner Boone enquanto o ia informando do relatório de Charles Parnell. Encontravam-se estacionados perto do prédio da Rua 84.
Bonne era um indivíduo alto, desajeitado, de andar desengonçado, pulsos e tornozelos a aparecerem em demasia de dentro dos punhos e da boca das calças. Usava o cabelo arruivado curto, tinha a pele ligeiramente sardenta e dentes enormes, cavalares. Havia muito de "rapaz de província" nos seus modos, mas Delaney sabia que estes mascaravam uma mente arguta e uma sensibilidade ocasionalmente complicada.
- Bem, senhor - disse o sargento, quando Delaney terminou -, não há dúvida de que a senhora em questão é polivalente. Todo aquele dinheiro para governar, duas casas e uma carreira bem sucedida. Mas sabe o que maior interesse me desperta?
- A vítima, não? - adivinhou Delaney.
- Exactamente. Não consigo apreender bem o tipo de pessoa que era. Toda a gente afirma que era um sujeito brilhante. Talvez seja verdade, mas não sou capaz de o imaginar mentalmente: como se vestia, falava, o que fazia no seu tempo livre, Do que a doutora Diane e do doutor Samuelson nos disseram, parecia quase demasiado perfeito para ser real.
- Bem, não pode esperar que a sua viúva e o melhor amigo digam alguma coisa que possa denegrir a sua imagem. Estou a contar que os seus pacientes se abram e nos contem um pouco mais acerca dele. Penso que já está na hora. Não queremos manter a doutora à nossa espera.
A Dra. Diane Ellerbee disse-lhes, através do intercomunicador do átrio, que subissem, abrindo-lhes em seguida a porta. Subiram a escada, de chapéus na mão. Ela foi ao encontro deles no corredor, apertando vigorosamente as mãos a ambos.
- Isto deve demorar um pouco - disse friamente -, de modo que pensei que ficaríamos mais confortáveis na sala de estar.
Vestia um fato de treino de mangas compridas de seda negra,
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com um fecho que ia da gola alta até à cintura estreita. O cabelo cor de trigo estava solto, espalhando-se-lhe sobre os ombros em madeixas sedosas. Enquanto ela os conduzia até à parte de trás da casa, Delaney voltou a ter oportunidade de admirar o seu porte erecto e a graça flutuante dos seus movimentos.
Fê-los entrar numa sala fortemente iluminada, a que os bibelôs, fotografias emolduradas e bricabraque proporcionavam um aspecto acolhedor. Uma das paredes estava coberta por uma estante que ia até ao tecto, repleta de livros encadernados, brochuras, revistas.
- As acomodações lá de baixo são mais formais do que estas
- disse ela com um meio sorriso. - E mais arrumadas. Mas Simon e eu gastávamos a maior parte das nossas tardes aqui. É um local óptimo para descontrair. Dêem-me os vossos casacos, por favor, senhores. Que querem tomar? Um café, uma bebida?
Ambos recusaram delicadamente.
Ela sentou-os em cadeiras de braços, macias, puxando em seguida uma cadeira de encosto forrado a cabedal e assento de palhinha, de modo a ficar de frente para eles. Sentou-se com compostura, costas direitas, queixo levantado, cabeça ligeiramente elevada.
- Julie - principiou, rectificando logo a seguir -, o doutor Samuelson aprova a minha colaboração com os senhores, mas eu devo dizer que ainda não estou absolutamente certa de actuar da forma mais correcta. O conflito gera-se entre o meu desejo de ver o assassino do meu marido apanhado e, ao mesmo tempo, proteger a confidencialidade dos seus pacientes.
- Doutora Ellerbee - argumentou Delaney -, damos-lhe a certeza de que tudo o que nos disser será mantido dentro do maior sigilo pela parte que nos toca.
- Bem... - disse ela -, penso que isso é o mínimo que posso esperar. Uma outra coisa. Os pacientes que seleccionei como aqueles mais susceptíveis de violência são apenas seis entre muitos mais.
- Temos de começar a partir de algum ponto, minha senhora -? observou Bonne. - Não temos possibilidade de os investigar a todos a fim de estabelecermos os álibis.
- Tenho consciência desse facto - disse ela secamente. - Estou apenas a avisá-los de que o meu julgamento pode ter falhas. No fim de contas, foram pacientes do meu marido, não meus. Portanto, baseei-me nos seus arquivos e nas impressões que trocámos. É deveras possível, provável até, que as seis pessoas
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que escolhi estejam completamente inocentes, e que a culpada figure entre as que deixei de fora.
- Pode acreditar - disse Delaney - que não tencionamos considerar automaticamente culpadas as pessoas por si indicadas. Elas serão cautelosamente investigadas e se acreditarmos que estão inocentes, passaremos para outros doentes registados nos arquivos do seu marido. Não pense que está a condenar estas pessoas pelo simples facto de nos fornecer os seus nomes. A investigação de um homicídio não é assim tão fácil.
- Bem, isso faz-me sentir um pouco melhor. Lembrem-se, a psicoterapia não é uma ciência exacta. É uma arte imprecisa. Dois terapeutas competentes, experimentados, a examinarem o mesmo paciente, poderiam, muito provavelmente, chegar a dois diagnósticos opostos. Para se dar conta dessa realidade, basta ler as opiniões expressas em julgamentos realizados em tribunais.
- No meu tempo costumávamos chamar-lhes alienistas - disse Delaney. - Normalmente lançavam mais confusão nos julgamentos do que esclarecimento.
- Receio bem que tenha razão - observou ela com um sorriso débil. - Nesta área, os critérios objectivos são difíceis de reconhecer. Bem, dito tudo isto, permitam-me que vos mostre a selecção que fiz.
Levantou-se e aproximou-se de uma pequena secretária de estilo Sheraton, de onde voltou com duas páginas dactilografadas na mão.
- Seis pacientes - disse ela. - Quatro homens e duas mulheres. Assentei-vos aqui os seus nomes, idades, endereços. Escrevi-vos uma pequena resenha sobre cada um, utilizando os apontamentos do meu marido e os comentários que ele me transmitiu sobre eles. Embora vos tenha referenciado os principais problemas de que padecem, não forneci classificações definidas: esquizofrénicos, psicóticos, maníaco-depressivos, ou lá o que forem. Eles não são meus pacientes e eu recuso-me a tentar traçar-lhes um diagnóstico. Agora, se não se importam, vou começar.
Colocou uns óculos de aros de metal. Curiosamente, o acessório antiquado amenizou-lhe as feições bem delineadas, proporcionando-lhe ao rosto um encanto singular.
- Devo avisá-los - disse ela - de que estas pessoas não se encontram referenciadas segundo nenhuma ordem especial. Ou seja, a primeira que lhes refiro não é, na minha opinião, necessariamente a mais perigosa. As seis possuem, em meu
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entender, um potencial para a violência. Não lerei tudo o que escrevi, limitar-me-ei a dar-vos um sumário breve...
"Número um: Ronald J. Bellsey, quarenta e três anos. Via o meu marido três vezes por semana. Aparentemente um homem violento, com acessos incontroláveis de raiva. Ronald consultou o meu marido pela primeira vez depois de ter ferido a mulher num ataque brutal. Pelo menos teve senso suficiente para ver que estava doente e precisava de ajuda.
"Número dois: Isaac Kane, vinte e oito anos. Era um dos pacientes que o meu marido tratava por caridade, uma vez por semana, numa clínica grátis. Isaac é o que chamam de um sábio idiota, embora eu deteste o termo. Está longe de ser um idiota, mas é retardado. Isaac desenha paisagens a pastel absolutamente maravilhosas. Trabalho muito profissional. Mas já tem, ocasionalmente, atacado trabalhadores e outros pacientes da clínica.
"Número três: Sylvia Mae Otherton, quarenta e seis anos. Consultava o meu marido duas vezes por semana, mas era frequente fazer chamadas motivadas por acessos de pânico. Sylvia sofre de ansiedades profundas, que vão desde uma agorafobia a um ódio por homens de barba. Nas várias ocasiões em que se tem aventurado a aparecer em público, dirige ataques viciosos e provocadores a homens que usam barba.
- O seu marido tinha barba, doutora? - perguntou Boone.
- Não, não tinha. Número quatro: L. Vincent Symington, cinquenta e um anos. Tudo indica que o problema de que padece é uma paranóia profunda e generalizada. Vince atacava frequentemente pessoas que acreditava estarem a persegui-lo, incluindo os pais idosos. Vinha ao meu marido três vezes por semana.
"Número cinco: Joan Yesell, trinta e cinco anos. Trata-se de uma jovem mulher extremamente retraída e deprimida, que vive com a mãe, que é viúva. Joan tem uma história de três tentativas de suicídio, uma das razões que me levaram a incluí-la na lista. O suicídio, quando tentado com insucesso com tanta frequência, evolui muitas vezes para a tentativa de homicídio.
"E, finalmente, Harold Gerber, trinta e sete anos. Serviu no Vietname e ganhou várias medalhas pelo excepcional valor demonstrado. Harold sofre aparentemente de um intenso sentimento de culpa, não só por aqueles que matou na guerra, mas porque voltou vivo quando tantos dos seus amigos morreram. A culpa manifesta-se em rixas violentas nos bares, contra estranhos que imagina terem-no insultado.
"E é tudo quanto tenho para lhes dar. Encontrarão mais
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pormenores neste relatório batido à máquina. Têm alguma pergunta?
Delaney e Boone olharam um para o outro.
- Só uma coisa, doutora - disse Delaney. - Poderia dizer-nos se alguma dessas seis pessoas estava a ser tratada com drogas?
- Não - respondeu ela imediatamente. - Nenhuma delas. Meu marido não acreditava nas drogas psicotrópicas. Dizia que estas só serviam para mascarar os sintomas e nada faziam para revelar ou tratar a causa da doença. A propósito, eu sou da mesma opinião, mas não tão fanaticamente como o meu marido. De vez em quando utilizo drogas na minha prática, mas só quando a saúde física do paciente me dá garantias.
- Tem licença para receitar medicamentos? - perguntou Delaney.
Ela fitou-o com dureza.
- Não - respondeu -, mas o meu marido tinha.
- Mas é evidente - observou Boone apressadamente - que algum dos seis pudesse estar a servir-se de medicamentos por sua própria iniciativa.
- É possível - disse a Dra. Ellerbee com a sua voz audível, segura. - É possível em relação a qualquer pessoa. Qual dos senhores recebe o relatório?
- Minha senhora, só tem esse exemplar? - perguntou Delaney.
- Exactamente. Não fiz nenhuma cópia.
- Por acaso não dispõe de uma fotocopiadora no seu escritório, não? Seria extremamente útil tanto eu como o sargento Boone ficarmos cada um com o seu exemplar. Aceleraria o processo.
- Há uma fotocopiadora no escritório do meu marido - disse ela, pondo-se de pé. - É só um minuto.
- Se não se importa, vamos consigo - disse Delaney, depois do que ambos os homens se levantaram.
Ela fitou-os.
- Se estão a pensar na minha segurança, agradeço-vos a intenção, mas não é necessário, asseguro-vos. Tenho vivido nesta casa desde que Simon morreu. Há pessoas aqui durante o dia, mas de noite fico sozinha. Não me assusta. Não permitirei que tal aconteça. Este é o meu lar.
- Se nos dá licença - insistiu Delaney teimosamente -, ainda assim iremos consigo. Teremos oportunidade de ver o cenário, de vermos o local onde tudo aconteceu.
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- Já que fazem tanta questão - disse a médica em tom inexpressivo.
Tirou um aro com chaves da gaveta da cómoda, conduzindo-os em seguida pelo corredor. Abriu a porta que dava para o consultório do marido e acendeu as luzes. O chão da recepcionista apresentava as traves do soalho despidas de qualquer revestimento.
- Mandei tirar a carpeta e deitá-la fora - esclareceu ela. Estava manchada e eu não quis mandá-la limpar.
- Já decidiu o que fazer com este espaço, minha senhora? perguntou Boone.
- Não - respondeu ela, bruscamente. - Ainda não pensei nisso.
Dirigiu-se para a fotocopiadora, que se encontrava a um canto, e ligou-a. Enquanto tirava um duplicado do relatório, eles aproveitaram para observar o que os rodeava.
Pouco havia para ver. O escritório exterior era idêntico, em tamanho e formato, ao do segundo andar. Encontrava-se acepticamente mobilado com uma secretária, cadeiras e um armário de arquivo em aço inoxidável. Não se notava nenhuma indicação de que tivesse servido de cenário a um arrebatamento assassino.
A Dra. Ellerbee regressou de junto da fotocopiadora, entregando um relatório de duas páginas a cada um.
- Não gostaria nada de que esse documento circulasse - disse ela severamente.
- Não acontecerá - assegurou-lhe Delaney. - Doutora, importa-se de que demos uma rápida vista de olhos ao consultório do seu marido?
- com que objectivo?
- Operação de rotina - respondeu ele. - Para tentarmos ficar a saber mais acerca do seu marido. Por vezes, ver o local onde a vítima vivia e trabalhava fornece uma boa indicação sobre o tipo de pessoa que era.
Ela encolheu os ombros, obviamente descrente, mas não se importando.
- À vontade - disse, fazendo um gesto em direcção à porta que dava para uma divisão interior.
Sentou-se na secretária da recepcionista enquanto eles entravam no consultório do Dr. Simon Ellerbee. Boone rodou o comutador da luz do tecto.
Era uma sala severa, rigorosa, quase austera. Não se viam quadros nas paredes. Nenhuma decoração. Nada de objectos de
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arte, coisas dignas de serem lembradas ou toques pessoais. A sala era definida pelo que lhe faltava. Até o divã de cabedal preto dos pacientes mostrava um aspecto tão esterilizado como uma marquesa de hospital.
- Frio - comentou Boone em voz baixa.
- Queria uma definição do tipo - disse Delaney. - Aqui a tem: organizado, lógico, desprovido de emoções. Já reparou como as linhas e os ângulos rectos abundam? Um homem muito preciso, disciplinado. Já conseguiu imaginar-se a passar umas doze horas diárias numa célula como esta? Vamos, isto faz-me arrepios.
Foram buscar os casacos e os chapéus à sala de estar, agradeceram à Dra. Diane Ellerbee a sua colaboração e prometeram manterem-na informada dos progressos da investigação.
- Fica prevenida - observou Delaney, sorrindo -, de que poderemos voltar a ligar para si a solicitar mais ajuda.
- Claro - disse ela -, sempre que quiserem. Parecia fatigada.
Cá fora, na rua, ao caminharem lentamente para o carro, Boone disse:
- Mulher de fibra. A maioria teria ido para outro lado qualquer viver, ou pedido a uma amiga para ficar algum tempo com ela depois do que aconteceu.
- Uhmm - murmurou Delaney. - Ela afirma não estar assustada e eu acredito. A propósito, reparou no facto de ela se ter referido àqueles pacientes pelos primeiros nomes? Sinto curiosidade em saber se todos os médicos de doenças mentais têm esse costume. Faz-me lembrar a maneira como os polícias falam com os suspeitos, para os deitar abaixo.
- Pensei que era só para isso. Sabe como é, para mostrar a nossa simpatia.
- Talvez. Mas utilizar o nome próprio de um suspeito diminui-o, retira-lhe a sua dignidade. Demonstra que se está numa posição de autoridade. Trate um chefe da Mafia por Tony, quando ele costuma ser chamado de senhor Anthony Galesco, e isso fá-lo sentir-se como se fosse um punk ranhoso ou um desgraçado que anda ao cartão. Bem, tudo isto não passa de conjecturas que não nos levam a lado nenhum. Amanhã de manhã contacte com os homens do chefe Suarez para sabermos se já falaram com algum destes seis pacientes. O melhor é começarmos pelo paradeiro deles na altura em que o homicídio ocorreu.
- Mesmo que os homens de Suarez já tenham falado com
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eles, continua a querer que voltem a ser investigados, não é, senhor?
- Evidentemente. Naquilo que me diz respeito, esta investigação só agora é que está a começar. E veja se sabe onde Jason Dois pára; inteire-se do ponto em que se encontram as biografias de que está encarregado. Gostava que ele despachasse essa tarefa o mais depressa possível. Vamos precisar da ajuda dele para bater às portas.
Ò sargento Boone conduziu Delaney a casa. Ao chegar diante desta, antes de Delaney sair do carro, disse-lhe:
- Que achou da escolha feita pela doutora Diane, senhor? Todas elas me parecem possíveis.
- Pode ser. Sabe, quando falei com o doutor Walden, ele tentou convencer-me de que a maioria das pessoas que vão aos psicoterapeutas não são tarados, chanfrados ou a sofrer da cabeça; são apenas pobres desgraçados com ressacas emocionais de tamanho gigante. Mas todas as pessoas que fazem parte da lista por ela apresentada, parecem ser gente que sofre mesmo da cabeça. Boa noite, sargento.
Mónica estava na sala de estar a fazer as palavras cruzadas do Times. Ergueu os olhos quando Delaney entrou, perscrutando-o por cima do rebordo dos seus óculos estilo Ben Franklin.
- Que tal correu? - perguntou.
- Preciso de tomar qualquer coisa - disse ele. - Talvez um uísque duplo com muita soda.
Preparou as bebidas na cozinha e levou-as para a sala. Mónica ergueu o seu copo contra a luz.
- Tens uma mão pesada com aquela garrafa de uísque, rapazinho - observou, bebendo um gole. - Mas estás perdoado. Agora, diz-me, que tal correu?
Delaney deixou-se cair na sua poltrona de orelhas, forrada a couro verde-garrafa, que de tanto uso parecia aveludada. Alargou o nó da gravata, desabotou o colarinho e suspirou.
- Correu bem. Ela deu-nos uma lista de seis possibilidades.
- Então, por que motivo estás tão irritável?
- E quem é que diz que eu estou irritável?
- Eu. Estás com um olhar esquisito e oiço-te ranger os dentes.
- A mim? Bem, não vai resultar.
- O que é que não vai resultar?
- A investigação. A minha investigação. Agora estamos a braços com seis pessoas para examinar e só disponho de Boone e Jason. Não tenho possibilidades de fazer contactos pessoais
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porque não possuo um automóvel que me permita deslocar-me com rapidez. Portanto, para todos os efeitos, só estão dois homens a investigar seis suspeitos. Oh, poderia ser feito se tivéssemos todo o tempo do mundo à nossa disposição, mas Thorsen quer o caso resolvido até ao fim do ano.
- Só há uma resposta para essa situação, não é, querido? Pedes mais ajuda a Ivar.
- Não sei como é que o chefe Suarez encarará a questão. Ele disse que colaboraria de todas as formas possíveis, mas tenho o pressentimento de que ele ainda me considera um concorrente.
- Então, em vez de pedires mais homens a Ivar, fá-lo a Suarez. Isso torna-o membro do grupo, não torna? Dá-lhe a possibilidade de participar do sucesso se tu descobrires quem matou Simon Ellerbee.
Ele fitou-a atentamente.
- Eu sabia que tinha casado com uma grande beleza - disse ele. - Agora apercebo-me de que também casei com um grande cérebro.
Ela fungou.
- Só agora é que estás a descobrir? Porque não telefonas imediatamente a Suarez?
- Já se faz tarde - respondeu Delaney. - Acordaria a família toda. Entro em contacto com ele logo de manhã. Entretanto, tenho um pequeno trabalho para fazer. Não estejas acordada à minha espera; vai para a cama quando te apetecer.
Delaney levantou-se, aproximou-se da mulher e inclinou-se para lhe dar um beijo na face. Depois levou a bebida com ele para o gabinete de trabalho. Fechou a porta que dava para a sala de estar, não se fosse dar o caso de Mónica querer assistir ao espectáculo de Johnny Carson.
Sentou-se à secretária, colocou os óculos de aros metálicos grossos e leu lentamente o relatório de duas páginas da Dra. Diane Ellerbee. Depois voltou a dar-lhe mais uma passagem.
Havia ali mais do que ela lhes transmitira por via oral no seu sumário. Os seis parágrafos descreviam pessoas muito perturbadas, que mostravam sinais evidentes de perderem o controle sobre si mesmas. Qualquer delas parecia possuir um potencial para a violência incontrolável.
Delaney recostou-se e bateu suave e repetidamente com a borda do copo alto contendo o uísque com soda nos dentes. Pensou em Simon Ellerbee. Que tal seria, reflectiu, passar a vida a trabalhar com pessoas cujos processos mentais eram tão caóticos?
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Era, supunha, como estar num país estrangeiro onde todos os nativos eram hostis, falavam uma língua desconhecida e até a geografia do seu mundo era terra incógnita.
Imaginou que qualquer homem que se aventurasse deliberadamente por terra estranha deveria sofrer de espanto e desorientação. Seria obrigado a refrear seriamente os próprios sentimentos para se impedir de se deixar arrastar pela desordem.
Delaney recordou o consultório frio e disciplinado do Dr. Simon Ellerbee. Agora conseguia compreender por que razão um psiquiatra desejava trabalhar num ambiente rigidamente geométrico onde as linhas paralelas nunca se encontrassem e os ângulos agudos lembrassem que a harmonia e a sequência eram uma realidade e a lógica não estava morta.
Capítulo décimo primeiro
Isaac Kane costumava ir à clínica todas as quartas-feiras. Submetiam-no a um nunca mais acabar de testes. De vez em quando, com a permissão da mãe, davam-lhe comprimidos e líquidos a beber. Obrigavam-no a fazer coisas com blocos de madeira e fotografavam-no e filmavam-no para cassettes de vídeo. A seguir passava uma hora com o Dr. Simon.
Kane não se importava de falar com o médico. Ele era um tipo tranquilo, simpático, e parecia realmente interessado no que Isaac tinha a dizer. Na realidade, o Dr. Simon era praticamente a única pessoa que escutava Isaac; sua mãe não o ouvia, e as outras pessoas faziam pouco da maneira como ele se exprimia. Kane desejava sempre dizer muitas coisas, mas nem sempre estas lhe saíam com a velocidade desejada. Depois começava a fazer "Bub-bub-bub", e toda a gente se ria.
Mas o Dr. Simon deixara de ir à clínica, portanto Kane também nunca mais lá pusera os pés. Tentaram convencê-lo a continuar a ir até lá todas as quartas-feitas, mas ele recusou-se terminantemente. Continuaram a aborrecê-lo, pelo que se viu obrigado a agredir algumas daquelas pessoas. Isso resolveu o problema definitivamente e eles nunca mais voltaram a maçá-lo.
De modo que ele agora podia passar os dias inteiros no Centro Comunitário Harriet J. Raskob, a ocidente da Rua 79. A clínica estava toda pintada de branco - facto que não agradava a
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Isaac -, mas o Centro era cor-de-rosa, verde, azul e amarelo. Ali estava quente, e deixavam-no trabalhar nas suas paisagens a pastel.
A responsável do Centro, a Sra. Freylinghausen, vendeu algumas das paisagens de Kane e deu o dinheiro à mãe deste. Mas guardou o suficiente para lhe comprar uma linda caixa com pelo menos uma centena de lápis de pastel em todas as cores e tonalidades, um cavalete, papel, e molduras. Quando os materiais se lhe esgotaram, a Sra. Freylinghausen comprou-lhe mais
- Isaac não era muito bom a fazer compras - e guardava-lhe todas as coisas à chave quando o Centro fechava, às nove da noite.
A maioria das pessoas que acorria ao Centro era de idade considerável, algumas delas deslocando-se em cadeiras de rodas ou muletas. Eram tão simpáticas para Isaac quanto a Sra. Freylinghausen. Mas também havia pessoas jovens e algumas delas já não eram tão agradáveis. Imitavam o "Bub-bub-bub" de Isaac e tentavam passar-lhe rasteiras, empurrar-lhe o cotovelo quando estava a trabalhar ou roubar-lhe os paus de giz. Havia uma rapariga que gostava de lhe tocar no corpo todo.
Às vezes enfureciam-no de tal maneira que tinha de lhes bater. Ele era forte e capaz de magoar alguém a sério se o desejasse.
Certa tarde - Kane não sabia que dia era - a Sra. Freylinghausen saiu do seu escritório acompanhada por dois homens, conduzindo-os até ao canto onde Isaac instalara o seu cavalete, debaixo de uma clarabóia. Os dois homens eram enormes. O mais velho vestia um sobretudo e o outro um blusão verde-escuro. Ambos usavam chapéus.
- Isaac - disse a Sra. Freylinghausen -, gostaria de te apresentar- dois amigos meus, que estão interessados no teu trabalho. Este aqui é o senhor Delaney, e este o senhor Boone.
Isaac apertou as mãos a ambos, deixando-lhes as palmas destas manchadas com giz colorido. Ambos sorriam e davam ares de ser boa gente. A Sra. Freylinghausen deixou os três a sós.
- Senhor Kane - principiou Delaney -, acabámos de ver algumas das suas paisagens e pensamos que são maravilhosas.
- Não são más, suponho - disse Isaac modestamente. - Às vezes não saem assim, sabe, como eu quero. Nem sempre consigo pôr as cores como deve ser.
- Alguma vez viu as pinturas de Turner? - perguntou Delaney.
- Turner? Não. Quem é?
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- Um pintor inglês. Trabalhava a óleo e aguarela. Fez muitas paisagens. A sua maneira de trabalhar a luz faz-me lembrar Turner.
- Luz! - exclamou Isaac. - Isso é muito difícil de fazer. E depois, como tinha muita coisa a dizer sobre a luz, começou
a balbuciar o seu "Bub-bub-bub..."
Aguardaram pacientemente, sem se rirem, e quando ele acabou de exprimir aquilo que tinha para dizer, anuíram em sinal de compreensão.
- Senhor Kane - disse Boone -, creio que devemos ter um amigo comum. Conhecia o doutor Ellerbee?
- Não, não o conheço.
- O doutor Simon Ellerbee?
- Ah, o doutor Simon! Claro que o conheço. Ele deixou de ir à clínica. Que foi que lhe aconteceu?
Boone olhou de relance para Delaney.
- Receio ter más notícias para lhe dar, senhor Kane - disse Delaney. - O doutor Simon morreu. Alguém o matou.
- Caramba, que pena - comentou Isaac. - Ele era um bom homem. Gostava de falar com ele.
Voltou-se para o cavalete, onde uma folha de papel fora presa com alfinetes a um quadrado de cartão. Estava a trabalhar numa cena idílica campestre, com um moinho de vento, uma cabana de colmo e um ribeiro. Viam-se nuvens tufadas em primeiro plano e, por trás destas, outras ameaçando chuva. A rendição das sombras e a mudança de luz salvava o trabalho da insipidez.
- Qual o assunto que costumava falar com o doutor Simon?
- Oh... de tudo - respondeu Isaac, manuseando o giz branco de modo a obter um pouco mais de reflexo na superfície da água.
- Ele fazia-me muitas perguntas.
- Senhor Kane - disse Boone -, é capaz de se lembrar de alguém que pudesse fazer mal ao doutor Simon?
Ele voltou-se de modo a encará-los. Na sua frente viam um jovem de uma beleza rude, vestido com um fato-macaco de sarja, manchado, uma camisa vermelha axadrezada, sapatilhas muito gastas. O cabelo castanho estava cortado tão curto que a pele rosada do crânio era visível. Os olhos escuros não revelavam nada, mas havia uma doce inocência na sua expressão.
- É assim que algumas pessoas são - disse ele tristemente. Querem magoar-nos.
- As pessoas magoam-no, senhor Kane?
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- Às vezes tentam, mas eu não as deixo. Bato-lhes e aí elas param. Não gosto de pessoas más.
- Mas o doutor Simon nunca o magoou, pois não?
- Oh, não! Ele era um homem bom! Ele nunca... ele seria incapaz... nós conversávamos e...
Mas nesse momento teve tanta coisa para dizer acerca do Dr. Simon que começou de novo a gaguejar. Eles aguardaram, mas ele não tinha mais nada de inteligível a acrescentar.
- Bem, temos de ir andando - disse Delaney. - Obrigado por ter querido conversar connosco durante tanto tempo.
Baixou os olhos para as sapatilhas gastas de Kane.
- Espero que tenha botas ou galochas - observou, sorrindo. Lá fora está a nevar.
- Não me importo - disse Isaac. - Vivo ali mesmo à esquina. Não preciso de botas.
Apertaram as mãos. Delaney e Boone dirigiram-se para a saída. Viram uma menina de cabelo desgrenhado encostada à parede do vestíbulo. Ela fitou-os com olhos vítreos e disse qualquer coisa que eles não entenderam.
Fora do edifício, no passeio, Boone comentou:
- Estava a meter-se connosco.
- Completamente chanfrada - disse Delaney tristemente. Tinham estacionado a viatura na Rua 80. Boone colocara um
distintivo com os dizeres AGENTE DA POLÍCIA EM SERVIÇO na parte de dentro do pára-brisas e, daquela vez, resultara. Ainda tinha as jantes no sítio. Entraram, puseram o motor a trabalhar, ligaram o aquecimento, e deixaram-se ficar alguns minutos sentados, a tremer, vendo a neve húmida a escorrer.
- Pobre tipo - comentou Boone. - Não temos muito por onde lhe pegar.
- Não - concordou Delaney. - Mas nunca se sabe. Ele parece ser rápido com os punhos quando pensa que alguém está a magoá-lo.
- De que modo poderia Simon Ellerbee magoá-lo?
- Talvez fazendo-lhe demasiadas perguntas. É possível.
- Que conversa era aquela acerca das botas e das galochas? quis saber Boone.
- Foi por causa das pegadas não identificadas na alcatifa dos Ellerbees.
- Jesus! - exclamou o sargento penalizado. - Esqueci-me completamente desse aspecto.
- Bem, ainda não sabemos se Kane tem botas. Ele apenas
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disse que as não tinha calçado hoje. Acho melhor voltarmos para minha casa, sargento. O chefe Suarez disse que telefonava ao meio-dia e eu estou com o pressentimento de que ele é um homem muito pontual.
- Acha que ele vai estando em contacto com Thorsen, senhor?
- Evidentemente. Se eu estivesse no lugar de Suarez, diria algo como isto: "Comissário, Delaney quer mais seis detectives. Por mim está bem, mas não lhe quero dar nenhuma das pessoas que estão a trabalhar no caso para mim. Isso dificultaria a nossa tarefa. Portanto, acharia melhor atribuir seis elementos novos a Delaney."
- Acha que Thorsen alinhava numa coisa dessas? - Claro que alinhava. Não tem outra alternativa.
O facto de o tráfego do feriado estar a tornar-se cada vez mais denso e a neve a começar a amontoar-se, levou-os a gastarem quase meia hora a chegarem ao East Side. Boone estacionou em frente da 251ª Esquadra, deixando o seu cartão EM SERVIÇO à vista. Em seguida foram a pé até à porta do lado, onde ficava a casa de Delaney.
- E que tal uma sanduíche? - sugeriu Delaney. - Temos um bocado de carne assada, picles adocicados que são uma delícia, cebola às fatias. Talvez um bocadinho de rábano silvestre. Que lhe parece?
- Estupendo - disse Boone. - E café quente também não caía mal.
Delaney espalhou jornais velhos sobre a mesa da cozinha e eles comeram inclinados sobre estes.
- Agora vejamos... - disse Delaney. - Disse-me que os homens de Suarez já tinham investigado quatro dos elementos da lista, não foi?
- Exactamente, senhor. Apenas o paradeiro de cada um deles na ocasião do homicídio. Esta manhã ainda não tinham tratado de Otherton ou Gerber.
- Teremos de voltar a investigá-los a todos eles, seja como for. Se conseguirmos arranjar mais seis novas pessoas, quero atribuir-lhes uma a cada um. Mas desejo interrogar todos os pacientes pessoalmente. Isso significa que o sargento ou Jason Dois terão de me acompanhar para mostrarem a identificação.
- Falei com Jason. Ele diz que terminará as biografias esta noite. Ligará para si.
- Óptimo. Quero que você esteja presente quando ele apresentar o relatório. Iremos à Otherton esta tarde. Não convém
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telefonarmos antes; limitar-nos-emos a aparecer. Quanto aos restantes quatro, teremos de os guardar para a noite ou para o fim-de-semana. Sargento, lembra-se de alguma coisa que nos esteja a escapar?
Boone terminara a sanduíche. Recostou-se, acendendo um cigarro.
- Gostaria de encontrar pistas sobre o tal martelo de pena redonda - respondeu ele. - Não perguntámos a Isaac se tinha algum.
- Não se preocupe - disse Delaney. - Voltaremos a falar com esse moço. Não consigo imaginar as duas mulheres a terem um martelo desse tipo, mas nunca se sabe. Teremos de nos fixar nos quatro homens. Talvez algum deles seja um maluquinho do "faça você mesmo" ou proceda pessoalmente às reparações do seu automóvel ou coisa do género.
- Como é que uma pessoa se livra de um martelo? observou Boone. - Não se pode queimar. O cabo, talvez, mas não a cabeça. E o primeiro piquete a entrar de serviço verificou todas as sarjetas, valas e recipients do lixo existentes numa área de dez quarteirões.
- Se eu fossse o assassino - disse Delaney -, atirá-lo-ia ao rio. Dificilmente poderá ser encontrado aí.
- No entanto - contrapôs Boone -, o criminoso poderia ter...
Nesse preciso momento o telefone tocou e Delaney levantou-se para ir atender.
- Espero que seja Suarez - disse.
- Fala Edward X. Delaney... Sim, chefe... Hum... hum. Está óptimo... Segunda-feira está bem... Claro. Talvez possamos encontrar-nos na semana que vem... Como quiser... Obrigado pela ajuda, chefe.
Desligou e voltou-se para Boone.
- Ele não me parecia muito satisfeito, mas segunda-feira de manhã temos aí seis novos agentes. Gostaria de que estivesse presente; pode ser que conheça algum dos tipos. Mais café?
- Se faz favor. Já comecei a descongelar.
- Bem, beba à vontade. Depois iremos falar com Sylvia Mae Otherton. De certeza que uma mulher que sofra de agorafobia se atreverá a sair num dia como este.
A senhora em questão vivia num prédio de apartamentos na parte leste da Rua 72, entre as avenidas Park e Lexington, que mais parecia um couraçado. Boone deu duas voltas ao quarteirão,
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tentando encontrar algum sítio para estacionar e depois desistiu. Parou em frente do toldo do edifício e quando viu o porteiro a correr para eles, indignado, mostrou-lhe o distintivo e acalmou-o. O pátio cavernoso estava forrado a mármore acastanhado que precisava de uma limpeza, e as portas de aço art deco do elevador não eram, obviamente, polidas há anos. A alcatifa estava no fio e todo o local cheirava a bolor.
- Um autêntico mausoléu - comentou Delaney.
Havia um balcão de topo de mármore, atrás do qual se encontrava um homem de idade que usava uma prótese auditiva de modelo antigo, cujo fio negro desaparecia no interior da parte da frente do casaco de alpaca preta que vestia. Boone perguntou pela menina Sylvia Mae Otherton.
- E quem devo anunciar? - perguntou o porteiro em tom sepulcral.
O sargento mostrou, mais uma vez, o seu distintivo e a identificação, e as sobrancelhas do homem levantaram-se ligeiramente .
O responsável pelo prédio pegou no auscultador e carregou em três números digitais com um dedo tremente. Voltou-lhe as costas; a única coisa que lhe chegava eram murmúrios. Em seguida virou-se de novo para eles.
- A menina Otherton quer saber qual é o objectivo da vossa visita.
- Diga-lhe que lhe queremos fazer algumas perguntas - disse Boone. - Será rápido.
Mais murmúrios.
- A menina Otherton diz que não está a sentir-se muito bem e pergunta se não poderão voltar noutra altura.
- Não, não podemos voltar noutra altura - respondeu Boone, começando a impacientar-se. - Pergunte-lhe se prefere receber-nos em sua casa ou se quer ir connosco para a esquadra a fim de ali ser interrogada.
As sobrancelhas brancas ergueram-se, uma vez mais. Novos murmúrios. Depois desligou o telefone.
- A menina Otherton diz que os recebe imediatamente - disse. - Apartamento doze C.
Logo a seguir, inclinou-se sobre o balcão com os olhos turvos a brilharem.
- É por causa daquele médico que foi morto, não é? perguntou num sussurro conspirativo.
Delaney e Boone afastaram-se.
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- Ela ficou devastada - gritou-lhes ele. - Simplesmente devastada.
- Maldito coscuvilheiro - observou o sargento, furioso, ao chegar ao elevador. - Esta noite já todos os inquilinos saberão que a Otherton foi contactada pela Polícia.
- Acalme-se - aconselhou Delaney. - Não há ninguém que não aprecie um assassínio horripilante, especialmente um que ainda não tenha sido resolvido. Gostam de imaginar que o criminoso se safa.
Boone fitou-o com curiosidade.
- Acredita verdadeiramente nisso, senhor?
- Claro - respondeu Delaney jovialmente. - Alimenta as fantasias das pessoas. Podem sonhar que limpam o sebo à mulher, ao marido, ao patrão, ao amante ou ao estupor que mora na porta ao lado, e saem ilesos do acto.
Boone carregou no botão do apartamento 12C. Aguardaram. Continuaram a aguardar. Finalmente ouviram sons de trancas a serem retiradas e a porta abriu-se alguns centímetros, presa ainda por uma corrente.
- Deixem-me ver a vossa identificação - disse uma voz abafada.
Obedientemente, o sargento Boone fez passar o seu distintivo pela fenda. Aguardaram. Em seguida a porta fechou-se, a corrente foi retirada e ela voltou a abrir-se, desta vez suficientemente.
- Limpem os pés no capacho antes de entrarem - pediu a mulher.
Obedeceram.
O apartamento estava tão fracamente iluminado - todas as janelas encontravam-se tapadas por pesados reposteiros - que era difícil distinguir muita coisa. Vislumbraram móveis pesados ao longo das paredes e tiveram a vaga impressão de divisar um enorme sofá excessivamente estofado e duas cadeiras de braços a rodearem uma pequena mesa redonda.
Delaney apercebeu-se do cheiro a incenso de madeira de sândalo e, à medida que os seus olhos se iam acostumando à obscuridade, distinguiu o contorno impreciso de pendentes orientais e de um biombo rasgado a servir de divisória de sala.
A mulher que tinham diante deles, cabeça baixa, um pedaço de tecido numa das mãos, parecia tão estranha como o seu apartamento sobreaquecido. Vestia uma fatiota larga de renda preta sobre um forro de seda cor de púrpura escura, com a bainha
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irregular a chegar-lhe aos tornozelos, e os pés pequenos calçados com reluzentes sapatos de toilette.
Usava uma torrente de colares: pérolas e imitações de diamante, conchas e contas de madeira. Uns eram rente ao pescoço, outros pendiam-lhe até à cintura disforme. Os dedos gordos estavam igualmente adornados: anéis em todos eles, alguns com dois e três. E como se tal não bastasse, ambos os braços estavam cheios de pulseiras, desde o pulso ao cotovelo.
- Menina Sylvia Mae Otherton? - perguntou o sargento Boone.
A cabeça inclinada acenou que sim.
- Seria possível despirmos os casacos, menina? Não ficaremos muito tempo, mas aqui dentro faz calor.
- Façam como melhor entenderem - respondeu ela. Despiram os casacos e dobrando-os sobre o braço, com os
chapéus em cima, sentaram-se no sofá.
A única iluminação da sala provinha de uma lâmpada azul de um candeeiro de pé em bronze trabalhado, com a forma de uma cobra em posição de ataque. Esforçaram-se por distinguir as feições de Sylvia Mae Otherton naquela luminosidade fraca, quando esta se enroscou lentamente na cadeira de braços, à frente deles. Sentiam-lhe o perfume; era mais forte do que incenso.
- Menina Otherton - principiou Boone suavemente -, como calculo que tenha percebido, esta nossa visita relaciona-se com o assassínio do doutor Simon Ellerbee. Estamos a falar com os seus pacientes, no âmbito da nossa investigação. Sei que desejará que encontremos a pessoa responsável pela morte de Ellerbee.
- Ele era um santo! - exclamou ela. - Um santo!
- Ergueu a cabeça ao proferir estas palavras e eles puderam então ver claramente, pela primeira vez, as suas feições.
Um rosto carnudo, agora com rugas de desgosto. Maquilhagem da consistência e cor do giz, rosetas de rouge, e lábios tão carregados de bâton que estavam gretados. O cabelo preto pendia-lhe, mole, por escovar, e nas orelhas viam-se-lhe longos brincos de vidro. Sob as sobrancelhas, depiladas até formarem traços finos, os olhos mostravam-se inchados e protuberantes.
- Menina Otherton - continuou Boone -, torna-se necessário determinar o paradeiro dos pacientes do doutor Ellerbee na noite do crime. Onde é que se encontrava nessa sexta-feira à noite?
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- Precisamente aqui - respondeu ela. - Saio muito, muito raramente.
- Recebeu alguma visita nessa noite?
- Não.
- Viu algum dos vizinhos no vestíbulo ou nos corredores?
- Não.
- Recebeu alguma chamada telefónica?
- Não.
Boone desistiu; Delaney assumiu o comando do interrogatório.
- Como é que passou essa noite, menina Otherton? perguntou. - A ler? A ver televisão?
- Trabalhei na minha autobiografia - respondeu ela. - Foi o doutor Simon que me entusiasmou a iniciá-la. Disse que se eu tentasse recordar-me de tudo e escrever, isso ajudar-me-ia.
- E chegou a mostrar o que já tinha escrito a Ellerbee?
- Sim. E discutimos o trabalho. Ele era tão complacente, tão compreensivo. Oh, que homem maravilhoso!
- Via-o duas vezes por semana?
- De um modo geral. Às vezes mais, quando eu... quando eu precisava.
- Há quanto tempo andava a consultar o doutor Ellerbee?
- Quatro anos. Quatro anos e três meses.
- Sentia que ele a estava a ajudar?
- Oh, sem dúvida! Agora entro em pânico muito menos vezes. E não faço aquelas... aquelas coisas tão frequentemente. Não sei o que vai ser de mim agora que o doutor Simon morreu. A mulher dele, a sua viúva, está a tentar encontrar outro terapeuta para mim, mas já não será o mesmo.
- Que coisas? - perguntou Boone asperamente. - Disse que já não fazia aquelas coisas com tanta frequência. A que se estava a referir?
Ela levantou o queixo mole.
- Às vezes, quando saio, atiro-me às pessoas.
- Elas fazem-lhe alguma coisa?
- Não.
- A qualquer pessoa? - inquiriu Delaney. - A alguém que vá no meio da rua ou esteja num restaurante?
- Homens com barba - respondeu ela com voz abafada, baixando de novo a cabeça lentamente. - Só a homens com barba. Quando tinha quinze anos de idade fui violada pelo meu tio.
- E ele usava barba?
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Ela levantou a cabeça e fitou-o desafiadoramente.
- Não, mas aquilo aconteceu no escritório dele e havia uma velha gravura de Ulysses Grant na parede.
"Isto é uma loucura", pensou Delaney, sentindo-se vagamente envergonhado por terem arrancado semelhante confissão daquela mulher infeliz.
- Mas as suas agressões a homens barbados tornaram-se menos frequentes depois de ter começado a consultar o doutor Ellerbee, não?
- Oh, sem dúvida! Ele foi a única pessoa que conseguiu fazer-me compreender a ligação que havia entre os homens de barba e a violação.
- Quando é que atacou um desconhecido pela última vez?
- Oh, meses atrás.
- Há quantos meses?
- Um ou dois.
- Deve ter sido extremamente doloroso para si quando o doutor Ellerbee lhe falou da causa da sua hostilidade para com os homens barbados.
- Ele não me contou. Nunca o fez. Limitou-se a deixar que eu o descobrisse por mim própria.
- Mas foi penoso, não?
- Sim - respondeu ela num sussurro. - Muito. Nessa altura odiei-o por me trazer tudo aquilo à lembrança.
- A descoberta foi recente?
- Há alguns meses atrás.
- Quantos meses?
- Um ou dois - voltou ela a repetir.
- Mas há pouco apelidou o doutor Ellerbee de santo. Portanto, o seu ódio não durou muito.
- Pois não. Eu sabia que ele estava a tentar ajudar-me. Delaney olhou de relance para Boone.
- Menina Otherton, conhecia algum dos restantes pacientes do doutor Ellerbee? - perguntou Boone.
- Não. Raramente os via e, quando tal acontecia, nunca falávamos.
- Conhecia a doutora Diane Ellerbee?
- Encontrei-a duas vezes e falámos uma com a outra ao telefone.
- Que pensa dela? - perguntou Boone.
- Não é má pessoa, creio. Horrivelmente magra. E fria. Não
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tem a personalidade do doutor Ellerbee. Ele era um homem muito afectuoso.
- Conhece alguém que pudesse desejar magoá-lo? Alguém que o ameaçasse?
- Não. Quem quereria matar um médico! Ele estava a tentar ajudar toda a gente.
- Alguma vez agrediu o doutor Ellerbee?
- Uma vez - disse ela, começando a chorar. - Dei-lhe uma bofetada.
- Por que razão o fez?
- Não me lembro.
- Como é que ele reagiu?
- Deu-me outra, com pouca força. Depois agarrámo-nos um ao outro a rir, e tudo ficou bem.
Ela parecia disposta a continuar a falar - ansiosa, de facto. Mas o incenso de sândalo, o perfume que ela usava e o calor abafante que reinava na casa, começara a pô-los maldispostos.
- Obrigado, menina Otherton - disse Delaney, lutando para se libertar das profundezas do sofá. - Foi muito colaborante. Por favor, tente lembrar-se de tudo quanto diga respeito ao doutor Simon que possa ajudar-nos. Talvez algum nome que ele tenha mencionado, ou um incidente. Por exemplo, acha que os modos ou a personalidade dele sofreram alguma alteração durante, digamos, os últimos seis meses ou um ano?
- É estranho que faça essa pergunta - disse ela. - Tive a impressão de que ele se tornou um pouco mais calado, mais pensativo. Não deprimido, compreende, mas um tudo-nada tenso. Perguntei-lhe se tinha alguma coisa a preocupá-lo, mas ele disse que não.
- Prestou-nos uma ajuda inestimável - disse Boone. Poderemos considerar necessário cá voltar para lhe fazermos mais algumas perguntas. Espero que não se importe.
- Não me importarei - afirmou ela lastimosamente. - Não recebo muitas visitas.
- vou deixar o meu cartão - disse o sargento -, para o caso de se lembrar de algum pormenor que possa ajudar-nos.
No elevador, na descida, Delaney observou:
- Estranho. Ela diz que ele era uma pessoa afectuosa. Não foi essa a sensação que o consultório dele me transmitiu.
- Que seria que o andava a preocupar - discorreu Boone. Se é que havia alguma coisa.
- A questão é esta - argumentou Delaney -, odiá-lo-ia ela o
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suficiente para o matar? Diz que ficou a detestá-lo depois de ele a ter feito recordar a violação. Talvez ele a tivesse levado a desenterrar mais alguma coisa do seu passado que a tenha realmente desnorteado.
- Acha que ela possuiria força suficiente para lhe abrir o crânio?
- Quando a adrenalina está a subir, uma pessoa leve torna-se capaz de o fazer, e ela de fraca não tem nada.
- É verdade. É por isso que vou já para casa fazer a barba. Não me quero arriscar!
Nessa noite, depois do jantar, Delaney contou a Mónica o seu dia. Esta ouviu-o com atenção, fascinada.
- Essa pobre gente - comentou ela, com ar triste, depois de ele ter terminado.
- Sim. Não são propriamente dementes, mas nem Isaac Kane nem Sylvia Mae têm os cinco parafusos bem metidos. E ainda tenho mais quatro pacientes para conhecer.
- Estás a ficar deprimido, Edward?
- Não dá propriamente vontade de rir.
Ele fizera uma pequena fogueira na grelha da lareira e desligara as luzes da sala de estar. Deixaram-se ficar sentados no sofá, junto um do outro, a olhar para as chamas. De repente, ele colocou um braço em redor dos ombros de Mónica.
- Estás bem? - perguntou ela.
- Sim - respondeu ele. - Mas lá fora está frio e escuro.
Capítulo décimo segundo
- Vai ser um fim-de-semana complicado - disse Delaney a Mónica no sábado de manhã. - Quero falar com os quatro pacientes antes de os novos rapazes chegarem, o que acontecerá segunda-feira de manhã. E Jason telefonou. Hoje à tarde vem cá.
- Não te esqueças de perguntar a Boone e a Jason se estão disponíveis para o jantar do Dia de Acção de Graças.
- Não me esquecerei - prometeu ele.
Foi para o gabinete de trabalho escrevinhar um horário rudimentar e consultar os endereços dos pacientes que constavam da lista fornecida pela Dra. Diane Ellerbee. Decidiu tratar de Ronald
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J. Bellsey e de L. Vincent Symington no sábado e de Joan Yesell e Harold Gerber no domingo.
Ele e Boone teriam de voltar ali a fim de ouvirem o relatório que Jason tinha para lhes apresentar, e era possível que alguns dos pacientes não estivessem em casa. Mas se tudo corresse bem, Delaney poderia passar a noite de domingo a actualizar os seus arquivos, preparando-se para os dar a conhecer aos seis novos detectives.
Na altura em que Boone chegou, Delaney tinha o fim-de-semana organizado. Tudo menos a previsão do tempo.
Estava um dia miserável, com nuvens baixas, chuviscos e um vento malévolo que soprava de noroeste, açoitando as abas dos casacos e levando os chapéus pelos ares.
Bellsey vivia na parte oriental da Rua 28. Seguiram de carro para sul, pela 2ª Avenida, com o limpa-pára-brisas a trabalhar intermitentemente e o aquecimento meio avariado a travar uma batalha perdida contra o vento gelado.
- Continuo a ter esperança de que alguém roube este monte de sucata - observou o sargento. - Mas creio que nem sequer o ferro-velho o quer. Um dia destes ainda acerto na lotaria e arranjo uma carripana como deve ser. A propósito, estive a falar com o detective que investigou Bellsey. O sujeito afirma que estava em casa na noite em que Ellerbee foi morto. A mulher confirma. Não é grande álibi.
- Lá isso não - concordou Delaney. - Descobriu como é que Bellsey ganha a vida?
- Sim. É gerente de um grande matadouro da Rua Dezoito, oeste. Trabalham apenas com carnes e aves de primeira qualidade, e só vendem para restaurantes e hotéis.
- O que me faz lembrar de uma coisa - disse Delaney. Gostaria de vir, juntamente com Rebecca, jantar a nossa casa no Dia de Acção de Graças? Vamos comer ganso assado.
- Por mim, está óptimo - concordou Boone. - Obrigado, senhor. Mas terei de confirmar primeiro com Rebecca, não se vá dar o caso de ela ter feito outros planos.
- Claro. Seja como for, diga-lhe para dar uma telefonadela a Mónica.
Ronald J. Bellsey vivia num arranha-céus de construção recente, na 3ª Avenida. Descobriram um espaço para estacionar na Rua 29, e voltaram para trás pela rua varrida pelo vento e pela chuva, agarrados aos chapéus. Ao chegarem ao vestíbulo do prédio, foram informados de que o senhor e a senhora Bellsey não
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se encontravam em casa, tendo saído para ir às compras ainda não há um quarto de hora.
- Merda! - praguejou o sargento, enquanto voltavam para o carro. - Bem, acho que não devemos ter a veleidade de esperar apanhá-los a todos.
- Voltaremos a fazer nova tentativa esta tarde - disse Delaney. - Ninguém passa o dia inteiro a fazer compras com um tempo como este. Vamos ver se encontramos L. Vincent Symington. Ele vive em Murray Hill. Rua Trinta e Oito, a leste do Central Park. Descobriu alguma coisa sobre ele?
- É solteiro. Trabalha para uma casa de orientação de investimentos na Wall Street. Na noite do assassínio afirma ter estado num grande jantar-dançante no Hilton. Alguns dos outros convidados recordam-se de o ter visto lá, mas a cena está tão enevoada que ele poderia facilmente ter-se escapado, assassinado Ellerbee e voltado para o Hilton sem ninguém dar pela sua ausência. Nada se mostra completamente claro, pois não, senhor?
- Nada - concordou Delaney. - Há sempre pontas soltas. Sabe que nome lhe dão na Marinha? "Flâmulas irlandesas". Aí está o que este caso é, tudo flâmulas irlandesas.
Symington vivia numa elegante mansão de janelas salientes nos primeiros dois andares, clarabóias sobre as janelas superiores e um telhado de mansarda de cobre esverdeado. Uma lanterna com o que parecia serem vidros Tiffany pendia do tecto, suspensa em frente da porta de entrada.
- Dinheiro - declarou Delaney, observando o edifício. Provavelmente todos os andares têm comunicação por dentro.
Tinha razão. Apenas se viam cinco nomes na placa de metal polido da campainha. L. VINCENT SYMINGTON, impresso com caracteres simples, estava em frente do número três. Boone carregou no botão e inclinou-se para a grelha do intercomunicador.
- Quem é? - inquiriu uma voz aflautada.
- Sargento Abner Boone, do Departamento da Polícia de Nova Iorque. É o senhor Symington?
- Sim.
- Poderíamos falar consigo durante alguns minutos, senhor?
- De que esquadra são?
- Manhattan Norte.
- Só um minuto, por favor.
- Filho da mãe cauteloso - segredou Boone a Delaney. -
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Está a telefonar para a esquadra para confirmar a minha existência. Delaney encolheu os ombros.
- Tem esse direito.
Aguardaram quase três minutos antes de o fecho da porta zumbir e esta se abrir. Empurraram-na e subiram as escadas alcatifadas. O homem que os esperava no terceiro andar poderia ter-se dado à preocupação de ligar para a esquadra, mas anulou essa prudência não lhes pedindo que se identificassem.
- Imagino que seja por causa do doutor Ellerbee - disse ele nervosamente, voltando para a soleira da porta. - Já prestei declarações à Polícia sobre esse assunto.
- Sim, senhor, nós sabemos - respondeu o sargento. - Mas desejamos fazer-lhe algumas perguntas adicionais.
Symington suspirou.
- Oh, está bem - observou petulantemente. - Mas espero que não me voltem a aborrecer com este assunto.
- Isso - disse Boone - é coisa que não podemos garantir. O apartamento encontrava-se meticulosamente decorado
e parecia, pensou Delaney, tão acolhedor e confortável como o andar-modelo de uma empresa do ramo. Era tudo impecável: cores combinadas, nem o mais pequeno grão de pó, tudo polido, a brilhar de novo. Não se viam pontas de cigarros nos cinzeiros de porcelana. Não havia manchas no forro de veludo das cadeiras. Não se vislumbravam sinais de presença humana em nenhum lado.
- Bela sala - disse a Symington.
- Acha mesmo! Muito obrigado. Sabe, toda a gente pensa que tive um decorador, mas acontece que fiz tudo sozinho. Não lhe sei dizer quanto tempo levei. Eu sabia exactamente o que desejava, mas passaram-se montes de tempo antes de conseguir conjugar tudo.
- Fez um belo trabalho - assegurou-lhe Boone. - A propósito, eu sou o sargento Boone e este senhor é Edward X. Delaney.
- Tenho muito gosto, sem dúvida - disse Symington. Desculpem não lhes apertar as mãos. É algo que me mete impressão.
Pegou-lhes nos casacos e nos chapéus, manuseando-os com as pontas dos dedos como se pudessem estar infectados. Convidou-os a sentarem-se em cadeiras forradas: cabedal amarelo-torrado em suportes de aço inoxidável. Ele ficou de pé,
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encostando-se negligentemente a uma lareira de tijoleira antiga com uma cornija de madeira de carvalho.
Vestia um fato de treino de veludo que nada fazia para lhe esconder a barriga saliente. Tinha um medalhão de ouro ao pescoço e uma pulseira de grossos elos também de ouro no pulso, que chocalhava de cada vez que ele fazia um gesto. Os pés estavam nus.
- Bem - disse com um trinado de riso sem expressão -, imagino que sabem tudo sobre mim.
- Que quer dizer, senhor? - inquiriu Boone, estupefacto.
- Quero dizer, suponho que estiveram a remexer nos arquivos do doutor Simon e conhecem todos os meus pequenos segredos sórdidos.
- Oh, não, senhor Symington - disse Delaney. - De modo nenhum. Temos os nomes e os endereços dos pacientes, nada mais.
- É difícil acreditar. Tenho a certeza de que têm processos... Bem, não tenho nada para esconder, asseguro-vos. Consultava o doutor Simon há seis anos, três vezes por semana. Se não tivesse sido ele, de certeza de que neste momento seria um louco perigoso. Quando soube da sua morte, fiquei devastado. Simplesmente devastado.
E, recordou Delaney, o porteiro do prédio onde Sylvia Mae Otherton morava dissera que ela ficara devastada. Talvez todos os pacientes de Ellerbee estivessem devastados. Mas não tanto quanto o médico...
- Senhor Symington, as suas relações com o doutor Simon eram amigáveis? - perguntou Boone.
- Amigáveis? - repetiu ele com uma careta teatral. - Santo Deus, não! Como é que se pode ser amigável com o nosso psiquiatra? Ele magoava-me. Continuamente. Fez-me confessar coisas que toda a vida mantive escondidas. Era muito doloroso.
- Deixe-me ver se compreendo - disse Boone, indeciso. As suas relações com ele eram uma espécie de duelo.
- Mais ou menos - concordou Symington, hesitante. - Quero dizer, nem tudo eram brincadeiras e jogos. Sim, creio que se poderia dizer que era uma espécie de duelo. ":
- Alguma vez atacou o doutor Simon? - perguntou Delaney ? de repente. - Atacou fisicamente?
A corrente de ouro tiniu quando Symington levantou com violência o braço num gesto de bravura.
- Nunca! Nunca lhe toquei, embora Deus saiba da vontade;
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que tive de o fazer mais de uma vez. Deve compreender que a maior parte das pessoas que fazem análise desenvolvem uma relação amor-ódio com o seu terapeuta. Quero dizer, intelectualmente, uma pessoa dá-se conta de que o psiquiatra está a tentar ajudá-la. Mas emocionalmente tem a impressão de que ele se esforça por a magoar, daí que fiquemos ressentidos com o facto. Começamos a desconfiar dele. Chegamos a pensar que possui um motivo ulterior para nos fazer confessar. Talvez nos vá chantajar.
- Acredita verdadeiramente que o doutor Simon pudesse vir a exercer chantagem sobre si? - perguntou Delaney.
- Considerei a hipótese por várias vezes - respondeu Symington, remexendo-se, agitado. - Não me teria surpreendido. As pessoas não prestam para nada, sabe. Confia-se nelas, até as amamos, e depois enganam-nos. Podia contar-vos casos...
- Mas manteve-se com ele durante seis anos - argumentou Boone.
- Claro que o fiz. Precisava do homem. Estava verdadeiramente dependente dele. E isso fazia com que me sentisse ainda mais ressentido. Mas matá-lo? É nisso que estão a pensar? Eu nunca faria semelhante coisa. Eu amava o doutor Simon. Éramos muito chegados. Ele sabia tanta coisa sobre mim.
- Conhecia algum dos seus outros pacientes?
- Travei conhecimento com algumas das pessoas que iam vê-lo. Não se tratava de amigos, apenas conhecidos ou pessoas que encontrara em festas e que descobrira serem ou terem sido seus pacientes.
- Sabe se ele foi alguma vez atacado por um paciente? perguntou Boone.
- Não. E mesmo que tal tivesse acontecido, ele não era pessoa para contar essas coisas a outro paciente.
- Reparou em alguma alteração nos seus modos? - inquiriu Delaney. - No último ano ou seis meses.
L. Vincent Symington não respondeu imediatamente. Aproximou-se do longo sofá de módulos que se estendia em frente das cadeiras onde eles estavam sentados, e estendeu-se nele. Meteu uma almofada forrada a seda crua debaixo da cabeça e fitou-os.
Possuía um rosto bochechudo e com olhos salientes. Os lábios eram inesperadamente cheios e rosados. Era calvo e a pele nua do crânio mostrava-se salpicada de sardas castanhas. Delaney pensou que ele parecia uma boneca antiga, e imaginou os seus braços e pernas semelhantes a salsichas, gordos e sem ossos.
- Eu amava-o - disse Symington lastimosamente. -
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Amava-o de verdade. Ele era quase como se fosse Cristo. Nada o chocava. Uma vez, aqui há uns anos, desci muito baixo e castiguei meus pais. Magoei-os verdadeiramente. O doutor Simon levou-me a encarar o facto. Mas não o condenou. Ele nunca condenava. Oh, Jesus, que vai ser de mim?
- Não respondeu à minha pergunta - insistiu Delaney secamente. - Reparou em alguma alteração nele ultimamente?
- Não. Nenhuma alteração.
De repente, sem aviso, Symington começou a chorar. Lágrimas escorriam-lhe pelas bochechas gordas, pingando sobre a almofada e manchando-a.
Chorou silenciosamente durante vários minutos.
Delaney olhou para Boone e os dois levantaram-se ao mesmo tempo.
- Obrigado pela sua ajuda, senhor Symington - disse Delaney.
- Obrigado, senhor - agradeceu Boone.
Deixaram-no no mesmo sítio, deitado no seu sofá de veludo com o seu fato de treino, de rosto molhado, agora voltado para o tecto.
Chegados cá fora, deitaram a correr para o carro, fazendo a água saltar das poças do passeio. Ficaram sentados por um momento, enquanto Boone acendia um cigarro.
- Um homossexual? - perguntou este. - Que acha?
- Quem diabo sabe? - respondeu Delaney de mau humor. Mas lá que é excêntrico, é. Oiça, estou esfomeado. Conheço uma casa de petiscos de uns judeus em Lex, não muito longe daqui. Tem uma carne enlatada e um pastrami de gritos. Montes de picles. Quer experimentar?
- Raios, sim - concordou o sargento. - com um bom quarto de litro de café quente.
A casa de petiscos era um local cheio de fumo e azáfama, fragrante com o odor das especiarias. O nível do decibel estava elevado e eles tiveram de gritar o pedido a uma das atarefadas empregadas de mesa.
- Boa comida - comentou Boone, quando as sanduíches pedidas chegaram. - Como é que descobriu este lugar?
- Não foi num dos meus momentos mais felizes. Era detective de segunda classe e andava a seguir um tipo que era amigo chegado de um malandro a que queríamos deitar a mão por causa
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de um homicídio feito num assalto a uma tasca. O tipo que eu tinha esperança de me conduzir até ao assassino entrou aqui para almoçar, e eu fiz o mesmo. Mandou vir a refeição e, quando esta foi servida, levantou-se e dirigiu-se para o fundo da casa. Os lavabos ficavam ali, de modo que pensei que ele ia urinar e depois voltaria para comer. Mas depois passaram-se cinco minutos e o tipo sem voltar, logo vi que havia ali marosca e fui à procura dele. Foi aí que descobri que a casa tinha uma saída pelas traseiras por onde ele se tinha escapulido há muito. Penso que devia ter topado que eu o seguia e pôs-se na alheta. Portanto, voltei para o meu lugar e acabei o almoço. Achei a comida tão boa que continuei a vir aqui sempre que estou perto.
- Conseguiu apanhar o assassino?
- Consegui. Ele cometeu a asneira de começar a bater demasiado na mulher com o cinto e ela denunciou-o. Atribuíram-lhe um crime de segundo grau. Isso foi há anos atrás; provavelmente já cá está outra vez fora.
- A assaltar mais tascas.
- Não tenho a menor dúvida - concordou Delaney com um bom humor forçado. - Era o único comércio que ele conhecia.
- Sabe - disse Boone -, não fiquei nada com a impressão de que Symington seja do género de pessoa capaz de ter um martelo de pena redonda.
- Ou galochas, sequer. Mas não me surpreenderia que tivesse um par de botas de cowboy. As pessoas com quem estamos a lidar são, de facto, um achado. Têm bons empregos e fazem dinheiro suficiente para poderem ver um terapeuta três vezes por semana. Quero dizer, elas funcionam. Mas quando as pomos a falar é que nos apercebemos de que as engrenagens mentais não trabalham correctamente. Pensam que se A é igual a B e B igual a C, então X é igual a Y. Temos de começar a pensar assim, sargento, se queremos chegar a alguma conclusão neste caso. Não vale a pena andarmos à procura de lógica.
Ficaram em silêncio por momentos, olhando despreocupadamente para a actividade que se desenrolava na casa de petiscos, à medida que os clientes chegavam e partiam, as empregadas suadas gritavam as ordens e os tipos que estavam do outro lado do balcão das carnes quentes brandiam os seus longos facões fazendo lembrar samurais dementes.
- Eu penso - disse Boone - que talvez Symington estivesse verdadeiramente apaixonado por Ellerbee. Em termos sexuais, mesmo.
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- É possível - concordou Delaney. - Até é possível que Ellerbee correspondesse. Quem sabe se o bom doutor andava ralado por causa de algum arrufo com um amante? Mas isso só me mostra até que ponto este mundo aberrante está a chegar, Terminou? Penso que é melhor regressarmos. Jason avisou que estaria lá à uma da tarde.
- Espero que tenha encontrado alguma coisa de jeito.
- Não conte muito com isso - aconselhou Delaney. Mónica estivera fora a prestar trabalho voluntário num hospital
local. Ao regressar, encontrou Jason T. Jason em frente da casa, dentro de um carro da Polícia sem matrícula. Levou-o até à cozinha e estavam a tomar café quando Delaney e Boone entraram. Os três homens dirigiram-se para o gabinete de trabalho e Jason levou consigo um sobrescrito castanho.
- Então - disse Delaney a Jason -, que tal se saiu?
O polícia negro era um homem gigantesco, e era muito pequena a parte que tinha de gordura. A sua pele assemelhava-se a cordovão rubicundo que parecia sempre polido ao ponto de ficar lustroso. Usava o cabelo cortado muito curto, como um capacete entretecido, mas o bigode, finamente aparado, estendia-se de bochecha a bochecha.
Jason Dois vivia com a mulher, Juanita, e dois filhos pequenos, em Hicksville, Long Island. Estava há seis anos no Departamento e recebera dois louvores, tendo sido notada a sua participação em várias acções de imposição da ordem pública. Aguardava um distintivo de detective - o que também acontecia com vinte mil outros polícias.
- Não sei como fiz - confessou, abrindo o sobrescrito castanho. - Foi a primeira vez que procurei um criminoso numa biblioteca. Obtive três relatórios aí, sobre os dois Ellerbees e Doe Samuelson. Passei-os a limpo na velha máquina de escrever do meu filho mais velho. Só sei funcionar com dois dedos, os indicadores, portanto tem muitos riscos e correcções, no entanto penso que conseguirá lê-lo. Seja como for, quase todo ele é composto por dados específicos: datas, idades, educação, antecedentes familiares, graus académicos, etc. Para ser honesto, senhor, não me parece que tudo isso tenha algum interesse. Quero dizer, não vejo no que nos pode ajudar a apanhar o assassino de Ellerbee.
- Nada de invulgar? - perguntou Delaney. - Nada que lhe tenha parecido fugir ao comum e seja digno de ser investigado com mais detalhe?
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- Penso que não - respondeu Jason lentamente. - O facto mais curioso foi Samuelson ter tido uma crise depressiva há alguns anos. Isso pareceu-me estranho: um psiquiatra ir-se abaixo. Disseram que tinha sido exaustão derivada de excesso de trabalho. Esteve fora de acção durante seis meses, mais ou menos, mas depois voltou ao consultório e recomeçou novamente a ver os pacientes.
Delaney virou-se para Boone:
- Ele disse que a mulher morrera de cancro, não foi, e que o filho fora morto num acidente de automóvel? Isso seria quanto basta para deitar abaixo qualquer pessoa. Mais alguma coisa, Jason?
- Bem, senhor, recolhi todos os factos e números que pude no tempo de que dispunha. Está tudo nos meus relatórios. A maior parte veio de livros, jornais e publicações profissionais. Mas também falei com muita gente. Amigos e associados dos três médicos. E depois de obter as questões factuais que pretendia, fiquei um bocado a conversar com eles. Engraçado como as pessoas fogem a falar quando sabem que está em curso uma investigação criminal. De qualquer modo, ouvi algumas coisas que podem, ou não, significar algo. Não as incluí no meu relatório porque são apenas boatos. Quero dizer, nenhuma delas pode ser considerada como prova real.
- Fez muito bem, Jason - disse o sargento Boone. Precisamos de todos os indícios que pudermos arranjar. Que foi que ouviu?
- Em primeiro lugar, praticamente todos os tipos com quem falei fizeram referência à beleza de Diane. Pareciam todos apaixonados por ela. Eu ainda não a vi, mas deve ser uma senhora de se lhe tirar o chapéu.
- É mesmo - concordaram Delaney e Boone ao mesmo tempo, começando depois a rir.
- Bem, toda a gente comentou a sorte que o doutor Simon tinha em ter uma mulher como aquela: bonita e com muito dinheiro. Mas houve um tipo que jura que Ellerbee não andava muito ansioso por se casar, mas ela já estava resolvida. Alguns admitiram ter-se atirado a ela, mesmo depois de já estar casada, mas não tiveram sorte nenhuma; ela manteve-se fiel.
- Algum mexerico sobre a possibilidade de o doutor Simon ter arranjinhos por fora?
- Nada - respondeu Jason. - Tudo indica que ele era um tipo de indivíduo frio, controlado. Quero dizer, era agradável,
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boa companhia e tudo isso, mas um homem muito reservado; não revelava muito. Pelo menos foi o que a maioria das pessoas afirmou. Mas falei com uma mulher, a secretária da tal associação a que ele pertencia, que me disse ter visto Ellerbee num jantar antes do seu assassínio. Comentou ter ficado surpreendida com a mudança que notava nele desde a última vez em que o vira. Afirmou estar a sorrir e bastante mais extrovertido do que anteriormente. Parecia na verdade feliz, disse ela. Delaney e Boone olharam um para o outro.
- Que confusão - observou o sargento, abanando a cabeça. Delaney explicou a Jason por que razão se sentiam tão
intrigados. Contou-lhe que Sylvia Mae Otherton afirmara ter achado que Ellerbee se tornara mais calado, pensativo, não deprimido, mas tenso.
- Não condiz - disse Jason. - Uma das duas senhoras deve estar enganada.
- Não necessariamente - argumentou Delaney. - Talvez apenas o tenham apanhado em estados de espírito diferentes. Mas o que é interessante é que ambos notaram uma alteração recente na sua disposição. Gostaria de saber o que deu origem a esse facto. Provavelmente nada, mas ainda assim... Sargento, conte a Jason o que se passou com o paciente que acabámos de visitar.
Quando Boone chegou ao fim, Jason exclamou:
- Caramba! Essa gente... dá a impressão que os elevadores deles não vão até ao andar de cima.
- São um tanto destrambelhados - admitiu Delaney. Umas vezes mostram-se lógicos, outras, descambam no disparate. O nosso problema vai ser separar o que é real do que faz parte do mundo de fantasia em que vivem. Não vejo que outra coisa possamos fazer para além de os deixarmos falar todas as irracionalidades e depois tentarmos descobrir o seu significado mais tarde. Terei de avisar o pessoal novo que chega segunda-feira de manhã sobre este aspecto.
- Senhor, como é que tenciona utilizar aqueles tipos? Atribuir um paciente a cada um? - perguntou Boone.
- Esse era o meu plano inicial, que talvez resultasse se estivéssemos a lidar com delinquentes ou criminosos menores. Mas estes sujeitos são extremamente cultos e inteligentes, mesmo que os seus cérebros nem sempre funcionem da maneira mais correcta. Penso que obteremos resultados mais satisfatórios se cada detective tiver a oportunidade de falar com três ou quatro dos
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pacientes. E depois seleccionam aquele com o qual sentem que podem trabalhar mais eficazmente. Vocês sabem como às vezes acontece uma testemunha tornar-se hermética perante um detective e depois dizer tudo o que tem a dizer a outro porque sente que este último é mais simpático. Tentaremos pôr os detectives a trabalhar aos pares, de modo a obtermos o maior proveito possível.
Conversaram durante mais uma hora, discutindo a maneira como deviam organizar a investigação de modo a que os detectives não duplicassem o trabalho uns dos outros, a não ser que se tornasse extremamente necessário proceder a nova verificação.
Delaney decidiu que Boone e Jason ficariam responsáveis pelo escalonamento e orientação de três detectives cada. Os dois apresentariam depois relatórios diários a Delaney sobre as actividades dos respectivos grupos.
- Conto com uma certa confusão a princípio - disse-lhes -, mas quero que vocês dois coordenem o vosso planeamento tanto quanto possível. Eu ficarei com os arquivos, que estarão à disposição de todos. Digam apenas aos vossos homens para porem tudo nos seus relatórios, por mais estúpido e desprovido de sentido que lhes pareça. E a primeira tarefa que quero ver feita é saber se estes seis pacientes têm cadastro criminal. Se são assim tão violentos como a doutora Diane parece pensar, alguns devem tê-lo.
Trocaram ideias durante mais algum tempo, até que Delaney ergueu os olhos para o relógio de parede, uma relíquia que viera de uma estação dos caminhos-de-ferro que fora demolida.
- Está a fazer-se tarde - disse. - Que tal irmos os três mais uma vez até à casa de Ronald J. Bellsey? Aparecemos por lá sem aviso. A esta hora já deve ter regressado a casa. Jason, vamos no seu carro e depois pode deixar-nos aqui no regresso.
Ao seguirem para sul, Delaney lembrou-se de perguntar a Jason Dois se ele e a família gostariam de ir a sua casa jantar no Dia de Acção de Graças.
- Obrigado, senhor - disse o agente -, mas já nos comprometemos com os pais de Juanita. Estão a fazer grandes preparativos para a ocasião, e tanto velhos como novos davam-me cabo do juízo se agora cancelasse a ida.
- Nem sequer pense nisso - observou Delaney. - Fica para outra vez. Os seus rapazes deviam ver os avós o mais frequentemente possível. Quem me dera ver os meus netos mais vezes.
Estacionaram em frente do prédio onde Bellsey morava. Boone
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mostrou a sua identificação e pediu ao porteiro para estar de olho no carro. Não havia telefone com ligação para os andares; o porteiro explicou que teriam de se servir do intercomunicador. Como se tal não bastasse, foram informados de que deviam colocar-se em frente de uma pequena câmara de televisão montada no tecto, que transmitiria a sua imagem, via circuito fechado, a um monitor colocado no vestíbulo dos Bellsey.
- Engenhoca engraçada - comentou Delaney.
- É a primeira vez que apareço na televisão - disse Jason, gracejando. - Acham que devo fazer uma pose ou coisa do género?
Boone falou delicadamente com Bellsey através do intercomunicador e, em seguida, pôs o distintivo virado para a televisão.
- Apartamento dois mil quatrocentos e sete - informou os outros. - Ele disse-nos para subirmos, mas não parecia muito satisfeito.
No elevador, Delaney disse a Jason:
- Não se acanhe em impor um pouco o físico quando estivermos a interrogar este tipo. Subjuguemo-lo com musculatura.
A porta do apartamento foi aberta de repente por um homem atarracado, rosto avermelhado, vestindo um casaco desportivo e calças de tecido grosso estriado. Atrás deste, à entrada em arco do vestíbulo, via-se uma mulher baixa e de cabelos grisalhos, as mãos comprimidas uma na outra, perscrutando-os timidamente.
