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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RAPTO DE CATAMOUNT / Albert Bonneau
O RAPTO DE CATAMOUNT / Albert Bonneau

 

 

                                                                                                                                                 

 

 

 

Num PORTO De TEXAS
Nesse dia, Galveston estava envolvida por espessa bruma. E não se via a mínima réstia de céu azul, não só por sobre a cidade, como também na linha do horizonte.
Erguera-se um ardiloso nevoeiro que parecia querer insinuar-se por toda a parte.
No porto, através das ruas estreitas de calçadas luzidias, uma humidade penetrante impregnava a atmosfera. Os peões caminhavam com passo apressado. A maioria deles dirigia-se para o porto, ou então ia refugiar-se nas numerosas tabernas que lhes dispensavam um pouco de calor e de esquecimento.
De vez em quando o silêncio era perturbado pelo uivo de uma sereia, mas logo em seguida voltava a calma; unicamente os gritos estridentes das gaivotas ressoavam ao longo do baixo e arenoso litoral, bem como aqui e ali, o martelar dos passos de algum marinheiro atrasado.
De súbito, de entre a cortina cada vez mais compacta de nevoeiro que parecia querer cobrir toda a cidade com o seu lençol, surgiu um grupo de cinco homens. Caminhavam apressadamente, mãos nas algibeiras, vociferando contra a chuva miudinha que prometia, transformar-se bem depressa, numa valente bátega de água.
De cabeças baixas, todos eles pareciam preocupados com qualquer coisa.
- Hello, vamos até ao "Octopus" ? propôs finalmente um deles.
- Excelente ideia, aprovou um outro, tenho as articulações todas presas. Um pouco de whisky vai-nos fazer bem antes de voltarmos a embarcar nesse maldito bote!

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Um murmúrio aprovador sublinhou as suas palavras. A uns vinte passos à sua frente, janelas iluminadas mostravam o local onde se erguia o Ocopus", uma das tabernas
mais frequentadas de Galveston.
Finalmente chegaram e logo que o primeiro abriu a porta, um sopro de ar quente acariciou-lhes o rosto, acompanhado por um penetrante cheiro a cerveja e álcool.
Entraram arrastando os pés, parecendo hesitar como sempre em escolher lugar. Mas o que os precedia, um latagão de aspecto atlético e cujo rosto estava enquadrado
num colar de barba preta de azeviche, apontou para uma mesa donde acabavam de sair três clientes. Sentaram-se. Mas como o criado parecia querer fazer-se esperar,
o latagão dando um murro na mesa, gritou:
- Cinco whiskys. E depressa !
A sua voz rude perdeu-se no burburinho ensurdecedor que fazia que essa enorme sala se parecesse com uma colmeia humana. Do tecto, de enormes vigas enegrecidas, pendiam
âncoras e trofeus. As paredes estavam ornadas com cromos de todos os géneros representando episódios marítimos ; mandíbulas de tubarões seguiam-se a arpões, correntes
já ferrugentas, etc.
Mas tudo isto mal se via através da fumarada espessa e acre que irritava a garganta.
Mas que importa! essa atmosfera já há muito era familiar aos marinheiros de Galveston e a todos os outros que faziam escala no porto do Texas. Aqui jogava-se e as
discussões envenenavam-se, ameaçando por vezes degenerar em desordem; mais longe falava-se de política e trocavam-se impressões em todas as línguas.
Os rostos e o aspecto da maioria dos clientes do Octopus" não eram nada tranquilizadores, mas a taberna era a mais antiga de Galveston. Outrora, servira de quartel
general ao célebre pirata Lafitte que, sem piedade, saltava o mar das Antilhas! A fumarenta sala já fora teatro de muitas cenas movimentadas e não tinham conta os
que haviam morrido entre as suas quatro paredes durante selvagens lutas, que transformavam o estabelecimento em campo de batalha, por entre cadeiras e mesas voltadas
e copos partidos.
Os cinco homens começavam a impacientar-se.
- Que estafada esta, refilou o homem de barba negra. Ter de levar um tipo ao cemitério!
- É verdade, o pobre Kirby não teve sorte nenhuma! Nunca se saberá que doença ele apanhou no Rio!
- Demais a mais que vai tudo de mal a pior! Se isto continua, o capitão não tardará a juntar-se-lhe no reino das trevas!
Houve uma pausa, durante a qual se olharam demoradamente, enquanto os seus espíritos eram banhados pelos mesmos pensamentos e se sentiam obcecados por idênticas
preocupações.
- Em suma, observou por fim o latagão, que tirara
da algibeira um cachimbo cujo cano mordia com os dentes amarelecidos, mais valia uma situação clara! Não faz sentido, um capitão que não pode nem viver, nem morrer!
- Tens toda a razão, Trill!
Sam Trill depois de ter procurado a bolsa do tabaco, ofereceu-a num gesto largo aos camaradas que aproveitaram para fumar uma boa cachimbada.
- Em todo o caso, o problema não está resolvido, observou um homenzinho rechonchudo com uma forte pronúncia germânica. Amanhã aprestamos, e não temos ninguém para
substituir Kirby!
E, em seguida, acentuando as palavras com um murro estrondoso, acrescentou:
- Der Teupel. No entanto estamos a precisar de alguém para suceder ao Kirby que acaba de bater as botas.
- com certeza! opinou Sam Trill, enquanto se ouvia um rugido aprovador lançado por todo o grupo.
Na sua qualidade de imediato do "Sea-New" Sam Trill conhecia melhor do que ninguém qual a situação. O capitão Donald Hyatt, único patrão a bordo do três-mastros,
estava já há algum tempo perigosamente doente, não saindo sequer da cabina onde continuava estendido, lutando corajosamente contra o sofrimento. Junto dele, a filha
Claudette, esforçava-se por o tratar o melhor que podia.
O "Sea-New" ia zarpar com destino a Cuba, levando uma carga tão importante que Sam Trill estava impaciente só de pensar que se podia estar a perder um tempo precioso
em Galveston, com risco.
