Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RAPAZ DO FATO DE VELUDO / Michel Davet
O RAPAZ DO FATO DE VELUDO / Michel Davet

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O RAPAZ DO FATO DE VELUDO

 

Um misterioso gatuno entrava todos os dias em casa do velho coronel Fabien e roubava maçãs e bolos. Um dia, foi apanhado em flagrante: tratava-se de um rapazito esfomeado e andrajoso que viera de Itália para França em condições dramáticas. Estava-se no tempo de Napoleão. Em Nápoles, o rei Murat fora também expulso da corte; a estadia ali dos franceses perigava. A criança, que nada mais soubera dos pais - haviam ficado em Itália -, é recolhida pelo coronel e sua irmã, a menina Finette.

Espantosas aventuras se seguirão, até porque o rapazito era... uma rapariga.

 

UMA rajada varreu as folhas mortas do grande jardim despido, sem arvoredo; o pinheiro negro agitou-se e viu-se sair da casa, como no momento preciso em que os relógios antigos dão horas, três pessoas que caminhavam com ar nobre atrás umas das outras: um idoso coronel do Império, de sobrecasaca verde-garrafa, uma dama corcunda embrulhada num xaile de ramagens e, após ela, arvorando um chapéu de chuva, um homem de suíças que devia ser o criado. Fecharam o portão e afastaram-se em direcção a um velho campanário que se via ao longe, no meio de arvoredo e de casas pequenas.

Nesse momento entreabriu-se a porta da estrebaria para deixar passar um rapazito escuro e de cabelo encaracolado como o S. João Baptista da lenda. O garoto olhou prudentemente em volta e correu para as traseiras da casa. Era um rapaz dos seus dez anos; o fato de veludo azul, que certamente deveria ter sido elegante, mostrava-se agora em estado lastimoso; e muito magro tinha o que quer que fosse de amedrontado, de esfomeado, de perseguido. Havia ainda palha nos seus cabelos e nas rendas da gola.

Deitou uma olhadela para as janelas do rés-do-chão e, deliberadamente, como quem conhece os hábitos da casa, empurrou uma porta envidraçada e entrou na cozinha com uma mistura de respeito e de ávida impaciência. Era uma vasta e boa cozinha que cheirava a baunilha e a chouriço. O garoto correu para a gaveta. Parecia conhecer perfeitamente todos os segredos da casa: ali o armário do pão, aqui o chouriço e aquela cafeteira de leite morno na prateleira... Bebeu mesmo da cafeteira e, descobrindo uma pilha de coscorões quentes em cima de um pano branco, devorou dois ou três à pressa. A seguir cortou uma enorme fatia de pão que acompanhou com um reconfortante pedaço de chouriço e meteu tudo no grande saco de senhora, com fecho de prata, que levava à ilharga como se se tratasse de uma bolsa de caça. Seguro assim das suas provisões para a noite, com o olhar mais brilhante, aventurou-se até à casa de jantar cujas pratas e os cristais ele via brilhar numa penumbra agradável. O patifezinho entrou ousadamente, viu maçãs numa fruteira, meteu duas no saco e esfregou uma terceira contra o joelho antes de a devorar; caminhava, de cabeça erguida, como se estivesse num museu.

A casa era sombria e fresca, o tipo de casas provincianas do século passado, elegantes, discretas, bem esfregadas, cheias de retratos de antepassados em trajo de baile de cor de amêndoa torrada.

Era a casa do coronel Fabien, um velho coronel do Império que as desgraças de Napoleão - o seu deus - lançara num calmo desespero. Retirara-se para ali com a ordenança de cabelos ruivos e a irmã, a menina Finette, que se consolava do celibato e da enfermidade fabricando encantadoras bonecas com miolo de pão...

O rapazito azul caminhava sozinho, gravemente, de sala em sala, sob os lustres de cristal da Boémia e os retratos de antepassados agaloados. Entrando na última sala, pareceu ébrio de encantamento. Tratava-se de uma espécie de oficina onde, sobre comprida mesa semelhante a um teatro em miniatura, um mundo de pequeninas personagens parecia aguardar o momento de entrar em cena. Havia ali dançarinos de minuete, de braços erguidos, rapariguinhas fazendo vénias, marquesas com vestidos de seda brocada e o desfile de um casamento camponês. As bonecas tinham a altura de uns vinte centímetros, com cabeleiras de estopa loura e o rosto delicadamente colorido. A criança deteve-se longamente na sua contemplação, divertiu-se a fazer dançar a noiva e a passear as pessoas de carruagem; depois, sentindo-se cansada, estendeu-se no leito de uma alcova dissimulada atrás de um biombo. Quantas noite e noites sem dormir numa verdadeira cama!... Já não sentia coragem para pensar nem para desconfiar. Passados dez minutos, dormia.

Uma porta bateu algures na casa e alguém começou a cantar com voz roufenha do outro lado do biombo. Primeiramente espantado, com o espírito confuso, o rapazinho acordado ergueu-se, sem contudo compreender: mas logo o medo se apoderou dele. Ai estava apanhado como uma lebre imprudente, como um ladrão. No fim de contas, não passava certamente de um ladrão, pois que havia já três dias que se infiltrava na casa desconhecida para roubar leite e chouriço. Que castigo mereceria este pecado? Decorrido um momento, decidiu no entanto meter a cabeça fora das cortinas de sarja castanha da alcova e viu, à luz amarela de um grande quebra-luz com galão de pérolas, a velha senhora corcunda que brincava com as bonecas de pano.

- Ta! ia! tá! - dizia a menina Finette com voz aguda - Senhor duque, sois um belo conversador e eu sou uma jovem criatura demasiado modesta para escutar os vossos cumprimentos sem corar...

A porta abriu-se de súbito. A menina Finette voltou-se em sobressalto:

- Como, és tu, Flor? Na verdade, pensei que dez cossacos invadiam o quarto. O jantar está na mesa?

- Não, menina, o jantar não está na mesa disse o homem em voz sinistra. - Venho simplesmente preveni-la que o ladrão voltou. Será bom verificar as jóias e a bolsa.

- Meu Deus! Meu Deus! - exclamou a idosa senhora, descendo dificilmente do alto tamborete em que estava empoleirada. - Que nos irá acontecer? Esta vida de proscrito é impossível. Quem nos diz que "eles" não estão escondidos em qualquer armário, esperando a noite para nos degolar?

Depois de terem saído, não se ouviu qualquer ruído. A criança saiu e encontrou-se no patamar. "Depressa, depressa, desçamos a escada e fujamos. Mas no meio da bela escada parou terrificado: sentado no último degrau, o criado com cicatrizes, de boné vermelho, encerava as botas do seu coronel, cuspindo-lhes. O homem voltou-se ao ouvir passos e os olhos arredondaram-se-lhe. Ficou um instante perplexo e mudo; depois corou e atirou-se em perseguição do pequeno maroto descoberto com o mesmo antigo ardor com que corria para as batalhas.

- Ah! Malandro! Boémio! Filho de cossaco! Agora nós!

A criança voltara a subir precipitadamente os três degraus e corria, berrando de terror, por entre os grandes cadeirões dos quartos às escuras. A perseguição durou algum tempo, numa confusão de cadeiras caídas, de bater de pés e de gritos; mas eis que o garoto lobriga uma porta, corre outra vez direito às escadas. Numa espécie de vertigem, entrevê em baixo o coronel e a menina Finette, espantados, de cabeças erguidas; o pé saltou o degrau, caiu, numa queda que parecia não ter fim e ficou inanimado no ladrilhado preto do rés-do-chão.

Quando reabriu os olhos, estava deitado num canapé da sala de jantar. A sala cheirava bem a sopa de abóbora, mas a criança deteve-se neste perfume apenas uns momentos; sentia doer-lhe a cabeça e as ideias confusas. Que lhe sucedera? Pouco a pouco, retomando consciência, o medo apoderou-se dele; os rostos inclinados para o seu eram rostos dos juizes e dos carcereiros. Gemeu.

- Graças a Deus, volta a si! - exclamou a voz aguda, um tanto teatral, da menina Finette. - Dói-te alguma coisa, meu filho?

A criança abriu os olhos mas não se atreveu

a responder.

- Não te faremos mal; não somos maus para as crianças, mesmo para os que comem os coscorões nas cozinhas dos vizinhos, se elas pedem gentilmente desculpa... Queres um copinho de licor para dar-te forças?

- Dá-lhe antes caldo ou sopa doce - resmungou o coronel com o seu terrível bigode. - É muito simplesmente uma criança com fome.

Ouviram-se fungadelas precipitadas e o garoto começou a chorar encostado à manga, sem fazer ruído.

- Ai, ai! - disse a menina Finette, enternecida -, porque é esse desgosto? Ah! Désiré, adivinho um drama secreto no rosto e nas lágrimas desta criança.

- Nada de ternuras e de romances pueris, Finette! - resmungou o veterano. - Dá de comer ao pequeno desconhecido, e Flor o acompanhará até ao carro dos saltimbancos seus pais.

A criança mostrou o rosto e parou de soluçar por um momento.

- Não sou saltimbanco, senhor, sou apenas uma criança que se perdeu. Há muitas crianças perdidas depois da guerra.

- Fala bem - murmurou a menina Finette secretamente encantada, - mas tem um tom cantante que não é cá do sítio.

- Venho de Itália - disse o pequeno desconhecido. - Aconteceu-me toda a espécie de desgraças. Chamo-me Dominique, mas a mamã chamava-me apenas Minet-Joli.

- Tudo isto me parece um tanto estranho! resmungou o coronel com a sua bigodaça gaulesa. -'Lembro-me de uma história deste género que acabou em sangue: alguns bandidos, servindo-se de um garoto como diversão enquanto pilhavam a casa. Flor, meu rapaz, olho bem aberto!

- Désiré, não tens a mínima delicadeza. Esta criança está vestida de veludo e tem um rosto triste e distinto que me enternece o coração.

- Obrigado, senhora - disse o garoto com amabilidade. - Não sou filho de saltimbancos; meu pai era cirurgião do rei de Nápoles e vivíamos na corte.

- Folhetim! - resmungou o coronel. - Vulgar folhetim... Mesmo assim dá uma tigela de caldo a esse miúdo e lava-lhe as mãos.

Passeou pelo quarto, de ponta a ponta; era visível que desconfiava. Os antigos oficiais de Napoleão, pelo menos os que se lhe conservaram fiéis apesar dos seus erros e da sua derrota, tinham razão em ser prudentes. A pressão nos monárquicos vencedores era cruel; passavam-se muitos dramas nas campanhas entre os partidários de Napoleão e os realistas que sofreram sob o seu regime.

A História deu a essa época de desordem e de violência o nome de Terror Branco.

- Aceito ouvir a tua história - disse. - Vejamos se és digno de interesse e se mereces um pouco de indulgência. Começa!

O garoto, espantado com aquela ordem que rolava como um ruído de tambor, tossicou para aclarar a voz e começou gentil e inocentemente a sua história:

- O meu pai é um grande cirurgião. O rei Murat, que reina no país de Nápoles, mandou-o chamar porque nasceram quase na mesma vila daqui.

- Conheço esse malfadado país! - resmungou o coronel. - Sim, um país malfadado de febres e de macarrão.

- 'Éramos muito felizes - prosseguiu o garoto.

- A mamã tinha vestidos para dançar na corte e o papá ganhava muito dinheiro...

- Sim, todo o dinheiro do Imperador passava para os vestidos e para as recepções da brilhante corte do seu cunhado, sabemos isso.

- Mas o papá não dançava - continuou o garoto ingenuamente. - Tratava dos doentes. E depois, um dia, houve as grandes desgraças do Imperador e as pessoas da corte de Nápoles tornaram-se inquietas. O papá queria mandar-nos para casa da avó, a mamã e a mim, mas a mamã não quis deixar o papá. Contudo os Italianos tornaram-se muito maus para os Franceses instalados lá na terra deles.

- Detesto esse rei Murat! - berrou o coronel, levantando-se na escuridão que invadia a sala.

- Ingratidão, ambição, traição! Continua.

- Eu não sei bem o que se passou - prosseguiu o garoto com voz meiga. - Confiaram-me a um velho criado e partimos para vir para casa da avó que mora numa grande cidade daqui. Simplesmente, fomos roubados numa estalagem; tivemos de andar a pé dias e dias até que o pobre Cirilo morreu na berma da estrada. Corri a chamar gente. Disseram-me que morreu de uma doença do coração. Ao morrer, recomendou-me que não me fiasse em ninguém e tentasse chegar a casa do coronel Fabien que ficava a quatro quilómetros do sítio em que estávamos, porque ele tinha conhecido o coronel Fabien na batalha de Leipzig...

- Como se chamava esse pobre homem? perguntou o coronel, interessado.

- Cirilo Mouly.

- Espera, deixa-me recordar... Sim, na verdade, tive um soldado com esse nome na batalha de Leipzig. Pobre rapaz! Então, que fizeste, sozinho pela estrada?

- Chorei muito - disse o garoto com voz melancólica, - agarrei nos papéis e na trouxa e segui um homem que me mostrou o caminho.

- Bem! - disse o coronel. - Abandono a minha desconfiança. Contudo, gostaria de saber porque entraste em minha casa como um ladrão em vez de tocar à campainha, muito simplesmente?

- É que... Peço-lhe desculpa, senhor, mas o homem que me acompanhou disse-me que...

- Que quê? Queres falar ou não?

- Que o senhor tinha mau feitio! E que detestava em especial as crianças.

- Ena, ena! Por toda a parte a denúncia, a difamação e a injúria... É verdade que tenho mau feitio, rapaz, mas nunca me faltou coração nem honra. Então, que fizeste?

- Escondi-me na vossa cavalariça, senhor. Dizia sempre comigo: "Esta noite, bato... ", mas como o ouvia ralhar, não me atrevia.

- Eu não ralho! - berrou o coronel, com ar de quem se preparava para combater. - Apenas berro sozinho, para meu prazer. E berro mais forte de manhã do que à noite, porque de manhã leio o Constitucional e as notícias do país dão-me volta ao sangue.

- Explica-te mais docemente - suplicou a menina Finette. - Fazes mal a ti mesmo, Désiré. Toda a aldeia te toma por um espantalho... Vê lá tu, meu filho, o coronel, meu irmão, é o melhor coração do mundo, apesar das suas cóleras. E essas cóleras vêm sempre de se sentir profundamente infeliz com os desaires do exército e com o exílio de Napoleão... Falaremos deste assunto um dia destes. Por agora, vamos lavar-te da cabeça aos pés e preparar-te uma boa cama.

- Como se chama a tua avó, pequeno?

- É a mulher do senhor Rousselin, que foi notário em Gramat.

- Muito bem. Pediremos informações e far-lhe-emos saber, a partir de amanhã, que estás aqui. Foste um rapaz corajoso e infeliz. Ajudar-te-emos na medida das nossas possibilidades.

- Obrigado, senhor.

- Chama-me coronel. Sou, antes de tudo, soldado. E aquele gigante é Flor, o meu impedido. Vai levar-te para a cozinha para te lavar, pois deves bem ter necessidade disso.

A criança continuava estendida no divã. O rosto tomou-lhe um ar de extraordinária angústia e a menina Finette viu que ela se agarrava à coberta de repes vermelho.

- Estou habituado a lavar-me sozinho, senhor - disse com energia. - Não gosto que me ajudem a lavar.

- Tá, tá, tá! Não estou a ver um miúdo como tu a esfregar vigorosamente a cabeça e as costas. Viajando há mais de um mês em condições difíceis, deves ter crosta como um velho ermita. Flor, leva-me este homenzinho.

O criado com nome de mulher avançou balouçando os braços, mas no momento em que se preparava para agarrar o garoto, este defendeu-se a pontapé, socos e infantis ameaças. O seu rosto exprimia furor, um terror sem nome.

- Deixa-me ir embora! - gritava/ - Não quero que me lavem. Não quero que me dispam. Se me tocar, grande bruto de nariz partido...

- Tem mau feitio! - disse o criado placidamente.

- A criança está nervosa e cansada - comentou a menina Finette com gentileza - e explica-se isso. Flor, deixa-o, eu tratarei dele.

A criança agarrou-se às saias da velha senhora. Estava estranhamente pálida e sacudia-a um tremor convulsivo.

- Porque não queres que este homem te lave? - perguntou o coronel, em tom severo. - Tens medo da água? Serás delicado como uma rapariga? Tenho especial horror às raparigas. Vamos, boa noite, porcalhão! Espero que dormirás mesmo assim e que não deixes muitos parasitas na nossa roupa.

Saiu com ar carrancudo. A criança olhou para a menina Finette e, de repente, levantando-se nas pontas dos pés, agarrou-se com um dos braços ao pescoço da senhora e segredou, durante muito tempo, qualquer coisa ao seu ouvido. A menina Finette franziu os grandes e redondos olhos azuis.

- Ah! Meu Deus, pobre criança! - disse tomada de espanto. - Ah! Meu pobre Minet-Joli.

E pegando na mão do garoto, agarrou o candeeiro. A velha casa voltou ao seu recolhimento e à sua escuridão.

FLOR partiu num velho cavalicoque para a cidade de Gramat que ficava distante dali uns trinta e cinco quilómetros, levando uma palavra do coronel para a avó do garoto. Só regressou na manhã seguinte, porque o cavalo estava atacado de pulmeira e a estrada muito cheia de escolhos. Murmurou as notícias que deviam ser aborrecidas, pois a menina Finette ergueu os braços ao céu e o coronel começou a andar ao longo da sala, enquanto reflectia.

- Meu pequeno - disse, - tenho uma má notícia para dar-te. A tua infeliz avó morreu há três meses. A casa está fechada. Parece que a tua família não tem mais parentes na região.

O garoto olhou sucessivamente a menina Finette e o velho militar, com ar assustado e interrogador.

- Então? - perguntou timidamente.

- Bem! - disse o coronel cofiando o bigode. - Por agora não sei que

- dizer-te, meu rapaz, a não ser que é bem triste perder a avó. De resto, não deves inquietar-te; não voltaremos a deixar-te dormir na estrebaria.

- Agradeço-lhe, senhor.

- Vou escrever ao notário encarregado dos negócios da tua família, para que os teus pais saibam onde encontrar-te, se voltarem mais cedo do que se pensa. Portanto, vou tentar saber a sua morada, mas é bem de recear que as mensagens não lhes cheguem às mãos; o país de Nápoles está em revolução; o rei Murat foi forçado a abdicar, e só Deus sabe dizer o que esses malfadados italianos vão fazer dele.

Minet-Joli olhava para o jardim com ar meigo, recordando-se da luz, dos cachos dourados de uma ruazinha azul que descia em direcção ao mar e dos tocadores de guitarra a bordo das tartanas atracadas. A menina Finette, adivinhando a sua melancolia, pegou-lhe na mão e levou-o dali.

- Vou mostrar-te o meu pequeno reino - disse. - Tenho a certeza que ficarás encantado.

E levou-o para a casa das bonecas.

A partir de então a grande alegria, a melhor recompensa para a criança era o jogo das marionetas. Mostrava muitas ideias e muita habilidade, Anunciou ao coronel que se, por desgraça, os pais

 

Embarcações usadas no Mediterrâneo. (N.T.

 

tivessem perdido a fortuna na Itália, estava pronto a auxiliá-los a ganhar a vida, fabricando também bonecos. O coronel resmungou por entre a bigodaça.

- Brincadeira de mulher desocupada! - disse severamente. - É possível que minha irmã seja senhora de um certo génio para esse género de divertimento, mas um rapaz deve ter outras ambições. Voltaremos a falar disto. Tenho já um programa de trabalho para ti.

O programa de trabalho do coronel era severo. A criança era inteligente, porém distraída; a sua natureza arrastava-a mais para as artes e a fantasia do que para as Matemáticas. Por vezes, na sua frente, os bigodes do professor eriçavam-se; a voz ganhava-lhe volume com as imprecações ininteligíveis e Minet-Joli começava a tremer como um esquilo em frente de uma raposa. O coronel, sem o adivinhar, tomava a peito o seu novo papel; achava nestas lições remédio para a amargura e a falta de ocupação; o feitio parecia abrandar-se-lhe. Contudo, um belo dia, à hora do estudo, Minet-Joli não apareceu; o coronel procurou-o por toda a casa e achou-o muito simplesmente a colar cabelos na cabeça rapada de uma boneca da menina Finette. À sua volta, a mesa estava juncada de lantejoulas, de pérolas, de pedaços de seda e de lamé de ouro brilhante...

