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O RAMO VERDE / Edith Pargeter
O RAMO VERDE / Edith Pargeter

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O RAMO VERDE

 

Kerry, Setembro de 1228 Aber: Outubro de 1228

Empoleirado num ramo da faia, com o rosto voltado para o Sol nascente, o jovem semicerrou os olhos.

Os pontos de luz que cintilavam lá em baixo, sobre a talha aberta entre as árvores pelo regato, toldavam-lhe a visão; a clareira íngreme e abrupta do vale abria-se aos raios longos que começavam a penetrar a neblina e cuja luz atingia a superfície da água que ondulava entre as árvores. O olhar do jovem esforçava-se por alcançar, para lá do reflexo espelhado, o promontório arredondado onde se erguiam as muralhas do castelo inacabado e onde a vasta extensão do acampamento do rei bordava de cores garridas as pastagens das colinas, onde agora não havia carneiros.

Confiantes no seu número, os ingleses podiam permitir-se exibir ali todo o colorido dos seus equipamentos, mas deixar que o movimento fugaz de um tecido púrpura ou do penacho de um elmo fosse avistado, quando se embrenhavam nos bosques, custava-lhes bem caro. Só na última semana, mais de quarenta haviam servido de alvos, a curta distância do seu próprio acampamento. Harry trespassara pessoalmente dois deles, quando, ao alvorecer, demasiado esfaimados para se mostrarem prudentes, estes iam inspeccionar as armadilhas para os coelhos. O exército do corregedor do reino1 era formado por homens famintos. Havia três semanas que não comiam carne ou, se tivessem comido alguma, seria a dos próprios cavalos. As aldeias haviam sido abandonadas, as vacas, os porcos e os carneiros lançados à solta na natureza e até a caça existente na floresta fora metodicamente empurrada para Oeste, para não ficar ao seu alcance.

Os golpes da luz reflectida continuavam a ferir os olhos de Harry. Assolado por um súbito mal-estar, desviou a atenção da manta de retalhos de tendas e pavilhões, pestanejou para afastar a imagem do vale que se estendia até ao pregueado formado pelas distantes colinas limítrofes - sombra sobre sombra, azul sobre azul, contra a luz do sol agora mais intensa - e perscrutou mais atentamente a trama que os raios descontínuos de luz teciam por entre as árvores, por baixo do seu posto de vigia.

O seu coração bateu com mais força. As retracções da água haviam-se desviado do regato e subiam pela colina em direcção à crista, como uma serpente prateada estirando o corpo sinuoso pelo bosque que cobria o flanco de Gwernesgob. Não se tratava, todavia, do jogo de reflexos da luz sobre a água: era o brilho imprudente de armas e elmos. Nem sequer haviam tido o bom-senso de escurecer as pontas das lanças, antes de se lançarem na pilhagem.

Harry desceu rapidamente da árvore, esfolando os joelhos e as palmas das mãos devido à pressa, e desatou a correr que nem uma lebre entre o mato, voltando as costas ao extenso vale sobre o qual o sol se derramava agora como água, varrendo diante de si os restos da bruma, que eram empurrados para os recessos das colinas do Kerry.

 

1 Alto funcionário político e judicial da corte dos reis normandos e dos reis de Inglaterra que se lhes seguiram, até ao século XIII. A partir de então e durante o resto da Idade Média, as funções desta espécie de primeiro-ministro (que era a personagem mais influente do reino) parecem ter passado a restringir-se à área da administração da Justiça. (N. da T.)

 

Os seus dois irmãos adoptivos galeses desciam lado a lado o carreiro verdejante entre os carvalhos. David era alto, magro e de semblante grave, como a mãe; Owen era forte e jovial e tinha os cabelos castanhos. Como de costume, discutiam por causa dele.

- Eu bem disse que não devíamos trazê-lo connosco - dizia Owen, zangado. - Ele só tem treze anos e, por isso, o melhor era ficar em casa. Porque havias de deixá-lo vir? Sabias perfeitamente que ia portar-se como uma peste.

- Ele fartou-se de pedir - desculpou-se David. - E é tão bom arqueiro como qualquer dos adultos que estão ao meu serviço. Já o provou.

- Isso estaria tudo muito bem, se conseguíssemos mantê-lo na ordem. Mas o diabrete aproxima-se demasiado. É a terceira vez que tenho de ir buscá-lo perto das linhas do inimigo. O que ia dizer a sua mãe, se eu voltasse sem ele? Já que cedes a todos os seus caprichos, porque hei-de ser eu a tomar conta dele? É quase o mesmo que pores-me a tomar conta de uma cria de lobo!

David riu-se. O seu riso era igual ao da mãe: raro, caloroso e breve, um pouco triste também, como se o peso da realeza houvesse começado a silenciá-lo demasiado cedo.

- Sabes muito bem que ela nunca o entregaria aos cuidados de outro que não tu. E com toda a razão! Mal ele se afasta um bocadinho, vais logo a correr atrás dele, como uma galinha atrás dos pintainhos. Se te preocupasses menos com ele, não precisarias de o castigar tanto. Estás a ralar-te sem motivo. O Harry é esperto.

- A ralar-me! Quem foi que virou o acampamento de pernas para o ar, quando demos pela falta dele? Deixa-me deitar-lhe a mão e vais ver se não lhe dou uns bons açoites - prometeu Owen, em tom sombrio.

Nesse instante, a arquejar de tanto ter corrido, Harry saltou do meio dos arbustos, mesmo por trás deles, e lançou-se de livre vontade nas mãos de pele morena que Owen ameaçara usar contra si. Owen sacudiu-o com força, mas sem violência. Era sempre Owen quem proferia as ameaças mas, em geral, era David quem, levado pelo seu firme sentido do dever, aplicava o castigo.

Por onde andaste tu nas últimas duas horas, meu patife?

- Não te proibi de saíres do acampamento sozinho? Voltas a desobedecer e mando-te para casa sob escolta, estás a ouvir?

Apesar de ainda sem fôlego, Harry esquivou-se-lhes energicamente.

- Escutai-me! Eu responderei pelo que fiz mas mais tarde. Agora, ouvi-me. Os ingleses... eu estava de vigia, na colina e...

- Bem me parecia! - exclamou David.

E, dizendo isto, deu-lhe duas palmadas, para afirmar a sua autoridade, mas ficou atónito perante o súbito ardor com que Harry lhe agarrou na mão e o afastou.

- Quereis ouvir-me?! Os ingleses estão na outra vertente. Eu vi-os do alto da colina. Estão a avançar pela crista, em direcção a Dolfor.

Conseguira de facto captar a atenção de Owen e David que, agora, o seguravam cada um por um braço, bombardeando-o com perguntas.

- Há quanto tempo?

- Quantos são?

- Com as cores de que casa?

Sacudiam-no, tamanha era a ansiedade, mas não havia precisão de o pressionarem, pois Harry dava respostas rápidas e precisas a todas as perguntas.

- Há menos de um quarto de hora. Contei pelo menos trinta. Vi-os subir por entre as árvores e fiquei a ver para onde iam. Avançavam a coberto do bosque mas, vêem-se bem, quando o sol lhes bate nas malhas e nas lanças. As armaduras deles brilham muito - explicou Harry, com um trejeito de desdém. - Se seguirmos ao longo do rio, podemos apanhá-los no vau.

David e Owen trocaram um olhar duro como aço, por cima da cabeça de Harry, soltaram-no e voltaram a toda a pressa pelo caminho por onde tinham vindo. Harry foi obrigado a correr para os acompanhar mas manteve-se firmemente colado aos calcanhares de ambos e, sem deixar de correr, agarrou-se ao braço de David, protestando antecipadamente contra a proibição que sabia ameaçá-lo.

- Levais-me convosco? - perguntou, apreensivo. - Fui eu quem os viu!

- Pois foste - concordou David, erguendo um braço para afastar um ramo do rosto. - Fizeste bem a tua parte e, agora, vais-nos deixar cumprir a nossa.

- Não é justo! Então, porque me trouxestes convosco? E, se eu não estivesse aqui, nem sequer iríeis saber...

Com toda a sua energia e toda a sua atenção concentradas nos protestos, Harry esqueceu-se de ver onde punha os pés, tropeçou na raiz de uma árvore e caiu, estendendo-se ao comprido; mas levantou-se rapidamente e continuou a correr, aos saltos, para poder esfregar a coxa arranhada.

- Juro que não deixo que eles me vejam. Mas deixai-me ir convosco. Para que estou eu aqui, se não posso combater?

Chegaram à clareira ao mesmo tempo. O jovem continuava a protestar acaloradamente, quando David chamou os homens dos clãs que, em resposta ao chamado do seu príncipe, emergiram das sombras tranquilas da floresta, eles próprios vultos tão silenciosos como as próprias árvores.

- Ah, deixa-o vir, senão ainda nos põe surdos - disse Owen, impaciente. - Eu cuido de o colocar fora da linha de fogo. E encarrego-me de o fazer arrepender-se, se se afastar um passo que seja do sítio onde eu o mandar ficar. Estás a ouvir? - perguntou, fulminando Harry com um olhar ameaçador dos seus olhos escuros. - Despacha-te! Vai buscar o teu arco.

Harry não perdeu um segundo mas os seus ouvidos mantiveram-se atentos, não fosse David chamá-lo para o privar daquilo que Owen acabara de lhe conceder. Os irmãos haviam deixado passar em branco o facto de ele não levar consigo as armas, quando se escapara do acampamento antes do amanhecer, mas parecera-lhe que seria mais seguro ir disfarçado de camponês, vestido com uma cota de tecido grosseiro, para o caso de alguém o surpreender a passear no bosque, demasiado perto do acampamento do rei Henrique. Todavia, agora era muito diferente: ia ter a sua primeira experiência num combate a sério. O medo de que eles se fossem embora sem ele, fazia-o andar depressa mas, mesmo assim, envergou febrilmente a cota de malha que, usando uma antiga cota de David, o armeiro cortara para ele; sabia que, se se lhes apresentasse sem ela, seria mandado para trás.

Quase arrancou a pele dos dedos a esticar o arco. John o Frecheiro fizera-o especialmente para ele e trouxera-o das colinas no Natal. Estava calibrado na perfeição para o seu peso e alcance e, não contando com a espada do amieiro real que o príncipe lhe oferecera, era o seu bem mais precioso. A espada trazia consigo o esplendor do próprio Llewellyn, que a havia usado na sua primeira batalha, quando acabara de completar catorze anos e era apenas um jovem despojado dos seus bens, que lutava contra os tios, para recuperar o título de príncipe. Llewellyn servira-se dela e ela tivera o seu baptismo de sangue. Harry gostaria de a empunhar naquela campanha mas não sabia ainda manejá-la com a destreza com que manejava o arco e, apesar de lhe haver custado, optara pela arma que dominava melhor.

No fim de contas, não iam para o campo de batalha para sua glória e ascensão pessoal mas para expulsar o corregedor do reino do Kerry galês, onde a sua presença era indesejada - a dele e a do seu jovem rei, que muito espalhafato fazia por bem pouco. Toda a fronteira estava em pé de guerra; Clifford, de Breos, Pembroke, Gloucester e mais uma dúzia de senhores das Marcas haviam pegado em armas, alguns deles sem grande entusiasmo, para defender uma fortuna e um poder que eles próprios começavam já a detestar. E para quê? Menos de dez milhas para além do rochedo inexpugnável de Montgomery, as suas linhas de abastecimentos haviam sido desmanteladas e ali estavam eles em dificuldades e esfaimados, a construir à pressa uma fortaleza que o Inverno não lhes permitiria acabar, enquanto os galeses, com um quinto dos efectivos, os iam cercando e lhes davam caça sem problemas.

Harry cobriu as articulações com as protecções de couro e saiu a correr do abrigo rudimentar de David, para se juntar à companhia. Os homens haviam-se embrenhado entre as árvores que rodeavam a crista, deixando apenas meia dúzia de silhuetas tranquilas de vigia, no acampamento silencioso e quase invisível. David tinha sob o seu comando apenas doze homens de armas do seu pai e outros tantos homens livres dos clãs; a maior parte da hoste encontrava-se em segurança, com Llewellyn, na outra vertente de Kerry, montando cerco e assaltando o castelo em construção.

Chegados à orla da floresta, saíram a descoberto e, no passo alongado dos montanheses, avançaram para a clareira do rio que, naquele local, não passava de um regato a serpentear pela extensão de uma milha. Não havia ali ninguém que os visse mas os falcões esvoaçavam sobre as pastagens acidentadas e, um pouco mais adiante, era outra vez a floresta, a envolver o curso de água que aumentava de volume.

- E se eles já atravessaram o vau? - perguntou Harry, ansioso, puxando o cotovelo de David.

- Se assim for, estaremos entre eles e o acampamento e cortamos-lhes a retirada, se voltarem para trás. E, no caminho para Dolfor, irão encontrar com quem se haver.

- O nosso pai sabe que eles estão aqui?

- Mandei um mensageiro ao seu encontro. Ele vai conduzir os seus cavaleiros pela estrada e contornar o inimigo, antes de o enfrentar. Mas, a menos que hajam sido alertados, os ingleses irão desmontar e descer a encosta a pé e nós chegaremos lá a tempo. Agora, vamos depressa, senão ainda deixamos passar o sinal de Iorwerth.

Naquele primeiro troço, qualquer rapaz ágil poderia franquear de um salto o Mule, mas só havia um ponto onde as suas margens íngremes eram suficientemente niveladas para permitir que os cavalos o atravessassem a vau. O carreiro descia a encosta escarpada descrevendo longos desvios e as árvores quase o ocultavam, até à beira da água. Naquela margem, abria-se um terreno plano e coberto de ervas e, depois dele, um semicírculo de árvores. A Leste, a encosta íngreme encobria o sol matinal; ali, reinava ainda a penumbra do amanhecer, envolvida pela neblina de Setembro.

Os arqueiros e os lanceiros afastaram a vegetação e desapareceram na floresta, onde cada um deles escolheu cuidadosamente a sua posição. No topo da colina, alguma coisa incomodara um pica-pau que, por duas vezes, soltou o seu grito estridente semelhante a uma gargalhada.

Mesmo a tempo. Estão quase a chegar aqui - sussurrou Owen, exultante, enquanto ia arrastando Harry para um local bem protegido pelas árvores. - Sobe para ali e deixa-te lá ficar. Tens boa visibilidade e ninguém te vê. Aconteça o que acontecer aqui em baixo, não sais dali. Ouviste bem?

- E se precisarem de mim? - argumentou Harry, empoleirando-se no ramo de um carvalho e olhando para Owen com uma expressão de desafio.

- É só eu ver-te pôr um pé no chão antes de estar tudo acabado e desfaço-te o traseiro com a lança - ameaçou Owen, furioso, antes de se afastar, para assumir o seu lugar de honra, ao lado de David.

Aquilo não eram modos de falar com um homem que acabara de ser aceite nas fileiras dos guerreiros. Já que o deixavam combater, deviam pelo menos dar-lhe a mesma liberdade de decisão que aos companheiros. Instalado no ramo frondoso do carvalho, tão espaçoso e sólido como os muitos afloramentos rochosos existentes nas pastagens de montanha, Harry tremia de fúria e indignação. Enervado perante a quase certeza de falhar o alvo por não ter os pés assentes em terra firme ou por um ramo poder atravessar-se na trajectória da flecha, mudou de posição, firmou os pés e ajustou o ângulo de tiro. A ansiedade e a preocupação não o deixaram ficar quieto até ao momento em que o pica-pau que não era um pica-pau voltou a soltar um grito semelhante a uma gargalhada, no qual transparecia agora uma ponta de inquietação.

Então, subitamente, a ansiedade que fizera tremer Harry transformou-se em determinação fria e enérgica; a sua respiração era agora mais calma e compassada e a ponta da flecha que ajustara à corda do arco abriu suavemente caminho pelos interstícios dos ramos, apontada ao torso de um cavaleiro que surgira acima das águas do vau. O arco esticado ficou imóvel, como um cão de caça preparado para atacar a presa.

Lá em baixo, no bosque, Meurig, do vilar dos servos de Aber, que por direito era apenas um moço de fretes das tropas, mas que nunca se privava de combater, lançou um sorriso fugaz a Harry, beijou a lâmina da lança deliberadamente escurecida e, num gesto quase terno, sopesou-a na palma da mão. Bem equilibrada, a lança estremeceu, como que pronta a lançar-se em voo sozinha, se Meurig não a segurasse.

Foi então que os ingleses chegaram. Os olhos de Harry vislumbraram um brilho colorido, que descia a encosta arborizada, num local onde, um mês antes, a folhagem o teria ocultado. E, um pouco mais acima, um outro. Ao mesmo tempo, Harry ouviu o tilintar suave dos arneses e, depois, o som das passadas ritmadas dos cavalos e o som ocasional de uma ferradura, a resvalar na lama espessa. Avançavam lenta e silenciosamente, com toda a cautela, pelo trilho que ia dar ao curso de água.

Quando ficaram a descoberto, junto à margem, Harry observou com satisfação que eles levavam os cavalos pela rédea, o que iria facilitar as coisas: havia mais hipóteses de se matar o homem e obter uma montada intacta e menor probabilidade de homem e animal, feridos ou não, evitarem a emboscada e fugirem. Os cavalos - altos, de enorme ossatura, quase com o dobro do tamanho do pónei de pêlo comprido que costumava montar em Aber - eram a única coisa que os ingleses possuíam e que Harry cobiçava. Com a ajuda de Deus, naquela mesma noite, seria dono de um.

David só deu o sinal depois de os primeiros seis homens haverem atravessado a corrente e de o sétimo se encontrar a meio do vau. Este último ia a cavalo, não se dignando conduzir a montada à mão, nem mesmo numa descida íngreme. Era jovem, vestia uma bela cota de malha e um pelote de couro polido e o elmo erguido revelava um rosto alegre, ousado e arrogante, marcado por uma expressão um tanto estudada e insolente, mas inegavelmente belo. Quando o seu cavalo castanho escorregou nas pedras do leito do regato, o cavaleiro que atravessara antes dele voltou a entrar na água para segurar nas rédeas e o levar para a margem. A atitude fora tão obsequiosa que Harry, acostumado à independência tenaz dos galeses livres, quase soltou uma gargalhada. Mas o primeiro cavaleiro afastou-o com um gesto imperioso, oscilou devido à paragem abrupta do animal e puxou rapidamente as rédeas, num movimento suave e apaziguador.

Era por certo um dos nobres do rei Henrique, visto que os cavaleiros se aprestavam a servi-lo. Talvez fosse do Poitou, um desses fidalgos estrangeiros esquisitos, mesmo aos olhos dos ingleses, entre os quais causavam forte descontentamento. Fora isso que ouvira o príncipe dizer, em tom animado, num dia em que este tentava avaliar a grandeza da hoste do rei, chegada de Montgomery.

O cavalo castanho começara a trepar para a margem, quando David deu ordem de ataque aos seus arqueiros. A primeira flecha de Cynan embateu demasiado acima no ombro do cavaleiro, tilintou ao chocar com a armadura, seguiu em frente, a sibilar, e, sem parar de vibrar, foi cravar-se no tronco de uma árvore. Não obstante, o impacto atirou o cavaleiro para trás, sobre a sela, e o cavalo empinou-se, agitou as patas dianteiras no ar e relinchou, assustado. Entretanto, uma chuva de flechas partira atrás da primeira. Harry disparou ao mesmo tempo que os outros, mas era impossível saber se a sua flecha atingira o alvo. O primeiro homem a chegar à margem soltou as rédeas e rodou sobre si mesmo, com as mãos sobre o ventre. Depois, caiu ao chão e as suas pernas foram agitadas por estremecimentos. O cavalo desapareceu entre as árvores.

O fidalgo que não desmontara, recompôs-se com garbo, curvou-se sobre a sela do lado do ombro atingido e cavalgou em direcção ao bosque. Dois dos seus companheiros conseguiram recuperar os cavalos e correram na mesma direcção. Dois outros haviam caído por terra e, agora, arrastavam-se penosamente em busca de abrigo, empunhando as espadas sem muita convicção. Aqueles que iam ainda a caminho do vau abandonaram o carreiro e galgaram perigosamente a ravina, para irem em socorro do seu chefe. Por trás deles, o pica-pau voltou a gritar e obteve resposta. Um pequeno grupo de soldados de David atravessara o rio e, naquele momento, contornava os ingleses, para lhes cortar a retirada.

Invisíveis entre a vegetação espessa, os arqueiros galeses deslocavam-se em círculo; só Cynan saiu a descoberto e correu para a beira da água, no intuito de afastar do seu príncipe os cavaleiros ingleses, que se voltaram instintivamente para se lançarem na perseguição do único inimigo visível, tornando-se mais uma vez alvos ideais para os atiradores ocultos. Com um soluço de excitação, Harry pegou numa terceira flecha, ajustou-a e, momentaneamente, não avistou qualquer alvo nítido, porque a clareira fora invadida por uma terrível confusão de homens que gritavam e cavalos que relinchavam.

Passada a surpresa inicial, os ingleses começavam a recuperar a presença de espírito. Distraído por breves instantes pela corrida de Cynan, o chefe dos inimigos voltava-se agora decididamente para o seu primeiro alvo, pois concluíra que o arqueiro havia saído daquela zona de vegetação densa para dali desviar as atenções. Cravou as esporas no cavalo e, seguido de perto por três ou quatro cavaleiros, lançou-se novamente ao ataque, guiando o animal por entre os arbustos, numa chuva de folhas e ramos.

David recuara, mas apenas alguns passos, e a rapidez do assalto apanhou-o de surpresa. Saltou para trás, evitando a espada apontada à sua cabeça, mas caiu sobre os bastos tufos de erva, contra o tronco de um espinheiro. E, antes de Owen ter tempo de se aproximar, o cavalo castanho avançou e deu meia volta por baixo do carvalho de Harry, aproximando-se do homem caído no chão.

Harry apontou e disparou, com demasiada pressa e sem o necessário ajustamento, e a flecha enterrou-se ingloriamente no chão. Mais tarde, diria em sua defesa que, depois de haver traído a sua presença, se desviara um pouco a fim de evitar ser obrigado a saltar do poleiro a golpes de lança. Na verdade, a flecha perdida passara despercebida e o cavaleiro nem sequer erguera os olhos mas o príncipe e irmão adoptivo de Harry tinha um joelho por terra e, a golpes de joelhos e com as esporas, o seu assaltante impelia a montada para cima dele; Harry nem parou para pensar. Com um grito de raiva, largou o arco e, balançando o ramo da árvore, lançou-se sobre os ombros do cavaleiro.

O choque da queda deixou-o sem respiração e derrubou o adversário sobre o arção da sela. Aterrorizado, o cavalo recuou, batendo com as ferraduras no solo, e o homem e o rapaz caíram juntos sobre as ervas.

Por um momento que parecia não ter fim, Harry arquejou, tentando recuperar o fôlego. Por entre os estrondos e a confusão, ouviu Owen soltar um grito de alarme e, muito perto - aparentemente a toda a volta -, um martelar que abalava o solo e enviava para o seu corpo ondas de dor e medo. Então, uma mão enorme, agarrou-o pela axila e, com um puxão que quase lhe deslocou o braço, afastou-o das ferraduras ameaçadoras, ao mesmo tempo que outra mão - o par da primeira - o atirava para bem longe do perigo, com uma forte palmada no ouvido.

Harry rolou sobre si mesmo e, depois, ficou deitado, com a cabeça entre os braços, até a terra deixar de oscilar e tremer, até conseguir respirar um pouco melhor e recuperar a presença de espírito necessária para se sentir grato e não melindrado pelo bofetão. Aquele gesto de fúria casual confirmava a continuidade da existência de um mundo que ele compreendia e no qual se movimentava e agia confiantemente. Quando eram obrigados a salvá-lo de situações perigosas, os mais velhos vingavam-se quase sempre do susto, dando-lhe palmadas nas orelhas depois de o perigo haver passado. Não lhes queria mal por isso: era a outra face da indulgência que mostravam para com ele e do valor que lhe davam.

Por baixo de si, o solo estabilizou e, lentamente, Harry começou a sentir as dores das contusões. Primeiro, com toda a cautela, tirou as mãos dos ouvidos: o clamor da luta só se ouvia à distância, no bosque, onde continuava a perseguição àqueles que haviam conseguido passar pelo cordão. Ouviam-se também vozes que chamavam pelos feridos e pelos mortos, vozes que discutiam, praguejavam, gemiam. Bem perto, num tom ligeiramente brusco, uma voz familiar disse:

- Vá lá, levanta-te. Não estás ferido. Não tens sequer um arranhão!

A mão que lhe apalpara suavemente os ossos desceu ao longo das suas costas e deu-lhe uma palmadinha no traseiro. Harry assentou as mãos na erva, apoiou-se num joelho ainda pouco firme e abriu os olhos que se depararam com o rosto de falcão do seu pai adoptivo, um rosto tisnado, barbudo, de maçãs salientes, queixo brilhante à luz matinal e rugas profundas, contorcido num riso contido.

- Chegámos mesmo a tempo de te vermos voar - disse o príncipe. - Já vi muitos pássaros desajeitados a aprender a voar, mas juro que nunca vi nenhum pássaro tão esquisito como tu. Acabaram-se-te as flechas para precisares de te atirar para cima dele?

Harry abriu a boca e, ansioso, perguntou:

- O David?

- Não receies, está são e salvo. Não perdemos um único homem e só sofremos meia dúzia de ferimentos leves. Ficámos com sete bons cavalos e talvez ainda consigamos apanhar mais um ou dois na floresta.

Ouvir falar nos cavalos restituiu toda a vitalidade a Harry, que, de olhos brilhantes, se sentou, apoiado ao braço de Llewellyn. O seu olhar percorreu avidamente a clareira, agora juncada de pegadas humanas, marcas de ferraduras e ramos arrancados a árvores e arbustos. Sobre as ervas jaziam alguns mortos e, também, moribundos que gemiam e se contorciam. Cynan voltara, a sangrar de um braço, mas com um sorriso de satisfação, e Meurig andava à volta dos feridos e, sem brutalidade mas também sem gentilezas, retirava-lhes dos corpos as lanças ensanguentadas, como se as arrancasse de troncos de árvores.

De súbito, as contusões de Harry começaram a latejar, provocando-lhe dores vivas, como se acabasse de tomar consciência da realidade que eram as feridas e a morte. Conseguiu dominar a náusea, provocada pela excitação e pela reacção à batalha. Mas David estava ali, magro e vivo como sempre, intacto, do outro lado do tapete de erva que cobria a clareira, debruçado sobre um dos feridos, e vê-lo assim bastou para tranquilizar Harry. E Owen também se encontrava ali, a tentar acalmar um cavalo assustado que tremia e espumava, e fitando o irmão adoptivo mais novo com uma expressão em que se misturavam a cólera e a aprovação. Era bom encontrar e enfrentar o olhar de Owen, uma vez garantido o beneplácito do príncipe.

- É esta a tua recompensa - anunciou Llewellyn. - Desde que sejas capaz de o montar, com sela e respectivos arreios. Bem o mereceste. Vá lá, olha para ele! É mais bonito assim do que visto de debaixo das ferraduras. E não te pisou, o que prova que é um bom animal.

O cavalo castanho continuava a tremer violentamente, sob as carícias das mãos de Owen, a pelagem luzidia manchada de vagas de espuma, como uma praia na maré baixa. Com alguma dificuldade, Harry desviou os olhos do animal e, pensativo, poisou-os no cavaleiro, estendido sobre as ervas.

Haviam-lhe tirado o elmo, deixando a descoberto os fartos cabelos pretos, empapados em suor, e o rosto de traços finos, bem barbeado, pálido e exausto. Ainda assim, o rosto conservava a arrogância que era, todavia, isenta de maldade. A impotência espelhava-se nele. Jazia numa posição elegante, os cabelos pretos encaracolados caídos sobre as faces, tão belas como as de uma rapariga.

- Está morto? - perguntou Harry, baixinho, tremendo pela primeira vez perante a possibilidade de o ter morto.

Aquele homem não tinha o aspecto de um inimigo.

- Claro que não! Ainda há-de morrer de velho. Está só desmaiado. E se ouvisses o barulho que ele fez, quando caiu em cima das raízes do carvalho onde tu estavas empoleirado, nem perguntavas isso. Os únicos males dele são umas costelas partidas e um ombro ferido. Olha bem para ele, Harry. Sabes quem foi que deitaste ao chão?

Harry abanou a cabeça, espantado. As pálpebras azuladas tinham começado a agitar-se, as sobrancelhas pretas e direitas franziam-se, com o despertar da dor.

- Ao deitares as mãos à sua pessoa, estavas a deitar as mãos a Hay, Radnor, Builth, Brecon e sei lá mais o quê. Foi este homem que, há três meses, quando o velho Reginald morreu, herdou metade dos domínios da fronteira. William de Breos em pessoa!

O som do seu próprio nome penetrou o atordoamento em que haviam mergulhado os sentidos do senhor de Brecon. Abriu os olhos escuros e, sem pestanejar, fitou o homem alto e o rapaz que o olhavam de cima. Por trás das sobrancelhas franzidas, a memória do que se passara voltou lentamente.

- William de Breos - confirmou, em voz fraca e lúgubre. - Em pessoa!

Lembrava-se do rapaz, embora só o tivesse entrevisto por um breve instante, quando ele lhe caíra em cima, como um raio caído do céu. Aquele rosto grave, aqueles olhos grandes e inquietos deram-lhe uma enorme vontade de rir, que conseguiu controlar e transformar num sorriso cortês e simpático. É preciso ser-se cauteloso com o riso, não vá ele virar-se contra nós.

- Saúdo-vos, senhor - disse em tom solene, o sorriso distorcido pelos tremores da dor. - Fostes o único campeão que jamais lutou comigo desarmado, em corpo a corpo, e me fez ir ao chão.

E, por Deus, devereis ser o único a realizar tal proeza. Não ides dizer-me o nome de quem me venceu?

A lisonja, a ironia, o poder de sedução deliberadamente exercido envolveram os sentidos de Harry numa rede diáfana, que o deixou confuso.

- O meu nome é Harry Talvace, senhor - respondeu, subitamente assolado pela timidez.

- Talvace!

Um bom nome normando, num rapaz galês ousado e de cabelos pretos. William de Breos meditou no assunto por breves instantes mas, naquele momento, pensar era demasiado penoso. As pálpebras voltaram a fechar-se, a ligeira cor que lhe tingira as faces desapareceu e o seu rosto ficou novamente cinzento.

Num impulso, Harry libertou-se dos braços de Llewellyn, apanhou o elmo que rolara sobre as ervas e foi a correr buscar água ao rio. Em seguida, ajoelhou-se junto do prisioneiro e, corado de orgulho e admiração, humedeceu-lhe a testa alta e os lábios inchados, esquecido até mesmo do cavalo.

Quando de Breos acabou por abrir os olhos e viu o rosto do rapaz, solícito e terrivelmente sério, debruçado sobre si, já era difícil saber qual dos dois era o conquistador e qual o vencido.

A escolta emergiu do vale e rumou a Leste, seguindo pela verde planície costeira, entre os charcos salinos e as montanhas. Harry desmontou, para caminhar ao lado da carroça e conversar com o ferido, debruçado sobre a maca improvisada. Estava de regresso a casa e, para mais, voltava coberto de glória. Nunca experimentara a amargura de ser prisioneiro. Falava com entusiasmo, indicando com o dedo o brilho prateado da água, para lá de Lavan Sands e, mais adiante, a costa suave da ilha de Ynys Mon, que se ia afilando até à pequena linha da crista azul de Ynys Lanog. Mas corria o mês de Outubro e, mesmo em pleno dia, o mar era de uma tristeza aflitiva e, a despeito do tom de brincadeira utilizado e do riso corajoso, de Breos estava triste.

- Aber das Conchas Brancas! - exclamou, mordiscando uma das maçãs serôdias, que Harry apanhara para ele em Nanhwynain e cujo gosto ácido o fez estremecer. - E que vou eu fazer em Aber? - perguntou, de olhos fixos nas marcas que os seus fortes dentes brancos haviam deixado na polpa da maçã. - Devo dizer-te que, se gostasse um pouco menos de ti, havia de te desejar todos os males do mundo. Antes de mais, porque diabo estavas tu no alto da colina, a espiar o nosso acampamento? Andavas em busca de quê? Não de glória, por certo, pois disseste-me que estavas desarmado. O que era então?

O momento de silêncio e hesitação que se seguiu surpreendeu-o, porque, até então, o rapaz mostrara-se disposto a conversar sobre todos os assuntos. Quase não era preciso instigá-lo para ele se lançar em confidências. Desta vez, devia ter abordado uma questão melindrosa e, por instantes, a pergunta não obteve resposta. Se a sua curiosidade e a sua vaidade não houvessem sido espicaçadas, talvez a boa educação o houvesse levado a não insistir. Obtivera resposta para tudo quanto lhe apetecera perguntar e de certeza que, agora, também iria obter resposta. Por isso esperou, sorrindo teimosamente, até o constrangimento desaparecer, dando lugar a uma torrente de palavras impulsivas.

- Herdei uma querela com um certo inglês - confessou Harry, de olhos brilhantes. - Estou sempre à espera de avistar o meu inimigo, para ficar a conhecê-lo.

William de Breos esforçou-se por manter a compostura. Não era difícil: gostava demasiado do rapaz para encarar de ânimo leve aquilo que era importante para ele.

- E alguma vez viste esse teu inimigo?

- Ainda não - respondeu Harry, secamente.

- Quem é ele? Pode ser que eu o conheça.

- De nome, conheceis seguramente. Já me apeteceu perguntar-vos por ele. O nome dele é Ralf Isambard, de Parfois.

Com os dentes cravados na maçã, de Breos abriu muito os olhos.

- Isambard? Não te contentas com pouco! Por todos os santos do céu, que querela pode ser a tua contra o senhor de Parfois? O homem podia ser teu avô! E acredita que não é pessoa que alguém, mesmo um príncipe, possa enfrentar de ânimo leve.

- Trata-se de uma galanas, uma dívida de sangue - explicou Harry, muito sério, pressentindo que, por trás do espanto e do respeito que se lia no rosto que o fitava, se ocultava um resquício de zombaria.

- Por certo que a lei galesa te permite saldar essa galanas por um determinado preço - sugeriu de Breos delicadamente.

Ralf Isambard!, pensou, contendo a custo a vontade de rir que tamanha incongruência lhe provocava. A vida era cheia de desequilíbrios, mas ouvir um garoto ingénuo declarar gravemente a sua inimizade por aquele velho lobo ultrapassava todos os limites. Estes galeses! Ademais, o rapaz nem sequer era galês: o seu nome era incontestavelmente normando, como o do próprio de Breos, e tão antigo como este.

- Neste caso não - replicou Harry, em tom sombrio. - Mesmo que ele quisesse, eu não ia ceder. Mas ele não sabe nada a meu respeito. A querela é do meu pai.

A direita, sobre as montanhas, a indistinta bruma esbranquiçada que pairava sobre o mar transformava-se numa nuvem mais densa mas, apesar disso, avistava-se já o grande contraforte rochoso, que, por trás de Aber, protegia os campos da rebentação. Em menos de uma hora, estariam em casa. Consciente do olhar perscrutador que o fitava, Harry observava os contornos das colinas.

- O que fez o velho Ralf ao teu pai, para lhe guardares tamanho rancor?

A voz era calma, amigável e transparentemente curiosa. Quando queria, William de Breos sabia fazer as perguntas com a franqueza de uma criança e eram poucas as coisas que Harry seria capaz de lhe ocultar: nem mesmo as ocorrências perturbadoras que rodeavam o seu nascimento e aceleravam a sua maturidade.

- Condenou o meu pai à morte. Há muitos anos, pouco antes de eu haver nascido. O meu pai era mestre canteiro ao serviço de Isambard e houve uma história de um rapaz galês, capturado durante uma incursão, e que esteve ao cuidado do meu pai, em Parfois. O rei João ordenou que o rapaz fosse enforcado e Isambard haveria feito isso mesmo, se o meu pai não houvesse levado o rapaz para lugar seguro e mandado que o devolvessem ao príncipe de Gwynedd. É o rapaz que haveis visto, junto ao vau do Mule - explicou Harry. - É o meu irmão adoptivo mais velho, Owen ap Ivor ap Madoc.

- Ah, estou lembrado dele. É aquele que vigia todos os teus passos. Mas, se eles conseguiram chegar a Gales, como foi que o teu pai voltou a cair nas mãos do senhor de Parfois?

- Ele voltou - respondeu Harry, com simplicidade.

- Mas porque diabo voltou ele? Se estava ao serviço daquele velho lobo, devia saber que não podia voltar a colocar-se à mercê dele.

- Não havia outra saída, pois estava obrigado por um juramento. Havia sido encarregado de construir uma igreja no senhorio e jurara que ficaria em Parfois até concluir a sua obra. Depois de haver cuidado de que Owen chegasse a casa são e salvo, regressou para cumprir a palavra dada. E foi punido com a morte. A mesma sorte que nos esperava, a mim e à minha mãe, se não fosse uma certa dama de Parfois, que, com risco da própria vida, foi sempre nossa amiga e nos confiou aos bons cuidados do príncipe de Gwynedd. Estamos aqui desde então. E é por isso que sou irmão adoptivo do príncipe David e de Owen e a minha mãe é aia da princesa Joan.

- Então, foi assim que um Talvace acabou por se transformar num guerreiro galês, tão bom como os melhores. Confesso que me sentia intrigado. E essa dama que vos socorreu? Que foi feito dela?

- É uma santa - replicou Harry, como se isso explicasse tudo e não fossem necessários mais pormenores.

- Quem me dera que ela me ensinasse como se faz, já que para ela foi tão fácil - disse de Breos, com um sorriso contrito. - O que é preciso fazer para se ser santo? É uma santa viva, penso eu. Não é minha ambição ser um santo morto. Na maior parte dos casos, os santos sofrem mortes terríveis.

Harry fitou-o com um olhar em que se lia uma total incompreensão; para ele, «santo» era uma palavra de uso corrente, que nada tinha a ver com a canonização.

- Foi viver numa cela, lá no alto - explicou, indicando com um movimento da cabeça as colinas que se inclinavam suavemente sobre o caminho para Aber. - Construíram uma cela para ela, perto da cela do Santo Clydog. Vive afastada do mundo, em oração. Faz agora treze anos que lá está. De vez em quando, vamos visitá-la e, outras vezes, quando quer alguma coisa, manda o John o Frecheiro vir ter connosco. Mas ela nunca vem.

- Então, essa dama e Santo Clydog passam os dias em rezas e meditação? E sem ninguém, a menos de doze milhas, que possa perturbar a sua paz!

- Há o John o Frecheiro - argumentou Harry, que deixara escapar a ironia da frase, porque esta não lhe dizia respeito.

- Ah, claro, é preciso não esquecer John o Frecheiro!

- A minha mãe - confidenciou Harry - diz que ela escolheu a reclusão porque não queria casar. E era tão bonita!

- Cada vez melhor! Vou mandar construir uma terceira cela para mim, lá no alto. Portanto, ela fugiu ao casamento, abraçando a santidade, foi assim? Não teve o sentido prático da tua mãe, que escapou ficando ao serviço da princesa.

- Mas a minha mãe voltou a casar - esclareceu Harry. - Casou com o melhor amigo do meu pai, o Adam, o canteiro que sempre trabalhou com ele. Foi o Adam quem trouxe o Owen para casa e, depois disso, nunca mais ousou pôr os pés em Inglaterra.

- Santo Deus, Harry! - exclamou de Breos, lançando a cabeça para trás, sobre as mantas, na primeira gargalhada com gosto, desde que fora feito cativo. - Nunca conheci um rapaz mais dotado de mães e pais. Três mães e dois pais neste mundo e mais um pai no céu! Como foi que, entre todos, ainda não te fizeram em pedaços?

Mas, pensou de Breos, parando de rir, talvez o houvessem feito em pedaços, se o rapaz não fosse tão ousado, tão sólido, tão determinado como era e se não ostentasse no rosto imaturo aquele resoluto queixo normando, nem aqueles olhos verde-mar, francos e provocadores.

Bem, pensou ainda, pelo menos o que morreu deve deixá-lo em paz. Mas talvez o seu julgamento fosse demasiado apressado. Não há ninguém tão exigente como os mortos - ou os vivos, em nome dos mortos. E não há ninguém pior representado do que os mortos, quando os vivos começam a fazer exigências em seu nome.

Que pensaria realmente o rapaz daquele pai, que já não podia falar por si mesmo?

De Breos mudou penosamente de posição, para aliviar um pouco as dores que a maca tosca lhe provocava no tronco, estremecendo devido à dor mais aguda que lhe causavam as costelas partidas. Havia sido uma loucura cavalgar tantas horas, logo de manhã. Agora, sentia o corpo dorido. Olhou para as volutas das nuvens que desciam da montanha, para o mar prateado, que se tornava mais escuro para lá de Lavan Sands, e estremeceu. Não era de espantar que os ingleses exilados naquele lugar bárbaro cerrassem fileiras. Não era de espantar que a viúva de Talvace se houvesse apegado aos seus, apressando-se a barricar-se por trás do nome de outro homem, para dar ao filho um pai da sua própria raça.

- E qual dos teus muitos pais ouves tu mais atentamente, Harry? Suponho que é difícil eles falarem todos a uma só voz.

- O príncipe - respondeu Harry, com espírito prático e sorrindo com malícia. - No meu lugar, não faríeis o mesmo?

- Faria! Seria preciso muito para, estando eu no teu lugar, me arriscar a desagradar a esse senhor. Todavia, meu amigo, parece-me que tu consegues que ele te faça quase todas as vontades.

- Ele é muito bom para mim - reconheceu Harry alegremente. - E só se zanga comigo com razão. Mas, quando isso acontece, é terrível.

Utilizava as palavras que nos servem para falar do medo mas não sabia ainda o que era o medo: nos seus olhos, por trás da admiração receosa, lia-se também o divertimento.

- Uma vez, o velho Einion adormeceu, no salão do castelo, debruçado sobre a harpa e eu atei-lhe as barbas às cordas. Quando ele acordou e quis tocar, estava tão enredado que até pensou que era um feitiço. Nunca vi o príncipe tão zangado. Apanhei a maior tareia que ele alguma vez me deu, para me ensinar a ser respeitoso.

Mas de Breos bem via que o castigo não fora suficientemente severo para impedir Harry de se rir ou para o intimidar perante o príncipe ou perante o bardo.

- Depois, arrependi-me - confessou Harry. - Não pensei que ele fosse acordar daquela maneira e assustar-se por se ver preso.

Mas isso foi há muito tempo - acrescentou apressadamente, recuperando a dignidade presente, que a condição de escolta de um prisioneiro tão importante lhe conferia. - Foi há quase três anos, quando eu ainda era criança.

- Calculei que assim fosse - disse de Breos, para o tranquilizar.

Aproximavam-se da passagem arborizada que cortava abruptamente as altas montanhas. William de Breos avistou o brilho metálico do curso de água que atravessava o carreiro e fertilizava os campos planos, lançando-se depois nos charcos salinos; e, mais acima, recuando para a embocadura do vale, a grande muralha de madeira do castelo de Llewellyn, semioculta pelos casebres do vilar dos servos, que a ela se colavam, junto à porta. Dentro das muralhas, a torre de menagem de madeira dominava o outeiro alto e os telhados agrupados à sua volta. Sobre o grande aglomerado pairava uma leve neblina de fumo, que parecia isolá-lo do dia que chegava ao fim. Aquela terra vizinha das suas e que, em perto de trinta anos, apenas entrevira parecia mais estranha do que nunca a William de Breos.

- Confesso que nunca prendi um bardo a uma harpa - ia dizendo, em tom ligeiro, apesar de o coração lhe estar a gelar dentro do peito. - Mas, uma vez, deitei fogo a um capelão. O velho tolo nunca se calava e o diabo deixou uma vela acesa mesmo ao pé da batina dele. Um feito aceitável para o filho do meu pai, mas imperdoável para o sobrinho do meu tio. Ter bispos na família é uma bênção discutível, Harry. Mas claro que isso também foi há muito tempo, quando eu ainda era criança.

O que vais tu fazer aqui, meu caro William?, pensava para consigo, assolado por vivo descontentamento e pelo langor frio que se instalava dentro de si, como as nuvens sobre Moei Wnion. O que vais tu fazer aqui, sem nada em que ocupar o tempo, sem exercício, sem mulheres? Ah, se me fosse dada a liberdade de viver na terceira cela, na montanha, com a decidida (e bela) dama que não quer saber do casamento. Será verdade que ela se contenta com o Santo Clydog? E com John o Frecheiro, evidentemente! Convém não esquecer John o Frecheiro.

Quando se aproximavam das muralhas, os cavaleiros que seguiam adiante endireitaram as costas e os cavalos ergueram as cabeças e dilataram as narinas para aspirar o cheiro de pastos que lhes eram familiares. A barreira imponente que o ameaçava era, para os outros, uma visão reconfortante: havia estábulos com feno à espera dos cavalos e camas quentes à espera dos homens. Mas porque haveria a sua cama de ser fria? Há mulheres em todo o lado. Era sabido que as damas galesas de alta linhagem eram virtuosas. Mas sê-lo-iam todas? Antes de casar, Llewellyn tivera um filho bastardo com uma dama de uma linhagem quase tão antiga como a sua. Tanto quanto me lembro, o rapaz revelou-se incómodo e, agora, vive fechado a sete chaves em Degannwy, para não se atirar à garganta do irmão. Fechado a sete chaves, como eu ficarei em breve, aqui, em Aber.

- Espero que alojeis os vossos prisioneiros acima do solo, Harry - disse, mirando a muralha sombria. - A luz é a última coisa que um homem se resigna a perder. Sem contar com a respiração - acrescentou com um sorriso amargo.

Arrependeu-se de imediato de ter utilizado aquele tom. Era injusto despejar a bílis para cima do rapaz, uma presa fácil pelo apego inocente e espontâneo que lhe testemunhava. Não lhe passara despercebido que Harry imitava a sua maneira de falar, os seus movimentos de cabeça e a sua postura na cela. De Breos não tinha filhos - apenas um bando de filhas pequenas - e achava lisonjeira e agradável aquela admiração que, todavia, o obrigava a controlar os mínimos gestos.

- Aqui não há masmorras, senhor. Vivemos à luz do dia. A viagem foi dura para vós - acrescentou Harry, ansioso. - Mas em breve podereis descansar. E juro-vos que a princesa, minha mãe adoptiva, vos tratará com generosidade e carinho.

- Embora nunca a haja visto, ainda somos parentes distantes.

A relação era efectivamente ténue, um nó de múltiplos interesses, na complexa rede de alianças que formavam uma vasta teia de aranha, na zona de fronteira. Já com uma idade avançada, o seu pai casara em segundas núpcias com a mais bela das muitas raparigas que havia nascido depois de David. A jovem e morena Gladys não poderia deixar de se sentir muito satisfeita por haver ficado viúva aos dezasseis anos. Ou seriam dezassete? Agora, iam voltar a casa-Ia e, se Deus tivesse dó dela, talvez com alguém com uma idade mais próxima da sua.

- Tem cuidado, Harry, com aquilo que prometes em nome de outrem. Se o acolhimento que me for dispensado for menos generoso e carinhoso do que prometeste, pedir-te-ei contas por aquilo que estiver em falta. Não duvido que vou pagar bem cara a minha estada.

Ainda nem havia dois meses que se instalara no seu feudo e já ia ser necessário penhorá-lo para pagar a própria liberdade. Não obstante, conseguiu manter o sorriso e a sua boca, bela apesar das marcas do cansaço, recuperara uma expressão de bom humor. Chegara a altura de reunir as energias que lhe restavam, pois estavam agora a passar agora pelas primeiras cabanas da aldeia e os guardas postados junto à porta afastavam-se já para lhes dar passagem.

Harry parou por um instante do lado de fora da porta e de Breos, que não pôde deixar de adivinhar o motivo, absteve-se delicadamente de olhar. Que jovem daquela idade resistiria a fazer uma entrada majestosa no castelo, montado num cavalo, que era o seu trofeu de guerra justamente conquistado? E a verdade era que Harry não conseguia chegar ao estribo sem se apoiar no eixo da carroça ou numa pedra com altura apropriada e era demasiado orgulhoso para deixar que um dos homens de armas o ajudasse a subir para a sela. O melhor era pois não olhar para o contraforte de madeira da muralha, quando o rapaz para lá se precipitasse.

Pouco depois, Harry estava de novo ao seu lado, de costas direitas, rosto solene, montado no grande alazão; e, apesar de, nas suas costas, mostrarem um sorriso aberto, diante dele, os homens de armas apresentavam uma expressão impenetrável. Todos eles gostavam de Harry e nenhum se sentia com coragem para estragar o seu triunfo.

As mulheres da aldeia largaram o que estavam a fazer e correram a agarrar-se aos estribos, começando a caminhar ao lado dos seus homens. Rhys ap Griffith, que, na prática, assumira o comando da escolta e do seu comandante nominal, afastou-se modestamente para o lado, para deixar o rapaz avançar sozinho.

A carroça parou. Do salão do castelo, saiu Ednyfed Fychan, o senescal de Llewellyn, e, logo atrás dele, um grupo de oficiais subalternos; vindos das cozinhas, do armeiro e dos canis, apareceram todos os homens que podiam abandonar os seus afazeres e vir dar as boas-vindas aos companheiros que regressavam. Harry teve um público à altura da sua entrada triunfal. Mas não foi para os olhos dos mais velhos e nem mesmo do seu antigo mestre, Einion, que o jovem obrigou a montada nervosa a dar alguns passos de dança, antes de se deter.

Dos aposentos do príncipe, situados no ângulo mais afastado do castelo, tinham saído duas mulheres: sem dúvida, as duas mães seculares de Harry. Qual delas provocara aquela comovente demonstração de orgulho e ambição, aquela forma estudada de descer do cavalo, o rubor vivo que lhe coloria as faces? Por certo que não fora a sua mãe de sangue! Primeiro com distanciamento e, depois, com crescente interesse, de Breos observou as duas figuras que se aproximavam.

Uma delas era baixa, com grandes olhos escuros e um rosto que fazia lembrar uma rosa; menos esbelta do que talvez já houvesse sido e menos jovem, mas o preto dos seus cabelos e os tons pálido e rosa das suas faces haviam conservado o brilho. A outra era meia cabeça mais alta e mais magra do que a primeira, uma mulher de expressão grave, cabelo louro acastanhado penteado em duas tranças, enroladas ao lado da cabeça, tez clara e rosto estreito.

Não podia haver dúvidas quanto a qual das duas era Gilleis Boteler e qual a princesa de Gwynedd. Bem se via onde fora o herdeiro de Llewellyn buscar o cabelo claro e a magreza. E, espantosamente, era aquele rosto que, sem que ele se apercebesse de tal, inflamava o coração incauto de Harry, fazendo-o corar e brilhar na presença dela.

De Breos não via naquele rosto nada que justificasse tamanho arroubo juvenil. A princesa era dotada de uma autoridade grave, de uma graça demasiado calma e indiferente de movimentos, de um certo encanto desconsolado. Mas nunca deveria ter sido realmente bonita e, aos quarenta anos, estava magra e cansada; a pele deixava entrever demasiado os ossos e a carne flácida deixava transparecer demasiado o espírito. Mais alguns anos e seria velha. De Breos desviou os olhos.

Quando Harry desmontou, um cavalariço tirou-lhe as rédeas das mãos. O jovem voltou as costas ao senescal e correu para as duas mulheres. Ajoelhou diante da princesa e, em seguida - naquilo que devia ser uma rotina de toda a sua vida, em cada um dos reencontros e em cada uma das despedidas - ergueu-se e estendeu o rosto para ela, para receber um beijo. A princesa prendeu-lhe a cabeça entre as mãos e beijou-o, com uma simplicidade que denunciava um velho hábito, antes de o libertar para os carinhos mais expansivos da mãe. Mas, por um momento, com as mãos de Joan sobre as faces e os lábios de Joan poisados na testa, Harry vibrou, sob o efeito de uma tensão desconhecida e que estava para além da sua compreensão. De Breos viu essa tensão percorrer os ombros rígidos do rapaz, as suas costas robustas, como um frémito de felicidade. Não havia dúvida possível: o jovem estava profundamente apaixonado por ela.

E uma mulher por quem alguém está apaixonado, mesmo que esse alguém seja um rapazinho impetuoso e ingénuo, merece sempre um segundo olhar.

Timidamente, agarrando-se às guardas da carroça, de Breos ergueu-se um pouco, quando viu Harry voltar a correr para junto de si.

- Podeis caminhar, senhor? Quereis ir ao encontro da princesa?

Sim, pensou de Breos, eu vou; vou e levo comigo todas as armas de que disponho. Segundo parece, há ali qualquer coisa que vale a pena descobrir. As mulheres haviam-se juntado ao grupo de homens e a princesa conversava com Ednyfed Fychan. Não olhou para o prisioneiro, talvez para não parecer querer apressá-lo na descida da carroça, claramente difícil e penosa.

Mas haveis de olhar para mim, senhora, pensou de Breos, que sentiu o fluido vibrante do desafio voltar a correr-lhe nas veias, como o vinho que atravessa o coração de um ébrio. Haveis de olhar para mim e haveis de me ver, pois haveis visto quase tudo quanto há para ver neste reino mas nunca, até agora, haveis visto William de Breos.

- Permite que me apoie no teu ombro, Harry. Sinto-me terrivelmente rígido. Não, não me deixes assim. Foste tu quem me partiu as costelas e vais ser tu a servir-me de apoio até elas ficarem boas. Também me deves uma boa camisa e bem gostaria de a vestir neste momento. Mas não importa: se não me apresentar no meu melhor, não poderá haver decepções mais tarde.

A princesa voltou a cabeça, quando eles se aproximaram: o homem avançando a passadas hesitantes e cansadas, com o braço apoiado no ombro do rapaz. Desde o início que tivera consciência da sua presença e, agora, voltava finalmente a cabeça porque lhe parecia cruel deixar o ferido percorrer com tanta dificuldade a distância que os separava. Joan era generosa, de uma generosidade impulsiva. A primeira promessa de Harry foi cumprida pouco depois de feita. A princesa afastou-se do senescal e foi ao encontro deles.

Harry caminhava com toda a cautela, acertando o passo e a respiração pelos do seu prezado prisioneiro, orgulhoso por lhe servir de apoio. Nada disto escapou ao olhar da princesa. Nada lhe escapava. Como vedes, é um sinal, para vós e para mim, pensou de Breos. O vosso jovem falcão, real por adopção, foi domesticado. Meditai nas implicações desse feito e olhai bem para mim. Deixar-se-ia ele seduzir por um homem qualquer?

- Bem-vindo a Aber, senhor de Breos - disse a princesa, numa voz grave, o mais belo dos seus atributos. - Estais ferido e demasiado cansado para cerimónias. Se desejardes retirar-vos para os vossos aposentos, mandarei que vos levem toalhas e água.

- E se eu recusasse? - perguntou o prisioneiro, com um sorriso triste. -Aceitaríeis? Deixar-me-íeis partir, depois de me haverdes alimentado e permitido que me aquecesse na vossa casa?

- Vejo que conheceis os costumes da hospitalidade galesa - disse Joan, com um ligeiro sorriso.

Os olhos que ela fixou no rosto dele eram cinzentos, límpidos e muito profundos. Aquilo que esses olhos viram não foi o corpo bem feito de William de Breos, nem as suas feições belas e orgulhosas: viram os dedos crispados sobre o ombro de Harry, as rugas acentuadas, as marcas do desânimo à volta da sua boca - que tornavam inútil o sorriso obstinado -, a beleza destroçada dos seus movimentos e, também, a sua juventude, tão ostensivamente enganadora e insolente, mas agora esmagada por um sentimento de impotência.

- Seja como for - prosseguiu a princesa num tom seco, apesar do sorriso um pouco mais caloroso - penso que, no vosso estado, não seria sensato pedirdes para partir esta noite.

- É verdade - concordou ele, olhando-a fixamente. - Não vou pedir para partir esta noite. Mesmo que me abrísseis a porta, eu não iria.

Ela tratar-me-á com generosidade e ternura, não é assim, Harry? Já vi a sua generosidade, porque a generosidade pode ser exibida num terreiro, diante de toda a gente. Mas a ternura é diferente: exige silêncio e recolhimento. E tempo. Mas, graças à obstinação do senhor desta fortaleza, tempo é coisa que não nos vai faltar.

- Sim, meu filho, nós sabemos, nós sabemos - disse Gilleis, bem-disposta.

Ia a caminho do tear e parou para tocar ao de leve na nuca tensa de Harry, com o dedo coberto por um dedal.

- Nunca se viu tão grande poço de virtudes! Tem uma voz de anjo, a ligeireza de um galgo e uns modos infinitamente galantes e nobres. Desde que o trouxeste para aqui, há três dias, não fazes outra coisa senão tecer-lhe louvores. Já todos sabemos de cor a tua música.

Ajoelhado no tapete, aos pés de Joan, com os braços apoiados nos joelhos cobertos de brocado da princesa, Harry não parava de falar. Na intimidade do quarto de Joan, Harry continuava a comportar-se como um filho de pleno direito. Haviam sido muitas as vezes em que brincara na grande cama de Llewellyn, muitas as vezes em que ela observara as brincadeiras daquele rapazinho estranho e altivo, cativada por tamanha segurança, que quase o levava a acreditar que as suas raízes estavam ali.

- Mas ele não é tal e qual como eu disse? Não vos disse que ele era capaz de fazer boa figura, em tudo o que se empenhasse? Até perante um bardo tão grande como o nosso - acrescentou Harry, cheio de orgulho.

Joan estava sentada, com a mão entre as mãos de Harry, de olhos fixos na sua própria imagem, reflectida no prateado brilhante do espelho, por trás do jovem. Tinha já o cabelo solto, que lhe caía até à cintura em pesadas madeixas. Olhava para um qualquer ponto para lá do espelho, para lá das paredes do quarto, e a expressão da sua boca denotava uma tristeza, que enchia de ternura o coração de Harry.

- É um homem como os outros - disse ela. - Uma voz, um rosto, um corpo. Deus dotou-o do que era preciso.

- Se continuas a louvar tanto os méritos dele, vai haver quem diga que fazes isso para te gabares de o haver vencido - comentou Gilleis, troçando do filho.

- É mentira, nunca pensei nisso! - protestou Harry, indignado. - O que eu admiro não é o seu merecimento em combate, apesar de a reputação dele ser boa em Inglaterra. É o modo como ele aceitou as coisas, quando a sorte se voltou contra ele. E mesmo agora... se o houvésseis visto, como eu vi, tão triste que ele estava, quando pensava não haver ninguém por perto. Ele não merece isto! Sabeis vós, saberei eu o que é estar prisioneiro? Todavia, bem o ouvistes à hora da ceia, a falar, a rir...

E se ria! Com todo o seu ser, a cabeça lançada para trás, os ombros largos e musculados oscilando ao ritmo das gargalhadas e o pescoço comprido, incrivelmente liso, palpitando por cima da gola de pele da cota de David. E como falava, entre uma gargalhada e outra, com o brilhantismo e a fluidez de um vinho que escorre com facilidade. A recordação fez corar um pouco o rosto pálido reflectido no espelho. Reviu-se a si mesma, calada e grave, ao lado dele, incapaz de partilhar aquele riso, mesmo quando essa oportunidade lhe era dada. Ele perguntara conscienciosamente pela madrasta, permitindo que, nas suas boas maneiras, transparecesse um ligeiro divertimento sem malícia, e demasiado civilizado para ser ironia; mas ela nem sequer sorrira. Talvez estivesse envolvida havia demasiado tempo no jogo intrincado de cortes, reis e destinos. Habituara-se a considerar as filhas como peças de um tabuleiro de jogo, que podiam ser movidas entre três gerações. As filhas sim mas o filho não. O filho nunca.

- E, esta noite, quando chegou o mensageiro do nosso senhor, bem haveis visto como ele aceitou as novas, que todavia lhe eram adversas. Ouvistes o que ele disse. Quantos homens seriam capazes de mostrar tal valentia?

Eram de facto más notícias para o inglês. A guerra no Kerry terminara e a hoste inglesa batia ignominiosamente em retirada, bem para o interior das próprias fronteiras, fugindo às primeiras geadas do Inverno e à ameaça da fome. Ainda lhe parecia ouvir a voz do senescal, transmitindo as novas das trincheiras, e ver de Breos que o escutava sem vacilar. Quantos homens seriam capazes de mostrar tal valentia?

«Os termos da paz já foram acordados, só havendo ainda um certo burburinho quanto à forma de acertar alguns pormenores. Os ingleses vão pagar umas tantas cabeças de gado pelo privilégio de recuperarem o Kerry intacto mas esta é uma questão insignificante.»

«Não para aquela gente esfaimada que eu por lá vi! Será um milagre, se eles deixarem um animal inteiro para o rei poder levar para Inglaterra. E quanto à fortaleza de Hubert? Pressinto que nunca há-de chegar a ser acabada.»

«Vai ser deitada abaixo, demolida até aos alicerces, senhor.»

«Deus vê tudo! Ele chamou-lhe a sua loucura e acabou por se ver que era mesmo uma loucura. Espero que nunca brinqueis com as palavras, senhora. E condão das palavras voltarem ao ponto de partida, arrastadas pelo vento, batendo na cara do tolo que julgou havê-las encaminhado noutra direcção. Vai ser, por certo, preciso pagar uma indemnização pelo trabalho de arrasar a fortaleza?»

«O montante ainda não foi acertado, senhor.»

«Que isso não vos dê cuidado. Seja qual for, por certo poderei pagá-lo.»

Toda esta conversa decorrera sem ela haver dito uma palavra. As palavras são armas temíveis; mesmo sem o aviso de William de Breos, Joan nunca as usaria sem prudência. Quando, por fim, ousara fazê-lo, o chão tremera-lhe debaixo dos pés; até esse momento, ignorava que pudesse tremer tanto.

«Receio, senhor, que estas notícias não vos dêem qualquer prazer.»

Por uma vez sem sorrir, ele lançara sobre o rosto dela o brilho dos seus olhos escuros e, rapidamente, numa voz tão baixa que ela quase não percebera o sentido das palavras, perguntara: «E a vós, senhora?»

Fechando o armário, onde acabara de arrumar um vestido, Gilleis, disse:

- Vem, Harry! Está na hora de ires para a cama. Pensas que, sozinhas, as mulheres não são capazes de reparar num rosto bonito e de apreciar um coração valoroso? Diz boa-noite à minha senhora e recolhe à tua magnificência solitária, já que não queres a minha companhia nem a do Adam.

Harry dormia, com Owen, na antecâmara dos aposentos atribuídos a David, dada a sua qualidade de herdeiro reconhecido de seu pai, e poderia perfeitamente ficar no alojamento da mãe, enquanto os irmãos estavam fora de Aber; mas não queria renunciar aos seus direitos, por nada deste mundo.

Obediente, Harry beijou a mão de Joan e estendeu o rosto para receber o beijo dela. Estremeceu, quando os seus lábios lhe afloraram a face, e ela sentiu o calor do sangue que afluía àquela pele macia; mas, quando o afastou de si, o que ela viu foi uma criança ruborizada, talvez com um pouco de febre provocada pelo sono. Se ela ouvisse os louvores que ele lhe tecia junto de de Breos, pensou Harry, os louvores que lhe ficavam atravessados na garganta na sua presença, dar-lhe-ia mais valor e achá-lo-ia digno de desempenhar uma tarefa de homem, ao seu serviço. Quando lhe descrevera a embriaguez e o júbilo da sua primeira participação em combate, do qual trouxera um magnífico trofeu para depositar aos seus pés, ela limitara-se a acariciá-lo sorrindo, com a mesma calma que demonstraria se ele estivesse a mostrar-lhe um novo brinquedo. A princesa passava demasiado tempo com a sua mãe, que ele amava ternamente mas que nunca o levava a sério.

Ao chegar à porta, voltou-se para acrescentar fervorosamente:

- O padre Philip diz que, nas nossas orações, devemos lembrar-nos de todas as almas que sofrem duras provas e de todos os prisioneiros. Rezareis pelo senhor de Breos?

A princesa não voltou a cabeça mas, no suave brilho metálico do espelho, os seus olhos procuraram os de Harry e o olhar reflectido era, ao mesmo tempo, terno e severo, como se lhe sorrisse mas estivesse a mostrar reprovação a alguém que se encontrasse atrás dele. Ao cabo de um longo silêncio, respondeu baixinho:

- Podes ir descansado. Rezarei por ele.

- Que rapaz este! - suspirou Gilleis, beijando-o na face, antes de o empurrar à sua frente, para a porta. - Alguma vez o vistes assim preocupado por causa de um de nós? Quantas vezes o vi rezar as orações tão depressa que nem se percebia o que ele dizia. Mas, pelo senhor de Breos, quer pôr-nos a todos de joelhos. A verdade é que, no que lhe respeita, todas as palavras lhe parecem poucas. E o jovem senhor sabe lidar com ele - admitiu, sorrindo. - Seria difícil resistir a gostar dele.

Joan continuou em silêncio, imóvel diante do espelho, de olhos fixos nas suas longas tranças desfeitas, alisadas pela escova. O cabelo ainda era louro mas, a pouco e pouco, o brilho cor de mel ia ficando mais pálido, como a erva que, no coração do Verão, começa a embranquecer. O tempo esbate os tons da pele, dos cabelos e dos olhos, cobrindo-os com uma fina poeira corrosiva. Os músculos da garganta estavam um pouco flácidos, a delicada pele branca do pescoço baça e granulada. A poeira velava-lhe até os olhos, cinzentos como um espelho. Era como que se toda a sua vida fosse Quaresma, como se a Primavera houvesse passado, sem que uma qualquer Páscoa surgisse, para dar sentido a essa vida e tréguas à sua alma. As últimas flores de Maio secavam já nos ramos e iriam desaparecer, sem lhe dar tempo de estender a mão para as colher. Claro que, um dia, já fora rapariga mas essa rapariga morrera irrevogávelmente aos quinze anos, quando abandonara as bonecas, para carregar o fardo dos assuntos da corte e conceber um filho, para quem, desde então, se dedicara a construir um reino. Estivera demasiado ocupada, e até demasiado satisfeita, a manipular os homens, os tronos, os poderes, e não lhe sobrara tempo para apreciar o mês de Maio.

- Dentro de uma semana, o meu senhor estará de volta a casa disse Gilleis, em tom animador.

- Graças a Deus!

Bastava-lhe olhar atentamente para o seu próprio rosto, no espelho, e via-o lá. A expressão sombria de Llewellyn transparecia sob a sua palidez, o fogo metálico dele sob a discreta autoridade dela, a ossatura de um fundida na ossatura do outro, os seus olhos confundindo-se com os dele, e, do ninho que fizera na sua mente, era uma águia que espreitava através do seu rosto. Ela crescia nele, carne na carne, alma na alma, desde havia muito tempo. Se ele fosse ferido, ela sangraria. Alguma vez teria havido uma tal fusão de dois seres num só? Alguma vez teria havido um casamento tão absoluto como o seu?

- Agora, retirai-vos, Gilleis. Vou dormir já. Boa noite!

- Boa noite, senhora! Vou deixar a tocha acesa.

Os passos leves de Gilleis soavam cada vez mais distantes, enquanto ela ia descendo a escada de madeira. O grande quarto de dormir e o guarda-roupa de Joan erguiam-se sobre uma galeria alta e, por isso, as janelas abriam-se acima do pano da muralha; quem por elas olhasse avistaria os canais e, mais ao longe, a cadeia prateada da costa de Ynis Mon.

Quando ouviu a porta exterior fechar-se pesadamente, Joan levantou-se do tamborete, desceu os degraus a correr e colocou a pesada barra de madeira no encaixe. Alguma vez haveria feito tal coisa? Porque havia de o fazer agora? Quem ousaria abrir a sua porta? Ela era o seu próprio baluarte, a sua própria armadura, uma fortaleza impenetrável. E ninguém pode proteger-se das imagens com uma tranca. Se a imagem de um homem conseguira penetrar aquela barreira invisível, como seria possível afastá-la com aquela protecção irrisória de que nunca precisara? Trancar a porta era admitir e reconhecer a sua presença. Ele ia ficar dentro daquele quarto com ela, insinuar-se no seu sono durante toda a noite.

Apesar disso, deixou a tranca no lugar. E, ao regressar ao quarto, rezou apaixonadamente por todos os prisioneiros e por todos os seres expostos a duras provas.

Harry sentou-se na cama, sobressaltado, nas trevas frias de depois da meia-noite, arrancado a um sonho agitado que se desvaneceu instantaneamente, sem deixar imagens mas apenas uma sensação de tensão e medo. O seu coração batia desordenadamente, como se houvesse corrido, mas parecia-lhe mais haver corrido para esse medo, e não para longe dele; e acordara no momento em que ia abraçá-lo. Instintivamente, estendeu a mão em busca de Owen mas o lugar de Owen na cama estava frio e, então, lembrou-se de que estava sozinho.

Aconchegou a manta de pele à volta do corpo nu e ficou à escuta, em silêncio. Sem forma e furtivo, o sonho incompleto pairava sobre ele, à espera, na escuridão. Era uma tontice ter medo. Bastava estender-se na cama, cobrir os ouvidos com a manta e deixar-se mergulhar no sono, devagarinho. Os sonhos interrompidos raramente voltam.

Mas Harry não se deitou. Saltou da cama grande e, às apalpadelas, sempre de ouvido atento, procurou as meias. Os cães não haviam dado sinal. Todavia, houvera um som, um som suave e sussurrante, que mal se ouvia, o aflorar dos dedos de uma mão a tactear o caminho ao longo da madeira rugosa da parede exterior do seu quarto, como se um cego por ali houvesse passado.

Agora que dera uma forma ao som, estava menos assustado e infinitamente mais curioso. Sempre às escuras, vestiu as meias, enfiou a cabeça na abertura da cota e parou de novo, numa imobilidade nervosa. Se não estivesse à escuta com tanta atenção, não teria ouvido o segundo som, todavia mais forte do que o primeiro; quando este chegou, Harry não seria capaz de dizer quanto tempo se passara entre um e o outro. Era o som surdo de uma queda, abafado, vindo de algures entre os edifícios, dos lados do pano da muralha. Com toda a cautela, Harry abriu a porta do quarto e, sustendo a respiração, ficou à espera de que os cães começassem a ladrar. Mas os canis ficavam no extremo oposto do castelo e os cães não ladraram. Na escuridão da noite nublada e sem lua, nada se mexia e, com o à-vontade de um velho hábito, Harry avançou entre os edifícios e correu na direcção da ameaça desconhecida com a mesma curiosidade e a mesma temeridade que no sonho.

Contornou a esquina da torre e parou de repente, alarmado: o som surdo dos seus passos e as batidas fortes do seu coração diziam-lhe que a porta ao fundo das escadas estava aberta. Porque estaria a porta da princesa aberta àquela hora? Hesitou, na dúvida: deveria correr para a princesa, para ver se ela estava a salvo, ou deveria seguir o som? Mas eram só dez jardas da esquina da torre até ao caminho estreito que a separava do pano da muralha e a curiosidade venceu.

Ao cabo de instantes, Harry avistou uma sombra, de pé, mesmo por baixo da muralha, num ponto onde era difícil distinguir entre uma sombra e outra. Uma voz abafada inquiriu baixinho:

- Quem anda aí?

Depois, houve um breve sussurro, de reconhecimento sem dúvida, e a voz tornou-se mais firme.

- És tu, Harry?

- Está tudo bem, senhora... - começou ele, em voz alta. A princesa tapou-lhe a boca com a mão, impondo silêncio.

A palma da mão dela, dura e firme, estava fria e acalmou-o. Ela era a senhora daquele domínio, por direito e não por favor e, se não se mostrava alarmada, não havia motivo para ele se alarmar. Harry estendeu os braços para ela e tropeçou numa coisa pesada e quente que se encontrava aos seus pés. De braços abertos contra o pano da muralha, jazia um homem. As mãos do homem, firmadas numa tentativa laboriosa para erguer o corpo do chão, eram duas manchas brancas no escuro. Os cabelos caídos sobre o rosto eram o centro mais negro de várias zonas de sombra, que começavam a desenhar-se diante dos olhos de Harry. O homem respirava fundo, com dificuldade, e o primeiro impulso que deu para se levantar arrancou-lhe um gemido.

- Senhor de Breos! - sussurrou Harry.

A certeza que o invadiu fê-lo tremer de novo. Aquele lugar exíguo e escondido, junto à muralha, no extremo mais afastado do terreiro do castelo, os bosques não ficavam muito longe, não havia lua...

- Ele não podia! - exclamou Harry, numa voz estrangulada, ofendido e incrédulo. - Não podia! Deu a palavra de honra...

- Chiu! - ordenou peremptoriamente a princesa, agarrando-lhe no braço. -Ajuda-me a levantá-lo. Depressa. E cala-te. Temos de o levar para a cama, antes que mais alguém acorde.

Apesar de confuso, Harry obedeceu; estendeu o braço e, entre ambos, conseguiram pôr de pé o homem caído. Joan colocou o comprido braço direito de William de Breos à volta do pescoço; do outro lado, Harry amparava-o com o próprio corpo. Avançavam os três como um único ser, enlaçados e vacilantes. Ao primeiro passo, de Breos soergueu-se, para os aliviar um pouco do peso do seu corpo. Não disse palavra, não levantou a cabeça mas, com a ajuda deles, conseguiu andar.

- Como é que ele pôde? - sussurrou Harry, em tom amargo, por entre os dentes cerrados, dirigindo-se directamente a Joan, como se o homem entre ambos fosse surdo ou estivesse morto. - Ele deu a palavra de honra!

A princesa percebeu a raiva e o choque na voz dele e esboçou um sorriso, no escuro. Harry tinha treze anos e ainda vivia no mundo simples onde todas as promessas e a palavra dada eram automaticamente honradas. Tinha muito a aprender sobre os homens e, ainda mais, acerca da compaixão mas, em breve, a vida se encarregaria de o ensinar. Deixá-lo viver um pouco mais na ilusão, mesmo que isso o fizesse sofrer. Ninguém, além dela, precisava de saber de que parede caíra de Breos.

- Cala-te - repetiu ela, docemente. - Vamos levá-lo para casa. Ainda abatido pela decepção, Harry engoliu em silêncio as lágrimas de indignação.

- Será preciso pô-lo a ferros? Se não é capaz de cumprir a palavra de honra...

Ferido e envergonhado, abriu a porta do quarto do prisioneiro, com um empurrão raivoso. Porque se havia deixado arrastar para aquela conspiração de silêncio? A vergonha que sentia era contra si mesmo, porque fizera daquele homem uma peça da sua vida, porque ingenuamente se orgulhara dele e vê-lo assim exposto ao desprezo era uma humilhação insuportável.

- Fecha a porta - ordenou Joan, deixando escapar um suspiro de alívio.

Depositaram o fardo que transportavam em cima da cama, onde este ficou estendido, com a cabeça no travesseiro, sem se mexer. Apesar de a porta estar fechada, os olhos de ambos já se haviam habituado à escuridão e conseguiam distinguir os contornos das sombras. Viram de Breos erguer o braço, num movimento lento e pesado, e cobrir o rosto. Ficaram à espera por alguns instantes, embora Harry não soubesse de quê; talvez de que o silêncio lhes trouxesse a certeza de que não havia mais ninguém acordado, talvez de que o ritmo das suas respirações abrandasse, antes de se arriscarem a falar.

- Estais ferido? - perguntou por fim Joan, em voz muito baixa.

Pela tensão do seu corpo, Joan e Harry sabiam que de Breos estava consciente.

- Não - respondeu o homem deitado na cama, numa voz abafada e amarga. - Não como eu merecia.

- Foi uma loucura tentar aquela escalada - disse Joan, num tom tão abafado como o dele. - Já devíeis saber que, no estado em que vos encontrais, não iríeis aguentar tamanho esforço.

- Sabeis bem que foi mais do que uma loucura - murmurou a voz, por baixo da manga. - Foi uma infâmia, da qual estou arrependido. Agora, podeis entregar-me e fica tudo acabado.

- Apesar de serdes meu prisioneiro, senhor, sois também, de certo modo, meu hóspede e a honra dos meus hóspedes é um bem que me é caro - disse ela. Em seguida, voltando-se para o rapaz, acrescentou com autoridade: - Não vais contar nada disto a ninguém. É uma coisa que vai ficar só entre nós os três.

Como que apanhados por um mesmo impulso de recuo, o homem e o rapaz ficaram tensos.

- Ele desrespeitou aquilo que prometeu - replicou o rapaz, revoltado.

- Antes dele, muitos outros o fizeram, levados por situações extremas e, depois disso, viveram com honra.

Fora mais por mágoa do coração ferido do que por ânsia de justiça que Harry lhe fizera frente e Joan sabia isso; mas resolveu atribuir-lhe o motivo mais nobre.

- Não sejas demasiado duro por uma única falta, senão, quem estará à altura das tuas exigências? Poderá chegar um dia em que precises que te julguem com brandura, Harry. O mundo dá muitas voltas.

Comover Harry era tarefa fácil e a grande afeição que tornara aquela traição tão insuportável começava já a pesar a favor de de Breos.

- Obedecer-vos-ei, senhora - murmurou Harry, reticente e desorientado. - Nunca falarei disto.

- Muito bem! Mas cuida de te lembrares disso. Deixa que seja Deus a julgar. Agora, o melhor é voltarmos cada um para a sua cama e esquecermo-nos de que alguma vez de lá saímos. O assunto está encerrado. De manhã, senhor, mandarei saber como vos encontrais. Espero que não estejais muito magoado. Estais seguro de que não estais ferido? Sentis-vos suficientemente bem para ficardes só?

A voz que lhe respondeu do leito era dura e seca.

- Tão bem como pode estar um homem que ficou cara a cara consigo mesmo e tem vergonha do que viu.

- Há alguma coisa de que preciseis, antes de vos deixarmos?

- Nada, já fostes misericordiosa ao ponto de apagar dos vossos pensamentos o que se passou na última hora - respondeu de Breos. - Preciso apenas de um coração mais puro e, penso, isso já vós me haveis dado.