Mas os outros sacudiam a letargia na qual pareciam mergulhados, desde que se tinham instalado à roda da mesa, na enorme sala do "Octopus". Primeiramente tinham-se
abandonado a um doce langor procurando repousar das fadigas e da longa caminhada que tinham feito ao conduzir o camarada ao cemitério de Galveston.
Sam Trill olhou cada um dos quatro companheiros. Sabia que podia contar com eles em qualquer circunstância, pois tinha sido ele mesmo que os escolhera e que os indicara
ao capitão.
Primeiro havia Sardel, um latagão a quem os escrúpulos não atormentavam ; vindo de Baltimore com alguns pecados na consciência, já tinha trabalhado com Sam Trill,
nesses tempos longínquos em que o imediato não se importava de navegar, exercendo a sua actividade em ocupações tão equívocas como lucrativas. com um nariz de águia,
e uma grande cicatriz na cara, Sardel era um homem perigoso em toda a acepção da palavra . Sam Trill apreciava-o! Era o agente de execução mais eficiente que podia
desejar para os seus projectos futuros!
Brackson, parecia menos valente, era um gorducho que adorava a boa carne e que tinha embarcado em New-Orleans, certa noite de carnaval. Tinha manejado impunemente
a faca e teria ajustado contas com a polícia se Sam Trill não se encontrasse oportunamente presente para o livrar de embaraços! Era esta a razão por que dedicava
ao protector uma fidelidade de cão de fila!
Cobilovici, um romeno de tez trigueira, também era um aventureiro que dava para tudo e que viajara por
todos os mares do globo. Quando arregaçava as mangas da camisa, era com prazer que exibia numerosas tatuagens, outras tantas recordações dos cruzeiros passados.
No manejo do punhal, ninguém lhe levava a melhor e fora graças a ele que muitas lutas tinham acabado a favor dos marinheiros do "Sea-New" durante as muitas escalas
feitas.
Hermann completava o grupo. Esse alemão desertor, tinha encontrado, como os restantes, um oportuno refúgio a bordo do Três-mastros e os numerosos favores que devia
a Sam Trill faziam também dele um auxiliar dos mais certos.
Enquanto os companheiros acendiam os cachimbos, o imediato olhou à volta. Era grande a afluência no "Octopus", mas ninguém parecia dar a mínima atenção aos cinco
homens. Sam Trill inclinou-se, enquanto os outros se aproximavam, observando-o com uma insistência não isenta de inquietação.
- Então? aventurou o primeiro, Sardel. É desta vez que arriscamos tudo por tudo?
O imediato acenou afirmativamente com a cabeça e um breve sorriso surgiu-lhe nos lábios grossos. Depois de ter dado uma fumaça no cachimbo, declarou em voz baixa,
como se receasse ser ouvido por orelhas indiscretas:
- É desta vez, sim senhor! Quando o "Sea-New" tocar em Cuba, é preciso que seja já nosso e que não exista esse trapo velho que é o capitão Hyatt!
Os olhos dos quatro patifes iluminaram-se, enquanto Sam Trill continuava:
- Hyatt ignora por completo a espécie de carga que transportamos no porão. Julga que se trata de fardos de algodão.
- Mas se o capitão se restabelecer, o que pode ser provável, acabará por se aperceber, objectou Brackson.
A voz cortante do imediato impediu-o de terminar a frase:
- Hyatt não dará por nada, pela única razão de que, ao chegarmos a Cuba, já ele deve estar a satisfazer o apetite dos vorazes tubarões!
Cobilovici piscou o olho, ironicamente:
- À força? disse ao mesmo tempo que acariciava o cabo do punhal que trazia à cintura.
- De maneira nenhuma! acentuou Sam Trill. Apesar de tudo, quero guardar as aparências. Hyait há-de morrer de doença e, graças ao Luiggi, consegui-lo-emos, estejam
descansados! Faremos um enterro decente e eu próprio lerei as orações, como é da praxe. A pequena não pode, de maneira nenhuma, desconfiar.
Um brilho malicioso fez cintilar as pupilas de Hermann.
- Der Teufel! troçou. É verdade! Já nos tínhamos esquecido da sua existência!
- Se nos chatear, propôs o romeno, podemos obrigá-la a dar um mergulho com o pai! Os tubarões darão conta dos dois!
- Não te entusiasmes! objectou o imediato. Uma rapariguinha tão jeitosa como a Claudette Hyaít, não se encontra em todos os portos!
Cobilovici não pôde evitar uma careta:
- Isso é mau! protestou; muito mau, mesmo! Para levarmos a empresa a bom termo, é preciso que não haja nenhuma mulher metida no assunto! ? ?
Sam Trill encolheu os ombros, sorrindo:
- A miúda nunca pode ser perigosa, visto que estará à nossa inteira disposição!
Mas o romeno não pareceu ficar sossegado:
- Que interessa isso? Eu sou duma opinião: o desaparecimento puro e simples. É a única maneira de não termos aborrecimentos no futuro!
Os três restantes pareciam indecisos; se, no íntimo, concordavam com o acólito, recusavam-se a contrariar os projectos daquele que consideravam chefe e ao qual estavam
prontos a servir em qualquer emergência.
- By Jove, era o que faltava que nós fôssemos brigar por tão pouca coisa, interveio Sardel. É preciso não esquecer que temos em mãos uma missão bastante urgente!
E antes mesmo de dar tempo aos outros de replicar, Sardel insistiu:
- Lembrem-se que temos de substituir Kirby o mais cedo possível! E, se o "Sea-New" levanta ferro ama nhã de manhã, é absolutamente necessário que, até lá, tenhamos
encontrado o homem que nos falta!
Mas o imediato torceu o nariz:
- É evidente que precisamos de alguém, exclamou. Mas estou sem saber se hei-de ir ter com as autoridades do porto. Podiam lembrar-se de meter o nariz nos nossos
assuntos, e desconfiar da nossa verdadeira carga.
- Tens razão! aprovou Brackson. Há uma certa diferença entre fardos de algodão e.