- Imagino que seja por causa do Ellerbee - disse Bellsey intempestivamente e furiosamente. - Já disse o que tinha a dizer à Polícia.
- Sabemos que assim fez, senhor Bellsey - interveio Boone.
- Esse foi um interrogatório preliminar. Malogradamente, estamos envolvidos numa investigação criminal e...
- Que quer o senhor dizer com essa de estarmos envolvidos"?
- perguntou Bellsey num tom de voz crescente. - Jesus Cristo, eu era apenas um dos seus pacientes! Não faço a menor ideia de como ele foi morto.
- Senhor Bellsey - disse Delaney friamente -, tenciona manter-nos aqui de pé no corredor enquanto está para aí aos gritos para os vizinhos ouvirem?
- Os vizinhos que se lixem! Não percebo por que razão tenho de ser incomodado com uma coisa destas.
Jason T. Jason chegou o seu corpanzil para a frente.
- Ninguém está a incomodá-lo - disse, calmamente. -
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Fazemos-lhe apenas algumas perguntas e depois deixamo-lo em paz.
Bellsey ergueu os olhos para o enorme polícia.
- Merda! - exclamou com repugnância. - Bem, então entrem. Quero que saibam que estão a interromper o meu jantar.
Virou-se para a mulher.
- Lorna, volta para a cozinha; isto não tem nada a ver contigo. A mulher saiu apressadamente da sala.
- Sua esposa? - perguntou Delaney, ao mesmo tempo que os três homens entravam no apartamento.
- Sim - respondeu Bellsey. - Não a metam neste assunto. Não se ofereceu para lhes tirar os casacos e não fez nenhum
esforço para os convidar a sentarem-se. Portanto, deixaram-se ficar de pé, ao lado uns dos outros.
- Eu sou o sargento Boone e estes senhores aqui são Delaney e Jason. O seu nome completo é Ronald J. Bellsey, não é verdade?
- Exactamente. O J. é de James, para o caso de estarem interessados.
- Quando viu o doutor Ellerbee pela última vez?
- Na terça à tarde, véspera do seu assassínio. Não me digam que não verificaram esse facto no livro de marcações dele. Ou tal será esperar demasiado do cérebro de polícias?
- Porte-se bem, senhor Bellsey - disse Delaney suavemente.
- Arme em espertinho connosco que responderá às nossas perguntas na esquadra e então aí terá de esperar muito tempo pelo seu jantar. É o que deseja?
Ele olhou-os, furioso.
Bellsey tinha ombros e tórax fortes. O pescoço era curto e grosso, servindo de suporte a uma cabeça quadrada, no cimo da qual se encaixava desajeitadamente uma cabeleira postiça. Mantinha-se, em posição beligerante, inclinado para a frente, o queixo pugnaz espetado, punhos cerrados.
- Senhor Bellsey - disse Boone -, o senhor afirma ter estado em casa na noite em que Ellerbee foi morto.
- Exactamente.
- Toda a noite?
- Exacto. Cheguei a casa por volta das sete e só voltei a sair no sábado. Perguntem à minha mulher; ela confirmará.
- Recebeu alguma visita sexta-feira à noite? Viu algum dos vizinhos? Fez algum telefonema ou alguém ligou para si?
- Não.
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- Tem cadastro na Polícia, senhor Bellsey? - perguntou Delaney. - Iremos verificar, evidentemente, mas seria boa política da sua parte informar-nos antecipadamente.
Bellsey abriu a boca para falar, fechando-a logo a seguir com um clique de dentes. Hesitou, tentou novamente.
- Nunca fui preso a sério - disse com má vontade. - Não formalmente, melhor dizendo. Mas meti-me em sarilhos por diversas ocasiões. Desconheço o que consta no meu registo.
- Que tipo de problemas? - inquiriu Jason.
- Brigas. Estava a defender-me.
- Quantas vezes?
- Uma vez. Ou duas.
- Ou talvez mais.
- Talvez. Não me recordo.
- Alguma vez se meteu numa briga com o doutor Ellerbee? quis saber Boone. - Alguma vez o atacou?
- Merda, não! Ele era o meu médico. Um tipo decente. Eu gostava dele.
- Há quanto tempo ia às suas consultas?
- Há cerca de dois anos.
- Tem algum carro? - perguntou Delaney subitamente. Bellsey fitou-o, surpreendido.
- Claro.
- De que marca?
- Um Cadillac do ano passado.
- Onde é que o guarda?
- Na cave. Temos uma garagem subterrânea.
- Costuma proceder pessoalmente a algum tipo de reparação nele?
- De vez em quando. Coisas pequenas.
- Tem ferramentas?
- Algumas.
- Onde é que as guarda?
- No porta-bagagens do automóvel. Delaney olhou de relance para Boone.
- Senhor Bellsey - disse o sargento -, Ellerbee alguma vez lhe fez referência ao facto de ter sido agredido ou ameaçado por um paciente?
- Não.
- Conhecia algum dos seus restantes pacientes?
- Não.
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- Deu por alguma modificação recente nos seus modos ou personalidade?
- Não, ele era sempre o mesmo.
- Que entende por "sempre o mesmo"? - perguntou Jason.
- De que tipo de homem se tratava?
- Calmo, frio e sereno. Nunca perdeu a paciência. Nunca ergueu a voz. Um sujeito verdadeiramente equilibrado. Injuriei-o uma ou duas vezes, mas ele nunca se serviu do facto contra mim.
- Porque foi que o injuriou?
- Não me lembro.
- Quando hoje saiu para ir às compras que roupa levou vestida? - perguntou Boone.
- Que roupa levei vestida? - admirou-se Bellsey. - Um chapéu-de-chuva e uma gabardina.
- Galochas? Botas?
- Um par de botas, mas de borracha.
- Trabalha para um matadouro? - perguntou Delaney.
- Exactamente.
- Qual é a sua tarefa? Cortador?
- Cristo, não! Sou o gerente. Gerente da produção.
- Superintende os carniceiros, carregadores, motoristas? É isso.
- Sim.
- Deve lidar com tipos bastante rudes.
- Isso é o que eles pensam que são - disse Bellsey severamente. - Mas, ou se portam na linha, ou vão para a rua.
- Alguma vez jogou boxe? - perguntou Jason Dois.
- Um pouco. Quando estava na Marinha. Peso-médio.
- Nunca se profissionalizou?
- Nunca.
- Continua em forma?
- Claro que sim - respondeu Bellsey com ar fanfarrão. Corro oito quilómetros duas vezes por semana. Faço pesos e halteres. Frequento um clube de manutenção física e fico três horas nos aparelhos. Que raio tem tudo isto a ver com o assassínio de Ellerbee?
- Perguntei só por perguntar - respondeu Jason sem expressão.
- Estão a fazer-me perder tempo - disse Bellsey. - Mais alguma coisa?
- Creio que é tudo - respondeu Delaney. - Para já. Jante bem, senhor Bellsey.
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Havia outras pessoas no elevador; não falaram. Mas quando entraram no carro de Jason, o sargento disse:
- Um autêntico amorzinho. Porque lhe fizeste todas aquelas perguntas sobre o boxe, Jason?
- Ele parece um pugilista. Pela maneira como se mantém de pé e move.
- Vamos ter de examinar o porta-bagagens daquele automóvel - disse Delaney. - Por causa do martelo de pena redonda. E tentemos falar com a mulher quando ele não estiver por perto.
- Acha que pode ser ele? - inquiriu Boone.
- Por enquanto é a nossa melhor hipótese - disse Delaney.
- Um tipo com cadastro, um,parafuso a menos e briguento. Acho que devemos examinar muito bem o senhor Bellsey.
Nessa noite, depois do jantar, Delaney quis escrever os relatórios referentes aos interrogatórios feitos a L. Vincent Symington e a Ronald J. Bellsey. No entanto, Mónica disse firmemente que tinha de começar a endereçar os postais de Natal, de modo que ele acedeu aos desejos da mulher.
Ela sentou-se na sua cadeira rotativa, na secretária do gabinete. Enquanto ela trabalhava, acrescentando uma pequena nota pessoal a cada um dos cartões, ele instalou-se numa das gastas poltronas, com um pequeno Rémy na mão. Contou-lhe o que se passara com Symington e Bellsey.
Quando chegou ao fim do relato, ela disse em tom que não admitia réplica:
- Foi Bellsey. Foi ele que o fez. Delaney riu suavemente.
- Como sabes?
- Parece ser um homem horroroso.
- Oh, é um homem horroroso, mas não faz dele um assassino.
Ela voltou aos postais de Natal. O candeeiro de estudante em tom verde que se encontrava em cima da secretária emitia um cone de luz suave que iluminava o tampo da secretária. Delaney estava sentado na obscuridade, olhando com amor e gratidão para a mulher que viera dar novo sentido à sua vida.
Observou-a, de lábios franzidos a escrever as suas saudações de Natal, os olhos escuros a brilharem. Tinha o negro cabelo lustroso seguro atrás da cabeça por uma travessa dourada. Rosto forte, mulher forte. Imaginou o que a sua vida seria, ali sentado sozinho
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naquela sala obscurecida sem a sua presença afectuosa, e deixou escapar um pequeno murmúrio.
- Em que estavas a pensar? - inquiriu Mónica, erguendo os olhos para ele.
Não lhe disse. Em vez disso, perguntou:
- Já alguma vez fizeste um puzzle?
- Quando era miúda.
- Eu também. Lembras-te de como espalhavas as peças todas em cima do tampo da mesa, esperando que não faltasse nenhuma? Depois voltavas todas elas com a imagem para cima e procuravas as quatro que formavam ângulo recto. Essas eram os cantos do quadro. Depois de as achares, juntavas todas as peças que apresentavam uma face recta, formando assim a moldura. A seguir enchias, gradualmente, a gravura.
Ela fitou-o.
- O caso Ellerbee é umpuzzle?
- Mais ou menos.
- E sabes qual vai ser a gravura?
- Não - respondeu ele com um sorriso rígido -, mas vejo alguns ângulos rectos.
Capítulo décimo terceiro
O domingo era, para Harold Gerber, o melhor dia da semana. Não tinha de ir ver ninguém; não tinha de falar com ninguém. Comprava o seu Times de domingo no sábado à noite, juntamente com uma embalagem de seis latas de cerveja. O jornal, a cerveja, os dois jogos de futebol profissional na televisão preenchiam-lhe os domingos. Nunca saía de casa.
Gerber perdera muito peso no Vietname, peso que nunca mais voltara a recuperar. Perdera muitas coisas lá, incluindo o seu apetite. Portanto, aos domingos de manhã tomava normalmente um pouco de sumo, uma torrada e duas chávenas de café com açúcar e natas. Era quanto bastava para o aguentar até à noite, altura em que comia um jantar congelado que vinha numa caixa de cartão e tinha o mesmo gosto do recipiente.
Sabe-se lá por que razão, aos domingos, ele não tirava as suas fotografias para fora a fim de as olhar. Todos aqueles tipos sorrindo, fazendo caretas, rindo, em poses para a câmara fotográfica.
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Algumas das fotos estavam autografadas, do mesmo modo que Gerber escrevinhara o nome em algumas das que lhe tinham tirado a ele. Um álbum de família... Alimentava a sua raiva.
Como não se podia compreender a si mesmo, Gerber conseguia apreciar a razão pela qual as outras pessoas eram incapazes de entenderem a maneira como ele se sentia e porque fazia as coisas que fazia. Gerber não era capaz de o descortinar, assim como mais ninguém era.
O Dr. Simon estava a aproximar-se, a começar verdadeiramente a descortinar as razões que o levaram a proceder assim, mas agora Ellerbee estava morto e Gerber não se sentia disposto a começar tudo de novo com outro terapeuta. Tentara dois, anteriormente, antes de encontrar Ellerbee, mas eles tinham demonstrado não passar de amadores, e Gerber ficava logo a saber, passadas algumas sessões, que eles não lhe iam fazer nenhum bem.
O Dr. Simon Ellerbee era diferente. Ali não havia amadorismo. Ia sempre a direito com um bisturi afiado, e todo aquele sangue não o amedrontava. Ele estava a dilacerar Harold Gerber e a juntar de novo os pedaços deste. Mas nessa altura tinham torcido o pescoço ao Dr. Simon e Gerber voltara a ficar sozinho, sem ninguém que lhe fizesse companhia, além dos fantasmas.
Os cheques que os pais lhe mandavam chegavam regularmente, todos os meses, e ele recebia um subsídio por invalidez parcial, daí que não tivesse grandes problemas de dinheiro. Harold Gerber só tinha problemas com a vida, interrogando-se sobre se estaria condenado a arrastar aquele seu cadáver pelo mundo durante, talvez, mais uns cinquenta anos, actuando como um malfadado maníaco e, no fundo, desejando que o estupor daquele mundo fosse pelo ar - quanto mais depressa, melhor.
Naquela manhã de domingo, ao ir de carro até à casa de Gerber, que ficava em Greenwich Village, Delaney disse a Boone:
- Sinto-me culpado por fazê-lo trabalhar este fim-de-semana. Rebecca provavelmente acha que eu sou um esclavagista.
- Nada disso - ripostou Boone. - Ela está habituada a que eu trabalhe a horas malucas. Penso que é o que acontece com todas as mulheres casadas com detectives.
- Jason ofereceu-se voluntariamente para vir connosco, mas os fins-de-semana são a única oportunidade de que ele dispõe para passar algum tempo com os filhos. Isso é importante, daí que lhe tenha dito para ficar em casa hoje. Quando os novos tipos
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chegarem, vamos ter possibilidade de manter um horário racional. Descobriu alguma coisa acerca deste Gerber?
- Nada. Os homens de Suarez ainda não o investigaram. Portanto, só dispomos daquilo que a doutora Diane escreveu no relatório. Tem trinta e sete anos, é um veterano do Vietname com um monte de medalhas e um monte de problemas. Mete-se em brigas.
- Outro Ronald Bellsey?
- Não exactamente - respondeu Boone. - Esse tal Gerber por vezes ataca desconhecidos sem razão aparente. E uma vez partiu o vidro de uma montra com o punho e acabou na Urgência do Hospital de St. Vincent, onde tiveram de o coser.
- Que lindo - comentou Delaney. - Um jovem cheio de raiva.
- Algo de muito semelhante - concordou Boone.
Harold Gerber vivia num apartamento em estado precário, a sul da 7ª Avenida, na esquina com a Carmine Street. As janelas dos dois primeiros andares estavam tapadas com folhas de metal, e o lanço de escadas da entrada mostrava-se atravancado de lixo. A fachada do edifício, de seis andares, exibia lascas e manchas de ferrugem no revestimento, e as paredes estavam cobertas de dizeres.
Depois de inspeccionarem aquela miséria, Delaney e Boone tiveram a mesma reacção:
Como é que uma pessoa a viver ali se podia dar ao luxo de andar num psiquiatra careiro?
- Talvez ele não pague renda - alvitrou Delaney. - Está a ver aquele love vazio na porta ao lado? Deve ser alguém que está à espera de aumentar a parcela de terreno. Assim que conseguir esvaziar os restantes inquilinos, deita aquela velharia abaixo e fica com espaço suficiente para erguer um arranha-céus de luxo.
- É possível - concordou Boone. - De momento faz lembrar um motel de baratas.
Ao entrarem no vestíbulo atravancado de lixo, descobriram que todas as caixas de correio tinham sido esventradas. O intercomunicador fora arrancado da parede, de onde pendia, preso pelos fios. A porta da frente fora aberta tão frequente e violentamente que não podia ser fechada. O cheiro a podridão e a urina era insuportável.
- Jesus! - exclamou Boone. - Entremos e saiamos daqui o mais depressa que pudermos.
- Sabemos qual é o número do apartamento dele?
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- Não. Teremos de bater às portas.
Subiram cautelosamente a escada de madeira inclinada, cujo corrimão estava solto, mutilado e sem algumas secções. Mais incrições nas paredes cobertas de estuque húmido. As portas dos primeiros dois andares encontravam-se pregadas. Começaram por bater nas do terceiro andar. Ninguém respondeu. Não se ouviam sons de habitação.
Obtiveram uma resposta no quarto andar.
- Vão-se embora - berrou-lhe uma mulher -, ou chamo a Polícia.
- Senhora, nós somos a Polícia - gritou-lhe Boone em resposta. - Andamos à procura de Harold Gerber. Em que apartamento vive?
- Nunca ouvi falar nele.
Subiram até ao quinto andar, pisando montes de estuque caído e pedaços de gesso. Encontraram mais dois apartamentos ocupados, mas nenhuma das portas estava fechada à chave e ninguém conhecia Harold Gerber.
Até que, por fim, no sexto andar, tocaram a uma porta cuja madeira se mostrava lascada, pertencente ao andar das traseiras.
- Quem é? - gritou um homem.
- Departamento da Polícia de Nova Iorque. Andamos à procura de Harold Gerber.
- Para quê?
Delaney e Boone trocaram um olhar.
- Tem a ver com o doutor Simon Ellerbee - respondeu Boone. - Algumas perguntas.
Chegou-lhes o som de trancas a serem recuadas. A porta abriu, ficando presa por uma corrente grossa. Pela nesga vislumbraram parte de um homem envergando uma camisola de gola alta e umas calças axadrezadas.
- Identificação - pediu o sujeito com voz rouca.
O sargento ergueu o seu distintivo. A corrente foi retirada e a porta abriu-se.
- Bem-vindos ao Taj Mahal - disse o homem. - Não tirem os casacos, caso contrário gelam.
Entraram e olharam em redor.
Era uma espelunca e, obviamente, o seu ocupante nada fizera para a tornar o mais suportável possível. As roupas e os haveres encontravam-se empilhados a esmo num catre, numa única cómoda ao lado deste, no chão. O lava-loiças estava repleto de loiça, o fogão de dois bicos mostrava muitas camadas de gordura.
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Estava tão frio ali dentro que o interior dos vidros das janelas apresentava uma fina camada de gelo.
- A casa de banho fica no vestíbulo - disse o homem, sorrindo. - Mas não o recomendaria.
- Harold Gerber? - perguntou Boone.
- Exacto.
- Podemos sentar-nos, por favor? - pediu Delaney. Fiquei estoirado com a subida. Chamo-me Delaney e este é o sargento Abney Boone.
- Sargento... - murmurou Gerber com a sua voz grave. Já fui sargento. Depois mandaram-me embora.
Tirou roupa de cima do catre, removeu uma embalagem de seis latas de cerveja de uma cadeira rotativa e um pequeno televisor a preto e branco de outra.
- Ainda temos electricidade e água - disse -, mas aquecimento é que não. O estupor do senhorio quer pôr-nos a andar daqui para fora com o frio. Tenham cuidado ao sentarem-se, as pernas das cadeiras estão soltas.
Acomodaram-se cuidadosamente nas cadeiras. Gerber sentou-se no catre.
- Pensam que fui eu que o fiz? - perguntou com um sorriso divertido.
- Fez o quê? - inquiriu Boone.
- Torci o pescoço ao doutor Ellerbee.
- E foi? - indagou Delaney.
- Merda, não. Mas podia tê-lo feito.
- Porquê? - perguntou Boone. - Porque desejaria matá-lo?
- Quem é que precisa de um motivo? Gostam da casa onde vivo?
- É uma espelunca - comentou Delaney. Gerber riu.
- Sim, precisamente como a desejo. Quando eles deitarem isto abaixo, irei à procura de um buraco tal e qual como este. Um compincha meu, vive em Idaho, voltou do Vietname e tentou refazer a vida. Gastou seis meses nessa tentativa e não conseguiu. Portanto, despiu a roupa toda que tinha no corpo e foi a pé, em pêlo, para os bosques, não levando nada consigo: armas, relógio, fósforos. Absolutamente nada. Pois bem, Manhattan são os meus bosques. Gosto de viver assim.
- Que lhe aconteceu? - perguntou Delaney. - Ao seu compincha?
- Um guarda-florestal encontrou-o alguns anos mais tarde.
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Vestia roupas e mocassinas feitas de pele de animais. Tinha o cabelo e a barba compridos e emaranhados. Construíra um abrigo e plantara umas verduras comestíveis que encontrara no bosque. Construiu um arco e flechas. Armou ratoeiras. Tinha muita carne. Estava a sentir-se óptimo. Nunca via ninguém, nunca falava com ninguém. Quem me dera ter tomates para fazer algo do género.
Fitaram o rosto magro, encovado e com barba de três dias que tinham na sua frente. A pele mostrava-se de um branco pastoso, o nariz era ossudo e os olhos possuíam um brilho selvagem. O cabelo desgrenhado escapava-se-lhe da boina preta que tinha enfiada na cabeça. Gerber movia-se espasmodicamente, com gestos curtos e entrecortados.
A camisola e as calças axadrezadas pendiam-lhe, demasiado largas, do corpo franzino. Até os dedos tinham uma aparência esquelética, com as unhas roídas até ao sabugo. E, nos pés, botas grossas.
- Anda sempre com essas botas? - perguntou Boone.
- Estas? Claro. São forradas. Nem para dormir as tiro. Já teria ficado sem os dedos dos pés se não fossem elas.
- Há quanto tempo conhecia o doutor Ellerbee? - perguntou Delaney.
- Não quero falar desse assunto - respondeu Gerber.
- Não nos quer ajudar a encontrar o assassino? - inquiriu Boone.
- O que interessa é que ele está morto - observou Gerber com um encolher de ombros. - Metade dos tipos que conheci na vida estão mortos.
- Ele não morreu de velhice - observou Delaney sombriamente. - E não morreu num acidente ou na guerra. Alguém lhe esmagou o crânio.
- Grande coisa - comentou Gerber. Delaney fitou-o com firmeza.
- Seu estuporado filho da mãe - disse em tom inexpressivo.
- Seu pedaço de merda ranhosa. Você fica aqui enfiado a chafurdar neste chiqueiro, cheio de pena de si mesmo e, caramba, a vida é injusta, e bolas, tem uma cruz pesada nas costas e ninguém sabe até que ponto você é sensível e como tudo lhe custa, seu reles saco de merda. E, entretanto, um homem bom, decente, que vale dez como você, vai à vida e você não levanta um dedo para ajudar a encontrar quem o assassinou porque quer que todo o mundo seja tão miserável quanto você. O maior erro de Ellerbee foi tentar ajudar um estupor como você. Venha, sargento,
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vamos embora; não precisamos de nenhuma ajuda deste parvalhão.
Fez-se um silêncio gélido, e eles fizeram menção de se levantar cautelosamente das cadeiras. Mas nessa altura Harold Gerber estendeu uma mão para os deter.
- Você, qual é o seu nome? Delahanty?
- Delaney.
- Gosto de si, Delaney; você não é um tipo de falas mansas. O doutor Simon era assim, mas ele não tinha esse seu jeito para falar. Está bem, participarei no vosso joguinho. Que desejam saber?
Voltaram a acomodar-se nas cadeiras frágeis.
- Quando é que viu Ellerbee pela última vez? - perguntou Boone.
- Os jornais dizem que ele foi morto por volta das nove da noite. Certo? Estive com ele cinco horas antes, às quatro da tarde dessa sexta-feira. Era a minha hora habitual. Poderão confirmar no livro de marcações.
- Ele estava a comportar-se com normalidade?
- Claro!
- Notou alguma mudança nele nos últimos seis meses, um ano?
- Que tipo de mudança?
- Nos seus modos, na sua maneira de actuar.
- Não - respondeu Gerber -, não dei por nada.
- Conhece algum dos outros pacientes? - perguntou Delaney.
- Não.
- Alguma vez o atacou? - inquiriu Boone. - Ou o ameaçou?
- Ora essa, por que razão haveria eu de fazer semelhante coisa? O tipo estava a tentar ajudar-me.
- Sabe-se que a análise é um processo penoso - disse Delaney. - Não passou por ocasiões em que o odiava?
- Claro que passei. Mas isso era temporário. Nunca lhe tive ódio suficiente para dar cabo dele. Era o único elo que me mantinha preso à vida.
- Que é que tenciona fazer agora? Encontrar outro elo de ligação à vida?
- Não - respondeu Gerber, esboçando, a seguir, um sorriso doentio. - Limitar-me-ei a ficar por aqui a chafurdar no meu chiqueiro.
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- Possui algum martelo de pena redonda? - perguntou Boone abruptamente.
- Não, não tenho nenhum martelo de pena redonda. Okay? vou beber uma cerveja. Alguém é servido?
Ambos declinaram. Gerber abriu uma lata de Pabst e voltou a instalar-se no catre, encostando-se à parede sebenta.
- Quantas vezes via Ellerbee? - quis saber Delaney.
- Duas vezes por semana. Teria lá ido com mais frequência se tivesse podido dispor do dinheiro necessário. Ele estava a ajudar-me.
- Quando é que teve problemas pela última vez?
- Ah! Ah! - exclamou Gerber, mostrando os dentes. Vocês têm conhecimento disso, não têm? Bem, não tenho feito nada já vai para uns seis meses ou coisa do género. O doutor Simon disse que se eu tivesse uma vontade muito grande, me sentisse mesmo aflito, sabem como é, podia telefonar para ele a qualquer hora do dia ou da noite. Nunca o fiz, mas só o facto de saber que ele estava lá já era uma grande ajuda.
- Onde é que esteve na noite de sexta-feira?
- Andei pelos bares de Village.
- À chuva?
- Exactamente. Só cheguei a casa depois da meia-noite.
- Lembra-se dos locais aonde foi?
- Tenho uns poisos favoritos. Creio que fui até lá.
- Viu alguém conhecido? Falou com alguém?
- com os barman. É provável que se recordem de mim; sou o sujeito que menos gorjetas dá no mundo... se é que as dou. Normalmente deito a mão às dos outros. É coisa que barman e empregados de mesa tendem a não esquecer.
- É capaz de se lembrar onde é que esteve entre, digamos, as oito e as dez da noite?
- Não, não sou capaz.
- Acho bem que se esforce - advertiu Boone. - Faça uma lista dos sítios onde costuma parar. Daqueles por onde andou na sexta-feira à noite. Virá cá um outro polícia fazer mais perguntas.
- Merda! - exclamou Gerber. - Já vos disse tudo o que sei.
- Não me parece - observou Delaney friamente. - Estou convencido de que nos esconde alguma coisa.
- Claro que escondo - disse Gerber com a sua voz roufenha.
- O grande, obscuro segredo que albergo no meu íntimo é o de uma vez ter encontrado a mulher do doutor Simon e de me ter
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vindo uma vontade enorme de lhe saltar para a espinha. Ela é uma doçura. Agora já estão satisfeitos?
- Você acha que tudo isto não passa de uma grande paródia, não é? - perguntou Delaney. - Pois deixe-me que lhe diga o que vamos fazer consigo, senhor Gerber. Vamos informar-nos sobre tudo o que lhe diz respeito desde o dia em que veio para este mundo até agora. Vamos falar com a sua família, parentes, amigos. Investigaremos o seu ficheiro militar de A a Z. Até nos informaremos dos motivos que levaram a corrê-lo de sargento. Depois falaremos com as pessoas que moram neste edifício, com as mulheres que teve, os barman, todas as pessoas com quem lida. Interrogaremos os desconhecidos que agrediu e os médicos de St. Vincent que o coseram. Quando chegarmos ao fim, saberemos mais sobre a sua pessoa do que você próprio. Portanto não arme em espertinho connosco, senhor Gerber. Não tem um único segredo no mundo. Venha, Boone, partamos; preciso de um bocado de ar puro.
Enquanto iam abrindo caminho cuidadosamente escada abaixo, Boone inquiriu em voz baixa:
- Vamos realmente fazer tudo aquilo que descreveu, senhor? O que lhe disse?
- Raios, não - respondeu Delaney com irritação. - Não temos tempo.
Ficaram sentados no carro durante alguns momentos, enquanto o aquecimento se esforçava por trabalhar e Boone acendia um cigarro.
- Acha mesmo que ele está a esconder alguma coisa? perguntou este.
- Não sei - respondeu Delaney, preocupado. - Esta sessão foi uma aberração completa. A disposição dele estava sempre a mudar quando menos se esperava. Num minuto colaborava, no seguinte punha-se com piadas idiotas. Mas não esqueça que aquele homem participou numa guerra suja e provavelmente teve a sua parcela de mortes. Para alguns tipos, não todos, mas alguns, depois de terem morto alguém uma vez, as outras surgem com facilidade, até chegarem a um ponto em que elas deixam de ter qualquer significado. A primeira é que custa. Depois passa a ser um hábito mecânico. Uma vida? Que importância tem?
- Sinto pena dele - observou Boone.
- Claro. Eu também. Mas sinto ainda mais pena de Simon Ellerbee. Vivemos num mundo em que temos de racionar a nossa simpatia, sargento. Oiça, ainda é cedo; que tal saltarmos o almoço
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e darmos um pulo até Chelsea? Talvez consigamos encontrar Joan Yesell em casa. Assim ficaremos despachados e teremos o resto do dia por nossa conta.
- Por mim, está óptimo. Vamos.
Joan Yesell vivia na Rua 24, num tranquilo bairro de prédios quase idênticos. Era uma rua agradavelmente limpa, com o lixo guardado em caixotes com tampa, as sarjetas varridas. As janelas estavam lavadas, as fachadas limpas de escritos e uma fila de nogueiras-do-japão aguardava a Primavera.
- Ora isto é que é uma coisa digna de se ver - comentou Delaney aprovadoramente. - A pequena velha Nova Iorque. O. Henry (1) viveu algures por aqui, não foi?
- A leste deste local, senhor - disse Boone. - Na área do Gramercy Park. O bar onde ele ia ainda se mantém aberto.
- Nos seus dias de bebedor, sargento, alguma vez foi até à velha casa da cerveja de McSorley?
- Passei por quantos bares existem na cidade.
- Tem saudades? - perguntou Delaney com curiosidade.
- Oh, Deus, sem dúvida! Cada dia que passa. Uma pessoa só se lembra dos momentos bons; das alturas em que molhou a cama, nem vislumbres.
- Há quanto tempo é que se afastou da bebida? Já faz quatro anos, não?
- Mais ou menos. Mas os dipsomaníacos não contam os anos, contam os dias.
- Imagino - disse Delaney, suspirando. - O meu velho tinha um bar na Terceira Avenida. Sabia?
- Não, não sabia - respondeu Boone, interessado. Quando é que foi isso?
- Oh, raios, já lá vai muito tempo. Trabalhei ao balcão durante as tardes, quando andava na escola nocturna. Tive a minha parte de bebedeiras. Talvez seja por essa razão que nunca fui até ao fundo, embora também tenha tomado a minha parte, como lhe disse. Chega de conversa. Que dados tem sobre Joan Yesell?
- Um dos rapazes de Suarez investigou-a. Vive com a mãe, que é viúva. Trabalha como secretária numa grande firma de advogados, ao cimo do Central Park. Leva um bonito ordenado para casa.
* (1) O. Henry (1862-1910). Escritor americano, nascido em Greensboro, na Carolina do Norte, um admirável contista. (N. do E.) *
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As três tentativas de suicídio a que a doutora Diane fez referência constam nos registos das urgências do hospital. Ela afirma ter estado em casa na noite em que Ellerbee foi assassinado. Regressou do trabalho por volta das seis da tarde e não voltou a sair. A mãe confirma.
- Está bem - disse Delaney -, deitemos, mais uma vez, mãos à obra. Pela última vez, espero.
A madeira que ornamentava o vestíbulo fora pintada de um laranja-vivo.
- Olhe para isto - disse Delaney, batendo nela com os nós dos dedos. - Deve ter umas dezoito camadas de tinta. Se as retirarem deve aparecer uma bela madeira de nogueira ou cerejeira por baixo. Hoje já não é possível comprar material desse para este fim. Alguém fez aqui um péssimo trabalho de restauração.
Diante da campainha do apartamento 3C, havia dois nomes: Blanche Yesell e J. Yesell.
- A mãe tem o nome próprio e o apelido completo - notou Delaney. - A filha fica-se pela inicial do primeiro nome e pelo apelido.
Boone identificou-se pelo intercomunicador. Pouco depois a porta abriu-se com um zumbido e eles entraram. O interior era limpo, cheirando vagamente a desinfectante, mas as cores das paredes e da alcatifa eram berrantes. O único toque decorativo residia numa palmeira anã de plástico num vaso de ráfia.
A corpulenta mulher que os aguardava em frente da porta fechada do apartamento 3C mirava-os com ar desconfiado.
- Eu sou a senhora Blanche Yesell - anunciou com voz áspera - e os senhores não me parecem ter ar de serem da Polícia.
O sargento Boone mostrou silenciosamente o seu distintivo. Do pescoço grosso dela pendia umpince-nez de aros metálicos, preso a um cordão de seda negro. Colocando os óculos sobre o nariz largo, inspeccionou o distintivo e a identificação com cuidado, enquanto eles a inspeccionavam a ela.
o cabelo pintado de negro-azulado estava apanhado no cimo da cabeça, fazendo lembrar uma colmeia. As feições eram rudes e masculinas. (Mais tarde, Boone diria: "Ela faz lembrar um camionista em dificuldades.") Possuía ombros largos, um peito vasto e ancas inacreditáveis. Era, resumindo, uma mulher monumental, com mãos carnudas e pés enormes que calçavam sapatos de tamanho condizente.
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- É acerca do doutor Ellerbee? - quis saber, devolvendo os materiais de identificação a Boone.
- Sim, minha senhora. Este cavalheiro é Edward X. Delaney, e nós gostaríamos de...
- Não quero que incomodem a minha Joan - interrompeu a Sra. Yesell. - Já não basta tudo aquilo que a pobre rapariga passou? Ela já lhes disse tudo o que sabia. Mais perguntas apenas servirão para a perturbar. Não o permitirei.
- Senhora Yesell - disse Delaney serenamente -, asseguro-a de que não temos nenhum desejo de incomodar a sua filha. Mas estamos a investigar um assassínio brutal, e tenho a certeza de que tanto a senhora como a sua filha desejam fazer tudo o que estiver ao vosso alcance para ajudar a apresentar o vil criminoso à justiça.
Siderado pela linguagem elegante que lhe chegava aos ouvidos, o sargento Boone lançou um olhar admirado a Delaney, mas a retórica floreada pareceu abrandar a Sra. Yesell.
- Bem, claro - disse, fungando - que eu e a minha filha desejamos fazer tudo o que nos for possível para auxiliar as forças da lei e da ordem.
- Esplêndido - concordou Delaney, radiante. - Então, são só algumas perguntas e chegaremos ao fim antes de poderem dizer Jack Robinson.
- Conheci um homem chamado Jack Robinson - comentou ela com um riso agarotado.
"Louca varrida", pensou Boone.
Abriu a porta e entrou à frente no apartamento. Este encontrava-se tão supercheio quanto a dona de casa: veludos, tecidos de algodão estampados, borlas, rendas, ouropel e não sei que outros adornos do mesmo género, tudo em espantosa profusão. E dois gatos pretos sonolentos, gordos que nem almofadas.
- Perky e Yum-Yum - disse a Sra. Yesell, indicando-os com orgulho. - Não são adoráveis? Passem-me os vossos casacos, por favor, cavalheiros, e ponham-se à vontade.
Empoleiraram-se cautelosamente na ponta de um enfeitado canapé pseudo vitoriano, e esperaram que a Sra. Yesell se acomodasse na frente deles, num cadeirão pesadamente brocado que uma coberta completava.
- Ora bem - disse ela, inclinando-se para a frente -, de que modo posso ajudar-vos?
- Minha senhora - esclareceu o sargento Boone com modos
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igualmente afáveis -, é com a sua filha que queremos falar. Ela está em casa?
- Bem, ela está em casa, mas, neste momento, encontra-se deitada, a descansar, e eu não gostaria nada de a ir perturbar. Além disso, estou certa de que poderei responder a todas as vossas perguntas.
- Lamento, mas não pode ser - disse Delaney bruscamente. - É com a sua filha que vimos falar. Se não a pudermos interrogar hoje, teremos de cá voltar até isso ser possível.
Ela pousou os olhos furiosos em Delaney, mas este não se deixou amedrontar.
- Oh, muito bem - disse. - Mas é perfeitamente desnecessário. Oh, Joan! - chamou com um gorjeio. - Visitas!
Quase a seguir e demasiado prontamente para quem estivera deitado a descansar, Joan Yesell saiu do quarto com um sorriso tímido. Os homens levantaram-se a fim de lhe serem apresentados. Em seguida, a filha tomou o seu lugar numa cadeira de costas direitas, as mãos apertadas uma na outra sobre o colo, tornozelos escrupulosamente cruzados.
- Menina Yesell - principiou Boone -, imaginamos até que ponto o assassínio do doutor Simon Ellerbee a deve ter chocado.
- A minha Joan ficou devastada - disse a Sra. Yesell. Simplesmente devastada.
"Mais uma!", pensou Delaney. Boone continuou:
- Mas temos a certeza de que compreende a necessidade que temos em falar com todos os pacientes do médico na investigação que está a ser levada a cabo sobre a sua morte. Poderia dizer-nos quando é que viu o doutor Simon pela última vez?
- Na quarta-feira à tarde - respondeu a mãe prontamente. Na quarta-feira que antecedeu a sua morte. À uma da tarde.
O sargento suspirou.
- Senhora Yesel, estas perguntas são dirigidas à sua filha. Seria melhor que fosse ela a responder.
- Na quarta-feira à tarde - disse Joan Yesell. - Na quarta-feira anterior à sua morte. À uma da tarde.
A sua voz era tão débil e hesitante que tiveram de fazer um esforço para ouvir. Ela manteve a cabeça baixa, olhando fixamente para as mãos crispadas.
- Era essa a hora a que tinha a consulta habitualmente?
- Sim.
- Quantas vezes via o doutor Simon?
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- Duas vezes por semana.
- E há quanto tempo o consultava?
- Quatro anos.
- Três - emendou a Sra. Yesell firmemente, anos, querida.
- Três anos - confirmou a filha debilmente.
Fez três
Mais ou
menos.
- O doutor Ellerbee alguma vez lhe fez referência ao facto de ter sido agredido ou ameaçado por algum dos seus pacientes?
- Não.
Depois ergueu a cabeça e fitou-os com ar ausente, acrescentando:
- Uma vez foi assaltado quando ia a pé para a sua garagem à noitinha, mas isso aconteceu há anos atrás.
- Menina Yesell - disse Delaney -, tenho uma pergunta para lhe fazer que é possível que considere demasiado pessoal para responder. Se preferir não o fazer, compreenderemos perfeitamente. Por que razão costumava consultar o doutor Ellerbee?
A jovem não respondeu imediatamente. As mãos crispadas começaram a tremer.
- Não vejo... - principiou a Sra. Yesell, sendo, no entanto, imediatamente interrompida pela filha.
- Estava deprimida - disse esta lentamente. - Muito deprimida. Tentei suicidar-me. Provavelmente estão a par desse facto.
- E acha que o doutor Simon a estava a ajudar? Por instantes ela pareceu reviver.
- Oh, sim! Tanto!
A jovem não podia, por muito boa vontade que se tivesse, ser considerada uma mulher atraente. Não era feia, mas era tristemente insignificante. Cabelo de rato e um rosto franzino, sem maquilhagem. Não possuía a presença impertinente da mãe e parecia amedrontada pelo autoritarismo desta.
As roupas que vestia eram monocromáticas: camisola, saia, meias, sapatos - tudo num tom de bege sombrio. A sua pele apresentava a mesma tonalidade. Parecia andar, se não adoentada, pelo menos lenta e exausta. Até mesmo os seus movimentos possuíam o langor dos que seriam comuns a uma inválida; o corpo franzino não possuía forma ou vigor.
- Menina Yesell - disse Boone -, reparou em alguma modificação que tivesse ocorrido recentemente no doutor Simon? Nos seus modos para consigo ou na sua personalidade?
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- Não - respondeu a Sra. Blanche Yesell. - Nenhuma modificação.
- Minha senhora - insurgiu-se Delaney com voz de trovão -, importa-se que a sua filha responda às nossas perguntas, por favor!
Joan Yesell hesitou.
- Talvez - disse finalmente -, mais ou menos durante o último ano. Ele parecia... oh, não sei exactamente. Mais feliz, penso. Sim, parecia mais feliz. Mais... mais aliviado. Gracejava.
- Coisa que nunca fizera antes?
- Exactamente.
- Afirmou - disse Boone - que na noite em que Ellerbee foi morto regressou a casa directamente do trabalho e só voltou a sair no dia seguinte. Está correcto?
- Sim.
Delaney voltou-se para a Sra. Yesell com um sorriso frio.
- Tem agora a sua oportunidade, minha senhora - disse. Pode confirmar a presença da sua filha aqui nessa noite?
- Evidentemente.
- Receberam alguma visita, viram algum vizinho, fizeram ou receberam alguma chamada telefónica nessa noite?
- Não, não nos aconteceu nada disso - respondeu ela firmemente. - Estivemos apenas as duas aqui.
- Leram? Viram televisão?
- Jogámos uma partida de xadrez.
- Ah, sim? - disse Delaney, levantando-se. - E quem ganhou?
- A mamã - respondeu Joan na sua voz sussurrante. A mamã ganha sempre.
Agradeceram delicadamente a ajuda às duas senhoras, pediram os casacos e os chapéus, e retiraram-se. Só voltaram a falar no carro.
- Não tenho dificuldade nenhuma em entender por que a filha anda deprimida - disse Delaney.
- É mesmo - concordou Boone. - A velha é um dragão.
- Sem tirar nem pôr - concordou Delaney. - A única altura em que a filha a contradisse foi na altura em que se falou da modificação nos modos de Ellerbee. A mãe disse que não.
- Como diabo podia ela saber? - admirou-se Boone. - Não era ela quem andava a vê-lo duas vezes por semana.
- Exactamente - concordou Delaney. - Sargento, é capaz de me deixar ao cimo da cidade? Demos o dia por terminado.
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Quando Delaney ia a sair do carro, depois de este parar diante da sua mansão de arenito castanho, Boone perguntou:
- Se tivesse de se deitar a adivinhar, senhor, qual dos seis consideraria o assassino?
- Oh, não sei - respondeu Delaney pensativamente. Talvez Ronald Bellsey. Mas só porque não gosto do tipo. Qual era a sua escolha? ;
- Harold Gerber, pela mesma razão. Provavelmente estamos os dois enganados.
Delaney anuiu.
- Provavelmente. É uma pena não haver um mordomo envolvido. Até amanhã, sargento. Dê cumprimentos meus a Rebecca.
Mónica estava na cozinha a arranjar uma galinha. Diante de si tinha quatro tigelas preparadas: mostarda Dijon, molho Worches- tershire, caldo de galinha, pão ralado condimentado. Ergueu os olhos quando ele entrou e se inclinou para ela a fim de lhe dar um beijo na face.
- Só uma sanduíche - implorou. - Não comi nada o dia todo e já lá vão umas boas horas. Uma sanduíche não estragará o meu apetite.
- Está bem, Edward. Só uma.
Ele pôs-se a rebuscar no frigorífico, dizendo:
- Mereço realmente este mimo. Tive um dia difícil. Sabias que os psiquiatras apresentam uma elevada taxa de suicídios? É a mais alta entre todos os médicos, excluindo os oftalmologistas.
Ele deixara-se ficar de pé, junto do lava-loíças, mas virado para a mulher, sanduíche presa numa mão e um copo de cerveja na outra.
- Não me digas que achas que o doutor Ellerbee esmagou o próprio crânio com o martelo...
- Não, apenas fiz referência ao facto porque estou a começar a compreender aquilo por que os psiquiatras passam. Não admira de que precisem de um mês por ano para recarregar as baterias. Estes pacientes de Ellerbee são muito complicados. É difícil estabelecer contacto com eles. Não vivem no nosso mundo.
Mónica anuiu.
- Achas que as mulheres são mais sensíveis do que os homens? - perguntou ele.
- Sensíveis? - repetiu Mónica. - Em termos físicos, queres tu dizer? Assim em algo como as cócegas?
- Não, não é isso. Sensíveis às emoções, aos sentimentos, ao comportamento das pessoas. Andámos a perguntar a todos eles se
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tinham notado alguma alteração recente nos modos do doutor Ellerbee. O objectivo era descobrir se ele estava a ser ameaçado, chantajado ou algo do género. Todos os homens inquiridos responderam que não tinham dado por nada. Mas até aqui, três mulheres disseram que sim, que tinham reparado numa mudança. Não concordam sobre as mudanças em si, mas consideram unanimemente que houve uma modificação de comportamento nele nos últimos seis meses. Foi por isso que te perguntei se achavas que as mulheres eram mais sensíveis a esse tipo de coisas que os homens.
- Sim - disse Mónica -, são.
Cinco horas mais tarde, depois de Delaney dar completamente por terminado o seu trabalho nos arquivos e Mónica ter acabado há muito a arrumação da cozinha, ele saiu do gabinete e perguntou-lhe.
- Conheces alguém que ande a fazer análise? Mónica fitou-o.
- Sim, Edward, conheço duas ou três mulheres que fazem terapia.
- Bem, importas-te de lhes perguntar como é que pagam? Quero dizer, se entregam dinheiro ou um cheque depois de cada sessão ou se o médico não lhes faz cobranças mensais. Estou apenas curioso em relação à maneira como o dinheiro dos psiquiatras entra.
- Achas que isso tem alguma coisa a ver com o assassínio de Ellerbee?
- Não sei. Há tanta coisa que desconheço neste caso. Por exemplo, como é que um psiquiatra arranja os seus pacientes? Referências de outros médicos? Ou qualquer paciente pode aparecer por lá ou ir às Páginas Amarelas? Simplesmente não sei.
- Hei-de perguntar - prometeu Mónica. - Desconfio de que cada caso é diferente.
- Eu também tenho o mesmo pressentimento - resmungou Delaney. - Dificulta o estabelecimento de percentagens.
E quatro horas mais tarde, quando se encontravam nos aposentos do andar de cima a prepararem-se para dormir, ele observou:
- Ainda hoje não olhei para o Sunday Times. Trazia alguma coisa sobre o caso Ellerbee?
- Não reparei em nada. Mas li um interessante artigo, numa secção da revista, sobre novas cores para o cabelo das mulheres. Gostarias que eu fizesse madeixas cor-de-rosa, Edward?
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- Preferia que fossem verde-alface - disse ele. - Mas faz como quiseres.
- Monstro - murmurou ela afavelmente, enfiando-se na cama.
- Queres saber o que penso? - perguntou ele. - Penso que a loucura absoluta e a normalidade absoluta são extremos, e que muito poucas pessoas se inserem numa ou noutra categoria. A maioria de nós sofre de vários graus de anormalidade, podendo esta ir da excentricidade mediana à psicose absoluta. Tomemos como exemplo esse tal artigo sobre cores de cabelo. Aposto como muitas mulheres vão colorir o cabelo de laranja, rosa ou púrpura. Isso não significa que sejam loucas.
- Onde é que queres chegar, Edward?
- Esta tarde eu disse que os pacientes que andei a interrogar não viviam no meu mundo. Mas isso não é verdade; eles vivem realmente nele. Estão apenas um pouco mais próximos da loucura do que eu, daí que tenha tanta dificuldade em compreendê-los.
- O que estás a dizer é que somos todos chanfrados, uns mais, outros menos.
- Sim - retorquiu ele, grato. - É o que eu quero dizer. Devo ter sempre presente que partilho da singularidade dos pacientes, mas num grau mais reduzido.
Mónica virou a cabeça para olhar para Delaney.
- Não estejas muito certo disso, homem - disse-lhe ela.
E ele, soltando uma gargalhada barulhenta, subiu para a cama dela.
Capítulo décimo quarto
- Passei pela esquadra a caminho daqui - disse Boone, segunda-feira de manhã. - Falei com o sargento que está a tratar da papelada da investigação de Suarez. Ele diz que os novos agentes estarão aqui por volta das nove horas. Deu-me uma cópia da lista. Não estava nada satisfeito por ter de prescindir daqueles rapazes.
- Imagino que não - observou Delaney.
- Não acredita que Suarez nos mande seis fantoches, pois não, senhor? - inquiriu Jason T. Jason.
- Sabotagem? - disse Delaney, sorrindo. - Não, não me
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parece que ele seja capaz de fazer uma coisa dessas. Não com o comissário Thorsen a bisbilhotar todas as suas actividades. Mas se algum desses homens não funcionar bem, pediremos a sua substituição.
- Nem todos são homens, senhor - esclareceu Boone. Cinco homens e uma mulher. E um dos tipos é negro: Robert Keisman. Conhece-o, Jason?
- Oh, claro. É um tipo esperto; para esse não será preciso substituto. Chamam-lhe o Estraga porque numa altura em que tinha por missão acabar com os trapaceiros e os jogos de azar da zona de Times Square, ao deitar a mão a um dos tipos envolvidos na questão, este gritou: "Está a estragar a paródia toda!" E a alcunha pegou. Conhece algum dos outros, sargento?
- Trabalhei com dois deles. Não são nada de especial em termos físicos, mas são sólidos quanto baste. Benny Calazo já é velhote e um tanto lento, no entanto ainda se mexe quando é preciso. O outro tipo meu conhecido é Ross Konigsbacher. É detective de segunda classe. Tratam-no por Kraut. Tem um grande arcaboiço e talvez se sirva demasiado das mãos. Mas é meticuloso; isso não posso eu deixar de reconhecer nele. Quanto aos outros, não os conheço.
- Está bem - disse Delaney. - Preparemos a sala para os receber. Vamos precisar de mais cadeiras aqui. Umas cinco devem chegar.
Foram buscar as cadeiras à sala de estar e à cozinha e dispuseram-nas num círculo irregular, de frente para a secretária, no gabinete de trabalho. Também trouxeram mais cinzeiros.
- Tencionava deixá-los ler os relatórios que eu elaborei sobre os seis pacientes - disse Delaney -, mas decidi não o fazer. Não os quero influenciar com as reacções por mim experimentadas em relação àquela gente. Limitar-nos-emos a apresentar-lhes uma breve introdução, entregamos-lhe as tarefas e pomo-los à solta. Estou a contar tê-los na rua por volta do meio-dia. Vocês os dois escolhem o colega com quem querem trabalhar em primeiro lugar, e depois vão mudando diariamente.
Os novos recrutas começaram a chegar um pouco antes das nove da manhã. O sargento Boone fez de porteiro, mostrando-lhes onde deviam pendurar os casacos, para depois os levar para o gabinete, onde os apresentava a Delaney e a Jason Dois.
Cerca das nove e quinze estavam todos presentes e Boone fechou as portas. Delaney escondera os seus óculos, firmemente convencido de que usar semelhantes objectos enquanto dava
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ordens era contraproducente, tornando-se um sinal de enfermidade num oficial de comando.
- Chamo-me Edward X. Delaney - disse em voz alta e enérgica. - Fui capitão, comandante da Esquadra Dois-Cinco-Um e chefe de detectives antes de me reformar, há alguns anos. Como devem saber, neste momento estou a prestar apoio ao chefe Suarez na investigação do caso Ellerbee. Estão todos familiarizados com o assunto?
Anuíram.
- Óptimo - disse Delaney. - Então não terei de repetir os pormenores. A propósito, podem fumar se o desejarem.
Esperou que acendessem os cigarros. O detective Brian Estrella, um indivíduo alto e franzino, tirou um cachimbo e uma bolsa de tabaco da algibeira do casaco, dando, tranquilamente, início aos preparativos para fumar.
Delaney disse-lhes que a primeira missão daquele "grupo de trabalho", como lhe chamou, era investigar seis dos pacientes da vítima que possuíam antecedentes de violência. Salientou que as pessoas em causa ainda não podiam ser consideradas suspeitas, apenas mostravam ser dotadas de características que se tornava necessário pesquisar com maior profundidade. Mais tarde talvez tivessem de estender a investigação a outros pacientes de Ellerbee.
- A primeira coisa que deverão fazer - disse -, será irem ver se alguém tem cadastro nos registos.
Informou que, eventualmente, a cada detective seria atribuído um paciente. Mas nos primeiros dias limitar-se-iam a andar por ali a conhecê-los, a interrogá-los e a investigar os seus antecedentes e vidas pessoais.
- Temos esperança - continuou - de que cada um de vocês encontre um indivíduo que vos considere simpático e se disponha a falar um pouco mais livremente. Agora vou dar-lhes uma ideia das pessoas com quem estamos a lidar.
Sentiu-se gratificado por ver que todos os detectives se muniam dos respectivos blocos de notas e esferográficas. Deu-lhes breves resumos sobre os seis pacientes. Quando terminou, virou-se para Boone.
- Tem mais alguma coisa a acrescentar, sargento?
- Não acerca das pessoas, senhor; penso que abrangeu tudo aquilo de que também tenho conhecimento. Mas o martelo...
- Já lá ia.
Delaney contou-lhes que a arma utilizada no assassínio era,
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aparentemente, um martelo de pena redonda. Não fora encontrado, nem nenhum dos seis inquiridos tinha admitido possuir semelhante ferramenta. Incentivou-os a que fizessem da procura do martelo uma das partes mais importantes da sua investigação. Também lhes chamou a atenção para os dois conjuntos de pegadas e sugeriu-lhes que investigassem a posse de botas de borracha ou outro material, galochas ou qualquer outro tipo de calçado que pudesse ser utilizado com mau tempo por parte dos indivíduos em questão.
- Se conseguirem saber o número que eles calçam - disse-lhes -, tanto melhor. Temos fotografias das pegadas. Mais alguma coisa, Boone?
- Não, senhor.
- Deseja acrescentar algo mais, Jason?
- Não, senhor.
- Muito bem - disse Delaney, dirigindo-se aos outros. Alguma pergunta?
A mulher-detective, Helen K. Venable, levantou a mão.
- Senhor - disse -, essas pessoas são todas piradas da cabeça?
Ouviram-se risadas divertidas, mas Delaney não sorriu.
- Este trabalho vai exigir paciência e compreensão. A vossa primeira impressão será a de que se trata de um bando de chanfrados, mas que isso não vos leve a subestimá-los. Lembrem-se que é muito possível que um deles tenha sido inteligente a ponto de arquitectar e levar à prática o assassínio do doutor Ellerbee e, até ver, safar-se impunemente.
Benjamim Calazo, um detective da velha guarda, ergueu a mão carnuda.
- Gostaria de ficar com Isaac Kane. O meu irmão mais novo é atrasado mental. Um amor de rapaz, incapaz de uma maldade, mas que necessita, tal como referiu, de paciência e compreensão. Aprendi a lidar com ele, portanto, se não vê inconveniente, preferia que me atribuíssem Isaac Kane.
- Por mim, está bem - disse Delaney. - Alguém mais tem preferências?
Robert Keisman, o Estraga, pronunciou-se:
- Se mais ninguém o quiser, eu começarei pelo veterano do Vietname. Como é que ele se chama? Gerber? Consigo entender-me com esses tipos.
- É todo seu - disse Delaney. - Mas tenha cuidado com a
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sua retaguarda; estou convencido de que o rapaz pode ser perigoso. Há mais alguém?
Não havia mais ninguém, de modo que deitaram todos mãos ao trabalho, marcando entrevistas, organizando horários, trocando números de telefone a fim de poderem ser contactados a qualquer hora, quer directamente, quer através de recados.
Boone escolheu os detectives Konigsbacher, Calazo e Venable para o seu grupo. Jason ficou com Estrella, o fumador de cachimbo, Keisman e Timothy (Grande Tim) Hogan, um indivíduo baixo, corpulento e careca como um ovo descascado.
Delaney compenetrou-os da necessidade de apresentarem relatórios diários, o mais completos que lhes fosse possível.
- Incluam tudo - disse-lhes. - Mesmo que lhes pareça insignificante. Se acharem alguma coisa importante, entrem imediatamente em contacto com Boone ou Jason. Se não os encontrarem, telefonem para mim a qualquer hora do dia ou da noite. Agora vamos a isto. O rasto está a tornar-se mais diluído à medida que os dias passam, e o Departamento quer este processo encerrado o mais depressa possível. Se precisarem de transporte próprio, cobertura, equipamento especial ou a colaboração de pessoal técnico, digam-me.
Apertaram todos as mãos entre si e saíram na companhia de Boone e Jason. Delaney foi pôr as cadeiras nos sítios devidos e esvaziou os cinzeiros. Depois, telefonou para Suarez, mas o chefe estava numa reunião e não podia atender. Delaney deixou o nome e recado para Suarez ligar depois para ele.
Sentou-se à sua secretária, colocou os óculos e acendeu um charuto. Baseando-se na lista dos serviços, no que Boone e Jason lhe tinham dito e nas suas próprias observações, elaborou uma listagem com os novos detectives numa folha de papel amarelo. A disposição dos apontamentos foi a seguinte:
Grupo de Boone
1. Ross (Kraut) Konigsbacher. Pesado. Musculoso. Bigode
louro. Gosta de utilizar os punhos. Pequena cicatriz sobre a
pálpebra esquerda.
2. Benjamim Calazo. Da velha guarda. Cabelo branco. Mãos
pesadas, formações córneas nas costas destas. Escolheu
Isaac Kane.
3. Helen K. Venable. Baixa. Forte. Cabelo castanho-arruivado. Muito enérgica. Voz profunda.
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Grupo de Jason
1. Brian Estrella. Alto. Franzino. Fuma cachimbo. Canhoto. Maçã-de-adão proeminente.
2. Robert (Estraga) Keisman. Negro. Esguio. Elegante. Usa coldre no ombro. Escolheu Harold Gerber.
3. Timothy (Grande Tim) Hogan. Atarracado. Careca. Orelhas grandes. Dedos manchados de nicotina. Voz fina.
Depois de terminar, Delaney voltou a reler a lista, visualizando os novos elementos, reconhecendo-os como indivíduos. Guardou os apontamentos no fundo da primeira gaveta da sua secretária. Mais tarde lhes acrescentaria comentários sobre a actuação de cada um. Alguns poderiam até ganhar condecorações com base naqueles dados.
Pondo o bloco de papel amarelo de lado, vasculhou no interior do armário dos arquivos, tirando para fora uma enorme folha própria para contabilistas. Tinha catorze colunas alinhadas e dispunha de linhas horizontais suficientes para o propósito em vista: a elaboração de um horário para a noite em que o Dr. Ellerbee fora assassinado.
Alinhou os nomes dos indivíduos no topo das colunas. Mais abaixo, na margem esquerda da página, anotou as horas que se passaram entre as quatro da tarde do dia fatal até à uma e quarenta e cinco da manhã em que o cadáver foi descoberto.
Ele tinha a noção de que aquele trabalho era enfadonho mas que, ainda assim, tinha de ser feito. Exigiria referência constante aos relatórios, depoimentos e aos registos que o Dr. Ellerbee tinha no seu arquivo. E todas as ocasiões seriam aproximadas. Até mesmo a altura da morte, calculada para cerca das nove da noite pelo médico legista, podia ter uma margem de diferença de uma hora. Não obstante, havia que partir de algum ponto.
Iniciou a primeira coluna:
Dr. Simon Ellerbee
16H00 - Marcação com Harold Gerber.
17H00 - Marcação com Lola Brizio. Quem era? Verificar.
18H00 - Informa a esposa de que espera paciente para mais tarde, mas não lhe diz quem e quando. Consulta não marcada no livro. Recepcionista desconhece quem e quando. Diz à esposa que partirá de Nova Iorque para Brewster às nove da noite. Facto sugere paciente tardio para 19H00 ou 20H00.
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21H00 - Morte.
Dra. Diane Ellerbee:
18H00 - Sai do consultório depois de falar com o marido.
18H30 - Parte de Manhattan, de carro.
20H00 - Chega à casa de Bewster.
23H30 - Telefona para o consultório. Não obtém resposta. Liga mais duas vezes, não confirmado.
00H00 - Telefona para a Polícia de Brewster. Não há notícia de acidente na auto-estrada. Liga para a garagem de Manhattan, hora não confirmada, informando-se de que o automóvel de Simon ainda está no estacionamento.
1H15 - Telefona para o Dr. Samuelson.
Dr. Julius Samuelson:
19H00 (?) - Jantar com amigos no Russian Tea Room.
20H30 - Concerto no Carnegie Hall.
23H00 ou 23h30 (?) - Última bebida em St. Moritz.
1H15 - Recebe telefonema de Diane.
1H45 - Chega à casa da Rua 84.
1H54 - Encontra cadáver, liga para o 911.
Quando o telefone tocou, Delaney assustou-se e fez a esferográfica saltar para cima da secretária.
- O chefe Suarez deseja falar com o senhor - anunciou uma voz.
- Como está, chefe? - perguntou Delaney.
- Vai-se sobrevivendo - respondeu Suarez com um suspiro.
- Espero que tenha alguma notícia boa para me dar.
- Receio bem que não, chefe, mas gostaria de me encontrar consigo, só para o manter informado das diligências que estão a ser empreendidas.
- com certeza - disse Suarez. - Terei muito gosto.
- Importar-se-ia de dar uma saltada aqui, chefe? Estarei em casa o dia todo e não demoraríamos muito.
Uma hesitação.
- É mau dia. Tenho tanta coisa para fazer. Só lá para o fim da tarde é que me dava jeito ir até esse lado da cidade. As oito ou às nove seria demasiado tarde para si?
- De maneira nenhuma. Estarei aqui.
- Suponhamos que passo pela sua casa a caminho da minha. Ligaria para si a avisar, quando saísse. Acha bem?
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- Acho óptimo - respondeu Delaney. - Até logo. Pousou o auscultador e voltou ao horário.
Henry Ellerbee:
21H00 - Jantar de caridade no Plaza. Presença confirmada.
Recepcionista:
17H00 ou 18H00 (?) - Quando é que saiu? Confirmar.
Isaac Kane:
21H00 - Sai do Centro Comunitário quando este fecha. Vai para
casa?
Sylvia Mae Otherton:
21H00 - Em casa sozinha. Não confirmado.
L. Vincent Symington:
21H00 - Jantar-dançante no Hilton. Regressa a casa.
Ronald J. Bellsey:
21H00 - Em casa toda a noite. Mulher confirma.
Harold Gerber:
21H00 - Andança pelos bares, não se recorda quais. Não confirmado.
Joan Yesell:
21H00 - Em casa toda a noite. Mãe confirma.
Delaney acabara de iniciar nova leitura do que escrevera quando o telefone voltou a tocar. Era Boone.
- Estou na garagem de Ronald Bellsey com Kraut - informou. - O Cadillac de Bellsey está aqui. Telefonei para o matadouro dele e não há dúvida de que está a trabalhar. Não se vê ninguém por aqui. Posso abrir o porta-bagagens do Cadillac. Trouxe os meus materiais.
Fez uma pausa. Delaney reflectiu.
- De onde é que está a falar, sargento?
- De um telefone público aqui da garagem.
- Muito bem, abra o porta-bagagens. Limite-se a dar-lhe uma vista de olhos e depois volte a ligar para mim. Se houver algum problema, eu autorizei-o a fazê-lo e o chefe Suarez e o comissário Thorsen autorizaram-me a mim. Não arranje complicações pessoais.
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- Não vai haver problema - sossegou-o Boone. - De momento o local está deserto e, além disso, Kraut ficará de vigia.
- Volte a ligar para mim - repetiu Delaney, desligando. Tentou concentrar-se no horário, mas foi debalde. Quando o
telefone tocou de novo, agarrou precipitadamente nele.
- É novamente Boone - disse o sargento com voz excitada.
- Apanhei-o! Está ali um martelo de pena redonda, bastante usado e sujo de óleo.
- Deite-lhe a mão - disse Delaney imediatamente. - Leve-o aos técnicos assim que puder. Consegue voltar a fechar o porta-bagagens?
- Não tem problema.
- Óptimo. Bellsey não dará pela falta do seu martelo por um dia ou dois.
Desligou, sorrindo, e voltou ao horário, satisfeito por as coisas estarem a correr tão bem. Estavam a fazê-las acontecer.
Releu o horário por duas vezes, prestando atenção a cada palavra. Depois, afastou o bloco para o lado, recostou-se na sua cadeira rotativa, acendeu um charuto.
O que o interessava ainda mais do que aqueles álibis semiconfirmados e por confirmar, era o que o doutor Simon Ellerbee fizera nas últimas três horas da sua vida.
Teria o paciente misterioso aparecido e ficado até mais tarde do que era habitual? Era pouco provável; todos os pacientes dispunham de consultas de quarenta e cinco minutos. Teria Ellerbee trabalhado nos seus arquivos enquanto esperava que o paciente chegasse? Teria lido, ouvido música, visto televisão?
Delaney olhou para o relógio e pensou numa sanduíche. Comer! Quando é que o homem teria comido? Dissera à mulher que sairia de Nova Iorque por volta das nove da noite. Mesmo que estivesse a planear uma ceia tardia para as dez e trinta em Brewster, aquilo era muito tempo para passar sem comer. Delaney não achava que tal fosse humanamente possível.
Tirou o relatório da autópsia do arquivo e folheou as páginas até encontrar o que procurava. A vítima comera cerca de uma hora antes da sua morte. O conteúdo do estômago incluía presunto, queijo suíço, pão de centeio, mostarda. Ellerbee era um homem que cuidava do seu coração.
De modo que parte dessas três horas tinham sido consumidas a comer uma sanduíche. Teria Ellerbee saído para a ir buscar? com aquele tempo? Duvidoso. Provavelmente descera ao andar da
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cozinha e preparara ele mesmo a sanduíche. Mas isso não teria mobilizado muitos minutos desse período de três horas.
A lacuna no horário da vítima preocupava Delaney. As coisas não se mostravam nítidas, ordenadas, lógicas como ele gostava. Demasiadas perguntas sem resposta:
1. Porque não disse Ellerbee o nome do paciente tardio e a hora a que o esperava à mulher?
2. Porque não o informou a recepcionista?
3. Se o paciente tardio era esperado, digamos, às sete horas, nesse caso Ellerbee poderia ter partido para Brewster às oito. Mas dissera à mulher que só sairia às nove. O que queria dizer que o paciente era esperado às oito. Mas se era assim, como era possível a autópsia mostrar que ele comera uma hora antes da sua morte? Era ridículo imaginá-lo a mastigar uma sanduíche enquanto escutava um paciente com problemas.
4. Como é que Ellerbee gastara o tempo entre as seis e as oito horas, partindo do princípio de que o paciente tardio estava marcado para as oito?
5. Aqueles dois conjuntos de pegadas. Estaria o médico à espera de dois pacientes tardios nessa noite?
Era, reconheceu Delaney, estar provavelmente a dar demasiada importância a pormenores que não a tinham. Mas não conseguia ficar descansado, de modo que decidiu, de repente, deitar mãos, ele mesmo, àquele puzzle. Não podia ficar ali o dia inteiro sentado no seu gabinete à espera de telefonemas e relatórios do seu grupo de trabalho. Iria para a rua e faria a sua parte nas investigações.
Começou por procurar nos registos o nome e a morada da recepcionista do Dr. Simon Ellerbee. A certa altura encontrou-os: Carol Judd, a viver na Rua 73, leste. Preso por um clip à folha que lhe dizia respeito estava o relatório de Boone, contendo o álibi apresentado para a noite do assassínio. Ela afirmara ter estado fechada no seu apartamento com o namorado. Ele confirmara.
Delaney procurou o telefone da jovem na lista de Manhattan. Fez a ligação, mantendo mentalmente os dedos cruzados. Deixou tocar sete vezes e ia a desligar quando, de súbito, o auscultador foi levantado.
- Está? - disse uma voz arquejante.
- É a menina Carol Judd?
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- Sim. Quem fala?
- O meu nome é Edward X. Delaney - respondeu ele, falando lenta e distintamente. - Estou a actuar como consultor civil para o Departamento da Polícia de Nova Iorque na investigação da morte do doutor Simon Ellerbee. Gostaria de que a menina...
- Eh - disse ela -, é só um minuto, deixe-me pousar estas mercearias no chão. Acabei agora mesmo de chegar da rua.
Ele aguardou pacientemente que ela voltasse de novo à linha.
- Já cá estou - disse ela. - Que é que o senhor ia a dizer? Ele voltou a repetir tudo de novo.
- Gostaria de que a menina me dispensasse alguns minutos do seu tempo. Surgiram-me algumas dúvidas que só poderão ser esclarecidas por si.
- Caramba, não sei - disse ela, hesitante. - Desde que o meu nome saiu nos jornais, nunca mais deixei de receber telefonemas malucos. Autênticos anormais... sabe como é, não?
- Imagino. Menina Judd, posso sugerir-lhe que telefone à doutora Diane Ellerbee, lhe diga que recebeu um telefonema meu e que eu gostaria de lhe fazer algumas perguntas. Tenho a certeza de que ela lhe confirmará que eu não sou nenhum anormal. vou dar-lhe o meu número de telefone, para depois poder ligar para mim. Importa-se de o fazer, por favor?
- Bem... creio que sim. Posso levar algum tempo a contactar com ela, se estiver algum paciente.
- Eu espero - disse Delaney, dando-lhe o seu número de telefone.
Arrumou a confusão que reinava em cima da sua secretária, voltando a meter todos os registos nas respectivas pastas. Deixou o horário de fora, voltando novamente a lê-lo. A lacuna de três horas nas actividades de Ellerbee continuava a intrigá-lo, mas esperava que Carol Judd pudesse fornecer algumas respostas.
Passaram-se quase vinte minutos antes de esta ligar.
- A doutora Diane diz que o senhor é quem afirma ser - informou ela.
- Óptimo - observou Delaney. - Será que eu poderia ir até aí agora? Não estou muito longe do seu local de habitação.
- Agora mesmo? Caramba, acho melhor dar-me algum tempo para dar uma arrumadela nesta casa; está uma balbúrdia. Que tal meia hora?
- Aí estarei daqui a meia hora. Obrigado.
Aquilo deu-lhe tempo para uma Michelob e uma sanduíche
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"molhada", que comeu sobre o lava-loiças da cozinha. Consistia em carne sem ossos que restara da galinha, com rodelas de tomate e cebola, e molho russo, tudo acachapado dentro de um cacete enorme.
Em seguida, colocando o chapéu de feltro preto e envergando o pesado sobretudo, enveredou pela Rua 73 abaixo, rumo a leste.
Fazia um daqueles dias que levava os pedestres a saírem para fora das suas casas: frio, límpido, brilhante, com a luz forte a encadear os olhos e um vento que espicaçava. A cidade parecia renovada e resplandecente.
Caminhou pela 3ª Avenida abaixo, abrandando a passada ao cruzar todos aqueles bares irlandeses que lhe eram familiares, especialmente o que pertencera a seu pai. Agora era uma loja de comida racional. Era uma mudança, sem dúvida, agora se se tratava de progresso, isso já Delaney não estava preparado para dizer.
Carol Judd vivia num edifício de catorze andares, apartamentos que tinham portas de vidro, paredes de mármore no vestíbulo e no corredor, e um penetrante cheiro a couve cozida. Delaney identificou-se pelo intercomunicador e deixaram-no entrar de imediato. Subiu até ao apartamento 9H num elevador que chiava assustadoramente.
Se ela gastara a última meia hora em arrumações, Delaney detestava imaginar como estaria o minúsculo apartamento-estúdio antes de ela começar. Dava a impressão de que um furacão acabara de passar por ali, deixando uma balbúrdia de roupas, livros, discos, cassettes, o que parecia ser uma colecção de brinquedos japoneses de saldo: ursos a dançar, coelhos a baterem pratos e palhaços a darem saltos mortais.
- Desculpe a confusão - disse ela sorrindo, esfuziante.
- De maneira nenhuma - objectou ele. - Nota-se que aqui vive gente.
- Lá isso é verdade - reconheceu ela, rindo. - É capaz de acreditar que dei uma festa com vinte pessoas aqui dentro?
- Acredito - assegurou-lhe ele, pensando: "Desgraçados vizinhos!"
Ela retirou uma pilha de revistas de modas de cima de uma cadeira de lona e ele ajeitou-se cautelosamente nela, ainda de sobretudo, o chapéu no colo. Ela cruzou inesperadamente os tornozelos e sentou-se no chão num silencioso movimento de tesoura, proeza atlética que ele admirou.
Na realidade, ele admirava-a a ela. Carol era alta, esbelta, e as
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suas pernas sobressaíam sob o tecido justo dos jeans. Não era bonita, mas as feições petulantes possuíam vivacidade e os caracóis louros - num penteado à órfã Annie (1) - tinham um encanto bizarro. Vestia uma T-shirt com o retrato de Beethoven impresso na frente.
- Menina Judd - principiou ele -, tentarei não demorar muito; não lhe quero ocupar demasiado tempo.
- Disponho de muito - disse-lhe ela. - Tenho andado à procura de trabalho, mas ainda não tive sorte. Quando falei com a doutora Diane, aqui há pouco, ela disse-me que também andava a ver se me arranjava alguma coisa, e acha que talvez me possa pôr a trabalhar com um psiquiatra que ela conhece e, em breve, vai abrir uma clínica para alcoólicos ricos.
- Quanto tempo trabalhou para o doutor Simon Ellerbee?
- Quase cinco anos. Caramba, aquilo é que era um emprego de sonho. Boas horas e muito pouco trabalho. Nenhuma pressão, compreende?
- Parto do princípio de que controlava as marcações do doutor, tomava conta das contas e outras coisas do género, não?
- Exactamente. E podia utilizar a cozinha deles para o almoço. Até me convidavam, juntamente com Edith Crawley, a recepcionista da doutora Diane, para passar um fim-de-semana na casa de Brewster todos os Verões. É um lugar de sonho. E, claro, todos os anos tinha o mês de Agosto completamente livre.
- Gostava do doutor Simon?
- Um homem maravilhoso, maravilhoso. Para quem era óptimo trabalhar, também. Eu realmente tinha um fraquinho por ele, mas sabia que isso nunca me conduziria a lado nenhum. Já viram a doutora Diane? É demasiada competição!
E riu alegremente, rodeando os joelhos com os braços e balançando-se para a frente e para trás, no chão.
- Qual era o seu horário de trabalho?
- Das nove às dezassete. Habitualmente. Às vezes pedia-me para ir um pouco mais cedo ou sair ligeiramente mais tarde se havia alguma mulher histérica marcada. Não sei se sabe, mas algumas dessas senhoras malucas podiam pôr-se a gritar que estavam a ser violadas.
- Alguma vez ocorreu uma paciente do sexo feminino ter-se posto a gritar que estava a ser alvo de violação?
* (1) Referência a Annie, a principal personagem da peça musical e mais tarde do filme Annie. (N. do E.) *
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- Nunca aconteceu com o doutor Simon, mas ele tinha um amigo que passou por essa situação, portanto ele era muito cuidadoso.
- Falemos da sexta-feira em que ele foi assassinado. Houve algum facto digno de nota nesse dia?
Ela reflectiu por um momento.
- Não - disse finalmente -, foi um dia vulgar. Tempo péssimo; choveu todo o dia. Mas no consultório não houve nenhuma ocorrência fora do normal.
- A que horas saiu?
- Alguns minutos após as cinco. Logo depois de a senhora Brizio chegar.
- Ah - exclamou ele -, a senhora Lola Brizio... Era a última paciente que vinha indicada no livro de marcações do doutor.
- Precisamente. Ela vinha uma vez por semana, todas as sextas-feiras, das cinco às seis.
- Fale-me dela.