O velho resmungão soprou com desprezo por aquele ar de feminilidade e de delicadeza e cruzou os braços com ar furibundo.

- Aqui está a ocupação de um rapaz! - disse com furor redobrado. - Aqui está com que preparar a geração para a desforra de Waterloo! Enquanto esperamos, o nosso Imperador geme no calabouço... Não estás aniquilado pela vergonha?

A criança corou um pouco, mas afirmou corajosamente que não tinha alma de guerreiro. Preferia vestir bonecas do que manejar o sabre ou a espingarda.

- Raça de mulherengos! - resmungou o velho senhor. - Estamos num país que é uma vergonha! cahi muito baixo! Muito baixo! Abandona essas parvoíces e põe-te na posição do soldado em frente do seu chefe.

Minet-Joli levantou-se sem pressa, deixando a descoberto o colar e os braceletes de pérolas vermelhas que tinha no pescoço e nos pulsos. O coronel avançou a cabeça, procurou à pressa as lunetas, como alguém a quem a falta de vista induz em erro.

- Será a falta de vista que me engana, senhor, ou levou o mau gosto até atafulhar-se de continhas de rapariga tola? Por Deus! Não me engano: este rapaz de onze anos usa colar, pulseiras e não sei mais quê de ridículo nas orelhas... A atmosfera da corte de Nápoles deve ter-lhe sido fatal e não me espanta isso. Aos vinte anos será o que se chama um peralvilho, meu rapaz! Desonra o seu pobre pai! Vamos, acautela-se!

Alguns dias mais tarde, Minet-Joli não tinha sabido a lição de Latim e infelizmente ainda agravou o caso com uma resposta torta; o coronel resolveu castigá-lo.

- Meu pai chicoteava-me por muito menos que isto, senhor. Neste momento substituo os seus pais, sou uma espécie de seu tutor e reconheço-me o direito de o castigar.

Saiu atirando com a porta e voltou com um velho chicote de várias pernas, como ainda se via nas salas de estudos. e nos colégios no ano passado.

- Deite as calças abaixo, senhor! O medo do chicote é o começo da sabedoria, como dizia o meu preceptor.

Minet-Joli permanecia de pé, com os braços caídos, em frente do velho irascível, e parecia não compreender bem o que o ameaçava.

- Nunca me chicotearam em casa, senhor coronel - disse em tom suplicante.

- Bem vejo! Direi apenas que é um erro da parte do seu digno pai. Só a chicote se fazem grandes homens. Avance um pouco.

Minet-Joli tornara-se pálido e recuava lentamente para o fundo da sala.

- Não deixarei que me toque - disse com voz ainda implorante e infantil.

Contudo, quando o velhote o agarrou rudemente pelo ombro, a imploração receosa tornou-se em verdadeiro grito de terror. A mão do militar era mão de ferro; o seu rosto curtido, com cicatrizes, onde brilhava um olhar de uma limpidez de poder vingador, tornava-se máscara ao mesmo tempo trocista e imperturbável onde a criança assustada não via já a habitual e familiar bondade. Começou a tremer e a balbuciar frases incoerentes, ao mesmo tempo que punha as mãos.

- Palavra de honra - disse o velhote surpreendido e cheio de desprezo -, não tem mais dignidade que um cachorro. Envergonha-me. Quando tinha a sua idade, teriam podido bater-me até à morte antes de me arrancarem um pedido de perdão. Tire as calças, já lhe disse.

Então, bruscamente, Minet-Joli parou de gemer. Voltou a cabeça em rápido movimento e mordeu a mão que lhe segurava o braço. Foi tão rápido, tão inesperado o gesto que o coronel não pôde reprimir uma praga. A criança conseguira libertar-se e corria para o fundo da sala.

- Não receio ser castigado se o merecer - disse corajosamente, - mas não suportarei ser chicoteado. É um gênero de tratamento bom para o Antigo Regime.

- Ora vejam esta resposta! - disse o coronel, pasmado. - Vejam este professorzito que se atreve a julgar um veterano da Velha Guarda cuja vida foi toda heroísmo e dignidade... Pois bem, rapaz! Em vez de dez chibatadas, terás vinte. Foi o que ganhaste.

Agarrou bruscamente Minet-Joli pela cintura, ergueu-o como se fosse um brinquedo e, segurando-o debaixo do braço, preparava-se para lhe administrar uma magistral tareia quando a porta se abriu e surgiu a menina Finette, alarmada.

- Désiré! - gritou, juntando as mãos em prece. - Que se passa? Porquê todo este barulho?... Ah! Meu Deus! Não vais tomar a liberdade de bater numa criança sem pais? Désiré, é uma vergonha...

Avançou para o coronel e começou a puxar o garoto pelos ombros. Este agitava-se e dava furiosos pontapés no ar.

- Désiré - continuou a velha senhora, com firmeza, - põe o garoto no chão. Tenho qualquer coisa a dizer-te a seu respeito. Este garoto... Meu amigo, deixa que te diga uma coisa: este rapaz... pois bem! este rapaz é simplesmente uma rapariga. Não se chicoteia uma rapariga. Graças a Deus, nunca fui chicoteada.

O coronel pareceu não compreender inteiramente, contudo abriu muito os olhos.

- Que me dizes, Delfina? E porque te pões a berrar como se eu fosse surdo?

- Porque nas tuas cóleras de possesso pareces nada ouvir. Digo-te que Minet-Joli é uma rapariga, mais nada... mas para comodidade da longa viagem que fez, os pais decidiram vesti-la de rapaz.

- Ridículo romance! - resmungou o velhote.

- Em que podemos ter confiança, se as crianças e até a nossa própria irmã se juntam para nos enganar?

E saiu com passo apressado e furioso, para voltar logo.

- E tu? - perguntou a Minet-Joli. - Porque mentiste desde o primeiro instante, juntando esta falta de entrar em minha casa como um malfeitor?

- Disseram-me que o senhor detestava as crianças, senhor, e sobretudo as raparigas...

- Não te enganaram. Peralvilhas! São todas umas peralvilhas! Pobre França perdida! Pobre Imperador sem império!

As lições de História, de Francês e de Geografia tinham recomeçado e a estas se juntavam lições de aperfeiçoamento de equitação. Minet-Joli aprendeu até, vagamente, o tiro ao alvo, o que a divertia muito mais que as lições de bordados da menina Finette. O coronel decidira tratá-la como se fosse um rapaz, a fim de despertar nela o gosto pelas armas e o respeito devoto do seu deus prisioneiro no rochedo. Assim se passaram meses; o carácter do velho militar melhorava dia a dia e o seu afecto pela pequena protegida assemelhava-se muito simplesmente à admiração beata, a vulgar, a cega fraqueza de um avô.

Nesse intervalo de tempo, no reino de Nápoles davam-se terríveis acontecimentos; o rei Murat fora uma das primeiras vítimas da revolta dos Italianos. Ninguém conseguia saber o que acontecera aos pais de Minet-Joli; as cartas do coronel haviam ficado sem resposta. Pelo contrário, um belo dia um desconhecido levou-lhe uma missiva que pareceu mergulhar o velhote em profunda preocupação.

- Meu pequeno - disse, olhando Minet-Joli com ternura, - creio que vais ter de nos deixar.

- O papá e a mamã vão chegar?

- Infelizmente não, mas há uma prima da tua mãe que soube que estavas connosco e nos manda dizer que deseja encarregar-se de ti, visto que não tens parentes mais chegados.

- Mas não a conheço.

- Ela dá-me toda a casta de esclarecimentos e, de resto, a carta vem acompanhada de uma palavra do notário de Gramat. Não há dúvida de que essas pessoas têm direitos sobre ti, direitos que nós não temos.

- Contudo - disse Minet-Joli, - suponho que tenho o direito de escolher viver aqui ou noutro lado?

- Não, pequeno, não tens outro direito senão o de obedecer.

- E se por acaso são más pessoas? Se não puder gostar deles?

- Não há razões para que sejam maus e não mereçam amor, visto que te reclamam para junto deles. É prova evidente do seu interesse por ti.

No dia seguinte, um carro de madeira castanha parou, com grande barulho de molas enferrujadas, em frente do portão verde do coronel. O irmão e a irmã tomavam o café no terraço, ao sol, enquanto Minet-Joli regava os tufos dourados das bordaduras. Todos três levantaram a cabeça, espantados, ao verem surgir uma cabeça de mulher com uma touca de palha lilás e grandes fitas esvoaçantes, entre os batentes do portão. O coronel avançou, mas a desconhecida já tinha aberto o portão, sem esperar, e entrava deliberadamente na ruazinha do jardim. Era alta e magra, com ar de cabra disfarçada. Perante aquele rosto de bruxa, os olhos inquiridores, as luvas pretas, um pressentimento terrível apertou o coração de Minet-Joli. "Tu és aquela que me vem buscar para levar-me sei lá para onde, e não será para felicidade minha!" A garota olhava para o regador que tinha na mão, sem fazer um gesto, ao mesmo tempo que a impaciente desconhecida avançava pelas rodelas de sol que atravessava as folhas da roseira do caramanchão.

- bom dia, minha senhora. bom dia, senhor. Entro sem bater e peço por isso desculpa. Adivinham o motivo da minha visita? Sou a prima da infeliz Isabel Rosière, a mãe da criança caída do ninho, se ouso exprimir-me assim. Como continuação da minha carta de há dias, venho travar conhecimento com o meu jovem e infeliz sobrinho...

- Ah! - resmungou o coronel. - Sinto-me muito honrado, minha senhora. Esta é minha irmã, a menina Finette, e eu sou o coronel Fabien. Naturalmente, coronel do Império.

- Que epopéia! Que drama! Simplesmente, que quer, nem sempre posso chorar... Onde está a criança? Onde está o meu infeliz sobrinho?

Descruzou as mãos calçadas de negro e mudou de expressão para fitar com olhar vivo, terrivelmente agudo e investigador, o terraço, a casa modesta mas encantadora sob as roseiras e cujo interior bem encerado se entreviu.

- Antes de beijar a criança, quereria regular com o senhor, coronel, algumas questões práticas - disse, inclinando o imponente vestido preto. - Trazia com ela algum dinheiro? Suponho que, sim, dada a situação dos pais.

- A criança não trazia um chavo! - respondeu o coronel com brusquidão - De resto, ela própria vos relatará a sua penosa viagem.

- Ah! - disse a dama, escondendo mal a decepção que sentia. - Nesse caso... Nesse caso quer dizer que lhe devemos as despesas feitas com ela?

- Não se trata disso. Antes de tudo, uma palavra, senhora: não quero deixar que persista nu mesmo erro em que me fizeram laborar nos primeiros dias: o rapazinho é, muito belamente, uma menina.

A senhora pareceu espantada, vagamente chocada.

- Mas não é o rapazinho que vi além, por entre as árvores?

O coronel contou-lhe de que forma a pobre Minet-Joli fora obrigada a continuar a ser rapaz, uma vez que era rapariga. A senhora aprovou com a cabeça. Tudo o que representava economia não podia deixar de ter a sua aprovação.

- Oh! Tem razão, razão absoluta, senhor coronel. Indignar-se-á quem quiser. Pelo preço que estão a lã e a fazenda, nesta altura, não podemos divertir-nos a cortar vestidos inconsideradamente. Posso chamar a pequena?

Foi preciso que Minet-Joli se decidisse a ir cumprimentar e travar conhecimento com a senhora; porém não conseguiu encontrar um sorriso ou uma palavra amável; aquela desconhecida com perfil de cabra

desagradava-lhe estranhamente sem que Conseguisse saber porquê.

- Sou a tia Amada - disse a senhora. - Venho buscar-te. Temos um colégio de rapazes, um colégio muito moderno, no género inglês. Percebem o que quero dizer?

- Bem! - resmungou o coronel que odiava os Ingleses.

- O aborrecido - prosseguiu a senhora com preocupação - é a presença de uma rapariga no meio de jovens turbulentos... Mas diga-me: não poderei continuar o disfarce, deixando a nossa pequena Dominique com o seu trajo de rapaz? É ainda bastante nova para que isso possa ofender as conveniências...

- Bem! - resmungou o coronel.

Passeava de um lado para o outro, de sobrolhos carregados o cachimbo entre os dentes. Era visível que aquela ruidosa desconhecida lhe desagradava, que se sentia cheio de apreensões quanto à existência que aguardava a criança a quem tão depressa se tinha afeiçoado. A menina Finette, como sempre silenciosa, vagamente assustada, dizia apenas sim, sim, com a cabeça.

- Voltaremos a falar no caso com meu marido - disse a senhora. - É um homem sabido, ponderado, sempre de bom conselho, um notável director de escola... Vamos, meu filhinho, tens de fazer a trouxa e dizer adeus ao generoso coronel e à sua digna e meiga irmã. Nada tens contigo, nem uma bolsazinha com dinheiro?

- Não - respondeu Minet-Joli -, roubaram-nos na estalagem e tivemos de deixar as nossas coisas como penhor, para que nos deixassem partir.

- É aborrecido! - comentou a dama com indignação. - É aborrecido! Então vens assim, sem camisa, sem calças para mudar, sem um par de meias sequer? Mas quem é que tem a ideia de deixar-se roubar! Tal nunca me sucedeu... Enfim, Heitor ocupar-se-á do problema dessa mala. Beija os teus amigos.

Não cessara de falar, de agitar as mãos, de vigiar com o olhar as janelas da casa. A sua voz de trombeta enchia o jardim. Minet-Joli fitou os velhos amigos com verdadeiro desespero.

- Preferia não me ir embora, se isso não a aborrecesse, minha senhora. Já se habituaram a mim, aqui, enquanto que lá em sua casa, posso arriscar-me a importuná-los...

- Tá! tá! Vejam como fala bem! Mas, minha pequena - ou meu pequeno, já nem sei! -, pensa que foi apenas por caridade que o senhor coronel se encarregou de ti. Um coronel reformado não tem vulgarmente grandes proventos, sobretudo com o saldo reduzido...

- Esse problema não se põe de forma alguma - disse o coronel com a sua mais sombria voz. - De boa vontade ficaremos com a garota, se isso lhe parece possível, digamos aceitável. Acha, na verdade, que seja seu dever levá-la?

- Oh! - respondeu a senhora, empertigando-se toda com um sorriso forçado. - Tenho demasiado sentido do dever, coronel, para não considerar a minha sobrinha como se fosse minha própria filha.

Minet-Joli, desconcertada, desesperada, sentiu-se abraçada, apertada contra o corpete espartilhado da menina Finette e os botões de soldado do coronel, depois arrastada até à carruagem de madeira castanha. O carro rolava já quando voltou a si; diante do portão entreaberto da casa, o bondoso coronel, a menina Finette e Flor que segurava ao ombro a gata branca, diminuíam, diminuíam, como três estátuas aflitas que erguessem as mãos.

Ninguém falava e a estrada enchia-se de sombra. Minet-Joli, enrolada num cobertor que cheirava fortemente a excremento de cavalo, fora instalada na parte detrás do carro, entre sacas de grão e cestos cheios de cebolas. Quatro frangos atados pelas patas cacarejavam desesperadamente e batiam as asas contra a perna da garota. Esta não ousava chorar, nem fazer perguntas, nem dormir. A sua nova tia estava sentada ao lado do cocheiro e não voltava a cabeça. Mantinha-se muito rígida e o chapéu de fitas amarelas abanava a cada solavanco.

Muito tempo, muito tempo depois, o carro parou, guinchando com todas as suas molas ferrugentas. Estava escuro e um cão uivava; o pátio onde os cavalos escarvavam dir-se-ia um grande poço. Minet-Joli pôs a cabeça de fora e sentiu-se de súbito erguida por dois braços possantes, sem ternura, que a depuseram, como se fosse um brinquedo, numa poça de chuva, num limiar sem luz. A tia Amada agitava-se no meio dos cestos e das galinhas.

- Segue-me, menina - disse, avançando. - E se tens medo de cair, - agarra-te ao meu vestido, no entanto sem puxar muito.

Afastou-se a senhora por um corredor que cheirava a bolor. Muito longe brilhava uma lamparina cuja chama tremeluzia. Ouvia-se, algures, um ruído estranho que Minet-Joli acabou por explicar quando passou pela porta entreaberta que dava para uma vasta sala de jantar vagamente iluminada: era o ruído de dezoito colheres raspando a comida dos pratos; os pensionistas da senhora Amada Tournerond tomavam a refeição da noite, à luz de três velas que fumegavam. A rapariguinha conseguiu ver um semicírculo de caras magras e inclinadas, que lhe pareceram mais feias, mais vorazes que todas as dos rapazes que até então encontrara. Teria ela de partilhar as suas vidas? Tinham a aparência de jovens cães ferozes e esfomeados. Esqueceu a própria fome e, sem pensar mais largou o pedaço de vestido que segurava. A dona da casa, apressada, preocupada, indiferente, perdeu-se no corredor e depressa Minet-Joli viu que estava sozinha nesse túnel que levava talvez a qualquer masmorra ou alguma cave mal ventilada. Avançou às apalpadelas, assustada, desamparada, dificilmente retendo as lágrimas. Uma curva levou-a até uma segunda porta entreaberta por onde se atreveu, prudentemente, a meter a cabeça: numa cozinha atravancada, extraordinariamente cheia de fumo, uma feiticeira inclinava-se para um fogão negro. A seu lado rosnavam dois cães cujos olhos vivos brilhavam de curiosidade no meio de um matagal de pêlos sujos. Seriam na verdade cães ou animais saídos de um pesadelo? A rapariguita reteve um grito e afastou-se a toda a pressa, perseguida pelo cheiro de toucinho rançoso e de cebola refogada. Contra a parede esbarrou com uma sombra imóvel; julgou tratar-se primeiro de um casaco de pele ou qualquer abafo pendurado.

- És tu, Cabeça de Lobo? - murmurou uma voz infantil, um pouco rouca. - Não consegui apanhar as maçãs; levaram a escada... Fujamos! Fujamos! Vai haver sarilho!

Alguém a empurrou; não teve tempo de perceber o que se passava.

Ouvia-se o andar autoritário da senhora Amada que fazia ranger, no escuro, uma escada invisível.

- Dominique! - chamou a sua voz impaciente. - Onde te meteste, minha filha?

A senhora avançou empunhando uma luz amarela. Segurou a pequena pela mão e levou-a.

A sala onde entraram parecia mais uma enorme despensa ou quarto de criada de uma casa de campo: duas camas de ferro, uma bilha com água em cima de uma mesa em frente de um pedaço de espelho do tamanho da palma da mão, duas cadeiras grosseiras e paredes sem tapeçarias. Embora estivessem no mês de Maio, o quarto era frio e lúgubre.

- Para as primeiras noites dormirás ao lado de uma criada que tratará de ti. É boa rapariga... Há um grande armário na parede para pendurares as tuas coisas... Meu Deus! já me esquecia que nem sequer tens uma camisa contigo! Mas, minha pobre filha, que faremos? Os tecidos estão por um preço exorbitante...

A senhora Amada deixou-se cair numa cadeira, cansada e aborrecida e pareceu reflectir enquanto desfazia os laços do seu chapéu lilás.

- Ouve - disse, forçando-se a uma amabilidade que não lhe estava visivelmente nos hábitos -, em resumo é preferível que continues a ser rapaz. Espero que o facto não te aborreça demasiado?

- Não, mesmo nada - declarou Minet-Joli, conciliadora.

- Isso arranjaria extraordinariamente as coisas! - prosseguiu a senhora Tournerond. - Poderia vestir-te os fatos demasiado acanhados ou postos de lado por alguns desses jovens que crescem muito depressa e nada gastaríamos com o teu vestuário.

- Sim - disse outra vez a garota, com tristeza.

- Está combinado. És uma menina razoável e muito inteligente, graças a Deus, para teres já o gosto dos ornamentos e dos folharecos. Mas não te esqueças de guardar bem o teu segredo, mesmo para com as criadas.

- Sim - suspirou Minet-Joli pela terceira vez.