- Shut up! interrompeu bruscamente Sam Trill, com receio de que pudessem ouvir a conversa.
Mas, no salão do "Octopus", ninguém prestava atenção aos cinco homens. Ouvia-se rir, brincar. Perto,
tocava um piano mecânico. Dancing-girls rodopiavam com os marinheiros. E o fumo tornava-se tão opaco, que parecia que o nevoeiro penetrara no refúgio.
Durante breves momentos Sam Trill e os quatro acólitos calaram-se, todos embrenhados numa mesma preocupação.
- No escritório, não se consegue nada ? perguntou por fim Sardel.
- Já te disse qual o motivo por que não vou ter com esses gentlemen! interrompeu o imediato.
- Tens razão apoiou Cobilovici, vale mais ser prudente. É como com a rapariga.
- Estou farto de ouvir falar na miúda! protestou Sam Trill energicamente. Estás a ouvir, Cobi, proíbo que se foque de novo esse assunto! Temos muito tempo de tratar
dela, depois de içarmos a âncora!
O romeno mordeu os lábios e acatou a ordem, mas Hermann opinou por sua vez!
- Mein Gott. Se não consegues contratar ninguém, não percebo como é que.
- Há sempre uma maneira de se resolver o problema!
E como os companheiros o observavam com um certo cepticismo, o imediato acrescentou :
- É o diabo se, daqui a algumas horas, não encontrarmos em Galveston um rapaz fácil de atrair.
- Admitindo a hipótese dele se deixar convencer? objectou o alemão que se mostrava sempre muito céptico.
- By Jove! trocou o imediato, mas é que nós nem sequer lhe perguntamos qual a sua opinião.
Brackson abanou a cabeça, enquanto assobiava ao de leve.
- Hello? perguntou. Shangaied ?
- Shangaied? repetiu o imediato sem pestanejar . Além disso não será a primeira vez que isso me acontece! Quando se procura como deve ser, encontra-se sempre a pessoa
de que se precisa!
- E se ele torce o nariz ? disse por sua vez o
romeno.
- Isso não é natural que suceda ! Tanto mais que nós empregamos argumentos que impedem esse alguém de torcer o nariz!
E ao mesmo tempo que pronunciava estas palavras, Sam Trill apontava para os copos ainda meios de whisky.
- "Contratei" um que era bêbedo como um cacho ! precisou. Fizemo-lo dobrar o Cabo Horn e o Cabo das Tormentas. E foi para seu bem! Era um ieuderfoot quando o embarcámos.
Três meses mais tarde era vê-lo dar murros em Caracas ou em Guajaquil! E fazia-o com mão de mestre!
- Isso é uma excepção à regra, opinou Sardel. A maior parte das vezes as pessoas que embarcam nessas condições trazem mais aborrecimentos que vantagens .
O imediato encolheu lentamente os ombros.
- É possível, admitiu por fim, mas se o tipo se empina muito, é fácil desembaraçarmo-nos dele!
Cobilovici apontou com a cabeça para o grupo de clientes, que se acotovelavam à roda do balcão:
- Duvido que consigas convencer um único desses gentlemen, exclamou. Parecem ter a cabeça muito
perto do boné e não consentiriam em embarcá-la na nossa galera nem que o whisky lhes subisse ao cérebro!
Um murmúrio aprovador pontuou esta frase. Sardel, Brackson e Hermann conheciam de vista a maioria dos marinheiros que povoavam nesse momento o salão do "Octopus".
E imaginavam que o projecto de ajuste forçado seria rapidamente frustrado!
No entanto, Sam Trill não parecia nada embaraçado. Depois de ter saboreado dois goles de whisky, tamborilou lentamente com os dedos grossos e nodosos. E os seus
olhos passeavam de um lado para outro dos consumidores que ocupavam as mesas.
- Para quê tanta impaciência, objectou para os companheiros que o observavam com visível embaraço. Cada coisa a seu tempo!
- Mas nós embarcamos antes que faça noite, insistiu Brackson.
- Tal é a chatice! Temos ainda algumas horas à nossa frente e daqui até lá. teremos certamente encontrado the right man in the right place!
Durante ainda um certo tempo, os cinco acólitos ficaram a discutir. De vez em quando, a porta abria-se deixando entrar um ou mais clientes. A atmosfera começava
a tornar-se irrespirável, mas ainda não tinham encontrado o tenderfoot com que contavam para substituir o infortunado Kirby que tinham acabado de acompanhar à última
morada, o cemitério de Galveston!
No entanto, apesar da perfeita serenidade que mostrava diante dos companheiros, Sam Trill começava a sentir-se inquieto. Sabia quão importante era a partida que
se propunha travar, pois a carga que transportava
podia permitir-lhe realizar um dos negócios mais vantajosos da sua aventurosa existência.
- Mais cinco whiskys! pediu a um criado que passava.
Tornaram a acender os cachimbos, sentindo-se invadidos por uma doce moleza que os obrigava a esquecer a atmosfera desagradável e gelada que se fazia sentir lá fora.
E enquanto fumava, Sam Trill deixava vogar os pensamentos.
Uma imagem surgia-lhe repetidas vezes no espírito, a de Claudette Hyait, a filha do capitão! Enquanto ele esperava impaciente, ela devia estar junto da cabeceira
do doente.
E o imediato sentia uma certa angústia, ao relembrar certa discussão que há tempos travara com Donald Hyaít. Obcecado pelo mesmo pensamento que hoje o invadia, atrevera-se
a perguntar ao Capitão, se Claudette e ele.
O Sam Trill cerrou o punho instintivamente ao rever o acolhimento que Hyatt prodigalizara ao pedido. Claudette nunca seria a mulher dum marinheiro! Ambicionava para
a única filha horizontes mais amplos, esperando com fé que ela desposasse algum funcionário que lhe assegurasse um futuro estável!
O imediato do "Sea-New" não voltara a insistir, mas a indiferença que desde então demonstrara, não passava dum fingimento. Mais do que nunca desejava ser o marido
de Claudette. A bem ou a mal, esperava obrigá-la a capitular!