- Da senhora Brizio? bom, deve ter uns sessenta, no mínimo. E é muito, muito rica. Aquele casaco de chinchila de sonho que ela usa... Eu conseguia viver cinco anos só com o dinheiro que ela deu por ele. Mas é uma senhora simpática. Quero dizer, não é arrogante nem tem nenhuma dessas manias. Realmente amigável. Estava sempre a contar-nos as gracinhas dos netos.
- Qual era o problema dela?
- Cleptomania. Consegue acreditar? com toda aquela massa. Ela costuma frequentar lojas do género da Henri Bendel, e enfiar lenços de seda e adornos de roupa na mala de mão. Fá-lo há anos. As lojas têm conhecimento do facto, evidentemente, e andam de olho nela. Nunca a prenderam ou coisa do género porque ela é uma óptima cliente. Quero dizer, ela compra muitas coisas para além daquilo que rouba. Portanto, eles deixam-na rapinar o que ela quer e acrescentam-no à conta. Pagou sempre. Veio para o doutor Ellerbee há cerca de três anos. - Carol Judd desatou a rir à gargalhada. - Na primeira sessão que teve, roubou o cinzeiro de cristal que o doutor Ellerbee tinha em cima da secretária. Já imaginou?
- Sessenta anos, diz?
- No mínimo. Provavelmente tem mais.
- É uma mulher corpulenta?
- Oh, não! É uma coisinha pequenina. Nem chega a ter metro e meio. E é gordinha. Uma pequena bola.
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- Está bem - disse Delaney, eliminando hesitantemente a Sra. Lola Brizio de possível suspeita -, depois de ela chegar, às cinco horas, a menina saiu passados poucos minutos. Está correcto?
- Está.
- O doutor Ellerbee informou-a de que estava à espera de um paciente tardio?
- Não, não informou.
- Isso não fugia ao habitual?
- Oh, não, estava sempre a acontecer. Como, por exemplo, na tarde em que ele recebeu o telefonema de um paciente em pânico, que pediu para o ver imediatamente. Na manhã seguinte, ele tinha deixado apenas um bilhete na minha secretária a dizer-me para facturar determinada quantia por uma sessão.
- A doutora Diane alguma vez tinha pacientes tardios?
- Oh, claro! Ambos tinham, constantemente.
- Tudo indica que, depois das nove da noite e a senhora Lola Brizio se ter retirado, o doutor Simon disse à mulher que estava à espera de um paciente tardio, mas não lhe indicou quem nem quando. Essa atitude não é um tanto surpreendente?
- Não, na verdade. Tal como já referi, estava sempre a acontecer. Eles mantinham-se ambos a par de modo a não haver interferência nos planos traçados para a noite, jantar ou cinema, sabe, mas não me parece que mencionassem a pessoa de quem estivessem à espera. Não havia simplesmente necessidade de o fazerem.
Delaney deixou-se ficar sentado em silêncio, meditabundo e algo deprimido. Depois da explicação de Carol, a paciente-mistério, de misterioso não tinha agora nada. Era apenas rotina.
- E não faz a menor ideia de quem era o paciente tardio dessa sexta-feira à noite? - perguntou ele.
- Bem, quem quer que tivesse feito essa marcação - disse ela, tentando fornecer algum dado útil naquele interrogatório -, foi certamente a última pessoa a ver o doutor Simon vivo. E pode ter sido o assassino.
- Mas suponhamos que o paciente tardio chegava às sete e saía às oito. Poderia ele... - argumentou Delaney.
- Às quinze para as oito. Os pacientes tinham quarenta e cinco minutos.
- Que é que o médico fazia durante esses quinze minutos que mediavam entre os pacientes?
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- Descansava. Retribuía chamadas. Consultava os arquivos dos pacientes seguintes. Talvez tomasse uma chávena de café.
- Está bem - disse Delaney -, suponhamos que o paciente tardio chegava às sete e partia às oito menos um quarto. Acha possível o doutor Simon ter recebido, durante a tarde, algum telefonema de outro paciente que desejasse vê-lo? Um segundo paciente tardio?
- Claro que é possível - respondeu ela. - Coisas como essa aconteciam constantemente.
O que levava, pensou, a lado nenhum.
- Muito obrigado, menina Judd - disse Delaney, levantando-se daquela cadeira de lona idiota e colocando o chapéu. - Foi muito prestável e útil.
Ela ergueu-se da posição em que tinha estado, no chão, sem a ajuda das mãos - limitou-se a descruzar as pernas e a pôr-se de pé com um impulso.
- Espero que apanhe a pessoa que cometeu esse acto - disse ela, tornando-se subitamente solene e vingativa. - Gostava que tivesse a morte como pena máxima. O doutor Simon era um homem bom, amoroso, e ninguém merece morrer assim. Quando aconteceu, chorei durante vinte e quatro horas. Ainda me custa a acreditar.
Delaney anuiu e encaminhou-se para a porta. A certa altura parou e voltou-se.
- Mais uma coisa - disse. - O doutor Simon alguma vez lhe referiu ter sido agredido ou ameaçado por uma paciente?
- Não, nunca o fez.
- Notou alguma diferença nele nos últimos seis meses ou um ano? Comportou-se de maneira diversa?
Carol ficou a olhar para ele.
- É engraçado que pergunte isso. Sim, ele mudou. Mais ou menos durante o último ano. O doutor Simon tornou-se... mais inconstante. Ele costumava parecer sempre muito equilibrado. O mesmo todos os dias: agradável e simpático com toda a gente. De repente, por volta do ano passado, começou a comportar-se de maneira mais imprevisível. Havia dias em que andava mesmo bem-disposto, rindo e dizendo piadas. Noutros, mostrava-se deprimido, como se tivesse sobre os ombros o peso do mundo.
- Compreendo.
- Cerca de um mês atrás - acrescentou ela -, trazia uma pequena flor na lapela. Nunca tal tinha acontecido. Ele era realmente um homem de sonho.
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- Obrigado, menina Judd - agradeceu Delaney, levando a mão ao chapéu.
Ao sair para o exterior, encontrou o dia mudado. Manhattan tinha um espesso manto de nuvens a cobri-la, o vento redobrara de intensidade, a luminosidade tornara-se desagradável e ameaçadora. Exactamente a obscuridade que condizia com o seu estado de espírito.
Sentia-se desgostoso consigo próprio, por ter estado a tentar manobrar os factos para os adaptar a uma teoria, em vez de divisar uma teoria que se adaptasse aos factos. Aí estava um tipo de raciocínio que fizera o fracasso de muitos detectives armados em espertos.
O que seduzira Delaney tinham sido aqueles dois conjuntos de pegadas molhadas na alcatifa dos Ellerbees. Isso e a lacuna no horário da vítima. Ambos os factos pareciam conjugar-se para indicar a presença de dois pacientes tardios na noite do assassínio. Mas embora Carol afirmasse que era possível, não havia um resquício de evidência que consubstanciasse a teoria.
Não obstante, disse teimosamente de si para si, era crucial identificar o visitante ou os visitantes tardios que Ellerbee tivera nessa noite. Um deles fora a última pessoa a ver a vítima com vida e era um suspeito de primeiro grau.
Caminhando lenta e penosamente para o norte da cidade, ele recordou o que dissera a Mónica relativamente à conjugação das peças de umpuzzle. Ele dissera-lhe que encontrara algumas destas a formarem cantos e estava a compor a moldura. Depois disso, apenas lhe bastaria preencher o interior com as restantes peças da gravura. Naquele momento, dava-se conta de que alguns puzzles não eram, nem pouco mais ou menos, gravuras. Eram rectângulos de cores uniformes: amarelo, azul ou vermelho-sangue. Não existiam desenhos, nenhumas pistas em relação à forma ou à configuração. E era diabolicamente complicado completá-los.
Ao entrar em casa, ouviu o telefone a tocar e precipitou-se pelo corredor, em direcção à cozinha. Mas Mónica estava lá e já atendera.
- Quem? - perguntou esta. - Só um minuto, por favor. Cobriu o bocal com a mão e virou-se para o marido. - Timothy Hogan - anunciou. - Conheces?
- Hogan? Sim, é um dos homens novos. Falarei com ele. Mónica passou-lhe o telefone.
- Comecei a investigar Joan Yesell. Ela não se apresentou ao trabalho hoje. Okay? Portanto, fui até à casa dela, em Chelsea. Não
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estava, nem a mãe. Então, comecei a falar com os vizinhos. Okay? Pois essa tal Joan Yesell tentou pôr termo à vida ontem à tarde, mas não conseguiu. Deu apenas um cortezinho no pulso esquerdo com uma faca de cozinha. Muito sangue, mas está bem. Mantiveram-na aqui esta noite, em observação. A mãe está a assinar a alta neste momento. Quer que as interrogue?
- Não - disse Delaney imediatamente -, não faça isso. Deixe para amanhã. Sabe a que horas ela cometeu ontem esse acto?
- Trouxeram-na para a Urgência de St. Vincent por volta das quatro e meia, portanto imagino que se tenha cortado cerca das quatro horas. Okay?
- Obrigado, Hogan. Fez muitíssimo bem em me telefonar. Arrume as coisas por hoje.
Desligou e virou-se para Mónica. Contou-lhe o acontecido.
- Pobre mulher - observou ela sobriamente.
- Se ela tentou suicidar-se ontem às quatro da tarde, pode ter sido mais de uma hora depois de Boone a ter interrogado. Espero sinceramente não termos sido nós a desencadear o processo.
- Como é que ela parecia quando vocês saíram?
- Bem, ela é uma coisinha com ar de rato e sofre de depressão. Mas mostrava-se muito calada e reprimida. Dominada pela mãe. Mas não parecia nada propensa ao suicídio. Terá sido alguma coisa que dissemos...
- Duvido. Não fiques tão ralado com o assunto, Edward.
- Esta manhã sentia-me satisfeito por ver que as coisas começavam a encaminhar-se, que nós estávamos a fazer com que se encaminhassem. Mas não me passava pela cabeça nada do género.
- A culpa não é tua - assegurou-lhe ela. - Já não é a primeira vez que ela tenta fazê-lo, pois não?
- Três vezes.
- Então, estás a ver. Não te culpes a ti próprio.
- Fui um filho da mãe - censurou-se Delaney com amargura.
- Simplesmente não entendo. Falámos com ela muito delicadamente, sem discussões, saímos e ela tenta matar-se.
- Edward, talvez o simples facto de falarem no assassino é que a tenha empurrado para o precipípio. Se ela já está deprimida, lembrar-lhe a morte de alguém que andava a tentar ajudá-la poderá tê-la feito chegar à conclusão de que não valia a pena continuar a viver.
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- Sim - disse ele, agradecido -, pode ter sido isso. vou tomar uma cerveja. Também queres?
- Prefiro vinho branco. Esta noite temos linguine com molho de mexilhão. Acrescentei uma lata de pedacinhos de marisco e uma dúzia de mexilhões frescos.
- Muito bom - observou ele aprovadoramente. - Nesse caso, também beberei vinho branco. A propósito, o chefe Suarez vai passar por aqui mais logo. Não sei a que horas, mas ele telefona primeiro. Gostaria que o conhecesses; creio que o apreciarás.
Depois de jantar, Delaney foi para o seu gabinete escrever um relatório sobre Carol Judd. Suarez ligou cerca das oito horas a avisar que ia sair. Mas eram quase nove quando chegou. Delaney levou-o para a sala de estar e apresentou-o a Mónica.
- Que deseja saber, chefe? - perguntou-lhe ele. - Está com ar de quem precisa de uma transfusão.
Suarez sorriu fatigadamente.
- Sim, foi um dia diabólico. Seria possível arranjar-me um vermute muito, muito seco, com gelo?
- com certeza. Mónica, queres tomar alguma coisa?
- Pode ser um pouco de Cointreau.
Delaney foi à cozinha e preparou as bebidas. Colocou-as num tabuleiro, juntamente com um brande para si próprio.
- Que delícia - elogiou o chefe Suarez ao provar a sua bebida. - O melhor vermute que já saboreei.
- Como lhe disse - observou Delaney, não dando importância ao elogio -, não tenho boas notícias para lhe dar, mas queria que tomasse conhecimento daquilo que já se conseguiu.
Rápida e concisamente resumiu os progressos alcançados na investigação até ao momento. Não omitiu nada que considerasse importante, excepto a apreensão do martelo de pena redonda do Cadillac de Ronald Bellsey. Exprimiu o grande optimismo que sentia, mas salientou que ainda havia muito trabalho a fazer, particularmente em relação aos álibis vagos apresentados pelos seus pacientes.
Mónica e o chefe ouviram atentamente, fascinados pela sua exposição. Quando terminou, Suarez disse:
- Não acredito que as coisas estejam assim tão indistintas como parece sugerir, senhor Delaney. Já detectou vários rastos prometedores, mais certamente do que aquilo que nós encontrámos. Felicito-o por ter persuadido a doutora Diane Ellerbee a fornecer a lista dos pacientes inclinados para a violência. Mas
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fique a saber que essa senhora e o pai da vítima continuam a pressionar o Departamento, exigindo uma solução rápida.
- Isso é problema de Thorsen - limitou-se Delaney a dizer.
- Certo - concordou Suarez -, e ele resolve-o transformando-o no meu problema. - Olhou em redor. - Senhora Delaney, tem uma linda casa. Muito confortável e acolhedora.
- Obrigada - agradeceu Mónica. - Espero que o senhor e a sua mulher nos visitem um dia destes. Uma visita social, sem falar de assassínios.
- Rosa teria muito gosto - disse ele. - Muito obrigado. Ficou sentado um momento, em silêncio, a olhar fixamente
para o copo. O rosto comprido parecia exausto, a pele cor de azeitona baça de fadiga, o tique à esquerda da boca mais pronunciado.
- Sabe - disse, com o seu sorriso tímido, triste -, desde a morte do doutor Ellerbee já se verificaram talvez uns cinco assassínios na cidade. Muitos deles, evidentemente, foram de imediato solucionados. Mas o nosso índice de soluções sobre os outros não é o que devia ser; tenho consciência desse facto e ele preocupa-me. Não lhe falarei das nossas necessidades em termos de mão-de-obra, senhor Delaney; sei que teve o mesmo problema quando esteve no Departamento. Mencionei tudo isto meramente para lhe referir até que ponto lhe estou agradecido pela sua assistência. Desejaria poder dedicar mais tempo ao caso Ellerbee, mas isso não é possível. Portanto, estou dependente de si.
- Avisei-o logo no princípio - disse Delaney - de que não havia garantias.
- Naturalmente. Tenho consciência do facto. Mas a sua participação ameniza o meu fardo e proporciona-me a confiança de que tão desesperadamente necessito nestes tempos difíceis. Senhora Delaney, a senhora tem confiança no seu marido?
- Absoluta - respondeu Mónica.
- E acha que ele encontrará o assassino de Ellerbee?
- Claro que o vai descobrir. Quando Edward se mete numa coisa, esta está praticamente feita. Ele é um homem muito tenaz.
- Eh - disse Delaney, rindo -, que é isto? Vocês os dois estão a fazer uma conspiração contra mim?
- Tenaz - repetiu o chefe Suarez, fitando o outro homem. Sim, penso que tem razão. Não sou pessoa de apostas, mas se o fosse, apostaria em si, senhor Delaney. Tenho o bom pressentimento de que vai ser bem sucedido. Agora gostaria de lhe pedir um favor.
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- De que se trata?
- Teria muito gosto em que nos tratássemos pelos primeiros nomes.
- com certeza, Michael.
- Obrigado, Edward.
- E eu sou a Mónica - disse esta com voz bem audível. Todos riram, e Delaney foi à cozinha buscar nova rodada de
bebidas.
Depois de o chefe sair, Delaney voltou para a sala de estar e estendeu-se na sua poltrona.
- Que achas dele? - perguntou a Mónica.
- Um homem muito bom . - respondeu esta. - Muito delicado e de trato suave. Mas parece-me estar a ir-se abaixo. Achas que tem estofo suficiente para a tarefa que tem em mãos?
- Ou ela faz dele um óptimo profissional, ou o deita abaixo disse Delaney cruamente. - A esquadra é uma autêntica arena. Basta virar as costas por um segundo, que se apanha logo uma cornada. Mónica, quando eu lhe estava a fazer o relato do que já tínhamos conseguido no caso Ellerbee, houve alguma coisa especial que te chamasse a atenção? Algo que te soasse a falso? Ou algo que devêssemos ter feito, mas não fizemos?
- Não - respondeu Mónica lentamente. - Nada em particular. Parecia tudo bastante complicado, Edward. Todas aquelas pessoas...
- É complicado - disse ele, esfregando a testa com ar fatigado. - Nos primeiros estádios de uma investigação, uma pessoa espera ver-se assoberbada por todos os fragmentos e parcelas que começam a vir à tona. Factos, boatos, deduções. Depois, passado algum tempo, se se tem sorte, todos eles se ajustam numa determinada configuração, e uma pessoa fica a saber mais ou menos o que aconteceu. Mas reconheço que este caso está a deixar-me completamente baralhado. Tenho tentado manter-me a par dos acontecimentos através dos relatórios, arquivos e horários, no entanto a coisa continua a disseminar-se em todas as direcções. É de tal maneira complexo que receio estar a falhar algum aspecto que se encontre mesmo à frente do meu nariz. Talvez esteja a ficar demasiado velho para este tipo de trabalho.
- Não estás nada a ficar velho - assegurou-lhe Mónica.
- Vai-mo lembrando - pediu ele.
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Capítulo décimo quinto
Durante os dois dias seguintes, a desordem que perturbara Edward X. Delaney no caso Ellerbee deu mostras de abrandar.
- Ainda há confusão - disse este ao sargento Boone -, mas está a tornar-se uma confusão organizada.
Conduzindo o seu grupo de intervenção com directivas firmes, conseguiu movimentá-lo de modo a cada um dos seus elementos investigar vários pacientes. Na quarta-feira à noite, Delaney, Boone e Jason tiveram possibilidades de conseguir um óptimo emparceiramento entre detective e investigado. A disposição foi a seguinte:
Benjamim Calazo - Isaac Kane.
Robert Keisman - Harold Gerber.
Ross Konigsbacher - L. Vincent Symington.
Helen K. Venable - Joan Yesell.
Timothy Hogan - Ronald J. Bellsey.
Brian Estrella - Sylvia Mae Otherton.
- Se não resultar - disse Delaney à sua gente -, trocá-los-emos até começarmos a obter resultados.
Brian Estrella, o fumador de cachimbo, esperava não ser trocado, pois assim teria de abandonar Sylvia Mae Otherton. A mulher fascinava-o e ele pensava ser capaz de alcançar alguns resultados positivos por aquele lado.
Na manhã em que fora encontrá-la pela primeira vez, o seu horóscopo no Daily News dizia: "Espere uma surpresa agradável." E como se tal não fosse suficientemente encorajador, Meg, sua mulher, telefonara da casa de saúde a dizer que se sentia melhor, que o cabelo começara de novo a crescer-lhe e que, em breve, voltaria para casa.
O que era, Estrella sabia, uma mentira - mas uma mentira corajosa e bem-intencionada.
O sargento Boone avisara-o do que devia esperar, no entanto foi chocante entrar no apartamento escuro, sobreaquecido, e confrontar alguém a quem só parecia faltar a vassoura para se pôr a voar por cima dos telhados.
Ela envergava uma volumosa vestimenta branca que bem poderia ter sido um lençol de cama se não fossem os triângulos de renda branca que o entremeavam. Caía quase até ao chão, a rasá-lo, mas não o suficiente para ocultar os pés nus de Sylvia
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Otherton. Estes eram pequenos e rechonchudos, e as unhas estavam pintadas de preto.
Boone mencionara as jóias e o perfume, o apartamento insanamente decorado e o incenso a queimar. Estava tudo ali, mas o que surpreendeu o detective Estrella foi a paciência de Otherton. No fim de contas, aquela era a terceira vez que era incomodada pela Polícia à conta do caso Ellerbee, e ele esperara encontrá-la cheia de hostilidade e indignação.
Mas ela recebeu-o no seu apartamento sem se queixar e respondeu livremente a todas as perguntas sem lhe fazer recordar, nem uma só vez, que já respondera ao mesmo interrogatório duas vezes antes. Ele apreciou o facto e decidiu tentar uma abordagem absolutamente honesta, para ver se essa atitude a tentava a prestar declarações adicionais.
- Compreende, minha senhora - disse ele -, estamos extremamente preocupados com o seu paradeiro na noite do crime. Disse-nos que se encontrava aqui, sozinha. Pode ser verdade, mas sentir-nos-íamos muito melhor se pudéssemos confirmar o facto. Saiu nessa noite?
- Oh, não - disse ela em voz baixa. - Raramente vou à rua. Faz parte do meu problema.
- E diz que não recebeu visitas, não viu ninguém, não fez nem recebeu chamadas telefónicas?
Ela encolheu os ombros com ar de quem nada podia fazer para remediar o acontecido.
- Não, lamento muito, mas não.
- Gostaria de que reflectisse muito cuidadosamente essa noite, menina Otherton, e visse se consegue recordar-se de alguma coisa que nos possa ajudar a confirmar o que nos disse.
- vou tentar - prometeu ela. - A sério que vou. Estrella fitou o rosto borrado com uma pintura de palhaço e, de
repente, deu-se conta de que depois da máscara esbranquiçada removida e do cabelo desgrenhado escovado, ela ficaria razoavelmente apresentável - talvez não bonita, mas suficientemente agradável.
Para seu horror, deu consigo a extravasar todas estas ideias, e mais, a dizer àquela mulher estranha de que maneira poderia melhorar a sua aparência, a sua roupa, não tanto para impressionar os outros, mas para bem da sua própria auto-estima.
- Não deve ficar fechada aqui em cima - disse ele firmemente. - Tem de fazer por sair lá para fora, para o meio do mundo.
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Ela olhou para ele e os seus olhos encheram-se lentamente de lágrimas, que começaram a descer-lhe pelas bochechas carnudas. Ele ficou aflito, pensando que a tinha ofendido. Mas...
- Obrigada - disse ela numa voz entrecortada. - É muito simpático da sua parte preocupar-se. Mostrar interesse. A maior parte das pessoas ri-se de mim. O doutor Simon nunca o fez. Por isso eu o amava tanto. Eu sei que não tenho tido uma vida normal, mas o doutor Ellerbee estava a ajudar-me a melhorar. Agora que ele desapareceu, não sei que faça de mim.
Depois, contou ao detective Estrella a violação que sofrera na infância e a aversão que lhe ficara aos homens de barbas - coisas de que ele já tinha conhecimento. Disse que a sua vida era um emaranhado de tristezas e que ela estava prestes a abandonar a esperança de "alguma vez vir a pôr a cabeça a funcionar como devia ser".
Estrella falou-lhe de como era importante ter pensamentos positivos e depois referiu-lhe a doença mortal de que padecia sua própria mulher e da coragem com que estava a lidar com o facto.
- A sua atitude mental - disse ele -, é ainda mais importante do que o seu aspecto. Mas eu penso que, no seu caso, as duas coisas estão ligadas. E se começar por melhorar a sua aparência, o seu estado de espírito também conhecerá melhorias, assim como a maneira como vive.
Ela trouxe pequenos cálices de xerez para os dois, e começaram a conversar com animação, descobrindo que tinham um interesse comum pela astrologia, a lecitina, a numerologia e os OVNIs. Ele perguntou se podia fumar cachimbo e ela disse que sim, que sempre admirara homens que fumavam cachimbo.
O detective Estrella estava a gostar tanto daquela conversa - já há muitos meses que não falava durante tanto tempo com uma mulher, as suas visitas a Meg estavam severamente limitadas -, que se sentia culpado por se ter esquecido da razão que o levara ali.
- Espero, menina Otherton - principiou, sendo, no entanto, imediatamente interrompido por ela.
- Sylvia - disse esta.
- Sylvia - repetiu ele. - É um nome muito bonito. Significa "donzela da floresta". Sabia? O meu primeiro nome é Brian, que quer dizer "forte e poderoso", e, como pode ver, não corresponde nada à realidade! Mas como eu ia a dizer, Sylvia, assim que conseguir lembrar-se de alguma coisa que nos ajude a encontrar o
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assassino do doutor Ellerbee, dê-me uma telefonadela. vou deixar-lhe o meu cartão. Ela fitou-o durante um longo momento.
- Sei como descobrir quem o fez - disse com intensidade. Ele sentiu uma pontada de excitação.
- Como? - perguntou com voz rouca.
Ela levantou-se, foi ao quarto, de onde regressou com uma tábua Ouija.
- Acredita? - perguntou a Estrella.
- Mal não pode fazer - respondeu ele com um encolher de ombros.
- Tem de acreditar - disse ela -, se quisermos que as mensagens espirituais cheguem até nós.
- Acredito - disse ele apressadamente. - De verdade. Ela colocou a tábua sobre a pequena mesa redonda de cocktail e
ambos puxaram as respectivas cadeiras de braços para junto desta, inclinando-se para a frente. Ele pousou suavemente a ponta dos dedos sobre a tábua e fechou os olhos.
- Agora faça a pergunta - disse ela com voz cava.
- Quem matou o doutor Ellerbee? - inquiriu o detective Estrella.
- Não, não - interrompeu ela. - As perguntas devem ser dirigidas directamente àqueles que se finaram.
- Doutor Ellerbee - disse Estrella, feliz por não ter ali Edward X. Delaney a ver o que ele estava a fazer -, quem foi que o matou?
Aguardaram em silêncio. A tábua não se moveu.
- Quem foi que esmagou o seu crânio, doutor Ellerbee? perguntou o detective com voz calma.
Observou, fascinado, a tábua a começar a mover-se lentamente sob os dedos de Sylvia Otherton. Não devagar, mas com pequenos sacões. Só passado um grande bocado é que o ponteiro começou a deslocar-se de letra em letra, designando a palavra B-L-i-N-D: "Blind." Depois parou.
Otherton abriu os olhos.
- Que foi que disse? - perguntou ansiosamente.
- Cego - disse Estrella. - Soletrou a palavra "cego".
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- Que lhe parece que isso signifique?
- Não sei.
- O crime podia ter sido perpetrado por um homem cego, não podia?
- Tenho grandes dúvidas.
- Podíamos tentar de novo - alvitrou ela esperançadamente.
- Tenho de me ir embora - disse-lhe ele. - Fica para a próxima vez.
- Voltará aqui?
- com certeza. Mas tenho de verificar umas coisas primeiro. Antes de se retirar, Estrella obteve dela o nome dos poucos
amigos que lhe telefonavam ocasionalmente, e a lista das lojas da vizinhança que lhe forneciam as mercearias e os remédios.
- Obrigado pela sua ajuda, Sylvia - disse ele. Ela pôs-se na ponta dos pés e beijou-o na face.
- Eu é que lhe agradeço, Brian - murmurou ela, ofegante. Ao ir para baixo no elevador, ele debateu-se na dúvida de
incluir, ou não, o episódio da tábua Ouija no seu relatório. Finalmente, resolveu-se a fazê-lo. Não tinha Delaney dito que queria tudo?
E tudo era exactamente o que Delaney estava a receber nos relatórios diários. Sentia-se satisfeito: mais valia que o material fosse a mais do que a menos. A maior parte não passava de ninharias, no entanto apareciam algumas revelações significativas:
- Benjamim Calazo informou que Isaac Kane dissera ter abandonado o Centro Comunitário às nove horas da noite do crime, mas Kane admitia não se ter dirigido de imediato para casa. Mostrava-se incapaz ou não interessado a prestar contas do espaço intermédio.
- L. Vincent Symington, segundo Ross Konigsbacher, possuía cadastro. Alguns anos antes fora preso numa rusga realizada a uma casa de homossexuais a funcionar fora de horas, na Rua 18. Não existiam registos sobre a evolução do caso.
- Timothy Hogan gastara algum tempo a tagarelar com os trabalhadores no matadouro de Ronald J. Bellsey, e ficara a saber que, há uns meses atrás, Bellsey e um carniceiro tinham travado uma luta sangrenta com ganchos de pendurar carne, donde este último saíra seriamente ferido. Bellsey fora processado, mas o assunto resolveu-se fora do tribunal.
- Joan Yesell, escreveu Helen K. Venable, ferira-se mais gravemente na sua tentativa de suicídio do que a princípio se
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supusera. Os tendões do seu pulso tinham sido cortados e não se esperava que a jovem regressasse ao trabalho antes de um mês.
- O detective Robert Keisman informara que o cadastro de Harold Gerber incluía várias prisões por agressão, recusa em obedecer à autoridade e uma série de desacatos públicos. O registo de guerra de Gerber terá acabado por conduzir à suspensão de todas as acusações. Mas, salientou Keisman, Gerber recebera uma dispensa do Exército menos do que honrosa por ter cometido várias ofensas, entre elas uma agressão a soco a um oficial.
- Finalmente, Brian Estrella escrevera sobre o seu encontro com Sylvia Mae Otherton, mencionando com brevidade o incidente envolvendo uma tábua Ouija. Edward X. Delaney contou o facto a Mónica, pensando que esta ficaria divertida. Mas a mais racional das mulheres não se riu.
Delaney sentia-se, de um modo geral, compensado. Tinha a sensação de que a investigação começava a conhecer um novo impulso. Não se diferenciava muito de uma escavação arqueológica, em que cada camada de sedimentos retirada ia deixando a verdade mais ao de cima.
O detective Ross (Kraut) Konigsbacher pensava estar de posse da verdade no que se referia a L. Vincent Symington: o tipo era um maricas declarado. Não era apenas a prisão que figurava no seu cadastro, era também a maneira como se vestia, como andava, como pegava no cigarro.
Cada detective tinha um processo de trabalho diferente, e Konigsbacher gostava de cercar a sua presa, saber tudo o que lhe dizia respeito, estudar o seu estilo de vida. Depois, quando sentia que conhecia o seu alvo de A a Z, partia para um frente-a-frente com a pessoa em questão e cavaqueava com esta, baseando-se nos dados obtidos.
Kraut falara com os vizinhos de Symington, com o administrador do seu prédio, com os proprietários das lojas onde fazia as suas compras. Até conseguiu entrevistar o chefe do pessoal da firma de orientação de investimentos onde Symington trabalhava.
Servindo-se de um cartão forjado, Konigsbacher disse estar a conduzir uma investigação sobre Symington para fins de atribuição de crédito num pedido de empréstimo para a aquisição de um apartamento. O gerente forneceu referências esplêndidas de Symington, mas Kraut aplicou-lhes o devido desconto porque lhe pareceu que o tipo também era homossexual.
Fora das horas de trabalho, L. Vincent Symington gostava de deambular. Jantava todas as noites num restaurante diferente,
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umas vezes sozinho, outras com outro homem, mas nunca com uma mulher.
Terminado o jantar, começava a visitar os bares. Mas quase sempre, por volta da meia-noite, acabava num local da Lexington Avenue, próximo da Rua 40, que era conhecido por Dorian Grey. Do lado de fora, tinha uma aparência discreta; a fachada era de painéis de pinho em mau estado, tinha uma pequena janela que revelava um interior mergulhado na penumbra, com velas acesas nas mesas e um piano ao fundo. Normalmente encontrava-se apinhado.
Na terceira noite, Konigsbacher seguiu Symington até ao Dorian Grey, esperou cinco minutos e depois entrou. Deparou com o bar mais elegante que alguma vez vira - e ele já visitara muitos, desde Village ao Harlém.
O recinto era silencioso como uma igreja, já que todos os presentes falavam em sussurros, e até as risadas eram abafadas. A mulher negra que estava ao piano tocava Cole Porter, e o barman - que fazia lembrar Tyrone Power quando jovem - parecia capaz de movimentar as garrafas e os copos sem o mais leve tinido.
Kraut deixou-se ficar um bocado à entrada, até os olhos se lhe habituarem à penumbra. Viam-se três ou quatro mulheres no local, mas todos os restantes fregueses eram homens dos seus trinta, quarenta anos. Praticamente todos eles envergavam roupas conservadoras, formais. Faziam lembrar banqueiros ou corretores, talvez até mesmo gatos-pingados.
A maioria dos indivíduos instalados nas mesas mais pequenas encontrava-se aos pares; os que vinham sozinhos ficavam no bar. Konigsbacher divisou a sua vítima sentada, sozinha, mesmo ao fundo do balcão. A seu lado havia um banco vazio. Kraut encaminhou-se lentamente para este, onde se sentou. O barman aproximou-se imediatamente.
- Boa noite, senhor. Que deseja beber?
Kraut teria gostado de um Jac Daniel seguido de uma cerveja, mas ao olhar em volta reparou que todos os outros clientes do bar estavam a beber cerveja em copos de pé alto ou a beberricarem em pequenos cálices com licor.
- Um vermute, por favor - pediu, surpreendido por dar consigo também a sussurrar.
- Muito bem, senhor.
Enquanto aguardava pela sua bebida, olhou de relance para o
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espelho manchado que ficava do outro lado do balcão e reparou que L. Vincent Symington estava a fitá-lo.
Ambos desviaram o olhar.
Bebeu metade do seu vermute, lentamente, em seguida puxou de um maço de Kent e de um isqueiro que tinha no bolso do casaco. O belo barman acercou-se imediatamente com um pequeno cinzeiro de cristal. Kraut acendeu o cigarro, deixando depois o maço e o isqueiro sobre o balcão, na sua frente.
Passados alguns momentos, Symington tirou uma cigarreira de prata do bolso interior, abriu-a com um estalido e escolheu um cigarro comprido e com filtro.
- Desculpe - disse a Konigsbacher com voz aflautada. Parece que me esqueci do isqueiro. Importa-se de me emprestar o seu?
Era como uma dança, e Kraut conhecia os passos.
- Faça favor - disse, acendendo o isqueiro e aproximando-o do outro homem. Symington roçou ligeiramente a sua mão na dele, como que a firmar a chama. Inspirou profundamente o fumo, parecendo engoli-lo.
- Obrigado - agradeceu. - Péssimo hábito, não acha?
- Refere-se ao sexo? - perguntou Konigsbacher, desatando ambos a rir-se.
Dez minutos mais tarde estavam os dois sentados numa pequena mesa encostada à parede, falando vivamente. Mantinham-se inclinados para a frente, cabeças quase a tocarem-se. Por baixo da mesa, os joelhos comprimiam-se.
- Ross, não tenho dificuldade em adivinhar - disse Symington -, que toma muito cuidado consigo próprio.
- Esforço-me por isso, Vince - respondeu Kraut. - Todas as manhãs faço pesos e halteres.
- Eu devia realmente fazer esse exercício. Hesitou, mas depois perguntou:
- Você é casado, Ross?
- A minha mulher é, eu não.
Symington atirou-se para trás e juntou as mãos.
- Adorei! - exclamou. - Simplesmente adorei! A. minha mulher é, eu não. Tenho de decorar essa.
- E você, Vince?
- Não. Não, neste momento. Já fui. Mas ela abandonou-me. Levando, devo acrescentar, o dinheiro que tínhamos na nossa conta conjunta, o nosso cão-dágua e a minha colecção pessoal de moedas romanas antigas.
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- Quer dizer que é divorciado?
- Não legalmente, tanto quanto sei.
- Pois devia tratar disso, Vince. Pode algum dia querer refazer a sua vida.
- Tenho as minhas dúvidas - disse Symington. - Dúvidas muito grandes, até.
- É um mundo triste, triste, triste, triste - murmurou Kraut melancolicamente -, e a única coisa que uma pessoa pode fazer é agarrar em todo o prazer que puder.
- Verdades que nunca são ditas - concordou o outro homem, fazendo estalar os dedos para o empregado bonito, e mandando vir nova rodada de bebidas.
- Vince - disse Konigsbacher -, tenho o pressentimento de que podemos ser bons amigos. Espero bem que sim, porque não tenho muitos.
- Oh, meu Deus! - exclamou Symington, passando a palma da mão pelo crânio liso. - Você também? Pois nem imagina quão sozinho também me sinto.
- Mas há um aspecto de que deve ter conhecimento, relativamente a mim - continuou Kraut, calculando que já era tempo de colocar a questão que o interessava. - Ando a fazer análise.
- Caramba, por amor de Deus, isso não é nenhum crime. Eu andei a fazê-la durante anos.
- Andou? Já não anda?
- Não - respondeu Symington soturnamente. - O meu psiquiatra foi morto.
- Morto? Que coisa horrível. Num acidente, não?
O outro homem inclinou-se mais uma vez para a frente e baixou a voz.
- Foi assassinado.
- Assassinado! Santo Deus!
- Talvez tenha lido sobre o caso. Doutor Simon Ellerbee, do Upper East Side.
- Quem o fez, já sabem?
- Não, mas ainda continuo a receber visitas da Polícia. Sabe como é, têm de falar com todos os pacientes do homem.
- Que aborrecimento. Você não sabe nada sobre o assunto, pois não?
- Bem, eu tenho cá as minhas ideias, mas não tenciono relatá-las à Polícia, evidentemente. De mim não levam eles nada.
- Faz bem, Vince. Limite-se a ficar de fora.
- É o que farei. Já tenho problemas que bastem.
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- Que tipo de homem era ele, o seu psiquiatra?
- Bem, sabe como eles às vezes são; bem mauzinhos,
- Nada mais certo. Acha que ele foi morto por um dos pacientes?
Symington virou a cabeça para espreitar por cima do ombro de ambos, como se desconfiasse de que alguém estivesse à escuta. Depois inclinou-se ainda para mais perto e falou num sussurro conspirativo.
- Aqui há cerca de uns seis meses atrás, foi numa sexta-feira à noite, eu ia a atravessar a Primeira Avenida. Tinha acabado de jantar no Lucky Pierre. É um restaurante maravilhoso, tem realmente os caracóis mais saborosos de Nova Iorque. Como ia dizendo, eram cerca de nove horas e eu ia a atravessar a Primeira Avenida e ali, retido por um semáforo, estava o doutor Ellerbee. Vi-o claramente, como se fosse dia, mas ele não deu por mim. Ia ao volante do seu Jaguar verde. Nesse momento, a luz mudou e ele seguiu em direcção ao norte da cidade. Agora deixe-me que lhe pergunte: que é que isso lhe sugere?
Konigsbacher estava siderado.
- Que ele acabara de estar algures?
- Algures com alguém. E certamente não com a mulher; ela não ia no carro; ele encontrava-se sozinho.
- Não sei, Vince - disse Kraut com ar de dúvida. - Podia ter estado em qualquer sítio. A ver um paciente, por exemplo, ou no hospital. Qualquer coisa.
- Bem - disse Symington, recostando-se e sorrindo com satisfação -, não é a única coisa. Eu podia contar aos tipos da Polícia, mas não o farei. Eles que se desenrasquem com o seu trabalho sujo.
- Muito sensato. É manter-se fora disso.
- Oh, pode crer que o farei. Não quero envolver-me. Konigsbacher consultou o relógio de pulso.
- Oh, meu Deus! - exclamou. - É mais tarde do que eu pensava. Tenho de ir andando.
- Tem mesmo, Ross?
- Lamento muito, mas é assim, Vince - disse Kraut, tendo decidido trabalhar aquele peixe devagar. - Agradeço-lhe a noite encantadora. Foi um verdadeiro prazer.
- Foi divertido, não foi? Acha que pode voltar a passar por aqui?
- Penso que sim. Amanhã à noite, por exemplo.
Ambos riram, não desviando os olhos um do outro, apertando
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as mãos demoradamente. Konigsbacher saiu, deixando o outro indivíduo a pagar a conta. Ele que se lixasse.
Ao seguir de carro para casa, que ficava em Riverdale, Kraut rememorou a conversa tida naquela noite. Não era muito, mas adivinhavam-se bons pedaços para o futuro. Contaria tudo no seu relatório, e Delaney que analisasse a coisa.
Edward X. Delaney leu o relatório com um sentimento que se aproximava muito da admiração. Sabia o que Kraut estava a fazer e isso não lhe agradava. Mas depois de reflectir cuidadosamente, decidiu deixar o detective seguir o seu processo e ver os resultados que este dava. Delaney não estava disposto a permitir-se enredar em especulações filosóficas sobre se o fim justificava os meios. Tinha preocupações mais imediatas.
Os técnicos comunicaram os resultados do exame feito ao martelo de pena redonda retirado do porta-bagagens do Cadillac de Ronald Bellsey. Negativo. Não só não tinha manchas de sangue, como nem sequer indícios de que o malfadado objecto tivesse tido uso recente. O sargento Boone voltou a repetir a operação, desta vez para o colocar no mesmo sítio.
O problema do paciente tardio continuava a atormentar Delaney. Quando esperava tê-lo resolvido, descobria que deparara com um mistério ainda maior.
Ao examinar uma vez mais o livro de marcações de Simon Ellerbee, notou que, ocasionalmente, os pacientes tardios estavam marcados para as seis, sete, oito e até nove horas da noite. Tentou ver se havia algum padrão, se determinados pacientes tinham o hábito de fazer marcações tardias.
Raciocinou então que os pacientes tardios que não figuravam no livro de marcações - aqueles que faziam telefonemas de pânico - estariam certamente anotados no livro de facturas do Dr. Ellerbee. Não tinha Carol dito que o médico se limitava a deixar-lhe um bilhete sobre a secretária, na manhã seguinte, indicando-lhe que cobrasse determinada soma por uma sessão nocturna?
Fazia sentido, mas ele não conseguia encontrar nenhum livro de facturas, nem nada que se lhe assemelhasse, entre os registos enviados pelo grupo de investigação de Suarez. Ele e Boone gastaram uma frustrante tarde ao telefone, tentando localizá-lo.
A Dra. Diane Ellerbee disse que sim, que o marido mantinha um diário contabilístico, onde vinham todas as sessões anotadas: nome do paciente, data e horas. Partira do princípio de que a Polícia o apreendera ao recolher todos os registos de Simon.
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Carol Judd também dissera que sim, que existia um livro de facturas. Ela guardava-o na gaveta de cima da sua secretária, no gabinete exterior, utilizando-o para enviar as facturas e a conta aos pacientes.
A Dra. Diane, quando ele lhe telefonara, concordara em procurar o diário, telefonando posteriormente a dizer que não o encontrara na secretária da recepcionista, no consultório do marido ou noutro lado qualquer.
Boone ligou para os peritos e para o detective que retirara todos os arquivos do consultório da vítima. Nenhum deles conseguia recordar-se de algo que se assemelhasse a um livro de facturas.
- Muito bem - disse Delaney -, portanto, ele desapareceu. Tê-lo-á o assassino levado? Provavelmente. Porquê? Porque mostraria a frequência das consultas tardias dele ou dela.
- Não estou a entender - observou Boone.
- Claro que está. Somamos o número de sessões de determinado paciente num mês, de acordo com o que vem referido no livro de marcações. Depois comparamos esse resultado com a facturação total que esse mesmo paciente fez nesse mês. Se a conta for superior ao que devia ser, digamos, uns cem dólares, podemos deduzir que o cliente usufruiu de uma sessão extra.
- Agora já lá cheguei - dise Boone. - Mas são tudo conjecturas se não conseguirmos encontrar o maldito livro de facturas.
Delaney informou-se de mais pormenores relacionados com a prática comercial ligada à psiquiatria através de Mónica, que, tal como prometera, falara com as amigas que andavam a fazer análise.
- Elas disseram que os médicos normalmente enviam uma conta mensal - informou. - Às vezes a coisa complica-se quando o paciente dispõe de um seguro médico que inclui psicoterapia. E há empresas que têm subsídios de saúde para os seus empregados, os quais pagam a totalidade ou parte das taxas de orientação psicológica.
- Que faz o psiquiatra se o paciente não pode ou não quer pagar?
- Livra-se dele - disse Mónica. - A teoria é a de que, se se paga pela terapia, esta parecerá mais valiosa. Se é obtida a troco de nada, será esse o valor que lhe atribuirão. Alguns psiquiatras continuam a tratar, durante algum tempo, de pacientes com problemas temporários de dinheiro. Outros ajustam os seus honorários ou aceitam pagamentos dilatados. Mas não há nenhum
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que trabalhe de borla, excepto se for para fins caritativos. O que me traz à ideia, meu caro, quanto é que estás a receber por todas estas horas que ocupas no caso Ellerbee?
- Dores de cabeça é o que estou a receber - disse Delaney.
O Dia de Acção de Graças chegou na altura exacta para providenciar o necessário afastamento de registos, relatórios e perguntas sem resposta.
O ganso assado, acompanhado com arroz solto e maçãs com brande, foi declarado um sucesso. Rebecca Boone levara um bolo de rum, ensopado na bebida, para a sobremesa. Até se dera ao cuidado de preparar um outro, mais pequeno e não contendo rum, para o marido.
Levaram a sobremesa e o café para a sala de estar, e instalaram-se confortavelmente nas cadeiras macias com os pratos no colo, e nem sequer fizeram referência ao caso Ellerbee, pelo menos durante três minutos.
- Talvez se riam de mim - disse Rebecca -, mas, na minha opinião, o crime foi cometido por uma pessoa completamente desconhecida.
- Brilhante - comentou o marido desta. - Mas o doutor nunca abriria a porta da entrada a um desconhecido, e não se viam sinais de entrada forçada. Então, como é que o desconhecido entrou?
- É simples. Ele esperou, escondido no meio das sombras, talvez atrás de um carro estacionado, e quando o paciente tardio chegou, o assassino precipitou-se para ele, ameaçou-o com o martelo, uma arma ou uma faca. E aí está a razão - concluiu triunfanteménte - porque se viam dois conjuntos de pegadas na alcatifa.
- É possível - admitiu Delaney. - Tudo é possível. Mas por que razão desejaria um desconhecido matar o doutor Ellerbee? Ele não tinha drogas no consultório, e não estava a faltar nada, excepto o maldito livro das facturas. Não sou capaz de acreditar que Ellerbee tenha sido morto por causa deste.
- O assassino estava apaixonado por Diane Ellerbee - disse Mónica, sem hesitar - e queria o marido desta fora de acção para poder casar com a viúva.
- É motivo suficiente - reconheceu Delaney -, se conseguíssemos encontrar o mais pequeno indício de que a doutora Diane andara a devanear por aí, o que não acontece.
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- Talvez ela não andasse a ter devaneios - disse Mónica. Talvez o assassino alimentasse uma paixão louca por ela que nem sequer fosse do seu conhecimento.
- Que será que leva as pessoas a assassinarem? - perguntou Rebecca.
Delaney encolheu os ombros.
- Muitas razões. Cobiça, medo, raiva, inveja, a lista é interminável. Às vezes o motivo é tão trivial que se tem dificuldade em acreditar que alguém tenha podido matar por causa do mesmo.
- Uma vez tive um caso - contou o sargento Boone - em que um tipo esfaqueou o vizinho até à morte porque o cão do homem ladrava demasiado. E um outro em que um tipo deu um tiro na mulher porque esta queimara um bife enquanto estava a grelhá-lo.
- Alguma vez teve um caso - perguntou Mónica - em que a mulher tenha morto o marido porque este comia sanduíches inclinado sobre o lava-loiça da cozinha?
O casal Boone riu. Até Delaney logrou esboçar um sorriso enviesado.
- Qual pensa que terá sido o motivo no caso Ellerbee? - perguntou Rebecca.
- Nada de trivial - respondeu Delaney -, disso tenho eu a certeza. Algo de profundo e complexo. Na sua opinião, o que terá sido, sargento?
- Não faço a menor ideia - respondeu Boone -, mas duvido que tenha sido por dinheiro.
- Então, deve ter sido por amor - disse a mulher deste prontamente. - Estou convencida de que teve alguma coisa a ver com amor.
Rebecca era uma deliciosa mulher de pequena estatura, rechonchuda, dotada de uma pele magnífica e de longos cabelos negros que usava, caídos e soltos, sobre os ombros. Tinha uns olhos suaves e a sua expressão possuía uma inocência de querubim. Vestia um saia-casaco de flanela, mas nada poderia esconder-lhe a beleza robusta.
Delaney tinha consciência de que Rebecca nutria por ele um respeito deferente, facto que o embaraçava. Mónica tratava Boone familiarmente por Ãbner ou Ab, mas Rebecca não se atrevia a chamar Edward a Delaney. E como o tratamento de Sr. Delaney era absurdamente formal, abstinha-se de utilizar qualquer nome ou título.
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- Porque acha que o motivo foi o amor, Rebecca? - perguntou-lhe ele.
- É apenas um pressentimento meu. O sargento desatou a rir à gargalhada.
- Esse argumento não está fundamentado, senhor - disse. Apresentemo-lo amanhã na reunião.
Mais tarde, nessa mesma noite, quando se preparavam para ir para a cama, Delaney perguntou a Mónica:
- Concordas com Rebecca? Que o amor foi o motivo que conduziu ao assassínio de Ellerbee?
- Sem dúvida que penso que fez parte dele - respondeu ela.
- Se não foi por dinheiro, certamente deve ter sido por amor.
- Quem me dera ter a certeza de alguma coisa - observou ele, macambúzio -, como tu tens de tudo.
- Perguntaste-me, portanto respondi-te.
- Se vocês, as mulheres, tiverem razão - disse ele -, então talvez devêssemos pôr de lado a investigação dos pacientes que tendem para a violência para nos concentrarmos naqueles que se inclinam para o amor.
- Esses animais existem? - inquiriu ela. - Pessoas que se inclinam para o amor?
- Claro que existem. Homens que saltitam de mulher em mulher, necessitando de amor que dê significado às suas vidas. E mulheres que se apaixonam ao cair de um chapéu ou de um par de calças.
- és um homem muito vulgar - declarou ela.
- É verdade - concordou ele. - Rebecca está mais gordinha, não está?
- Talvez um quilo ou dois.
- Não está grávida, está?
- Claro que não. Porque perguntas?
- Não sei... notei um certo fulgor nela esta noite. Só pensei...
- Se estivesse grávida, ter-mo-ia dito.
- Calculo que sim. Se tencionam ter filhos, o melhor que têm a fazer é despacharem-se, se me desculpares outra vulgaridade. Nenhum deles está a tornar-se mais jovem.
Delaney encontrava-se sentado na beira da cama, às voltas com um dos sapatos. Mónica aproximou-se, instalou-se no seu colo e rodeou-lhe o pescoço com um braço quente.
- Gostaria de que tu e eu tivéssemos tido filhos, Edward.
- E temos. Considero as tuas meninas como minhas. E sei que os meus filhos são como se fossem teus.
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- Não é a mesma coisa - disse ela. - Sabes perfeitamente. Refiro-me a um filho que fosse mesmo teu.
- É um pouco tarde para isso - observou ele. - Ou não é?
- Suponho que sim - concordou ela. - Estava só a sonhar.
- Além disso - acrescentou ele -, quererias para pai dos teus filhos um homem que se inclina sobre o lava-loiça para comer sanduíches?
- Peço desculpa - disse ela, rindo. - Não devia ter falado nisso à frente de pessoas de fora, mas não consegui resistir.
Antes de o largar, ela aproximou o rosto do dele, fitou-o bem nos olhos e perguntou:
- Amas-me, Edward?
- Amo-te. Nem quero que imagines até que ponto a minha vida seria vazia e sem sentido sem ti.
Ela beijou-lhe a ponta do nariz, e ele quis saber:
- A que propósito vem tudo isso?
- Foi toda aquela conversa que tivemos esta noite acerca de amor e crime - disse Mónica. - Fiquei perturbada. Queria apenas certificar-me de que as duas coisas não andam, necessariamente, juntas.
- Não andam - concordou Delaney lentamente. - Não necessariamente.
Capítulo décimo sexto
Ninguém sabia como ou onde a expressão nascera, mas o certo é que, nesse ano, todo o pessoal do Departamento estava a usar a palavra "rapapport". Os polícias da rua diriam: "Eu tenho um bom rapapport no local onde faço o meu giro." Detectives refeririam, relativamente a determinado informador: "Tenho um bom rapapport com aquele tipo."
Na realidade, quando se analisava a palavra, chegava-se à conclusão de que esta resultava da combinação útil de duas outras. Não só se estava em harmonia com alguém, como também se podia estabelecer uma base de entendimento com essa pessoa. A palavra ajustava-se à ideia.
O detective Robert Keisman calculara poder estabelecer um bom rapapport com Harold Gerber, o veterano do Vietname. O polícia negro, franzino como um lápis e flexível como um
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esgrimista, sabia o que era uma pessoa sentir-se interiormente consumida pela raiva; calculou que ele e Gerber tivessem muito em comum...
Até conhecer Gerber e ver como este vivia.
- Aquele tipo é verdadeiramente chanfrado - disse ele a Jason.
Mas, ainda assim, decidido a estabelecer um rapapport, Keisman caracterizou-se de maneira, pensou, a não ofender o veterano misantropo: jeans coçados, velhas botas de combate, um casaco de cabedal de gola alta e franjas de pele sebentas, e um gorro maluco de orelheiras caídas.
Não enganou Gerber; disse-lhe que era um detective do Departamento da Polícia de Nova Iorque destacado para o caso Ellerbee. E, no primeiro frente-a-frente que tiveram, fez-lhe as mesmas perguntas que Delaney e Boone já lhe tinham dirigido, obtendo as mesmas respostas. Mas o Estraga comportava-se como se se tivesse nas tintas para o facto de Gerber dizer a verdade ou não.
- Estou apenas a passar o meu tempo, homem - disse ele ao veterano. - Eles nunca hão-de descobrir quem abafou o Ellerbee, portanto para que hei-de eu estar a ralar-me demasiado?
De modo que, dia sim, dia não, Keisman punha de lado o seu elegante blazer marca Giorgio Armani e as calças Ferragamo. Vestia-se então como um vagabundo de Village, e ia visitar Gerber.
- Anda daí, homem - dizia ele a Gerber. - Saiamos desta latrina e vamos tomar umas cervejitas.
Deambulavam então com ar displicente até um bar qualquer, onde ficavam a beber e a conversar o dia todo. Keisman nunca aflorava a questão do assassínio de Ellerbee, mas se Gerber mostrava vontade de falar sobre ele, o Estraga escutava com simpatia e ia fazendo perguntas casuais.
- Ainda não cheguei a conclusão nenhuma - disse ele a Jason -, mas o tipo está a começar a abrir-se. Se o meu fígado aguentar, pode ser que descubra alguma coisa.
Certa tarde, estavam ele e Gerber numa autêntica espelunca da Hudson Street quando, de repente, o veterano disse a Keisman:
- Tu és um polícia, alguma vez limpaste o cebo a um tipo?
- Uma vez - respondeu o Estraga. - Foi um tarado que se atirou a mim com uma navalha, e eu enfiei-lhe dois balázios nos pulmões. Recebi uma medalha por causa disso.
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O que era mentira, evidentemente. Keisman estava na Polícia há dez anos e nunca disparara o seu revólver fora dos treinos.
- Uma vez? - escarneceu Gerber. - Coisa de amador. Pois eu mandei tantos para o inferno no Vietname que até lhes perdi a conta. Passado algum tempo, deixou de ter significado.
- Uma ova - respondeu o Estraga. - Não quero saber de quantos mataste. Isso ainda continua a dar-te cabo da cabeça.
- O que estás agora a dizer são tretas - afirmou o veterano.
- Acredita no que te digo, homem, nunca pensei duas vezes no assunto. Estás a ver aquele tipo ali, o gordo estúpido que está a tentar meter-se com a desgraçada daquela pega velha? Nunca o vi na vida. Mas se eu andasse com uma arma e estivesse para aí virado, chegava-me a ele, furava-lhe os olhos e não chegava a perder uma noite de sono.
- Estás a querer enfiar-me o barrete.
- Juro - disse Gerber, erguendo a mão. - É assim que eu sinto, ou não sinto.
- Merda, homem, tu és uma bomba-relógio ambulante.
- Exactamente. O doutor Ellerbee estava a tentar despertar alguma consciência em mim, mas enfrentava grandes dificuldades.
- É uma pena que ele tenha ido desta para melhor - comentou Keisman. - Talvez tivesse podido ajudar-te.
- Talvez sim - concordou Gerber. - Talvez não. Foi ao balcão e voltou com a caneca de cerveja.
- Andas armado?
- Claro - respondeu Keisman. - Regulamento.
- Empresta-ma por um minuto - pediu Harold Gerber. vou acabar com a miséria daquele merdoso.
- Estás maluco, homem! - exclamou Keisman, definitivamente nervoso. - Estou-me nas tintas para o que fazes, mas se te empresto a minha arma, quem se lixa sou eu.
- Estupor - murmurou Gerber, olhando para o homem que estava ao balcão do bar. - Se não ma emprestas, eu talvez me limite a ir até ali e a limpar-lhe o sarampo.
- Vá - disse Keisman -, eu estou de serviço; nem sequer devia estar aqui a beber, ainda por cima com um pistoleiro como tu.
- Bem... - disse o veterano, encolhendo os ombros -, se não fosse por isso, arrumava com aquele filho da mãe. Não teria o menor significado para mim. Se estivesse sozinho, dava cabo
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dele, voltava para a mesa, acabava a minha cerveja e ficava à espera que os xuis chegassem para me levar.
- Acredito que sim.
- Podes apostar o que quiseres. Não seria a primeira vez. E se te dissesse que fui eu que acabei com o doutor Ellerbee, acreditavas?
- Foste tu?
- Se te dissesse que fui eu, acreditavas?
- Claro que sim! Foste tu?
- Sim, fui eu - disse Harold Gerber. - Ele era um metediço da merda.
O detective Robert Keisman relatou esta conversa a Jason, e os dois decidiram que era melhor apresentá-la pessoalmente a Delaney.
O dia não fora dos melhores para Delaney. Demasiadas chamadas telefónicas; demasiada gente a pressioná-lo.
Começara logo após o pequeno-almoço, quando fora para o seu gabinete de trabalho a fim de ler o Times da manhã. Havia um artigo de primeira página, com continuação noutra, sobre o índice decrescente na solução dos homicídios da área de Nova Iorque. Não era leitura que animasse.
O tema a partir do qual o texto se desenvolvia era o assassínio do Dr. Simon Ellerbee, e como, após semanas de investigação intensa, a Polícia não estava mais perto da solução do que no dia em que o corpo fora descoberto. Delaney ia a meio do artigo quando o telefone tocou.
- Thorsen - exclamou ele em voz alta, pegando no auscultador.
- Edward X. Delaney - disse.
- Edward, daqui é Ivar. Viste aquele artigo no Times!
- Estava agora mesmo a lê-lo.
- Filhos da mãe! - disse o comissário com amargura. - Era só o que nos faltava. Chegaste àquele parágrafo em que falam de Suarez?
- Ainda não.
- Bem, dizem que ele é o chefe de detectives em exercício e dá a entender que o desfecho do caso Ellerbee terá, possivelmente, um efeito crucial na sua nomeação efectiva.
- O que não é mentira nenhuma, pois não? Ivar, para quê todo este frenesim em redor do caso Ellerbee? Suarez deve ter pelo menos uma dezena de outros homicídios recentes por resolver na sua agenda.
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- Ora, ora, Edward, conheces muito bem a resposta a isso: Ellerbee era alguém. As pessoas endinheiradas do East Side não se poderiam importar menos se algum pelintra fosse morto para lá de South Bronx. Mas Ellerbee era um dos da sua espécie: um profissional culto, rico, com um bom endereço. De modo que esses todos-poderosos imaginam que se isto pôde acontecer com ele, pode ocorrer com eles, e estão borrados de medo. Esta manhã já recebi quatro telefonemas por causa desse artigo do Times. Esse tipo de publicidade não faz falta nenhuma ao Departamento.
- E eu que o diga.
- Algum progresso, Edward?
- Não - respondeu Delaney com brevidade. - Muitos fragmentos e indícios, mas nada de fazer abalar a Terra.
- Não quero pressionar-te, mas...
- Mas estás.
- Quero apenas certificar-me de que estás ciente do elemento tempo em causa. Se este assunto não está esclarecido até ao dia um de Janeiro, mais vale esquecermos tudo.
- Esquecermos a tentativa de descobrir o assassínio de Ellerbee?
- Agora é que estás mesmo a actuar como o Tomates de Ferro. Sabes o que eu quero dizer. O caso Ellerbee permanecerá em aberto, evidentemente, mas teremos de lhe retirar mão-de-obra. E Suarez regressa às suas esquadras, se tiver sorte.
- Estou a ver.
- Oh, a propósito - disse o Almirante rapidamente -, é possível que comeces a receber telefonemas dos Ellerbees, viúva e pai. Para me ver livre deles, referi-lhes que tu representas a nossa melhor hipótese de solução do caso.
- Muito obrigado, Ivar. Aprecio verdadeiramente a tua prestimosa colaboração.
- Foi o que pensei - disse o comissário, rindo. - Manter-me-ei em contacto.
- Por favor - pediu Delaney -, não te dês a esse trabalho. Os dois Ellerbees telefonaram. Ambos estavam mal-humorados
logo de princípio, e ainda mais mal-humorados ficaram quando desligaram.
Delaney não lhes proporcionou absolutamente nenhum conforto. Disse-lhes que estavam a ser seguidas várias pistas, mas que ninguém fora ainda identificado como suspeito definitivo, e ainda havia muito trabalho a fazer.
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- Quando é que acha que teremos boas notícias? - quis saber Henry Ellerbee.
- Não faço a menor ideia - respondeu Delaney.
- Quando é que acredita que encontrará o assassino? - perguntou a Dra. Diane sem mais delongas.
- Não faço a menor ideia - respondeu Delaney.
Os três telefonemas irritaram-no de tal maneira que esteve tentado a procurar consolo numa boa sanduíche, mas resistiu. Em vez disso, voltou aos seus arquivos, relendo os registos uma vez mais.
Ali, o propósito era concentrar-se nos aspectos minuciosos do caso. Naquele estádio, ele não se podia permitir julgar alguns pormenores significativos e outros desprovidos de sentido. Todos tinham valor: desde os golpes de martelo nos olhos de Ellerbee à utilização de uma tábua Ouija por parte de Sylvia Mae Otherton.
Ali estava uma coincidência curiosa - apercebeu-se de súbito. A vítima fora deliberadamente cegada, e a tábua Ouija soletrara a palavra CEGO. Que queria aquilo dizer, se é que tinha algum significado? Começava a sentir que cada vez se afundava mais no mundo irracional em que viviam os pacientes de Ellerbee.
Centenas de factos, rumores e pressuposições tinham estado a acumular-se, cada dia aparecendo mais. Aquilo que constituía uma revelação era, num caso daquela natureza, uma questão de escolha. Selecção: aí é que residia o segredo do detective e do poeta.
Tinha os olhos fatigados quando Jason e Keisman chegaram, providenciando-lhe um bem recebido intervalo.
Delaney escutou atentamente o Estraga, enquanto este fazia um relato pormenorizado da conversa mais recente tida com Harold Gerber.
- Quando o detective negro terminou, Delaney fitou-o pensativamente.
- Qual é a sua opinião? - perguntou-lhe Delaney por fim. Acha que ele está a dizer a verdade ou não passou de fanfarronice de bêbado?
- Senhor, não lhe posso dar uma resposta concreta, mas penso que existem fortes probabilidades. Aquele tipo não regula bem da cabeça.
- Até ao momento, temos pelo menos dez confissões falsas sobre o caso Ellerbee, Os homens de Suarez investigaram-nos a todas. Zero. Apenas loucos e gente à procura de publicidade. Mas temos de encarar esta seriamente.
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- Prendemo-lo? - sugeriu Jason.
- Não - respondeu Delaney. - Se chegamos à conclusão de que ele está limpo, isso será o fim do contacto de Keisman com ele. Ficará logo a saber quem é que deu com a língua nos dentes relativamente à sua confissão.
- Disso pode ter a certeza - concordou o Estraga. - E a mim não me agrada nada a ideia de ter aquele chanfrado zangado comigo.
- Então terá de confirmar a veracidade da confissão você mesmo. Descubra a que horas ele lá chegou. Tinha consulta marcada? Era o paciente tardio? Que transporte é que utilizou para se deslocar ao prédio dos Ellerbees: metropolitano, autocarro, táxi? Ele sabe que a vítima foi morta com um martelo de pena redonda porque eu e Boone perguntámos-lhe se tinha alguma ferramenta daquelas e ele disse que não. Portanto, veja se lhe diz onde é que arranjou o martelo e confirme se é verdade. Pergunte-lhe o que é que fez ao martelo depois de ter morto Ellerbee e verifique se isso confere. Inquira quantas vezes atingiu ele a vítima e de que maneira é que esta caiu. De rosto para baixo ou para cima? Finalmente, pergunte-lhe se fez mais alguma coisa ao corpo. A questão dos dois golpes de martelo nos olhos nunca foi transmitida à imprensa; somente o assassino teria conhecimento desse facto. Posso estar enganado, mas tenho a impressão de que Gerber está apenas a vangloriar-se de algo que não fez. Pode ter pensado em matar Ellerbee, talvez tenha sonhado com isso, mas não me parece que tenha chegado a concretizar o que quer que seja. Ele anda tão avariado da cabeça que era capaz de admitir ter raptado o juiz Crater se a ideia lhe ocorresse.
- Tenho pena do tipo - observou Jason.
- Claro - concordou Delaney -, mas não sinta demasiada pena. Não se esqueça de que ele pode ser a pessoa que procuramos. Mas o que me interessa ainda mais do que a confissão é o que ele queria fazer ao tipo gordo que lá estava no bar. Keisman, acha que ele estava a falar a sério?
- Absoluta - respondeu o Estraga imediatamente. - Não tenho dúvidas sobre isso. Se eu não o tivesse acalmado e levado a falar de outras coisas, ele teria simplesmente liquidado o tipo.
- Bem, já o fez anteriormente - disse Delaney. - O homem é uma calamidade ambulante. Jason, eu penso que é melhor você também trabalhar neste caso. Verifique a veracidade dessa confissão em todos os sentidos. Keisman, conseguiu descobrir onde é que Gerber esteve a beber na noite do crime?
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Negativo, senhor. Falei com dois ou três barman que o
conhecem e todos eles dizem que ficam piores do que estragados quando o vêem, mas nenhum deles se lembra se ele esteve presente, ou não, na noite dessa sexta-feira. Afinal de contas, já foi há várias semanas.
Delaney anuiu, baixando o olhar para as mãos apertadas uma na outra. Ficou calado durante alguns momentos, depois falou com voz baixa, sem erguer os olhos.
- Faça-me um favor, Jason. Deve haver um serviço de orientação para os veteranos do Vietname algures na cidade. Talvez seja uma clínica de terapia, ou simplesmente um lugar onde ele possa ir para falar com os outros veteranos. Veja se arranja alguma ajuda para ele, está bem? Custa-me ver aquele tipo ir para a valeta. Mesmo que não tenha morto Ellerbee, caminha para grandes problemas.
- com certeza, senhor - disse Jason. - vou tentar. Depois de saírem, Delaney voltou para o gabinete de trabalho e
acrescentou o relatório contendo a confissão de Gerber ao arquivo deste. Mais um facto, ou fantasia, para ser considerado. Estava convencido de que era fantasia, não porque Gerber não fosse capaz de matar, mas porque Delaney não acreditava que o caso Ellerbee se resolvesse de maneira tão fácil e simples.
Talvez, admitiu com pesar, ele não o desejasse. Seria um desapontamento tão grande como aquele que é causado pelo jogo que foi cancelado por causa da chuva. Se queria ser absolutamente honesto, tinha de reconhecer que estava a gostar da investigação. O que provava que ainda havia vida no velho cão.
Outra das pessoas que estavam a retirar prazer da investigação levada a cabo sobre o caso Ellerbee era Helen K. Venable. Estava entregue a si mesma pela primeira vez na sua carreira, não atrelada a um colega do sexo masculino que insistia em lhe dar conselhos indesejados e desnecessários, ou em lhe dirigir perguntas mal-intencionadas sobre a sua vida sexual.
Também se dava o facto de sentir uma grande afinidade por Joan Yesell. Venable era mais jovem do que aquela, mas também ela tinha uma mãe que era uma cabra, faltava-lhe um homem especial na vida e havia vezes em que se sentia tão solitária que tinha vontade de chorar, mas nunca tentaria cortar os pulsos; as coisas nunca chegavam a um ponto tão mau.
Falara com Joan duas vezes, apesar de o buldogue da mãe ter estado presente nos dois encontros e constantemente a interromper.
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Venable fizera as mesmas perguntas que Delaney e Boone tinham apresentado, e obteve as mesmas respostas. Acrescentou mais algumas por sua conta.
- Joan - perguntou -, alguma vez se encontrou com Diane, a mulher de Simon Ellerbee?
- Uma vez - respondeu Yesell nervosamente. - Enquanto, estava à espera da minha consulta.
- Ouvi dizer que ela é uma beleza. É verdade?
- Oh, sim! É linda.
- De uma beleza rude - acrescentou a mãe.
- Ah! - exclamou a detective, virando-se para esta. - Quer dizer que também a encontrou, não?
- Bem... não - respondeu a Sra. Yesell, corando. - Mas pelo que a minha Joan diz...
- Eu nunca vi Diane - disse Venable, dirigindo-se à filha. É capaz de a descrever?
- Alta - acedeu Joan Yesell -, esbelta e muito elegante. Loira natural. Quando a vi, usava o cabelo preso no alto da cabeça. Fazia lembrar uma rainha, uma beleza.
- Ora - desdenhou a Sra. Yesell. - Não é grande coisa. Obedecendo às ordens que tinha, Venable incluiu aquela
pequena troca de banalidades no relatório a apresentar a Boone, embora achasse que não tinha nenhum significado. Tão-pouco o sargento, que colocou as suas iniciais no documento, entregando-o depois a Delaney, que não fez nenhum comentário e se limitou a arquivá-lo.
Na noite da sexta-feira a seguir ao Dia de Acção de Graças, Helen, ao sentir-se aborrecida no seu apartamento de Flatbush e cansada de ouvir a mãe a tagarelar sobre o último escândalo no National Enquirer, resolveu ir de carro até Chelsea e ter nova conversa com Joan Yesell.
Telefonou primeiro, mas a linha estava ocupada e ela não se deu ao trabalho de tentar segunda vez. Meteu-se no seu pequeno Honda e rumou a Nova Iorque - aquilo a que a maioria das pessoas que viviam em Brooklyn chamavam a Manhattan. Não levava em mente nada de especial para perguntar a Joan Yesell; era apenas uma expedição de sondagem. E também se sentia sozinha.
Helen ficou feliz em saber que a Sra. Yesell saíra. Joan parecia deliciada em ver a detective. Preparou um bule de chá para as duas, que fez acompanhar de um prato de donuts polvilhados de açúcar. Sentiam-se à vontade uma com a outra e conversaram
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descontraidamente sobre o que tinham comido no jantar do Dia de Acção de Graças. A certa altura, Helen perguntou:
- Que tal está o pulso?
- Melhor, obrigada - respondeu Joan. - Estou a começar a sentir novamente força nos meus dedos. Exercito-os apertando uma bola de borracha. O médico diz que vai tirar a ligadura na semana que vem, mas quer que eu use uma ligadura elástica durante algum tempo.
- Da próxima vez em que sentir vontade de fazer algo do género, importa-se de me telefonar primeiro?
- Está bem - acedeu Joan debilmente.
- Promete?
- Prometo.
Depois a conversa derivou para mães tirânicas e elas trocaram anedotas, cada qual a tentar superar a outra com histórias de despotismo materno.
- Tenho de arranjar uma casa para morar sozinha - comentou Helen. - Caso contrário, dou comigo em doida. O único problema é o de não ter dinheiro para isso. Sabe como as rendas estão hoje em dia.
- Também adoraria ir-me embora daqui - disse Joan com ar desolado. De repente mostrou-se animada. - Oiça, eu tenho um bom salário. Acha que poderíamos alugar uma casa para as duas?
- É uma ideia... - disse a detective cautelosamente. Helen gostava de Joan e pensava que poderiam entender-se,
mas mesmo que esta não fosse considerada suspeita, era possível que os problemas de que padecia fossem demasiado graves para Helen poder suportá-los.
No entanto conversaram um bocado sobre o local onde gostariam de viver (Manhattan), o tipo de habitação de que necessitariam (de preferência um apartamento com dois quartos de dormir), e a renda que poderiam pagar.
- Precisarei de uma secretária - disse Venable. - Para bater à máquina os meus relatórios.
- Eu hei-de querer pelo menos um gato - observou Joan.
- Eu tenho alguma mobília. A cama onde durmo é minha.
- Nada disto me pertence - disse Joan, olhando em volta para o apartamento excessivamente cheio. - E mesmo que tal não acontecesse, não desejaria ter nenhuma destas coisas na minha casa. Na nossa casa. Odeio tudo isto; é tão sufocante. Havia de ver a casa dos Ellerbees, é linda!
- O consultório deles também?
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- Bem, esse era muito... sabe, a atirar para o vazio. Quero dizer, não estava mal, mas era tudo muito branco e eficiente. Quase frio.
- Ele era assim? ,
- Oh, não. O doutor Simon era um homem muito afectuoso. Muito humano.
- O que me faz lembrar - disse Helen -, se as duas chegarmos a viver juntas num apartamento, os homens? Terá i algum problema em que eu leve algum homem para casa, a fim de... passar a noite comigo?
Yesell hesitou.
- Não, se tivermos quartos separados. Fá-lo com frequência?
- Levar um tipo para minha casa? Está a brincar? Se o fizesse, a minha mãe tinha mais uma das suas famosas hemorragias nasais. Não, os únicos momentos em que estive com homens foi em casa deles, em carros e uma vez num motel.
Joan não disse nada, mas baixou os olhos. Tocou ao de leve na ligadura que lhe cobria o pulso esquerdo. As duas, suficientemente parecidas para passarem por irmãs, deixaram-se ficar em silêncio durante algum tempo, a detective a fitar a cabeça inclinada da outra mulher.
- Joan - disse Helen suavemente -, não é virgem, pois não?
- Oh, não - respondeu Yesell rapidamente. - Já estive com um homem.
- Um homem? Só um?
- Não. Mais de um.
- Mas nunca durou?
Joan abanou a cabeça negativamente.
- Não - observou Helen -, nunca dura, os filhos da mãe! Então, ao ver que Joan estava a ficar deprimida com a
conversa, mudou de assunto.
- Quem me dera ter a sua figura. Mas sofro de um problema de peso e estes donuts não estão a ajudar nada.
Falaram de dietas, da dança aeróbica e de jogging durante algum tempo e depois passaram para as roupas, comentando como era difícil encontrar alguma coisa bonita a um preço decente. Passada cerca de uma hora, já o prato de donuts estava vazio, a detective levantou-se para se retirar.
- Tenha cuidado consigo, menina - disse, inclinando-se para depositar um beijo na cara de Joan. - Espero cá voltar. É o meu trabalho, mas não se acanhe em me telefonar se se sentir em baixo.
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Talvez possamos comer uma pizza juntas, ver um filme ou coisa do género.
- Teria muito prazer - disse Joan, agradecida. - Obrigada por ter passado por cá, Helen.
À porta, a detective perguntou, enquanto ajeitava o seu gorro de malha, tapando bem as orelhas:
- Onde é que a mamã foi esta noite, anda por aí a fazer traquinices das suas?
- Oh, não - respondeu Joan, rindo -, nada disso. - Está no seu clube de brídege. É formado por mulheres da vizinhança, que se reúnem todas as sextas-feiras à noite. Normalmente a sessão termina por volta das onze, onze e meia.
- Quem me dera que a minha velha saísse de casa de vez em quando - resmungou Helen. - Uma noite sem ela é como um fim-de-semana no campo.