- Minha tia, deverei ir às aulas com todos esses rapazes?

- Não, claro que não. Não sairias de lá viva. São rapazes em geral indisciplinados e, embora a maior parte venha de excelentes famílias, são verdadeiros rufias quase todos. Porque isto é mais uma casa de correcção do que um colégio vulgar... Penso que deves ter sono. Começa a despir-te, deita-te e a grande Aurora trará o teu jantar. Podes deixar a vela acesa nesta primeira noite.

- Obrigada, minha senhora.

- Não me trates por senhora. Sou a tua tia Amada. Amanhã travarás relações com teu tio, o senhor Tournerond. Vamos, boa noite, pequena. Toma muito cuidado com o teu fato, pois não tens outro; põe-no com cuidado nas costas de uma cadeira, quando te deitares.

Uma hora mais tarde, um andar pesado sacudiu a escada e a porta abriu-se devagarinho. Minet-Joli não se mexeu; dormia já, vencida pela fadiga, depois de haver chorado durante muito tempo. Aproximou-se do leito uma rapariga enorme, de rosto cor de presunto, que segurava com uma das mãos um prato de cozinha com queijo de cabra e com a outra uma grande malga de leite. Olhou a criança durante um minuto, chamou a meia-voz e depois, sem mais insistir, sentou-se em frente da bilha de água e sentiu-se no dever de devorar o magro jantar que lhe não era destinado. Foi neste momento que a pequena, semi-acordada, abriu os olhos surpresos e contemplou durante muito tempo, sem logo compreender, aquela giganta de cor vermelhusca gulosamente inclinada para o pedaço de queijo. A vela chorava e cheirava mal; a luz agitada fazia dançar na parede ursos disformes e fantoches. Minet-Joli julgou ter um pesadelo; gemeu vagamente, murmurou o nome da mãe e voltou-se para o outro lado.

Foi a primeira noite passada em casa de sua tia Tournerond.

Acordou ao ouvir trautear, em voz baixa e monótona, uma canção que, pensando bem, lhe pareceu tão estúpida quanto o enorme rosto da rapariga que cantava. Entrava pela janela um dia sem sol, triste e pardo como ela e só conseguia aumentar-lhe a fealdade malévola.

A criada chamada Aurora penteava-se apressadamente diante do pedaço de espelho partido. A sua altura era impressionante e o rosto de um louro albino tinha na verdade um cor-de-rosa extraordinário, um cor-de-rosa de sol nascente, rosa cor de presunto, rosa de espuma de compota... Os marotos do internato tinham-lhe posto o nome de Aurora por causa das suas faces vermelhuscas. E quanto a inteligência, não parecia ter mais do que uma criança de dez anos.

Minet-Joli olhava-a por entre os cílios, sem se atrever a chamá-la. Aquela enorme mulher impressionava-a, assim como o tom lúgubre da canção eternamente recomeçada:

 

       Toinette, Toinon,

       Entornaste a bilha

       A bilha de leite

       A bela bilha de leite

       A bela bilha de leite morno...

 

A rapariga tinha cabelos compridos, lisos e louros, tão compridos que escondiam até metade a camisola e as engraçadas calças de tecido áspero que quase lhe chegavam aos tornozelos. Era uma criatura tão estranha que Minet-Joli, da cama, longe de divertir-se ou apenas sentir-se tranqüila com a sua presença, mergulhou a cabeça debaixo da roupa e começou a chorar devagarinho. Que génio mau se lhe agarrava à adolescência? Ia de mal a pior, de medo em medo.

Decorrido um momento, os soluços abafados de Minet-Joli tornaram-se tão lamentosos que a gigante Aurora se voltou e aproximou-se da cama com espanto. Era grotesca, mas o seu rosto respirava a estupidez doce e honesta.

- O senhorzinho está acordado? - perguntou. - E chora por não ter que comer?

- Não - disse Minet-Joli entre dois soluços -, não tenho fome; quereria deixar esta horrível casa.

- Mas que fazer para deixar esta horrível casa, se a senhora Amada o trouxe para cá viver sempre? Tem de ficar onde os pais e o bom Deus o põem, meu franganito.

- Não é verdade que o bom Deus me tenha posto aqui, foi antes o demónio.

- O demónio? Oh! Que estou a ouvir? - perguntou a grande mulher levando as duas mãos à boca num gesto de verdadeiro terror. - Será que... será que tem pacto com o demónio, na sua idade?

Minet-Joli não respondeu a esta parvoíce e recomeçou a chorar docemente. O dia tornava-se radioso. Adivinhava-se que devia haver pedaços de céu límpidos, jardins cheios de perfumes, de matazinhas e de abelhas, lá em baixo, para além das paredes cor de teia-de-aranha daquela prisão... A garota não cessara ainda de chorar quando a porta se abriu para dar passagem à grande Aurora carregada com uma malga de leite e um pedaço de pão.

- Aqui tem a comida - anunciou em tom triunfante. - A senhora Amada manda dizer que não se esqueça da oração, antes de se vestir.

Contudo, o rosto branco e desolado da garota deve tê-la comovido, porque se sentou na borda da cama para a ver comer, da mesma maneira que se olha, com terna curiosidade, um gatinho salvo da ribeira ou uma andorinha caída do ninho.

- É um senhorzinho de grande família, segundo me disse a senhora Amada, e tem em casa uma carruagem e um castelo. Diga se é verdade?

- É um pouco verdade - respondeu a garota, suspirando. - Éramos muito felizes.

- E os seus pobres pais perderam tudo e o menino veio sem um escudo para pagar a comida.

Com um único fato e um só par de sapatos para o ano inteiro. Diga se é verdade?

- É também um pouco verdade - suspirou Minet-Joli. Entretanto, acrescentou, erguendo-se:

- Mas eu estava em casa de amigos muito gentis que gostavam muito de mim e me queriam conservar com eles. Se a tia se lamenta da minha pobreza, bastava que me tivesse deixado em casa deles. Estava muito melhor do que aqui.

- Infeliz! - disse a rapariga, compadecida.

- Que quer, as coisas são assim e não podem ser de outra maneira, uma vez que a senhora Amada assim decidiu. Talvez amanhã já cante porque, na vida, a tudo nos habituamos.

Satisfeita com a sua filosofia e eloqüência, Aurora pegou na malga vazia e aconselhou Minet-Joli a vestir-se e a lavar bem o pescoço. Depois de tudo pronto, a senhora Amada iria apresentá-la ao senhor director.

- Que barulho é este que se ouve? - perguntou a garota, intrigada.

- Pobrezinha, é o tambor que chama os alunos para o trabalho de escrita. Também a si ensinarão a escrita e toda a espécie de coisas extraordinárias.

- Já sei escrever e ler, naturalmente - respondeu Minet-Joli com desdém.

- Oh! Brincalhão, quer fazer-me acreditar coisas! - disse a rapariga a rir muito. - É preciso ser mais alto e mais gordo para se tornar um sábio... Vamos, vou descer para descascar batatas e tratar dos porcos. Temos oito porcos, mas os ratos devoraram dois pequeninos, o que fez o senhor Director morder-se de raiva. Foi um prejuízo.

Quando Minet-Joli foi apresentada ao senhor Director, julgou reconhecer nele o pequeno sacristão feito de miolo de pão do cortejo de casamento fabricado pela menina Finette. Era a mesma figurinha de doninha, a mesma calote de seda brilhante e os mesmos olhinhos de pérola atrás de lunetas postas na testa. Somente este era uma pessoa terrivelmente viva e, mal se pôs a falar, apagou-se a recordação da menina Finette.

- Sé bem-vinda, jovem sobrinha - disse o senhor Tournerond com dignidade, tirando as lunetas de ouro. - Minha mulher disse-me que, para maior comodidade e economia, vivias como se fosses um rapazinho e acho isso muito engenhoso. Neste colégio de rapazes será, a meu ver, muito mais conveniente. Estes rapazes de cuja educação me ocupo - difícil, difícil! - são por vezes extremamente grosseiros nas suas conversas e turbulentos. Far-te-iam sofrer mil mortes se soubessem que és rapariga.

- Mas, senhor, deverei ficar na aula com eles?

- Não, bem pesado tudo, é preferível que te abstenhas de ir para lá. Direi ao pessoal e aos conhecidos que és de saúde delicada. Diz-me, o teu infeliz pai vivia na verdade no palácio do rei de Nápoles?

- Oh! Sim, senhor, estava ligado ao serviço de Sua Majestade.

- Ah! Ah! - disse o senhor Director, cheio de respeito. - Devia ser magnífico. Sabes que o rei Murat era desta região, e nada menos que filho de um estalajadeiro? Ele próprio foi cabeleireiro antes de ser general de Napoleão.

- Sim, senhor, meu pai contou-me essa história.

- E que lição devemos tirar daí, minha filha? Vou dizer-te, primeiro, que a audácia e a ambição podem levar-nos à maior sorte...

- Sim, senhor.

- Segundo, que não é demais ser-se prudente, económico e desconfiado. A meu ver, Sua Majestade o rei Murat foi um fanfarrão e um perdulário.

- Talvez tenha razão, senhor - respondeu polidamente Minet-Joli.

- É indiscutível. Estou a ver o homem que ele era aos dezasseis anos: escuro e encarapinhado como um negro, mas com bela figura... Quem me chama aí? Vamos, meu jovem amigo, dou-te licença para visitares a casa. Trata bem dos sapatos e do fato, naturalmente.

Minet-Joli deixou-o sem bem saber o que pensar. À primeira vista, o senhor Tournerond, mais inteligente e mais malévolo que a mulher, produzia melhor impressão e a inocência da rapariguita podia deixar-se enganar com certo ar de bonomia por detrás do qual se dissimulava uma poderosa e terrífica personalidade. Passou a manhã a vaguear pelos caminhos abandonados, fazendo projectos infantis e impossíveis de fuga.

Quatro dias passaram, e Minet-Joli não deixara ainda de chorar. Sofria à noite, quando ouvia os ratos correrem sob o leito e Aurora ressonar como um velho asmático; sofria pela manhã, quando o dia turvo entrava no quarto para iluminar a pobreza e a estranha rapariga de cabelos de bruxa, inclinada para o espelho partido; sofria à refeição do meio-dia entre aqueles dois velhos de lábios apertados; sofria à tarde; sofria na solidão do crepúsculo... Minet-Joli não tinha qualquer contacto com os rapazes do Colégio e contentava-se em olhá-los de muito longe, vendo-os jogar à bola sob as tílias ou perseguirem-se aos gritos como jovens selvagens. Metiam-lhe muito medo os rapazes; por isso num dia em que os cruzou no corredor, quando eles se dirigiam em filas para o refeitório, fez-se muito pequenina contra a parede. Os rapazes troçaram, ao vê-la; um deles pisou-lhe os pés, outro cochichou-lhe uma maldade, um terceiro

fez-lhe uma horrível careta. Quase todos tinham caras de estúpidos ou de sonsos; os dois desgraçados criados que se ocupavam deles deslizavam furtivamente atrás daquelas fileiras em desordem, com ar medroso, vagamente longínquo. A casa era uma morada imensamente grande, resto de um mosteiro antigo ou até de uma antiga leprosaria, bastante sinistra de aspecto. A aula, o refeitório e o dormitório ficavam no rés-do-chão; as janelas estavam munidas de grades, como prisões. Quando havia necessidade de chicotadas ou reguadas nos dedos era sempre o senhor Director quem se encarregava da tarefa. Aquele homenzinho de aspecto untuoso e aprovador, que constantemente esfregava as mãos, tinha uma força física extraordinária, mas passava também por excelente professor. Minet-Joli preferia-o à tia Amada, cuja brutalidade lhe metia medo. Tomava as refeições com eles e dificilmente comia; quando os rapazes se levantavam para agradecer a Deus a refeição que acabavam de engolir, na sala ao lado, o ruído dos seus sapatos ferrados fazia-a estremecer. Durante o dia, a garota não era vigiada e andava por onde bem lhe parecia através do campo. Assim passou o mês de Maio. O encantador fato de veludo azul tornava-se esverdeado; um dia, a manga do casaco prendeu-se ao fecho de uma porta e rasgou-se; foi esse o primeiro motivo de cólera da senhora Amada. Fez à garota um discurso cheio de azedume. Através das censuras era fácil adivinhar que a grande preocupação dos Tournerond, marido e mulher, era o dinheiro. Todos os pensamentos, todas as inquietações e para além destes, os mínimos gestos da sua vida estavam dependentes deste problema. Para ambos, a menor despesa tornava-se um drama, uma tragédia... Desde esse dia, Minet-Joli vivia no terror de ver gastar-se as suas únicas e desgraçadas calças de veludo e os sapatos que, além do mais, começavam a estar-lhe pequenos.

Uma manhã, quando se entretinha a ver os rapazes jogarem a cabra-cega do alto da sua mansarda, por debaixo dos telhados onde arruinavam pombos bravos, a senhora Amada entrou furtivamente.

- Minha menina - disse, cruzando as mãos sobre o ventre, no gesto de matrona que lhe era habitual, - embora não queira contrariar-te em nada e nada te pedir em troca da nossa generosa hospitalidade, aconselhar-te-ei a que te tornes útil pois a preguiça é o pior dos males, seja em que idade for. Aurora ensinar-te-á a passajar as peúgas e, a partir de então, esse trabalho pertence-te.

Minet-Joli nada respondeu, mas pensou, furtivamente, que tal género de trabalho não estava no programa de educação de uma menina de onze anos. Se não estudasse mais, arriscar-se-ia a cair bem depressa numa ignorância que cobriria de vergonha os seus pobres pais e esta ideia atormentava-a. Contudo, aprendeu menos mal a fazer grosseiros remendos e, a partir desse instante, não mais teve uma hora para passear. Às vezes a tia chamava-a com uma voz particularmente amável e mudada: era para descer ao salão onde se sentava alguma senhora gorda ou o bom cura de Labastide, que usava horríveis lunetas no nariz. A tia murmurava para as visitas coisas que ela não percebia, mas que era visível dizerem-lhe respeito. Olhavam-na muito baixando o queixo, faziam-lhe festas na cara e, sobretudo, não poupavam elogios quanto à generosidade da bondosa tia que recolhera aquela criança sem dinheiro, sem sapatos, sem sequer uma camisa para mudar.

Uma noite, quando a garota subia ao quarto para se deitar e atravessava o corredor sem luz, viu que se dirigia para ela um grupo de rapazes que pareciam preparar alguma partida.

- Ah! - disse um deles, bamboleando-se grotescamente, - aqui está o sobrinhinho, o jovem senhor que cresceu entre mármores e rendas. Anda triste e pálido... Ouve, pequeno, não digo isto com maldade, pelo contrário, mas desejaríamos ter-te como camarada. Para te avisar, julgamos que poderias ser-nos de alguma utilidade por vezes; em contrapartida, terias em nós amigos dedicados. Queres fazer parte do nosso grupo?

- Mas - disse Minet-Joli, absolutamente terrificada, - não creio que meu tio permita.

- Não se trata de falar a teu tio, é evidente. Seria um segredo. Há segredos entre os miúdos como os há entre os adultos, pequeno medroso.

- Sim - disse a rapariga.

- Poderia julgar-se que vais desmaiar. Estarás doente?

- Não, não estou doente, simplesmente sou fraco.

Os três rapazes bateram nas coxas num acesso de formidável hilaridade.

- Vejam este bebê, esta menina! Queres que te diga o que pareces? Nem mais nem menos que uma menina disfarçada que nunca largou as saias da mamã.

- Deixei as saias da mamã, pois que vim sozinho da Itália, com um velho criado que morreu na estrada. Caminhei mais e tive mais aventuras na viagem do que vocês nunca tiveram, vocês que são pequenos camponeses.

- Que mentiras nos contas, fala-barato!

- E sei andar a cavalo como um homem e sei servir-me de uma espingarda e sei história, latim, geografia...

Os rapazolas estavam de boca aberta, demasiado desconfiados para ficarem imediatamente crédulos ou pelo menos admirativos e seduzidos por uma hábil maneira de falar. Minet-Joli, sentindo perfeitamente que a sua superioridade só lhe poderia vir da imaginação e da malícia, prosseguiu com ar importante:

- Meu pai é cirurgião do rei de Nápoles. Havia lá coisas maravilhosas, como nunca aqui verão, nesta região de Itália: palácios, barcos dourados, frutos chamados tangerinas...

- E porque não ficaste lá?

- Porque houve uma revolução contra o rei Murat. Os meus pais enviaram-me para cá mas irei ter com eles logo que me seja possível.

- Mas diz-se que os teus pais morreram!

Aqui, Minet-Joli perdeu de súbito a sua brilhante segurança e olhou para os rapazes com olhos cheios de medo.

- Quem disse isso? - murmurou, arquejante.

- Quem disse isso?

- Disse-o tua tia ao cura, diante de nós.

- Não é verdade! - gritou a garota. - Não é verdade. Ninguém sabe nada. O correio não vem de Itália, o meu amigo o coronel Fabien garantiu-mo.

- É sem dúvida maldade da tua tia - disse um rapaz impressionado pelo seu tom de desespero. - Estão sempre dispostos para a mentira e para a maldade. Não te inquietes então... Diz sim, bebê, queres fazer qualquer coisa por nós?

- Que posso fazer? - perguntou a garota em tom neutro.

- Podes ir tirar a chave da casa da fruta, que está na secretária do teu tio e, muito simplesmente ir metê-la na fechadura. É tudo e pouco difícil.

- Se me apanham, talvez me batam.

- 'Não te apanham; ficaremos de guarda e escolheremos o momento melhor.

- Trata-se de roubar maçãs?

- Oh! Roubar! Quando se é mal alimentado como nós somos, não se chama a isso roubar; é muito simplesmente um meio de não se morrer de fome, compreendes?

- Sim - respondeu Minet-Joli, pensativa, lembrando-se das maçãs e dos coscorões roubados em casa do coronel.

- És medroso - prosseguiu o rapaz, em murmúrio - mas pareces ter mais inteligência do que nós, embora sejas ainda um miúdo. Olha lá! Farás parte do grupo.

Minet-Joli não sabia se devia regozijar-se por aí além, mas no momento em que punha a mão na grande mão impaciente do aluno, abriu-se uma porta, voltou a fechar-se e os três grandes pássaros de sotaina preta fugiram a correr. A rapariga sentiu-se Intimamente satisfeita; apesar da solidão em que vivia e do seu desejo de amizade, só moderadamente se sentia atraída para aqueles rapazes de rostos vermelhuscos e espinhosos. De resto, eram muito mais velhos do que ela.

Minet-Joli dormiu mal, atormentada quanto ao destino dos pais e, na manhã seguinte, atreveu-se a bater timidamente à porta do escritório do tio para perguntar-lhe se era verdade ter ele recebido más notícias dos pais. O tio recebeu-a com uma aparência de bondade que a reconfortou.

- É verdade termos recebido notícias bastante tristes, minha filha, mas sou um homem realista e meticuloso que não se atem ao falatório de uns e outros. Não desesperemos.

Bateu na mão da garota, por cima da mesa e Minet-Joli pensou que certamente o tio era um homem de coração excelente, embora forçado a bater nos dedos dos rapazes com a régua de metal.

Enquanto pensava isto, o senhor Tournerond punha o seu chapéu alto cinzento, mandava atrelar o cavalicoque e partia para a cidade de Gramat, com o fim de falar ao notário. Precisava saber se a tutela da criança que lhe estava confiada não lhe permitia dispor de uma parte da sua fortuna. Porque ele não ignorava que a velha senhora Rousselin, aborrecida com a partida da filha para Itália, havia legado o seu ouro e os seus domínios à neta. Na verdade, após essa visita, foi nomeado um conselho provisório de família e o senhor Tournerond, tornando-se normalmente o tutor, podia à vontade dispor em parte da enorme fortuna da garota.

- bom dia! - murmurou uma voz nas costas da pequena.

Estava apoiada à cerca da horta e olhava ao longe os rapazes que jogavam ao eixo. Porque gritariam eles como se fossem canibais? A garota estremeceu. Um rapaz ruivo estava a seu lado. com as faces e as mãos sujas, era visível que acabava de dar razia às groselhas do pomar do colégio Tournerond. No fim de tudo, para fazer isto, era preciso uma certa coragem.