De súbito, afastou o braço que lhe cobria o rosto e soergueu-se sobre o cotovelo.

- Harry! Vem cá!

O rapaz aproximou-se da cama, num passo arrastado, a habitual compulsão a apossar-se-lhe dos sentidos. A escuridão ocultava o rosto que admirava mas nada impedia a voz de soar tão íntima e dominadora. E Joan, que era a perfeição, havia-lhe dito que não fosse apressado a julgar as faltas pelas quais nunca fora ainda tentado.

- Lamento do fundo do coração a minha tentativa desta noite, Harry. Não voltarei a cometer tal ofensa. Não sei se ainda aceitas a minha palavra mas dou-ta de qualquer modo, por aquilo que ela possa valer para ti.

Abruptamente, sem sequer esperar por uma resposta, de Breos deixou-se cair sobre o leito e voltou a cabeça para o outro lado. Por instantes, Harry ficou indeciso, tentando encontrar uma frase generosa para dizer, comovido e furioso por se sentir comovido. Era lisonjeiro alguém pedir-lhe perdão e as delícias da magnanimidade impeliam-no a ceder mas a ferida era ainda demasiado recente e grave para sarar com facilidade.

- Vem - disse Joan, pegando-lhe no braço. -Agora, vamos deixá-lo só.

Harry deixou-se guiar para fora do quarto, sem dizer palavra. O ar nocturno que lhe batia nas faces e nas pálpebras era frio. Apesar disso, o sono apoderava-se dele. A princesa passou-lhe o braço sobre os ombros e levou-o até à porta do quarto, empurrando-o docemente lá para dentro.

- Vai para a cama e pára de te atormentares. Amanhã sentir-te-ás melhor.

- Se vós soubésseis como eu pensava bem dele... - disse Harry, numa voz abafada pelo desgosto.

- E hás-de voltar a pensar, meu filho. Uma falha não transforma um homem num ser vil. Vai para a cama e dorme. Isto não é o fim do mundo. E pensa nele com bondade - acrescentou ela, a voz calma subitamente tomada de desespero. - Pensa com bondade em todos os pobres pecadores. Se cuidas estar ferido, quantos não serão os tormentos deles?

- Vou tentar - prometeu Harry, quase a chorar. Cambaleante, aproximou-se da cama fria; a angústia da voz dela ainda ecoava nos seus ouvidos.

Depois de fechar a porta do quarto de Harry, Joan voltou, qual sombra silenciosa, ao quarto onde se encontrava de Breos. Entrou e aproximou-se dele sem ruído.

De Breos estava deitado na cama, enrolado sobre si mesmo, com o rosto voltado para a parede e os braços compridos fortemente apertados contra o corpo, como se fossem cordas. Não se mexeu quando ela entrou mas apercebera-se da sua chegada pela ligeira alteração das trevas e pela deslocação de ar provocada pelas suas vestes; e por mais qualquer coisa que emanava da presença dela e que provocava em todos os seus nervos uma tensão tal que a sua pele se transformava numa rede de sofrimento intolerável. Joan não dizia nada. Seria ele a ter de falar no lugar dela mas esse esforço era como a morte. Não haveria já dito o suficiente e de modo bem claro?

- Porque voltastes? - perguntou numa voz dorida de angústia. - Que mais quereis de mim? Estou arrependido e não voltarei a ofender-vos. Se pudesse, apagaria tudo o que fiz mas, Deus me acuda, isso está fora do meu poder. É uma confissão que pretendeis? Bem sabeis que foi até à vossa janela que eu tentei trepar. Para que quereria eu fugir, se vós ficaríeis dentro destas muralhas?

- Eu sei - respondeu ela, sem se mover.

- Se não fosse o Harry...

- Nada haveis a recear dele. O Harry ainda vos tem no coração. Ele vai ficar calado.

- Para conhecerdes a verdade toda, ficai sabendo que me deixei cair de propósito. Escalei demasiadas janelas na minha vida, para cair daquela. Era uma brincadeira de crianças. Se quisesse, poderia haver-vos apanhado de surpresa mas, quando chegou o momento, não era isso que eu queria. Queria que vós viésseis até mim... de livre vontade, por caridade vossa...

- Sim - disse ela, num tom de desespero. - Vós sabeis como trazer-me até vós. Estou aqui. De livre vontade.

- Vós devíeis erguer-me e ter piedade de mim... e, Santo Deus, foi isso que fizestes!

- Será piedade?

A bela voz grave soava triste e interrogativa.

- Sei apenas que precisava de vir ter convosco - prosseguiu ela. - E, agora que aqui estou, nem sequer olhais para mim?

- Não! - respondeu ele, com um sobressalto de protesto. Mas, no instante seguinte, soergueu-se com grande esforço e

voltou-se, enfrentando-a. Com maior esforço ainda, conseguiu pôr-se de pé, sobre o chão de terra batida.

- Fiz demasiado bem o meu jogo - disse. -Afinal, não era um jogo ou, então, foi jogado à minha custa, o que não deixa de ser justo. Fui apanhado na minha própria armadilha. Deus é minha testemunha: eu amo-vos! Amo-vos e não posso tocar-vos!

Ocultou o rosto entre as mãos e fechou os olhos, à espera das flutuações da obscuridade e do frio que assinalariam que ela partira; mas as suas pálpebras doridas não registaram nenhuma alteração da intensidade das trevas e, quando voltou a abri-las, ela aproximara-se mais um pouco e estava parada, ao alcance das suas mãos.

- Então? - perguntou ela. - Devo ficar ou partir?

- Ide! - implorou ele, em voz rouca. - Pelo amor de Deus! E depressa!

Mas ela não se moveu e, passado um momento, como o moribundo que se lança sobre a Hóstia, William de Breos estendeu cegamente os braços, que se fecharam à volta do corpo dela, puxando-a contra o peito.

 

Aber: Janeiro a Setembro de 1229

O preço da vossa liberdade, senhor, é de duas mil libras - disse Llewelyn, estendendo uma das mãos tisnadas para o calor do fogo.

- Precisamente a soma que me vem assaltando a mente com uma curiosa insistência, desde que me chegou aos ouvidos que a indemnização pelo desmantelamento do novo castelo do nosso bom corregedor do reino, no Kerry, havia sido fixada nesse montante - respondeu de Breos, com uma gravidade inocente. - Espero que me concedais algum tempo para ponderar as probabilidades e... para recuperar o fôlego de que bem vou precisar até este trato estar terminado.

Já antes se haviam entregado a alguns assaltos preliminares, avaliando-se mutuamente, com estocadas e respostas. Isso acontecera antes das festas do Natal, quando Lleweiyn regressara a Aber com a sua escolta, em Novembro, e os lugares vazios diante do fogo haviam sido de novo ocupados pelos lanceiros e arqueiros do seu exército pessoal. Haviam voltado de boa saúde e os bardos haviam cantado em seu louvor. Mesmo aos olhos do inglês de Breos, a vitória obtida pelo príncipe, no Kerry, era de um alcance que ultrapassava em muito a dimensão do pedaço de território pelo qual a batalha fora travada. Era o primeiro revés infligido à irresistível ascensão do poder pessoal de Hubert de Burgh e não havia dúvida de que o rei Henrique, pouco firme no amor que votava ao seu corregedor, ficara devidamente impressionado. Havia sérios motivos de discórdia e desunião.

Com Llewelyn, os adiamentos eram sempre pensados e metódicos, apesar de os seus impulsos naturais o arrastarem para a paixão e o ódio; fora para servir os interesses do País de Gales que aprendera a controlar uma e o outro e os seus feitos no domínio da arte da paciência e da subtileza eram uma vitória prodigiosa contra o seu temperamento. O amor pode conseguir o impossível, incluindo induzir príncipes bárbaros a serem cautelosos, astutos e humildes. E o corpo alto, magro e violento de Llewelyn, príncipe de Aberfltaw e senhor de Snowdon, continha reservas imensas de amor: por Gwynedd, pelo ideal mais vasto do País de Gales - que de Breos via por vezes reflectido nos seus olhos expressivos -, pelo filho que herdaria Gwynedd e concluiria a criação de Gales, por todos os carvalhos, por todos os homens dos clãs que o seguiam incondicionalmente. E, sobretudo, por aquela mulher séria e tranquila, ali sentada à mesa, de costas bem direitas, e que prestava às reuniões do conselho do esposo a mesma atenção que as outras mulheres prestavam aos seus bordados.

Sim, por tudo isso, Llewelyn era capaz de evitar e adiar uma decisão. Se deixara passar Novembro e Dezembro sem apresentar as suas exigências, fora apenas à espera de sentir que pisava terreno firme, de cimentar a sua posição perante o rei e de ter a certeza de poder anunciar as suas reclamações com maiores possibilidades de sucesso. Henrique já restituíra à princesa os feudos de Condover e Rothley, favores que era seu uso conceder ou retirar, consoante o humor do momento. Tratava-se de um sinal encorajador para os planos de Llewelyn e de mau augúrio para a sua vítima. Todavia, o rei era o seu único recurso; mas, com uma arma de dois gumes e flexível como era Henrique, nem mesmo um mestre nas artes da espada poderia alguma vez ter grandes certezas.

- Duas mil libras é muito dinheiro, senhor - disse prudentemente de Breos, brincando com a taça quase vazia que segurava entre os dedos.

- Foi o que eu disse aos enviados do rei, mas eles não quiseram baixar o preço. E como poderia eu pedir por um de Breos menos do que aquilo que vou pagar por um castelo inacabado?

O rosto de falcão ostentava uma expressão solene mas, por entre as ligeiras rugas que os rodeavam, os olhos argutos sorriam.

- Todavia, senhor, sejam quais forem os termos que acordemos entre nós, estes estarão sujeitos à sanção do rei. Não seria melhor, quanto mais não fosse por uma questão de forma, abater um pouco o vosso preço, para evitar um paralelo tão exacto?

- Abater o meu preço? - perguntou Llewelyn, inclinando-se de súbito para diante e batendo decididamente com as palmas das mãos no tampo da mesa. - Quando danço a compasso com os enviados do rei, sou capaz de falar, tão bem como qualquer outro, aquela linguagem tortuosa que eles costumam usar. E, tanto para eles como para os registos reais, deve ser mais acertado usar as regras estabelecidas. Mas, entre nós os dois, vamos usar a verdade nua e crua. Sua Majestade poderá encontrar algum conforto em que fique registado que a campanha no Kerry terminou pela via da negociação mas ele sabe, tão bem como eu, que o Kerry foi uma guerra perdida e ganha e que quem a ganhou fui eu. Se me aprouvesse, poderia extorquir-vos uma quantia muito superior à que lhe vou pagar a ele, para lhe salvar a face. Se não o faço, podeis estar certo de que tal se deve a eu nunca haver pretendido ganhar dinheiro com esta questão. Não procurei esta guerra e, por isso, por que hei-de pagar por ela?

- Do mesmo mal me posso eu queixar, pois Deus bem sabe que também não a procurei.

- E admito que ela nada vos trouxe a não ser reveses. Mas são assim os caprichos da guerra e não fui eu quem decidiu a sua sorte. Poderia muito bem haver acontecido ser eu agora o vosso prisioneiro, em Brecon, e estar a parlamentar pela minha liberdade, como vós fazeis neste momento pela vossa.

- Se, algum dia, me for dado esse prazer, prometo que não me pouparei a esforços para vos acolher tão magnanimamente como fui acolhido aqui - replicou de Breos, com um sorriso luminoso.

- É muito amável da vossa parte. E eu espero suportar o cativeiro com tanto espírito como haveis suportado o vosso. E não é um cumprimento feito de ânimo leve. Desejo a todos os homens feitos prisioneiros uma coragem como a vossa. Enquanto o vosso pai foi vivo, mal vos conhecia mas, agora que o destino nos colocou lado a lado, digo-vos cara a cara que gosto do que vejo.

A taça parou de oscilar entre os dedos compridos, ficou imóvel, mas, dentro dela, a bebida ainda estremecia um pouco. O rosto sorridente ficou estático por um instante e a pele tisnada pelo sol de Verão empalideceu. O braço de Joan moveu-se bruscamente sobre a mesa e fez vacilar a pena no tinteiro. Mas Llewelyn pôs cobro àquele breve momento de embaraço, continuando a falar em tom caloroso:

- Gosto de vós e vou tratar-vos com honestidade. Se haveis em mente que o rei venha a impedir este acordo, não lhe dando a sua aprovação, sede sensato e tirai essa ideia da cabeça. Ele daria o seu consentimento, mesmo que eu vos extorquisse o dobro desta soma. Sua Majestade sofreu um revés no Kerry que o fez dar o devido valor à minha calma e a manter boas relações comigo... pelo menos até achar que as suas possibilidades de sucesso são maiores... por isso, sacrificar-vos-á sem remorsos.

- Mas parece-me que, neste momento, estais igualmente ansioso por vos entenderdes com ele - observou de Breos, recuperando a segurança e o brilho. - Ainda é preciso pensar em de Burgh.

- Pois é - admitiu Llewelyn, em tom sardónico. - Sei muito bem disso. E a melhor protecção que eu e os meus temos contra ele é um senhor que não gosta nada dele e a quem agradaria dispor de uma alternativa. Eu preciso do rei Henrique e ele precisa de mim. Ele precisa que eu me sinta satisfeito e eu preciso que ele se sinta tranquilo. Nestas condições, porque não haveríamos de entrar num acordo honesto? Mas a necessidade dele é mais aguda do que a minha, como sabereis por certo, se sabeis do seu desígnio de lançar uma nova expedição contra a França. Está a comprar a minha neutralidade e tê-la-á. Nenhum dos meus homens passará para o outro lado da fronteira, enquanto o rei Henrique estiver de costas voltadas. Há muito a fazer aqui, para garantir a segurança das minhas próprias fronteiras. Sereis sensato, se aceitardes as minhas condições, porque o rei não vai mexer um dedo por vós.

De Breos ouvia aquelas palavras sem dizer nada, de sobrolho franzido sobre as mãos cruzadas. A luz das velas brilhava nas pedras dos seus anéis. Mal recebera a notícia da sua captura, a esposa mandara vários cavalos, carregados com roupas, outras comodidades de Brecon e cartas de amor. Agora, já não precisava de usar roupas emprestadas e as suas vestes suplantavam em muito as de David. Talvez fosse um erro, pensava de Breos com amargura, alguém vestir-se demasiado bem, quando esse alguém está prisioneiro: isso tendia a fazer subir o preço. Lançou um breve olhar à princesa, cuja silhueta, erecta e real, se destacava contra o fundo escuro das paredes. Tinha o cabelo penteado em duas tranças enroladas que emergiam do delicado diadema de ouro e caíam em caracóis soltos e brilhantes dos dois lados do rosto. As jóias só serviam para tornar a palidez dela radiante, intensa e inconsistente como uma chama; mas nunca chama alguma ardera com tamanha constância.

- Bem. Parece que só me resta pagar - disse finalmente de Breos.

- Parece ser a única coisa a fazer, a menos que desejeis continuar aqui como prisioneiro.

- Não penso que o cativeiro possa ser, para sempre, adequado para o senhor de Breos - disse Joan, voltando-se para o fitar, com a sombra de um sorriso.

- Na vossa casa, senhora, juro que nunca me queixaria, mas receio que em breve a vossa boa vontade se esgote. Muito bem: concordo. Vejamos os pormenores.

- Está previsto eu efectuar um pagamento, na Páscoa - disse Llewelyn. - São duzentos e cinquenta marcos1. Essa soma poderia ser liquidada, sem sair de Inglaterra.

- Assim será. E que mais? Parece-me que o plano que preparastes inclui mais qualquer coisa.

Fora a mão de Joan que o redigira. De Breos deveria estar preparado para isso, mas sentiu-se confundido. Ela estava por trás de todas as deliberações do marido, era a sua mão direita onde ele

 

' O marco era uma unidade de peso correspondente a 226 gramas. Como unidade monetária, equivalia ao valor de um marco de prata pura (N. da T.)

 

não podia estar presente, a sua melhor emissária e a sua melhor diplomata; Llewelyn confiara-lhe aquela tarefa, como lhe confiava tudo. Talvez até houvesse dado a sua opinião; mas a expressão dela nada deixava transparecer: mostrava-se neutra, reservada e só os seus olhos inteligentes saltavam atentamente do rosto de um para o rosto do outro, enquanto os dois homens travavam aquele combate, perdido e ganho de antemão como a campanha no Kerry.

- Sim. Há mais. Desejo de vós, senhor, a promessa de nunca mais pegar em armas contra mim.

- Parece-me que estais a tentar reescrever a História - disse de Breos, com um sorriso sardónico. - Quantas vezes houve, nos últimos cinquenta anos, um de Breos que não pegasse em armas contra Gwynedd? E que resposta vou eu dar ao rei Henrique, da próxima vez que ele reunir a hoste?

- Deveis responder-lhe com a coragem que Deus vos der. A minha exigência mantém-se. Ademais, não me parece que, se falardes verdade, essa exigência mereça a vossa desaprovação. Houve alturas em que os de Breos e os Gwynedd foram aliados.

- É verdade. Mas apenas para disporem de algum descanso, entre longos períodos de luta. Bem... e que mais? Haveis despertado o meu interesse. Que falta mencionar?

- Uma aliança ainda mais estreita entre nós dois. Quero ter segurança nas minhas fronteiras e desejo que, pelo menos vós, não vos conteis entre os meus inimigos. Eu tenho um filho e vós tendes quatro filhas. Desejo que deis a vossa filha Isabella em casamento ao meu filho David...

- Eis algo que eu não esperava, senhor! - exclamou de Breos, de olhos muito abertos.

- ...trazendo por dote o senhorio e o castelo de Builth.

- Ah! Chegámos ao que interessa! Builth é o enfeite que coroa o bolo. Um belo rochedo sólido no centro de Gales, atravessado no caminho da avançada do corregedor do reino em direcção ao Norte.

- As vantagens existem, para mim e para vós - replicou Llewelyn. - E a vossa filha será aqui bem acolhida. Desejo sinceramente firmar uma aliança mais estreita convosco, se estiverdes de acordo. E ofereço à vossa filha uma união real e um esposo que é um rapaz bom, justo e galante. Estou a louvar os meus, mas o meu filho merece estes louvores, pois é tudo quanto desejei que ele fosse e todos os homens do Norte de Gales vos dirão o mesmo.

Todos menos um, pensou de Breos, desviando os olhos do rosto radiante e eloquente de Llewelyn para a expressão reservada da princesa, cujo olhar profundo se iluminou fugazmente, à menção do filho. Esse outro prisioneiro, o jovem turbulento que remoía a cólera no castelo de Degannwy, haveria usado palavras bem diferentes para descrever o meio-irmão, embora não conseguisse encontrar ninguém que secundasse a sua opinião ou que estivesse disposto a fazê-lo abertamente. Griffith e David: cada um deles despertava o que de pior havia no outro; a água e o azeite não eram mais irreconciliáveis. Entre os dois, ainda podiam destruir tudo quanto Llewelyn construíra.

Mas os construtores nunca reconhecem os destruidores que os seguem de perto. Se os reconhecessem, poisariam as ferramentas e sentar-se-iam a apanhar sol.

- Então? - perguntou Llewelyn. - Que dizeis?

- Que posso eu dizer? Sou tão sensível como vós às vantagens dessa união e David é perfeito. Não podia esperar melhor para Isabella. Mas não vos esqueçais de que são quatro as filhas que hei para casar e Builth é um dote considerável.

- Gwynedd também, senhor. A meu ver, é o mais importante dos dois.

- E ambos vos pertencerão, senhor, se eu concordar com os vossos termos.

Não era possível negar tal verdade e Llewelyn nem sequer tentou. De olhos nos olhos, os dois mediram-se por instantes e, em seguida, ambos soltaram gargalhadas alegres. Esquecida, a princesa observava-os com um ligeiro sorriso. Pegou na pena e, com a pequena faca que se encontrava perto do tinteiro, aguçou-lhe a ponta. Em breve iria ser precisa. Por certo, Ednyfed Fychan estava já à espera que o chamassem, perguntando-se porque tardavam tanto.

- Deus sabe, senhor, que tramas estamos a tecer para os nossos filhos. A vossa filha é minha madrasta e, agora, o vosso filho vai ser meu genro. Que parentesco passará a haver entre nós? Mas assim se fará: vamos arriscar. Isabella trar-vos-á Builth e a minha promessa será cumprida. Aceito os vossos termos, senhor - anunciou de Breos, estendendo a mão para selar o acordo.

Numa manhã gelada de Fevereiro, em que a orla do mar ao longo das pequenas lagoas salgadas, perto de Aber, se apresentava adornada pela neve, um grupo de cavaleiros de Brecon seguia em direcção a Bangor, para escoltar o seu senhor no regresso a casa. Chegaram com grande pompa e foram recebidos de igual modo. Por mais tristes que houvessem sido as circunstâncias da chegada de de Breos a Aber, a sua partida fora programada para as fazer esquecer. A escolta passou a noite na corte de Llewelyn e foi recebida principescamente. O velho Einion não poupou os louvores ao valor, à fama e às proezas do distinto hóspede e lamentou a sua partida.

- Santo Deus! - exclamou de Breos, ao ouvir a tradução sussurrada de Harry, que, todavia, não passava de uma pálida versão dos floreados originais. - Quem ouvir este bardo há-de pensar que ser derrubado do cavalo por um rapaz que salta de uma árvore é um grande feito de armas. Quem me dera que ele houvesse dado largas à imaginação, na noite em que aqui cheguei. Sempre me haveria feito ficar com melhor opinião de mim mesmo.

- Agora, está a falar do príncipe - relatou Harry, preocupado em não deixar escapar nada da crónica. - Está a cantar a balada de Cynddelw sobre a batalha de Alun, quando o nosso senhor era muito jovem.

- Ah! Bem me parecia que não tardaríamos a chegar ao príncipe Llewelyn. O que diz o bardo acerca dele? Traduz!

- Está a dizer: «Nesse dia, as águas do Alun ficaram vermelhas do sangue dos seus inimigos. Assim pereceram todos quantos injuriaram ou afrontaram o bem-amado da fortuna, o grande e ousado senhor Llewelyn.»

- Ao que todos os bravos Galeses deverão responder: «Amen.» Mas eu não sou galês e, por isso, posso ficar calado.

E, por Deus, é o melhor que posso fazer, pensou, contendo as palavras que lhe afloravam aos lábios com demasiada facilidade. Bebi mais do que a conta e seria uma loucura deixar escapar uma frase fatal, agora que estou quase livre. Se é que o que me espera é a liberdade!

- Deveis estar muito feliz, esta noite - comentou Harry, inclinando-se confiantemente sobre o braço da cadeira do amigo.

- Feliz?

A nota de surpresa na voz foi tão ligeira que Harry não se surpreendeu por a ouvir de um homem que acabava de ser libertado da prisão.

- Por ir para casa? Sim, estou muito feliz.

Na verdade, de Breos ria e se havia alguma ironia no seu riso, Harry não deu por ela.

E vai ser este o fim, pensou, contemplando o brilho de todo aquele formidável esplendor, no centro da mesa dos príncipes. Hei-de voltar para junto da minha mulher e dos meus filhos e de me contentar em ser feliz. Seja como for, que mais pode esperar um homem que conheceu aquilo que eu conheci? Devia ser possível voltar a viver sem isso, fosse como fosse. Hei fama de manter a calma, na privação e no cativeiro. Veremos se a mereço. Quanto ao resto que eu possa merecer, que Deus me proteja! Talvez Ele esteja realmente a proteger-me, se isto é mesmo o fim, mas há um limite para além do qual ninguém deve tentá-Lo.

- E, quando voltardes aqui, será como hóspede de honra - prosseguiu Harry alegremente.

- Assim será. E já não precisarás de corar por minha causa, mesmo que em segredo.

Era a primeira vez que fazia alusão àquele incidente, que parecia haver sido apagado da memória do rapaz com a mesma facilidade, e deixando tão poucas marcas, como as palmadas que, de vez em quando, os irmãos lhe davam. De Breos lamentou haver pronunciado aquelas palavras; nunca se deve pedir perdão, mas arrancá-lo aos outros, por um qualquer sortilégio, sem eles perceberem; raros são aqueles que possuem coragem suficiente para o retirar depois de dado. Mas preocupara-se desnecessariamente: Harry nem sequer percebera a alusão.

- E vireis celebrar uma união, que vos torna nosso parente.

- É verdade, Harry. Uma união muito cara ao meu coração.

De Breos reparou no duplo sentido das suas palavras e sentiu-se mal. Seria mesmo aquela a forma que desejava para aquele fim necessário? William, meu amigo, refreia-te, aconselhou a si mesmo. Acabara. Mas o seu coração rebelava-se contra a sua vontade e recusava-se a fazer promessas.

- Não vos parece, senhor, que houve um desígnio oculto por trás de haverdes vindo para aqui, por minha culpa? Como vedes, tudo se resolveu em bem. E, daqui a algum tempo, talvez no Outono, o príncipe vai enviar David à corte, para o rei o reconhecer como o herdeiro de Gwynedd. Os senhores galeses já o reconheceram, e o Papa também, e o governo do rei, mas ele terá de fazer uma visita de estado e prestar homenagem formal, por todas as terras que virão a ser suas...

- Eu sei - interrompeu de Breos, deixando passar o hidromel que circulava pela mesa. - Vou ter a honra de ser um dos seus patronos.

- ...e Owen vai acompanhá-lo na visita. E eu... espero ir com eles, se conseguir levar a minha avante.

- Tu? - perguntou de Breos, surpreendido. Perscrutando o rosto sério e apaixonado, viu o brilho dos olhos

verdes e compreendeu.

- Ainda não desististe! E que ganhas tu, Harry, se encontrares o teu velho inimigo na corte? Na presença do rei, estarás protegido contra ele, e ele contra ti. Mas é uma loucura pavonear o teu rosto diante dele e revelares-lhe o teu nome, alertando-o para a ameaça antes de tempo.

- Antes de tempo? - explodiu o rapaz, inflamando-se, como se fosse palha seca. - Em breve estarei na idade. No Outono, já serei um homem.

- Terás catorze anos. Bem sei que a lei galesa diz que passarás a ser um homem e que, a partir de então, nenhum dos teus vários pais e mães poderá bater-te, mesmo que o mereças. Mas ser um homem é mais do que isso. É preciso sobretudo aprender uma humildade justa e sã. O bom-senso e a sabedoria não aparecem por magia, no dia em que se faz catorze anos, e tu vais precisar das duas coisas, antes de medires forças com Parfois, pela espada ou pelo espírito. Provocar de ânimo leve homens terríveis não é um acto de bravura ou de nobreza, Harry. É temeridade e presunção.

Como ele próprio dissera um dia, sentado àquela mesma mesa, as palavras possuem o condão de descrever um círculo completo e bater na cara do tolo que as lançou. Aquelas fustigaram-lhe o rosto como se fossem granizo, ioldando-lhe os sentidos. Leva-as a sério enquanto é tempo, aconselhou a si mesmo. Temerário e presunçoso, és tu; recua, afasta-te deste turbilhão e deixa o príncipe de Gwynedd em paz.

- Não tenciono fazer nada de ânimo leve - protestou Harry, que procurava a sua benevolência e o seu encorajamento. - Só quero ver o senhor de Parfois no seu próprio terreno, observá-lo e ficar a saber como ele age. De que outro modo poderei alguma vez esperar medir-me com ele? Cuidais que esperei tanto tempo e não vou saber esperar um pouco mais, até poder contar com toda a minha força de adulto? Ele nem precisa de saber quem eu sou. Passarei por ser apenas um dos pajens de David e ele não há-de ouvir o meu nome.

- Nem precisa de ouvir. Segundo me disseram, a tua cara é demasiado parecida com a do teu pai para ele não te identificar.

Harry recebeu o reparo com tanta consternação que se tornou óbvio que não pensara nessa possibilidade. No entanto, argumentou teimosamente:

- Em catorze anos, ele pode haver esquecido o meu pai.

- Nem tu acreditas nisso, Harry. Não convivi muito de perto com a tua família mas sei que nenhuma das pessoas que se relacionaram com o teu pai o esqueceu. Para o melhor e para o pior, ele foi um homem inolvidável. E tu mesmo me disseste que a sua imagem está gravada nas pedras da igreja que ele construiu. Sê sensato, Harry, deixa o passado ser passado. O homem está velho e a morte há-de vir procurá-lo em breve, sem ser preciso seres tu a apressá-la.

- A morte dele pertence-me - protestou Harry, numa voz baixa e apaixonada, que exprimia de forma categórica e irrevogável aquilo que pensava do pai que perdera. - Não vou desistir.

- Harry, Harry! Estou a ver que, afinal, és um galês convicto. Vós e as vossas galanas! Quantos belos jovens desperdiçaram as vidas por darem continuidade a esses ódios de morte? Sê mais sensato que eles e vive, para fazeres pela terra mais do que regá-la com o teu sangue. O teu pai aprovaria que o fizesses, se foi realmente o homem que eu penso que ele foi. Defende os teus direitos, quando deves fazê-lo, e contra os teus iguais. Mas aquele homem é perigoso. Fosse ou não uma atitude sensata, o olhar de William de Breos voltou a poisar na cadeira de espaldar alto, no centro da mesa dos príncipes. Sobre os cabelos ainda pretos e lustrosos de Llewelyn, a coroa de ouro brilhava como um anel de fogo; e, por baixo do diadema, o seu rosto de bronze fundido, mostrava-se animado de vida, paixão, energia. O colar curto, de pedras de âmbar polidas, estremecia e retesava-se ao sabor das suas gargalhadas portentosas.

- Faz a tua vida entre os homens e evita misturar-te com demónios. Deixa em paz o leão e o leopardo, Harry. Eles matam!

De manhã, os cavaleiros de Brecon partiram de Aber em direcção ao Conway. A frente, seguia William de Breos. O cortejo dos seus servos e cavalos de carga patinhava sobre o caminho gelado, a um quarto de milha de distância.

Da janela estreita dos aposentos da princesa, as mulheres assistiram à partida.

- Um belo final - comentou Gilleis, seguindo com um olhar satisfeito a comitiva que se afastava pelo carreiro, entre os campos cobertos de geada. - Builth anexada e um aliado poderoso conquistado para a causa de David. Harry trouxe até nós um bom cativo, na sua primeira batalha.

Joan não disse uma palavra. Ficou à janela, até o manto vermelho e ouro que flutuava ao vento se transformar num ponto do tamanho da cabeça de um alfinete, ao longe, e mesmo depois de esse ponto minúsculo de luz se haver diluído no brilho do sol semi-oculto pela bruma.

Nesse Outono, o mosteiro cistercense preferido do príncipe, Aberconway, queixou-se de falta de celeiros, na sua propriedade de Nanhwynain, e de que os redis eram insuficientes nas pastagens altas, para lá de Snowdon. Llewelyn enviou o seu melhor pedreiro, Adam Boteler, para avaliar as necessidades e prometeu mão-de-obra e materiais para as obras. Ao fim de uma semana, Adam regressou e relatou que, para fazer tudo quanto os frades queriam, só nos celeiros era preciso mais de um mês de trabalho e que, encorajado pela complacência do seu senhor, o prior se apressara a pedir também a extensão da área habitacional.

- Levo comigo uma dúzia dos meus homens, na próxima semana - anunciou Adam, apresentando-se perante Llewelyn ainda afogueado da cavalgada.

Era um homem alto e belo, com cerca de quarenta anos, cabelos loiros cor de linho, excepto as madeixas sobre a testa, que haviam embranquecido sem nunca se haverem tornado grisalhas.

- O resto da mão-de-obra posso arranjá-la lá mesmo. Não é precisa grande habilidade para içar umas tantas pedras toscamente talhadas e pô-las no sítio. Esperava, senhor, que me confiásseis uma obra em que fosse precisa mais arte do que para redis para carneiros. Como é que o Harry vai aprender o ofício, sem prática? Ele já é demasiado avesso ao trabalho e gosta é de ir caçar com o príncipe David. Não posso culpá-lo por isso mas ele precisa de aprender, para poder ganhar a vida. Em Nanhwynain, eu sempre poderia mantê-lo mais debaixo de olho.

- Ele ainda é novo - replicou Llewelyn, estendendo indolentemente os pés para o fogo, entre os pilares centrais do salão.

O príncipe regressara da caça havia menos de uma hora, satisfeito depois daquele dia revigorante, e o calor da sala pairava sobre ele como uma nuvem pesada e suave.

- Deixai-o correr em liberdade, enquanto ainda é tempo.

- É novo, quando lhe cheira a trabalho - disse Adam, sorrindo. - Mas é o primeiro a dizer que é um homem, quando se trata de uma batalha ou de uma liça. É verdade que é corajoso, como o pai era, e mais capaz do que ele de se desenvencilhar numa refrega. O Harry não era muito hábil com as armas. Mas que coragem! Vi-o aguentar golpes de rapazes com o dobro do tamanho dele. E o filho é como ele. No outro dia, deu uma queda que deveria haver-lhe acalmado os ardores mas saiu-se dela como se houvesse sido uma simples palmada da mãe.

Com um sorriso e um suspiro, Adam sentou-se e colocou entre os joelhos as mãos, aquelas mãos que, durante trinta anos, tinham talhado pedra. Os dois Harries quase se sobrepunham nas imagens que desfilavam diante dos seus olhos e na sua voz sonhadora. Um deles agarrara-se com ambas as mãos à vida, no momento em que o outro a perdia e morria.

- Ele não vai gostar, se o levardes convosco para Nanhwynain - disse o príncipe, bocejando. - Meteu na cabeça que quer acompanhar David a Londres.

- Não lhe haveis prometido nada, pois não, senhor? - perguntou Adam, alarmado.

O príncipe era capaz de, de vez em quando, se esquivar a uma das suas obrigações para com os Ingleses, quando uma paixão nova e premente expulsava do seu espírito os acordos que com eles fizera; mas nunca faltaria à palavra dada a Harry.

- Juro que não. Mas ele é bem capaz de haver recorrido ao Owen. O David estava firmemente decidido a dizer-lhe que não mas, quando o David lhe nega alguma coisa, o Owen costuma aceder. Ele resmunga, mas o Harry fá-lo dançar ao som da sua música. Pela minha parte, fico satisfeito se o levardes convosco. Mas sois vós e a mãe dele quem deve decidir o que é melhor para ele.

- Eu penso que o melhor seria o Harry dedicar-se de vez ao seu ofício - disse Adam, num tom sombrio. - E juraria que a mãe dele pensa como eu. Sabeis, senhor, porque tanto quer ele ir à corte? Meteu naquela cabeça teimosa uma ideia louca quanto ao senhor de Parfois. Era ele quem o Harry queria apanhar, naquela emboscada no Kerry... soubemos disso por acaso, numa noite em que sonhou alto... e podeis apostar que, como falhou dessa vez, ele quer ir à corte para o encontrar.

- Isso prova que o espírito dele é leal, apesar de ser verdade que é ainda demasiado novo para tal empresa - comentou Llewelyn. - Eu nem havia pensado em tal coisa. Pensava que ele estava apenas morto de curiosidade por ver o mundo, como todos os rapazes.

- Assim sendo, com a vossa permissão, levo-o comigo para Nanhwynain e faço-o descarregar os ardores a cortar pedra. – Adam pôs-se de pé, sacudiu o pó da viagem das meias e acrescentou:

- A Gilleis vai dormir muito melhor, sabendo que ele está comigo,

do que imaginando-o em Westminster, a pavonear-se diante de Isambard, com aquela espada enorme que vós lhe destes.

- Confesso que eu também. Há muito que haveria posto o velho lobo fora do seu alcance, se Gales não me houvesse mantido tão ocupado. Mas Talvace era do sangue dele, não do meu. Por isso, não esqueçais o que vos digo: levá-lo convosco agora é apenas adiar o problema - profetizou Llewelyn, com toda a segurança. - Porque, um dia, ele há-de ir; vi isso nele há mais de um ano. Não há um de vós, que conhecestes o pai dele, Adam, que o ame mais do que esta criança, que não chegou a conhecê-lo. Ouviu-nos falar dele tantas vezes e por tanto tempo que se inspirou nele como nas santas escrituras; talvez também o haja odiado um pouco ao mesmo tempo que o amava, por ficar tão aquém de qualquer comparação... pergunto-me se haveremos feito bem em alimentar o seu afecto e a sua determinação.

- Ah, isso não lhe fez mal. Quando pensa nisso, sente-se magoado. Mas a energia dele é tanta que raramente lhe dá tempo para pensar. É tão saudável como um jovem animal e cansa-se tantas vezes como este de tanto correr. É certo que o Harry prefere trepar às pedras a cortá-las. Ah, vai haver muita discussão até ele ceder mas a mãe acabará por o chamar à razão - disse Adam, com uma expressão doce nos olhos azuis.

Em seguida, afastou-se para ir ter com a mulher.

De rosto corado e com um olhar inflamado e colérico, Gilleis ouviu o que ele tinha a dizer. No seu rosto rosa e branco, os grandes olhos pretos soltavam chispas.

- Aquele patife sonso! Não me disse nem uma palavra acerca do assunto. Suponho que só ia anunciar-me a viagem na própria manhã da partida, a contar com a promessa do príncipe. Eu não era para aí chamada! Mas o senhor Harry vai ter uma surpresa à sua espera, quando se dignar parar com a vagabundagem e voltar para casa.

Foi assim que, uma hora mais tarde, ao irromper alegremente pela casa, coberto de contusões e a arfar de cansaço, por ter estado a lutar com os companheiros, com metade de uma maçã na mão e a outra metade na boca, Harry deparou com uma recepção mais escaldante do que esperava. Rapidamente passou em revista os seus recentes pecados ocultos, que poderiam justificar a expressão irada e afrontada da mãe. Feito isto, escolheu o pior deles e ofereceu a sua contrição, como quem oferece flores.

- É por causa do cântaro grande? Eu sei, mãe, desculpa. Parti um bocado do bico. Escorregou-me da mão e bateu na beira do poço. Eu ia dizer-te mas esqueci-me.

Não era mentira e, fosse qual fosse a causa da cólera da mãe, era melhor confessar a culpa agora, porque ela ia descobrir o estrago, da próxima vez que fosse buscar água.

- O cântaro? Quem foi que falou no cântaro? É outra coisa o que quero dizer-te e o melhor é ouvires-me. Não, não me levas dessa maneira! Larga-me!

Harry já era mais alto do que ela duas ou três polegadas e suficientemente forte para a erguer no ar. Bastava-lhe abraçá-la com força e ela não conseguiria libertar-se; mas, desta vez, ela escapou-se-lhe dos braços e levantou a mão, para lhe dar uma bofetada. Harry segurou-lhe o pulso e beijou-lhe a palma da mão. Aparar os ataques dela fazia parte do jogo, apesar de estes mais parecerem patadas de um gatinho brincalhão.

- Deixa-me, Harry! É melhor que saibas que não estou a brincar. Na verdade, não parecia estar a brincar: libertou-se e enfrentou-o, com um olhar chamejante.

- Que história é essa de ires como pajem do David, na visita dele à corte do rei Henrique? Sim, meu patife, já me chegou aos ouvidos. Mas não por ti! A última pessoa a saber ia ser a tua mãe. A ideia era estar tudo arranjado, sem eu saber de nada, não era?

De súbito solene, Harry deixou cair os braços e olhou alternadamente para a mãe e para Adam.

- Eu sabia que não me deixaríeis ir - confessou, com toda a honestidade. - Esperava conseguir convencer-vos, se o príncipe consentisse. Qual é o mal? O David é o meu príncipe e meu irmão, porque não haveria eu de ir com ele? Pensai só na oportunidade! O grande triunfo do David, com toda a corte inglesa a honrá-lo, e eu não vou estar lá para ver? Oh, mãe, não ides ser assim cruel!

- E o senhor de Parfois? Qual é o papel dele nos teus planos? Ah, o senhor não sabe o que dizer! Eu não sou assim tão fácil de enganar.

Apesar de várias vezes ter achado que ela era bastante fácil de ludibriar, Harry não discutiu. A mãe ficava muito bonita zangada: parecia uma rapariguinha ruborizada mas não era altura para lhe dizer isso. Lançou um olhar suplicante a Adam, que fora muitas vezes seu aliado, quando ele precisava do apoio de um homem.

- Não vale a pena, meu amigo - disse Adam, abanando a cabeça. - Desta vez, nem mesmo o príncipe está disposto a ajudar-te a levar avante a tua vontade. Vais comigo para Nanhwynain, ajudar a construir os novos celeiros dos frades. Será esta a tua excursão de São Miguel. É melhor habituares-te à ideia.

Harry lançou-lhe um olhar furioso.

- Não vou! - exclamou, recuando um pouco para olhar bem para os dois, num desafio.

- Ai não? Isso é o que vamos ver! - replicou Gilleis, respirando fundo para recuperar a calma. - Chegou a altura de deixarmos as coisas bem claras, de uma vez por todas, Harry. Viveste a vida toda com príncipes e, embora Deus saiba que sempre lhes estive agradecida pelo bem que te faziam, isso não te ajudou nada a saber aquilo que és e qual o caminho que deves seguir. Mas tu não és príncipe nem galês e, quanto mais depressa o admitires, melhor para ti. Não te compete perder tempo com dívidas de sangue, não é dever teu vingares-te do senhor de Parfois. Esquece essas grandes ideias e dedica-te às tuas verdadeiras obrigações. Se queres honrar o teu pai, precisas de aprender a sua arte e de crescer com as suas virtudes.

- Honrar o meu pai! Enquanto o homem que o mandou para a morte continua vivo e leva uma vida tranquila? Não haveria um único homem em Gales que não me cuspisse na cara! E sois vós, minha mãe, quem me diz isso? Não haveis vós falado muitas vezes de vingança? Não amaldiçoastes tantas vezes Parfois, quando faláveis do meu pai?

- Que Deus me perdoe! - disse Gilleis, empalidecendo. Vários anos se haviam passado desde os tempos em que deixara transparecer a sua amargura diante do filho. Até onde ia a memória dele, para vir agora procurar junto dela a justificação do seu próprio ódio?

- Se o fiz, cometi um erro. A vingança pertence a Deus e não anos.

- E não poderá ser Dele e nossa? Deus não precisa de instrumentos para armar a Sua mão? Oh, minha mãe, não me retenhais. Vós não! Ele tinha vinte e nove anos e ainda muitas maravilhas para criar... vós dissestes...

- E, se te aplicasses, poderias criá-las, no lugar dele - interveio Adam. - Herdaste uma parte dos dons do teu pai. Usa-os por ele. Realiza a sua obra.

- Mas eu não sou o meu pai! Preciso de seguir o meu próprio caminho e uma das coisas a fazer é cuidar de Ralf Isambard. Se ele morrer na cama dele, eu não sou um homem nem nunca serei. A dívida é minha e não vossa. Nem vossa, minha mãe... minha! Não podeis pedir-me que a deixe por pagar.

- Há melhores maneiras de honrar a memória do teu pai - observou Adam, pacientemente. - Aprende bem a sua arte e procura ser melhor do que ele, se puderes. Se o fizeres, ele sentir-se-á mais orgulhoso de ti do que de um grande homem de armas. Nós não somos nobres, filho, para nos ocuparmos da vida e da morte. Somos artesãos. Foi apenas por acaso e por caridade real, que cresceste numa cama de príncipe. Chegou a altura de enfrentares a tua verdadeira condição.

- O meu pai nasceu nobre - protestou Harry. - Quantas vezes me dissestes isso?

- Isso e o resto. Ele abandonou a nobreza e decidiu ser artífice. É o teu próprio pai quem te aponta o caminho.

- Mas não é mister que eu faça a mesma escolha. Sou filho dele e não a sua sombra. Cuidais que não me lembro de tudo quanto me dissestes dele? O meu pai julgava e agia como um senhor, apesar de renegar o seu nascimento. Tratava a sua arte como se fosse um senhorio. E morreu por isso, pelos seus direitos e pela palavra dada. Que príncipe poderia fazer mais?

Harry gritava de fúria e andava de um lado para o outro a grandes passadas, de pernas afastadas, como se caminhasse sobre o cadáver do pai e quisesse afastá-las para estas não o desfigurarem. Adam e Gilleis trocaram um olhar de surpresa, reconhecendo honestamente a justeza dos argumentos de Harry e a sagacidade da sua análise. Parecia-lhes haver chegado a um ponto em que apenas lhe poderiam dar uma resposta que não era satisfatória para ninguém.

- Seja como for, vais fazer aquilo que te dizem - decretou Gilleis, com um olhar tão flamejante como o do filho. - E não quero mais disparates. Não vais a Londres e acabou-se. Vais com o Adam e trata de fazer de boa vontade aquilo que ele te mandar fazer. Se não, espero que ele cuide de que te arrependas.

Dito isto, Gilleis amoleceu e, com a mão a tremer, limpou uma pérola de sangue seco de um dos arranhões que Harry arranjara na sua segunda liça.

- Oh, Harry - disse ela, rindo, por entre as lágrimas que lhe queimavam os olhos. - Queres tu desafiar um homem como Isambard, quando ainda não és capaz de resistir a Meurig!

Harry afastou furiosamente a mão da mãe e correu para a porta, com os olhos toldados pelas lágrimas.

- Não vou! Não vou!

Com as suas passadas largas e cadenciadas, Adam foi atrás dele, agarrou-o pelo braço e, com a outra mão, grande a calejada, deu-lhe uma palmada ao de leve na cara e obrigou-o a voltar-se. Não valia a pena lutar; Harry ficou quieto, mantendo a sua dignidade. Adam poderia segurá-lo com uma só mão, obrigando-o a submeter-se sem qualquer esforço mas Harry não recordava uma única ocasião em toda a sua vida, em que aquelas mãos hábeis houvessem feito mais do que dar-lhe uma palmada simbólica. Tal como outrora o pai, fosse qual fosse a provocação, o Talvace filho nunca sofreria qualquer violência às mãos de Adam Boteler.

- Não vais? - perguntou Adam, bem-humorado, mantendo-o junto de si e sacudindo-o só uma vez com mais força. - Vais sim, Hal, e hás-de trabalhar, não duvides. O que farás depois disso, veremos e parece-me que haverá algumas surpresas para todos nós. Mas, por enquanto, ainda não és senhor de ti próprio e é melhor que te convenças disso.

Harry lançou-lhe um olhar breve e avaliador e desviou os olhos mas, sob as mãos de Adam, os seus músculos tensos relaxaram um pouco.

- Agora, vais inclinar-te diante da tua mãe e beijar-lhe a mão, como um bom filho, e vamos acabar com os gritos e com os: «Não vou!»

De rosto crispado, Harry aproximou-se de Gilleis mas, quando lhe tocou, abraçou-a apaixonadamente, depois do que se libertou e saiu do quarto a correr, tão zangado consigo mesmo como com ela.

Gilleis seguiu-o com os olhos, o rosto crispou-se-lhe de ansiedade e apreensão mas não disse mais nada. Só à noite, já deitada na penumbra fria de Setembro, ao lado do marido, que sabia acordado e atento, se voltou subitamente e murmurou:

- Ele vai partir, Adam. Ele vai partir. Como o Harry. Vai deixar-me e correr para defender a honra e eu não vou poder detê-lo.

- Calma! - disse Adam, estendendo o braço e puxando-a para si. - Bem sabes que não haverias sido capaz de o levar a agir de outro modo e, mesmo agora, uma parte de ti luta do lado do teu filho. Mas, pelo menos, vamos conseguir segurá-lo, até ele ser adulto. Além disso, nesta altura, Isambard terá cinquenta ou sessenta anos e pouco tempo de vida lhe restará. O tempo há-de dar conta dele e já há-de estar no túmulo, quando o Harry escapar para ajustar contas com ele.

- Estás certo - disse Gilleis febrilmente, agarrando-se a ele. - É verdade que Isambard está velho. Está velho. Oh, Adam, se eu perco o Harry!

Tal como Adam, Gilleis usava o nome para uma imagem única, que umas vezes era o pai outras vezes era o filho, mas sempre com um amor sem limites.

- Não vais perdê-lo - tranquilizou-a Adam, com a boca entre a cascata dos cabelos dela. - Não tenhas medo! Dorme, amor, e deixa de te preocupar.

Continuou abraçado a ela, até ela adormecer, o corpo delicado aninhado contra o seu coração. A fragilidade dela causava-lhe uma comoção dolorosa e as suas mãos apertadas contra ele eram um sofrimento doce; Adam sabia que o que aquelas mãos procuravam nele era ainda a imagem ténue, os traços que Harry Talvace ali deixara, a marca de anos de amor e fraternidade. Muitas vezes, nas primeiras noites do casamento de ambos, Gilleis estendia as mãos para ele, a dormir, chamando-lhe Harry. E que direito tinha ele de se ressentir desse ou de qualquer outro sinal da sua subserviência, uma vez que casara com ela para firmar a sua ligação perpétua aos dois Harries, o vivo e o morto?

Mas catorze anos é muito, muito tempo para duas pessoas, que vivem da mesma luz secreta, caminharem delicadamente lado a lado, confiando uma na outra e poupando-se mutuamente. E, agora, ao apertá-la com doçura contra o peito e ao sentir a cadência suave da respiração dela contra o pescoço, Adam sabia que havia qualquer coisa entre ambos, que era mais do que ternura e melhor do que indulgência. Sentia que era amor; por quem era algo que não procurava saber.

 

Aber: Páscoa de 1230

No início de Abril, Adam escreveu de Nanhwynain, com a caligrafia desenhada que aprendera na Abadia de Shrewsbury, muitos anos antes, e que nunca esquecera:

«Por aqui tudo vai bem e o trabalho está muito adiantado, pois as geadas acabaram cedo. As paredes estão libertas do tojo e bem tratadas e os irmãos satisfeitos com os seus celeiros; Vossa Senhoria beneficiará decerto das suas orações de gratidão. Desde que viemos para aqui, estou muito satisfeito com o rapaz. Adaptou-se bem ao trabalho neste lugar, onde não abundam as diversões. Não possui os dotes de escultor do pai mas os resultados do seu trabalho são bastante razoáveis, é dotado de bom olho para as linhas e proporções e de desejo de perfeição e, no geral, quando resolve fazer uma coisa e não está de má vontade é tão bom como os melhores aprendizes. Se Vossa Senhoria o autorizar, é minha intenção ficar aqui até depois da festa da Páscoa, caso o tempo se mantenha favorável para a construção, e já que é tanta a urgência dos irmãos em ver acrescentada a sua casa. Não me esquecerei de rezar pela saúde e prosperidade de Vossa Senhoria e de pedir as bênçãos de Deus para a união que muito em breve coroará a vossa felicidade.»

Quando faltavam apenas alguns dias para a Páscoa, Llewelyn respondeu:

«Uma vez que estais satisfeito com o Harry, como eu já sabia que aconteceria se ele assim o quisesse, julgo que ele bem merece umas férias. Deixai-o regressar a casa para as festas e ele trabalhará ainda de melhor grado quando o mandarmos de volta para aí. Lorde de Breos trocou a corte do rei pela minha para esta ocasião, pois o rei decidiu seguir para Portsmouth, de onde embarcará para França, e perguntou especificamente pelo rapaz, que é um dos seus favoritos. É, decerto, um acto cristão dar satisfação a ambos e, por isso, deixai-o vir.»

E Harry lá partiu de viagem, munido da autorização relutante de Adam e da bênção do prior. Já se resignara a passar uma Páscoa frugal com os monges e a participar diligentemente nas vigílias de Sexta-Feira Santa mas todos os pensamentos devotos levantaram voo, como pássaros assustados, quando a bem-vinda ordem do príncipe se insinuou entre eles. Ao cabo de três milhas de caminho pelo vale, enfiara já o capuz no bolso e galopava como uma criança acabada de sair da escola, cantando enquanto cavalgava. Umas férias agora, outras por ocasião do casamento de David e o Mundo a desabrochar, tão belo e variegado!

Harry só começara a descobrir-lhe as subtilezas quando principiara a esculpi-las. Fazer uma folha era, na verdade, ver uma folha pela primeira vez. Imagine-se quantas delícias não haverá Deus experimentado! E então haver criado o Homem! Uma obra como, por exemplo, lorde de Breos, tão expressivo e maravilhoso nos seus movimentos, tão admirável nas proporções e nas formas. Reviu mentalmente o movimento suave mas firme dos músculos em volta da boca graciosa, quando esta ia exibindo o seu extraordinário repertório de sorrisos, desde o quase imperceptível tremor dos lábios à explosão de riso alegre e sonora; e as pálpebras arqueadas a descobrirem, lenta e harmoniosamente, os olhos escuros, espantados, nessa primeira alvorada, sobre a erva, na margem do Mule. Uma verdadeira escultura de mestre, muito para além do seu alcance mas que, todavia, poderia também ser feita em pedra, e esta forma secundária não seria menos satisfatória. Harry começava a amar a pedra.

A cavalgada era longa, porém, e quando chegou a meio caminho de Aber os dedos de Harry haviam perdido todo o sentido da criação e não mais pensou na pedra. Havia outros modos de olhar para aquela máquina maravilhosa de carne e osso e sangue, outras formas de se comprazer com ela. Era muito melhor vê-la articulada, activa e consciente de si mesma do que imóvel e definitiva, por mais bela que fosse. Braços capazes de lutar e de abraçar, mãos capazes de empunhar armas, pernas capazes de dançar e de cingir um cavalo. Era melhor ver de Breos lançado a galope uma única vez do que fazer dez imagens de pedra, dele e do seu cavalo em movimento - era preferível ouvi-lo rir alto uma única vez do que desenhar, ainda que com perfeição, os mecanismos desse riso.

Harry chegou às portas de Aber, encantado por existir e agir e contente por haver deixado a outros o cuidado de trabalhar os materiais.

A populosa aldeia à volta do castelo vibrava de azáfama e a luz do sol tremeluzia sobre a erva das colinas, sobre as quais os fetos novos se desenrolavam, como as prodigiosas folhas recortadas esculpidas que sustentam as abóbadas das igrejas. No terreiro reinava grande azáfama, cor e movimento por todo o lado e, nas cozinhas, um verdadeiro frenesi. Os estábulos estavam a abarrotar de cavalos e viam-se novos pavilhões adossados ao pano da muralha, para albergar os cavaleiros vindos de Brecon. Desta vez, de Breos viajara com pompa e um séquito impressionante, e a sua libré luzia em toda a parte, dos canis aos prados.

Era Quinta-Feira Santa e os dois magníficos senhores, ambos morenos, regressavam da missa, lado a lado; a mão de de Breos pousava com familiaridade no ombro de Llewelyn e, atrás deles, vinha uma dúzia de membros de cada comitiva. A princesa caminhava ao lado de de Breos, silenciosa, alta e delgada, vestida de azul e branco. Parecia uma flor a desabrochar, apesar de haver criado cinco filhos e resistido a vinte e cinco anos de preocupações, intrigas e vigílias. Caminhava com os olhos fixos no horizonte, sorrindo levemente quando o veludo da sua manga roçava o brocado da dele; o orvalho e a luz da Primavera brilhavam nela como um raio de sol sobre as colinas.

O coração de Harry derreteu-se de amor ao vê-la. Desceu apressadamente da sela e correu ao encontro deles, caindo de joelhos aos pés do príncipe.

- Ah, meu pequeno arqueiro! - exclamou de Breos. - Senti a tua falta, à porta, para me receber.

Llewelyn levantou-o e beijou-o afectuosamente.

- Já não é assim tão pequeno. Este ano cresceu como um feijoeiro num Verão chuvoso e muito mais desde que o vistes pela última vez. Está quase a fazer quinze anos e, como depressa vos dareis conta, foi dotado de um vozeirão que parece o de um novilho.

No seu íntimo, de Breos sentiu um arrepio secreto correspondente ao da tensão de prazer que atravessou o corpo esbelto do jovem, quando chegou a vez de Joan o abraçar.

- A tua mãe vai ficar contente, Harry. Temos sentido a tua falta. Então, senhor, achai-lo muito mudado?

Manteve-o afastado de si, pegando-lhe pelo braço, para que o admirassem: um adolescente de quinze anos, alto e magro, que começava a adquirir as formas e as proporções de um homem adulto. Tinha pés e mãos ágeis e longos mas sentia-se ainda inseguro do seu corpo e movia-se com os movimentos bruscos, incertos e imperfeitos dos animais jovens. Acima dos olhos verdes, as sobrancelhas, pretas e horizontais, eram tão direitas como a sua boca grande e decidida. Os olhos e a boca sorriam juntos, de prazer, por aquele mês de Abril e por ser tempo de férias, por estar com pessoas que, para Harry, representavam uma grande parte da sua alegria de viver. Corava facilmente, de excitação e de prazer, não por timidez.

- Muito mais próximo daquilo que sempre quis ser - disse de Breos, lançando por cima dos ombros do jovem o braço que, com tanta graciosidade, pousara momentos antes nos ombros de Llewelyn. - Não vejo outra diferença, graças a Deus! Quando o conheci, já era homem demais para mim. E em que hás andado ocupado, Harry, durante todo este tempo desde a última vez que te vi? Trouxeste outra vez adversários vencidos, como teus prisioneiros?

- Não houve mais guerras desde o Kerry - respondeu Harry, com pragmatismo.

- O quê, nem mesmo entre senhorios?

- Não, senhor. Gwynedd já não faz incursões. Isso era noutros tempos.

- Então gostaria que dissesses isso ao meu intendente, que sofre de um estranho pesadelo: sonha que há uns galeses atrevidos que, de vez em quando, atravessam a fronteira e rapinam algumas cabeças de gado em proveito próprio. E como te vens dando com o teu trofeu de guerra? Agora, já tens comprimento de perna suficiente para ele.

- Maravilhosamente, senhor - exclamou Harry, radiante, e tomava fôlego para gabar o seu cavalo castanho, mas Joan pôs-lhe a mão no braço e recordou-lhe, docemente:

- A tua mãe espera-te, Harry.

- Vou já ter com ela, senhora. Com vossa licença, senhor! Quereis vir ter comigo às cavalariças, mais logo, e ver com os vossos próprios olhos como o hei tratado? Sou eu que o escovo e, comigo, mantém-se imóvel como uma pedra mas com os moços de estrebaria é um demónio!

- Irei de boa vontade - disse de Breos, rindo, ao ver o rapaz retirar-se de um salto, precipitando-se para ir ao encontro da mãe, para logo a seguir recuar, com certa relutância, ainda com os olhos fixos neles. Por fim, voltou-se e, com uma última inclinação da cabeça, desatou a correr em direcção aos apartamentos da princesa, onde àquela hora deveria por certo encontrar Gilleis.

Irrompeu pela sala onde a mãe se encontrava, debruçada sobre a mesa de trabalho, a cortar as mangas estreitas, de feitio complicado, do novo vestido da princesa. Harry lançou-se nos braços dela com tanta impetuosidade que pouco faltou para se ferir na tesoura comprida que a mãe empunhava. Gilleis afastou a tesoura para longe dele, largou-a sobre a mesa e abraçou-o, rindo e chorando ao mesmo tempo. O rapaz considerou merecida esta recepção e ficou apenas o tempo suficiente para despejar todas as novidades sobre si mesmo e sobre Adam, antes de voltar a sair. Dirigiu-se à despensa e convenceu as criadas a darem-lhe comida, para saciar a sua fome permanente e, a seguir, foi até às cavalariças para ver se o seu favorito estava a ser devidamente tratado. Tal como prometera, de Breos foi ter com ele e ficou encostado à ombreira da porta, a vê-lo escovar o cavalo, sem se importar com as suas vestes vermelhas e douradas.

- Mantém-lo em boa forma. Vejo que está em boas mãos. Afagou o pescoço reluzente com palmadas leves e, com as pontas dos dedos finos e sensíveis, acariciou a estrela branca sobre a testa castanho-avermelhada.

- Harry - disse, a meia voz - preciso que me faças um recado, se fizeres o favor de ser meu confidente num segredo muito especial.

- De bom-grado, senhor! - respondeu Harry, lisonjeado. - Que quereis que faça?

- Uma coisa simples e, para ti, fácil. Tenciono dar um presente ao príncipe, quando David casar com a minha filha. Queria oferecer-lhe duas boas ninhadas dos meus galgos, cinco casais que vão nascer das minhas melhores cadelas galgo escocês e cujo pai é um galgo árabe que Gloucester trouxe do Oriente. São os melhores e mais rápidos caçadores que alguma vez vi. Já os vi derrubar um cervo sozinhos. Mas sinto um desejo infantil de manter este presente em segredo e trazer para cá os cães sem ninguém saber, para fazer uma surpresa ao príncipe no dia do casamento. Isto só é possível com a ajuda da princesa.

- A princesa ajudar-vos-á com todo o prazer - disse Harry, endireitando-se por instantes para despir a cota.

Emergiu do meio das vestes, corado e despenteado, e perguntou:

- E ela sabe das vossas intenções?

- Ainda não. Como nunca a vejo sem ser na presença do príncipe, gostaria que fosses tu a dizer-lho por mim, Harry, quando estiveres a sós com ela, porque tens esse privilégio. Pede-lhe o favor de tentar arranjar um momento para que possamos falar os dois sobre o assunto e ver como havemos proceder. Se ela me avisar quando chegar o momento certo, podemos levar os cães para os canis e prepará-los para o príncipe, sem ninguém dar conta.

- Hoje mesmo falarei com ela - respondeu Harry, cheio de boa vontade. - Nunca deixo de ir dar-lhe as boas-noites, depois de ela sair do salão.

- É assim que agem os amigos devotados! Mas lembra-te: nem uma palavra, a ninguém. Nesta casa, basta um murmúrio para, no dia seguinte, todos os ajudantes de cozinha já saberem do que se trata.

- Confiai em mim! Se alguém vier a saber disto antes do dia, para além de nós três, podereis ficar outra vez com o meu Barbarossa.

- Essa é uma garantia de monta! E serás o seu mensageiro? Trar-me-ás a resposta dela? Só precisaremos de meia hora juntos para combinar tudo,

- Serei o mensageiro dela.

- Um dos cachorros da próxima ninhada será teu - prometeu de Breos, calorosamente, e estendeu uma mão imperiosa por cima do pescoço arqueado do cavalo. - Dá-me um trapo, Harry, não consigo estar aqui sem pôr as mãos em cima dele.

Acabaram de tratar do cavalo em conjunto, partilhando um grande contentamento, como dois garotos, sem se importarem com o forte odor a cavalariça que impregnava os brocados de de Breos, quando terminaram.

- Não faz mal - disse este, encolhendo os ombros com atrevimento. - A minha mulher não está cá para me repreender.

Nessa noite, no meio do brilho e do clamor do salão, de Breos sentou-se ao lado de Llewelyn e estiveram a beber e a rir os dois, juntos, tal como tinham feito tudo nesse dia: cada gesto e cada palavra um novo impulso para aquela amizade recente.

- Era capaz de dar este anel - disse de Breos - para ver o de Burgh entrar agora por aquela porta e ver-nos tão amigos.

- Duvido que essa visão lhe fosse agradável - respondeu Llewelyn.

- Mas a cara dele proporcionar-me-ia assunto para um mês! Não desejo mal ao nosso corregedor mas um revés não lhe faria dano. A nossa união será vista como uma barreira a um poder que se estava a tornar demasiado insolente, e não apenas em Gales. Não fazia parte dos meus desígnios cair nas vossas mãos e lançar esta flecha, meu senhor, mas desejo, tanto quanto vós, que ela acerte no alvo. É sem dúvida do hidromel - acrescentou de Breos, rindo, mas começo a sentir-me contente por o vosso pequeno arqueiro me haver atingido no vau do rio Mule. Por minha fé, sinto-me tão bem-disposto que começo a achar que fiz um bom negócio.

Vindo do salão, o débil som da música flutuava na escuridão e, ondulando na brisa ascendente, chegava às janelas da torre. Joan estava de costas, com os cabelos soltos sobre as costas, a ouvir os passos ligeiros em volta da cama.

- Não precisas de ficar à espera, Gilleis - disse, sem virar a cabeça. - Estou cansada e vou deitar-me cedo. Vai deitar-te também.

- Depois de tantas noites a deitar-me tarde, não vai saber-me mal ficar mais tempo na cama - concordou Gilleis, sorrindo enquanto abria a cama da princesa. - E atrevo-me a dizer que a vós tampouco, senhora. Ainda que não possa dizer que me agrade dormir sozinha. Sinto a falta do Adam, quando ele fica fora tanto tempo. E onde dormirá o príncipe esta noite? Vai ficar em Degannwy?

- Não, vai regressar a Aberconway e passar lá a noite. Tem assuntos a tratar com o prior.

Naquela noite Joan mostrava-se taciturna, a sua voz soava fria e distante. Continuava a desagradar-lhe que Llewelyn resolvesse, ao seu modo brusco, ter um gesto de ternura para com o filho mais velho, que não era filho dela. Ficava indiscutivelmente ressentida por ele roubar um dia e uma noite à festa para ir visitar Griífith, no seu retiro forçado. Não que o príncipe alguma vez houvesse vacilado na firme determinação de fazer de David o seu único sucessor. Não, era um receio mais irracional que a tornava tão implacável face ao mínimo reconhecimento daquele parentesco; medo da lei galesa, que atribuía ao bastardo direitos idênticos aos do irmão, medo da perversidade dos Galeses, que o preferiam obstinadamente, porque a mãe dele era uma senhora de Rhos e não a filha de um rei inglês, e também porque Griffith tinha o temperamento impetuoso e insubordinado como o deles e uma querela bem ao gosto galês.

- Não deveis importar-vos por ele gostar desse seu filho, tão diferente - disse Gilleis que, com a sua voz alegre e meiga, podia penetrar em terrenos proibidos às outras mulheres. - Seria uma vergonha se não quisesse bem aos que são do seu sangue. E sabeis bem que ele não é rival de David. O príncipe tomou todas as disposições para garantir que David seja o seu único herdeiro.

- Já uma vez deu Meirionydd e Ardudwy a Griffith - recordou Joan.

- E voltou a tirar-lhas rapidamente, quando descobriu que ele saqueava as suas terras como qualquer invasor estrangeiro. Não é verdade que o mandou fechar a sete chaves, mal as ameaças de Griffith contra David se tornaram mais ousadas? Sabeis que ele nunca admitirá que Gwynedd caía noutras mãos que não as de David.

Sim, Joan sabia-o. Só David, parente próximo do rei inglês e senhor indisputado de um título legitimado pelas leis inglesa e galesa, teria hipóteses de manter unido o principado e de perpetuar o que o pai começara. Mesmo que amasse de igual modo os dois meios-irmãos - e o mais velho, rebelde e desafiador, tanto atraía como repelia as amizades, devido às suas parecenças com o pai - o príncipe colocaria sempre o futuro nas mãos de David. Se outra motivação não houvesse, pensou Gilleis, enquanto observava a figura alta e esbelta com um sorriso afectuoso, em atenção à mãe, o príncipe depositaria no colo de David todas as suas conquistas, todos os seus feitos.

- Não lhe guardeis rancor por causa de um só dia, agora que David tem Gwynedd e Builth, uma noiva e tudo o mais - disse.

- Mostrei-me zangada quando o príncipe me disse que ia visitar Griffith?

- Não, graças a Deus. Desejastes-lhe uma boa viagem.

O que em si mesmo era tão digno de nota que Llewelyn não deixara de reparar. Gilleis vira o olhar rápido e penetrante que este lançara à esposa: os seus únicos trejeitos de desagrado, os seus únicos silêncios hostis, tinham sempre a ver com Griffith.

- Agora deixa-me, Gilleis. E diz ao Harry que venha já dar-me as boas-noites, pois vou dormir daqui a pouco.

Gilleis beijou-lhe a mão e a face e foi procurar Harry ao salão. Ainda era cedo e, na ausência do príncipe e da sua comitiva mais chegada, os cavaleiros de Brecon, os homens livres galeses e os homens privilegiados da guarda pessoal haviam ocupado o salão e dançavam ao som da flauta e da harpa, e das palmas. Afogueado e sem fôlego, Harry foi ter com a mãe, para ouvir o recado, num sítio onde ela conseguia fazer-se ouvir.

- Depois, podias vir dormir comigo esta noite, Hal. Se o David e o Owen foram a Aberconway com o príncipe, por que razão hás-de ficar a guardar aposentos vazios?

Mas sabia que ele não iria: prezava demasiado os seus privilégios. Gilleis suspirou, riu-se e beijou-o.

- Anda, vai lá ter com a princesa.

E atirando a capa sobre a cabeça, foi-se embora a correr pois começara a cair uma chuva miudinha, que se colava ao ar nocturno como se fosse orvalho.

Quando Harry entrou no quarto, Joan estava sentada em frente ao espelho, como tantas vezes a vira ultimamente, a olhar em silêncio para o seu próprio rosto. Pareceu-lhe que, nessa noite, o toque dela tinha uma ternura especial, e que lhe era difícil falar, embora, quando o fizesse, a voz fosse baixa e calma, como sempre fora.

- Harry, recordo-me que há uns dias me pediste uma audiência privada para o senhor de Breos, por causa daqueles seus galgos magníficos.

- Ouvi dizer que possuem todas as qualidades de que ele falou - interveio Harry, ansiosamente, pensando ter notado um leve tom irónico na voz adorada. - Ouvi outras pessoas, sem ser o próprio de Breos, falar deles. Será um presente digno de um príncipe.

- Nunca duvidei disso - respondeu ela, com uma sombra a toldar-lhe o sorriso. - Bem, ainda é cedo e a ocasião presta-se: o senhor de Breos que venha ter comigo, já que tanto insiste no segredo. Proporcionemos-lhe esse prazer infantil de fazer uma surpresa ao príncipe, se assim o quer. Vai buscá-lo e acompanha-o até aqui. Mas discretamente: lembra-te que vem tratar de um assunto secreto. Trá-lo pela passagem da armaria, ele não será capaz de descobrir esse caminho sozinho.

- O senhor de Breos ainda está no salão - disse Harry, levantando-se imediatamente. - Vou já buscá-lo.

- Deixa-o dar as boas-noites e fingir que vai para a cama, para ninguém ir depois à sua procura ou perguntar para onde se dirige. Já que o jogo é dele, é mister que o joguemos à sua maneira.

- Ele consegue sempre que as coisas joguem a seu favor - observou Harry, rindo. - Está a chover e ninguém irá sair.

- Ainda bem. Harry!

- Senhora? - perguntou, voltando-se, já com a mão estendida para a porta.

- Nem uma palavra, a ninguém. É mister que guardemos fielmente este segredo.

- Juro pela minha vida! - respondeu o rapaz com ardor, embora meio a brincar.

Harry desceu as escadas a correr, metendo-se à chuva e voltando a entrar discretamente no salão.

O tempo, a hora, a ocasião, tudo lhe era favorável. Os mais idosos já se haviam retirado e, achando que as diversões galesas exigiam demasiado da sua resistência, alguns cavaleiros haviam acabado por lhes seguir o exemplo. Os homens de armas e as criadas, os cervejeiros, os padeiros, os caçadores e os palafreneiros haviam levado consigo a música, para junto da lareira. Como tinham de se levantar e começar a trabalhar logo ao nascer do dia, não iriam por certo prolongar muito mais o serão.

Procurou de Breos, mas o senhor de Brecon não estava na mesa principal. Já desempenhara o seu papel e, na mais perfeita ignorância, retirara-se para o seu quarto. Harry foi encontrá-lo semidespido, deitado de barriga para baixo no leito coberto de peles, com o queixo apoiado nas mãos, sem conseguir adormecer e aborrecido consigo mesmo. Recebeu o rapaz alegre e ruidosamente, pegando-lhe no braço e puxando-o para si.

- Senhor, sou portador de uma mensagem para vós. Da princesa Joan.

De Breos soergueu-se de rompante, fazendo rodopiar a coberta de peles com a veemência do impulso.

- Deus te abençoe, Harry! - A luz da candeia, o seu rosto apresentava-se animado, os olhos brilhantes e solenes. - Que manda a Princesa Joan?

- Manda-me que vos acompanhe até junto dela.

- Agora? Ah, vieste mais uma vez dar-me sorte!

Leve e rápido como um gato, pôs-se de pé, alisou o cabelo preto diante do espelho e enfiou os pés nos sapatos de couro macio.

- Dá-me a minha cota, Harry! Ainda vais dar um bom pajem. Ora bem, estarei apresentável?

Estava muito mais do que isso, resplandecia na luz difusa, a sorrir, sob os olhos espantados do rapaz - que apenas uma vez, e por breves instantes, vira uma ligeira falha na sua perfeição.

- Então, vamos lá! Não devemos fazer esperar a princesa.

Saíram para a chuva miudinha, persistente, e de Breos entregou-se nas mãos do rapaz. Seguiu-o pelo percurso tortuoso por onde foi levado, por trás dos novos pavilhões, pela passagem que conduzia à armaria, mergulhada na escuridão, sem ver nada naquela noite sem lua, até chegar à torre. Durante o resto da noite, Harry continuou a sentir os dedos dormentes do aperto daquela mão comprida e forte, durante todo o tempo que o amigo caminhou, confiante, colado aos seus calcanhares.

Subiram as escadas sem ruído. Joan estava sentada numa cadeira de espaldar alto. Quando eles entraram, levantou-se e avançou alguns passos, para os receber. A longa trança do seu cabelo loiro descia-lhe até à cintura, contrastando com o azul-escuro do vestido, e o seu rosto estava pálido e luminoso.

- Senhora, eis aqui o senhor de Breos.

- Pedistes para me ver, senhor - disse ela, num murmúrio que mal se sobrepunha ao da chuva.

- Era esse o meu desejo, senhora.

- Entrai, meu primo, e sede bem-vindo.

Em tom baixo e pausado, acrescentou, dirigindo-se a Harry:

- Agora podes ir para a cama, meu filho. Boa-noite!

E deu-lhe um beijo. Nunca antes Harry sentira tanta doçura nos lábios de Joan, nem nunca o seu contacto fora tão terno e demorado.

- Boa-noite, senhora! Boa-noite, senhor!

Feitas as despedidas, deslizou pelas escadas com o coração a rebentar de orgulho e de prazer: era o confidente da sua senhora, o amigo fiel do senhor de Brecon. No salão, os archotes ainda ardiam mas a música já terminara e as chamas iam-se extinguindo uma a uma.

Debaixo de chuva, Harry correu até ao seu quarto, vazio e silencioso, mas estava demasiado excitado e desperto para conseguir deitar-se. Na ausência de Owen e David, não havia ninguém para o obrigar a fazê-lo. Atirou-se para cima da cama sem se despir e ali ficou, envolto no contentamento do seu segredo, tão feliz na sua insónia solitária que não deu pelo passar do tempo, nem pela diminuição dos ruídos à sua volta à medida que o castelo ia mergulhando no sono. Por fim, também ele adormeceu, tão suave e inocentemente como uma criança.

Foi o ladrar de um cão que o acordou: uma explosão breve e selvagem, rapidamente aplacada e logo reduzida ao silêncio. Mas, para o ouvido apurado de Harry, foi o suficiente. Levantou-se com um frémito de concentração, alarmado mas sem medo. Não sabia quanto tempo dormira e os seus sentidos sondaram a quietude e o silêncio, na expectativa da repetição do som que o despertara. Porque ladrara o cão? De noite, os cães nunca ladravam sem motivo. Se andava por ali alguém que despertara o animal, porque motivo este se calara subitamente, como se tivesse ficado satisfeito? Alguém falara com ele e o cão conhecia bem esse alguém.

Harry deslizou para fora da cama e foi até à porta, perscrutando a escuridão, para os lados da porta do castelo. Algures nessa direcção soou um rumor de vozes, baixas e rápidas, as passadas abafadas dos cascos de um cavalo sobre a terra dura, logo seguidas pelas de outras montadas. Quem conseguiria entrar em Aber pela calada da noite e fazer calar os cães com uma simples palavra?

Só havia uma resposta possível mas Harry saiu a tremer para a escuridão, para se certificar, com o coração a bater descompassadamente. O frio penetrante provocado pelo súbito despertar fazia-o tremer da cabeça aos pés. Da esquina da armaria, avistou uma lanterna junto à porta do castelo e dois guardas a segurar nas rédeas dos cavalos, que lançavam vapor pelas narinas. Viu ondular a capa do cavaleiro que vinha à frente e reconheceu as passadas longas e ligeiras, que tinham a energia das passadas de uma criança, embora pertencessem a um homem já a envelhecer. Bastaram-lhe dois passos, mesmo na escuridão; começava a nascer uma luz débil e cintilante, que suavizava o negrume, e a chuva persistente cessara.

Harry não era capaz de adivinhar a razão daquela mudança de planos, tão incaracterística, mas afinal Llewelyn desistira de passar a noite em Aberconway e regressara a casa, ao seu castelo e à sua cama.

Mesmo antes de saber porquê, Harry deu por si a correr, confuso mas determinado. Haviam-lhe confiado um segredo que deveria ser preservado. De Breos poderia já estar a dormir nos seus aposentos mas talvez não houvesse ainda decorrido muito tempo. Porque decidira o príncipe voltar para casa? Seria que acabara de tratar os assuntos com o prior mais cedo, a tempo de poder cobrir as milhas que o separavam de casa e vir descansar o resto da noite na sua cama? Se fosse muito tarde haveria pernoitado lá, como previsto. Tanto quanto Harry sabia, ainda não passara meia hora desde que levara de Breos à presença da princesa e talvez ainda não houvessem concluído os seus planos.

Na escuridão, dirigiu-se à torre real fazendo um desvio. O príncipe não podia apanhá-los desprevenidos nesta altura e estragar tudo. A velocidade com que partira da casa da guarda, era mais que certo que devia estar a dirigir-se para os seus aposentos. O príncipe podia ir a direito mas Harry precisava de ser sorrateiro e de se manter escondido. Se de Breos houvesse partido havia muito e a princesa já estivesse a dormir, não se perderia mais do que alguma energia e algum fôlego, coisas que Harry tinha de sobra, mesmo à meia-noite.

Confiante, correu pela passagem por trás da armaria e mergulhou na soleira da porta de entrada - e nos braços de Llewelyn.

Soltou um grito agudo e débil, não de medo, apenas de espanto. Agarrou-se ao corpo forte e delgado com os braços, para manter o equilíbrio, e arquejou:

- Senhor!