Ia a meio das escadas quando o significado das últimas palavras trocadas com Joan a atingiu, e começou a tremer. Só lhe passou quando entrou no seu Honda, trancou as portas e inspirou profundamente. Deixou-se ficar sentada no meio da escuridão, agarrada ao volante, reflectindo sobre as implicações do que acabara de ouvir.
Conhecia o álibi de Joan Yesell: esta regressara do trabalho por volta das seis da tarde da sexta-feira em que Simon Ellerbee fora morto, e não voltara a sair. Sua mãe dissera que sim, que era verdade.
Mas agora sabia que a mamã querida saía todas as noites de sexta-feira para jogar brídege e só regressava cerca das onze, onze e meia. Isso dava a Joan muito tempo para ir à Rua 84 e voltar para casa antes de a mãe lá chegar.
E porque teria a Sra. Blanche Yesell mentido? Porque estava a tentar proteger a "minha Joan"?
"Espera um pouco, detective Venable", disse de si para si. Se o clube de brídege da mamã funcionava como a maior parte deles, havia uma rotação dos locais de reunião, desempenhando as jogadoras o papel de anfitrioas quando chegava a vez de cada uma. Podia ser que, na noite do crime, a sessão tivesse sido no apartamento das Yesell.
Mas se era assim, por que razão Joan ou a mãe não tinham referido o facto? Isso teria proporcionado mais três testemunhas para a presença de Joan nessa noite.
Não, a Sra. Blanche fora a outro lado qualquer para a sua partida semanal de brídege.
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E se naquela noite não tivesse havido jogo? Chovia a cântaros, talvez tivessem resolvido cancelá-lo, e a Sra. Yesell estivesse realmente em casa, jogando uma partida a dois com a filha.
Helen inclinou-se para a frente, apoiando a testa no volante, tentando descortinar o que deveria fazer a seguir. Antes de mais nada, pensou, não estava disposta a atirar a pobre Joan para o meio das feras. Ainda não. Em segundo lugar, não iria entregar uma pista sumarenta como aquela a um homem para depois este colher todos os louros.
Acontecera-lhe demasiadas vezes no passado. Ela descobria algo de sensacional numa investigação e eles desviavam-na da evolução do processo, dizendo-lhe da maneira mais gentil que se podia imaginar: "Helen, a coisa está a correr bem, mas queremos que seja um tipo mais experiente a tomar conta do assunto."
Uma ova! Era tudo dela, e daquela vez ia dar conta do recado pessoalmente. Não era a função que se esperava de um detective?
Decidiu não apresentar nenhum relatório a Boone sobre a conversa que tivera naquela noite com Joan Yesell, ou sequer mencionar-lhe as noites de jogatina de brídege que a mãe fazia às sextas-feiras pelas casas das vizinhas, ou referir-lhe a possibilidade de esta ter mentido para confirmar o álibi da filha. Quando a detective Venable investigasse o assunto em profundidade, então daria contas dele. Até lá, todos esses tipos mais experientes que se fossem lixar.
Nessa mesma noite, um desses tipos mais experientes, Edward X. Delaney, encontrava-se num estado de espírito jovial. A irritação da tarde desaparecera com um jantar de estufado de caçarola, panquecas de batata e cenouras passadas por manteiga
- tudo empurrado para baixo com duas garrafas de Lõwenbrãu tinto.
Mónica inclinou-se de modo a dar-lhe uma palmadinha no estômago bem atestado.
- Comeste tudo o que tinhas no prato, com excepção das flores - comentou. - Sentes-te melhor?
- Muito melhor - respondeu ele. - Deixemos tudo como está e vamos tomar o nosso cafezinho na sala.
- Não há nada para deixar. Demos conta de tudo como uma praga de gafanhotos.
- Lembro-me de que a minha mãe costumava dizer que uma boa digestão é uma bênção do céu. Nunca lhe dei tanta razão.
Na sala de estar, Mónica disse:
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- Nunca falas muito na tua mãe.
- Bem, ela morreu tinha eu cinco anos; já te contei esse pormenor. Portanto, a recordação que tenho dela é muito vaga. Tenho umas velhas fotos dela no sótão. Um dia destes vou tirá-las cá para fora. Uma mulher adorável; vais ver.
- Ela morreu de quê, Edward?
- De parto. O bebé, também. Meu irmão.
- Foi baptizado?
- Claro. Terence. Terry.
- Qual era o primeiro nome do teu pai?
- Marion, quer acredites quer não. Nunca mais voltou a casar. De modo que tu e eu somos filhos únicos.
- Mas temo-nos um ao outro.
- Graças a Deus.
- Edward, porque deixaste de ir à igreja?
- Mónica, porque deixaste de ir à sinagoga? Ambos sorriram.
- Mas que belo par de pagãos que nós somos - comentou ele.
- Não é bem assim - objectou ela. - Eu acredito em Deus, tu não?
- Claro que acredito - afirmou ele. - Às vezes penso que Ele se deve parecer com o comissário Thorsen.
- Seu doido - disse ela, rindo. - Queres assistir ao noticiário da televisão?
- Não, obrigado. Creio que optarei por uma noite descontraída, para variar. Preciso de um...
O telefone tocou.
Delaney pôs-se pesadamente de pé.
- Lá se vai a minha noite descontraída - observou. - Podes apostar. vou atender no gabinete de trabalho.
Era a Dra. Diane Ellerbee.
- Senhor Delaney - disse -, quero pedir-lhe desculpa pelo modo como o tratei esta manhã. Sei que o senhor está a dispor voluntariamente do seu tempo para tratar deste caso, e receio ter sido demasiado áspera consigo.
- De forma nenhuma. Sei como se sente preocupada com a questão. Às vezes custa muito a ter paciência numa situação como esta.
- Esta noite vou até Brewster - disse ela. - Para lá passar o fim-de-semana. Há uma coisa de que gostaria de lhe falar e que
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talvez possa ou não ajudar na investigação. Haveria possibilidade de eu passar por sua casa daqui a alguns minutos?
- com certeza. Acabámos de jantar, portanto venha quando quiser.
- Obrigada - disse ela. - Daqui a pouco estarei aí. Delaney voltou para a sala e contou a conversa a Mónica.
- Santo Deus - exclamou esta. - Temos de arrumar a cozinha. Há toalhas lavadas na casa de banho? Achas que tenho tempo de me arranjar?
- De quê? - admirou-se Delaney. - Estás muito bem assim. E está descansada que a casa de banho tem toalhas lavadas. Tem calma, querida; não é a visita da rainha de Inglaterra.
Mas quando a Dra. Diane chegou, a cozinha estava arrumada, a sala de estar ajeitada e os dois encontravam-se sentados com muito pouco à-vontade, resolvidos a não se deixarem deslumbrar pela visitante - sem serem muito bem sucedidos.
Diane Ellerbee era a graciosidade personificada. Cumprimentou-os pelo lar encantador, escolhendo imperturbavelmente a peça mais bonita da sala de estar para admirar - uma pequena secretária Duncan Phyfe - e assegurou Delaney de que o gim com vodca que ele preparara para ela era o melhor que já provara.
Ela desempenhava, de facto, o papel de grande dama com tanta magnanimidade que proporcionou ao polícia um julgamento instantâneo: a mulher sentia-se tremendamente nervosa e queria alguma coisa. Tendo chegado a essa conclusão, Delaney relaxou e observou-a com um ligeiro sorriso, enquanto ela tagarelava com Mónica.
Diane vestia um conjunto de camisola e saia cor de cogumelo, com botas altas de cabedal lustroso. Não ostentava jóias, para além de uma aliança de casamento fina, e trazia muito pouca maquilhagem. O cabelo louro estava caído e as suas feições clássicas pareciam amenizadas, mais vulneráveis.
- Senhor Delaney - disse ela, voltando-se para ele -, aquela lista de pacientes que lhe forneci foi de algum préstimo para si?
- De um préstimo imenso. As pessoas estão a ser investigadas.
- Espero que não lhes tenha dito que fui eu que lhe dei os nomes?
- Claro que não. Limitámo-nos a referir que estávamos a interrogar todos os pacientes do seu marido, o que é verdade, e eles aceitaram a explicação.
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- Fico contente por sabê-lo. Ainda não me sinto muito em paz com a minha consciência por ter escolhido essas seis pessoas, mas desejava ajudar da melhor maneira que pudesse. Acha que algum deles pode ter cometido o acto?
- Penso que todos eles têm potencialidades que lhes permitiriam assassinar. Mas, enfim, muitas das pessoas consideradas como normais o poderiam fazer, também.
- Ainda não percebi muito bem como é que os senhores fazem para investigar as pessoas - observou Diane com uma pequena risada confusa. - Interrogam-nas, imagino.
- Oh, sem dúvida. E aos seus familiares, amigos, vizinhos, patrões e daí por diante. Voltamos até junto delas várias vezes, fazendo sempre as mesmas perguntas, tentando detectar discrepâncias.
- Parece um trabalho enfadonho.
- Não - disse ele -, não é.
- Edward tem a paciência de um santo - comentou Mónica.
- E a sorte de um diabo - acrescentou Delaney. - Espero. A médica riu delicadamente.
- A sorte tem realmente alguma coisa a ver com a detecção de um criminoso?
- Por vezes - disse ele, anuindo. - Normalmente é uma questão de bater a portas suficientes. Mas de vez em quando a sorte e o acaso dão as mãos e deparamos com uma oportunidade inesperada. O criminoso não pode controlar a sorte, pois não?
- Mas isso não funciona também no sentido contrário? Quero dizer, a sorte não favorece, de vez em quando, o criminoso?
- Ocasionalmente - comentou Delaney. - Mas o criminoso que dependesse desse factor, de esperto não teria nada. "Os esquemas mais bem montados..." e daí por diante.
Virou-se para Mónica.
- Quem foi que disse isto? - perguntou-lhe, sorrindo.
- Shakespeare? - alvitrou ela.
- Robert Burns - disse Delaney. - Shakespeare não disse tudo.
Encarou a Dra. Diane Ellerbee.
- Agora é a sua oportunidade. Quem escreveu: "Oh, que teia emaranhada tecemos, quando primeiro nos exercitámos em enganar!"
- Essa foi de Shakespeare - disse ela.
- Sir Walter Scott - informou ele, sorrindo. - Disse que tinha alguma coisa para me comunicar, não foi, doutora?
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- Oh, provavelmente vai pensar que é tolice minha - observou Diane -, mas tem estado a preocupar-me, de modo que pensei em lhe dizer, apesar disso. A primeira vez em que o senhor e o sargento Boone me foram ver, fizeram-me uma série de perguntas, às quais respondi o melhor que pude. Depois de ter saído, tentei recordar-me de tudo o que dissera, para me certificar de que não tinha, sem querer, prestado alguma informação incorrecta.
Fez uma pausa.
- E? - inquiriu Delaney.
- Bem, provavelmente não tem significado nenhum, mas quando me perguntou se tinha notado alguma modificação em Simon no decorrer dos últimos seis meses, um ano, eu respondi que não. Mas depois de reflectir mais cuidadosamente no assunto, cheguei à conclusão de que houve uma alteração. Talvez se tenha processado de forma tão gradual que realmente não me dei conta dela.
- Mas agora sente que houve uma modificação? - quis saber Delaney.
- Sim, sinto. Pensando neste último ano que passou, dou-me conta de que Simon se tornara distante e preocupado, são os melhores adjectivos que encontro para o descrever. Ele andara muito preocupado com os seus pacientes e na altura pensei que se tratava apenas de excesso de trabalho. Mas é verdade, havia qualquer coisa de diferente nele. Não me passou pela cabeça que tivesse algum significado, mas fiquei preocupada por não lhe ter prestado uma informação estritamente rigorosa, portanto achei melhor dizer-lho.
- Acho que fez muito bem - disse Delaney com gravidade.
- Tal como a doutora, também eu não sei se terá algum significado, mas os pormenores mais insignificantes ajudam.
- Pronto! - exclamou Diane Ellerbee, sorrindo, radiosa. Agora sinto-me melhor, tirei esse peso da consciência.
Acabou de beber o seu gim com vodca, colocou o copo de lado e levantou-se. Estendeu a mão a Mónica.
- Muito obrigada por me ter deixado dar uma saltada aqui disse. - Tem uma casa adorável. Espero que os dois venham um dia até Brewster para conhecer o nosso sítio. No Inverno não está no seu melhor, mas Simon e eu trabalhámos tanto para o transformar em algo de especial que eu gostaria que o vissem. Acham que têm possibilidade de lá dar uma saltada?
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- Teremos muito gosto - disse Mónica prontamente. Obrigada.
- Esperemos por um fim-de-semana em que não esteja previsto nenhum temporal - sugeriu Diane Ellerbee, rindo. O primeiro sábado bonito, está bem?
- Não temos carro - disse Delaney. - Importar-se-ia que o sargento Boone e a mulher nos conduzissem?
- Importar? Adoraria! Tenho uma cozinheira maravilhosa, e Simon e eu guardámos alguns vinhos óptimos. Gosto muito de ter companhia e, para falar com franqueza, aquilo lá em cima agora é muito solitário. Portanto, planeemos alguma coisa em conjunto.
- Quando quiser - concordou Mónica. - Lamento que tenha de se retirar tão cedo. Conduza com cuidado.
- Sou sempre muito cautelosa a guiar - respondeu a Dra. Ellerbee com ligeireza. - Boa noite a todos.
Delaney fechou e trancou a porta da frente depois de ela sair.
- Que mulher inteligente! - comentou Mónica quando ele voltou à sala de estar. - Não achas, Edward?
- Sem dúvida nenhuma.
- Gostavas de ver a casa que ela tem em Brewster, não gostavas?
- Muito. Os Boone irão connosco até lá, de carro. Será um dia diferente.
- Relativamente à alteração que ela disse ter notado no marido, isso quer dizer alguma coisa?
- Não faço a menor ideia.
- Ela é mesmo bonita, não é?
- Tão bonita - observou Delaney solenemente -, que me assusta.
- Muito obrigado pela parte que me toca, malvado - refilou Mónica. - Pelos vistos eu não te assusto.
- Obviamente - disse ele, dirigindo-se para a porta que dava para o gabinete de trabalho.
- Eh - chamou Mónica -, pensei que esta noite não ias trabalhar.
- É só um bocadinho - disse ele, franzindo o sobrolho. Quero verificar umas coisas.
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Capítulo décimo sétimo
O detective Benjamim Calazo estava a um mês da reforma e achava a perspectiva detestável. Vinha de uma família de polícias. Seu pai fora agente, seu irmão mais novo era-o, e tivera dois tios também na corporação. O Departamento da Polícia de Nova Iorque não era apenas um emprego, era uma vida.
Calazo não pescava, jogava golfe ou coleccionava selos. Não tinha passatempos absolutamente nenhuns, nem interesses importantes fora do Departamento. Que raio ia ele fazer: mudar a mulher para uma casa móvel, levá-la para Lakeland, na Florida, e jogar shuffleboard (1) durante o resto dos seus dias?
O caso Ellerbee parecera uma boa maneira de coroar a sua carreira. Já trabalhara anteriormente com o sargento Boone, e sabia que era um tipo às direitas. Além disso, o pai de Boone fora um polícia de rua, morto no cumprimento do dever. Calazo fora ao funeral, e aquilo eram coisas que não se esqueciam.
O detective pedira para ficar com Isaac Kane pela razão que apresentara: tinha um sobrinho que era atrasado mental e acreditava saber como lidar minimamente com crianças que padecessem dessas deficiências. Calazo tinha três filhas casadas e, por vezes, interrogava-se se estas não seriam atrasadas quando era obrigado a jantar com os genros - um trio de falhados, na opinião de Benny; nenhum deles era polícia.
O seu primeiro encontro com Isaac Kane correra razoavelmente bem. Calazo ficara sentado a seu lado durante quase três horas, no Centro Comunitário, admirando as paisagens a pastel do jovem e falando negligentemente disto e daquilo.
De vez em quando, Calazo lançava uma pergunta acerca do Dr. Simon Ellerbee. Isaac não mostrava hesitações ao responder, e a questão não parecia perturbá-lo. Contou ao detective muitas das coisas que dissera a Delaney e a Boone - o que não era grande coisa.
O rapaz não deu mostras de nenhuma confusão até Calazo lhe dirigir perguntas acerca das suas actividades na noite do crime.
- Era sexta-feira, Isaac - disse Calazo. - Que fez nessa noite?
* (1) Jogo em que se impelem discos de metal ou madeira com uma pá sobre uma superfície dividida por linhas. (N. da T.) *
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- Fiquei aqui até o Centro fechar. Pergunte à senhora Freylinghausen; ela lhe dirá.
- Está bem, hei-de perguntar-lhe. E depois de o Centro fechar, que fez então?
- Fui para casa.
- Ah, você vive mesmo aqui à esquina, não vive, Isaac? Portanto deve lá ter chegado por volta das nove e cinco. Está correcto?
Kane não olhou para o detective, concentrando-se antes no acrescento de folhagem a uma árvore da paisagem.
- Bem, hum, provavelmente foi mais tarde. Dei uma volta por aí.
- Estava uma noite muito chuvosa, Isaac. Uma tempestade forte. Não deu uma volta por aí com aquele tempo, pois não?
- Não me lembro! - exclamou Kane, quebrando um dos paus de giz e atirando-o para o lado, furioso. - Não percebo por que razão continua a fazer-me essas perguntas e não volto a responder a elas. O senhor é só... - começou a gaguejar ininteligivelmente.
- Está bem - disse o detective suavemente -, não tem de responder a mais perguntas. Eu apenas pensei que queria ajudar-nos a descobrir a pessoa que matou o doutor Simon.
Kane permaneceu em silêncio.
- Eh - disse o detective -, estou a ficar com fome. E você? Há uma casa de pronto-a-comer à esquina. Que tal eu ir lá buscar um par de hamburgers e café para nós e trazê-los para aqui?
- Okay - concordou Isaac Kane.
Calazo trouxe a comida e os dois almoçaran juntos. Uma velhota aproximou-se deles, na sua cadeira de rodas, e pôs-se a olhar para o detective com olhos esfomeados. Ele deu-lhe o seu pedaço de picles de conserva. Não voltou a fazer referência a Ellerbee, mas levou Kane a falar dos seus pastéis e da razão por que só desenhava paisagens.
- São paisagens bonitas - explicou Isaac. - Não como as coisas que aqui temos à nossa volta. Tudo é limpo e tranquilo.
- Claro que é - observou o detective. - Mas reparei que não lhes insere pessoas.
- Não - disse Kane, abanando a cabeça. - Nada de pessoas. Estes lugares pertencem-me.
Calazo foi falar com a Sra. Freylingshausen. Esta confirmou que Isaac Kane vinha todos os dias e ficava ali até o Centro Comunitário fechar as portas, às nove da noite. O detective
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agradeceu-lhe e deu a volta à esquina, seguindo para a casa de Kane a fim de ver quanto tempo levava a fazer o percurso. Mesmo em passada lenta, levou menos de dois minutos.
Kane vivia com a mãe numa cave de um prédio de apartamentos em mau estado da zona ocidental da Rua 78. Ficava ao lado de um feio armazém de mobílias com portas de aço ferrugento que davam entrada a camiões, e janelas escuras nos andares de cima. Ambos os edifícios estavam cobertos de inscrições e tinham sacos de plástico pretos empilhados na frente. Alguns haviam rebentado e o seu conteúdo espalhara-se.
Benjamim Calazo conseguia compreender porque Isaac Kane só tinha vontade de desenhar lugares bonitos, limpos e tranquilos.
Desceu cautelosamente os três degraus a cair aos bocados que iam dar a uma entrada em mau estado. O nome que se encontrava por cima da campainha mal se via. Tocou e ficou à espera. Nada. Voltou a tocar - bem prolongadamente, daquela vez. Uma cortina de renda esfarrapada foi puxada para o lado de uma janela suja; fitando-o, via-se uma gárgula.
Calazo ergueu a sua identificação até esta ficar bem de frente para a janela. A mulher tentou ver do que se tratava, depois desapareceu. Ele aguardou, esperançadamente. Passado um momento ouviu o som de fechaduras a serem abertas, de uma corrente a ser retirada. A porta abriu-se.
- Senhora Kane - perguntou?
- Sim - respondeu a mulher com uma voz toldada pelo uísque. - Que raio quer você?
Uma bebida, pensou ele imediatamente. Mais nada.
- Detective Benjamim Calazo, do Departamento da Polícia de Nova Iorque - disse. - Gostaria de falar com a senhora acerca do seu filho.
- Ele não está cá.
- Eu sei onde ele está - observou Calazo pacientemente. Acabei de estar com ele no Centro. Quero falar consigo acerca dele.
- Que foi que ele fez agora? - perguntou ela.
- Nada, que eu saiba.
- Ele não regula bem da cabeça. Não é responsável por nada.
- Olhe - disse o detective -, seja simpática. Não me faça estar aqui de pé ao frio. Que tal deixar-me entrar para lhe fazer algumas perguntas. Não demoro muito.
A mulher afastou-se para o lado, de má vontade. O detective entrou, fechou a porta e tirou o chapéu. A casa cheirava a urinol
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de metropolitano. Só que ali a urina era outra. No chão via-se uma garrafa semi vazia de uísque, com um monte de copos de papel ao lado. Ela reparou que ele observava o facto.
- Apanhei uma constipação - disse. - Tenho estado doente.
- Sim.
Ela tentou sorrir. O seu rosto fazia lembrar uma almofada esburacada.
- Quer um gole? - perguntou ela.
- Não, obrigado. Mas beba a senhora.
Ela sentou-se no sofá cheio de protuberâncias e serviu-se de uma bebida, que engoliu de um trago. Amachucou o copo com a mão, atirando-o depois, negligentemente, para o escavacado cesto de papéis em palhinha. Foi na mouche.
- Boa pontaria - comentou Calazo.
- Tenho muita prática - respondeu ela, mostrando os dentes amarelados.
- O senhor Kane está? - perguntou o detective. - O seu marido?
- Está. Algures nesse mundo. Provavelmente em Hong Kong, neste momento, o filho da puta... Que fique por lá.
- Quer dizer que a senhora e o seu filho vivem sozinhos?
- E que tem?
- Vive da Assistência?
- Assistência financeira - emendou ela altivamente. Temos direito a ela. Eu estou incapacitada e Isaac não é capaz de manter um emprego. O senhor é inspector?
- Não da Assistência Social - disse Calazo. - O seu filho vai ao Centro todos os dias?
- Penso que sim.
- Não tem a certeza?
- Ele já é crescido; pode ir onde muito bem lhe apetecer.
- A que horas é que ele sai para o Centro?
- Não sei; durmo até tarde. Quando me levanto, ele já cá não está. Que raio vem a ser isto?
- Não está a dormir quando ele volta do Centro, pois não? A que horas é que ele chega aqui?
Ela perscrutou-o por entre os olhos semicerrados, e ele apercebeu-se de que ela estava a imaginar o número de mentiras com que poderia safar-se. Não que houvesse alguma necessidade de mentir, mas aquela mulher nunca diria a verdade a nenhuma autoridade desde que o pudesse evitar.
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Empatou um pouco tomando nova bebida, amachucando o copo de papel e atirando-o depois para o cesto de papéis. Daquela vez, falhou a pontaria.
- Não - disse ela finalmente. - Não estou a dormir quando é o princípio da noite. Ele chega a casa a horas diferentes.
- Como, por exemplo?
- Depois das nove horas.
- Quanto tempo depois das nove?
- Varia.
- Pois bem, vou dizer-lhe do que se trata - disse o velho detective em voz inexpressiva. - Trata-se de um assassínio, e se a senhora continua a tomar-me por parvo, recambio-a para a cela dos bêbados a tal velocidade que nem sentirá os pés a tocar no chão. Poderá ficar a secar com todas aquelas pessoas estupendas que por lá estão, até resolver responder às minhas perguntas como deve ser. É o que prefere?
O rosto contorceu-se-lhe e começou a chorar.
- Não tem o direito de me falar assim.
- Falo consigo da maneira que muito bem me agradar - disse Calazo friamente. - Para mim, você não vale nada.
De repente, ele pôs-se de pé, agarrou-lhe na garrafa de uísque e dirigiu-se para o lava-loiça imundo de uma kitchenette tão malcheirosa que quase o fez vomitar.
Ela pôs-se de pé com um uivo.
- Que está a fazer? - berrou.
- vou deitar-lhe a bebida pelo cano abaixo - disse ele. Depois passo revista a esta espelunca e reduzo a cacos todas as garrafas que encontrar.
- Por favor - implorou ela -, não faça isso. Eu não posso. O cheque não chega para... sou uma velha. Para que quer o senhor magoar uma velha?
- O que você é, isso sim, é uma velha bêbada - disse o detective. - Uma velha bêbada e malcheirosa. Não admira que o seu filho saia de casa todos os dias. - Ergueu a garrafa de uísque por cima do lava-loiças. - A que horas chega ele a casa à noite?
- Às nove. Poucos minutos depois das nove.
- Todas as noites?
- Sim, todas as noites.
Ele inclinou a garrafa, entornando algumas gotas. Ela aguardou.
- Excepto às sextas-feiras - acrescentou rapidamente. -
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Nessas noites vem mais tarde. Chega por volta das dez, dez e meia, mais ou menos.
- Por que razão chega ele mais tarde às sextas-feiras à noite? Onde é que ele vai?
- Não sei. Juro por Deus que desconheço.
- Não lho perguntou?
- Já o fiz, Deus sabe que é verdade, mas ele não me disse. Ele fitou-a durante um bocado, depois entregou-lhe a garrafa
de uísque. Ela recebeu-a com mãos trementes, aconchegando-a de encontro ao peito como se de um bebé se tratasse.
- Obrigado pela sua colaboração, senhora Kane - disse o detective Calazo.
No exterior, foi até à Broadway, respirando profundamente para tentar livrar-se do odor da casa sebenta donde acabara de sair. Não era a pior que já tivera ocasião de cheirar ao longo dos anos em que estava na Polícia, mas era suficientemente má.
Encontrou um quiosque com telefone e ligou para a mulher.
- vou jantar a casa, querida - informou -, mas terei de voltar a sair durante mais um pouco de tempo. Queres que leve alguma coisa da rua?
- Estamos a comer sable (1) fumado - disse ela. - Ainda há um bocadinho de mostarda no frasco, mas talvez seja melhor trazeres um novo. Da picante, que tu gostas.
- Okay - disse ele alegremente. - Até já.
Nessa noite, reconfortado por uma boa e sólida refeição (sable, ervilhas cozidas e chucrute), Calazo voltou à Rua 79 e à Broadway eram umas oito e trinta. Andou pelo local com o carro, à procura de sítio para estacionar, e acabou por parar em frente do passeio do armazém que ficava ao lado da casa dos Kanes, ignorando um letreiro enorme que dizia: PROIBIDO PARAR OU ESTACIONAR A QUALQUER HORA.
Fechou o carro, bem-disposto, e foi a pé até ao Centro Comunitário, colocando-se do outro lado da rua. Movimentou-se de um lado para o outro a fim de impedir que os pés ficassem entorpecidos, mas não desviou os olhos das janelas iluminadas do Centro mais do que alguns segundos.
O médico-legista dissera que Simon Ellerbee morrera às nove da noite. Mas essa afirmação baseava-se numa estimativa; podia ter sido meia hora antes ou depois. Talvez mais.
* (1) Peixe escuro, comestível, característico das águas norte-americanas do Pacífico. (N. do E.) *
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Portanto, se Isaac Kane tivesse deixado o Centro às nove horas daquela noite de sexta-feira, podia ter atravessado a cidade em direcção à zona ocidental da Rua 84, dado os golpes esmagadores no crânio de Ellerbee, estando posteriormente em casa cerca das dez, dez e meia. com toda a facilidade. Benny Calazo não achava que o garoto o tivesse feito, mas sem dúvida que teria podido perpetrar o acto.
As luzes do Centro começaram a apagar-se. Calazo encostou-se a um marco de correio, mastigando a ponta de um cigarro apagado, e aguardou. Saíram muitas pessoas, uma em muletas, duas servindo-se de bengalas. Depois apareceu Isaac.
O detective atravessou a rua, indo atrás dele. Não levou muito tempo. Isaac foi directamente para casa. Calazo meteu-se no carro estacionado e ficou de vigia. As dez e meia ainda lá continuava, gelado. Depois foi para casa.
O facto passou-se numa quarta-feira à noite. O detective gastou a manhã e tarde de quinta-feira a fazer perguntas sobre Kane na clínica onde este encontrara o Dr. Ellerbee. Recusaram-se a mostrar-lhe o arquivo de Kane, mas Calazo falou com várias pessoas que o conheciam.
Confirmaram que Isaac era, normalmente, um rapaz calado, pacato, mas de tempos a tempos tinha acessos incontroláveis de violência, durante os quais atacava médicos e enfermeiras. Uma vez tinha sido necessário dar-lhe um sedativo à força.
Nesse mesmo dia, à noite, Calazo voltou a desenvolver a mesma rotina: seguiu Kane do Centro até casa, ficando depois à espera a fim de ver se ele voltava a sair do apartamento. Nada.
Na sexta-feira, ao princípio da noite, retomou o seu posto um pouco mais cedo, calculando que se alguma coisa fosse acontecer, seria nessa noite.
Isaac saiu do Centro alguns minutos antes das nove. Calazo examinou-o bem do outro lado da rua. Ia todo embonecado, com um boné de tweed, um blusão limpo, jeans. Levava um pacote debaixo do braço. Parecia um dos trabalhos a pastel, embrulhado em papel castanho.
Virou na direcção oposta à de sua casa, e Calazo foi atrás dele. Seguiu Kane rumo à parte alta da cidade, atravessou a Broadway para a Rua 83, depois para ocidente, em direcção ao rio. Isaac cruzou a West End Avenue e entrou numa casa de aspecto bem conservado que ficava a meio do bloco.
O detective abrandou a velocidade, passando em frente da habitação para tomar nota do endereço. Kane não estava no
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vestíbulo nem no corredor. Calazo foi até ao fim da rua, acendeu um cigarro e caminhou pesadamente de um lado para o outro para manter a circulação a funcionar. Pensou nos quilómetros que palmilhara daquela maneira ao longo da sua vida de polícia. Bem, no mês seguinte, estaria tudo terminado.
Kane saiu do edifício cerca das dez e um quarto. Já não trazia o embrulho. Calazo seguiu-o de volta à casa da Rua 78. Depois de Isaac entrar, também o detective foi para sua casa.
Na manhã seguinte saiu cedo, indo estacionar o carro perto do prédio da parte ocidental da Rua 83, faltavam alguns minutos para as oito horas. Calculou que a maior parte das pessoas estaria em casa àquela hora, já que se tratava de um sábado. Entrou no vestíbulo e examinou a placa das campainhas. Havia doze apartamentos.
Começou a tocar a partir do topo, indo por ali abaixo. De cada vez que atendiam através da caixa do intercomunicador e alguém perguntava "Quem é?", Calazo respondia: "Gostaria de falar consigo acerca de Isaac Kane." Recebeu respostas do género: "Quem?" - "Nunca ouvi falar dessa pessoa." - "Vá bugiar."
- "Enganou-se no apartamento." E muitos desligaram.
Até que carregou no botão do 4B. Uma voz de mulher perguntou: "Quem é?" E o detective respondeu: "Gostaria de falar consigo acerca de Isaac Kane." E a mulher replicou ansiosamente: "Aconteceu-lhe alguma coisa?" Os nomes que se viam em frente do botão eram os do Sr. e Sra. Judson Beele e de Evelyn Packard.
- Daqui fala o detective Benjamim Calazo do Departamento da Polícia de Nova Iorque - disse ele com lentidão e em voz bem audível. - É importante que fale com a senhora sobre um assunto que diz respeito a Isaac Kane. Importa-se de me deixar entrar, por favor? Mostrar-lhe-ei a minha identificação.
Fez-se um silêncio prolongado. Calazo aguardou pacientemente. Era bom nisso. Então, o fecho da porta abriu-se com um zumbido e ele entrou, subindo as escadas até ao quarto andar.
Havia um homem à sua espera em frente do apartamento 4B, no corredor. Estava de robe de flanela e chinelos de quarto. Um tipo com óculos sem aro, uma franja penugenta a rodear-lhe o crânio pálido, uns pelitos por cima do lábio superior que se esforçavam por formar um bigode sem serem muito bem sucedidos. Calazo teve a impressão de que um vento mais forte poderia levar aquele indivíduo pelo ar.
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Apresentou a sua identificação e o homem examinou cuidadosamente a carteira antes de a devolver.
- Chamo-me Judson Beele - disse nervosamente. - Que vem a ser tudo isto? Falou de Isaac Kane à minha mulher.
- Posso entrar por alguns minutos? - perguntou o detective delicadamente. - Não demora muito.
Na sala de estar confortável e aquecida encontravam-se duas mulheres. Ambas estavam de robe e pantufas. Uma delas, loira e de rosto vincado, encontrava-se de pé, fumando um cigarro com uma boquilha longa. A outra, mais jovem e de feições mais suaves, estava numa cadeira de rodas. Tinha um xaile de lã no colo, a tapar-lhe as pernas.
Beele não procedeu a apresentações. A loira era Teresa, sua mulher. A rapariga na cadeira de rodas era Evelyn Packard, irmã da mulher. Calazo inclinou-se ligeiramente diante das duas mulheres com um sorriso. À semelhança da maioria dos detectives veteranos, sabia quando devia desempenhar o papel de mauzinho ou o de bonzinho. Apercebeu-se de que o primeiro seria o mais indicado para utilizar com o pessoal daquela casa. Aquela esposa tinha todo o ar de ser um osso duro de roer.
- Peço que me desculpem por vir incomodar a esta hora - disse gentilmente. - Mas trata-se de uma questão de alguma importância que diz respeito a Isaac Kane.
- Isaac está bem? - inquiriu uma Evelyn Packard toda trémula. - Não sofreu nenhum acidente, pois não?
- Oh, não - respondeu Calazo -, nada que se pareça. Tanto quanto sei, encontra-se bem. Posso sentar-me um pouco?
- com certeza - disse a esposa. - Deixe-me ver o seu casaco e o chapéu, íamos agora mesmo tomar o nosso café. É servido de uma chávena?
- Seria óptimo. Simples, por favor.
- Judson - disse ela -, traz o café.
Calazo teceu alguns comentários sobre o tempo e sobre o atraente lar que tinham. Entretanto, estava a estudá-los, a adivinhar as tensões que existiam ali dentro, ao mesmo tempo que observava o apartamento. A primeira coisa em que reparou foi nos cinco trabalhos a pastel de Isaac que se viam nas paredes. Alguém os emoldurara com muito gosto.
- Belo café - comentou. - Obrigado. Bem, quanto a Isaac Kane... reparo que têm alguns dos seus desenhos aqui. São muito bonitos, não são?
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- São maravilhosos! - exclamou Evelyn. - Isaac é um génio.
A irmã riu com ar trocista.
- Picasso é que ele não é, querida - advertiu. - São até bastante comerciais. Mas notáveis, admito, considerando os seus... os seus antecedentes.
- Tenho andado a pensar em comprar um destes trabalhos - disse o detective. - Importam-se de me dizer quanto é que pagaram por estes? Sem as molduras.
- Oh, não os comprámos - esclareceu Teresa Beele. Foram presentes dados a Evelyn. Isaac está profundamente apaixonado por ela.
- Teresa! - exclamou a irmã, corando. - Sabes que não é verdade.
- É verdade, sim. Vejo muito bem como ele olha para ti.
- Isaac é um rapaz solitário - disse Judson Beele com voz preocupada. - Não me parece que tenha muitos amigos. Evelyn é... - não terminou a frase.
Calazo virou-se para a jovem na cadeira de rodas.
- Como é que o conheceu, menina Packard?
- No Centro. Teresa levou-me lá uma vez, mas eu nunca mais lá quis voltar; é muito deprimente. Mas conheci Isaac e ele perguntou se podia visitar-me.
- Um casal perfeito - murmurou a irmã, ajustando novo cigarro na boquilha comprida.
"Cabra", pensou Calazo.
- E há quanto tempo o conhece, menina Packard?
- Oh, já deve ter feito uns seis meses. Não achas, Judson?
- Mais ou menos - respondeu o cunhado, com um movimento de aquiescência.
Depois, dirigindo-se a Calazo, perguntou:
- Pode dizer-nos a razão de tudo isto?
- Só mais um instante - respondeu o detective. - Ele costuma vir visitá-la todas as sextas-feiras à noite, menina Packard?
- Ele vem fazer-lhe a corte - disse Teresa sarcasticamente, e Calazo apercebeu-se de que teria de fazer muito pouco esforço para odiar aquela mulher.
- Sim - respondeu a jovem na cadeira de rodas -, ele visita-nos às sextas à noite.
- Todas as sextas à noite? Alguma vez faltou? Vem vê-la em alguma outra noite?
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Ela abanou negativamente a cabeça.
- Não. Sempre nas noites de sexta-feira. - Olhou para os outros dois. - Não é verdade?
Concordaram. Isaac só ali ia nas noites de sexta-feira. Já há quase seis meses.
- Estão sempre aqui quando ele vem? - perguntou Calazo ao casal Beele. - Nunca vão a um cinema ou coisa do género?
- Ficamos aqui - respondeu a esposa em tom azedo. - Eu nunca deixaria Evelyn a sós com uma pessoa como aquela. Se considerarmos a sua condição mental, penso que é o melhor que temos a fazer.
- Teresa! - exclamou a irmã com ar zangado. - Isaac sempre se comportou com correcção.
- Mesmo assim, com gente daquela nunca se sabe.
- Olhem - disse Calazo. - Houve um pequeno roubo na casa onde Kane vive. Não foi grande coisa, mas é meu dever investigar o paradeiro de todas as pessoas que vivem no edifício na altura em que o acontecimento teve lugar. Foi há quatro semanas, por volta das nove e meia de uma noite de sexta-feira.
- Ele esteve aqui - assegurou Evelyn pronta e firmemente.
- Não pode ter sido ele porque estava aqui. Além disso, Isaac não seria capaz de nada de semelhante.
- Os três estariam dispostos a jurar que ele se encontrava aqui? - perguntou o detective, fitando um de cada vez.
Anuíram.
Não estava completo. Não ficava absolutamente perfeito. Mas isso nunca acontecia. Havia sempre possibilidades: esquecimento, mentira deliberada, motivos desconhecidos. Mas seria precisa uma centena de anos para ficar a saber tudo, e mesmo assim restariam sempre espaços por preencher, perguntas, dúvidas.
Calazo não se lembrava de um único caso em que todos os pormenores tivessem ficado perfeitamente esclarecidos. Ia-se até muito longe, mas aí decidia-se sobre a preponderância da evidência e do próprio instinto. Havia uma altura em que investigação a mais só servia para empatar: uma perda de tempo.
- Penso que Isaac está ilibado - declarou, levantando-se.
- Claro que está - disse Evelyn Packard resolutamente. Ele é um rapaz limpo, amoroso. Nunca cometeria nenhuma acção menos recomendável.
- Claro - observou a irmã cèpticamente.
O marido desta pestanejou por detrás dos óculos sem aros.
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- Como é que relacionou Isaac connosco? - perguntou Teresa Beele.
- Segui-o até este edifício a noite passada - contou ele. Depois vim cá esta manhã. Toquei a todas as campainhas até descobrir alguém que o conhecesse.
- Caramba - troçou ela -, mas que esperto que é.
- De vez em quando - ripostou ele, fitando-a friamente.
- Judson - disse a mulher -, trás o casaco e o chapéu deste senhor polícia.
Calazo voltou para casa e gastou a tarde de sábado a trabalhar no relatório a apresentar a Boone. Escreveu que, na sua opinião, Isaac Kane podia ser ilibado, não se justificando levar a cabo mais nenhuma investigação.
Quando chegou ao fim, releu o que tinha escrito e reflectiu indolentemente na relação que deveria existir entre Teresa e Jason Beele, entre Evelyn Packard e Isaac Kane, entre Teresa e a irmã e entre Evelyn e o cunhado.
- Sabes, querida - disse à mulher -, a vida não passa de um melodrama estuporado.
- Gostaria de que não utilizasses palavras dessas - observou ela.
- Melodrama? - inquiriu ele inocentemente. - Que mal tem a palavra melodrama?
- Oh, tu! - exclamou ela. Ele riu-se, arreliando-a.
- Que temos para o jantar?
Calazo não era o único a pensar no jantar de sábado. O detective Timothy Hogan estava a começar a interrogar-se sobre se alguma vez mais voltaria a comer.
Fora um longo dia. Hogan estava estacionado em frente do arranha-céus em que Ronald J. Bellsey morava, desde as oito da noite, e já lá ia quase uma hora. Precisamente no momento em que pensou em dar uma escapada rápida para tomar um café e comer um donut, viu o Cadillac branco de Bellsey sair da garagem subterrânea.
O indivíduo ia sozinho na viatura e Hogan foi a segui-lo até ao matadouro da parte ocidental da Rua 18. Bellsey estacionou o carro e entrou no edifício. Hogan não fazia a menor ideia do tempo que ele iria demorar ali, mas calculou que seria uma boa ocasião para falar com a mulher de Bellsey sem o marido desta estar presente.
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Hogan não era um grande cérebro e tinha a noção desse facto. Portanto, esforçava-se ao máximo por seguir as regras, na perspectiva de que tal o impediria de se meter em apuros. Nunca havia acontecido, mas nenhuma das parvoíces por si cometida tinha sido suficientemente séria para o meter em maus lençóis. Até ver.
Não era estritamente verdade que Hogan fosse estúpido, mas faltava-lhe imaginação e era pouco inclinado a tomar iniciativas diferentes na investigação. O outro problema residia no facto de não ter nada aspecto de detective, pois era baixo, pesadão, calvo e com uma voz estridente. A sua terceira mulher chamava-lhe Dick Tracy, alcunha a que Hogan não achava graça nenhuma.
Assim que Bellsey deu mostras de se ter posto ao trabalho, o detective voltou pelo mesmo caminho, detendo-se em frente do arranha-céus onde iria interrogar a mulher daquele. Podia ter aproveitado para parar e tomar o pequeno-almoço na altura, mas a ideia não lhe ocorreu. Hogan tinha dificuldade em pensar em duas coisas ao mesmo tempo.
A Sra. Lorna Bellsey deixou-o entrar no apartamento sem levantar grandes objecções. Ficou tão atrapalhada que nem sequer pediu para lhe ver a identificação. Hogan fazia tenções de carregar bastante sobre ela. Nem sequer tirou o chapéu, com receio que o seu crânio nu atenuasse a imagem do detective duro e experimentado.
Ela era uma mulher pequenina, de finos cabelos grisalhos e olhos amedrontados. Vestia algo desprovido de feitio, com mangas compridas e gola alta, que lhe escondia o corpo com eficácia. Hogan imaginou como seria ela na cama, e calculou que devia ser parecida com a sua segunda mulher que, durante o sexo, dizia coisas como: "Aquele tecto está a precisar de ser pintado."
- Olhe, senhora Bellsey -, principiou, fitando a tímida mulher com ar carrancudo -, sabe por que razão estou aqui. O seu marido encontra-se envolvido no assassínio do doutor Ellerbee e nós não acreditamos que ele tenha estado em casa na noite em que afirma que esteve.
- Esteve sim - disse ela nervosamente -, de verdade. Eu fiquei aqui ao pé dele.
- Entre que horas?
- Toda a noite.
- Ele não chegou a sair nem uma única vez?
- Não - disse ela, baixando os olhos. - Nem uma vez. Esteve sempre aqui.
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- Foi ele que a mandou dar essas respostas?
- Não, é a verdade.
- Ele disse-lhe que se não apoiasse as suas afirmações lhe dava uma tareia?
- Não - respondeu ela, mostrando finalmente algum lampejo de espírito -, não é nada disso.
- Como queira. Estamos a investigar os pontos de paradeiro do seu marido, os bares aonde ele vai bater em desconhecidos. Se descobrirmos que ele não esteve em casa nessa noite, sabe o que é que lhe vamos fazer a si?
Ela ficou em silêncio, as mãos crispadas uma na outra, os nós dos dedos a ficarem brancos.
- Vá lá, senhora Bellsey - disse Hogan em voz alta, fanfarrona -, não complique as coisas para si. Ele saiu naquela noite, não saiu?
- Não sei - respondeu ela em voz baixa, trémula.
- Que quer dizer com isso? A mulher não respondeu.
- Será que vou ser obrigado a levá-la para a esquadra? inquiriu o detective. - Prendê-la como cúmplice? Obrigá-la a atravessar o átrio de mãos algemadas? Metê-la numa cela imunda cheia de prostitutas e toxicómanas? Vá lá, explique-me o que quer dizer com essa de que não sabe se ele saiu?
- Estava com dores de cabeça - respondeu ela debilmente.
- Uma enxaqueca. Fui para a cama cedo.
- A que horas?
- Creio que foi por volta das oito e meia.
- Na noite em que Ellerbee foi morto?
- Sim.
- Nessa altura o seu marido estava cá?
- Sim.
- A senhora foi para o quarto.
- Sim.
- Fechou a porta?
- Sim. Ele estava a ver televisão.
- Adormeceu?
- Bem, tomei o meu remédio. Torna-me muito sonolenta.
- Portanto, dormiu?
- Mais ou menos.
- A que horas se levantou?
- Por volta das onze, para ir à casa de banho. Ao dizer esta última frase, não olhou para ele.
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- Às onze - repetiu Hogan. - O seu marido estava em casa nessa altura?
- Sim, estava - respondeu ela em tom de desafio. - Vi-o.
- Mas não lhe pôs a vista em cima entre as oito e meia e as onze, pois não?
Ela começou a chorar, pequenas lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces.
- Não me grite - pediu ela, soluçando. - Por favor.
- Responda à minha pergunta. Caso contrário levo-a comigo para a esquadra.
- Não! - gritou-lhe ela. - Não o vi entre as oito e meia e as onze.
"Apanhei-o!", pensou o detective Timothy Hogan, experimentando uma satisfação selvagem.
Conduziu o carro de novo para a Rua 18, deliciado com a sua façanha e esperançado de não ter perdido Bellsey e ficado com o seu triunfo arruinado. Mas o Cadillac branco continuava em frente do matadouro. Hogan estacionou perto, num ponto a partir do qual podia vigiar a porta. Urinou para dentro de um pacote de cartão de leite vazio que levava sempre consigo para alguma emergência que pudesse surgir.
Ficou ali sentado o dia todo, sentindo-se cada vez mais esfomeado e amaldiçoando o facto de não ter comprado uma sanduíche, uma barra de chocolate, café, qualquer coisa. Fumou quase um maço de cigarros, mas o filho da mãe continuava a não sair.
- Que diabo está ele afazer ali dentro? - disse o detective em voz alta.
Tendo feito este desabafo, começou a sonhar com o que um matadouro continha no seu mercado de carnes: bifes, costeletas, galinhas. Pensar naquilo quase o fez desmaiar de tanta raiva.
Cabeceou algumas vezes, mas quando despertava, sobressaltado, via que o Cadillac continuava no sítio. Hogan tentou afastar o sono recordando o interrogatório feito à Sra. Lorna Bellsey e planeando a maneira como iria apresentá-lo no relatório: disfarçar as ameaças, evidenciar a subtileza das suas perguntas.
Eram quase oito e quarenta e cinco quando Bellsey saiu do matadouro, acompanhado de mais dois sujeitos. Deixaram-se ficar durante algum tempo em frente do edifício, dizendo piadas, rindo, empurrando-se uns aos outros. Hogan teve dúvidas de que eles não estivessem estado a beber. Por fim, separaram-se. Bellsey meteu-se no seu carro e arrancou. Hogan seguiu-o pela
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8ª Avenida acima, fazendo por não se distanciar muito no meio do tráfego intenso, não fosse perdê-lo depois de estar tantas horas sentado à espera dele e quase a morrer de fome.
Bellsey virou à esquerda na Rua 53 e seguiu em direcção ao rio, atravessando um terreno de uma fábrica às escuras e de um armazém da área. Onde diabo iria ele?, pensou Hogan, intrigado, deixando-se ficar um pouco mais afastado à medida que o trânsito diminuía. O Cadillac virou na 11ª Avenida e passou dois quarteirões, abrandando. Aí, Bellsey encontrou um lugar para estacionar e parou.
Lindo, pensou Hogan. Era um lindo bairro, para quem tinha o seguro de vida em dia.
Continuou em frente, devagar, e viu o indivíduo entrar numa taberna. A iluminação da rua não era das melhores, mas Hogan conseguiu vislumbrar o nome do lugar. "RABO DA BALEIA". Encantador. Porque não lhe chamavam "Moby Dick" e resolviam o assunto?
Estacionou e voltou a pé para trás. As janelas estavam subidas, pelo que ele não tinha possibilidades de ver o que estava do lado de dentro, no entanto parecia-lhe tratar-se de um bar de marinheiros, de uma espelunca onde se fervia em pouca água, e onde uma pessoa que pedisse um vermute extra com duas azeitonas era olhada com repugnância e atirada para o meio da rua.
Não sabia se havia de entrar, se esperar no carro até que Bellsey saísse ou apenas dar o dia por terminado e voltar para casa. O que o levou a tomar uma decisão foi a grande tabuleta que se via à porta: SALSICHAS, "HAMBURGERS", CACHORROS-QUENTES, SANDUÍCHES AQUECIDAS. Entrou.
As suas previsões confirmaram-se: era um autêntico recinto de sangue. Paredes cobertas de azulejos brancos a luzir de gordura. Um antiquado balcão de mogno de um lado, cadeiras e reservados do outro. Um televisor suspenso por correias do tecto revestido a alumínio. Máquina de discos e de cigarros. Ao fundo, uma grelha sobre a qual um preto gordo deixava escorrer o suor, banhando as salsichas.
Hogan viu Bellsey ao balcão a falar com outros dois sujeitos. Tudo indicava que estavam todos a tomar doses duplas de bebidas. O detective esgueirou-se para um dos reservados vazios que ficavam do outro lado da sala e iniciou novo maço de cigarros. Olhou em volta.
Apesar de a noite ainda não ir muito adiantada, já ali se via uma boa multidão; por volta da meia-noite estaria provavelmente a
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abarrotar. Bellsey era o homem mais bem vestido do bar. Quase todos os outros tinham um ar grosseiro: trabalhadores da construção civil com capacetes de protecção, marinheiros com gorros de malha, a fina-flor da escumalha. Havia um vagabundo de rosto sobre a mesa, a curtir a bebedeira.
Hogan não entendia como um tipo endinheirado como Bellsey frequentava uma espelunca ordinária como aquela, até que viu que a parede que ficava do outro lado do balcão estava coberta de fotografias de pugilistas, emolduradas e autografadas: falecidos, antigos, novos, todos eles de calções e luvas, posando em atitudes de ataque feroz.
Hogan recordou-se de que Jason lhe contara que Bellsey era um ex-pugilista, portanto era natural que passasse por ali com a intenção de tagarelar sobre lutas e lutadores. Os tipos com quem estava a falar, assim como o barman, possuíam o estigma: ombros largos, narizes tortos, orelhas recortadas. Todos eles tinham o ar de quem podia remoer Timothy Hogan e cuspi-lo contra as cordas.
- Faça favor.
Ergueu os olhos, assustado. A seu lado estava uma empregada de mesa de ar desengonçado. Era uma mulher já de certa idade, com as pernas cheias de varizes, apertadas por meias elásticas. Tinha uma verruga enorme no queixo, de onde saíam, espetados, dois pêlos negros.
- Que tipo de cerveja têm? - perguntou ele.
- Bud, Miller, Heinecken.
- Quero uma Bud e um hamburger.
- Okay.
- Traga o hamburger mal passado.
- Se tiver sorte - respondeu ela sorumbaticamente, afastando-se a arrastar os pés.
Hogan comeu dois hamburgers tão mal confeccionados que teria saído dali para fora logo após a primeira dentada, não estivesse ele esfomeado. Até os picles estavam uma desgraça! Como é que uma cozinheira podia estragar uns picles?
Reparou que, naquele momento, Bellsey estava sozinho, a falar com o barman. Hogan levou a segunda garrafa de cerveja e o copo para o balcão, sentando-se num banco próximo. Os dois homens estavam a discutir sobre quem é que tinha a melhor "direita", se Dempsey, se Louis.
Hogan bebeu um gole de cerveja.
- E que tal Marciano? - observou em voz alta.
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Bellsey virou-se lentamente, a fim de o fitar.
- Quem diabo lhe perguntou alguma coisa? - quis saber.
- Estava só a... - principiou o detective.
- Cale essa boca - advertiu o outro homem. - Isto é uma conversa particular.
Se Timothy Hogan possuísse algum senso, teria ficado exactamente ali, terminando a cerveja para depois pagar a conta e sair. Poderia ter reparado que o seu primeiro cálculo estava certo: Bellsey tinha estado a beber naquela tarde, talvez o dia todo, e já estava bastante entornado.
Não se balançava, falava entarameladamente, nem nada que se parecesse, no entanto os seus olhos mostravam-se contraídos e raiados de sangue, e inclinava-se para a frente com o queixo espetado de maneira truculenta. Parecia pronto para subir a um ringue e vencer qualquer adversário.
- Para que raio está você a olhar? - atirou-lhe Bellsey. Seu bocado de merda.
Hogan levou disfarçadamente a mão ao interior do casaco para tocar no coldre. Sabia que o tinha ali, mas queria certificar-se.
- Tenha calma - disse a Bellsey. - Não gosto dessa maneira de falar.
- Bem, então vá-se foder, gorducho - ripostou Bellsey. Se não gosta, leve esse cu para outro lado qualquer.
- Eh, Ron - disse o barman em voz áspera -, acalme-se. Não preciso de mais problemas.
Nessa altura já o bar tinha mergulhado em silêncio. Todos pareciam manter a cabeça baixa, olhando para a sua bebida. Mas não havia nenhum que não estivesse de ouvido à escuta.
- Não há problema, Eddie - disse Bellsey. - Não, deste minúsculo cabeça de merda.
- Senhor - pediu o barman a Hogan -, faça-me um favor: acabe a sua bebida, pague a conta e tente outro bar. Por favor.
Oferecera uma saída ao detective e este, finalmente, teve juízo suficiente para a aceitar. Bebeu o resto da cerveja, pousou uma nota sobre o balcão.
- Que raio de casa tem você aqui? - comentou com ar ofendido.
- Parvalhão! - gritou-lhe Bellsey nas costas.
Hogan dirigiu-se para o carro, reflectindo que o sujeito era um maluco autêntico e suficientemente bizarro para ter esmigalhado o crânio a Ellerbee. Ia tão entretido a pensar no que iria pôr no
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relatório a apresentar a Jason, que não ouviu o som de passadas leves atrás de si.
O primeiro soco acertou-lhe nos rins e teve a impressão de que alguém lhe tinha dado com um malho. Cambaleou para a frente, boca aberta, o ar a faltar-lhe. Tentou agarrar-se a um caixote do lixo para não cair, mas um golpe vindo da esquerda assestou-lhe nas costelas, mesmo abaixo do coração, e ele caiu por terra, junto da valeta, tentando levar a mão ao coldre.
Sapatos pesados atingiram-no na barriga, na cabeça, e ele tentou proteger os olhos com os braços encolhidos. A tareia continuou indefinidamente, até que vomitou a cerveja e os hamburgers. Pouco antes de perder a consciência, estava certo de que era daquela que se ia, não percebendo porque havia de morrer na rua daquela maneira, deixando o seu relatório de importância vital por escrever.
Diferente foi o relatório emitido pelo Hospital Roosevelt que passou pelos vários níveis da cadeia de comando da Polícia, até chegar finalmente a um agente que trabalhava no caso, chamado Jason. Este, por sua vez, alertou Boone. Cerca da meia-noite, os dois dirigiram-se ao Roosevelt, onde falaram com os médicos e os colegas da Esquadra de Midtown Norte, tentando recolher o máximo de informações que lhes fosse possível antes de as transmitirem a Edward X. Delaney.
Acordaram-no pouco passava das cinco da manhã de domingo. Delaney disse-lhes para irem lá a casa o mais depressa possível; Teria café feito.
- Que se passa, Edward? - perguntou Mónica, sonolenta, da sua cama.
- Mais tarde te conto - respondeu ele. - Boone e Jason vêm cá para falar comigo. Volta a dormir.
Quando chegaram, levou-os para a cozinha. Tinha o seu velho robe de flanela com o cordão desfiado vestido. O cabelo curto estava espetado, fazendo lembrar um cacto.
Fizera café para seis chávenas e colocara uma travessa de muffins congelados no forno. Sentaram-se em redor da mesa da cozinha, beberricando o café fumegante e mastigando os bolinhos, enquanto o sargento relatava os acontecimentos.
Um carro da Polícia em serviço de patrulha descobrira o detective Timothy Hogan deitado, semi-inconsciente, na valeta, e
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chamara uma ambulância. Só quando o levaram para o Hospital Roosevelt é que lhe viram a identificação e ficaram a saber que um dos "melhores de Nova Iorque" tinha sido assaltado.
- Ele tinha a sua identificação? - inquiriu Delaney asperamente.
- Tinha sim, senhor - respondeu Boone. - E a arma.
- E a carteira - acrescentou Jason. - Não lhe faltava nada. Não foi nenhum dos assaltos que se verificam habitualmente.
- Mas ele vai ficar bom, não vai?
- Oh, raios, sim - respondeu Boone. - Costelas partidas, rins contundidos, um lindo olho negro, golpes e escoriações várias. Parece que passou por uma máquina de triturar carne. Levou uma coça valente.
- Penso que o que ficou mais ferido do que tudo o resto foi o seu orgulho - observou Jason.
- E com razão - concordou Delaney, irritado. - Deixar-se atacar daquele modo. Falou com ele?
- Por pouco tempo - disse Boone. - Eles têm-no cheio de analgésicos, por isso não está muito consciente.
Contou a Delaney aquilo que fora capaz de arrancar de um Timothy Hogan pouco lúcido:
Como fizera a Sra. Lorna Bellsey confessar que estivera a dormir e não podia garantir que o marido tivesse estado em casa entre as oito e meia e as onze da noite em que o assassínio fora cometido.
Como seguira Bellsey até ao "Rabo da Baleia", na 11ª Avenida, e tivera uma discussão com ele no bar.
Como fora inesperadamente atacado quando voltava para o seu carro.
- Ele jura que foi Ronald Bellsey - disse Boone.
- Viu-o? - perguntou Delaney. - Pode identificá-lo sem qualquer margem de dúvida?
- Bem... não - respondeu Boone pesarosamente. - Não chegou a olhar para o atacante, e aparentemente não foram proferidas palavras.
- Jesus Cristo! - exclamou Delaney, aborrecido. - Conseguem lembrar-se de algum erro que Hogan não tenha cometido? Os agentes da investigação já foram ao bar, como é que ele se chama?
- "Rabo da Baleia." Sim, senhor, cobriram aquele bar e quatro outros da área. Ninguém viu nada, ninguém ouviu nada, ninguém conhece Ronald Bellsey ou alguém que se pareça com
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ele. E ninguém tão-pouco admite ter visto Tim Hogan. Está tudo em branco.
- Quer que metamos Bellsey dentro, senhor? - perguntou Jason Dois. - Para interrogatórios?
- De que raio nos serviria isso? - exclamou Delaney, irritado.
- Ele limitar-se-á a negar quantas vezes forem precisas. E mesmo que levemos o barman e os clientes a admitir que houve uma briga no "Rabo da Baleia", isso não prova que Bellsey tenha dado uma tareia em Hogan. Daqui a umas horas vou telefonar a Suarez para me dar cobertura especial neste caso. Abordaremos Bellsey de um ângulo diferente.
O sargento Boone tirou uns papéis dobrados do bolso interior do casaco e entregou-os a Delaney.
- Benny Calazo passou por minha casa ontem à noite e deixou ficar este relatório. Diz que, na sua opinião, Isaac Kane está inocente.
- Confia na opinião dele? - perguntou Delaney, mal-humorado.
- Absolutamente, senhor. Se Calazo diz que o puto está limpo, é porque está. Benny anda nesta vida há muito tempo e não se arrisca. Estava a pensar... Hogan vai ficar incapacitado, pelo menos durante um mês. Que tal pormos Calazo a tratar de Bellsey? Se há alguém que possa apanhar deslizes àquele estupor, Benny é essa pessoa.
- Por mim, está bem - concordou Delaney. - Ponha-o ao corrente do que se passa com Bellsey e diga-lhe para, por amor de Deus, não voltar as costas ao tipo. Jason, ainda continua a trabalhar com Keisman na confissão de Harold Gerber, não é verdade?
- Exactamente, senhor. Nada de novo a informar.
- É continuar. Sobrou um muffin; quem é que o come?
- Posso ser eu - replicou Jason Dois prontamente. - Nunca me canso destas guloseimas.
Depois de todos se retirarem, Delaney sentou-se novamente à mesa da cozinha e acabou de beber o café, demasiado desperto para voltar para a cama. Reflectiu sobre a última evolução sofrida pelos acontecimentos, e chegou à conclusão de que sentia muito pouca pena do detective Timothy Hogan. Naquele mundo, todos pagavam pela sua estupidez, de uma maneira ou de outra.
Lavou as chávenas e os pires, colocou a loiça sobre o escorredor para secar e arrumou a cozinha. Levou o relatório de Calazo sobre Isaac para o gabinete e colocou os óculos. Leu com
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lentidão e prazer. Calazo possuía uma maneira de escrever penetrante que diferia da gíria habitualmente utilizada no Departamento.
Quando chegou ao fim, Delaney colocou o relatório de lado e acendeu um cigarro. Reflectiu, não tanto sobre os factos que Calazo relatara, mas sobretudo no que estes implicavam.
O detective (precavendo-se) afirmara que havia a possibilidade de se enganar, mas que acreditava que Isaac Kane estava inocente do assassínio do Dr. Simon Ellerbee. O que ele dizia, no fundo, é que não existiam soluções perfeitas, apenas julgamentos.
Edward X. Delaney conhecia bem aquela disposição mental; era a sua. Na descoberta de um crime, nada tinha coerência. Era uma procura interminável com respostas definitivas deixadas a cargo da fé. Havia um elemento religioso nesse tipo de descoberta: a investigação racional tinha limites. Depois vinha o gigantesco passo que consistia em acreditar sem que para tal houvesse provas.
O que significava, evidentemente, que o detective tinha de viver com a dúvida e a ansiedade. Quando não se era capaz de o fazer, pensou Delaney - não pela primeira vez -, então devia-se estar noutro tipo de trabalho.
Capítulo décimo oitavo
A detective Helen Venable estava a ser vítima de um ataque particularmente severo de dúvida e ansiedade. Não se encontrava segura da sua própria capacidade para determinar a verdade ou a falsidade do alegado álibi de Joan Yesell sem procurar o conselho dos seus colegas masculinos dotados de maior experiência.
Sentia-se nervosa relativamente ao facto de não ter informado sobre a possível ausência da Sra. Blanche Yesell no seu apartamento na noite do crime. Preocupavam-na as investigações que deviam ser feitas e que ela estava a falhar. E receava que fosse necessário deixar passar mais uma semana inteira antes de poder confirmar ou negar a existência das estúpidas reuniões de brídege.
Mas a sua dúvida mais forte residia na descrença, cada vez mais acentuada, na culpabilidade de Joan. Aquela mulher doce, sensível, calada, tão subjugada pelo mundo duro, brutal, de Manhattan, teria sido incapaz de esmagar o crânio de um homem
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por quem professava admiração. Ou, pelo menos, assim pensava a detective Venable.
Encontrava-se com Joan todos os dias, falavam frequentemente pelo telefone, saía com ela às segundas-feiras à noite para um jantar de comida italiana, e às terças à tarde para um cinema. Quanto mais chegada se tornava a relação entre ambas, mais Helen estava convencida da inocência de Joan.
Joan sentia-se quase fisicamente doente pela imundície e fealdade das ruas da cidade. Ficava horrorizada e deprimida diante de qualquer forma de violência. Não podia suportar a ideia de se praticarem crueldades sobre os animais. A visão de um pardal morto fazia-a chorar. As imprecações que Helen proferia com tanta frequência nunca lhe mereciam censura, no entanto a detective via-a estremecer.
- Mocinha - dizia-lhe Venable -, és demasiado boa para este mundo. Os anjos já não se usam.
- Não me parece que seja um anjo - observava Joan lentamente. - Longe disso. Faço coisas terríveis, estúpidas, tal como todas as outras pessoas. Às vezes fico tão furiosa com a mamã que me apetece gritar. Tu pensas que eu sou boazinha, mas isso não é verdade.
- Comparada comigo - observava Helen -, és uma santa. Frequentemente, durante a semana, a detective trazia à baila o
Dr. Simon Ellerbee. Joan parecia disposta, quase ansiosa, por falar dele.
- Era tão importante para mim - dizia. - Foi o único terapeuta que consultei, mas logo desde o princípio fiquei a saber que ele seria capaz de me ajudar. Eu via que ele nunca ficava chocado ou ofendido com nada que eu lhe dissesse. Limitava-se a escutar com aqueles modos delicados, simpáticos, que eram os seus. Eu nunca seria capaz de lhe esconder o que quer que fosse porque sabia que podia confiar nele. Penso que ele foi o primeiro homem, a primeira pessoa em quem eu confiei verdadeiramente. Éramos tão chegados. Eu tinha a sensação de que as coisas que me magoavam a mim, também o magoavam a ele. Calculo que todos os psiquiatras sejam assim para os seus pacientes, mas o doutor Simon fazia-me sentir como se eu fosse alguém especial.
- Parece ter sido um tipo formidável - comentou Venable.
- Oh, se era. vou contar-te uma coisa, mas deves garantir-me que nunca falarás disto a ninguém. Prometes?
- Claro. ;
- Bem, às vezes eu costumava sonhar acordada com a morte
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da mulher do doutor Simon. Assim, num acidente de automóvel, entendes? Rápido e sem dor. Depois ele e eu casávamos. Imaginava o que seria vê-lo todos os dias, viver com ele, passarmos juntos o resto da vida.
- Tenho a impressão de que estavas apaixonada por ele, querida.
- Possivelmente estava - concordou Yesell com tristeza. Todas as suas pacientes deviam estar. Tu chamas-me santa; ele é que era um santo autêntico.
Numa outra altura, a questão do assassínio foi abordada por ela mesma.
- A Polícia está a chegar a alguma conclusão? - perguntou a Venable. - Sobre quem matou o doutor Simon?
- É um processo moroso - admitiu a detective. - Que eu saiba não existem pistas determinantes, mas o caso está a ser trabalhado por muita gente. Haveremos de apanhar o perp.
- Operp?
- Perpetrador. O responsável pelo o acto.
- Oh! Bem, espero que consigam. Foi uma coisa horrível, horrível.
Falavam sobre o apartamento que haviam um dia de partilhar. Conversavam acerca das respectivas mães, de roupas e comidas que apreciavam ou detestavam. Recordavam incidentes da adolescência, riam-se dos rapazes que tinham conhecido, trocavam opiniões sobre estrelas da televisão e romancistas.
Aquela aproximação entre detective e suspeito não era ocorrência rara. Então, não precisavam um do outro? Até um assassino poderia achar a obsessão do seu perseguidor tão importante para si próprio como o era para aquele. Proporcionava sentido à sua existência.
- Tenho de trabalhar até mais tarde na sexta-feira à noite, querida - disse Venable ao seu alvo. - Relatórios e merdas do género. Telefono-te no sábado e talvez possamos jantar juntas ou coisa parecida.
- Gostaria muito - disse Joan com o seu sorriso tímido. Fico à espera do nosso encontro e da nossa conversa pelo telefone.
- Eu também - afirmou Helen, preocupada, porque estava a ser verdadeira...
Sexta-feira à noite, por volta das sete, Helen estava encafuada no seu Honda, a duas portas do prédio onde Yesell morava. Podia vigiar a entrada através do espelho retrovisor, mantendo-se alerta
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com um pequeno transístor sintonizado numa estação de rock da pesada.
Ficou ali sentada durante mais de uma hora, não desviando nunca os olhos da entrada do prédio. Eram quase oito e um quarto quando Blanche YeselI saiu, embrulhada num volumoso casaco de peles que a fazia parecer-se com um urso. Não havia confusão possível; ela não levava chapéu e o penteado em forma de colmeia parecia mais alto do que nunca.
Venable deslizou para fora do carro e foi atrás da mulher, mantendo uma certa distância desta. Não durou muito tempo; a Sra. Yesell apressou-se, deslocando-se para ocidente e entrou rapidamente num prédio que ficava a uma porta da esquina. A detective acelerou o passo, mas, quando lá chegou, a mulher não estava nem no vestíbulo nem no corredor, nem se via indício do apartamento para o qual entrara.
Helen ficou no passeio, a olhar para cima, desconcertada. Se Calazo tivesse deparado com um problema daqueles, provavelmente teria percorrido todas as campainhas da habitação, perguntando: "A Senhora Blanche Yesell está?" E uma hora depois estaria de posse de depoimentos dos restantes membros do clube, ficando a saber se a Sra. Yesell estivera, ou não, em casa na noite do crime e podia, ou não, testemunhar a presença de sua filha.
Mas essa acção directa não ocorreu a Helen. Esta ponderou sobre a forma de interrogar os membros do clube sem alertar as Yesells de que o álibi de Joan estava a ser investigado. Voltou para o Honda, onde ficou sentada durante muito tempo, sentindo-se furiosa e incompetente por não ser capaz de conceber uma estratégia de investigação eficaz. Por fim, decidiu escrever um relatório completo sobre as noites de sexta-feira da Sra. Yesell no clube de brídege e atirar tudo para o colo do sargento Boone.
Era uma derrota pessoal, reconheceu, o que a deixou enfurecida. Mas o receio de cometer alguma asneira de palmatória e levar uma reprimenda por reter informações, como contrariamente ao seu dever, foi suficiente para a convencer a cingir-se às regras. O que veio a demonstrar ser uma decisão acertada.
Se Helen andava mortificada com as suas dúvidas, o detective Ross Konigsbacher sentia-se cheio de confiança, convencido de que estava na pista certa. Na noite em que Helen matutava, infeliz, no seu Honda, Kraut esfregava joelhos com L. Vincent Symington numa pequena mesa do Dorian Gray.
Symington insistira em mandar vir uma garrafa de Frascati,
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servido num balde de prata com gelo. O detective não fizera objecções, sabendo que Symington pagaria a conta. Aí estava uma das coisas que se podiam considerar como certas em relação àquele estupor: na sua carteira não havia traças.
- Um dia horrível - disse a Konigsbacher. - Simplesmente horrível. Este vinhito não é nada mau, pois não? São crises atrás de crises. Estou na Wall Street, sabe, não me parece que já lho tenha dito, e hoje o mercado sofreu simplesmente um colapso. Que é que você faz, Ross?
- Import-export - disse ele com vivacidade, já preparado para a resposta. - Apetrechos de plástico e cabedal. Muito maçador.
- Imagino. Está inserido no mercado?
- Receio bem que não.
- Pois bem, se algum dia decidir-se a um investimento, fale comigo primeiro; pode ser que lhe arranje algo jeitoso.
- Não esquecerei. Mas a minha mulher tem andado a chatear-me com um novo casaco de peles, de modo que não terei possibilidade de fazer nenhum investimento nos tempos mais próximos.
- Mas que pena - observou Symington. - As mulheres podem ser grandes cabras, não podem? Ainda continua a treinar, Ross?
- Todas as manhãs, com os pesos.
- Oh, caramba! - exclamou o outro homem, rindo-se com entusiasmo. - Está a pôr-me todo excitado. E que-faz a sua mulher enquanto você pratica os seus exercícios matinais?
- Ressona.
- Agora isso é que é um aborrecimento. Vá, deixe-me encher-lhe esse copo. Esta bebida escorrega facilmente para baixo, não acha?
- Como algumas pessoas que conheço - replicou Kraut, contorcendo-se os dois com gargalhadas reprimidas.
- Vince, já voltou a receber mais alguma visita da Polícia por causa do assassínio do seu psiquiatra?
- Nem uma palavra. Mas tenho a certeza de que andam a investigar de A a Z. Eles que o façam; não tenho nada a esconder.
- Espero que o seu álibi para a altura do crime seja bom.
- Claro que é - disse Symington em tom virtuoso. Encontrava-me numa festa toda finória no Hilton. A minha companhia estava a dar um jantar de aniversário ao fundador. Fui visto por uma dezena de pessoas.
- Vá, deixe-se disso, Vince - disse Konigsbacher, sorrindo.
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- Não me diga que esteve a noite toda lá metido. Sei como aquelas festas conseguem ser chatas. Não deu uma escapadelazita para tomar uma bebida noutro lado qualquer, não?
- Oh, Ross - exclamou o outro com admiração. -, você é esperto. Claro que me escapuli durante um bocado. Simplesmente não conseguia suportar toda aquela tagarelice sobre negócios. Descobri o bar mais vulgar da cidade, próximo da Oitava Avenida. Chama-se "Stallions". (1) Que lhe parece? Comércio em bruto? Se visse não acreditava! Eu limitei-me a sentar-me a um canto, a beber a minha Perrier e a apreciar tudo aquilo. Que espectáculo! Você e eu havemos de lá dar um salto uma noite destas, só para nos divertirmos. Nunca vi tanto cabedal preto na minha vida!
- Encontrou alguém com interesse? - indagou o detective com ar casual.
- Bem, se quer que lhe diga... - retorquiu Symington com timidez, fazendo girar o seu copo de vinho pelo pé -, havia lá um rapaz... paguei-lhe uma bebida, ele estava a tomar um brande de banana, imagine! Conversámos durante um bocado. O nome dele é Nick. É um daqueles moços que não têm poiso certo. Disse-me que queria ser actor. "Hamlet"!, perguntei eu, mas ele não percebeu patavina. Passei uma hora divertida ali, e depois voltei para a tal festa no Hilton. Tenho a certeza de que ninguém deu pela minha falta.
- Ora, Vince - disse Kraus com seriedade -, espero que não tenha estado ausente durante o espaço de tempo em que o seu psiquiatra foi morto. A Polícia não é parva, como muito bem sabe. É muito provável que descubram que você saiu da festa e depois apareçam para o interrogar de novo.
- Acha que sim? - assustou-se o outro homem, começando a ficar preocupado. - Bem, de facto estive afastado do Hilton entre as nove e as dez da noite, mas não acredito que os polícias o descubram.
- Pode muito bem acontecer - disse o detective Konigsbacher com gravidade. - Eles têm os seus processos.
- Santo Deus! - exclamou Symington, desesperado. - Que acha que devo fazer? Talvez seja melhor eu ir procurar aqueles dois agentes que foram interrogar-me e contar-lhes este facto. Isso provará que não tenho nada a esconder, não é verdade?
* (1) "Garanhões." (N. da T.) *
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- Não faça isso! - disse Kraut rapidamente. - Não preste nenhuma informação voluntariamente. Tenha calma. E se eles saltarem sobre si por não lhes ter dito que esteve afastado da festa, responda-lhes que se esqueceu. No fim de contas, aquele rapaz... Como é que ele se chamava?
- Nick.
- Nick pode confirmar a sua história.