- bom dia! - respondeu a garota por sua vez um pouco timidamente. Mas logo acrescentou:

- Pensava que não tinham licença para virem até à horta!

- A sorte cabe aos audaciosos - disse o rapaz, encolhendo um dos ombros. - O senhor teu tio repete-nos isto durante todo o santo dia.

- Mas às vezes os audaciosos apanham chicotadas.

- Eu não. Escapo-me sempre. Por exemplo, se me vissem neste momento, diria... Que diria? Diria que me chamaste.

- Mas isso não é verdade!

- Não é verdade, mas tu não serias castigado porque és o sobrinho do director; então, como tens bom coração, não me desmentirias.

- Como sabes que tenho bom coração?

- Basta ver os teus olhos tristes e o teu rosto de rapariga. Pareces-te com a minha irmã Laurinha, é estranho. Diz-me cá, rapaz, estás inteirado da sorte dos teus pais?

- Não, nada sei.

- É pena - respondeu o outro, baixando a cabeça. - É muita pena e - fazes-me dó. Não há que dizer o contrário, a família é ainda o que há de melhor no mundo e só damos conta disto num dormitório triste e gelado, à noite.

- Sim - disse Minet-Joli, com os olhos bruscamente cheios de lágrimas.

- És novo - acrescentou o rapaz com segurança, - as coisas hão-de arranjar-se. É preciso não desesperar. Adeus, ponho-me ao fresco!

- Ouve - murmurou Minet-Joli, agarrando-o pelo braço, - tens a cara suja de groselhas; vão perceber logo que passaste pelo pomar... E depois, obrigado pelo que me disseste. Uma conversa amável faz sempre bem.

- És um rapaz sensível, bem o tinha adivinhado - respondeu o outro esfregando energicamente a cara. - É o que digo: pareces-te com a minha irmã Laurinha que tem sempre a lágrima ao canto do olho.

Fez um gesto de adeus rufião e sumiu-se, para voltar no minuto seguinte a aparecer por detrás do sabugueiro florido.

- Eh! - gritou. - Não me disseste como te chamavas.

- Dominique, mas a minha mãe chama-me Minet-Joli.

O rapaz desatou a rir:

- É mesmo o nome que convém à tua cara de bebê. Eu chamo-me Patrício, Patrício Maurin. Salve! Minet-Joli! se por acaso encontrares morangos quando passeares, faz um montinho e deixa-os por baixo da tília que está ao fundo do pátio dos alunos. Fico-te grato pela gentileza.

Muitas vezes, ao remendar as meias da casa - meias horríveis que nem já tinham calcanhares ou biqueiras- Minet-Joli sentia-se alegre ao recordar-se desta conversa e do rosto de Patrício lambuzado de vermelho. O rapaz era ruivo, não muito bonito, mas os olhos vivos eram inteligentes e bondosos. Havia quase um ano, desde que saíra de Nápoles, que Minet-Joli não encontrava uma criança da sua idade e este princípio de amizade reconfortava-a. Um dia, tendo acabado mais depressa que na véspera o seu estúpido trabalho, ocorreu-lhe a ideia de visitar o sótão da enorme casa. Não se ouvia qualquer ruído; o colégio andava em passeio e a tia Amada vigiava a lavagem da roupa, no pàtiozinho das cozinhas. Minet-Joli subiu em bicos dos pés os estreitos degraus que levavam ao sótão e passeou com curiosidade por entre a desordem e o mistério das poltronas esventradas, dos trapos espalhados, dos quadros de família pintados a pastel desbotado. Não era de resto um sótão muito poético; via-se por ali muito ferro-velho sem utilidade mas que o espírito da senhora Amada se recusava a deitar fora, muitos horríveis sapatos e botas, bacios sem fundo, etc. Mas nada de livros de valor com as bordas das folhas douradas, nem bonecas partidas como havia no encantador sótão da menina Finette... De repente, a garota recuou terrificada; muito perto dela, qualquer coisa ou alguém mexera e eis que uma voz cantava alegremente uma cantiga de roda das usadas nos conventos. A voz era tão fraquinha, tão trémula, que não podia de maneira nenhuma assustar. Minet-Joli contornou o grande móvel preto que lhe ficava próximo e achou-se numa espécie de reduto fechado por ouropéis suspensos. O dia que caía por uma clarabóia iluminava um catre com roupa em estado de limpeza duvidoso e uma virgem de madeira em cima de um escabelo. Uma mulher muito velhinha, embrulhada em lãs pretas, fiava aproveitando um magro mas caridoso raio de sol que dourava aquela ilustração de conto da "Bela Adormecida do Bosque".

- Quem está aí? - perguntou a boa mulher parando as mãos e a cantiga.

- Eu... sou eu. Chamo-me Dominique, Peço desculpa de incomodar, mas não sabia que alguém habitava o sótão.

- Ninguém o poderia acreditar, porque de facto não é crível - disse a velha, com uma espécie de bom humor que tranqüilizava. - Mas é assim. Chega-te um pouco, meu senhorzinho. Adivinho que és um aluno da escola lá de baixo.

A velhota tinha uma coifa e um fato à moda do século passado. Devia contar uns cem anos.

- Não sou aluna da escola - respondeu Minet-Joli com tímido respeito, - sou sobrinha da senhora Tournerond.

- A sobrinha da senhora Tournerond? E que sobrinha meu Deus? Conheço sabe Deus quem! toda a família, ou pelo menos conhecia-a em tempos que já lá vão e não vejo que sobrinha possa ser.

- Sou filha de Isabel Rousselim. Os meus pais ficaram em Itália. A senhora Amada quis que eu viesse viver com ela.

- A filha da Isabelinha? Ah! Meu Deus, compreendo. Mas a menina Isabel estava zangada com essa lá de baixo, bem me lembro. Toda a família estava zangada com essa lá de baixo, e juro-te que tinham razão para isso. Lembro-me bem da Isabelinha e do seu rosto redondo e rosado como um pêssego. Um dia, tinha ela um avental bordado muito lindo. Tratava-se de uma merenda de crianças. Pois bem, a tua tia Amada entornou de propósito a tigela de chocolate por cima do belo avental. Eu conhecia muito bem a Amada. Sou a sua ama. Eduquei-a.

A velha recomeçou a fiar a lã, mexendo o pedal do tear com o pé; parou uma vez mais e fixou a garota com o seu olhar vazio.

- Será que os meus olhos me enganam? Dizes ser rapariga e vejo-te com calções de veludo azul?

- É por economia, senhora. Vim para cá sem dinheiro e sem roupa.

- Economia! Economia! É a grande palavra da casa. É por economia que eu vivo como uma pobretona num sótão gelado, se bem que tenha oitenta e quatro anos e que os meus olhos e a minha saúde se tenham gasto ao serviço da família.

Resmungou ainda durante algum tempo e dirigiu a si mesma discursos bastantes difíceis de seguir.

- E dizes, Belazinha, que a senhora Amada te recolheu se bem que não tivesses dinheiro nem roupa? Que se passou na sua alma? Ter-se-ia tornado boa?

A velhinha começou a rir, com um riso estranho de sinozinho rachado; depois baixou a cabeça.

- Não deveria rir - disse com um estremeçãozinho. - Nada do que se passa nesta casa tem graça, e é grande infelicidade para ti estares separada da tua mãe. Mesmo assim, sais à Isabelinha que chorava porque os pombos não queriam comer-lhe nas mãos!...

A roda recomeçou a girar e a velha a cantarolar as suas canções infantis. De vez em quando parava a canção para contar uma historieta:

- Vê, minha amiga, apesar de todas as desgraças, devemos cantar. com certeza é isso que me mantém jovem. A menina Amada deve estar furiosa por ver que continuo a durar e que me tem de mandar a sopa todas as manhãs e o meu caldo de farinha aos domingos, mas não hei-de morrer para lhe dar satisfação.

A velha continuou o discurso num murmúrio sem fim de orações, Minet-Joli deu-lhe as boas-noites e desceu porque sentia frio.

Algum tempo depois, um homem em farrapos, com o rosto curtido devorado pela barba, bateu à porta do colégio Tournerond à hora em que se levantavam da mesa. Disse querer falar com a senhora Amada e que vinha de muito longe. A senhora pareceu muito agitada e correu para ele. O marido seguiu-a com mais comedimento.

O mendigo estava sentado no banco de pedra em frente da porta de entrada; parecia estafado, prostrado. A senhora Amada, contra seu hábito, mostrou muita compaixão perante uma tamanha miséria, agitou-se e gritou em voz alta para que a gorda criada lhe levasse pão e vinho.

- Mas, senhora Amada, não temos a chave do guarda-comidas.

A senhora Amada, nobremente, dignou-se incomodar-se. Minet-Joli olhava sem falar, e, por detrás das janelas gradeadas, os alunos e os dois professores olhavam também.

- Não venho mendigar, boa senhora - disse o desgraçado -, venho para fazer-lhe uma comunicação bem penosa. Sim, bem penosa!

A senhora Amada levou as mãos ao peito, no sítio do coração, e com os olhos em alvo pareceu chamar o céu em seu auxílio.

- Oh! Santa Virgem, tende piedade de nós! Fale, bom homem, fale!

- Venho de Itália - começou o mendigo, - venho mesmo dessa região de Itália que se chama o reino de Nápoles...

Minet-Joli estremeceu e avançou, em passos lentos, com os olhos ardentes e implorativos. A senhora Amada, a seu lado, juntava as mãos e continuava a suplicar ao céu, com perplexidade.

- Um dia - prosseguiu o homem - passava eu por uma aldeia quando vi um grupo de pessoas arrastadas pela cavalaria. A multidão seguia-as com gritos de morte. Aproximei-me com os outros e vi que esses infelizes eram franceses que iam ser decapitados. Na verdade, os soldados levaram os quatro homens, enquanto as mulheres eram alinhadas, de mãos ligadas, ao longo da parede de uma capela. A população ia e vinha, diante desses desgraçados, atirando-lhes injúrias e palavras grosseiras. Eu, que sou Francês pelo lado da minha mãe, podem imaginar como estava indignado e infeliz com a sorte dos meus compatriotas! Num dado momento, consegui aproximar-me da jovem senhora que estava à cabeça da fila e murmurei-lhe algumas palavras de consolação em francês. A senhora olhou-me com ar suplicante. "Senhor - murmurou muito depressa - se é um homem de coração, tenha piedade de mim; tenho um sobrescrito na algibeira do vestido. Tente apoderar-se dele. Trata-se de uma carta dirigida à minha mãe e à minha filha e algumas recordações... É o último adeus de uma pobre mulher que vai morrer... "

- Meu Deus! - gemeu a senhora Amada, com os olhos fechados de horror. - Aposto que era a nossa Isabelinha!

Com gesto afectuoso, mas um pouco teatral, puxou para si Minet-Joli, rodeou-a com o comprido braço e apertou-a nas pregas do seu vestido áspero. As criadas tinham-se chegado a escutar; os alunos esticavam os pescoços...

- Era uma senhora nova, morena e delicada - disse o caminheiro com ar prostrado.

Com gesto lento e solene, tirou da sacola um sobrescrito grande de papel de linho. A senhora Amada recebeu-o a tremer.

O homem prosseguiu:

- Fui primeiro a Gramat, onde me disseram que a velha senhora morrera. Ah! Pobre mundo, como é penoso ser um mensageiro de desgraça!

A senhora Amada tirou com respeito os objectos e a carta do sobrescrito.

- É, na verdade, o retrato de Isabel - murmurou. - É a sua letra e é, ai de mim! o rosto da avó Rousselin que vejo no medalhão. Reconheces estes objectos, Minet-Joli?

- Eu... não sei - respondeu a garota. - Já não me lembro. A mamã não costumava pentear-se assim.

Voltou para as pessoas que a fixavam, os olhos assustados, olhos aloucados de animalzinho apanhado na ratoeira. Uma dor imensa, uma dor quase física, como um prego espetado no coração, fê-la gemer sem que desse por isso. Seguiu-se grande silêncio. De súbito, a rapariguita apertou furiosamente os objectos contra o coração, olhou em volta e começou a correr o mais depressa que podia, para longe desses desconhecidos, para o jardim.

- Deixemo-la chorar, pobre orfãzinha - disse a senhora Amada, enxugando os olhos. - Vejamos, meus amigos, há destinos bem trágicos! Beba vinho, bom homem. A sua dedicação merece bem ser recompensada.

Voltou-se e, vendo as criadas de braços caídos e os rapazes de boca aberta nas janelas, dispersou-os com um gesto do braço.

- Todos ao trabalho! - disse, voltando à habitual aspereza da voz. - Não sou daquelas que se deixam ir ao sabor de um desgosto visível e indecente. Fechaste a porta do galinheiro?

E tudo reentrou na ordem. Sozinha, Minet-Joli, deitada num canto do pomar não queria, não podia pensar que a vida iria continuar.

QUANDO Minet-Joli acordou, sob a macieira, o crepúsculo era já de um

cor-de-rosa ardente para lá das colinas pedregosas do Causse. Nenhum ruído vinha da casa de cuja fachada austera se via apenas um lado. Sob as ameixoeiras, as abelhas e os besouros voltejavam em redor das primeiras frutas caídas. Mas o desgosto da garota não adormecera com ela. Encontrou-o, como um animal feroz à espreita, com o sentimento, agora sem esperança, de estar prisioneira dessa casa de avareza sórdida e de maldade. Contemplou o fato velho que vestia, sacudiu um pouco a poeira e recomeçou a chorar ao lembrar-se da sua partida de Nápoles, quando a mãe lhe alisara uma última vez, com o dedo, a golazinha, recomendando-lhe que fosse corajosa e prudente nas dificuldades que poderia encontrar.

A garota chorava ainda quando uma parte do muro do pomar se desmoronou ruidosamente a seu lado. Deu um grito: um rapaz negro e ruivo rolava até junto dela com uma cabriola. Esfregou a cabeça e levou de maneira divertida as duas mãos ao rosto para se assegurar que estava inteiro.

- Eu... este horrível muro velho não estava sólido - disse com ar compungido. E acrescentou, fanfarrão: - De resto, não me aleijei. Já tenho caído de mais alto.

Repetiu a cabriola e arrastou-se por entre a hortelã e as mangeronas para o lado de Minet-Joli.

- Vinha colher estas cerejinhas ácidas a que chamam ginja garrafal de que ninguém gosta, e estou contente por te encontrar. Ouvi a história do mendigo em frente da porta e não deixo de pensar no desgosto que deves sentir. Podes chorar, rapaz, eu não olho; as naturezas como a tua necessitam chorar.

Minet-Joli voltou bruscamente o rosto e nada respondeu.

- Só te vim dizer uma coisa em que estive a pensar: o mendigo não disse que viu, com os seus olhos, morrer os teus pobres pais. Em revoluções como essas há muita gente que se salva no último instante. Também a minha avó de Perry foi até ao cadafalso mas perdoaram-lhe à última hora. Viveu ainda muito tempo, casou e teve catorze filhos.

Bateu nas costas de Minet-Joli num gesto fraternal e protector.

- O que tu precisas é dum camarada corajoso e decidido, porque tens um temperamento que se deixa abater. Concordo que a maior parte dos meus colegas são abrutados e patifes, mas formámos um grupo de quatro rapazes com graça e honestidade. Quando quiseres jogar à bola, vem ter connosco, serás bem recebido.

O amável ruivinho coçou freneticamente a cabeça, atirou algumas pedras contra um alvo imaginário, depois do que se levantou para partir, com ar preguiçoso.

- Não encontrei uma única ginja - disse, melancólico, - tenho de voltar para trás. Mas não lamento ter cá vindo pois pude conversar um pouco contigo. Fazes-me pena, pobre infeliz encaracolado. Não deve ser divertido viver em casa do pai Tournerond. Comigo é diferente, sou mais velho e os meus pais moram bastante perto daqui para poderem vir ver-me duas vezes por mês. Bem, adeus e, sobretudo, não percas a coragem.

Minet-Joli regressou a casa vagarosamente. Sentia-se menos perdida, menos desesperada. Já não era o sentimento pesado como uma pedra, de uma desgraça absolutamente sem remédio. Havia um raiozinho de luz no meio do seu desespero e, ainda que frágil como a chama de vela no fundo do escuro corredor, o seu coraçãozinho estava decidido a agarrar-se a ela.

Não tinha remendado uma única meia, ao fim da tarde, quando a senhora Amada subiu ao seu quarto.

- Preferi deixar-te sozinha para chorares - disse, tentando adoçar a voz áspera. - A adversidade é uma rude escola, minha filha; a partir de agora deixas de ser criança. Sou compreensiva e não quero censurar-te em semelhante momento, mas a partir de amanhã tens de voltar ao trabalho. De nada te serve chorar.

Passou a mão dura e masculina pelos cabelos de Minet-Joli, mas os seus olhos pesquisadores procuravam qualquer coisa sobre a coberta da cama.

- Queria pedir-te que me emprestasses o medalhão e a carta da tua infeliz mãe. Podem pedir-nos essas coisas como prova do que o mendigo nos contou.

Minet-Joli sentiu vontade de falar da sua esperançazinha, mas ao erguer os olhos para a cara de pau da tia, sentiu-se gelada e voltou a cabeça.

- Tenho a intenção de instalar-te num quarto mais confortável - continuou a senhora Amada.

- Não quero que se diga que a filha da minha pobre Isabel vive numa mansarda caiada, sem cortinas de tule nas janelas e sem uma Virgem de madeira em cima da mesa. Esta era apenas uma instalação provisória.

Com efeito, a partir do dia seguinte, a garota foi instalada no quarto ao lado do de sua tia, e que era uma das melhores salas da casa. Somente, era ainda mais gelado; a janela estava voltada ao Norte, para uma paisagem de rochedos bastante tristonha e, se bem que as cortinas de tule fossem bastante espessas para esconderem a falta de vidros, podia ver-se que faltavam pelo menos quatro dos oito que deviam ter. Em contrapartida, havia um tapete e velhas estampas nas paredes.

- É um quarto de condessa - disse a senhora com satisfação. - Não se dirá que não faço tudo o que devo pela menina que me foi confiada.

Parecia particularmente preocupada com o "Disse disse" e esta preocupação era, sem dúvida alguma, a única razão das suas raras e súbitas generosidades.

Minet-Joli instalou-se no novo quarto, mas sem qualquer alegria. Sentia medo. Na sombra das cortinas espessas não se ouvia ruídos além dos gritos agudos e maldosos dos morcegos do sótão ou os rangidos inexplicáveis das velhas tábuas roídas. Mas o grande interesse, a imensa distracção desse quarto solene era, durante o dia, os ruídos da aula que ficava por baixo. Ruídos de grossos sapatos, ruídos de reguadas, cantoria mil vezes repetida de uma passagem de Cid 1. Tudo isto dava a impressão de uma feira; os rapazes tinham vozes gritantes

 

  1. O herói de grande número de obras literárias. Tragicomédia de Corneille. N.T.

 

Com entoações tão cómicas, que acontecia Minet-Joli rir sozinha em frente do cesto de meias para remendar. Por vezes, nas horas de recreio, a garota ia inclinar-se da janela; só via um canto do pátio, mas não era raro que o seu amigo de cabelos chamejantes viesse inclinar-se do muro para lhe dizer adeus e fazer algumas palhaçadas.

Mas as meias empilhavam-se. A senhora Amada achava que ela não trabalhava bastante e começava a lamentar-se azedamente.

- Tio - disse Minet-Joli, fechando a porta do gabinete com mão trémula, - queria fazer-lhe uma pergunta. Nunca mais voltarei a trabalhar, quero dizer um trabalho escolar como todas as crianças da minha idade? Tenho medo de me tornar ignorante.

O senhor Tournerond tirou gravemente as lunetas e gravemente tornou a colocá-las no nariz. A seguir tossicou um pouco.

- O que dizes é justo. É certo que a sobrinha do senhor Tournerond, director de um colégio, professor distinto de História e de Latim, não pode viver como a filha de um simples merceeiro e contentar-se com a vulgaridade dos trabalhos de costura. Simplesmente...

Levantou um dedo. Os seus olhos dourados de avarento brilharam duramente por detrás das lunetas e o seu rosto magro pareceu transformar-se em focinho de raposa.