- Der Teufel! Temos de reagir, propôs o alemão. O substituto de Kirby não cairá do céu como o maná dos hebreus!
- Fazes mal em estar preocupado, objectou logo o
imediato. Quando se anda à procura de alguém, podemos ter a certeza de que não o encontramos!
- E então ?
- Esperemos com calma! Ainda temos uma hora à nossa frente e não vale a pena estarmos inquietos com a sorte do capitão! A pequena vela por ele!
- Eh! Eh! troçou Sardel, enquanto mimoseava Trill com um olhar um pouco irónico, conheço alguém que daria tudo para estar no lugar do capitão.
E a brincadeira ficou por aí, pois a porta abriu-se para dar passagem a um cliente.
II
O HOMEM Do OESTE
Durante segundos, os olhares dos cinco comparsas convergiram para a entrada. O homem que surgira e que fechava a porta por detrás de si não era um desses marinheiros
que enchiam actualmente o salão da taverna. O chapéu que trazia na cabeça, o fato, os chaparejos de couro, o andar lento e pesado e as pernas ligeiramente arqueadas,
tudo denunciava que fosse do "Oeste".
O recém-chegado parou durante alguns instantes, não só surpreendido pela atmosfera sufocante e fumarenta, como também pelo contraste da temperatura exterior com
o calor que se sentia no "Octopus".
Sam Trill observava atentamente o desconhecido, sentindo-se impressionado pela expressão do seu olhar claro e pela energia que emanava de toda a sua pessoa.
- É um cow-boy. aventurou por fim Brackson.
- Um vaqueiro no meio de marinheiros! troçou Sardel.
Cobilovici e o alemão nada disseram, parecendo no entanto também um pouco intrigados com a aparição. Mas Hermann não pôde reter por mais tempo as palavras que lhe
queimavam a boca:
- Aquele de que precisamos, segredou ao ouvido de Sam Trill, apareceu finalmente!
Um murmúrio de aprovação demonstrou que estavam todos de acordo.
O homem desconhecido deu alguns passos na direcção do balcão, mas deve ter-se assustado pela afluência, visto que recuou, indo o seu olhar pousar-se na tripla fila
de mesas, também todas elas ocupadas.
- Hello, boy. Venha para ao pé de nós!- Temos aqui lugar!
Sam Trill quebrara bruscamente a reserva que já há momentos o invadira. Enquanto os quatro companheiros se mantinham imóveis, ele chamava o recém-chegado com um
gesto amigável.
De princípio, o desconhecido hesitou antes de corresponder ao convite do imediato do "Sea-New". Franziu ligeiramente as sobrancelhas, mas como Sam Trill insistisse
com ardor, decidiu-se a aceitar, encaminhando-se para o grupo com um andar arrastado que contrastava com o dos marinheiros.
- Depressa, um tamborete! segredou o imediato a Brackson, indicando-lhe um que estava perto dele.
Este apressou-se a corresponder à ordem que lhe fora dada. Mas o convidado parara a dois passos do grupo. E examinava detidamente Sam Trill e os companheiros .
- Há aqui lugar para si, old boy/. insistiu o imediato mais afável do que nunca.
E, enquanto o desconhecido se decidia finalmente a sentar-se, chamou um criado:
- Um whisky e depressa!
Durante breves instantes mantiveram-se calados, parecendo que o homem do Oeste estava encantado por ter finalmente onde se sentar. Mas apesar da satisfação
que se lia no seu rosto, ainda não proferira uma simples palavra.
- Parece vir de longe! exclamou Sam Trill.
- Sim, de muito longe!
Na verdade o homem não parecia muito comunicativo. Tirou o chapéu e com a manga limpou o suor que lhe escorria pela cara.
- Isto aqui não é um saloon, objectou o imediato, mas sim uma caixa de marinheiros!
O recém-chegado teve um gesto vago, como que desinteressado com a diferença. Os quatro acólitos de Sam Trill continuavam a observá-lo com um interesse não desprovido
dum certo espanto. E quando o imediato lhes piscou o olho todos compreenderam.
Sam Trill lembrava-se realmente da discussão que tivera com os companheiros. E o estranho parecia-lhe realmente the right man in the right place para suceder ao
malogrado Kirby. À primeira impressão, podia facilmente ver-se que se tratava dum homem destemido. De tez bronzeada, ar resoluto, devia ser um bom cavaleiro. O cinturão
e as coronhas dos dois revólveres que emergiam dos coldres sobre as ancas, levavam também a pensar que o manejo das armas lhe era certamente familiar.
Num rápido olhar, Sam Trill analisara-o:
- Aspecto sólido! Um pouco mais de quarenta anos, alguns cabelos brancos. Não deve estar habituado ao mar, mas acho que se pode fazer qualquer coisa de jeito por
ele!
A atitude de Sardel e dos outros três, parecia-lhe também favorável! O convidado não se confundia, realmente, nem longe, com o tenderfoot de que o imediato
falara há pouco. Mas era de calcular que um homem dessa têmpera não se deixaria facilmente iludir ! No entanto, Sam Trill não desanimava e sentia-se decidido a tentar
a aventura! O importante era certamente embebedá-lo! Se conseguisse entontecê-lo e obrigá-lo a beber bem, facilmente o levaria para bordo do três-mastros! um brilho
de satisfação fez rebrilhar os seus olhos, ao constatar que o homem do Oeste agarrava avidamente no copo cheio de whisky que o criado lhe tinha acabado de pôr à
frente.
- Isto faz bem ? interrogou ele.
E, como o seu novo companheiro levasse a mão ao cinturão como que a procurar uma moeda, Sam Trill apressou-se a reclamar:
- Nem por sombras. Hoje, quem paga, sou eu. É a minha vez! Não é verdade, my boys?
E enquanto pronunciava estas palavras, voltou-se para os companheiros que se apressaram a concordar.
- Então, insistiu Sam Trill, mais sorridente do que nunca. Mais outro copo!