- Se alguma vez conseguirem dar com ele - observou o outro homem com ar de dúvida. - Já sabe como estes rapazes são: hoje aqui, amanhã noutro lado qualquer.
- Bem, não se preocupe com o assunto - aconselhou Konigsbacher. - Desde que esteja inocente, não tem nada a recear. Você está mesmo inocente, não está, Vince?
- Puro como a neve que cai - disse Symington com solenidade.
Os dois homens desataram a rir imoderadamente.
- Ross, já jantou?
- Para dizer com franqueza, ainda não. E você?
- Não e estou esfomeado. Conheço o restaurante francês mais chique da cidade; tem uma caldeirada de peixe divinal. Gostaria de experimentar? Por minha conta, evidentemente.
- Parece divertido - disse Konigsbacher. - Sempre deve ser melhor do que os cozinhados da minha mulher. Ela não é capaz de ferver água sem a queimar.
- Ross, você é um espanto!
Symington pagou a conta e os dois seguiram para o restaurante francês mais requintado da cidade. O detective disse para consigo que estava a viver à grande, reflectindo sobre um processo de poder prolongar aquela missão agradável. Relatórios incompletos para o sargento Boone e Delaney ajudariam.
O próprio Delaney estava a afundar-se num emaranhado de dados incompletos. Não conseguia chegar a conclusões relativamente aos álibis de Otherton, Bellsey, Yesell ou Symington, e a confissão de Harold Gerber ainda continuava por verificar ou refutar. Para além da eliminação de Kane do número de suspeitos, poucos progressos se tinham feito.
O que Delaney achava mais preocupante naquele puzzle não eram os álibis factuais, mas os enigmas, que não mostravam sinais de ceder à investigação. Seguindo o seu método obstinado, sistemático, elaborou uma lista do que considerava os mistérios-chaves que pareciam desafiar solução:
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Principais enigmas:
1. Quem era o paciente tardio de que o Dr. Ellerbee estava à espera na noite em que foi assassinado?
2. Porque se viam dois conjuntos de pegadas molhadas na alcatifa da casa?
3. Qual o significado dos golpes de martelo nos olhos da vítima depois de esta estar morta?
4. Quem roubou o livro de facturas, e por que razão?
5. Qual foi a causa que provocou a mudança de personalidade de Ellerbee no decorrer do último ano?
Enigmas menores:
1. O facto de L. Vincent Symington ter visto o Dr. Ellerbee a conduzir o seu carro sozinho, numa noite de sexta-feira, terá algum significado?
2. Porque tentou Joan Yesell pôr termo à vida logo após o interrogatório a que foi sujeita relativamente ao caso?
3. Qual era o verdadeiro propósito que levou a Dra. Diane Ellerbee a ir a casa de Delaney e a sua atitude inesperadamente amistosa?
Curvou-se sobre a secretária, estudando a lista com a sensação
- a esperança, na verdade - de que encontrar a resposta para o enigma serviria de chave e todos os outros libertariam então os seus segredos numa progressão natural, revelando-se de repente todo o caso como uma cadeia de acontecimentos racional e crível. Essa chave existia, estava convencido disso, e permanecia oculta apenas porque ele não tinha capacidade para vê-la.
Estava a reler a sua lista de enigmas quando o telefone tocou.
- Edward X. Delaney.
- Daqui fala o detective Charles Parnell, senhor Delaney. Como está, senhor?
- Bem, obrigado. E o senhor?
- A divertir-me - respondeu Daddy Warbucks, rindo. Estou metido em números até às orelhas, tentando arrumar um tipo que andava a fazer correr o conto-do-vigário em Brooklyn. Arrancou cerca de cem das grandes a familiares, amigos e vizinhos. Caso interessante. Tenho de lho contar um dia. Mas a razão que me levou a telefonar... prometi-lhe que tentaria investigar o testamento de Simon Ellerbee. Já foi submetido aos trâmites legais e posso dar-lhe um resumo.
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Excelente - disse Delaney. - Só um minuto, vou arranjar
um papel... Okay, que é que tem?
- Vai tudo para a mulher, Diane, excepto algumas legações específicas. Vinte mil para a sua alma mater (1), dez para o pai, cinco para o doutor Samuelson, mil para a recepcionista, Carol Judd, e pequenas somas para o encarregado do prédio, o casal polaco que trabalha para os Ellerbees na casa de campo de Brewster, e mais algumas. É tudo. Nada que, na minha opinião, possa ser considerado motivo para crime.
- Nada o indica, realmente - concordou Delaney, pensativamente. - A viúva tem que lhe baste do seu próprio dinheiro. Não estou a vê-la a dar cabo do marido para arranjar mais algum.
- Concordo - disse Parnell. - A única coisa interessante no testamento é a de que Ellerbee cancelou especificamente todas as dívidas que os pacientes tinham para com ele. Tudo indica que alguns dos desarranjados mentais pagavam aos bochechos, quando não ficavam mesmo a dever. Bem, o testamento de Ellerbee apaga tudo isso. Um acto nobre por parte do tipo.
- Sem dúvida - anuiu Delaney, pensativo. - Nobre. E um tanto fora do comum, não acha?
- Oh, não sei - disse Parmell. - Todos afirmam que ele era um tipo muito bom. Sempre a ajudar as pessoas. Isto soa a bom carácter.
- Hum, hum - murmurou Delaney. - Bem, muito obrigado. Deu-me uma grande ajuda e eu farei com que o chefe Suarez tome conhecimento do facto.
- Mal não faz - observou o detective Parnell.
Depois de desligar, Delaney ficou a olhar para os apontamentos que tirara. Ponderou durante um pedaço de tempo. Em seguida, suspirando, pegou na sua "lista de agonia" com os enigmas por decifrar. Acrescentou um quarto ponto ao grupo dos Enigmas menores: Porque cancelou o Dr. Ellerbee as dívidas dos seus pacientes?
E, terminado isto, dirigiu-se desanimadoramente para a cozinha, esperando encontrar materiais para fazer uma sanduíche prodigiosa que pudesse aliviar a sua depressão.
O detective Brian Estrella também estava a pensar em comida. Desde que Meg, sua mulher, fora para o hospital e depois para a enfermaria, que ele tinha de se desenvencilhar sozinho, detestando cada minuto.
* (1) Expressão latina que significa mãe criadora e usada pelos escritores contemporâneos para designar a Universidade. (N. do E.) *
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Não estava habituado à solidão e era um autêntico nabo quando se tratava de tarefas de cozinha e de arranjo da casa.
Sofrera aquilo que considerava ser um distúrbio mental repentino: telefonara a Sylvia Mae Otherton na sexta-feira à noite e sugerira-lhe, com algum acanhamento, que jantassem juntos. Ele descobriria algum estabelecimento chinês de comida pronta a levar para casa, e compraria quantidade suficiente para os dois. A única coisa que Sylvia teria de preparar era chá quente. Ela achou a ideia maravilhosa.
Estrella comprou crepes, costeletas grelhadas, talharim, sopa wonton, camarões com molho de lagosta, arroz frito, porco agridoce, bolinhos da fortuna e gelado de pistácio. Foi tudo acondicionado em recipientes de cartão, e até acrescentaram garfos e colheres de plástico e guardanapos de papel.
Era como um piquenique, com todos os recipientes abertos em cima da mesinha de cocktail, juntamente com as taças de chá quente que Sylvia providenciara. Ambos concordaram que aquele era o tipo de comida condimentada e aromática ideal para uma noite fria de Inverno em que o vento fazia barulho nas janelas e os fiapos de neve resplandeciam à luz dos candeeiros de rua.
O detective não se esqueceu de elogiar Sylvia sobre o bom aspecto desta e, na verdade, eram notáveis os progressos por ela alcançados nesse capítulo. Tinha o cabelo lavado e penteado de maneira solta e entufada. A maquilhagem excessiva desaparecera e a vestimenta extravagante fora substituída por uma simples saia e blusa.
E o que era ainda mais importante, os seus modos tinham sofrido uma transformação. Parecia simultaneamente confiante e descontraída. Sorria e ria com frequência, e disse a Estrella que tinha saído naquela tarde e gastara duas horas a fazer compras, a saltar de loja em loja - algo que não fazia desde a morte do Dr, Ellerbee.
- Isso é uma maravilha! - exclamou o detective. - Está a ver, você é capaz de o fazer. Devia tentar sair de casa todos os dias, nem que fosse apenas por alguns minutos.
- Tenciono fazê-lo - disse Otherton firmemente. - vou dar novo rumo à minha vida. E a si o devo.
- A mim? Que foi que eu fiz?
- Importou-se comigo. Não faz ideia de como isso foi fundamental para mim.
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Acabaram com tudo e desfizeram-se dos recipientes vazios. Em seguida, Sylvia pediu a Estrella que lhe falasse da mulher, ao que ele acedeu dizendo que os médicos não se mostravam muito esperançados, mas que Meg se sentia bem-disposta e falava em voltar em breve para casa, cheia de optimismo.
- Penso que ela sabe que nunca chegará a fazê-lo - disse o detective em voz baixa -, mas tenta manter-se animada para que eu não ande deprimido.
- Ela parece ser uma mulher maravilhosa, Brian.
- E é.
A certa altura, sem dar por isso, deu consigo a contar a Sylvia tudo sobre Meg, a sua vida em conjunto, o filho que tinham perdido (leucemia) e de como ele por vezes se interrogava sobre como iria conseguir passar o resto dos seus dias sem a mulher.
Desabafou tudo o que tinha no seu íntimo, só então se apercebendo de como se sentira solitário e do desejo que o avassalara de contar o que sentia a alguém. Era uma espécie de tributo a Meg: o reconhecimento público da felicidade que ela lhe proporcionara.
Sylvia ouviu-o atentamente, limitando-se a fazer perguntas de circunstância, até Estrella terminar. Estavam sentados ao lado um do outro, no sofá, e, a certa altura do seu desabafo, ela pegou-lhe na mão, mantendo-a fortemente presa entre as suas.
Não estava a ter segundas intenções em relação a ele; sabia-o. Apenas lhe oferecia o conforto da sua presença física, o que o fazia sentir-se grato. Ao chegar ao fim, ele levou-lhe uma das mãos aos lábios e beijou-lhe a ponta dos dedos.
- Bem... - disse ele -, aqui tem a triste história da minha vida. Perdoe-me por tê-la obrigado a ouvir tudo isto. Sei que já tem problemas que lhe bastem.
- Apenas gostaria de poder ajudar - observou ela com pesar.
- O seu apoio foi tão importante para mim. Agora tomemos um digestivo.
E levantou-se para ir buscar uma garrafa de vidro a uma cristaleira coreana ornamentada.
- Oh! - exclamou ela -, desculpe-me por um momento; tenho de fazer um telefonema rápido.
A reprodução do telefone francês fim de século encontrava-se sobre uma pequena estante vitoriana de tampo de mármore. Sylvia ligou três números.
- Charles? - disse. - Daqui fala Sylvia Mae Otherton. Como está o senhor esta noite?... Óptimo... Muito bem, obrigada.
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Há alguma coisa para mim, hoje?... Obrigada, Charles. Boa noite.
Voltou para junto de Estrella com o brande.
- Hoje não tenho correio - disse, jovialmente. - Nem sequer uma conta.
Ele fitou-a. Depois olhou de relance para o seu relógio de pulso. Passavam catorze minutos das nove. Pousou o cachimbo de lado.
- Sylvia - disse com voz tensa -, a pessoa com quem estava a falar era aquele tipo que está ao balcão do vestíbulo?
- Sim, era Charles. Trabalha de noite. Liguei para ele a fim de saber se havia algum correio na minha caixa. Assim escuso de ir lá abaixo. Lá está a minha agorafobia de novo em acção!
- Telefona-lhe todas as noites para lhe perguntar pelo seu correio?
- Telefono. Porque pergunta?
- Liga sempre a esta hora?
- De um modo geral. Mas porque...
Sylvia parou a meio da frase, abrindo muito os olhos e a boca. Tapou-a rapidamente uma das mãos.
- Santo Deus! - exclamou, aflita. ,
- Disse-nos que não tinha feito nenhum telefonema naquela noite.
- Esqueci-me! - lamentou-se ela. - É um hábito regular, algo que já caiu de tal forma na rotina que me esqueci. Oh, Brian, desculpe. Mas tenho a certeza que liguei para Charles naquela noite.
- Eu já volto - disse Estrella. - Faça figas.
Desceu ao vestíbulo, identificou-se e falou com Charles durante quase quinze minutos. O recepcionista jurou que Sylvia Otherton telefonava, a saber do seu correio, todos os dias da semana, entre as nove e as nove e meia.
- Muitos dos inquilinos têm esse hábito - disse. - Especialmente os mais velhos. Poupam uma vinda aqui abaixo. E eu não me importo. Isto aqui tem pouco movimento à noite e esse hábito permite-me ter alguém com quem falar, alguma coisa para fazer.
- Alguma vez a senhora Otherton falha a sua chamada?
- Que eu me lembre, não. É todas as noites, durante a semana, como um despertador.
- Digamos, entre as nove e as nove e meia?
- Exactamente.
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- Lembra-se de ela ter ligado para o senhor numa sexta-feira à noite, há quatro semanas atrás, na noite do grande temporal?
- Não me consigo recordar dessa noite em particular. A única coisa que sei é que ela nunca falhou uma noite desde que eu estou aqui a trabalhar, já vai agora quase para três anos.
- Obrigado, Charles.
Ao chegar lá cima, Estrella disse:
- Sylvia, no que me diz respeito, você está ilibada. Precisamente o que vou escrever no meu relatório.
Ele pensava estar a fazê-la feliz, mas, em vez disso, viu Sylvia prestes a desfazer-se em lágrimas.
- Isso quer dizer que não volto a vê-lo nunca mais? Ele tocou-lhe no ombro.
- Não - respondeu meigamente -, não significa isso.
- Então, está bem - disse ela alegremente. - Brian, gostaria de tentar a tábua Ouija novamente? Talvez ela o ajude a descobrir quem foi o criminoso.
- Claro - concordou ele -, vamos tentar. Sentaram-se na mesma posição que tinham experimentado
anteriormente, com a tábua em cima da mesinha da sala, e um de cada lado desta. Sylvia colocou os dedos ao de leve sobre a tábua e fechou os olhos.
- Doutor Ellerbee - disse o detective Brian Estrella com voz surda -, a pessoa que o matou era desconhecida?
A tábua não se moveu.
Estrella repetiu a pergunta.
A tábua estremeceu violentamente. Soletrou e depois parou.
- Doutor Ellerbee - tentou o detective uma vez mais -, a pessoa que o matou era desconhecida?
A tábua moveu-se com lentidão. Apontou para N e, em seguida, para o NI. Depois parou.
- Sylvia - disse Brian suavemente. - Não me parece que estejamos a chegar a alguma conclusão. Ela soletrou NI. Isso não significa nada.
Sylvia abriu os olhos.
- Talvez ele não esteja a conseguir transmitir através de mim esta noite. O seu espírito poderá estar ocupado com outra médium.
- É possível - reconheceu Estrella.
- Mas voltaremos a tentar, não é verdade, Brian? - perguntou ela com ansiedade.
- Absolutamente - respondeu ele.
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Sábado à tarde, Delaney, Boone e Jason reuniram em "conselho de guerra". Examinaram todos os relatórios que tinham chegado ao longo da semana e discutiram ajustamentos a fazer entre os detectives.
- Estrella diz que a Otherton está fora de suspeitas - observou Delaney. - Estão dispostos a aceitar o facto?
- Eu estou, senhor - respondeu Jason prontamente. - Ele fez um trabalho cuidado em relação a ela. Falou com todos os seus amigos e nas lojas de onde gasta. Só por sorte é que descobriu a questão do telefonema para o empregado da recepção. Estou convencido de que ela está inocente.
- Boone?
- Eu concordo com Jason, senhor.
- Que tolice é esta da tábua Ouija que vem aqui no relatório dele? É a segunda vez que faz referência ao assunto. O homem tem a mania do ocultismo?
- Não, senhor - respondeu Jason Dois. - É um indivíduo seguro, que encara tudo com seriedade. Mas tem a mulher muito doente, o que talvez o esteja a deixar perturbado.
- Ah! - exclamou Delaney. - Não sabia e lamento muito. Ele quererá alguma dispensa?
- Não, ele diz que deseja continuar a trabalhar.
- Provavelmente é o melhor que tem a fazer - comentou Delaney. - Muito bem, ponhamos Otherton de parte. Ela pode não regular muito bem da cabeça, mas não a considero capaz de um crime. Agora vejamos este relatório da detective Venable. Aqui está uma coisa com interesse. Tenho a impressão de que a senhora Yesell tem andado a trocar-nos as voltas.
- Não há dúvida de que a história dela precisa de ser trabalhada - observou Boone. - Se a Otherton está ilibada, por que razão não trocamos Estrella para Joan Yesell? Ele poderá ajudar Helen a descobrir os membros do clube de brígede da senhora Yesell.
- Sim - concordou Delaney -, façamo-lo. Boone, você está a trabalhar com Calazo em Ronald J. Bellsey, não está?
- Sempre que tenho oportunidade.
- E Jason, você e Keisman estão a cobrir Harold Gerber, certo?
- Exactamente, senhor. Nada de novo a informar.
- E Konigsbacher também não tem nenhuma novidade para nos dar relativamente a Symington. Mas eu tenho algo de novo que talvez possa interessar-vos.
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Falou-lhes sobre o relatório do detective Parnell, salientando o facto de o testamento do Dr. Simon Ellerbee ter cancelado especificamente todas as contas por pagar dos clientes.
- Agora, que raio supõem vocês que isto significa? - perguntou aos dois agentes.
Ambos abanaram a cabeça negativamente.
- Não faço a menor ideia - respondeu Boone.
- Se calhar não quer dizer nada - observou Jason.
- É o mais certo - disse Delaney, suspirando. - Não há dúvida de que probabilidades não faltam neste caso, mas muito poucas têm consistência suficiente para nos agarrarmos a elas. Bem, é o que posso dizer-vos, para além de vos incentivar a que continuem a vasculhar a questão e a rezar para que se faça luz.
Depois de os dois detectives saírem, Delaney voltou para o seu gabinete de trabalho a fim de dar, mais uma vez, nova vista de olhos aos relatórios. Sentia-se aborrecido, acabrunhado. "Continuem a vasculhar." Que conselho mais estúpido e desnecessário para dar aos seus ajudantes. Eles eram oficiais da Polícia, experientes, que sabiam que vasculhar era a palavra de ordem.
O que sempre deixara Delaney confundido em casos como aquele era o contraste entre a grande paixão que incitava ao assassínio de um ser humano e os esforços prosaicos que a Polícia desenvolvia para o solucionar.
Numa comparação absurda, era como resolver o mistério de um Rembrandt através da análise de pigmentos, pinceladas e do tipo de tela e, depois, dizer: "Já está! O teu mistério ficou explicado." Não o estava, evidentemente. Mistério era mistério. Ele desafiava a explicação racional.
Mesmo que o caso Ellerbee fosse encerrado, Delaney suspeitava de que a solução seria meramente fruto de uma resolução dos factos. o enigma do comportamento humano continuaria oculto.
Capítulo décimo nono
Faltavam duas semanas para o Natal e nunca a cidade se mostrara tão encantadora. Por "cidade" entendia-se Manhattan e, mais em particular, a sua zona central, com as ruas a brilhar de luzes e bugigangas. Cânticos amplificados expandiam-se em todas as direcções, juntamente com o tinir dos sinos e das caixas
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registadoras. O frenesim das compras que se fazia sentir todos os anos por aquela altura, atingira o seu auge, as lojas transbordavam de gente, a febre de gastar chegava às raias da epidemia. "Tome o meu dinheiro, menina, por favor."
Mas na parte baixa da cidade, a sul da 7ª Avenida, não havia luzes, bugigangas, cânticos. Apenas alguns resquícios idiotas da última queda de neve, salpicada de lixo e fezes de cão. O prédio deteriorado onde Harold Gerber morava não tinha adornos festivos. A tinta lascava, o gesso caía, as paredes desprovidas de estuque deixavam escorrer um visco glutinoso que cheirava a supuração.
- Oh, pequena cidade de Belém - cantarolava o detective Robert Keisman.
- E que tal Vinde, todos os fiéis? - sugeriu Jason.
Os dois detectives deambulavam ociosamente pela casa arruinada de Gerber, dando conta de uma embalagem de seis latas de Schaefer. Os dois agentes negros envergavam abafos velhos e esfarrapados, protegendo-se os três com casacões, barretes e luvas. Tresandava a humidade e estava suficientemente frio para verem a sua respiração condensar-se no ar.
- Vamos a isto mais uma vez - disse Jason Dois.
- Ah, Jesus - enfastiou-se Gerber. - Temos mesmo que o fazer?
- Claro que temos - respondeu Keisman negligentemente.
- Estás ansioso por ir dentro, não estás? Para passares umas agradáveis férias quentinhas numa abominável prisão, certo? Dizes que tiraste o pio ao doutor Ellerbee. Bem, sim, pode ser que o tenhas feito, mas, por outro lado, também pode ser que nos estejas a querer enfiar o barrete.
- Repara, Harold - disse Jason -, nós metemos-te na cadeia, mas acaba por se saber que não passas de um aldrabão que anda a fazer perder tempo a toda a gente. Pois bem, isso não ficava nada bem na nossa folha de serviços.
- Merda! - exclamou Gerber -, vocês escrevam a espécie de confissão que muito bem vos apetecer. Eu assino tudo.
- Não - discordou o Estraga -, não é assim que as coisas se fazem, Harold. Tens de nos contar o que se passou pelas tuas próprias palavras. Dizes que foste de táxi até ao prédio de Ellerbee naquela noite?
- Exacto.
- Que tipo de táxi? Amarelo? Cecker? Cigano? - perguntou Jason.
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- Não me lembro.
- Quanto tempo levaste a chegar lá? - inquiriu Keisman.
- Talvez uns vinte minutos.
- Onde é que o táxi te deixou ficar? - quis saber Jason.
- Mesmo em frente do consultório de Ellerbee.
- Como é que entraste? - indagou Keisman.
- Toquei à campainha. Quando ele atendeu, disse-lhe que estava mal e tinha de o ver. Deixou-me entrar.
- Levavas o martelo contigo? - perguntou Jason.
- Claro. Levava-o comigo com a intenção propositada de matar Ellerbee. Foi um assassínio premeditado.
- Hum, hum. Agora diz-nos outra vez onde é que o arranjaste? - interpelou Keisman.
- Roubei-o numa loja de ferramentas que fica próxima de Sheridan Square.
- Limitaste-te a metê-lo debaixo do casaco e a saíres de lá? interrogou Jason.
- Precisamente.
- Já fomos falar com eles. Têm perdido muito material com os gamadores de loja, mas nunca tal aconteceu com martelos de pena redonda - argumentou Keisman.
- Eles não distinguem o cu das calças.
- Está bem, quer dizer então que te meteste dentro da casa dos Ellerbees com um martelo. Que foi que fizeste a seguir? indagou Jason.
- Subi as escadas.
- Levavas as botas calçadas? - perguntou Keisman.
- Claro que levava as botas calçadas. Estava uma noite estuporadamente molhada.
- Encontraste alguma pessoa dentro da casa? - inquiriu Jason.
- Não. Só Ellerbee. Ele deixou-me entrar para o seu consultório.
- Estava sozinho? - quis saber Keisman.
- Sim, estava sozinho.
- Falaste com ele? - interrogou Jason.
- Disse "olá". Ele ia a responder "Que é que está a fazer..." e eu então atingi-o.
- Ele encontrava-se virado para ti quando o atingiste? perguntou Keisman.
- Exactamente.
- Quantas vezes o atingiste? - inquiriu Jason.
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- Duas ou três. Esqueci-me.
- Onde é que lhe acertaste? Na testa, no cimo da cabeça, têmporas, onde? - quis saber Keisman.
- Mais ou menos no princípio do cabelo. Não no cimo da cabeça. Mesmo ao cimo da testa.
- Ele caiu? - indagou Jason.
- Exacto.
- De costas? - perguntou Keisman.
- Sim, de costas.
- Que foi que fizeste depois? - questionou Jason.
- Vi que ele estava morto e...
- Não voltaste a atingi-lo depois de estar morto? - interpelou Keisman.
- Para que raio havia eu de fazer uma coisa dessas? O tipo estava morto. Já vi cadáveres suficientes para o saber. Portanto, pus-me a andar dali para fora, fui a pé até à York e meti-me num táxi, seguindo para sul.
- Que foi que fizeste ao martelo? - interrogou Jason.
- Como já vos disse, atirei-o para um caixote do lixo na Oitava Avenida.
- Por que razão o mataste, Harold? - quis saber Keisman.
- Jesus, quantas vezes vou ter de vos repetir a mesma coisa? Ele era um estupor de um bisbilhoteiro. Passado algum tempo sabia de mais sobre mim. Eh, vamos tomar mais uma cerveja; estou com sede.
Os três ficaram sentados, em silêncio, os dois agentes a fitarem os olhos enraivecidos, inflamados, do outro homem. Como de costume, Gerber tinha a barba por fazer e o cabelo preto continuava espetado por debaixo do barrete da mesma cor.
- Vão prender-me? - perguntou, finalmente.
- Vamos pensar nisso - respondeu Jason Dois.
- Fui eu que cometi o crime. Deus sabe que é verdade. Sou completamente culpado.
Não responderam.
- Eh, vocês - disse Gerber jovialmente, pondo-se de pé. Vou-me mudar. Apareceu cá um oficial da Polícia com uma ordem de despejo. Tenho de evacuar as instalações, como eles dizem.
- Ah, sim? - admirou-se o Estraga. - Para onde é que vais?
- Quem diabo sabe? Tenho de dar uma olhada por aí. Quero outro sítio tão porreiro como este.
- Precisas de ajuda na mudança? - ofereceu Jason.
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- Para mudar o quê? - perguntou Harold Gerber com um sorriso feroz. - Um saco de plástico chega para eu transportar todos os meus pertences. vou deixar muita porcaria aqui. Vocês querem alguns livros? Tenho um monte deles ali debaixo do lava-loiça. Alguns são pornográficos. Podem levar os que quiserem ou tudo.
- Sim? - disse Jason. - Vamos dar uma vista de olhos. Talvez haja alguma coisa que a minha mulher aprecie. Ela anda sempre com o nariz metido nos livros.
Ajoelhou-se junto do lava-loiça e começou a inspeccionar o monte de livros. Puxou por um que era espesso.
- Que é isto? - admirou-se. - Uma Bíblia?
- Oh, isso... - murmurou Gerber com ar casual. - Pesquei-o de uma lata de lixo. Dei-lhe uma passagem. Só tem coisas para rir.
Jason examinou o livro.
- Versão Douay - leu em voz alta. - É uma Bíblia católica, não é? Tu és católico, Harold?
- Fui. Outrora. E tu, que és?
- Baptista. Importas-te de que leve isto comigo? - perguntou Jason Dois, levantando a Bíblia.
- À vontade - respondeu Gerber. - Podes ler tudo do princípio ao fim. Não te conto como termina.
Deixaram-se ficar sentados durante mais um bocado antes de os dois agentes saírem, prometendo a Gerber que no dia seguinte lhe diziam se o prendiam ou não.
Acomodaram-se no carro de Jason, com o aquecedor ligado, tentando elevar a temperatura do corpo.
- O homem está completamente chanfrado - comentou Keisman.
- Oh, sem dúvida - concordou Jason. - Nem sequer sabe como Ellerbee morreu.
- Porque achas que ele quer ser preso?
- Não sei ao certo. Alguma coisa a ver com um sentimento de culpa, suponho. O que aconteceu no Vietname... É demasiado complicado para mim.
- Que se passa em relação à Bíblia? - perguntou o Estraga, apontando o livro com o indicador. - Porque te mostraste tão interessado nele?
- Repara como está - disse Jason, fazendo passar as páginas. - Cheia de pontas dobradas. Alguém andou a estudá-la
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a fundo. E não acredito que ele a tenha encontrado numa lata do lixo. Ninguém deita fora uma Bíblia.
- Jason, é a tua faceta religiosa que está a falar.
- Talvez. Mas ele diz que já foi católico e esta edição é católica. É curioso um antigo católico ter encontrado uma Bíblia católica num caixote do lixo.
- Os caminhos de Deus são insondáveis.
- Eh! - exclamou Jason com admiração -, afinal de contas não te preocupas só com as modas, pois não?
- Fui educado como deve ser - respondeu Keisman. Só comecei a portar-me mal... oh, talvez por volta dos seis anos ou coisa parecida.
- Bem... - disse Jason Dois, fitando de novo o livro que tinha nas mãos. - Talvez seja rebate falso, mas que me dizes se experimentarmos dar-lhe um tratamento à moda antiga?
O Estraga resmungou.
- Referes-te a investigarmos todas as igrejas católicas da cidade?
- Não penso que seja necessário chegarmos a tanto. Bastam as de Greenwich Village. Espero que o pobre filho da mãe tenha estado a rezar em alguma igreja na tal sexta-feira à noite.
- Homem, tu gostas mesmo de ir até ao fundo das coisas, não gostas?
Havia uma fotografia de Harold Gerber nos arquivos do Departamento devido a detenções anteriores, e Jason persuadiu um fotógrafo da Polícia a arranjar-lhe duas cópias da mesma, uma para si, outra para Keisman.
Nesse preciso momento, o detective Calazo estava a ter problemas mais sérios com fotografias. Aparentemente não havia nenhuma de Ronald Bellsey nos arquivos. Calazo poderia ter requisitado uma telefoto de Bellsey a um fotógrafo da Polícia, sem que o suspeito desse por tal, mas isso significava ter de fazer a tal requisição e depois aguardar.
O velho detective de cabelos brancos já andava naquelas lides há tempo suficiente para saber que havia várias maneiras de levar a água ao seu moinho. Procurou o nome e o endereço do matadouro onde Bellsey trabalhava, indo visitar os seus escritórios, que ficavam na parte ocidental da Rua 14.
Claro que tinham uma fotografia de Ronald J. Bellsey nos seus arquivos. Calazo mostrou a sua identificação e requisitou a fotografia, prometendo devolvê-la. Não se deu ao cuidado de lhes
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pedir que não comunicassem a sua visita a Bellsey. Eles que contassem o facto ao malandro; era da maneira que o fazia suar um pouco.
Em seguida, Benny, recorrendo à ajuda do sargento Boone sempre que este tinha disponibilidade, seguiu o suspeito durante quase uma semana. Descobriu que Bellsey tinha três bares preferidos: o "Rabo da Baleia" na 11ª Avenida, uma taberna na 7ª Avenida, perto de Madison Square Garden, e outra na Rua 22, mesmo a leste da Broadway.
Também descobriu que Bellsey aliviava os seus humores, duas tardes por semana, com uma pega chinesa que trabalhava num hotel de terceira da Rua 23. Ela tinha um cadastro de todo o tamanho, tudo prisões por vadiagem, engates e prostituição. Ultimamente não andava nos seus melhores dias, pelo que Calazo calculou que se ela arranjasse vinte dólares por cada pinocada já não era nada mau.
Não a abordou. Certificou-se apenas de que escrevia o nome (Betty Lee), endereço, quarto e número de telefone, no seu relatório para Boone. Depois focou a sua atenção nos três locais que Bellsey frequentava.
Os três eram patronizados por pugilistas, treinadores, gerentes, agentes, corretores e outros indivíduos ligados ao mundo do ringue. E os três tinham as paredes cobertas por fotos e pinturas de pugilistas, falecidos e vivos, a que se juntavam recordações, tais como luvas ensanguentadas, calções, botas e roupões.
Calazo examinou então os registos das esquadras do norte e do sul de Midtown, a fim de ver quantas vezes a Polícia fora chamada a intervir naqueles três estabelecimentos e por que razões. Aquela tarefa nunca mais teria fim se Calazo não tivesse amigos em todas as esquadras de Manhattan. Assim, com um pouco de ajuda, só precisou de dois dias.
Depois de separar os incidentes ligados a problemas de embriaguez, rixa generalizada, roubos, tentativa de violação e um caso de exposição indecente, Calazo viu-se com quatro tipos de agressão que se assemelhavam bastante ao género de ataque de que o detective Timothy Hogan fora alvo.
Em qualquer dos quatro episódios, o homem espancado fora encontrado num passeio da via pública, numa travessa ou numa das sarjetas que ficavam próximas de um dos três bares. Nenhuma das vítimas podia identificar positivamente o seu agressor, mas todas elas tinham estado a beber num dos bares preferidos de Bellsey.
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Ao mostrar a fotografia de Bellsey a proprietários, empregados, barman e fregueses regulares dos bares, Calazo ficou a saber muita coisa - nada boa - acerca do sujeito. O detective estava convencido de que o suspeito fora responsável pelos quatro casos de agressão que estavam por resolver, para além do ataque a tom Hogan. Mas duvidava de que alguma vez aparecessem provas suficientes para o prender, quanto mais para o incriminar e condenar.
Sabia que o seu principal problema era determinar se Bellsey se encontrava verdadeiramente em casa na noite em que Ellerbee fora assassinado. A Sra. Lorna Bellsey dissera a Hogan que ela não vira na verdade o marido entre as oito e meia e as onze da noite. Mas isso não queria dizer, necessariamente, que este não estava presente.
Para além da resolução deste puzzle, Calazo estava determinado em fazer algo em relação à tareia dada a Hogan. Este era estúpido, mas não deixava de ser um polícia, e isso significava alguma coisa para Benjamim Calazo.
Também se dava o facto de detestar tipos como Ronald J. Bellsey, que pensavam que a única coisa a fazer era abrirem caminho a músculo através da vida sem nunca pagar dividendos por isso. Calazo começou a arquitectar um plano para resolver os seus problemas e, ao mesmo tempo, pôr Bellsey de rastos.
O facto de estar reformado, de passar à categoria de ex-polícia dali a três semanas, também era uma razão. Terminaria a sua carreira gloriosamente, dando uma boa lição a um escroque, vingando um camarada de trabalho e, com um pouco de sorte, descobrindo quem abrira o crânio do Dr. Ellerbee a golpes de martelo.
Seria algo para recordar quando estivesse a jogar shuffleboard na Florida.
Se Edward X. Delaney tivesse sabido dos planos de Calazo, tê-los-ia compreendido e até apoiado. Mas isso não o teria impedido de retirar Calazo do caso. Os ódios pessoais acabavam por intervir na capacidade de julgamento de um homem, e a queda de Ronald J. Bellsey era algo de muito pouca importância comparado com o assassínio de Ellerbee.
De momento, Delaney tinha preocupações muito suas. O chefe Suarez telefonara e em tom quase desesperado, perguntara se havia alguma novidade. Delaney disse-lhe que se tinham verificado algumas evoluções menores, não descobertas determinantes,
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e sugerira que se reunissem os dois a fim de fazerem uma revisão a toda a investigação. Concordaram em se encontrar em casa de Delaney às nove horas da noite de quarta-feira.
- Gostaria que a sua esposa pudesse vir consigo - disse Delaney. - Sei que a minha mulher ficaria muito satisfeita em conhecê-la.
- É muita gentileza sua - agradeceu Suarez. - Não deixarei de lhe transmitir o convite, e se conseguirmos arranjar alguém que fique com as crianças estou certo de que teremos muito gosto em visitar a sua encantadora casa.
Delaney repetiu a conversa a Mónica.
- O tipo fala como um nobre - disse. - Deve controlar os subordinados da sede com pulso de ferro.
- Bem, nós também temos um convite - informou-o Mónica. - Diane Ellerbee ligou a perguntar se gostaríamos de ir até à casa de Brewster neste sábado, com os Boones. Disse-lhe que teria de falar primeiro contigo e que depois lhe telefonava a dar uma resposta. Já indaguei junto de Rebecca e esta disse-me que ela e Abner adorariam. Digo a Diane que podemos ir no sábado?
- Oh, oh - murmurou Delaney. - Agora já a tratas por "Diane", não é? Que aconteceu à doutora Ellerbee?
- Tenho muitas coisas em comum com ela - disse Mónica em tom arrogante -, para além de achar um disparate não nos tratarmos com maior familiaridade.
- Ah, sim? Que é que tu tens de comum com ela?
- Ela é uma mulher muito inteligente.
- Ganhaste - disse ele a rir. - Claro, telefona-lhe a dizer que lá estaremos no sábado. Ela dá-nos de comer?
- Lógico. Disse que está a pensar num jantar-volante para o princípio da noite.
- Um jantar-volante - comentou ele mal-humorado. - Isso é comer tão mal como numa cafetaria.
Eram exactamente nove da noite de quarta-feira quando Michael e Rosa Suarez chegaram à casa de Delaney, ambos envergando aquilo que este designava de fatos domingueiros. Depois de feitas as apresentações, os dois casais sentaram-se na vasta sala de estar, perto da lareira, onde uma fogueira modesta aquecia e convidava à paz de espírito.
Falaram da onda de frio que se estava a fazer sentir, dos problemas ligados à educação dos filhos, do custo elevado da carne. A Sra. Suarez, a princípio, falou pouco, mas Delaney
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preparara uns ponches quentes (com limão e noz-moscada), e depois de duas pequenas chávenas a timidez de Rosa abrandou e esta começou a mostrar vivacidade.
Mónica trouxe uma bandeja com as suas delícias especiais de Natal: pastéis estaladiços com recheio de tâmara e amêndoa e depois envoltos em coco ralado antes de irem ao forno. Rosa provou um e rolou os olhos, extasiada.
- Por favor - implorou -, a receita! Mónica riu e estendeu-lhe a mão.
- Venha para a cozinha comigo, Rosa. Trocaremos segredos enquanto estes dois chatos ficam a falar de trabalho.
Delaney levou Suarez para o gabinete e providenciou cigarros para este.
- Antes de mais nada - disse o chefe -, devo dizer-lhe que fui forçado a reduzir o número de homens que trabalham no caso Ellerbee. Não estamos a obter resultados, nada, e o crime teve lugar já há um mês. Mais de um mês. Desde então, têm ocorrido muitas, muitas coisas que necessitam de atenção. O que desejo dizer é que o senhor e as pessoas que lhe foram atribuídas são agora a única esperança que nos resta. Compreende a necessidade de retirar homens deste caso?
- Claro - disse Delaney cordialmente. - Qual é a média que está a ter, quatro ou cinco homicídios diários, não? Sei que não tem mãos a medir e que não pode dar a cada um dos casos a cobertura de que estes precisam. Chefe, pode crer que as coisas nunca se passaram de maneira diferente. Trata-se de um problema que é inerente à profissão.
- Ao telefone falou-me de algumas evoluções. Mas nada que seja importante, pois não?
- Não - respondeu Delaney. - Por enquanto.
Pôs então Suarez ao corrente do facto de Isaac Kane e Sylvia Mae Otherton terem sido eliminados de suspeita.
- Isso deixa-nos quatro possíveis pacientes violentos, um dos quais já confessou. Não me parece que essa confissão valha um chavo, mas ainda assim tem de ser confirmada. Os álibis dos outros três estão a ser investigados. Neste momento diria que Joan Yesell é a pessoa que mais interesse oferece. Tudo indica que a mãe mentiu quando nos garantiu que estava em casa no momento da matança. Tenho dois detectives a trabalhar no caso.
- Portanto, está a fazer progressos.
- Não sei se lhes podemos dar esse nome - objectou Delaney cautelosamente. - Mas estamos a eliminar as possibilidades e a
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chegar às probabilidades. Sim, creio que podemos considerar que se trata de um progresso.
Suarez ficou calado, fumando o seu cigarro. De repente disse:
- Mas, e se eu...
Delaney ergueu a mão para o impedir de prosseguir.
- E se eu! Chefe, os "e se eu" podem dar cabo de si, se não se precaver. Penso que ilibámos Kane e Otherton. Essa minha crença baseia-se no bom trabalho desenvolvido por detectives e num pedacinho de sorte. Mas, e se Kane matou Ellerbee e depois foi de táxi para o apartamento dos Beeles na parte ocidental da Rua Oitenta e Três? Eles podem lembrar-se de o terem recebido de visita na noite do crime, mas não têm possibilidades de afiançar a hora a que ele chegou. E se Otherton telefonou para o empregado da recepção de fora, na noite do assassínio? E se matou Ellerbee e depois serviu-se do telefone deste para efectuar o telefonema que lhe serviria de álibi? O que eu quero dizer é que os "e se" nunca mais acabam. Um detective tem de ser imaginativo, mas se se deixa manipular demasiadamente por essa particularidade, está perdido.
Michael Suarez dirigiu-lhe um sorriso débil.
- Aí está uma grande verdade e uma lição que ainda estou a aprender. Partir do princípio de que todos os criminosos são possuidores de uma superinteligência, é um perigo. A maioria é, na realidade, deveras estúpida.
- Exactamente - concordou Delaney. - Mas alguns são bastante argutos. No fim de contas, é a pele deles que está em causa. Aquilo de que estou certo é que todos os detectives têm de se manter na linha muito estreita que se estende entre os factos nus e crus e os "e se". Às vezes a distância não é nenhuma.
- Mas apesar de tudo isto, Edward, continua confiante de que o caso Ellerbee pode ser resolvido?
- Se não acreditasse nesse facto, já o tinha comunicado a si e a Thorsen, tendo-me afastado imediatamente. Mas tenho a sensação de que o ritmo está a acelerar. Já eliminámos dois possíveis suspeitos. Penso que não vamos ficar por aqui.
Suarez suspirou.
- E se os seis suspeitos ficarem ilibados? Que é que lhe resta? Delaney sorriu amargamente.
- Lá está o chefe outra vez com um "e se". Se os seis ficarem limpos, não lhe sei dizer o que farei a seguir. Alguém matou Ellerbee; isso sabemos nós. Se os seis pacientes forem eliminados, então procuraremos noutras direcções.
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O outro homem fitou-o com curiosidade.
- O senhor não desiste com facilidade, pois não?
- Não, não desisto. Tudo indica que o doutor Ellerbee era um homem decente que tinha uma vida boa, válida. Não me agrada a ideia de alguém o ter morto e safar-se impunemente da proeza.
- Tempo - disse o chefe, resmungando. - Quanto tempo mais poderemos precisar para este caso?
- O tempo que levar - respondeu Delaney com brevidade.
- Trabalhei num caso de violação-assassínio durante cerca de dois anos, mas acabei por apanhar o perpetrador. Sei que a sua carreira depende de a questão ficar resolvida com a maior brevidade possível. Mas agora devo dizer-lhe que se isso não acontecer e os detectives que me deu forem retirados, eu continuarei a trabalhar nela sozinho.
- Sem limite de tempo?
- Não, isso não. Posso ser um filho da mãe obstinado, mas romântico é que não sou. Pelo menos não me considero como tal. Lá chegará a altura em que serei obrigado a admitir a derrota. Já me aconteceu anteriormente; não morrerei por causa disso. Que tal irmos ver o que estão as senhoras a aprontar?
As senhoras estavam de novo na sala de estar, onde se tinham sentado lado a lado no sofá, apreciando, obviamente, a companhia uma da outra.
- Temos de voltar a repetir esta ocasião - disse Mónica. No Natal teremos as filhas cá em casa, mas talvez nas férias...
- Então devem vocês ir a nossa casa - disse o chefe Suarez.
- Para jantar. Rosa faz uma paella (1) que nos dá a provar um pedacinho do céu.
- Tenho a impressão - comentou Delaney - de que esta amizade não vai contribuir nada para a nossa gentileza. Digam-me, como é que os dois se conheceram?
- Os pais de Rosa têm uma tasca na zona oriental de Harlém
- disse Suarez. - Foi destruída e eu, na altura um detective de terceira classe, fui chamado a proceder à investigação. A primeira coisa que lhe disse foi: "Hei-de casar contigo." Não é verdade, Rosa?
Ela fez um sinal de aquiescência, feliz.
- E a senhora? - perguntou a Mónica.
* (1) Prato típico espanhol, muito condimentado, preparado com arroz, carnes várias e mariscos. (N. do E.) *
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- O meu primeiro marido foi assassinado. Edward estava encarregue do caso, e foi por isso que nos conhecemos.
Rosa ficou chocada.
- E... - gaguejou -, o assassino foi apanhado?
- Oh, sim - disse Mónica. - Edward nunca desiste. É um homem muito teimoso.
- Essa também é a impressão que eu tenho - observou Suarez. - O que é muito encorajador.
- Chefe - disse Delaney -, se o caso Ellerbee não for esclarecido e o senhor não conseguir uma nomeação efectiva, imagino que regresse ao serviço das esquadras. Acha que consegue suportá-lo?
Suarez encolheu os ombros, abrindo as mãos em sinal de que nada podia fazer para o impedir.
- Seria uma desilusão. Não o reconhecer era ser desonesto. Seria capaz de o suportar, mas ainda assim não deixava de ser uma derrota. Penso que seria ainda mais lamentável para Thorsen do que para mim. Ele estava a trabalhar duramente para conseguir trazer as minorias para os lugares de direcção. O meu fracasso será o seu fracasso também.
- Não se preocupe demasiado com Ivar - advertiu Delaney.
- Ele está bem escudado. Aprendeu a sobreviver na selva política. Algo de que eu nunca fui capaz. Mas o chefe é um homem novo, com toda uma carreira à sua frente. Tem algum contacto com a estrutura política hispânica da cidade?
- Conheço algumas dessas pessoas, evidentemente - disse Suarez cautelosamente. - Mas também não tenho grande intimidade com elas.
- Então providencie essa intimidade - aconselhou Delaney.
- Elas dispõem de muita influência, característica que se acentuará à medida que os padrões de votação forem mudando. Eles que saibam que o senhor existe. Convide-os para irem jantar a sua casa. Todos os políticos gostam de um toque pessoal. É o trabalho deles. Se apaella de Rosa é tão boa como diz, pode ter aí uma arma secreta.
As mãos de Rosa voaram para o rosto numa tentativa de esconder o rubor súbito que a acometeu, ao mesmo que soltava uma risada.
- Estou a falar a sério - continuou Delaney. - Está a subir até fileiras em que terá de prestar tanta atenção à política quanto a que dá às tarefas policiais. Considere-o como uma das facetas do seu trabalho. Eu não fui capaz disso, mas não cometa os meus
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erros. Estamos numa cidade enorme, briguenta, confusa, e a política é o elemento aglutinador que a mantém de pé. Admito que há ocasiões em que esse elemento aglutinador cheira como uma porcaria qualquer que o gato arrastou para dentro de casa, mas consegue imaginar algum sistema melhor, mais humano? Eu não. Estou disposto a reconhecer que muitas vezes somos desajeitados, cometemos erros horrendos. Pode ser desencorajador, mas não há dúvida de que é diabolicamente melhor do que ser da guarda montada e passar a vida a gritar: "Tem de obedecer às ordens!" Portanto, meta-se na política, chefe. Ou, pelo menos, entre em contacto com os figurões importantes. Poderá ser altamente benéfico para si.
- Sim - observou Suarez pensativamente -, penso que tem razão. Tenho andado tão ocupado com os problemas do meu trabalho que negligenciei as relações pessoais que teriam tornado este lugar mais fácil de preencher. Fico-lhe agradecido pelo conselho, Edward.
- Não se limite a agradecer-me, faça-o!
Mais tarde, nessa mesma noite, ao preparar-se para ir para a cama, Delaney disse:
- Gente mesmo boa.
- São, não são? - concordou Mónica. - Aquela Rosa é uma boneca. Estavas a falar a sério quando o aconselhaste a cultivar a política?
- Absolutamente. Se quiser proteger a pele. Thorsen faz precisamente isso. Mas Suarez fará bem em acumular alguma força política através daqueles que a têm.
- Bem, se ele se dispuser a fazê-lo, terei de dar uma ajuda a Rosa. Ela é uma antiquada a vestir. Na realidade, é uma mulher muito atraente e podia melhorar muito mais o seu aspecto.
- Queres com isso dizer - ripostou ele gravemente - que pretendes convertê-la num objecto sexual?
- E tu podes ir para o inferno - disse-lhe a mulher, mas Delaney ainda estava a pensar na carreira de Suarez.
- Não conheço o homem muito bem - disse ele. - Uns quantos encontros, alguns telefonemas... Mas tenho a sensação de que o ponto forte dele é a administração. Realmente não me parece que possua a intuição básica que é necessária para ser um bom detective. É um pouco frio em demasia, um tanto desprendido. Ali não existe obsessão.
- É disso que um bom detective precisa, de ser obcecado?
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- Podes crer. Abner Boone tem essa qualidade e aposto em como Jason também.
- E tu?
- Suponho que sim - respondeu ele com brevidade. Voltou-se para a fitar.
- És uma bela mulher. Já alguma vez to disse?
- Não, recentemente.
- Bem, então estou a dizer-to agora.
- E qual é, pode-se saber, a razão para tão súbito acesso de romantismo?
- Pensei que devias ser devidamente apreciada - disse ele, piscando-lhe o olho.
- E devo - ripostou ela, apontando-lhe um dedo.
Capítulo vigésimo
Os detectives Helen Venable e Brian Estrella nunca tinham trabalhado juntos anteriormente, mas descobriram, para grande e agradável surpresa de ambas as partes, que faziam um bom par. Ele considerava-a uma mulher brilhante, vigorosa, capaz de executar a sua parte em qualquer trabalho aborrecido. Ela achava-o um grande chato, mas também esperto e compreensivo. Melhor que isso, ele não se punha com todas aquelas baboseiras machistas a que ela estava habituada com os outros polícias.
Helen pô-lo ao corrente de tudo o que sabia acerca de Joan Yesell, especialmente a questão ligada à Sra. Blanche Yesell e às suas noites de sexta-feira no clube de brídege.
- A grande cabra estava a mentir-nos - disse ela com amargura.
- Talvez sim, talvez não - respondeu Estrella. - Nessa noite houve um grande temporal; a partida de brídege pode ter sido cancelada. Ficou provavelmente em casa como diz. Qual é a tua opinião em relação a Joan?
- Não posso acreditar que ela seja a perp. Brian, juro por Deus que ela seria incapaz de matar uma mosca.
- Mas matar-se-ia a si mesma. Tem tendências suicidas, não tem?
- Suicidas, tem; homicidas, não.
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Ele iniciou a lenta rotina de encher o cachimbo, acamar o tabaco, chegar-lhe uma chama, puxar umas fumaças.
- Helen, tenho a impressão de que já tens a tua opinião formada sobre esta mulher. Gostas dela?
- Muito. Estamos até a pensar em arranjar um apartamento para as duas.
- Tem calma - aconselhou-a ele. - Deixa primeiro que a ilibemos.
- Brian, ela é como um ratinho. Não tem uma grama de maldade no corpo. Afianço-te que era incapaz de matar Ellerbee, ou qualquer outra pessoa. Chora quando vê um cão abandonado.
- Hum, hum - murmurou ele. - O assassino mais cruel que já apanhei criava gerbilos.
- Queres falar com Joan e veres com os teus próprios olhos?
- Ainda não - respondeu ele. - Mantém a tua rotina amigável com ela, mas não lhe digas que estou a trabalhar contigo.
Sem dar nas vistas, Estrella passou a semana inteira a confirmar as investigações feitas por Venable, e não lhes encontrou falhas. Falou com os médicos de St. Vincent, com colegas de trabalho de Yesell no escritório, vizinhos, comerciantes, até com o homem que entregava o correio no prédio onde a família Yesell morava.
Tudo o que ouviu consubstanciava o que Helen lhe contara: Joan Yesell era uma mulher tímida e retraída. A única má-língua que lhe chegou aos ouvidos foi a de que Blanche Yesell era uma verdadeira déspota que tratava a filha como se esta fosse uma cretina sem cabeça ou vontade para tomar as suas próprias decisões.
Na sexta-feira à noite, estavam os dois detectives enfiados no Honda de Venable, que esta estacionara a algumas portas de distância da residência vigiada.
- com a sorte que tenho - observou Helen lugubremente -, a mamã Blanche tem a partida de brídege no seu apartamento esta noite.
- Isso não faz nenhuma diferença - objectou Estrella. - Se assim for, tu e eu iremos atrás de duas das senhoras depois da partida terminar. Abordamo-las, ficamos com os nomes e moradas, e depois trabalhamos a partir daí. Mas se a senhora Yesell sair...
Facto que, enquanto falava, sucedeu. Viram-na virar para oeste e atravessar a rua.
- É ela - disse Venable com voz tensa.
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- Muito bem - retorquiu Estrella -, tu vais atrás dela e registas o número da porta do edifício onde entrar. Eu vou fazer uma chamada telefónica. Voltamos a encontrar-nos aqui.
Helen arrancou atrás da apressada Sra. Yesell. Brian dirigiu-se para a 8ª Avenida e utilizou o telefone de uma charcutaria que estava aberta toda a noite. Ligou para o apartamento das Yesells.
Atendeu uma voz débil.
- Está?
- Queria falar com a senhora Blanche Yesell, por favor - disse Estrella.
- Ela não se encontra aqui de momento. Quem fala?
- É o detective Brian Estrella, do Departamento da Polícia de Nova Iorque. com quem falo?
- Eu sou Yesell, filha da senhora Blanche Yesell.
- Menina Yesell, tenho muita urgência em entrar em contacto com a sua mãe esta noite. Tenho um documento para ela assinar. Trata-se de um acto de rotina, mas já sabe como é, temos de nos ater às regras e aos regulamentos.
- Um documento? É acerca da morte do doutor Ellerbee?
- Exacto. É apenas o depoimento em que a sua mãe afiança ter estado em casa naquela noite. Pode dizer-me onde posso encontrá-la?
- Ela está com o seu grupo de brídege.
- É capaz de me dar o número de telefone do local a fim de eu poder contactá-la?
- Bem, esta noite está em casa da senhora Ferguson.
- Tem o número de telefone? - insistiu.
Ela hesitou um momento, mas depois forneceu-lhe o número. Apontou-o na palma da mão com uma esferográfica.
- Muito obrigado, menina Yesell.
- Alguns minutos mais tarde, estava de volta ao Honda. Helen aguardava-o.
- Tenho o endereço - disse Venable.
- E eu o nome e o número de telefone. Está a andar.
Na manhã seguinte, Delaney sentia-se igualmente optimista ao combinar com Mónica a ida à casa de campo de Diane Ellerbee na companhia dos Boones.
- Parece que vai estar um dia esplêndido - comentou com regozijo.
E estava. O céu azul tremeluzia como uma asa de borboleta. O Sol era um disco quente e, além, para leste, era possível divisar
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a mancha ténue da Lua. O ar gelado mordia como éter e o mundo inteiro parecia lavado e polido.
O tráfego era denso, mas eles fizeram a viagem num espaço de tempo surpreendentemente curto, efectuando apenas uma paragem na estação de gasolina de Brewster para perguntarem em que direcção deviam seguir, utilizarem os lavabos e comprarem dezoito litros de gasolina como forma de agradecimento.
Seguiram lentamente através de uma estrada secundária, comentando as caixas de correio que iam vendo: um moinho de vento, uma casa miniatura, um modelo de avião.
- Muito engraçado - disse Delaney. - Como será a dos Ellerbees: um sofá de couro negro com uma bandeira vermelha?
Mas a caixa de correio com o nome Ellerbee pintado era um modelo de alumínio perfeitamente comum. Encontrava-se à entrada da estrada estreita que se encurvava subindo em direcção à casa e aos edifícios exteriores. A suave subida não era suficientemente alta para poder ser designada de colina, mas o declive era suficiente para providenciar uma vista agradável da paisagem circundante.
Boone conduziu o carro até à área coberta de cascalho que ficava defronte da garagem para três veículos. Estacionado em frente desta encontrava-se um Volkswagen coberto de poeira e o jipe station dos Ellerbees. A porta da garagem estava subida, e eles puderam ver no interior desta o Jaguar XJ6 verde-garrafa do Dr. Simon e o Mercedes-Benz negro e prateado de 1971 da Dra. Diane.
- Tenho de dar uma vista de olhos àquele Mercedes - disse Delaney. - É uma beleza.
Dirigiu-se, juntamente com Boone, para a garagem, enquanto as respectivas esposas caminhavam lentamente em direcção ao edifício principal pelo carreiro curvo coberto de ladrilhos cor de ardósia.
Delaney e Boone gastaram alguns minutos a admirar os bonitos carros na garagem.
- Eu fico com o Jaguar - disse Boone, desatando a rir. - Já me imaginou a guiar uma coisa destas pela Midtown Norte acima? Começavam logo a imaginar que me tinha saído a sorte grande.
- Mmm - murmurou Delaney. - Porque terá ela vendido o automóvel? Quem é que precisa de um Jaguar e de um Mercedes!
- Talvez não consiga arranjar comprador - alvitrou o sargento.
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- A única coisa a que eu posso chegar é àquele velho Beetle que está estacionado ali fora. De quem supõe que seja? Caminharam em direcção ao edifício principal. A porta estava aberta e ao cimo do pequeno lanço de escadas, aguardando-os, via-se o Dr. Julius Samuelson.
- Agora já sabes de quem é o Beetle - disse Delaney a meia voz.
No interior da casa reinava um ambiente quente, perfumado pelos toros que ardiam na lareira e pelos odores aromatizados que vinham da cozinha.
- Ah! - exclamou Delaney, cheirando o ar apreciativamente.
- Alho. Adoro.
- Ainda bem - comentou a Dra. Diane, rindo. - Vem da carne à bourguignonne que está ao lume, e a minha cozinheira tem a mão pesada no que se refere ao alho. Mas a salada tem salsa fresca, o que deve ajudar. Agora vamos tomar uma bebida antes de eu lhes mostrar a casa.
Fez um gesto na direcção de um bar repleto de garrafas de vidro e de cristal.
A espaçosa sala de estar tinha as traves do tecto, em madeira de carvalho, expostas, e uma lareira em pedra. O soalho era de tábuas de pinho dispostas assimetricamente. Ao fundo, portas francesas davam para um pátio ladrilhado e para a piscina, naquela altura vazia e coberta.
O quarto principal, que ficava no rés-do-chão, assim como os dos convidados, que eram no primeiro andar, dispunham de lareiras e casas de banho privativas. A cozinha moderna estava repleta de armários escondidos e de lâmpadas fluorescentes. Tinha uma pequena estufa para plantas.
A sala de jantar era dominada por uma impressionante mesa de três metros que tinha por tampo uma única tábua de teca, com espessura suficiente para deter uma bala de canhão.
Não havia qualquer disfarce no amor (e dinheiro) com que aquele lar tinha sido formado. Mais tarde, Delaney lembraria a Mónica que não havia ali uma única peça de mobília, quadro, tapete ou bibelô que ele não desejasse possuir.
Mas o que impressionou os hóspedes acima de tudo foi o conforto informal: cores quentes, madeira reluzente, metais refulgentes. Era fácil compreender como semelhante lugar podia servir de santuário à cidade de aço e cimento.
Olhando em redor, Delaney não tinha dificuldade em entender a fúria que a Dra. Diane demonstrava para com o assassino do
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marido, o seu desejo de vingança. É que ele sabia que os bens são mais bem apreciados quando partilhados com outros, e julgava possível que, depois da morte do Dr. Simon, todas aquelas coisas adoráveis tivessem começado a esmorecer. Agora não passavam de simples coisas para Diane Ellerbee.
As mulheres juntaram-se para darem uma volta pelo pátio e inspeccionarem o formal jardim inglês. O Dr. Samuelson deixou-se ficar junto da lareira da sala de estar, mas Delaney e Boone foram passear pelos campos circundantes, admirando a vista e imaginando a preciosidade que aquele lugar não seria na Primavera e no Verão.
Deambularam até à parte das traseiras do edifício principal, passando pela piscina e pelo jardim. Mãos enfiadas nos bolsos, ombros encurvados, foram dar a um aglomerado de árvores despidas. E chegados ali depararam com um ribeiro que parecia negro e frio, apresentando uma formação rendilhada de gelo em ambas as margens.
- Acha que terá peixe? - perguntou Abney Boone.
- É possível - respondeu Delaney. - Depende do sítio de onde vem. E daquele onde termina. Gostaria de saber se eles tomam banho nele no Verão.
Pegou numa pequena pedra solta que viu na terra e atirou-a para a água. Mas não foram capazes de determinar a sua profundidade.
De volta à casa, todos tomaram mais uma bebida, agrupando-se! em redor da lareira. A tarde ainda ia no princípio, mas o dia já; começara a escurecer e o sol perdera o seu brilho.
- vou preparar alguns hors doeuvres - disse Diane. - Marta e Jan trabalharam durante toda a manhã na preparação da comida e eu deixei-os ir para casa. Podemos servir-nos a nós próprios, não acham?
- com certeza - concordou Delaney, profundamente bem-humorado. - Isto é tudo gente doméstica. Que posso fazer para a ajudar?
- Absolutamente nada - disse Diane. - Apenas comer. Julie, vem dar-me uma pequena ajuda na cozinha.
Ele seguiu-a obedientemente.
Havia um banquete de aperitivos: camarões cozidos, azeitonas recheadas com pimentos, pepinos doces de conserva, salmão e esturjão fumados, fatias grossas de vários tipos de queijo, quatro espécies diferentes de pãezinhos e biscoitos, fígados de aves em molho de vinho, fatias finas de presunto e sardinhas de conserva norueguesas em azeite de oliveira.
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Lá se vai a minha dieta - comentou Rebecca, suspirando.
Lembre-se apenas de deixar espaço para o jantar - disse
Diane, rindo.
- Edward se encarregará de dar conta de uma boa parte - disse Mónica Delaney. - Ele era capaz de viver só de comida como esta.
- De viver e florescer - concordou o marido alegremente, provando de tudo. - Este salmão faz-me acreditar em Deus.
Finalmente, ficaram saciados e voltaram a sentar-se, de olhos brilhantes, erguendo as mãos em sinal de quem já não podia mais.
- Julie - disse Diane Ellerbee com ar decidido -, vamos arrumar as coisas.
Mas Delaney já se tinha posto de pé antes de Samuelson conseguir desenvencilhar-se da sua cadeira de braços.
- É a minha vez - disse, dirigindo-se a Samuelson. Deixe-se estar aí e descontraia-se. Sou bom nisto: Mónica treinou-me.
Assim, ele e Diane levaram as coisas da sala de estar, mostrando Delaney a sua eficiência de empregado de mesa ao transportar quatro ou cinco pratos de uma só vez, dispostos ao longo do braço estendido e firme.
Na cozinha, admirou a eficiência de Diane. Todas as sobras ficaram guardadas em recipientes individuais fechados. Pratos e talheres foram passados por água e colocados na máquina de lavar loiça. Ela trabalhava com graça e rapidez, não desperdiçando um só movimento.
Vestia um conjunto de caxemira preta e tinha o cabelo preso ao alto por um exótico gancho de tartaruga. Ele observou-lhe o perfil e, mais uma vez, maravilhou-se perante a perfeição clássica da sua beleza: algo cinzelado - a pedra lapidada até revelar a imagem.
- Ora bem! - exclamou ela alegremente, olhando para a sua asséptica e bem organizada cozinha. - Penso que já está tudo. Obrigada pela sua ajuda. Vamos juntar-nos aos outros?
- Um momento - disse ele, erguendo uma mão para a deter.
- Penso que merece ser informada do evoluir do trabalho de investigação que temos estado a desenvolver.
Ela fitou-o, deixando cair a máscara da anfitriã, as feições endurecendo-se: a viúva vingativa, mais uma vez.
- Sim - disse Diane. - Agradeço-lhe. Estava à espera de que se oferecesse para o fazer.
Sentaram-se ao lado um do outro em bancos altos, ao balcão da
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cozinha. O som das gargalhadas que ecoava na sala de estar chegava até eles. Mas a cozinha providenciava uma sensação de intimidade e segredo, enquanto ele ia pondo Diane ao corrente do que tinham descoberto.
- Na minha opinião - disse, concluindo -, Kane e Otherton estão livres de suspeitas. Isso deixa-nos quatro dos pacientes que nos indicou. Os álibis destes ainda estão a ser verificados. É um processo longo, trabalhoso, e ainda andamos às voltas com o segundo misterioso par de pegadas.
- Que quer dizer? - perguntou Diane.
- Naquela noite, o seu marido recebeu, aparentemente, dois visitantes no consultório. Ao mesmo tempo ou a horas diferentes? Não sabemos. Por enquanto. Agora tenho uma pergunta para lhe fazer. Ficou surpreendida pelo facto de o seu marido ter cancelado todas as contas atrasadas dos seus pacientes?
Ela ficou a olhar para ele na obscuridade que começara a reinar na cozinha, os olhos muito abertos e a boca pendente.
- Oh! - exclamou. - Como é que soube desse pormenor?
- Doutora Ellerbee - disse ele pacientemente -, estamos a desenvolver uma investigação criminal. Tudo é importante até se provar o contrário. Naturalmente estávamos interessados nas determinações constantes no testamento do seu marido, na esperança de que através delas obtivéssemos alguma pista. Ficou admirada por ele perdoar as dívidas dos seus pacientes?
- Não, não fiquei admirada. Ele era um homem muito generoso. Fazer uma coisa como essa estava inteiramente de acordo com o carácter dele.
- Quer dizer que tinha conhecimento do que havia no seu testamento antes da sua morte?
- Evidentemente. Assim como ele sabia o que estava no meu. Não tínhamos segredos um para o outro.
- A senhora e o seu falecido marido possuíam o mesmo advogado, não é verdade?
- Não - respondeu ela -, por acaso não era o mesmo. Simon servia-se de um antigo amigo da faculdade, um homem que eu não suportava. Eu tinha o meu próprio advogado.
- Bem, não tem importância - disse Delaney, fazendo um gesto de quem deseja mudar de assunto. - No que se refere aos quatro pacientes que ainda não ilibámos, conheceu alguns deles pessoalmente?
- Tive oportunidade de conhecer alguns dos pacientes de Simon - respondeu ela. - De um modo geral foram encontros
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breves e devidos ao acaso. Há algum em particular que deseje referir?
- Joan Yesell.
- A mulher com tendências suicidas? Sim, encontrei-a uma vez. Porque pergunta?
- É possível que nos tenha dado um álibi falso. Qual foi a impressão que ela lhe deu?
- Só a vi por um momento, não suficientemente longo para me permitir formar uma opinião. Mas achei-a uma mulher deveras simples e desprovida de atractivos. Achei muito pouca vivacidade nela. Mas, como disse, foi apenas um encontro muito rápido. O meu marido apresentou-ma e foi tudo. E agora podemos ir juntar-nos aos outros?
Mas antes de se dirigirem para a sala de estar, Diane pousou-lhe levemente a mão no ombro.
- Obrigada por me manter informada, senhor Delaney - disse com voz abafada. - Sei que se tem esforçado muito com este caso e fico-lhe muito agradecida por isso.
Ele anuiu e manteve a porta baloiçante da cozinha aberta para ela passar. Ao fazê-lo, Delaney captou-lhe o odor: algo forte e almiscarado que o excitou.
Entraram na sala de estar, onde os outros quatro se encontravam sentados, pachorrentos sob os efeitos da comida e da bebida.
- Doutora Ellerbee - disse Delaney, na esperança de estimular os seus amigos -, doutor Samuelson... já alguma vez vos passou pela cabeça a similitude que existe entre o trabalho desempenhado pelo psiquiatra e aquele que o detective desenvolve? Utilizamos ambos as mesmas técnicas de investigação: interrogatórios intermináveis, o lento acumular do que pode constituir, ou não, pistas determinantes, a solução, peça a peça, de umpuzzle, até este formar contornos reconhecíveis. No fundo, os psiquiatras são detectives, ou não é assim?
Ò Dr. Julius K. Samuelson endireitou-se, subitamente alerta e interessado.
- As técnicas podem ser similares - disse no seu tom de voz agudo -, mas os motivos básicos são a antítese. O detective procura atribuir culpa. Mas a culpa não faz parte do léxico do psiquiatra. O paciente não pode ser punido por aquilo em que se tornou. Normalmente ele é uma vítima, não um criminoso.
- Quer dizer - observou Delaney, deliberadamente provocador -, que ele não possui culpa? E quando se trata de um psicopata que mata? Estará ele totalmente desprovido de culpa?
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- Eu penso - disse Diane em tom decidido - que o que Julie quer dizer é que o acto do assassino em si é prova prima fade (1) de instabilidade mental ou emocional.
- Oh, oh! - exclamou Delaney. - Os pobrezinhos que matam, todos eles são doentes, não são? Devem ser tratados e não castigados. E que me dizem do homem que maltrata crianças? Está apenas um pouco doente, mas não tem culpa?
- Ê quanto ao tipo que mata para roubar? - acrescentou o sargento Boone, inflamado. - Estamos sempre a deparar com casos desses: gente inocente que é assassinada por meia dúzia de patacos. Deve o assassino continuar em liberdade porque a sociedade não lhe providenciou formas de subsistências garantidas? Acham que um sistema de assistência social total eliminaria os crimes cujo motivo fosse o roubo? Nem pensar! As pessoas continuariam a matar por dinheiro. Não porque estejam doentes, mas sim porque são gananciosas. A pena capital é o melhor tratamento que elas podem ter.
- Não acredito na pena de morte - disse Rebecca Boone convictamente.
- Concordo - apoiou Diane. - A resolução do problema não está na execução. As estatísticas provam que isso não actua como meio de intimidação.
- De certeza que intimida o tipo que é eliminado - observou Delaney. - Esse não terá possibilidade de sair sob fiança e voltar a matar. O problema de vocês, psiquiatras, é o de que têm a mesma mania que os padres: pensam que todas as pessoas podem emendar-se. Diga-lhes que é assim, sargento.
- Há pessoas que nascem corruptas e mantêm-se corruptas toda a vida - disse Boone. - Perguntem a qualquer polícia. Os criminosos deste mundo estão para além da redenção.
- Exacto! - exclamou Delaney brutalmente. Virou-se para os dois médicos.
- O que vocês não admitem é que algumas pessoas são normalmente tão corruptas que não podem ser ajudadas. Elas aceitam o mal como meio de vida. Adoram-no! Deliciam-se com ele! E o mundo fica melhor sem eles.
- E quando alguém mata por paixão? - perguntou Mónica.
- Uma paixão súbita, incontrolável.
- Insanidade temporária? - inquiriu Boone. - É essa a vossa defesa? Simplesmente não pega.
* (1) Expressão latina: À primeira vista. (N. da T.) *
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Está estipulado que nós somos homo sapiens, animais prudentes, inteligentes, com um controle civilizado sobre os nossos instintos primitivos. Um crime de paixão é um crime, ponto final. E as razões não devem exercer influência sobre o veredicto.
Começaram então todos a discutir: responsabilidade, culpa, pena de morte, fiança, o conflito entre lei e justiça. Delaney voltou a sentar-se, bem-disposto, ouvindo o bruá que provocara. Uma boa festa familiar. Até que, a certa altura...
- Já repararam - disse - que quando o assassino é apanhado em flagrante com as mãos cheias de sangue, o advogado de defesa clama sempre que se tratou de um acto de loucura e contrata um batalhão de psiquiatras "a favor"?
- E, entretanto - acrescentou Boone -, o acusado anuncia ao mundo que se tornou um cristão renascido e que deseja apenas renunciar às suas práticas maldosas e viver uma vida santa.
- Vocês são demasiado rápidos a encontrar desculpas para os vossos pacientes - disse Delaney aos dois psiquiatras. - Não estão dispostos a admitir a existência de maldade no mundo? Diriam que Hitler era mau ou apenas mentalmente doente?
- As duas coisas - respondeu o Dr. Samuelson. - A doença dele tomou a forma do mal. Mas se tivesse sido detectada a tempo, poderia ter sido tratada.
- Claro que podia - disse Delaney amargamente. - Uma bala na cabeça teria sido muito eficiente.
A discussão voltou a inflamar-se e centrou-se gradualmente no problema da pessoa normal que vivia uma existência respeitadora da lei e de súbito cometia um crime hediondo totalmente inexplicável.
- Uma vez tive um caso desses - contou Delaney. - Um dentista da Bronx... Aparentemente sem grande stress emocional ou profissional. Um tipo pacato. Um bom cidadão. Mas começou a espreitar as pessoas a partir do telhado do prédio onde ficava o seu apartamento. Matou duas, feriu cinco. Ninguém era capaz de explicar porquê. Penso que ainda está preso. Mas eu nunca o considerei louco. Vão-se rir quando eu vos disser qual foi, na minha opinião, o motivo dele. Penso que ele se sentia apenas aborrecido. Tinha uma vida vazia, desprovida de incentivos. De modo que começou a fazer pontaria a pessoas com a sua espingarda. Deu novo interesse à sua existência.
- Uma análise muito penetrante - observou Samuelson com admiração. - Nós designamo-lo de anomia: um estado de desorientação e isolamento.
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- Mas não é desculpa para assassinar - disse Delaney. Esse acto não tem desculpa possível. Ele era um homem inteligente; sabia que estava a proceder mal.
- Talvez não conseguisse exercer controle sobre si mesmo alvitrou Diane Ellerbee. - Isso acontece, como sabe.
- Não tem desculpa - insistiu Delaney teimosamente. Todos nós podemos passar por momentos de intenso desejo de matar, mas controlamo-nos. Se não houver autodisciplina, então regressamos à selva. É na autodisciplina que toda a civilização assenta.
Diane sorriu debilmente.
- Receio bem que nem todos sejam tão fortes como o senhor.
- Fortes? Eu sou um gatinho. Não é, Mónica?
- Recuso-me a responder - disse esta -, porque tenho receio de me incriminar.
Diane riu e levantou-se para ir preparar o jantar. As mulheres dispuseram pratos, copos, grossos guardanapos cor-de-rosa e talheres sobre paninhos individuais de linho.
A carne à bourguignonne encontrava-se em dois tachos de ferro fundido holandeses que tinham de ser manuseados com espessas pegas isoladoras. Delaney e Boone carregaram os recipientes para a sala de jantar e instalaram-nos sobre tripés. Samuelson trouxe as taças com salada e os cestos contendo pão francês quente e estaladiço. Nessa altura Diane apresentou um Cabernet Sauvignon de 1978 da Califórnia.
- Que maravilha - observou Delaney, examinando o rótulo.
- É a última caixa - disse a anfitriã tristemente. - Simon e eu adorávamos este vinho. Mantínhamo-lo guardado para ocasiões especiais. Senhor Delaney, importa-se de desarrolhar as garrafas?
- com todo o prazer - disse ele. - Todas?
- Todas - respondeu ela firmemente. - Assim que o provarem saberão porquê.
A longa mesa providenciava-lhes muito espaço. A anfitriã ficou sentada à cabeceira, enchendo os pratos com o guisado, e pequenas taças de madeira com a salada.
- É divinal - comentou Mónica. - Diane, nunca poderá fazer-me crer que se trata de guisado de carne.
- De facto é lombo de vaca. Por favor, quando estiverem prontos para repetir, não se acanhem; estou demasiado ocupada a comer.
Todos eles estavam bastante ocupados a comer, mas não
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o suficiente para deixarem a conversa esmorecer. Abner Boone ficara sentado ao lado de Mónica, e Rebecca fazia par com o Dr. Samuelson. Delaney estava à direita da dona da casa.
- Espero - disse, inclinando-se para esta - que não tenha ficado perturbada com a conversa que tivemos antes de jantar. Todas aquelas questões sobre crime e castigo.