- Simplesmente, não deves esquecer que não somos ricos. Eu trabalho. A tua tia trabalha desde a aurora até à noite e, além disso, o futuro que devemos prudentemente esperar para ti é um futuro de rapariga modesta. Não podes contar senão com o teu trabalho para ganhar o pão de cada dia, minha filha.

Minet-Joli permaneceu calada durante um momento; mas logo, armando-se de toda a coragem de que era capaz, olhou o tio bem de frente:

- Mas, meu tio, se sou um carrego, porque me foram buscar? Era muito mais feliz em casa do coronel Fabien e eles bem desejavam conservar-me.

O homenzinho não mexeu, o seu rosto não mudou de expressão, a não ser o canto da boca que descaiu um pouco.

- Ah! Temos já o espírito da rebelião e da independência? - disse a sua voz sempre ponderada. - Na verdade, isso cai bem em casa de um director de casa de correcção. Embora não te deva qualquer explicação, quero bem dar-te uma, minha filha: o coronel Fabien que é, aqui entre nós, um original idoso, ocupava-se de ti por caridade. Mas a caridade não teria com certeza ido além do Verão, pois não é rico; a sua pequena pensão de meio-saldo não deve ser-lhe paga com regularidade. ÉS desprovida de senso e de coração a ponto de te deixares viver como menina-família a expensas de dois velhos que têm justamente"com que não morrer de fome?

- Não se morria de fome em casa deles; eu comia três vezes melhor do que cá.

O senhor Tournerond levantou-se. Gravemente, sempre gravemente, perigosamente. O domínio daquele homenzinho tinha qualquer coisa de terrível. Instintivamente, a garota recuou, mas ele nem a tocou; tomou uma posição adequada e fez um discurso. Um discurso muito curto.

- Mais uma palavra a este respeito, nada mais. Por um lado, visto que te queres instruir, terás instrução. A partir de hoje assistirás à aula dos rapazes, da parte da manhã; de tarde farás os teus trabalhos manuais, como deve fazer uma rapariga modesta. É um programa pesado, mas tu o quiseste.

- O senhor... Meu tio, não quer que eu trabalhe com esses rapazes mal educados, não? Sou uma rapariga...

- Quem fala de rapariga? Onde está ela? Tenho na minha frente um rapaz insolente que se atreve a ditar-me o meu dever. Seguirás os cursos da manhã e não repito duas vezes as minhas ordens.

E, para tua tranqüilidade, aconselho-te a não dares a saber que és uma rapariga; esses cavalheiros depressa fariam de ti o seu bode expiatório. De resto serás a única à mesa, à parte, e, naturalmente, não assistirás aos recreios.

Esmagada, Minet-Joli subiu ao quarto, lamentando amargamente ter tido a coragem de fazer frente ao tio. Uma hora depois desta entrevista, a gorda Aurora entrou-lhe no quarto com os braços pejados com os mais horríveis fatos velhos.

- A senhora Amada manda-lhe estes trabalhos - disse, espalhando em cima da cama um horrível avental preto e um fato de rapaz visivelmente muito usado, coçado em diversos sítios.

- A senhora Amada manda dizer para apertares como deve ser estas três camisas e para lavares os teus lenços... Infeliz! tudo isto não é trabalho de rapaz, mas é preciso pagar a esmola que te fazem... Que disse mais a senhora Amada? Disse que daqui em diante tomarias as refeições no quarto, já que és refilona.

- Não sou refilona - respondeu a rapariguita quase a chorar, - sou infeliz. E quanto a deixar de ter os seus horrorosos rostos na minha frente, às refeições, é bem o primeiro prazer que passo a ter desde que cheguei a esta horrível casa.

- Chiu! - disse a gorda rapariga, rolando por todos os lados os olhos assustados. - Não são coisas que se digam tão alto. Será que te fizeram mal? Tens o ar de um coelho perseguido!

- Quereria estar morta! - respondeu a garota, com desânimo.

- Pobre órfã! Nada posso fazer por ti, nem sequer trazer-te uma maçã para sobremesa, porque nem as tenho para mim... Espera! A senhora Amada ainda disse mais. Disse: "Amanhã de manhã, lava-te bem, veste o fato limpo e o avental preto e desce à aula quando ouvires a sineta. Nada de resistências ao que ela manda. E nada de conversa com os outros alunos". É tudo. Sim, é tudo.

E foi-se embora. A noite caía no pátio deserto e nas colinas despidas. Já não havia ruído de pássaros, nem vozes na aula em baixo; o quarto escurecido tinha cada vez mais o ar de prisão.

E era em verdade uma prisão; houve um raspar por detrás da porta e, bruscamente, a chave rodou com um ruído seco. A garota estava fechada.

Minet-Joli vestiu-se apressadamente. Mal amanhecia na sala das tapeçarias roxas e quando a garota avançou para o grande espelho que ficava por cima da chaminé, não distinguiu mais que um homenzinho escuro e friorento, cujo rosto nem sequer reconheceu. As calças eram demasiado compridas, o avental cheio de remendos. Onde estava a bonita ragazza que as damas e os cavalheiros da corte de Nápoles faziam dar três vénias de minuete segurando-a pelo dedinho mínimo? Muitas vezes, baixinho, lhe tinham dito que ela era uma encantadora rapariguita; mas, agora, seria na verdade difícil afirmá-lo. No momento em que ia descer, ouvindo o ruído dos tamancos que anunciavam a entrada nas aulas, abriu-se a porta e a senhora Amada entrou com o barulho de chaves agitadas.

- Desce comigo - disse, com voz aborrecida e desagradável. - Convém que te apresente ao senhor professor... Que se poderá fazer desses cabelos de palhaço? Na verdade, não estás muito feliz para esta primeira entrada!

Desceu com majestade; o vestido arrastava pelos degraus e Minet-Joli temia pôr-lhe os pés em cima.

- Não esqueceste o que te recomendou o teu tio - disse a senhora, voltando bruscamente o seu feio perfil. - Proibição absoluta de dirigir a palavra ou de responder a quem quer que seja fora do trabalho. De resto, o professor recebeu ordens.

AO entrar na imensa sala cinzenta de aula, Minet-Joli sentiu-se imensamente fraca atrás da

 

Rapariga. Em italiano no original. (N.T.)

 

saia da senhora Amada; adivinhou que os rapazes se levantavam, pelo único e brutal movimento dos grossos sapatos. O professor avançou com ar pressuroso.

- Senhor Guignolet - disse a senhora Tournerond com a sua alta voz precisa e seca -, aqui tem o meu sobrinho Dominique Rosière. Como se trata de uma criança mais nova e de mais frágil saúde que estes senhores, peço-lhe que o ponha um pouco à parte mas que nada mude ao seu programa. Seguirá o que puder seguir... Voltem ao trabalho, senhores.

Empurrou Minet-Joli para uma mesa minúscula no extremo da sala e saiu sem lhe haver acariciado os cabelos, sem sequer lhe ter murmurado uma palavra tranqüilizante e amável. A rapariguita ficou de cabeça baixa sob os olhares irónicos ou curiosos da classe.

- Os seus livros estão na carteira - disse o professor com voz nasalada. - Senhores: teremos esta manhã uma lição acerca desse país longínquo ainda mal conhecido que se chama México... Nada de distracções, nada de distracções!

Mas as cabeças continuavam voltadas para o recém-chegado e os olhos brilhantes dos rapazes tinham o ar de quem espera uma formidável aventura. Minet-Joli tentava não perder o domínio de si mesma e conservava-se direita, sem nada ver.

Contudo, alguém levantava a mão, lá longe, à direita, na mesa dos crescidos: agitava-se uma cabeça ruiva, provavelmente para um "bom dia" a que ela não ousaria contudo responder.

De súbito, uma voz cortou o semi-silêncio e gritou:

- Dominique, não abras a carteira!

- Silêncio! - disse o professor, encolerizado.

- Quem gritou?

Houve um assustado remexer nas fileiras dos alunos, excitados ao máximo. Que se passava? A garota começou a tremer, mas não descruzou os braços. Talvez tivessem decidido cair-lhe em cima, ao soco, porque não lhes tinha ainda conseguido a chave da casa da fruta?... De súbito, deu-se uma coisa terrível: a tampa da carteira levantou-se e qualquer coisa preta, saltitante, infernal saltou-lhe à cara. Minet-Joli deu um grito e, recuando bruscamente, caiu de costas, da altura da cadeira.

Num instante a aula inteira se pôs de pé; os gritos, os chamamentos, os saltos por cima das mesas provocaram desordem e confusão a um tal ponto que o jovem professor ficou imóvel, de pé no estrado, de braços erguidos, estátua muda, resignada, provavelmente habituado, de longa data, a este género de rebelião.

Mas Minet-Joli não se levantava; a cabeça batera-lhe violentamente contra a parede. Alguns rapazes aproximaram-se e olharam-na cheios de curiosidade, mais perplexos que assustados e mais estúpidos que maldosos, até ao instante em que, abrindo passagem por entre os grupos, o jovem Patrício, jovem cavaleiro sempre ardentemente pronto a socorrer o mais fraco, se ajoelhou a seu lado.

- Senhor! - berrou com voz trémula. - O novo está morto!

A voz dominou o tumulto. Num ápice, cada um voltou ao seu lugar; um silêncio carregado de medo caiu sobre as cabeças abaixadas. Foi nesse momento que a porta se abriu e o director entrou cheio de altivez, tendo na cabeça a calote de sacristão.

- Julguei ouvir barulho. - disse a sua voz metálica - Qual a causa da indisciplina?

O professor que avançara para a garota, ficou a meio caminho, detido respeitosamente por aquela presença inquietante.

- Senhor Director - disse, torcendo as mãos, - creio, enfim, creio que sucedeu alguma coisa ao Dominique... O garoto...

Desculpou-se três vezes, servilmente, balbuciou e com dificuldade deslizou entre a mesa e o sr. Tournerond para chegar a Minet-Joli sempre desmaiada no seu canto.

- A criança caiu da cadeira. Não percebo bem o que se passou... Senhor! Não mexe!

O sr. Director, apesar do extraordinário autodomínio que o caracterizava, pareceu violentamente agitado. Voltou-se com prontidão.

- Está morto? - perguntou com voz estranha. Avançou rapidamente para a garota e inclinou-se para ela, segurando com as duas mãos as lunetas.

- O coração bate. Levem este idiota para o seu quarto - disse, levantando-se.

Sacudiu o fato e voltou para a classe atenta um rosto amarelo e furibundo.

- E vós, senhores, mergulhai nos "Comentários" de César até que o vosso professor volte. Tenho dito.

O professor ergueu Minet-Joli como se esta fosse uma grande boneca e levou-a para a escada. A casaca temida do director ficou um instante no limiar, imóvel e esverdeada e logo desapareceu. A porta do gabinete do director fechou-se com força.

O professor deitou a garota na cama e, mergulhando uma toalha no pote de água, bateu-lhe suavemente no rosto. Minet-Joli, voltando a si, viu o rosto de barba frisada, e o olhar triste e meigo que a fixava. Mas ele ficou apenas um instante. Em baixo, quando entrou na aula, espantou-se por ver os rapazes silenciosos. De pé no estrado, Patrício Maurin, de rosto vermelho, de cabelos cada vez mais inflamados, arengava-os com voz zangada. O professor só ouviu um pedaço de frase e lamentou intimamente que fosse dita por outro que não ele próprio:

- Pode ser-se um rapaz intratável, pode-se roubar ovos e as cerejas do pai Tournerond, mas não se tem o direito de ser cobarde e maldoso com os fracos. Esse rapazinho sem pais, esse rapazinho infeliz...

Patrício viu o professor, engoliu a peroração e voltou dignamente para a carteira.

Após este incidente, Minet-Joli não reapareceu mais na aula e a sua mesinha solitária foi retirada de lá.

- Foste a causa de um escândalo num estabelecimento onde nada de incongruente se produzira até agora - disse o senhor Tournerond com azedume. - Se deves ser objecto de imodéstia e de indisciplina, é preferível que fiques no teu quarto. Cose, menina, cose. Não serves para mais nada.

Depois desta desgraçada aventura, a pobre garota ficou a maior parte dos dias fechada, profundamente anemiada, abatida com aquela vida de reclusa num quarto sem sol. Nem sequer se atrevia a debruçar-se da janela para ver os rapazes que jogavam o eixo no pátio, envergonhada pela fraqueza que mostrara e secretamente indignada pela maldade deles. No entanto, nunca deixava de fazer um gesto de adeus a Patrício que se postava sempre no murozinho para gritar-lhe um bom-dia matinal e fazer algumas palhaçadas para a ver sorrir. Aquele rosto comprido e risonho e o sentimento de ter um amigo eram a única doçura, o único conforto de que gozava, dia após dia, na sua solidão.

Uma manhã, a gorda Aurora, ao levar-lhe o leite sem pão com manteiga ou mel, entregou-lhe furtivamente um pacote ao mesmo tempo que punha um dedo nos lábios a pedir silêncio. O pacote continha bombons e algumas linhas do jovem Patrício:

"Ficámos aborrecidos com tua queda, sobretudo eu a quem faz horror a maldade. Como penso que nem todos os dias deves comer bolo, mandei fazer um de propósito para ti, na minha última saída. Estás prisioneiro ou, pelo contrário, doente como pretendem? Rasga em mil pedaços esta carta e não fales no bolo. com a amizade do teu amigo Patrício. "

Esta carta mergulhou a pequena solitária numa deliciosa alegria. Da janela fez um aceno a Patrício e à vista dele devorou o bolo. O rapaz pareceu satisfeito e fez mil excentricidades para mostrar o prazer de a ver feliz. Poucos dias decorridos, a senhora Amada, que raramente a visitava, entrou, num murmúrio de saias de seda.

- Põe-te direita - ordenou-lhe do limiar da porta, à maneira de cumprimento. - Pareces um velhinho.

Lançou um olhar em volta do quarto e, não encontrando nada a criticar, chegou-se a Minet-Joli, que estava de pé e trémula em frente do cesto transbordante de roupa.

- Que vontade tenho de rapar esta cabeleira até ao couro cabeludo! - disse a megera com uma maldade que voltava a surgir. - A tua mãe usava os cabelos mal tratados, quando era rapariga... Ouve, vais arranjar-te como deve ser e vestir o teu antigo fato de veludo que tive a bondade de limpar. Fomos convidados a ir a casa de um aluno e quero que te apresentes tão bem quanto possível.

- Deverei continuar a deixar crer que sou rapaz?

- Claro que sim - disse a mulher com azedume. - Não posso entrar em despesas de um vestido de tecido fino, de uma gravata, de três saias de baixo, de um capote de Verão, de um chapéu de pelúcia, etc... A mim mesma pergunto: onde arranjaria o dinheiro necessário para esta despesa?

Com aborrecimento olhou para a garota. Disse:

- Estás pálida que nem um nabo. Esfrega bem a cara quando te lavares, e se te perguntarem por que estás assim tão pálida, dirás com gentileza: "Minha senhora, é que caí de costas e o facto provocou-me uma tal emoção que tive de ficar de cama durante oito dias".

- Sim, tia.

- Esta senhora que me convida - de resto só pensou em ti por amabilidade para comigo, naturalmente - é a irmã do Prefeito de Tolouse - disse a senhora Amada com enorme satisfação. - São pessoas muito distintas e abastadas. Temos naturalmente que manter excelentes relações com eles.

- Sim, tia.

- Não digas sempre: "Sim, tia" estupidamente. Arranjaste uma cara na verdade emparvecida desde essa queda de cabeça. E só te podes culpar a ti mesma.

- Sim, tia.

A senhora encolheu um dos ombros e saiu.

Depois do almoço, que consistia para a garota numa sopa de legumes, um ovo cozido e algumas nozes rançosas, a Sr. Amada chamou-a do fundo da escada para lhe perguntar se estava pronta. Minet-Joli desceu precipitadamente. A tia pareceu-lhe ainda mais terrível com o chapéu de palha Com as fitas amarelas e o grande xaile com franjas por cima das grandes mangas tufadas formando balão. Era a sua roupa das grandes ocasiões, o que acabou por convencer Minet-Joli da importância da visita que iam fazer. A dama estava numa agitação extrema e o Sr. Director dignou-se pessoalmente incomodar-se para assistir à partida da carruagem.

Não era, nesse dia, o carro com tejadilho de lona, mas um velho fiacre onde a Srª. Amada se encafuou e se instalou de maneira que o vestido de majestosas pregas encheu por completo o banco e os joelhos da garota pequenina, apertada a seu lado.

Como era o primeiro domingo do mês, os alunos haviam saído. Somente alguns internos, cujas famílias não moravam nas cercanias, se divertiam no pátio. Olharam, de boca aberta, aquela partida cheia de cerimónia, mas Minet-Joli não viu entre eles a carinha inteligente e ruiva do amigo.

- Ah! - disse a Srª. Amada para consigo, abanando-se. - Não é que goste de rivalidades mas temos de manter a nossa posição e não nos deixarmos cair na rusticidade. Essas senhoras ficam, em geral, encantadas por convidar-me, porque tenho espírito vivo e anedotas fáceis. Hep! Hep! Sr. Tournerond! Não se esqueça de dar uma volta pela cozinha aí pelas seis horas para ver se Petronilha não se permite acender duas velas em vez do lampadário de azeite ou mesmo do luar que pode bastar.

O carro partiu com lentidão e dignidade. O trajecto não era longo, porque, depois de haver seguido a estrada durante uns vinte minutos, pelo menos, o carro meteu por um caminho ladeado por castanheiros esplêndidos e desembocou num parque onde algumas senhoras, de vestidos claros, passeavam em volta de um lago circular. Mais adiante, por detrás de uma cortina de chorões, viam-se brilhar as trinta belas janelas de uma casa branca. Então a Srª. Tournerond tornou-se cor de tomate e começou a agitar-se.

- É uma das belas casas da região - disse, em tom admirativo. - E estas senhoras nada têm que fazer além de deitar biscoitos aos cisnes e bordar naperões... Põe-te direita; não me enchas de vergonha.

- Muitas vezes fui cumprimentar, fazendo vénias, as senhoras da corte de Nápoles - comentou Minet-Joli com audácia, - e sempre me saí bem.

- Ora! O rei de Nápoles era filho de um estalajadeiro - foi a resposta desdenhosa da tia.

- O papá dizia que era precisamente uma prova de mérito haver conquistado um trono com a sua bravura...

- Cala-te! - ordenou a Srª. Tournerond no cúmulo do nervosismo. - Aí está a dona da casa em pessoa que avança para receber-nos. Na verdade,

- trata-me como se eu fosse a sua melhor amiga.

Com efeito, uma bonita e jovem senhora vestida de branco avançava para o carro. Ela própria abriu a portinhola para cumprimentar e receber as convidadas e pareceu interessar-se especialmente por Minet-Joli, cujo olhar inquieto e meigo se erguia para ela.

- Anda, meu filho - disse a senhora, - Vou levar-te para o grupo de jovens que estão a construir casas de peles-vermelhas, nos pinheiros.

A Srª. Tournerond sentou-se com satisfação na borda de uma poltrona, espalhando o seu vestido de seda verde, enquanto Minet-Joli seguia a encantadora proprietária do grande jardim.

- Vais encontrar o meu filho Patrício - disse esta, - e conhecer a minha filha Laurinha que é mais ou menos da tua idade.

Minet-Joli estremeceu de surpresa.

- Mas não sabia que era convidada para casa da mãe de Patrício - exclamou alegremente. – Há dias ele conseguiu mandar-me um grande bolo de chocolate que a senhora fez pessoalmente. Nunca tinha comido nada de melhor desde... desde tanto tempo que já nem me recordo.

- Pobre querido! - disse a senhora, dando-lhe uma palmadinha na face. - Pedirei à Srª. Tournerond que te deixe vir brincar de vez em quando com os meus filhos e, quem sabe! talvez até te deixe ficar uma semana durante as férias grandes!

- Oh! Não creio que ela aceite! - respondeu a garota, com ar sombrio.

Hesitou um momento, depois pondo-se na ponta dos pés, murmurou muito baixinho ao ouvido da Srª. Maurin:

- Ela não tem bom coração.