O homem de olhos claros fez um sinal afirmativo com a cabeça.
Continuava calado, mas o imediato, dando-lhe uma palmada amigável nas costas, encetou novamente o interrogatório.
- Você é de Houston ? perguntou.
- Que ideia! foi a lacónica resposta do interpelado .
- Veio até aqui por causa de animais?
Novo sinal afirmativo com a cabeça. Quanto
mais curioso se mostrava Sam Trill, mais o vizinho parecia obstinado em continuar na defensiva.
- Mas não chegou a Houston sozinho, repisou Sam Trill, trazia com certeza companheiros?
- Pois trazia, concordou o desconhecido, mas o trabalho era muito pesado e não quero voltar para o rancho! O boss paga muito mal!
- By Jove! Mas você está à procura dum emprego ?
Olhando à volta, Sam Trill consultou os acólitos, mas Hermann fez-lhe sinal para que esperasse mais um pouco. Sem saber porquê, o alemão sentia uma certa desconfiança.
- Mais outro whisky! insistiu então o imediato do "Sea-New".
O desconhecido não se fez rogado e, com gestos lentos, procurou a cigarreira.
- Um cigarro ?
- Obrigado. Mas fumamos todos cachimbo!
- Nesse caso.
Tirou um cigarro e calmamente acendeu-o com o isqueiro.
- Chamo-me Sam Trill, disse o imediato enquanto dava uma fumaça. E você?
- BiH Lern.
- Pois bem, Bil Lern, propôs Sam Trill, se quiser, temos um lugar para si.
- Um lugar.
Hermann abanou a cabeça, continuando a sentir a mesma instintiva desconfiança. Mas a sua expressão amenizou-se ao ouvir o cow-boy interrogar:
- Conhece outro rancho, aqui na região?
- Não se trata disso, objectou Sam Trill; procuramos alguém para substituir um dos nossos marinheiros.
- Marinheiro? Nem pensar!
Mas ao ver que o seu anfitrião queria insistir, apressou-se a desenganá-lo:
- Hello, não tenho costela de homem do mar! Prefiro a terra firme!
O seu rosto estava agora mais colorido e o olhar iluminava-se de reflexos furtivos. E, apesar de se manter numa defensiva que exasperava os que o rodeavam, continuava
a mostrar uma nítida propensão para o whisky.
- Outro copo? propôs Sam Trill assim que o viu esvaziar o terceiro.
Não disse que sim, nem que não. Então, numa piscadela de olho, o imediato deu a entender aos auxiliares que esperava sair-se bem da tentativa.
Esperaram ainda durante um certo tempo. Bill Lern assim que fumava um cigarro acendia logo outro, e continuava a responder por monossílabos às insistentes perguntas
que Sam Trill lhe fazia. Mas essa reserva já não preocupava o imediato como a princípio. Via o homem do Oeste tornar-se, pouco a pouco, inconsciente, devido aos
vapores do whisky.
- Se fôssemos dar uma volta até lá fora? propôs por fim Sardel.
Como resposta, Bill Lern contentou-se em resmungar, mas conseguiu levantar-se, enquanto Sam Trill pagava a despesa.
- Eia! Que peso! disse.
- Não se preocupe, objectou o imediato, nós estamos aqui!
com um ligeiro sinal, chamou Sardel e Bracksoqí que deixaram os lugares para irem para junto do novo companheiro.
- Como me sinto pesado esta noite! repetiu cambaleante.
- Descanse que nós seguramo-lo!
Sam Trill não conseguia disfarçar uma enorme satisfação. O homem que viera do Oeste, apesar da aparência imponente, já pouca resistência devia opor.
- Estão prontos ? insistiu o imediato. Amparem-no. Sardel e Brackson obedeceram prontamente, mas
foi-lhes difícil pôr Bill Lern em pé.
- Obrigado! Mas não era preciso ajudarem-me!
Como que a desmentir-se, tropeçou e se, de novo, não o tivessem auxiliado, teria caído no chão.
Esta cena foi observada por várias pessoas e por isso ouviram-se risos aqui e ali. Mas Sardel e Brackson lá conseguiram segurar o bêbedo até à saída. Atrás deles,
caminhava o imediato com Hermann e Cobilovici.
- Vá lá mais uma ajudinha!
Bill Lern pareceu estremecer ao primeiro contacto com o ar frio e húmido. E, com um gesto brusco, quis afastar os companheiros.
- Deixem-me, gritou. Posso perfeitamente.
Mas ao embicar numa pedra, quase se estatelou ao comprido.
- God! murmurou.
- Hello; encoste-se a nós!
Já farto de opor resistência, deixou-se levar.
- Para onde vamos nós ? perguntou Brackson ao imediato.
E logo este respondeu:
- Para o barco, é claro!
Bill Lern, ao ouvir estas palavras, pareceu reagir:
- Eh lá! Então, e o meu cavalo? É preciso que.
Mas não acabou a frase. Em contrapartida lançou uma série de impropérios, que nenhum dos companheiros conseguiu perceber.
Finalmente Sam Trill tinha o homem que há muito procurava. Era uma presa fácil, pois não havia perigo da sua falta ser notada! Facilmente o levariam para bordo,
devido ao actual estado.
Era de calcular que ele não se deixasse raptar de livre vontade! Mas uma vez a bordo e no mar alto, domariam a vítima.
Realmente, a coisa encaminhava-se bem e, além disso, já não era a primeira vez que Sam Trill "contratava" uma pessoa dessa mesma maneira. Já várias vezes tinha recorrido
e com que sucesso, a esse sistema deveras rápido.
- Depressa, murmurou ao ouvido de Cobilovici. Avisa os outros que andem com mais ligeireza!
Era absolutamente preciso que não desconfiassem que se tratava dum rapto. Sardel e Brackson começaram a cantar a meia voz, enquanto continuavam a amparar, como podiam,
o homem do Oeste.
Finalmente chegaram ao porto. À sua passagem, quase toda a gente se voltava. Parecia um grupo de alegres borrachos, e Bill deixava-se levar sem a mínima objecção.