- Não fiquei absolutamente nada perturbada - assegurou-lhe ela. - Acho o tema fascinante. Tantos pontos de vista...
- Expressei-me com um pouco de dureza em relação aos psiquiatras - reconheceu Delaney. - Na verdade não sou assim tão hostil para com a sua profissão. Estava apenas a...
- Sei que estava a ser justo - interrompeu ela. - Tentou arranjar algo que lançasse todos ao barulho. Foi brilhantemente bem sucedido, facto pelo qual lhe estou grata.
- É sempre o papel que me cabe - observou Delaney com um sorriso esquisito. - O incentivador das festas. Disse uma que me surpreendeu.
- Ah, sim? E que foi?
- A sua objecção à pena de morte. Depois do que passou, eu imaginei que seria a favor dessa forma de punição.
- Não - disse ela rapidamente -, não sou. Quero que o assassino de Simon seja apanhado e punido. Até ao limite da lei. Mas não acredito no "olho por olho, dente por dente".
O Dr. Samuelson impediu-o de ter de responder, erguendo uma mão e exclamando em voz esganiçada:
- Uma pergunta!
Todos se calaram, focando a atenção nele.
- Alguém objecta a que eu ensope pedaços deste pão maravilhoso no molho da carne?
Não se levantaram objecções.
Tal como a anfitriã previra, o vinho desapareceu todo num instante e o guisado e a salada foram quase totalmente consumidos. Mais tarde, depois de levantada a mesa, as mulheres foram para a cozinha, enxotando os homens de novo para a sala. Esta ficara gelada e Samuelson acrescentou mais algumas achas à lareira.
- Temos aquecimento central, evidentemente - disse aos outros -, mas Diane prefere manter o termostato baixo e recorrer às lareiras.
- Acho que faz muito bem - observou Abner Boone. Poupa energia e o calor de lareira tem um sabor especial. Mas não devia haver uma grelha de protecção?
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- Penso que há uma algures por aí - disse Samuelson com ar vago -, mas Diane não a utiliza.
Deixaram-se ficar sentados a olhar para o fogo rejuvenescido.
- Estava com receio de que tivéssemos perturbado a doutora Ellerbee - disse Delaney a Samuelson. - Mas ela afirma que não.
- É uma mulher muito forte - observou Samuelson. Recuperou rapidamente do trauma causado pela morte de Simon. Agora só de vez em quando é que reparo até que ponto esta a afectou. Tem momentos súbitos de tristeza ou, então, fica sentada, em silêncio, olhando para o nada. Era de esperar. Foi um choque terrível, mas está a reagir bem.
- Suponho que o trabalho que realiza ajuda - disse Boone.
- Sem dúvida. Lidar com os problemas das outras pessoas é uma terapia excelente para aqueles que nos afligem a nós mesmos. Falo por experiência própria. Não providencia uma cura total, compreendem, mas ajuda. Diga-me, senhor Delaney, está a fazer progressos na sua investigação?
- Alguns - respondeu ele cautelosamente. - Como a doutora Ellerbee provavelmente lhe disse, continuamos a trabalhar nos álibis. Ainda não tive ocasião de lhe agradecer a colaboração que nos prestou ao levá-la a fornecer-nos aquela lista.
Samuelson levantou uma mão.
- Tive muito gosto em fazê-lo. E acham que algum dos pacientes por ela indicados poderá ter sido capaz de cometer o crime?
- É demasiado cedo para o dizer. Eliminámos dois deles. Mas há um, uma mulher, que apresenta um álibi que parece não poder ser confirmado.
- Sim? Diane forneceu-vos alguns dados sobre os antecedentes dessa mulher?
- Sofre de depressão. E já tentou suicidar-se várias vezes. Uma desde que começámos a interrogá-la.
- Bem... - observou o psiquiatra pensativamente - pode ser que seja a pessoa que procuram, mas custa-me a acreditar. Não me consigo lembrar de nenhum caso em que uma pessoa de tipo suicida tenha dado em homicida. Não estou a afirmar que não pode acontecer, compreendem, mas o suicida e o assassino em potência têm muito pouco em comum. No entanto, o comportamento humano é um nunca acabar de surpresas, portanto não deixem que os meus comentários influenciem a vossa investigação. ;
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Oh, não há perigo - disse Delaney jovialmente. -
Continuaremos a escavar.
As mulheres regressaram à sala, e os homens levantaram-se. Conversaram durante um bocado até que Delaney a certa altura, ao reparar no ar de Mónica, sugeriu que talvez já fossem horas de partir, pois não sabia como estaria o tráfego numa noite de sábado. A dona da casa protestou, mas não demasiado veementemente.
Agradeceram a hospitalidade à Dra. Ellerbee, assim como a maravilhosa comida, cumprimentando-a de novo pelo lar maravilhoso que possuía.
- Façam planos para cá voltarem de novo - pediu-lhes ela.
- Na Primavera ou no Verão, quando as árvores se enchem de folhagem e os jardins estão floridos. Penso que irão gostar.
- Tenho a certeza de que assim será - afirmou Mónica. Esta e Rebecca abraçaram a sua anfitriã e foram andando para o
carro.
A certa altura da viagem que os levou de regresso a Manhattan, Delaney perguntou:
- Acham que Samuelson fica para o fim-de-semana?
- Seu velho devasso - exclamou Mónica. - E se ficar?
- Ela ficou com três empregados - ironizou Abner Boone.
- O casal polaco e ele.
- Oh, também reparaste nisso, não foi? - exclamou Delaney. - Tens razão. "Mie, prepara as bebidas." "Mie, traz o café." E ele a obedecer sem vacilar.
- Penso que está apaixonado por ela - disse Rebecca.
- Ora, e porque não? - admirou-se Mónica. - Uma viúva e um viúvo. com tanta coisa em comum. Acho que é bom terem-se um ao Outro.
- Ele é demasiado velho para ela - observou o sargento.
- Acha? - perguntou Delaney. - A mim parece-me que ela é que é mais velha do que todos nós. Santo Deus, mas que casa magnífica!
- Um tanto bonita de mais - disse Rebecca. - Parece um palco de teatro. Repararam que ela passa a vida a despejar os cinzeiros?
- Se o que lhe apetece são cinzeiros cheios - disse Delaney -, que tal passarem por minha casa para uma última bebida?
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Capítulo vigésimo primeiro
O detective Ross Konigsbacher tinha de admitir que estava a gozar o melhor serviço que lhe calhara em catorze anos de Departamento. O homossexual que ficava encarregado de vigiar, L. Vincent Symington, não era, no fim de contas, tão mau tipo como imaginara.
Parecia dispor de todo o dinheiro do mundo e não se acanhava em gastá-lo com prodigalidade. Pagava as contas de todos os jantares e bebidas, e insistia em que fossem de táxi para todo o lado - mesmo que se tratasse apenas de uma distância de cinco quarteirões. Era um maníaco das gorjetas e já tinha começado a comprar presentes a Kraut.
Estes começaram por uma garrafa de Frangelico que Vince queria que ele provasse. A seguir, Ross ganhou uma pulseira com grossos aros de prata, um pulôver de caxemira, uma gravata Countess Mara, um cinto de pele de lagarto, um lenço de pescoço de seda. Sempre que se encontravam, Symington tinha um presente para lhe dar.
Ross fora convidado duas vezes para ir ao apartamento de Vincent e pensava que este era das casas mais bonitas que já vira. Numa dessas visitas, Symington preparara o jantar para ambos, um filet mignon que fora o melhor bife que Konigsbacher alguma vez provara na vida. Entretanto, Kraut ia apresentando relatórios forjados ao sargento Boone, esforçando-se para que aquela missão se mantivesse indefinidamente. Mas Boone não podia ser enganado com tanta facilidade, e fazia pouco tempo pressionara Konigsbacher no sentido de este apresentar mais resultados. Ou confirmava o álibi de Symington ou rejeitava-o. De modo que, contrariado, Ross fazia algum trabalho.
Da primeira vez em que foram ao Stallions, encostara-se ao bar e mandara vir uma cerveja, olhando seguidamente em redor. Symington tivera razão: ele nunca vira tanto cabedal preto em dias da sua vida. Todos aqueles excêntricos estavam a tentar parecer membros de gangs de motociclos. Os seus fatos rangiam ao moverem-se, e até nos punhos das mangas tinham fechos.
- O Nick tem aparecido? - perguntou ao afeminado barman, com ar casual.
- Nick quem, querido? Conheço três Nicks.
- O puto que quer ser actor.
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- Oh, esse. Anda sempre dentro e fora.
- Estou a preparar-me para fazer um anúncio e pode ser que tenha um biscatezinho para ele. Se o vir, diga-lhe, está bem?
- Como é que posso entrar em contacto contigo, doçura?
- Chamo-me Ross - disse Konigsbacher. - Andarei por perto.
O barman esboçou um sinal de entendimento. Nada de apelidos, moradas, números de telefone.
Kraut passou mais tempo no Stallions do que aquele que ficou em casa. Beberricava lentamente cervejas nos fins de tarde e ao princípio das manhãs, antes de se encontrar com Symington. Começou a tomar gosto ao local. Bastava inspirar o ar profundamente para se ficar estimulado, e se Kraut quisesse atingir um recorde de prisões por posse ilegal de droga, teria feito carreira naquele bar.
Levou cinco dias. Estava sentado a uma pequena mesa de canto a tomar uma cerveja, quando um rapazola se aproximou dele, vindo do balcão do bar, postando-se na sua frente. Trazia o cabelo cortado à moda dos anos cinquenta e com brilhantina suficiente para lubrificar um camião. Envergava uns jeans muito justos e coçados, uma T-shirt de mangas cortadas e um largo bracelete de cabedal com pregos de metal.
- Tu é que és o Ross? - inquiriu preguiçosamente, semicerrando os olhos à Marlon Brando.
- Sim - respondeu Kraut, passando com o nó do dedo pelo bigode louro. - És o Nick?
- Se calhar. Sidney disse-me que querias falar comigo. Algo relacionado com um biscate comercial.
- Puxa uma cadeira. Queres uma cerveja? Ou preferes um brande de banana?
Ao ouvir mencionar a bebida, o rapazote arregalou muito os olhos.
- Como é que sabes o que eu bebo?
- Umfegela disse-mo. Sabes o que é? Um passarinho. Agora senta-te.
Nick hesitou um momento, obedecendo em seguida.
- Não tens nada aspecto de produtor de filmes - disse.
- Não o sou -, retorquiu Konigsbacher. - Sou polícia. Então, ao ver que Nick fazia menção de se levantar, Kraut
agarrou-lhe no pulso com força, puxando-o de novo para baixo.
- Porta-te como deve ser - disse-lhe. - Trazes uma navalha de ponta e mola no bolso... Nota-se. Podia prender-te por andares
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com uma arma escondida. Provavelmente não pegava, mas seria uma chatice para ti e sempre passavas uma noite na prisa, onde a bicharada te dava que fazer. É o que tu queres?
- O puto tinha estofo; não deu o braço a torcer.
- Vejamos a tua identificação - disse friamente. Konigsbacher mostrou-lha, disfarçadamente, para que mais
nenhuma das pessoas que se encontravam no bar reparasse.
- Okay - disse Nick -, portanto és polícia. Que queres? Symington também tivera razão quanto ao sotaque; a frase
soara: "Qué-que queres?"
- Apenas que me respondas a algumas perguntas. Não leva muito tempo. Lembras-te de uma sexta-feira à noite no princípio de Novembro? Estava uma tempestade dos diabos. Estiveste aqui toda a noite.
- Estás a perguntar ou a afirmar?
- Estou a perguntar. Uma noite de sexta-feira chuvosa em princípios de Novembro. Um tipo entrou, sentou-se a uma mesa contigo, pagou-te uma série de brandes de banana. A coisa passou-se por volta das nove, dez horas. Neste local.
- Sim? Qual era o aspecto dele?
Konigsbacher descreveu L. Vincent Symington; careca, rosto balofo, olhos pequenos.
- Um tipo que estava sempre a suar, provavelmente usando uma pulseira de aros de ouro grossos.
- Que foi que ele fez? - perguntou Nick.
- Lembras-te de teres estado com um tipo assim? - perguntou Ross pacientemente.
- Não sei - respondeu o rapaz, encolhendo os ombros. Estou sempre a conhecer tipos.
Kraut inclinou-se para a frente, sorrindo.
- Pois vou dizer-te uma coisa, filho - disse, com voz baixa, confidencial -, continua a armar em espertinho comigo que não tarda que te ponha as algemas e marche contigo daqui para fora. Mas não te levo para a esquadra. Vais comigo até ao beco mais próximo, onde te darei tantas nos tomates que ficarás a cantar de soprano para o resto da vida. Não acreditas? Então é só experimentares.
- Está bem, conheci um tipo como esse que descreveste - admitiu Nick subitamente. - Um ricaço velho e gordo. Ofereceu-me algumas bebidas.
- Como é que ele se chamava?
- Não me lembro.
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- Esforça-te - aconselhou Ross. - Lembra-te do que eu te disse acerca do beco e faz mesmo força para te recordares.
- Victor - disse o rapazola.
- Tenta outra vez.
- Vince. Algo no género.
Konigsbacher deu-lhe uma pancadinha na bochecha.
- bom menino - disse.
No que dizia respeito a Kraut, aquilo era suficiente para ilibar L. Vincent Symington. Ele nunca acreditara verdadeiramente na culpa do homem. Vince nunca poderia matar ninguém com um martelo. Uma faca, talvez - uma arma de mulher. Mas não um martelo.
De modo que, pensou Konigsbacher tristemente, chegara ao fim. Apresentaria um relatório a Boone e eles mudá-lo-iam para alguma missão idiota. Acabavam-se os pulôveres de caxemira, os jantares de borla e as agradáveis noites passadas no estupendo apartamento de Symington a tomar bebidas e a trocar anedotas porcas.
Mas talvez, pensou Kraut de repente, talvez houvesse maneira de arranjar uma aldrabice. Ilibaria o tipo - devia-lhe isso -, mas tal não significava que a paródia tivesse de acabar completamente. De novo confiante, encaminhou-se para o Dorian Gray, matutando no que Vince teria para lhe oferecer naquela noite.
Robert Keisman e Jason pensavam que Harold Gerber podia não funcionar bem da cabeça, mas estava inocente do assassínio do Dr. Simon Ellerbee. A confissão de Gerber era aquilo a que Keisman chamava de uma "grandessíssima merda": dezasseis quilos dela num saco com capacidade só para oito.
Mas o veterano do Vietname não estava a par de pormenores suficientes não divulgados na imprensa para forjar uma confissão convincente. No entanto, DeJaney queria a inocência do tipo provada, de uma maneira ou de outra, portanto era a essa tarefa que os dois agentes deitavam mãos.
A Bíblia católica representava uma pista insignificante. Não vislumbravam nenhuma possibilidade de esclarecimento vinda dali. A única razão por que trabalhavam nela era a de não terem mais nada. Ali sempre havia alguma coisa para fazer.
Começaram por consultar as Páginas Amarelas de Manhattan, até encontrarem a secção das "Igrejas Católicas Romanas".
Havia cento e três, algumas delas com nomes esquisitos como "Igreja do Sangue Muito Precioso" e "Igreja da Nossa Senhora do
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Perpétuo Socorro". A ideia de visitarem cento e uma igrejas era assustadora, mas quando seleccionaram as da área de Greenwich Village, a tarefa pareceu menos monstruosa,
O Estraga ficou com as igrejas que se situavam a leste da
6ª Avenida, e Jason Dois com as que se encontravam a oeste. Levando consigo a fotografia de Harold Gerber, foram falar com padres, priores, sacristães e todos aqueles que pudessem ter visto Gerber na noite em que Ellerbee fora assassinado.
Era o mais fastidioso dos trabalhos de rotina: calcorrearem ruas, mostrarem as suas identificações, apresentarem a foto de Gerber e fazerem sempre as mesmas perguntas: "Conhece este homem?", "Já alguma vez o viu?", "Ele tem vindo à sua igreja?", "O nome Harold Gerber diz-lhe alguma coisa?"
Às vezes encontravam a igreja fechada, ninguém por perto, e Keisman e Jason lá tinham de voltar duas ou três vezes antes de conseguirem descobrir alguém para interrogar. Trabalhavam oito horas por dia e marcavam encontro para depois das cinco a fim de tomarem umas cervejas com Harold Gerber. Nunca lhe disseram o que estavam a fazer, e este perguntava sempre, em tom de queixa:
- Então, quando é que vocês me vão prender?
- Em breve, Harold - respondiam-lhe. - Em breve. Mantiveram o esquema durante quatro dias, e estavam a
começar a pensar que ia ser tudo em vão. Mas foi então que o Estraga teve um rasgo de sorte, ao falar com um indivíduo que trabalhava numa elegante igreja da esquina da Rua 11 com a
5ª Avenida. O velho parecia ser uma espécie de encarregado, cabendo-lhe tarefas como polir os bancos da igreja, certificar-se de que as velas eléctricas estavam a funcionar e coisas do género.
Ele examinou a identificação de Keisman e depois olhou para a fotografia de Harold Gerber.
- Por que razão o procuram? - inquiriu com voz rangente.
- Ele não é procurado por nenhuma razão - mentiu o Estraga calmamente. - Estamos apenas a tentar encontrá-lo. Consta do ficheiro das pessoas desaparecidas. A família anda preocupadíssima. Compreende, não é verdade?
- Oh, claro - respondeu o velhote, continuando a olhar para a fotografia de Gerber. - Eu próprio tenho um filho; sei como me sentiria. Que é que este rapaz faz?
- Faz?
- O trabalho dele. Em que trabalha?
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Não me parece que trabalhe em alguma coisa. Recebe uma
pensão. É um veterano do Vietname. Um tudo-nada avariado da cabeça.
- O que não me custa a entender. Afirmam que é um veterano do Vietname?
- Hum, hum.
- E é católico?
- Exactamente.
- Bem - disse o encarregado, suspirando -, vou dizer-vos. Há um padre... ele não é verdadeiramente padre. Não quero dizer que não tenha sido ordenado ou coisa do género. Mas é um pouco rebelde, e não possui paróquia própria. Eles deixam-no fazer mais ou menos o que lhe apetece, se bem me entende.
Keisman anuiu, aguardando pacientemente.
- Pois bem, este padre - prosseguiu o encarregado, mais divertido com a sua longa história do que o Estraga -, padre Gautíer ou Grollier, um nome parecido, abriu um lar para veteranos do Vietname. Dá-lhes uma sanduíche, um lugar para dormirem ou simplesmente para se abrigarem do frio. Eu não o estou a censurar, percebem; ele pratica o bem. Mas está à testa de uma espécie de espelunca esquisita. Não é uma igreja normal.
- Onde é que ele arranja o dinheiro? - inquiriu o detective.
- Para as sanduíches, as camas ou lá o que ele dá? A Igreja financia-o?
- Está a brincar? Aquilo é tudo por conta dele. Recebe donativos daqui, dali, de todo o lado. O que se sabe é que mantém aquilo a funcionar.
- É interessante - comentou Keisman. - Onde fica essa casa?
- Algures ao sul da Houston Street, presumo. Mas não sei o endereço.
- Muito obrigado - disse o Estraga.
Contou a Jason a história do padre, e concordaram que era a melhor pista - a única pista - que tinham encontrado até ali. De modo que começaram a fazer telefonemas.
Ligaram para a Arquidiocese de Nova Iorque, a Associação da Imprensa Católica, as Obras de Caridade Católicas, a Legião Americana, perguntando se alguém sabia a morada do padre católico que estava a dirigir um lar para veteranos do Vietname algures na Houston Street, em Manhattan. Ninguém pôde ajudá-los.
Depois telefonaram para os Veteranos de Guerra Católicos e
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conseguiram-na: padre Frank Gautier, numas instalações que ficavam na Mott Street, um quarteirão a sul da Houston.
- Pequena Itália - disse Jason. - Costumava fazer o meu giro por lá.
- Seja onde for - afirmou Keisman. - Vamos. Encontraram o local depois de perguntarem a quatro residentes
do bairro. Parecia um clube social da Mafia, com os vidros das janelas pintados de um verde-opaco e nenhum nome ou letreiro visível. A porta não estava fechada à chave, de modo que entraram. Havia uma enorme sala que parecia ter sido outrora utilizada como talho: paredes cobertas por azulejos, um pavimento de madeira manchada, tecto forrado com folha metálica.
Mas estava razoavelmente aquecido. Quase em demasia. Via-se ali perto de uma dezena de indivíduos, cerca de metade negros, sentados em redor, em cadeiras velhas, a lerem revistas, a jogarem às cartas, a dormitar ou simplesmente a olharem para a parede. Todos eles tinham um aspecto desleixado, com as botas desapertadas, jeans no fio, casacos rasgados. Um tinha uma cabeleira postiça enfiada na cabeça e uma estola de plumas em volta do pescoço.
Ninguém desviou os olhos para os dois agentes quando estes entraram. Keisman aproximou-se de um homem que tinha na mão um exemplar do Wall Street Journal de há um mês.
- O padre Gautier está? - perguntou delicadamente.
O homem levantou a cabeça, examinou lentamente os dois e depois virou-se para uma divisão situada ao fundo da sala.
- Eh, padre! - gritou com voz trovejante. - Estão aqui dois novos "peixes" para si!
O homem que saiu, gingando, da sala do fundo, tinha o corpo em forma de pêra madura. Vestia uma túnica preta, de mangas compridas, ao cimo da qual se via um colarinho branco, algo sujo, que mostrava a sua condição clerical. As suas Levis azuis estavam presas por um cinturão à cowboy com um fecho prateado. Usava barba e tinha uma farta cabeleira grisalha.
- Padre Gautier? - perguntou Jason.
- Culpado - respondeu o padre com voz rouca. - Quem são vocês?
Mostraram-lhe a identificação.
- Oh, Deus! - exclamou, suspirando. - Que aconteceu desta vez? Quem fez o quê a quem?
- Ninguém, que nós saibamos - respondeu Keisman.
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Apresentou-lhe a fotografia de Harold Gerber. - Conhece este homem?
Gautier observou a fotografia e, em seguida, ergueu os olhos para os agentes.
- Têm algum dinheiro? Ficaram estupefactos.
- Dinheiro! - repetiu o padre impacientemente. - Massa. Guita. Querem informações? Se não pagarem, não as recebem. Podem crer que é por uma boa causa. Receberão a vossa recompensa no Céu, ou lá onde for.
Jason e Keisman puxaram timidamente das respectivas carteiras. Cada um tirou uma nota de cinco dólares. Gautier agarrou avidamente nelas.
- Tu, Izzy! - gritou para um dos negros presentes. - Leva isto ao Vic e traz-nos um presunto. Diz-lhe que é para nós, e que se tiver demasiada gordura como aconteceu com o último, vamos até lá e damos-lhe cabo da loja. Cava.
- Sim, patlão - disse o negro, levando um dedo à testa.
- Vocês os dois venham comigo - ordenou o padre, indo à frente até ao quarto dos fundos.
Levou-os a um escritório atafulhado, pouco maior do que uma casa de banho pública.
- Sim, conheço-o - disse. - Harold Gerber. Que foi que ele fez?
- Nada de que tenhamos a certeza - respondeu o Estraga. Estamos apenas a tentar estabelecer o paradeiro dele numa certa noite de sexta-feira.
- Esteve aqui - disse Gautier prontamente.
- Eh - objectou Jason -, espere um minuto. - Ainda não lhe dissemos de que noite de sexta-feira se trata.
O padre abanou a cabeça.
- Não faz qualquer diferença. Harold vem aqui todas as sextas-feiras à noite. Já vai para mais de um ano.
Os dois agentes olharam um para o outro, voltando a fixar, em seguida, a sua atenção no padre.
- Porquê nas noites de sexta-feira? - perguntou Keisman. Gautier olhou-os com fixidez.
- Porque é às sextas à noite que os oiço em confissão.
- Está a querer dizer-nos - observou Jason -, que Gerber vem confessar-se todas as sextas-feiras à noite, já vai para mais de um ano?
- Não estou a querer dizer-vos, estou a afirmar-vos. Agora
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acreditem se vos apetecer. Se tal não acontecer, enfio o raio de uma sotaina e vou ao tribunal jurar por Deus que estou a dizer a verdade.
- Não me parece que seja necessário, padre - disse Keisman. - A que horas é que ele chega aqui, de um modo geral?
- Por volta das nove horas. Oiço confissões das oito às dez. Depois, normalmente, ele fica por aí, gracejando com a rapaziada. Sempre que pode, deixa alguns patacos.
- Sem querer desrespeitá-lo, padre - disse Jason -, mas o tipo andava a frequentar um psiquiatra.
- Eu sei que andava. Fui eu que o convenci a procurar a ajuda de um profissional.
- Então, se andava no psiquiatra, para que precisava da sua ajuda?
- Foi educado dentro da religião cristã - disse Frank Gautier.
- Não são coisas que se esqueçam facilmente.
- Acha que ele estava a fazer progressos? - inquiriu o Estraga.
O padre aborreceu-se.
- Vocês estão a fazer progressos? Eu estou a fazer progressos? Que merda é esta de estar a fazer progressos? Estamos apenas a tentar sobreviver, ou não estamos?
- Penso que sim - respondeu Jason brandamente. - Obrigado por nos ter concedido parte do seu tempo, padre. Creio que obtivemos aquilo a que vínhamos.
Junto da porta, Keisman voltou-se para trás.
- Quem é que cozinha aqui? - perguntou.
- Eu - respondeu o padre. - Porque pensa que sou tão gordo? Sempre vou provando.
Jason Doris sorriu e ergueu a mão de palma rosada.
- Que a paz seja contigo, irmão - disse.
- E contigo também - retorquiu Gautier com ar sério. E obrigado pelo presunto. Poupou-nos mais uma noite a sanduíches de manteiga de amendoim.
Fora do edifício, ao caminharem de volta para o carro, Jason Dois observou:
- bom tipo. Achas que ele está a mentir? A proteger um dos seus rapazes?
- Duvido de que ele consiga mentir - respondeu Keisman.
- Penso que Gerber anda a fazer exactamente o que Gautier disse: a confessar os seus pecados todas as sextas-feiras à noite.
- Que mundo maluco - comentou Jason.
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- E cada dia mais maluco. Fazes tu o relatório para Delaney?
- Claro. Esta noite. Que te apetece fazer agora?
- Vamos voltar e tomar uma cerveja com Gerber. Pobre idiota.
O detective Benjamim Calazo encontrava-se pesadamente sentado no vestíbulo a cheirar a ranço do hotel de terceira que ficava a oeste da Rua 23, aguardando a chegada de Betty Lee, a prostituta chinesa, que voltaria da sua visita diária à mãe. A mamã vivia na Pell Street e parecia ter uma centena de anos, no mínimo.
Calazo andara a seguir Betty há quatro dias e estava convencido de que sabia os hábitos horários desta. Deixava o hotel por volta das nove da manhã, tomava café e comia um bagel com manteiga numa charcutaria local, depois apanhava um táxi que a levava até Chinatown. Passava a manhã com a mamã, levando-lhe, de vez em quando, flores ou um pato-de-pequim. Uma boa filha.
Em seguida regressava ao hotel, ao meio-dia. O primeiro cliente chegaria pouco depois - provavelmente algum tipo na hora do almoço. Depois haveria um desfilar estável até às três ou quatro horas, altura em que o negócio abrandava e Betty sairia para jantar. As coisas voltavam a acelerar depois das nove, mantendo-se lucrativas até às duas da madrugada.
Betty não andava, tanto quanto Calazo podia ver, a calcorrear as ruas. Tinha uma clientela regular, na maior parte formada por indivíduos de alguma idade, com ventres salientes e fumando charuto. Também se viam uns quantos rapazitos novos, que entravam e saíam furtivamente, olhando em redor, como se esperassem ser apanhados a qualquer momento.
A própria Betty Lee estava longe de ser aquilo que Calazo imaginava como a prostituta ideal. Era baixa e gorducha, e parecia comprar as suas roupas numa loja barata. Mas ela devia ter algo de especial no seu trabalho para atrair tantos clientes. Quem sabe, pensou Calazo, se não fazia gracinhas com pauzinhos
- era possível.
Ela entrou no vestíbulo do hotel. Benny dobrou o seu Post, pôs-se de pé e seguiu-a até ao elevador. Começaram a subir. Ele sabia que o quarto dela era o 8D.
- bom dia - disse ele delicadamente.
Ela dirigiu-lhe um sorriso débil, mas não proferiu palavra.
Quando ela saiu no oitavo andar, ele seguiu-a corredor abaixo, até se deter diante da porta dela. Betty voltou-se para trás e encarou-o.
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- Desapareça - disse asperamente.
Ele mostrou-lhe o seu distintivo e a identificação.
- Oh, merda - protestou com ar fatigado. - Outra vez? Okay. Quanto?
- Não quero massa nenhuma sua, Betty.
- Um trabalhinho eficiente? - perguntou ela esperançadamente.
Ele riu.
- Apenas alguns minutos do seu tempo.
- Tenho um cliente daqui a um quarto de hora.
- Ele que espere. Vamos falar do seu assunto no corredor ou convida-me a entrar?
O pequeno apartamento encontrava-se surpreendentemente arrumado, limpo, arranjado. Não se via um grão de pó, tudo brilhava. Havia um pequeno frigorífico, que dava pela cintura, e uma fotografia emoldurada de John F. Kennedy sobre a mesinha-de-cabeceira. Calazo não foi capaz de entender o motivo.
- Quer uma cerveja? - perguntou ela.
- Seria óptimo - respondeu ele com gratidão. - Obrigado. Ela arranjou-lhe uma Bud fresca, das grandes. Ele sentou-se
com o seu velho sobretudo e o chapéu que, de tão usado, já tinha um buraco na dobra triangular.
- Betty - disse -, você tem aqui um lugarzinho muito jeitoso. Faz pagamentos aos agentes locais, não faz?
- Claro - respondeu ela, admirada por ele fazer semelhante pergunta. - E ao tipo que está ao balcão da entrada. E ao gerente também. De que outro modo poderia eu trabalhar?
- É verdade - disse Calazo -, ao que parece. Tenho andado a investigá-la nos últimos três, quatro dias. Você tem uma clientela certa, não é?
- Sim, a maior parte. Passam a palavra uns aos outros. Amigos de amigos.
- Claro, compreendo. Tem um habitual chamado Ronald Bellsey, não tem?
- Não pergunto apelidos.
- Está bem, concentremo-nos no Ronald. Vem cá duas tardes por semana. Um tipo corpulento, um ex-pugilista.
- Talvez - disse ela cautelosamente.
- Que tipo de pessoa é?
- Um porco! - desabafou ela.
- Claro que é - concordou Calazo alegremente. - Gosta de magoá-la, não gosta?
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- Como é que sabe?
- Vê-se que é desse género. Quero apanhá-lo, Betty. com a sua ajuda. Apanhá-lo? Quer dizer, prendê-lo?
- Não.
- Matá-lo?
- Não. Apenas ensiná-lo a comportar-se decentemente.
- Quer fazer isso aqui?
- Exactamente.
- Ele dará cabo de mim. Traga-o aqui e não o mate que ele volta cá e mata-me a mim.
- Não me parece - disse o detective Calazo. - Estou convencido de que, quando eu acabar o que tenho a fazer com ele, nunca mais volta a pôr aqui os pés. Portanto, perderá um cliente.
- Não me agrada - disse ela.
- Betty, não me parece que tenha outra alternativa. Eu não quero tramá-la, a sério que não quero, embora possa fazê-lo. A única coisa que me interessa é dar uma lição àquele estupor. Se ele voltar, sempre lhe pode dizer que foi a Polícia que a obrigou.
Ela reflectiu durante um bom pedaço de tempo. Foi ao pequeno frigorífico e serviu-se de um copo de vinho. Calazo aguardou pacientemente.
- Se ele se mostrar demasiado maçador - observou Betty -, sempre me resta a alternativa de ir passar uns tempos a Baltimore. Tenho uma irmã por lá. Também anda na vida.
- Claro que pode fazer isso - disse o detective -, mas pode crer que ele não aparece aqui a importuná-la. Não depois de eu tratar dele.
Ela inspirou profundamente.
- Como é que pretende lidar com ele? - perguntou ao detective.
Ele pô-la ao corrente das suas intenções. Ela escutou-o atentamente.
- Deverá dar resultado - disse. - Dê-lhe forte e feio.
Os detectives Venable e Estrella foram ao apartamento da Sra. Gladys Ferguson sem telefonarem previamente. Não queriam que esta ligasse para a Sra. Yesell a dizer algo parecido com: "Blanche, vêm cá dois polícias fazer-me perguntas sobre ti e o nosso grupo de brídege. Que diabo se passa?"
A Sra. Ferguson era uma senhora alta e de aspecto digno, que ia a caminho dos oitenta. Caminhava apoiada numa bengala, e um
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dos sapatos tinha uma sola com uma espessura de cerca de sete centímetros e meio. Mostrou-se razoavelmente delicada para com os dois agentes, depois de estes se identificarem, mas simultaneamente fria e reservada.
- Minha senhora - principiou Estrella -, gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas ligadas à investigação criminal que andamos a conduzir. As suas respostas podem revestir-se da maior importância. Estou certo de que desejará colaborar.
- Que espécie de investigação criminal? - quis saber. com que objectivo? Eu não tenho nada a ver com qualquer crime.
- De certeza que não tem - disse o detective Estrella. - A questão diz respeito ao paradeiro de uma testemunha na noite em que o crime foi cometido.
Ela fitou-os.
- É tudo quanto me vão dizer?
- Receio bem que sim.
- Serei chamada a testemunhar? - perguntou secamente. Num tribunal?
- Oh, não - esclareceu a detective Venable apressadamente.
- Na verdade, o que desejamos da senhora não é nenhum depoimento feito sob juramento ou coisa parecida. Apenas informações.
- Então, muito bem. Que desejam saber?
- Senhora Ferguson - disse Estrella -, a senhora faz parte do grupo de brídege que se reúne às sextas-feiras à noite, não é verdade?
A sua compostura vacilou, mas ela aguentou firme.
- Que diabo! - exclamou ela em tom autoritário - tem o meu grupo de brídege a ver com qualquer investigação criminal?
- Minha senhora - disse Helen, começando a ficar alterada -, se continua a fazer-nos perguntas, nunca mais saímos daqui. Será tudo muito mais simples para todos se se limitar a responder às nossas perguntas. Faz parte do grupo de brídege que se reúne às sextas-feiras à noite?
- Faço.
- Todas as sextas-feiras à noite? - perguntou Estrella.
- Exactamente.
- Há quanto tempo está este grupo formado? - quis saber Venable.
- Já vai para cerca de cinco anos. Começámos com duas mesas. Mas houve membros que morreram, outros que se mudaram. Agora estamos reduzidos a uma.
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- E nunca falhou uma única noite nestes cinco anos? inquiriu Estrella.
- Nunca. Temos muito orgulho no facto.
- Todos os membros que presentemente fazem parte do grupo têm reunido sem falhar ao longo destes cinco anos? - indagou Venable.
- Não. Tem havido várias mudanças. Mas nós as quatro jogamos juntas há... oh, digamos, uns dois anos.
- Presumo que obedecem a uma rotatividade relativamente ao local onde jogam. Cada sessão é realizada numa casa diferente cada sexta-feira? - alvitrou Estrella.
- Exactamente. Gostaria de que me dissessem com precisão aquilo que pretendem saber.
- Recorda-se de uma sexta-feira à noite, nos princípios de Novembro deste ano? Havia uma tempestade tremenda, uma das piores que já tivemos - questionou Estrella.
- A minha memória funciona correctamente, meu caro jovem. Lembro-me perfeitamente dessa noite.
- Apesar do tempo pavoroso, o seu grupo de brídege reuniu?
- perguntou Venable.
- O senhor não está a escutar-me, meu caro jovem. Eu disse-lhe que não falhámos uma única noite em cerca de cinco anos.
- E em que casa é que reuniram nessa noite específica? quis saber Estrella.
- Exactamente aqui. Essa foi uma das razões que me leva a recordar o facto com tanta clareza. Estávamos para reunir em casa de outro membro. Mas o tempo estava tão mau que liguei às outras senhoras e perguntei-lhes se não se importavam de que fosse aqui. - Bateu com a bengala no tacão acrescentado do sapato. - Este problema não me facilita nada a deslocação quando o tempo está mau. Os outros membros acederam simpaticamente em vir para cá. A imposição não foi muito grande; todas elas vivem nos quarteirões vizinhos.
- Em que casa é que o jogo estava originalmente marcado? inquiriu Venable.
- Em casa da senhora Blanche Yesell.
- Mas, em vez disso, ela veio cá? - inquiriu de novo Venable.
- Tenho de repetir tudo duas vezes? - perguntou a Sra. Gladys Ferguson com impaciência. - Sim, veio cá, tal como as outras.
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- Queremos apenas certificar-nos de que entende perfeitamente as nossas perguntas, senhora Ferguson - disse Estrella.
- A que horas é que, normalmente, as senhoras se encontram? - indagou Venable...
- O jogo começa impreterivelmente às oito e meia. Os membros chegam normalmente um pouco antes. Terminamos às dez e meia, exactamente. Depois, a dona da casa oferece chá com biscoitos ou um bolo. Todas saem quase sempre por volta das onze horas.
A detective Venabie tirou o seu bloco de notas do bolso.
- Já sabemos que tanto a senhora como a senhora Blanche Yesell fazem parte do grupo. Importa-se de nos dar os nomes e endereços dos restantes elementos? - pediu Venable.
- É absolutamente imprescindível?
- Sim, é. Estará a prestar apoio à investigação de um crime violento - argumentou Estrella.
- Custa a acreditar: as Quatro Mosqueteiras envolvidas num crime violento. É assim que nos designamos: as Quatro Mosqueteiras.
- Os nomes e os endereços, por favor - pediu novamente Venable.
Os detectives passaram os dois dias seguintes a interrogar os outros dois membros do grupo. Ambos eram viúvas de idade e gozando de evidente probidade. Corroboraram todas as anteriores informações prestadas pela Sra. Gladys Ferguson.
- Bem - disse Estrella, olhando para o bloco de notas aberto na sua frente -, só se as Quatro Mosqueteiras tiverem as mentes mais criminosas desde James Gang, tudo indica que a senhora Yesell está a mentir com quantos dentes tem. Ela não esteve em casa naquela noite e a filha continua com o álibi por comprovar.
- Filha da mãe! - exclamou Helen Venable com amargura.
- Continuo a não poder acreditar que Joan seja a assassina. Brian, ela não tem nada tipo de ser capaz de fazer uma coisa dessas.
- A que tipo pertence ela? - perguntou ele brandamente. É humana, não é? Portanto, é capaz de o fazer.
- Mas porquê! Está sempre a falar da admiração que sentia pelo médico.
- Que interessa o porquê? - observou ele, encolhendo os ombros. - Deixamos essa questão para Delaney esclarecer. Vamos até Modtown Norte pedir uma máquina de escrever emprestada. Trabalharemos juntos no relatório que vamos apresentar.
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Gostaria de o entregar ainda esta noite ao sargento Boone. Tenho um encontro complicado com uma tábua Ouija.
- E eu que estava a fazer projectos para partilhar um apartamento com ela - observou Venable tristemente.
- Considera-te cheia de sorte - disse-lhe Estrella. - Podias ter dado com Jack, o Estripador.
Capítulo vigésimo segundo
- Espero que tenhas alguma notícia agradável para me dar disse o comissário Ivar Thorsen. - Boa falta me fazem.
O Almirante estava sentado numa poltrona de cabedal, no gabinete de trabalho, olhando fixamente para o copo grande de Glenfiddish com água que tinha na mão, como se este contivesse as respostas para todas as suas dúvidas.
- Ivar, estás com muito mau aspecto - observou Delaney detrás da sua atravancada secretária.
- Não é de admirar - disse Thorsen fatigadamente. - Tive um dia difícil. Mas todos eles o são. Quem não consegue aguentar o calor, sai da cozinha. É o que se costuma dizer, não é?
- É o que se costuma dizer - concordou Delaney. - Mas acontece que tu gostas da cozinha.
- Creio que sim - retorquiu o comissário, suspirando. Caso contrário, porque andaria lá metido? Quando sair daqui, tenho de ir até ao Waldorf. Há lá uma festa de despedida de um procurador-geral que se vai reformar. Depois volto para a parte baixa da cidade a fim de participar numa reunião com o Comissariado e uns tipos do gabinete do presidente da Câmara. Vamos ter um aumento no orçamento, graças a Deus, e agora o problema está em saber como aplicá-lo.
- É fácil. Mais polícias nas ruas.
- Claro, mas quem é que fica com o trabalho, e aonde? Não há divisão que não ande a gritar por mais.
- Acabarás por resolver o problema.
- Suponho que sim, a certa altura. Mas voltando à minha pergunta inicial. Alguma notícia agradável?
- Bem... - disse Delaney -, tem havido uma certa evolução. No entanto, se é boa ou má, isso já não sei. Até agora já eliminámos quatro dos pacientes: Kane, Otherton, Gerber e
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Symington. Para isso contribuiu um bom trabalho por parte dos detectives, e alguma sorte. Seja como for, os seus álibis foram comprovados, pelo menos para minha satisfação.
- Mas continuam a ter dois suspeitos?
- Dois possíveis suspeitos. Um deles é Ronald Bellsey, um homem bruto e sórdido. Quem está a trabalhar nele é o detective Calazo. No último relatório que apresentou, diz que espera dar uma informação definitiva sobre Bellsey dentro de poucos dias. Calazo é um polícia antigo, muito sensato e experiente. Confio nele.
"A outra suspeita possível, mais interessante, é Joan Yesell, suicida e dada a grandes depressões. Sua mãe afirma que ela esteve em casa na altura em que o crime foi cometido. Os detectives Venable e Estrella já provaram, sem sombra de dúvidas, que a mãe está a mentir. Encontrava-se noutro local e não tem possibilidade de comprovar o álibi da filha.
- Tencionas prendê-las?
- Mãe e filha? Não, ainda não. Mudei todos, excepto Calazo, para vigiarem a filha vinte e quatro horas por dia. Entretanto, estamos a investigar os antecedentes desta, na esperança de conseguirmos determinar-lhe os movimentos no dia do assassínio.
- Porque pensas que a mãe mentiu?
- Obviamente para proteger a filha. Portanto, deve estar a par de algum procedimento culposo. Mas isso pode não ter absolutamente nada a ver com a morte de Ellerbee. Joan Yesell pode ter estado com um namorado e a mãe mentir para tentar proteger-lhe a reputação, ou a do namorado.
- Sim, é possível. Mas estou a notar-te aquele olhar especial, Edward: o olhar-fim-da-pista, uma espécie de satisfação contida. No fundo, pensas que Joan Yesell está envolvida, não pensas?
- Não quero dar-te demasiadas esperanças, mas, de facto, há ali qualquer coisa que não bate certo. Passei a tarde toda a examinar os registos, reunindo todas as referências que existem sobre a jovem. Parte do material que à primeira leitura pode parecer inocente, assume uma nova dimensão quando a imaginamos como a assassina. Por exemplo, logo após eu e Boone a termos interrogado, ela tentou pôr termo à vida. Isso poderia ser interpretado como uma admissão de culpa.
- Qual poderia ser o motivo dela?
- Ivar, estamos a lidar com pessoas emocionalmente perturbadas, o que significa que nem sempre os motivos em causa são os mais vulgares. Talvez o médico tenha descoberto algum factor
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no passado de Yesell tão doloroso que esta não foi capaz de lhe fazer face e suportar a ideia de Ellerbee estar ao corrente do mesmo. Portanto, matou-o.
- É possível, suponho. Mais cedo ou mais tarde vamos ter de a confrontar, não é?
- Sem dúvida - disse Delaney soturnamente. - E à mãe, também. Mas antes disso quero pôr os meus trabalhos de casa em dia. Ficar a saber o máximo de pormenores sobre Joan e os seus movimentos na noite do crime. Talvez ela tenha mesmo um namorado. Se assim for, descobri-lo-emos.
- Entretanto - observou o comissário Thorsen -, os ponteiros do relógio não param. Faltam dez dias para o fim do ano, Edward. É nessa altura que se vai escolher o chefe de detectives.
Delaney tirou uma caixa de charutos da gaveta da sua secretária e apresentou-a ao Almirante. Mas o comissário abanou a cabeça negativamente. Delaney acendeu um para si, servindo-se do cortador de pontas em ouro que sua primeira mulher lhe oferecera como presente de aniversário há vinte anos.
- Ao menos - disse, puxando o fumo -, esta investigação facilitou um pouco a vida ao Departamento, não foi? Já não estás a ser pressionado pela viúva e o pai da vítima, pois não? E já há duas semanas que não vejo nenhumas referências ao caso nos jornais.
- Há uma coisa que eu gostaria de ver nos jornais - disse Thorsen. - Um cabeçalho com os seguintes dizeres: POLÍCIA RESOLVE CASO ELLERBEE. Isso constituiria uma grande ajuda para Suarez.
- Que tal vai ele? Já não falamos há uns tempos. Talvez lhe dê uma apitadela esta noite.
- È melhor administrador do que detective. Mas isso imagino eu que tu já descobriste, Edward.
- Bem, ainda dispomos de dez dias. Tenho ideia de que o assunto fica resolvido até ao fim do ano, ou, então, a questão começará a arrastar-se com esperanças de resolução cada vez mais reduzidas.
- Não digas uma coisa dessas - implorou o comissário com um gemido. - Nem sequer alvitres semelhante hipótese. Bem, obrigado pela hospitalidade; tenho de me pôr a mexer.
- Antes de te ires embora, diz-me uma coisa, Ivar. Que tal estão as tuas relações com o gabinete do procurador-geral?
- As relações do Departamento ou as minhas, em termos pessoais?
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- As tuas, em termos pessoais.
- Bastante bem. Eles devem-me alguns favores. Porque perguntas?
- Tenho o pressentimento de que se atribuirmos o assassínio a Ronald Bellsey ou a Joan Yesell, não iremos dispor de provas gritantes. Todas circunstanciais. O procurador-geral estaria disposto a tomar conta do caso, sabendo que as hipóteses de uma condenação seriam pouco prováveis?
- Isso é estar a entrar numa nova área problemática - disse Thorsen cautelosamente. - Numa situação normal eu diria que não. Mas este homicídio atraiu tanta atenção que pode ser que eles aceitem arriscar-se só pela publicidade que isso lhes pode dar. Andam tão ansiosos por cobertura jornalística como nós.
Delaney anuiu.
- Bem, então sonda-os. Só para ver a reacção deles. Thorsen ficou a olhar fixamente para o outro homem.
- Edward, achas que poderá ser essa tal Joan Yesell?
- Neste momento - retorquiu Delaney -, ela e Ronald Bellsey são as únicas possibilidades que nos restam. Acende uma vela, Ivar.
- Uma vela? Deito fogo à igreja inteira!
Depois de o comissário se retirar, Delaney voltou para o gabinete e ligou para Suarez. No entanto, o chefe não estava em casa. Delaney cavaqueou durante alguns minutos com Rosa, desejando-lhe um bom Natal e pedindo-lhe que dissesse ao marido que ele telefonara - nada de importante.
Depois, regressou ao monte de relatórios sobre Ronald Bellsey. Segundo Calazo, o indivíduo era o principal suspeito de quatro espancamentos ocorridos nas proximidades dos locais por onde habitualmente parava.
Acrescentando a isso as impressões pessoais que Delaney lograra no contacto tido com o homem, obtinha-se a imagem de um brutamontes que alcançava as delícias do paraíso batendo em homens mais fracos, entre os quais se incluíra o detective Timothy Hogan. Restavam poucas dúvidas de que Bellsey fosse um psicopata sádico. A dúvida persistia: seria um psicopata homicida?
As incertezas atormentavam. Poderia um tarado a quem a agressão de outros seres humanos a soco e pontapé proporcionava prazer, recorrer a golpes de martelo para matar? Se Ellerbee tivesse sido sovado e pontapeado até à morte, Delaney teria a certeza de que o autor fora Bellsey.
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Resmungou em voz alta, dando-se conta do que estava a fazer: a aplicar a lógica a um tipo que actuava irracionalmente. Aí estava algo que não se podia fazer; havia que adoptar a própria falta de lógica do indivíduo. Quando Delaney o fizesse, podia admitir que Bellsey seria capaz de utilizar um martelo de pena redonda, um martelo de pilão, ou matar com uma escavadora se essa loucura lhe sobreviesse.
Joan Yesell podia ter tendências suicidas e sofrer de depressão, mas não parecia partilhar da mania de Bellsey pela violência selvagem. Mas quem conhecia as paixões que se ocultavam por trás da aparência tímida, reservada, com que ela se apresentava perante o mundo? Fora: Mary Poppins; dentro: Lizzie Borden.
Entre os dois, Delaney inclinava-se para Yesell, considerando esta como a suspeita mais provável, mas unicamente porque o seu álibi fora destruído.
Tinha perfeita consciência da fragilidade inerente àquela questão. Se queria ser absolutamente honesto, não podia deixar de admitir que não estava mais próximo de esclarecer o caso Ellerbee do que na noite em que recebera a primeira visita de Thorsen.
Olhou para a secretária atravancada e para o armário aberto que lhe servia de arquivo, a abarrotar de relatórios, apontamentos, interrogatórios: todas aquelas vidas obscuras. Toda aquela confusão de desejos, receios, frustrações, ódios.
Enfiou profundamente as mãos nos bolsos e foi até à sala de estar, onde Mónica se encontrava sentada, a ler o último livro de Germaine Greer.
- Qual é o problema, Edward? - perguntou-lhe esta, observando-o por cima dos óculos e apercebendo-se do estado de espírito que o animava.
- Somos todos uns merdas! - vociferou. - Vamos abrindo caminho através da vida a lutar e a estrebuchar. Não há uma única alma solitária que saiba o que raio se está a passar.
- Edward, porque estás tão aborrecido? Porque a vida é desordenada e caótica?
- Suponho que sim - murmurou ele.
- Bem, é o teu trabalho, não é? Fazer com que as coisas façam sentido. Encontrar a lógica, a sequência, os elos de ligação?
- Suponho que sim - repetiu ele. - Ver o sentido daquilo que não tem. Lá na casa de Diane Ellerbee, disse que os detectives são muito parecidos com os psiquiatras, e não há dúvida de que somos. Mas estes têm o querido e velho doutor
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Freud e uma série de investigações clínicas a ajudá-los. Os detectives têm percentagens e experiência, mais nada. E os detectives são obrigados a analisar uma dezena de pessoas em cada caso. Como está a acontecer neste. Estou com vontade de desistir e dizer a Ivar que simplesmente não sou capaz de dar conta do recado.
- Não - disse Mónica -, não me parece que o faças. És demasiado orgulhoso. Não posso acreditar que vás desistir.
- Não - reconheceu ele, dando um pequeno pontapé na carpeta. - Não o vou fazer. Acontece apenas que alguém, o assassino, está a brincar comigo, a trocar-me as voltas, e eu não o posso suportar. Não conseguir identificar o assassino enfurece-me. Ofende o meu sentido de decência.
- E de ordem - acrescentou Mónica.
- Também - concordou ele. Soltou uma pequena risada. Raios partam! Não sei que fazer a seguir!
- Porque não comes uma sanduíche? - sugeriu ela.
- Boa ideia - admitiu ele.
Nessa mesma noite, o detective Ross Konigsbacher preguiçava no comprido sofá de Symington. Estava a fumar um dos cigarros de fabrico caseiro de Vince e a beberricar Asti Spumante.
- Já ninguém bebe champanhe - disse Symington. -Asti Spumante é in.
De modo que Kraut sentia-se com a sua "passa" e a sua bebida in, como um finório da alta-roda.
Também se sentia virtuoso porque apresentara um relatório ilibando Vincent de qualquer cumplicidade no assassínio do Dr. Simon Ellerbee. Essa fora a sua obrigação oficial. E, tal como calculara, fora compensado para uma tarefa do mais chato que havia - passar oito horas diárias sentado dentro de um carro, em frente do apartamento das Yesells, à espera de que Joan saísse. Ela não o fizera.
- Uma refeição estupenda - disse com ar sonhador. Gostei verdadeiramente.
- Logo vi que havias de gostar do local - disse Symington.
- Aquele peito de ganso fumado não estava divinal!
Ao regressarem ao apartamento depois de jantar, Vince mudara para o fato de treino de veludo cor de pêssego que tinha um enorme fecho desde o pescoço até abaixo da barriga.
- E aquela roupa interior de seda - lembrou Konigsbacher.
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Muito obrigado. Tens sido muito bom para mim, Vince. Quero
que saibas que me sinto muito sensibilizado. Symington agitou uma mão.
- É para isso que servem os amigos. Nós somos amigos, não somos?
- Claro que somos - disse Kraut.
E porque se sentia ligeiramente atordoado com a "passa" e todas as bebidas que tinham enborcado durante a noite, achou melhor dizer o que tinha a dizer enquanto ainda estava consciente.
- Vince - principiou -, tenho uma confissão a fazer-te. Sei que me vais odiar por isso, mas não posso deixar de te contar.
- Não te odiarei - afirmou Symington -, seja lá o que for.
- Acho melhor ouvires primeiro. Vince, eu sou um polícia, um detective com a missão de te investigar por causa do assassínio de Ellerbee. Olha, tens aqui a minha identificação.
Tirou a carteira para fora. Symington olhou para o distintivo e para o cartão.
- Oh, Ross! - exclamou com voz chocada -, como pudeste fazer uma coisa destas?
- Era o meu trabalho - disse Kraut com gravidade. - Tinha de me aproximar de ti e descobrir qual tinha sido a tua movimentação na noite do crime. Admito que ao princípio estava convencido de que eras mesmo suspeito. Mas à medida que fui ficando a conhecer-te, Vince, dei-me conta de que serias completamente incapaz de um acto de violência vicioso como aquele.
- Obrigado, Ross - agradeceu Symington em voz baixa.
- Mas - continuou Konigsbacher, respirando fundo - afirmaste ter saído da festa no Hilton mais ou menos na altura em que Ellerbee foi morto.
- Foi só por um bocado - afirmou Symington nervosamente.
- Só para tomar uma lufada de ar. Contei-te onde tinha estado, Ross.
- Eu sei, eu sei - disse o detective, dando palmadinhas nas mãos gorduchas de Vince. - Mas podes ver como isso veio complicar as coisas.
Symington anuiu taciturnamente.
- Foi um problema muito sério que se me deparou, Vince. Eu sabia que estavas inocente. A questão existia em informar, ou não, que tinhas abandonado o Hilton. Andei ralado com a questão durante muito tempo, mas sabes a que decisão cheguei por fim? Não lhe fazer referência absolutamente nenhuma. Realmente não me parece que seja importante. Limitei-me a informar que
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estiveste no Hilton a noite toda e que não havia possibilidade de estares envolvido. Estás ilibado, Vince, completamente ilibado.
- Obrigado, Ross - disse Symington com voz estrangulada.
- Obrigado, obrigado. Como poderei agradecer-te suficientemente?
- Havemos de arranjar qualquer coisa, não é verdade? alvitrou Kraut.
Dois dias antes do Natal, Edward Delaney, com o seu chapéu de feltro e o sobretudo enorme, caminhou debaixo de uma neve que caía com razoável intensidade, a fim de ir comprar um pinheiro-escocês para as festividades. Ao ver os preços, quase se decidiu por um exemplar mais fino e esquelético.
Mas, que diabo, o Natal só se celebrava uma vez por ano, de modo que comprou a árvore robusta, frondosa, que lhe agradara, carregando-a até casa onde, ali chegado, a arrastou para a sala de estar e lançou mãos ao trabalho. Foi ao sótão, de onde trouxe o antiquado suporte de ferro para a árvore, dotado de quatro grampos de enroscar, e caixas cheias de enfeites, alguns datados de antes da Segunda Guerra Mundial. Também trouxe lâmpadas eléctricas, ornamentos de cartolina e embrulhos com pingentes em papel de lustre, cuidadosamente guardados de mais Natais dos que ele era capaz de se recordar.
Estava a experimentar as lâmpadas eléctricas quando Mónica chegou intempestivamente, com o seu chapéu de pele de castor usado, derreada com dois enormes sacos de compras repletos de presentes de Natal. Tinha as maçãs do rosto avermelhadas pelo frio e pela excitação de gastar dinheiro. Deteve-se à entrada da porta, ficando a olhar para a árvore com os olhos muito abertos.
- Feliz Natal - disse-lhe ele, sorrindo.
- Feliz Natal também para ti, querido. Oh, Edward, que árvore maravilhosa!
- É, não é - observou ele. - Não te digo quanto custou, pois isso diminuía-te o prazer.
- Quero lá saber do preço dela; adoro-a. Deixa-me tirar o casaco e guardar estas coisas, que vamos já enfeitá-la juntos. Que árvore! Edward, a fragrância enche a sala toda.
Ligaram o rádio e, ao som da música de Vivaldi, gastaram duas horas a enfeitar a sua maravilhosa árvore. Primeiro, foram as luzes, depois os enfeites coloridos, a seguir os ornamentos de cartolina e, por fim, os pingentes em papel de lustro. Até que chegou o momento de Delaney subir cautelosamente para cima de
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uma velha escada de mão, a fim de colocar a frágil estrela de vidro no topo.
Desceu, apagou as luzes e ambos se afastaram a fim de observarem o efeito.
- Oh, Deus! - exclamou Mónica -, é tão bonita que apetece chorar. É linda, não é, Edward?
- Um amor - retorquiu este, afagando-lhe a face. - Espero que as raparigas gostem. Quando é que chegam?
O detective Benjamim Calazo não era polícia que tivesse acabado de se iniciar naquelas lides. Já andava naquela vida há muito tempo. Fora ferido duas vezes e já lhe acontecera enfiar a cabeça de um traficante de droga nas águas do East River, deixando que o tipo engolisse uma boa dose de porcaria antes de o puxar para fora.
Benny sabia que alguns dos homens mais jovens do Departamento o olhavam com um desprezo divertido por causa do seu cabelo branco e do andar desengonçado. Mas isso não tinha importância; quando tivera a idade deles, tratava os mais velhos da mesma maneira. Até ficar a saber a que ponto os veteranos o podiam ensinar.
Calazo era um bom polícia, cumpria conscienciosamente o seu trabalho. Testemunhara muita imundície, tanto nas ruas como no Departamento, mas nunca perdera o entusiasmo do tempo da Academia. Ainda acreditava na importância do que fazia. Os tipos dos Serviços de Sanidade, por exemplo, uma tarefa detestável, mas impossível de dispensar para que o público não ficasse a chafurdar no meio do lixo. com a Polícia passava-se a mesma coisa; tinha de ser feito.
Na maior parte das vezes, Calazo cingia-se às regras prescritas. Mas, à semelhança de todos os polícias experientes, sabia que, em determinadas ocasiões, havia que atirar com as regras pela janela fora. Os maus da fita não se orientavam por nenhumas, e quem lhes fazia frente obedecendo a uma regulamentação restrita, o mais provável é que acabasse completamente lixado. Aquele Ronald Bellsey era um caso exemplar. O detective sabia-o culpado das agressões perpetradas nas imediações dos locais que frequentava, assim como dos maus tratos infligidos ao detective Tim Hogan. Calazo também sabia que não havia possibilidade de inculpar legalmente o homem pelos seus crimes. Não existiam provas suficientes para fundamentarem a acusação.
De modo que a opção encontrava-se entre deixar Bellsey
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continuar a fazer das suas em liberdade, ou ele próprio tornar-se advogado de acusação, juiz e corpo de jurados. O facto de Bellsey ter frequentado um psiquiatra para se curar do seu comportamento violento, não possuía qualquer importância para Calazo, que começara a engendrar, sem desfalecimentos, um plano para destruir Ronald Bellsey. A particularidade de Calazo não ter medo absolutamente nenhum, ajudava. Se um tipo como Bellsey conseguisse amedrontá-lo, então, toda a sua vida teria sido um logro.
No tempo em que a sede se situava no velho edifício de Centre Street, os agentes tinham hipótese de recorrer a uma série de lojas, todas elas situadas nas cercanias, com a finalidade de satisfazerem as suas necessidades: espingardeiros, alfaiates, tipos que faziam coldres de ombro perfeitamente cómodos, assim como outras armas secretas como coldres de tornozelo, bainhas para faca, soqueiras de ferro, etc.
Havia uma casa que fabricava os melhores bastões do mundo, do comprimento e peso que se desejasse, rígidos ou flexíveis. Dezasseis anos atrás, Calazo comprara uma preciosidade: vinte centímetros de comprimento, com uma tira para o pulso. Feito de couro flexível e recheado com chumbos de espingarda, fora duplamente ponteado, e apesar de todos aqueles anos de uso, nunca abrira um único ponto. E já executara trabalho duro.
Ao preparar-se para enfrentar Ronald Bellsey, o lindo bastão foi o primeiro objecto a ir para o pequeno saco de desporto de Calazo. Também guardou umas algemas e dois rolos grossos de fita adesiva larga. Levava consigo a sua trinta e oito, especial, num coldre de anca. Estava convencido de que não iria precisar de mais nada.
Era uma terça-feira de tarde, e Bellsey saía sempre às três. Calazo chegou ao hotel piolhoso de Betty Lee às duas e quarenta e cinco, ligando do vestíbulo para cima a fim de se certificar de que a costa estava desimpedida. Ela deu-lhe o okay.
- Percebeu bem? - perguntou-lhe Calazo, enquanto tirava o lenço do pescoço e o sobretudo. - Ele bate à porta, você deixa-o entrar, e a partir daí é comigo. E você desaparece. Deixe passar pelo menos uma hora antes de voltar. Duas será o ideal. Nessa altura já ele cá não está.
- Tem a certeza de que tudo correrá bem? - inquiriu ela nervosamente.
- De caras - sossegou-a Calazo. - Não tem de se preocupar. Está fora da jogada.
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Bellsey atrasou-se alguns minutos, mas o detective não se preocupou. Quando ouviu a batida, Calazo fez sinal a Betty com a cabeça e foi colocar-se em seguida ao lado da porta.
- Quem é? - perguntou Betty.
- Ronald.
A prostituta abriu-lhe a porta. Bellsey entrou. Asqueroso, graças a Deus. O detective deu um passo em frente e desferiu uma pancada com o bastão na cabeça do homem, atrás da orelha esquerda. Era um golpe no qual tinha muita prática, não suficientemente violento para ferir a epiderme, mas dotado de força bastante para fazer cair Bellsey de rosto sobre a alcatifa.
- Obrigado, Betty - agradeceu Calazo. - Ponha-se daqui para fora.
Ela agarrou no casaco e escapuliu-se. Ben fechou e trancou a porta depois de a mulher sair. Apalpou Bellsey, mas este não vinha armado. A única coisa que lhe tirou foi o lenço de mão, um tanto sujo - pormenor que não tinha qualquer importância para Calazo.
Foram necessários grandes e variados esforços antes de o detective conseguir, finalmente, puxar Bellsey para cima de uma velha cadeira de braços. Rodeou-lhe o torso com fita adesiva, de modo a mantê-lo direito. Prendeu-lhe os tornozelos às pernas da cadeira com o mesmo material. Depois executou a mesma operação, ligando os braços aos antebraços. Bellsey só teria possibilidade de mexer as mãos.
Por fim, Calazo atafulhou a boca de Bellsey com o lenço deste. Observou-o atentamente, a fim de ver se a cor do rosto sofria alterações ou não. Depois, satisfeito por verificar que Bellsey estava a respirar pelo nariz, foi à casa de banho, trouxe de lá um copo cheio de água, que atirou para o rosto do homem.
Foram precisos cerca de três minutos e mais outro copo de água para Bellsey voltar a si. Olhou em volta com os olhos vidrados, confuso.
- bom dia, beleza - disse o detective Calazo alegremente. - Estás com uma linda dor de cabeça, não estás?
Apalpou o crânio de Bellsey de lado, encontrando o alto que lhe crescera atrás da orelha esquerda. Ao tocar-lhe, o homem estremeceu.
- Não há sangue - observou Calazo, mostrando a ponta dos dedos.
Bellsey estava a ficar sufocado pelo lenço, esforçando-se por cuspi-lo.
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- Temos de obedecer a umas quantas regras - observou o detective. - A mordaça sai se prometeres não gritar. Ao mais pequeno grito, ela volta para o mesmo sítio. Ninguém repara num grito que seja dado numa espelunca como esta. Entendeste? Queres a mordaça tirada?
Bellsey anuiu. Calazo puxou o lenço para fora e Bellsey humedeceu as gengivas e os lábios, baixando os olhos para os braços presos com fita adesiva. Abanou as mãos várias vezes. Verificou a força da fita que lhe ligava o peito, depois fez o mesmo à das pernas. Fitou Calazo que, ao lado dele, batia suavemente com o bastão de encontro à palma da outra mão.
- Quem diabo é você? - inquiriu Bellsey asperamente.
- Pimpinela Escarlate - respondeu Calazo. - Não me reconheceu?
- Quanto quer?
- Pouco - disse o detective. - Apenas uma pequena informação.
Bellsey retesou-se, lutando contra a sua prisão. Depois, dando-se conta de que os seus esforços eram inúteis, começou a balançar-se para a frente e para trás na cadeira.
- Pare com isso - ordenou Calazo.
- Vá-se lixar - ripostou Bellsey, arquejante.
O detective bateu com o bastão nas costas da mão direita do homem. Bellsey abriu a boca para gritar, mas Calazo enfiou-lhe de novo o lenço sebento na boca.
- Nada de gritos - disse friamente. - Lembras-te da combinação que fizemos ou não? Manténs-te calado?
Bellsey imobilizou-se por momentos, respirando profundamente. Por fim, anuiu. Calazo puxou-lhe o lenço para fora.
- É melhor matar-me - disse Bellsey. - É que, se não o fizer, quando eu me soltar dou-lhe cabo do canastro.
- Nada disso - retorquiu Ben Calazo. - Não me parece que o venhas a fazer porque eu vou magoar-te e magoar-te mesmo a sério, tal como fizeste com tantas outras pessoas. E tu nunca mais voltarás a ser o mesmo. Quando ficares magoado de verdade, podes crer que toda a tua vida mudará.
Algo se alterou nos olhos de Bellsey. Dúvida, medo, fosse lá o que fosse, instalou-se no fundo deles.
- Porque deseja magoar-me?
- É simples. Não gosto de ti.
- Que foi que lhe fiz?
- Que foi que aqueles quatro tipos que espancaste te fizeram?
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- Que quatro tipos?
Calazo voltou a baixar o bastão, desta vez nas costas da mão esquerda de Bellsey. A cabeça do homem projectou-se para trás, os olhos fechados, a boca muito aberta. Mas não gritou.
- A mão... - disse Calazo. - É formada por uma série de ossos frágeis. Se se partirem fica-se metido num grande sarilho. Nem muitas operações a farão funcionar bem de novo. Agora fala-me dos quatro tipos.
- Que quatro... - principiou Bellsey, que, ao ver o seu captor levantar novamente o bastão, disse apressadamente: - Está bem! Está bem! Meti-me em algumas complicações. Brigas de rua, compreende? Foram lutas leais.
- Claro que foram - confirmou Calazo. - Tal como aconteceu com aquele detective que apanhaste em frente da "Cauda da Baleia". Um golpe de rins por trás. Depois, foi a pontapé. Muito leal.
Bellsey fitou-o.
- Jesus Cristo - disse, arquejante -, você é um polícia! Calazo bateu com o bastão na palna da mão direita de Bellsey:
uma pancada rápida, violenta. Ambos ouviram algo a estalar. Os olhos de Bellsey ficaram vítreos.
- Fizeste-o, não é verdade? - perguntou o detective. - Aos quatro tipos, perto dos bares por onde andas, e ao polícia, em frente da "Cauda da Baleia". Foi tudo obra tua, correcto?
Ronald Bellsey anuiu lentamente, olhando para as mãos, cada vez mais vermelhas.
- Claro que foste tu - disse Calazo cordialmente. - Tinha de ser, um tipo durão como tu. Maltratar as pessoas é divertido, não é? Eu estou a gostar muito.
- Deixe-me ir embora - implorou Bellsey. - Eu confessei, não confessei? Desprenda-me.
- Oh, ainda temos muito que falar, Ronald - disse Calazo alegremente. - Ainda não estás suficientemente magoado.
- Meu Deus, que mais quer você? Juro que quando sair daqui corto-lhe os tomates e enfio-lhos pela goela abaixo.
Calazo voltou a baixar o bastão sobre as costas da mão direita do homem. Este desmaiou, mas o detective foi buscar mais água, que lhe atirou ao rosto.
- Mantém-te acordado, meu rapaz - disse, quando Bellsey voltou a ficar consciente. - Não tarda que te reduza as mãos a papa. Não vais poder lutar grande coisa com as mãos aleijadas,
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pois não? Talvez te desenrasques com elas se lhe acoplares uns ganchos.
- Você é um polícia - gemeu Bellsey. - Não pode fazer uma coisa destas.
- Mas estou a fazê-la, certo? Olha bem para mim de modo a poderes identificar-me entre os outros. O problema de vocês, tipos durões, é o de pensarem que nunca hão-de encontrar sujeitos mais duros. Bem, Ronald, acabas de encontrar um. Antes de dar por terminado o meu trabalho contigo, hei-de ver-te aí a chorar e a mijar nas calças. Entretanto, passemos à pergunta principal: onde é que estavas na noite em que o teu psiquiatra foi morto?
- Oh, meu Deus, então é por causa disso que me está a tratar assim? Já disse o que tinha a dizer à Polícia. A minha mulher estava em casa. Ela confirma.
- Que foi que fizeste em casa toda a noite? Leste a Bíblia, fizeste palavras cruzadas, contaste as paredes?
- Vi televisão.
- Ah, sim? E que foi que viste?
- É fácil. Temos cabo, e eu lembrei-me de que entre as nove e as onze passava um documentário especial: Cinquenta Anos de Grandes Combates. Eram filmes de todos os combates importantes, entre mil novecentos e trinta e mil novecentos e oitenta, na maioria com pesos-pesados. Vi-o.
Calazo fitou-o pensativamente.
- Nessa noite eu assisti a esse programa. bom material. Mas podias ter tratado da saúde ao teu psiquiatra e consultado a TV Cuide, só para ficares com um álibi.
- Filho da puta! - exclamou Bellsey com voz cavernosa. Claro que vi...
Mas Calazo bateu com o bastão nas costas da mão esquerda do homem preso, que guinchou de dor. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
- Estás a ver - disse o detective -, já começaste a chorar. Não me chames nomes, Ronald; é um hábito muito feio.
Calazo continuou junto de Bellsey, olhando calmamente para o seu prisioneiro. As mãos deste tinham inchado, parecendo bolas de carne crua. Jaziam molemente sobre os braços da cadeira, começando já a mostrar rupturas nos vasos sanguíneos e a pele descolorida.
- Gostaria de não acreditar em ti - observou Calazo. Gostaria verdadeiramente de pensar que estavas a mentir para
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poder continuar nisto por mais tempo. Detesto reconhecê-lo, mas parece-me que estás a dizer a verdade.
- Estou! Estou! Que razão teria eu para matar Ellerbee? O tipo era meu médico, por amor de Deus!
- Hum, hum. Mas aleijaste quatro outros tipos sem motivo, não foi? Bem, antes de te deixar em paz, vou dizer-te algumas coisas. Betty Lee não tem nada a ver com isto. Eu disse-lhe que se ela não me obedecesse, estava tramada comigo. Estás a perceber?
Bellsey anuiu freneticamente.
- Se eu descubro que estiveste a descarregar sobre ela
- continuou Calazo -, vou à tua procura. E, nessa altura, não serão apenas as tuas mãos; será a tua cabeça dura. Entendeste?
Bellsey anuiu de novo, desta vez com ar cansado.
- E se quiseres ser tu a procurar por mim, eu facilito-te as coisas. Sou o detective Benjamim Calazo e em Midtown Norte dirão onde podes encontrar-me. Só tu e eu, um contra um. Arrebento com essa tua cabeça estuporada lá mesmo, para depois eles me levarem preso a seguir. Acreditas?
Ronald Bellsey olhou-o receosamente.
- Você é maluco - disse com voz insegura.
- Maluco de todo - asseverou Calazo.
com dois golpes rápidos, esmagadores, desferiu o bastão contra as costas das mãos de Bellsey, servindo-se de toda a sua força. Ouviu-se um som que fazia lembrar uma caixa de madeira de morangueiro a ser esmagada. Os olhos de Bellsey desapareceram, deixando apenas as órbitas à mostra e ele voltou a desmaiar. O cheiro a urina encheu o ar. A parte da frente das calças de Bellsey ficou manchada de escuro.
O detective Calazo arrumou os seus materiais no pequeno saco de desporto: o bastão, o rolo com o que sobejara da fita adesiva. Depois, retirou a fita que ligava o corpo inconsciente, juntou-a e guardou-a também no saco. Colocou o lenço de pescoço e vestiu o sobretudo. Olhou em volta, inspeccionando. Lembrou-se do copo de que se servira para atirar água para o rosto de Bellsey e arrecadou-o.
Abriu a porta que dava para o corredor, limpou a maçaneta com o lenço de mão de Bellsey, atirando-o em seguida para o corpo inconsciente. Desceu pelo elevador e atravessou calmamente o vestíbulo. O sujeito que se encontrava atrás da secretária da recepção nem sequer levantou os olhos.
Calazo telefonou para o hotel dois quarteirões adiante.
- Há um homem doente no oito D - informou ao empregado.
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- Penso que está inconsciente. Talvez seja melhor chamarem uma ambulância.
Depois, seguiu no seu carro para casa, pensando na maneira como escreveria o seu relatório para o sargento Boone, afirmando que, na sua opinião, Ronald J. Bellsey estava inocente do assassínio do Dr. Simon Ellerbee.
As raparigas chegaram à casa de Delaney na tarde da véspera de Natal: Mary e Sylvia, duas moçoilas vivazes, mostrando indícios de virem a tornar-se tão exuberantes como a mãe. A primeira coisa que fizeram foi guincharem de deleite ao avistarem a árvore de Natal.
- Fantástico! - gritou Sylvia.
- Incrível! - exclamou Mary.
A segunda coisa foi anunciarem que não jantariam em casa na véspera do Natal. Tinham encontros marcados para aquela noite com dois rapazes maravilhosos.
- Que rapazes? - perguntou Mónica severamente. - Onde é que os conheceram?
Mãe e filhas começaram a falar ao mesmo tempo, gesticulando veementemente. Delaney observava a cena, sorridente.
Ficou então a saber-se que no comboio que trouxera Mary e Sylvia de Boston, estas tinham travado conhecimento com dois rapazes simpáticos, da classe dos mais velhos de Brown. Ambos viviam em Manhattan e tinham convidado as raparigas para irem jantar com eles ao Plaza e depois assistirem ao Messias, de Hãndel, na Catedral de São Patrício, assim como à missa do galo.
- Mas vocês nem sequer os conhecem - queixou-se Mónica.
- Encontram dois estranhos no comboio e agora vão sair com eles? Edward, diz-lhes que não podem ir. Aqueles homens podem ser uns monstros.
- Oh, não sei... - disse ele despreocupado. - Quaisquer tipos que queiram ir à missa do galo em São Patrício não podem ser tão maus como isso. Eles é que vos vêm cá buscar?