- 'Na verdade - a Srª. Maurin muito comovida, não queria deixá-lo perceber, - talvez tenha bom coração, mas é uma senhora que não conhece as crianças e que está além disso sobrecarregada de afazeres.

Minet-Joli abanou a cabeça, mas a senhora desviou a conversa para mostrar à garota um pavão de asas azuis e douradas que se mantinha imóvel e real no ramo de um pinheiro. De súbito, ouviram-se gritos e apareceu Patrício a correr, seguido por algumas crianças, entre as quais duas meninas vestidas de cor-de-rosa: as suas duas irmãs.

Patrício olhou para a garota com ar inquieto. Disse amistosamente:

- bom dia, meu velho. Ah! Não tens boa cara. Tenho a certeza que não comes todos os dias à tua vontade. A tua tia bate-te?

- Não. Não vejo ninguém. Nem para me bater, nem para me dizer coisas gentis.

- No teu lugar, fugiria - respondeu o rapaz, com convicção. - Olha, aqui tens a minha irmã Laurinha que tem a tua idade e se parece um pouco contigo embora sejas rapaz e ela não seja tão magra como tu. Arrastou Minet-Joli para a casa de madeira fragilmente construída em cima de dois ramos baixos do pinheiro maior. Minet-Joli aventurou-se a dizer que não sabia muito bem trepar às árvores desde que vivia fechada e o homenzinho ruivo achou nisso mais um novo motivo para se indignar da severidade da Srª. Tournerond.

- Se a mamã a convidou - disse Patrício, ajudando-a a subir, - foi para poder ter uma razão para convidar-te, porque na verdade não foi pelos seus olhos de coruja. Toda a gente cá do sítio conhece a sua maldade e a sua avareza.

- Que te recomendou a mamã? - segredou a irmã Laurinha, mais ponderada e mais discreta.

- Este rapaz diz tudo o que lhe passa pela cabeça, sem nunca se lembrar que não é delicado dizer-se tudo.

Patrício corou um pouco e o resto da tarde passou-se entre jogos e brincadeiras no meio dos quais a recordação triste da tia Amada nunca teve lugar. Quando a viu aparecer na sua frente, à hora da merenda, a rapariguinha esboçou um gesto de recuo; o medo voltou-lhe e os seus olhos deixaram de brilhar.

- Muito bem! - disse a Srª. Tournerond, requebrando-se com uma ternura muito bem representada. - Para a tua primeira saída de convalescente, pareces particularmente bem disposta, minha querida.

Voltando-se para as personagens importantes que as rodeavam, acrescentou:

- A. infeliz criança chegou a nossa casa num estado de saúde precário, pois a sua partida deu-se em circunstâncias penosas, além da viagem que fez. Começava a recompor-se quando deu uma queda infeliz no primeiro dia em que foi às aulas. Tenho a impressão que o choque a abalou fortemente e por muito tempo.

- Agora, ela não parece ter nada - disse a Srª. Maurin, sorrindo para Minet-Joli que baixava a cabeça com amargura. - Como te sentes, gentil Minet?

- Oh! Muito bem! - respondeu a garota. - Agradeço-lhe, minha senhora.

Talvez fosse esse o momento de gritar a todas as senhoras presentes a forma como a tia a tratava? Talvez a pudessem ajudar a voltar para casa do coronel? Minet-Joli hesitou um segundo, durante o qual o seu olhar encontrou o de sua tia que a fixava; e era um olhar duro e claro como um brilho de vidro, um olhar que lhe lia no coração e a ameaçava.

A garota suspirou, voltou a cabeça e calou-se.

A QUELE dia passado em casa de Patrício foi para Minet-Joli como um passeio pelo universo encantado depois de sair de longa penitência. Durante o regresso de carro, a senhora Tournerond quase se mostrou amável, embriagada um instante pelas honras e o esplêndido vinho velho.

Ao voltar para casa, Minet-Joli achou mais lúgubres e mais inaceitáveis do que nunca o seu quarto de velha avó e a solidão em que vivia. Um morcego entrara pelo buraco de uma trave e ficara agarrado por cima da chaminé, de asas estendidas, numa imobilidade ameaçadora. A garota soltou um berro mas ninguém acorreu. Como não tinha vela, fechou-se nos cortinados e passou a noite num longo pesadelo em que o real e o inverosímil se confundiam.

As peúgas continuavam a amontoar-se e os grandes panos de cozinha esburacados começavam perfidamente a juntar-se às peúgas. A garota gastava os olhos neste trabalho sempre renovado e cambaleava quando se erguia da cadeira.

Um dia, ouviu um toquezinho leve na porta e foi grande o seu espanto ao ver Patrício no limiar, mas um Patrício pela primeira vez singularmente bem comportado, bem educado, que avançava na ponta dos pés como se receasse acordar alguém.

- Chiu! - disse o rapazinho entrando com ar de conspirador. - É preciso que não nos surpreendam. Trago-te um maçapãozinho de chocolate e venho despedir-me porque vou para férias amanhã. Vamos para casa da avó durante o mês de Agosto e só voltarei a ver-te no Outono. Que fazes?

Os olhos do rapaz arredondaram-se de espanto ao ver o cesto da roupa para coser: Disse:

- É uma vergonha! Um trabalho de velha remendona, nem mais nem menos. Contarei isso a toda a gente cá da terra.

Sentou-se num tamborete e ficou um momento silencioso, contra seu hábito, olhando para Minet-Joli de esguelha, com ar perplexo, um pouco ansioso.

- Tenho vagamente ouvido contar coisas extraordinárias a teu respeito - disse, contemplando as mãos, à maneira de quem se quer conter, - mas não acredito. Sabes o que quero dizer?

- Como posso sabê-lo? - perguntou Minet-Joli com inocência.

- Parece - disse Patrício com esforço, quase dolorosamente - que não passas de uma rapariga.

Minet-Joli baixou a cabeça, no auge da confusão, avaliando pela primeira vez na vida, a indignidade e o aborrecimento de ser rapariga. Bem se dizia intimamente que não era responsável por isso, mas compreendia no entanto que devia deixar de ter interesse aos olhos daquele rapaz combativo. Sentia mesmo, na sua surpresa, uma piedade misturada com certo desprezo.

- Não é culpa minha - acabou por dizer com ar lúgubre. - Não queria mentir a ninguém, a este respeito, mas desde que saí de Itália, acharam bem fazer-me usar fatos de rapaz. A tua mãe e a tua irmã acharão que é uma coisa horrível?

- Não, não creio - respondeu com reserva -, mas quanto a mim, posso dizer que foi um rude golpe. Pensa-se ter um bom camarada e, de repente, esse camarada é uma rapariga... Agora percebo porque é que a tua cara é tão pálida e porque tens sempre o ar sombrio. Ah! Para um rude golpe, é um rude golpe mesmo!

Patrício pareceu por momentos acabrunhado pelo espanto, mas logo se levantou de um salto, andou à volta do quarto, examinou os quadros, ergueu os cortinados, voltou para a janela:

- Já me esquecia de dar-te uma novidade! Tinha pedido insistentemente ao meu pai que procurasse travar conhecimento com o coronel Fabien quando fosse visitar o irmão, meu tio Artur, que mora na mesma cidade. Falaram de ti demoradamente. O coronel beija-te muito e manda dizer que não percas a coragem. Vão ocupar-se a sério do teu futuro.

Minet-Joli sentiu-se muito contente e começou a rir com vontade ao ver o rapaz balouçar com desprezo o cesto da roupa para coser.

- Quando me lembro que não és rapaz, isso faz-me uma impressão desagradável, confesso, mas hei-de habituar-me. De qualquer maneira, não podemos considerar-te responsável por isso, é claro.

- Receio que já não me tenhas amizade - lamentou-se Minet-Joli.

- Não retiro a minha amizade uma vez que a tenha dado - disse o rapaz com solenidade. - Continuas a ser meu amigo... Vou mesmo dizer-te mais: sinto-me ainda mais cheio de inquietação e de tristeza ao pensar na tua fraqueza. Digo a mim mesmo: "Esta pobre menina, na situação em que está, nunca se desenvencilhará sozinha. O que posso fazer para ajudá-la?" Partirei preocupado.

- Obrigada! - respondeu Minet-Joli com as lágrimas nos olhos.

De repente, lançou-se ao pescoço do rapazito e começou a soluçar. Ele sentia contra o rosto o narizito molhado e pensava: "Exactamente as maneiras da Laurinha. Sempre achei que se parecem"...

- Vamos! Vamos! - disse com toda a meiguice de que foi capaz, - depressa voltarei, tão tão depressa quanto me seja possível. Trar-te-ei caramelos.

Um instante mais e o desgosto cerrar-lhe-ia a garganta. Começava a fungar.

- Isto faz-me mal ao coração - disse com voz roufenha. - Eu, quando vejo alguém chorar, fico estúpido.

Soltou as mãos da garota, beijou-a nos cabelos e avançou para a escada.

A tarde caía; ouviam-se os rapazes que cantavam: "Moleiro, tu dormes" e "A roda da arvéola cinzenta" enquanto preparavam as trouxas.

O mês de Agosto estava chuvoso e Minet-Joli não aproveitava nada das licenças que a tia lhe dava para ir passear para a estrada do antigo cemitério que seguia ao longo da propriedade.

Uma noite de chuva em que a casa, sempre naturalmente húmida, tinha o aspecto ainda mais tristonho e destilava mais humidade que de costume, a senhora Tournerond entrou no quarto da garota transportando uma enorme selha e baldes com água.

- É sábado! - disse - Vais tomar um belo banho.

- Minha tia, tusso sem parar há já alguns dias e o quarto é geladíssimo.

- Não estejas sempre a gemer e a preocupar-te com a saúde, como se tivesses sessenta anos! Na tua idade, eu era diferentemente corajosa e sólida. Vamos, despe-te.

A garota despiu-se com repugnância, tentando objectar que não precisava de ninguém para a lavar. A senhora ia e vinha pelo quarto, sem responder.

- A água está gelada! - gemeu a pequena, batendo os dentes.

- Piegas! - disse a amável tia. - Foste criada em algodão.

A criança não se atreveu a protestar, mas saiu da demorada esfregadela, trémula e esverdeada. Estava nua no meio do quarto, esperando que a senhora Amada encontrasse as toalhas para a envolver, quando esta se apercebeu de que esquecera de as preparar. Desceu sem pressa; só voltou passado muito tempo. Entretanto, Minet-Joli permanecia ali, a escorrer e a bater os dentes, sem se atrever a mexer-se com medo de molhar o tapete. Da janela sem vidros, por cima dela, caía um ar húmido, gelado pelas grandes tempestades.

- Nada é melhor que estes banhos frios para revigorar as naturezas delicadas! - disse a senhora Amada, avançando sem se apressar.

- Veste-te!

A partir do dia seguinte, Minet-Joli tossiu tanto que a costura se fez lentamente. Ao fim do dia, oprimida, provavelmente febril, sentiu necessidade de falar a alguém e subiu ao sótão em busca da velha ama do fuso.

- É a rapariga-rapaz! - exclamou a mulher, muito contente. - Reconheci o teu andar de passarinho. Não tornaste a visitar-me, minha bela!

- Vivo semiprisioneira - respondeu Minet-Joli. - Minha tia não gosta nada de mim e tenho de remendar todas as peúgas da casa para pagar o que como.

- Será possível, meu Deus! A filha da sua prima Isabel! Ah! Bem imaginava eu que as coisas não correriam honestamente para ti nesta casa de avareza e de maldade, mas, infeliz! nada posso fazer por ti. Tenho quase cem anos.

- Ela obrigou-me a tomar um banho de água fria - prosseguiu Minet, tossindo - e a seguir deixou-me toda molhada no meio do quarto porque não tinha preparado as toalhas.

- Minha queridinha, vejo as coisas como se me fossem contadas por um anjo, ao ouvido. Vejo que a tua mão tem febre, vejo que a senhora Amada não gosta de ti e, se vejo ainda outras coisas, não é a uma inocente como tu que me permitirei contá-las. Por agora, aconselho-te a ir para a cama. Empilha em cima de ti tudo o que encontrares no quarto, cobertores, roupa de lã, cortinados velhos e deixa-te ficar no "suadouro" como uma sopa até que a febre e a tosse desapareçam. É o único meio de evitar a doença de peito que se está a preparar.

- Agradeço-lhe - disse Minet-Joli. - Acha que vou ficar doente?

- Provavelmente não, se fizeres o que te digo. Quando a gorda Aurora subir a trazer-me o caldo, hei-de pedir-lhe que te prepare uma "bola" quente e te leve leite com um ovo batido dentro, se conseguir apanhar um sem que a senhora o perceba.

Ah! será preciso que eu viva ainda até aos cem anos nesta atmosfera de roubo e de crime! Vê lá tu, amiguinha, Amada Tournerond sempre tem sido, desde o tempo da sua juventude, invejosa e má.

Teria podido melhorar com um bom marido, mas teve a desgraça de encontrar esse Tournerond que falava bem e prometia mundos e fundos. O que as pessoas daqui nunca souberam, felizmente, mas soubemo-lo na família, é que esses Tournerond, esse magricela de focinho de doninha não era de gente honesta. O irmão estava preso por crimes e assaltos a diligências... Mas vá lá a gente fiar-se!

Eram de uma região do Norte, ninguém os conhecia.

Amada desposou pois o irmão de um bandido

Não deveria dizer-te isto. Falo como uma tagarela desmiolada. Vai depressa para a cama, minha bela, e mete-te debaixo do cobertor até ao queixo.

Minet-Joli estava já na cama quando a jovem Aurora lhe levou uma grande tigela de leite quente e o reconforto de uma presença amável.

- A velha avó do sótão disse-me que era preciso que te tratasse bem, meu franganito. Bem o desejo, mas como consegui-lo? Tenho de esconder-me para aquecer três goles de leite. E a cozinheira não é mais amável que a senhora! Miséria de miséria!

- Tenho frio! - disse a garota, a tremer.

A bondosa rapariga começou a friccionar-lhe os ombros e os braços com mão vigorosa; depois, olhando em volta, viu as meias espalhadas e deitou-as por cima da fina cobertura da cama para a tornar assim um pouco mais pesada.

No meio da noite a garota entrou em delírio. Julgava ver um rato enorme, com uma calote de seda preta na cabeça e a balouçar-se no grande relógio, em frente dela. Era um senhor Tournerond em miniatura, com o seu barrete e as suas suíças. Estava pronto a saltar. Minet-Joli levantou-se de repente com um grito horrível e logo recaiu na cama, sufocada.

Não havia rato algum; apenas a febre e a noite.

Ali ficou deitada, com os olhos fitos no vazio, oprimida, toda a manhã. Aurora, vendo-a adormecida, pousara o leite e o pão no toucador ao lado, com uma colher de mel num pires - guloseima extraordinária que a bondosa rapariga tivera bastante dificuldade em conseguir. Voltou ao meio-dia e encontrou a garota ligeiramente reanimada, embora com as faces anormalmente quentes.

- Queria beber, só beber. Queria um pouco de chá de tília ou sobretudo sumo de laranja como a mamã preparava em Itália.

Aurora ouvia-a, com os braços caídos, os olhos pasmados.

- Mas, meu franganito, nunca ouvi falar nesse legume. com certeza não o há no pomar da senhora Amada.

- É um fruto redondo, cor de ouro...

A rapariga baixou a cabeça e desceu, persuadida de que o senhorzinho estava muito doente.

De repente, um passo apressado sacudiu a escada, um andar de homem com botas acompanhado por passos de mulher, mais discretos. Houve um violento conciliábulo por detrás da porta e a srª. Amada surgiu no limiar. Tinha as faces em fogo e a touca ligeiramente em desordem. Tornou a fechar a porta com ruído, sem se desculpar, sobre uma personagem que a garota pensou ser um médico.

- Como! - exclamou a senhora, com voz furiosa mas balbuciante - Permites-te estar na cama às duas horas da tarde sem ter pedido licença? De pé! E depressa, menina!

O visitante, impaciente, deu na porta uma pancada bastante pouco delicada, sacudindo furiosamente a mão fechada.

- Deixe-me entrar! - gritou a voz do coronel Fabien.

- Não, não entrará, espécie de malcriado! Julga-se em batalha? A pequena está deitada. Dê-me pelo menos tempo suficiente de a arranjar um pouco.

- Nada de arranjos! - gritou o coronel. - Minha senhora, se não abre, corro a prevenir a guarda de que seqüestra uma criança doente.

- Espécie de louco, quer amotinar a casa! Desejo que meu marido chegue sem demora, para lhe ensinar a respeitar as senhoras... E tu, veste-te! Amada ia e vinha com afadigamento, pondo em ordem o quarto e escondendo as peúgas espalhadas um pouco por todo o lado. Resmungava:

- Insensato, insensato! Todas estas peúgas em desordem, espalhadas por cima da cama, por baixo da cama, por sobre a mesa... E esta rapariga na cama às duas horas da tarde...

Minet-Joli deu um salto da cama e correu para a porta.

- É o senhor, coronel? Meu querido coronel! Estou doente. Ninguém me trata... Eu...

A srª. Amada agarrou-a com um gesto brutal e atirou-a para uma cadeira, como se fosse um brinquedo.

- Abra ou arrombo a porta! - gritou o coronel.

- Basta de escândalo! - berrou a senhora com voz aguda, esganiçada. - Sou dona da minha casa, creio? A pequena vai vestir-se e recebê-lo lá em baixo, no gabinete, como deve ser...

Ouviu-se um terrível estampido: a porta oscilou e partiu-se de alto a baixo.

- Bandido! Demente! Salteador! A minha bela porta! Ah! Porque não estará o sr. Tournerond de volta. Eu...

Houve um segundo empurrão, um novo estampido e a velha porta dividiu-se muito simplesmente em dois pedaços entre os quais o coronel Fabien, com o rosto cor de tijolo, de bigodes em riste, terrível, dir-se-ia o retrato de um ogro.

- A senhora o quis! Minha senhora, assim o quis! Estou habituado a forçar as portas fechadas.

- Desalmado! Ah! Em que época vivemos! Onde está Heitor Tournerond? Onde estão as malditas criadas?

A senhora Amada desapareceu, com a touca à banda, gemebunda, no meio de um remoinho de saias de riscas; Minet-Joli atirou-se para os braços do seu fogoso amigo.

- Creio que me deixei levar! - disse o bondoso homem, olhando com tardia confusão o pano da porta quebrada - Tanto pior para ela! Nem sei o que pensei! Pensei que ela ia estrangular-te... Estás doente, minha filha?

- Tenho febre e tosse. Oh! Querido coronel, leve-me consigo! Sou uma criança mártir, nem mais nem menos!

- Uma criança mártir? É inconcebível! Irei à polícia. Irei a casa do prefeito. Irei a casa do ministro! Embrulha-te nesta capa, vou levar-te comigo.

Alguém subia lentamente as escadas. O sr. Tournerond estava no limiar da porta, com a sua eterna calote, impassível, de mãos atrás das costas.

- O coronel tem o hábito de invadir as casas e os quartos fechados, como... Não me atrevo a dizer como um velho soldado, mas há-de convir, senhor, que a sua conduta é de molde a espantar, ao mais alto ponto, as pessoas honestas.

- Eh! Deixe-me em paz! - disse o coronel, incomodado. - Reconheço que fui um pouco brusco demais. Peço desculpa, mas é falta da srª. Tournerond. Porque me proibiu ela que visse a garota? Nem sei o que imaginei!

- Também eu não - respondeu o sr. Tournerond, sempre senhor de si. - Esqueçamos o incidente, senhor coronel. Conheço bastante bem o seu nome e os seus méritos para dar a esta intrusão um carácter que não tenha. Não falemos mais no caso, não falemos mais no caso! Volta para a cama, minha filha, primeiro porque te arriscas a agravar a tua constipaçãozinha, depois porque o teu trajo é inconveniente. Gosto da máxima correção em minha casa... Parece que a garota passou mal a noite. Uma doença passageira, a que deve juntar-se, suponho, um pouco de preguiça... Toma um cálice de velho Cahors, coronel?