As docas abarrotavam de mercadorias de todas as espécies, de pipas e de um grande número de fardos de algodão. Caminharam prudentemente, para evitar tropeçar nos
cabos e nas várias cordas de amarração.
Um pálido sol conseguia romper o nevoeiro. Galveston aparecia finalmente limpa da bruma em que estivera envolvida desde que principiara a madrugada. Construído na
extremidade oriental duma ilha arenosa, o porto fora aumentado em 1836, data em que tinham sido edificadas as primeiras habitações e na qual a cidade tomara o nome
do fazendeiro Galvez. Mais além surgia a baía tranquila e antigo refúgio do pirata Lafitte que aí abrigava toda a frota, antes de tentar a abordagem.
À esquerda, via-se surgir do meio da neblina, a ponta de Porto-Bolívar. Mas Bill Lern estava demasiado preocupado com o caminho que pisava para ver o que o rodeava.
Deixava-se levar sem oposição, tal como um autómato, limitando-se a lançar uma ou outra exclamação quando lhe surgia qualquer obstáculo.
Ao longo do molhe, via-se um mar de mastros alinhados. Um cheiro pronunciado a alcatrão e a salmoira pesava na atmosfera. Gaivotas passavam, elegantemente, nesse
céu que a pouco e pouco se tornava azul.
Como tivessem deparado com carregadores atarefados, o grupo teve de se desviar inúmeras vezes antes de chegar ao "Sea-New" que se baloiçava docemente nas quietas
águas.
- Chegámos finalmente. murmurou Sam Trill.
com efeito, o rapto estava a decorrer com um mínimo de riscos e nenhum dos marinheiros presentes
estranhou ver um cow-boy na companhia de gente do mar! Além disso todos tinham os seus problemas. Quando o grupo chegou à ponte estreita, Bill Lern hesitou e quis
voltar para trás.
- Suba lá! aconselhou-lhe Sam Trill, sorrindo.
- Oiça cá. Mas olhe que isto está a mexer muito.
- Ande para a frente, depois lhe explico.
Mas foi preciso Sardel e Brackson empurrarem-no.
- Cuidado! exclamou o imediato, daqui a pouco caem ao mar!
Ao ver a água e as ondas batendo docemente contra o molhe, Bill Lern pareceu ficar atordoado; mas dando-lhe um empurrão mais forte, os dois companheiros obrigaram-no
a dar mais um passo e a entrar assim a bordo do "Sea-New" !
Sam Trill sabia que já o tinha seguro, e como tal resolveu recorrer a meios mais lucrativos.
- Hello! disse dirigindo-se a Cobilovici.
O romeno tirou imediatamente o revólver da algibeira, mas em vez de o empunhar, pegou-lhe no cano.
- Mas o que é isto? Onde estou eu? Não percebo nada.
Bill Lern começava a sentir o balanço do navio e quis livrar-se dos dois guarda-costas. Mas Sam Trill fez um novo sinal a Cobilovici. Este, brandindo a arma como
se se tratasse duma matraca, bateu com toda a alma na nuca do novo marinheiro.
Desta vez, Bill Lern apenas soltou um surdo gemido, após o que caiu desamparado.
- E agora, declarou Sam Trill, apontando para o cinturão da mais recente vítima, tirem-lhe esse arsenal!
Hermann e Sardel obedeceram prontamente e, em poucos segundos, despojaram o desgraçado das armas e de todos os objectos que trazia nas algibeiras. Agarraram-no pelos
joelhos e pelos braços e levaram-no rapidamente para as escotilhas.
- Fechem-no no porão quanto antes ! ordenou o imediato.
III
A Filha DO CAPITÃO
- Estamos no alto mar, honey?
- Estamos sim, Pai. Saímos de Galveston logo pela manhã.
O capitão Hyatt tentou sentar-se. Através da vigia, via a linha regular e ondulante das ondas e uma faixa de céu azul semeado de nuvens vaporosas. Foi devido ao
movimento regular do barco, ao ranger intermitente da madeira e ao estalar das vagas contra o casco, que depreendeu que o "Sea-New" navegava já em pleno oceano.
No entanto, não pôde suster um gemido.
- Dói-lhe alguma coisa, Pai? interrogou Claudette, mostrando uma expressão assustada.
Donald Hyatt encolheu os ombros:
- Na verdade, não se pode dizer que me doa isto ou aquilo, disse numa voz fraca, mas de vez em quando sinto como que uma espécie de vertigem. Parece-me que vou cair
num poço sem fundo. E além disto, é agora e sempre esta maldita opressão que não me deixa.
Calou-se por instantes, cansado do esforço despendido, mas logo continuou:
- Não há nada a fazer quando se chega a este ponto. Estou acabado, disso tenho a certeza!
Não diga isso! O Pai ainda nem sequer tem quarenta e cinco anos !
Um vago sorriso iluminou o rosto crispado do capitão.
- Olha bem para mim. Não vês estes cabelos que se tornaram subitamente brancos, estas faces encovadas, esta palidez e esta fraqueza que aumenta dia a dia? O melhor
que temos a fazer é enfrentar a verdade. Mais uns diazinhos e pronto.
- É impossível! protestou a rapariga energicamente. Deus não deve permitir semelhante coisa.
O doente abanou a cabeça com tristeza e resignação :
- Deus com certeza que tem mais que fazer, do que prestar atenção a um pobre homem como eu, murmurou suspirando.
- Nunca devemos duvidar da Sua misericórdia, objectou Claudette. Acredita-me, por muito desconcertantes e angustiosas que sejam as aparências, devemos ter sempre fé !
E ao pronunciar estas palavras, segurou na mão do doente com os dedos nervosos. E os olhos grandes e dum azul celestial, não conseguiam afastar-se desse rosto macilento
e burilado pelos sofrimentos e pela doença.
Mantiveram-se assim durante um longo espaço de tempo, embalados pelo movimento igual do barco. De quando em quando, uma gaivota passava-lhe quase por sobre as cabeças.