A exclamação saíra num soluço rouco, mais de riso que de alarme. Se lá dentro estivessem duas pessoas e precisassem de um aviso, então este alvoroço mesmo à porta seria suficiente. Só precisava de tirar dali o príncipe por alguns minutos e tudo estaria bem.

- Harry, tu aqui? - perguntou Llewelyn.

As grandes mãos do príncipe agarraram-no e empurraram-no para dentro. Atrás dele, havia três ou quatro pessoas, que Harry não foi capaz de reconhecer na escuridão. Mas nenhuma delas era David ou Owen. Porque os deixara para trás, se regressara a casa?

- Que estás a fazer levantado, a estas horas?

Pela primeira vez, Harry sentiu-se assolado por uma dúvida, indistinta mas aterradora como uma náusea. Nunca aquelas mãos o haviam agarrado daquele modo: magoavam-lhe os braços, provocando um formigueiro que descia até às pontas dos dedos. A voz, sonora e orgulhosa, que tantas vezes lhe gritara sem o atemorizar, era agora tensa, baixa é gélida. Mas Harry não se deixou atemorizar. Mentiu arrojadamente:

- Eu ouvi-vos chegar, senhor. Ouvi os cães. Não quereis vir aos canis por um instante? Fui ver a Marared e estou preocupado com ela. É a primeira ninhada e ela está inquieta e a ganir. Receio que não esteja a passar bem. Se quisésseis vir ver...

Junto à porta brilhou uma tocha, empunhada por alguém que, na sua perturbação, Harry não conseguiu identificar. Por que estariam todos tão silenciosos? Llewelyn obrigou-o a voltar-se e a encarar a luz e o rapaz viu então, em contraluz mas suficientemente nítido, o rosto de perfil de falcão que tanto amava e respeitava. Fitava-o com uma expressão terrível, sob o cenho franzido, os olhos penetrantes a sondá-lo, a boca larga fechada numa linha rígida. Com os dedos dormentes, tentou agarrar-se à manga do príncipe, sem compreender o que se passava, assustado.

- É isso que andas a fazer, a meio da noite, vestido e bem desperto? Porque me mentes? De que te servem agora as mentiras?

- Porque havia eu de mentir? A cadela está com febre, se pudésseis ir vê-la, saberíeis melhor do que eu o que é preciso fazer.

As mãos que o agarravam obrigaram-no a voltar-se e empurraram-no para a escada.

- Senhor! - implorou, com a voz transformada num lamento infantil. - Que aconteceu? Que fiz eu?

- Sim, que fizeste tu? Vem já e veremos!

Harry foi impiedosamente empurrado pelas escadas acima, a tropeçar e a ofegar, mas já em silêncio como os demais, perdido num terror tal que nem percebia bem o que estava a acontecer. O príncipe prendeu-o pelo ombro com uma mão e, com a outra, escancarou a porta do quarto.

Sobre o leito houve um súbito movimento convulsivo que, com um grito, se dividiu em dois. Os amantes, nus, soergueram-se bruscamente, separaram-se e encararam a luz das tochas com os olhos dilatados de horror.

Harry soltou uma espécie de grito mudo e ficou sem fôlego, como se houvesse sido atingido por um punho fechado, mesmo abaixo do coração. A dor, física, aterradora, toldou-lhe o olhar e enfraqueceu-lhe os ossos. As suas pernas cederam e ele caiu, como um trapo de carne, em estado de choque, aos vómitos, apertando o estômago com os punhos. Na sua agonia, gemia «Não! Não! Não!» uma vez e outra, num protesto frenético, mas faltava-lhe fôlego para conseguir gritar.

- Isto foi o que tu fizeste, Harry. Olha! Olha bem! Llewelyn agarrara-o pelos cabelos e obrigava-o a levantar a cabeça, puxando-o para a frente, até o encostar aos pés da cama. Não podia desviar a cabeça, não podia voltar a cara. Não havia, porém, nada que não houvesse já visto naquele primeiro relance, que ficara gravado nos seus olhos, estivessem eles abertos ou fechados, e que, mesmo enquanto estivesse a dormir, lhe iria causar terríveis pesadelos. Impotente, ali ficou sob a mão que o aprisionava, sentindo crescer dentro de si uma angústia sombria, cada vez mais lancinante, que o penetrava até às pontas dos dedos, até às pontas dos cabelos.

Harry havia idolatrado Joan, olhara-a como se ela fosse uma estrela no céu - e agora via apenas uma mulher dissoluta apanhada em flagrante, uma infeliz mulher, nua, aterrorizada e envergonhada, que se cobria com os cobertores para esconder os seios pálidos e gastos, descaídos sob o peso dos quarenta anos. Pela primeira vez, Harry notou as linhas em volta da boca, naquele rosto cansado e enrugado, a flacidez do pescoço descorado, o aspecto seco e sem brilho dos cabelos compridos. Era um rosto envelhecido, amarfanhado, que bem poderia ser o de um cadáver, não fora a expressão fixa e aterrada dos olhos cinzentos. A seu lado, o homem estava encolhido, tenso como um belo animal selvagem perseguido até à exaustão. A longa trança do cabelo dela caíra sobre o ombro do homem e descia-lhe pelo peito nu. Os olhos negros, muito abertos, encaravam Llewelyn, num assomo de audácia desesperada. Mas Harry viu neles o medo, tão nu como o corpo admirável. A imagem de ambos penetrou e ficou indelevelmente impressa na mente de Harry.

Joan falou, pela primeira e única vez nessa noite:

- Deixai o rapaz ir-se embora. - A sua voz era incrivelmente pesada e lenta, como se as palavras fossem pedras que mal conseguia levantar. - Ele está inocente, não sabia de nada. Não sois capaz de ver isso? Deixai-o ir!

Harry sentiu os dedos fortes que o seguravam pelos cabelos relaxarem o aperto e, momentos depois, soltarem-no. Caiu contra as saias da cama mas lá conseguiu levantar-se, com movimentos alquebrados e desajeitados, e correu como um louco para fora do quarto, aos tropeções, por entre os homens silenciosos, que se afastaram para lhe dar passagem. Os outros ouviram a correria irregular pela escada abaixo, mais rápida e impetuosa à medida que se ia afastando. Por fim, Harry mergulhou na escuridão e na quietude da noite e todos se esqueceram dele. Se alguém se lembrou dele foi a mulher, que continuava muda e queda entre os estilhaços do seu mundo despedaçado.

De Breos estendeu uma mão quase firme em direcção à sua cota.

- Não - disse Llewelyn, com aspereza. - Deixai-a onde está e levantai-vos, senhor. Quero ver que encantos oferecestes a essa mulher, a ponto de a levardes a ceder.

Sobre a face pálida, as delicadas maçãs do rosto tingiram-se de rubro. Devagar, de Breos afastou as cobertas e levantou-se da cama. Manteve-se aprumado e olhou em frente, recusando-se a admitir a vergonha, enquanto o príncipe o olhava da cabeça aos pés, e de novo nos olhos.

- Julguei que homem algum neste mundo seria capaz de fazer o que vós haveis feito, senhor. Que isso vos sirva de consolação. Nem todos os nobres ingleses conseguem um feito sem precedentes antes de morrer. Vesti-vos. Não voltareis a consegui-lo. A mim, não me deslumbrais.

De Breos envolveu-se na sua cota com as mãos a tremer de um medo renascido, um medo palpitante que recusava um tal fim. Ultrapassara a primeira morte, chamando em seu auxílio tudo quanto possuía: Brecon, Builth, Hay e todas as complexidades mul-tifacetadas da sua honra. Devia sentir-se espaldado por uma hoste dos seus homens mas sentia que estes estavam numa outra dimensão, incluindo aquele punhado que, naquele preciso momento, ressonava nos novos pavilhões de Llewelyn.

Tentou olhar para Joan mas não conseguiu suportar por muito tempo aquilo que viu. Joan não se mexera: os seus grandes olhos, cinzentos e vazios, como se fossem de vidro, fitavam Llewelyn sem mudar de expressão. Lá no fundo, porém, nascia uma centelha inquietante e de Breos teve o pressentimento de que seria melhor desviar o olhar, não ver essa centelha, evitar a todo o custo entender o seu significado.

Llewelyn voltou a cabeça para o lado e os presentes viram-lhe a boca contorcida, num esgar de terrível sofrimento.

- Pelo amor de Deus cobri-vos, senhora! - disse, em voz sufocada.

Joan arrastou-se para fora da cama, como se estivesse infinitamente cansada, e enfiou o vestido, com movimentos cegos das mãos que já nem conseguiam tremer. Não mostrava medo: o medo era agora irrelevante, depois de haver feito desabar o tecto sobre a própria cabeça. Ficou de pé, muda e imóvel, a olhar para Llewelyn. Por detrás do olhar vazio, assomava a compreensão: mais alguns instantes e esta tornar-se-ia visível.

- Sempre era verdade o que me contaram - disse Llewelyn, descobrindo o rosto orgulhoso e sombrio, que não voltaria a traí-lo.

A princípio, ri-me. Depois fiquei furioso, por me julgarem tão tolo que pudesse acreditar numa tentativa tão inábil de minar a força que nos unia. Fiz esta experiência para provar que era mentira e consegui afinal provar que era verdade. Pois bem, falai! Não haveis nada a dizer em vossa defesa?

Os lábios dela mexeram-se para dizer «Nada!» mas não se ouviu qualquer som.

- Chamai a guarda - disse Llewelyn, sem voltar a cabeça. - Ordenai-lhes que prendam e ponham a ferros todos os cavaleiros de Brecon que vieram com este criminoso e ladrão. Depois, que venham buscar estes dois.

- Senhor, os meus homens nada têm a ver com isto, sou o único responsável por este crime.

De Breos humedeceu os lábios secos com a língua, áspera como couro. Dois dos homens que permaneciam em silêncio atrás de Llewelyn voltaram-se e saíram do quarto.

- Senhor, os vossos homens vão pagar por serem companheiros de um traidor, como vós pagareis por serdes um traidor, por haverdes destruído a casa onde fostes recebido como convidado.

O rosto lívido e desfeito não podia empalidecer mais e também não havia nada capaz de fazer voltar o sangue àquelas faces.

- Não nego nenhuma das minhas faltas - disse de Breos. - Assumo todas as culpas daquilo que fiz e peço-vos que a considereis tão atraiçoada como vós. O que aconteceu foi obra minha, fui eu que planeei tudo e que consegui seduzi-la. Peço-vos a clemência de me deixardes defender-me pela espada.

- Não ousaria pedir nem mesmo ao mais humilde dos meus guardas para vos defrontar. Haveis-vos colocado para lá da clemência dos homens de honra. Respondereis perante a lei, como os demais criminosos.

- Seja! - respondeu de Breos, endireitando as costas. - Porém, deixai que vos diga, senhor, que não me arrependo do que fiz. Nunca, custe o que custar! Tudo quanto possuo nada vale, se comparado com o amor que me foi concedido pela vossa senhora e com aquele que lhe dedico. Fazei de mim o que quiserdes mas sabei que a amei, que a amo e continuarei a amá-la até ao último dia da minha vida.

Estas palavras foram dirigidas a Joan mas ela não as ouvira e recusava-se a olhá-lo. Era o único, o derradeiro conforto que ele poderia receber, no abismo da sua desventura, e Joan recusava-se a conceder-lho. Fitava Llewelyn e avaliava os estragos que provocara: no fundo dos seus olhos, a luz ardente transformara-se numa angústia de tal clareza que iluminava, aos olhos dele, a perdição eterna de ambos. Sob aquela luz, tinha por fim uma visão fria e nítida: todas as provas estavam reunidas, todas as peças encaixavam. Durante a sua breve relação, não houvera um só momento em que ela não se houvesse sentido capaz de sacrificar de Breos e o muito que lhe queria para afastar uma simples ruga da testa de Llewelyn.

Joan nem sempre tivera consciência disto, mas sabia-o agora; no rosto do marido, era possível medir e ler tudo o que havia perdido, tudo o que havia posto em perigo, quebrado e destruído. Joan rasgaria de bom-grado o seu coração e o do amante para poder voltar atrás.

Nas escadas do piso inferior soaram passos, pesados e hesitantes. Uma dúzia de homens armados entrou no quarto, evitando fazer ruído com as armas ou barulho com os pés, assombrados com a catástrofe inimaginável que se abatera sobre Aber. Com uma suavidade implacável, seguraram de Breos e olharam para Llewelyn, à espera de ordens, hesitando em tocar em Joan. Ela fora, durante tanto tempo, carne dessa carne principesca, agora ultrajada, que ao subjugá-la quase lhes parecia estar a atacar a soberania de Gwynedd e a blasfemar contra as regras e contra Deus.

- Levai-os - ordenou Llewelyn.

De Breos não ofereceu resistência quando o levaram até à porta. Passou junto de Joan, olhando com ardor para o seu semblante impassível: ela desviou a cabeça para evitar que, mesmo por um segundo, ele a impedisse de ver o rosto de Llewelyn.

- Se ao menos soubésseis, senhor... - disse de Breos, com um sorriso crispado. - A vossa dívida para comigo acaba de ser Paga...

Harry passou a noite enroscado debaixo das cobertas da sua cama solitária, tenso e dorido pela insónia, torcendo-se numa confusão de dor que não o deixava descansar um só instante. Mesmo ali, a escuridão não era suficiente, mesmo ali não se sentia em segurança, pois quando o dia nascesse teria de se levantar e encarar a luz, que estava à espera dele para o atacar. Esfregou os olhos com os punhos fechados mas não conseguia apagar o que vira. Aquela recordação devorava-lhe o cérebro como uma corrosão insuportável, impossível de debelar. Com a cara enterrada na almofada, soluçou sem alcançar o alívio de verter uma lágrima, enroscou-se sobre o fardo do amor - e do ódio e da vergonha e da raiva - como um animal selvagem ferido de morte.

Fora vilmente traído, a sua adoração e a sua confiança haviam sido usadas por eles para conseguirem os seus fins odiosos. Pior: haviam-no levado a trair o seu príncipe e pai adoptivo. Quem iria acreditar que agira em total inocência? E, ainda que todos acreditassem, em que é que isso o ajudava? Haver sido um instrumento cego e crédulo era quase pior do que ser um traidor. Como pudera Joan fazer semelhante coisa? Como pudera destruir a imagem que Harry construíra, a imagem imaculada sobre a qual não podia haver dúvidas? Desconfiar da princesa? Questionar as suas escolhas? Haveria sido o mesmo que duvidar da integridade do próprio Deus! Em toda a sua vida de majestade, ela nunca deixara de ser íntegra e incorruptível.

Mais profundo do que a ferida infligida no seu orgulho - que ainda assim lhe cortava o coração - mais profundo do que a perda da honra e o abalo da sua fé, fora o golpe desferido no seu amor por ela, ainda não totalmente compreendido mas que experimentava com todas as fibras da carne e do espírito.

Fora pelo menos isto o que sentira no início daquela noite interminável. Mas, quando esta chegou ao fim, quando a luz começou a infiltrar-se pelas dobras das cobertas e a ferir-lhe a sensibilidade em carne viva, como golpes de faca, a desonra assumira o primeiro lugar no catálogo dos seus martírios. Custasse o que custasse, precisava de se redimir aos olhos do príncipe, precisava de justificar os seus actos, por mais insensatos, por mais infantis e crédulos que houvessem sido, e de recuperar a confiança que até então merecera. Não pretendia evitar a acusação - era o primeiro a acusar-se - nem o castigo, se fosse julgado merecedor de castigo maior do que aquele que já estava a sofrer. Mas não conseguiria suportar ser tomado por um vil traidor; uma tal afronta ao seu amor-próprio era intolerável.

A tremer, arrastou-se para fora da cama, arranjou-se e foi tentar pedir uma audiência a Llewelyn. A sua determinação era tão forte que conseguiu passar pelos guardas postados junto à escada privativa e encontrava-se já no meio do grupo agitado de dignitários que enchiam a antecâmara quando o camareiro reparou nele e o deteve, puxando-lhe por um braço.

- Deixai-me ir ter com ele - protestou Harry, furioso. - Sempre tive livre acesso à sua presença, não podeis impedir-me de entrar.

- Hoje, não. E, se fosses sensato, não havias de querer entrar. Vai e deixa o príncipe em paz. Isto não é lugar para ti - disse o camareiro, aborrecido, empurrando-o porta fora.

Harry voltou a entrar, mais discretamente e, sem que ninguém o visse, deslizou encostado à parede até ao canto mais escuro, com o ouvido atento aos murmúrios assustados dos homens presentes na sala. Parecia que David e Owen haviam sido deixados em Aberconway e ainda não sabiam daquela desgraça. Tudo fora feito de propósito para poupar David ao horror de ver a mãe caída em desgraça e para ter o irmão ao seu lado, a apoiá-lo, caso a notícia se espalhasse e o alcançasse. Harry ficou com as orelhas a arder de indignação, ao ouvir mencionar o seu nome. O papel que desempenhara era conhecido mas, pelas palavras soltas que ouviu, não conseguiu perceber qual o julgamento que dele faziam. Os homens falavam das consequências políticas da catástrofe, do casamento ameaçado de David, da sombra do rei Henrique pairando como um escudo sobre a cabeça do seu importante vassalo, da hipótese de uma guerra, da notícia que se espalhava velozmente pelo País de Gales, e dos velhos inimigos do clã de Breos que se haviam lançado alegremente a galope, em direcção a Aber. William teria de se despojar de muito mais do que um castelo para conseguir salvar-se desta embrulhada, diziam.

Harry esgueirou-se até à porta interior e estava a encolher-se atrás dela quando Ednyfed Fychan, de semblante carregado, saiu para despachar um mensageiro. Antes que alguém lhe pudesse deitar a mão para o segurar, o rapaz passara pelo vulto lento do juiz da corte e estava diante de Llewelyn, lançando-se de joelhos aos pés do príncipe.

- Fazei-me justiça, senhor! Deixai-me falar! Castigai-me como vos aprouver, mas não me julgueis um traidor!

O príncipe baixou os olhos para Harry - uns olhos encovados, a arder no rosto cadavérico, que a raiva e o desgosto faziam parecer o rosto de alguém prestes a morrer de fome. Propositadamente, nessa manhã, arranjara-se e vestira-se com esmero: a barba sedosa, que lhe rodeava os lábios e contornava os ossos fortes do maxilar, estava bem aparada e o cabelo escuro e ondulado cuidadosamente penteado. Até o aceno da mão dirigido a Ednyfed, quando o senescal voltou a entrar nos aposentos, foi comedido e controlado, aparentemente desapaixonado. Todavia, todos sentiram as convulsões titânicas do fogo reprimido e deram um prudente passo atrás, mantendo-se afastados do seu raio de alcance.

- Ponde-o daqui para fora - ordenou Llewelyn.

- Não devias estar aqui, rapaz - disse Ednyfed, aborrecido, mas sem severidade. - Ouviste o que disse Sua Graça. Sai!

Ao lado de Ednyfed encontravam-se três pessoas: o capelão, o juiz e o chefe da guarda pessoal, o conselho superior do tribunal de Llewelyn. Todos olharam para aquele rapaz de olhos desvairados e, com um franzir de cenho, indicaram-lhe que saísse, mas ele ignorou o aviso. Assim que Ednyfed, cuja paciência se esgotara, lhe pegou no braço, Harry lançou-se para a frente num gesto desesperado e agarrou-se aos joelhos de Llewelyn.

- Fazei-me justiça, senhor! Juro que não vos traí, não sou um miserável como julgais, eu não sabia...

A cadeira do príncipe produziu um ruído agudo sobre as tábuas do soalho, quando este a empurrou para trás com brusquidão, para se colocar fora do alcance de Harry.

- Disse-te que te fosses embora. Será preciso repetir as minhas ordens? Sai imediatamente!

O capitão da guarda levantou-se e agarrou Harry pelo outro braço mas o rapaz debateu-se até se soltar e seguiu Llewelyn, de joelhos, soluçando intensamente.

- Se não acreditais em mim, matai-me, senhor! Não posso aceitar que me julgueis um traidor e não me levantarei até que me ouçais! Não sabia que eles... que ela... Ambos me mentiram!

Os olhos profundos, que a recordação daquela longa noite afundara nas órbitas, fulminaram-no como um raio. Llewelyn cerrou o punho e recuou o braço; e viu o rosto exaltado e angustiado do rapaz estremecer de apreensão e empalidecer, mantendo a sua posição, à espera do golpe. Levantou-se da cadeira de um salto e aproximou-se da parede coberta ao lado da estreita janela, agarrando com força a tapeçaria até sentir passar-lhe o ímpeto assassino.

E tudo por causa da honra nascente, insignificante, desta criança, que não devia doer-lhe mais do que uma dor de dentes, enquanto o mundo que outros haviam levado uma vida inteira a construir se desmoronava à sua volta e as fibras dos seus corações eram cortadas uma a uma! Havia de chegar o dia em que justiça lhe seria feita como queria, o dia em que ele seria reconfortado, mas não agora: Harry era a lembrança viva de uma dor e de uma perda insuportáveis, era-lhe impossível olhar para ele ou falar-lhe sem sentir repulsa.

- Levai-o - disse Llewelyn, em voz rouca, sem voltar a cabeça - antes que eu me esqueça de quem ele é filho e lhe bata. Por Deus, ele envergonha a memória do pai!

O punho nunca poderia ter desferido um golpe tão mortífero. Pela segunda vez, Harry encolheu-se, atordoado, com os olhos a turvarem-se e as forças a abandoná-lo, sentindo a pesada angústia do desespero a invadi-lo, quente e avassaladora como chumbo derretido. Incapaz de falar ou opor resistência, foi posto fora sem brutalidade e ouviu fechar-se a porta atrás de si. Em todo o caso, não havia nada mais a fazer, nada mais a perguntar. Já ouvira o pior que podia ouvir.

Quando conseguiu que as pernas dormentes lhe obedecessem, refugiou-se no canto mais escondido dos canis e escondeu-se na palha, para debater consigo mesmo as consequências daquela rejeição tão absoluta.

Estava desacreditado e desonrado, proscrito para sempre das mercês do príncipe. Perdera a sua dignidade, mesmo aos seus próprios olhos. Envergonhara a memória do pai! Isto exasperou-o e amargurou-o ao ponto de todo o seu sangue Talvace se erguer para o acusar. Podia nunca mais voltar a redimir-se aos olhos do príncipe mas, se quisesse continuar a viver consigo mesmo, precisava de fazer algo de prodigioso para se redimir aos seus próprios olhos e lavar tamanha afronta. Só havia uma maneira de provar ao mundo até que ponto respeitava a memória de seu pai e até que ponto era digno de a preservar.

Não podia ficar ali por mais tempo: Aber expulsara-o. Afinal, Harry já era um homem: seu pai tinha a mesma idade quando fugira de casa para salvar o irmão adoptivo. Era tempo de assumir a luta de seu pai, que havia tanto tempo o esperava, o desafiava e o censurava. Veriam como não envergonhava a sua memória!

A dor e o desespero provocaram-lhe um acesso de energia furiosa, que não lhe permitia estar quieto nem por um instante e que o levou de volta ao seu quarto vazio, para ir buscar a capa e o pouco dinheiro que possuía, e a seguir até às cavalariças, para selar Barbarossa, com mãos trementes e apressadas. Se interrompesse aquela actividade febril, cairia de imediato num pranto incontrolável; mas, se se forçasse a continuar em movimento, conseguiria manter a dignidade e lançar-se no caminho da expiação e da reparação. Não se despediria de ninguém. Era melhor não pensar na mãe, tão delicada, bonita e adorada, nem em Owen, nem em David.

Lembrar-se de David, que cavalgava a caminho de Aber, numa feliz ignorância da calamidade que o aguardava, era-lhe insuportável. Como último recurso, dedicou-se às últimas pequenas dificuldades - as correias dos arreios que resistiam sob as suas mãos, uma fivela partida, um nó na crina vermelha - para aliviar o fardo da ira e do desgosto que sentia.

As suas armas resumiam-se a uma adaga, mas teria de se contentar com ela. Não podia levar a espada: era de Llewelyn e não tocaria em nada que pertencesse ao príncipe que o condenara e o expulsara. Por instantes, apoiou o rosto no pescoço reluzente de Barbarossa e soluçou alto. Pelo menos o cavalo era seu, ganhara-o lealmente e não precisava de o deixar para trás.

Na porta do castelo, não o mandaram parar. Sempre tivera liberdade para entrar e sair quando queria e, nesse dia, havia coisas mais urgentes para fazer em Aber do que levar Harry de volta a casa, se este tentasse escapar.

Gilleis estava com Joan na prisão onde esta havia sido encerrada: era a única pessoa que lá deixavam entrar. Como poderia abandonar aquela presença silenciosa e apática e preocupar-se com as idas e vindas do seu próprio filho, antes de conseguir ao menos arrancar um som, uma palavra, à sua senhora e amiga, algo que demonstrasse que ainda havia nela um espírito consciente? Além do mais, Gilleis só soube o resto da história daquela noite terrível ao meio-dia do dia seguinte, quando a deixaram sair do quarto guardado para se lançar nos braços ansiosos de Owen, que a esperava nas escadas do salão.

Owen deixara David a sós com o pai havia menos de dez minutos e sabia a história toda. Abraçou Gilleis como se ela fosse a sua própria mãe:

- Onde está o Harry? - perguntou, ansioso.

Havia suficientes cabeças pensantes em Aber a debruçar-se sobre os assuntos de Estado mas apenas um homem tivera tempo para pensar no rapaz.

- Não sei. Estive toda a manhã com a princesa. Deus nos acuda, Owen, já nem sei o que faço, nem em quem devo acreditar. Se ao menos ela falasse!

Reparou na perturbação e na ternura especial espelhadas no rosto de Owen e soube que lhe eram dirigidos.

- Que se passa? Que aconteceu ao Harry? Que tem ele a ver com tudo isto?

Owen contou-lhe o que sabia: foi o suficiente.

- Deus do Céu! - exclamou Gilleis, apavorada. - Fui eu mesma quem lhe levou a mensagem dela, ontem à noite. O que a terá levado a enganá-lo de forma tão cruel? E como puderam pensar que ele seria conivente?

- Então, então, ninguém acredita que o Harry soubesse o que estava a fazer. Nem mesmo o príncipe. E a nossa senhora não permitiria de modo algum que o acusassem injustamente. E de Breos tampouco, se fosse esse o caso. Seja lá o que for, não é um homem tão vil que fizesse sofrer o rapaz.

- Mas foi ele o instrumento! - disse Gilleis, desesperada. - Meu Deus, vai ficar com o coração despedaçado. É preciso avisar o Adam e fazê-lo regressar a casa.

- Assim faremos - respondeu Owen. - Primeiro, é preciso encontrar o Harry. Não ficarei sossegado até o encontrarmos.

Procuraram nos canis, nos estábulos, em todos os cantos do castelo, mas não conseguiram descobri-lo. O rapaz de sentinela à porta do castelo admitiu haver visto Harry sair a cavalo, de manhã, mas afiançou que este não poderia haver-se afastado muito. Owen, menos confiante, pegou num cavalo e vasculhou todos os esconderijos dos rapazes que havia em Aber: a oficina de ferreiro perto da água, o moinho e as margens da represa, os trilhos íngremes que levavam às veredas do planalto. Mas em lado algum se avistava o cavalo vermelho escuro de Harry sobre a erva primaveril, verde pálida, das colinas. Há-de voltar para casa ao anoitecer, disse Owen a Gilleis, com mais confiança do que na verdade sentia. A fome e a escuridão hão-de trazê-lo de volta, para perdoar e ser perdoado. Porém, a noite desceu sobre os pântanos salobros e sobre os campos rasos de Aber e Harry não voltou.

 

Aber: Maio de 1230

Os dois casebres situavam-se num sulco de terreno, ao lado de uma fonte, várias milhas para além dos redis mais altos que abrigavam os rebanhos de Llewelyn. De um lado e do outro, estendiam-se os planaltos verde cinza, cobertos de ervas ásperas, cuja continuidade era quebrada por afloramentos rochosos e pelas manchas acastanhadas das turfeiras. Mas, naquele mundo desolado, a pequena ondulação do solo onde ficavam os casebres estava protegida dos ventos e voltada para o Sol.

A cela do Santo Clydog era uma simples cabana de estacas, barro e turfa, com uma porta ogival voltada para Oriente, para a Terra Santa. A de Madonna Benedetta tinha uma sólida forma Quadrangular em pedra talhada, com duas janelas voltadas para k e uma escultura sobre o lintel da porta. Fora Adam Boteler que a construíra, depois de ela haver decidido retirar-se para uma vida de eremita, e era também ele quem cuidava das reparações. Tinha um quarto e uma sala de fora, e John o Frecheiro, que ia envelhecendo ao serviço de Madonna Benedetta, dormia ante da porta dela, durante a noite, e, durante o dia, pescava e cozinhava.

Benedetta mandara-o embora várias vezes, declarando que, ao seu serviço, ele era e sempre fora um homem livre e que era impróprio de uma eremita ter um criado. Mas John recusava-se a partir e apelava a Santo Clydog, como sempre fazia, quando queria que ela cedesse em qualquer discussão. O Santo Clydog era rabugento por natureza e, em qualquer disputa, tomava sistematicamente o partido oposto ao de uma mulher. Além disso, decretara sem apelo que era obrigação de um eremita dispor de um criado para lhe fazer os recados, uma vez que um eremita não pode abandonar a sua cela e que a clarividência que o seu estado de graça especial lhe confere poderia, a qualquer momento, requerer que fossem enviados avisos ou exortações a pessoas que, em muitos casos, viviam bem longe.

Em tempos, o velho eremita tivera um servo para esse fim mas o pobre rapaz cansara-se de tanto correr ao sabor dos assuntos sobrenaturais do seu amo e, um dia, cansado daquela vida, continuara a correr até encontrar outro serviço; qual teria sido esse serviço fora coisa que os dons de clarividência do Santo Clydog nunca haviam sido capazes de esclarecer. Desde então, o eremita reclamava uma pequena parte do tempo de John o Frecheiro, moderando as suas exigências para dar prioridade a Benedetta. De um modo geral, sentia-se melhor assim: teria precisado de todo o tempo que lhe restava de vida nesta terra para se habituar a um novo rosto.

Estavam ambos sentados no exterior batido pelo sol brilhante daquele primeiro dia de Maio: o Santo Clydog voltado para Oriente, passando as contas do rosário entre as mãos unidas no bolso do hábito, e Benedetta voltada para o sol, a bordar um pano de altar para a igreja dos monges de Beddgelert. Muitas vezes, sentavam-se ali tardes inteiras, sem dizer palavra; conheciam-se havia muito tempo e o silêncio não era um entrave à comunhão entre ambos.

- Há dez dias que estais sempre a olhar para o caminho de Aber - disse abruptamente o santo. - E eu sei porquê.

- Não duvido - concordou Benedetta, enfiando a agulha. O sol obrigava-a a semicerrar os olhos mas nem isso a fazia

voltar o rosto. O sol era um amigo e compatriota que só raramente a visitava, naquele clima brumoso do Norte, e o seu calor era como se fosse a saudação de uma voz italiana numa terra estranha, onde os pastores rudes que lhe traziam o leite e o pão tinham nomes tão difíceis de pronunciar que ela levara anos a aprender a dizê-los; por seu turno, estes evitavam dizer o dela, chamando-lhe simplesmente «a mulher santa».

- Lembro-me de, ao fim de uma semana na vossa companhia, haver dito que não havia santo mais conhecedor das coisas do mundo. Continuo a dizer o mesmo mas também não há santo mais indiscreto.

- Isso é porque é mister estar sempre ocupado com os assuntos de Deus, mesmo em vosso nome - respondeu o santo Clydog, sem perder a compostura. - Estais ansiosa porque o vosso filho não veio visitar-vos pela Páscoa.

- Ele não é meu filho - replicou calmamente Benedetta.

- Em espírito, ele é filho de muitos pais, um dos quais sois vós. Receais que algo o haja impedido de vir.

Benedetta não respondeu e continuou a bordar. Em cerca de quinze anos, havia bordado jardas de panos de linho semelhantes àquele, ela que antes nunca dera um ponto num vestido e que, mesmo hoje, não o faria de bom-grado, se não fosse esse o preço a pagar pela vida que escolhera. Em paralelo com a tranquilidade e a segurança da sua vocação, aceitara de boa vontade a imobilidade e a monotonia e, também, a obrigação de aperfeiçoar aquela aborrecida arte. Quando se firma um contrato com Deus, não podemos regatear.

- Já perguntei muitas vezes a mim próprio quantos dias mais se passarão até fazerdes as malas e irdes em busca de novas dele, se ele continuar sem aparecer - prosseguiu o santo, lançando-lhe um penetrante olhar de relance, sob as sobrancelhas brancas e fartas.

- O meu lugar é aqui. Não há nenhum outro. Será que vos hei parecido assim tão impaciente, desde que escolhi esta vida?

- Não haveis tomado votos. E eu sempre pensei que não iríeis passar a vida toda aqui. Vós, com a vossa cara de santa e os vossos cabelos de demónio.

- Que sabeis vós dos meus cabelos de demónio? Benedetta conservava sempre os cabelos ocultos por uma coifa

branca e, agora, quando os soltava sobre os ombros, no segredo do seu quarto, a cor escarlate apresentava-se semeada de fios prateados e a textura um pouco seca e áspera, como se, dentro dela, a seiva houvesse atingido o Outono ainda antes de o Verão acabar.

- Cabelos de demónio, cabelos de Judas, na cabeça mais leal que jamais se dedicou a pensar nos outros - respondeu o velho, encolerizado. - Os desígnios de Deus são insondáveis.

- Sempre soube que líeis em mim - disse Benedetta, com serenidade. - Culpais-me por haver feito um acordo com Deus?

- Não vejo em vós qualquer pecado. A mulher, tal como o homem, deve agir o melhor que puder segundo as circunstâncias. Quanto à validade da vossa santidade é a Deus que cabe julgá-la e não a mim. E Ele assim fará, quando chegar a altura.

- Porque vos preocupais então com a constância da minha vocação?

Num súbito acesso de simplicidade, desarmante e atordoadora como a de uma criança, Santo Clydog respondeu:

- Não posso sentir desgosto à ideia de vos perder?

E, sem lhe dar tempo de reagir, acrescentou, no seu habitual tom rezingão:

- Olhai para o caminho agora. Como poderá ser que, ao fim de todos estes anos passados ao meu lado, não sejais ainda possuidora do sentido do tempo e dos acontecimentos?

Benedetta olhou e viu dois cavaleiros, que galopavam sobre a faixa de pedra cinzenta que era o caminho de Aber. Poisou o trabalho no colo e ficou tensa, a vê-los aproximar-se; e, quando eles ainda pouco mais eram do que pontos coloridos e móveis, na paisagem monótona, disse sem hesitar:

- Não é o Harry.

- Há outros homens neste mundo.

Ela observou-os fixamente, até os dois cavaleiros se aproximarem o suficiente para ser possível reconhecê-los. O que vinha à frente, um homem alto, sólido e louro, era Adam Boteler; o segundo, moreno e jovem, era Owen ap Ivor. Quando se aproximaram ainda mais, Benedetta viu que a expressão de ambos era grave, apercebeu-se da sua pressa e foi ao seu encontro, deixando cair o bordado.

- Que vos traz aqui, Adam? Há dias que estou à espera do Harry. Ele está doente?

Adam, que começara a desmontar, deteve-se. Já obtivera a resposta à pergunta que lhe ia fazer.

- Então, ele não esteve aqui. Não veio cá depois da Páscoa? Adam tirou o chapéu, por deferência para com o Santo Clydog

e inclinou-se para beijar a mão de Benedetta. Conhecera-a antes de ela encontrar o pai de Harry e lhe entregar o coração para sempre; uma vez beneficiara mesmo dos seus favores mas, agora, ambos tinham a sensação de que isso acontecera a duas outras pessoas, mortas havia muito.

- Esperávamos que nos désseis notícias dele mas é mais uma esperança que se desfaz. Suponho que então não sabeis o que aconteceu, aquando das festividades em Aber. Deus sabe que não houve tempo para fazer visitas.

- Não sei de nada. Ninguém veio aqui antes de vós. Que aconteceu?

A inquietação fê-la baixar a voz e o seu corpo ficou maravilhosamente imóvel. Ergueu para Adam os seus olhos grandes e afastados, que conservavam a pureza e a intensidade da cor, um cinzento tão rico e denso como o tom púrpura de que a íris se tingia no escuro. O seu rosto, de ossatura larga e boca de expressão resoluta e provocante, continuava a parecer feito para frequentar cortes e parques, e não celas de eremitérios; apesar de o velho eremita dizer que ela tinha cara de santa. Mas quem poderia saber com exactidão o que entendia o Santo Clydog por santidade?

- Foi uma história triste, em toda a consciência. O Owen pode contá-la melhor, pois esteve mais próximo da tempestade do que eu.

- Não suficientemente próximo para ser de alguma utilidade - disse Owen, em tom sombrio, ao mesmo tempo que desmontava para apresentar as suas saudações. - Nem para o príncipe, nem para o Harry. Em resumo, a princesa foi surpreendida na cama, com William de Breos. E, sem haver cometido nenhuma falta, o Harry viu-se envolvido nesta triste história, da qual saiu com alguma culpa e um enorme desgosto. Depois, fugiu para sarar as feridas e não conseguimos encontrá-lo.

- Que dizeis?! - exclamou Benedetta, perplexa, procurando recuperar a serenidade, perante a conclusão que se impunha. - Sou demasiado velha para choques como este.

- Receio haver sido demasiado brusco - admitiu Owen, envergonhado. - Mas, nos últimos dias, eu e o Adam havemos feito tudo tão depressa, à procura dele, que perdi o hábito de agir com calma.

- A princesa e de Breos! Sentai-vos aqui e contai-me tudo. Acabaremos por poupar tempo.

Chamou Owen para junto de si e, uma vez sentado, este narrou de bom-grado a lamentável história, libertando o espírito de pormenores que o envenenavam havia vários dias. Adam deitara-se no chão, junto dele, com um ar cansado e, de vez em quando, acrescentava uma ou outra palavra, numa voz arrastada. Sem se mexer e com as mãos paradas sobre as contas do seu rosário e os olhos fixos no céu, a Oriente, o Santo Clydog escutava em silêncio.

- Só Deus ou o diabo sabe que alquimia utilizou de Breos para conquistar a princesa. Se não me houvesse sido contado por quem foi, eu nunca acreditaria. E só Deus sabe quem foi que soprou nos ouvidos do príncipe mas há por certo alguma malícia em tudo isto. Há quem tenha boas razões para querer evitar a todo o custo a aliança com Brecon: de Burgh, em Inglaterra, e também Griffith, em Degannwy, se por acaso lhe foi parar às mãos uma arma tão fatal. Quanto a culpar o Harry por confiar neles, é conversa de tolos, porque, a sangue-frio, ninguém o julga culpado. E ninguém pode fazê-lo, porque qualquer de nós haveria acreditado na palavra da princesa e cumprido a sua ordem sem fazer perguntas. Seria o mesmo que suspeitar que, por empunhar uma espada, era desígnio da mão direita do príncipe atentar contra a sua vida.

- Mas foi isso que aconteceu - observou Adam, em tom sombrio. - A princesa está encarcerada, o David dividido entre os dois e o Harry desaparecido. Quem me dera havê-lo retido junto a mim, em Nanhwynain, onde estaria a salvo. Mas que podia eu fazer, se o príncipe o mandou chamar?

- Desde então que o Adam anda em busca dele sem cessar e que eu passo todo o tempo que posso roubar ao serviço do príncipe ou à companhia de David a ver se o encontro. E nem uma palavra acerca dele em lado algum. Onde poderá ele haver ido? Todos os seus amigos estão aqui.

- Talvez não fossem os amigos quem ele procurava - disse Benedetta, de sobrolho franzido e o queixo entre as mãos, como se falasse consigo mesma.

- A verdade é que os amigos lhe causaram dor suficiente para o levar a fugir - admitiu Adam. - Mas penso que nem mesmo de Breos desejava fazer-lhe mal.

- O que eu queria dizer era outra coisa - prosseguiu Benedetta. - Imaginem o peso do fardo do qual o Harry, com aquela idade e aquele temperamento arrebatado, precisa de libertar o coração. Será junto dos amigos que ele quererá libertar-se? Se bem o conheço, ele há-de preferir um inimigo com quem lutar a um amigo que o conforte. Se fosse apenas desgosto o que sentia, seríeis vós, Adam, quem ele procuraria, ou correria para a mãe, mas nunca o faria se se sentisse em desgraça. Nesse caso, iria em busca de alguém a quem pudesse fazer pagar bem cara essa desgraça, para depois a poder apagar. O príncipe recusou-se a ouvi-lo, não foi o que dissestes?

- Lembrai-vos de que o príncipe estava sob forte pressão - argumentou Owen, corando pelo pai adoptivo. - A ferida ainda estava fresca e Deus sabe que não há homem que haja recebido golpe mais duro e menos merecido. Sem contar que Gwynedd, a herança de David, a que ele dedicou toda a sua vida, estava ameaçada. Haver-vos-íeis apercebido da dor do Harry, se vos encontrásseis esmagada por tamanho desgosto pessoal? Ademais, não é esta a única nem a melhor desculpa do príncipe por haver mandado embora o Harry, pois se o fez foi para bem do próprio Harry. Inocente ou não, o Harry foi o instrumento de toda esta lamentável trapalhada e o príncipe não estava em condições de olhar para ele e de lhe falar com justiça. E ele não queria ser injusto. Dou-vos a minha palavra que, à noite, quando o pior estava já passado, o príncipe mandou chamar o Harry e ficou tão desolado como todos nós, quando soube que ele desaparecera. A partir de então, deu-me homens e autorização para o procurar e haveria feito muito mais, se o equilíbrio entre a guerra e a paz não continuasse a pesar sobre os seus ombros. Os nossos príncipes galeses, que acorreram a Aber, como cães que farejavam o cheiro do sangue, só queriam forçar-lhe a mão e, Deus é testemunha de que lha forçaram. Agora, ainda que desejasse recuar, ainda que pensasse que isso era mais sensato, o príncipe não poderia fazê-lo. Nem mesmo ele.

- Nunca me ocorreu culpá-lo - replicou Benedetta, calmamente. - O mundo desabou-lhe de repente sobre os ombros e não é de espantar que não haja prestado atenção ao desgosto do rapaz. E o Harry não conseguirá ver mais nada senão esse desgosto, pelo menos enquanto a dor não abrandar um pouco. Penso que foi a afronta à sua honra que o atingiu mais duramente e que mais precisão há de ser aplacada. E o demónio soprou ao ouvido do príncipe palavras que seria melhor calar, se houvesse tempo para pensar, antes de as dizer. Essa menção ao pai do Harry... fizestes bem em perguntar a Ednyfed quais haviam sido as palavras exactas... pois receio que elas sejam mais importantes do que Llewelyn desejava ou imaginava. «Ele manchou a memória do pai.» Foi mais do que suficiente para levar o Harry a agir.

Adam soergue-se bruscamente sobre a erva.

- Pensais que ele as entendeu como uma acusação por não haver cumprido o seu dever de filho? Que ele foi salvar a honra, afrontando Isambard? Não me havia lembrado disso. Toda esta terrível história afastou-me essa ideia do espírito; mas, no Outono passado, o Harry andou outra vez a falar de vingança e ficou muito zangado por não o havermos deixado acompanhar o David à corte do rei, onde ele esperava poder avaliar o senhor de Parfois. Podeis muito bem estar certa!

- E para onde a memória do pai o chama. O desafio que o espera desde que nasceu. Se o que ele queria era um feito para lançar à cara de todos quantos duvidaram dele, foi para lá que ele foi. Para vos mostrar que não desonra a sua linhagem.

Adam ergueu-se como que impulsionado por uma mola.

- Vou largar tudo e parto amanhã para os lados do Severn. Se estais certa, ele deve parar em Strata Marcella e pode ser que ainda o apanhemos.

Adam não acrescentou: «O pai dele está lá enterrado.» Mas Benedetta adivinhou-lhe o pensamento. Harry só poderia depositar o desgosto e a raiva no altar do túmulo de seu pai. Era ali que ele se dirigiria primeiro.

- Acompanhar-vos-ia de bom-grado, mas ainda não posso ir para tão longe de Aber - disse Owen, em tom desolado, levantando-se também. - O príncipe mandar-me-ia ir, mas o David... não pode passar sem mim, no estado em que está. Não me agrada, todavia, a ideia de irdes sozinho.

- Levai convosco John o Frecheiro - sugeriu Benedetta. - Ele há-de gostar de ir e já não receia deixar-me sozinha. Vou chamá-lo e pedir-lhe que vos acompanhe.

Benedetta correu para a porta e chamou John, que preparava o fogo na chaminé, na previsão do frio da noite. John apareceu à porta, a limpar as mãos à cota curta de tecido grosseiro; era um homem rústico e sólido como um carvalho, já entrado nos anos, de pernas ligeiramente abauladas, que caminhava em passadas tranquilas. Bastava a simples menção de Parfois ou de Isambard para reacender nos olhos de John a antiga chama selvagem: tinha duas velhas contas ainda por ajustar com o senhor de Parfois, uma em nome próprio e outra, mais mortal, em nome de Benedetta.

- Se haveis mister de um companheiro de viagem, mestre Boteler, aqui haveis um. A minha senhora não terá grande precisão de mim durante algum tempo. Aqui, está em segurança e poderá passar sem mim.

- Então vem e crê que és bem-vindo - disse Adam. - Se o Harry estiver lá, nós encontrá-lo-emos. Vem até Aber esta noite e, de madrugada, teremos tudo pronto para partir.

Quando os dois visitantes se afastaram, mais contentes por terem descoberto mais um lugar possível onde procurar, Benedetta seguiu-os com os olhos durante muito tempo; o seu rosto estremecia, como um lago agitado pelo vento vindo do mar. Voltou a pegar no bordado e sentou-se ao lado do eremita silencioso; mas a luz do dia já não era suficiente para dar pontos minúsculos. Voltou a poisar o trabalho e ficou imóvel, a sua quietude habitual perturbada pela indecisão.

- O que me espanta é não escutardes o vosso coração e não irdes com eles - observou o Santo Clydog, fazendo uma pausa nas suas orações, que em geral rezava com gravidade e concentração. - E se o rapaz foi meter a cabeça na boca do lobo? Contentar-vos-eis em ficar aqui, a rezar por ele?

- Quem falou em contentamento? - perguntou ela, numa voz que, tal como o seu rosto, denunciava alvoroço e tentação. - Eu pago as minhas dívidas e honro os meus compromissos. Que vos importa se me sinto contente?

- Podeis perguntar o mesmo a Deus - replicou o Santo Clydog. - Ou cuidais que Ele também não se importa?

A noite, Benedetta deixou a porta aberta para a noite estrelada, a fim de ter pelo menos a sensação de que a proximidade do eremita povoava a solidão, na ausência de John; e, rompendo o silêncio, ouviu o ritmo monótono da voz do velho eremita, que rezava em voz baixa diante do crucifixo, sob o tecto inclinado da sua pequena cela.

- É tarde, meu amigo - disse Benedetta, do limiar da sua porta. - Não ides dormir?

- Esta noite não - respondeu o Santo Clydog, deslocando de um joelho para outro o peso do corpo. - Preciso de ficar de vigília com um moribundo.

 

Tiraram de Breos da prisão a meio da manhã, à hora em que havia mais luz e à vista de toda a gente, para tornar mais enfática a afirmação do poder e da audácia do príncipe de Aberffraw e senhor de Snowdon e conferir um carácter mais deliberado ao seu desafio a todas as autoridades dissidentes. Nada foi feito em segredo nem à pressa. De Breos fora condenado pelo tribunal da corte. O seu fim foi presenciado por mais de oitocentas pessoas, entre as quais os cavaleiros do seu séquito, cujo cativeiro terminaria quando terminasse o espectáculo a que assistiam; era preciso que regressassem e fizessem um relato fiel do que acontecera.

Llewelyn traçara o seu caminho em linha recta, até onde o conduzira a dor e a cólera. Não aplicar a justiça absoluta havê-lo-ia deixado exposto à suspeita de fraqueza e timidez, iria encorajar investidas dos ingleses e confundiria os seus próprios vassalos, que haviam acorrido de Snowdon a Aber; como corvos atraídos pela morte. Quando alcançou a paz de espírito suficiente para poder encarar a hipótese de um acto de piedade, era demasiado tarde para pensar nisso; não que Llewelyn houvesse ponderado essa hipótese por muito tempo. Aliás, tal solução só podia ser encarada segundo um ponto de vista superficial. Mais valia, de longe e em todos os aspectos, manter-se firme nos seus direitos de homem e de soberano e, de uma vez por todas, provar aos olhos de toda a gente e perante a Inglaterra, esses mesmos direitos, que no entanto ninguém ousaria negar-lhe.

E foi assim que a história terminou, naquela manhã melancólica do segundo dia de Maio, no terreno sobranceiro aos pântanos salgados, com as gaivotas a gritar sobre as águas e o vento forte que agitava o estreito a atirar as nuvens para o pedaço de céu por cima do cadafalso. Entre algumas abertas de sol, caía uma chuva leve e perversa. A escada luzia e, no exterior do círculo formado pelos homens de armas, a relva espezinhada não se distinguia da lama escorregadia.

Os galeses livres, que haviam percorrido muitas milhas para ver morrer de Breos, soltaram um suspiro de contentamento, quando o viram aparecer, a cavalo entre os seus guardas, no caminho de Aber; diante deles encontrava-se o descendente odiado de uma família odiada, no qual, no íntimo, nunca haviam visto um aliado. Vinha de cabeça descoberta, com as mãos desamarradas, mas era um dos guardas que conduzia o seu cavalo, não fosse dar-se o caso de, na derradeira hora, lhe ocorrer lançar-se numa vã tentativa de fuga. Vestia com esmero e elegância e aparentava uma calma remota, quase ausente. Havia vários dias que sabia que ia morrer e que vivia em tão grande intimidade com esse pensamento que se habituara a ele, com uma espécie de atordoamento progressivo que, no entanto, nunca se aproximara da resignação. William de Breos não sabia como alcançar a resignação mas conseguira atingir a exaustão. Tinha trinta anos e, mesmo nesta dura prova, mesmo mortalmente pálido e macilento, continuava a ser um regalo para os olhos. Não eram poucas as mulheres que se apiedavam dele.

Ao chegar junto da escada, olhou para trás, na direcção de Aber, e viu as nuvens que rolavam sobre Moei Wnion e a linha longa e escura do pano da muralha, que se esbatia, lá em baixo, na fissura do vale do rio. Destacando-se acima da muralha, viu a silhueta curva da torre real, mas o local do seu triunfo breve e da sua queda eterna não se revestia agora de qualquer significado, porque Joan já não estava lá. Estava algures, na estreita galeria de celas, longe dos olhares, enclausurada com as suas recordações, nas quais não havia lugar para ele.

Ninguém ficara a ganhar. Apenas uma perda irremediável e insuportável; e, para si, a morte ignominiosa de um ladrão e de um hóspede traidor, apanhado em flagrante.

De Breos subiu a escada, com passos cansados mas firmes, pois sabia que não havia outra saída. Aqueles irredutíveis homens dos clãs, que murmuravam entre si e clamavam pelo seu sangue, não sabiam que todas as suas dívidas haviam sido pagas. Aquilo que lhe iam tirar era bem pouco, porque ele já fora despojado de tudo. Quem haveria de pensar que um jogo, iniciado com tanta ligeireza, iria ter um fim tão terrível?

Ao contacto das mãos do carrasco, inclinou docilmente a cabeça, sem mesmo se dar conta do que fazia: todos os seus sentidos estavam concentrados no local onde Joan se encontrava; e, graças a Deus, os seus olhos estavam cheios de lágrimas no momento em que a escada foi brutalmente retirada.

- Porquê ele? - disse Joan. - Porquê ele e não eu? Será que fui menos culpada? Poderei sentir-me grata por a minha vida haver sido poupada, se fui condenada a carregar comigo o fardo da sua morte? A escuridão era quase total, na cela onde se encontrava detida; ela preferia assim. As duas velas delgadas eram tudo quanto podia suportar e, nem mesmo àquela pálida luz, era capaz de encarar o próprio rosto. Mas, pelo menos acabara por falar, umas vezes com ironia, outras com sentido prático, por vezes pronunciando palavras amargas e apaixonadas, como agora, mas sempre calmamente. A primeira vez que quebrara o silêncio fora para afirmar a total inocência de Harry quanto à cumplicidade no seu crime e para ditar toda a história do modo como ele fora usado. E isso era uma coisa que Gilleis nunca iria esquecer. Todo o rancor corrosivo que, ao mesmo tempo que a lamentava, abrigava dentro de si contra a sua senhora diluiu-se na tinta que serviu para inocentar o seu filho. Harry andava perdido, mas não estava desonrado.

- Fomos dois a fazer o voto de morrermos juntos - disse a princesa. - Mas um iludiu o voto e sobreviveu e, agora, a morte do outro pesará para sempre na sua alma. E o pior, Gilleis, é estar feliz por viver assim, olhar para trás e ver como era pequeno e frágil aquilo em que jogámos a nossa vida. É essa a ofensa mais cruel.

- Então porquê? - perguntou Gilleis, sem soltar a escova que tinha na mão. - Ah, quantas vezes desejei fazer-vos esta pergunta! Que havia nele, por bem-parecido que fosse, para provocar em vós tamanha atracção? Porquê tamanha perda para todos nós... porquê?

- Será que eu própria o sei? Tudo aconteceu por si mesmo, como um fado, um acto de Deus. De Breos chegou num momento que lhe era propício e em que eu não dispunha de meios para o pôr à distância. Não fui capaz de resistir. Será que eu própria o sei?

Com quarenta anos já feitos, Joan chegara à etapa de viragem onde o Inverno inicia o seu longo declínio e William de Breos, dez anos mais novo, belo e alegre, parecera-lhe uma espécie de perpetuação mágica da Primavera que a abandonava para sempre. Um ano mais tarde e ele nada teria significado: ela haveria já firmado os pés no caminho descendente e estaria absorvida pela colheita. Um ano mais cedo e ela não haveria sentido necessidade dele, nem caído no erro doloroso de acreditar que a beleza e a juventude podem prolongar-se para além do seu período de graça temporária e enganosa. Mas ele aparecera no momento adequado para preencher o instante de desespero e insegurança com o fascínio mágico do seu riso. E morrera por causa disso.

- Só quando já não havia escolha percebi que houvera possibilidade de escolha e que eu havia feito a escolha errada - prosseguiu a princesa. - Para todos nós. Percebi que o pecado mais terrível havia sido o meu e não o dele. Que dizem agora de mim? Que dizem agora da justiça de Llewelyn? Que ele ousou castigar o vassalo do rei Henrique, mas não ousou tocar na irmã do rei Henrique?

- Não - replicou Gilleis. - Ninguém diz que ele não ousou. Nem mesmo os ingleses.

- Que dizem então? Como explicam que eu esteja viva?

- Ninguém tem precisão de explicar.

Valeria mais dizê-lo ou calar-se? Num caso ou no outro, o resultado seria sempre dor: uma dor aguda ou uma dor surda.

- Nesta terra, todos sabem quanto ele vos ama - acabou por dizer Gilleis.

- Amou - corrigiu Joan, aceitando a dor sem vacilar.

Do começo ao fim, não fizera mais do que lamentar-se, mas o desastre que se abatera sobre ela era obra sua.

- Eu sei o que perdi e o valor daquilo que lhe roubei. É tarde demais para o lamentar mas, pelo menos, não o fiz perder mais do que o preciso. Por favor, Gilleis, é mister que sejais os meus olhos e os meus ouvidos, agora que eu estou surda e mergulhada na escuridão.

Até então, não fizera perguntas mas havia coisas que tinha de saber. Já sabia, o que não era pouco, para que areias movediças lançara Llewelyn. Uma pálida sombra do antigo fogo a brilhar-lhe nos olhos, pela primeira vez desde a sua queda, Joan levantou-se com esforço.

- O meu irmão partiu para França?

- Partiu sim, senhora. A frota saiu de Portsmouth no primeiro dia de Maio.

- Ele soube o que aconteceu, antes de partir?

- Diz-se que a nova chegou até ele dez dias antes. Pelo menos, deu ordens sobre a tutela do feudo do senhor de Breos antes do fim de Abril.

- Mas não questionou a condenação que pesava sobre ele. Joan absteve-se de acrescentar: «E sobre mim!» Mas os seus

lábios contraíram-se num sorriso sem alegria. Afinal, conhecia o irmão: não iria ser a preocupação com ela que o levaria a agir contra Llewelyn, como chegara a recear. Talvez houvesse sido ingenuidade sua imaginar que, apenas para tomar a defesa de uma meia-irmã em apuros e de um senhor das Marcas demasiado impetuoso, ele iria diferir o sonho tantas vezes adiado de invadir a França e, qual imperador guerreiro, percorrer triunfalmente o Poitou e o Anjou. A lealdade nunca atrapalhara Henrique. E os seus afectos eram sempre caprichosos.

Por certo que, durante algumas horas, vociferara e invectivara os pobres oficiais que o rodeavam, embora mais por haver visto ferida a dignidade própria e pelo carácter sagrado de todas as coisas que eram suas do que pelo que dizia respeito à liberdade de William ou à vida de William. Depois, entregara o assunto nas mãos de outra pessoa - muito provavelmente Ralph Neville, uma vez que, apesar de renitente, de Burgh iria acompanhá-lo até à Bretanha - e voltara a concentrar a sua atenção nos gloriosos brinquedos que eram os navios, os motores, os homens e os seus sonhos de reconquista.

O fraco brilho que animava os olhos de Joan acendeu-se mais um pouco, animado por uma paixão que vinha do mais profundo do seu ser.

- E que aconteceu depois? Houve alguma troca de cartas entre o príncipe e a coroa?

- O príncipe escreveu ao chanceler e recebeu uma carta em resposta. Não sei o que ele escreveu, mas parece-me que Ednyfed estava bastante satisfeito. E os ingleses não fizeram nada. Mostram-se até muito discretos. Já passaram cinco dias e continua tudo calmo.

Cinco dias desde que o pobre corpo mutilado fora apeado do cadafalso e enterrado sem honras. Toda aquela energia, toda aquela arrogância, toda aquela alegria conspurcadas e destruídas. E o mundo ficara mais pobre por isso. Nunca houvera verdadeira maldade em William de Breos. A malícia que emanava dele era um dom natural, para o mal e para o bem. Mas parecia que ninguém se preparava para o vingar. Henrique, que se encontrava na Bretanha, podia não saber ainda que o seu vassalo fora morto; mas o chanceler Neville sabia e respondera à notificação brutal em termos aparentemente corteses e prudentes. O que era uma indicação clara de qual o lado para onde pendia a balança.

Segundo parecia, os factos eram demasiado claros para serem discutidos. A ousadia da justiça do príncipe talvez houvesse pasmado e alarmado todo o reino de Inglaterra mas ninguém podia negar que era justiça. Portanto, também não iriam fazer nada por ela. Se aceitavam sem protestos a morte de William de Breos, dificilmente poderiam acusar Llewelyn pelo castigo que lhe aplicara a ela.

O alívio que sentiu fez Joan respirar melhor e, dentro de si, aquele primeiro e ténue raio de calor atenuou um pouco o frio de pedra. Se havia alguém capaz de se sair bem de um tal desafio ao poder de Inglaterra, esse alguém era Llewelyn, com a sua firmeza férrea e as suas tiradas directas como flechas; e a recente e assustadora memória do Kerry ainda reverberava como um eco das suas palavras. No coração de Joan, o calor transformou-se numa dor lenta e incisiva: Llewelyn já não precisava dela e podia muito bem jogar a partida sem ela. Todavia, foi com reconhecimento que acolheu aquela dor.

- Ele escreveu à viúva?

Uma morte era uma morte, mas um casamento era um casamento e os assuntos sólidos não podiam depender dos desgostos pessoais.

- Sim - respondeu Gilleis, com tristeza, pensando nas quatro jovens que haviam ficado sem pai. - E ao irmão dela, o conde Marshall, sob cuja tutela irão por certo ficar as meninas e os senhorios.

- Sabeis o que foi que ele lhes escreveu?

- Só sei aquilo que se diz na corte. Dizem que o príncipe lhes explicou que a ofensa e o castigo eram um assunto que apenas dizia respeito a ele e ao senhor de Breos, e que se encontrava resolvido. Também disse que não guarda qualquer rancor contra a casa de Breos e que, pelo seu lado, continua a desejar que o casamento de David se faça segundo o contratado.

Parecia justo. Seria isso mesmo que ela lhe aconselharia, quer a pobre mulher de Brecon, duplamente ferida pela morte do esposo e pela infidelidade deste, aceitasse ou recusasse a proposta. Quanto mais terrível é o que está em jogo e mais perigosa a aposta que nele se faz, mais inflexível e audaciosa deve ser a posição que se assume. Nem um passo atrás, nem um olhar para o lado.

- E ouvi dizer que o príncipe tenciona enviar um mensageiro ao chanceler para reclamar oficialmente o castelo de Builth, como parte do dote da donzela.

Joan sorriu; foi um sorriso pálido e fugaz, mas foi um sorriso. O instinto de Llewelyn era sempre infalível. Aos pagamentos que ele exigia nada podia ser abatido, tal como nada faltava nas dívidas que ele saldava. E Llewelyn pagara, e continuava a pagar, um preço bem mais longo do que a breve e terrível agonia às mãos do carrasco.

- Eles já responderam?

- Ainda não houve tempo, senhora.

- Eles vão negociar com o príncipe - disse Joan, com convicção. - E ele vai ganhar o jogo. - Dividida entre o desejo e o medo de fazer a pergunta seguinte, hesitou por breves instantes mas acabou por se decidir e, em voz baixa e pouco firme, disse: - Como está ele? Está bem?

O som das suas próprias palavras fê-la estremecer, perante o peso da mutilação irremediável que a afectava e a certeza quanto à que afligia Llewelyn. Gilleis desviou o olhar e procurou em vão uma mentira piedosa.

- Não, não respondais! - disse Joan. - Eu sei a resposta. Que Deus me acuda!

A tremer, esforçando-se por afastar de si o terrível remorso, a princesa aconchegou o brial sobre os ombros. Não era possível desfazer o que estava feito. Não era possível voltar atrás.

- Já tivestes notícias do Adam?

- Ainda não - respondeu Gilleis em voz baixa, com os lábios trémulos. - Ainda só partiram há seis dias. É muito cedo.

- Muito me espanta serdes capaz de não me odiar - observou Joan. - Sois sempre tão boa.

De súbito, a sua cara contorceu-se, numa convulsão de dor incontrolável, que a fez baixar a cabeça e cobrir os olhos com as mãos magras e pálidas.

- Oh, Gilleis - murmurou, por trás dos dedos rígidos. - Se, ao menos, eu pudesse reparar esse erro! De todas as traições que cometi contra a minha vontade, aquela de que mais me arrependo é do mal que fiz ao Harry. Oh, Gilleis, trair uma criança e, para mais, uma criança que me amava e confiava em mim...

Gilleis estendeu os braços e puxou a cabeça loira contra o peito, afirmando, por entre as lágrimas, que Harry ia voltar, que, Adam e John iriam encontrá-lo e trazê-lo para casa.

- Ele há-de voltar e não vos guardará rancor para sempre. Tudo passa e também isto há-de passar.

Que mais podia prometer-lhe? Não podia mentir.

- Ah, não vos atormenteis! Quando voltar de França, o rei Henrique irá por certo interceder por vós e sereis liberta deste triste lugar.

- Liberta? - perguntou Joan, soltando-se bruscamente dos braços que a rodeavam e erguendo o rosto marcado pelo espanto, pelo escárnio e pelo desespero. - Que posso eu fazer com a libertação? No seu castelo ou numa das suas prisões, a minha casa é onde Llewelyn estiver.

 

Parfois, Maio de 1230

O crepúsculo caíra já quando, cansado e a sonhar com uma bela cama, Harry franqueou as portas de Strata Marcella. A bruma cobria os terrenos alagadiços que ladeavam o Severn e, sobre a crista negra de Long Mountain, do lado inglês do rio, flutuava uma lua vaporosa. Ia ter de esperar pela manhã para conseguir distinguir outra coisa que não fosse aquele dorso sombrio de lagarto, recortado contra o céu e a bruma azulada que pairava a meia altura.

Ali ninguém o conhecia e Harry não fazia a mínima tenção de usar o seu verdadeiro nome, que, em quase todo o Norte do País de Gales, o identificaria como filho adoptivo do príncipe de Aberftraw.

Junto ao portão, desmontou do cavalo sem aparato, descobriu a cabeça perante o frade que saiu ao seu encontro e, com a devida humildade, pediu guarida por uma noite. Mostraram-lhe onde ficavam os estábulos e, uma vez ali chegado, como todo o bom viajante, ocupou-se da montada, antes mesmo de pensar no próprio conforto. A luz da lanterna suspensa no pátio da estrebaria, dois servos ostentando as armas facilmente reconhecíveis do conde Ranulf de Chester preparavam os cavalos, assobiando.

Instintivamente, com o coração a bater com mais força, Harry recuou para uma zona menos iluminada. O velho Ranulf conhecia-o desde que ele era criança e, quando visitava Aber, costumava levar-lhe pequenos presentes: um jovem falcão ainda coberto de penugem, saído das suas gaiolas privadas, ou uma lança finamente trabalhada. Se visse o filhote de Llewelyn a vagabundear sozinho por aquelas paragens, tão longe de casa, o mais certo seria querer aprofundar o assunto e acabar por o levar de volta a Aber por uma orelha.

Mas era demasiado tarde para recuar. Não havia melhor maneira de chamar as atenções sobre si mesmo do que sair dali, a toda a pressa, àquela hora da noite. Por isso, continuou a alimentar e a cuidar de Barbarossa, evitando que a luz lhe incidisse no rosto e, só no momento em que tentava reunir coragem para entrar na sala dos comuns, se deu conta de que os seus receios eram infundados. O conde Ranulf não podia encontrar-se ali, em Strata Marcella: encontrava-se bem longe, na Bretanha ou no Poitou, com a hoste do rei.

Claro que eram muitos os homens do conde que conheciam bem o filho adoptivo de Llewelyn mas, com eles, o perigo de ser arrastado para casa, como uma criança fugitiva, era menos grave. Contudo, eles podiam levar a notícia até Chester, que depois a transmitiria a Aber. Portanto, mais valia manter-se longe da vista deles e evitar que ouvissem a sua voz.

Harry entrou discretamente na sala e foi sentar-se entre os viajantes mais humildes, no canto reservado a bufarinheiros e servos artífices. Os palafreneiros do conde Ranulf estavam na mesa mais alta, a uma boa distância. A eles haviam-se juntado três outros homens com as mesmas armas mas, por sorte, Harry não conhecia nenhum deles, o que queria dizer que eles também não o conheciam.

Na mesa principal, as vozes subiam de tom. A certa altura, Harry ouviu o nome da princesa Joan e o seu coração revoltou-se, sob a lâmina aguçada e cruel da memória.

- A princesa de Gwynedd? - dizia acaloradamente um peregrino galês. -Ah, deixa-te disso, homem! O mundo está cheio de linguarudos capazes de evocar o nome da Santa Virgem em vão, se isso servir os seus propósitos. Mas isso será razão para os encorajares? Nós, em Gales, conhecemos a princesa. Disso podes ter tu a certeza. Quem inventou essa história acerca dela bem pode engoli-la sozinho. Aqui, não há ninguém que a engula.

Arrastado pela indignação que sentia, o peregrino elevara a voz e captara a atenção de todos os que se encontravam na sala.

- Poupa a tua cólera, amigo - aconselhou um dos homens de Chester. - Há um mês, eu haveria dito a mesma coisa sem pensar duas vezes e ainda o diria, se, infelizmente, não soubesse o que aconteceu. A história já correu toda a Inglaterra e todo o País de Gales. Por onde hás andado que não ouviste nada?

- Eu ainda fiz melhor que tu, quando a notícia chegou a Chester - acrescentou o seu companheiro, em tom sombrio. - Desatei a rir.

- O príncipe também se riu, quando lhe foram assoprar aos ouvidos. Mas, agora, já não sente vontade de rir.

De mansinho, Harry levantou-se da mesa, afastou-se e enrolou-se no manto, no canto mais escuro da sala. A mágoa, que o vento frio de Maio e as bem-vindas dores que lhe afligiam o corpo haviam conseguido afastar, voltara com a mesma força, apertando-lhe de tal modo a garganta que mal era capaz de respirar. A imagem que conservava gravada na memória ressurgira com uma clareza insuportável.

Numa voz lenta e solene, o peregrino perguntou:

- Não é uma impostura?

- Não. É mesmo verdade.

- Que Deus tenha piedade de nós! - bradou o galês. - E que aconteceu à princesa?

- Está prisioneira, em Aber. O príncipe recusa-se a falar com ela e nem quer ouvir o seu nome.

- E o senhor de Brecon?

O palafreneiro mais novo passou um nó imaginário à volta do pescoço e imitou o terrível esgar de agonia de um enforcado.

- Enforcado?! - exclamou um dos artífices. - William de Breos foi enforcado? O nobre mais poderoso das Marcas? Santo Deus! Ele não ia atrever-se a tanto! Nem mesmo Llewelyn!

Morto! Harry não pensara na morte. Previra tudo: prisão, reparações, longas batalhas legais de um lado e do outro da fronteira, bispos a correr de lá para cá, emissários do rei galopando para acalmar e pacificar as relações. Mas não imaginara aquela simplicidade extrema, a execução directa e sem retorno. Agoniado e em estado de choque, encolheu-se no seu canto.

- Deus sabe que ele ousou. Já está feito. Foi ontem de manhã e a notícia chegou a Chester ao cair da noite. De Breos está morto e enterrado. Cabe agora aos oficiais do rei agir como melhor entenderem.

- Enforcá-lo assim, sem esperar mais! Um senhor tão poderoso! Como um vulgar ladrão ou assassino.

Harry já vira homens serem enforcados: dois bandidos de estrada que haviam atacado os peregrinos que se dirigiam a Bed-dgelert, roubando e matando três ou quatro, antes de serem apanhados. Ficara abalado e cheio de náuseas, perante a visão dos corpos suspensos que se contorciam, da luta tenaz por uma última lufada de ar. Todos lhe haviam dito que aquele era o castigo que os malfeitores mereciam e ele concordara que assim era, mas o facto não o fizera sentir-se melhor.

- Deus tenha piedade da sua alma! - disse o peregrino, numa atitude bastante generosa para um galês, que se sentia afrontado na pessoa do seu príncipe.

A sua prece foi acolhida com um murmúrio, meio respeitoso, meio reticente:

- Ámen!

Morto e enterrado. O belo corpo atlético que caminhava com tanta energia e que montava tão bem a cavalo. O riso estrangulado na garganta redonda e tisnada, as pálpebras descidas para sempre sobre os olhos risonhos e arrogantes. Era certo que apenas recebera o castigo que merecia. Descera à categoria do mais vil dos ladrões, violara as leis da hospitalidade, traíra a sua amizade. Todavia, como haviam eles podido fazer-lhe tal coisa? Como podiam haver decidido destruir uma criatura tão viva e tão bela?

- Estás muito calado, jovem - comentou um dos bufari-nheiros, deslizando pelo banco encostado à parede, para se aproximar, e inclinando-se, para o observar melhor.

Os olhos estreitos e sagazes do homem detectaram de imediato o seu desejo de passar despercebido. Harry julgara-se suficientemente neutro e vulgar para não se fazer notado mas, de súbito, sentiu-se dolorosamente consciente do punho de prata da sua adaga, da modesta pregadeira de ouro que lhe prendia o manto e, até, do tecido de boa qualidade e do corte elegante da sua cota e das suas meias. A voz insinuante perguntou delicadamente:

- Andas à procura de trabalho para estes lados? Eu conheço muitos mestres de Pool que estão dispostos a contratar jovens com talento. Talvez possa dar-lhes uma palavra em teu favor.

- Pensei em tentar a sorte mais a Sul - respondeu Harry, apalpando com cautela a bolsa contra a coxa, a coberto das pregas do manto.

Manter a voz firme e o espírito alerta era um grande esforço.

- Talvez para os lados de Hereford - acrescentou. - A menos que haja por aqui um patrono que precise dos serviços de um aprendiz de pedreiro.

- Hão-de querer saber como foi que deixaste o teu antigo mestre - disse o bufarinheiro, arreganhando os dentes quebrados, num sorriso que se tornava mais insinuante à medida que se aproximava mais.

O homem estava do lado oposto ao da bolsa mas, pelo sim pelo não, Harry não afastou a mão do dinheiro. O grupo que estivera sentado na mesa principal dispersara, os homens que dele faziam parte preparavam-se para se deitar e a maior parte das tochas fora apagada.

- Fui aprendiz de um bom mestre, nos últimos três anos, mas ele morreu há um mês e não deixou ninguém que o substituísse. Não há nada para eu aprender em Pool. Em Hereford, talvez arranje trabalho nas obras da catedral. Mas gostava mais de trabalhar para um patrono laico, se encontrasse algum. Ouvi dizer que o senhor de Parfois, do outro lado do Severn, tem pedreiros próprios a trabalhar Para si. Valerá a pena ir até lá?

O cansaço e a angústia provocavam-lhe dor de cabeça, mas o Melhor era saber o que queria junto de um informador voluntário, embora fosse bem pouca a franqueza e a confiança que estava disposto a dar em troca.

- Por certo que não vais querer como patrono alguém como lorde Isambard. Deus sabe, rapaz, que é um senhor bem cruel. É melhor vires comigo para Pool, amanhã. Arranjo-te lugar junto de um mestre canteiro que saiba do ofício e trate bem os seus homens.

«E se eu fosse contigo», pensou Harry, orgulhoso por a fadiga e o abatimento não lhe haverem feito perder a perspicácia, «iam dar comigo numa valeta qualquer, sem um centavo, com a cabeça partida, vestido só com a camisa e as meias... se me deixasses ficar com elas.»

- Obrigado pela oferta - disse Harry. - Foi muito amável da vossa parte, mas vou tentar a sorte em Parfois antes de ir mais longe.

- Não vale a pena, rapaz. Lorde Isambard está fora de Inglaterra, com todos os seus cavaleiros. E até o seu mestre canteiro está fora, a trabalhar na demolição do castelo de Erington.

Fora dito com demasiada segurança para ser mentira e Harry deveria ter pensado nessa possibilidade. O rei convocara todos os cavaleiros de Inglaterra para a hoste que o acompanharia na expedição a França. Onde mais poderia estar o senhor de Parfois? Apesar disso, a notícia deixou Harry desconcertado. A ausência do seu inimigo fora um golpe que não previra.

Que ia ser agora da sua promessa de limpar a honra? Era impossível calcular quanto tempo iria o exército ficar em França. Ouvira Llewelyn dizer que as campanhas eram muito caras e, contudo, os assaltos rápidos e directos dos galeses de Gwynedd eram baratos, em comparação com a marcha triunfal que o rei pretendia realizar em França. Disporia do bastante para aguentar lá o Inverno? E a rainha-mãe francesa e os seus conselheiros deixariam que ele levasse a sua avante? Por certo que, quando o Inverno chegasse, o rei iria trazer a sua frota de volta a Inglaterra, contentando-se com as vitórias que houvesse alcançado até então. Mas, mesmo que isso acontecesse, Harry precisaria de manter intactas, durante meses, a coragem e a determinação e, sobretudo, de se bastar a si próprio enquanto esperava. A menos que estivesse disposto a voltar a Aber, com o rabo entre as pernas.

Era demasiado para ele. Sentiu que as lágrimas tentavam saltar-lhe dos olhos e, furioso consigo mesmo, desembaraçou-se prontamente do seu informador.

- Nesse caso, vou até Hereford - declarou, levantando-se. O movimento fez cintilar a adaga com um brilho sugestivo,

para que os olhos que tão atentamente observavam o seu punho vissem bem que ela também era uma arma, dotada de lâmina, e não um ornamento.

- Sozinho! - acrescentou Harry, num tom que a falta de firmeza de voz tornava ainda mais agressivo.

- Como queiras, meu caro, como queiras - acedeu apressadamente o bufarinheiro.

E afastou-se, com um olhar demorado que desceu como água gelada pelo perfil de Harry e se deteve na coxa, onde estava escondida a pequena bolsa.

A última tocha apagou-se. Harry deitou-se, enrolou o manto em volta do corpo e, protegido por aquele abrigo, escondeu a bolsa, atando-a ao cinto das meias, por baixo da camisa, de maneira que, mesmo com uma faca, seria impossível tirar-lha sem o acordar. Depois, sentindo que as lágrimas irresistíveis eram demasiadas para poder contê-las, cobriu o rosto com uma prega do manto e cravou os dentes no tecido, para reprimir os soluços que o sacudiam.

Estava tudo a correr mal. Tudo! Tudo o traía: o tempo, a oportunidade e os homens, incluindo os melhores e que lhe eram mais caros. Os acontecimentos conspiravam contra si, obrigavam-no a fazer figura de tolo e levavam o seu inimigo para longe do seu alcance, deixando-o atolado no pântano da sua desgraça. Mas não ia voltar para casa. Era um homem, um homem com um ofício de homem, e havia de mostrar a Adam que era capaz de viver do seu trabalho; tal como havia de mostrar a Llewelyn que, no que dizia respeito à honra, a sua não ficava atrás da de seu pai. Podia muito bem fazer aquilo que fingira ser sua intenção: procurar um mestre e ganhar a vida, até Isambard regressar a Parfois. Não iria nunca voltar a Aber, antes de a sua vingança haver sido levada a termo.

Deixou-se ficar ali deitado, com o rosto oculto entre as mãos, sobre o tapete de junco, ao canto da sala, permitindo que as tensões demasiado complexas do seu desgosto se libertassem nas lágrimas; até que, gradualmente, as complexidades se desvaneceram e ficou sozinho com o pensamento de de Breos morto: aquela máquina admirável destruída, aquele espírito audaz silenciado. Então, de um modo que escapava à sua compreensão, sentiu-se reconciliado com o traidor e esqueceu o rancor que contra ele guardava. E as lágrimas brotaram mais livremente, por haverem sido reconhecidas por aquilo que eram: uma dor infinita por um homem que ele amara e admirara e que, lamentavelmente, estava agora perdido para sempre.