- Obrigado, obrigado! - resmungou o coronel, extremamente indisposto com aquela presença untuosa, aquele autodomínio em frente da sua própria brutalidade. Sentia-se a tal ponto confuso pelo seu comportamento sem desculpa, que perdia o à-vontade habitual, assim como as palavras que queria dirigir à pequena que voltava a encontrar. Sentia-se infeliz e envergonhado. O bigode tremia-lhe e a voz também. Não achava que dizer. Tornou a sair, depois de haver apertado ternamente a garota nos braços, mas sem lhe falar. Da porta - partida voltou os olhos cheios de lágrimas para ela:

- Sou um velho louco - disse - e já me esquecia de dar-te o bolo e os bonecos que Finette te mandou. Adeus, minha filha. Não esqueças o teu velho amigo. Espero que o sr. Tournerond me permita visitar-te num dia em que eu esteja mais calmo.

Minet-Joli sentou-se na cama a chorar. Ouvia a querida voz grossa repetir ao fundo da escada:

- Senhor, sinto-me envergonhado, eu... Naturalmente que vou pagar-lhe a porta partida.

O sr. Tournerond respondeu-lhe com voz afável, indulgente, como a voz que se adopta para falar às crianças e aos loucos e nada mais se ouviu. Uma porta tinha-se fechado.

- Pois bem! - disse a srª. Amada com um riso sarcástico, insustentável. - É esta a pessoa com quem minha sobrinha sonha viver! Esse homem, minha filha, é nada mais nada menos que um louco furioso... Veste-te...

Veste-te já!... Vejo claro no teu jogo: tentas comover as pessoas e deixar acreditar que não cumprimos o nosso dever para contigo.

- E eu, vejo que me detesta! - respondeu Minet-Joli, indignada - E não sou só eu a vê-lo. De resto, se não me deixar ir para casa dos meus amigos Fabien, contarei a toda a gente que me deixam morrer de fome.

A senhora avançou com uma moderação e uma reflexão mais visíveis que a violência, agarrou a garota por um punhado de cabelos e esbofeteou-a. Esbofeteou-a uma vez, duas, três, quatro vezes. Minet-Joli berrou mais de medo que de dor e saltou para a janela a fim de chamar o coronel. Este ia já longe, montado no seu velho jumento coxo, e o pátio dos alunos estava deserto.

- Atira-te para o lado de lá, minha desgraçada! Não imaginas a que ponto nos libertarias de uma tutela insuportável. Posso até ajudar-te - troçou a srª. Amada.

Avançou, agarrou na garota ao colo e, levantando-a sem dificuldade, manteve-a suspensa sobre o vazio, por um momento. Minet-Joli fechou os olhos. Quando voltou a abri-los, a srª. Tournerond tinha-a posto de pé no chão. A garota, demasiado lúcida para a idade, demasiado instintiva, e a mulher de rosto de criminosa, fitaram-se um momento sem uma palavra.

- Há qualquer coisa que acabo de perceber - disse a pequena com uma voz curiosamente envelhecida e prudente - compreendi de repente que ficaria satisfeita se eu morresse. Está escrito nos seus olhos.

A srª. Amada encolheu os ombros, alisou mais uma vez os seus cabelos, devagar, e saiu sem responder e sem se voltar.

O mês de Agosto acabou como começara, no meio de tempestades e de tristeza. A casa estava cada vez mais húmida e escura.

Um dia em que Minet-Joli estava à sombra de uma macieira no velho pomar, viu avançar ao longe, na estrada, um rapaz que ia talhando uma bengala enquanto andava. Não o reconheceu senão quando este parou, procurando visivelmente uma passagem na vedação.

- Patrício! - chamou, correndo.

O rapaz meteu-se por baixo das aveleiras e dos espinheiros como um animalzinho selvagem.

- Mal te conhecia! - disse Minet, intimidada.

- Cresceste e tens um boné novo.

- Sim, é um boné que meu tio me trouxe de Paris - respondeu o rapaz bastante contente consigo mesmo. - E tu?

Olhou para a rapariguita franzindo as sobrancelhas, depois beijou-a com ternura.

- Sempre pálida e triste como um retrato - disse com preocupação. - Voltámos ontem, sim, só ontem, e vim logo saber notícias tuas.

- Sentou-se na erva, com a bela bengala entre os joelhos; a seguir tirou do bolso, com ares misteriosos, um pacote.

- Hum! Está bem amachucado - confessou, confuso. - É um bolo recheado com doce de groselha. Continuam a deixar-te morrer de fome?

- Não. As coisas vão um pouco melhor, mas eu é que não tenho apetite.

- Meu pai tenciona vir falar a teu tio para pedir-lhe que te mande para um internato de raparigas com a minha irmã.

- Qualquer coisa me diz que não aceitarão. Não sei porquê, visto que a minha presença os exaspera.

- Não é difícil de perceber, palerma! Mas és muito nova para que se te dê certas explicações tristes. Saberás mais tarde. Adivinha quem está em nossa casa, neste momento?

- Não posso saber!

- O teu querido coronel e a menina Finette, a irmã. Acontece que são amigos do meu tio de Catuse e, como este, bonopartistas entusiastas. Esses dois velhos resmungões nunca mais param de falar em batalhas e conquistas.

Olhou com benevolência para Minet-Joli que lambuzava a cara com o doce de groselhas, depois levantou-se, espreguiçou-se, fez uma pirueta com a bengala nova.

- Vou-me embora - disse. - Tenho ainda três quilómetros para andar e a noite vem aí. Não gosto desta estação; dentro de três dias estarei outra vez prisioneiro dos Tournerond, como tu.

- Sim, mas eu não tenho família nem casa que me façam esquecer o desgosto de ser prisioneira.

- A tua família sou eu - respondeu Patrício com resolução -, e a tua casa é a minha. Não sou homem para abandonar um amigo na desgraça. Sé corajosa, pequena. Quanto mais eu crescer, mais estarei em condições de defender-te.

Puxou do lenço, limpou gravemente o queixo de Minet-Joli e, depois de a beijar, meteu-se outra vez pela abertura da cerca.

Minet-Joli olhou-o ainda durante muito tempo; afastava-se o rapaz num andar orgulhoso, um andar feliz, voltado para o sol amarelo que se extinguia.

No dia seguinte a este encontro, a garota, ao levantar-se, viu um largo sobrescrito debaixo da porta. E o sobrescrito tinha o seu nome.

"Minha querida filha - diziam as poucas linhas -, visto que a Srª. Tournerond parece absolutamente decidida a sequestrar-te, vamos levar-te sem licença. Vem passear para o atalho que segue ao longo do pomar, aí pelas seis horas. Encontrarás ali um homem a cavalo que te levará para junto dos teus velhos amigos que te esperam e te amam. Teu velho coronel. "Esta ideia lançou o espírito da garota na mais louca das agitações.

Não podia estar quieta; a tarde arrastava-se. Da cozinha, em baixo, subiam os cheiros do chouriço e o ruído dos tamancos afadigados. De vez em quando ouviam-se os gritos ásperos de chamada da deliciosa dona da casa:

- Onde está a Aurora? Onde está essa rubicunda, esse pote gordo?... Minha filha, se esta marmelada se pega ao fundo do meu magnífico caldeirão, comprarás outro com as tuas economias.

- Não tenho feito economias, senhora Amada! - respondeu a voz ingénua e chorosa. Depois o silêncio caiu. Um relógio de toque grave bateu quatro horas, depois cinco, no patamar.

Após as chuvadas do fim de Agosto, o Outono chega depressa e as noites caem cedo. Mal o sol desapareceu do cimo dos choupos que limitavam o pátio, Minet-Joli deixou o trabalho que estava a fazer e começou a agitar-se. Não tinha mala a preparar, nem o mais pequeno embrulho, pois nada possuía, além dos seis lenços de baptista que a menina Finette lhe bordara. Contudo, pensando bem, despiu-se para tornar a envergar o fato de veludo azul, recordação de sua mãe e da Itália.

Quando a noite começou a cair, a garota saiu com o coração apressado e fechou a porta do quarto com o sentimento alegre que não mais voltaria a abri-la. Na escada, no corredor já escuro, não se via ninguém. A porta da cozinha entreaberta deixava ver uma fumarada cinzenta e as três mulheres da casa que se agitavam como feiticeiras em volta do fogo. Minet-Joli passou na ponta dos pés, como se fosse uma fada.

Sob as macieiras do pomar estava escuro; a erva molhada batia-lhe nas pernas. Minet-Joli deslizou pela abertura muito do agrado de Patrício e encontrou-se no atalho. Não viu ninguém e pensou que seria preferível avançar para o pinhalzinho que se seguia ao antigo cemitério e cujos túmulos já não se viam. Era um canto abandonado, perfeito para os encontros inquietantes. Finalmente, das primeiras árvores do bosque destacou-se do escuro um homem, assobiou baixinho e avançou para a garota: era um homem bastante idoso, cujo rosto, talvez a voz ou apenas o estranho chapéu, lhe lembraram alguém que já encontrara. Tinha uma voz surda, um pouco choramingas, e, de resto não parecia falador. Murmurou:

- Venho da parte do coronel Fabien. Penso que está ao corrente, minha menina?

- Sim - respondeu a garota, - estou ao corrente. Espero que não encontraremos ninguém da casa pelo caminho.

- Não tenha medo. Vamos imediatamente. Nunca há ninguém no atalho.

Pegou em Minet-Joli e instalou-a no cavalo, saltando rapidamente atrás dela. Trotaram durante dez minutos, agradavelmente; o homem mantinha-se calado; Minet-Joli não gostava do cheiro do casaco de pele que ele vestia nem da maneira de praguejar baixinho. De repente, pararam.

- O animal está a coxear - resmungou. - Teve de andar nas pedras e no ferro-velho desse maldito caminho.

Olhou em volta; a paisagem estava clara e contudo de um verde misterioso, sob a luz da Lua que subia no céu.

- Será um riacho que oiço além? - perguntou a si mesmo.

Pôs-se à escuta; depois, resoluto, tirou Minet-Joli do cavalo e depô-la no talude.

- Fique aí uns momentos, vou banhar o pé do animal. Se vier alguém, esconda-se atrás da sebe... Não terá um lenço com que eu possa ligar a perna do cavalo?

Minet-Joli hesitou um pouco antes de dar um dos bonitos lenços da menina Finette, mas não se atreveu a recusar. O homem afastou-se com o animal. O riacho devia ser bastante longe, porque a garota viu-o desaparecer no nevoeiro da clareira. Não estava sozinha há mais de três minutos, quando ouviu um novo trote de cavalo e, cada vez mais próximo, uma voz juvenil que cantava a bem conhecida canção da "Arvéola, gentil arvéola". Era a canção favorita de Patrício. Minet-Joli avançou rapidamente ao encontro da voz. Quase no mesmo instante surgiu um cavaleiro, ou antes dois cavaleiros na mesma montada que se recortava enorme e escura no céu mais claro. Atrás deles, seguia outro cavaleiro que levava uma caixa. O pequeno grupo enchia o estreito carreiro.

- Patrício! - gritou Minet-Joli, correndo em frente. - Patrício, sou eu.

O cavalo parou. A canção também e o mais alto dos cavaleiros saltou em terra.

- És tu, pequena? Nesta escuridão? Que fazes por aqui?

- Chiu! - disse Minet-Joli excitada. - Vou a fugir. O coronel mandou buscar-me.

- O coronel mandou buscar-te? Que romance é esse? O coronel está em nossa casa há uma semana e não nos falou de tão estranha aventura.

O sr. Maurin agarrou no bilhete que a garota lhe estendia, leu-o com bastante dificuldade na sombra do caminho, meteu-o depois no bolso e agarrou resolutamente na garota pelo braço.

- E onde está a pessoa que devia levar-te?

- Foi até ao riacho porque o cavalo coxeava.

- Muito bem. Patrício, fica aqui com a pequena e os dois cavalos: Vou pedir explicações ao indivíduo. Albino, vem comigo.

- Pai - disse Patrício - é perigoso. Ele deve estar armado.

- Também o estou - respondeu o sr. Maurin, tranqüilamente.

Depressa os dois homens se afastaram e o nevoeiro escondeu-os.

- Patrício - perguntou a garota, - que se passa? Não compreendo.

- Nem eu. O papá nos explicará. Imagina que estou inquieto.

- Porque estás inquieto?

- Se esta carta não é do coronel, é porque há aqui uma cilada... Ouve, o homem está ali. Oh! A sua voz não me agrada!

Avançaram alguns passos, Patrício apertando com força a mão da pequenita; ficaram a escutar com curiosidade.

- Quem o encarregou de levar a criança da casa do tio? - interrogava o sr. Maurin.

- Não tenho explicações a dar a um desconhecido - respondeu o homem com voz cava e desagradavelmente arrastada. - Obedeço a ordens que me deram e não tenho mais nada a ver com o caso. Faça como eu.

- Lamento, mas sou curioso por natureza - disse o sr. Maurin, com brusquidão. - Gostaria de saber quem o encarregou de raptar a criança. O assunto pode ser grave, não o ignora, pois não?

- Não é grave para mim, que não estou ao corrente de nada. Já lho disse: apenas obedeço.

- Já que é tão documente obediente, vai com certeza aceitar seguir-me até à casa do sr. Tournerond, o tio da garota. Tenho de tirar as coisas a limpo, lá em casa.

- Há pessoas que melhor fariam meter-se na sua vida - resmungou o homem do velho chapéu preto. - Deixa-me passar, sim ou não?

- Não, cabeça de mula! - gritou o criado exasperado. - Estão a fazer-te honestamente uma pergunta; podes responder da mesma maneira, se tens a consciência tranqüila.

O homem não respondeu. As crianças, atentas, nada mais ouviram durante um curto minuto; mas logo houve um ruído de luta surda no meio do escuro da noite, imprecações, um grito de dor. Um tiro. A voz do sr. Maurin chamou Patrício que correu sem largar a mão de Minet-Joli.

- Salta para o cavalo do Albino com a pequena e corre a casa pedir reforços. Albino está ferido e quase matei este sinistro indivíduo. Empresta-me o teu lenço do pescoço para lhe atar as mãos.

Inclinou-se para o homem e ligou-lhe fortemente os braços, depois inclinou-se para Albino, sentado no fosso.

- Não é nada, senhor, um arranhão no ombro. Não se preocupe comigo.

Patrício, a tremer, arrastou a garota e instalou-a na sua frente, na garupa do grande cavalo. A noite fechara-se por completo; cheirava a urtigas amargas e a hortelã molhada do bosque. Minet-Joli fechava os olhos sem nada compreender.

- Patrício - acabou por perguntar um tanto medrosa. - Que se vai passar?

- De que tens medo? Não penses em nada. Não são negócios de raparigas. A mamã dar-te-á torta para comeres e jogaremos ao dominó antes do jantar.

- Tenho remorsos ao pensar que o teu pai se bateu por minha causa e que o criado ficou ferido.

- Na vida, minha filha, é sempre assim: quando os homens não se batem para defender a pátria ou a honra, batem-se para defender as mulheres e as crianças. É uma coisa tão velha quanto o mundo,

O cavalo trotava alegremente. Num quarto de hora viram as janelas brilhantes do domínio dos Maurin e o traçado dos arbustos no chão. Patrício saltou do cavalo, levou Minet-Joli por um comprido corredor; e, na pressa de ir ter com o pai e levar-lhe os reforços, deixou-a desorientada atrás de uma porta. Não sabendo para que lado dirigir-se julgando ouvir ruído de vozes no escuro, empurrou timidamente a porta, sem bater.

O salão estava iluminado com profusão e a primeira pessoa que viu foi a menina Finette, cuja magreza e modéstia desapareciam no meio de uma profunda cadeira de braços. Laurinha e a irmã, de gatas, admiravam um livro de estampas; mais longe, um senhor idoso de suíças lia o Constitucional, enquanto a srª. Maurin, deliciosamente loura e

cor-de-rosa sob o lustre da Boémia, bordava.

- Mas - exclamou, estupefacta, - quem vejo eu além? É a pobrezinha

- Minet-Joli.

A menina Finette deu um grito e saltou da cadeira. A garota foi atraída para a luz, beijada, metralhada com perguntas.

- Mas não é o Patrício que grita tão alto? Que se passa na cozinha?

- Não percebi bem - disse Minet-Joli, tímida e piscando os olhos sob a luz do lustre. - Esta manhã, recebi uma carta do coronel em que me dizia que ia levar-me, já que meu tio me conservava prisioneira. Então segui um homem a cavalo...

- Deus do céu! - lamentou-se a menina Finette. - Não percebo nada dessa história. Onde está meu irmão?

Perderam-se em suposições. Uma única coisa não podia ser posta em dúvida: era a inocência do bondoso coronel nessa escura tramóia. Mas então, quem seria o raptor de Minet-Joli e que pérfida maquinação estava na base do rapto?

- O próprio Tournerond é um homem bastante criticado - disse o idoso senhor. - Contam-se histórias que é um nunca mais acabar acerca da sua família. Espanta-me que tenha alunos, quase todos saídos das melhores famílias da região. Você mesma, Ágata, porque lhe confiou o seu filho?

- Porque não há outro colégio em toda a região, primo, e também porque devemos reconhecer que é um professor e um educador notáveis. Proponho que nos sentemos à mesa, querida menina. Minet-Joli tem uma cara que mete pena.

- Deverei voltar para casa do meu tio? - perguntou a garota a quem esta pergunta parecia preocupar constantemente.

- Não, esta noite não, prometo-te. De resto, aconteça o que acontecer, pedirei à tua tia que te deixe connosco durante uns dias.

Depressa se ouviu um ruído de passos e de vozes por debaixo das janelas; um momento depois, o sr. Maurin, o coronel e Patrício entraram no salão, piscando os olhos sob o brilho das luzes. Minet-Joli correu a pendurar-se ao pescoço do velho amigo, que a contemplava com emoção, baixando a cabeça.

- Criminoso! - murmurava - Criminoso por deixar estiolar uma criança desta maneira. Olhem para este focinhito!

- Pedimos desculpa pela demora do jantar, minhas senhoras - disse o sr. Maurin, - mas na verdade passam-se coisas estranhas. Coronel, um pouco de "armagnac" para nos aliviar o coração?

- Matou esse bandido? - perguntou Minet-Joli.

- Na verdade, não matámos ninguém, minha querida, mas deixámos o patife num esconderijo à espera que venha a guarda buscá-lo.

- Não fez qualquer confissão?

- Nenhuma. O mistério continua o mesmo; naturalmente isso não impede a nossa imaginação de trabalhar. Quanto a mim, tenho uma opinião e acontece que corresponde, em tudo, à do coronel. Falaremos amanhã no caso.

A refeição correu alegremente, mas os cavalheiros levantaram-se no momento da sobremesa, pois os polícias invadiam o pátio com correntes e espingardas como se se tratasse de prender dez bandidos. Quando Patrício voltou, muito excitado, com os cabelos em desordem e o olhar violento, sentiu-se pasmado, vagamente indignado, ao ver Minet-Joli adormecida encostada à toalha, com os cabelos de um negro azulado sobressaindo do branco do tecido de damasco.

- Batemo-nos por ela e a polícia incomoda-se - comentou semidecepcionado, semidivertido -, enquanto ela dorme!

No dia seguinte, quando Minet-Joli acordou, Laurinha estava já ao pé dela com a boneca Aglaé. Devorava placidamente uma grande fatia de pão com mel. O quarto era de uma suave cor amarela e as nuvens de um dia claro pareciam passear no espelho. "Que maravilha", pensou Minet-Joli com encantamento. "Pensava não tornar a ver um quarto com sol e almofadas de veludo azul nas cadeiras!"

- bom dia, filhinha! - disse a srª. Maurin, beijando-a. - Como dormiste? Declaro-te que a partir de hoje vais vestir-te de rapariga, conforme tens direito. Diz adeus aos velhos calções de rapaz, minha querida.

Minet-Joli deixou-se vestir e olhou-se no grande espelho, com admiração: aquela alta rapariga de vestido de seda com riscas azuis, era na verdade o ciganinho perdido que se escondia na estrebaria do velho coronel do Império para lhe roubar chouriço da dispensa?

- A toilette não acabou - disse Laurinha, saltando à sua volta com alegre impaciência, - é preciso uma fita larga e encarnada nos cabelos, como uma senhorita.