Mas Hyat apenas via a filha e, subitamente, apertou o pulso de Claudette com força.
- Tenho medo. murmurou quase imperceptivelmente.
- O quê? indagou a rapariga.
- Tenho medo por tua causa!
Uma vez mais surgia no espírito febril do capitão, esse lancinante problema. Sabia perfeitamente que tinha a vida presa por um fio, que não lhe restavam mais do
que uns dias ou apenas algumas horas! E depois o que seria feito de Claudete, sozinha e exposta aos mais graves perigos e às mais angustiosas incertezas?
Donald Hyatt não tinha medo da morte, e já várias vezes o provara ao longo de uma aventurosa carreira, mas a perspectiva de deixar a filha entregue a si mesma, apavorava-o
verdadeiramente. O destino que a esperava e a preocupação de lhe assegurar o futuro, eram os problemas que o obcecavam sem cessar e lhe surgiam nas noites que passava
em claro!
De vez em quando Claudette quebrava a sua imobilidade para limpar a face encharcada de suor do seu companheiro. E o Capitão rememorou a sua vida passada. Revia Houston
e evocava as horas felizes que passara na companhia de Teresa, uma canadiana de Montreal, com quem casara. Faziam um par muito unido, e o nascimento de Claudette
enchera de felicidade essa época radiosa da sua existência.
Mas, há perto dum ano, Teresa partira para sempre, vitimada por uma doença súbita. E Hyatt que até aí se preocupava apenas em conduzir o "Sea-New" ao seu destino,
viu-se a braços com uma preocupação ainda obcecante!
Até aqui o velho lobo do mar afrontara corajosamente todos os obstáculos, pois tinha uma constituição robusta.
Mas, bruscamente, depois de partirem do Rio, a
doença surgira, pérfida, sorrateira, enfraquecendo-o e tornando-o tão débil como uma criança.
Durante este cruzeiro que levaria o três-mastros a Galveston e ao mar das Antilhas, Claudette teimou em acompanhar o pai. Primeiramente, Hyatt protestou, pois achava
que o lugar duma rapariga não era a bordo, exposta aos piores riscos. Mas ela insistia em acompanhá-lo devido ao seu estado de fraqueza, e era essa a razão pela
qual se encontrava fechada nesse camarote à cabeceira do capitão que a observava com uma expressão condoída.
- Claudette! murmurou. O que vai ser de ti?
- Só Deus o sabe, Pai! objectou com calma e esforçando-se por sorrir. Mas acho melhor que deixes a tua imaginação sossegada! Em vez de pensarmos no pior, devemos
antes esperar na cura que, certamente, não tarda!
- A cura ?
Os olhos de Donald Hyalt encheram-se duma inexplicável melancolia, ao ouvir palavras tão impregnadas de esperança e optimismo. Mas apesar de saber que já nada de
bom havia a esperar, visto que não tinha ilusões acerca do seu estado, não insistiu para não a entristecer.
Suavemente embalado pela ondulação, o capitão fechou os olhos, Claudete colocou-lhe delicadamente a mão em cima, através dos lençóis e quando ele estava quase a
adormecer, ouviu-se um leve rangido.
A rapariga voltou-se, bruscamente surpreendida, e o olhar endureceu-se-lhe ao ver um homem através da grelha da porta.
- Sou eu, Trill! anunciou o visitante.
Claudette fez-lhe sinal para que não fizesse barulho, pois o doente precisava de descansar, mas Hyat levantou a cabeça e semiabrindo os olhos, disse com voz débil:
- É você, Trill?
- Sim capitão, sou eu!
- O. K.! Venha cá!
Sam Trill apressou-se a obedecer enquanto Claudete se afastava discretamente.
Desde que o conhecera, pouco antes da partida de Boston, a rapariga sentia uma antipatia inexplicável por aquele homem. Tratava-a sempre com amabilidade e deferência,
mas Claudette por muito que se dominasse, não conseguia dissipar a má impressão que nutria por esse personagem que surgira há pouco na sua vida e cujo passado ignorava.
Hyatt já por várias vezes tentara chamá-la à razão, ao ver a atitude reservada da filha para com o novo auxiliar. Tinha a máxima confiança em Sam Trill, para quem
o mar e a navegação não tinham segredos; e até aqui não se podia queixar dos seus serviços. Dócil, dedicado e possuidor duma energia apreciável, soubera nos piores
momentos dominar os rebeldes e conduzi-los a uma disciplina severa!
Há dez dias que o capitão se encontrava no camarote e, nesse espaço de tempo, o imediato cumprira a sua obrigação com consciência, tendo-se encarregado de tudo durante
a escala em Galveston que se tinha prolongado por vários dias, e durante a qual haviam perdido o infeliz Kirby, recentemente contratado no Rio!
Uma vez mais, Claudetie foi arrancada aos seus pensamentos, pela voz fraca de Hyat:
- Então, Trill! Que tal está o **"Sea-New" ?
- Na sua melhor forma, capitão, respondeu solicitamente Sam Trill com o melhor dos sorrisos. As avarias que sofreu na travessia do Rio para Galveston, acabaram de
ser reparadas. Devemos chegar a Cuba no dia previsto. A não ser que surja qualquer circunstância independente da nossa vontade, é claro.
- Todas as hipóteses são de admitir quando se navega, aprovou Hyatt. Sobretudo nestas paragens, onde as rajadas de vento são frequentes !
- Isso pouco ou nada nos atrasaria, capitão. O "Sea-New" tem resistido a coisas piores!
Hyatt aprovou com um sinal de cabeça. Veio-lhe nesse momento ao espírito a recordação de certo cruzeiro em que dobrara o Cabo das Tormentas () por entre vagas alterosas.
Fora na verdade a tempestade pior que tivera em toda a sua carreira de lobo do mar. Mas o três-mastros, triunfante, lá tinha conseguido chegar a Valparaíso.
- Valparaíso! Hawai! São Francisco! Nova Bedford!
com o olhar perdido no vago, o doente rememorava as escalas que fizera outrora e subitamente os seus olhos encheram-se de lágrimas.