Às primeiras horas do dia, Harry acordou, repousado e calmo, do sono absoluto dos jovens. Sem ruído, abriu caminho, do calor confortável da sala para o ar frio da manhã. Junto à fachada leste da igreja, havia um túmulo que queria visitar.

Nunca estivera em Strata Marcella, mas sabia exactamente onde ficava: mesmo junto à parede. Apesar de ficar entre os túmulos dos abades, naquele túmulo não havia uma inscrição que o identificasse. Apenas uma folha esculpida na beira da pedra lisa, uma folha pequena que se desenrolava com a força suficiente para suportar um ábaco invisível. Ajoelhado sobre a relva, Harry seguiu os contornos da folha com a ponta dos dedos. Quem não soubesse da existência daquela folha podia passar por perto sem dar por ela. Fora Adam quem a esculpira havia muito tempo. O musgo amarelado aninhara-se delicadamente nas reentrâncias do desenho, como se o artista houvesse usado ouro nos contornos do seu trabalho.

Solene e concentrado como nunca se mostrara na vida, Harry disse as suas orações. E, quando acabou, continuou ajoelhado, de mãos postas, a olhar para o pequeno símbolo gravado na pedra. Em voz alta, não foi dita uma só palavra, não foi feita nenhuma jura mas, quando se levantou, Harry prometera àquele jovem pai misterioso e multiforme que não descansaria enquanto não enfrentasse Ralf Isambard para o fazer pagar pela sua morte prematura.

O sentido daquela promessa encheu Harry de paz e determinação. O seu olhar estendeu-se para lá das planícies alagadiças, para Leste, para além dos charcos prateados que, depois das cheias da Primavera, o Severn deixara nas covas do solo, para lá da margem do rio e das suas leves grinaldas flutuantes de bruma, até à linha negra da crista de Long Mountain, rasgada em meia dúzia de pontos do seu vasto flanco arborizado por vales sinuosos pelos quais as correntes se precipitavam, antes de se lançarem no Severn. Para além da crista, a Oriente, o céu mostrava-se claro e límpido como as Primaveras e, recortando-se contra aquele fundo brilhante, dura e negra por entre a orla frágil de árvores que ornavam a crista, ao longe, sobre a sua plataforma rochosa e voltado para Gales, erguia-se a silhueta imponente do castelo de Parfois.

Enquanto Harry olhava naquela direcção, os primeiros raios do sol ainda escondido pairavam sozinhos, tremendo como um bando de pássaros iridescentes, sobre o ponto mais alto do cume. O castelo continuava mergulhado na sombra mas, bem perto dele, brotou de súbito um jacto dourado, que, abraçando e refractando a luz vibrante, se prolongou a si mesmo numa esplêndida e ambiciosa linha de força que subia para o céu.

Pela primeira vez na sua vida, Harry contemplava a torre da igreja do mestre Harry Talvace. Espantado por aquela aparição, Harry experimentou a sensação de, também pela primeira vez, ter uma visão fugaz do pai, não pelos olhos de Llewelyn, de Owen, de Gilleis, de Benedetta ou de Adam, apesar de todos eles o haverem amado e respeitado, mas na sua própria carne, falível e vulnerável, no seu sangue quente e infortunado, o sangue que, para o melhor e para o pior, ele legara ao seu único filho.

Abaixo de Parfois, os bosques eram densos, o que obrigava Harry a seguir junto à margem do rio, onde se abria um carreiro estreito, que serpenteava a coberto da vegetação. Desde que partira de Buttington, onde atravessara a corrente a vau, e até então, as árvores haviam ocultado os seus movimentos. Segundo pensava, encontrava-se agora perto do local onde desaguava o curso de água que descia pelos socalcos do rochedo do castelo e, algures para a sua esquerda, lá no alto, os baluartes do pano da muralha de Isambard recortavam-se contra o céu do meio-dia.

O rio deixara as marcas da enchente da Primavera nos arbustos encharcados e na erva achatada, aqui e ali rasgada por escarpas, ocupadas pelo turbilhão perpétuo de água acastanhada e espumosa. Harry contornava um desses charcos, quando se apercebeu de um movimento entre os arbustos e ficou a saber que não se encontrava sozinho. Não cometeu o erro de parar, o que revelaria que tomara consciência da presença de alguém. Prosseguiu lentamente o seu caminho, conduzindo Barbarossa pelo carreiro sinuoso. Os arbustos voltaram a agitar-se, acompanhando o seu avanço.

Portanto, não se tratava de uma lontra. Uma lontra, ou qualquer outro animal, haver-se-ia afastado dele, em vez de o seguir. Aquela zona da fronteira era conhecida por ali haver bandidos das florestas, aos quais, em caso de perseguição, o rio proporcionava uma boa via de retirada; e o inglês que pretendiam roubar podia, ali, tornar-se um aliado. Harry retirou a adaga da bainha e pôs-se à escuta dos sons quase inaudíveis que o seguiam.

Esperou até ir dar a um local onde uma vista mais desafogada do rio lhe permitiu parar sem despertar suspeitas e olhar para a água batida pelo sol que, naquele ponto, corria sem obstáculos junto a uma margem mais desimpedida, apesar de ladeada por árvores. Com cautela, Harry fixou o maciço de arbustos que estremeceu levemente; e, largando as rédeas de Barbarossa, lançou-se de rompante contra os arbustos, suficientemente baixo para apanhar o observador pelos joelhos.

As suas mãos tocaram em carne macia e nua, que lhe escorregou entre os dedos como se fosse um peixe, e um corpo frágil escapou-se para o meio dos ramos. No instante seguinte, ouviu o som claro do corpo do observador a mergulhar no rio.

Arranhado, mas decidido, Harry levantou-se e foi atrás dele. Perto da linha de água, semioculto por um arbusto, encontrou uma pilha de roupas de tecido grosseiro castanho, colocadas ao lado de umas sandálias de couro toscamente cosidas. Debruçou-se para pegar nas roupas, com um grito de triunfo, e deu um pontapé nas sandálias, atirando-as ao ar; eram muito pequenas e, ao vê-las, Harry soltou uma gargalhada de alívio. Tanto trabalho para acabar por assustar uma criança, um miúdo demasiado curioso.

Ainda a rir, olhou para o rio. A dez passos da margem, uma cabeça pequena emergiu cautelosamente da água, rodeada por um halo de cabelos.

- Sai daí! - gritou Harry, num tom tranquilizador. - Eu não te faço mal.

A cabeça boiava, aparentemente indiferente à corrente. Pelo movimento na superfície da água, Harry adivinhou que, para flutuar, o rapaz se limitava a mover ligeiramente os pés. A avaliar pela facilidade com que se movia, devia haver passado metade da sua curta vida dentro de água.

- Pensei que fosses um servo em fuga e não uma criança. E o meu cavalo é bom demais para eu o perder. Vá lá, sai daí! Pareço-te alguém que queira fazer-te mal?

A cabeça e um ombro nu afrontaram a corrente e o rapaz aproximou-se um pouco, embora, visivelmente desconfiado, se mantivesse a uma distância prudente da margem. Através da água turva, Harry avistou a pele cor de mel; no rosto inquieto, uns grandes olhos claros espiavam todos os seus gestos. Os cabelos que flutuavam na água apresentavam o mesmo tom de castanho das pequenas sandálias de couro; quando secassem deveriam ser de um louro escuro. O rapaz parecia ter onze ou doze anos e ser tão arisco como uma lebre. Mal Harry fez um imprudente gesto brusco com a mão, a cabeça mergulhou instantaneamente na água, deixando atrás de si apenas um leve remoinho, e reapareceu à superfície a algumas jardas de distância.

- Vais acabar por voltar - observou Harry, sorrindo. - Eu tenho as tuas roupas.

- Deixa-as no chão - disse a cabeça, pouco disposta a mostrar-se sociável. - Vai-te embora e deixa-me sair daqui em paz.

- Se eu fizesse isso, tu fugias de mim. E eu quero falar contigo.

Uma criatura claramente familiarizada com aqueles bosques e com aquele rio era o aliado de que Harry precisava. E tratar-se de um rapazinho era também uma vantagem.

- Eu não fujo - prometeu o nadador.

O tom que utilizara não inspirava grande confiança nem denotava que o rapaz experimentasse alguma.

- Se não te importas, vamos assegurar-nos disso. Aqui estão as tuas roupas. Vem cá buscá-las.

- Não posso! - gritou o garoto, exasperado. - Olha bem para o que tens na mão, grande estúpido!

Harry continuava sem compreender. Pegando nas roupas por uma ponta, deixou que estas se desdobrassem e, aos seus pés, em vez das meias, camisa e túnica de que estava à espera, caíram uma túnica comprida e uma camisa de mulher. Largou a ponta que ainda segurava como se esta lhe queimasse os dedos e, vagamente indignado, recuou a toda a pressa para o interior do bosque. Mas, antes de chegar ao carreiro, olhou para trás, por cima do ombro. Foi apenas uma visão fugaz e parcial, por entre os ramos, mas viu o corpo brilhante dela emergir da água, viu-a sacudir os cabelos à volta da cabeça como se fossem chicotes e, antes de desviar rapidamente o olhar, viu que ela se ria.

E isso foi estranho porque, quando ela reapareceu no carreiro, uns cinco minutos mais tarde, a expressão do seu rosto era severa. Enrolara o cabelo molhado e prendera-o no alto da cabeça. Apesar de o tecido do vestido apresentar alguns rasgões e de a saia haver sido enrolada quase até aos joelhos, ela saiu do meio dos arbustos como se fosse uma rainha a sair da sua sala de vestir. Trazia as sandálias na mão; as partes dos seus pés pequenos e nus não maculadas pela lama do rio apresentavam a mesma tonalidade de mel que o braço, o ombro e o pescoço comprido e magro que Harry entrevira momentaneamente a sair da água. A rapariga lançou-lhe um olhar pensativo e outro, mais pensativo ainda, a Barbarossa; depois, os seus sagazes olhos azuis-claros voltaram a fixar-se nele, mirando-o da cabeça aos pés, para chegar a misteriosas conclusões sobre a sua origem, a sua condição e o que andava ele a fazer ali, na floresta. As faces coradas e a dignidade excessiva de Harry não lhe passaram despercebidas. E não era tão nova como ele pensara: devia ter apenas menos um ano do que ele.

- Porque foi que me seguiste? - perguntou ela, em tom acusador, como que para provar à partida a sua feminilidade intransigente.

- Eu segui-te? Foste tu quem me seguiu.

- Eu só estava a tentar chegar às minhas roupas. E, então, tu atacaste-me.

Continuava a fitá-lo com uma expressão grave mas, na verdade, ele não lhe fazia medo: as conclusões que tirara do seu exame atento haviam-lhe despertado a curiosidade, mas haviam também afastado os seus receios iniciais.

- Que andavas tu a fazer? - perguntou ele, não menos curioso. - Ainda está frio para nadar.

- Andava a pôr armadilhas para enguias. A migração começou há três semanas. E tu? Que andavas a fazer aqui?

- Vives na floresta? - inquiriu Harry, ignorando a pergunta dela.

- Vivo. Um pouco mais para montante do rio e um pouco mais longe da margem. Vivo com o meu pai - acrescentou enfaticamente, para ele ficar a saber que não estava desprotegida.

Fazia girar entre os dentes brancos um pedaço de erva tenra que colhera. Os olhos dela, sombreados por longas pestanas de um louro escuro, eram azuis como o zénite, observou Harry; e, depois de secarem, os seus cabelos pouco mais escuros seriam do que a testa. Ela mirava-o sem disfarce e, também, sem perder um pormenor. Nem mesmo o insistente bufarinheiro de Strata Marcella fizera um inventário tão rápido e acurado do seu vestuário e da sua pessoa.

- Chamo-me Aelis - disse ela. - E tu?

- Harry.

Conteve-se mesmo a tempo de evitar dizer o nome completo. Para quê facilitar a tarefa a quem viesse fazer perguntas a seu respeito? Era pouco provável que aparecesse alguém a procurá-lo naquele lugar selvagem, mas qualquer descuido seria tolice.

Harry esperava que, perante uma tão brusca mudança de atitude, a rapariguinha lhe perguntasse qual era o seu outro nome. Mas ela limitou-se a sorrir, como se ele lhe houvesse revelado muito mais do que pensava.

- De onde és tu, Harry?

- De Chester - mentiu.

E sentiu a necessidade de lhe contar toda a história que engendrara: o mestre morto, a aprendizagem interrompida. Até podia ser bom aperfeiçoá-la enquanto a narrava, antes de a contar a alguém de espírito menos crédulo. Mas a verdade era que a subestimara mais uma vez. Os seus olhos vivos e directos detiveram-se expressivamente no cavalo e nos arreios luxuosos do animal, deslocaram-se em seguida para o tecido fino da sua manga e para o punho trabalhado da sua adaga e, com um brilho de desafio, fixaram-se depois nos olhos dele. E ela desatou a rir. Harry percebeu que, se quisesse passar despercebido no seu destino final, seria necessário trocar de roupas e separar-se de Barbarossa.

- E que procuras tu aqui, na floresta? - perguntou Aelis, aproximando-se.

Já que, com ela, as mentiras não resultavam, restava-lhe dizer uma parcela da verdade.

- Ando à procura de um sítio para me esconder - respondeu. - Só por algum tempo. Uma semana ou duas.

Era o tempo de que precisava para explorar e reconhecer o terreno que rodeava Parfois. Depois disso, precisava de ir para Pool e procurar trabalho, porque o conteúdo da bolsa não iria dar para muito tempo. Chegara a pensar ir até Shrewsbury, que era uma cidade franca onde os fugitivos costumavam ser acolhidos sem perguntas; mas Shrewsbury ficava demasiado longe da fortaleza que, naquele momento, era o centro das suas atenções. Era em Pool que teria que procurar forma de ganhar a vida, fosse ela qual fosse.

Desta vez, Aelis não se riu, nem tentou saber mais do que o que ele estava disposto a revelar-lhe: presenteou-o com um sorriso caloroso e disse, num tom indulgente:

- Porque foi que não disseste que andavas fugido? Quando te vi, a menos de dez passos de mim, fiquei tão assustada que pensei que vinhas do castelo. Se soubesse que eras um fora-da-lei, não fugia de ti.

Brilhantes de curiosidade, os olhos azuis de Aelis perscrutavam-no, sondavam-no, mas ela não fez mais perguntas. Todos aqueles que andavam fugidos da justiça, da servidão, das dívidas, das famílias, eram seus aliados naturais. Aelis e o pai sempre haviam vivido de forma precária, mais ou menos à margem da lei, arrancando legalmente magras colheitas a um cercado que rodeava dois ingratos campos desbravados, apanhando peixe no rio, lebres e coelhos nos bosques, ou mesmo, quando os riscos não eram muitos, um ou outro veado.

- Eu não disse que era um fora-da-lei - protestou Harry, pouco à-vontade em tal papel.

- Ah, podes confiar em mim - replicou Aelis, com desdém. - Não vais ser o primeiro a esconder-se em nossa casa, nem vais ser o primeiro que nós ajudamos a atravessar o rio, se é isso que queres. Não precisas de estar de pé atrás comigo. Não quero saber dos teus segredos. Quanto menos soubermos, menos podemos deixar escapar. Tu é que sabes. Há um barco no moinho, se não quiseres que te vejam no barco de travessia ou na passagem.

Pela primeira vez, Harry tomou consciência de que ela partira do princípio que ele era inglês e o facto deixou-o terrivelmente espantado. Era como se, de repente, olhasse para a sua própria imagem no espelho e deparasse com um estranho. Como é que ela sabia? Ele nem sequer se sentia inglês, apesar do nome e do sangue, apesar da educação latina do seu pai, na confortável abadia beneditina de Shrewsbury, apesar dos antecedentes da mãe, numa família de comerciantes londrinos. Conhecia a realidade da sua linhagem, mas esta não afectava a imagem que fazia de si mesmo: um jovem galês, solidamente ligado à casa real de Gwynedd pela adopção. E agora aquela rapariga selvagem olhava para ele, vestido e equipado como qualquer filho de Gales, e dizia que ele era inglês. Quisesse ou não, parecia que iria ser necessário admitir as suas outras raízes, ligar-se a novos modelos de lealdades por laços que, até então, nunca reconhecera como uma realidade. Cada novo passo aproximava-o mais do pai. Naquela margem do Severn, até a terra o reconhecia.

- Só preciso de um lugar para me esconder - disse. - Posso pagar.

- Ah, pagar! - exclamou Aelis com ironia. - E quanto é que nos vais custar? Ajudas-me a montar as minhas armadilhas e ficamos quites. Vem comigo. Vou levar-te ao meu pai. Ninguém nos incomoda. Vivemos afastados do caminho do moinho e a mais de uma milha da estrada para Parfois. E estes campos são pobres em caça. Os do outro lado da montanha são melhores. Ninguém virá procurar-te aqui.

Antes de avançar pelo carreiro estreito, Aelis voltou a prender num nó o cabelo que começara a soltar-se; as pontas que entretanto haviam secado apresentavam um brilho dourado. Harry seguiu-a, conduzindo Barbarossa pela rédea. De repente, todas as coisas lhe pareciam novas e estranhas, cheias de promessas inesperadas e excitantes. Pela primeira vez na vida, não fazia ideia do que lhe ia acontecer, nem de que personagens terríveis iriam atravessar-se no seu caminho. Sentia-se assustado, mas feliz. Nada - nem mesmo o velho mundo familiar e aprazível - o faria voltar para trás.

A farta cabeleira voltou a desprender-se, caindo solta sobre os ombros dela. Por um instante, Harry foi assaltado pela recordação que o seu espírito tentava em vão apagar: a cascata de ouro brilhante transformou-se em tranças loiras caídas sobre os seios com veias azuladas e a lâmina do ódio, da cólera, do amor voltou a ferir-lhe o coração. Depois, recuperou a calma e, abalado mas resoluto, deixou que a fugaz visão de Aelis, orgulhosa e confiante na sua nudez jovem, fresca e virginal, lhe afastasse do espírito a inesquecível conspurcaçao da imagem imaculada.

 

- É aqui - anunciou John o Frecheiro, lançando um olhar satisfeito ao campo estreito, cercado por uma vedação, e à cabana de tecto baixo, aninhada entre as árvores do bosque. - A minha memória não está assim tão mal: mesmo ao fim de quinze anos, só me enganei duas vezes. E, graças a Deus, o homem está lá. Foi aquele homem que me ajudou a tirá-los do rio: ele morto e ela só com um sopro de vida. Enquanto vínhamos para cá, receei que, por esta altura, já estivesse morto e enterrado. Quinze anos é muito tempo, para não se saber de um homem e vir encontrá-lo pouco mudado.

Haviam atravessado o Severn em Pool e cavalgado na direcção da foz, sem demasiadas esperanças mas decididos a esgotar todas as hipóteses que se apresentassem. Se o porteiro de Strata Marcella, não se lembrasse do cavalo, nunca saberiam se estavam ou não no bom caminho. E, depois de haverem passado a pente fino todas as aldeias da margem galesa e todas as ruas de Pool, John decidira dirigir-se ao casebre para onde o mestre Harry fora levado depois da sua morte. Era um sítio onde o destino já uma vez lhe valera e podia ser que voltasse a acontecer o mesmo.

E agora tinham diante de si a cabana - uma loja no subsolo e, por cima, a divisão única - o terreno esgotado pelo cultivo ininterrupto, o recanto reservado ao fraco pasto. Quando os viu aparecer, o homem escondeu rapidamente na subloja as armadilhas para coelhos. Devia ter uns quarenta anos, a idade para ser o mesmo taciturno homem da floresta que ali vivia quinze anos antes. Mas a rapariga que, no recanto de pasto, ordenhava uma vaca magra não tinha mais de catorze ou quinze.

- E ali está o cavalo que nós procuramos - disse Adam, soltando um suspiro profundo e apontando para um canto escuro da loja, onde uma cabeça vermelha mergulhava com satisfação num monte de feno. - Fomos ou não fomos guiados até aqui? Ele está cá!

Desconfiado, de olhos sem expressão, o homem aproximou-se deles. O castanho da barba curta e hirsuta apresentava agora duas manchas grisalhas mas, quanto ao resto, pouco mudara.

- Boa-tarde, senhores - saudou, num tom inexpressivo. - Andais perdidos? Este caminho não vai dar a lado nenhum. É melhor seguirdes ao longo do rio.

- Boa-tarde, Robert - respondeu John o Frecheiro. - Não estamos perdidos. Graças a Deus, encontrámos o nosso caminho.

- Conheceis-me? - espantou-se o homem, recuando um passo, ao mesmo tempo que olhava de relance para a filha.

Esta pegou na selha do leite e aproximou-se. A expressão do seu rosto era alegre e inocente mas os seus olhos eram vivos e atentos.

- Tempos houve em que vos conheci e vós me conhecíeis também. Mas já passaram quinze anos e receio haver mudado mais do que vós.

John puxou o capuz para trás e aproximou-se, mas o homem olhou para ele e abanou a cabeça.

- A luz já está um pouco fraca - prosseguiu John. - Mas a memória há-de voltar, quando eu vos contar tudo. Lembrais-vos de um dia, mais ou menos por esta época do ano... mas, nessa Primavera, as cheias vieram mais tarde... em que vós e eu pescámos dois peixes bem estranhos no Severn?

Os ombros largos do homem retesaram-se e o seu rosto barbudo ergueu-se para voltar a olhar para John.

- Claro que vos lembrais: um homem e uma mulher nus e atados um ao outro: o homem estava morto e a mulher pouco menos. Haviam sido atirados à água por Isambard, para apodrecerem juntos...

John nunca falava do que acontecera, mas a recordação daquele dia mantinha-se intacta na sua memória, que não esquecera um único pormenor. Esperara todos aqueles anos para saldar a dívida e, mal deixara que a sua boca pronunciasse aquelas palavras, o velho rancor não saciado fê-lo estremecer.

- Pelo amor de Deus, homem, não pronuncieis tal nome - pediu Robert, em voz baixa. - Eu e vós sabemos quem fez isso e é quanto basta. Então, sois mesmo vós, ao fim de tantos anos! Nunca pensei voltar a ver-vos. Como está a senhora? Ainda é viva?

- Está viva e de boa saúde. Deixei-a há duas semanas, a salvo em Gales. E a vossa esposa?

- Morreu vai para sete anos. A febre do Outono levou-a. Esta é a minha filha, Aelis, que me ajuda, no lugar da mãe. É uma boa rapariga.

- Lamento a vossa perda - disse John. - Era uma boa alma. Ainda me lembro de como ela cuidou da minha senhora, horas a fio, quando nós pensávamos que nunca conseguiríamos trazê-la de volta à vida. A pequena é parecida com ela, se a memória não me falha. Os cabelos dela também eram loiros amarelados.

- Pois eram. Agora, estou a lembrar-me de tudo. Há uns bons dez anos que não pensava no assunto. Foi um ano antes de a Aelis nascer. Entrai, entrai ambos, se não vos incomoda partilhar o fogo e a comida de um homem pobre.

- Com todo o gosto - agradeceu John, desmontando. - Este é o mestre Adam Boteler, que era irmão de leite de mestre Harry, o homem morto que nós trouxemos para aqui, naquele dia. O mestre Adam casou com a mulher dele e tem cuidado do seu filho. Na verdade, Robert, parece que ireis ser mais uma vez o nosso salvador porque, desta vez, perdemos o rapaz. E tudo indica que fostes vós quem o encontrou.

Robert ficou estático, com a mão pousada no estribo de Adam.

- Rapaz? Porque pensais que eu sei de algum rapaz?

- Por causa do cavalo dele - respondeu Adam. - O alazão com uma mancha branca que está na vossa loja. Não há nada que enganar. Se duvidais da nossa honestidade, podemos contar-vos a história daquele cavalo, até à altura em que saiu de Aber a galope, com o Harry montado nele. Desde então que andamos à procura dele.

Aelis aproximou-se mais do pai e puxou-lhe pela manga. Robert hesitou e os seus olhos semicerrados saltaram de um para o outro.

- É verdade que, agora, sois o pai dele? Então, porque foi que ele fugiu de vós? Que mal fez ele?

- Não fez mal nenhum. Fugiu porque sofreu um grande desgosto e não por haver feito mal algum - garantiu Adam. - Ninguém está contra ele e, quando o levarmos para casa, todos irão dar-lhe as boas-vindas. Nesta idade, os rapazes levam tudo muito a peito, bem sabeis. Cuidais que poderíamos querer outra coisa que não fosse o bem dele? Ele é filho de Talvace. Pelo amor de Deus, não nos deixeis mais em ânsias: dizei-nos se ele está convosco.

Robert já se decidira.

- Ele está aqui - disse. - Está connosco há quinze dias - acrescentou, afastando a mão que lhe puxava insistentemente pela manga. - Não te preocupes, rapariga. São amigos, não estás a ver? Bem, senhores, é esta a verdade. Desde que ele chegou que dou voltas à memória, sem conseguir lembrar-me de onde é que já havia visto aquela cara. Agora, depois de me dizerdes de quem ele é filho, já sei. Entrai, entrai! Deixai os cavalos junto à cerca. Ele anda pela floresta... Onde é que ele foi, Aelis?

Claro que ela sabia: conhecia todos os planos e preparativos de Harry, embora ainda não soubesse qual o fim a que se destinavam todos aqueles estranhos passeios de reconhecimento. Numa vozinha tensa, respondeu:

- Foi tentar escalar o rochedo do castelo, do lado que é a pique. Eu disse-lhe que era impossível, mas ele riu-se na minha cara. Disse que havia praticado muito em Snowdon e que, antes de a noite cair, havia de escrever o nome dele nas pedras da Torre da Rainha.

Adam e John trocaram um longo olhar inquieto.

- É isso que ele tem feito desde que está aqui convosco?

- perguntou Adam, fitando a rapariga com um olhar ansioso. - Escalar e fazer planos para chegar a Parfois?

Aelis, que começava a sentir-se assustada, embora sem saber porquê, anuiu. Puxando para trás a trança que lhe caía sobre a testa, fitou Adam com os seus olhos azuis, grandes e solenes.

- Ele vai lá todos os dias. Umas vezes, para o lado da ravina entre o castelo e a igreja, outras vezes, para o lado mais íngreme. E faz desenhos, que grava nos rochedos e fica horas sentado, a pensar. O que é que ele está a tentar fazer? O que é que ele quer?

- perguntou, contagiada pela ansiedade dos dois recém-chegados.

Robert olhou para Adam e, depois, para John e abanou a cabeça.

- Estou a ver muito bem o que ele quer! Se eu soubesse o que lhe ia na mente, haveria arranjado maneira de o fazer desistir e de vos prevenir. Mas nós não costumamos fazer perguntas a quem não quer partilhar os seus segredos connosco. Nem sequer lhe perguntei como se chamava. Entrai em casa e esperemos por ele. Pelo andar das coisas, parece que chegastes mesmo a tempo.

Aos últimos raios de luz do dia, Harry desceu a falésia de Parfois; apesar de não se encontrar mais próximo de atingir o objectivo que se propusera, sentia-se satisfeito pelo seu desempenho. A praça parecia inexpugnável. O caminho habitual e único, o longo carreiro inclinado aberto quando a fortaleza fora construída, era guardado a meio caminho pelas duas atalaias e, a partir daí, era ladeado por duas falésias de grés. Não seria difícil para Harry escalá-las, mas fazê-lo não representaria um grande progresso, pois a escalada levá-lo-ia apenas até à plataforma sobre a qual a igreja fora construída e, entre esta e a porta do castelo, existia uma ravina com uns quarenta pés de profundidade, que só podia ser atravessada pela ponte levadiça, entre as torres da guarda. O afloramento rochoso sobre o qual se erguia Parfois era uma ilha suspensa no ar, rodeada de escarpas por todos os lados; e o pano da muralha flanqueado por seis grandes torres parecia brotar da rocha.

A escarpa mais a pique, por baixo da Torre da Rainha, era também a de menor visibilidade, o único lado que não era vigiado a partir dos baluartes e que só podia ser observado por quem se debruçasse das insolentes janelas lanceoladas de Isambard e olhasse na vertical para o fundo da falésia. Eram vantagens de que Harry tirara partido mas, depois de haver conseguido escalar esse lado, encontrara acima da cabeça vinte pés de sólida muralha de pedra que o separavam das primeiras seteiras; e nem mesmo os homens das montanhas de Gales que o haviam ensinado a içar-se até ao cimo dos rochedos a pique de Eryri haviam descoberto uma maneira de caminhar sobre pedra lisa.

Tal como prometera a Aelis, Harry gravara as suas iniciais na base da obra de alvenaria e isso era feito suficiente para um dia. Como escalar a muralha era um problema sobre o qual era preciso pensar melhor. Apesar de tudo, estava bem-disposto, enquanto se esgueirava por entre os arbustos para chegar à floresta, a caminho da ceia e da cama; por isso foi um choque, quando chegou à orla da clareira e viu dois cavalos junto à cerca. A luz fraca do crepúsculo, o ruano passara-lhe despercebido até se mexer e relinchar baixinho; recortado contra o que restava de luz, o cinzento mais parecia o desenho de um cavalo. Harry reconheceu um e o outro.

Deteve-se instantaneamente e recuou para o meio das árvores. O mais assustador era que, agora que eles o haviam descoberto, uma parte de si, até então controlada, erguia-se numa vaga de gratidão e num impulso de correr para eles; mas a outra parte de si, na qual habitava o orgulho, era mais forte e não tardou a esmagar a criança carente e aliviada. Não ia voltar. Era uma certeza.

Ele era Harry Talvace e era direito seu estar ali, para tratar dos assuntos do pai. Deveria ser capaz de entrar na cabana, de lhes dizer isso mesmo e de se manter firme na sua posição. Deveria ser capaz de os mandar para casa sozinhos ou mesmo de lhes exigir obediência naquilo que se propunha fazer. O problema era que não se fiava muito na sua autoridade. Deixar-se vencer e ser arrastado para Aber contra a sua vontade seria humilhante, fosse em que situação fosse, mas, diante dos olhos de Aelis, seria insuportável.

Indeciso, esmagou com o pé os cogumelos que rodeavam o tronco de uma árvore. Seria claramente injusto pensar em Adam como um pai autoritário: Adam nunca perdera a paciência com o filho ou com o aprendiz e conservara em si uma parte do rapaz que ele próprio fora e que lhe permitia lidar com bondade com os outros rapazes. Mas não deixava de ser verdade que, sempre que entrara em conflito com Adam quanto a qualquer assunto, sempre que ambos se haviam fitado olhos nos olhos, numa prova de força, fora sempre Adam quem levara a melhor.

Não, não podia correr o risco de lhe fazer frente. Tinha tudo a perder. Já não se tratava apenas de uma questão de honra, nem de um gesto de desafio a todos quantos duvidavam dele: uma parte da sua herança e, até, da sua identidade, encontrava-se no interior das muralhas de Parfois e, enquanto não se apoderasse dela, não seria um homem completo.

Todavia, não era nada fácil dar meia volta e embrenhar-se na floresta, deixando-os à sua espera. Era preciso pensar em Robert e em Aelis. Haviam-no acolhido como filho e irmão, sem fazer perguntas, porque acreditavam que ele estava a ser perseguido e carecia de abrigo. Contraíra para com eles uma dívida que não poderia pagar, a menos que aceitassem a pregadeira de ouro que retirara do manto para dar menos nas vistas. E, se aceitassem, poderiam tentar vendê-la sem problemas, mesmo em Shrewsbury? Por menos, já algumas pessoas haviam sido suspeitas de roubo e banditismo. Mas podiam vender as roupas boas que ele trocara por roupas de Robert; pelo menos essas não eram suficientemente luxuosas para provocar desconfianças. Se ao menos Aelis saísse da cabana!

E, quando ele já quase perdera a esperança e começava a embrenhar-se na floresta, olhando frequentemente para trás, ela saiu. A sua figura apareceu de repente, recortada contra a luz que saía pela porta, e deu a volta à casa, para fechar a capoeira onde guardava as suas poucas galinhas escanzeladas. Aquela distância, Harry não se atrevia a assobiar: os homens que se encontravam dentro da cabana ouvi-lo-iam. Mas sentiu um medo terrível de a ver desaparecer. No entanto, em vez de voltar para dentro, Aelis dirigiu-se apressadamente para a orla do bosque e avançou para o meio das árvores, parando de vez em quando, à escuta. Harry percebeu que ela o procurava. Aelis conhecia-o muito bem e sabia que ele não iria entrar.

Harry esperou até ela se encontrar a poucos passos dele e, então, chamou-a em voz baixa e ansiosa.

- Aelis!

A sua própria voz pareceu-lhe desagradavelmente fraca e queixosa, assustadoramente indecisa. Mas ela ouviu-o e correu ao seu encontro. Harry agarrou-a pelos ombros e puxou-a para si, na escuridão.

- Eles estão lá, Harry! Vieram à tua procura. Nós não íamos dizer nada, mas eles reconheceram o Barbarossa.

- Eu sei - respondeu ele arrebatadamente. - Conheço os cavalos deles tão bem como eles conhecem o meu. Eu não vou entrar, Aelis. Não posso ir-me embora com eles.

- Mas eles não querem fazer-te mal, só querem levar-te para casa. Não precisas ter medo...

- Eu não estou com medo - replicou Harry, ofendido. - Mas há coisas que eu preciso de fazer. Não posso voltar para casa, antes de estarem feitas.

- Vem lá - pediu ela, pousando os dedos frios no braço dele. - Pelo menos vem falar com eles. Eles estão muito preocupados contigo. Não podes deixá-los ir sem uma palavra.

- É preciso. Se eu for lá, eles levam-me para casa e eu ainda não posso voltar para casa. Não lhes digas nada. Tu não me viste nem sabes onde eu fui. Um dia, quando eles houverem deixado de me procurar, eu venho ver-te. Toma, Aelis... fica com a pregadeira do meu manto... é para ti, se arranjares maneira de te ser de algum uso. E as minhas roupas...

- Eu posso trazer-tas - propôs Aelis. - Não podes ir a lado nenhum com esses trapos com que tens andado pelo bosque. E também podia soltar o Barbarossa...

- Não. Vou melhor sem ele. Tenho de ir a Pool, procurar trabalho. E como podia um aprendiz de pedreiro explicar uma tal montada? E as roupas também... é melhor levar estas. Mas ouve, Aelis, eu volto. Prometo que volto...

O tremor da voz indicou a Aelis que Harry estava à beira das lágrimas e terrivelmente tentado a não partir.

- Eles vão ficar muito tristes - protestou, também ela quase a deixar-se vencer pelo pranto.

- Eu sei! Um dia, hei-de reparar esse mal, mas agora está na hora de partir. Toma conta do Barbarossa até eu voltar.

- E se eles quiserem levá-lo? - perguntou Aelis, limpando os olhos à manga.

- Que levem. Ele também fica bem com eles. Mas talvez eles o deixem ficar, na esperança de que eu volte para o vir buscar. Nesse caso, eles vão querer que tu lhes mandes uma mensagem, se eu voltar. Mas promete-me, Aelis, que não fazes isso, a menos que eu te diga...

- Eu faço o que eu quiser - replicou Aelis, amuada, escondendo o rosto na curva do braço, para abafar um soluço. - É melhor haver alguém que pense por ti, já que és tão idiota que nem conheces os teus amigos. A tua mãe está lá, à tua espera, a chorar de desgosto...

- Deixa lá a minha mãe! - exclamou Harry, a tremer de raiva, afastando-a de si com brusquidão.

Mas, logo a seguir, cheio de remorsos, abraçou-a.

- Oh, Aelis, Aelis. Não posso fazer nada! Logo que possa, mando-lhes uma mensagem, prometo que mando. Mas não assim. Agora não posso parar. É mister que eu vá em frente. Não há escolha...

Do outro lado da clareira, a silhueta de um homem recortou-se contra a luz que saía pela porta e a voz calma de Robert chamou:

- Aelis!

- Adeus! - sussurrou Harry, antes de desaparecer entre as árvores, numa pressa febril.

- O que estás tu a fazer aí, rapariga? O que foi?

- Era uma raposa - respondeu Aelis, em voz bem alta. - Andava a rondar o galinheiro e fugiu que nem uma flecha, quando vos viu aparecer. São precisas armadilhas para apanhar bichos como este.

Aelis tinha esperança de que a sua voz chegasse até Harry e o deixasse com as orelhas a arder. Tinha esperança de que ninguém lhe desse trabalho e ele fosse obrigado a rastejar de volta. Então, veria se ela fazia ou não o que lhe apetecia. Era bem feito que eles o levassem para casa, de orelha caída, em vez de o tratarem como um homem e seu igual.

No entanto e apesar de lhe custar, Aelis não abriu a boca e manteve o rosto sem expressão, ao entrar em casa. E, na intimidade da cama, enquanto, com o cair da noite, os homens viam desvanecer-se as esperanças, ensopou de lágrimas a almofada dura e rugosa.

 

Parfois, Novembro a Dezembro de 1230

SÓ VOLTOU A VÊ-LO PASSADO MEIO ANO. Com as mãos cobertas de farinha até aos pulsos, Aelis estava a tender o pão quando, por trás de si, uma sombra ocultou parcialmente a luz que entrava pela porta. Mesmo antes de se voltar, soube que não era o pai, que regressava depois de ter montado as suas armadilhas. Ele parou à entrada da porta, desconfiado, a olhar para ela. Só ao cabo de alguns instantes deu um passo em frente e perguntou:

- O teu pai não está cá, pois não? Estás sozinha?

- Santo Deus! - exclamou Aelis, recuperando facilmente a indignação, apesar de já haverem passado seis meses. - Isso são maneiras de entrar na casa de uma rapariga, a quem não apareceste nem mandaste dizer uma palavra durante todo este tempo? Devias trazer o chapéu na mão e pedir autorização, antes de entrares nesta casa. Não sei se vou deixar-te passar de onde estás.

Mas, enquanto dizia isto, estendera-lhe a mão e puxara-o para dentro, porque a humidade de começos de Novembro estava a molhar-lhe os ombros e ele parecia gelado e mais magro.

- Não vais tentar reter-me aqui? - perguntou Harry, desconfiado, olhando-a nos olhos sem sorrir.

- Nunca hei-de tentar reter um homem que não queira ficar. Não penses que senti assim tanto a tua falta. Passámos muito bem sem ti, estes meses todos, e podemos continuar a passar.

Obrigou-o a sentar-se na pedra junto ao fogo e limpou-lhe a humidade dos cabelos, esforçando-se por não mostrar demasiada delicadeza. E, como Harry não fez menção de a impedir, despiu-lhe o manto e pendurou-o a secar.

- Estás com fome? Nem sei porque estou a ralar-me com isso, depois da forma como te foste embora.

Algum tempo antes, se alguém lhe falasse daquele modo, Harry negaria ter fome, ainda que os seus olhos dissessem o contrário. Agora, parecia haver adquirido o bom-senso suficiente para não mostrar demasiado orgulho, com demasiada rapidez e sem proveito algum.

- Estou - respondeu, quase com humildade. - Mas não quero privar-vos das vossas reservas, depois de haver chegado aqui de mãos vazias. Não posso ficar muito tempo. Não quero que o teu pai saiba que eu voltei, porque receio que tente reter-me aqui.

- Tu és senhor de ti próprio - argumentou Aelis, abanando a cabeça.

Trouxe-lhe um pedaço de pão, queijo e leite e, não sem alguma satisfação, ficou a vê-lo devorar a comida.

- Quem te vir, há-de dizer que não te alimentam muito bem, lá por onde tens andado - comentou. - Encontraste o trabalho que querias?

- Encontrei - respondeu Harry, com a boca cheia. Encontrara e vira o que custava, e ficara a saber o que era ser

aprendiz às ordens de um mestre que não era Adam. E aprendera mais: talvez não sobre o ofício de pedreiro, mas acerca de como controlar o temperamento e ficar de boca calada, mesmo perante a injustiça. Fora forçado a escolher entre aguentar o que se lhe apresentava e voltar a correr para Aber, onde beneficiava de privilégios e protecção. E, para Harry, tal escolha não existia. Se queria atingir o seu objectivo, precisava enfrentar os inconvenientes da viagem, por mais desagradáveis que fossem.

- Entraste ao serviço de um mestre?

- Não - respondeu Harry, sem mais explicações.

Como podia ele assumir compromissos, se não sabia nem o dia nem a hora em que Isambard iria voltar para casa? Era impensável dar a sua palavra em conforme ficaria por um período determinado, quando podia não ser capaz de a cumprir.

- Então, eles só te aceitaram como pau para toda a obra.

Aelis sabia o que isso significava, quando aquele que trabalhava sem tarefas específicas era jovem e inexperiente como Harry. Observou-o atentamente, em busca de sinais de servidão, ignorando o olhar furioso que lhe proibia tal exame.

Harry ainda trazia vestidas as meias e a cota do pai dela, a mesma cota castanha curta que ela tantas vezes remendara. E estava a precisar de ser outra vez remendada. Desde a última vez que ela o vira, Harry crescera mais de uma polegada, ou talvez parecesse que assim era por estar bastante mais magro. Tinha as faces cavadas e as mãos estragadas e sujas.

- Estou a ver que, além de os fazer trabalhar duramente, ele mata os seus homens à fome - comentou Aelis.

O seu olhar perspicaz deteve-se no canto da boca dele, onde uma pequena cicatriz vermelha parecia o prolongamento dos lábios, e em seguida na maçã do rosto, marcada por um hematoma azulado revelador.

- E, além do mais, bate-lhes - acrescentou.

- Que te importa isso? - perguntou Harry, em tom de desafio, voltando a cara para ocultar a face. - Disseste que não te ralavas.

- Oh, Harry! - exclamou Aelis, num lamento inesperadamente infantil.

Ajoelhando-se ao lado dele, envolveu-o nos braços. O pedaço de pão escapou-se da mão de Harry e caiu na beira da lareira. Aelis apanhou-o, sacudiu as cinzas, esforçando-se por não chorar.

- Vá lá. Não foi assim tão mau - disse Harry, envergonhado, pousando timidamente a mão sobre o ombro dela, para a puxar para si. - O mais difícil foi manter as mãos longe da adaga e a boca fechada. Já se sabe que o mais novo apanha sempre pancada dos outros. Um dos servos artífices era bom homem, ensinou-me o que sabia e esteve ao meu lado sempre que pôde. Mas tu fizeste-me falta, para conversar, quando dispunha de uma hora de descanso. O tom era ligeiramente condescendente, mas Aelis não se queixou. Já era de espantar que Harry houvesse confessado tal coisa. Aliás, devia ser isso que ele estava a pensar, porque corara até à raiz dos cabelos. Devia querer dar-lhe qualquer coisa boa para ela se lembrar ou, então, o calor do corpo dela nos seus braços arrancara-lhe aquela confissão desajeitada, sem lhe dar tempo para pensar. Estava quase arrependido de a haver feito e parecia-lhe inadequada e indigna: não dela mas quanto ao seu próprio mérito. No entanto, quando ela o olhou, espantada, mostrando sem reservas o prazer que sentira, ficou contente por haver falado.

- Não vais voltar para lá, pois não? - perguntou Aelis, inquieta. Harry abanou a cabeça.

- Então, para onde vais, se não queres ficar aqui connosco? Que trazes tu na ideia, Harry?

- Há uma coisa que preciso de fazer - respondeu ele. Talvez tivesse havido um tempo em que tudo não passara de um capricho, mas esse tempo passara: a prova estava lá, à sua espera, barrando-lhe o caminho e não havia outra forma de chegar à maturidade.

- Voltas aqui, quando o que precisas de fazer estiver feito?

- Volto - prometeu Harry. - Quando estiver feito, volto. E quando estiver feito, eu conto-te.

- Quem me dera que me levasses contigo - disse Aelis, a coberto dos seus cabelos compridos, loiros e despenteados, num tom de voz que ele nunca lhe ouvira.

- Não posso. Mas eu volto. Ouve... quero que fiques com isto. É muito pouco, mas é tudo quanto consegui poupar e quero que o uses até eu voltar. Eles levaram o Barbarossa?

A palavra «eles» trouxe consigo uma nova tensão à voz de Harry. Recordar Aber representava um esforço imenso e um golpe agudo de dor.

- Não. Ele está lá em baixo, na loja. Deixaram-no ficar para ti. Harry baixou os olhos para o fogo e as suas pestanas compridas projectaram-lhe sombras sobre o rosto.

- Esperaram muito tempo por mim?

- Mais de uma semana. Procuraram-te por todo o lado. Mas acabaram por partir. Não fazia sentido continuarem aqui. Disseram que havias de voltar para vir buscar o cavalo e o meu pai prometeu que os avisava.

- E tu? - perguntou ele, com um sorriso triste.

- Eu não prometi nada.

E também não lhe prometia nada a ele. Harry percebeu o que ela queria dizer, mas não pediu nada. Cabia-lhe a ela julgar, mas ele pensava que Aelis confiaria nele e o deixaria agir como queria.

- Podias voltar a vestir as tuas roupas - sugeriu Aelis, guiada pelo seu espírito prático.

Os olhos de Harry brilharam e Aelis ficou contente. Sim, pelo menos podia apresentar-se como ele próprio, no sítio onde ia agora: o seu rosto era apresentação suficiente e as roupas ficariam a condizer. Aelis foi buscar as roupas cuidadosamente dobradas e, em seguida, enquanto Harry vestia os seus bons trajes galeses, cortados à sua medida, ocupou-se a cuidar do forno. As mangas da cota estavam um pouco curtas, mas isso não fazia grande mal.

- Estão limpas e secas - disse Aelis, por cima do ombro. - Pelo menos ficas apresentável. E não te esqueças do manto. Eu escondo estes trapos. O meu pai não vai saber que estiveste aqui.

Alertada pelo silêncio que se seguiu ao rumor dos movimentos dele, Aelis voltou-se; Harry estava parado à porta, fitando-a com um olhar estranho, em que se misturavam a relutância e a determinação.

- Agora que já obtiveste aquilo que querias, podes partir.

- Aelis...

- Vai. E trata de cumprir a promessa de voltares depois. Harry hesitou por alguns instantes e, depois, pegou-lhe nas

mãos, inclinou a cabeça e beijou-a solenemente nos lábios; antes mesmo de Aelis ter tido tempo para se refazer da surpresa e de, num gesto de espanto, tocar nos lábios com as pontas dos dedos, Harry já saíra da cabana e atravessara a clareira em direcção ao bosque.

Durante as horas do crepúsculo, Harry manteve-se agachado sob um maciço de arbustos, abaixo do rebordo acidentado do planalto sobre o qual se erguia a igreja, à escuta dos ruídos das idas e vindas da guarnição excitada de Parfois, que se afadigava nos preparativos para o regresso do seu senhor.

Desde o desembarque em Portsmouth, com o rei Henrique, em finais de Outubro, a companhia avançava a bom ritmo. A nova da sua aproximação chegara a Pool, pouco antes de eles aparecerem em Ludlow. Segundo os rumores que circulavam pelas ruas de Pool, naquela noite acampariam em Montgomery e, de manhã, cobririam a curta distância que os separava de Parfois. Naquele mesmo momento, a nova soprava como um vento frio e mortal sobre todas as aldeias próximas de Long Mountain. Dizia-se que o chacal de Guichet era bastante mau, mas que os seus poderes tinham limites; em contrapartida, o velho leão não reconhecia quaisquer restrições dentro do seu feudo e o seu domínio era tão absoluto como a peste. A notícia do seu regresso levava os próprios animais selvagens a procurar refúgio nas respectivas tocas.

A subida não representara qualquer problema para Harry, que crescera entre os penhascos de Snowdon. Nenhum ponto daquele promontório em forma de cunha, que ia dar à plataforma isolada sobre a qual se erguia o castelo, era completamente a pique e, apesar de não poderem dar cobertura a uma aproximação em grupo, as árvores raquíticas que cresciam de forma precária nas suas fendas haviam bastado para ocultar um rapaz solitário. Faltava, todavia, resolver o problema que atormentara a mente de Harry ao longo dos meses durante os quais esperara o regresso do seu inimigo: como entrar no castelo propriamente dito? Só havia uma maneira: pela ponte levadiça, entre as torres da guarda. Dera cabo do cérebro em busca de uma alternativa, mas não existia nenhuma, a não ser para quem arranjasse um aliado dentro das muralhas e isso era uma ideia que estava fora de questão. Já que só havia uma maneira de entrar, seria essa que ele utilizaria.

Em tempos normais, seria quase impossível entrar sem ser detectado mas, na manhã seguinte, quando o senhor de Parfois regressasse de França com os seus quarenta cavaleiros e respectiva escolta e todos os habitantes do castelo saíssem ao seu encontro para os acompanhar na entrada, mais um rapaz insignificante podia muito bem juntar-se discretamente à multidão e passar pelos guardas sem ser notado. Uma vez lá dentro, podia ir atrás dos habitantes excitados, sem nunca se deter em lado nenhum o tempo suficiente para despertar suspeitas, até arranjar maneira de se encontrar a sós com Ralf Isambard. O que aconteceria depois era coisa que Harry não se dera ao trabalho de tentar imaginar. Podia até não haver depois. Fosse como fosse, não podia deixar escapar aquela oportunidade e isso era tudo quanto lhe interessava.

Os ruídos de Parfois começavam a ser-lhe familiares. Ouvia o martelar das ferraduras e o som mais abafado e contínuo de pés sobre as tábuas da ponte levadiça. Ouvia as vozes de pessoas que seguiam pelo caminho da ponte até à rampa. Ouviu tocar as vésperas no escuro crepuscular da igreja que o seu pai construíra e, dentro de si, o coração acalmou-se, maravilhado, como se sentisse que estava a aproximar-se do âmago de um mistério.

Gelado, com os membros entorpecidos, sem se mexer do seu esconderijo, Harry escutava os sons do dia que, um a um, iam cedendo lugar ao silêncio, até se ouvirem apenas os passos cadenciados da sentinela, no caminho da ronda, entre as duas torres da entrada. Finalmente, as correntes da ponte levadiça rangeram contra as roldanas e Parfois preparou-se para a noite, no interior das suas muralhas inexpugnáveis. Harry continuou sem se mexer durante mais algum tempo: não havia pressa e, agora que chegara o momento, descobriu que sentia medo. Ali, além de haver alguma coisa a descobrir, podia haver também alguma coisa a perder.

Quando, havia longos e gélidos instantes, já nada perturbava o silêncio, Harry abandonou o seu refúgio e subiu devagarinho as últimas jardas de rocha acidentada, até à erva alta e aos arbustos que ladeavam o planalto. As estrelas estavam visíveis, mas não havia lua e o céu sem nuvens era de uma escuridão fria. Quando emergiu da orla das árvores, distinguiu os contornos denteados do pano da muralha, com os seus merlões recortados contra as estrelas; e, entre eles e Harry, quebrando a linha sinuosa da muralha, erguia-se a silhueta da igreja.

Ao olhar para cima, as formas afiladas atraíram os seus olhos para o céu, apesar da escuridão, e Harry adivinhou a torre alta que prolongava a ascensão daquelas formas, em direcção às estrelas. De dia, apresentara-se-lhe como uma haste esculpida que, com os seus jorros de luz e sombra, ia estreitando passo a passo em proporções mágicas, que perdia peso e ganhava ímpeto à medida que se elevava. Agora, de noite, era um pilar de sombra, que o ocultava ao olhar da sentinela, quando emergiu de entre as árvores e atravessou decididamente o espaço aberto coberto de ervas.

Na porta ocidental, havia uma portinhola. Harry agarrou na argola com as duas mãos e rodou-a: a portinhola cedeu ao seu empurrão cauteloso e ele entrou.

Uma vez lá dentro, avançou na escuridão fria até às escadas estreitas que iam dar ao trifório e subiu-as, tacteando a pedra com as mãos nervosas. Tantas haviam sido as vezes que Adam desenhara diante de si os planos e as elevações daquela nave que Harry conhecia todas as suas escalas e era capaz de se orientar no seu interior, mesmo de noite. Não fora apenas pela sua posição conveniente nem pelos muitos esconderijos que oferecia que decidira passar ali a noite de espera. Ao alvorecer, antes do regresso dos soldados, iria por certo ser finalmente presenteado com pelo menos um vislumbre do espírito de seu pai: uma imagem pessoal, a acrescentar às muitas facetas de mestre Harry que recolherajunto dos que lhe haviam sido próximos.

Às apalpadelas, percorreu a estreita passagem do trifório até ao fundo, até junto da janela leste que apresentava um padrão de lancetas estreladas recortado contra a escuridão. Ali chegado, enrolou o manto à volta do corpo e aninhou-se no canto, com as costas contra a parede. Era difícil alguém deitar-se ali mas tanto melhor, porque assim não corria o risco de adormecer.

Apesar disso, durante as longas horas da noite, houve alturas em que chegou a ceder a uma sonolência desconfortável; mas nunca por mais de alguns minutos de cada vez. Estava gelado até aos ossos e, aos primeiros e frágeis raios de luz da alvorada, levantou-se e começou a andar para trás e para diante na passagem, batendo com os pés enregelados nas tábuas.

O dia nascia lentamente. À sua volta, as paredes emergiam da escuridão em gradações de cinzento, que se iam tornando mais claras e consistentes e assumiam proporções e formas. Os pormenores abriam-se como se fossem flores e, nas cabeças esculpidas nos modi-lhões ao longo da passagem, despontavam cabelos e feições que sorriam e faziam caretas, quando se aproximava. A procissão de capitéis da nave explodia numa vegetação exuberante, cada folha nascendo de outra folha, com o vigor da própria vida. Mesmo na grande janela da fachada leste, a cor só surgiu mais tarde. Primeiro, era apenas uma luminosidade global; depois, gradualmente, começou a divisar-se o gradeado, um rendilhado de formas sem significado até ao momento em que o calor do dia nascente fez brotar os vermelhos, os azuis e os verdes escuros que, a cada minuto, adquiriam um brilho e uma luminosidade cada vez mais puros. Então, quase abruptamente, a cor brotou da própria pedra e o cinzento tingiu-se de laivos dourados. Sobre a cabeça de Harry, indistinto e misterioso, flutuava o esboço da quilha invertida de um navio.

Exercitadas no mesmo mistério, as suas mãos curvaram-se e os seus dedos estenderam-se no vazio, reproduzindo involuntariamente a tensão e a precisão da abóbada. Tal como as nervuras que brotavam dos pilares da nave pareciam estremecer de alegria, movidas por uma energia própria, também as mãos de Harry se abriam e projectavam com deleite, no seu complicado mecanismo próprio de ossos e tendões. Nesse instante, a nuvem escura que ocultava o sol nascente dissipou-se e, pela janela oriental, entrou um raio de luz directa que inflamou de cores intensas o rendilhado da rosácea e correu como uma lança de um extremo ao outro da igreja, despertando da sombra as nervuras fortes e elegantes que cobriam a abóbada de grandes flores estreladas, transformando em ouro a viga do tecto, e brincando entre os caracóis das cabeças de todos os querubins que cantavam nas bossagens pintadas.

Extasiado, Harry contemplava as gradações da luz que dançava sobre o tecto, sem saber o que tanto o comovia: se a hora, a grande beleza das proporções e espaços que o rodeavam ou o sentimento maravilhoso e assustador de haver chegado tão perto da fonte do seu próprio ser. Olhava e o que via exercia um efeito calmante. Estava tão concentrado no que se lhe apresentava que não ouviu o martelar das ferraduras sobre a plataforma rochosa, nem o ruído das correntes da ponte levadiça quando esta foi apressadamente descida. Só começou a sair do transe em que mergulhara, quando, lá em baixo, as fissuras rochosas repercutiram o som surdo do ferro sobre as tábuas, tomando então consciência de que uma companhia de cavaleiros estava a entrar em Parfois.

Já? Não, era impossível: àquela hora deviam eles estar a partir de Montgomery. Para quê tanta pressa? Tenso, Harry ficou quieto, de ouvido atento. O ruído cavernoso não durou muito tempo. Deviam ser uns vinte cavaleiros, não mais. Depois, o silêncio voltou a instalar-se. Talvez fosse um destacamento avançado, com ordens quanto aos preparativos para receber Isambard. O melhor era deixar-se ficar escondido, até à chegada do grosso das tropas, altura em que todos os habitantes do castelo sairiam ao seu encontro. Um grupo de vinte homens, para mais a cavalo, não era de qualquer utilidade: Harry precisava de centenas.

A portinhola da porta ocidental abriu-se sem ruído; Harry só deu por isso quando o batente tocou suavemente na parede. Embora discreto, o som foi ampliado pela altura da abóbada. Assustado, com o coração a bater com força, Harry recuou para as sombras do trifório, no momento em que um homem entrava na igreja.

Era alto e magro, uma silhueta sombria e esguia que envergava uma cota castanha escura ou preta, curta, própria para montar. Junto à anca, via-se a saliência da guarda de uma espada; Harry ficou a vê-lo tirar as luvas compridas, cujos anéis de ferro cintilaram com um brilho sombrio. Um dos homens da guarda avançada de Isambard e, pelo seu aspecto, devia ser alguém importante. As suas vestes eram austeras, mas ricas e amplas e envergadas com a autoridade que apenas o nascimento confere; os seus movimentos possuíam o cunho inconfundível da nobreza, a convicção absoluta de quem nunca precisou de hesitar ou de recorrer à prudência ou à humildade para aplacar os poderosos; todo ele emanava uma graça altiva e natural. O homem avançou até ao meio da nave central e, aí, parou, a olhar em frente, para um ponto qualquer acima do altar-mor. O seu rosto estava na sombra e Harry, receoso mas fascinado, não resistiu a debruçar-se um pouco, do seu ninho de águia, para o ver melhor.

O desconhecido não podia haver visto o movimento, mas sentiu a deslocação do ar; ou talvez fosse dotado do ouvido de um animal selvagem, de que possuía também o porte, e fosse capaz de detectar o mero roçar de uma manga contra a pedra.

- Quem está aí? - perguntou, numa voz cortante, ao mesmo tempo que inclinava a cabeça para trás, para olhar para a abertura do trifório.

Encolhido no seu abrigo de pedra, Harry viu o rosto subitamente iluminado. Cabelos curtos e frisados, grisalhos, mas ainda fartos, cobrindo, como se fossem um elmo, a cabeça magnífica e delicadamente desenhada, e cortados a direito sobre a testa alta e descarnada. Um rosto normando glabro, com um nariz comprido e direito, queixo arrogante e olhos com um brilho sombrio, em órbitas cavadas. Era um velho! A pele dura e tisnada estava seca e curtida. E, todavia, era belo. A sua beleza essencial transparecia em tudo e conferia-lhe uma espécie de intemporalidade que se harmonizava com os seus movimentos. Através da pele amarelada da testa alta, cada traço da ossatura irradiava uma graça inalterável; sob o cabelo espesso, o crânio impunha a nobreza da forma. O olhar profundo brilhava como uma lanterna admirável e inextinguível; dir-se-ia que um ser estranho e selvagem habitava a morada abandonada por um anjo.

Então, Harry compreendeu que quem se encontrava diante de si era Ralf Isambard, senhor de Mormesnil, Erington, Fleace e Parfois.

O encontro dera-se demasiado cedo. Harry sentiu que os joelhos lhe cediam sob o peso do corpo e os seus dedos crispados agarraram-se à coluna atrás da qual procurara abrigo.

- Então, estás aí? - perguntou a voz, clara e distinta, apesar do tom baixo. - No mesmo local e à mesma hora. Vais descer ao meu encontro ou queres que eu suba? Quem é que dita as regras hoje?

Harry encostou-se à parede, para escapar àqueles olhos inquisidores, e deixou-se ficar ali por instantes, tentando controlar a respiração.

- Muito bem - disse Isambard, no mesmo tom de voz. - Como não vens até mim, vou eu até ti.

O som dos sapatos de montar pontiagudos sobre o empedrado não era descoordenado, mas curiosamente hesitante, como se se tratasse dos passos de um coxo, cujo coxear só se nota quando ele se esquece de o controlar. Os passos aproximaram-se da escada, sem pressas, e começaram a subir. Era preciso ter cuidado com uns sapatos como aqueles, nos degraus estreitos. Polegada a polegada, Harry foi recuando até ao fundo da passagem estreita, onde ficaria protegido por paredes à esquerda e à direita, e encostou-se ao vão, sob o último capitel esculpido. Fez girar o cinto, para colocar o punho da adaga ao alcance da mão e retirou a lâmina da bainha.

Interiormente a firmeza era pouca, mas a sua mão não tremia. Mais valia ser agora do que depois de haver passado vários dias escondido, à espera. Era melhor assim. Os seus ossos voltaram a conseguir suportar o peso do corpo. O coração inchou-lhe no peito, não por sentir esperança ou medo, mas por lucidez e aceitação. Chegara o momento; não seria necessário esperar por ele e estava contente por isso.

Os passos ligeiramente vacilantes haviam parado; Isambard detivera-se algures, longe da vista. Porquê?

A resposta atingiu-o como uma punhalada, quando se atreveu a espreitar: a silhueta alta chegara já ao cimo dos degraus e avançava silenciosamente e sem pressas pela passagem de pedra. Isambard limitara-se a parar para descalçar os sapatos. Os seus pés compridos, cobertos apenas pelas meias castanhas e justas não produziam qualquer som. Avançava e sorria, se é que se podia chamar sorriso ao esgar que lhe transformara a boca numa linha, com o canto esquerdo erguido.

Na mesma voz ardente e baixa, perguntou:

- Era isto que esperavas de mim, Harry? Ou deveria haver trazido comigo a cruz do altar?

O coração de Harry começou a bater desordenadamente. O homem era o diabo em pessoa. Se assim não fosse, como podia ele saber tudo: o seu nome, as suas intenções, tudo? Até onde deveria deixá-lo aproximar-se, antes de o enfrentar? Precisava de espaço para se movimentar, de alguns passos de distância entre ambos. Claro que era jovem e, por isso, estava em vantagem, mas precisava de espaço para poder recuar. Aquele homem era velho, velho: segundo os cálculos de Adam, devia ter uns cinquenta ou sessenta anos.

Agora, pensou Harry, retesando os músculos. Respirou fundo e saltou do nicho onde se refugiara para o meio da passagem. A última cabeça esculpida pelo seu pai parecia espreitar por cima do seu ombro, Harry não lhe prestou atenção, porque a luz do dia ainda mal a aflorava; mas Isambard vivera numa quase intimidade com ela durante quinze anos e conhecia-a traço por traço. Viu a cabeça de pedra e a cabeça de carne e osso, espantosamente semelhantes, e imobilizou-se por um instante, como se ele próprio se houvesse transformado em pedra. Depois, os dois rostos que lhe haviam parecido quase iguais revelaram-lhe de súbito as diferenças existentes entre eles. Mas as parecenças persistiam. Mestre Harry dera provas de fortes poderes divinatórios, mas esculpira o rosto de um homem e, afinal, o ser de carne e osso não passava de um rapaz, no princípio da adolescência. Apesar de vivo e jovem, o rosto de pedra denotava uma segurança que o rapaz ainda não podia reclamar como sua. Um estava feito, o outro ainda a caminho disso. Agora, Isambard sabia quem se encontrava diante de si.

- Ora muito bem! - exclamou docemente. - Sê bem-vindo. Há muito que esperava por este momento.

- Eu também! - replicou Harry.

Levou a mão ao cinto e puxou para a frente o punho da adaga, num gesto que não dava lugar a dúvidas. Bem apoiado sobre os pés afastados, o olhar fixo no seu inimigo, esperou que Isambard puxasse da espada. O sorriso diabólico e oblíquo voltara a rasgar o rosto descarnado, como se fosse uma cicatriz. Quando, finalmente, levou as mãos à cintura, Isambard não as colocou na guarda da espada, mas nas fivelas das quais esta pendia. Sem pressas, sem deixar de sorrir, desapertou-as e atirou a espada e a bainha pela abertura do trifório. O ruído que estas fizeram, ao cair lá em baixo, sobre as lajes do presbitério, abalou Harry dos pés à cabeça e, por um breve instante, perturbou a sua concentração. Num gesto significativo, colocou a mão sobre a adaga.

- Estamos em igualdade, senhor.

Isambard seguiu o gesto com o olhar e soltou uma gargalhada, enquanto baixava a mão para a adaga que trazia à cinta. O sorriso retorcido era fixo e ostensivo. Harry não esperou mais. Todos os anos de expectativa, de apreensão e de esperança afluíram às suas mãos cerradas, às suas pernas flectidas e trementes. Empunhou a adaga e lançou-se sobre o inimigo, com todo o seu peso e com todo o seu saber.

O choque do embate arrastou ambos uns dois passos para trás. A lâmina rasgou a cota de Isambard menos de uma polegada abaixo do coração, mas este agarrara o punho de Harry com a mão esquerda, torcendo-o para fora e para baixo, pelo que a adaga cortou a cota e a camisa ao nível das costelas, provocando apenas um inofensivo arranhão superficial. Isambard não puxara da adaga; mesmo no calor do assalto, Harry apercebera-se do facto, o que o enraiveceu terrivelmente e lhe deu forças redobradas. Um braço direito comprido, duro como aço, rodeou o corpo de Harry, aprisionando-lhe o braço esquerdo acima do cotovelo, e, com um movimento de torso, Isambard arremeteu violentamente contra ele, fazendo-o perder o equilíbrio. Ao sentir que ia cair para trás, Harry lançou o calcanhar contra o peito do adversário e, sem parar de se debater, arrastou-o consigo na queda.

O tombo cortou-lhes a respiração. Harry conseguiu libertar o pulso e voltou a atacar, mas o seu braço foi novamente imobilizado e, desta vez, o golpe não fez correr sangue. Isambard pregou-o ao solo, deixando cair sobre ele todo o seu peso e, deliberadamente, ergueu o braço do rapaz e baixou-o em seguida, com força, contra o pavimento.

A dor desceu do ombro até às pontas dos dedos e todos os seus músculos gritaram e vibraram de impotência. Harry lutou por manter os dedos sobre a adaga, mas estes não lhe obedeciam. Tentou segurá-la com a mão esquerda mas Isambard manteve-lhe os braços afastados e o corpo colado ao solo até, mau grado a luta e os soluços, a adaga se soltar lentamente dos seus dedos. Então, sempre a sorrir, Isambard agarrou os dois pulsos do rapaz com uma só mão, magra, musculada e impiedosa, enquanto com a outra apanhava a adaga e a atirava para junto da sua própria espada.

- Já acabaste?

Mantinha-o imobilizado com uma só mão, divertido com as suas tentativas vãs para se libertar. Mas, mal Isambard lhe soltou os pulsos e se apoiou nos calcanhares para se erguer, Harry estendeu o braço para a adaga que o próprio Isambard não quisera utilizar. Já quase a retirara da bainha, quando o joelho do velho senhor se abateu sobre o seu braço, esmagando-o mais uma vez contra as lajes.

- Será que preciso despojar-me de tudo, para tu gritares por piedade? - perguntou a voz irónica, que a luta corpo a corpo não perturbara.

E era um velho!

Harry deixou-se ficar deitado, sem se mexer, tentando recuperar o fôlego e engolindo a frustração. O ódio que até então nunca sentira realmente inflamava-lhe agora o coração como um fogo ardente. Lutar servia apenas para o enfraquecer: não era capaz de desviar o peso que o esmagava nem de quebrar o punho que o imobilizava. Continuavam os dois sozinhos na igreja, frente a frente, e apenas as vozes de ambos podiam quebrar o silêncio. Harry inspirava o ar em lufadas longas e furiosas, atento, mudo e perigoso como um animal encurralado no covil. Mais cedo ou mais tarde, Isambard seria obrigado a soltá-lo. E ele não prometera nada, não pedira tréguas, nem fizera acto de submissão. Ainda não estava tudo acabado.

- Assim está melhor! - resmungou Isambard, soltando-o para se pôr de pé, num movimento rápido.

Mas, desta vez, conservou a mão sobre a adaga e girou sobre si mesmo, para colocar a anca fora do alcance do rapaz.

Pondo em acção toda a energia e toda a raiva, Harry lançou um olhar ao perfil negro, esguio e bem definido que se recortava contra a luz, enquadrado pelo vértice do trifório, e à altura de pelo menos trinta pés entre a figura de Isambard e as lajes de pedra do coro. Feito isto, rolou o corpo e assentou o seu peso no joelho, num único movimento, lançando-se em seguida contra o adversário, que agarrou com os dois braços ao nível das coxas e arrastou consigo em direcção à abertura.

No primeiro instante, Isambard foi apanhado desprevenido, mas havia sessenta anos que habitava aquele corpo, que exercitara e no qual aprendera a confiar e, em situações de emergência, os seus próprios músculos pensavam por si. O seu braço direito rodeou a coluna que se encontrava atrás de si e os pés descalços firmaram-se no chão de pedra para resistir ao impulso. A sua posição era inamovível e o peso de Harry apenas o fez oscilar ligeiramente e foi o rapaz e não o homem quem, por um longo e penoso instante, ficou suspenso sobre o vazio. Mesmo então, em vez de tentar segurar-se para ficar fora de perigo, Harry não largou o adversário, tentando arrastá-lo consigo na queda.

Isambard inclinou-se para trás e fez força. Passou a mão livre por trás do pescoço de Harry, agarrou firmemente a cota e a camisa e torceu o tecido até as faces do rapaz ficarem arroxeadas e os seus olhos começarem a revirar-se. Sufocado, Harry soltou Isambard, para levar a mão à garganta e, no mesmo instante, o pulso forte que o estrangulava içou-o brutalmente e atirou-o para lugar seguro, junto à parede. Mas, desta vez, o velho senhor não o libertou: a pressão sobre a garganta parou de imediato, mas a mão que a exercera agarrou-o pelo braço.

- Já chega! - resmungou Isambard, voltando ajuntar os pulsos magoados de Harry e segurando-os com toda a força.

Em seguida, debruçou-se sobre o rapaz e, deliberadamente, sem cólera aparente, abriu a mão e deu-lhe três sonoras bofetadas na cara. Nem sequer eram verdadeiros golpes que um homem pudesse receber com dignidade: eram uma espécie de castigo premeditado como aquele que alguém aplicaria a uma criança que houvesse abusado da sua paciência.

- Isto é por haveres desprezado a própria vida, grande tolo - anunciou calmamente. - Para aprenderes a matar como um homem razoável, quando for preciso, e não como uma mulher a quem o despeito fez perder o juízo.

Ainda sem fôlego, o rapaz encolheu-se, fulminando-o com o olhar. As marcas brancas deixadas pelas bofetadas começavam a ficar rosadas. Rangeu os dentes, sem dizer palavras, mas os seus olhos eram eloquentes.

- Estou a ver que ele gerou um ser de ódios fortes - comentou Isambard, observando Harry com atenção e sorrindo, aparentemente satisfeito com aquilo que via. - Eis um memorável regresso ao lar! Tu e eu, rapaz, vamos obter um acolhimento caloroso em Parfois. Anda, vamos saboreá-lo.

Pô-lo de pé, separou os dois pulsos que não deixara de segurar, voltou ajuntá-los atrás das costas do rapaz e empurrou-o brutalmente à sua frente, ao longo da passagem que conduzia às escadas. Foi então que se ouviram passos junto ao pórtico da igreja e vozes que falavam num tom reverencial, embora não por respeito à santidade do local.

- De Guichet! - chamou Isambard, visivelmente satisfeito. - Estou aqui e comigo está também um convidado para vós. Chamai os guardas e dizei-lhes que tomem bem conta dele. É um agitador impetuoso.

Três ou quatro cavaleiros haviam acorrido, ao ouvir a voz do seu senhor.

- Conheceis esta cara? - prosseguiu Isambard, voltando a cabeça de Harry, para que todos pudessem ver-lhe o rosto.

Quando, num movimento altivo, Harry virou a cara, Isambard ergueu-lhe o queixo, para que a luz o iluminasse melhor. Apesar de pouco ortodoxo, o breve corpo a corpo matinal, deixara de excelente humor o senhor de Parfois.

- Então, senhores? Mesmo que o rosto esteja um pouco esbatido na vossa memória, o temperamento deveria bastar para o identificar.

Depois de olhar bem, atónito, um dos homens, um cavaleiro robusto e barbudo que, pelos seus modos, podia muito bem ser o senescal de Guichet, disse:

- É um Talvace, sem dúvida nenhuma.

- Sem dúvida nenhuma! Deve ser a criança que eles levaram para Gwynedd. É excessivamente parecido e os sinais são demasiados para poder ser filho de outro homem. Em Parfois, nós sabemos receber um Talvace, não sabemos? Levai-o! Cuidai de que fique bem instalado na Torre da Guarda. E dai-lhe de comer - acrescentou Isambard, negligentemente, depois de um olhar inquisidor ao rosto rebelde de Harry. - Não queremos que ele possa dizer que matamos à fome os nossos visitantes, esperados ou inesperados. Vai ser mais divertido, depois de alimentado. Está magro demais.

Os homens não esperaram segunda ordem e levaram-no com eles, atravessando a esplanada, onde o gelo cobria os espaços não preenchidos pela erva húmida. E foi assim, não como apenas mais um entre algumas centenas, mas como o centro e ponto de mira de um pequeno grupo de uma dúzia de guardas, que Harry atravessou a ponte levadiça e entrou em Parfois.

Isambard estendeu as pernas compridas sobre o chão de pedra da cela e, sem pressas, perguntou:

- Qual deles é que te mandou aqui, para me matares? Aquela mulherzinha ardente que é a tua mãe? Ou Llewelyn? Éramos bons inimigos, o grande príncipe e eu, mas, nos últimos tempos, essa inimizade esfriou um pouco. Ele tem muito com que se ocupar e eu também. Não, duvido que haja sido Llewelyn. Penso que ele te criou como verdadeiro galês, fiel aos seus deveres, e que te ensinou que as dívidas de sangue são sagradas, mas não acredito que te haja mandado aqui, sozinho, em tal missão. Então? Não dizes nada?

Nada. O rapaz não dissera nada, desde que o haviam encerrado naquela cela subterrânea de pedra, com uma única vela e uma cama estreita. Não por estar demasiado amuado ou assustado: quando tivesse alguma coisa para dizer, di-lo-ia alto e bom som. Sentia-se apenas terrivelmente perdido. Não compreendia o que se passava, não lhe restava qualquer certeza.

Que tencionariam fazer com ele? Isambard não se ralaria nada de enforcar um rapaz que atentara contra a sua vida, para mais tratando-se de um rapaz pelo qual não precisava de responder perante a justiça do condado nem perante a coroa, de um rapaz que não tinha ninguém que o defendesse em Inglaterra. Mas, se queriam matá-lo, porquê esperar? Para quê mantê-lo ali, naquela cela, em condições sumárias mas sem grande desconforto? E, sobretudo, por que viera o próprio Isambard visitá-lo depois da ceia, envergando aquelas vestes sumptuosas e cerimoniais de brocado castanho e ouro, e acompanhado por servos que transportavam uma cadeira dourada e por um pajem para lhe servir vinho? E por que mandara embora todos os membros do séquito? Se pretendia apenas divertir-se com o prisioneiro, que importava haver ou não quem assistisse?

- Ou foi Benedetta? - perguntou Isambard.

Harry não respondeu; limitou-se a fitá-lo, desconfiado, por entre as pálpebras quase fechadas de fadiga.

- Vejo que conheces o nome, Harry. Estou certo em chamar-te Harry? Não sou capaz de imaginar que te possam haver dado outro nome. Vá lá: podes responder a isto, sem revelar os segredos de ninguém.

- O meu nome é Harry - respondeu o rapaz de má vontade, numa voz ligeiramente rouca, devido à desconfiança e à falta de uso.

- Bom. Estou a ver que não perdeste a língua. Cheguei a pensar que a havias engolido. Já vi que conheces a Madonna Benedetta. Ela ainda é viva?

Silêncio. Mas talvez Isambard houvesse lido a resposta no rosto alerta, porque sorriu e, no fundo dos seus olhos, brilhou uma centelha.

- Foi ela quem te encarregou da missão de ajustar contas comigo? É verdade que ela tem contas a ajustar. Mas, noutros tempos, ela encarregaria um homem adulto de fazer os seus recados e pagar as suas dívidas.

Perante aquela observação sarcástica, os lábios de Harry crisparam-se de cólera, mas não se abriram para responder.

- E o Adam Boteler ainda é vivo? E aquele servo de Benedetta, que a ajudou a chegar a Shrewsbury, no dia em que os galeses conquistaram a cidade? Passaram-se quinze anos, Harry, e, como vês, não me esqueci de nada. Os galeses não tardaram a bater em retirada. Shrewsbury nunca voltará a ser galesa por mais de alguns dias e Llewelyn possui inteligência suficiente para reconhecer isso. É certo que é uma cidade exposta, mas é inglesa até à medula e nada pode alterar isso. Tal como Poitou, Anjou, a Normandia e a Gasconha, todas as belas terras onde tolamente passámos tantos meses e gastámos tanto dinheiro, são francesas e continuarão a ser francesas, façamos nós o que fizermos. Podemos voltar a conquistá-las, a um preço cem vezes superior àquele que elas valem para nós, por alguns meses ou mesmo por alguns anos, mas elas continuarão a ser francesas e nós acabaremos por ser forçados a retirar. E o mesmo acontece com a Bretanha, apesar da homenagem de Peter de Mauclerc ao nosso rei e senhor. Mauclerc bem pode declarar que a Bretanha é um feudo inglês, se lhe aprouver, mas são apenas palavras e não alteram a realidade. E foi tudo quanto trouxemos da nossa ruinosa viagem. Graças a Deus e à nossa vigilância. Porque, se a derrota nos sai cara, a vitória haver-nos-ia custado muito mais, a nós e aos nossos herdeiros. O rei Henrique teve a sua marcha triunfal, que tanto desejava. Agora, talvez aqueles de entre nós que fazem o que é mister fazer aqui, na nossa terra, fiquemos com as mãos mais livres.

Isambard ergueu os olhos do copo de vinho, deparou com os olhos verdes estupefactos, intrigados e perplexos de Harry e soltou uma gargalhada.