- Às oito horas - disse Sylvia, entusiasmada. - Peter, é o meu parceiro, disse que ia pedir o carro emprestado ao pai.
- E o meu chama-se Jeffrey - disse Mary. - Mãe, podes crer que são absolutamente respeitáveis, muito bem-comportados. Não é verdade, Syl?
- Uns cavalheiros perfeitos - assegurou a irmã. - Eles abrem as portas para as pessoas passarem e tudo.
- Vamos fazer uma coisa - disse Delaney -, quando eles
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chegarem convidamo-los para tomarem uma bebida. Têm idade suficiente para isso, não têm?
- Oh, papá - protestou Mary. - Eles são adultos.
- Está bem. Digam-lhes para entrarem quando chegarem para vos levar. A vossa mãe e eu damos-lhes uma vista de olhos. Se aprovarmos, vocês podem ir. Se, por acaso, forem umas bestas esclavagistas, o assunto está arrumado.
- Não são nenhumas bestas esclavagistas! - protestou Sylvia. - Por acaso até são bastante tímidos. Mary e eu é que tivemos de nos encarregar de quase toda a conversa. Não foi, Mary?
- E vêm de fraque - disse esta, dando uma risada. Portanto, vamos ter de nos vestir a rigor. Anda, Syl, temos de desfazer as malas e arranjar-nos.
- Oh, claro - concordou Delaney solenemente. - Sigam o vosso caminho egoísta, descuidado. A vossa mãe e eu temos aguardado meses para vos ver, mas não faz mal. Vão ao Plaza e comam a vossa perdiz e bebam o vosso Dom Perignon. A vossa mãe e eu contentar-nos-emos com os nossos cachorros-quentes, os tremoços e a cerveja; não nos importamos. Nem vale a pena preocuparem-se connosco.
As duas jovens fitaram-no, arrependidas. Mas, ao verem que ele estava a brincar, voaram para ele, cobrindo-o de beijos.
Ele ajudou-as a levar a bagagem para cima, depois voltou a descer para ir ter com Mónica que, na cozinha, estava a meter um assado de vitela no forno.
- Qual é a tua opinião? - perguntou-lhe ela ansiosamente. Ele encolheu os ombros.
- Vamos ver que tal são esses dois "cavalheiros perfeitos". Ao menos vêm buscar as moças a casa; é bom sinal.
Nesse preciso momento ouviram tocar à campainha da frente.
- Ora esta! - exclamou Delaney. - Quem diabo poderá ser? Não me digas que Peter e Jeffrey vieram com três horas de antecedência.
Mas quando olharam pelo ralo viram um moço de entregas uniformizado com um enorme cesto de flores, os botões a roçarem ligeiramente no papel celofane. Delaney abriu a porta.
- Senhor e senhora Delaney?
- Exacto.
- Feliz Natal para si, senhor.
- Obrigado, igualmente.
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Assinou o talão, deu um dólar de gorjeta e levou o cesto para a cozinha.
- Olha para isto - disse ele a Mónica.
- Santo Deus, é enorme! É para as raparigas?
- Não, o rapaz disse que era para o senhor e a senhora Delaney.
Mónica afastou cuidadosamente o papel, revelando um esplêndido arranjo de cravos, rosas brancas e lilases, tudo artisticamente disposto no meio de avenca.
- É lindo! - exclamou Mónica.
- Muito bonito. Onde raios vão eles arranjar estes lilases nesta altura do ano? Lê o cartão.
Mónica rasgou o sobrescrito e leu o cartão que vinha dentro em voz alta:
"- Feliz Natal para Mónica e Edward de Diane Ellerbee." Oh, Edward, ela não é um amor?
- Bem pensado - comentou ele. - Deve ter gasto uma fortuna neste arranjo.
- Gostarias de pôr um cravo na lapela? - perguntou Mónica com ar travesso.
Ele riu.
- Já alguma vez me viste usar uma flor?
- Nunca. Nem sequer no nosso casamento.
- Que acharias se de repente eu começasse a aparecer com uma rosa na lapela?
- Desconfiaria de que te tinhas apaixonado por outra mulher! Jantaram descontraidamente na cozinha: assado de vitela,
salada mista e uma pequena garrafa de chablis californiano que não era tão seco como os anúncios da televisão afirmavam. Conversaram sobre o aspecto com que as raparigas estavam e sobre a hora a que estas deveriam chegar a casa, vindas do encontro.
- Fica-te pelas duas da manhã - aconselhou Delaney. - Já não me lembro do tempo que as missas do galo duram, mas também deverão querer parar em algum lado para uma última bebida.
- Duas da manhã? - disse Mónica com ar duvidoso. Quando eu tinha a idade delas, era obrigada a estar em casa às dez da noite.
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- E isso foi apenas há alguns anos atrás - observou ele inocentemente.
- Tu! - exclamou ela, dando-lhe uma pequena palmada no ombro. - Acho melhor ir lá acima ver como estão as coisas a correr.
- Vai, sim - disse Delaney. - Eu encarrego-me de arrumar isto aqui.
Depois de terminar a arrumação da cozinha, Delaney foi inspeccionar a sua provisão de bebidas alcoólicas, reflectindo sobre o que poderia oferecer aos jovens cavalheiros que vinham buscar as raparigas para sair.
De vermutes deviam eles perceber, suspeitou, assim como de daiquiris. Pensou nos cocktails que tinham sido famosos no tempo em que era da idade deles: misturas com uísque, gasosa, gema de ovo, etc.
De súbito decidiu dar-lhes a provar uma especialidade dos velhos tempos. Preparou a mistura numa garrafa de cocktails, tomando pequenos goles até o gim, o vermute seco e doce e o sumo de laranja estarem na proporção ideal. Depois foi pôr a garrafa a refrescar no frigorífico.
Foi para a sala de estar e ligou as luzes da árvore de Natal. Sentou-se na sua poltrona preferida e ficou a olhar para a linda árvore, matutando sobre o relatório em que Calazo ilibava Ronald Bellsey. Como é que o detective podia estar tão seguro!
Tinha o pressentimento de que o julgamento de Calazo resultara de algo mais do que um diálogo amigável entre polícia e inquirido. Mas fosse de que modo fosse, o relatório tinha de ser aceite. Haviam levado a investigação do álibi de Bellsey tão longe quanto possível. O que fazia com que restasse Joan Yesell...
Ao ouvir a campainha da porta soar, olhou de relance para o seu relógio de parede e viu que faltavam poucos minutos para as oito horas. Pelo menos eram pontuais. Dirigiu-se apressadamente para o vestíbulo, deixando-os entrar, para depois gritar para o andar de cima:
- Os vossos cavalheiros perfeitos estão aqui!
Deus, como eram jovens! Mas agora até os polícias de rua Delaney achava jovens. E o que era pior, a nação elegera presidentes que eram mais novos do que ele.
Não havia dúvida de que os rapazes estavam com muito bom
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aspecto nos seus trajes de noite. As camisas com folhos e os laços não lhe agradavam particularmente, mas para tempos diferentes, modas diferentes. O que o preocupava sobretudo era não poder distinguir um do outro, de tal modo eles eram parecidos. Dirigiu-se a ambos por "jovem".
- Uma bebida, enquanto esperam? - sugeriu.
- Não se incomode, senhor - respondeu um deles.
- Temos uma reserva para as nove - observou o outro.
- Ainda falta muito tempo - asseverou-lhes Delaney. - Já estão preparadas.
Foi buscar a garrafa misturadora e encheu os copos.
- Feliz Natal - desejou.
- Feliz Natal - responderam os dois em uníssono, provando em seguida as bebidas e olhando um para o outro.
- é um screwdriverl - comentou um deles. - Mais ou menos.
- Mas tem vermute - disse o outro. - Não é verdade, senhor?
- Exacto.
- Seja lá o que for, é especial. Quase preferiria esquecer o Plaza e ficar aqui.
- É um cocktail - disse Delaney. - Ainda vocês não eram nascidos. Gim, vermute seco e doce e sumo de laranja.
- vou vender disto em garrafas de porcelana - disse um deles. - Ganho uma fortuna pela certa.
Delaney simpatizou com eles. Não os considerou especialmente bem-parecidos - vá-se lá saber o que as mulheres vêem num homem -, mas eram vivazes, espirituosos, respeitadores. E não sentiam desagrado por conversa de salão, pelo que esta prosseguiu agradavelmente.
Mónica foi a primeira a descer e os dois jovens levantaram-se imediatamente: mais um factor a seu favor. Delaney serviu-lhe uma bebida e ficou a ouvir, enquanto a mulher, em poucos minutos, ficava a saber as idades que eles tinham, em que zona de Manhattan viviam, o que os pais faziam, que ambições albergavam e a que horas tencionavam trazer de volta os seus tesouros, sãos, salvos e intocados por mãos humanas.
Quando Mary e Sylvia entraram, pareceram tão adoráveis a Delaney que os olhos deste se iluminaram. Serviu-lhes meio cocktail e, passados alguns minutos, disse:
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- É melhor irem andando. com certeza não querem fazer o Plaza esperar. E lembrem-se, às duas horas é tempo de recolher. Cinco minutos depois e telefonamos para o FBI. Okay?
As raparigas deram-lhe um beijo rápido e saíram com os seus pares.
- Por favor, Deus - murmurou Mónica -, permite que seja uma noite maravilhosa para elas.
- Vai ser - disse Delaney, fechando, trancando e colocando a corrente na porta. - Bons rapazes.
- Peter vai para a escola médica - informou Mónica quando voltaram para a sala de estar -, e Jefrey quer ser arquitecto.
- Ouvi-os falar nisso - disse Delaney -, e fiquei desiludido. Nenhum quer ser polícia.
A garrafa de cocktail ainda estava meio cheia, de modo que ele foi à cozinha buscar cubos de gelo, servindo os copos de ambos.
- Achas que devemos colocar os presentes debaixo da árvore esta noite ou esperar pela manhã? - perguntou ele.
- Aguardemos. Edward, vai para a cama quando te apetecer. Eu fico a pé, à espera delas.
- Nem eu imaginaria outra coisa de ti - observou Delaney, sorrindo. - E eu planeei ficar a fazer-te companhia.
Sentou-se descontraidamente na poltrona de orelhas forrada de cabedal verde-garrafa, luzidio de tanto uso. Mónica foi até junto do cesto de flores oferecido por Diane Ellerbee, que colocara em cima da sua escrivaninha Duncan Phyfe. Introduziu pequenos ajustamentos ao arranjo.
- É de facto uma beleza, Edward.
- com efeito... - principiou ele, calando-se logo a seguir. Levantou-se lentamente.
- Que foi que disseste? - perguntou com voz estrangulada. Mónica virou-se para ele.
- Disse que era uma beleza. Edward, que diabo se passa?
- Não, não - disse ele impacientemente. - Refiro-me à altura em que as flores chegaram e eu as levei para a cozinha. Que foi que disseste nesse momento?
- Edward, que se passa!
- Que foi que disseste? - gritou-lhe ele. - Diz-me!
- Disse que eram lindas e imaginei que fossem para as raparigas. Tu disseste que não, que eram para nós.
- E que mais?
- Eu perguntei-te se querias um botão para a lapela. Tu respondeste que não.
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- Exacto! - exclamou ele triunfantemente. - Quis saber se alguma vez me tinhas visto usar uma flor. Respondeste que não, nem sequer no nosso casamento. Aí eu perguntei-te o que pensarias se eu te aparecesse com uma rosa na lapela. E qual foi o teu comentário na altura?
- Disse que suspeitaria de que te tinhas apaixonado por outra mulher.
Ele bateu ruidosamente com a palma da mão aberta na testa.
- Idiota! - lamentou-se. - Tenho sido um idiota chapado! Correu para o gabinete de trabalho e atirou com a porta.
Mónica ficou a olhar, estupefacta. Passados alguns minutos sentou-se a assistir a um programa de Natal na televisão.
Resistiu à tentação de ir à procura do marido durante quase uma hora, mas depois, louca de curiosidade, abriu apenas uns centímetros da porta que dava para o gabinete de trabalho do marido e espreitou. Este estava sentado em frente do armário que servia de ficheiro, de costas para ela, atirando relatórios para a esquerda e para a direita. Resolveu não interromper.
Uma hora mais tarde, achando que aquele disparate já tinha durado tempo suficiente, dirigiu-se resolutamente para o gabinete e enfrentou-o. Delaney encontrava-se sentado na sua cadeira rotativa, atrás da secretária, com ar bastante cansado e os óculos de aros de tartaruga colocados. Olhava fixamente para a folha de papel que tinha na mão.
- Edward - disse Mónica severamente -, tens de me dizer o que raio se está a passar.
- Já descobri - disse Delaney, erguendo os olhos para ela e fitando-a com olhar vago. - O homem estava apaixonado.
Capítulo vigésimo terceiro
A tradição mandava que fosse um dia festivo. Vieram todos para baixo de pijamas, robes e pantufas, a fim de abrirem os embrulhos ternamente arranjados e colocados debaixo da árvore.
- Oh, não devias ter-te incomodado!... Exactamente o que eu queria!
Delaney presenteara Mónica com um lindo colar de pérolas de cultura, que ela colocou imediatamente.
Depois sentaram-se todos à volta da mesa da cozinha a fim de
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tomarem um lauto pequeno-almoço: sumo, ovos, presunto, batatas guisadas, biscoitos de manteiga, muito café, donuts cobertos de açúcar, e mais café.
Delaney movimentava-se por entre aquela fartura de coisas boas com um sorriso vítreo, os pensamentos muito longe dali. Às dez horas enfiou-se no gabinete para telefonar para Carol Judd, a recepcionista de Simon Ellerbee. Ninguém atendeu. Começou a ligar de hora a hora. Continuou a não ser bem sucedido. Onde diabo estava a mulher? Suspirou. A passar o Natal com o namorado, imaginou. Tinha esse direito.
Vieram chamadas para as raparigas, de Peter e Jeffrey. Essas levaram uma hora, pelo menos. Até que a família Delaney foi dar um passeio a pé pela 5ª Avenida.
Admiraram as decorações natalícias, a árvore do Centro Rockfeller e acabaram por ir almoçar ao Rumpelmayer.
Regressaram a casa pela Madison Avenue, as raparigas a deterem-se de minuto a minuto para soltarem esclamações diante das montras das novas boutiques. Chegados a casa, Delaney voltou a ligar para Carol Judd. Ainda não foi daquela.
Passaram uma tarde agradável a ouvirem as raparigas a contar peripécias do colégio, mas Delaney, embora escutasse, sentia-se possuído por uma febre de excitação que esperava que não se notasse.
Depois de jantar, voltou a enfiar-se no seu gabinete e continuou a telefonar para Carol Judd, sem sucesso. Tentando controlar a sua raiva, foi aos arquivos e reuniu determinados apontamentos que a princípio pareciam não ter sentido, mas que, naquele momento, já lhes reconhecia.
Finalmente, às dez da noite, conseguiu encontrá-la.
- Daqui é Edward X. Delaney. Falei consigo há várias semanas por causa da investigação sobre a morte do doutor Simon Ellerbee.
- Ah, sim. Feliz Natal, senhor Delaney.
- Obrigado. Igualmente.
Delaney fazia um esforço para se acalmar. Não queria assustar aquela jovem.
- Menina Judd, são apenas algumas perguntas que me surgiram e que penso só a menina poderá responder. Será que poderia ter a gentileza de me dispensar alguns minutos do seu tempo?
- Bem, neste momento não posso.
Aquela resposta dava provavelmente a entender que tinha o namorado lá em casa.
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- Conforme lhe der mais jeito - disse Delaney.
- Hum... bem, já estou a trabalhar.
- Fico muito contente em sabê-lo - observou Delaney. com outro psiquiatra?
- Não, estou num dentista, na parte ocidental da Rua Cinquenta e Sete.
- Aposto que sei qual é o edifício - disse ele. - Faz esquina com a Sexta Avenida?
- Exactamente - respondeu a jovem. - Não me diga que é o seu dentista?
- Não, mas tenho aí o meu pedicuro. Possuo óptimos dentes, mas pés chatos. A menina Judd tem sido tão colaborante que eu gostaria de a levar a almoçar. Tem alguma hora certa?
- Cedo. Ao meio-dia.
- Conheço um belo restaurante na Sétima Avenida, mesmo ao pé da Setenta e Sete. O "Pub Inglês". Conhece?
- Já tenho passado por lá, mas nunca entrei.
- Boa comida, bebidas bem servidas. Poderia encontrar-se lá comigo para almoçarmos amanhã, digamos, ao meio-dia e um quarto?
- Claro que sim - respondeu ela alegremente. - Vai ser óptimo.
Delaney estava no "Pub Inglês" ao meio-dia em ponto do dia
26 de Dezembro. Escolheu uma mesa para dois, sentando-se de forma a poder ver a porta. Carol Judd chegou ao meio-dia e vinte, detendo-se à entrada para olhar em volta. Ele levantou-se, fez-lhe sinal com a mão. Ela acercou-se, rindo. Ele segurou-lhe na cadeira.
- Eh - disse ela, examinando o restaurante -, isto é uma tara. Ele já não ouvia ninguém utilizar aquela palavra há vinte anos,
e sorriu.
- Um lugar agradável - concordou. - Este restaurante já está aqui há um ror de anos. Antigamente chamava-se Studio, se bem me recordo. Gostaria de tomar uma bebida?
- Que é que o senhor está a beber?
- Vodca.
- Creio que preferia um dalquiri de morango. Pode ser? Ela levava um vestido de malha grossa que lhe escondia o
corpo esbelto. Mas os caracóis louros continuavam frisados e os seus modos joviais, como sempre. Tagarelava facilmente acerca do novo emprego e das coisas divertidas que aconteciam num dentista.
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- Talvez seja melhor pedirmos o que queremos - sugeriu
ele, entregando-lhe a ementa. - Podemos falar enquanto comemos.
- Claro - respondeu ela. - Que vai comer?
- Eu vou numa sanduíche "clube" - disse Delaney. - Sou doido por sanduíches. Escolha o que lhe apetecer.
- Quero um cheeseburger - disse ela -, com muitas batatas fritas. E outro daiquiri de morango. Eh, sabe o que aconteceu? O doutor Simon deixou-me mil dólares no seu testamento!
- Já ouvi dizer - disse Delaney. - Muito simpático da parte dele.
- Ele era um amor - afirmou Carol Judd. - Simplesmente um amor. Ainda não tenho o cheque, mas recebi uma carta dos advogados. Quando o dinheiro chegar, eu e o meu namorado vamos passar um fim-de-semana alargado às Bermudas ou às Baamas, ou a qualquer sítio parecido. Quero dizer, é dinheiro com o qual podemos fazer uma extravagância, não acha?
- Exacto - concordou Delaney. - Divirta-se.
- Que tal está a investigação a correr? Já encontrou o tipo que cometeu o crime?
- Ainda não. Mas penso que estamos a fazer progressos.
A comida foi servida. Ela afogou o cheeseburger e as batatas fritas em ketchup. Delaney lambuzou o interior da sua sanduíche com maionese.
- Carol - disse com ar casual -, contou-me que tratava das contas do doutor Ellerbee. Está correcto?
- Claro. Enviava-lhe todas as contas pelo correio.
- Como é que controlava as dívidas?
- Num livro. Anotava nele todas as visitas dos pacientes. Cobrávamos mensalmente.
- Hum, hum. Tinha conhecimento de que o livro de facturas desapareceu?
Ela abrira a boca para retirar um pedaço ao cheeseburger, mas parou.
- Está a brincar - disse. - É a primeira vez que oiço falar nisso. Quem poderia querer uma coisa dessas?
- O assassino - respondeu Delaney. - Possivelmente. Onde é que o guardava?
- Na gaveta de cima da minha secretária.
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- Era do conhecimento de todos? Refiro-me aos pacientes e a outras pessoas que entrassem e saíssem do consultório.
- Penso que sim. Não tentei impedi-lo, escondendo-o ou algo do género. Não havia razão para tal, pois não?
- Penso que não. Carol, da última vez em que falei consigo conversámos acerca da alteração de disposição que o doutor Simon sofreu durante o último ano. Disse que ele andava aos altos e baixos, feliz num dia, deprimido no seguinte.
- Exactamente. Ele tornou-se a modos que instável.
- E também - disse Delaney alegremente - mencionou que o viu usar uma flor na lapela.
- Bem, não era exactamente na lapela porque ele não dispunha de abertura própria nos casacos. Mas trazia-a presa na lapela, sim.
- E foi a primeira vez que o viu usar uma flor?
- Precisamente. Brinquei com ele acerca do facto, e rimo-nos. Nesse dia ele mostrava-se feliz.
- Obrigado- disse Delaney, agradecido. - Agora voltemos por um pouco ao tal livro de facturas. Havia pacientes que não pagavam ou se atrasavam?
- Oh, claro. Penso que todos os médicos possuem a sua quota-parte de maus pagadores e daqueles que até nem pagam nada.
- E como é que o doutor Ellerbee resolvia esses casos?
- Eu enviava uma segunda via, às vezes uma terceira. Sabe como é, chamadas de atenção muito delicadas. Tínhamos uma fórmula escrita própria para isso.
- E quando eles não pagavam, nem mesmo depois dessas insistências? Que acontecia então? Ele nunca mais os atendia?
- Nunca o fez - respondeu ela, rindo e limpando o ketchup dos lábios com o guardanapo. Ele era realmente um tipo amoroso, condescendente. Dizia: "Bem, talvez eles estejam um bocado atrapalhados." E continuava a tratá-los. Era muito fácil lidar com ele.
- Assim parece - comentou Delaney.
Terminara a sua sanduíche e o pequeno recipiente com salada de repolho. Por fim, recostara-se, respirara fundo e perguntara:
- Recorda-se do nome do paciente que devia maior quantidade de dinheiro ao doutor Ellerbee?
- Claro - retorquiu Carol Judd prontamente, enfiando a última batata frita na boca com os dedos. - Joan Yesell. Ela devia-lhe quase dez mil dólares.
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- Joan Yesell - repetiu Delaney, não deixando transparecer a sua exultação. - Dez mil dólares?
- Mais ou menos.
- Era mais do que qualquer outro paciente devia?
- Muito mais.
- Enviou-lhe segundos e terceiro avisos?
- A princípio enviei, mas depois o doutor disse-me para deixar de a incomodar. Referiu que provavelmente ela não tinha possibilidades de pagar. Portanto, passou a tratá-la de borla.
- Obrigado - disse Delaney. - Muito obrigado. E agora que tal uma sobremesa?
- Bem... murmurou Carol Judd. - Pode ser.
Ele voltou a pé para casa numa tarde cinzenta, fumando um Cuesta-Rey 95 e pensando que o mundo lhe pertencia. Bem, não exactamente todo, mas a maior parte. O suficiente para fazer sentido. O problema era: por onde seguir a partir dali?
A casa estava vazia e silenciosa. As mulheres, supunha, estavam fora, trocando presentes de Natal. Foi ao gabinete de trabalho e pôs-se ao telefone. Levou quase uma hora a localizar Boone e Jason, a quem convocou para reunirem ali às nove horas da noite. Foi muito claro e inequívoco acerca da questão: "Estejam aqui!"
Mas quanddo eles chegaram e ele os instalou, fechando a porta do gabinete à tagarelice das mulheres que estavam na sala de estar, não soube exactamente como deveria comunicar a sua própria certeza. Sabia que esta poderia parecer frágil, mas para ele era suficientemente forte para ser trabalhada.
- Oiçam - principiou. - Estou convencido de que Simon Ellerbee estava apaixonado, ou tinha um romance, ou ambas as coisas, com Joan Yesell. Quatro mulheres, incluindo a sua, disseram que a sua personalidade sofrera alterações recentes. Mas não concordaram sobre a maneira como ela se transformara. Ele ora estava alegre, ora deprimido, ele era isto, ele era aquilo: a boa imagem do tipo que andava tão baralhado que não conseguia ver a direito. Também se dá o facto de Ellerbee não cobrar as contas a Yesell. Esta devia-lhe cerca de dez mil dólares e ele não fazia nenhum esforço para os cobrar. Soube-o esta tarde, através de Carol Judd, a recepcionista que trabalhava para ele.
Os dois agentes tinham-se inclinado para a frente, escutando atentamente. Delaney viu que não teria dificuldade nenhuma em convencê-los; eles queriam acreditar.
- Isso explicaria o seu testamento - observou Boone pensativo.
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- Cancelar as dívidas dos seus pacientes. Fê-lo para benefício de Yesell. Correcto, senhor?
- Correcto. Ela devia-lhe muito mais do que qualquer outro paciente. E também voltei a estudar o livro de marcações dele. A rapariga está apontada como doente tardia onze vezes no último ano, sempre às sextas-feiras à noite. Mas o interessante é que a anotação dessas visitas nocturnas das sextas-feiras parou em Abril. Mas eu acho que elas não deixaram de se efectuar. Estou convencido de que prosseguiram, mas ele não as apontou no livro.
- Acha que andava a dormir com ela? - perguntou Jason.
- Não podia deixar de ser - respondeu Delaney. - Um tipo saudável e bem-parecido como ele era. Não deviam ficar a jogar às damas no consultório dele.
- A doutora Diane e o doutor Samuelson juram que ele era fiel.
- Talvez não tivessem conhecimento - observou Delaney.
- Ou quem sabe se estavam a mentir para protegerem a sua reputação. Neste momento não é importante. O que é importante é que Yesell andava a encontrar-se com ele a horas tardias no consultório às sextas-feiras, enquanto a mulher ia para Brewster. Aposto o que quiserem em como era o que andava a acontecer. Também encontrei um relatório feito por Konigsbacher, em que este afirma que Symington viu Ellerbee a guiar o seu carro pela Primeira Avenida acima, sozinho, numa noite de sexta-feira, eram umas nove horas. Imagino que ele teria acabado de deixar Yesell em casa antes de seguir para Brewster.
- A Yesell não tem carro - disse Jason, anuindo. Portanto, é provável que tenha apanhado um táxi ou um autocarro para ir para o consultório de Ellerbee. Depois ele conduziu-a a casa. Condiz.
- Mais outra coisa - disse Boone. - Imediatamente a seguir a eu tê-la interrogado pela primeira vez, ela tentou cortar os pulsos. Isso poderia significar o reconhecimento da sua culpa.
- E quanto ao facto de a mamã mentir para lhe fornecer um álibi? - acrescentou Jason. - Penso que já temos aí material de sobra.
Olharam uns para os outros, sorrindo amargamente ao aperceberem-se de que aqueles dados não podiam, de forma alguma, ser considerados como provas definitivas.
- Iríamos ter de a apertar - -disse Delaney. - Mais cedo ou mais tarde. A ela e à mãe, também. De exercer uma verdadeira
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pressão sobre elas. Mas antes disso há umas quantas coisas que desejo saber. Se ela matou Ellerbee, qual foi o motivo? Talvez ele tenha prometido divorciar-se da mulher para casar com ela, mas depois tenha dado o dito por não dito ou nunca mais cumprisse o combinado. É uma possibilidade. Outra é a de ele a ter engravidado.
- Jesus Cristo! - exclamou o sargento. - A ela?
- É possível - argumentou Delaney. - Aquela mulher detective, Helen Venable, é-lhe muito chegada, não é? Veja se ela consegue descobrir se Yesell está grávida ou se fez algum aborto. E enquanto isso, Jason, você informe-se de quem é o médico pessoal da rapariga e do que ele lhe pode dizer. Provavelmente nada, mas tente. Entretanto, Boone, você mande um homem à Urgência do Hospital de St. Vincent ou lá para onde a levaram depois das tentativas de suicídio. Faça os possíveis por dar uma olhadela aos registos e em falar com os médicos e as enfermeiras. Veja se alguém anotou a presença de uma gravidez no registo da rapariga.
- É uma probabilidade um bocado remota - observou Boone com ar duvidoso.
- Claro que é, mas tem de ser explorada. Cubra também todas as lojas de ferramentas da vizinhança e na área onde ela trabalha. Veja se algum empregado se lembra de ter vendido um martelo de pena redonda a uma mulher com a descrição dela.
- Acha mesmo que foi ela quem matou Ellerbee? - perguntou Jason com curiosidade.
- O que na verdade penso é que ela esteve lá naquela noite e sabe mais do que nos está a dizer. De qualquer modo, vejam o que conseguem descobrir, e amanhã à noite vamos os três falar com ela. Talvez levemos a detective Venable connosco, para que Yesell não se sinta tão assustada. Mas quero apertar bem aquela menina.
- Podíamos prendê-la - sugeriu Boone.
- Para quê? - perguntou Delaney. - Só se pudermos acusá-la da compra do martelo é que teremos possibilidade de a incriminar. A nossa única esperança reside em lhe deitarmos as defesas abaixo. Não me agrada fazê-lo. Ela tem aquele aspecto de ratinho assustado, mas isso não pode influenciar-nos. Uma vez prendi uma mulher que não chegava nem a um metro e cinquenta de altura e tinha quarenta quilos de peso. Espatifara a cabeça ao namorado com um tijolo enquanto este dormia. Às vezes os
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ratinhos assustados podem surpreender-nos. Bem, sargento concluiu Delaney, fitando directamente Boone -, que pensa?
- Como Jason disse, condiz - observou Boone cautelosamente. - Ou seja, tudo vai bater no mesmo ponto e faz sentido. De modo que Joan Yesell e Ellerbee andavam a ter um romance. A única coisa que me intriga é porquê ? O doutor tinha a mulher mais linda do mundo, saudável e inteligente, também. Por que razão, em nome de Deus, arriscaria ele tudo isso por uma coisinha insignificante como Yesell? Comparada com Diane, ela é uma sombra.
- Certo - disse Delaney, anuindo. - Também eu tenho andado a reflectir sobre esse aspecto. Não quero estar a chegar a conclusões demasiado apressadas, mas vou dizer-vos como imagino que as coisas se tenham passado. Sabemos que Diane foi aluna de Ellerbee. Ele conhece aquela rapariga de beleza deslumbrante, que nada mais deseja ser do que bela... uma princesa. Portanto, ele decide convencê-la a servir-se do seu cérebro. Ela segue os conselhos dele e faz uma grande carreira. Sargento, lembra-se de Samuelson ter falado na síndroma Pigmalião-Galateia? Foi o que aconteceu com eles. Agora, anos mais tarde, Ellerbee conhece Joan Yesell. Também vê algo ali, e tenta trazê-lo à superfície. Sabe qual era o problema dele? Não conseguia deixar de melhorar as mulheres que eram importantes para ele. Há tipos assim. Não são capazes de amar uma mulher pelo que esta é. Têm de refazê-la até ficar conforme com a imagem que idealizam. Será que isto faz sentido?
- Tenho um cunhado desse género - disse Jason. - Está sempre a aborrecer a minha irmã para fazer isto, para fazer aquilo, usar isto, usar aquilo. Não a deixa simplesmente ser como é. Só lhes dou mais um ano ou dois. Depois acabarão por se separar.
- É exactamente o caso - disse Delaney com gratidão. E eu penso que parte da atracção que Ellerbee sentiu por Joan Yesell residiu nesse aspecto. Ele queria criá-la. Outra coisa. Toda a gente não se cansava de dizer que ele era um homem cheio de sorte. Lembram-se? Homem, você está cheio de sorte por ter casado com uma mulher que é uma verdadeira deusa, com todos aqueles predicados. Agora faço-vos a seguinte pergunta: por quanto tempo seriam vocês capazes de aguentar uma situação dessas? Passadas as primeiras impressões, não começaria a cansar? Não é possível que preferissem uma pequena sombra cheia de simplicidade que vos considerasse o Todo-Poderoso? Ou sabe-se lá se Ellerbee não estava apenas enfastiado. Ou Yesell era
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a melhor mulher na cama desde Cleópatra, ou pelo menos melhor do que Diane. Seja como for, existem muitas razões que podem ser tidas em conta para justificar a infidelidade de Ellerbee. O pobre tipo - acrescentou Delaney, abanando a cabeça - precisava de ajuda profissional.
Capítulo vigésimo quarto
Todos trabalharam o mais rapidamente que lhes foi possível, mas debalde. No princípio da noite do dia 27 de Dezembro, Delaney pouco mais ficara a saber.
Helen Venable afirmara que não hesitaria em jurar sobre uma montanha de Bíblias em como Joan Yesell não estava, nem nunca estivera, grávida, mas não dispunha de meios para provar uma coisa ou outra. Jason não teve sorte com o médico de Yesell. Este recusou-se a falar e mandou o agente sair do consultório. Os homens de Boone não descobriram nada em St. Vincent ou nas outras urgências que tinham tratado de Yesell relativamente às tentativas de suicídio desta.
A indagação junto das lojas de ferragens não apresentou melhores resultados. Ninguém se lembrava de ter vendido um martelo de pena redonda a alguém que se assemelhasse a Joan Yesell. O encarregado do prédio onde esta vivia foi interrogado, mas nem sequer sabia de que ferramenta se tratava, quanto mais possuir uma. Portanto, a situação pouco evoluíra.
- Muito bem - disse Delaney, suspirando -, vamos falar com a jovem. O engraçado da questão é que, acerca de uma semana atrás, eu sugeri ao comissário Thorsen que era possível que a mamã Yesell tivesse mentido para proteger a reputação da filha, que teria estado com algum namorado. Acertei namouche, mas quem diabo ia adivinhar que o namorado era a vítima?
Foram de carro até à parte baixa da cidade no automóvel de Jason, encontrando-se com Venable em frente do prédio onde Joan habitava.
- Vão prendê-la? - inquiriu Helen.
- Vamos esperar e ver como as coisas correm - retorquiu Delaney. - Não trazemos mandato de captura e, por enquanto, não podemos apresentar causas prováveis. Se ela confessar, aí o caso muda de figura. Está em casa?
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- Tanto ela como Blanche.
- Óptimo. A Helen liga lá para cima pelo intercomunicador e fala. A seguir, subimos todos.
Ao entrarem no apartamento supercheio, os dois gatos gordos ergueram sonolentamente os olhos para eles, mas não se deram ao cuidado de se levantar. A reacção de Blanche Yesell já foi mais exaltada.
- Que significa esta intrusão? - perguntou em tom seco, com o penteado em forma de colmeia a balançar furiosamente. - Já não sofremos o suficiente? O que os senhores estão a fazer é um acto de molestamento puro e simples, e podem ter a certeza de que o Departamento há-de ter notícias do meu advogado.
Delaney decidiu esclarecer a situação sem perder mais tempo.
- Minha senhora - declarou com voz trovejante -, mentiu-nos. Deseja ser presa por obstrução à justiça? Se assim não é, limite-se a ficar sentada e a manter a boca fechada!
A estupefacção fê-la calar-se. Mãe e filha sentaram-se abruptamente no sofá adornado. Passados alguns segundos, apertaram as mãos e fitaram receosamente os quatro polícias.
- Você - disse Delaney em tom gélido, dirigindo-se à Sra. Blanche Yesell - disse que esteve junto da sua filha na noite em que o doutor Ellerbee foi assassinado. Uma mentira deliberada. Deseja rever o seu depoimento agora?
- Bem, hum... - balbuciou -, talvez tenha saído por alguns minutos.
- Alguns minutos - repetiu ele zombeteiramente -, voltando-se, em seguida, para os três agentes. - Ouviram esta? Alguns minutos! Não é uma beleza? - Virou-se de novo para a mãe. Foram antes três horas, provavelmente quatro. E nós dispomos dos depoimentos dos membros do seu grupo de brídege para o provar. Três respeitáveis senhoras a testemunharem o seu perjúrio. Atreve-se a negá-lo?
Ele conseguira intimidá-la, mas ela não estava disposta a desistir por enquanto.
- A minha Joan é inocente! - gritou com voz angustiada.
- Não será? - disse Delaney com desprezo. - Não será realmente? E foi por isso que achou necessário mentir-nos? - Foi colocar-se em frente da filha, cujo rosto se tornara extremamente pálido. - E agora nós, menina Yesell. Tinha conhecimento de que o doutor Ellerbee cancelara o pagamento das dívidas em atraso dos seus pacientes no testamento?
A pergunta inesperada assustou-a. Olhou-o sem entender.
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- Quanto é que lhe devia? - perguntou Delaney severamente.
- Não me recordo exactamente - respondeu Joan com voz insegura.
- Sargento Boone - disse Delaney -, quanto é que Joan Yesell devia ao doutor Ellerbee?
- Cerca de dez mil dólares - disse Boone prontamente.
- Dez mil dólares - repetiu Delaney, fincando o olhar na jovem. - Muito, muito mais do que qualquer outro paciente. E o doutor Ellerbee não estava a fazer nenhum esforço em obter o pagamento desta dívida. Qual acha que terá sido a razão deste comportamento, menina Yesell?
- Ele era um homem muito bom - disse a mãe em voz baixa.
- E nós não dispúnhamos de...
- Dispunham do bastante - interrompeu-a Delaney rudemente. - A sua filha tinha um emprego muito bem remunerado. Possuíam o suficiente para lhe pagarem se ele tivesse exigido. Boone, como é que encara a questão?
- A meu ver, a ligação dos dois principiou acerca de um ano atrás - disse o sargento com ligeireza. - Depois, por volta de Abril, tornou-se séria. Foi nessa altura que ele deixou de anotar as visitas tardias que ela lhe fazia nas sextas-feiras à noite, no seu livro de marcações.
- Às sextas-feiras à noite - repetiu Delaney, anuindo. - Ele estava disponível todas as sextas-feiras à noite. A mulher seguia para Brewster e você - disse, olhando para a mãe -, você seguia para a sua partida de brídege. O conjunto de circunstâncias ideal. Ele prometeu divorciar-se da mulher para casar consigo - gritou a Joan Yesell.
Esta começou a chorar, enterrando o rosto entre as mãos. A detective Helen Venable deu um passo em direcção a Joan, mas depois parou. Sabia que não devia interferir.
- Nós sabemos, Joan - disse Delaney, subitamente brando.
- Sabemos do seu romance com o doutor Simon. Ele disse-lhe que a amava?
A cabeça inclinada moveu-se afirmativamente.
- Claro que disse - observou Delaney com voz suave. Disse que ia divorciar-se da mulher para casar consigo. Mas continuava a atrasar o processo, não continuava? Portanto, você... Jason, onde é que imagina que ela arranjou o martelo?
- É simples - disse o agente. - Comprou um numa loja
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qualquer de ferragens da cidade. Depois atirou-o para dentro de uma lata do lixo quando deixou de precisar dele.
- Não, não, não! - gritou Joan Yesell, erguendo o rosto cheio de lágrimas. - Não foi nada assim.
- Parem com isto! - exclamou a Sra. Blanche Yesell, indignada. - Imediatamente! Estão a perturbar a minha Joan.
- Não, minha senhora, não pararemos - disse Delaney rispidamente. - A sua Joan andava a ter um romance com um homem casado que foi encontrado morto por assassínio. Havemos de lhe arrancar a verdade, nem que leve a noite toda. - Voltou a encarar a filha. - Esteve lá, não esteve? Na noite em que ele foi morto?
Ela esboçou um sinal de aquiescência, começando de novo a chorar.
- A que horas lá chegou?
- Um pouco antes das nove.
- Porquê tão tarde?
- Chovia tanto que não consegui arranjar um táxi. Estavam todos a responder a chamadas via rádio. Por isso, tive de apanhar um autocarro.
- Que autocarro?
- Um que atravessa a cidade em direcção à Primeira Avenida. Depois subi-a.
- Telefonou a Ellerbee a avisar que ia chegar mais tarde?
- Sim.
- E que foi que ele disse?
- Que esperaria.
- Saiu do autocarro ao cimo da ponte oriental da Rua Oitenta e Quatro. Foi a pé até ao consultório dele?
- Fui.
- Que levava vestido?
- Uma gabardina.
- Botas?
- Sim, botas de borracha. E tinha um guarda-chuva.
- Muito bem. Portanto, chegou ao prédio em questão. E depois?
- A porta de entrada da rua estava aberta.
- Que porta? A exterior? A interior?
- Ambas. A porta exterior está sempre aberta. Mas, desta vez, a interior também se encontrava assim.
- De que tamanho era a abertura? Escancarada? Alguns centímetros?
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- Alguns centímetros.
- Depois, o que foi que fez?
- Antes de entrar, toquei à campainha. Ele dizia sempre aos pacientes tardios para tocarem três vezes. Portanto, foi o que fiz. Mas ele não respondeu.
- Mas entrou? Pela porta aberta?
- Sim.
- Viu as pegadas na alcatifa? Pegadas molhadas?
- Não reparei.
- Que aconteceu a seguir?
- Subi as escadas a chamar por ele. Ninguém respondeu.
- E quando chegou ao consultório?
A cabeça dela voltou a descair, mais uma vez. Estremeceu. A mãe rodeou-lhe os ombros com um braço.
- Que se passou nessa altura? - insistiu Delaney. - Quando chegou ao consultório?
- Encontrei-o. Estava morto.
- Onde é que ele se encontrava?
- No gabinete de entrada. No que era utilizado pela recepcionista.
- Em que posição o viu?
- Como? - perguntou ela.
- Ele estava na cadeira, deitado no chão ou de que maneira?
- Não o sabem? - exclamou Blanche Yesell.
- Cale-se! - ordenou-lhe Delaney asperamente.
- Ele estava no chão - disse Joan, tremendo. - De rosto para cima. Todo cheio de sangue.
- Que fez então?
- Gritei.
- E depois?
- Voltei-me e corri.
- Tocou em alguma coisa na sala?
- Não.
- Inclinou-se sobre ele, sentiu-lhe o pulso?
- Não, não, não!
- Então, como é que soube que estava morto?
- Sabia-o, simplesmente. Os olhos dele estavam todos...
- Porque não telefonou para a Polícia? - perguntou o sargento Boone.
- Não sei. Entrei em pânico. Queria sair dali.
- Onde está o livro? - perguntou Delaney.
- Que livro?
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- O livro das facturas. O que você tirou da gaveta de cima da secretária da recepcionista...
- Não tirei livro nenhum! Juro que não! Não toquei em nada.
- Que fez então?
- Corri para fora do consultório, desci as escadas, saí do edifício.
- Viu alguém no interior do prédio?
- Não.
- Ouviu alguma coisa. Como se alguém estivesse num dos outros compartimentos?
- Não.
- Cheirou-lhe a alguma coisa, algum odor fora do comum?
- Não.
- Depois o que fez?
- Corri para a York Avenue. Ainda estava a chover. Finalmente encontrei um táxi e voltei para casa.
- Que espécie de táxi? - perguntou Jason. - De que cor?
- Um dos grandes, com assentos forrados.
- Um Checker?
- Sim, um táxi Checker.
- A que horas chegou a casa? - inquiriu Delaney.
- Faltava pouco para as dez. Penso.
- E a senhora? - perguntou Delaney, virando-se para a Sra. Yesell. - Quando é que chegou a casa? Desta vez queremos a verdade.
A mulher ergueu o seu queixo empertigado.
- Por volta das onze e um quarto.
- E sua filha pô-la a par do acontecido?
- Exato. A minha Joan estava a chorar. Quase histérica. Pensei em chamar um médico para vir vê-la.
- Chamou?
- Não. Dei-lhe uma aspirina e uma boa chávena de chá quente.
- E depois combinaram o álibi falso para nos despistarem.
- Pensei que ela não se devia envolver. Joan não tinha nada a ver com a morte daquele homem.
Delaney resmungou e fitou os agentes com um encolher de ombros conformado.
- Ela achou que não deviam envolver-se. Que me dizem a esta?
Voltou-se de novo para Joan Yesell.
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- Muito bem - disse -, vejamos mais uma vez o que se passou.
Dessa vez foi ainda mais exigente, pressionando-a ferozmente no que se referia aos detalhes. Havia outros passageiros no autocarro que a levou até à parte alta da cidade na noite do crime? Seria capaz de descrever o condutor? Viu alguém quando atravessou a Primeira Avenida em direcção ao prédio? A que horas telefonara a Ellerbee a avisar que iria chegar mais tarde? Poderia descrever o motorista do táxi que a transportara para casa?
Depois: quando, precisamente, principiara o seu romance com Ellerbee? (Em Março.) Quantas vezes costumavam encontrar-se? (O maior número de vezes possível. Duas ou três vezes por mês.) Ele disse que queria divorciar-se da mulher para casar com ela? (Sim.) Quando é que ele falou, pela primeira vez, em divórcio? (Cerca de três meses atrás.) Alguma vez lhe deu dinheiro? (Não, mas oferecia-lhe presentes.) Como, por exemplo? (Jóias, ocasionalmente. Um lenço de seda. Coisas do género.)
A Sra. Yesell tinha conhecimento da ligação da filha? (Sim.) Opunha-se, minha senhora? (Hum... não exactamente.) Ellerbee disse alguma vez que a mulher estava a par da sua infidelidade? (Nunca o referiu.) Mas disse que lhe ia pedir o divórcio? (Sim.) Mas não tem a certeza de que ele o tenha chegado a fazer? (Não.)
Durante todo o interrogatório, Delaney adoptou os seus modos mais rudes, alternando o ar ameaçador com o conciliatório, trovejando e depois falando com a mais suave das entoações. Ora amedrontava as duas mulheres até às lágrimas, ora continha-se para lhes dar tempo a que recuperassem. Quando Joan ficava à beira da histeria, ele mudava para a mãe desta, mantendo ambas em sobressalto constante com perguntas inesperadas.
Finalmente, passadas que tinham sido mais de duas horas em que nem Delaney nem os três agentes se tinham sentado ou despido os agasalhos, o primeiro disse subitamente:
- Muito bem, por agora, basta. Mantenha-se à nossa disposição, menina Yesell. Hão-de vir mais perguntas. Nem sequer pense em sair da cidade; vai ser vigiada.
Principiou a conduzir a procissão para fora do apartamento. A detective Venable disse, hesitante:
- Posso ficar mais um pouco?
Delaney fitou-a pensativamente, por um momento.
- Sim - respondeu -, faça isso. - E tome uma boa chávena de chá.
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Jason conduziu-os até à zona norte da cidade. Boone e Delaney iam sentados no banco de trás.
- Aquela casa cheirava a gatos - comentou o sargento. - Não importa o número de vezes em que mudam o caixote da serradura; quando se tem gatos, o apartamento cheira sempre a eles.
Discutiram de que modo iam deitar mãos à investigação dos autocarros e táxis que Jane Yesell afirmava ter apanhado na noite do crime. Tratava-se, provavelmente, de uma tarefa impossível, envolvendo horários de autocarros, cartões de controle de ponto de condutores, e folhas de serviços de táxis, mas tinha de ser feito.
- Vocês escrevem relatórios sobre o interrogatório desta noite
- ordenou Delaney. - Eu farei o mesmo. Entre os três seremos capazes de recordar todos os pormenores.
O carro parou em frente da casa de Delaney, mas este não esboçou nenhum movimento para sair.
- Muito bem - disse -, vamos por votos. Jason, ela estava a dizer a verdade?
- Eu penso que ela está limpa, senhor - disse o agente. Sobretudo porque não a consigo imaginar dotada da força muscular ou coragem necessárias para martelar na cabeça de um tipo que ela amava.
- Sargento?
- Eu penso que ela estava a dizer a verdade. A segunda rodada foi a repetição da primeira. Ou ela é uma actriz consumada ou contou a coisa tal qual se passou.
- Sim - observou Delaney taciturnamente -, receio bem que tenham os dois razão.
- E, além disso - acrescentou Boone -, quando estivemos em Brewster, Samuelson disse que duvidava de que uma pessoa com tendências suicidas fosse capaz de cometer um homicídio.
Delaney foi-se tornando gradualmente hirto. Voltou-se de modo a fitar o sargento.
- Deus me valha - disse com um sorriso trémulo. Parece-me que acabou de proferir as palavras mágicas.
Saiu do carro sem fazer mais comentários e subiu os degraus que conduziam à porta da frente. Colocou o chapéu e o sobretudo no armário do vestíbulo e, em seguida, foi para a sala de estar. As raparigas tinham ido ao teatro com Peter e Jeffrey, mas Mónica estava em casa, a ver ao mesmo tempo televisão e a conferir meticulosamente a sua lista de postais de Natal, comparando-a
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com os que recebera em troca. Ele deteve-se para lhe depositar um beijo na face.
- Que tal correu? - perguntou ela.
- Bem - respondeu ele. - Mais tarde te conto. Tenho um telefonema para fazer e depois umas questões para verificar. Ultimamente não te ponho a vista em cima - queixou-se.
- E de quem é a culpa? - inquiriu ela.
Levou quase meia hora a localizar o Dr. Murray Walden, incluindo uma chamada para o comissário Thorsen a fim de obter o número de telefone do psiquiatra da Polícia que não constava na lista. Finalmente detectou o paradeiro de Walden num grande jantar-dançante que estava a ser realizado na Americana. Houve que apaziguar o médico.
- Acho bem que seja importante, Delaney - disse o psiquiatra. - Tirou-me do melhor tango que Nova Iorque já viu desde Valentino.
- É importante. Uma pergunta, mas crucial, em relação à qual gostaria que me desse um sim ou um não em resposta.
- Isso lhe garanto eu. Como lhe disse, na minha especialidade nada é definitivo.
- Vocês são tão pestes como os advogados. Está bem, seja como for, vou tentar. Temos um suspeito com um passado de tentativas de suicídio. Quatro, para ser exacto. Será uma tal pessoa capaz de cometer um homicídio?
Silêncio.
- Está? - perguntou Delaney. - Walden? Você está aí?
- Sim, mas deixe-me ver se percebo bem. Quer saber se uma pessoa com tendências suicidas é capaz de cometer homicídio? É essa a sua pergunta? A resposta é sim. Em determinadas circunstâncias, qualquer pessoa é capaz de um acto desses. Mas se está a perguntar-me se é provável, a resposta é não. De facto, nunca ouvi falar de uma personalidade suicida que tenha dado em homicida. O que não quer dizer que não seja possível.
- Muito obrigado, doutor - agradeceu Delaney. - Volte para o seu tango.
Delaney passou nova meia hora a tirar determinados relatórios e apontamentos do seu arquivo. Colocou todos os documentos sobre o tampo da secretária, ao lado uns dos outros. Observou-os com amarga satisfação, notando que faziam lembrar peças de um puzzle, juntando-se e encaixando, finalmente, umas nas outras.
Abriu a porta que dava para a sala de estar.
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- Mónica - chamou. - Podes chegar aqui por um momento?
Ela ergueu os olhos.
- Oh, oh! A sentires-te culpado por me negligenciares, não é?
- Claro que sim - respondeu ele, sorrindo. - Mas também quero a tua opinião sobre uma coisa.
Mónica entrou no gabinete e sentou-se na poltrona que estava em frente da secretária do marido.
- Ena - observou -, estás com um ar solene.
- Estou? Sério talvez, mas solene, não. Ouve, isto se calhar vai levar um bocado de tempo.
Inclinou-se para a frente, braços apoiados na secretária, e contou os acontecimentos da noite a Mónica.
- Que achas - perguntou-lhe depois de ter relatado a história de Joan Yesell.
- Pobre rapariga - observou Mónica lentamente. - Foste duro com ela, Edward?
- Tão duro como foi preciso. Parece-te que ela está a dizer a verdade?
- Eu acredito que sim. Uma mulher vulnerável como ela. com os anos a passarem. Um homem bonito a dizer-lhe que a amava. Edward, era um romance, como aqueles a que se assiste na televisão. Quem sabe se a sua última oportunidade de viver uma relação íntima com um homem. E sexo. Se ele não se ofereceu para se divorciar da mulher para casar com ela, não me parece que ela tenha insistido ou sequer objectado. O simples facto de estar com ele era quanto lhe importava.
- É assim que eu vejo o problema - disse Delaney, anuindo.
- E não te podes esquecer de que ele era o médico dela, dando-lhe apoio, compreensão e confiança. Uma verdadeira figura paternal.
- Transferência - comentou Mónica. - É assim que designam o fenómeno.
- Seja lá o que for - disse Delaney. - De qualquer modo, estou convencido de que ela se encontra inocente do assassínio, e Boone e Jason pensam o mesmo. Portanto, isso leva-nos de volta à primeira forma, certo? E ainda nos falta deslindar o outro conjunto de pegadas. Mas acontece que, quando eu ia a sair do carro, Boone referiu algo que despoletou uma recordação. Lembrou-me de que, quando estivemos em Brewster, Samuelson nos disse que não achava uma personalidade suicida capaz de homicídio.
- Não me recordo de o ter ouvido dizer nada que se parecesse com isso.
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- Tu estavas na cozinha a ajudar a arrumar as coisas enquanto nós conversávamos sobre o assunto. A menção de Boone fez-me lembrar algo. O telefonema que acabei de fazer foi para o doutor Murray Walden, o psiquiatra do Departamento, um tipo muito bom na sua profissão. Ele confirmou o comentário de Samuelson: que era extremamente improvável um suicida em potência tornar-se um homicida.
- Edward, porque é esse aspecto assim tão importante? É mais um dado que aponta para a inocência de Joan Yesell, não é verdade?
- É mais do que isso. Porque quando o sargento Boone fez referência ao facto, lembrei-me do encontro que tive com Diane Ellerbee, em que esta me forneceu os nomes de seis dos pacientes do marido, todos eles presumivelmente capazes de um assassínio. Disse que incluía Joan Yesell porque o suicídio, quando tentado com tanta frequência, muitas vezes evoluía para uma mania homicida. Só para confirmar o que tinha de memória, fui à procura dos apontamentos com que fiquei relativamente a essa conversa. E cá estão eles. - Mostrou uma folha de papel à mulher. - Aqui está o que ela disse. Ora bem, Diane é uma psicóloga com muita experiência. Porque haveria ela de dizer uma coisa daquelas quando Samuelson e Walden afirmam que é precisamente o contrário?
Fitou Mónica, vendo como o rosto desta ficava rígido ao começar a compreender todo o significado do que ele acabara de lhe transmitir.
- Edward, estás a sugerir que...
- Não estou a sugerir nada; estou a afirmar em definitivo e sem quaisquer dúvidas: Diane Ellerbee matou o marido.
- Mas tu não...
- Espera um minuto - interrompeu ele, erguendo a palma da mão. - Antes de dizeres que estou maluco, permite que te forneça alguns dados de base sobre esta matéria. Comecemos pela minha própria estupidez ao não me aperceber mais cedo do facto. Cerca de setenta e cinco por cento de todos os assassínios são cometidos pela esposa, familiares, ou amigos da vítima. Soube-o desde o dia em que recebi o meu distintivo de ouro. Mas, neste caso, esqueci-me dessas percentagens. Porquê? Provavelmente por Diane Ellerbee ser tão bela, tão inteligente. Ela enredou-me. E eu, como um idiota, nunca me lembrei de a considerar uma assassina viciosa e capaz de actuar a sangue-frio.
- Mas ela não podia...
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- Calma - interrompeu-a ele mais uma vez. - Deixa-me acabar. Negligenciar as percentagens não foi a maior de todas as parvoíces por mim cometidas; não me apercebi do que era óbvio. O que, neste caso, era o depoimento em que dizia ter deixado Manhattan naquela noite por volta das seis e meia e chegado a Brewster cerca das oito. Quem é que o afirma? Ela é quem o afirma. Onde está a prova? Não existe prova nenhuma. E atrasado mental como sou, nunca me lembrei de duvidar sequer da história dela, não tentei prová-la de uma maneira ou outra.
- Isso não significa que ela é culpada.
- Não? Aqui está o cenário, tal como o imagino. Simon Ellerbee apaixona-se realmente por Joan Yesell. E é honesto; não a aldraba. Portanto, diz à mulher que quer o divórcio. Calculo que isso tenha tido lugar três semanas, talvez um mês antes de ele ser morto. Ou talvez ela mesma tenha descoberto o que se passava entre o marido e Joan Yesell... Quem sabe? Mas a ideia do divórcio deixa-a verdadeiramente abalada. Então ele está a trocar a deusa dourada por um estafermo? Começa a magicar um plano.
"Assim, na noite do crime, ela telefona ao marido, como de costume, a dizer que vai mais cedo para Brewster e que ele pode seguir mais tarde, depois de terminar a consulta com o seu paciente tardio que, como Diane sabe, deve provavelmente ser Yesell. Diane tira o carro da garagem, mas não chega a sair de Manhattan. Talvez tenha andado por aí às voltas, mas tenho ideia de que terá estacionado o carro algures para os lados da parte leste da Rua Oitenta e Quatro, de onde podia ver a porta de entrada para o prédio, limitando-se a ficar sentada e a aguardar.
"Nessa noite Yesell está atrasada e não aparece. No entanto penso que Diane se encontra num tal estado que nem se rala com o facto. Creio que ela tencionava matar os dois. Estou verdadeiramente convencido disso. Ela quer entrar pelo consultório dentro e apanhá-los no momento em que estejam nos braços um do outro. Depois esmagar-lhes-ia os crânios com o seu pequeno martelo. Onde foi ela arranjar o martelo de pena redonda ainda não sei, mas hei-de descobrir.
"Seja como for, ela está determinada em matar, e ao ver que Yesell não aparece, digamos, até às oito e meia, diz para consigo que ela pode ir para o diabo, que irá matar o homem que a traiu. Sai do carro, caminha debaixo de chuva, entra no consultório do marido e assassina-o. Os golpes fatais atingem-no no alto da cabeça, mas por trás. Daí que ele se tivesse virado de costas para
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ela, não contando com o ataque mortífero. A seguir ela rola-o de modo a ele ficar de costas, espeta-lhe o martelo nos olhos.
"Mónica, deixa-me ir buscar-te uma bebida, estás um pouco pálida.
Delaney foi à cozinha, de onde trouxe uma garrafa de Frascati e dois copos. Depois sentou-se e serviu o vinho.
- Terei sido demasiado cru na minha exposição? Desculpa. Mas vês alguma lacuna na história? Tem consistência, não tem? Possui uma lógica algo louca, não achas?
- Penso que sim - respondeu Mónica, hesitante. - Mas porquê, Edward? Terá sido apenas por ela se sentir repudiada?
- Em parte deve ter sido, claro, mas não só. Eu julguei aquela mulher de uma maneira completamente errada. Imaginei-a fria, sempre controlada, nunca deixando de pensar antes de actuar. Mas agora acredito que por detrás daquela fachada se oculta uma mulher extremamente apaixonada.
Havia outras coisas que Delaney queria contar à mulher. O motivo que levara Diane Ellerbee a furar os olhos ao marido, por exemplo. Mas pareceu-lhe que Mónica, naquele momento com um aspecto lúgubre e abalado, ouvira demasiada malvadez e violência para uma noite.
- Vamos assistir a um pouco de TV - sugeriu Delaney. Ou fiquemos apenas sentados a conversar. Já há muito tempo que não passamos uma noite juntos.
Mónica sorriu debilmente.
- Não, já há muito tempo. Que vais fazer agora, Edward? Prendê-la?
Ele abanou a cabeça.
- Ainda não estou de posse de provas suficientes para tal. Tudo o que te disse não passam de suposições. Teremos de nos esforçar por arranjar provas irrefutáveis. Talvez o consigamos, talvez não. Mas uma coisa posso eu dizer-te: aquela senhora sanguinária não se vai sair desta com facilidade.
Capítulo vigésimo quinto
Na manhã do dia 28 de Dezembro, um sábado, bem cedo, Delaney ligou para Boone e Jason, pedindo a ambos para estarem em sua casa às onze horas. Quando chegaram, ele reunira mais
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relatórios, notas e dados que apontavam claramente para a culpa da Dra. Diane Ellerbee.
Fê-los sentar e procedeu, mais uma vez, à sua exposição, tal como fizera a Mónica na noite anterior.
- Em meu entender - terminou -, não temos hipóteses de provar, a favor ou contra, que ela tenha chegado a Brewster nessa noite, à hora em que afirma tê-lo feito. A não ser que apareça uma testemunha visual, o que é tão pouco provável como uma tempestade de neve em Julho. Mas partamos do princípio de que ela teve oportunidade de matar o marido. Falta-nos descobrir o motivo e o método.
- A mim parece-me que tem o motivo, senhor - disse Boone. - A esposa que é trocada por outra mulher. Já tratei de uma dezena de homicídios desse género.
- Claro que tratou - observou Delaney. - Está sempre a acontecer. Mas eu penso que a coisa não foi assim tão simples. Pode parecer um tanto excessivo, mas é a ideia que eu tenho da questão. Temos uma mulher linda e jovem que usufrui de todas as regalias que as mulheres lindas e jovens têm à sua disposição. Depois torna-se aluna de Ellerbee. Ele vê potencial nela e diz-lhe que, se ela não utiliza o cérebro, não passa de uma estátua. Estão a ver? Ele diz-lhe que a sua aparência não significa nada; não passa de um acidente genético feliz. Não se sente impressionado com a sua beleza, como lhe afirma, o mesmo não acontecendo com o seu cérebro, convencendo-a de que tem de o utilizar se deseja uma vida preenchida. Até aqui está entendido?
- Ele tenta melhorá-la - disse Jason Dois. - Como já falámos anteriormente.
- Exacto! Ele diz-lhe que a sua beleza é apenas aparência. Ela alinha, faz um casamento feliz e uma carreira bem sucedida. Então, de repente, descobre que ele tem olhos para outra mulher. Vejam bem: ele tem olhos para outra mulher.
- Portanto, acha que foi ela que lhe furou os olhos? concluiu o sargento.
- Tinha de ser - disse Delaney firmemente. - Não só ele lhe estava a ser infiel como retrocedia em tudo o que lhe dissera. De modo que, depois de ele estar morto, ela cegou-o. "Agora nunca mais encontrarás ninguém mais belo do que eu, filho da mãe", eis o que ela estava a dizer.
- Eh - disse Jason -, a mulher é completamente chanfrada.
- Talvez o estivesse no momento em que cometeu o acto - admitiu Delaney -, mas depois encobriu tudo como um Einstein
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e trapaceou-nos astuciosamente sem o menor problema. Quero com isto dizer que ela pensou todos os passos que deu, comportando-se como a viúva ultrajada que busca justiça, fazendo magnificamente de conta que colaborava connosco em tudo o que estava ao seu alcance. Lá parva é que ela não é.
- Nunca haveremos de conseguir inculpá-la - disse Boone.
- Que provas é que temos?
- São todas circunstanciais - retorquiu Delaney. - E por isso muito frágeis. Mas não podemos deixar de tentar apanhá-la. Aqui vai aquilo que eu quero que vocês hoje façam... Podem dividir as tarefas da forma que melhor entenderem. Primeiro, investiguem a garagem de Manhattan onde os Ellerbees guardavam os carros quando ficavam na cidade. Vejam se a garagem tem algum serviço de reparações. Se assim for, se perderam algum martelo de pena redonda nos últimos três meses... Se por aí não conseguirem nada, vão até Brewster. Eles têm aquele jipe station lá guardado; deve haver alguma garagem local ou alguma estação de serviço que preste assistência a essa viatura. Façam a mesma pergunta: falta-lhes algum martelo de pena redonda? Eu fico com algumas coisas para verificar. Encontramo-nos todos aqui, digamos, por volta das nove horas da noite, a fim de compararmos os dados obtidos. Boone parece estar com ar de dúvida. Não está convencido de que ela é culpada?
- Oh, sem dúvida que estou - respondeu o sargento melancolicamente. - Depois de ouvir a história de Joan Yesell, Diane torna-se a suspeita número um. A única coisa que me preocupa é o pressentimento de que ela é capaz de se safar.
- Jason?
- Sim, eu acho que essa senhora matou o marido. Mas tal como o sargento diz, apanhá-la é outra coisa.
- Veremos - disse Delaney impassivelmente. - Veremos. Depois de eles saírem, foi para a cozinha a fim de se abastecer.
As mulheres tinham ido às compras e depois tencionavam assistir ao espectáculo de Natal no Radio City Music Hall. Portanto, Delaney tinha a casa toda por sua conta. E o que era ainda mais importante, tinha o frigorífico para seu uso exclusivo.
Havia um maravilhoso pão de centeio da cor do mármore: metade centeio, metade com mistura de cevada, preparado em forma de trança. Recheou-o com fatias grossas de peru fumado, pedacinhos de picles kosher (1), e uma porção de molho Tiger, um condimento estupendo que descobrira há pouco.
* (1) Alimento preparado de acordo com a dietética judaica. (N. do E.) *
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Quando se provava, a primeira impressão era a de um misto de agridoce. No momento a seguir, o doce subia à cabeça, e os ouvidos até vapor de água libertavam.
Levou a sanduíche, juntamente com uma Tuborg gelada, para o gabinete, a fim de ir comendo enquanto trabalhava.
O que o preocupava era o seguinte. Na primeira entrevista que tivera com a Dra. Diane Ellerbee, esta afirmara não ter dado por nenhuma alteração recente no comportamento do marido. Depois, dias mais tarde, ela própria fora a casa de Delaney dizer que sim, que, pensando melhor, se apercebera realmente de uma mudança nos seus modos.
Pois muito bem, que diabo a levava a mudar de opinião?
Levou quase meia hora a descobri-lo, mas chegou lá. Quando telefonara a Carol Judd pela primeira vez, sugerira a esta que ligasse para Diane Ellerbee a fim de confirmar a sua identidade. Carol assim fizera, encontrando-se depois com ele - altura em que descrevera as transformações verificadas na personalidade do Dr. Simon; entre elas, o facto de ele ter começado a usar uma flor na lapela.
Comparando as datas do seu encontro com Judd e a visita de Diane a sua casa, Delaney adivinhou o que se passara. Mas tinha de confirmar a sua suspeita. Ligou para Carol Judd e, porque era um homem supersticioso, disse de si para si que, se ela estivesse em casa, era um bom presságio e a sua teoria seria comprovada.
Carol Judd estava em casa.
- Menina Judd? - perguntou com voz enérgica. - Daqui fala Edward X. Delaney.
- Oh, viva, senhor Delaney. Tivemos um rico almoço. Quando é que vamos repetir?
Ele riu.
- Tenho ideia de que lhe devo uma série de almoços. Mas, entretanto, gostaria de que me respondesse a uma pergunta. Lembra-se da primeira vez em que lhe telefonei, sugerindo-lhe que confirmasse a minha identidade com Diane Ellerbee, de modo a ter a certeza de que eu não era apenas um tarado qualquer dos telefones a incomodá-la?
- Claro que me recordo perfeitamente. Liguei para a doutora e ela disse-me que eu podia falar à vontade consigo.
- Hum, hum. Agora eis a pergunta: ela voltou a ligar para si depois a querer saber quais tinham sido as perguntas que eu lhe fizera?
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Fez-se silêncio durante alguns segundos.
- Vejamos... Penso que ela ligou no dia seguinte. Andava a tentar arranjar-me um emprego, como sabe. Falámos sobre a questão durante um bocado... Sim, tem razão; ela quis saber quais tinham sido as perguntas que o senhor me dirigira.
- E você disse-lhe - observou Delaney -, que eu lhe perguntara se tinha notado alguma mudança na personalidade do marido. E a Carol contou-lhe o que me respondera, certo?
- Não consigo lembrar-me muito bem, mas creio que sim. Não o devia ter feito?
- Claro que fez muito bem! - disse Delaney veementemente.
- Obrigado pela sua ajuda, Carol. E estava a falar a sério quando falei em voltarmos a almoçar juntos. Posso telefonar-lhe um dia destes a saber se está disponível?
- Quando quiser - disse ela com jovialidade.
Delaney desligou, sorrindo gelidamente. Ali estava uma senhora de miolos. Não Carol Judd, mas Diane Ellerbee. Ao saber que ele perguntara se os modos da vítima tinham sofrido alguma transformação, apercebera-se de que provavelmente ele fizera a mesma pergunta a Joan Yesell e e a Sylvia Mae Otherton e recebera respostas similares.
Mas ela, a esposa, que devia ter sido a pessoa mais sensível às mudanças de humor de seu marido, dissera que não, que ele não se mostrara absolutamente nada diferente. Então, por ter mentido e recear que Delaney começasse a desconfiar dela por ali, fora até à casa dele e confessara: "Caramba, cometi um erro; afinal ele andou alterado no decorrer do último ano."
Delaney não tinha dificuldade em perceber a linha de raciocínio que ela seguira; cometera um erro e estava a repará-lo. Por aí, tudo bem; a sua pessoa estava em causa e ela teve de improvisar para resolver o problema. Ele compreendia-o. Mas no que lhe dizia respeito, o facto representava outra indicação da sua culpa. Nada que a condenasse nas barras de um tribunal, mas possuía o seu significado.
Havia outra questão que tinha de ser esclarecida. Telefonou para o detective Charles Parnell e a mulher deste informou-o de que ele estava a trabalhar na esquadra de State Island e era provável que, ligando para lá, o encontrasse. Deu o número de telefone a Delaney, mas quando este ligou disseram-lhe que Parnell acabara de sair, indo para One Police Plaza.
Por fim, Delaney conseguiu contactar com ele. Depois de uma troca de amabilidades, perguntou a Parnell:
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- Conhece o advogado que tratou do testamento de Simon Ellerbee?
- Sim, conheço o tipo. Não muito bem, mas sei quem é. De que é que precisa?
- Unicamente da data em que Ellerbee fez o seu testamento. Aquela questão do cancelamento das dívidas dos seus pacientes... gostaria de saber em que altura Ellerbee introduziu essa cláusula no seu testamento.
- Não posso garantir que ele me dê essa informação, mas vou tentar. Normalmente, ele joga ténis aos sábados, no seu clube. Telefono-lhe para lá e depois volto a contactar consigo, com a resposta que obtiver.
- Obrigado - disse Delaney com gratidão. - Ficarei à espera, aqui em casa.
Foi à cozinha buscar nova Tuborg, que levou para o gabinete, sorvendo pensativamente pequenos goles de cerveja. Reflectiu de novo na questão de Simon Ellerbee ter mudado no último ano, depois de ter iniciado o seu romance com Joan Yesell. Admirou-se com o facto de o Dr. Samuelson, seu mentor, não ter dado pela alteração no estado de espírito do seu amigo mais chegado.
Delaney foi ao relatório que dizia respeito ao Dr. Samuelson, e lá estava:
"- Deu por alguma mudança no doutor Simon Ellerbee nos últimos seis meses, um ano? - perguntou Boone.
"- Não, nenhuma mudança - respondeu Samuelson."
Delaney ficou a olhar para o registo escrito daquele diálogo. Algo não batia certo. Durante um instante breve teve dúvidas de que Samuelson não tivesse sido conivente no crime perpetrado pela Dra. Diane Ellerbee. Não tinha essa percepção. Ainda assim...
Telefonou para o Dr. Samuelson.
- Fala Edward X. Delaney - disse. - Como está, doutor? -. Fatigado - respondeu Samuelson. - Esta manhã tive
doentes. Reservo as tardes de sábado para me pôr em dia com as minhas leituras. Jornais ligados à profissão. Material muito chato.
- Posso imaginar - observou Delaney. - Doutor, surgiram factores novos e importantes que dizem respeito à morte de Simon Ellerbee, e eu preciso da sua ajuda. Gostaria de saber se posso encontrar-me consigo amanhã de manhã. Sei que é domingo, mas, apesar disso, tive esperança de que estivesse disposto a falar comigo.
- Claro, porque não? - disse Samuelson. - A que horas?
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- Oh, por volta das dez horas da manhã. Pode ser?
- No meu consultório. Então, até amanhã.
Satisfeito, Delaney desligou e começou a rodar com a cadeira de um lado para o outro, matutando. Reflectiu sobre o relacionamento entre Samuelson e Diane Ellerbee e recordou-se da maneira como esta o tratara quando tinham estado em Brewster. Também se lembrou do comentário que Rebecca Boone fizera quando voltavam para casa: "Eu acho que ele está apaixonado por ela."
O osso do tornozelo estava ligado ao da perna, que, por sua vez, ligava com o da coxa e este com o da anca. Cantarolando, Delaney foi ao arquivo buscar as biografias.
Descobriu aquilo que procurava nos relatórios apresentados por Jason relativamente a Samuelson. Há alguns anos atrás, o médico sofrera uma depressão e estivera seis meses sem trabalhar. As datas estavam cuidadosamente anotadas. Deus abençoasse Jason Dois.
A seguir, Delaney reparou na data de casamento de Diane e Simon Ellerbee. A crise de Samuelson ocorrera cerca de duas semanas após esta. Agora é que as coisas estavam a ficar interessantes. Mais um pedacinho que se encaixava no todo.
Ainda estava a ponderar sobre o significado da relação Ellerbee-Samuelson quando o telefone tocou. Pegou no auscultador, mas antes de ter possibilidade de falar...
- Daqui fala Charles Parnell - disse o detective, com uma risada.
- Oh, sim. Obrigado por me telefonar. Como é que as coisas correram?
- Uma beleza. O tipo acabara de ganhar o seu jogo contra alguém que tem andado a tentar bater há anos, de modo que estava a celebrar com vermutes secos. Suficientemente alegre para falar mais do que devia. De qualquer modo, Ellerbee fez o seu testamento há uns cinco anos atrás. Mas a cláusula que diz respeito às contas pendentes dos seus pacientes foi uma cláusula adicional que ele acrescentou três semanas antes da sua morte. Serviu de alguma ajuda?
- Uma maravilha - disse Delaney. - Muitíssimo obrigado e bom Ano Novo para si e para os seus.
- O mesmo para si, senhor.
Mais outra pequena peça do puzzle. Ellerbee a cancelar as contas de Joan Yesell apenas três semanas antes da sua morte, mais ou menos na altura em que a vítima comunicara a sua mulher que desejava o divórcio. Estaria apenas a ser generoso para com o
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seu novo amor ou teria tido uma premonição em relação à sua morte?
"- Diane, quero o divórcio - disse Simon."
"- Eu mato-te! - respondeu-lhe Diane."
Delaney acreditava que o diálogo imaginário entre ambos se teria passado assim; a senhora era capaz disso. A senhora também era capaz de mentir descaradamente sempre que necessário. Ele perguntara-lhe se ela se sentia surpreendida com a cláusula que constava no testamento do marido relativamente às contas em atraso dos pacientes deste. Não, dissera ela, não se admirara porque estava ao corrente do que constava no testamento dele. O que, no entender de Delaney, era uma mentira de primeira ordem.
Continuando a pensar no que aquilo significava, Delaney foi até à cozinha e colocou um longo avental branco sobre o seu pesado fato de lã de três peças. O avental tinha as palavras BEIJA A COZINHEIRA impressas à frente. Em seguida, deitou mãos à preparação do jantar para a família.
Como era sábado à noite, iriam comer cachorros-quentes com salsichas grelhadas, ervilhas cozidas com carne de porco e um alho para dar gosto, e chucrute quente e frio.
Por volta das nove da noite, a casa dos Delaneys estava animadíssima. Peter e Jeffrey tinham chegado, trazendo consigo um novo cartão de jogos chamado "Amor à Primeira Vista", no qual, atirando-se dados, se ia do quadrado um (Encontro ao Acaso) até ao quadrado vencedor (Casamento Feliz).
Mais ou menos na mesma altura em que os rapazes apareceram chegaram também Boone e Jason, que foram imediatamente empurrados para o gabinete de trabalho, cuja porta ficou bem fechada contra a alegria barulhenta que reinava na sala de estar.