Neste momento o sr. Maurin bateu à porta. Entrou com ar preocupado, seguido por Patrício e pelo coronel.

- Podemos entrar, Ágata? Tenho notícias curiosas para dar-te... Oh! A linda menina azul! Pergunto a mim próprio o que poderá pensar a austera srª. Tournerond desta transformação.

- Patrício estava de boca aberta em frente daquela desconhecida que se exercitava a fazer vénias em frente do espelho. A aventura parecia-lhe extraordinariamente romanesca.

- O caso transformou-se de uma maneira aborrecida - disse o Sr. Maurin. - Os Tournerond foram chamados ao mesmo tempo que nós à polícia e declararam com formal insistência que fora na verdade o coronel o instigador desta combinação.

- Fizeram falar o homem do cavalo preto? - perguntou a srª. Maurin.

- Infelizmente, o homem decidiu garantir que fora de facto o coronel quem lhe pagara para levar uma rapariguita morena vestida de rapaz, sobrinha da srª. Tournerond. O relato que fez pareceu verdadeiro e a segurança que manifestou é um tanto ou quanto inquietante. Pergunto a mim mesmo o que este infeliz e misterioso caso pode ocultar!

Sentada no genefluxório de veludo vermelho, a garota escutava apaixonadamente mas continuava a não perceber.

- Lembro-me - disse de modo vago - que a velha ama do' sótão da srª. Tournerond contava toda a espécie de histórias acerca da maldade da srª. Tournerond e do marido. Chegou a dizer que o irmão do meu tio assaltara diligências mas que ninguém na região o sabia. Quem sabe se é ele o salteador que procurou raptar-me! - E logo acrescentou com inocência: - De resto, não sei porquê!

O coronel estacou, fulminado.

- Isso, minha filha, é uma revelação que tem o seu interesse, se nela há qualquer coisa de exacto. Obrigado por nos haveres contado esse pormenor. És uma menina inteligente.

E saiu logo, direito à polícia, a fim de pedir que dirigissem as investigações para o lado da família Tournerond, acerca de quem nada se sabia na terra. Entretanto, o colégio reabria as aulas e Patrício dizia, pela segunda vez, adeus à família. O rapaz, habitualmente cheio de entusiasmo, parecia tristonho. A mãe, a irmã, a menina Finette, Minet-Joli e o velho tio, empoado como Luís XIV, acompanharam-no durante parte do caminho; depois o rapaz seguiu sozinho, cheio de coragem, sem se voltar para trás.

No fim desse mesmo dia um grande trem parou à porta e dele viram descer, rígido como bonecos de louça, o casal Tournerond. A senhora trazia como sempre o chapéu de Verão com grandes fitas amarelas; o homem, o chapéu alto de cerimónia. Segurava a bengala de prata à altura do nariz, conforme a moda. Pareciam ambos terrivelmente cerimoniosos.

- Meu Deus! - murmurou a srª. Maurin pondo o nariz de fora da janela. - Aí vem o par indesejável. Minet-Joli, vai esconder-te no fundo da casa; direi que andas a passear.

O sr. e a srª. Tournerond entraram para o salão, fazendo vénias.

- Querida senhora, querida amável vizinha - exclamou a srª. Tournerond agitando-se no rebordo da cadeira, - viemos, meu marido e eu, cheios de reconhecimento, agradecer ao sr. Maurin a sua coragem e a si, minha senhora, bondosa senhora, a sua gentil hospitalidade. A vós certamente deve a nossa orfãzinha não ter sido vítima de um escândalo odioso.

Mostrava no rosto antipático um sorriso meloso e postiço; o marido acariciava, com gesto maníaco, a pelúcia cinzenta do chapéu alto.

- E vimos - acrescentou a dama - tirar-lhes o encargo da vigilância aborrecida da nossa querida menina.

- Não merecemos tão calorosos agradecimentos - respondeu a srª. Maurin com a sua voz meiga. - Não fizemos senão o que manda a mais elementar amizade e cortesia de boa vizinhança. Essa garota é tão encantadora! Anda a passear com a minha filha neste momento.

A srª. Amada agitou-se mais na beira do delicado cadeirão forrado de seda antiga cor de ameixa e agradeceu mais uma vez com insuportável exagero.

- Peço-lhes que ma deixem ficar alguns dias mais - propôs a Srª. Maurin com um sorriso. - É uma companhia tão encantadora para a minha filha Laurinha que nunca soube brincar sozinha! Desta forma, durante alguns dias, nestes primeiros dias da reabertura das aulas, que devem ser para os senhores bastante estafantes, ficarão aliviados por esse lado.

- Oh! Certamente... - murmurou a Srª Tournerond, hesitando.

Não havia razão para que recusassem, mas mostravam-se reticentes. Um momento depois, com a promessa de que devolveriam Minet-Joli daí a três dias, repetiram a reverência, fizeram um esgar de sorriso e desapareceram no grande trem.

Minet-Joli entreabriu a porta e mostrou um rosto aterrorizado:

- Será forçoso que eu volte àquele horrível quarto que cheirava a cave e a palha de masmorra? Será forçoso voltar a viver na presença daquela mulher ruim? Não poderei, minha senhora, não poderei!

Tremia tanto que a Srª. Maurin a sentou nos joelhos e lhe falou durante muito tempo com meiguice e gravidade, para a acalmar. Laurinha choramingava a seus pés.

Amanhã e o dia seguintes passaram tranqüilamente sem a visita da dama. A srª. Maurin e os hóspedes alegraram-se. Minet-Joli voltava a esperar um imprevisível milagre. Só bastante tarde, no dia seguinte, o trote de cavalos e a chegada de uma carruagem fizeram correr para as janelas os moradores da bonita casa. Era apenas o Sr. Maurin seguido pelo coronel e por Albino, o jardineiro, que trazia o braço ao peito.

- Extraordinário romance! - berrou o coronel do limiar da porta. - Rapariguinha, anda cá para que te beije. Este dia será possivelmente o da minha última batalha e da minha derradeira vitória.

Fez Minet-Joli pular alegremente e foi beijar a mão da Srª. Maurin.

- Querida senhora, caros amigos, se querem ouvir uma história de ladrões, uma longa e incrível história, sentem-se à minha volta.

Meteu o cachimbo no bolso, tornou a tirá-lo, guardou-o outra vez e começou a andar de um lado para o outro.

- Estava esta manhã na polícia - começou, - quando vejo entrar uma mulher muito velha, uma espécie de ama da Bela do Bosque Adormecido, com uma touca plissada. Dois homens seguravam-na. A mulher fez uma reverência e começou a falar com uma vozinha aguda e sem a mínima timidez. Eis o seu relato:

"- Chamo-me Ballérine Buchet, senhor juiz. Estes senhores guardas foram procurar-me no sótão onde fio há já vinte anos e para lhes agradecer por me haverem tirado de lá, quero contar-lhes tudo quanto sei. Há coisas que devemos confessar, se podem servir para castigar gente ruim.

"O juiz perguntou-lhe se tinha ouvido falar de um irmão do Sr. Tournerond, que era um antigo salteador.

"- Perfeitamente, Sr. Juiz, ouvi falar dele. Cheguei a recebê-lo, uma noite, há já vinte e cinco anos, alguns meses após o casamento da menina Amada. Fui eu quem lhe abriu a porta. Julguei perceber, pelo que se seguiu, que viera buscar dinheiro e que ameaçava fazer escândalo no sítio se lho não dessem. De manhãzinha, desapareceu.

"- E poderia reconhecê-lo, no fim de tantos anos, boa mulher?

"- Reconhecê-lo-ia perfeitamente, senhor juiz, por uma pequena coisa que vou dizer-lhes: de tem falta do dedo mínimo da mão esquerda. Isso deu-me nas vistas no momento em que levantava a gola do casaco.

"Houve então um burburinho e uma longa exclamação na sala: o bandido barbado, o raptor de Minet-Joli também não tinha mais do que quatro dedos da mão esquerda. O juiz ainda fez outra pergunta à velhota que não desejava senão falar.

"- Sabe mais coisas acerca dessa pessoa, boa mulher?

"- Sei, senhor juiz, que é um engraçadinho que assaltava quem passava, assim como as diligências. Foi salteador, segundo me confiou o pai da menina Amada à hora da morte. O bom homem morreu com o desgosto desse casamento, porque a família Amada era uma família honesta.

"- A senhora Amada é bondosa para si?

"- Ah! Senhor juiz, pode chamar-se bondade lançar a velha ama para o sótão, dar-lhe uma enxerga e obrigá-la a fiar todo o dia para ganhar o caldo que come? É uma mulher sem piedade e sem honestidade. Quero ainda dizer uma coisa: soube que ela recolheu uma filha da sua prima Isabel Rousselin e posso afirmar-lhe, senhor juiz, que a criança não vive como deveria viver uma criança da sua idade e do seu meio. É um dó!"

O coronel fez uma pausa. Os olhos brilhavam-lhe. Prosseguiu:

- No banco da direita ouviram-se protestos; era a Srª. Tournerond que vociferava e procurava atirar-se para a frente armada com o guarda-chuva, cujo cabo era uma grande cabeça de pato com olhos de pedras amarelas. Pediram-lhe delicadamente que esperasse a sua vez de falar; mandaram depois entrar uma rapariga gorda e de faces coradas, que dá pelo nome de Aurora. Foi terrível para os patrões... Em resumo, aqui têm o caso suficientemente esclarecido para que se possa duvidar da sentença!

O coronel tirou novamente o cachimbo do bolso e bateu-o no tacão para o esvaziar.

- Mil demónios! - exclamou, confuso. - Minha senhora, creio que sujei o seu magnífico tapete.

A tarde acabou no meio de alegria geral. Nessa noite, ao despedir-se de Minet-Joli, a mãe de Laurinha beijou-a na testa sem se apiedar.

- Dorme como um anjo e sê feliz como tal, minha filha. Tenho esperanças de que teus pais estejam vivos e que irás ver o fim dos teus desgostos.

No dia seguinte, o coronel levou as duas garotas para o campo, mas, conhecendo mal a região, encontraram-se em frente das janelas sujas do colégio Tournerond, à hora em que o sol se punha.

- Mas - exclamou Minet-Joli com inquietação, - ali está o velho cemitério e o pomar dos Tournerond. Olhem, aquele telhado pontiagudo por detrás dos chorões é o horrível colégio. Parece-me que oiço gritos.

Seguiram o atalho que acompanhava a casa, tendo o cuidado de se esconderem, mas já gritos e uma espécie de tumulto inexplicável chegava até eles. O coronel parecia intrigado.

- Avancemos um pouco. Sem dúvida trata-se do recreio, mas no meu tempo, os jovens de certa idade e de certa educação não soltavam gritos assim selvagens.

Do sítio em que estavam, o caminho dominava o pátio dos alunos. Não havia ali ninguém, nem no limiar da porta, aberta para o corredor escuro. Mas o pátio e o corredor ofereciam um curioso espectáculo de desarrumação ou talvez de pilhagem.

- Pergunto a mim mesmo que se passa? Terão os Tournerond intenção de fugir à pressa, antes que a polícia descubra muita coisa aborrecida na vida e em casa deles?

Avançaram até meio da pequena entrada sempre fechada com cadeias e cadeados e encontraram o campo livre. Os gritos e as cantigas não vinham do exterior mas da casa.

- Não percebo o que se passa. Os Tournerond talvez tenham partido e os alunos invadiram possivelmente os quartos de cima?

Em frente da porta estavam amontoados bancos da sala de estudo, colchões, mesas de cabeceira, cadeiras, numa misturada heteróclita, de resto inquietante. As coisas pareciam ali reunidas para uma fogueira.

Minet-Joli, ousada, contornou a casa e aproximou-se timidamente da janela baixa, que era a do gabinete sacrossanto do Sr. Tournerond. Ali, pondo-se na ponta dos pés, viu um espectáculo que a fez logo atirar-se para trás: a sala estava invadida pela penumbra, mas no meio da penumbra e da desordem via a Srª. Tournerond em saia de baixo de tecido vermelho e lamparina na mão. Tinha um ar espantado e os compridos cabelos caíam-lhe pelas costas. Devia murmurar orações ou pragas pois os lábios

agitavam-se-lhe numa espécie de cantilena bastante lúgubre. Mais longe, ao fundo da sala, o Sr. Tournerond estava de gatas no chão e já não era o director de colégio empertigado na casaca impecável, de lunetas de ouro na mão, mas um extraordinário personagem de comédia burlesca, em calção amarelo pálido e que, naquela atitude pouco distinta, parecia escavar um buraco, precipitadamente, entre duas tábuas do soalho.

Minet-Joli ficou um momento apoiada à parede, arquejante, não percebendo nada daquele espectáculo de pesadelo. A curiosidade foi mais forte que o medo; olhou mais uma vez e compreendeu que seu tio estava simplesmente a esconder um cofre num esconderijo que acabava de abrir.

O homem levantou a cabeça por um momento apenas, mas deve ter visto o rostozinho infantil e pasmado entre as grades da janela porque soltou um verdadeiro urro seguido de um transbordar de invectivas e de imprecações que fizeram com que a rapariguinha, aterrorizada, fugisse a sete pés.

De repente, surgiu a uma das janelas do primeiro andar uma cabeça, a seguir outra, logo após umas dez e os dezoito alunos do colégio soltaram ao mesmo tempo um clamor selvagem à guisa de cumprimentos aos recém-chegados.

- Chamo a isso amotinação, sem tirar nem pôr - murmurou o coronel. - É certo que esses energúmenos merecem um par de açoites, mas, no fim de contas, não gosto muito do casal Tournerond para os lamentar pela pilhagem de sua casa.

Patrício e os colegas alinharam-se em frente do velho oficial, vagamente inquietos, os cabelos desgrenhados, os fatos rasgados, as faces e as mãos sujas de tinta roxa.

- Sabem o que me fazem lembrar? - prosseguiu o coronel severamente. - Os salteadores do exército da Rússia chamados a conselho de disciplina.

- É a revolta do batalhão perante oficiais indignos - respondeu Patrício com segurança. - Esteve em Gramat, esta tarde, coronel? Sabe o que resultou das últimas revelações das testemunhas no famoso caso de

- Minet-Joli? Resultou, nem mais nem menos, que os Tournerond tinham intenção de fazê-la desaparecer para se apoderarem da herança da avó, a rica senhora Rousselin. Suportámos o chicote, a má alimentação, as reguadas nos dedos gelados; mas não suportaremos ter por director um bandido.

- Hum! - fez o coronel retorcendo o bigode. - Acho que a vossa indignação é legítima, e que ninguém a partilha mais que eu que me vi desastrosamente misturado nesse caso odioso; contudo, penso que não é papel para garotos castigar os criminosos. A justiça lá está para o fazer.

- Senhor - gritaram as dezoito vozes em uníssono, - surpreendemo-los disfarçados de camponeses, carregados de embrulhos, prontos a fugirem. Atirámo-nos a eles; barramo-lhes o caminho e...

- Não percebo nada do que estão a dizer. Ordem e disciplina, senhores! Então, que se passou?

- Fechámo-los no gabinete directorial e, porque lutavam, não sei bem o que se passou, mas encontraram-se quase despidos. Era de um cómico!

- Hum! - fez o coronel sem se atrever a mostrar a sua vontade de rir.

- E depois demos volta à chave, é tudo!

A classe inteira desatou a rir e a alegria durava ainda quando três guardas a cavalo desembocaram por entre o nevoeiro do caminho. Traziam um mandato de captura contra o excelso director e a virtuosa directora do colégio Tournerond. Permitiram-lhes, contudo, vestirem-se decentemente para atravessarem as duas filas de alunos aprumados em frente da porta e suportar a curiosidade da multidão amontoada diante da prisão.

Passaram, de cabeça alta. O coronel afastara-se com as duas garotas.

- O amor exagerado pelo dinheiro é um vício tão perigoso quanto o amor pelas batalhas e as conquistas - murmurou o coronel, filosofando, de cabeça baixa. - Vamos, meninas, voltemos depressa para casa antes da noite...

Parecia enorme sob o céu esverdeado, qual D. Quixote levando, suspensas do fato, duas pequeninas fadas do tamanho de avelãs e que depressa a noite escondeu.

Minet-Joli readquiria as faces redondas e a alegria de viver dos seus dez anos. Patrício ainda lá estava, enquanto esperava ir para um novo colégio e o coronel o fazia estudar história e latim, assim como às duas raparigas. Foi um tempo alegre para a casa. Minet-Joli fazia, na verdade, parte da família.

O processo Tournerond todos os dias trazia elementos sensacionais. E foi assim que se soube que o pedinte barbudo a quem a srª. Tournerond acolhera tão calorosamente, contra seu hábito, era, nem mais nem menos, uma vez mais, o irmão do sr. Tournerond. O pequeno retrato, a carta, o pingente e a lamentável história do derradeiro adeus da jovem senhora amarrada na praça pública de uma cidadezinha napolitana, fazia parte das pequenas recordações e da maldosa imaginação da Srª. Tournerond. Perante tais revelações, o presidente do Tribunal fizera ainda umas últimas perguntas aos acusados.

- Contudo - dissera ele, - para herdar dos pais e da criança, sabiam bem que precisavam provas da morte de uns e de outra. Tinham então intenção de cometer um assassínio na pessoa de uma criança e também, possivelmente, na dos pais, quando conseguissem descobrir o local do seu retiro?

A Srª. Tournerond desatou a soluçar, afastando a primeira ideia e a longa premeditação do criminoso acto para cima do cunhado.

- Insisto ainda - prosseguiu o juiz -, e é especialmente a si que me dirijo, senhora: a que móbil obedecia no dia em que deu banho a uma criança já constipada, numa selha de água fria em que a deixou a tiritar durante dez minutos? E que infernal projecto mantinha, nesse outro dia que ergueu a criança por cima do vazio de um primeiro andar? Não calculava a possibilidade de deixar acreditar num suicídio da garota? Responda!

Não obteve resposta. A srª. Tournerond escondera-se sob a touca amarela. A sentença foi terrível: prisão perpétua para os acusados.

A tutela de Minet-Joli passou pois para o coronel e para a menina Finette. A garota ia partir com eles; a senhora Maurin enchia uma cesta de vime com vestidos, camisas e enfeites dos mais variados que haviam pertencido a Laurinha, a fim de abastecer o guarda-roupa da sua amiguinha.

Na antevéspera da partida, sim, na antevéspera, uma carta que dir-se-ia ter viajado muito, ter andado por muitas sacolas de correios de aldeia, foi entregue a Minet-Joli ao mesmo tempo que o creme de chocolate da sobremesa. Houve um grande silêncio atento em volta da criança que lia.

- Oh! Não percebo! - balbuciou primeiro Eu...

Depois ergueu os olhos brilhantes, deixando cair a carta por acabar de ler.

- É do papá - disse. - Estão em Roma, de boa saúde, em casa de amigos. Dizem que esperam estar juntos de mim antes do Inverno...

As despedidas foram tristes. Patrício acompanhou o carro, durante três ou quatro quilómetros, a cavalo; o rosto claro de Minet-Joli, sob o chapéu de veludo verde não deixou a portinhola durante todo o trajecto.

- Apanharás um torcicolo, minha filha - notava de vez em quando, placidamente, a menina Finette, friorentamente enrolada no seu xaile das índias - Que estás a ver?

- Vejo os patos bravos que partem em bandos para África. E vejo também Patrício que caracola como um alferes...

- Aí está! - disse enfim o rapaz, com desgosto. - Não vou mais longe. Seria demorado para regressar.

Sorriu ao meigo rostozinho que surgia da touca verde.

- Para um rapaz - disse o rapaz, tentando brincar, - ficas a matar por de baixo desse cogumelo que tens na cabeça. Acreditas?

Minet-Joli beijou a face que se lhe estendia e durante muito tempo acenou com a mão, em despedida. Patrício afastava-se, sólido e sacudido pelo cavalo, um alto cavalo de adulto; os cabelos ruivos tocavam a folhagem também ruiva dos castanheiros. Minet-Joli meteu-se no seu canto e suspirou. Era a sua primeira amizade, o seu primeiro drama. Outros e outras viriam sem dúvida, mas não lhe fariam esquecer nada do que se passava agora.

 

                                                                                Michel Davet  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"