- Que maneira de olhar, Harry! Não devo pensar em voz alta, na tua presença? O teu pai acabou por se acostumar. Confunde-te ser eu a falar e tu a ouvir? Então fala e eu calar-me-ei.

Esperou um pouco, os lábios deformados pelo seu sorriso oblíquo, mas Harry não disse nada.

- Sendo assim, vou ter de culpar todos eles por este atentado contra a minha vida, não é verdade? O meu braço chega muito longe, não te esqueças, e a minha memória é terrível.

- Eu vim por minha livre vontade - declarou Harry, com brusquidão. - Ninguém me mandou. Eles têm andado à minha procura, para me levar de volta.

Isambard sorriu e reclinou-se na cadeira.

- Ah! Afinal, sempre respondes, quando te convém. O teu ódio contra mim é tão grande que concluo que eles te contaram a história do teu nascimento. E que mais te ensinaram eles acerca do teu pai? Há muito mais a dizer sobre ele, além da forma como morreu. Herdaste alguma parte da sua arte? Já vi que és dotado do mesmo temperamento irreflectido.

Harry sentiu que não havia nada de útil a dizer àquele homem espantoso e aterrador que, aliás, não lhe exigia que falasse. O destino que lhe estava reservado, fosse ele qual fosse, não dependia de qualquer provocação da sua parte e nada do que ele pudesse fazer, numa tentativa de conciliação, iria servir para o poupar. Era melhor ficar calado. Estava muito cansado. Só queria ficar sozinho, para se acomodar à sua sorte. E pensar que quase havia conseguido! Uma polegada mais acima, uma reacção mais rápida e poderia haver abandonado Parfois, vingado e livre, com todas as contas saldadas.

- Na verdade, é uma pena pensar que, neste momento, eu poderia estar morto e tu a umas dez milhas daqui, a caminho de casa - acrescentou Isambard, sorrindo para Harry. - Mas hás-de

descobrir que, de vez em quando, a vida de um homem sofre reveses como este. Deus há por certo as Suas razões. Bem, vamos ver se conseguimos levar-te a falar outra vez. Como foi que passaste pelo primeiro posto da guarda? Será que preciso de mandar enforcar toda a guarnição por te haver deixado passar?

- Eu não passei pela guarda - replicou Harry, que se sentiu na obrigação de clarificar as coisas. - Escalei as rochas.

- Bem, bem. Estou a sentir-me encorajado. Quase dez palavras seguidas! Então, só mais uma pergunta.

Antes de prosseguir, Isambard colocou as mãos magras, de dedos compridos, sobre os braços da cadeira e a luz da vela incidiu sobre os rubis dos seus dois anéis, que pareceram incendiar-se. Os seus olhos encovados adquiriram também um brilho vermelho.

- Onde foi que eles enterraram o mestre Harry, depois de o haverem retirado do rio?

Harry susteve a respiração: aquele era o primeiro indício que talvez pudesse esclarecê-lo. O tom de voz quase não mudara, mas sentiu de imediato que daquela vez era diferente: daquela vez, Isambard queria mesmo uma resposta.

Portanto, o ódio seguia o inimigo para além da morte. Quinze anos depois, Isambard mantinha viva a querela contra o seu mestre canteiro e não estava disposto sequer a deixar que os ossos dele repousassem em paz. De súbito, Harry sentiu que a cela era demasiado pequena para conter o seu próprio medo e o seu próprio rancor, quase não lhe permitindo respirar.

- Para que quereis saber do túmulo do meu pai? - perguntou, numa voz abafada pela bílis que lhe afluíra à boca. - Vós destes-lhe a morte e outros cuidaram de lhe dar sepultura. Deixai-o em paz.

- Em nome da justiça - replicou Isambard, imperturbável - deve dizer-se que foi John o Frecheiro quem lhe deu a morte e Benedetta quem encarregou John de o fazer. Mas não vou discutir a tua versão, Harry. A verdade vai além dos factos nus e crus. Eu matei-o. Agora responde à minha pergunta. Onde está ele enterrado?

- Num local onde nunca ireis perturbá-lo, senhor. A salvo de vós, como vós estais da sua vingança...

- Pode ser que assim seja - concordou Isambard, com um sorriso sombrio.

- ...mas não da minha, senhor! Enquanto me permitirdes que eu viva, esperarei o momento de poder deitar as mãos a uma arma e de vos encontrar ao meu alcance. - A intensidade do ódio fazia tremer Harry e a sua voz era abafada pela paixão. - Sempre ouvi dizer que éreis um lobo, mas nunca ninguém me disse que desceríeis ao ponto de violardes o descanso dos mortos. Com a ajuda de Deus, perseguir-vos-ei até ao fim, tal como vós o perseguis a ele e hei-de ver-vos num túmulo antes de conseguirdes colocar as mãos sobre o dele.

- Calma, calma! - protestou Isambard, numa voz complacente, mas irritada. - Estás a desperdiçar as tuas diatribes, pois não está aqui ninguém para as ouvir. É melhor deixares de me dar boas razões para te mandar enforcar sem mais delongas. Posso ser tentado a fazê-lo e não há ninguém a quem isso mais possa desagradar do que a ti mesmo. Nunca uses as palavras como fichas de um jogo, a menos que possas pagar depois, em dinheiro sonante. A tua sorte é eu pensar que ainda me podes ser de algum uso. Há uma coisa que quero que me digas, antes de seres enforcado. Quando isso estiver resolvido, veremos. Vamos lá, decide-te. Eu quero uma resposta.

- Nunca a obtereis - replicou Harry, cerrando os dentes. - Ah, vou obter, vou, Harry. E vais ser tu quem ma vai dar.

Não duvides.

A voz parecia de veludo, mas gelou o sangue de Harry. Transmitia uma determinação férrea que, num momento de pânico, o forçou a rever a sua própria resolução, para o caso de esta conter qualquer fraqueza de que não suspeitava. Como podia ele saber até onde iria a sua coragem virginal? Esta nunca fora testada. Humedeceu os lábios secos e calou-se, fixando os olhos muito abertos e apreensivos no rosto de Isambard.

- Dispomos de recursos infinitos e de todo o tempo do mundo. - disse o senhor de Parfois, delicadamente. - Podemos permitir-nos negociar com toda a tranquilidade. Por que ordem queres abdicar dos pequenos confortos que te proporcionámos, Harry? Digamos que, amanhã, podemos retirar-te a comida. No dia seguinte, a água. Depois, talvez o calor e, por fim, a luz.

As pestanas compridas do rapaz bateram por um instante e a boca contraiu-se-lhe num rito de medo. Isambard riu-se. Sem querer, despertara no espírito atormentado de Harry, a recordação da voz de outro homem, dizendo com amargura: «A luz é a última coisa a que um homem pode renunciar. Sem contar com o ar.»

- Uma semana sem nada do que acabei de dizer e quem sabe que cantiga irás tu cantar? Nada de recorrer a meios mais cruéis, até ser preciso. Não estás disposto a mudar de ideias e a dizer-me, esta noite, aquilo que eu quero saber?

Com a certeza de obter uma recusa, Isambard levantara-se da cadeira.

- Nem esta noite, nem nunca - replicou Harry, valentemente.

- Ah, a noite é boa conselheira. Amanhã, a tua coragem pode estar abalada e a tua mente mais lúcida - contrapôs Isambard, num tom tolerante, antes de o abandonar à sua solidão.

- Não! - disse Harry.

Havia três noites que dizia a mesma coisa. E, se desta vez, a sua voz soava menos firme, era por estar com frio e não por medo. No fim do primeiro dia, tinham deixado de lhe trazer comida; no dia seguinte, retiraram-lhe a reserva de água, cuidadosamente poupada; e a terceira recusa custara-lhe as mantas ásperas e a palha que cobria a cama de tábuas. A isto juntava-se a crueldade de Isambard, que nunca fazia a pergunta duas vezes. O «não!» desdenhoso de Harry era sempre aceite sem comentários e sem qualquer tentativa de persuasão. Mas, todas as noites, um ligeiro sorriso atormentador acolhia a relutância cada vez maior e a arrogância cada vez menor com que ele cuspia a negativa.

- Muito bem! - suspirou Isambard.

E estendeu a mão para retirar a vela do candelabro de ferro pousado na saliência da parede. O rapaz estava sentado na beira da cama, de costas curvadas e ombros rígidos; inquietos, os seus olhos verdes seguiam os movimentos lentos e deliberados da mão elegante e musculada do seu captor, em direcção à vela; a passagem daquela mão fê-lo sofrer os tormentos da relutância e da tentação. Cruzara os braços sobre o estômago, torturado pela fome. Três dias sem comida são tempo de mais para um rapaz de quinze anos. Mas o que ele mais receava era a falta de luz. Os seus olhos detiveram-se ansiosos sobre a chama e seguiram o trajecto desta quando Isambard a ergueu. As sombras vacilaram sobre as suas faces cavadas e o seu corpo encolheu-se mais um pouco.

- Daqui a três dias, volto a fazer-te a pergunta - anunciou Isambard. - Desta vez são três dias e não um.

Nem uma palavra. Mas o rosto crispado denunciava claramente a enorme angústia que o rapaz experimentava. Por cima da chama da vela, o sorriso oblíquo de Isambard denotava simpatia. Quando queria, a sua voz e a sua expressão eram de uma gentileza diabólica.

- Ainda dispões de tempo para pensar, antes de eu sair, Harry. Algumas palavras e poderás sair desta cela, comer, aqueceres-te e ficar instalado num sítio melhor. Não precisas de te condenares a ficar às escuras.

A luz que, a partir de baixo, iluminava o rosto de Isambard destacava a ouro e negro todos os pormenores da testa alta e conferia à boca tentadora uma beleza penetrante e doce; mas o demónio continuava a habitar o fundo dos seus olhos.

- Fala e poupa-te a ti próprio.

Com um nó na garganta, Harry engoliu as lágrimas e agarrou-se desesperadamente à obstinação que se alimentava de uma coragem que ia diminuindo.

- Não! - repetiu.

E, quando os seus lábios pronunciaram a palavra, o alívio foi tal que começou a tremer e desmaiou.

O rosto, a mão e a vela bateram em retirada, ainda a sorrir para Harry; o sorriso parecia envolver os três, como se a luz que se afastava emanasse do homem e não da chama. A porta fechou-se lentamente. Restou apenas um estreito fio de luz que em breve desapareceu, dando lugar à escuridão, uma escuridão que iria durar três dias. A partir de agora, não haveria forma de distinguir o dia da noite e o tempo, tal como a esperança, o prazer, a companhia dos homens e todas as coisas humanas para as quais servia de medida, haviam parado.

Uma mão tocou-lhe no ombro para o acordar. Momentaneamente sem saber onde estava nem o que estava a acontecer, Harry ergueu-se, soltando um grito. A cela fora invadida por homens e tochas. A tremer, Harry agarrou-se ao leito desconfortável que, agora, lhe parecia ser a única coisa segura de que dispunha, mas foi arrancado dali e impelido em direcção à porta, ainda atordoado de sono e frio. Seria possível haverem passado três dias desde que fora deixado às escuras? Ou seriam apenas três horas?

Aos tropeções, empurraram-no por umas escadas talhadas na pedra e, depois, por um corredor, até uma divisão grande, cheia de fumo, escura, sem outros objectos que não fossem alguns aparelhos e instrumentos, encostados às paredes, e uma braseira, colocada ao centro. Isambard estava de pé, impassível, junto ao fogo e, ao seu lado, encontrava-se de Guichet. Vagamente, com uma sensação de pesadelo e irrealidade, Harry reconheceu a forma alongada do ecúleo com as suas cordas e roldanas, os ferros escurecidos colocados junto à braseira e os chicotes pendurados na parede. Sempre soubera que iriam acabar por chegar àquele ponto. Segundo parecia, Isambard não fora capaz de esperar três dias.

Agora, nada mais lhe restava a não ser o conflito de paixões entre o terror e o seu orgulho feroz, que se entregavam a uma luta sem tréguas nas suas entranhas. Não ia falar: mesmo que eles desfizessem todas as articulações do seu corpo, mesmo que lhe arrancassem a carne, à chicotada ou queimando-a. Não mais pelo pai, não mais pela sua honra, mas apenas porque preferia morrer a deixar que Isambard levasse a melhor. Era capaz de suportar ser renegado e desonrado mas não poderia suportar ser derrotado.

- Calculo que saibas para que servem estes instrumentos - disse Isambard. - Olha bem para eles! Sabes para que servem?

- Sei - respondeu Harry.

O som rouco que saiu da sua garganta foi quase inaudível. Sim, ele sabia; a sua carne sabia; e não havia esperança de ser poupado a um único suplício.

- Eu quero que me dês uma informação e vou obtê-la. Queres ceder agora ou mais tarde, a um preço maior?

Desta vez, apesar do desespero, Harry conseguiu exprimir-se numa voz mais forte e relativamente firme:

- Não vou ceder.

Isambard acenou com a mão aos homens que seguravam o rapaz pelos braços e estes levaram-no até junto do ecúleo. Então, Harry abdicou todas as mostras de dignidade, excepto da dignidade do desafio e começou a debater-se como um gato selvagem, arranhando, mordendo, cansando-se em esforços inúteis. Mas, de facto, ganhou alguma coisa com isso: uma espécie de aturdimento confuso que, quando eles o martirizaram, daria um certo conforto aos seus músculos doridos e lhe libertaria o espírito atormentado da lucidez total. Foi deitado de costas com os braços abertos, voltado para o tecto enegrecido pelo fumo; sentiu que lhe apertavam correias à volta dos pulsos e dos tornozelos.

- Pela última vez, Harry!

- Não!

Foi um grito rouco. E, mesmo então, Harry ainda conseguiu pensar que devia ser por graça de Deus o terror animal poder, numa situação extrema, produzir um grito de respeitável raiva humana.

Harry soergueu-se e lutou contra as correias, respirando com dificuldade, tentando encorajar-se a si mesmo, antecipando a agonia antes de esta chegar.

Mas ela não chegou. Por momentos - longos e estranhos momentos que mais pareciam fazer parte de um sonho - não se registou qualquer som nem qualquer movimento. Depois, ouviu-se a voz fria e controlada de Isambard:

- Erguei-o!

Desta vez, Harry sentiu-se completamente perplexo e perdido e o medo que se esforçara por conter sacudiu-o da cabeça aos pés, quando eles o libertaram das correias e o ergueram. Mal conseguia manter-se de pé e teve de agarrar-se a um dos braços que o haviam levantado. Os seus olhos muito abertos, nos quais brilhavam lágrimas de confusão, fixaram-se em Isambard.

- Devíeis levar as coisas mais longe, senhor - disse de Guichet, observando atentamente o rapaz que tremia. - Um pouco de dor verdadeira fá-lo-ia ceder melhor do que todas as ameaças.

- Subestimais o temperamento obstinado deste jovem louco. Bem podíeis cortá-lo em pedaços que ele não falava - replicou Isambard, franzindo o sobrolho com uma expressão pensativa.

- Pelo menos, podíamos pô-lo à prova por alguns minutos, senhor - insistiu de Guichet.

Entretanto, o senescal retirara do suporte da parede um dos chicotes e, sem esperar resposta, ergueu o braço a chicoteou Harry no rosto.

Harry soltou um grito de espanto e recuou um passo, levando as mãos à face que sangrava. O que aconteceu a seguir, ele não viu. Foi sempre uma confusão, um espaço em branco, mas de uma coisa estava ele certo: houvera outro grito, mais alto e mais espantado do que o seu, o impacto súbito de um golpe, o som de um chicote a cair por terra. Quando limpou o sangue do rosto e voltou a abrir os olhos, viu Isambard pisar o chicote com um dos pés e a lanterna de bronze do seu rosto ardia numa fúria silenciosa, tão intensa e perigosa que o próprio Harry, que deixara de estar ameaçado, recuou num movimento solidário de susto. Pálido e atónito, de Guichet fitava o seu senhor com um olhar receoso.

- Pensei que podia obter aquilo que desejais, senhor, e que nunca obtereis pela via da paciência - protestava, tentando defender-se, mas com laivos de ressentimento na voz.

- Pensastes! Disse-vos porventura que levantásseis a mão contra o rapaz?

- Não, senhor, mas...

- Então, não lhe toqueis sem eu mandar.

De repente, a chama extinguiu-se e a cabeça de bronze ficou quieta. Voltou-se para os guardas que seguravam Harry e, por alguns minutos, olhou para o prisioneiro em silêncio. Em seguida, compondo a cota como que para assinalar o fim da sessão, ordenou calmamente:

- Levai-o de volta para a cela.

O rapaz foi conduzido para fora da sala. Os seus olhos grandes, dilatados pela exaustão, olhavam em volta como que desfocados, com o olhar perdido de uma criança assustada rodeada de estranhos.

- E deixai-lhe uma luz - acrescentou Isambard.

Sem dúvida como reacção ao terror, mal o deixaram sozinho com a abençoada vela, Harry foi-se abaixo e chorou até cair num sono quase mortal. Mas, quando acordou, estranhamente fresco e revigorado, recuperara a calma e estava em condições de pensar na fuga. Uma coisa era certa: Isambard não abdicara de modo algum dos seus intentos e se, no último minuto, impedira a experiência de terror, não fora por qualquer súbito impulso de piedade, mas porque os seus cálculos lhe haviam indicado serem poucas as probabilidades de tais métodos conduzirem ao resultado pretendido. Não fora o remorso a detê-lo, mas um sentido agudo de economia, que o impedia de desperdiçar inutilmente tempo, esforços e sofrimento.

Este raciocínio contribuiu em muito para que Harry recuperasse a auto-estima. O que acontecera significava que Isambard estava seguro do silêncio obstinado da sua vítima, mesmo sob tortura; verdade fosse dita, mais seguro até do que o próprio Harry se sentira, no pior momento. E também explicava as provações menores por que passara e que lhe davam coragem para o futuro. Porque, se estivesse certo, aquela acalmia pressagiava um novo e menos directo assalto contra a sua pessoa e cabia-lhe a si preparar-se para ele.

Mas, apesar de tudo, naquela manhã, sentia-se quase alegre. Haviam voltado a trazer-lhe luz, mantas e comida e cada movimento fazia-o sentir uma consciência aguda da elasticidade dos músculos ainda doridos, da forma harmoniosa e admirável como as articulações se dobravam. De repente, cada um dos seus dedos passara a ser uma maravilha e um motivo de alegria. Agora, que brilhavam como pontos de luz por entre uma escuridão esmagadora, todos os prazeres eram importantes. Não confiava em ninguém nem esperava nada, mas os pequenos deleites que lhe surgiam pela frente por acaso mereciam ser apreciados.

Com os sentidos bem alerta, Harry ficou à espera do que viria a seguir; e o que veio era tão transparente que lhe foi difícil não se rir resolvendo antes tirar partido de um estratagema que não enganaria nem mesmo uma criança de colo. Dois dos seus guardas mais jovens e mais simpáticos começaram a passar muito do seu tempo, de dia e de noite, na cela de Harry, para melhor o vigiarem. Isambard pensava por certo que um rapaz de quinze anos daria mais facilmente a sua confiança, ou pelo menos uma pequena parte dela, a pessoas com uma idade próxima da sua e que haviam recebido ordens para conquistarem as suas boas graças. Mesmo que não estivesse disposto a trair directamente o seu segredo, Harry poderia deixar escapar alguma coisa que lhe desse uma pista. Mas isso não iria acontecer! Tanto mais que estava de sobreaviso.

Harry acolheu-os de braços abertos, conversou livremente com eles, jogou às damas com o mais novo e aprendeu a jogar gamão com o mais velho. Apreciava a companhia deles, mas não lhes contou nada. Quando Isambard, veio fazer-lhe a pergunta habitual, formulada com um sorriso seco e impessoal, como se a breve agitação da noite anterior não houvesse ocorrido, Harry respondeu da forma também habitual, sem sentir o medo a revolver-lhe o estômago. A resposta foi aceite sem comentários. O senhor de Parfois deu meia volta e foi-se embora.

No dia seguinte, e no outro, a cena repetiu-se, sem que nada acontecesse. Harry sentia-se pouco à-vontade com aquela calma anormal mas foi tendo cuidado com a língua e esperou. Na tarde do quarto dia, os seus guardas irromperam subitamente na cela e ordenaram-lhe que se levantasse e saísse com eles.

- Onde me levais? - perguntou Harry, sentindo o já familiar nó no estômago.

Era evidente que a experiência com os guardas fora abandonada por não produzir resultados. Que viria a seguir?

- Vais ser mudado lá para cima - anunciou um dos guardas, sorrindo perante a sua desconfiança. - Boa cama, bom ar e o espaço todo para ti. Vais sentir-te como se estivesses num palácio.

Perversamente convencido de que ia ser transferido para um buraco frio e húmido, onde nem sequer poderia pôr-se de pé ou deitar-se ao comprido e onde ficaria acorrentado no escuro, Harry sentiu que a coragem lhe faltava. Mas, quando o levaram para o piso mais alto da Torre da Guarda e o fecharam na sua nova prisão, verificou com espanto que eles haviam dito a verdade. Havia uma boa cama, junto a uma das paredes do pequeno quarto quadrado, um banco, uma mesa de madeira maciça e até uma braseira. O mais maravilhoso de tudo era a janela, estreita, com grades e sem portadas; mas se deixava entrar o vento também deixava entrar a luz e o sol. Dormira muitas vezes em sítios piores, quando escoltava David, nas suas viagens sazonais por Gwynedd.

De pé no meio do quarto, Harry olhou em torno de si, desconfiado, morto por saber porque mereceria tais favores. Estaria Isambard a tentar levá-lo a ceder pela gentileza? A sua estratégia mudava com uma rapidez desconcertante, mas uma coisa era certa: tudo quanto ele fazia tinha em vista a mesma finalidade. Quando aparecesse, nessa noite - tornara-se quase impensável haver uma noite em que ele não aparecesse - talvez Isambard deixasse escapar uma palavra que explicasse o porquê daquela mudança.

O senhor de Parfois visitou Harry mais tarde do que era costume. O seu rosto apresentava-se sereno; Harry nunca o vira tão contente. Isambard inspeccionou a divisão e pareceu satisfeito.

- Estás confortável aqui, Harry? Precisas de alguma coisa?

- Preciso da minha liberdade - replicou Harry.

- Errado, rapaz. Tu queres a tua liberdade, não é uma necessidade. Vieste até aqui por tua livre vontade e vais ter de ficar em obediência à minha. Mas, embora em cativeiro, podes pelo menos estar confortavelmente instalado.

Afastou-se da janela, que ficava à altura da sua cabeça, e aproximou-se de Harry.

- Volta-te para a luz. Assim!

Ergueu a mão e os seus dedos, bruscos e impessoais, que no entanto tinham um toque surpreendentemente leve, apalparam a ferida que o chicote de de Guichet deixara na face macia.

- Está a fechar bem. A tua carne sara com facilidade e não vais ficar com uma cicatriz.

- Estais preocupado com a minha cara? - perguntou Harry, com um trejeito irónico.

- O que me interessa é que ninguém a estrague a não ser eu. Tu és a minha presa e de mais ninguém. De Guichet é zeloso, mas tende a exagerar. A proporção é fundamental, como por certo aprendeste na tua arte, e os excessos são quase sempre desnecessários, como acontece neste caso. - Sorriu e afastou-se sem pressas. - Se precisares de alguma coisa, podes pedir. Vou deixar-te descansar. Boa-noite, Harry!

Era inconcebível, mas estava a acontecer. Isambard encontrava-se junto à porta, ia-se embora sem fazer a pergunta. Era mais do que Harry era capaz de suportar.

- Senhor!...

Isambard voltou-se, de cenho franzido, numa interrogação. A satisfação que se lia nos seus olhos gerou uma leve centelha de malícia e divertimento.

- Sim?

- Que jogo é este que vos apraz jogar comigo? Encarcerais-me debaixo do solo, ameaçais-me com a fome e a tortura, perguntais e voltais a perguntar sempre a mesma coisa e depois, de repente, isso acaba. E sem razão! Depois de tanto perguntar o mesmo, não haveis nada a perguntar agora?

- Ah, isso! - respondeu Isambard, sorrindo. - Não te preocupes mais com isso, Harry. Não vais voltar a ser incomodado.

- Não?... - Apanhado de surpresa, Harry ficou boquiaberto. - Se vos arrependeis das vossas...

- Eu nunca me arrependo, Harry. Não é preciso aborrecer-te mais. Eu sei aquilo que queria saber.

- Sabeis?

Era um truque, só podia ser um truque. Todavia, a voz de Isambard, o seu sorriso e, até, o contacto da sua mão, transmitiam uma espécie de quietude satisfeita.

- Não acredito! - exclamou Harry com violência. - Não podeis saber. Quem mais poderia dizer-vos? E eu sei que nunca conseguistes arrancar-me uma palavra.

- Estás certo disso? - perguntou Isambard, com um sorriso suave a provocador.

- Cuidais que deixei escapar alguma coisa diante daqueles vossos servos que registavam tudo o que eu dizia? Não, senhor, não conseguis enganar-me. Eu sei o que disse e o que não disse. Estou tão certo disso como da morte.

- Está bem, tu estás seguro. É bom possuir convicções assim, sólidas que nem uma rocha. Invejo-te. Boa-noite, Harry!

Ele não podia ir-se embora assim. Harry correu para ele e agarrou-lhe no braço, cravando desesperadamente os dedos nas pregas da manga ampla de veludo.

- Mentis! Tem de ser mentira. Não podeis saber. Eu nunca disse uma palavra que me traísse. Mal acordava, ficava logo alerta...

- E a dormir? - perguntou Isambard, sorrindo. - Ninguém sabe aquilo que pode deixar escapar a dormir, Harry. Alguma vez pensaste nisso?

Harry só queria gritar desdenhosamente que era tudo mentira, mas a terrível verdade cortou-lhe a respiração. Como podia ele, como podia quem quer que fosse, estar seguro do seu silêncio durante o sono? Com um peso tão grande no espírito, não poderia ele haver murmurado alguma referência confusa, enquanto dormia? A sua mente rebelava-se furiosamente contra tal ideia mas ela voltava para instalar a dúvida. Como podia estar certo?

- Eu não te disse que havia de saber o que queria por ti e por mais ninguém? - insistiu Isambard, rindo da sua expressão acabrunhada.

Sem brusquidão, libertou a manga dos dedos do rapaz, virou-lhe as costas e saiu calmamente.

A porta que fora aberta apressadamente para ele sair rangia ruidosamente, quando Harry conseguiu arrancar-se ao nevoeiro de dúvida e consternação e correr em sua perseguição, num ataque de raiva e desespero.

- Demónio! Demónio! Corvo maldito!

Agarrou-se ao batente da porta que se fechava, mas o cabo de uma lança encostado brutalmente às suas costelas, atirou-o para trás sem fôlego e a porta fechou-se diante do seu rosto desfeito. Ouviram-no bater furiosamente na almofada da porta e gritar em voz rouca:

- Que quereis dele? Se ofenderdes os restos mortais do meu pai, eu mato-vos. Ouvis-me, Isambard? Eu mato-vos! Deixai-o em paz, demónio! Deixai-o em paz!

Isambard parara no corredor, virando-se, de sobrolho ligeiramente franzido, tentado a voltar atrás. Mas acabou por não o fazer. Limitou-se a esperar durante algum tempo, à escuta, até que, a pouco e pouco, a torrente de provocações começou a ser bizarra-mente entrecortada e atenuada por súplicas. Então, sorriu, satisfeito com o seu poder de persuasão. Por fim, a voz abafada por trás da porta deu lugar a um silêncio de desespero.

 

Parfois: Dezembro de 1230 a Janeiro de 1231

De manhã, quem lhe levou comida não foi nenhum dos homens de armas, mas um jovem que Harry nunca vira e que, pelo seu aspecto, devia ocupar um lugar por trás da cadeira de Isambard, no salão nobre, ou estar afectado ao seu guarda-roupa para o ajudar a vestir-se. Era loiro, tinha um rosto bonito e atrevido, não devia ter mais de dezassete anos e os seus modos para com os guardas, na antecâmara, indicavam que devia ocupar uma posição privilegiada. Era provavelmente um pajem pertencente a uma família de cavaleiros, pensou Harry, olhando-o distraidamente, através da cortina opaca das suas próprias preocupações. O jovem dirigiu-se-lhe com uma condescendência amistosa e obteve uma resposta taciturna.

- Podias ser bem-educado - disse o jovem, ofendido. - Eu não te fiz mal nenhum.

- Pois não, eu sei. Peço desculpa - retorquiu Harry, arrancando-se à letargia e ao desespero.

Ficara acordado toda a noite, remoendo dúvidas e medos, incapaz de encontrar uma saída que lhe desse alguma esperança. Daria tudo para acreditar que Isambard mentira. Mas por que haveria ele de mentir? Só para o atormentar? Não podia haver outro motivo e, todavia, isso não se quadrava com a placidez do seu rosto e da sua voz, nem correspondia à imagem que Harry começava a formar. Tudo quanto Isambard fazia era feito com método e tinha uma finalidade. E, se estivesse a dizer a verdade, que terrível dano haveria ele causado involuntariamente e que profanação cruel e incompreensível iria resultar daí? Fora feito prisioneiro, estava impedido de agir e com os nervos abalados pelos muitos e amargos pensamentos que ocupavam a sua mente. Oprimido pela teia de ansiedades e medos, observou aquele rapaz de aspecto bem cuidado, afável, bem-intencionado e perguntou a si mesmo por que haveria de fazer o esforço de lhe responder, cortesmente ou não.

O pajem sentou-se no banco, ao lado de Harry, e, num gesto cheio de confiança, assentou os braços sobre a mesa. A porta pesada do quarto fechou-se mas, apesar disso, ele baixou a voz, reduzindo-a quase a um murmúrio, e disse:

- E podia ser bom para ti escutares-me. A menos que queiras apodrecer aqui. A mim pouco me importa, se queres ou não falar comigo como deve ser.

O rosto desconfiado de Harry voltou-se lentamente para ele. O jovem riu-se, embora sem maldade, ao ver o olhar de dúvida.

- Que queres dizer?

A voz de Harry denotava má vontade: não queria alimentar esperanças, depois de tantas confusões e frustrações.

- É melhor comeres. Isso dá-me uma razão para ficar aqui. E se, até amanhã, mostrares algum juízo, bem vais precisar de te alimentar.

Não soava como uma ameaça; as suas palavras pareciam mesmo conter uma espécie de promessa. Harry puxou o prato de madeira para si e partiu o pão.

- Tu és um homem dele - replicou, sombriamente.

- Então, não me oiças, já que és tão desconfiado. Eu não sou um homem de Isambard. Sou tão livre como ele e, se queres saber, o meu pai é cavaleiro ao serviço de Gloucester, e não dele. Além de mal-educado, és parvo.

Ressentido, o jovem empinou o nariz, pequeno e bem desenhado, e levantou-se de um salto, mas Harry segurou-o pela manga.

- Está bem, não te ofendas! Estou tão abatido que desconfio de todas as pessoas que se aproximam de mim. Que querias dizer? Deus sabe que não quero apodrecer aqui, se descobrir uma maneira de fugir.

Apaziguado, o pajem voltou a sentar-se. O rosto que, num gesto de confidencialidade, se inclinou para Harry brilhava de triunfo e auto-satisfação.

- Ele confiou-me a tarefa de velar pelas tuas necessidades e de te fazer companhia. Estás autorizado a, de vez em quando, ir comigo até ao terreiro, para apanhar ar e fazer exercício. Mas não penses que te vão deixar ir além das torres de vigia. Nunca ninguém foi. Não há maneira de saíres por ali. - Em seguida, num murmúrio quase inaudível, acrescentou: - Mas eu conheço uma maneira.

Harry susteve a respiração e o seu coração cedeu à esperança.

- Uma maneira de sair de Parfois? Para mim? Só de pensar nisso começou a tremer.

O rapaz louro retirou a mão fechada da abertura da cota e abriu-a orgulhosamente, junto à beira da mesa, revelando um pequeno selo de bronze cinzelado.

- Sabes o que é isto? É o selo pessoal de Isambard, aquele que ele às vezes utiliza para conferir autoridade aos seus mensageiros pessoais. Entregou-mo para eu poder entrar aqui e sair à vontade. Quem o usa - acrescentou baixinho, num tom importante - pode ir onde lhe aprouver e dar as ordens que quiser, dentro de Parfois, sem ninguém lhe fazer perguntas.

- Com selo ou sem selo, podes estar seguro de que te faziam perguntas, no posto da guarda, se eu fosse contigo - observou sombriamente Harry.

- Eu sei. Mas nós não vamos passar pelo posto da guarda. Eu conheço outra maneira de sair de Parfois. Não é usada há anos, mas ainda é praticável, se soubermos procurá-la. Há uma saída por baixo da rocha. E o velho Ralf não sabe que eu sei onde fica. Que dizes tu a isto? - perguntou, inclinando-se para trás, radiante de triunfo.

- Deixavas-me sair? - sussurrou Harry, com a boca seca. - Porquê? Porque farias tal coisa? E como? Mal descobrissem que eu havia fugido, a tua vida não valeria nada.

Era uma armadilha. Tinha de ser uma armadilha. Todavia, se houvesse a mínima hipótese de a oferta ser sincera, como gostaria de a aproveitar!

- Mas eu também me vou embora! Não ficarei aqui para ser interrogado e acusado. Quer venhas comigo quer não, vou sair de parfois esta noite. Foi graças a ti que me foi dada esta oportunidade, porque não haveria eu de partilhar os seus benefícios contigo? Mas, se não confias em mim, deixa-te ficar e vai para o diabo. Que me importa?

- Espera. Não é preciso ofenderes-te com tanta facilidade - implorou Harry. - Confiarias facilmente em alguém, se estivesses no meu lugar? Porque te vais embora? Que maus-tratos recebeste tu aqui?

Involuntariamente, os seus olhos detiveram-se nas vestes ricas que o seu visitante envergava, no seu aspecto próspero. O rapaz riu-se, com um certo agrado.

- Ninguém me maltratou. Mas não gosto de estar aqui e as razões para querer partir são muitas. Se quiseres, conto-te. O meu pai é Sir Humphrey Blount, cavaleiro do conde Gilbert de Gloucester, que morreu no mês passado. O meu irmão mais velho quer casar com uma rapariga que eu conheço, e a minha família também quer o casamento, mas ela gosta mais de mim, eu gosto dela e os pais dela não vão obrigá-la a casar contra vontade. Por isso, no Verão passado, quando foi obrigado a partir, o meu pai pensou que era melhor mandar-me para aqui, para junto de lorde Isambard, para me afastar dos calcanhares do meu irmão, até ele haver casado com Isabel. O velho Ralf gosta de mim e, desde que estou aqui, sempre me mostrei muito serviçal e prudente. Eles cuidam que estou resignado, mas a verdade é que só esperava uma oportunidade como a que tu me proporcionaste. Até agora, só estava autorizado a ir além dos terreiros sob escolta, e sei que devo isso ao meu pai. Chegar à passagem que eu sei existir não é fácil mas, agora, com esta chavinha, posso abrir todas as portas. Decidas tu o que decidires, vou-me embora esta noite.

- Mas o teu pai vai mandar-te de volta para aqui - observou Harry, ainda na dúvida. - Para quê então? Ou isso ou manda-te para outro lado qualquer, para longe do teu irmão.

- Não manda, porque este Verão, depois de me haver colocado aqui, tomou a cruz e foi juntar-se ao bispo de Winchester, na Terra Santa - contrapôs o jovem Blount, muito satisfeito. - E a minha mãe está do meu lado e há-de dar a volta ao meu tio. Não tarda nada, estarei noivo de Isabel. Para os pais dela, tanto faz que ela case comigo como com o Humphrey e ela já manifestou qual era a sua preferência.

O quadro era tão completo que começava a tornar-se convincente e, no peito de Harry, o coração começou a bater com mais força, cheio de esperança e receio.

- Estás a falar a sério? Levas-me contigo? - perguntou Harry, agarrando a mão fina que segurava o selo de Isambard.

- Porque não? Não devo nada ao velho Ralf. Não fui eu que lhe pedi para ele confiar em mim e nunca jurei ser-lhe leal. Mas, quando chegarmos lá fora, não vou poder ajudar-te. Vou direito a Shrewsbury e sei onde posso arranjar um cavalo quando lá chegar.

- Depois de estar lá fora, não preciso de ajuda - sussurrou Harry, pensando ansiosamente na sepultura junto à igreja de Strata Marcella, com uma pequena folha esculpida na pedra tumular ameaçada.

Se Isambard não houvesse mentido, talvez já fosse demasiado tarde.

- Leva-me para fora destas muralhas e eu trato do resto. E ficar-te-ei grato para o resto da vida.

- Atenção - advertiu o pajem. - A descida é difícil, mesmo depois da ravina. Precisamos de ir de noite para não sermos vistos. A descida pela encosta Leste, que é para onde eu vou, é um pouco menos íngreme mas, do outro lado, a descida é muito escarpada e arriscada. Para que lado vais tu? Voltas para o País de Gales?

- Volto. Mas eu conheço o caminho. Já subi por ali. Leva-me para fora das muralhas: é só o que te peço.

Harry começara a tremer. Odiava pensar nas longas horas que o separavam do momento por que tanto esperara.

- Quando partimos? - perguntou.

- Logo depois da ceia. Senão, eles vão ficar de sobreaviso por eu vir ter contigo. Vou dizer que recebi ordens para te levar ao velho Ralf e os guardas vão acreditar. Mas agora cautela, estamos a falar demasiado alto e eu já estou aqui há muito tempo.

Blount levantou-se e presenteou Harry com um sorriso de conspirador nato.

- Volto aqui à tarde, depois de estar tudo preparado. Juro que estou muito contente por haveres deixado de pensar que eu estava a estender-te uma armadilha - acrescentou, num sussurro. - Não estou habituado a que desconfiem de mim. Juro que nunca mais volto a ver a Isabel, se não te levar, são e salvo, para fora de Parfois. Que dizes? Não é a melhor jura que posso fazer?

No último instante, quando a luz deixou de se filtrar pela janela com barras, quando os sons do terreiro quase se haviam extinguido, Harry foi assaltado pelo medo de que, afinal, aquela noite acabasse por ser igual a todas as outras e de que Isambard entrasse na sua cela, com o seu sorriso de escárnio e as suas ironias sagazes que feriam como lâminas. Mas, fiel à palavra dada, quem veio foi Thomas Blount, com o seu nariz empinado e a sua expressão de fanfarronice. Parou no limiar da porta, fazendo oscilar duas chaves que trazia na mão, e nem se deu ao trabalho de entrar.

- Recebi ordens para te conduzir aos aposentos privados de lorde Isambard. Podes acompanhar-me como um homem civilizado, se quiseres, mas aviso-te de que vamos ser seguidos por um arqueiro. Por isso, aconselho-te a não tentares escapar-te. Eras capaz de te arrepender.

Com um gesto imperioso, mandou afastar do seu caminho os homens de armas que se encontravam na antecâmara e dirigiu-se para a saída, sem sequer voltar a cabeça para ver se Harry o seguia.

- Faz uma expressão mais sombria, imbecil - murmurou dissimuladamente, quando chegaram ao terreiro exterior, escuro e frio. - E arrasta os pés. Não vais a caminho de um casamento. Não há nenhum arqueiro, podes estar descansado. Foi só um floreado, em benefício dos guardas.

Ainda havia bastante gente no terreiro exterior mas, depois de atravessarem o arco para o terreiro interior, foram rodeados pelo silêncio, quebrado apenas pelo ruído distante de passos. Harry nunca estivera ali. Diante de si, reinavam as trevas, povoadas por sombras gigantescas que se recortavam contra os merlões do pano da muralha, dominados pelas bocarras da alta torre de menagem hexagonal. Flechas de luz brotavam das seteiras, cortando a noite e destacando a negro e branco as frestas abertas na cantaria.

- Onde vamos? - murmurou Harry, a tremer, ao lado do seu guia.

- A torre do velho Ralf, conforme disse. Ah, não te preocupes! - acrescentou, impaciente, ao sentir que os dedos agarrados à sua manga se contraíam de cólera e suspeita. - Não vamos sequer aproximar-nos dele. Ele não vai incomodar-nos. Vamos à torre dele porque a porta que nós queremos fica ali. Há outra na torre de menagem, que também poderia servir mas, com ou sem selo, era preciso inventar uma história melhor para os convencer a darem-me a chave da torre de menagem. Esta abre a cave de vinhos do velho Ralf e esta a cave onde estão guardadas as melhores colheitas. Eu disse que ele queria um dos seus vinhos franceses preferidos. Como, esta noite, ele recebe um emissário do chanceler, a história era plausível, apesar de ele nunca me haver mandado buscar vinho.

- Há muitas portas entre a guarnição e a poterna, para os casos de ataque - observou Harry a meia voz.

- Parfois nunca foi atacado. Nunca foi preciso usá-la. Mas o avô de sua senhoria era um homem prudente e quis construir uma saída secreta, para o caso de vir a precisar. Chiu, o Langholme está a sair dos aposentos do seu senhor. Fica perto de mim e mostra-te amuado.

Blount fez rodar ostensivamente as chaves na mão para que todos vissem, saudou com amabilidade o escudeiro de Isambard e soltou umas gargalhadas que mais pareciam de uma rapariga, quando eles se afastaram.

- Ali para dentro! E logo a seguir para a direita, onde está muito escuro.

Como sombras, esgueiraram-se pela grande porta da Torre da Rainha e ao longo de um corredor escuro de pedra, até uma porta baixa, de carvalho, rasgada na parede interior. Thomas abriu-a com a maior das duas chaves e, retirando do suporte a última das tochas que ardiam no corredor, pôs o pé no primeiro degrau de uma estreita escada em espiral e, sem hesitar, começou a descer para as profundezas.

- Não fechas a porta à chave? Alguém pode experimentar abri-la. E se eles quiserem mesmo vinho da cave?

- Não. Primeiro, vou levar-te até à última cave e, depois, volto para devolver as chaves ao intendente. Se eu ficar muito tempo com elas, ele pode desconfiar. Por isso, é preciso deixar as portas abertas. Mas é menos arriscado do que ele vir à minha procura, daqui a um quarto de hora, como aconteceria de certeza.

- E as tuas coisas? Onde estão? Vais-te embora de Parfois de mãos a abanar?

- Deus nos acuda - suspirou Thomas, magoado, mas paciente. - Nunca vi ninguém tão desconfiado como tu. Quando já fores a descer a montanha, ainda vais continuar a pensar que eu montei uma armadilha para ti, num lado qualquer. Já que queres saber, há quatro horas que atirei o meu bornal por cima da muralha, para o bosque que fica lá em baixo, do lado Leste da ravina. Achas que podia ir buscar-te com as minhas coisas debaixo do braço? Sei muito bem onde hei-de encontrá-las depois. Vem. É por aqui.

A segunda chave levou-os a uma adega com arcadas de pedra. De tocha na mão, Thomas tacteou a parede por trás de uma pilha de barris de vinho e afastou as teias de aranha que cobriam uma porta baixa e insignificante.

- É aqui!

Thomas puxou os trincos ferrugentos, rodou a argola de ferro e a porta abriu-se com um rangido de protesto. Para além dela reinava uma escuridão avermelhada de grés; o ar era frio e cheirava a terra.

- Agora esperas aqui por mim, às escuras, enquanto eu vou devolver as chaves. E não penses que te fechei aqui, para morreres à fome. Aqui tens um penhor em como vais sair daqui. Toma, podes ficar com a minha bolsa até eu voltar. Podes estar certo de que não a quero perder.

- Não preciso de penhores - respondeu Harry, envergonhado. - Eu espero.

Apesar de lhe haver parecido uma eternidade, não precisou de esperar muito tempo. Thomas voltou passado um quarto de hora, muito satisfeito com as suas artimanhas e, juntos, cruzaram a pequena porta, fechando-a atrás de si. A partir desse instante, passaram a respirar melhor, sem medo de falar mais alto do que em murmúrios e sem se preocuparem com o eco dos próprios passos. Parfois parecia haver ficado para trás e Harry quase perdera o receio angustiante de, a cada passo, poder aparecer alguém que o agarrasse pelo ombro e o levasse de volta ao cativeiro.

Do tecto pendiam teias de aranha, mas a tocha abria caminho entre elas. O túnel estreito e baixo escavado na rocha era um caminho seguro e secreto pelo qual a guarnição poderia bater em retirada para Shrewsbury, em caso de ataque, receber mantimentos ou reforços, em caso de cerco, ou sair para contra-atacar o inimigo pela calada da noite.

- Isto vai dar ao lado Leste da ravina. Para desceres para Oeste, precisarás de passar por baixo das torres de vigia. Aconselho-te a vires comigo e a dares a volta mais longe.

- Não - recusou Harry, que já se estava a ver a descer os rochedos, na escuridão, em direcção ao Severn.

Seria melhor ir primeiro à cabana de Robert? Não. Isso seria perder mais tempo do que aquele que ganharia e o cavalo de pouco lhe servia, porque ia seguir para jusante até ao vau. Não. Amanhã havia tempo para ir buscar o Barbarossa e rever os amigos. Esta noite, era preciso chegar o mais depressa possível a Strata Marcella, certificar-se de que o túmulo do pai não fora violado e avisar o prior do malévolo interesse que a sepultura despertava em Isambard. Costumava haver um barco amarrado junto ao moinho e a corrente ajudá-lo-ia a descer o rio e levá-lo-ia rapidamente aos terrenos alagadiços perto da abadia. E se, por acaso, o barco não se encontrasse lá ou estivesse demasiado bem acorrentado, iria a nado. O Outono fora seco e o nível do rio devia estar bastante baixo. E o frio seria facilmente suportável, por mor da causa em que estava empenhado.

- Como queiras - disse Thomas, com desenvoltura. - Se queres arriscar o pescoço é contigo mas, se é por uma questão de tempo, estás certo. Dar a volta levar-te-ia umas duas horas.

O túnel por onde seguiam fora mudando gradualmente de aspecto, mas Harry não dera por nada, até ao momento em que tropeçou numa das irregularidades rochosas do solo, até então bem nivelado. Ergueu os olhos e a luz vacilante da tocha mostrou-lhe uma caverna abobadada que os instrumentos manejados pelo homem não haviam tocado. Encontravam-se numa cave natural profunda e a fraca luminosidade que agora quebrava a escuridão provinha de uma estreita fresta que se abria para a noite de Dezembro.

- É melhor deixarmos a tocha aqui - observou Thomas. - Alguém pode olhar da torre de vigia nesta direcção e reparar no brilho. E, a partir daqui, não fales alto. Quando sairmos para a ravina, vai para a direita e, se te mantiveres junto aos rochedos, não haverá nada a recear, pois a inclinação é bastante grande.

Harry tremia de alegria e alívio. Até ao último momento, receara uma armadilha mas, agora, estava prestes a sair para o ar livre, para o ar da ravina entre a igreja e o castelo, que tão bem conhecia e que era protegida por rocha de um lado e do outro. O desaparecimento da luz da tocha, apagada contra a parede, deixou-o momentaneamente cego e foi a tactear que procurou a mão de Thomas para a apertar.

- Nunca vou esquecer-me do que fizeste por mim. Deus esteja contigo e espero que cases com a tua Isabel.

Saíram para o ar frio e vivo da ravina, sob o céu estrelado. Era ali que se separavam, no canal rochoso: Thomas ia para a direita e Harry para a esquerda, em direcção ao País de Gales. Abraçaram-se, mas não disseram palavra, com medo de que o ar puro arrastasse consigo mesmo que fosse um sussurro. Thomas tremia de riso, como uma rapariga, mas, depois da experiência por que passara, Harry nunca mais seria assolado pelo riso com a mesma facilidade.

Soltaram as mãos e mergulharam na noite.

Harry avançava lenta e prudentemente pela ravina, tacteando o caminho a cada passo, até os seus olhos se habituarem à obscuridade e serem capazes de avaliar as distâncias e distinguir as formas das placas rochosas, desgastadas pela erosão, que iam surgindo sobre a sua cabeça. A dado momento, apercebeu-se de que se encontrava por baixo das torres de vigia, porque avistou as formas redondas, negras e sem estrelas que os balestreiros projectavam contra o céu. Mas não ouviu qualquer som, nem mesmo o dos passos da sentinela no caminho da ronda entre as torres. Estava sozinho e a noite era sua.

A ravina era agora mais larga e, lá no alto, a massa escura e imponente da muralha descrevia uma curva para a direita, afastando-se dele. Harry encontrava-se sobre a parede rochosa que já conhecia de anteriores escaladas e algures nas superfícies mais protegidas e lisas estavam os planos que ele desenhara e sobre os quais ponderara, vários meses antes. Começou a descer. Certo de que se encontrava agora suficientemente longe de Parfois para não ser ouvido, abandonou as cautelas e lançou-se encosta abaixo a toda a pressa. Por várias vezes, feriu as mãos e arranhou as canelas e, a certa altura, desequilibrou-se e galgou várias jardas até que, no último instante, conseguiu segurar-se, com os dedos, os joelhos e os calcanhares, tendo ficado assim suspenso sobre o vazio até recuperar o fôlego.

Mas a velocidade nunca lhe parecia ser suficiente. A esperança e a apreensão lutavam dentro de si e impeliam-no para a frente; só ficaria em paz quando chegasse junto do túmulo do pai e o encontrasse ainda intacto, o que significaria que Isambard mentira. Mas, mesmo então, era preciso avisar os frades para ficarem de atalaia. O senhor de Parfois ditava as suas próprias leis. Se alguma vez descobrisse onde mestre Harry estava sepultado, nem o Severn, nem a fronteira do País de Gales e nem mesmo a santidade da igreja o impediriam de perseguir os mortos com o seu ódio vivo e virulento.

Aos rochedos seguiram-se terras desoladas onde cresciam ervas e arbustos. Conseguira completar a descida ao preço apenas de meia dúzia de arranhões. Harry conhecia aquelas pastagens de carneiros e os bosques que ficavam ao fundo. Chegou ao rio bastante depressa e, a partir dali, havia um carreiro que ia dar ao moinho. O barco estava lá, amarrado, a oscilar ao sabor do movimento suave das águas. Não estava preso com correntes; dando graças por isso, Harry desamarrou-o sem ruído.

Ia a meio da corrente quando as nuvens que haviam ocultado a Lua se afastaram, deixando ver à distância, do outro lado do rio, os contornos imponentes e graciosos da Strata Marcella, que pareciam carneiros a pastar num prado prateado. Harry manobrou até chegar à corrente da margem, deixou-se arrastar até junto da igreja e, então, acostou o barco e saltou para terra.

Uma vez ali, baixou a cabeça e lançou-se numa corrida veloz, tropeçando nos tufos de ervas que surgiam diante dos seus pés, recuperando o equilíbrio e seguindo em frente. Chegou à sepultura anónima, como um pombo que regressa ao pombal, e caiu de joelhos junto dela, com um profundo suspiro de alívio. O solo não fora remexido e a pedra não fora violada. Isambard mentira. Estava absolvido: não faltara ao seu dever, nem acordado nem em sonhos.

A tensão acumulada abandonou o corpo de Harry. Encostou a cabeça à pedra e, de súbito, sentiu-se tão cansado e tão satisfeito que lhe pareceu que não havia mais nada a desejar na vida nem mais nada por que tivesse de lutar. Tencionara dizer uma prece de agradecimento pela sua fuga e pela graça concedida mas apenas conseguiu estender os braços sobre o túmulo, num gesto protector, e ficar ali, respirando a plenos pulmões, abraçando o pai, tão sereno e apaziguado como se se houvesse lançado nos braços vivos de mestre Harry.

Por trás de si, a erva agitou-se quase sem ruído; mas Harry ouviu e ergueu vivamente a cabeça. As nuvens tinham voltado a avançar em direcção à Lua e as suas sombras incidiam sobre as pedras tumulares dos abades, encobrindo a aproximação dos homens que o haviam seguido desde o rio. Eram seis e rodeavam-no em círculo, cercando-o por todos os lados.

Harry abriu a boca para lançar um grito de alerta aos frades, que repousavam no dormitório distante; se não houvesse passado muito tempo depois das laudas, talvez estivessem a acordar e o ouvissem. Mas, antes de poder emitir um som, uma mão tapou-lhe a boca e um braço prendeu-lhe por trás o ombro e o torso, imobilizando-o contra um peito forte. Embrulharam-no num manto para o impedir de se debater e amordaçaram-no com força, com as pregas do manto.

Isambard avançou sem pressas para a zona, cada vez menor, iluminada pelo luar, até ficar cara a cara com o rapaz imobilizado e amordaçado. A pele esticada e lustrosa das maçãs do seu rosto e a testa bem desenhada apresentavam um brilho dourado; os olhos encovados luziam. Sorria como um demónio feliz, quase com ternura.

- Muito bem, Harry! - disse docemente. - Eu não te disse que ia obter a resposta por ti e por mais ninguém?

Por um longo momento, continuou a sorrir, fitando os olhos enraivecidos que o teriam morto se pudessem. O seu olhar percorreu o círculo dos seus servos e, em seguida, fixou-se na pedra tumular nua e anónima, no momento em que um último raio de luar iluminava o pequeno desenho da folha nela gravada. Então, inclinou-se e seguiu demoradamente os contornos da folha com a ponta de um dedo.

- Levai-o! - ordenou, por cima do ombro, sem voltar a cabeça. - Já me disse o que eu queria saber.

 

Antes do amanhecer, brilhavam ainda algumas estrelas, todavia já tingidas pela fraca claridade dourada do sol que ainda não nascera, Aelis saiu de casa e mergulhou na noite glacial para fazer a ronda das suas armadilhas para coelhos, no alto da colina. A jovem viu a pequena procissão de cavaleiros a subir a encosta, em direcção a Parfois, e embrenhou-se entre as árvores para ver mais de perto, porque lhe parecera que o quinto cavaleiro - o do meio - ia amarrado e que quem segurava as rédeas do seu cavalo, era o que seguia ao seu lado. O grupo passou perto dos arbustos atrás dos quais ela se ocultara: quatro homens envergando librés da casa de Isambard e um, mais pequeno e mais magro do que eles, estreitamente apertado numa capa escura, a parte inferior do rosto encoberta e os pés amarrados por baixo da barriga do cavalo.

Bem podiam ocultar-lhe o corpo e o rosto, mas ninguém era capaz de esconder Harry Talvace de Aelis. Bastar-lhe-ia olhar para a sua silhueta e para a sua cabeça, mesmo que encoberta e imobilizada, para o reconhecer fosse onde fosse. Sempre a coberto da vegetação, Aelis seguiu o triste cortejo até este passar o primeiro posto da guarda e desaparecer na rampa ladeada de árvores. Depois, deu meia volta, recolheu os coelhos das armadilhas e correu para casa, levando consigo a má nova.

Onde poderia haver estado Harry durante todo aquele tempo, até ela o ver, naquele dia, ser levado como prisioneiro para Parfois?

Que fizera, onde dormira, quem lhe dera de comer? A primeira e única certeza era que ele atraíra sobre si a cólera de Isambard e fora levado para o cativeiro. E, mesmo que o príncipe de Gwynedd mandasse um exército para o libertar, como iriam eles tirá-lo daquela fortaleza inexpugnável? Aelis recordou-se dos planos que Harry traçara na pedra, da sua intensa concentração e, pela primeira vez, compreendeu que toda aquela obstinação era totalmente dedicada à ideia de entrar em Parfois. Mas, agora, ia ser preciso um milagre de engenho para o fazer sair de lá.

Quem lhe dera haver trancado a porta atrás da qual ele mudara de roupa, naquele dia de Novembro, retendo-o em casa, até o pai dela chegar! Antes de mais, nunca deveria haver permitido que ele se escapasse para Pool: deveria haver-se agarrado a ele, na floresta, e gritado pelos homens para eles o dominarem. Seria preferível ser alvo da sua cólera e do seu desagrado do que deixá-lo cair nas garras do senhor de Parfois.

Sem motivo aparente, lembrou-se de repente da nódoa negra no rosto de Harry, da ligeira cicatriz que ele tentara esconder-lhe e começou a chorar enquanto corria.

Menos de uma hora depois, Robert partia rio acima, em direcção ao vau de Pool, para levar a notícia ao castelão de Castell Coch, na outra margem do rio. E a manhã não terminara ainda quando um mensageiro partiu para a corte de Llewelyn, em Aber.

Harry ficou deitado na cama todo o dia, sem dizer palavra a nenhuma das pessoas que vieram vê-lo, sem comer nem beber. A noite, Isambard em pessoa abriu a porta do quarto e, apesar de mergulhado no seu inferno pessoal de ódio, desespero e auto-recriminação, Harry soube quem acabara de entrar e pôs-se de pé, numa posição rígida. Não voltara sequer a cabeça à entrada de ninguém mas, na presença do seu inimigo, agora verdadeira e irrevogavelmente seu inimigo pessoal e não apenas o inimigo de seu pai, endireitou as costas e ergueu a cabeça.

- É verdade o que ouvi dizer? - perguntou Isambard, no tom de voz extremamente cortês que costumava utilizar para dar ordens. - Recusas-te a comer e viras as costas ao mundo? Nenhum homem deve agir assim, a menos que se envergonhe dos seus actos. Estás envergonhado? Não vejo nenhuma razão para tal.

- E vós, senhor? - retorquiu Harry, entre dentes.

- Toda a gente sabe que não sou dado a vergonhas. Mas por que hás-de tu de culpar-te por haveres sido enganado por uma artimanha bem preparada e por um grande mentiroso? O Thomas mente com a mesma naturalidade com que os outros homens respiram e, se alguma vez dissesse a verdade, estaria a ser infiel a si próprio. Pode não ser uma virtude, mas há alturas em que é uma vantagem. Ele e eu deveríamos estar de cabeça baixa, não tu.

- Que tencionais fazer, depois de me haverdes levado a cometer esta traição? - perguntou Harry, lançando-lhe um olhar feroz, sob as sobrancelhas franzidas. - Se tocardes na sepultura do meu pai, se o desonrardes, juro por Deus que não me darei descanso enquanto não vos matar. Não há nome vil bastante para as pessoas como vós, senhor, que cospem o seu ódio sobre os mortos. Que mal vos há ele feito, enquanto vivo, que não podeis ter a generosidade de o deixar descansar em paz, depois de morto?

- Um grande mal - respondeu Isambard, com um sorriso sombrio. - Um mal tão grande que, nem mesmo agora, nenhum de nós pode deixar o outro em paz. Mas, neste momento, a nossa preocupação és tu. E esse é um problema diferente. Estás muito enganado, rapaz, se cuidas que vou permitir que mergulhes nessa tua vergonha idiota e envenenes o coração até morreres de desespero. Agora, vais levantar-te e pôr-te apresentável... vou encarregar a 1 rouparia de arranjar roupas que te sirvam... Vens jantar na minha mesa e ocupar o teu lugar entre os teus pares. Vais portar-te como um homem e como um Talvace e não como uma rapariguinha doente e amuada.

- Não! - exclamou Harry.

O espanto transformara a exclamação num grito de dor ardente.

- Mas eu digo que sim. Vens, rapaz, porque, se não vieres, mando que te arrastem à força até lá. E vais comer, porque, juro por Deus, que, se recusares, mando alguém meter-te a comida pela garganta abaixo, como se faz para tratar de um cão doente. Vais suportar a tua humilhação... já que não há nada que te convença de que ela não existe... em silêncio e com valentia, como muitos outros homens foram obrigados a aprender a fazer. E, por mais mentiroso que ele seja, vais pôr de lado a tua querela com o jovem Thomas e abster-te de lhe apertares o pescoço. Ele não é capaz de medir forças contigo e não quero que seja castigado por fazer bem a única coisa que sabe fazer. Estás a ouvir?

Com um gesto imperioso, Isambard tocou ao de leve no rosto de Harry, para o obrigar a virar-se para ele. Os dois trocaram um longo olhar. Isambard sorriu.

- Deixa a caça miúda em paz, Harry. Guarda esse belo e vigoroso ódio para mim. Aqui, sou eu o único inimigo digno da tua adaga.

 

Aber, Parfois: Janeiro a Abril de 1231

Deus É testemunha de que isto não poderia acontecer em pior altura - disse Llewelyn, tamborilando com os dedos compridos nos braços da cadeira, num ritmo rápido que denunciava sempre as angústias com que se debatia. - Bem, faremos o melhor que pudermos. Em memória do seu pai, o meu dever para com Harry é sagrado, mesmo que não lhe quisesse como se fosse do meu sangue... e Deus sabe quanto lhe quero.

- Bem sei que assim é, senhor - disse Gilleis em voz baixa. Sim, sabia-o e nunca o culpara. Porém, era culpado: nunca fora sua intenção magoar ou assustar o rapaz, mas o que fizera estava feito e não podia ser desfeito. Pelas janelas abertas, Llewelyn olhou para o céu cinzento de Janeiro sobre o estreito, onde as ilhas haviam desaparecido sob um nevoeiro gelado. O mar gemia e chorava sem descanso sobre os baixios, a maré enchente sussurrava sobre o local onde a tragédia se consumara. Durante a última Primavera, quando o que já não podia ser desfeito fora feito... O destino do rapaz era a última e a menor das reverberações daquele trovão catastrófico, embora não a menos lamentável.

- Mais cedo ou mais tarde ele havia de partir - disse Gilleis.

- Durante estes últimos três anos, a mais pequena coisa poderia

levá-lo a partir e o resultado final seria o mesmo.

Não pronunciara uma palavra de censura. Como poderia Gilleis censurar a educação galesa tradicional que Harry recebera, quando ela própria não se sentia totalmente inocente? Quisera proporcionar-lhe segurança e protecção, mas também desejara vingança. Agora, abdicaria de todos os ressentimentos que ainda sentia, de todos os ódios persistentes e amargos, para ter o rapaz de volta à bancada de Adam, simplesmente a cortar pedra.

- O local é inexpugnável - disse David, sombriamente. - Não há maneira de aproximar as máquinas de cerco das muralhas.

- Se não é possível, não posso atacar. Não estou em posição de entrar em guerra com nenhum dos senhores das Marcas. O meu dever é, em primeiro lugar, para com Gales e, neste momento, já são suficientes os perigos que ameaçam Gales. Deus me livre de lhes acrescentar um outro. De Burgh vem sendo digno e amistoso no seu trato connosco, mas está a esmagar as fronteiras à nossa volta com as duas mãos. Nem no próprio rei me agradaria ver tamanha ambição por terras e castelos... e este homem é muito mais perigoso do que o rei.

- Mas não é um guerreiro - disse Owen, com um ligeiro esgar, lembrando-se do Kerry,

Absorto, Llewelyn esboçou por breves instantes o seu sorriso radioso.

- Isso é apoucar a nossa proeza. Reconheço que conseguimos detê-lo uma vez, e voltaríamos a fazê-lo; mas não penseis nunca que haveis visto o verdadeiro de Burgh no Kerry. Ele é capaz de muito mais. Não é o guerreiro que devemos temer. De Burgh consegue as suas conquistas sem batalhar por elas e nós vamos ficando cada vez mais cercados. Se a concessão vier a ser confirmada - e sê-lo-á - de Burgh haverá conseguido um novo senhorio das Marcas, com poder sobre Cardigan e Carmarthen. Há um mês apenas, sabei-lo tão bem como eu, obteve duas vitórias sem desferir um golpe. John de Breos, em Gower, já não é feudatário da Coroa mas sim do novo feudo de de Burgh. E depois da morte de Gilbert de Clare na Bretãnha, no regresso da campanha em França, o condado de Glouces-ter e todas as terras que lhe pertenciam foram herdadas por uma criança. Ora, esse rapaz e esse título foram entregues a de Burgh, o que faz dele senhor de Glamorgan. O que Marshall deixou que restasse de Gales, no Sul, está a ser devorado por Hubert e será apenas uma questão de tempo até ele começar a mover-se para Norte. Sinto uma comichão neste braço, com que manejo a espada, que me diz que não falta muito.

- Talvez fosse melhor atacar primeiro, antes de o tempo se esgotar por completo - opinou David. - Vamos acabar por ser forçados a fazê-lo.

- Talvez fosse, mas não Parfois, a Oeste, e não neste momento. Quando chegar a nossa hora, precisarei de uma boa causa, de todos os meus homens e de toda a minha velocidade. Não posso tocar em Parfois. Se enviasse as minhas tropas contra um senhor da fronteira, por causa de uma querela privada, estaria a lançar Gales nos braços de Hubert. Na melhor das hipóteses, dar-lhe-ia a oportunidade de atacar em qualquer outro sítio enquanto eu estivesse de costas voltadas, e na pior... e ele não deixaria de o notar... dar-lhe-ia um pretexto para voltar contra mim todo o poder real. Hubert ordena e Henrique obedece.

- Isso é verdade - reconheceu Owen.

Nem mesmo pelo jovem Harry se poderia pedir a Llewelyn que abandonasse Gales, que pertencia por direito a David. E ninguém ficaria mais amargamente indignado se ele o fizesse do que o próprio Harry, que tinha mais orgulho no seu príncipe e era mais cioso dos direitos deste do que os familiares directos de David.

- Mas a fronteira está cheia de foragidos e se mais uns quantos se juntarem a estes, nos próximos dias, quem poderá censurar-vos por tal? - continuou. - Deixai-me partir: se eu me meter em sarilhos, podereis lavar daí as vossas mãos.

- E pensas que uma dúzia de foragidos consegue entrar em Parfois? Se nunca ninguém o conseguiu, mesmo com catapultas e trabucos, muito menos conseguirás tu com os teus arcos.

- Não será pela força - admitiu Owen. - Mas pode haver outras maneiras de lá entrar... ou de fazer sair a caça...

- Se Harry deu a sua palavra de honra, pode ser que o deixem sair das muralhas - disse David, sem grande convicção.

- Harry nunca daria a sua palavra.

Ninguém contestou esta afirmação: todos conheciam bem Harry.

- Bem, faremos o melhor que pudermos - disse Llewelyn, pesaroso. - Há algo que posso fazer às claras: enviar um emissário para negociar abertamente. Pode ser que Isambard o deixe partir a troco de um resgate. Está mais velho e talvez menos difícil, desde que me obrigou a rebentar os meus melhores cavalos por tua causa, Owen. E, mesmo que recuse, sempre ficaremos a ganhar. O caso será trazido à luz do dia e tornar-se-á perigoso para ele fazer alguma coisa ao rapaz às escondidas. Hoje a nossa relação com a Inglaterra é diferente da que havia no tempo de João e um prisioneiro pelo qual ofereci um resgate não pode desaparecer sem que por ele sejam pedidas contas. Se Isambard não quiser negociar, vamos enviar uma notificação formal ao rei Henrique e cuidar de que a justiça tome conhecimento do assunto.

Adam disse, com ar infeliz:

- Receio que Harry haja ido para Parfois com intenções de matar e a sua situação perante a justiça pode não ser a que mais desejaríamos. Ademais, o poder real quase não chega às Marcas e, assim sendo, como poderá ele arrancar um criminoso das garras de um senhor como Isambard?

- Isso pode ser verdade, mas a força do poder real é suficiente para garantir que o criminoso não seja enforcado à revelia da lei.

Llewelyn viu Gilleis agarrar-se ao braço de Adam e ocultou o rosto entre as mãos, desejando poder retirar o que dissera.

O País de Gales era bem diferente. As Marcas podiam ser uma zona de castelões sem lei, só pretensamente ao alcance da justiça real, mas a sombra do descontentamento real representava pelo menos um freio. Mas embora rendesse formalmente homenagem a Henrique, seu suserano, Gwynedd era um principado livre, que podia dar abrigo a fugitivos e agir com impunidade contra os criminosos que capturava. E este era um feito seu: o enforcamento de um criminoso, decidido de forma autónoma, fora a afirmação final e absoluta da sua soberania.

Mais cedo ou mais tarde, pensou Llewelyn, todos os nossos actos se voltam contra nós. Todavia, Henrique não se envolveu no destino do meu prisioneiro: embarcou para França e abandonou-o, sem estremecer sequer. Mas, nas mãos de Isambard, encontra-se um pedaço do meu coração e ele vai-me manobrando, ao puxar as cordas do hábito, da gratidão, do amor e do remorso. Ainda assim, recuso-me a ceder. Tal como Henrique, em nome do sonho de um império. Mas o sonho dele era um passeio ao sol por terras conquistadas, em solo estrangeiro, entre gentes que falam uma língua que ele até conhece, mas que não é a sua. E o meu é o de uma terra preservada e perpetuada, povoada por gente do meu sangue, que fala a minha língua materna, que é obra minha e cujo fruto pertencerá a David e aos Galeses, após a minha morte. Oh, meu Deus, bastará isto para justificar a minha existência?

- Há outra coisa que posso fazer disfarçadamente, nas minhas próprias costas e sem quebrar a paz - disse Llewelyn. - Leva os teus homens, Owen, e vai para a Marca. E eu envio Philip ap Ivor a Parfois para negociar a libertação do Harry. Qualquer que seja a resposta, o Philip encontrar-se-á contigo em Strata Marcella, quando sair do castelo de Isambard e se este não quiser negociar, então poderás agir como melhor te aprouver.

- Quantos homens posso levar? - perguntou Owen, radiante e ansioso.

Além de prático, era da mais elementar justiça que Owen fosse incumbido da tarefa. Já estivera prisioneiro em Parfois, conhecia o castelo e a área em redor e escapara de lá com vida, graças a mestre Harry e a mais ninguém.

- O melhor é não exagerares no número. Leva uns doze e, se mais te forem precisos, manda buscá-los.

- Queres incluir-me nesses doze? - perguntou Adam.

- Não há outro que eu mais deseje levar comigo. Foste aceite e és bem-víndo!

- Quando desceres, diz ao Philip que venha ter comigo, Owen. Vamos pô-lo a caminho ainda hoje e tu partirás assim que o dia nascer. Gilleis!

Gilleis levantou-se e Llewelyn pegou-lhe na mão, num daqueles seus gestos quentes e enternecedores que nasciam de repente do mais íntimo da sua realeza e o ligavam, pelo coração, ao mais humilde daqueles que o rodeavam. Gestos como este haviam ligado muitos homens a Llewelyn para toda a vida e, depois deles, os seus filhos.

- Nunca duvideis que ele há-de voltar para vós, são e salvo, minha filha. E esfomeado como sempre, depois de haver praticado tiro ao arco ou luta, quando vos preocupáveis tanto com os seus atrasos.

- Deus o permita! - respondeu Gilleis, segurando por breves instantes aquela mão comprida, quente, cheia de vitalidade, que mesmo naquela ocasião conseguia dar-lhe uma alma nova.

Adam deu-lhe o braço e conduziu-a para fora da sala, pois os olhos de Gilleis estavam turvos de lágrimas. Perdera demasiado em Parfois para acreditar facilmente que algo que lhe pertencesse pudesse de lá sair incólume.

Quando ficou a sós com o pai, David aproximou-se da braseira para aquecer as mãos e ficou a olhar para os carvões incandescentes com uma expressão sombria.

- Philip é um bom homem e tem peso - disse, devagar. - Já tratou muitas vezes com o rei e não lhe falta autoridade, mesmo junto de Isambard. Mas...

- Então? - perguntou Llewelyn, carrancudo, pois sabia o que David estava a pensar.

- Há alguém com maior peso ainda e que podia desempenhar este encargo com melhores resultados.

As suas sobrancelhas estavam franzidas e o seu rosto imóvel; a luz reflectida da braseira dava um tom avermelhado às suas feições, habitualmente louras e pálidas, mas mesmo assim a parecença era notória. Llewelyn sentiu que o coração se lhe apertava e não havia armadura que lhe valesse.

- Se ao menos quisésseis recorrer a ela - disse David, voltando as costas e dirigindo-se para a janela, onde ficou a olhar fixamente para a praia gelada e o mar agitado, sob o nevoeiro.

- Deposito toda a confiança em Philip ap Ivor - replicou Llewelyn, em voz dura e seca.

Tentava encontrar as palavras que deveriam seguir-se, esse primeiro passo tão difícil como a morte... ou, mais exactamente, tão difícil como voltar a nascer. E, todavia, tudo poderia ser dito de uma forma tão simples. A hora há-de chegar dentro de semanas, de dias, amanhã. E então, antes de me lançar na batalha com o destino de Gales nas minhas mãos, vou precisar dela e utilizá-la. E então, libertar-me-ei deste atordoamento que me prende a língua e serei capaz de lhe dizer o que precisa ser dito e que ainda não sou capaz de dizer.

Entreabriu os lábios, lutando para afastar o orgulho e a amargura que o emudeciam, mas o leve rugir da tapeçaria da entrada falou primeiro, e de modo eloquente: quando levantou os olhos, David saíra, deixando a pairar no ar, a separá-los, o nome que não podia ser pronunciado.

 

Isambard estava a tomar banho, a libertar-se do suor da caçada, quando lhe vieram anunciar que estava na casa da guarda um pajem, fardado com a libré de Llewelyn, a pedir um salvo-conduto para um enviado de Aber. Atirou a cabeça para trás e riu-se, com um riso jovem e enérgico, até as gotas de água reluzirem nas madeixas húmidas do seu cabelo grisalho.

- Os deuses não são dotados de imaginação - observou, enquanto saía da banheira e se enrolava nas toalhas espalhadas sobre os tapetes defronte do espelho, entregando-se nas mãos hábeis de Langholme. - Estão sempre a repetir-se.

O senhor de Parfois era conhecido como homem devoto, patrono de peregrinos e coleccionador de relíquias e, havia muitos anos abraçara mesmo a cruz dos cruzados. Quando lhe dava para blasfemar, virava-se para a sua educação clássica e respectivos múltiplos deuses, aos quais atirava as suas farpas.

- Então a notícia já se espalhou, não é assim? - prosseguiu. - Pergunto a mim próprio como foi que eles souberam tão depressa. Juraria que o rapaz veio sozinho e ele mesmo me afirmou que a iniciativa havia sido sua. Parece que Llewelyn pode contar com bons servidores por estas bandas. Bom, ide buscar o de Guichet. Vou mandá-lo organizar uma escolta para ir até ao rio buscar o nosso convidado com toda a cerimónia. Dizei aos camareiros para prepararem aposentos na Torre do Rei, os melhores que houver. E agora deixai-me, Walter, vou vestir-me sozinho, pois hei outras tarefas para vós. Levai o jovem Harry para onde não o vejam... para a armaria, se quiserdes. Ele está ansioso por fazer exercício e não levantará problemas. Arranjai-lhe companheiros suficientes para o manter ocupado até à ceia e cuidai de que ninguém lhe diga que havemos um visitante de Aber. Só mais uma coisa, Walter! Já junto à porta, Langholme voltou-se.

- Senhor?

- Deixai que ele se atrase para a ceia. Cuidai disso. Vamos apanhá-los aos dois desprevenidos.

Todos correram em várias direcções, para dar cumprimento às ordens de Isambard. Este ficou a exercitar o corpo que conservava em forma à custa de duros exercícios e de uma vida austera, disfarçada sob uma capa enganadora de luxo. Nessa noite, não haveria à sua mesa homem que comesse ou bebesse menos do que ele. Olhou-se dos pés à cabeça, avaliando sem vaidade a beleza que em tempos lhe proporcionara um sincero prazer, observando sem medo as mudanças que, agora, se operavam todos os dias no seu corpo. Fizera o necessário para que as carnes não ficassem moles com o tempo, nem perdessem o vigor e a elasticidade, mas os anos haviam conseguido vingar-se como podiam. Os flancos elegantes e os ombros largos conservavam a elegância de formas e movimentos, a pele não apresentava rugas, excepto as rugas de expressão que se haviam gravado no seu rosto; mas a carne começava a ficar mais pálida e seca, a endurecer sob a pele curtida e os ossos bem formados. As coxas altas e direitas estavam a ficar mais magras e um pouco rugosas, a caixa torácica arqueada salientava-se sob a carne mais delgada, deixando ver o desenho das costelas sob a pele retesada. A máquina magnífica ainda era forte e hábil, mas a flexibilidade e a seiva dos longos músculos começavam a secar, a cabeça já era uma caveira. Sorriu: era íntimo da morte havia tanto tempo que esta já deixara de o aterrorizar.

- Já agora, podiam mandar-te um padre - disse à sua imagem, enquanto estendia a mão para a camisa lavada que Langholme deixara preparada.

Philip ap Ivor chegou a Parfois um pouco antes do crepúsculo do segundo dia de Fevereiro. Durante os anos em que, discreta e sinuosamente, vinha desempenhando o papel de clérigo emissário de confiança de Llewelyn, raras vezes tivera uma recepção tão grandiosa. Enquanto desmontava, no terreiro exterior, perguntava a si mesmo o que pressagiaria tal recepção. Por certo não um êxito fácil, pensou. Ninguém se daria ao trabalho de ataviar desta maneira o seu assentimento. Os seus argutos olhos castanhos percorreram todas as impressionantes ramificações do castelo preferido de Isambard: Philip perguntava a si próprio qual dos buracos de pedra subterrâneos albergaria o jovem Harry.

Sobre o assunto que ali o trouxera não foi pronunciada uma palavra até se sentarem à mesa, no salão de Isambard, onde foi oferecido ao emissário o lugar de honra, à direita do seu anfitrião. A direita de Philip ap Ivor havia um lugar vazio que seria sem dúvida ocupado por algum membro de confiança da corte de Isambard. Tal como Philip, este teria o cuidado de colocar discretamente testemunhas que ouvissem o que fosse dito: a contradança havia começado.

A luz dos archotes e das velas, Philip olhou em volta da mesa de honra e sentiu-se encorajado. Havia cavaleiros que não pertenciam ao séquito de Isambard, dois clérigos ingleses de alto grau hierárquico que lhe eram desconhecidos e um jovem corpulento, que reconheceu como um dos sobrinhos de Hubert de Burgh. Sabia que o corregedor do reino mantinha excelentes relações com Isambard: se houvesse oportunidade, seria bom despoletar o assunto ali mesmo, em público, diante de todas aquelas testemunhas independentes. Talvez não conseguissem tirar Harry da prisão mas, pelo menos, tornariam mais difícil para Isambard fazê-lo desaparecer discretamente deste mundo.

Ambos se mostravam muito corteses um com o outro e respeitadores da etiqueta. O velho lobo não perdera o bom aspecto nem o brilho.