- Estamos num período eufórico - disse Delaney pesarosamente. - Precisamente o que eles estão a viver aqui mesmo esta noite. Antes de me dizerem o resultado das vossas investigações, deixem-me que vos informe sobre o que estive a fazer.
Contou-lhes por que razão Diane reformulara o seu depoimento no que se referia às oscilações de humor do marido no ano que tinha decorrido, e o facto de Simon ter acrescentado a cláusula adicional ao seu testamento apenas três semanas antes da sua morte. Também referiu a curiosa relação que existia entre o Dr. Samuelson e Diane.
- Liguei para ele - disse. - Concordou em me receber amanhã às dez horas. Estou a pensar apertá-lo.
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- Quer que eu vá consigo, senhor? - perguntou Boone.
- Não - respondeu Delaney. - Obrigado. É que penso que será melhor termos um frente-a-frente. Além disso, ele também sabe que eu não tenho nenhuma posição oficial; sou apenas um amigo da família, por assim dizer. Talvez tenha mais facilidade em se abrir e desabafar. Têm de entender que tudo aquilo que acabei de vos dizer não chega para convencer o procurador-geral, mas penso que tudo aponta para que estejamos a seguir na direcção certa. Agora oiçamos o que vocês descobriram hoje. Estão os dois com o ar do gato que comeu o canário, portanto espero que as notícias sejam boas.
- A primeira coisa que fizemos - disse Boone - foi investigar a garagem de Manhattan onde os Ellerbees guardavam os automóveis. É apenas uma garagem para recolhas, não dispõe de serviço de assistência ou reparações. Tenho a impressão de que nem uma chave de parafusos eles lá têm, quanto mais um martelo de pena redonda. Portanto, fomos até Brewster. Passámos pela casa dos Ellerbees. Ela hoje tinha lá uma multidão, tudo mulheres, por aquilo que fui capaz de ver. Talvez seja o seu clube de jardinagem ou coisa parecida. De qualquer modo, parámos num telefone e ligámos para o guarda da casa. Eu disse que era da Garagem Al, e perguntei se estavam interessados nos serviços da casa. Ele disse que desculpasse, pois eram clientes da Garagem e Estação de Serviço May. Como vê, foi simples. Jason, agora continua tu.
- Fomos falar com o dono - disse Jason Dois -, um tipo gordo chamado Ernest May. Mostrámos o nosso distintivo e perguntámos-lhe se tinha perdido um martelo de pena redonda no espaço dos últimos três meses. Ele deixou cair o queixo, ficando a olhar para nós como se viéssemos de Marte ou algo parecido. "Como diabo sabem disso?, perguntou. Bem, o facto é que por acaso havia-lhe desaparecido um martelo de pena redonda há uns três meses atrás. Era a única ferramenta do género na casa, pelo que ele tivera de ir comprar um novo. Não pode indicar com precisão a data em que perdeu o martelo, mas pensa que deve ter sido em princípios de Outubro. Sargento?
- Perguntámos-lhe quem é que tinha acesso às ferramentas na garagem - prosseguiu Boone -, e ele mostrou-nos as instalações. Raios, qualquer pessoa podia ter chegado às ferramentas; elas estavam espalhadas por todo o lado. Podia ter sido um dos seus mecânicos, um cliente que estivesse à espera de que fizessem algum serviço no carro ou simplesmente um ladrão qualquer.
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Desejaria que lhe tivéssemos trazido mais material, senhor, mas é tudo. Ao menos sabemos que faltou um martelo de pena redonda numa garagem de Brewster. Delaney mostrou-se pensativo.
- Esse Ernest May, ele conhece Diane Ellerbee?
- Oh, raios, sim - disse o sargento. - Ela é uma boa cliente. Leva lá todos os seus carros para se abastecer de gasolina. E para as afinações. Ele colocou tampões no jipe station há pouco tempo. Pela maneira como falou, ela vai àquela casa quase todos os fins-de-semana em que está em Brewster, para isto ou para aquilo.
Delaney anuiu.
- Sabem onde o martelo de pena redonda poderá agora estar? Boone? Um palpite?
- No fundo do ribeiro que atravessa a propriedade Ellerbee.
- Exacto - disse Delaney sem hesitação. - Debaixo do gelo. E a ficar cada vez mais coberto de sedimentos.
- Um mandato de busca? - sugeriu Jason. - Podíamos lá mandar alguns homens-rãs com fateixas.
Delaney abanou a cabeça.
- Não há um juiz no país que assine um mandato de busca na base dos dados que temos. Não podemos inculpá-la directamente pelo roubo do martelo. Podíamos arranjar uma aldrabice e mandar lá uns homens-rãs afirmando pertencerem a uma falsa agência estatal de controle do meio ambiente com a finalidade de testarem a água, o leito da corrente ou uma merda dessas. Mas mesmo que encontrassem o martelo, de que nos servia isso? Não seria uma prova determinante. E depois de ter estado sob água corrente durante dois meses, haveria impressões digitais ou manchas de sangue identificáveis? Duvido.
- Raios partam! - exclamou Boone furiosamente. - Está lá. Sei que está.
- Você sabe-o - observou Delaney -, e eu sei, assim como Jason Dois. E daí? Isso não vai pôr Diane na cadeia.
- Que significa isso, senhor? - inquiriu Jason ansiosamente.
- Não vamos prendê-la?
- Não - respondeu Delaney lentamente -, não tem esse significado. Mas, neste momento, não dispomos de nada que justifique prisão, acusação ou condenação. Tem de haver uma maneira de a destruir, mas agora não sei qual é.
- Não acha que se a apertarmos num interrogatório... -
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alvitrou Boone, - Refiro-me a tratá-la mesmo com dureza. Ela poderia quebrar?
- E confessar? Não aquela senhora. Sabe o que ela diria? "Não sou obrigada a responder a nenhuma das suas perguntas." E teria absoluta razão.
- Derrotados? - perguntou Jason Dois.
- Não - retorquiu Delaney. - Ainda não.
Por volta da meia-noite, a casa dos Delaneys esvaziou: Boone e Jason partiram, Peter e Jeffrey também. As raparigas estavam no quarto a escovar o cabelo, soltando risadas. Delaney procedeu à sua ronda nocturna, verificando fechaduras de portas e janelas. Depois, exausto, arrastou-se até ao quarto e deixou-se cair pesadamente na beira da cama, tentando reunir energia suficiente para se despir.
Mónica estava no toucador, a escovar o cabelo. Ele observou-a durante muito tempo, em silêncio, sentindo o prazer daquela visão a restaurar-lhe as forças.
- Quererás contar-me o que se passou? - inquiriu Mónica, sem se virar.
- Claro - retorquiu ele, relatando tudo o que passara desde que chegara à conclusão da culpabilidade de Diane Ellerbee.
- Não podes prendê-la? - perguntou Mónica.
- Não, tendo por base os elementos que possuímos neste momento.
- Mas tens a certeza? A certeza absoluta de que foi ela?
- Sim. Tu não?
- Penso que sim - respondeu ela, suspirando. - Mas custa a admitir. Eu admirava aquela mulher.
- Também eu. Ainda a admiro, mas por razões diferentes. Ela planeou tudo isto muito, muito cuidadosamente. Os únicos erros que cometeu aqui foram pequenos, nada que possa conduzir a uma acusação.
- Devo ter falhado algo nela - observou Mónica -, algo que a ti não te escapou, mas a mim sim.
- Tem a ver com aquela conversa que tivemos sobre as mulheres bonitas e a maneira de estas pensarem.
Mónica pousou a escova e aproximou-se do marido. Colocou-se diante deste, com a sua camisa de noite cor de pêssego e o robe a condizer.
- Vira-te - disse ela.
- O quê?
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- Senta-te de lado na cama - ordenou ela. - Tira a gravata e abre a camisa.
Ele obedeceu e ela começou a massajar-lhe os músculos carnudos do pescoço e dos ombros. Os seus dedos fortes mergulharam, amassando e apertando.
- Oh, Deus! - exclamou ele, emitindo murmúrios -, não pares. Quanto é que levas à hora?
- É por conta da casa - respondeu Mónica, continuando a trabalhar com as mãos sensíveis. - Diz-me, como é que as mulheres bonitas pensam?
- Não conseguem enfrentar a realidade. Ou, pelo menos, a nossa realidade. Vivem numa bola de cristal tremeluzente. Sabes como são, aqueles pisa-papéis: uma paisagem da Suíça com uma vivenda. Vira-las de pernas para o ar e a neve cai. É um lugar de fantasia. As mulheres bonitas vivem aí. Admiração de todos os lados. O amor de homens saudáveis. Não são obrigadas a levantar um dedo e têm o futuro assegurado. Todos os desejos satisfeitos.
- Achas que Diane era assim?
- Tinha de ser. A beleza é uma espécie de talento; não se pode recusar. Então, aparece Simon Ellerbee, seu professor. Convence-a de que também possui um cérebro. Não só é bonita como inteligente. A bola de cristal em que ela vive é agora mais brilhante e adorável que nunca.
- É aí que ele lhe pede o divórcio.
- Exacto! Oh, querida, isso sabe tão bem. Um pouco mais para cima, em volta do pescoço. Sim, o marido pede-lhe o divórcio. Aposto o meu último dólar em como foi o primeiro revés que ela sofreu na vida. Uma derrota. Todos nós aprendemos a aguentar as derrotas e os desapontamentos. Mas as mulheres bonitas, não; elas encontram-se isoladas nas suas bolas de cristal. O facto deve tê-la devastado. O homem que a convencera de que possuía um cérebro, não soja não queria esse cérebro como não a queria a ela. Já imaginaste o que isso lhe fez ao ego?
- Posso calcular - disse Mónica tristemente.
- Quando alguém nos magoa, nós retribuímos na mesma medida: faz parte da natureza humana. Mas esta dor foi catastrófica. E ela reagiu de maneira catastrófica: assassínio. Eu disse-te que a realidade dela não é igual à nossa. Quando Simon lhe pediu o divórcio, não estava apenas a destruí-la, ele estava a destruir o seu mundo. E tudo por uma mulherzinha insignificante, vulgar? Se tais coisas podiam acontecer, então a realidade de Diane não possuía substância. Estás a ver, não estás?
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- Já te disse - respondeu Mónica -, tu vês mais do que eu. Afastou-se do marido e começou a abrir a sua cama.
- Esta noite abres a janela? - perguntou-lhe ele.
- Só uma fresta - disse Mónica. - De madrugada deve estar um gelo.
Delaney foi tomar um duche. Escovou os dentes, o cabelo, enfiou o seu pijama antiquado. Quando voltou para o quarto, Mónica estava sentada na sua cama, de costas encostadas à da cabeceira.
- Esta noite não estás a gostar muito de mim, pois não? perguntou ele.
- Não se trata de uma questão de gostar de ti, Edward. Mas às vezes assustas-me.
- Assusto? Como?
- Sabes tanta coisa sobre Diane. Parece tudo tão lógico na maneira como a dissecas. Que pensas sobre mim?
Ele pousou suavemente a palma da mão na face de Mónica.
- Que tu és uma mulher absolutamente magnífica, e odeio imaginar o que a minha vida seria sem ti. Amo-te, Mónica, Acreditas nisso, não acreditas?
- Sim. Mas há uma parte em ti que nunca compreenderei. Às vezes consegues ser tão... tão severo. Como Deus.
Delaney sorriu.
- Eu não sou Deus. Nem sequer de perto. Achas que Diane Ellerbee devia ser deixada impune?
- Claro que não.
- Claro que não - repetiu ele. - Portanto, o problema agora está em saber como é que ela há-de pagar pelo que fez.
- Como é que vais fazê-lo, Edward?
- vou virar a bola de cristal dela de pernas para o ar - disse ele friamente -, e ficar a ver a neve a cair.
Voltou-se para apagar a luz e tacteou o caminho para a cama de Mónica. Esta puxou os cobertores até ao queixo de ambos.
- Por favor, não me digas que te assusto - implorou ele. Isso assusta-me a mim.
- Na realidade, não é bem esse o sentimento que me incutes - observou Mónica. - É apenas a maneira como te deixas obcecar por um caso.
- Obcecar? Pode ser que sim. Talvez seja necessário ficar assim para concretizar alguma coisa. É que não me agrada a ideia de alguém ficar impune depois de cometer um assassínio. Ofende-me. Isso é assim tão horrível?
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- Evidentemente que não. Mas, às vezes, podes ser vingativo, Edward.
- Oh, sem dúvida - ripostou ele sem hesitar. - Semelhante acto só pode merecer a minha acusação.
- Não sentes a mais pequena simpatia por Diane?
- Claro que sinto. Ela é humana.
- Não tens pena dela?
- Sem dúvida.
- Mas vais destruí-la?
- Completamente - disse ele em tom taciturno. - Mas chega de falar na doutora Diane Ellerbee. E quanto a nós?
- Quanto a nós?
- Continuamos amigos?
- Chega-te mais para perto - disse Mónica. - Eu mostro-te.
- Oh, sim - disse ele, movendo-se. - Obrigado, amiga.
Capítulo vigésimo sexto
Delaney preparou cuidadosamente o seu encontro com o Dr. Julius K. Samuelson: leu repetidas vezes a biografia que Jason havia feito, reviu o relatório por si feito aquando do primeiro interrogatório, leu os apontamentos que tomou em relação aos comentários e ao comportamento de Samuelson durante essa visita a Brewster.
Dissera a Boone e a Jason que tencionava apertar o Dr. Samuelson na conversa que ia ter com ele. Mas no léxico da Polícia, "apertar" possuía cambiantes que iam desde a intimidação brutal à pretensa simpatia e comiseração. Naquele caso, pensou Delaney, a primeira atitude devia ser contraproducente; ele conseguiria melhores resultados se mostrasse compreensão e afecto, uma abordagem que Delaney classificava do estilo de interrogatório "Preciso da sua ajuda".
Caminhou com dificuldade até ao consultório de Samuelson, que fazia esquina entre a Rua 79 e Madison Avenue. Estava uma manhã de um frio cortante, com o ar tranquilo, mas a temperatura abaixo dos dez graus. Delaney sentia-se grato pelo seu cachecol de flanela, o fato com colete e a roupa interior de malha de lã. Enfiou as mãos enluvadas nos bolsos do sobretudo, mas sentiu o frio entorpecente que o pavimento gelado lhe perpassava para os
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pés. O médico recebeu-o à porta do seu consultório com um sorriso hesitante. O pequeno homem apresentava-se com o seu velho camisolão de lã esburacado e as pantufas gastas. Parecia esmagado com o peso do sobretudo de Delaney, mas lá conseguiu desenvencilhar-se com ele, pendurando-o algures e oferecendo depois uma chávena de café simples de um termo que tinha na secretária. Delaney aceitou, agradecido.
- Doutor Samuelson - principiou, mantendo a voz baixa e um tom dialogante -, estou-lhe agradecido por me dispensar o seu valioso tempo. Não o viria incomodar se não tivessem aparecido aspectos inesperados na investigação da morte do doutor Simon Ellerbee que nos intrigam, e em relação aos quais esperamos que nos possa ajudar.
O médico esboçou um gesto.
- No que lhe puder ser útil - disse.
- Antes de mais nada, descobrimos que, mais ou menos durante o último ano, o doutor Simon vinha tendo uma ligação com Joan Yesell, uma das suas pacientes.
Samuelson fitou-o através das lentes espessas e curvas dos seus óculos de aros metálicos.
- Tem a certeza do facto?
- Absoluta, doutor. Não só através de um depoimento feito pela senhora em questão, como também do testemunho de pessoas nesse sentido. O senhor era, provavelmente, o melhor amigo dos Ellerbees, doutor, via-os frequentemente na cidade, visitava a casa de Brewster aos fins-de-semana, no entanto, no primeiro encontro que tivemos, afirmou que o doutor Simon era fiel à mulher e que ambos viviam um casamento feliz. Tinha conhecimento da infidelidade de Simon?
- Bem... ha... Posso ter tido uma suspeita. Mas não se pode condenar um homem só por uma suspeita, pois não? Além disso, o pobre Simon está morto e que bem faria isso à sua reputação? É assim tão importante para a sua investigação?
- Muito importante.
- Quer dizer que a paciente envolvida, essa Joan Yesell, pode ser a assassina?
- Ela está a ser vigiada.
Samuelson abanou a cabeça em ar de dúvida.
- Que coisa pavorosa. E que loucura a dele, envolver-se com uma paciente. Não só é uma tremenda quebra na ética profissional, como também um insulto inconcebível para a sua esposa. Acha que ela está a par da leviandade dele?
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- Ela diz que não. E o doutor, que acha?
- Senhor Delaney, que possibilidade tenho eu de responder a uma pergunta como essa? Desconheço o que Diane pensa.
- Desconhece, doutor? Apercebi-me de alguns factos fora do comum na sua história pessoal. Primeiro, conheceu os dois Ellerbees algum tempo antes de estes casarem. Segundo, sofreu uma crise de depressão duas semanas após o casamento. Terceiro, continua a manter um relacionamento estreito com Diane. Não é meu desejo embaraçá-lo ou causar-lhe sofrimento, mas tudo o que me puder dizer representará uma ajuda enorme na condenação do assassino de Simon. E será mantido, como é evidente, dentro da mais estrita confidencialidade. Doutor Samuelson, o senhor está apaixonado por Diane Ellerbee?
O minúsculo homem parecia ter sofrido o efeito de uma pancada violenta. Os ombros estreitos estremeceram. A cabeça grande sobre o pescoço fino pendeu para um lado, como se a força que a suportava lhe tivesse faltado. A sua tez acinzentada assumiu uma palidez ainda mais doentia.
- É assim tão óbvio? - perguntou com um sorriso débil. Delaney anuiu.
- Bem, sim... sim, amo-a. Desde a primeira vez em que nos encontrámos. Nessa altura ela era aluna de Simon. Minha mulher tinha falecido anos atrás. Creio que eu era um viúvo solitário. Continuo a ser, vendo bem. Pensei que Diane era a mulher mais bela que alguma vez encontrara. Que alguma vez vira. A sua beleza tirava-me simplesmente a respiração.
"Todos os homens que a têm conhecido sentem o mesmo. Eu sempre pensei que existe algo de não terreno na sua beleza. Ela parece pertencer a uma raça não humana. Aí tem! Compreende agora a dimensão da minha paixão sem esperança?
A última frase foi dita num tom de autotroça amargurada.
- Porquê sem esperança? - perguntou Delaney.
- Olhe para mim - disse Samuelson. - Uma insignificância de homem. Vinte anos mais velho do que Diane. E com uma aparência com muito pouca coisa para ver. Além disso, havia Simon: um sujeito grande, bem-parecido, brilhante, mais próximo da idade dela. Eu bem via como ela o olhava, e sabia que não tinha hipóteses. Será que tudo isto me torna o suspeito principal do crime?
- Não - retorquiu Delaney, sorrindo -, não torna.
- Bem, claro que não o cometi. Nunca seria capaz de
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semelhante acto. A violência repugna-me. Além disso, amava Simon quase tanto como Diane, de uma maneira diferente.
- O senhor tem passado muito tempo com ela, doutor. Especialmente desde a morte do marido. Acha que é uma mulher orgulhosa?
- Orgulhosa? Não em particular. Confiante, sem dúvida.
- Muito segura de si?
- Oh, sim.
- Obstinada?
- Ela pode ser ocasionalmente teimosa.
- Quer com isso dizer que gosta de levar a dela avante, não? Samuelson reflectiu sobre a questão durante alguns segundos.
- Sim - disse finalmente -, penso que é um julgamento justo: ela gosta de levar a sua avante. Mal se pode considerar um defeito, senhor Delaney.
- Tem razão, doutor, não o é; todos nós gostamos de levar a nossa avante. Antes da morte de Simon, Diane deu a entender, de alguma maneira, de que estava a par da infidelidade do marido? Por favor, pense cuidadosamente antes de responder, doutor; é muito importante.
Samuelson serviu mais café a ambos, esvaziando o termo. Em seguida recostou-se, passando a mão pelas ondas do seu farto cabelo arruivado. Delaney voltou a ter dúvidas sobre se era uma cabeleira postiça ou não.
- Não posso, com toda a honestidade, dar-lhe uma resposta precisa - respondeu o psiquiatra. - Certas coisas, a maneira como as pessoas falam e actuam, podem parecer perfeitamente normais, inócuas. Depois aparece uma pessoa como o senhor a fazer perguntas, podendo interpretar determinada conversa e acções desta maneira: a pessoa em questão é desconfiada, ciumenta, paranóica, depressiva ou qualquer outra coisa? E quase invariavelmente o discurso e as acções passam a poder ser interpretados com essas características. Compreende o que quero dizer, senhor Delaney? As emoções humanas são extremamente difíceis de analisar. Elas podem significar quase tudo o que quisermos: abertas e acima de qualquer suspeita ou desonestas e planeadas.
- Compreendo o que quer dizer, doutor, e concordo consigo. Mas apesar de ter esse factor em consideração, pode afiançar definitivamente que Diane não tinha conhecimento da infidelidade do marido?
- Não, não o posso afiançar.
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- Então, baseando-se na observação que fez em relação a ela durante o passado ano, pode dizer que é possível que tenha dado pelo acontecimento?
- É possível - disse o Dr. Samuelson cautelosamente. Delaney suspirou, sabendo que não ia conseguir mais do que
aquilo.
- Doutor, Diane parece-me ser uma mulher muito controlada, sempre no comando de si mesma. Concorda?
- Oh, sem dúvida.
- Alguma vez a viu sem esse controle?
- Só uma vez - disse Samuelson com um sorriso melancólico. - E, nessa altura, foi por causa de algo perfeitamente estúpido. Aconteceu o ano passado. Eu tinha ido passar o fim-de-semana à casa de Brewster com eles. Estava-se no Outono, e fazia muito frio. Simon gostava de jantar no pátio, e planeou uns bifes no churrasco. Diane insistiu que estava demasiado frio para comer fora de portas e queria que fôssemos para dentro. Desencadeou-se uma violenta discussão. Eles atiraram-se um ao outro e disseram coisas de que, estou certo, se viriam a arrepender mais tarde. Até que, por fim, Diane agarrou no embrulho com os bifes, eram uns belíssimos bifes de lombo de vaca, e atirou-os para o ribeiro. Foi o fim do nosso jantar. Mas ao menos teve o efeito de clarificar a atmosfera, e passado um bocado estávamos a rir sobre o acontecido. Abrimos duas latas de atum e fizemos uma salada com batatas cozidas.
- Dentro de casa? - perguntou Delaney.
- Dentro de casa - respondeu Samuelson. - Foi a única ocasião em que vi Diane perder as estribeiras. Mas reconheço que a fúria dela era assustadora.
- Recordo-me - observou Delaney - de que quando lhe estava a falar da possibilidade de os pacientes atacarem os seus psiquiatras, lhe ter perguntado se alguma vez fora atacada. Ela disse que a maior parte dos seus pacientes era constituída por crianças, mas que quando estas a agrediam, ela retribuía. Esse é o tratamento habitual em situações do género?
O Dr. Samuelson encolheu os ombros.
- Não é técnica que eu próprio utilizasse, mas sempre que resultar... A psicoterapia não é uma ciência exacta.
- Foi o que fiquei a saber. Uma última pergunta, doutor, de carácter muito pessoal: pediu a Diane Ellerbee para casar consigo?
Samuelson fitou-o com estranheza.
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- Penso que não está na profissão certa, senhor Delaney. Talvez devesse sentar-se deste lado da secretária.
- Não respondeu à minha pergunta.
- A resposta é afirmativa. Pedi a Diane para casar comigo. Ela disse que não.
- Uma mulher muito independente - comentou Delaney. Samuelson foi da mesma opinião.
Trotando para casa no meio do frio, Delaney ponderou sobre a entrevista e no que esta fizera vir à tona. Pouca coisa, de facto. Gostara da tal história de Diane atirar os bifes do lombo para o ribeiro. No ano anterior tinham sido bifes; naquele, um martelo de pena redonda.
A única pergunta que não fora capaz de fazer continuava a atazaná-lo: "Doutor Samuelson, acha que Diane Ellerbee assassinou o marido?" Samuelson teria ficado ofendido e, considerando a sua paixão louca, iria imediatamente para o telefone mal Delaney saísse do seu consultório, avisando Diane. Convinha mais que esta se imaginasse sã e salva. Tanto maior viria a ser o choque.
De súbito reconheceu que não tinham mais nada a esperar. Era tempo de fazer a sua jogada. Não por causa do fim do prazo de Thorsen com o novo ano a aproximar-se, embora tal não fosse de perder de vista, mas porque a investigação chegara a um beco sem saída.
Não ia ser um desfecho súbito, total, em que o assassino seria apanhado e dado como culpado. Ele teria de se contentar com algo mais modesto. Mas não seria a primeira vez que lhe acontecia, reflectiu amargamente, e podia suportá-lo. Tudo era o ideal, mas um pouco era melhor do que nada.
Matutou sobre a maneira como iria arranjar as coisas, manipulando pessoas, apelando ao auto-interesse destas. Não seria a justiça ideal, mas desde quando é que a justiça era perfeita?
Deteve-se numa série de lojas a caminho de casa, e quando entrou na construção de arenito castanho que lhe pertencia, as mulheres tinham voltado a sair para as compras, supôs. Foi directamente para a cozinha. Ali chegado, preparou duas sanduíches de bagel torradas, que cobriu de pasta de queijo, cebola vermelha às fatias e alcaparras. Numa colocou uma grossa fatia de presunto, na outra, salmão fumado.
Gastou quase uma hora ao telefone, a tentar localizar Thorsen e Suarez. Por fim, conseguiu coordenar tudo, e ambos os homens prometeram estar em sua casa às nove e meia daquela noite.
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Depois tentou telefonar para a Dra. Diane Ellerbee, tanto para o consultório como para a casa de Brewster, mas não obteve resposta.
Trabalhou durante toda a tarde, colocando os seus ficheiros em ordem, mantendo de fora apenas os documentos de que poderia vir a precisar. Em seguida, elaborou notas sobre a exposição que tencionava apresentar a Thorsen e a Suarez. Tinha confiança em como seria bem sucedido; não via que outra hipótese estes poderiam ter para além de alinharem com ele.
Recostou-se na sua cadeira rotativa, apercebendo-se de que tudo estava a clarificar-se. Fim do rasto. Sentia uma certa satisfação pelo facto, e também uma certa tristeza. Fora uma caçada agradável e excitante, mas agora chegara ao fim.
Reviu a forma como resolvera o mistério e não foi capaz de vislumbrar nenhum outro processo que pudesse ter seguido obtendo melhores resultados. Se ele algum erro cometera, fora na procura de complexidades num homicídio que era, na sua essência, simples: "O Caso da Esposa Traída". Um detective que se limitasse ao óbvio não se podia afastar muito da verdade.
Nessa noite, Delaney começou por lhes atirar uma rasteira.
- Chefe, quero que prenda a doutora Diane Ellerbee pelo assassínio do marido.
Thorsen foi o primeiro a recompor-se.
- Santo Deus, Edward - exclamou. - Na última vez em que falámos, tu disseste-me que pensavas que tinha sido a paciente... como é o nome dela?
- Joan Yesell. Não, essa está inocente. Encontrava-se lá na noite em que Ellerbee foi morto, mas não foi quem cometeu o crime.
- Quer dizer então que foi a mulher? - inquiriu Suarez, surpreendido. - Que foi a mulher enquanto se andava a perder tempo à volta dos pacientes?
- Exactamente - retorquiu Delaney. - A história é comprida, portanto tenham a paciência de me escutar.
Levantou-se e começou a passear de um lado para o outro, atrás da secretária, olhando de relance, de vez em quando, para as notas que preparara.
Começou pelo romance entre Simon e Joan Yesell, e de como este se prolongara durante quase um ano. Diane tivera provavelmente conhecimento do facto pouco depois do seu início, mas só
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três semanas antes da sua morte é que Simon lhe pedira o divórcio.
- Têm aí o motivo suficiente - disse Delaney. - A mulher desprezada.
Analisou a personalidade de Diane.
- Uma mulher bela que vivera uma existência afortunada e protegida e nunca sofrera uma desilusão. Aí o marido diz-lhe que quer deixá-la por uma Jane Simples, e todo o seu mundo sofre um colapso.
Descreveu Joan Yesell, uma mulher cuja energia lhe vinha do amor que sentia pela primeira vez na vida.
- Ela estaria disposta - disse Delaney - a permitir que a ligação continuasse indefinidamente, mas ele prometeu-lhe casamento. Portanto - continuou Delaney -, cá temos o nosso triângulo: três pessoas apaixonadas e cheias de problemas.
Em seguida, Delaney reviu a noite do crime, começando pelo anúncio de intenção, por parte da vítima, de que iria receber um paciente tardio: o depoimento não comprovado de Diane, segundo o qual esta deixara Manhattan, a caminho de Brewster; a impossibilidade de Joan Yesell arranjar um táxi, e a sua chegada, depois da hora combinada, ao prédio, onde encontrou o Dr. Simon morto.
- Diane tinha um motivo - referiu Delaney. - Ela dispunha da oportunidade, e agora vejamos como é que conseguiu os meios...
Contou-lhes sobre o martelo de pena redonda roubado da garagem de Brewster onde Diane levava os carros para serem assistidos. Descreveu o ribeiro que corria pela propriedade dos Ellerbees e declarou firmemente a sua certeza de que o martelo fora atirado para a corrente.
Começou a amontoar as provas que fundamentavam a sua teoria: a cláusula no testamento de Simon a cancelar as contas em atraso dos seus pacientes, sendo a dívida de Joan Yesell no valor de cerca de dez mil dólares. A afirmação errónea de Diane, segundo a qual os doentes com tendências suicidas se tornavam, frequentemente, homicidas...
- Muito bem - disse Delaney por fim -, vamos às perguntas que têm para fazer.
- Na ausência do livro de facturas - disse Suarez -, como é que sabe que Joan Yesell seria a mais beneficiada dos pacientes a quem o doutor cancelava as dívidas?
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Delaney explicou que a recepcionista de Simon, Carol Judd, fornecera essa informação.
Thorsen perguntou o que levava Delaney a estar tão seguro da intensidade da relação Ellerbee-Joan Yesell.
Delaney contou-lhes o que se passara no último interrogatório a que tinham submetido Joan Yesell, da tentativa da mãe para sustentar o álibi da filha, e o reconhecimento, por parte de Samuelson, de que já suspeitava, há algum tempo, de que Simon andava envolvido com outra mulher. Delaney não fez referência à flor que Simon usava na lapela; duvidava de que, para eles, o facto representasse prova inequívoca de uma paixão romântica.
- Porque quereria Ellerbee iniciar uma ligação com uma mulher tão insignificante - inquiriu o chefe -, se a esposa era tão linda como diz?
Delaney repetiu o que dissera a Boone e a Jason - que Simon queria aperfeiçoar as suas mulheres e cansara-se de estar casado com um modelo de perfeição, com os amigos a dizerem-lhe constantemente o homem de sorte que era.
- Talvez - acrescentou Delaney - ele desejasse uma relação na qual o modelo de perfeição fosse ele. Deve ser difícil estar casado com uma obra de arte.
- Voltemos ao livro de facturas que desapareceu - disse o comissário. - Quem imaginas tu que o fez desaparecer: Diane ou Joan Yesell?
- Diane - retorquiu Delaney sem hesitar. - Olhem, reparem, Diane quer implicar Joan Yesell. Daí a razão, antes de mais nada, porque nos forneceu o nome de Joan. Mas, ao mesmo tempo, não quer que nós descubramos o romance de Simon. Diane é uma mulher muito complexa, dividida entre a necessidade de vingança e a de proteger a sua própria auto-estima.
- Porque lhe furou ela os olhos? - perguntou Ivar. Aquela pergunta mostrou a Delaney que os convencera. Voltou a repetir o que dissera a Boone e a Jason - que Simon
persuadira Diane de que a sua beleza pouco significado tinha, mas depois começara a olhar para outra mulher. Ela não pôde suportar o facto.
Fez-se silêncio.
- É tudo? - inquiriu Delaney. - Não têm mais perguntas? Nessa altura, achando que seria discreto deixá-los sozinhos
durante alguns minutos, foi à cozinha e preparou um enorme uísque com soda. Bebeu metade imediatamente, de pé, ao lado do
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lava-loiça, e levou o resto para o gabinete, juntamente com bebidas para os outros.
- Muito bem - disse. - Foi ela ou não foi? Chefe, que pensa da questão?
- Eu penso que foi ela - respondeu Suarez melancolicamente, com uma expressão de desalento no rosto. - Uma mulher assim tão bela, uma verdadeira tragédia.
- Ivar?
- Oh, não resta dúvida nenhuma de que ela é culpada. Mas tu já sabes o que tens, Edward. Zero.
- Provas concretas, queres tu dizer? - inquiriu Delaney. Claro que o sei. Prosseguir esta investigação seria simplesmente malhar em ferro frio. Mas quero Diane Ellerbee acusada do assassínio de seu marido.
- Que bem poderia isso trazer? - inquiriu, fitando-o estreitamente. - Ela estaria cá fora passadas duas horas e o caso ficaria arrumado. E o procurador-geral acusar-nos-ia de nabos por a termos preso.
- vou dizer-vos o bem que isso poderia trazer a mim - disse Delaney friamente. - Arruiná-la-ia. A prisão viria na primeira página de todos os jornais da cidade e em cada noticiário de televisão. Seja como for, ela vai safar-se, não vai? Vocês sabem-no tão bem quanto eu. Mas antes disso podemos arrastá-la pela lama. Mesmo quando ela sair em liberdade, todas as pessoas dirão: "Não há fumo sem fogo." Acham que a reputação dela pode suportar semelhantes dúvidas? Ou a carreira? Sei que o material que tenho nunca será suficiente para lhe proporcionar uma condenação, provavelmente nem sequer uma acusação, mas, por Deus, podemos fazê-la sofrer. Eis o que eu desejo.
"Quanto a vocês os dois, o que obtêm de todo este circo é o que vocês desejam: cabeçalhos sobre uma detenção importante, acompanhada por declarações feitas por si, chefe, em como está convencido de que o caso Ellerbee está esclarecido. Depoimentos apresentados por ti, Ivar, congratulando o chefe Suarez pelo seu excepcional trabalho de detective na resolução deste caso extremamente difícil. Não acham que o procurador-geral vai ler os jornais e assistir à televisão?
Os dois homens viraram-se, olhando um para o outro.
- Não sei... - respondeu Suarez, hesitante. - Não estou bem certo... A lei...
Delaney fitou o olhar nele.
- A lei? - inquiriu com sarcasmo. - Que diabo tem a lei a
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ver com isto? Aqui estamos apenas a falar de justiça. Ela tem de pagar pelo que fez. Mas isto não pode ser decidido na base da lei ou da justiça. Trata-se de uma decisão estritamente política.
- Bem-vindo ao clube - observou Thorsen com um ligeiro sorriso. - Mas, e se ela nos leva a tribunal por prisão sem fundamento?
- Quem me dera que o fizesse - lamentou Delaney -, mas é demasiado esperta para tal. É que isso levá-la-ia até uma sala de tribunal, e o carnaval continuaria. E toda a questão relacionada com a ligação do marido falecido seria explorada pela imprensa. Acham que ela gostaria de semelhante coisa? Os advogados não a deixarão processar-nos depois de verem o material de que dispõem. Nem pensar! Vão aconselhá-la a esquecer o assunto, a deixar-se estar, a não fazer ondas.
- É um jogo - comentou o comissário pensativamente. Acusar alguém quando sabemos que não há a menor hipótese de conseguir uma condenação.
- Já vos disse que era uma decisão política - observou Delaney. - Faltam dois dias para o fim do ano. Ainda podem fazer estourar a notícia se tiverem coragem para tal.
- Não me agrada - disse Suarez. - É um tanto vergonhoso. No entanto, a mulher é culpada, não?
- Quando é que quer avançar com isto? - perguntou Thorsen.
- Prendê-la? - inquiriu Delaney. - Amanhã à noite, se eu conseguir marcar um encontro.
- Queres que o chefe e eu estejamos presentes?
- Não, não me parece que isso seja aconselhável. Mantenham-se à distância enquanto decorrer. Mas tenham as vossas declarações preparadas, e marquem uma conferência de imprensa. Meu Deus, Ivar, tu sabes bem como utilizar os órgãos de Comunicação Social; já o fazes há tempo suficiente. Levarei Boone e Jason. Eles trabalharam duramente neste caso e devem estar presentes quando for a matança. E a propósito, chefe, tenho uma lista de pessoas, incluindo Boone e Jason, que merecem um louvor pela boa execução de um trabalho difícil.
- com certeza - disse Suarez com um aceno de mão. É compreensível.
- Óptimo. Conto com vocês em relação a isso. Agora vamos ao cerne da questão e vejamos como é que a coisa se vai resolver.
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Capítulo vigésimo sétimo
Finalmente, ao fim da manhã de segunda-feira, dia 30 de Dezembro, conseguiu entrar em contacto com Diane Ellerbee.
- Fala Edward X. Delaney - disse secamente. - Doutora, verificou-se uma evolução importante na investigação sobre a morte do seu marido. Algo que penso dever comunicar-lhe.
- Encontraram o assassino?
- Preferia não falar do assunto ao telefone. Podíamos encontrar-nos esta tarde, a qualquer hora?
Finalmente concordaram nas oito e meia da tarde, no prédio da Rua 84. Delaney desligou, satisfeito, depois telefonou imediatamente a Boone, pedindo-lhe que o fosse buscar às oito.
- E traga Jason consigo - disse ao sargento. - Gostaria de que viessem ambos uniformizados.
- Santo Deus, o meu fato está a precisar de ser lavado e passado a ferro!
- Tente tê-lo preparado para esta tarde. Se não lhe for possível, vista-o como estiver. Equipamento completo para os dois.
Uma pequena pausa, depois:
- Vamos prendê-la?
- Esta noite digo-vos, às oito - respondeu Delaney, divertindo-se com o suspense do jogo, tanto como qualquer outra pessoa.
Prometera às senhoras um bom almoço, de modo que afastou o caso Ellerbee da mente durante algumas horas, enquanto desempenhava o papel do anfitrião impecável. Levou-as ao Prunelle, na Rua 54, onde as mulheres ficaram devidamente impressionadas com a decoração art deco e as paredes de madeira nodosa.
- No primeiro dia do ano - prometeu Delaney, ao chegarem ao fim - vou iniciar a minha dieta número seis mil quatrocentos e cinquenta e oito.
- Mais uma das tuas dietas de um dia? - disse Mónica cruelmente.
- Tu gostas de mim grande - ripostou-lhe ele. - Assim ficas com mais de mim para amar.
- Ah! - exclamou ela.
O almoço demorou quase duas horas, e depois as mulheres declararam a sua intenção de irem dar uma vista de olhos aos artigos de venda pós-Natal das lojas da 5ª Avenida. Delaney
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deixou-as em frente do restaurante, resolvido a ir a pé para casa a fim de eliminar algumas das calorias ingeridas.
A temperatura pairava no nível congelante, mas estava um dia límpido, agradável, com um céu azul-claro penteado de nuvens enfunadas. Trotou pela Madison Avenue acima, maravilhando-se perante a proliferação de galerias de arte, lojas de antiguidades e boutiques.
Foi uma caminhada longa de quase trinta quarteirões, e foi com uma sensação de alívio que chegou à casa aquecida, desapertou os sapatos e acendeu um charuto. Sentou-se pesadamente na cadeira rotativa do seu gabinete de trabalho e começou a arquitectar a confrontação que iria ter com Diane Ellerbee.
Iria vestido sobriamente, com camisa branca e gravata preta. Algo que o fizesse parecer-se com um cangalheiro, pensou, divertido. O único material que necessitaria de levar consigo, decidiu, seria uma prancheta de prender papéis com um expesso maço de folhas. Não teria qualquer significado, evidentemente, mas impressionaria.
Tinha confiança na sua habilidade para se servir dela, ajustando a sua personalidade e modos de maneira a rebater as respostas que ela lhe iria dar. Nunca, nem por um momento, esperou que Diane viesse a admitir o que quer que fosse; negaria, negaria, negaria. Mas a sua qualidade de civil permitir-lhe-ia manobrá-la através de processos que não seriam permitidos a um agente da Polícia. Ele não a deixaria escapar do anzol.
O que precisava de fazer, resolveu, era baralhá-la, logo desde o princípio, retirar-lhe o equilíbrio e mantê-la confusa. Ela era uma mulher inteligente, possuidora de um ego enorme. O melhor processo a seguir por ele seria o de deitar por terra aquela auto-estima e depois mantê-la perturbada e sem capacidade para raciocinar.
Ele queria que ela dissesse para consigo mesma: "Será que isto pode estar a acontecer a mim?"
Delaney estava tão seguro da culpa de Diane que arquitectou a sua queda friamente e sem piedade. Nunca questionou os seus motivos. Se Mónica lhe dissesse "Que direito tens tu de fazer uma coisa destas?", ele tê-la-ia fitado atónito. Porque não era o seu direito; era o direito da sociedade - ou talvez de Deus.
Boone e Jason chegaram pontualmente às oito horas, ambos completamente equipados. Delaney levou-os para o estúdio durante alguns minutos, a fim de lhes dar uma breve resenha do que se iria passar.
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- Vamos apanhá-la esta noite - disse ele. - Deixem que seja eu a falar, mas se acharem que esqueci algum ponto, não tenham receio de se meter. E não se surpreendam por me ouvirem apresentar suposições como factos; quero que ela se convença de que estamos de posse de muito mais dados do que realmente acontece.
- Uma das coisas de que não dispomos é de um mandado de captura - recordou-lhe Boone.
- É verdade - observou Delaney -, mas temos a causa provável. O crime de que ela é acusada não é menor e eu penso que os tribunais considerariam justificada a sua detenção sem mandado neste caso, devido à gravidade do crime.
Não lhes referiu que achava extremamente improvável que o caso alguma vez chegasse a ir a tribunal; eles eram polícias inteligentes e podiam fazer esse cálculo por eles próprios.
- Se este caso se autodestruir - disse-lhes -, nenhum de vocês sofrerá. Não haverá notificações da vossa participação nas vossas folhas de serviço. O comissário Thorsen deu-me a sua palavra relativamente a esse ponto. Por outro lado, se a coisa correr conforme está planeada, o chefe Suarez assegurou-me de que vocês lucrarão algo com o caso. Alguma pergunta? Não? Então, vamos pôr o espectáculo na rua.
Foram até à Rua 84 no carro de Jason. Ao chegarem ao átrio do prédio, Delaney ficou satisfeito com o aspecto que apresentavam: três homens corpulentos dotados de uma presença física que provocava respeito. Ou intimidação.
Tocou à campainha. O intercomunicador entrou em funcionamento.
- Quem é?
- Delaney - respondeu com voz tensa.
- Estou no meu consultório, senhor Delaney. Por favor, suba até ao segundo andar.
O fecho da porta abriu-se. Eles entraram e subiram as escadas em silêncio. Ela aguardava-os no corredor e pestanejou ao ver os dois agentes uniformizados.
- é uma visita oficial, senhor Delaney? - inquiriu com um sorriso frio.
- Já conhece o sargento Boone - disse Delaney, ignorando a pergunta de Diane. - Este aqui é o agente Jason que, acidentalmente, se encontrava em cena quando o crime foi descoberto. Podemos entrar?
Ela conduziu-os até ao seu consultório e, mais uma vez,
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Delaney admirou o seu porte: cabeça bem erguida, ombros para trás, espinha direita. Mas não havia qualquer rigidez ali; ela movia-se com graça sinuosa.
Tinha o cabelo puxado para cima, formando uma coroa entrançada, o rosto livre de maquilhagem, a maravilhosa pele translúcida ligeiramente rosada. Vestia uma camisa muito larga em tons de alfazema e preto, apertada na cintura por uma gravata de homem. E, por baixo, umas calças de camurça cor de púrpura, de tal maneira cingidas que Delaney teve dúvidas de que ela não tivesse sido obrigada a untar as pernas para se enfiar dentro delas.
Diane sentou-se regiamente à sua secretária, as mãos à sua frente com os dedos a tocarem-se, formando uma concha.
Delaney puxou uma cadeira direita e desconfortável, de modo a ficar directamente de frente para ela.
Os três homens tinham deixado os sobretudos no carro, e Delaney fizera o mesmo ao chapéu. Mas dera-lhes instruções no sentido de levarem os bonés e não os tirarem dentro de casa. Naquele momento encontravam-se sentados com as palas puxadas bem para baixo, sólidos e imóveis como monólitos de pedra.
- Diz que descobriu algo sobre a morte de meu marido? inquiriu a Dra. Ellerbee com voz fria e formal.
com lentidão propositada, Delaney retirou uma bolsa de cabedal para óculos de dentro do bolso interior do casaco e colocou estes, ajustando os aros cuidadosamente. Em seguida olhou para a prancheta que tinha no colo, folheando ostensivamente algumas páginas.
Olhou para a médica com dureza.
- Comecemos pelo princípio - disse em voz firme e desprovida de entoação. - No decorrer do último ano, o seu marido teve uma ligação amorosa com uma das suas pacientes, Joan Yesell. O facto não só representou uma violação à ética profissional, como também foi uma traição aos seus votos matrimoniais e um grave insulto à sua personalidade.
Ele ia-a observando atentamente enquanto falava, não detectando indícios de surpresa ou horror. Mas os dedos que se tocavam crisparam-se, formando uma bola, nós dos dedos brancos e a pele de porcelana manchada.
- O senhor não... - principiou, com uma voz agora sumida e alterada.
- A evidência não pode ser discutida - interrompeu Delaney. Folheou mais algumas páginas presas à prancheta.
- Estamos de posse dos depoimentos, prestados sob juramento,
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da menina Yesell, de sua mãe, das declarações prestadas por uma testemunha ocular que viu o doutor afastar-se de carro depois de deixar a menina Yesell em sua casa numa sexta-feira à noite. E a cláusula a cancelar as contas pendentes dos pacientes no testamento do seu falecido marido foi expressamente criada para beneficiar a menina Yesell. Agora deseja negar que o doutor Simon tinha uma ligação ilícita?
- Eu não estava a par desse facto - disse ela rudemente.
- Ah, isso é que estava. A senhora é uma mulher inteligente, perceptiva. Temos a certeza de que tinha conhecimento da transgressão do seu marido.
Diane Ellerbee levantou-se abruptamente.
- Penso que esta reunião chegou ao fim - disse. - Agradeço que saiam antes de eu...
Delaney estendeu a mão e bateu com a palma desta sobre o tampo da secretária. O som forte fê-la dar um salto.
- Sente-se, minha senhora! - ordenou ele com voz trovejante. - Não vai a lado nenhum sem a nossa permissão.
Ela ficou a olhar para ele, pálida, voltando depois a sentar-se lentamente na cadeira.
- Continuemos - disse Delaney. - Não queremos estar a perder demasiado tempo com um assassínio de mau gosto.
Reparou que a observação a atingira. Voltou a folhear os papéis com alguma satisfação.
- Pois bem - disse, fitando-a de novo -, os dados a que tivemos acesso indicam que a senhora teve conhecimento da ligação do seu marido algures no decorrer do último ano, provavelmente pouco depois de ter principiado. Trata-se de uma suposição minha, mas creio que estaria disposta a deixar o caso prosseguir porque tinha esperança de que não passasse de uma fantasia passageira que depressa chegaria ao fim.
- Não sou obrigada a responder a nunhuma das suas perguntas
- disse Diane.
Delaney mostrou os seus enormes dentes amarelos em algo que se aproximava de um sorriso.
- Mas eu não lhe dirigi nenhumas perguntas, pois não? Deixe-me continuar. Cerca de três semanas antes da sua morte, seu marido veio ter consigo e confessou o seu amor por Joan Yesell, pedindo o divórcio. Lá se ia a sua esperança de que aquela relação adúltera não passasse de um entusiasmo passageiro. Pior, foi um golpe tremendo na sua auto-estima.
- O senhor é um homem horroroso - sussurrou ela.
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- É verdade - observou ele, quase alegremente -, sou. Deixe-me psicanalisá-la a si, doutora, apenas por alguns minutos. Troquemos de lugar, por assim dizer. É uma mulher bonita e saudável, e toda a vida viveu num casulo, protegida e abrigada da realidade. Que é que sabe dos pés doridos de uma empregada de mesa e da vida de trabalhos que a mulher de um homem pobre leva? Para si tem sido sempre tudo sobre rosas, não é verdade? A morte de todos aqueles parentes que lhe deixaram dinheiro. Uma carreira de sucesso. E o melhor de tudo, sempre idolatrada pelos homens. Era fácil adivinhá-lo nos olhos destes e na forma como actuavam. Não houve homem que conhecesse que não lhe quisesse saltar para a espinha.
- Pare com isso - implorou Diane. - Por favor, pare com isso.
- Nunca uma derrota - continuou ele inquebrantavelmente.
- Nunca uma desilusão. Mas é então que o seu marido vem ter consigo e diz: "Adeusinho, querida, quero abandonar-te para casar com outra mulher." E que mulher mais calada, tímida, simples e deselegante. Foi a pior coisa que lhe poderia acontecer na vida. Porque não era capaz de suportar a derrota. Não sabia como. Não possuía experiência. Portanto, o único sentimento de que foi capaz foi a raiva. A declaração de amor do seu marido por Yesell não só a destruiu a si como também destruiu o seu mundo.
Fez uma pequena pausa, à espera de uma resposta. Mas ao ver que ela nada dizia, folheou mais algumas páginas da sua prancheta e a seguir olhou de novo para cima.
- Muito bem - disse -, basta de psicanálise, doutora. Não preciso de pagamento. Mas penso que o que acabei de relatar fornece um motivo que um júri não teria dificuldade em acreditar. Agora falemos da arma: o martelo de pena redonda que esmagou o crânio do seu marido e lhe perfurou os olhos. Gastámos muito tempo com esse martelo, doutora Ellerbee, mas eis senão quando descobrimos que uma ferramenta dessas tinha sido roubada, algures durante o mês de Outubro, da Garagem e Estação de Serviço May, em Brewster, onde leva os seus automóveis. Pode tê-la tirado. É possível, não é? E onde é que supõe que esse martelo se encontra neste momento? No fundo do ribeiro que atravessa a sua propriedade. Daí que tencionemos arranjar uma autorização para dragar essa corrente de água. E se o encontrarmos, que acontece nessa altura? Impressões digitais e manchas de sangue, suponho. Ficaria surpreendida se soubesse das maravilhas
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que o pessoal dos laboratórios consegue realizar nos dias que vão correndo.
Ela remexeu-se, agitada, movimentando o corpo na cadeira e inclinando a cabeça para trás e para a frente. Fez lembrar a Delaney um dos felinos enormes que vira por trás das grades do Jardim Zoológico do Central Park - um chita, recordou - a abanar constantemente a cabeça de um lado para o outro, passeando, sem parar, tentando descobrir uma maneira de escapar.
- Já não falta muita coisa agora - disse firmemente. A doutora não era capaz de controlar a sua raiva, de modo que apossou-se do martelo e começou a tecer planos. Teria de ser numa sexta-feira à noite, porque era nessas alturas que Joan Yesell vinha até aqui, e ela e o seu marido faziam amor no divã de cabedal preto que ele tem no consultório. Certo? Portanto, nessa noite tempestuosa não seguiu para Brewster cedo, pois não?
- Segui! - gritou ela. - Segui!
- Não goze comigo - disse Delaney, batendo com a mão na sua prancheta. - Dispomos aqui de provas em como não o fez. Em como, em vez disso, ficou em Manhattan, à espreita aqui do prédio, aguardando a chegada de Joan Yesell. Mas, nessa noite, ela estava atrasada. A sua raiva ia crescendo, crescendo... Finalmente, veio até aqui e assassinou o seu marido. E depois esmagou-lhe os olhos porque ele cometera a afronta de olhar para outra mulher.
Ela fitou-o com incredulidade e horror?
- Porque está a fazer uma coisa destas a mim? - perguntou.
- Porquê?
Ele levantou-se repentinamente e esmagou um punho sobre o tampo da secretária da médica, numa pancada violenta, que fez com que todos os que se encontravam ali dentro dessem um pulo. Inclinou-se sobre a secretária, aproximando-se de Diane.
- Porquê - repetiu com voz estrangulada, fitando-a intensamente. - Porque você visitou a minha casa, foi amável para a minha esposa, convidou-nos para conhecer o seu lar e alimentou-nos. Chegou mesmo a sentar-se à mesma mesa connosco e conduziu-se como uma anfitriã exemplar. Depois enviou-nos flores. O princípio da sua queda. Se ao menos tivesse podido adivinhar. Mas tomou-me por tolo durante todo esse tempo... por tolo! E isso eu não sou capaz de suportar. Quer saber porquê? Aí tem a resposta!
Delaney voltou a deixar-se cair na sua cadeira, apaziguada a
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sua fúria. Ela fitou-o, estupefacta, sem compreender. Boone e Jason entenderam, mas permaneceram em silêncio.
O silêncio prolongou-se. Ele deu-lhe tempo, observando as alterações que iam tendo lugar no rosto de Diane. Adivinhou o que lhe estava a passar pela mente. Quase era capaz de ver a confiança a instalar-se novamente, enquanto ela revia tudo o que ele dissera. Diane endireitou-se na sua cadeira, levou uma mão ao cabelo a fim de se certificar de que tinha as tranças no lugar.
- O senhor não sabe se eu roubei o martelo a May - disse por fim -, e certamente não o pode provar.
- É verdade - disse Delaney, anuindo.
- E não pode provar que eu fiquei em Manhattan nessa noite. Ele voltou a anuir.
- Nem sequer pode provar que eu tinha conhecimento da desgraçada ligação do meu marido - concluiu, triunfante. Portanto, não têm nada.
Delaney mostrou os dentes novamente.
- Temo-la a si, minha senhora - disse.
Diane ficou abalada, esperando ouvir uma acusação comprovada. Mas o corpulento e rude homem que tinha ali na sua frente deixou-se ficar sentado em silêncio, fitando-a com fixidez por cima dos óculos.
- Deixe de me tratar por "minha senhora" - observou petulantemente. - Se não se quer dirigir a mim por "doutora", então o "senhora Ellerbee" servirá igualmente.
Delaney inclinou-se para a frente.
- Porque é que não acaba com essa merda - disse ele com ar simpático, servindo-se da palavra rude propositadamente para a desconcertar ainda mais. - Vai sair-se desta história sem problemas. Se não sabe como fazê-lo, deixe-o ao cuidado dos seus advogados.
- Bem, então - disse ela -, tudo isto não passou de um exercício de futilidade, não é verdade?
- Não exactamente. Se dependesse de mim, você ficaria encarcerada por bons e largos anos, a comer em pratos de estanho e com medo de agarrar no sabão no duche. Mas se não puder ter essa satisfação, contentar-me-ei pela segunda melhor hipótese.
Estendeu uma das mãos enormes, dedos bem abertos, que depois fechou lentamente até formar um punho de pedra.
- vou esmagá-la, minha senhora. Precisamente assim.
Ela fitou Delaney, desviando em seguida o olhar para os dois
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agentes uniformizados que estavam sentados atrás deste. Retribuíram-lhe o olhar.
- Deixe-me que lhe diga o que lhe vai acontecer - observou Delaney, chegando-se para a frente a fim de espalmar as mãos abertas sobre a secretária. - Vamos transformar este caso naquilo a que eles chamam de um acontecimento nos órgãos de informação. Vamos prendê-la, acusá-la de assassínio premeditado na pessoa de seu marido, Simon Ellerbee. Será levada para a esquadra mais próxima, fotografada, as suas impressões digitais ficarão registadas. Depois permitir-lhe-ão fazer uma chamada telefónica para o seu advogado. Enquanto espera a chegada deste, ficará fechada numa cela. Não vai ser uma delícia? Oh, passadas poucas horas já cá estará fora, tenho a certeza, talvez um dia depois, no máximo. Entretanto, teremos alertado os jornais e as estações de televisão. Vai ser um circo: "Esposa acusada de assassínio brutal do marido." Os órgãos de Comunicação Social vão adorar. Conhecido casal do East Side. Psiquiatras endinheirados, famosos. E a outra mulher, uma paciente! Já alguma vez foi fotografada de biquini? Farei com que os jornais recebam uma dessas fotos para a estamparem nas primeiras páginas.
- Não se atreverá a tanto - disse Diane arquejante, o rosto subitamente pálido.
- Oh, atrever-me-ei a muito mais do que isso, minha senhora. Fugas sobre o romance de seu marido, para a imprensa. Quem sabe se Joan Yesell está disposta a vender a sua história e fazer uma boa maquia. Tem esse direito.
- Eu processo-o! - gritou ela. - Eu processo-os a todos!
- À vontade - respondeu Delaney com um sorriso gélido. Avance com processos, e mais tempo ficará nos cabeçalhos, senhora. Mas, entretanto, a sua carreira vai pelo cano do esgoto. Acabaram-se os pacientes infantis para si. E onde quer que vá, durante o resto da sua vida, as pessoas apontarão um dedo para si e sussurrarão: "Aquela é a mulher que dizem que matou o marido." Nunca mais se livrará desse fado.
- Você é um animal - gritou ela, tremendo de raiva. - Um animal!
- Um animal, eu? E que nome dá você a uma pessoa que abre o crânio de outro ser humano com um martelo e depois lhe esmaga os olhos? Eu sou um animal, mas você não. É assim que a sua cabeça funciona? No fundo, não pensava conseguir escapar sã e salva do que fez, pois não? Estamos num mundo injusto e
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imperfeito, reconheço, mas você pecou e tem de pagar por isso, de uma maneira ou de outra. Chegou a altura de o fazer, doutora.
- Eu não sou culpada! - uivou ela desesperadamente. Juro que não sou!
- Foi você que o fez - disse Delaney, olhando-a sem vacilar.
- Você sabe-o, eu sei-o, estes agentes sabem-no, o Departamento sabe-o. E não tarda que toda a cidade o saiba. Vai andar nas bocas do mundo, doutora Ellerbee. Talvez até façam versos sobre si... como aquele que diz: "Lizzie Borden pegou num machado..." Não vai ser estupendo transformar-se numa superestrela?
Ela moveu-se com tal rapidez que ninguém teve tempo de reagir. Em vez de dar a volta à secretária lançou-se sobre o topo desta, de unhas no ar, em direcção ao rosto de Delaney. Ele atirou-se para trás, arrastando a cadeira na queda e com Diane em cima de si, esperançado em não partir os óculos.
Boone e Jason puxaram-na de cima dele. Diane lutou freneticamente, mas eles conseguiram atirá-la para a cadeira onde ela estivera, atrás da secretária. Jason deixou-se ficar a seu lado, com uma das mãos carnudas a prendê-la pelo ombro.
Delaney pôs-se desajeitadamente de pé. Endireitou a cadeira, examinou os seus óculos e certificou-se de que não se tinham partido, e tocou nos arranhões latejantes com que ficara no rosto. Os dedos ficaram manchados. Premiu o lenço contra os ferimentos.
- Raiva - comentou, dirigindo-se aos dois agentes, com um movimento afirmativo de cabeça. - Incontrolável. Era assim que ela estava quando matou o marido. Sargento Boone, espreite pela janela, veja se a imprensa já chegou.
Abner Boone olhou para a rua através da janela que dava para a Rua 84.
- Já ali estão - informou. - Uma série de tipos com máquinas fotográficas e uma equipa de televisão.
- Mesmo na hora - disse Delaney tranquilamente. - Faltou-me avisá-la, senhora Ellerbee, de que por se tratar de uma detenção por crime maior, terá de ser algemada.
Ela deixou-se ficar sentada, encolhida, cabeça baixa, braços cruzados sobre o peito, mãos a segurar nos cotovelos. Não olhou para ele.
- Compreende o que fez? - perguntou ele suavemente, ainda de lenço encostado ao rosto. - Matou um ser humano. É certo
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que o homem a traiu. Mas seria isso razão suficiente para lhe tirar a vida? Sargento...
Abner Boone aproximou-se de Diane.
- Tem o direito de não prestar declarações... - principiou.
Delaney ficou sentado enquanto a levavam. Não sentia vontade de ficar a ver pela janela. Mas o clarão dosflashes dos fotógrafos chegou até ele, assim como o barulho. o comissário Thorsen cumprira o prometido.
Esperou que o ruído e a confusão desaparecessem à distância. Estava livre do assunto; Thorsen e Suarez que se encarregassem do resto. Terminara a sua missão. Fizera o que lhe tinham pedido, e, apesar de o resultado não ser o ideal, eles tinham o que queriam.
Tocou ao de leve na nuca. Batera com esta no chão quando a cadeira caíra para trás, e supunha que lhe iria nascer um galo naquele sítio. Reconheceu que fora um pouco longe de mais para aquele tipo de disparate.
Não era que estivesse fisicamente fatigado, mas a tarde desgastara-o profundamente. Não se sentia capaz de reunir a energia necessária para se levantar e seguir para casa a fim de se juntar a Mónica e às raparigas. De modo que tirou os óculos e limitou-se a ficar ali sentado, dedos cruzados sobre o casaco, a matutar.
Bárbara, sua primeira mulher, acusara-o uma vez de actuar como o juiz de Deus na Terra. Não considerava a acusação inteiramente justa. Estava convencido de que perdera o seu brio. O que agora o estimulava era mais um sentido do dever. Mas dever para com o quê, não poderia dizer.
Apesar de todas aquelas coisas que gritara relativamente ao facto de Diane Ellerbee o ter tomado por bobo, ele sentia mais pena do que raiva. Ele imaginava que a vida dela fora sempre tão fácil e segura que nunca aprendera a lidar com as dificuldades.
Mas ele podia continuar a procurar desculpas indefinidamente. Era um polícia, e o facto levava-o a concluir que a verdade nua e crua era a de que ela matara e tinha de ser punida por tal.
Pôs-se de pé com dificuldade e, como se estivesse na sua própria casa, deu a volta às portas e janelas do prédio deserto, certificando-se de que estavam devidamente fechadas.
De repente deteve-se, sem saber onde diabo estariam o seu sobretudo e o chapéu. Provavelmente ainda no carro de Jason, agora estacionado em frente da esquadra. Mas quando desceu até ao primeiro piso, encontrou-os à sua espera, impecavelmente
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dobrados em cima de uma pequena mesa de tampo de mármore do vestíbulo. Deus fosse louvado...
Foi a pé para casa, cabeça baixa, mãos nos bolsos. Reflectiu sobre até que ponto iria contar o que ali se passara a Mónica. Depois decidiu não omitir nada; tinha de explicar os arranhões no seu rosto. Se isso o fizesse parecer-se com um animal vingativo, paciência. Não era agora que ia começar a mentir-lhe. Além disso, ela saberia.
De repente ergueu os olhos e, para lá do brilho da cidade, viu as estrelas a tremeluzirem na sua rota ascendente. Tão pequeno, pensou. Todas as pobres das pessoas que se arrastavam na Terra, presas de uma vida que nunca tinham escolhido, a desgastarem-se para conseguir sobreviver.
Os filósofos diziam que se pode rir ou chorar. Delaney preferia pensar que havia um meio-termo, uma luta divertida em que se reconheciam as dificuldades e se sabia que estas nunca seriam ultrapassadas. O que não era motivo para deixar de tentar. Las Vegas saía-se bem.
Quando chegou à sua casa de arenito castanho, as luzes estavam acesas, a grinalda de Natal ainda na porta. E lá dentro estava a companhia de uma mulher adorável, um gole de brande, um bom charuto. E, mais tarde, uma cama quente e o sono abençoado.
- Obrigado, Deus - disse em voz alta, começando a subir os degraus.
Capítulo vigésimo oitavo
Delaney não queria que as raparigas saíssem na véspera do Ano Novo.
- É uma noite para amadores - disse a Mónica. - As pessoas que passaram o ano todo sem beber, de repente pensam que não podem deixar de se embriagar. Depois vomitam sobre os outros ou metem-se no carro e atentam contra a vida de quem lhes aparece no caminho. O local mais seguro para todos nós é aqui dentro, com a porta bem trancada.
Lamentos e lágrimas de Mary e Sylvia.
Por fim chegou-se a um consenso. Teriam a festa de fim de ano lá em casa, convidando Peter e Jeffrey. O tapete seria enrolado e
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haveria dança. Toilettes formais: as senhoras trajariam vestidos de noite e os cavalheiros fraque.
- Aí eu tenho uma objecção a fazer - protestou Delaney. Tenho o meu fraque no sótão e o mais certo é já estar todo cheio de manchas. Mesmo que o conseguisse encontrar, provavelmente não seria capaz de me enfiar dentro dele; engordei uns quilitos, sabem.
- Não há fraque, não há festa - disse Mónica firmemente. E as raparigas saem.
De modo que, resmungando, Delaney subiu ao sótão e desenterrou o seu fraque de um monte de bolas de naftalina. Estava poeirento e amachucado, mas Mónica passou-lhe uma esponja e escovou-o. Podia usar o smoking desabotoado, e Mónica assegurou-o de que com a sua faixa preta às pregas colocada no sítio, ninguém saberia que o botão de cima das calças ia, por força da necessidade, desabotoado.
Ainda a resmungar, saiu de casa para ir comprar materiais para a festa e alimentos para uma ceia ligeira. Arrastou consigo um carrinho de compras, reflectindo que este e o seu chapéu preto não se conjugavam para lhe dar uma figura muito digna. Mas não encontrou ninguém conhecido, pelo que não correu mal de todo.
Regressou a casa duas horas mais tarde, encontrando numerosos recados à sua espera. Foi para o gabinete a fim de retribuir os telefonemas. Ligou primeiro para Abner Boone.
- Que tal correu, sargento? - perguntou.
- Precisamente da maneira como o senhor disse. Ela já cá está fora, voltou para o prédio.
- Muitos jornalistas?
- E fotógrafos e equipas de televisão. Ela foi-se abaixo.
- Foi-se abaixo? Que quer dizer?
- Pôs-se a chorar. Muito perto da histeria.
- Lamento ouvi-lo. Imaginei-a com mais fibra.
- Bem, o certo é que ela desmanchou-se e nós tivemos bastante que fazer. Felizmente, quando o advogado dela apareceu, trouxe com ele o doutor Samuelson, que lhe deu um remédio qualquer para a acalmar. Quando saiu não parecia tão bonita.
- Não - disse Delaney tristemente -, assim como o marido não parecia nada bonito no chão do seu consultório. Obrigado pela sua ajuda, sargento, e, por favor, transmita os meus agradecimentos a Jason e a todos os outros.
- Assim farei, senhor, e Feliz Ano Novo.
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- Obrigado. Também para si e para Rebecca. Dê-lhe os meus cumprimentos.
- Serão entregues. Espero que voltemos a ter oportunidade de trabalhar juntos.
- Não me admiraria nada - retorquiu Delaney.
A seguir telefonou para o comissário Ivar Thorsen, que lhe pareceu muito entusiasmado e um tudo-nada fanfarrão.
- Está tudo a correr sobre rodas, Edward - informou exuberantemente. - Não conseguimos as primeiras edições da manhã, mas saíram nos jornais da tarde. Quatro programas informativos de televisão até aqui, e vêm aí mais. O telefone não pára de tocar com ligações que vêm de jornais de fora da cidade e revistas noticiosas. Tudo indica que a imprensa pensa que nós resolvemos o caso.
- Era o que vocês queriam, não era?
- Oh, raios, claro que sim! O comissário anda todo sorridente e até o chefe de Operações deu o parabéns a Suarez. Penso que Riordan tem a noção de que perdeu. Suarez tem boas possibilidades de ganhar o tal posto efectivo.
- Fico contente por isso; gosto do homem. Ivar, Feliz Ano Novo para ti e para os teus.
- O mesmo para ti, Edward. Dá à Mónica um beijo meu. Irás receber a tua caixa de Glenfiddish, mas isso não chega para te exprimir a minha gratidão.
- Então está bem - retorquiu Delaney -, manda duas caixas.
Desligaram, rindo.
Obedecendo a um impulso, telefonou para o Dr. Samuelson. Não conseguiu encontrá-lo nem no seu apartamento nem no consultório deste. Calculando que pudesse estar ainda a prestar assistência a Diane Ellerbee, ligou para o número desta. Estava preparado para desligar imediatamente se fosse ela a atender, mas obteve o sinal de impedido.
Telefonou repetidas vezes, durante quase meia hora, mas não conseguiu estabelecer ligação. Pensou que talvez Diane tivesse tirado o auscultador do descanso, ou que talvez estivesse a ser massacrada por telefonemas dos órgãos de informação. Mas a sua insistência acabou por ser compensada.
- Sim? Quem fala?
Reconheceu a voz de tom agudo e estridente.
- Doutor Samuelson, daqui fala Edward X. Delaney.
- Ah!
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- Como está a doutora Ellerbee?
- Neste momento encontra-se a dormir. Receitei-lhe um medicamento apropriado. Ficou destruída com o que aconteceu.
- Posso imaginar. Doutor, tenho uma pergunta para lhe fazer. Pode responder-me ou mandar-me para o diabo. Tinha conhecimento, ou imaginava, o que ela fez?
- Vá para o diabo - respondeu o homenzinho, desligando. Os quatro Delaneys jantaram ligeiramente e cedo, dando conta
sobretudo dos restos que tinham ficado, e depois terminaram a decoração da sala de estar, enrolando o tapete e lavando e encerando o soalho nu. Prepararam a ceia da meia-noite. Em seguida, foram todos para o andar de cima a fim de se vestirem.
- Estou a ter problemas em me barbear - disse Delaney a Mónica, na casa de banho. - Ela deu-me cabo da cara.
- Queres que te coloque pensos rápidos ou fita adesiva?
- Não. vou deixar as feridas ao ar. Tenho estado a pôr-lhes água oxigenada. Não tardarão a sarar. Contaste o sucedido às raparígas?
- Disse-lhes apenas que tinhas assistido à detenção de um
assaltante e que este te tinha atacado. Pareceram satisfeitas com a explicação.
- Óptimo. Quando é que os rapazes chegam?
- Prometeram estar cá às nove.
- Que vais vestir?
- Que gostarias que eu pusesse? - inquiriu Mónica com ar coquete.
- Aquele vestido preto curto, sem costas e cheio de franjas disse ele imediatamente. - Faz-te parecer uma garota dos anos vinte.
- Far-te-ei a vontade - disse ela, tocando-lhe suavemente na face. - Meu pobre herói ferido.
Enquanto se vestiam, Mónica perguntou-lhe, sem olhar para ele:
- Tens a certeza absoluta de que foi ela, Edward?
- Absoluta. Tu não?
- Custa tanto a acreditar... uma mulher tão linda, inteligente e talentosa.
- Loeb e Leopold eram génios. Não existe contradição entre a inteligência e um ímpeto para matar.
- Bem, se ela é culpada, como tu dizes, continuo a não compreender por que razão não vai ser julgada pelo que fez.
- A lei tem destas coisas - observou Delaney com brevidade.
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- Simplesmente não estamos de posse de elementos suficientes para mantermos a acusação em tribunal. Mas ela vai pagar.
- Achas que é o bastante? - inquiriu Mónica com ar duvidoso.
- É um compromisso - admitiu ele. - Concordo contigo; uma prisão prolongada teria sido mais indicada. Mas como isso foi impossível, contentei-me com o que pude arranjar. Todos nós nos acomodamos, não é? De uma maneira ou de outra. Quem é que consegue aquilo com que sonha? Todos nós vamos avançando por entre dificuldades, esperando o melhor, mas sabendo que teremos de viver com a confusão, umas vezes ganhando, outras ficando-nos por uma combinação, ocasionalmente limitamo-nos a ser derrotados. É uma balbúrdia, sem dúvida, mas é o preço que temos de pagar por estarmos vivos. Gosto de pensar que os momentos positivos superam os negativos. É o que está a acontecer esta noite. Estás maravilhosa!
Peter e Jeffrey chegaram pontualmente às nove horas, fazendo-se acompanhar por uma garrafa de Dom Perrignon, que todos concordaram em abrir só ao som das badaladas da meia-noite. Entretanto, havia seis garrafas de Korbel que Delaney tinha, e a festa arrancou no meio do ruído e gargalhadas.
Foram precisas três taças de champanhe para Delaney fraquejar finalmente e aceder a dançar com a mulher e as enteadas. Arrastou cautelosamente os pés pelo soalho com a graça de um gorila sobre andas, e depois de dançar com cada uma das senhoras, foi autorizado (Autorizado? Incentivado!) a retirar-se para a linha lateral, onde se deixou ficar, sorridente, a observar as festividades e a não permitir que os copos se esvaziassem.
Às onze e trinta, a dança foi temporariamente interrompida para a ceia ser servida. Havia caviar com cebola picada, ovos cozidos aos pedacinhos, natas azedas, alcaparras, tostas Melba, limão fresco aos quartos - tudo artisticamente disposto sobre folhas de alface.
Mónica e Delaney equilibraram os seus pratos no colo, mas a gente nova insistiu em se instalar no chão. O televisor estava ligado de modo a poderem ver as multidões que se agitavam na Times Square.
Faltavam dez minutos para a meia-noite quando o telefone tocou. Mónica e Delaney trocaram um olhar entre si.
- Mas quem diabo poderá ser? - resmungou ele, colocando o
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prato de lado e pondo-se pesadamente de pé; foi para o gabinete de trabalho e fechou a porta.
- Senhor Delaney, daqui fala o detective Brian Estrella. Desculpe incomodá-lo a esta hora, mas surgiu algo que pensei dever comunicar-lhe o mais cedo possível.
- Ah, sim? - admirou-se Delaney. - De que se trata?
- Bem, neste momento encontro-me no apartamento de Sylvia Mae Otherton, onde estivemos a trabalhar com a tábua Ouija. Leu os relatórios em que fiz referência a esta questão, não leu?
- Oh, sem dúvida - respondeu Delaney, erguendo os olhos ao alto. - Li o que escreveu acerca da tábua Ouija.
- Bem, a primeira pergunta que fizemos, há semanas atrás, foi a de quem tinha assassinado o doutor Ellerbee. E a tábua soletrou a palavra "Blind". B-L-I-N-D. Depois, na segunda vez, quisemos saber se o crime tinha sido cometido por um estranho, e a tábua indicou a palavra "Ni". N-i.
- Sim, recordo-me - disse Delaney pacientemente. - Muito
interessante. Mas que significado tem?
- Bem, repare no seguinte, senhor... - disse Estrella. Esta noite perguntámos ao espírito de Simon Ellerbee se ele foi morto por um homem ou por uma mulher, e a tábua Ouija respondeu "Wiman". W-i-M-A-N. Ora isto não fez muito sentido a princípio. Mas depois apercebi-me de que esta tábua tem uma pequena imperfeição e aponta para "i" quando o faz para "o". Se tivermos esse facto em consideração, repararemos que o assassino era blond (1), não blind (2). E a tábua queria dizer "NO" em vez de "NI" quando lhe perguntámos se o assassino era um estranho. E a última resposta deveria ter sido "Woman" (3) em vez de "Wiman". De modo que, segundo me parece, senhor, a pessoa de que andamos à procura é uma mulher loura que não era desconhecida da vítima.
- Muito obrigado - agradeceu Delaney gravemente.
(1) Loura. (N. da T.)
(2) Cego. (N. da T.)
(3) Mulher. (N. da T.)
Lawrence Sanders
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