- E qual é o motivo da perturbação de Sua Graça o príncipe de Aberffraw e senhor de Snowdon?

Com extrema delicadeza, Isambard conseguira transformar num comentário satírico o novo e imponente título de Llewelyn, composto pelo antigo nome sagrado, para tranquilidade dos Galeses, e pelo acrescento floreado destinado aos ouvidos ingleses, que nunca haviam ouvido falar de Abberfraw.

.- E em que posso eu servir o príncipe Llewelyn?

Também ele parecia desejar que o debate fosse público. Havia levantado a voz para se fazer ouvir por sobre o burburinho das várias conversas que decorriam na mesa de honra e conseguira mesmo chegar aos cavaleiros menos importantes, sentados abaixo do estrado.

- Na questão do seu filho adoptivo, que desapareceu da sua corte na última Primavera. Chegou aos ouvidos do príncipe, senhor, que o rapaz foi visto há poucos dias a entrar em Parfois, escoltado por quatro dos vossos homens. Venho saber se é verdade que ele está aqui à vossa guarda.

- Segundo creio, Sua Graça há mais de um filho adoptivo - replicou Isambard, apoiando-se confortávelmente sobre os cotovelos vestidos de brocado. - Para já não falar do filho que mantém à sua guarda em Degannwy. De qual deles estamos a falar neste momento?

- De Harry Talvace, senhor.

Então, ele queria que os nomes fossem mencionados? Isso queria dizer que abrigava um qualquer desígnio oculto.

- Sim - respondeu Isambard, prontamente - Harry Talvace está aqui.

- Como vosso prisioneiro?

- Como meu prisioneiro.

-Apanhado por haver cometido um delito deste lado do Severn?

- Para dizer toda a verdade, saiba Vossa Reverência que foi apanhado por haver cometido um delito do lado de cá da minha própria guarda.

- Ah! - exclamou Philip apvor. - Não foi isso que constou em Aber. A história que nos chegou, senhor, foi que o rapaz estaria a ser levado, amarrado e amordaçado, pela encosta acima, do Severn para Parfois. Portanto, não dentro de muros.

- É exacto. Mas estais a falar do que aconteceu há alguns dias apenas, quando o apanhámos depois de uma tentativa de fuga. O rapaz encontra-se sob minha custódia desde Novembro. Quanto ao motivo pelo qual veio ter às minhas mãos, podereis perguntar-lho directamente.

- Então poderei vê-lo? - perguntou Philip, rápido a procurar assegurar pelo menos esta concessão.

- Com toda a facilidade, Reverência. Basta que olheis para o outro lado do salão.

Harry entrara pela porta mais afastada no momento certo e estava a passar por entre as mesas para se dirigir ao seu lugar habitual, entre os seus pares, os jovens pertencentes a famílias de cavaleiros. Langholme cumprira as ordens a preceito: o rapaz estava corado e radiante, devido ao exercício e à pressa; tinha os olhos brilhantes e a cara acabada de lavar, estava vestido com uma túnica de rico pano de Flandres que havia muito deixara de servir ao filho mais novo de Isambard e fora arranjada para este hóspede involuntário. Se Philip estava à espera de ver um prisioneiro pálido, adoentado, esfarrapado e mesmo amarrado, Harry seria sem dúvida uma grande surpresa.

Avistaram-se ao mesmo tempo. Harry deteve-se bruscamente ao ver o clérigo magro e idoso, de expressão austera e cabelo grisalho, ao lado do esplendoroso Isambard. Aquele rosto representava a sua família. Empalideceu, corou intensamente outra vez e perdeu por instantes a compostura; mas o leve sorriso avaliador nos olhos de Isambard fê-lo endireitar os ombros e aprumar as costas. Saiu do seu lugar e deu a volta à mesa de honra para beijar a mão de Philip, que por sua vez o beijou e o abraçou, aproveitando o momento para recuperar a pose. Temia ter demonstrado a sua surpresa e consternação e viu-se obrigado a rever as suas ideias sobre a missão que ali o trouxera.

Nada ali era o que aparentava. O rapaz estava muito longe de parecer maltratado ou de se encontrar encarcerado: aparentemente, levava uma vida normal, ao menos dentro das muralhas, ia e vinha como queria, comia no salão como qualquer pessoa da casa. Este tipo de cativeiro era concedido aos príncipes, raras vezes aos comuns mortais. Seria intenção de Isambard deixá-lo partir sem pedir nada em troca? Haveria alguma razão para ele desejar estar de boas relações com Gwynedd, e estava a utilizar o bem-estar de Harry para alguma jogada rebuscada?

- Esta noite, Harry - disse Isambard - o teu lugar é ao lado de Sua Reverência. Hás-de querer falar com ele sobre a tua família e ele deseja fazer-te algumas perguntas. Sua Reverência gostaria de saber como vieste parar às minhas mãos: conta-lhe.

Philip teve um mau pressentimento. Subitamente certo de que qualquer confissão pública que se seguisse se destinava a favorecer os desígnios de Isambard e não os seus, apressou-se a falar, antes de o rapaz poder abrir a boca.

- Talvez devêssemos adiar esta conversa para depois da ceia, senhor. Não era minha intenção transformar a vossa mesa numa conferência de negociações.

- Eu seria incapaz de discutir na ausência de Harry um assunto que lhe diz directamente respeito - retorquiu Isambard. - E creio que poderemos dar seguimento à conversa como pessoas civilizadas. Fala, Harry! Onde foi que te fiz prisioneiro, dentro ou fora do meu domínio?

Harry já perdera as boas cores resultantes de duas horas de jogos extenuantes com espadas rombas; agora, estava pálido, de uma palidez nítida, reservada, agressiva. E não foi, por certo, o mero excesso de confiança quanto ao bom tratamento de que naquele momento beneficiava que deu aos seus olhos aquele brilho verde insolente, nem aquele tom de desafio, claro e cortante.

- Dentro do vosso domínio - respondeu, com firmeza. - Na igreja, onde me havia introduzido e me escondera durante a noite.

- Sem dúvida de que com um propósito legítimo, não é verdade, Harry? - sugeriu Isambard, com o habitual sorriso demoníaco a tornar-se mais caloroso e terno.

De repente, as palmas das mãos de Harry ficaram escorregadias, com um suor frio e inesperado. Compreendia muito bem que estava a ser tentado e com que objectivo. O que quer que fizesse jogaria a favor de Isambard, cujas armadilhas eram sempre duplas e sem escapatória. Se confessasse ousadamente em público o seu verdadeiro objectivo, seria considerado culpado e a sua causa seria indefensável aos olhos da lei, que ali, nas Marcas só actuava se os motivos fossem inatacáveis. Isambard não tencionava deixá-lo partir a troco de dinheiro e estava a tomar medidas para que a coroa não o retirasse das suas mãos pela força. A tentação de iludir a verdade tornou-se subitamente quase insuportável, tão forte era o seu desejo de ir para casa. Mal vislumbrara o padre Philip, sentira o coração apertar-se, tal era a dor causada pelas recordações que o puxavam para Aber, memórias mais antigas do que a amargura e a ira que o haviam levado a partir.

Mas, se mentisse, dizendo que viera a Parfois sem qualquer má intenção e só atacara por haver sido apanhado de surpresa e estar amedrontado, Isambard averbaria uma grande vitória. Nem mesmo desmentiria tamanha falsidade. Harry sentia no sangue o repousante prazer e o contentamento com que o seu inimigo aceitaria a mentira que faria dele o vencedor. Era isso que ele queria. Até valeria a pena entregar a sua presa, depois de a haver levado à ignomínia de mentir para se desculpar. Tudo quanto aquele homem terrível interpunha entre os dois era um teste ou uma armadilha; tentava, com todo o poder da sua vontade, vergar o filho, já que não conseguira vergar o pai.

- Segundo a lei que eu conheço, era legítimo - respondeu Harry, em voz alta e clara. - Pelo código galês, é legal matar para pagar uma dívida de sangue. Melhor, é uma obrigação! Vim matar-vos, senhor, por haverdes morto o meu pai.

O breve silêncio pareceu estender-se até ao fundo da grande sala e agarrar-se com firmeza aos pilares da porta e todos os olhares se fixaram avidamente nas três pessoas sentadas na mesa de honra. Isambard quebrou ao mesmo tempo o silêncio e a tensão, dizendo com uma serenidade cuidadosa, e dirigindo-se a todos os presentes:

- Foi uma sorte para ambos que as intenções e os actos estejam, por vezes, tão distantes. Como não podem deixar de notar, Harry não me matou.

Até aquela oblíqua sugestão que Harry tivera receio de pôr em prática o seu intento pareceu a este uma nova cilada contra a integridade do seu ódio.

- Fiz o melhor que pude, senhor - retorquiu ferozmente. - Quantas vezes na vossa vida estivestes mais perto da morte?

Os olhos cavernosos, que guardavam lá no fundo longínquas labaredas vermelhas de compreensão e louvor, fitaram-no, risonhos. O senhor de Parfois reflectiu por alguns instantes.

- Talvez três - respondeu por fim, calmamente, como se estivesse a responder à mais simples e mais natural das perguntas.

- Então fazei-me justiça, senhor!

- Está calado, filho - aconselhou Philip, puxando pelo braço de Harry para o reter, embora tivesse preferido puxar-lhe as orelhas se estivesse a sós com ele por um segundo.

Como conseguiria alguém levar a bom termo a sua embaixada com um fedelho turbulento a seu lado, sempre pronto a dar as respostas erradas?

- Perdoai-me, padre - respondeu Harry, estremecendo ao sentir o toque. - Fizeram-me uma pergunta e eu devo responder com a verdade. Não conheço qualquer razão para me sentir envergonhado. Fiz como me ensinaram, mas não suficientemente bem!

- Estás a dificultar a missão de Sua Reverência, Harry. Veio cá para investigar o teu caso e negociar a tua libertação e eu estou pronto a ouvi-lo. Mas temo que a tua posição perante a lei seja mais vulnerável do que imaginas. É pena o teu código galês não se aplicar aqui, em Inglaterra, onde o crime foi cometido. Porém, aceito o teu sentido do dever e estou pronto a esquecer a tua infracção.

- É muita generosidade da vossa parte, senhor - disse Philip, calorosamente.

- Sob condições, evidentemente - continuou Isambard. - Ouvirei a vossa proposta de resgate, se, em público, o Harry der por encerrada a sua querela de sangue contra mim e assumir o compromisso de nunca mais pensar nela.

- Nunca! - exclamou Harry, alto e bom som, antes que, traiçoeiramente, a tentação se apoderasse de novo do seu coração.

- O rapaz está esgotado, não pensa o que diz. Poderíamos voltar a discutir este assunto mais tarde, em privado? Com tempo e com sossego, ele acabará por ouvir a voz da razão.

- Não - cortou Harry. - É este o momento e estou a dizer o que sinto, do fundo do coração. A minha dívida não está saldada e eu não posso e não quero desistir dela até que seja paga. Se Deus me der outra oportunidade saberei fazer melhor uso dela!

Não foi capaz de o evitar: a contenção que tão arduamente impusera a si mesmo resvalou-lhe por instantes do rosto, como uma máscara, e a chama amarga do ódio flamejou-lhe nos olhos dilatados, reverberando ferozmente sobre a fisionomia calma e sorridente de Isambard.

- Dificilmente se poderá chamar a isto um discurso conciliatório - comentou Isambard, com delicadeza. - Como compreendereis, não me apraz libertá-lo sem qualquer garantia. Prefiro continuar vivo, como qualquer homem razoável.

Não faria sentido esperar qualquer ajuda do rapaz; a única coisa a fazer era excluí-lo da decisão sobre o seu destino por ser um menor irresponsável.

- Senhor, recebereis do príncipe a promessa que não obtivestes de Harry - disse Philip. - Vamos pois conversar sobre o seu resgate, já que sois generoso ao ponto de encarar essa possibilidade, e obterei a garantia total de que Harry será impedido de voltar a entrar nos vossos territórios e de se aproximar de vós. Se for necessário, o príncipe mantê-lo-á sob guarda até ele ganhar juízo. Conheceis Liewelyn e sabeis que manterá o seu compromisso.

- E conheço igualmente o Harry - respondeu Isambard, rindo. - Também não é homem para faltar à sua palavra.

- O príncipe possui sobre ele uma autoridade que ele não pode negar. Estou autorizado a oferecer-vos quinhentos marcos pelo seu resgate e podeis conservá-lo aqui até obterdes do príncipe Liewelyn as garantias que desejais.

- Não. A menos que o Harry abjure a sua querela pessoal, não posso libertá-lo.

Disse-o de forma pensativa, como se encarasse a hipótese de reconsiderar, mas Philip sabia que não era essa a sua intenção. Ainda assim, tentou.

- Em minha opinião, dadas as circunstâncias mil marcos seriam um preço mais condizente com o valor da sua libertação. Até aí, posso negociar.

- Lamento, Reverência, não poder aceitar as vossas condições.

- Haveis sido tolerante com o Harry, senhor, e ouso apelar para a vossa clemência para com este jovem cabeçudo: assumiremos a responsabilidade pelo seu bom comportamento futuro.

- Ora, se ele pedir a minha clemência, estou certo de que poderá obtê-la.

Harry também tinha essa certeza, mas a clemência de Isambard era algo que não podia e não desejava suportar: a simples ideia de dar essa satisfação ao seu inimigo fê-lo cerrar desesperadamente os maxilares, a fim de evitar que uma palavra ou um som pudessem sair e ser interpretados como um apelo. Philip lançou-lhe um olhar, observou os sinais e abandonou a ideia de lhe fazer qualquer pedido.

- Preocupa-me vir encontrá-lo neste estado - disse, desviando-se da barreira intransponível que Harry lhe opunha. - Não era este o humor, nem este o estado de espírito que lhe conheci em casa. Receio que a sua saúde não seja tão boa como julgais, senhor. Suponho que lhe permitis passear ao ar livre e praticar exercício? Talvez se pudesse sair a cavalo... sob escolta, naturalmente!

Isambard sorriu.

- Já antes perdi outros passarinhos que abandonaram o ninho... mesmo sob escolta - replicou.

- Haveis dito que Harry era um homem de palavra. Não aceitaríeis a sua palavra de honra?

- Aceitá-la-ia se alguma vez me fosse dada. Tentai vós, Reverência.

Fizesse o que fizesse, Philip acabava por ser forçado a voltar a Harry. De que lado estava o rapaz afinal? Cerrava os dentes a todas as concessões que poderiam valer-lhe a liberdade, decidido a facilitar a tarefa de Isambard, tal como este sempre havia planeado que acontecesse. Harry afirmara, para que constasse, que praticara um crime sacrílego e que estava a ser punido por esse facto, com toda a justiça. Recusava-se a invocar a sua juventude, a pedir perdão pelo seu acto ou a prometer emendar-se. O galês que havia em Philip compreendia-o e apoiava-o, mas o diplomata frustrado havê-lo-ia espancado de boa vontade.

Reservou o último golpe para o fim da refeição, quando o vinho corria livremente. Mais uma vez, voltando-se de chofre para Isambard, disse:

- Voltando à questão do resgate, senhor: haveis recusado as minhas propostas. Peço-vos agora que me digais qual é o vosso preço e quais as garantias que pretendeis.

Isambard dardejou um olhar penetrante sobre o rosto de Harry e manteve os olhos fitos nele, sem se perturbar com o olhar feroz, de ódio e de desafio, que lhe foi devolvido. Sorriu, trocista, àqueles olhos verdes, irados e amargos.

- Como poderei eu atribuir um preço a um Talvace? - respondeu.

Mal o padre franqueou as portas do castelo e dirigiu os passos cansados do cavalo para o pátio das cavalariças, Owen e Adam correram ao seu encontro.

- Já estávamos quase a desistir de vos voltar a ver, padre - disse Owen ansiosamente, segurando-lhe no estribo enquanto Adam pegava nas rédeas. - Há cinco dias que estamos à vossa espera e nem um sinal. Trazeis boas notícias?

- Por Deus, sim! - respondeu Philip ap Ivor, com firmeza. - A primeira e a melhor notícia que podíamos pedir e pela qual devemos estar gratos. O rapaz está vivo e de boa saúde e não foi maltratado.

Era, sem dúvida, a primeira boa nova e a mais urgente: Adam e Owen respiraram de alívio, mas perceberam também, pelo tom do padre, que a sua missão falhara.

- Mas ele não o deixa partir - disse Adam, sem rodeios.

- Deixaria sob certas condições e é essa a dificuldade. Mas são condições que ele sabe que o rapaz nunca aceitará nem nunca nos deixará aceitar em seu nome. Isambard joga com os sentimentos de Harry como se tocasse harpa. Está disposto a esquecer a invasão das suas terras e o ataque à sua pessoa... sim, sim, foi atacado e ao que parece com violência... se o Harry renunciar para sempre à sua vingança. Mas o Harry antes queria morrer. Está pronto a conceder-lhe o seu perdão se Harry lho pedir, mas o rapaz preferiria cortar a língua. Ainda assim, prontifica-se a dar-lhe maior liberdade de movimentos, se o Harry lhe der a sua palavra de honra, mas este só está disposto a dar-lhe uma punhalada. Apesar de haver passado estes dias todos com o Harry, não consegui meter-lhe juízo na cabeça.

- Então viste-lo e falaste com ele? E Isambard deixou-vos falar à vontade? - perguntou Owen, maravilhado.

- Deixou-me? O homem está tão seguro de si mesmo que quase me obrigou a falar com ele e deixar-me-ia tentar persuadi-lo até me dar por satisfeito. A única coisa que não me deu foi licença para falar com ele a sós mas é óbvio que, mesmo assim, não haveria conseguido nada. Gastei tempo e saliva inutilmente. Todavia - acrescentou Philip, estremecendo quando a desagradável brisa do Severn lhe despenteou a tonsura grisalha - juro que Harry está a ser bastante bem tratado, melhor do que eu ousaria esperar. Porque teima naquele ódio especial a Isambard, é algo que não consigo entender. Há qualquer coisa de muito pessoal e muito intenso entre eles. A pendência do pai foi motivo suficiente para o levar a agir mas há uma nova ofensa, feita ao próprio Harry, que levou a inimizade ao extremo. Não diz uma palavra sobre o assunto, não apresenta marcas visíveis, mas há qualquer coisa e não sou capaz de adivinhar o quê.

Adam e Owen entreolharam-se por cima da testa franzida do padre e cada um deles viu os próprios pensamentos reflectidos nos olhos do outro.

- Mas nós sabemos, padre, ou pelo menos assim o creio - disse Owen, em tom sombrio. - Vinde ver o que encontrámos quando nos dirigíamos para aqui, há seis dias atrás.

Fizeram-no atravessar o pátio grande e dar a volta do claustro, em direcção à fachada Leste da igreja, onde ficavam os túmulos dos abades, que se distinguiam pelas mitras. Sob os contrafortes cinzentos da parede, uma das pedras compridas fora afastada e o túmulo ao lado dela estava aberto, sob o céu gelado.

Aberto e vazio. Nada restava de mestre Harry a não ser a leve mancha escura sobre a pedra, onde o seu corpo havia repousado, uma sombra esguia delineada pela geada, no fundo do caixão.

Por um longo momento, de cenho franzido e com os lábios apertados, Philip ap Ivor ficou a olhar fixamente para o interior da cavidade vazia.

- Isto é uma profanação - disse com aspereza, quando por fim levantou os olhos. - Uma ofensa sacrílega contra um local sagrado. Já houve homens que foram excomungados por menos.

- É possível, padre, quando se pode nomear os responsáveis. Mas quem nos irá dizer quem é o culpado disto? No fundo dos nossos corações, bem sabemos quem foi, mas não há provas contra ele.

- A voz de Owen deixava transparecer a raiva que sentir-se impotente lhe causava. - Vede bem, lascaram a pedra quando a levantaram. Estas marcas foram feitas há poucas semanas, é certo, mas ninguém sabe exactamente quando. Se não fossem os olhos atentos do Adam, nem sequer chegaríamos a saber que alguma coisa se passara. Veio a correr ter connosco, depois de visitar o túmulo, no dia em que aqui chegámos, para nos dizer que alguém lá andara a mexer, e quase não acreditámos nele. Fomos ver e havia lascas de pedra na erva e estas marcas recentes. Quando convencemos o prior a deixar-nos levantar a lápide, encontrámos isto.

- Conheço esta pedra centímetro a centímetro - disse Adam, ciosamente, inclinando-se para tactear a folha cinzelada com um gesto de ternura irreprimível. - Se alguém pisar o musgo que nela nasceu, eu dou por isso. E conheço bem demais os sinais que um pé-de-cabra de ferro deixa na pedra para não perceber como estes recortes foram feitos. Perdemo-lo - acrescentou, com desgosto. - Nem sequer os seus ossos conseguimos salvaguardar.

- Os irmãos não deram por qualquer ruído, mas o mais certo é haver acontecido durante a noite, entre as Laudas e a Hora Prima

- adiantou Owen. - Tempo suficiente para esta malvada tarefa, se soubessem onde o encontrar, como parece. Se assim foi, souberam-no pelo Harry. Como poderia ser de outra forma? O local só era conhecido por meia dúzia de pessoas.

- O Harry nunca lhes diria - disse Adam, com estoicismo.

- Conheço-o e sei que preferiria morrer.

- A morte já é uma perspectiva suficientemente dura para um velho mas, para um rapaz deverá ser insuportável. Deus sabe que não estou a insinuar que o Harry lhes haja dito voluntariamente, pois também o conheço e sei que consegue ser tão persistente no silêncio como qualquer adulto. Diria que conseguiram arrancar-lhe a informação, mas quanto à artimanha que utilizaram, sei tanto como vós. E, se eu estiver certo, não há melhor razão para o Harry se mostrar tão implacável em relação a Isambard. Mas se soubesse desta afronta - continuou Philip, fitando os seus interlocutores com um olhar interrogativo - o rapaz haver-mo-ia dito na presença de Isambard. Digo-vos eu que o Harry cuspiu todo o seu ódio contra aquele homem em pleno salão, para todos os pajens e escudeiros ouvirem. Está tão cheio de raiva que nem sequer sente medo e havê-lo-ia acusado cara a cara.

- Se isto é realmente obra dele, coisa em que acredito com toda a minha alma, Isambard nunca o poria a par do seu feito - disse Owen. - Mas o Harry pode muito bem saber que o segredo sobre este túmulo deixou de o ser, por culpa sua. E esse é um assunto que ele gostaria que ficasse só entre os dois, pelo menos enquanto julgar que nada de grave aconteceu. Agarrar-se-á à esperança de que nós nos encarregaremos de manter a salvo os ossos do pai... e quer Isambard só para si.

- E foi assim que cumprimos a nossa parte - observou Adam, com amargura.

Mordendo o lábio, de cenho carregado, Philip reflectiu.

- Não há testemunhas? Ninguém ouviu homens por aí, durante a noite, ou viu alguém atravessar o rio?

- Ninguém, pelo menos deste lado do Severn. Não nos aventurámos mais além.

- E que haveis feito até agora?

- Nada. Receávamos prejudicar as vossas negociações em Parfois ou provocar a ira deles, enquanto Harry não estivesse de novo connosco. Ademais, o prior está relutante em acusar Isambard sem dispor de provas consistentes. No lugar dele, não faríeis o mesmo? Os irmãos são obrigados a viver aqui e a outra margem do rio fica perigosamente perto.

- É verdade. Não devemos pô-los em perigo mais do que o necessário. Mas este assunto, um acto tão sacrílego, é da competência do bispo. Devemos dar-lhe a conhecer dos factos sem fazer qualquer acusação explícita. Deixemos que sejam as autoridades competentes a fazê-la, na devida forma legal. Preciso de falar com o prior. - Olhou em volta, com ar interrogador, para os lados do rio. - Não há qualquer indício de um barco vindo do lado de Parfois, durante a noite? A relva não está pisada? Nenhum vestígio?

- Se os houve, ninguém reparou - respondeu Owen. - Como não estávamos à procura deles, até podem haver-nos escapado. Sabemos que Isambard é muito cuidadoso e infunde tal temor aos que o servem que estes fazem as coisas tão bem como ele próprio as faria. Receio mesmo que a noite em questão já houvesse passado havia muito, quando o Adam nos chamou a atenção para o sacrilégio. E, se pistas houve, estas já haveriam desaparecido.

- Bem, agora que aqui cheguei e posso obter formalmente a história da boca do próprio prior, cabe-me associar-me a ele para escrever ao bispo a informá-lo. Onde estão alojados os vossos homens? Espero que não seja aqui. Se quereis ajudar o Harry, não podeis dar a cara.

- Estão em Castell Coch, padre. Achei melhor não sobrecarregar o prior com hóspedes tão perigosos. Se vier a ser necessário recorrer a eles, poderíamos ser um motivo para que deitassem fogo ao mosteiro. Agora, vinde para dentro, está muito frio cá fora - continuou, ao ver o padre encolher-se dentro do hábito, como um pássaro de penas eriçadas. - Queremos ouvir tudo o que haveis para nos contar.

Chegados à esquina da igreja, olharam para trás pois Adam já não estava com eles. Enquanto conversavam, Adam afastara-se pelo estreito trilho marcado na relva pisada, em direcção à pequena enseada onde os barcos acostavam junto aos prados do mosteiro. Estava de pé, à beira de água, a olhar, com grande intensidade e em silêncio absoluto, para os refluxos túrgidos, cinzento acastanhados, da corrente que fluía em direcção a Breidden. O seu rosto estava tão imóvel como o gelo. Chamaram-no por duas vezes, antes que os ouvisse e só então Adam se encaminhou para eles, em passadas rápidas, como um homem aguilhoado por uma dor aguda da qual não conseguia libertar-se. Ao ver-lhe a expressão, Philip olhou para o rio, na direcção em que Adam estivera a olhar, e empalideceu de fúria e apreensão.

- Pensas que foi esse o caminho que o cadáver levou? Será possível que o hajam lançado à água depois de o tirarem da campa?

- Que outra coisa pode haver acontecido? Ele atirou-o ao rio logo depois de morto e, com ele, Madonna Benedetta, bem viva, para que nadassem juntos ou se afundassem. O John o Frecheiro retirou-os da água e ocultou-os ao seu poder durante algum tempo, mas cuidais que um homem como Isambard alguma vez esquece uma sentença que haja pronunciado ou perdoa os culpados? Que havia de fazer ao corpo de Harry, quando por fim o encontrou, se não atirá-lo de novo à água para ser levado pela corrente, como ele queria, para que os seus ossos ficassem espalhados pelas margens do Severn, anónimos e insepultos? Se alguma vez Isambard voltar a deitar as mãos a Benedetta, também a atira à água. Este homem é assim - acrescentou Adam bruscamente.

E pôs-se a andar à frente deles com passadas enfurecidas, em direcção à hospedaria, perseguido por uma dor da qual não conseguia distanciar-se.

Owen e os doze homens que escolhera voltaram a reunir-se em Castell Coch, perto de Pool, num dia de Março. Três deles tinham família junto desta fronteira e haviam passado aquelas semanas de espera paciente a interrogar exaustivamente os primos sobre os hábitos do castelo de Parfois. Outros dois, acompanhados por Adam, haviam visitado as aldeias no sopé de Long Mountain, do outro lado do rio: de Leighton a Forden, na margem do rio, aos povoados do interior, situados no vale elevado onde nascia o curso de água.

Encontraram homens e mulheres que olhavam atentamente para Adam, mal lhe punham os olhos em cima, e que, quando se apanhavam a sós com ele num local discreto, o chamavam pelo nome, hesitantes. Depois do anoitecer levavam-no para suas casas e respondiam às suas perguntas o melhor que sabiam. O nome de mestre Harry Talvace depressa vinha à baila e começavam a reconstruir a imagem dele, havia tanto tempo perdida nas suas memórias. Não o haviam recordado muitas vezes ao longo daqueles anos, embora ele nunca houvesse estado muito longe das fronteiras das suas vidas árduas. Assim que o seu nome era referido, lá estava mestre Talvace de novo. Mas não se recordavam dele com as ferramentas na mão, na oficina por baixo da igreja, ou de testa franzida sobre a mesa de desenho: viam-no de tronco nu e queimado pelo sol, a ceifar os campos, brandindo uma foice em vez de um macete, um rapaz delgado, com fiapos de erva no cabelo escuro despenteado, que bem poderia haver saído de qualquer uma das casinhotas da aldeia. Era esta a imagem mais nítida que conservavam dele. Havia muito que Adam não se lembrava assim dele: abraçou o calor daquelas memórias com a mesma gratidão com que salvaria do Severn qualquer pequeno osso isolado da bem-amada mão direita, para voltar a sepultá-lo em chão consagrado.

Adam, pelo menos, trouxe de volta algum conforto, um conforto referente ao Harry que morrera, não ao que estava vivo. Quanto ao resto, pouco havia para contar. Juntaram-se todos num dos cantos do salão para partilhar as informações que haviam recolhido durante a sua cuidadosa investigação, com os cães a seus pés, sobre a palha.

- Não o deixam pôr o pé de fora, como já esperávamos - disse Owen, quando acabaram. - Nunca mais foi avistado desde que aquela rapariguinha o viu a ser arrastado por eles para dentro das muralhas. E a praça-forte é um osso tão duro que nem mesmo um exército conseguiria roê-lo... quanto mais meia dúzia de homens, como nós. O Harry não pode sair de lá e nós não conseguimos lá entrar. Precisamos de encontrar forma de tornear o problema. Se o Harry nunca pode sair e entrar, há outros que podem fazê-lo. E os reféns podem sempre ser trocados.

~ Quem entra e sai de Parfois, raras vezes o faz em pequenos grupos - informou Adam. - Estamos numa região de fronteira e Isambard nunca alimentou ilusões quanto à estima dos camponeses pela gente da sua casa. Nestes últimos dias, voltei a dar-me conta disso: saem em comitiva, seja para caçadas ou falcoarias, e sempre em número suficiente para garantir a segurança. É preciso reconhecer que Isambard protege bem os seus ou, pelo menos, assegura-se de que ele é o único que os pode chicotear ou enforcar. Quanto ao problema do refém, mesmo que tomássemos o de Guichet como refém... vi-o passar no outro dia, engordou para o dobro do que era e a barba dá-lhe outro aspecto, mas reconheci-lhe o rosto perverso e ambicioso... mesmo que caçássemos o próprio de Guichet, cuidais que Isambard nos daria o Harry em troca? Jamais! Isambard despreza-o, sempre o desprezou. Poderia querer que lho entregássemos por ele lhe ser tão útil ou para lavar a própria honra, mas se eu fosse o de Guichet não estaria muito certo disso. Não serve de nada ameaçar um homem, utilizando alguém a quem ele não dá qualquer valor. Quem poderá ser importante para Isambard?

Outrora, pensou, houvera alguém até demasiado importante para Isambard mas, graças a Deus e a Llewelyn, essa pessoa encontrava-se em segurança, fora do alcance dele, na paz do santuário acima de Aber, um refúgio tão sagrado como um túmulo e quase do mesmo tamanho. Noutros tempos, houvera talvez outra pessoa que Isambard estimara, antes de a afeição se haver transformado em ódio; e nem a última e mais sagrada de todas as celas havia mantido o mestre Harry a salvo da sua insaciável inimizade.

- Não conseguiremos o nosso objectivo com o de Guichet - disse Owen. - Podemos fazer melhor do que isso.

Os seus olhos escuros brilhavam, à luz das tochas. Também ele estava a ser assaltado pelas recordações: ali, tão perto de Parfois, o ar estava impregnado delas. Lembrava-se de um seio coberto por um pano tecido em casa, áspero sob o seu rosto ensonado, de um braço a aconchegá-lo, do balanço ritmado do cavalo que os transportara nesse dia, durante a longa cavalgada até à fronteira galesa; de como, subitamente, à partida, se apercebera de que ia deixar mestre Harry e nunca mais voltaria a vê-lo. Lembrava-se de se haver agarrado desesperadamente ao arreio do estribo e de como fora puxado de volta para o arção da sela e consolado - consolado, não enganado. Depois fora a vez de Adam lhe pegar ao colo e o tranquilizar, apesar de ele próprio se sentir inconsolável.

- Há pelo menos uma pessoa que sai de Parfois quando quer e quase sem escolta - disse Owen. - Nestes últimos dez dias, segui todos os seus movimentos fora das muralhas. Com o seu falcoeiro, sai pelo menos uma vez por semana, ao longo da crista, em direcção à estrada romana de Shrewsbury. Há muita caça nessas pastagens altas, lembro-me muito bem disso, de quando cá vivi em criança. E sei de um pequeno bosque, a rematar uma língua de floresta, que dará boa cobertura para uma retirada até ao rio, com um prisioneiro. Ele passa por lá sempre que se dirige para aquele velho forte de tijolo, no alto da crista. É aí que vamos apanhar o nosso homem. Podíamos escalar a encosta até à igreja, como fez o Harry, mas voltar a descer carregados com um prisioneiro seria demasiado perigoso e demasiado lento. Vamos antes esperar por uma oportunidade cá fora, nem que seja preciso esperar um mês ou mais. E não vamos apoderar-nos de um senescal nem de um intendente, mas de alguém cuja Uberdade será, mesmo contra a sua vontade, trocada pela do Harry: vamos caçar o lobo velho, Ralf Isambard, nem mais nem menos.

Foi no dia quinze de Abril que montaram a emboscada ao senhor de Parfois, dentro das suas próprias terras, num espesso bosque de carvalhos e moitas atravessado pelo carreiro estreito que ligava a entrada principal do castelo à estrada de Shrewsbury. Havia três semanas que viviam escondidos nas florestas abaixo do castelo, à espera de uma oportunidade; e haviam sido três semanas penosas, repassadas pelas chuvas maliciosas de Abril que afastavam Isambard das suas actividades habituais. Por duas vezes, o sinal de alerta de Iorwerth levara-os a ocupar apressadamente as posições preestabelecidas. Mas, na primeira ocasião, Isambard evitara o bosque gotejante e cavalgara pelas encostas mais suaves a Leste de Parfois, com os acompanhantes dispostos atrás de si como contas sobre o fio verde-escuro do trilho marcado sobre a erva húmida. E a segunda havia sido uma grande caçada, com doze convidados ou mais e perto de cinquenta criados. Owen recuara, não querendo arriscar-se com tão poucas probabilidades de sucesso.

Tinham esperado, longa e pacientemente, por este terceiro aviso. Chegou a meio da manhã: todos deslizaram por entre os ramos e as ervas ásperas para se esconderem, agachados, dos dois lados do carreiro estreito, com os arcos tensos e as flechas ajustadas, à espera de ouvir a batida suave dos cascos, que chegou até eles não como um som mas como uma vibração, propagada pelo solo.

Desta vez, a batida não mudou de direcção. Desta vez, faltava-lhe aquele rufar potente e tumultuoso que assinalava a presença de muitos cavalos. Da orla das árvores, o grito do pica-pau verde de Iorwerth soou de novo, como uma risada.

- Bom! - murmurou Owen baixinho, ao ouvido de Cynan. A folhagem dos arbustos que ladeavam o carreiro não era ainda muito compacta mas já proporcionava cobertura suficiente e o mato era denso naquele local.

- Quando eu der o sinal, dispara uma flecha para o chão diante dele, a uma distância suficiente para ele a ver a tempo.

Na retaguarda, Iorwerth tinha consigo três arqueiros, a fim de assegurar que, depois de entrar no bosque, o grupo não pudesse voltar para trás. Mais à frente, Adam tinha consigo outros dois, para deter quem conseguisse escapar. Não matariam ninguém a menos que a isso fossem obrigados: só queriam apoderar-se de Isambard e conseguir um avanço suficiente para a retirada até ao rio.

Ralf Isambard surgiu ao fundo do carreiro, magnífico, vestido de negro, cavalgando num trote ligeiro. O traje era rico demais para o ritmo estafante das caçadas habituais e tampouco trazia os três cães, ou Iorwerth há muito os teria assinalado. Não trazia falcão no punho nem falcoeiro atrás de si: apenas meia dúzia de nobres da sua casa, muito aprumados, cavalgando como se se dirigissem para a estrada, a fim de receberem convidados e acompanhá-los cortesmente até ao castelo. Isambard levava consigo uma espada, mas esta era leve e decorativa, própria para cerimónias da corte, e não uma arma para os momentos de perigo. Owen contou nove cavaleiros atrás de Isambard: três eram seus escudeiros e os outros seis podiam ser nobres, oficiais ou soldados da sua casa mas, naquela manhã de Abril, todos eles aparentavam estar animados de intenções pacíficas. Era difícil acreditar em tamanha sorte! Teriam de se haver com dez espadas, mas não havia um só arqueiro entre eles e a chuva miudinha que caía abafava todos os sons.

Owen deixou cair a mão sobre o ombro de Cynan quando Isambard se encontrava ainda a umas vinte jardas de distância. A flecha soltou-se do arco com leveza, quase com lentidão, enterrou-se no solo e ficou a oscilar no meio do carreiro, a poucas jardas das patas do cavalo.

A mão que segurava as rédeas retesou-se sem um sobressalto, a cabeça que pendia, pensativa e descuidada, ergueu-se de imediato, todos os músculos espantosamente controlados. Sorria ou, então eram as depressões profundas do seu rosto que lhe davam a aparência de um sorriso aterrador. Ficou imóvel, tenso e alerta, enquanto o cavalo ladeava, assustado - mas o cavaleiro não se assustara.

- Alto aí, senhor! - gritou Owen, do seu refúgio. - Estais cercado por arqueiros: se fizerdes um movimento estais perdido.

Sem voltar a cabeça, Isambard levantou uma das mãos e fez estalar os dedos, silenciando os murmúrios hesitantes e receosos nas suas costas.

- Fazei o que ele diz. Ficai quietos. - A flecha no meio do caminho ainda vibrava, leve e rápida, com um zumbido semelhante ao de uma abelha. - Então? Que quereis de mim?

Na retaguarda da pequena comitiva, um jovem puxou as rédeas, deu meia volta ao cavalo e tentou fugir do bosque. Iorwerth disparou uma flecha e cortou-lhe o caminho, fazendo-o desistir da ideia e regressar em tropel para junto dos companheiros. Isambard nem sequer olhou em volta.

- Fazei avançar o cavalo a passo, até eu vos mandar parar - ordenou Owen. - Apenas vós, senhor.

Owen quase esperara que a resposta de Isambard fosse enterrar as esporas no cavalo e lançar-se a todo o galope para terreno aberto e o grupo da frente recebera ordens para abater o cavalo, se Isambard o fizesse. Mas, em vez disso, o senhor de Parfois voltou-se suavemente na sela e fez avançar a montada, devagar, em obediência à ordem, como que a dançar em volta da flecha oscilante, até ficar praticamente alinhado com o esconderijo de Owen.

- Basta! Agora, desmontai.

Muito devagar, deliberadamente, Isambard tirou os pés dos estribos e inclinou-se para frente, como se fosse desmontar, mas enquanto fazia este movimento enterrou com toda a força a espora direita no flanco do animal e conduziu-o, não em frente, mas para o lado, num sacão brusco para dentro do matagal. Apoiou-se com as duas mãos no arção da sela e saltou lá de cima, caindo sobre os arbustos, quase em cima de Owen. Podia estar velho, mas enfrentava qualquer situação que se lhe deparasse com a destreza de um rapaz. Caiu sobre os pés, enrolado como uma bola, e utilizou todo o peso do corpo e toda a flexibilidade das pernas compridas para saltar outra vez em frente, sobre o inimigo, que tentava manter-se fora do alcance dos seus braços. Owen iludiu o abraço, mas Isambard conseguiu lançar um braço em volta de Cynan e do seu arco, antes de este conseguir saltar para trás ou disparar.

Os pequenos ramos partidos devido à queda de ambos saltaram para todos os lados. Rolaram juntos pelo chão, com o arco a gemer e a crepitar entre eles, até que a flecha pronta a disparar se partiu contra o chão pedregoso. A cabeça ficou espalmada no chão, inofensiva, mas a haste partida perfurou a túnica e a camisa de Cynan até às costelas, ferindo-o. Cynan desviou-se para o lado e rolou para longe da punhalada, até conseguir firmar-se nos joelhos, empregar toda a sua força para se erguer e soltar-se dos braços que o agarravam. Num instante, estava outra vez de pé e saltava para fora do alcance de Isambard. A corda do arco partiu-se com o esticão e foi enlear-se com toda a força em torno do braço deste, como uma mola solta.

Não fora isso e Isambard teria desembainhado a espada e o combate que os galeses não podiam permitir-se tornar-se-ia inevitável. Todavia, a paralisia momentânea e os poucos segundos que levou a desenrolar e atirar fora o empecilho fizeram-no perder a oportunidade. Owen aproximara-se por trás e lançou-lhe uma capa sobre a cabeça e os ombros, enrolando depois com firmeza os braços e o tronco. Cynan atirou-se em voo para lhe agarrar as pernas que se debatiam e Meurig fez uma diagonal por entre as árvores para vir ajudá-los.

Estava praticamente terminado e Isambard era deles. Owen respirou fundo e correu de volta ao pequeno grupo, que ficara no carreiro, a algumas jardas de distância. Também ali se registara uma certa agitação, depois de o seu senhor haver lançado o ataque. Três dos que seguiam à frente haviam tentado cavalgar em auxílio de Isambard. Um deles estava agora pregado a uma árvore, por uma flecha que lhe atravessava o músculo do antebraço direito, que apertava com firmeza com a mão esquerda para diminuir a hemorragia. Os outros dois haviam recebido o aviso a tempo e refreado os cavalos. Algures por trás destes, um dos jovens escudeiros havia sido apeado do cavalo e estava sentado na erva, estonteado, a segurar a cabeça com as mãos, demasiado atordoado para causar mais problemas.

Os outros tinham aprendido a lição. Reunidos a meio do carreiro, inquietos sobre as montadas igualmente inquietas, olhavam de árvore em árvore em busca dos assaltantes, mas com as mãos bem afastadas das espadas.

Por entre os ramos, Owen agarrou nas rédeas do cavalo de Isambard, que abanava a cabeça e espezinhava o carreiro, nervoso. Afastou as moitas e puxou o animal até onde se encontravam, deixando a Cynan e Meurig a tarefa de içar o senhor de Parfois, deitá-lo atravessado na própria sela e arrastá-lo apressadamente por entre as árvores, em direcção ao rio. Owen voltara para trás, para ordenar ao resto do grupo que desmontasse quando, a curta distância, uma voz se ergueu subitamente num longo brado de desafio.

As cabeças tensas ergueram-se, esperançosas, os corpos submissos retesaram-se, os olhos cautelosos brilharam. O jovem escudeiro que se agachara a segurar na cabeça deslizou de repente, como uma cobra, refugiando-se no mato, e lançou um grande grito:

- A moi! A moi, Isambard!

Iorwerth saiu de entre as ramagens e apertou-lhe o pescoço até ele se calar, mas o mal estava feito. Não fora por acaso que a pequena comitiva lhes parecera uma escolta que ia ao encontro de convidados. Subitamente, o ar ribombava e estremecia com o barulho de cascos, que se aproximavam num galope rápido sobre as bermas cobertas de erva da estrada romana de Shrewsbury.

Só lhes restava tempo para bater em retirada. Owen rugiu ordens e os arbustos agitaram-se, quando os galeses contornaram os seus inimigos e se embrenharam na zona mais espessa do bosque, a caminho do vale do rio. Não havia tempo para espantar os cavalos e deixar os cavaleiros apeados, nem tampouco isso faria sentido pois muitos outros cavaleiros se aproximavam a toda a velocidade e não conseguiriam enfrentá-los a todos. A única solução era esconderem-se no mato mais espesso, onde os cavaleiros não poderiam segui-los, e fugir para o Severn.

Mas até para isso era tarde demais. Curvados e a correr como lebres, os galeses ultrapassaram os companheiros que conduziam o cavalo com o cativo escassos minutos antes de serem também ultrapassados. Os homens de Isambard queriam a todo o custo provar o seu zelo e as encostas da floresta ainda não eram suficientemente íngremes nem o mato suficientemente alto para lhes impedir a passagem. Nos calcanhares destes vinham os recém-chegados, cheios de entusiasmo, cavaleiro após cavaleiro, nobres, escudeiros e criados, vestidos com as cores vermelha e verde do conde de Kent.

Owen acenou furiosamente a Cynan, indicando-lhe que seguisse em frente e voltou-se para enfrentar o ataque. Os arqueiros esgueiravam-se de árvore para árvore, apontando e disparando como podiam, os lanceiros visavam os homens e não os cavalos e abateram três na primeira investida. Então, os cavaleiros atiraram-se em tropel para o meio dos galeses, que se agarravam às árvores que os protegiam, e foi um caos de combates corpo a corpo e correrias sem direcção e sem controlo. Um pouco à frente, no bosque, um cavalo relinchou e ouviu-se a voz irada de Cynan, num grito de desafio. Os ingleses haviam alcançado o prisioneiro amordaçado e dominado os guardas.

Afinal, tudo fora em vão! Já não podiam conservar o prisioneiro, apenas podiam tentar sair dali com vida e sem serem reconhecidos. Foras-da-lei das florestas do Sul que se haviam tornado demasiado afoitos: deixá-los ficar com essa ideia e talvez pudessem ainda fazer uma nova tentativa, com maior êxito.

Haviam estado tão perto, para afinal falharem!

Adam correu desenfreado colina abaixo, por um carreiro escuro, quase caindo nos braços de um homem que saiu de repente do meio das moitas, de espada na mão. A espada estava pronta para o ataque e o homem ria-se. O cabelo curto, da cor do aço, despenteado pela sem-cerimónia com que fora tratado, cobria de caracóis emaranhados aquela cabeça magnífica que mestre Harry tanto gostara de reproduzir na pedra. A voz clara e imperiosa, que estivera recentemente amordaçada pelas pregas da capa de um arqueiro, cantava baixinho para si mesma e não se calou no momento em que o homem se esquivava instintivamente à colisão, com um passo de dança que logo se transformou num impulso que quase penetrava a defesa sobressaltada de Adam. Começaram então a desenhar um semicírculo, separados pelo silvo das lâminas das espadas, trocando de posições como se fossem um par de dançarinos, os rostos separados por um palmo de ar apenas: só então Isambard reconheceu o seu canteiro.

Afastaram-se de um salto e fitaram-se por instantes, cada um deles consciente de haver sido reconhecido e sabendo que esse reconhecimento clarificara muita coisa. Então, Adam voltou a atacar furiosamente, pressionando o adversário com uma chuva de estocadas e, por um momento, Isambard cedeu terreno. Aparava os assaltos de forma quase mecânica e os seus olhos só se afastavam do rosto de Adam para lançar em torno olhadelas rápidas e penetrantes, E, de súbito, lançou-se sobre Adam, bloqueou-lhe a lâmina da espada com a sua e, com um movimento violento do punho e do cotovelo, quase lhe arrancou a arma da mão. Adam conseguiu recuperá-la mas, por um fugaz instante, Isambard poderia havê-lo morto e ambos sabiam isso. Em vez de desferir o golpe, Isambard baixou a espada, recuou rapidamente dois passos e, com as narinas dilatadas e um sorriso selvagem nos lábios, voltou-se de repente e desapareceu entre os arbustos.

Confuso e desorientado, Adam correu em direcção ao rio e ao encontro de Owen, a quem confiou a inquietação e a incompreensão que lhe iam na alma. Então, afastaram-se tanto quanto puderam, para se esconderem até a noite cair e lamber as feridas. Quando a noite veio, atravessaram o rio no vau de Buttington e foram enterrar a sua derrota e o seu desgosto na floresta, sob a crista de Gungrog Fawr,

Owen fora seriamente ferido no antebraço, Cynan tinha pedaços da sua própria flecha profundamente enterrados nas costas e todos tinham sofrido diversos cortes e equimoses; mas haviam deixado atrás de si vários inimigos feridos por flechas e lanças, alguns talvez mesmo mortos. Não se podia dizer que os danos fossem pesados. Mas haviam sido reconhecidos, Parfois fora alertado e era preciso começar tudo de novo, agora com armas bem desiguais.

Deitado debaixo das árvores, sem conseguir dormir, embrulhado no manto molhado, Adam dizia para consigo: porque continuo eu para aqui, a atormentar-me? Porque foi que ele susteve a mão e não me matou?

 

Parfois: Abril a Maio de 1231

- AH, ELES ACABARÃO POR VOLTAR A DAR SINAIS DE VIDA - observou Isambard, encolhendo os ombros. -Agora estou de sobreaviso e sei com o que posso contar. Por esta altura, já eles atravessaram o rio e eu havê-los-ia acompanhado, se vós não houvésseis chegado tão prontamente. Não me agrada vigiar formalmente as idas e vindas deles. Deixemo-los preocupar-se e acabarão por se trair. E, quando esse dia chegar, eu vou estar preparado para avançar.

Nessa noite, Isambard bebeu mais do que habitualmente. O seu rosto estava mais corado e os seus olhos mais brilhantes. A breve escaramuça fizera-lhe bem ao corpo e à alma. Retirara-se cedo, com os convidados, porque estes precisavam de partir de manhã bem cedo e os assuntos que tinham a tratar com ele não podiam ser discutidos no salão, diante de toda a gente.

- Então, o conde Marshall foi-se. E metade do sul do País de Gales vai ser dividido. O irmão fica com Pembroke, quanto a isso não há apelo. Mas a sua tutela sobre as terras de de Breos é uma coisa que o rei não está disposto a ceder-lhe de bom-grado, juntamente com o condado. Não me espantaria ver o senhor de Kent de mão estendida. Todavia, parece que já caiu noutras mãos.

Isambard sorriu, perscrutando os rostos impenetráveis dos diplomatas, que nem mesmo diante dele abdicavam das suas expressões ponderadas e afáveis.

De Breos, o pobre tolo temerário que, um ano antes, por aquela mesma altura, metera o pescoço no laço de Llewelyn, deixara atrás de si um suculento pomo de discórdia, composto pelos seus vastos domínios e pelas suas quatro filhas. Desaparecido agora o precioso tio de Pembroke e guardião natural do bolo, havia vários olhos nobres e ávidos postos nos seus prósperos senhorios das Marcas. Mas não fora a morte do conde que levara aqueles influentes emissários de de Burgh a cavalgar país fora, a toda a brida, até Parfois: fora o facto de tão cobiçada presa haver caído nas mãos de Richard de Cornwall. Mas como deixara Hubert que Elfael e Brycheiniog se lhe escapassem entre os dedos?

- Que não são as melhores mãos - replicou prudentemente Warrenne. - Sua Graça o conde de Cornwall é um jovem excelente mas com pouca experiência para tomar conta de um fardo tão pesado.

- É verdade - concordou Isambard, com um sorriso oblíquo. - Mas é detentor de alguns direitos, bem entendido.

Era inútil falar muito sobre aquele ponto. De Burgh sabia perfeitamente que desapossar Richard era uma tarefa que requeria uma enorme subtileza: Richard era irmão do rei, o que, dependendo dos caprichos de humor de Henrique, podia torná-lo indispensável ou impensável. Mas, para de Burgh, o parentesco tornava mais difícil denegrir abertamente a sua intendência. Além disso, Richard casara recentemente com a irmã do conde William de Breos, o que dava um fundamento familiar à sua aspiração de tutela sobre as filhas e as propriedades de William.

- O casamento data de há apenas duas semanas - prosseguiu Isambard, pensativo. - Talvez isso o deixe menos atento a outros assuntos.

Os emissários mantiveram a mesma calma admirável, não se permitindo nem a sombra de um sorriso, em resposta ao olhar malicioso que lhes fora dirigido.

- A principal preocupação do corregedor do reino - replicou Warrenne - é ver Brecon e Radnor nas mãos de alguém que entenda a sua importância para a Inglaterra. Mais do que ninguém, senhor, vós sabeis que, neste momento, o País de Gales e a Inglaterra se encontram à beira de uma guerra e que Brecon e Radnor podem ser vitais para nós. Ninguém melhor do que vós poderá apresentar esta questão ao rei. Haveis defendido esta Marca contra as invasões do príncipe de Gwynedd e visto os efeitos das suas incursões contra outros, menos precavidos e capazes do que vós. Ademais, vós pensais na unidade da Inglaterra, como o corregedor e, tal como ele, não vedes qualquer vantagem em preservar a todo o custo laços antigos e artificiais com territórios situados no continente. O futuro da Inglaterra está aqui, nestas ilhas. Para ser grande e forte, a nação deverá crescer aqui, senhor. Para Oeste: para o interior do País de Gales.

- E para Norte, para o interior da Escócia - acrescentou docemente Isambard.

- Nunca ninguém sugeriu que se ameaçasse a soberania do rei Alexandre...

- Ainda não - replicou Isambard. - Mas vai acontecer. Talvez não enquanto eu for vivo, nem durante a vida de Hubert de Burgh, mas vai acontecer.

Levantando-se abruptamente, Isambard começou a andar de um lado para o outro, com o copo de vinho na mão. Era um hábito seu, quando reflectia.

- Nesse aspecto e como ele muito bem sabe, estou com o conde de Kent. Despojei-me de todos os meus feudos franceses em proveito do meu filho mais velho, com a condição de ele se contentar em ser francês, como eu escolhi ser inglês. Um homem não pode ser as duas coisas. E penso, tal como Hubert pensa, que o mar deve ser a nossa fronteira. Mas, no interior dessa fronteira, podemos e devemos ser uma entidade única. Todavia, aconselhá-lo-ia a, por enquanto, avançar com prudência nas Marcas. Se obtiver essa tutela, em vez do conde de Cornwall, será o senhor de um terço de Gales mas deverá evitar abusar demasiado da paciência do príncipe de Gwynedd.

- O corregedor não é animado por ambições territoriais pessoais - atalhou Piercey. - O seu único pensamento vai para a Inglaterra.

- O seu pensamento vai para a Inglaterra, mas também vai para Hubert - contrapôs Isambard, sem rodeios. - Não vejo nisso nenhum inconveniente, desde que seja por esta ordem. Mas, se Hubert levar Llewelyn a agir, as culpas recairão sobre a Inglaterra e será a Inglaterra a sofrer as consequências. Não deixeis de lhe recordar isto.

Fosse como fosse, Isambard sabia que iria tomar o partido de Hubert. Era precisamente aquela visão que o aproximava de um homem com o qual, para além dela, não tinha quase nada em comum. Os outros, incluindo Ranulf de Chester, continuavam a ver apenas os seus próprios domínios, a reforçá-los e a combater ferozmente as invasões de que estes eram alvo, sem ver mais longe. Enquanto de Burgh, um homem de baixo nascimento e natureza traiçoeira, mesmo quando cobiçava feudos com a ambição de um homem sem terra, mesmo quando invejava os Blundeville e os Marshall e construía em torno de si uma réplica artificial do esplendor hereditário destes, via de certo modo a Inglaterra com os mesmos olhos que Isambard: não como um império em decomposição e em desagregação, à imagem do poder em declínio do próprio imperador, mas como um império sólido como um punho fechado, solvente como um tesouro judeu e auto-suficiente como um senhorio bem administrado, uma potência não confinada pelo mar, mas integral e acessível através dele. Por consideração para com aquele verdadeiro homem de Estado, Isambard, que nascera para dominar, perdoava ao coleccionador de castelos e açambarcador de feudos. Além disso, sentia-se perversamente atraído por um homem que suscitava ódios com tanta facilidade.

- Todavia - acrescentou, voltando para eles um rosto sereno e determinado -julgo ser realmente necessário que esta Marca vá parar às mãos do corregedor do reino e não às do conde Richard. O corregedor pode contar com o meu apoio para obter a sua guarda. Podeis dizer-lhe que farei o que ele deseja.

- Ireis ver o rei pessoalmente, senhor? A corte está em Windsor mas, com estas incursões galesas que já atingem o território de Brecon, quem sabe quanto tempo poderá Sua Majestade continuar ali em paz?

- Irei, logo que haja contido as incursões galesas nas minhas próprias terras - prometeu Isambard. - Se o meu agente conseguir encontrar traços deles entre a guarnição de Castell Coch, os meus amigos de Gwynedd partirão a correr para Aber em menos de uma semana. E se, entretanto, o rei abandonar Windsor, o corregedor poderá mandar-me uma mensagem e eu juntar-me-ei a ele em Gloucester ou onde ele estiver.

- Ele sabia que podia contar convosco, senhor - disse Warrenne calorosamente. - Os vossos conselhos sobre tudo quanto se relaciona com as Marcas são de tal peso que o rei não poderá deixar de vos ouvir.

- E não haverá obstáculo - acrescentou secamente Isambard - porque, segundo ouvi dizer, existe, neste momento, uma certa animosidade entre o rei e o irmão. Entre os meus argumentos a seu favor e os de Richard contra ele, não duvido que Hubert venha a conseguir o que quer.

Os discretos agentes de Isambard passaram quinze dias em Pool e no pátio hospitaleiro de Strata Marcella até conseguirem detectar traços dos saqueadores galeses. Procurá-los equivalia na verdade a procurar Adam Boteler, o único que fora reconhecido; e Adam recebera ordens para se manter escondido em Castell Coch, até estarem concluídos os preparativos para a segunda tentativa. Não fazia parte dos planos de Owen deixar todos os seus homens lá escondidos, agora que estavam comprometidos; caso fosse feita uma investigação minuciosa, isso seria um indício da cumplicidade não oficial de Llewelyn na iniciativa e, embora as dúvidas quanto a isso devessem ser poucas, não era conveniente que tal fosse estabelecido e admitido. Eram e tinham de continuar a ser tropas irregulares, que poderiam ser desautorizadas em caso de necessidade.

Por isso, Adam continuava a aborrecer-se em Castell Coch, enquanto Owen e os seus homens acampavam na floresta, para lá de Gungrog Fawr, à espera de uma oportunidade de voltarem a atravessar o rio. Owen estava a tentar fazer chegar uma mensagem a Harry, na sua prisão; alguns homens de Leighton tinham parentes no castelo e, em memória de mestre Harry, de quem guardavam boas recordações, talvez aceitassem correr o risco de levar uma mensagem. Mas Abril chegou ao fim e as suas surtidas de reconhecimento confirmavam que os vaus e o embarcadouro estavam sob vigilância e que a margem inglesa do rio ainda era patrulhada dia e noite. Esperaram; Isambard não ia manter eternamente aquelas medidas: afinal, não estava assim tão inquieto quanto à sua vida e à sua liberdade.

Se, naquele dia de princípios de Maio, Adam não houvesse saído do seu esconderijo, não haveriam sido descobertos. Mas as mensagens enviadas por Llewelyn eram suficientemente graves para justificar um risco que, na altura, parecia bem pequeno. Oficialmente encorajadas ou não, as perturbações nas fronteiras de Brecon haviam atingido proporções tais que o rei enviara o irmão, o conde de Cornwall, para as Marcas, para lhes pôr termo e preparava-se para abandonar Windsor para se lhe juntar. Um sopro bastaria para atear um fogo que iria abrasar as Marcas de um extremo ao outro; e o príncipe mantinha uma correspondência permanente, mas ainda amigável com o rei Henrique, num esforço para resolver pacificamente as dissensões, sem ofender a honra galesa nem a honra inglesa. Fora isto que Llewelyn escrevera de Aber; e, entre as linhas, podia ler-se com clareza que, apesar de continuar a defender a paz, o príncipe deixara de acreditar nela e de a desejar realmente. Era apenas uma questão de horas.

Por isso, ao cair da noite, Adam saiu de Castell Coch, para levar pessoalmente a mensagem a Owen, ao acampamento nos bosques acima de Cegidfa. E um mendigo que havia dias rondava as portas, fazendo-se alimentar pelas cozinhas, seguiu todos os seus passos. De madrugada, Isambard recebeu a notícia de que estava à espera. E, na noite seguinte, enviou dois grupos para a outra margem do Severn, um na direcção de montante, outro na de jusante, convergindo ambos para o esconderijo dos galeses, num ataque a partir do cume.

O alarme foi dado às três horas da manhã: de vigia no cume, Meurig imitou o piar da coruja e o seu grito rasgou a noite, chegando aos ouvidos de Iorwerth, que se encontrava de guarda no acampamento. De nada servira haverem extinguido por completo as fogueiras: os atacantes saltaram sobre eles com rapidez e precisão, vindos do Norte e do Sul. Iorwerth acordou Owen e ambos pegaram nas armas em silêncio, mas o silêncio e a escuridão não bastaram para os ocultar.

- Ainda bem que não me fui embora - disse Adam, num murmúrio, junto ao ouvido de Owen, enquanto tomavam posição entre as árvores. - Haveríeis um homem de menos.

O assalto lançado de norte surgiu sob a forma de uma lufada de mechas entre as árvores, uma explosão de faúlhas arrastadas pela brisa. A folhagem verde de Maio não ardeu, mas as folhas secas caídas e os gravetos pegaram fogo avidamente e alcançaram-nos tão depressa que eles foram obrigados a dar meia volta e a correr, sem terem tempo para seguir o caminho mais difícil até ao topo. A sul, Isambard precisou apenas de estender os seus braços compridos para os receber. Por trás deles, o fogo breve extinguiu-se, depois de os haver lançado contra as pontas das espadas dos ingleses.

Os arqueiros dispararam às cegas, nas trevas, mas apenas uma vez, para não atingirem os próprios companheiros. Porque, após o primeiro assalto, tudo se desenrolou num combate à força de pulso, sem arte e desordenado devido à escuridão, primeiro com golpes de machado e de espada contra tudo quanto se mexesse, depois num corpo a corpo às apalpadelas, durante o qual toda a gente arquejava, pronunciando palavras na respectiva língua, a fim de escapar aos próprios camaradas, e nem mesmo as espadas eram de qualquer utilidade. Debatiam-se e lutavam, procurando alcançar a garganta dos adversários com as adagas ou com as mãos nuas. Houve até quem quebrasse as espadas e as usasse como se fossem adagas, contra pescoços e sovacos. Então, levantou-se vento, que empurrou as últimas faúlhas sobre o restolho, e o fogo voltou a atear, iluminando os combatentes, que se soltaram dos seus terríveis abraços e recuaram até à distância da espada ou da lança.

Caprichosas, as chamas, que devoravam o combustível mais acessível, ergueram-se entre eles e separaram-nos. Com o rosto contorcido num sorriso demoníaco e trazendo atrás de si uma chuva de faúlhas e o odor acre a fumo do inferno, Isambard saltou sobre elas. Por um momento, atacou-os sozinho e Owen lançou-se contra ele com alegria, apesar de quase cego pelas chamas e de confundido pelas sombras oscilantes. Então, o fogo abrandou e os mais timoratos homens de Isambard foram em seu auxílio e repeliram os adversários para o fundo da colina.

Atrás deles, o fogo apagou-se. Cobertos de cinzas, os galeses bateram em retirada a toda a pressa, arrastando consigo os seus feridos ou levando-os às costas, quando estes caíam. Em número três vezes superior, os seus inimigos perseguiram-nos inexoravelmente por mais de uma milha, por entre os arbustos esmagados e através do curso de água a sul de Cegidfa. Os galeses lutavam e corriam, paravam para lutar ainda, cansados, separados, acossados como lebres, até que, junto ao regato, Isambard mandou parar os seus homens e lhes deu tréguas.

Owen tinha ainda consigo Adam e mais três homens. Nenhum deles saíra incólume mas, pelo menos, podiam andar. Durante o que ainda restava da noite, voltaram atrás e, acabrunhados, esquadrinharam o campo de batalha. Encontraram Iorwerth, que se arrastava penosamente sobre a erva, como um caracol esmagado num mar de sangue, e dois outros homens que seguiam pela orla do bosque caindo a cada passo. Levaram do acampamento os corpos de três homens abatidos a golpes de machado e, por fim, já ao alvorecer, deram com Meurig no alto da colina, pregado ao solo com a própria lança. Na altura em que chegaram com os mortos a Cegidfa, Iorwerth estava também a morrer, com o padre da igreja ajoelhado ao seu lado. E, antes do meio-dia, dois dos feridos mais graves haviam morrido igualmente.

Owen ocupou-se dos vivos, tratando-os o melhor que sabia, e dos mortos, preparando-os para serem sepultados, até cair junto do último, exausto, mas ainda consciente. Então, Adam e alguns dos homens que haviam vindo com o padre para os socorrer levaram-no e deitaram-no para descansar, com calma, numa das quintas. Quando recuperou forças suficientes, Owen enterrou a cabeça entre os braços, para se furtar à luz. Perdera metade dos seus homens e falhara a tentativa de libertar Harry, que o trouxera até ali. Não sabia que, desconhecendo o número de inimigos que teria de enfrentar e previdente como sempre, Isambard reunira quarenta homens para atacar os doze que ele trouxera consigo. Mas, mesmo que soubesse, o facto pouco conforto lhe daria.

A perda de cada um dos seus homens doía-lhe como se lhe houvessem amputado um membro, lorwerth ensinara-o a montar; Morgan fora o ídolo da sua infância devido às suas proezas de lutador; Meurig, um homem não livre, mas sempre disposto a combater, queria sempre participar em todas as batalhas, apesar de o seu dever ser apenas transportar o equipamento. Esgotado e abatido, Owen revia-os mentalmente, sentia-se sangrar e chorava sem lágrimas. Não se mexeu, nem mesmo quando Adam se sentou ao seu lado, resmungando contra as dores que sentia nos músculos e nas feridas. Nem descobriu o rosto, quando Adam poisou docemente a mão sobre a sua.

 

Harry estava tão absorvido pelo seu trabalho que nem ouviu a porta abrir-se. Deslocara a mesa de modo a receber luz directa da janela e estava debruçado sobre a madeira dura e irregular e sobre a faca dificilmente manejável, de sobrolho franzido e com a respiração pesada. Ao fechar suavemente a porta atrás de si, Isambard foi atingido por mais uma das recordações que o assaltavam sempre que se encontrava perto de Harry. Se o rapaz houvesse gritado por cima do ombro «Afastai-vos da luz!», a ilusão seria perfeita. Estou a ver, pensou Isambard, que a vida dos homens descreve círculos a que não podemos escapar e que nos traz de volta momentos que pensávamos pertencerem ao passado. Porquê? Haverá alguma coisa que ainda possa ser mudada? Um desequilíbrio que possa ser ajustado?

Em silêncio, aproximou-se até ficar junto do ombro de Harry que, de tão concentrado no pedaço de madeira que tinha diante de si, nem mesmo então dera pela sua presença. Escolhera-o por certo entre os que se destinavam à lareira. Mas onde arranjara a faca?

- Bem se vê que és filho dele - comentou Isambard.

O rapaz ergueu bruscamente a cabeça e os seus olhos verdes brilharam num desafio já habitual e, em seguida, voltaram a fixar-se ciosamente nos contornos de uma flor semiaberta que começava a emergir da madeira. Num movimento violento, cerrou os dedos sobre a faca e, cruelmente, tentou arrancar a flor ao bloco de madeira, como quem corta um pedaço podre de uma maçã. Mas a madeira era demasiado dura e nodosa e a lâmina ficou cravada nela; no mesmo instante, Isambard estendeu os braços por cima dos ombros do rapaz, agarrou-lhe nas mãos, afastando-as uma da outra, e torceu-as até a dor obrigar Harry a largar a faca e a madeira. Isambard apoderou-se de ambas e, de sobrolho franzido, fitou longamente Harry, que massajava os pulsos doridos e o encarava com um olhar fulminante, ao mesmo tempo que retesava os músculos, para receber sem pestanejar a bofetada de que estava à espera.

Mas a bofetada não veio. A respiração momentaneamente acelerada de Isambard acalmou e o seu olhar velado fixou-se na flor mutilada.

- Era mesmo necessária uma tal violação para me causar tão pouca dor?

De lábios cerrados, o rapaz não respondeu.

- Quem te deu esta faca?

O instrumento tinha um aspecto miserável: tratava-se da lâmina quebrada de uma adaga, com uma das extremidades envolvida em trapos, a fazer as vezes de cabo, e que Harry afiara o melhor que pudera na pedra da janela. A área utilizada para tal apresentava-se mais clara. Se lhe houvessem perguntado onde arranjara a lâmina, os maxilares cerrados num trejeito obstinado não se abririam. Mas, agora, Isambard já sabia como formular as perguntas. Bastava perguntar «Quem te deu isso?», num tom de voz ameaçador, pressagiador de um castigo.

- Ninguém ma deu. Encontrei-a no armeiro e escondi-a. Era para deitar fora.

A faca improvisada tilintou ao cair em cima da mesa, perante o olhar espantado de Harry. Por que não lhe ocorrera usá-la para outra coisa, além de trabalhar a madeira? E, se a mesma ideia ocorrera ao seu inimigo, porque lha devolvera ele com tamanha imprudência?

- Porque não me pediste os instrumentos de que precisas, em vez de quebrares as unhas e te desesperares com madeira para queimar e um bocado de lixo?

- Há-de passar muito tempo, senhor, até eu vos pedir seja o que for.

- Que garoto mais arrogante, santo Deus! - exclamou Isambard, dividido entre o riso e a exasperação. - Queres ser mais orgulhoso do que o teu pai? Ou será que receias simplesmente mostrar aquilo de que és capaz, no mesmo local onde ele deu boas provas, antes de ti?

- Sei melhor do que ninguém que não me posso comparar a ele, senhor - respondeu Harry, corando vivamente. - Nunca quis comparar-me a ele. Estava a esculpir só para passar o tempo...

A sua voz vacilou lastimosamente: afinal, também isso acabara, depois de ser descoberto por Isambard.

- Não me posso comparar a ele! Não confias em ti mesmo o suficiente para seres nada menos do que o melhor? Quantos se lhe podem comparar? Quantos homens pensas tu que há neste mundo que se encontrem entre os primeiros? E, por isso, deveremos todos desistir e ficar parados, em vez de servirmos humildemente consoante os nossos méritos? Olha! - exclamou, colocando a escultura mutilada diante da cara de Harry e obrigando-o a olhar para ela. - Ousas dizer-me que não vês aqui nada dele? Que as tuas mãos não sentem nada, quando trabalhas a madeira? Que não desejas seguir-lhe as pisadas? Nega, se isso for verdade, e eu desisto. Podes apodrecer à vontade que não volto a incomodar-te. Para passar o tempo! Foi a primeira mentira que ouvi da tua boca.

Harry permaneceu calado, pálpebras descidas, as faces a arder de ressentimento. Mas, quando voltou a olhar para a flor mutilada, não foi capaz de ocultar o remorso e a ternura.

- Levanta-te! - ordenou abruptamente Isambard. - Vem comigo. Chegou a altura de descobrires a tua herança.

Harry levantou a cabeça, desconfiado, os olhos muito abertos. A sua herança? Que queria aquele homem dizer? Se havia ali alguma coisa que lhe pertencesse por via de seu pai, só podia ser na igreja. Mas nunca fora autorizado a ir além das torres de vigia e não podia acreditar que, agora, lhe fosse feita tal concessão. Apesar da recusa em se deixar levar pela esperança, os seus olhos começavam a brilhar de excitação.

- Ah, não! - exclamou Isambard, que adivinhou para onde voara o seu espírito e fez questão de o fazer descer à terra. - Isso não! Sem me dares a tua palavra, não. Mas vem ver!

Os dedos fortes que lhe rodearam o braço impeliram-no para fora da cela e Harry deixou-se levar, como que num sonho, incapaz de resistir, mas preparado a cada passo para ver um alçapão traiçoeiro abrir-se sob os seus pés. Quando Isambard soltava um pouco as rédeas, havia sempre uma armadilha à sua espera e, desta vez, não ia ser diferente. Todavia, desceram juntos a estreita escada de pedra sem ele ser mandado de volta para a prisão. Atravessaram o terreiro, acompanhados por olhares e murmúrios que, por momentos, interromperam as actividades do dia.

- É aqui. Entra!

A mão magra que lhe apertava o braço empurrou-o na direcção de uma porta, na longa fila de construções encostadas ao pano da marulha, do lado mais soalheiro, onde havia melhor luz e o dia durava mais tempo. Era uma divisão grande e sem ornamentos, com grandes cavaletes ao centro e bancadas ao longo da parede. Havia diversas caixas, uma prensa grande e, em cima dos cavaletes, encontravam-se alguns desenhos inacabados e vários instrumentos. Não estava ninguém na sala, além deles. Isambard impeliu docemente Harry e fechou a porta.

O rapaz olhou em volta, com o rosto tenso e os olhos muito abertos e atentos. A mão de Isambard sobre o seu ombro conduziu-o até à bancada do outro lado da sala, onde o chão estava coberto por um tapete de poeira branca e vários fragmentos de esculturas e blocos de pedra semitalhados haviam sido encostados à parede e postos de lado muito tempo antes. Também havia alguns desenhos enrolados e alinhados sobre a bancada, junto de uma panóplia de ferramentas, macetes, escopros e cinzéis, dos mais grosseiros aos mais aguçados, todos com os cabos polidos e gastos pelo uso.

Os olhos verdes de Harry fixaram-se em Isambard, numa interrogação.

- Sim - respondeu Isambard. - Esta era a sua sala de desenho. E estas são as suas ferramentas.

O rosto ansioso e altivo do rapaz desviou-se do seu olhar perscrutador.

- O teu pai tinha vinte e quatro anos quando o conheci, na prisão do preboste, em Paris. Paguei a multa a que fora condenado, para ficar com ele ao meu serviço. Ele e o irmão de leite, que tu conheces muito bem.

Ainda estaria vivo, o Adam de quem falava agora? A lição infligida na véspera aos galeses ocorrera durante a noite e Isambard não sabia quantos haviam sobrevivido, para ficar a sabê-la de cor.

- Penso que tu possuis uma parte dos dotes do teu pai, mas precisas de aprender a não os desperdiçares por despeito, só porque eu vivo no mesmo mundo que tu.

Harry respirou fundo para responder ao insulto, mas acabou por não dizer nada: no íntimo, sabia que aquilo era verdade. Quase contra vontade, estendeu a mão, pegou num macete e fê-lo rodar para testar o equilíbrio, agarrou num cinzel ao acaso e, um pouco desajeitadamente porque as mãos lhe tremiam, aplicou a ponta do instrumento a uma curva de um desenho inacabado do bloco de pedra mais próximo. Com um som suave e pleno, o macete bateu no cinzel. O rapaz esboçou um sorriso mas, logo em seguida, mordeu os lábios e ficou sério. Os seus olhos contemplavam o cabo do cinzel e, maravilhado, ajustou a mão aos traços ali deixados por outra mão: uma mão hábil, musculada e delicada, muito semelhante à sua.

- As ferramentas dele - disse Isambard docemente. - Que serão tuas, se as quiseres.

Harry ouviu-o, apesar de não querer ouvir. Perturbado, poisou o cinzel, que já não era capaz de empunhar com firmeza, e começou a mexer nos blocos de pedra parcialmente talhados, deslocando-os e voltando-os para a luz. Quando o puxava para si, a luz bateu num deles - pequeno, coberto de pó e obscuro no canto que lhe fora destinado - e revelou-lhe o esboço vigoroso de um rosto que conhecia bem, um rosto que vira havia muito tempo, no trifório, quando se escondera no último vão do corredor, escutando os passos do seu inimigo, que se aproximava. Na altura, não lhe prestara atenção, mas lembrava-se dele.

- É um estudo para o último busto que ele esculpiu - esclareceu Isambard, atento e paciente, por trás do ombro de Harry

- A sua assinatura no final - acrescentou Harry, num murmúrio.

- Era também isso o que eu pensava. Quando saíste do teu esconderijo e me enfrentaste, este mesmo rosto espreitava por cima do teu ombro. Então, compreendi. Olha melhor! Não é uma assinatura no final, Harry, mas uma profecia. Não te reconheces a ti próprio?

Harry observou atentamente e, sem poder acreditar, reconheceu o seu próprio rosto. O amor que emanava da pedra para ele apertou-lhe o coração. Fechou os olhos para conter as lágrimas mas no fundo de si mesmo, as fontes de ternura choravam inconsolavelmente as mãos hábeis e o espírito criativo destruídos para sempre. Sentia-se mais velho do que o pai morto e esmagado por um amor protector. Queria protegê-lo de todas as profanações, desviar dele todos os pensamentos perversos. Acima de tudo, queria saber se ele continuava a repousar em paz, na sepultura anónima; a pergunta que ansiava fazer queimava-lhe o coração, mas não podia formulá-la. Era o medo que lhe travava a língua mas, felizmente, confundiu-o com orgulho, poupando-se assim a um veneno tão amargo.

Por um longo momento, ficou ali parado, junto à bancada deslumbrado, acariciando os contornos desconhecidos do seu busto jovem esculpido na pedra e, de repente, sentiu que pesava sobre si uma terrível e maravilhosa responsabilidade.

- Serão as tuas ferramentas, se quiseres. As ferramentas podem ser usadas como armas, Harry, mas se prometeres que nunca as utilizarás para outros fins além daquele para que foram feitas, podes trabalhar aqui sempre que desejares. Esta bancada será tua. O meu canteiro fornecer-te-á os materiais e, se quiseres trabalhar com ele e aprender com ele, ele arranja-te bastante que fazer. As tarefas de que incumbiria qualquer aprendiz, até haveres dado provas. Não beneficiarás de nenhuns privilégios. Então?

O silêncio que se seguiu parecia não ter fim. Harry pegava num instrumento, depois noutro, poisava-o, passava o dedo sobre os cinzéis, sopesava os macetes, debatendo-se como um animal encurralado, dividido entre o desejo e a rigidez do orgulho.

- A menos, evidentemente, que receies aventurar-te num domínio em que temes não ser excelente.

- Dou-vos a minha palavra - disse Harry, numa voz sufocada. - Não as utilizarei para outros fins.

- Essas palavras custaram-te tanto como arrancar um dente - comentou Isambard. - Mas o primeiro passo é sempre o mais difícil. Vamos fazer uma nova experiência. Amanhã, vou partir de Parfois por alguns dias. Dá-me a tua palavra até eu regressar e disporás de liberdade para circular em Parfois e utilizar esta sala. Caso contrário, receio que hajas de aguardar o meu regresso na tua cela, porque, para te guardar, só confio em mim próprio e em mais ninguém. Que dizes? Queres dar-me a tua palavra?

A proposta não lhe agradava e, sem a sua armadura de obstinação, sentia-se tão desprotegido que quase lamentava haver feito a primeira promessa. Mas, agora que começara a ceder, era mais difícil do que nunca recuar, O contacto do macete de mestre Harry na sua mão, a forma como o cabo se aninhara na palma da mão haviam despertado nele uma ambição e uma impaciência ardentes, que não lhe permitiam esperar vários dias. A tremer, apertou contra o peito o cinzel mais gasto e tocou-lhe na ponta, lutando contra as palavras de aceitação que afloravam aos seus lábios com demasiada facilidade.

- Então? Dás-me a tua palavra? - repetiu Isambard.

- Sim!

A palavra fora pronunciada com raiva e Harry desviou-se para se furtar ao sorriso malicioso que tanto receava. Quando a pronunciou, o desespero que se apoderou dele foi tal que ainda fez uma fraca tentativa de se libertar:

- Só até ao vosso regresso! Depois disso, não prometo nada... A única resposta que obteve foi o silêncio. Quando olhou para

trás, encontrava-se sozinho na sala. Isambard aceitara a sua promessa sem uma palavra de triunfo ou de troça e deixara-o a sós, para exultar com o legado, tanto tempo adiado, do pai ou para chorar sobre ele. Então, abraçado à imagem visionária da sua idade adulta, com os cabelos despenteados encostados aos caracóis de pedra, abandonou-se a uma torrente de lágrimas silenciosas.

 

Aber: Maio a começos de Junho de 1231

Passaram-se muitas horas até os membros do conselho abandonarem a câmara de Llewelyn. Owen não conseguira suportar o vazio da antecâmara nem os súbitos murmúrios das vozes, do outro lado da porta. Por isso, saíra e sentara-se no cimo das escadas, como uma criança de castigo, à espera de ser chamada. Ainda estava enfraquecido e aturdido pela febre que os mantivera tanto tempo imobilizados em Cegidfa e tornara penosa e interminável a viagem de regresso; mas as tristes novas que trazia da sua missão pesavam-lhe mais no espírito do que as feridas no corpo. Pelo menos dois dos cinco que trouxera de volta consigo estavam pior de saúde do que ele; e a posição de Adam, talvez o menos ferido de todos, não era de modo algum invejável, porque, naquele mesmo momento, estava a contar a Gilleis a mesma história que Owen ia contar ao príncipe. Owen pensava com tristeza que a tarefa de Adam era bem mais dura do que a sua. A porta da câmara abriu-se. Levantou-se com dificuldade para saudar os mais velhos que por ele passavam e entrou na sala do pai adoptivo.

A reunião do conselho durara muitas horas e Llewelyn não estava menos cansado que Owen. Todavia, isso não o impediu de reparar na dificuldade e na dor que causava ao filho adoptivo dobrar o joelho diante de si e ajudou-o a erguer-se antes de ele haver completado a reverência. O seu beijo foi brusco mas caloroso e as suas mãos transmitiram uma energia vital de que só ele tinha o segredo.

- Não, deixemo-nos de cerimónias. Estamos sozinhos. Vá, senta-te e não te apresses. Desculpa haver-te deixado à porta, à espera, mas o tempo aperta, Owen, os dias passam a correr e há coisas que preciso de resolver, enquanto posso. Recebi a tua mensagem de Meifod.

Era uma maneira de dizer, logo à partida, que conhecia a gravidade dos factos e que só precisava de saber os pormenores.

- Perdi seis homens de valor e não ganhei nada em troca - disse Owen. - Escolhi os melhores e vede o uso que deles fiz.

- Eles censuraram-te? - perguntou secamente Llewelyn. Deitou vinho num copo e atravessou a sala até à cadeira de Owen, obrigando-o a permanecer sentado, quando ele fez menção de se levantar para receber o copo.

- Não houve tempo - respondeu Owen, com amargura.

- Nem desejo de o fazer, sabes isso muito bem. Essas coisas podem acontecer a qualquer um de nós, quando são esses os desígnios de Deus. Conta-me tudo e, se agiste mal, ficarás a saber.

Owen acomodou o ombro ferido contra a almofada e começou a contar a história do seu fracasso. Não se poupou e, todavia, as palavras acudiam-lhe aos lábios com maior facilidade do que julgara possível, tão absoluta era a confiança que depositava em quem o ouvia. Llewelyn tratá-lo-ia como ele merecesse e ficaria grato por isso. Nunca depositara uma confiança tão grande no julgamento de ninguém, excepto por aquele breve intervalo da sua infância em que estivera à guarda de mestre Harry.

- Não sei como foi que eles deram connosco. O Adam pensa que o seguiram desde Castell Coch e, na verdade, talvez haja sido assim. Todavia, não consigo culpar o Adam. Como podia ele saber que, mesmo ali, o homem havia plantado as suas criaturas, para o vigiar? Eu devia haver pensado que ele não é um homem comum e que, quando quer, é capaz de atacar como um raio. Ele conhecia exactamente a nossa posição. É certo que não podia haver previsto a direcção do vento... isso foi sorte... mas, quanto ao resto, tudo estava sob o seu controlo. E, apesar de velho, ainda se bate por dez homens. Não me parece haver pecado por negligência e os cuidados que tomámos bastariam, se o adversário fosse outro homem. Mas o inimigo era Isambard e o que eu fiz não bastou.

- A sorte favoreceu-o por duas vezes - observou Llewelyn. - Uma vez com o vento favorável e outra com reforços, quando

mais precisava deles. Ninguém te pode culpar por esses dois favores da sorte. O diabo cuida bem dos seus.

- E pensar que chegámos a capturá-lo - disse Owen, cansado, com o rosto entre as mãos. - Não paro de perguntar a mim mesmo se não poderíamos havê-lo mantido cativo, se eu houvesse vigiado melhor a estrada de Shrewsbury. Eu queria fazer uma segunda tentativa, e melhor que a primeira, fosse atacando-o, fosse arranjando um mensageiro que desse um recado ao Harry, em Parfois. Sabeis que ele goza de alguma liberdade...

- Eu sei. Soube-o da boca de Philip ap Ivor. Sei qual é a dívida de Isambard para com o Harry e para comigo, não me esqueci de nada e, a seu tempo, cobrarei o que é devido. Um pouco de liberdade para o filho e a mais infame das indignidades para os ossos do pai... que espécie de comportamento é este?

- Ele assusta-me - confessou Owen, febrilmente. - É verdade, senhor, ele assusta-me. Esta indulgência para com o Harry é demasiado cruel e caprichosa. Se ele odiava implacavelmente o pai, em vida e na morte, como podemos confiar na indulgência que mostra para com o filho? Se acontece alguma coisa ao Harry, por minha culpa...

- Não te culpes tanto. A culpa não é tua e não posso permitir que assumas a minha.

A voz do príncipe era dura e acalorada. Quantas vezes na vida admitira ser culpado, perante fosse quem fosse que não Deus?

- Fui eu quem mandou o rapaz embora, quando ele tentou justificar-se. A perda dessas seis vidas é da minha responsabilidade e, se houvesse liberdade para tal, iria com um exército cobrá-las com juros. Mas não sou livre. Não faz parte dos meus deveres apaziguar os anseios da minha alma nem reparar os meus erros. Deus age segundo a Sua vontade e eu segundo as minhas capacidades. Sirvo uma causa, que me é cara e em nome da qual tu, eu e, se for preciso, o Harry podemos estar destinados ao sacrifício.

- Eles foram assim tão mal-acolhidos em Worcester? - perguntou Owen, perturbado, mais pelo tom daquele discurso do que pelo conteúdo.

Os enviados do príncipe haviam regressado a Aber, após as últimas e intermináveis conversações com os representantes do rei, dois dias antes do regresso dos sobreviventes de Parfois.

- Não, não foram mal recebidos. Os modos deles foram civilizados e as palavras bem medidas e foi marcado um novo encontro para daqui a três dias, em Shrewsbury. Mas isso pouco significa agora, porque a montanha está em movimento e vai acabar por desabar. Há duas ideias principais em confronto para se chegar à reconciliação e não haverá paz, enquanto não houver... não... - Llewelyn deteve-se por instantes. - Não diria um acordo mas, pelo menos, um entendimento temporário, que silencie ambos os lados e nos dê tempo de recuperar alento para a próxima prova de força. Por vezes, temo que isto seja apenas o primeiro de muitos compromissos, numa luta nova, não na forma mas na extensão.

Llewelyn dirigiu-se à janela e abriu-a, para inspirar com força o ar da última noite de Maio e deixar que este aligeirasse a atmosfera pesada das longas horas de clausura naquela sala.

- Sabes que a coroa insiste em não reconhecer o nosso domínio sobre Buiith? A negação pouco importa. O meu alcaide continua na posse do castelo, por mais que seja a guarnição do rei a deter o título. Todavia, é um indício revelador. Eles negam a sua própria lei, ao negarem o meu direito, e o precedente irá ser utilizado na próxima invasão. Pensam que podem comer-me vivo. Mas, juro por Deus, que hei-de ficar-lhes atravessado no estômago até lhes furar as entranhas.

- É obra de de Burgh - disse Owen, erguendo as pálpebras pesadas. - Senti um mau pressentimento, quando vi librés com as suas cores em Parfois, pois Isambard está de muito boas relações com ele e os assuntos que haviam a tratar seriam por certo de mau augúrio para Gales.

- Nem imaginas como estás certo! Ainda não sabes? Trouxeram-me a notícia de Worcester. Isambard foi ao encontro do rei a Hereford, em princípios de Maio. Deve haver saído de Parfois não mais de dois dias depois da incursão à outra margem do Severn. O rei Henrique respeita muito as opiniões dele em tudo quanto diz respeito às Marcas. O resultado foi o rei retirar ao conde de Cornwall a custódia das terras de de Breos e entregá-la ao seu querido corregedor. De Burgh cerca-me por todos os lados, menos pelo do mar e com a excepção de Chester, onde, graças a Deus, se encontra o conde Ranulf. Agora, a causa assumiu uma nova dimensão e não é preciso mais para me provar que o tempo escasseia. Só falta a ocasião, que, se Deus quiser, hei-de ser eu a escolher.

- Esperava, pelo menos, aliviar-vos o espírito do problema do Harry, para poderdes dedicar-vos de alma e coração à vossa tarefa - disse Owen, desanimado. - E a única coisa que fiz foi perder seis homens corajosos.

- A minha alma e o meu coração estão empenhados só nela. O pobre Harry vai precisar de esperar a sua vez. Os meus juramentos, as minhas obrigações, tudo se apaga perante isto. Se eu viver, cumprirei todos os meus deveres e, se morrer, no dia do Juízo, responderei por não os haver cumprido.

Apoiando a grande testa de bronze na mão, voltou o rosto para a janela, para receber o ar da noite e, em voz baixa e absorta, como se falasse consigo mesmo, prosseguiu:

- Acredita, Owen, que a nossa empresa ultrapassa aquilo que eu próprio sou capaz de imaginar. Enquanto estive ocupado a construir, aqui, um reino para o meu filho, imitei os ingleses naquilo que cuidei adequado. Não é possível ignorá-los, como outrora. Paguei pela minha corte e pelas minhas campanhas, pelos meios que eles me mostraram, com impostos, rendas e taxas lançadas sobre os habitantes das minhas terras. Abdiquei de terras e privilégios, para obter o serviço da hoste, e mantive o meu exército no campo de batalha, por meio de contratos que os meus antepassados nunca haveriam aprovado. Instaurei o direito de sucessão de acordo com a lei inglesa e não com a galesa, para o tornar mais sólido e impedir que eles o pusessem em causa. Assim, enquanto os mantinha afastados com a mão direita, deixava-os entrar com a esquerda. E agora vejo que, pela esquerda ou pela direita, por uma aliança ou pela conquista, eles hão-de acabar por vir. Não há maneira de o impedir. Tudo quanto podemos fazer é modelar a sua aproximação e fixar os termos segundo os quais eles viverão connosco, quando chegar a altura. Termos que possam permitir-nos conservar a nossa honra e a nossa identidade e sermos vizinhos livres e aliados deles, e não seus vassalos. E sei que, se quisermos concluir um tal acordo com os ingleses, precisamos primeiro de saber nós próprios quem somos e o que somos e dar o devido valor ao nosso sangue e à nossa língua. Não somente nós, de Gwynedd, não somente os homens de Powis, não somente os poucos que restam em Deheubarth, mas todos nós, os Galeses. E isto é muito mais do que a ambição que me animou ao princípio e mais do que a herança do meu filho. Se eu morrer por isto, se o David vier também a morrer por isto, não importa. O que importa é que a causa sobreviva e a unidade cresça. E se o Harry também morrer por isso, a sua morte pesará sobre a minha cabeça e, quando chegar o momento, responderei por isso perante Deus e perante ele.

Quando se calou, um silêncio profundo invadiu a sala. Llewe-lyn voltou-se e deparou com alguém ainda mais esgotado do que ele. Owen adormecera sentado na cadeira e a sua cabeça repousava na almofada vermelha que servia de apoio ao ombro ferido.

Sorrindo, Llewelyn aproximou-se e abanou-o. Owen acordou sobressaltado, com o olhar desfocado e, ao perceber que havia adormecido, empalideceu, mortificado.

- Perdoai-me, senhor! Hoje, cavalguei por muitas horas... e o vinho...

Emagrecera devido à febre prolongada: parecia haver perdido metade do peso e as suas faces descarnadas, habitualmente tisnadas, apresentavam uma tonalidade amarelada. Quando se levantou, sentiu-se momentaneamente tonto e foi obrigado a apoiar-se ao braço da cadeira.

- Vai para a cama, Owen - aconselhou Llewelyn, amparando-o com as duas mãos. - Podes dormir tranquilo. A tua tentativa não foi bem sucedida, e é pena, mas agiste como devia ser. Poucos haveriam feito melhor. Não cometeste nenhuma falta. Agora vai dormir! Quem sabe se, amanhã, não irei precisar de ti?

Na tarde do segundo dia de Junho, chegou a Aber, montado num cavalo que espumava, um correio - o último de uma cadeia de mensageiros - com notícias urgentes de Cydewain. Llewelyn estava fechado na sua câmara, com o capelão e Ednyfed Fychan, a ditar missivas e o seu selo fora já aposto às credenciais dos enviados que o representariam em Shrewsbury. Todavia, ao ouvir o que o mensageiro tinha para contar, David usou da sua própria autoridade e conduziu-o à câmara de seu pai, interrompendo a conferência.

- Que se passa? - Llewelyn ergueu os olhos da mesa, visivelmente descontente. - Eu não disse que não queria ser incomodado?

- Senhor meu pai, sou eu o único culpado por esta interrupção. Mas isto não pode esperar.

O olhar de Llewelyn deslocou-se do filho para o cavaleiro, coberto de suor e pó. Como se soubesse que estes já não tinham qualquer utilidade, o príncipe pousou os papéis.

- Falai, então. Que aconteceu?

- Trago-vos uma mensagem da Marca de Montgomery. Há uma semana, a guarnição de Montgomery atacou-nos, cercou-nos e capturou uma companhia dos nossos homens.

O homem, que se ajoelhara, ergueu-se. A poeira da viagem fazia-o tossir, enquanto falava.

- Quantos não sei. Mas levaram-nos para o castelo de Montgomery, como prisioneiros.

- Isso sei eu - disse Llewelyn, de rosto sombrio. - Conta-me o resto.

- Ontem, senhor, o conde de Kent chegou a Montgomery e foi ver os prisioneiros. Ordenou a sua execução imediata, o que foi feito. Foram todos decapitados.

- Decapitados!?

Llewelyn pôs-se de pé de um salto, derrubando a cadeira, e os pergaminhos espalharam-se e rolaram sobre o tapete.

- Como ousou? Sob os meus olhos! Está a cuspir na minha cara!

Dito isto, afastou-se deles e atravessou a sala, de um lado para o outro, em grandes passadas raivosas. Depois, abruptamente, voltou-se de novo para eles.

- Há mais alguma coisa?

- Diz-se, senhor que as cabeças vão ser mandadas ao rei de Inglaterra - acrescentou o mensageiro, em voz rouca.

- Dois dias antes do encontro marcado entre os enviados do rei e os meus!

- Por mais louco que o homem possa ser, não agiu assim num acesso de loucura - observou David, lívido, olhando para o rosto do pai. - Isto foi um acto deliberado.

- Foi deliberado, sim. Ele pensa que já está preparado. - Llewelyn arrancou a pluma da mão do secretário e atirou para longe as cartas que ainda se encontravam diante de si. - Deixai isso. Já não é preciso. Não vai haver nenhum encontro em Shrewsbury. Hubert vai ver onde eu vou estar amanhã e vou lá chegar antes de ele me procurar. Ednyfed, cuidai de fazer seguir as ordens de imediato. Cuidai disso!

- Há uma semana que eles estão prontos - respondeu Ednyfed Fychan, dirigindo-se sem mais demoras para a porta.

- E mandai vir aqui o meu capitão e Rhys também. Chegou o momento - disse Llewelyn, respirando fundo. - Ele quis fazer a escolha por mim, não foi? Assim seja! Veremos quem leva a melhor. Mas era mesmo preciso matar os meus homens a sangue-frio? Não haveria outra forma de me desafiar? Juro por Deus que vai arrepender-se. Vou fazê-lo pagar bem caro por cada cabeça decepada. - Voltando para o mensageiro o seu rosto de falcão, duro como uma espada, perguntou: - O conde ainda está em Montgomery?

- Ouvi dizer que já foi para Hereford, senhor.

- É pena, pois gostaria que ele visse arder o seu burgo. Mas não perde pela demora, A minha dívida para com ele será paga até ao último xelim e obrigá-lo-ei a contar as moedas em cima das suas ruínas. Cuida de que este bom homem seja alimentado e acomodado, David, e depois volta aqui. Ainda precisamos de planear algumas coisas. Partimos antes da alvorada.

Contaminados pelo fogo da sua paixão, cada um correu a executar as ordens que recebera. As colunas de apoio e abastecimento haviam sido alertadas muito tempo antes, os homens dos clãs apenas aguardavam um sinal e o selo de Llewelyn aposto nas missivas enviadas arrancá-los-ia às suas casas, como abelhas cuja colmeia houvesse sido atacada. Bastava chamá-los e eles acorreriam, impacientes e ávidos.

- Eu procedi com moderação - disse Llewelyn entre dentes, dobrando as mãos grandes e nervosas, como que para medir o desafio que pairava no ar. - Contive-me uma vez e outra e até quando eles procuravam levar-me a agir, eu não coloquei exigências muito elevadas, para manter um equilíbrio justo e poupar Gales a hostilidades mais profundas. Mas, agora, não podemos ser poupados. Eles pensam haver chegado a hora de se lançarem sobre mim e a mesquinhez do espírito deles levá-los-ia a desprezar-me, se eu procedesse com moderação. Agora, vão ver que sou capaz de chegar a extremos e juro por Deus que vão aprender a respeitar Gwynedd, enquanto eu for vivo.

Quando soube o que acontecera, Owen acorreu, a coxear por entre a agitação febril que reinava no castelo, para reivindicar os seus direitos. Mas, no fundo, temia ser rejeitado.

- Eu estou bem - insistiu, agarrando veementemente a manga de Llewelyn, que corria como um relâmpago do armeiro para os armazéns, dali para as cavalariças e depois para a sala do conselho, supervisionando tudo. - David é o meu príncipe e eu sei muito bem que, desta vez, não é uma escaramuça fronteiriça. Onde o David vai é mister que eu também vá. Não ides deixar-me para trás, pois não?

Llewelyn, que se encontrava no armeiro a verificar um arnês, lançou-lhe um olhar tão absorto e tão distante que quase parecia não o reconhecer. Mas, de súbito, o reconhecimento revelou-se num sorriso caloroso e preocupado.

- Tu! Bem gostaria de te deixar para trás, mas sei que o teu coração sofreria mais, se ficasses aqui, do que o teu corpo poderá sofrer no campo de batalha. Sim, tu vais connosco, na condição de obedeceres às ordens e fazeres o que eu te disser. Nunca te afastaria voluntariamente da companhia de David, tal como não lhe permitiria a ele ir para uma batalha sem escudo.

Ao ver Owen corar de prazer, Llewelyn riu-se e passou-lhe o braço por cima dos ombros, esquecendo que o seu abraço era, ao mesmo tempo, uma alegria e um sofrimento para o jovem, que conteve com esforço um trejeito de dor.

- E, Owen, preciso de ti já. Vai procurar a Gilleis e o Adam e leva-os à capela. Quero que vós os três sejais testemunhas de um voto que quero fazer antes de partirmos.

Um quarto de hora depois, Owen regressou acompanhado por Gilleis e Adam. Os rostos de ambos ostentavam expressões graves e os seus olhos estavam vermelhos, de tantas noites passadas a pensar em Harry. Ao ver Gilleis aproximar-se, Llewelyn observou que ela emagrecera naquele ano em que estivera privada do filho e que a sua tez rosada apresentava agora a palidez própria dos prisioneiros. Gilleis passava pelo menos metade dos seus dias nos aposentos fechados onde a sua senhora se encontrava cativa, e metade das suas noites presa, em imaginação, com Harry. Todavia, nunca se queixava. Os seus grandes olhos negros exprimiam incerteza e esperança, mas não censura. E, mesmo agora, pensou Llewelyn, aquilo que posso oferecer-lhe parecerá bem pouco.

Apesar de não passar muito do meio-dia, estava escuro dentro da capela de madeira. As velas dispostas sobre o altar simples, coberto de linho, pingavam ligeiramente devido ao ar vindo da porta e, quando esta foi fechada, instalou-se um estranho silêncio, que bania para uma distância infinita todos os sons de actividade.

Llewelyn ajoelhou-se e rezou. Depois, ergueu para o altar os olhos bem abertos e o silêncio persistiu.

- Sede pacientes comigo - disse. - Não sou muito hábil com as palavras, quando os meus conselheiros não estão perto de mim e este assunto é delicado. Quando inicia uma jornada, um homem nunca pensa que poderá não regressar para enfrentar outro homem. Todavia, e Deus me oiça, penso que a minha hora ainda não chegou.

As suas duas mãos poisaram sobre o crucifixo que tinha diante de si, num gesto surpreendentemente suave, mas seguro; poisava as mãos nos objectos sagrados com o mesmo à vontade directo e inocente que o impelia para homens e mulheres.

- Sede pois testemunhas do compromisso que assumo perante Deus e perante vós. Juro que, quando Deus me permitir fazê-lo, sem prejuízo dos meus deveres para com Ele e para com o meu país, destruirei o castelo de Parfois pelo mal que foi feito contra o Harry Talvace morto e contra o Harry Talvace vivo. Se o meu filho adoptivo ainda lá se encontrar, libertá-lo-ei com a ajuda do Céu. Se não, nem por isso Parfois será poupado ao juramento que agora faço. Ajudai-me, Senhor, a cumprir a minha palavra para com o meu inimigo e inimigo de Harry.

Owen disse «Amen» mas foi o único a responder. Adam também teria respondido de bom-grado mas estava de tal modo atento à reacção da sua mulher que a ansiedade o deixou mudo. Gilleis fitava o príncipe com um sorriso imperceptível, de uma tristeza infinita, no qual julgou ler afecto e indulgência mas, também, uma ligeira, doce e secreta zombaria. Llewelyn desviou os olhos do altar mesmo a tempo de interceptar aquele sorriso intrigante que, no entanto, não o confundiu nem perturbou. A experiência que vivia, enfrentando questões de vida e de morte de milhares de pessoas além dele próprio, levara-o a considerar simples todas as outras coisas. Coisas que o haviam desorientado tornavam-se claras como cristal, os problemas que o haviam atormentado e desafiado cediam como fechaduras bem oleadas, abertas com a chave adequada. O dom da palavra, que negara possuir, emanava da sua boca como ouro.

- Eu sei, Gilleis, que isto não preenche o vazio dos vossos braços nem o que sentis no coração - disse. - Mas é tudo o que posso oferecer-vos e, mesmo que não vos satisfaça, obriga-me moralmente. Aceitai-o como prova da minha fé em que Deus tomará Harry à Sua guarda, por mais que nós sintamos a sua ausência.

- Confio que sim, senhor - respondeu Gilleis.

- Então, confiai, como dissestes e, com a ajuda de Deus, estareis junto ao altar da igreja de Parfois no dia em que eu honrar o meu juramento e ali enterrar condignamente os restos mortais de mestre Harry.

Gilleis empalideceu e baixou os olhos e, por delicadeza, Llewelyn não disse mais nada. Estava comovido e prometia milagres: a recuperação do que fora perdido, a integridade e o carácter sagrado de coisas que haviam sido profanadas. Mas a fé que Gilleis declarara talvez não passasse da convicção de que a boa estrela do príncipe de Aberffraw não o abandonaria e de que Deus atenderia a sua prece e não o impediria de cumprir o seu juramento. Todavia, Llewelyn sentia que eram as forças do Céu que o animavam e deixava-se guiar por elas sem hesitações.

Aquilo que parecera difícil era agora muito simples, o fosso que parecera intransponível podia ser agora ultrapassado com um salto de criança e desaparecia depois de atravessado.

- Há ainda outra coisa de que preciso de libertar o meu coração, antes de partir.

Dividida entre a esperança e a dúvida, Gilleis fitou-o.

- Ide ter com a vossa senhora e perguntai-lhe se pode receber-me.

Quando ele entrou, ela estava sentada junto à janela estreita com barras. A primeira coisa que viu foi a luz que incidia sobre a cabeça dela, agora mais grisalha do que loira. A imobilidade forçada tornara-a mais pesada, o seu corpo outrora magro e esbelto engordara e movia-se sem a antiga graça negligente. Em contrapartida, o seu rosto não estava gordo, mas envelhecido, a pele pálida esticada sobre a ossatura delicada, e os olhos pareciam enormes, tranquilos como vidro cinzento. Fitaram-no sem deixar transparecer qualquer emoção. As suas mãos estavam poisadas sobre os braços da cadeira, como quando outrora se sentava ao lado dele em ocasiões oficiais, erecta e atenta, pronta a prever as situações, hábil nas manobras políticas. Estava ricamente vestida. Llewelyn reparou que ela se arranjara para o receber. Fosse no seu palácio, fosse na prisão, era filha de um rei e esposa de um príncipe.

Durante um ano, Llewelyn não a vira nem permitira que o nome dela fosse pronunciado na sua presença. Agora, pensara que devia aproximar-se dela como um estranho, reaprendendo o desenho da sua testa alta e do seu rosto afilado e a sua maneira de abrir muito os olhos, para abarcar da cabeça aos pés a pessoa com quem falava. Esperara ter de abrir laboriosamente caminho através dos longos meses de separação, como quem abre caminho através da paliçada de um castelo onde quer entrar pela força das armas. Mas bastou ouvir a voz dela para que aquela mulher mudada passasse a ser-lhe familiar e para que o véu do afastamento se rasgasse como um fio delgado.

- Sede bem-vindo, senhor - saudou Joan. - Não precisais de pedir permissão. As vossas prisões estão sempre abertas para vós.

Gilleis saíra, fechando a porta de mansinho. Parado no meio da sala, a olhar fixamente para a princesa, Llewelyn foi direito ao assunto, como lhe indicava o seu espírito. Para aquilo que tinha a dizer-lhe, as palavras de reserva e cerimónia seriam cansativas de ouvir e difíceis de pronunciar. Não havia tempo. Llewelyn nunca estava em melhor forma como quando se encontrava sob pressão.

- Preciso de vós, Joan - disse.

Involuntariamente, Joan estremeceu e Llewelyn sentiu o espanto dela na própria carne. Se ele houvesse falado de perdão, de piedade ou mesmo de amor, ela estaria preparada; mas não previra que ele pudesse precisar dela.

- Não pode ser verdade. Passastes muito bem sem mim durante um ano e, agora, também podeis passar sem mim.

Falara docemente, sem rancor nem queixume, referindo apenas aquilo que achava ser verdade. Llewelyn percebia agora com quem Gilleis aprendera a ser paciente e a suportar o sofrimento.

- Passei sem vós, mas não bem. Sem vós, nada está bem. Preciso de vós. Parto amanhã para a guerra contra o rei Henrique e, em especial, contra o conde de Kent, e só Deus sabe qual será o resultado. É uma longa história.

- Não precisais de me contar - atalhou Joan. - Já conheço a história. Pensais que, em todos estes meses, não hei seguido tudo quanto fizestes e tudo quanto vos foi feito?

- Se sabeis de tudo, então também sabeis que preciso de vós. De todas as vezes que a minha cabeça, o meu país e a herança do meu filho estiveram em perigo e precisei de os defender pelas armas, estivestes sempre ao meu lado, de alma e coração. Estou bem servido enquanto príncipe e possuo entendimento suficiente para o reconhecer. Mas quando sou obrigado a partir para enfrentar esta prova, preciso de deixar os assuntos daqui em boas mãos, naquelas que me são mais próximas e mais caras. Não há ninguém em quem possa confiar como confio em vós.

Ao ouvir aquela palavra, Joan ergueu a cabeça e voltou a fitá-lo longamente; por trás da clara desilusão dos seus olhos, surgiu um brilho ardente, vindo do fundo do seu ser. A máscara pálida do seu rosto denotava incredulidade e afastava-o, mas o ser brilhante que habitava dentro dela, durante tanto tempo confinado e mudo, sabia que fora mesmo isso que ouvira.

Llewelyn aproximou-se e a luz do fim da tarde de Junho tingiu de cobre os contornos do seu rosto de falcão e a cana do seu nariz temerário, e acentuou as manchas ruivas da sua barba escura e curta, marcando as linhas expressivas do seu temperamento audaz e risonho. Durante algum tempo, o riso pecara pela ausência, mas não o abandonara: os sinais da sua morada permanente ainda lá estavam.

- Não penseis que é meramente um hábito - acrescentou Llewelyn. - Embora haja sido um hábito durante vinte e cinco anos. Farei eu bem as coisas sem vós? Sim, sem dúvida, para um homem que se sente mutilado e de espírito distraído. Sem vós, Joan, sou um homem que se mutilou a si mesmo e que nega a verdade.

- E eu? - perguntou ela, baixinho. - Que sou eu?

- Vós sois a parte de mim que eu cortei e, sem vós, nunca fui nem nunca serei um homem completo.

Joan voltou a cabeça e cobriu a cara com as mãos.

- Aparte doente.

- Não. A parte ferida. E, quando devia havê-la tratado, feri-a ainda mais.

- Santo Deus! - exclamou Joan, numa voz baixa e trémula. - Sede cuidadoso com o que lhe fazeis agora. Pensais que podeis curar a chaga sem ela se inflamar?

- Com a ajuda de Deus, sim - respondeu Llewelyn, agarrando-lhe docemente no pulso, embora sem a forçar a afastar a mão do rosto. - Não sentis que os lábios da ferida estão a fechar? Carne da minha carne, sangue do meu sangue, eu querer-vos-ia mesmo que me envenenásseis. Mas sei muito bem que nunca o faríeis. Voltai comigo para o lugar que foi e é vosso, ficai ao meu lado como outrora. Completai-me. Tornai-me um homem completo, antes de eu partir para o campo de batalha, com o futuro de Gales nas minhas mãos. Como poderei levá-lo em segurança apenas com uma mão? Como poderei preservar a herança do nosso filho?

- Haveis esquecido o meu agravo contra vós? - perguntou Joan, em voz rouca, estremecendo ao contacto da mão dele.

- Haveis esquecido o meu? Mesmo com razão, um homem pode causar uma ofensa sem perdão. A medida da minha afronta e da minha cólera contra vós era a medida do meu amor por vós. Deus é testemunha de que, mesmo nos piores momentos, nunca deixei de vos adorar.

Llewelyn utilizara outra palavra poderosa. Joan ergueu os olhos e o ser prisioneiro dentro de si brilhou nos seus olhos, ardendo de desejo de liberdade.

- Nem eu a vós - disse, espantada, permitindo que a mão dele estreitasse a sua. - Deus é minha testemunha! - exclamou, repetindo as palavras dele. - Mesmo nos piores momentos, mesmo quando estava presa, cega e louca, juro que o que sinto por vós se manteve intacto. Se pudésseis pegar no meu amor com as vossas mãos, veríeis que não há nele a mais ínfima marca. Nem uma mancha, nem um risco! - Encostando a cabeça à manga de Llewelyn, respirou fundo e acrescentou: - Ainda estou mergulhada nas trevas. Aquilo que me aconteceu será sempre um mistério, uma coisa como as estações, como as cheias e os relâmpagos, sem apelo nem possibilidade de fuga. E, todavia, não posso culpá-lo só a ele...

Não concluiu a frase. Apesar de ambos sentirem a sua presença, era a primeira vez que falavam da terceira pessoa que se encontrava ali, naquela sala, com eles. Na verdade, Joan vivera com essa presença durante um ano.

- Sim, falai dele - disse Llewelyn, olhando a cabeça que repousava no seu braço. - É preciso fazê-lo. Chegou o momento de o fazermos.

- Seja como for que tudo haja começado, ele foi arrastado pela tempestade, tal como eu. Nunca foi vosso rival. Nunca houve um rival. - As palavras, entrecortadas por suspiros, brotavam daquela bela voz como o sangue brota de uma ferida. - Quando aqui chegou, estava fraco e sofria. E era tão jovem! Ele precisava de todas as coisas que há em mim e para as quais vós não haveis qualquer uso: piedade, indulgência e, até, perdão. Com a sua juventude, ele mostrou-me como era tarde e, pela sua admiração, que ainda não era demasiado tarde. Fez-me perceber que estava a ficar velha e que tudo quanto ele representava se estava a escapar das minhas mãos. E eu fechei as mãos e agarrei aquilo que ainda podia agarrar. E, depois, não fui capaz de soltar o que agarrara.

Por um momento, Joan ficou em silêncio. Voltou um pouco a cabeça e Llewelyn viu que o seu rosto recuperara a calma e, também, o brilho e a cor, como se o sangue, contido e paralisado pela solidão e pela imobilidade corresse agora de novo.

- O que aconteceu nunca vos atingiu - prosseguiu ela. - O vosso lugar nunca esteve ameaçado. O mundo pode não ver que assim foi, mas juro-vos que é verdade. Todavia, o que aconteceu prejudicou a vossa vida e a minha e custou a de um homem, que não era pior do que os outros e não merecia morrer. Lembro-me dele dia e noite.

- Não é vossa obrigação esquecê-lo e eu também não o esqueci - retorquiu Llewelyn. - E sei que, para onde quer que vamos, ele irá connosco. Mas nem sempre irá entre nós.

Llewelyn pegou-lhe nas duas mãos e fê-la levantar-se e ficar cara a cara com ele. Os seus braços rodearam-lhe o corpo. Por um instante, Joan não reagiu. Depois, com um suspiro, abraçou-o também e, tremendo, ofereceu-lhe apaixonadamente os lábios.

O beijo teve o sabor da morte, mas Joan estava disposta a aceitar o preço com a recompensa, agarrando-se por igual à amargura e à felicidade, pois sabia que, a partir de então, as duas eram inseparáveis. Llewelyn sentiu o tremor que percorreu o corpo dela, até este morrer no seu próprio coração. A sua mão grande puxou o rosto dela contra a face e as palpitações do seu sangue passaram para as veias de Joan e imprimiram ao sangue dela o mesmo ritmo apaixonado.

- A morte espera-nos - disse ele docemente, junto ao ouvido dela. - Quando chegar a altura de enfrentarmos William de Breos, enfrentá-lo-emos. O que nos estará então reservado, não nos cabe a nós decidir. Deus seja louvado! E que seja feita a Sua vontade.

Joan não foi capaz de falar, mas os seus lábios formaram a palavra, contra a garganta de Llewelyn: «Ámen!»

Após um longo silêncio, Llewelyn afastou os braços que a enlaçavam. Sorria. Os seus olhos argutos reflectiam o dourado do sol poente e o brilho que os animava não desapareceu quando a noite caiu. Joan viu que a chama débil que nele acendera crescia e se tornava mais firme, num milagre de fidelidade nascida da infidelidade. Llewelyn seria um farol que guiaria os homens dos clãs e um relâmpago de tempestade para os seus inimigos. E ela que já se considerara extinta!

- Envergai as vossas vestes, ponde a vossa coroa e vinde comigo para o salão.

No terreiro, um jovem cavalariço saía dos estábulos apressado, a caminho da ceia. Quando os viu parou, de olhos esbugalhados e boca aberta. Em seguida, soltou um grito de caçador que encontrou a pista de uma peça de caça, deu meia volta e correu como uma lebre para o salão. A notícia precedeu-os, como o fogo a alastrar pelo restolho. Em todas as portas, assomavam cabeças de pessoas que queriam vê-los passar e o murmúrio de excitação e impaciência alongou-se atrás deles num fio de ouro: era a voz da alegria que brilhava em todos os rostos. A antiga e formidável união, que parecia haver-se dissolvido para sempre, voltava a brilhar em Aber como uma tocha, para confundir os seus inimigos.

Pálido, com uma expressão grave e preocupada, David saiu dos seus aposentos, trazendo pela mão a sua esposa-criança. Sorriu, baixando os olhos para ela e, com uma delicadeza conscienciosa, respondeu à sua conversa viva e fútil. Alguns passos atrás dela, vinham as suas aias. Eram simpáticas, mas oprimiam-na com a deferência que mostravam para com a sua realeza e era difícil entender-se com elas. Não compreendia por completo porque mudara a sua vida tão súbita e drasticamente, embora soubesse de cor quais eram os deveres e os privilégios das senhoras casadas e fizesse tudo quanto estava ao seu alcance para desempenhar com decoro o seu papel.

Abruptamente privada do pai e entregue a um marido, arrancada ao convívio familiar das irmãs, em Brecon, e mandada para aquela corte estrangeira e bárbara, onde era a mais solitária das crianças, Isabella olhara tristemente à sua volta, em busca de um apoio, de um abrigo. E encontrara-o. Agarrava-se confiantemente à mão de David.

Naquela noite, estava mais sério e pensativo do que era habitual, caminhava de olhos postos no chão e sobrolho franzido, e apenas esboçou um pálido sorriso, quando, para o divertir e chamar a sua atenção, Isabella disse uma piada à esposa de Ednyfed. Continuava de olhos baixos quando chegaram ao canto do salão e não viu o príncipe aproximar-se, levando pela mão uma senhora desconhecida. Uma senhora alta, vestida de veludo azul-escuro, com um colar de ágatas ao pescoço e um diadema de ouro nos cabelos; uma senhora que Isabella nunca vira, durante o ano que passara na corte de Gwynedd. Criança e mulher olharam uma para a outra, com igual surpresa e circunspecção, atraídas mas receosas.

Joan viu uma rapariguinha de oito ou nove anos que, agarrada à mão de David, a fitava atentamente. A criança vestia uma cota de lã amarelo pálido e um pelote de brocado ornado com um fio dourado e, quando se aproximou, alisou as vestes com a mão livre, consciente da necessidade de se apresentar bem diante da desconhecida. O seu rosto redondo, fresco e corado era enquadrado por duas tranças curtas, de cabelo preto ondulado. Inocentes e ansiosos, os seus olhos sombreados por pestanas compridas como os do pai, brilhavam como espadas.

Furtivamente, Isabella puxou pela mão de David e encostou-se à anca dele. Sorrindo, distraído, ele olhou-a de lado e ela franziu a testa, indicando a estranha com um aceno. David olhou na direcção indicada e viu o casal que, de mão dada, se encaminhava para ele.

Espantado, quase com medo de acreditar, David parou e a tez clara das suas faces enrubesceu, num acesso de alegria que lhe fez brilhar o rosto. O rosto da criança que, apesar de não compreender o que se passava, não desviava os olhos dele brilhou também, reflectindo a sua alegria. Por longos instantes, enquanto eles se aproximavam dos degraus do salão, reinou o silêncio. Por fim, David recuperou a fala.

- Finalmente a minha mãe voltou - disse, avançando sorridente ao seu encontro.

Um pouco desajeitadamente, por causa das lágrimas que lhe toldavam os olhos, levou a criança pela mão até junto dela.

- Aqui tendes, senhora, uma pessoa que vos peço que ameis e acarinheis como se fosse vossa filha. Esta é Isabella, minha esposa e vossa filha. Há muito que espera um beijo vosso.

Joan aproximou-se, pegou nas mãos da filha do morto e beijou-a. Os dedos macios e tímidos tremeram entre as suas mãos, a flor ainda incompleta que era a boca da criança tinha o gosto da Primavera e do Sol. Nenhuma sombra velava os seus olhos pretos, quando Isabella que, do amor, conhecia apenas a faceta esplendorosa e ignorava a faceta obscura, olhou para ela e sorriu.

 

Parfois, Aber: Junho de 1231

A PRIMEIRA SÉRIE DE FOLHAS POTENTES E RÍGIDAS, a imitar OS capitéis da nave principal, da autoria de mestre Harry, emergira da pedra com algumas imperfeições: o excesso de ambição originara uma concepção ligeiramente pretensiosa e a falta de prática uma execução um tanto desajeitada. Mas a segunda, de inspiração mais pessoal, era à medida de Harry que, então, já dominava melhor as ferramentas e que a esculpiu com paciência e facilidade, sem maltratar o material nem a si próprio. A certa altura, porém, quase a estragou, por puro nervosismo, quando mestre Edmund parou atrás dele, a observá-lo por alguns minutos. Mas o velho canteiro repreendeu-o primeiro e elogiou-o depois, de forma concisa em ambos os casos, e Harry conseguiu dominar o desagrado que lhe provocava ser observado enquanto trabalhava. A partir de então, aproximasse-se quem se aproximasse, continuava a esculpir a pedra resoluta e firmemente.

Um dia, ao fim da tarde, quando se encontrava sozinho e absorto, a talhar as suas folhas, ouviu abrir-se a porta da sala de desenho. Pensando tratar-se, mais uma vez, de mestre Edmund, forçou-se a continuar o trabalho. Decididos, leves, regulares, os golpes do macete produziam um som denso e alegre. A mão que orientava o cinzel movia-se com delicadeza e cautela, ainda um pouco hesitante mas a ganhar confiança. Só quando ele fez uma pausa, para escolher um cinzel mais fino, a pessoa que se encontrava a um passo do seu ombro lhe dirigiu a palavra.

- Nem sequer imaginaste quem eu era - disse a voz provocadora, mas amável de Isambard. - Há um mês, o teu sangue fervia mal eu entrava na mesma sala onde tu estavas.

Demasiado tarde, Harry tentou ocultar o estremecimento que o traíra e continuou a mexer nas ferramentas do pai, com uma concentração feroz. Mas, aparentemente, havia mais coisas que estavam a mudar. Um mês antes, não haveria respondido à voz que odiava; agora, parecia-lhe que a sua própria dignidade exigia que respondesse. Sem largar o cinzel que escolhera, voltou a cabeça. Isambard trazia ainda vestida a loriga: acabava por certo de chegar a Parfois e Langholme devia estar à sua espera na Torre da Rainha, para o ajudar a mudar de traje.

- Sede bem-vindo, senhor - disse Harry, envergonhado pelo tom falso e pouco convincente da própria voz.

- Sou mesmo bem-vindo? E és tu quem o diz?

Isambard encostou à parede alguns esboços poeirentos que se encontravam na extremidade da bancada, sentou-se de lado no sítio de onde os retirara e encostou-se confortavelmente ao rebordo de pedra da janela, por onde entrava a luz que iluminava o trabalho do escultor. Riu-se, ao ver que o jovem franzia o sobrolho por a sua sombra lhe tirar a visibilidade, A atitude representava uma referência, que Harry desconhecia.

- É muita cortesia da tua parte, tanto mais que o meu regresso vai voltar a fechar-te as portas e confinar-te ao terreiro interior. A menos que queiras prolongar indefinidamente a tua promessa? Queres?

- Não, senhor - recusou Harry, antes de pronunciar as palavras que Isambard esperava: - Se, por bondade, vos afastásseis da janela, senhor, eu poderia continuar a trabalhar.

O som suave e nostálgico da gargalhada que lhe respondeu, e que não conseguia entender, desconcertou-o. Lançou um breve olhar ao homem, cujos ombros largos impediam a luz de entrar, e cruzou os braços contra o peito.

- Não, Harry. Desta vez, não. Eu podia afastar-me mas já quase não há luz e não quero que estragues os olhos ou o teu trabalho, por trabalhares até muito tarde. Deixa para amanhã. Não por eu ordenar - acrescentou pacientemente, ao ver o trejeito rebelde de Harry - mas porque o teu bom-senso te diz para assim fazeres. Só um mau artesão estraga a sua obra, mesmo que seja para desafiar o seu pior inimigo.

Num gesto que fez sorrir Isambard, Harry voltou-se com brusquidão e, deliberadamente, poisou de novo a mão no contorno da folha. O macete hesitou no ar. Na verdade, a luz já quase desaparecera e a curva suave da folha parecia pedir que não a danificasse. Queria aperfeiçoar os pormenores, mas aquela hora não era a mais indicada. Após uma breve luta com a própria teimosia, Harry aproximou-se da bancada, poisou calmamente as ferramentas e começou a baixar as mangas da cota.

- Muito bem! - comentou Isambard. - Se ficares aqui o tempo suficiente, ainda fazemos de ti um homem razoável. Continuas a não querer prolongar a tua palavra?

- A minha palavra valia até ao vosso regresso, senhor, e vós haveis regressado.

- Regressei e recebi as boas-vindas. É mais do que eu esperava. - Estendeu a mão, pegou num cinzel, experimentou-o com a ponta do dedo e acrescentou: - Sabes que novas trago eu de Hereford, Harry?

- Não, senhor.

Harry contemplava a sua obra, de cenho franzido, mas a expressão era apenas de concentração e de prazer. Mexeu no bloco de pedra, para ver o jogo da luz que ainda restava sobre a superfície esculpida.

- Gales está em guerra - anunciou Isambard. - Faz hoje três dias, Llewelyn deitou fogo ao burgo de New Montgomery.

Desta vez, houve reacção. As mãos que afagavam a pedra largaram-na como se ela queimasse, o rosto amuado iluminou-se, os olhos verdes e ardentes muito abertos brilharam ao fitá-lo. Em silêncio, os lábios de Harry formaram a pergunta: «Em guerra?»

- Dois dias antes da data marcada para mais uma ronda de conversações fastidiosas em Shrewsbury, o nosso nobre corregedor do reino decidiu obrigar Llewelyn a agir, executando alguns prisioneiros em Montgomery. Os seus cálculos podem haver sido acurados - disse Isambard com um sorriso sardónico - mas, aqui entre nós, Harry, eu duvido. Seja como for, ele assim fez e o teu grande príncipe de Aberffraw e senhor de Snowdon inflamou-se como palha seca e, agora, anda a lançar fogo à fronteira. Enquanto Sua Majestade o rei Henrique delibera, hesita e confia em que os seus bispos apaguem o fogo com um pouco de água-benta.

- E Montgomery ardeu? - perguntou Harry, ele próprio incandescente como uma tocha.

- Casas, lojas, courelas, tudo, incluindo a igreja, Harry. E também, segundo ouvi dizer, alguns religiosos e algumas mulheres que estavam na igreja, embora duvide que o fogo haja querido saber quem lá se encontrava. As construções estavam muito próximas umas das outras, sob o rochedo.

- E o castelo?

- Harry, Harry. És demasiado ambicioso! Alguma vez viste o castelo de New Montgomery? Mais vale atirar pedras a Parfois. Mas o que Llewelyn quer é Radnor, o castelo e o burgo, e não vai ser a ascensão de um monte que o vai fazer parar. Ele está furioso e quer deitar a mão a todos os senhorios e tutelas de Hubert de Burgh, de Powis a Gwent. E, por aquilo que eu vi, vai conseguir. Disseste alguma coisa, Harry?

- Não, senhor.

Não, não dissera nada: apenas respirara fundo para reprimir um grito. Voltou-se de novo para a bancada mas, desta vez, os seus olhos mal viam a obra que criara. Harry acariciava-a sem pensar, apenas numa tentativa de acalmar o tremor dos dedos. Não conseguia estar quieto. Deu algumas passadas furiosas, procurando conter a raiva e o desejo. O príncipe pegara em armas, a fronteira estava a ferro e fogo e ele estava ali, preso, a talhar blocos de pedra! Haviam estado tão perto, em Montgomery, e ele nem soubera de nada!

- Sim, é verdade, o teu príncipe está no campo de batalha - disse docemente Isambard, sorrindo, de olhos fixos nas costas rígidas de Harry - e tu, o seu leal irmão adoptivo, não estás ao seu lado. Que desaire para um jovem educado segundo as regras da honra! Nunca mais vais ousar mostrar-te em Gales, depois de uma tal deserção.

- Não vos fica bem criticar-me por isso, senhor - disparou Harry, a tremer de raiva.

- Ah! Vejo que toquei num ponto sensível. E David, teu irmão e teu príncipe, irá perdoar-te?

Isambard viu Harry flectir os ombros rígidos e morder os lábios até fazer sangue. Um ponto insuportavelmente sensível. Suavemente, levado pela curiosidade, tocou-o de novo:

- E se eu te deixasse ir cumprir o teu dever, Harry? Se me desses a tua palavra em como voltavas aqui, depois de a paz entre a Inglaterra e Gales haver sido restabelecida? Que achas? Davas-me a tua palavra? E serias capaz de a honrar?

Num acesso convulsivo de raiva e desgosto, Harry fechou com força as mãos, deu meia volta e dirigiu-se para a porta em passadas rápidas, tentando escapar àquela armadilha ignóbil. A dignidade da retirada foi contudo ligeiramente prejudicada pela brutal colisão da sua anca com a mesa de desenho de mestre Edmund; estava demasiado zangado para ver por onde ia.

- Precisamos de arranjar uma maneira de vergar esse mau feitio - disse Isambard para as costas de Harry. - Prejudica-te o raciocínio.

Estas palavras foram pronunciadas no mesmo tom brando de antes mas, quando Harry se encontrava já ao pé da porta, a voz fez-se ouvir mais alto, numa ordem peremptória, que soou como uma chicotada:

- Volta aqui!

Volta por iniciativa própria ou voltas arrastado, pensou Harry e, por um momento, sentiu-se tentado a obrigá-los a empregarem a força; mas, ao abrir a porta, chegaram até si, vindas do terreiro exterior, várias vozes jovens e impetuosas que falavam muito alto, e lembrou-se de que a escolta de Isambard acabara de regressar de Hereford. Ser arrastado diante de tantas pessoas, pouco mais velhas do que ele, seria mais do que estava disposto a suportar. Lentamente, voltou a fechar a porta e virou-se para Isambard, que brincava com o cinzel e o observava com o seu sorriso oblíquo.

- Vem cá!

De rosto sombrio, Harry voltou obedientemente para junto da bancada e postou-se diante de Isambard, desafiando-o com o olhar.

- Não é de bom-tom nem digno voltar as costas, quando alguém nos faz uma pergunta directa. Se, em vez de meu prisioneiro, fosses meu pajem, isto valer-te-ia umas boas chicotadas.

- E, senhor, será de bom-tom e digno acusar-me de uma falta pela qual não sou responsável e acenar-me com uma oferta que não haveis tenção de cumprir? Não bastará eu estar aqui, encarcerado? Será também preciso atormentar-me com promessas vãs?

Harry tremia de raiva. As mãos que, pouco antes, haviam empunhado o cinzel e o macete haveriam por certo feito um mau trabalho de escultura, naquele momento, mas seriam bem capazes de fazer melhor, se pudessem agarrar uma espada.

- Como sabes tu que estou a enganar-te? Põe-me à prova e verás. Responde à minha pergunta! E se eu te deixasse ir ao encontro do teu príncipe e cumprir o teu dever, mediante a tua promessa de voltares aqui, logo que a paz seja restabelecida? Davas-me a tua palavra? E estarias disposto a cumpri-la?

Desconfiado e mergulhado numa agonia de confusão, Harry ficou paralisado.

- Bem sabeis que não é uma proposta verdadeira, senhor. Atormentais-me só por diversão. É indigno!

Sem desviar os olhos de Harry, Isambard sorriu, batendo levemente na bancada com o cabo do cinzel.

- Então, Harry? Jurarias?

Harry susteve a respiração por um momento, lutando consigo próprio e, por fim, numa voz entrecortada, disse:

- Sim, juraria!

- E respeitarias a tua promessa?

- Sim, respeitaria.

Lutando desesperadamente por conter a torrente de lágrimas que lhe queimava os olhos, Harry voltou a cabeça. Era preciso responder para acabar com aquela tortura cruel. E responder com sinceridade, porque não havia outra saída.

- Então, podes partir - disse Isambard, poisando o cinzel tão suavemente que o metal não produziu qualquer som ao tocar na bancada. - Aceito a tua palavra.

- Partir?

Em estado de profunda confusão, aquela espécie de eco foi a única palavra que Harry foi capaz de pronunciar.

- Sim. Vai ao encontro do teu irmão adoptivo. Eu aceito a tua palavra.

Aquilo não podia ser verdade, era seguramente uma maquinação diabólica para o enredar num laço ainda pior, uma armadilha que faria dele não apenas um prisioneiro, mas causaria a sua ruína total. Todavia, apesar desta certeza, Harry sentia que era preciso agarrar a oportunidade com as duas mãos e lutar o melhor que pudesse contra aquela trama complexa de enganos. Os seus olhos adquiriram um brilho diferente, que expulsou o brilho das lágrimas.

- Quereis mesmo dizer que posso ir, senhor? Deixam-me passar a porta do castelo?

- Vê por ti próprio. Esta noite, se quiseres. - O sorriso oblíquo brincava nos lábios de Isambard. - E mais: levas algum dinheiro para a viagem, para o caso de precisares.

- Agradeço-vos, senhor, mas não preciso de nada de vós, a não ser esta graça.

- E não queres ver-te obrigado a agradecer-me mais nada, além desta graça! Nem um cavalo, Harry?

- Nada, senhor.

As sombras do sorriso alastraram às faces cavadas. As malhas da fina cota de armas de Isambard tilintaram ligeiramente, quando ele desceu da bancada e esticou os braços compridos.

- Então vai, Harry. Verás que o caminho está livre. Voltaremos a ver-nos quando o teu príncipe e o meu rei firmarem a paz.

A despedida não podia ser mais clara. Aturdido, Harry voltou as costas, tão profundamente dividido entre a alegria selvagem e o espanto que os seus pés mal encontravam o caminho, até se transformarem em asas.

Atrás de si, a voz de Isambard chamou:

- Harry!

Com alguma dificuldade, Harry conseguiu arrancar-se ao delírio do voo e olhou para trás. Isambard segurava nas mãos o bloco de pedra onde ele estivera a trabalhar e observava atentamente as folhas ali desenhadas.

- Eu encarrego-me de velar por que ninguém toque nesta pedra. Podes acabar o trabalho quando voltares.

Apesar de ainda não acreditar no que acontecera, Harry saiu da prisão pálido e tenso, lavado e arranjado para a viagem. Pedira as suas velhas roupas, mas logo se dera conta de que mal conseguia vesti-las e, por força das circunstâncias, continuava a usar as vestes que, outrora, haviam pertencido a William Isambard, o segundo filho do velho lobo, o intriguista e cortesão, que, na obscuridade relativa da casa real, aguardava uma herança que já tardava. Se lhe fosse realmente permitido abandonar o castelo, aquela dádiva forçada voltaria um dia com ele. Mas não acreditava, não acreditava, repetia Harry para consigo mesmo, enquanto atravessava o terreiro exterior, cheio de medo de acreditar e sofrer uma desilusão.

Ninguém lhe prestou mais atenção do que das outras vezes, nem ninguém o deteve. A sua passagem até à entrada do castelo revestiu-se da normalidade anormal de um sonho, no qual todas as coisas, mesmo as mais fantásticas, são perfeitamente plausíveis. Aproximou-se da passagem sombria, onde o frio da noite caía primeiro, e o coração acelerado desafiava-o a acreditar que ia conseguir chegar ao fim do túnel. Os guardas afastaram-se e ficaram a vê-lo passar. Avançou para a ponte. Ali, podia ser o culminar de toda aquela piada cruel: deixá-lo chegar a meio da ponte e, então, içá-la e fazê-lo cair para trás. Um passo, depois outro, sempre à cautela e de ouvidos atentos ao mínimo ranger das correntes. Nada. Ouvia os estalidos inconstantes das armas das sentinelas, lá em cima, nas torres, e o sussurro dos ramos das árvores, agitados pela brisa fria do entardecer.

Seguiu em frente, sobre a erva pisada. Àquela hora, a esplanada estava praticamente deserta: apenas alguns falcoeiros e caçadores que regressavam ao castelo e o velho capelão de Isambard, que voltava, montado numa mula. Depois deles, Harry não se cruzou com ninguém, enquanto seguia pelo longo carreiro em diagonal que ligava a ponte à rampa de acesso. A sua direita, via-se a igreja e Harry não afastou os olhos dela até ao último momento, quando se embrenhou entre as árvores. A luz suave do fim do dia, a pedra assumia o tom cinzento azulado das penas dos pombos, com laivos de um brilho vivo, e o ouro dos últimos raios de sol batia ainda na parte superior da torre. Harry manteve a cabeça virada para trás, até as árvores a ocultarem. Este era o maior dos tributos, prestado por alguém cujo coração partira já à desfilada em direcção a Aber.

Agora, sabia que, no fundo, acreditava na oportunidade que lhe fora dada e apenas um resto de senso comum, prudente, realista e receoso lhe dizia que devia continuar a desconfiar. Mas, se os homens do último posto da guarda o mandassem para trás, os restos de suspeição não bastariam para impedir que o seu coração ficasse destroçado. Ainda assim, agarrou-se aos últimos vestígios de cepticismo e seguiu o seu caminho, de cabeça erguida, mas com o rosto pálido e assustado, com receio até de se apressar, não fosse uma pressa demasiado notória fazer oscilar as coisas em seu desfavor.

Chegou à passagem estreita entre as torres, a meio da rampa. Era ali que ia acontecer. Os guardas iam permitir-lhe que chegasse junto deles, como se houvessem recebido ordens para o deixar passar e, então, mandavam-no brutalmente para trás. Metade do seu ser acreditava que seria assim, a outra metade não. Dividido, em luta consigo próprio, aproximou-se e passou. Os guardas olharam para ele e fizeram-lhe sinal para passar.

Estava fora das barreiras defensivas de Parfois. Continuou a descer a rampa, estupefacto por se encontrar ali, livre e só, a caminho de casa.

Portanto, se se tratava de um truque, era mais complicado e subtil do que pensara. A dúvida atormentou-lhe o espírito, enquanto descia em direcção à margem do rio e, no momento em que, instintivamente, ia embrenhar-se na floresta para se dirigir à cabana de Robert, Harry emergiu do nevoeiro de confusão em que flutuava e começou a compreender. Fora libertado, em troca da promessa de voltar voluntariamente ao cativeiro; uma promessa bem fácil de fazer agora mas difícil de cumprir a sangue-frio, mais tarde, quando chegasse a altura de a honrar. Estava a ser tentado a faltar à palavra, libertado com uma rédea muito, muito comprida, na esperança deliberada de ele morder a isca e nunca mais voltar.

Isambard está seguro de que eu não vou cumprir a minha promessa, pensou Harry, com o espírito subitamente lúcido, apesar de cego pelo ódio. Pensa obter de mim aquilo que nunca obteve do meu pai. E, assim, triunfar por fim sobre o sangue do meu pai. É isso que ele quer, que sempre quis de mim. Mas eu não vou faltar à minha palavra!

Ao chegar ao vau, Harry decidiu que, afinal, era melhor voltar as costas à cabana de Robert e atravessou o Severn em camisa, com a cota e as meias debaixo do braço. Depois, percorreu cerca de metade do caminho para Castell Coch, antes de ousar embrenhar-se no bosque e deitar-se à espera de que fosse noite cerrada. A sua mente demasiado impaciente ocorreu que já uma vez fora deixado sair de Parfois para que os seus movimentos revelassem uma informação que não quisera dar e não queria correr o risco de voltar a fazer o mesmo. Talvez eles suspeitassem de que tinha amigos na zona, talvez o facto de recusar um cavalo houvesse servido apenas para confirmar tal especulação, talvez eles estivessem à espera de que ele se mostrasse tão tolo como da primeira vez e os levasse até Robert e Aelis.

Desta vez, porém, iriam ficar desapontados. Permaneceu escondido no bosque até anoitecer e, então, com infinita cautela e muitas paragens para confirmar que se encontrava sozinho, voltou ao vau por outro caminho. Nu, naquela noite quente, atravessou o Severn e nu seguiu pela floresta, até secar e, então, escondido entre os arbustos, não longe do rio prateado, voltou a vestir as roupas. Na volta, já com Barbarossa, não precisava de se despir de novo.

Aelis acabara de fechar a capoeira e estava sentada nos degraus de madeira, à entrada da cabana, a escutar a noite. De súbito, entre os sons suaves habituais, ouviu o pequeno estalido de um ramo seco, quebrado por um pé imprevidente e ficou muito quieta, à escuta. Os seus sentidos apurados detectaram as passadas de um homem, na orla da clareira, perto da vedação. Então, Barbarossa começou a agitar-se, a bater com as patas e a relinchar. A tremer, Aelis levantou-se dos degraus e avançou para o visitante invisível.

- Harry? - chamou num sussurro, que quase não chegou a quebrar o silêncio.

Harry sentiu-se profundamente comovido pelo tom do apelo: tão hesitante e, ao mesmo tempo, tão temerário, denotando o medo de acreditar e rejeitando a desilusão com tanta determinação. Foi um tom que o fez estremecer, tomado por uma emoção para a qual não estava preparado, e saltar impetuosamente para terreno aberto, para lhe responder.

- Aelis! Estou aqui!

- Harry, és mesmo tu! Como foi que chegaste aqui? Como foi que fugiste? Eles vêm atrás de ti?

As perguntas, feitas em rápida sucessão, voavam para ele como penas arrastadas pelo vento, como carícias. Aelis abraçou-o com todas as suas forças e a vibração do seu próprio corpo fê-lo aperceber-se das mudanças que se haviam verificado no dela. Despedira-se de uma rapariguinha selvagem, dura, arrapazada, mas ela tornara-se uma mulher durante a sua ausência. Os seus seios pequenos, mas altos, fizeram-lhe palpitar o coração e afluir o sangue ao rosto. Assustado pela transformação de uma camaradagem tão simples num sentimento desconhecido e aterrador, Harry abraçou-a um tanto rigidamente, enquanto ela continuava a bombardeá-lo com perguntas e súplicas.

- Vais ficar aqui? Pelo menos esta noite! De certeza que não corres nenhum risco? Fizeram-te mal naquele sítio horrível?

- Eu estou bem, Aelis, estou muito bem. Mas não posso ficar. Preciso de atravessar o rio. De madrugada, estarei a caminho de casa. Vamos ver o teu pai e eu conto-vos tudo.

Mas iria mesmo contar tudo? E ela entenderia, se ele contasse? Ou julgá-lo-ia louco por permitir que a palavra dada se interpusesse entre si e a liberdade permanente?

Quando afastou os braços do pescoço de Harry, os dedos de Aelis tocaram-lhe na face e fizeram-na tomar consciência de que ele tinha dezasseis anos e era quase um homem. Arqueando o corpo, recuou um pouco, mas não tão suavemente que ele não se apercebesse. Harry sentia a cara a arder. Os seus braços, que envolviam timidamente Aelis, fecharam-se com mais força sobre o corpo dela, reagindo de modo instintivo à ameaça de separação, ciosos dos seus privilégios.

- Agora, vais voltar para casa e nunca mais te vemos - disse Aelis, numa confusão de sentimentos que incluíam o espanto, a alegria, a tristeza e o medo. - Agora que estás livre, nunca mais vais voltar aqui.

Harry empurrou-a suavemente para casa e, de passagem, estendeu a mão para acariciar a pelagem macia do pescoço de Barbarossa.

- Não é verdade - disse, numa voz que, desde a última vez que Aelis a ouvira, se tornara grave e adquirira autoridade. - Eu vou voltar.

Seria apenas por haver dado a sua palavra a Isambard? Ao responder, pensara que assim era mas, depois de as pronunciar, aquelas palavras assumiram um sentido diferente. Nos seus braços, Aelis afastou-se mais um pouco, o corpo tenso como um arco, rindo e troçando dele e de si mesma.

- Sabes muito bem que, agora, só voltaste aqui por causa do Barbarossa - disse.

Uma hora antes, o próprio Harry haveria confessado honestamente que fora isso que ali o trouxera. Agora, via as coisas de um modo diferente. A proximidade do corpo dela, que procurava esquivar-se ao seu abraço, excitava-o. Estendendo os dois braços, puxou-a para si, satisfeito com a sua própria força e sentindo-se comovido e desafiado pela dela. Aelis encostou-lhe ao peito os punhos cerrados, empurrando-o energicamente, e caíram ambos sobre a erva alta, perto da cerca.

Os seios pequenos e firmes de Aelis avolumavam-se sob o corpo dele. Deitado por cima dela, Harry tomou-os entre as mãos e um prazer súbito submergiu-o, triunfante, como se houvesse sido ele a criá-los. Os cabelos de Aelis espalhavam-se sobre o rosto dele, frescos e estonteantes como rainhas dos prados. Fervorosa, mas um tanto desajeitadamente, Harry procurou os lábios dela mas encontrou apenas uma orelha, porque ela virara a cabeça. Mas quando, entre risos e arquejos, tentou de novo, Aelis voltou-se para ele e, com um pequeno suspiro de espanto e prazer, a sua boca foi ao encontro da dele.

 

- Não vais voltar para lá - disse Gilleis, apertando-o contra o peito, sem se importar com o facto de ele estar sujo da viagem. - Não podes! Não podes! Ninguém detém o direito de arrancar uma tal promessa a outra pessoa. Deus absolver-te-á.

- Não, mãe. E, ainda que um dos Seus bispos assumisse uma tal responsabilidade, eu não lhe daria ouvidos. Dei a minha palavra e vou cumpri-la.

Harry ajoelhara-se aos pés de Gilleis, com os braços à volta da cintura dela, apertando com força o seu corpo frágil. Gilleis enlaçava-lhe o pescoço, chorava e ria, afastava-se de vez em quando, maravilhada por o ver tão crescido e tão viril, voltando a puxá-lo para si, para o embalar, como se ele fosse uma criança de colo. Agir de forma ridícula pouco lhe importava: não estava ninguém a ver.

- O príncipe nunca irá permitir - disse ela com grande ênfase, pois não acreditava que tal acontecesse.

- O príncipe há-de compreender que é mister que eu vá. Ficaria furioso, se eu não cumprisse o meu dever. Mas eu vou cumpri-lo. E vós... bem podeis falar! Se o filho do meu pai traísse a palavra dada, bater-me-íeis e mandar-me-íeis de volta.

- Não faria tal. Diria que possuías o bom-senso dos Otley e apoiar-te-ia.

Gilleis afastou-lhe os cabelos pretos da testa, agora completamente formada, a testa de um homem, com as saliências e reentrâncias ali orgulhosamente marcadas pela reflexão. Quem poderia pensar que um ano apenas daria origem a tal transformação? Harry crescera tanto que ela quase não conseguia abraçá-lo e estava tão forte e adulto que ela já não era capaz de se imaginar a puxar-lhe as orelhas, por mais que ele o merecesse.

- E, agora, vais a correr juntar-te ao exército - observou, exasperada. - Fica um pouco comigo. Estiveste longe de mim durante um ano.

- Mãe, mãe, eu fui libertado para cumprir o meu dever. Vim aqui a pretexto de saber onde deveria apresentar-me, mas sabeis muito bem que foi para vos ver que realmente vim. Mas preciso de me juntar a David o mais depressa possível. Ficar aqui seria uma traição. Parto amanhã.

- Depois de amanhã!

Harry prendeu-lhe o punho minúsculo na palma da mão e, com os lábios encostados à face dela, murmurou:

- Amanhã!

Gilleis sacudiu-o, poisou a cabeça do filho no seu ombro e abraçou-o com força.

- Devias obedecer à tua mãe, filho indigno.

- Mulher obstinada. Segundo a lei galesa, já sou um homem e deveis-me respeito. E, se não fôsseis a mãe mais bonita de Aber, não faríeis de mim o que quereis, com tanta facilidade.

- Então, é depois de amanhã?

Harry beijou-a calorosamente, mas repetiu com firmeza:

- Amanhã!

Gilleis deixou-o pensar que ficara convencida ou, pelo menos, resignada. Talvez o tempo atenuasse a premência da sua decisão ou talvez os acontecimentos ainda pudessem alterá-la. O príncipe podia proibi-lo de regressar, Isambard podia morrer, no campo de batalha, com a hoste do rei, ou em casa, de velhice. O castelo de Parfois podia ser arrasado ou conquistado por Llewelyn. Ou talvez um pequeno ferimento sem gravidade ou uma febre sem importância retivessem na cama aquele grande teimoso, entregando-o aos seus cuidados. Gilleis apegava-se ao prazer e à ansiedade do momento. O que mais temia era a sua partida para aquela guerra e o que mais desejava era que voltasse são e salvo.

- Harry...

- Sim, mãe? - respondeu Harry, erguendo o rosto alegre e corado.

-Assim que estejas apresentável, vai expressar os teus respeitos.

- A Ednyfed? - perguntou Harry, despreocupadamente. - Posso fazê-lo à hora da ceia, quando nos encontrarmos no salão.

- A princesa - respondeu Gilleis.

A expressão de Harry tornou-se instantaneamente grave. Gilleis viu a antiga emoção percorrer de forma quase imperceptível o rosto do filho, como uma nuvem passageira sobre uma colina batida pelo sol. Sem lhe soltar as mãos, Harry pôs-se de pé. Estava já mais alto do que o pai alguma vez fora e ainda continuaria a crescer pelo menos durante um ano ou dois.

- Irão deixar-me entrar na sua cela? - perguntou Harry em voz baixa.

- Não será preciso. Ela voltou para nós. Poderás encontrá-la no lugar que lhe pertence, na câmara do príncipe.

Quando a voz dela o mandou entrar, Harry estremeceu e a mão pousada sobre o puxador da porta ficou rígida e fria. Voltara a sentir a amargura do orgulho ferido, a memória do amor traído regressara e foi-lhe penoso franquear o limiar.

Ela estava sentada à mesa, diante de uma missiva chegada dez minutos antes, sozinha na sala de Llewelyn, na cadeira de Llewelyn, o diadema de ouro sobre os cabelos grisalhos, que ainda apresentavam ricas madeixas loiras. Ela virou a cabeça para o ver entrar. Docemente, com todo o cuidado, poisou a pena e afastou a cadeira da mesa para o receber. O rosto dela mostrava-se pálido e grave, como ele o recordava, e os olhos grandes e calmos, sem uma sombra, as sobrancelhas ligeiramente franzidas de preocupação. Teve de se arrancar ao mundo nebuloso da política para o acolher.

- Harry! Bem-vindo a casa.

Por um instante, ao olhar para ele, o rosto dela corou. O ano da vida dele que perdera estaria para sempre ligado ao ano que ela própria perdera. Uma vez, havia muito tempo, Harry perguntara-lhe: «Sabereis o que é estar prisioneiro? Saberei eu?»

- Senhora! - saudou ele, avançando para se ajoelhar aos seus pés.

A mão que tocou na sua usava o anel de Llewelyn. Harry inclinou a cabeça e beijou os dedos frios, junto à pedra. A volta dela flutuava um perfume subtil e, diante dos olhos de Harry, o movimento ligeiro da respiração agitava o seu corpo vestido de brocado, o seu corpo que envelhecia. Harry reteve longamente a mão dela, perdido no tempo, assaltado pelas recordações dilacerantes do fim da sua infância. Com resignação e humildade, Joan assistiu ao combate que se travava no campo de batalha do coração dele e que se reflectia no seu rosto torturado: a luta entre o orgulho e o ressentimento, por um lado, e o amor e o desgosto, por outro.

Maltratara-o e traíra-o e, todavia, agora que tocava nas mãos dela e deixava repousar as suas sobre os joelhos dela, Harry não sentia qualquer mudança nela: nada faltava ao afecto que ainda lhe aquecia a alma. Não teria a sua desilusão passado de uma ilusão? Fora ele quem mudara. Alguma coisa acontecera aos olhos com que via as coisas e aos ouvidos com que escutava o que se passava à sua volta. Agora, esses olhos viam os acontecimentos do ano anterior segundo uma perspectiva nova, que nunca imaginara e que se situava acima da batalha, mas não fora do alcance da dor. Recordou-se do morto, no seu esplendor vivo e na sua nudez assustada, e já não lhe parecia ser necessário separar as duas imagens. Ouviu a súplica premente da voz de Joan: «Pensa nele com bondade. Pensa com bondade em todos os pobres pecadores. Se te sentes ferido, qual não será o sofrimento deles?»

Naquele momento, Harry sentia-se invadido por algo a que não sabia dar nome, porque, até então, nunca fora obrigado a identificar a compaixão. Conhecia o respeito, que também sempre sentira por ela, mas não compreendia aquele impulso, mais desesperado, que o submergia, que lhe inundava o coração.

Sentira-se morrer de dor perante a ofensa que lhe fora feita, sem ver mais nada e, levado pela força e pela amargura de tal sentimento, desafiara o príncipe e importunara Deus, banira-se a si mesmo e abandonara-a. Mas, se ele se sentira ferido, quanto não teria sido o sofrimento dela?

- Perdoai-me! - suplicou, a tremer e de olhos baixos. - Perdoai-me!

E ele que se julgara magnânimo por lhe perdoar a ela! Não compreendia, mas também não se interrogava. Depois de as haver pronunciado, soube que aquelas eram as palavras certas e, então, repousando a cabeça no colo dela, repetiu-as uma vez e outra, num alvoroço de alegria e gratidão.

Joan deixou escapar um breve suspiro, debruçou-se sobre ele e tomou-lhe a cabeça entre as mãos. Harry ergueu o rosto para ela, os olhos bem abertos e solenes e ofereceu-lhe os lábios, como fazia em criança. Mas quando, depois de o haver beijado, tomada de alegria, o afastou um pouco de si para olhar bem para ele, Joan viu que o Harry que voltara para casa era já quase um homem.

 

Brecon, Cardigan, Vale do Wye: Julho a Dezembro de 1231

A guarnição do castelo de Brecon fez uma surtida, mal o fogo ficou reduzido a brasas e o fumo do burgo incendiado começou a assentar como um lençol mortuário sobre as muralhas e os telhados. Os ingleses estavam convencidos de que as suas defesas aguentariam praticamente tudo, menos um cerco prolongado e a rapidez do assalto galês indicava que a ideia de Llewelyn não era conquistar pela fome um castelo de de Breos, mas causar o maior número possível de danos nas possessões do corregedor do reino, antes de esgotar o seu próprio ímpeto ou de o rei Henrique pôr finalmente em campo a sua hoste. Todavia, estavam a ser obrigados a alimentar um grande número de refugiados, os armazéns não se encontravam suficientemente abastecidos e queriam ser eles a apoderar-se de quaisquer alimentos que restassem nas redondezas, em vez de os deixarem à espera do saque galês. Além disso, estavam ansiosos por descobrir se Llewelyn iniciara a retirada, que caminho seguira e se o acesso à ponte estava livre, para o caso de dele virem a necessitar.

Llewelyn estava acampado a Leste do burgo, numa colina que dominava o vale do Usk. Danificara as portas do castelo por divertimento e lançara alguns falsos assaltos contra as muralhas, para manter a guarnição em estado de ansiedade, mas não tinha a mínima intenção de desperdiçar tempo e energias com Brecon. A aldeia ficara reduzida a carvão e cinzas e, entre os escombros, não havia nada de que valesse a pena apoderar-se. Ajoelhados na igreja de Saint John, o prior e os seus frades beneditinos rezavam pela sua libertação, chorando as tábuas ainda fumegantes do delicado tecto do coro e dando graças a Deus pelas sólidas paredes de pedra. Sem se aproximarem muito, David e Owen patrulhavam a colina do castelo, não fosse a guarnição arranjar coragem para vir atacá-los.

Foi David quem viu os ingleses saírem pela poterna e esgueirarem-se até à margem íngreme do Honddu, em direcção ao burgo. Manteve-se escondido atrás das paredes do priorado até a caça se encontrar bem à vista e, então, mandou alegremente os seus homens colina abaixo, atrás deles. Antes de haverem dado por ele, por entre o fumo nauseabundo, surpreendeu-os pela retaguarda e empurrou-os até à ponte. Ali chegados, eles voltaram-se e lutaram e David, que se distanciara dos seus homens, viu-se subitamente isolado no meio dos inimigos e foi obrigado a enfrentar quatro ou cinco de uma só vez. O ímpeto da cavalgada levara-o até ao outro lado do rio, onde eles podiam atacá-lo de ambos os lados, enquanto meia dúzia de homens lhe cortava a retirada pela ponte. Quantas vezes Owen o insultara e o pai lhe chamara a atenção para a sua valentia demasiado impetuosa e descuidada!

Quando a perseguição começara, Owen encontrava-se do lado Norte do castelo e, mesmo quando o clamor lhe chegou aos ouvidos, tinha pela frente uma boa distância a percorrer com os seus homens, para se juntar ao combate. David obrigava o cavalo a descrever um círculo frenético, para manter os adversários à distância e, durante alguns minutos de confusão, conseguiu o seu objectivo. Mas um deles lançou as mãos às rédeas do cavalo, enquanto um segundo cruzava a espada com ele e dois outros se aproximavam, flanco com flanco, para o derrubar da sela. David libertou os pés dos estribos, para cair sem entraves e, depois, cercado pelas ferraduras dos cavalos, cravou a espada sob o sovaco do primeiro homem que erguia o braço para a atingir, rasgou-lhe as vestes no sítio onde havia uma fenda na cota de malha e, apoiando-se no joelho, enterrou a lâmina com toda a força.

Um jacto de sangue jorrou-lhe para cima e o peso de um corpo fortemente armado desabou sobre ele, esmagando-o contra o solo, semiatordoado. Vagamente, ao longe, ouviu o estrondo e os gritos dos soldados de Owen, que cavalgavam colina abaixo em direcção à ponte e, ao mesmo tempo, o eco mais próximo de outra cavalgada. Vindo do lado Oeste, onde não havia ninguém de vigia, o som das ferraduras ressoou, primeiro sobre terreno firme, depois, com um tom mais cavernoso, sobre as traves da ponte. Então, de repente, todos os adversários ingleses foram empurrados na direcção de Brecon, sob o impacto de quatro cavaleiros que haviam chegado a galope.

Erguendo o peso morto que jazia sobre ele, David viu o seu próprio cavalo bater com as patas no solo e recuar perante o choque e viu os seus inimigos subitamente em desvantagem face aos recém-chegados, serem arrastados com eles, numa massa confusa, ao encontro de Owen. David recuperou a espada que lhe fora arrancada da mão e, ainda estonteado, ergueu o peso do corpo sobre os joelhos. Então, com um grito de raiva e dor, alguém saltou da sela, correu para ele e amparou-o com um braço enquanto, com o outro, fazia girar a espada à sua volta, num círculo protector.

- Senhor! Senhor!

Lamentando não haver tido o bom-senso de pôr de lado os hábitos galeses e usado um elmo, David limpou os olhos do sangue que não era seu e, incrédulo, deparou-se com um rosto furioso e ansioso e com uns olhos verdes e suplicantes, que lhe imploravam que estivesse são e salvo.

- Harry! - exclamou David, numa voz rouca de espanto e alegria, ao mesmo tempo que se punha de pé.

- Senhor! David!

Harry apalpava-o febrilmente, à procura da ferida de onde brotara o sangue. O combate desenrolava-se apenas a alguns passos de ambos e David e Harry eram obrigados a gritar para se ouvirem um ao outro.

- Não é meu!

David abraçou-o por um instante, arfando e rindo, e haver-se-ia lançado a pé na batalha caótica que se travava na ponte, se Harry não houvesse agarrado os estribos do seu próprio cavalo, oferecendo-os ao seu príncipe, tão orgulhoso e seguro dos seus privilégios que Davíd não ousou recusar. Voltou para o combate montado em Barbarossa, com Harry a segurar um estribo com a mão esquerda. A carga de ambos empurrou os combatentes para a extremidade da ponte. No momento em que os sobreviventes ingleses perceberam que a balança pendia a favor dos adversários e que iriam haver-se já não com cinco galeses, mas com mais de quinze, era demasiado tarde. No fim da luta, a ponte estava juncada de mortos do seu lado e apenas meia dúzia deles tiveram a sorte de escapar, para ir contar a história aos que haviam ficado no castelo.

David desmontou sobre a margem verdejante do Usk para limpar a espada e, depois, voltou alegremente atrás para abraçar Harry uma vez e outra. Arquejavam ambos de excitação e felicidade.

- Como foi que apareceste aqui? Estou tão contente por te ver! Se não fosses tu, haveria sido difícil aguentar-me até o Owen conseguir chegar ao pé de mim. De onde vieste tu tão a propósito?

- Atravessámos Eppynt peio antigo carreiro da montanha - explicou Harry, quase sem fôlego. - Em Builth, disseram-nos que devíeis estar por aqui. Fomos forçados a desviar-nos um pouco, para evitar um grupo de ingleses, e passámos o rio a vau a montante. Ainda bem que assim foi! O susto que eu apanhei, ao ver-te coberto de sangue.

- E nem uma gota era minha - disse David, segurando Harry à distância de um braço, para o examinar, do rosto radioso coberto de suor e fumo, aos pés calçados em botas de montar cobertas de pó. - Meu Deus, rapaz, como tu cresceste! Que braços! E que punho! Como conseguiste escapar e vir ao nosso encontro?

Mas a pergunta ficou sem resposta porque, naquele instante, Owen desmontou pesadamente junto deles e afastou Harry de David, sacudindo-o com alegria. O abraço que recebeu em troca arrancou-lhe um esgar de dor que, por seu turno, arrancou a Harry um grito de remorso.

- Perdoa-me, Owen, esqueci-me! Em Aber, contaram-me o que te aconteceu. Lamento muito haver sido eu a causa de tudo isso.

- Eu estou bem Harry. Mas só graças a Deus e a ti é que este louco aqui pode dizer o mesmo. Só te peço que guardes as tuas forças de lutador por uma semana ou duas, antes de te lançares contra mim. Santo Deus! - exclamou, mirando com admiração os ombros largos e o corpo esguio e flexível de Harry. - Não daria muito pelas minhas hipóteses numa luta contigo, dentro de um ano ou dois! - O rosto a brilhar de alegria, tocou mais uma vez em Harry, como que para provar que ele era real, e acrescentou; - Lançaste uma bela carga na ponte, Harry. Espera até eu te levar diante do príncipe e lhe contar os teus feitos e vais ver como ainda ficas mais alto.

- E eu mais baixo - disse David, sorrindo, enquanto limpava o rosto.

Ao olhar para Harry, viu que o rosto deste se tornara subitamente grave e ansioso e, adivinhando o motivo, apressou-se a tranquilizá-lo:

- Ah, não te preocupes. Bem mereceste ser bem acolhido. Aliás, mesmo sem isto, serias sempre bem acolhido. Ele esperava o teu regresso tão ansiosamente como a tua mãe. Vem ver com os teus próprios olhos.

Partiram em fileira cerrada, deixando o campo de batalha para os mortos e para aqueles que, pela calada da noite, haviam de sair furtivamente do castelo, para socorrer os vivos. Agora calmo e silencioso, Harry seguia entre David e Owen, que, atravessando o burgo escuro e fumegante, o conduziram pelas colinas até ao planalto verdejante onde estava acampado o exército do príncipe. Quando lá chegaram, Harry ainda só contara metade da sua história e, mesmo isso, apenas através de respostas curtas e difíceis, às perguntas impacientes. Só quando se encontrasse diante do príncipe as palavras brotariam livremente e só então poderia deixá-las sair em torrente.

Llewelyn ouviu vozes que falavam alto, excitadas. Conhecendo bem duas delas, o tom do que diziam fê-lo adivinhar a quem pertencia a terceira, apesar de esta ser mais grave e mais firme do que no dia em que a ouvira pedir justiça. Temendo que o coração estivesse a traí-lo, apurou o ouvido. Mas, ao sair apressadamente da tenda, viu que era mesmo Harry: Harry entre os dois irmãos e montado no alazão que conquistara a de Breos, no vau do Mule.

De bom-grado haveria corrido ao seu encontro mas limitou-se a concentrar todo o afecto e compreensão no olhar brilhante e atento com que fitou o rapaz. De bom-grado lhe haveria agarrado nos braços para o fazer descer do cavalo, erguendo-o no ar por instantes, como se ele fosse uma criança, para só depois o pôr no chão, mas foi travado pela consciência de erros passados e pela forma como Harry, atormentado pela recordação penosa das feridas mútuas, endireitou as costas e os ombros, para se apresentar diante dele com dignidade. Em vez disso, Llewelyn esperou por ele à entrada da tenda, o rosto de falcão tisnado num tom cobre pelo Sol de Junho.

- Trazemo-vos o vosso outro filho, senhor - anunciou David, sorrindo. - Apareceu mesmo a tempo de nos ajudar com um bando de ingleses, na ponte do Usk, e foi uma sorte para mim. Nenhum homem socorreu melhor o seu irmão do que ele me socorreu hoje a mim.

De gorro na mão, rosto corado, com um respeito solene, Harry desceu do cavalo e ajoelhou diante de Llewelyn. A mão grande sobre a qual pousou os lábios sentiu o fervor do beijo como uma reparação cerimoniosa do passado. Mas, se ambos começassem a comparar os pesos na consciência, qual dos dois cairia por terra?

- Meu senhor... - começou Harry, que teve de esperar uns segundos, para se certificar de que a voz não iria falhar. - Meu senhor - repetiu. - Sei que vos causei um grande mal. Fui libertado para lutar ao vosso lado, enquanto esta guerra durar... se me perdoardes a minha ausência e me permitirdes que volte a ocupar o meu lugar.

Llewelyn pegou-lhe nas mãos para o ajudar a levantar e só então o abraçou e beijou, com alguma contenção. Um homem pode ser tratado com amor, como uma criança, mas um adolescente hesitante e tímido, entre a infância e a maturidade, precisa de ser tratado como um enviado real em missão importante. Llewelyn conseguiu ser formal, ocultando mesmo o brilho do seu sorriso por trás de uma gravidade respeitosa.

- Está permitido, Harry, e és muito bem-vindo. Nada poderia dar-me maior prazer do que ver-te aqui, diante de mim, vivo e de boa saúde. O teu lugar continua a pertencer-te e sei que o ocuparás com a valentia de um homem.

- Dei a minha palavra e vou respeitá-la - anunciou Harry, mal concluiu a narrativa. - Quaisquer que sejam as suas intenções, Isambard cumpriu a sua parte do trato, o que foi mais do que eu esperava. E eu vou cumprir a minha.

Os seus olhos procuraram os de Llewelyn, em busca de aprovação. O príncipe sorria-lhe, não indulgentemente como se sorri a uma criança corajosa, mas com calma e ponderação, como haveria sorrido a Ednyfed para selar em silêncio uma questão política quanto à qual estivessem de acordo.

- Não duvido, Harry. Mas vai passar ainda muito tempo até ao momento de cumprires essa promessa e, louvado seja Deus, vamos apreciar a tua presença, enquanto aqui estiveres. Não penses ainda no que acontecerá depois. Daqui a pouco, o exército de Oeste do rei Henrique vai ser mandado para aqui, ao nosso encontro. E Ralf Isambard vai estar com eles. Lembra-te disso, mantém viva a tua querela e pode ser que as contas possam ser saldadas antes de voltares a ver Parfois.

Llewelyn viu a esperança iluminar o rosto do rapaz e tingir de dourado os seus olhos. Harry não pensara nisso e Llewelyn acabava de lhe oferecer um presente sobre o qual se apressou a fechar as mãos. Erguendo imperiosamente a cabeça, fitou-os:

- Se o encontrarmos durante o combate, senhor, lembrai-vos de que aquele homem me pertence.

- Ficará por tua conta - aquiesceu Llewelyn, reprimindo a riso pleno de afecto que o entontecia como se fosse vinho. - O direito de primazia sobre ele pertence-te, Harry Talvace, e ninguém te privará dele.

Ao longo do Usk, o fogo propagou-se de Brecon a Gwent e reduziu a cinzas Caerleon. Depois disso, Llewelyn deixou apenas uma força menor, para manter a guarnição do castelo de Newport dentro das muralhas, e dirigiu-se para Oeste pela montanha. Os príncipes de Glamorgan pegaram alegremente em armas para se lhe juntar e reforçaram a sua hoste com os grupos de Senghenydd, Miskin e Neath. Em fins de Junho, haviam conquistado e desmantelado o castelo de Neath, uma espinha normanda cravada, havia uma centena de anos, na carne galesa de Morgan ap Morgan ap Caradoc e dos seus antepassados.

Enquanto o rei Henrique se afadigava a arranjar provisões para socorrer a guarnição de Newport, submetida a um duro cerco, Llewelyn avançava para Oeste, atravessando o desfiladeiro de Gower, em direcção a Kidwelly. E antes de os bispos da província de Canterbury se reunirem em conclave solene, em Oxford, a treze de Julho, para discutirem as ofensas do príncipe galês contra a Igreja, o alcaide de Llewelyn encontrava-se no que restava do castelo de Kidwelly e o próprio príncipe, com o grosso do seu exército, havia atravessado Gwendraeth e Towy, e passara já cinco milhas para além de Carmarthen, sem que o seu sopro devastador se houvesse esgotado.

Os mensageiros dos príncipes de Cardigan vieram ao seu encontro poucos dias mais tarde e um correio de Builth, seu informador em Inglaterra, avistou-se com ele no mesmo dia. Llewelyn acolheu-os com pompa e circunstância à própria mesa, enquanto ouvia as novas que lhe traziam das Marcas.

- Fui então excomungado? - disse, atirando a cabeça para trás numa gargalhada sonora.

Nessa noite, Llewelyn estava alojado numa granja da abadia de Withland e o vinho que balançava no seu copo e o empadão de carne partido em pedaços que se encontrava na sua frente haviam-lhe sido enviados com os cumprimentos do prior. Além disso, o jovem que trouxera a notícia de Builth era um clérigo, com boa reputação na sua igreja.

- Afinal, não é a primeira vez. E os meus aliados também foram excomungados, dizeis vós?

- Doze dos príncipes, senhor, receberam a mesma sentença - informou o clérigo, que os enumerou de seguida.

- Mas os bispos esperam que Deus estivesse de costas voltadas, quando de Burgh assassinou os meus homens - observou o príncipe com desprezo. - A sentença já foi promulgada?

- Em toda a Inglaterra, senhor.

Llewelyn riu-se de novo: eram poucas as hipóteses de tal sentença ser respeitada no País de Gales.

- Espero que nenhum dos doze perca o sono por causa disso. Por mim, não vou perdê-lo esta noite. Bem, pelo menos os bispos deles actuam mais depressa do que os seus marechais e estão menos atados de pés e mãos do que estes pela lei e pelos precedentes da justiça. Imagino que o arcebispo, em Itália, esteja ao corrente? O meu coração diz-me que as preces dele serão por qualquer pessoa que, excomungada ou não, corte a cabeça ao conde de Kent. E quais os episcopados de Gales que estiveram representados em Oxford?

- O bispo Anselm de Saint David esteve lá, senhor, e o bispo Elias de Llandaff.

- Ambos Ingleses! Apostaria que eles não convocaram Martin de Bangor nem Abraham de Saint Asaph.

-Não, senhor. Os galeses foram postos de lado.

- Não precisais de me dizer isso. Onde está o rei neste momento?

- A caminho de Gloucester, senhor. A hoste foi convocada para lá e para Hereford e deve estar a postos. E, em Builth, ouvimos dizer que foi enviada uma carta ao corregedor do reino na Irlanda, a dizer que todos os cavaleiros da Irlanda que quisessem terras no País de Gales poderiam ficar com as que conquistassem.

- Eles que venham - disse Llewelyn, com uma gargalhada. - Ele está a ser muito presunçoso, ao oferecer aquilo que me pertence. Veremos se concede os mesmos direitos aos Galeses. Vamos pô-lo à prova. Estão connosco mensageiros do meu grande amigo Maelgwn Fynchan, de Cardigan. Maelgwn arrasou o burgo e, agora, vamos juntar as nossas forças e concluir a obra. Ainda há tempo para conquistarmos o castelo, antes de eu voltar a cavalgar pelos caminhos de Powis, à espera de que o conde de Kent venha partir o pescoço contra a minha testa.

Harry encontrava-se com os arqueiros, num dos abrigos rasgados por seteiras que os engenheiros haviam construído sob as muralhas, na margem Norte do rio, por entre as ruínas calcinadas em que Maelgwn e os seus aliados haviam transformado o burgo de Cardigan. Corria o terceiro dia do assalto e Harry passara toda a manhã junto à sua seteira, cobrindo uma das galerias de madeira erigidas contra o pano da muralha, do lado Norte da porta.

A sua direita, ficava a estrutura comprida, escura e quente do abrigo e, para lá dos doze arqueiros atentos postados nas seteiras, avistava-se um triângulo de terreno escurecido e um bosque de espinheiros calcinados. Mais além, invisíveis, os escombros cobertos de cinza estendiam-se encosta acima até mergulharem no topo arborizado. A esquerda de Harry, pela abertura do abrigo, viam-se as ténues espirais de fumo que se afastavam, as gaivotas que voavam em círculos e gritavam sobre as águas do Teifi, agitadas pela maré, e a ponte que terminava junto à muralha do castelo.

Ao longo da margem do rio, o fogo propagara-se de modo mais irregular, deixando espaços verdes e árvores intactas. As casas de madeira haviam ardido como palha, mas as paredes de pedra dos armazéns e das casas dos barcos haviam resistido e, a coberto delas, fora do alcance das flechas lançadas dos bastiões, haviam sido desfraldados os pavilhões do príncipe. O muro de pedra mais próximo, que não media mais de um pé de altura, ajudava a camuflar a entrada do abrigo. Sobre ele cresciam papoilas vermelhas e um tufo de cevada madura, que nem mesmo o fumo maculara.

Ali, não havia trabalho para os homens que manejavam a espada mas Harry reencontrara com gosto a sua antiga arma. Não havia tempo para um cerco metódico e, além disso, Llewelyn não estava disposto a erguer contrafortes de terra à volta do castelo de Cardigan e ficar à espera de que, assolada pela fome, a guarnição se rendesse. Por trás deles, na Marca, estava reunida a hoste real do Oeste. A questão de Cardigan tinha de ficar resolvida em poucos dias, pois eles precisavam de voltar para trás, para defender os acessos ao País de Gales. A tarefa de arrasar aquela fortaleza, tão cara ao corregedor do reino, era trabalho para os engenheiros, para as grandes máquinas de cerco, catapultas e trabucos, que arremessavam dardos e cargas de pedra contra as muralhas, e para os aríetes com pontas de ferro que os servos lançavam durante a noite contra os bastiões e que as correntes projectavam contra a construção de pedra, para aí abrir buracos. Mas ainda havia trabalho para os arqueiros: derrubar com as suas flechas os defensores que aparecessem nos merlões ou ousassem sair e atirar pedras e pesos de ferro contra as galerias dos atacantes. Os cavaleiros viam-se condenados à ociosidade, na retaguarda, à espera de um eventual coup de main, até ser aberta uma brecha suficientemente grande na muralha, ou de uma oportunidade de subir a uma escada que ali fosse encostada. Harry preferia deixar a cavalaria entregue às suas tarefas e desempenhar funções de arqueiro.

Agachado contra a madeira do abrigo, David correu ao encontro de Harry, quando o calor do meio-dia se fez sentir e sacudiu o cantil de couro sobre o ombro do irmão adoptivo. Concentrado na vigilância da galeria, suspensa do parapeito como um ninho de andorinhas, Harry não identificara os passos de David e estendeu imediatamente a mão para o cantil, sem dizer palavra. Só então os seus olhos reconheceram a mão que o segurava, o anel de topázio e a manga verde escura e voltou a cabeça, franzindo o sobrolho. Sem elmo, sem gorro, vestindo apenas parte da armadura, David sorriu-lhe.

- Senhor - disse Harry, surpreendido e contrariado. - Não devíeis estar aqui.

Em serviço, Harry observava estritamente as regras, mas foi o irmão adoptivo ansioso e não o subordinado deferente quem abanou a cabeça, num gesto de desaprovação.

- Não? Eu vi-te deitar a mão de fora da toca, para apanhares um rebento de azeda para refrescar a boca. Toma, bebe! Por que pensas que me dei ao trabalho de trazer isto?

Durante toda a manhã, o sol batera na cobertura pontiaguda do abrigo e, lá dentro, o ar estava tão quente como num forno. Harry tinha a camisa colada ao corpo e o suor abrira-lhe sulcos brancos no rosto coberto de fuligem. Inclinando o cantil, bebeu sofregamente até David retirar a mão e o cantil.

- Bebe devagar, homem, saboreia! Depois passa o cantil aos teus companheiros. Está um calor horrível aqui. E porque não haveria eu de aqui vir?

- Porque, mesmo aqui por cima, há um arqueiro que é muito bom atirador e, se te visse, era capaz de adivinhar quem tu és pelo teu aspecto. Olha! Estás a ver a aquela seteira, lá ao fundo? Olha com atenção e verás o castanho avermelhado das roupas, quando ele dispara.

Por breves instantes, o castanho camurça de uma manga de couro ficou visível, quando o arqueiro se deslocou lateralmente, em busca de um alvo. Do interior do terreiro subia consistentemente uma coluna de fumo, que obscurecia o ar, lá no alto. Os barris de pez a arder haviam conseguido provocar danos nas construções de madeira encostadas ao pano da muralha,

- Há duas horas que ele e eu disparamos à vez um contra o outro. Não sei se as minhas flechas chegaram perto dele, mas as dele caem perto de mais para meu gosto desta seteira. Quando saíres, avança agachado até chegares a um sítio coberto. Entretanto, eu mantenho-o ocupado. Se, ao menos uma vez, ele mostrasse mais do que um bocado do braço! - disse Harry, com uma impaciência ávida, colando o rosto à fenda, para vigiar o inimigo.

- Toma cuidado contigo - aconselhou David calorosamente. - Não estás muito mais a coberto do que eu.

- Não há nada a recear. Aquele homem merece-me demasiado respeito para eu correr riscos. Já conseguimos abrir alguma brecha nos bastiões? Ouvi os aríetes a bater durante toda a noite.

- Já. Já há uma brecha e, neste momento, há três trabuquetes a tentar alargá-la. Dentro de uma hora, devemos poder passar. Daqui até lá, os riscos devem ser poucos, pois nós catapultámos metade das pedras das construções de Cardigan por cima da muralha. E, a avaliar pelo fumo, lá dentro, tudo quanto não é de pedra deve estar a arder.

- Chamas-me antes do assalto? - perguntou Harry, voltando para David o rosto escurecido e limpando com o braço nu o suor que lhe escorria para os olhos.

- Eu chamo-te.

David prendeu o cantil à cintura, acariciou afectuosamente o cabelo de Harry e esgueirou-se por entre os arqueiros ajoelhados junto às seteiras, saindo depois para terreno descoberto e correndo até alcançar a protecção das muralhas. Com todo o cuidado, Harry fez pontaria para a abertura distante na guarita de madeira, naquele momento a ser alvejada por uma carga de pedras que a despedaçou parcialmente. Vibrando, a flecha de Hany atingiu a abertura e ficou atravessada nela como uma barra na janela de uma prisão. A resposta veio sob a forma de um impacto sibilante que fendeu as tábuas grossas do abrigo. Uma ponta de aço, embotada mas ameaçadora, atravessou a ferida aberta na madeira, junto à face de Harry, que, depois de disparar, recuara instintivamente para se colar à barreira e se afastava agora a toda a pressa, ao sentir o calor aflorar-lhe a orelha. O disparo fora demasiado certeiro para não lhe pregar um terrível susto mas, pelo menos, David estava em segurança.

Sentindo-se espicaçado, Harry retomou o duelo com o inimigo invisível. Disparo em resposta a disparo, os dois mediam forças em destreza e cada um deles esperava o rasgo de sorte que lhe permitiria levar a melhor. Totalmente absorvido pelo desejo de vencer aquela luta, Harry esqueceu o calor e a sede.

Foi um disparo bem sucedido de uma das catapultas que lhe deu uma oportunidade. A enorme pedra, disparada obliquamente, bateu na muralha do lado esquerdo, por baixo da galeria, e o seu impacto danificou a construção de pedra, soltando dois ou três fragmentos, que saltaram cada um para seu lado. O maior foi bater nas tábuas de suporte da galeria e quebrou uma delas. Então, todos os sitiados recuaram, afastando-se do canto que fora atingido e agarrando-se ao sólido muro de pedra por trás deles.

Harry tinha uma flecha colocada no arco e preparava-se para disparar, quando o choque fez tremer a galeria. Esquecendo por instantes o perigo de se mostrar, a sua presa recuou juntamente com os outros e ficou enquadrada pela seteira. Finalmente, Harry tinha uma visão completa do corpo do seu alvo e não apenas um vislumbre do braço que empunhava o arco.

Disparou e viu claramente a convulsão de dois braços que agarravam o peito perfurado e a contorção de dor que pareceu erguer no ar o corpo do homem. Este tombou sobre a seteira, ficou ali, a oscilar, por um instante e depois, lentamente, lançou-se numa longa queda, volteando como uma aranha que se deixa deslizar pelo fio da sua teia. Esmagou-se ao fundo da muralha, com um som repugnante, que se repercutiu por um momento de silêncio relativo.

A catapulta não foi recarregada, os trabucos haviam sido abandonados e os seus braços enormes baloiçavam sobre o vazio. O fumo ténue flutuava sobre Cardigan, arrastado como um galhardete pela brisa que se levantara. Em baixo, diante da fenda aberta na muralha e da porta do castelo danificada, vindo da margem do rio, reuniu-se um grupo de cavaleiros que avançaram a descoberto sob a luz do sol. Os últimos ecos da sua cavalgada morreram ao longo do Teifi, como um trovão que se afasta, refluindo em direcção ao mar.

A tremer, com o arco ainda a vibrar nas mãos, Harry olhou em volta por um momento, sem compreender. O homem que se encontrava ao seu lado tocou-lhe no braço, bateu-lhe alegremente no ombro e apontou para a porta do castelo. A portinhola para peões da porta principal estava aberta. Enquadrada pela penumbra, desenhava-se a figura de um homem e um pano branco flutuava ao sabor da brisa.

Os arqueiros saíam dos abrigos sufocantes e estendiam as pernas ao sol. Por trás da companhia de príncipes de Llewelyn, juntavam-se os capitães, que se libertavam das luvas e dos elmos, expondo as cabeças ao ar fresco. Por trás da bandeira de tréguas, do castelo de Cardigan saía o castelão do corregedor, desejoso de evitar maiores perdas, o assalto inevitável e o saque da fortaleza.

Harry nem queria acreditar. Semicerrou os olhos para ver melhor, à distância, o encontro dos chefes, sacudindo a cabeça num gesto de descrença, até a realidade penetrar no seu espírito atordoado. Afinal, David não ia precisar de si ao seu lado, para o assalto. Cardigan rendera-se. De Burgh, o grande conde de Kent, grande corregedor do reino de Inglaterra e mestre do rei, perdera o castelo que era o seu orgulho. Agora, Llewelyn podia deixá-lo entregue aos cuidados dos príncipes aliados e conduzir triunfalmente o seu exército ao encontro da hoste real que vinha de Hereford.

Com os músculos doridos, Harry saiu do fosso, respirou fundo e sentiu que o suor começava a secar no seu rosto sujo. Os seus olhos fixaram-se na base da muralha, sob a galeria, em busca do casaco de couro castanho avermelhado, e avistou-o entre os escombros de pedras e detritos. O corpo encontrava-se numa posição grotesca, com a cabeça inclinada num ângulo cruel, de rosto para cima. Harry viu que o seu inimigo fora um jovem, mais velho do que ele apenas um ano ou dois, loiro e bem feito. As mãos, tão hábeis no manejo do arco, jaziam por terra, vazias. O rosto também estava vazio, ainda crispado pela agonia, mas inerte e indiferente.

Um feito inútil! Disparara a última flecha daquele cerco e talvez ela houvesse partido depois de a porta haver sido aberta e a bandeira das tréguas desfraldada. Que o levara a empenhar-se tanto naquela morte? O júbilo durara apenas um instante. Agora, sentia somente remorsos e choque: destruíra sem motivo uma coisa bela e admirável. Aniquilara aquela máquina maravilhosa que sabia calcular a distância e empunhar o arco.

De súbito, recordou-se de uma outra perda inútil. E os seus olhos voltaram a ver o jovem cavalariço do conde Ranulf, a mimar os horríveis trejeitos da atrocidade obscena da morte por enforcamento.

O cadáver que jazia junto à muralha poderia muito bem ser o seu e aquele jovem desarticulado poderia até haver-se congratulado com o disparo que o derrubara. Mas isso não o desculpava. Ele conhecia o valor da criação e a violação que era destruí-la, conhecia a maravilha das criaturas de Deus, que os homens tão imperfeitamente copiavam. Por isso, era ele o mais culpado dos dois.

David acenava-lhe, chamando-o. Harry viu, hesitou em ir ao seu encontro, mas acabou por ir: o corpo rígido, os olhos toldados, diante dos quais permanecia a imagem do pobre boneco sem vida.

- Que se passa? - perguntou David, sempre rápido a aperceber-se do desconforto de Harry, mesmo quando não havia motivo aparente para tal. - Estás ferido? Ele acabou por conseguir atingir-te?

David agarrou-o e apalpou-o com um inquietação notória, que Harry sentiu quase como uma afronta.

- Não - respondeu secamente, afastando de si as mãos solícitas, num gesto que, mais tarde, lamentaria em segredo. - Eu acertei-lhe. Ele está além, no meio do resto dos destroços.

Em Llandovery, foram interceptados por um mensageiro de Builth, que lhes contou que a hoste do rei Henrique partira de Hereford e avançava para Oeste, subindo o vale do Wye. A partir daí, fizeram marchas forçadas, a fim de, tanto quanto possível, distribuírem as suas forças pelos acessos às fortalezas galesas. Mas chegaram aos caminhos do cume de Eppynt sem haverem estabelecido contacto e David dormiu sossegadamente duas noites no seu castelo de Builth, até receberem novas seguras sobre o avanço do rei. Das Marcas chegaram batedores, que os informaram de que o exército inglês se afastara do Wye em Hay e se dirigia para Oeste pela estrada de montanha em direcção a Painscastle.

- Parece que não precisamos de ir ao encontro deles - comentou Owen, muito sério. - Eles vêm em direcção a nós.

Na verdade, dado o seu avanço no terreno, Builth parecia ser o objectivo mais provável dos ingleses e, com uma força como a que Henrique reunira a marchar contra eles, os galeses tinham boas razões para reunir provisões e homens, na expectativa de um cerco longo e determinado ao castelo. Mas, dia após dia, foram observando atentamente os caminhos e as suas patrulhas não avistavam nenhuma coluna em marcha sobre as colinas vizinhas nem mais ao longe, no vale. Tudo indicava que o exército inglês abrandara a marcha, algures na região de Painscastle. Llewelyn em pessoa saiu para verificar o motivo de tal atraso.

Do flanco da colina, perscrutou o antigo morro de Painscastle e a fortaleza de madeira que outro William de Breos, o segundo da linhagem, ali edificara, para conter Elfael. Os ingleses chamavam-lhe o castelo de Maud, a temível esposa desse William, que o defendera com unhas e dentes contra os galeses e se transformara numa espécie de papão, que estes evocavam para assustar as crianças desobedientes.

- Santo Deus! - exclamou Llewelyn, olhando para o vale. - Parece que estamos outra vez no Kerry.

Bordado de tendas e linhas fortificadas do exército real, o vasto tapete verde do vale fervilhava de cor e movimentações de homens. Mais acima, o morro, várias vezes acrescentado, mostrava os vários degraus de verde e os homens que observavam lá do alto aperceberam-se de que os estratos cobertos de ervas haviam sido alargados e prolongados, com novas camadas de terra e entulho, que expunham ao sol o seu tom árido de cinzento esbranquiçado.

- Há pedras ali - disse Harry, apontando. - Vede onde estão empilhadas. E vedes aquelas linhas além, traçadas a branco? Também são pedras. Eles estão a começar a construir uma nova linha de muralha.

Os galeses olhavam, mas nem queriam acreditar no que os seus olhos viam. Tudo parecera indicar que aquele exército imenso, reunido em resposta a uma provocação directa, iria lançar uma campanha decisiva contra todo o País de Gales. Então, porque se detivera ali, a construir uma fortaleza? Os castelos são meios de ataque, depois de um exército haver progredido bastante em território inimigo, mas aquele local não era um posto avançado entre os clãs: era uma ligação entre Brecon e Radnor, um elo da cadeia de castelos das Marcas, já conhecidos e havia muito odiados. Substituir a madeira por pedra não constituía uma nova ameaça.

Llewelyn segurou as rédeas e voltou as costas à cena.

- Eu pensava que estávamos a bloquear-lhes o caminho para o interior de Gales - disse. - Mas parece que o rei Henrique se contenta em bloquear-me o caminho para o interior da Inglaterra. Pois bem. Se ele hesita em avançar para um confronto directo, tanto melhor: nós mantemos os nossos caminhos abertos à volta dele e atacaremos os seus soldados extraviados, mal eles se afastem.

E assim fizeram enquanto corria o quente mês de Agosto: era, aliás, um trabalho caro aos galeses. Armavam emboscadas aos grupos de ingleses que se distanciavam do campo, cortavam as vias de abastecimento e, a título gratuito ou por interesse, aproveitavam o facto de o rei Henrique estar ocupado e lançavam ataques nas fronteiras inglesas, nas suas costas. Até arranjavam tempo para tomarem banho no Wye e para se deitarem ao sol, nas margens, quando tinham calor e estavam cobertos de poeira, deixando algumas sentinelas de vigia no alto das colinas. Llewelyn patrulhava o centro do País de Gales, de Brecon a Caersws, e, sempre que podia, cobrava taxas aos vizinhos ingleses, até que alguns deles, como o prior de Leominster, acabaram por lhe pagar uma quantia generosa para ele os deixar em paz. Entretanto, os engenheiros do rei e o seu exército imobilizado de operários continuavam a reconstruir Painscastle.

- Há que lhe fazer justiça - comentou Llewelyn, em princípios de Setembro, durante uma inspecção. - Henrique constrói melhor do que combate e bastante mais depressa. Devias seguir o exército dele e não o meu, Harry. Podias fazer carreira no teu próprio ofício.

- O meu ofício é o das armas - respondeu Harry, num tom tão enfático que talvez se destinasse a abafar uma dúvida escondida num recanto do seu espírito.

- Como estás a ver, conhecer a arte de construir também pode ser útil a um soldado.

Pensativo, Harry perguntou:

- Porque fizeram eles isto, senhor? Porque deixaram escapar a oportunidade deles? É esta a política do rei? Ou a do corregedor do reino? Nós causámos-lhes bastantes danos durante a campanha de Verão e, ao princípio, eles pareciam alimentar péssimas intenções. Porque deixaram que tudo se reduzisse a isto? Estão com medo de nós?

- Medo, não. Nunca penses tal coisa do teu inimigo. É verdade que eles desconfiam mais de mim do que eu pensava. Mas alguma coisa aconteceu por certo, que os fez mudar de planos, depois de haverem iniciado a marcha - disse Llewelyn, estreitando os olhos, para observar melhor a actividade febril que se desenrolava à distância, no vale. - Falavas verdade, quando disseste que esta expedição se destinava pelo menos a fazer-me recuar para as montanhas, se não conseguissem acabar de vez comigo. Em fins de Julho, aconteceu qualquer coisa que alterou tudo.

- O que foi? - perguntou Harry, certo de obter uma resposta. Estavam sozinhos no pequeno promontório, entre as árvores.

Um quarto de milha mais abaixo, num fundão entre duas colinas, estava acampada uma companhia da escolta do príncipe.

- Como posso eu saber? Pensando bem, poderá encontrar-se uma dúzia de razões e qualquer uma delas pode ser o verme que estragou a colheita deles. Mas conheço pelo menos uma que parece bastante plausível. Em fins de Julho, o bispo de Winchester regressou da sua cruzada vitoriosa e voltou para a sua diocese... e para junto da orelha do rei. Penso que, mal soube de tal nova, de Burgh perdeu o apetite por esta guerra. É certo que, de Montgomery a Cardigan, lhe causei bastantes perdas. Mas Peter de Winchester pode fazê-lo perder tudo. Penso que ele não quis embrenhar-se mais em Gales e perder tempo e energias a lutar comigo, quando está a braços com uma batalha mais decisiva, pela sua própria sobrevivência.

- Mas como conseguiria ele levar o rei a fazer o que ele quer? Como conseguiria retê-lo aqui, quando o rei pensava poder obter uma vitória?

-Ah, consegue! O rei pode irritar-se e queixar-se mas, apesar de não gostar do seu corregedor, fará o que este disser, até haver a seu lado outra vontade mais forte, que o aconselhe em sentido contrário. - Com um sorriso sombrio, Llewelyn acrescentou: - E penso que não tardará muito para que isso aconteça.

- Então, se a posição dele é assim tão má, vós podeis terminar a campanha quando vos aprouver. De Burgh ficará contente por firmar um acordo que o livre de nós.

- Mais devagar, Harry, mais devagar! Deixemo-lo suar por mais algum tempo, até eu estar mais seguro do terreno que piso. Não estou com pressa de chegar a um acordo. Se eu cedesse com muita facilidade, eles iriam supor que estava com pressa, para encobrir uma fraqueza e sentir-se-iam tentados a reiniciar a querela, no momento que lhes fosse mais favorável. Não, deixemos o bispo Peter espetar uma faca nas costas de de Burgh e deixemos o rei dançar ao som da música deste por mais algum tempo, até eles se engolirem uns aos outros, deixando Gales em paz. Então, no momento que eu escolher, far-lhes-ei saber que estou disposto a iniciar negociações.

Harry voltou para o acampamento simultaneamente jubiloso e triste. Experimentava grande apreço pelas confidências do príncipe e aquelas especulações por vezes ousadas deliciavam-no e cativavam-no. Mas, caso fosse posta de lado a ideia de um confronto de monta com o exército inglês, bem podia perder a esperança de um encontro com Isambard em armas e de resolver a disputa no campo de batalha. A sombra do regresso a Parfois pairava como uma nuvem de tempestade sobre a sua cabeça. Desejava que o príncipe alcançasse uma paz vitoriosa, mas estava ansioso por saldar a sua dívida, enquanto ainda era tempo.

A fim de aproveitar todas as oportunidades possíveis, pediu a David que o deixasse acompanhar todas as patrulhas que contornavam a hoste inglesa pelas colinas e atravessavam o Wye, depois das pilhagens. Inquieto, mas compreensivo, David percebeu o que ele queria e deixou-o ir.

Em fins de Setembro, no regresso de uma dessas expedições, atravessaram o rio a montante de Hay. O nível do rio estava baixo, pois o Verão fora seco e, por isso, não se deram ao trabalho de descer até ao vau, escolhendo um local onde a passagem fosse fácil. A margem para a qual subiram era um prado onde havia muitos salgueiros e, quando deixaram para trás a cobertura das ramagens prateadas das árvores, encontraram pela frente um grupo de ingleses três vezes mais numeroso do que o seu. Por sorte, os galeses estavam todos a cavalo, pois a rapidez era um elemento essencial daquelas expedições. Os ingleses contavam com outros tantos cavaleiros e talvez o dobro de soldados de infantaria. A surpresa de uns e outros foi igual e a inclinação do terreno contribuiu para que o recontro os levasse até à beira da água, numa luta desordenada.

Seria loucura deixar que um mero confronto se transformasse numa batalha campal: os ingleses podiam receber reforços e os galeses não, pois eram obrigados a contornar as posições inglesas para se juntarem aos seus. Ao longo da margem, para a esquerda, um bosque oferecia uma boa cobertura. Foi nessa direcção que eles retiraram a toda a pressa; Harry e os cavaleiros com melhores montadas fechavam a marcha, repelindo os ataques, para dar tempo a que os seus companheiros se espalhassem pelo bosque, onde os arqueiros que havia entre eles podiam ocupar posições e auxiliar a retaguarda. Ainda assim, antes de haverem alcançado o bosque, deixaram para trás três mortos e perderam dois feridos às mãos dos ingleses.

Os soldados de infantaria ingleses estavam todos fora de combate e as forças equilibradas. Se Harry estivesse no comando, haver-se-ia sentido tentado a dar meia volta e a combater; mas estava sob as ordens de outrem e, em obediência a essas ordens, bateu em retirada com os outros, galopando, parando para lutar e voltando a galopar, até o número dos perseguidores ficar bastante reduzido.

Encontravam-se ainda no meio das árvores, dispersos, mas não tanto que não pudessem ouvir-se uns aos outros, quando as patas de Barbarossa resvalaram no terreno arenoso, crivado de tocas de coelhos, e Harry foi projectado por cima da cabeça da montada e caiu ao chão.

Abalado e quase sem poder respirar, Harry rolou sobre si próprio, pôs-se de pé e tentou freneticamente deitar as mãos às rédeas; mas era demasiado tarde: as rédeas escaparam-se-lhe entre os dedos e Barbarossa, assustado e indignado, fugiu entre as árvores. Então, muito perto, ecoou o som ameaçador de outras ferraduras. Harry voltou-se em busca de um esconderijo, mas um grito de puro prazer demoníaco indicou-lhe que havia sido visto. No instante seguinte, um cavaleiro surgiu entre a folhagem e, sem hesitar, saltou da sela e mergulhou entre os arbustos, atrás de Harry.

Até àquele momento, Harry não avistara, entre o grupo com o qual acabavam de se defrontar, nenhum rosto conhecido nem estandarte identificável. Os ingleses, que se movimentavam descansadamente por trás das suas linhas, não esperavam um mau encontro e traziam apenas armas ligeiras, não ostentando as suas cores. Por outro lado, a acção desenrolara-se demasiado depressa e Harry não dispusera de tempo para pensar. Mas, agora, fora presenteado com a brusca e terrível aparição de um homem alto, corpo magro de aço, que se lançava sobre ele, com aqueles movimentos violentos e belos que tão bem conhecia. E, acima da malha metálica da loriga, divisou por fim a cabeça de bronze sem idade, a pele polida que luzia sobre a ossatura harmoniosa. O último a abandonar a perseguição, o primeiro a abdicar da vantagem de um cavalo, como noutra altura abdicara da vantagem de uma espada, e a saltar para o solo atrás da sua presa, em pé de igualdade: só podia ser o velho lobo de Parfois.

Cansado e frustrado pela longa imobilização em Painscastle, jubilava por finalmente poder entrar em acção. Harry esquivou-se ao braço e à espada que, num movimento intrépido e desdenhoso, mergulhavam na sua direcção e, afastando os arbustos, saltou para terreno aberto. Em resposta ao ruído das folhas secas, o homem voltou-se para o enfrentar, lâmina contra lâmina. As espadas de ambos silvaram e, depois, imobilizaram-se por um instante, punho contra punho. Os olhos cavados de Isambard, brilhantes de prazer, inflamaram-se quando reconheceu Harry.

- Que bom encontro, Harry! - exclamou, rindo.

Os dois repeliam-se brutalmente um ao outro, cada um deles tentando manter o adversário à distância de uma espada.

Harry não respondeu: a exultação e a ansiedade que lhe crispavam os nervos quase o impediam até de respirar. Apelando a todos os recursos de força e destreza de que dispunha, avançou como uma fúria, numa posição de equilíbrio para enfrentar e desviar o golpe previsível. Mas, a meio do assalto, hesitou e, com um grito horrorizado de protesto, fez uma evasiva, desviando a lâmina mesmo antes do impacto. Em vez de erguer a espada ao encontro da de Harry, Isambard baixou-a deliberadamente, cravou-a no solo e ficou desarmado diante de Harry. Este desviou o golpe mesmo no último instante e a ponta da sua espada rasgou o pelote branco abaixo do seio esquerdo, arrancando um pedaço de tecido.

A tremer de raiva, ouviu o grito de uma voz rouca de emoção, que quase não reconheceu como sendo a sua:

- Deus vos amaldiçoe, senhor! Não sois capaz de lutar lealmente? Em guarda! Preparai-vos! Sede um cavaleiro e cobri-vos ou eu mato-vos desarmado!

- Então, mata-me, Harry - replicou Isambard, com um sorriso doce que era um convite. - Não está ninguém a ver.

Num rompante de fúria, Harry ergueu a espada e avançou para o peito descoberto. Na sua angústia de ofensa, impotência e desespero, queria atacar mas, quando chegou o momento decisivo, não foi capaz. A ponta da espada vacilou e afastou-se. Sem se mexer, Isambard riu-se.

- Sabíeis bem que eu não podia! A sangue-frio, não... Dai luta, senhor! Em guarda!

Com um movimento amplo e ostensivo, Isambard colocou a espada na bainha e estendeu as mãos para as rédeas do cavalo, que pastava a poucos passos. Sempre sem pressas, subiu para a sela e, olhando para trás uma vez, sorriu ao jovem, que permanecia no mesmo sítio, a tremer de ódio. Em seguida, lançou-se a trote pelo mesmo caminho por onde viera. Poucos momentos depois, Harry ouviu alguém chamar, o tilintar de arreios e a resposta de Isambard:

- Desapareceram todos. Não vamos voltar a vê-los deste lado de Builth. Deixai-os ir!

Sobre o corpo de Harry, o suor de medo verdadeiro esfriou o suor de raiva. Atordoado, deu meia volta e correu em busca dos seus companheiros, engolindo o melhor que pôde o ódio e o fel. Alguns minutos depois era brutalmente chamado à realidade por uma voz ansiosa, vinda do bosque e que o chamava baixinho pelo nome. Visivelmente inquieto, Morgan ap Einon procurava-o, trazendo pela rédea Barbarossa, que apanhara junto ao rio.

Não houve outros recontros. A guarda avançada da hoste inglesa estava já a regressar a Hereford. No fim de Setembro, todo o exército batera em retirada, deixando uma guarnição no novo castelo inacabado. Em começos de Novembro, o príncipe de Aberffraw fez constar, por canais indirectos e sem que tal lhe houvesse sido solicitado, que estava disposto a discutir os termos da paz.

 

Builth, Parfois: Dezembro de 1231

Os enviados voltaram de Londres em princípios de Dezembro e entraram em Builth com as primeiras tempestades de neve que assolavam o vale, embora as colinas estivessem já cobertas de branco. Aquilo que traziam consigo não era uma paz permanente mas uma trégua de um ano, assinada e selada no último dia de Novembro: um ano de repouso que seria empregue em negociações com vista a uma paz sólida e duradoira. Entretanto, nada poderia ser reconquistado nem cedido. Llewelyn ficava com aquilo que conquistara.

- Ah! - exclamou o príncipe, respirando fundo, satisfeito. - Assim, podemos ir passar o Natal a Aber, levando Cardigan na bagagem, não é verdade? Eu não disse que, se esperássemos, poderíamos obter tudo quanto queríamos? E como reagiu o estômago do conde de Kent à perda do seu castelo? Aposto que estava doente e amargo. Ou será que ele pensa que, no espaço de um ano, eu posso ser obrigado a desistir daquilo que, agora, disse claramente que não lhe devolveria?

Philip ap Ivor aqueceu os seus venerandos tornozelos na lareira da câmara do príncipe e trocou um rápido olhar com o seu companheiro mais novo.

- Duvido que abdicar de Cardigan lhe haja causado o mínimo prazer, mas parece-me que o seu espírito está ocupado com outras renúncias mais graves. Desde Setembro, perdeu um vassalo importante. O seu velho capelão Ranulf o Bretão foi destituído do cargo de tesoureiro da câmara, havendo-lhe sido ordenado que abandonasse o reino com a família. E foi Peter des Rivaulx quem ficou com o cargo dele.

- O quê? O sobrinho de Winchester? - perguntou David, que estava sentado num tamborete, aos pés de Llewelyn.

- O filho de Winchester - corrigiu Llewelyn, sem rodeios, rindo-se da expressão severa de Philip que, todavia, não protestou contra uma alusão tão directa.

- E, antes da nossa partida de Londres, corria o rumor de que, este ano, no Natal, o rei será hóspede do bispo Peter, em Winchester. O bispo já encheu os ouvidos do rei e, a acreditar neste rumor, não se esqueceu de nenhuma das suas velhas queixas contra o corregedor do reino. E, agora, já não há nenhum Langton para restabelecer o equilíbrio.

- Não é de espantar que de Burgh queira contemporizar comigo, mesmo a um preço que lhe custa pagar. Vai precisar de toda a presença de espírito, se quiser manter a sua posição face a Peter des Roches.

- Isso é mais verdade que nunca, senhor - concordou

Philip, em tom grave. - O bispo Peter regressou coberto de honras, como cruzado recém-chegado da Terra Santa, amigo íntimo do imperador e merecedor da confiança do Papa Gregório. E, dado o seu temperamento, o rei preza muito a habilidade de um homem como ele.

Llewelyn escutou tudo quanto tinham para lhe contar e, no fim, disse:

- Penso que foi a última vez que vimos de Burgh pegar em armas para entrar em Gales. Deus sabe que ele não merece mais piedade minha do que a que mostrou para com os meus homens, em Montgomery. Todavia, quase sinto pena dele. O rancor que lhe guardo não chega ao ponto de desejar vê-lo servir de capacho a essas gentes de Poitou.

Depois de os dois enviados se haverem arrastado até aos aposentos que haviam sido preparados para eles, David voltou à presença do pai, com uma expressão preocupada.

- O Harry pediu para se avistar convosco a sós, senhor. Permiti-me que o mande entrar.

- Ah, o Harry! - exclamou Llewelyn, com um suspiro. Adivinhava em parte o que o jovem tinha para lhe dizer e preferiria não ter de o ouvir. Mas haveria outro remédio?

- Está bem - respondeu, numa voz cansada. - Manda-o entrar.

Harry entrou e fechou a porta atrás de si, num silêncio determinado. O seu rosto estava pálido e sério e os seus maxilares cerrados num trejeito que não deixava margem para dúvidas. Llewelyn indicou-lhe o tamborete onde David estivera sentado e que continuava junto aos seus pés, mas Harry deslocou-o para, depois de se sentar, os dois poderem olhar-se nos olhos.

- Vim pedir-vos permissão para partir, senhor.

A voz do jovem era controlada e a sua expressão fazia lembrar a de um general perante tropas pouco dispostas a combater.

- A paz foi assinada e, portanto, o meu tempo de liberdade terminou.

- Foi assinada uma trégua - corrigiu Llewelyn.

- Segundo o sentido da promessa que eu fiz, uma trégua é paz. Dei a minha palavra em conforme regressaria, logo que fosse restabelecida a paz entre a Inglaterra e Gales. Chegou o momento de cumprir aquilo que jurei.

Os lábios de Harry estavam tensos e pálidos. Isambard sempre soubera muito bem que aquele momento iria destroçá-lo, que a promessa fora fácil de fazer e difícil de cumprir.

- Tão depressa? É mesmo preciso seres tão rigoroso no cumprimento, Harry? Por certo que te é concedido um certo período de graça e que não precisas de saltar para o cavalo, no minuto exacto em que recebes a notícia. Pensei que gostarias de acompanhar o teu príncipe e deixá-lo em segurança, em Aber, antes de dares por terminado o teu dever junto dele.

Llewelyn não mencionara Gilleis, nem Adam, nem a princesa, mas a crispação do rosto de Harry e o facto de este evitar agora o seu olhar diziam claramente que o jovem adivinhava muito bem o que havia de enganador naquela sugestão tentadora. Naquele momento, voltar a Aber era aquilo que ele mais desejava e, também, aquilo que mais temia. Regressar ao cativeiro, partindo de Aber, seria duplamente difícil, mesmo levando consigo os beijos e as preces de todos quantos lhe eram queridos.

- O David está no seu país e no seu castelo - fez notar Harry, em voz baixa e cautelosa. - E a guerra acabou. Nenhum perigo o ameaça. Se eu dissesse que era meu dever acompanhá-lo, estaria apenas a fingir. Sei que não me pediríeis que mentisse a mim próprio. E penso que me impediríeis de o fazer se... se... se a tentação me assaltasse.

- Deus me livre de tornar ainda mais difícil o cumprimento da tua palavra - disse Llewelyn. - Faz aquilo que deves fazer e serás tu o único a julgar qual é o teu dever. Mas, honestamente, penso que nem mesmo Isambard te negaria os poucos dias da viagem até casa.

Harry baixou a cabeça e, em silêncio, lutou consigo mesmo por alguns minutos. Depois, de repente, levantou-se do tamborete e ajoelhou-se aos pés de Llewelyn.

- Eu tencionava ir! Ah, como eu gostaria de ir. Mas agora... senhor, não devo! Não ouso! Poderia, se a promessa houvesse sido feita a qualquer outro homem mas, com ele, nunca.

As suas mãos geladas e trementes agarraram-se aos joelhos de Llewelyn, sobre os quais poisou a cabeça; e então, em frases entrecortadas, que brotavam dolorosamente, disse tudo quanto lhe pesava na alma.

- Ele recusou-se a lutar lealmente comigo! Roubou-me a minha única oportunidade de me libertar dele. Mas eu não posso cometer um embuste, nem mesmo por um dia, para não ser igual a ele...

Desta vez, quando o príncipe lhe pôs a mão na cabeça e o acariciou como quem consola uma criança, Harry não recusou o conforto, nem ficou tenso devido ao gesto. Pelo contrário, naquele frio imenso e terrível que se fechava sobre ele, recebeu com gratidão o calor da mão de Llewelyn.

- Nem um dia a menos do que devo! Antes um dia a mais! Todas as suas palavras, todos os seus actos são para me pôr à prova. Entre os amigos, um homem pode falhar um pouco sem se perder mas, com o inimigo, isso não pode acontecer. Ademais, não é apenas a minha honra que me cabe defender. Isambard quer quebrar-me, descobrir os meus pontos fracos e destruir-me. E, se conseguisse, não me arruinaria apenas a mim. O meu pai bateu-o sempre em todos os pontos e Isambard nunca conseguiu levar a melhor. Penso que, se conseguisse levar-me a quebrar o meu juramento ou a pagar menos do que é devido, ele se livraria de uma coisa que lhe envenena e ensombra a vida. E eu preferia morrer a dar-lhe essa satisfação. O Owen contou-me que ele profanou o túmulo do meu pai e roubou os seus restos mortais. Mas eu sou o guardião da alma do meu pai e só Deus sabe até que ponto. Por isso, por ele, não posso diminuir em nada a minha dívida. Oh, meu senhor, meu pai, ajudai-me a saldar as minhas dívidas! É tão difícil... tão difícil...

- Filho, filho! - disse Llewelyn, condoído, erguendo-o para o sentar sobre os joelhos.

Estavam sós e nunca ninguém iria saber. Desesperado, terrivelmente necessitado de ajuda para cumprir o seu dever, Harry deixou Llewelyn embalá-lo e confortá-lo, grato por aquela pausa.

- Por minha culpa, não faltarás ao que cuidas ser teu dever, prometo - disse Llewelyn, junto ao seu ouvido. - Amanhã, pões-te a caminho, com tudo aquilo de que necessitas. Ninguém poderia exigir mais de ti... uma noite de sono, depois de receberes a nova, e então regressas. Não receies, eu serei teu advogado em Aber e apresentarei as tuas desculpas. Todos vão compreender. Queres que arranje uma escolta, para te acompanhar?

- Não! Preciso de ir sozinho. Senão, ele ia pensar que me levavam de volta contra a minha vontade.

- Como queiras, meu filho, como queiras. Não vou opor-me à tua vontade. Acalma-te! Isto não é para sempre e não vamos deixar que suportes o teu fardo sozinho. Embora eu saiba que, mesmo sem a ajuda dos teus amigos, és capaz de honrar o espírito do teu pai e a ti próprio e de sair vitorioso desta provação.

Harry enlaçou o pescoço do pai adoptivo e agarrou-se a ele, sem vergonha. Era como se estivesse a agarrar-se a uma rocha: uma rocha viva e quente, que reagia ao seu contacto. Aliviado do peso solitário do seu fardo, Harry perguntou baixinho:

- Não deixareis que David me guarde rancor por eu o abandonar, pois não? Se fosse livre, não sairia do seu lado.

- Ele sabe isso, Harry.

- E Madonna Benedetta... não cheguei a visitá-la... pensei que podia passar lá, quando voltássemos...

- Eu não disse que seria o teu advogado? Vamos, não te preocupes com aqueles que te amam. Nós conhecemos-te bem e não vamos pensar mal de ti.

Nos seus braços, o jovem soltou um profundo suspiro, como se houvesse libertado os ombros de uma pedra muito pesada. Depois, soltou os braços do pescoço de Llewelyn e afastou-se. O príncipe não tentou impedi-lo e Harry pôs-se de pé, com o rosto muito corado mas calmo e resoluto.

- Desejo pedir-vos uma coisa, senhor.

- Pede o que quiseres e ser-te-á concedido.

- Eu sei que, durante este ano de trégua, não podeis fazer nada. Mas peço-vos que, quando o ano chegar ao fim, não façais nada por minha causa, que possa pôr em perigo a herança de David. Prefiro apodrecer em Parfois até morrer a ser a causa dos seus males.

Llewelyn levantou-se também e beijou-o com respeito e ternura.

- Não farei nada que seja contrário aos teus direitos e desejos. Agora, vai ao encontro de David e de Owen e, depois, vai descansar. De manhã, vamos pôr-te a caminho.

Harry beijou-lhe a mão e saiu, cansado e sonolento. Quando o eco dos seus passos deixou de se ouvir, Llewelyn mandou chamar o seu alcaide de Builth.

- Mandai-me aqui um homem de confiança, capaz de decorar uma mensagem e de a transmitir como um embaixador. Um homem que conheça bem as estradas, mesmo de noite, porque quero que ele parta esta noite. Hei uma coisa a dizer a Ralf Isambard, antes de ele voltar a receber o meu filho adoptivo como prisioneiro.

Rhys AP TUDOR ENTROU EM PARFOIS ÀS DEZ DA MANHÃ, quando Isambard acabava de se sentar à mesa para tomar o pequeno-almoço, após a cavalgada matinal. Acompanhavam-no perto de uma dúzia de convidados nobres, que iam a caminho dos seus feudos e haviam feito uma paragem no castelo. A sotavento, junto ao muro do terreiro exterior, haviam sido montadas tendas para abrigar os respectivos séquitos. Com expressões carregadas e amargas, homens de armas envergando nove ou dez librés diferentes de cores vivas juntaram-se nos terreiros, a ver passar o cavaleiro galês que atravessara a ponte levadiça a trote e arrancava chispas às pedras cobertas de geada sob o arco da porta do castelo.

A campanha recente causara-lhes profunda mágoa e os termos da trégua doíam mais ainda. Rhys, que tinha perfeita consciência de que a sua presença, naquele local e naquele momento, representava uma provocação, era dotado de um temperamento que o levava a apreciar essa posição irritante. Avançou a direito entre as filas de homens silenciosos e ameaçadores, com desenvoltura e arrogância, sem mesmo se dignar dar mostras de reparar na sua presença, desmontou no meio do terreiro e entregou as rédeas ao arqueiro mais próximo, que foi obrigado a segurá-las até aparecer um cavalariço que lhas tirou das mãos.

Não podiam fazer nada. O senhor de Parfois decretara que o correio de Llewelyn seria recebido e essa decisão bastava para garantir a sua segurança. Além disso, mesmo que a sombra de Isambard não constituísse dissuasão suficiente, a justiça não deixaria de os penalizar, se dessem aos galeses um pretexto para estes clamarem que as condições da trégua haviam sido infringidas. Por isso, os homens ali reunidos abstiveram-se de dar voz aos seus pensamentos e só cuspiram no chão, nas costas de Rhys, erguidas numa postura provocatória, depois de este se haver afastado.

Um camareiro acompanhou-o até ao salão e conduziu-o, por entre a multidão de servos, até à mesa principal. A sua passagem, as vozes e os ruídos cessaram, reduzindo-se em seguida a um murmúrio de excitação. Com uma condessa à sua direita e um bispo à sua esquerda, Isambard fitou-o por cima da mesa coberta de vitualhas, medindo-o da cabeça aos pés com um breve pestanejar dos seus olhos encovados, nos quais se acendeu um brilho de interesse. A saudação formal de Rhys foi acolhida com cortesia. A sua maneira bárbara, o homem enviado por Llewelyn tinha presença e sabia como responder aos cumprimentos dos príncipes.

- Lorde Isambard, o senhor Llewelyn, príncipe de Aberffraw e senhor de Snowdon, enviou-me como portador de uma mensagem respeitante ao futuro do seu filho adoptivo, Harry Talvace.

- Ah! - disse isambard, com um leve sorriso. - Sois o arauto de Harry, vindo para me assegurar o seu regresso?

- Não, senhor. Ele não precisa de arauto e não há necessidade de vos assegurar o seu regresso. Só cheguei aqui antes dele porque cavalguei durante toda a noite e, mesmo assim, ireis poder ver que não trago muitas horas de avanço. Ele não sabe que eu vim e é desejo do príncipe de Aberffraw que não o venha a saber. Fui enviado para vos propor mais uma vez uma oferta de resgate pelo jovem Harry. O meu senhor oferece-vos o preço de um conde. Dois mil marcos pela liberdade de Harry Talvace.

Os nobres sentados à mesa principal sustiveram respeitosamente a respiração e observaram com curiosidade o rosto de Isambard, que se mantivera numa imobilidade contemplativa, ligeiramente irónica. O canto da sua boca moveu-se um pouco para cima, no trejeito oblíquo que assinalava os seus momentos de leve divertimento.

- Lamento não poder aceitar a generosa oferta do príncipe.

- Sendo assim, senhor, fui encarregado de vos dizer que o príncipe de Aberffraw está disposto a considerar qualquer preço que queirais fixar pela liberdade de Harry Talvace... e não somente em dinheiro. Nomeai o que desejais dele e eu transmitir-lhe-ei fielmente a vossa mensagem.

- Lamento profundamente desapontar o príncipe - replicou Isambard. - Mas não há nenhum preço, em dinheiro ou em quaisquer outros bens ao seu alcance, que o príncipe possa oferecer-me em troca de Harry Talvace. Não nomearei nenhum preço nem aceitarei nenhum que ele possa nomear, seja em terras, falcões ou gado. Contento-me em ficar com o que possuo.

Rhys ap Tudor ergueu o queixo.

- Não desapontais nem surpreendeis o meu príncipe. Ele pediu-me para, no caso de recusardes, como ele mesmo disse que por certo faríeis, vos transmitir outra mensagem.

- Transmiti-a pois - convidou tranquilamente Isambard. - Aqui mesmo, diante de todas estas testemunhas. Assim, elas ficarão a conhecer a mensagem e a resposta. A menos que desejeis que falemos em privado,

- Não, senhor. Não poderia haver melhor lugar. Senhor, o príncipe pediu-me que vos dissesse cara a cara que, a seu tempo, quando puder fazê-lo, sem ofender os seus deveres sagrados nem a palavra dada, é sua intenção vir buscar Harry Talvace em armas. E jurou que, quando esse dia chegar, conquistará e destruirá Parfois para o vingar.

O murmúrio de consternação e nervosismo que percorreu o salão fez estremecer as tapeçarias verdes e douradas. De Guichet aproximou-se de Isambard e disse-lhe algumas palavras iradas ao ouvido e alguns dos cavaleiros mais jovens puseram-se de pé. Afectados pela ignomínia do longo período de inacção em Painscastle, espicaçados pelo acordo que permitia que o príncipe de Aberffraw conservasse todas as suas conquistas, de bom-grado aproveitariam aquele pretexto para fazer em bocadinhos um galês. Mas Isambard endireitou a cabeça, varreu-os a todos com um dos seus olhares autoritários, levantou a mão num gesto controlado e delicado e eles voltaram a sentar-se nos seus lugares, de boca calada. A ameaça que conseguia exprimir com um simples estalar de dedos era digna de ser vista.

- Devo ao príncipe uma resposta à sua mensagem - disse, em voz neutra. - Mas, antes de vos transmitir essa resposta, não quereis sentar-vos connosco para comer e beber? Já não estamos em guerra e não precisais de haver escrúpulos por aceitar a minha hospitalidade.

- Agradeço-vos, senhor, e peço-vos perdão por não aceitar, não por má vontade mas porque me foi dito que devo sair de Parfois antes da chegada de Harry Talvace, para que não seja por mim que ele fique a saber da minha presença aqui. E isso significa que não devo cruzar-me com ele no caminho. Cabe-vos a vós, senhor, decidir o que fazer mas, pela minha parte, devo obedecer às ordens que recebi. Dai-me a vossa resposta e permiti-me que parta.

- Então, apresentai os meus respeitosos cumprimentos ao príncipe e dizei-lhe o seguinte: «Vinde quando vos aprouver e levai-o convosco, se fordes capaz. Até lá, conservá-lo-ei são e salvo para vós.»

Rhys ap Tudor ajustou o cinto, colocou o manto sobre os ombros e respirou fundo de satisfação prudente, pois poderia haver conseguido menos para levar consigo e, daquilo de que agora dispunha, saberia tirar o melhor partido.

- Transmitirei de bom-grado a vossa resposta, senhor - disse. - Porque, mesmo entre os vossos inimigos, senhor, é sobejamente sabido que sois um homem de palavra.

E, pronunciadas estas palavras, em voz bem alta e enfática, apresentou as suas saudações cerimoniosas e abandonou o salão de Parfois, ignorando os olhares rancorosos dos jovens homens de armas, como um homem de vistas largas ignora as moscas.

Para Harry, o momento mais penoso foi quando chegou ao local onde o caminho bifurcava. Para a esquerda, ficava o carreiro estreito que serpenteava pelo bosque, ao longo do Severn. Seguiu em frente, passando por ele mas, mau grado seu, a mão que segurava as rédeas ficou mole e Barbarossa, sentindo a sua indecisão, abrandou.

A menos de uma milha, por aquele carreiro, ficava a cabana de Robert. Ao longo de todo o trajecto a partir de Llanflhangel, no Kerry, que lutava consigo mesmo para expulsar Aelis dos seus pensamentos. Mas a imagem dela voltava constantemente a assaltar-lhe os sentidos, como uma música que não conseguimos esquecer, como o gosto de um fruto maduro de um Verão distante, agora mais doce que nunca, de uma doçura irreal sobre a língua. Não queria pensar nela, mas ela impunha-se na sua memória. O encontro com ela, naquela noite de Verão, fora tão breve mas, mesmo esse pouco, fora roubado ao tempo de que dispunha para cumprir o dever, em nome do qual fora expressamente libertado. Havia sido menos escrupuloso, ao roubar um pouco do tempo que devia a David. Então, porque havia de hesitar em roubar só uma hora a Isambard?

Todavia, não era capaz. Tirar aos amigos, com a certeza de que estes não guardarão rancor por isso ou mesmo por mais, é uma coisa, mas, com um inimigo, é preciso pagar tudo até à última moeda. Em especial, quando se é o guardião de duas almas e duas honras e se retoma o cumprimento de uma provação relativamente à qual a mais ínfima indulgência seria uma pobre reparação.

Harry não virou a cabeça: não queria olhar para o pequeno carreiro entre as árvores, onde a passagem de alguns pés - entre os quais talvez os dela - transformara a fina camada de neve em gelo escuro. Aproveitara tão pouco a companhia dela! Umas escassas semanas de camaradagem despreocupada a que, na sua falta de bom-senso, não soubera dar o devido valor e, depois, apenas algumas migalhas de tempo, estragadas por segredos e reticências que não havia conseguido evitar. Até aquela única noite de Junho lhe parecia agora maculada pela sua incapacidade de lhe contar a verdade sobre a sua liberdade condicional. Como fora insensato quando lhe prometera voltar, sem lhe explicar nada, pedindo-lhe que confiasse nele, sem se dar conta de como o seu regresso iria ser sinistro e duro. Deveria haver-lhe contado tudo. Talvez fosse difícil ela entender, talvez houvesse tentado dissuadi-lo de respeitar a palavra dada. Mas, pelo menos, ela haveria ficado a saber que ele se sentia obrigado a fazê-lo e haver-se-ia esforçado por aceitar e suportar o seu conceito de dever. E agora, porque lhe faltara a coragem para falar, ela ia esperar que ele voltasse, conforme prometera, e quem sabia quanto tempo passaria até poder cumprir essa promessa? Ela não sabia de nada e ficaria triste, pensando que ele se esquecera ou que nunca tencionara voltar. E ela estava ali tão perto!

O sólido conforto que o príncipe lhe dera não ia valer-lhe de nada neste caso. Os fios que ligavam o seu coração a Builth e Aber haviam ido sendo desenrolados, milha após milha, atrás de si, até ao momento em que quase lhe arrancavam o coração do peito, dando depois lugar a um vazio doloroso. Todavia, por maior que fosse a dor que aquele presente duro lhe causava a si mesmo e a eles, fora-lhe dada a garantia absoluta de que aqueles que deixara para trás o compreenderiam e continuariam a amá-lo.

Mas quem iria explicar o seu gesto a Aelis? Ninguém sabia que era preciso fazê-lo. Ninguém sabia do beijo imprevisto, sobre as ervas altas do cercado, que despertara neles uma febre inesperada que os assustara, levando-os a separar-se e a correr para dentro da casa, em busca da segurança e da contenção que a presença de Robert representava. Ninguém conhecia a beleza que despontava em Aelis, nem aquilo que ela representava para ele. Até àquele momento, nem ele mesmo sabia o valor que lhe dava e, agora, para manter a integridade da sua alma, não podia ir ao encontro dela.

E não foi. Fez estalar as rédeas sobre o pescoço de Barbarossa, cravou-lhe as esporas nos flancos e seguiu em frente. O mais fino e delicado dos fios que levava presos ao coração começou a desenrolar-se, dilacerando-lhe o peito, numa dor progressivamente mais forte. Cada passo parecia ser o último que era capaz de suportar, sem que aquele fio se quebrasse com um golpe seco, deixando-o a sangrar até à morte.

Apesar disso, jarda após jarda, continuou a avançar: até ao fundo da rampa sombria onde o caminho ia desembocar, até ao local onde o arvoredo era mais cerrado e, finalmente, até junto às torres de vigia. E o fio de angústia não se quebrou e a dor não se tornou intolerável. Então, porque continuava a suportá-la e a ser capaz de avançar, sentiu-se simultaneamente consternado e consolado e compreendeu de uma maneira um tanto vaga que, afinal, não há nada que não sejamos capazes de aguentar.

Do alto das torres, os guardas mandaram-no parar e, sensível às flechas que, das seteiras, lhe eram apontadas ao peito, Harry obedeceu humildemente à ordem e, quando eles assim disseram, fez Barbarossa avançar a passo. Então, dentro de si, embora sem se quebrar, a tensão abrandou e Harry experimentou uma espécie de repouso: a partir daquele ponto já não podia voltar atrás e o enorme peso da possibilidade de escolha fora retirado dos seus ombros.

Quase esperara que, depois de ser reconhecido, o levassem sob escolta, mas parecia que haviam recebido ordens relativas à sua chegada, pois deixaram-no passar sem hesitação e percorrer sozinho o resto do caminho. Harry subiu a passo a longa rampa ladeada de árvores. À direita e à esquerda, para lá das árvores, o terreno descia a pique. Estava a subir a península verde suspensa sobre o vazio, em direcção à ilha de pedra, onde ninguém poderia chegar até ele. E, agora, mesmo que quisesse, não podia voltar atrás.

As folhas e os ramos das árvores emitiam um sussurro seco e frio, o fino tapete de neve estalava e escurecia sob as ferraduras de Barbarossa e o vento gelado penetrava nas pregas do seu manto, fazendo-o tremer. Era apropriado voltar a Parfois no Inverno, quando não havia flores, nem rebentos, nem plantas de cultivo, nem sementes activas: apenas um longo sono, do qual alguma coisa poderia despertar, apenas quando Deus assim o decidisse. Harry não podia acreditar, não queria acreditar que uma estação inteira pudesse desembocar no nada.

O dia estava a chegar ao fim, naquele crepúsculo precoce e plúmbeo que precedia a festa do Natal. Quando chegou à esplanada, a ponte ainda estava descida e a luz vermelha e trémula das tochas de pez acesas no interior do arco da porta do castelo parecia fazer ondular os pilares cruzados do vão, dando-lhes o aspecto de uma escada para o inferno. Mas, em frente, ainda ligeiramente cintilante contra o céu invernal, erguia-se a silhueta apaziguadora da igreja. Agora, talvez pudesse roubar alguns minutos ao tempo do seu carcereiro. Encontrava-se dentro dos limites do castelo, a sua promessa estava prestes a ser cumprida e, uma vez que não tencionava renová-la, depois de haver franqueado a porta, aquele tesouro criado pelo espírito do seu pai e seu refúgio deixaria de estar ao seu alcance.

Desmontou e deixou Barbarossa a pastar na erva gelada, enquanto esperava. Deu a volta à argola da porta Oeste e entrou silenciosamente. A luz quase desaparecera por completo, mas sempre podia tocar e sentir aquilo que já não podia ver. E, para rezar, os olhos não fazem falta.

A forma sombria e nobre da nave, que o crepúsculo estava prestes a engolir, preservava ainda o volume, de que o espírito se apoderava avidamente. Harry seguiu em frente, ajoelhou-se diante do altar-mor, balbuciou uma prece pela mãe e, por um momento, foi invadido por uma desolação tal que quase não conseguia respirar.

Então, no fundo do seu ser, acendeu-se uma chamazinha rebelde: abrira os olhos e, na obscuridade que envolvia o altar, mesmo diante de si, distinguira a forma do rosto de um anjo turbulento mas devoto, agarrado a um saltério e cantando apaixonadamente um hino em louvor a Deus. Era uma das nove imagens diferentes de Owen, ali esculpidas, entoando um concerto celestial. E, de repente, apesar do frio e da escuridão, a igreja encheu-se de risos e do amor com que mestre Harry esculpira aquelas crianças de pedra e, levado à apoteose, esse mesmo amor tocou e consolou a criança que habitava o corpo do jovem ali ajoelhado.

Afinal, não estava sozinho. Parfois era um local onde nunca poderia estar sozinho: a presença do seu pai pairava por todo o lado. A integridade do pai tornaria firmes os passos que ali desse e as obras do pai que o rodeavam profetizavam aquilo que as suas obras haviam de ser um dia. Os dois eram uma força única. Opunham a sua unidade ao ódio solitário e monumental de Isambard e, enquanto se mantivessem juntos, nada poderia abalá-los.

Com o espírito um tanto distraído e o coração perdido num estado de espanto e graça, Harry foi murmurando as suas orações.

- Enquanto estás de joelhos, diz uma prece pela minha pobre alma, Harry - sussurrou Isambard atrás de si, numa voz baixa e seca que ecoou pela nave. - É o mínimo que podes fazer, se pensarmos no perigo que me ameaçaria, caso pudesses dar a morte ao meu corpo de pecador.

Teria entrado tão silenciosamente que nem mesmo o roçagar das suas vestes ou o som dos seus sapatos sobre a pedra o havia traído? Ou estivera sempre ali, em algum canto, na penumbra, calado e sem se mover, talvez mesmo ajoelhado? Dizia-se que era um homem devoto, à sua maneira terrível. A sua voz erguera-se como uma espada e a consciência da sua presença, tão próxima e silenciosa, ali no escuro, provocou um arrepio em Harry. De um salto, pôs-se de pé, com a dignidade consciente de quem se sente observado e avaliado. A partir daquele momento, tudo quanto dissesse ou fizesse seria inflectido pela consciência do peso daqueles olhos pousados sobre ele. A maldade que nunca dera tréguas a seu pai, nem mesmo depois de morto, não mais se afastaria dele.

- A forma como respeitas as tuas promessas é digna de louvor, Harry - disse a voz suave. - Foste muito pontual.

Silenciosa como uma sombra, a figura alta e sombria de Isambard, emergiu da escuridão em que se encontrava mergulhada a nave lateral Norte.

- Vim tão depressa quanto me foi possível, senhor. Saí de Builth na manhã do dia seguinte àquele em que os nossos emissários regressaram de Londres. Estais satisfeito, senhor, por eu haver honrado o meu compromisso?

- Muito satisfeito, Harry... muito satisfeito.

- Assim sendo, considerarei haver redimido a minha palavra a partir do momento em que passar pela porta do castelo. Quero que saibais, senhor, que não tenciono voltar a dá-la.

Embora não as pudesse ver, Harry adivinhou as duas chamas vermelhas que se acendiam na lanterna de bronze daquela cabeça magnífica e o sorriso oblíquo que lhe repuxava os lábios. Melíflua e triste, a voz da tentação disse suavemente:

- Esta casa que ele te deixou, estas maravilhas que ele criou ficam fora de portas. E a fonte de conforto na qual matavas a sede ainda agora ficará também fora do teu alcance.

- Não tenciono renovar a minha promessa - repetiu Harry, espantado por ser capaz de dizer novamente aquilo, num tom tão neutro e determinado.

- Como queiras, Harry. Podemos entrar agora? Deves estar cansado e a ceia está à nossa espera.

Isambard poisou a mão no ombro de Harry e foi assim que ambos saíram da igreja.

- Os teus aposentos estão preparados e o teu trabalho e as tuas ferramentas estão como os deixaste. Pelo menos isso podes ter, dentro de portas. E a minha companhia, Harry, a minha companhia que tanto prezas, podes contar com ela todos os dias.

Constrangido, Harry libertou-se para ir buscar Barbarossa. Isambard não fez menção de o seguir nem de se aproximar. Ficou calmamente à espera.

- Vejo que vens preparado para uma longa estada - observou, quando os seus olhos descobriram a trouxa grande, presa atrás da sela. - O meu coração alegra-se por isso, Harry. Receava que estivesses cansado de Parfois, agora que és um homem conhecedor do mundo.

- Não desejo impor-vos o incómodo e a despesa de prover as minhas necessidades, senhor. Já é bastante haverdes de prover o meu sustento e bem gostaria de vos poupar a tal.

- És mesmo filho do teu pai! Ele não aceitava ficar em dívida fosse do que fosse e tu também não - comentou Isambard, divertido.

- Lamento que assim penseis, senhor - replicou Harry, que caminhava ao seu lado, com uma expressão muito séria. - Ia pedir-vos um favor, mas repugna-me estragar a imagem que haveis feito de mim.

- Pede, Harry, pede! Faz bem à alma correr novos riscos.

- Ia pedir-vos que cuidásseis de que alguém passeasse o meu cavalo, já que não posso ser eu a ocupar-me disso.

- Eu faria isso mesmo, por respeito pelas necessidades do pobre animal, Harry. Não precisavas de violentar a tua natureza. Não serás capaz de mostrar para contigo mesmo os cuidados que mostras para com a tua montada?

- Agradeço-vos, senhor - respondeu Harry. - As minhas necessidades são mais simples. Ficarei muito bem tal como estou.

A fonte de conforto não estava fora do seu alcance: Harry sentia-a tomar vida dentro de si. Sim, ficaria muito bem tal como estava.

Lado a lado, atravessaram a ponte levadiça, cujas tábuas estalaram sob os seus pés, e chegaram ao arco iluminado pelas tochas. Então, como que por mútuo acordo, pararam e olharam um para o outro. Harry observou o seu inimigo, vestido com uma luxuosa cota de veludo preto e um pelote bordado a fios de cobre e ouro: um imponente demónio cintilante. Isambard viu um rosto jovem e apaixonado, um rosto de homem, armado com dois olhos verdes e brilhantes, que o fitavam a direito, tão implacáveis como a espada que se recusara a enfrentar, na margem do Wye.

- Digna-te entrar em Parfois, Harry Talvace. Bem-vindo ao nosso convívio.

Lado a lado, deixaram para trás as tábuas ruidosas da ponte levadiça e entraram no túnel da porta do castelo, iluminado pelas tochas. Atrás deles, as roldanas foram accionadas e, com um ranger de correntes, a ponte levadiça foi erguida, isolando-os do mundo.

 

                                                                                            Edith Pargeter  

 

                      

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