- E agora já nada posso fazer, estou perdido, disse por entre soluços.
- com certeza que não está a falar a sério, capitão!
Sam Trill esforçava-se por sorrir e acalmar o
(1) Possivelmente o autor refere-se ao Cabo Bom. - N. do T.
superior, mas este insistiu, mostrando-lhe a mão agitada por um tremor convulsivo:
- Olhe para isto! Já nem sequer consigo escrever o diário de bordo!
- Mas para que se há-de preocupar, objectou o imediato, não estou aqui para o substituir?
- E a carga ?
- Está tudo em ordem, capitão, e as formalidades cumpridas. Só nos resta zarpar para Cuba.
- Não falta nenhum fardo de algodão?
- Antes de partirmos, verificámo-los por duas
vezes.
Hyatt pareceu ficar mais sossegado e o rosto amenizou-se. No entanto, uma nova preocupação lhe surgiu no espírito:
- Arranjaram quem substituísse Kirby?
- Tratámos de tudo em Galveston, capitão, e actualmente estão todos nos seus postos!
Sam Trill falava com segurança, e os argumentos acabaram por convencer o capitão de que o comando interino estava entregue em boas mãos.
Claudette, que não despegava os olhos do imediato durante a rápida entrevista, não se sentia tão confiada como o pai. E uma ruga melancólica surgiu-lhe na testa.
A calma que Sam Trill aparentava, longe de a tranquilizar, suscitava-lhe severas apreensões. Uma vez mais, apesar de se querer dominar, sentia-se mergulhada nessa
inquietação e nessas reticências que sentia ao encontrar-se frente a frente com o imediato.
- Como vê, tudo corre pelo melhor, capitão, insistiu o visitante sorrindo. E agora, apenas lhe resta reagir à doença!
- Diga antes, deixar-me morrer, rectificou Hyatt, com um sorriso amarelo.
E logo Sam Trill, protestou:
- Há-de melhorar, capitão. Tenho tanto a certeza, como dois e dois serem quatro! Isso não passa dum simples mal-estar. A sua constituição robusta vencerá certamente
todas as dificuldades!
O imediato queria continuar a falar, mas o seu interlocutor obrigou-o a calar-se:
- Acredite-me, Trill, já não tenho ilusões. Há que encarar a realidade bem de frente!
- Capitão!
- Sei apenas que me restam uns dias de vida, Trill, e é por isso que lhe quero pedir um favor.
- Diga, capitão.
Claudette esperava perto da cama, numa imobilidade de estátua. Mas foi agitada por um leve estremecimento, ao ouvir as últimas vontades do doente, e bruscamente
teve a sensação de que uma ameaça lhe pairava sobre a cabeça.
O imediato inclinara-se, enquanto o chefe tomava alento:
- É por causa de Claudette! conseguiu finalmente, murmurar.
- Da sua filha ?
Sam Trill olhou-a, mas esta continuava imóvel, se bem que tivesse empalidecido.
- É a minha única razão de vida, insistiu Hyatt e uma preocupação constante que trago comigo!
E, quando o imediato se aproximou ainda mais, o capitão fez um esforço para se levantar. Segurando-lhe na mão, disse:
- Quando eu morrer, Trill.
- Por favor, capitão!
- Deixe-me falar! Sei perfeitamente o que me espera, e mais do que ninguém que é preciso resignar-me ao inevitável. Encararei a morte com serenidade mas, antes disso.
queria.
Teve um esgar e levou a mão à garganta, pois o cansaço impedia-o de falar; mas o imediato apertou com mais força o seu pulso:
- Compreendo perfeitamente, capitão! declarou Sam Trill. Está preocupado com a sua filha. Mas descanse, pois, suceda o que suceder, velarei por ela. Quaisquer que
sejam as circunstâncias, pode contar com a minha absoluta dedicação!
A rapariga não se mexera, nem pronunciara uma única palavra, mas a expressão do seu rosto denotava o choque que lhe produzia tal conversa.
- Entrego-a nas suas mãos, Trill. Está combinado. Posso contar consigo?
O olhar do doente cravou-se no imediato com uma expressão angustiada; mas essa máscara rude amenizou-se, ao ouvi-lo responder com voz firme:
- Absolutamente, capitão, conte com a minha palavra de honra!
- Ainda bem, outra coisa não podia esperar de si.
A promessa que Sam Trill lhe fizera, aliviava-o duma enorme preocupação.
- Ouviste, Claudette? Se me acontecer alguma coisa.
E apontou para o imediato, que se esforçava por mimosear a jovem com o mais encantador dos sorrisos.
- Sim, meu pai! contentou-se em responder numa voz sumida.
- E agora, capitão, insistiu o imediato, descanse um pouco! Tenho a certeza que nada de mau acontecerá. A cura surgirá e muito mais cedo do que supõe.
E, em seguida, colocando a mão do doente sobre a colcha, indagou:
- Quer que diga ao Luiggi que lhe traga o caldo?
O capitão acenou afirmativamente:
- No entanto, recomende-lhe que o não faça tão amargo! Este gosto desagradável não me sai da boca!
- Farei todos os possíveis! Pode estar descansado !
Sam Trill, depois de ter novamente sorrido para Claudette, saiu, fechando cuidadosamente a porta do camarote.
Claudette encontrou-se de novo a sós com o doente. O esforço que este fizera tinha sido demasiado e agora fechava os olhos, já meio inconsciente. Enormes gotas de
suor escorriam-lhe pela cara e a rapariga apressava-se a enxugá-las com um lenço.
Debruçou-se sobre o pai e a sua respiração regular indicou-lhe que ele cedia finalmente ao sono. Seria uma maneira de esquecer.
Claudette não conseguia apagar a visão da curta cena que se desenrolara no pequeno quarto e que só ela testemunhara! Parecia-lhe ouvir ainda a voz cava do capitão
e uma outra, bem timbrada e plena de segurança! Longe de lhe terem apaziguado - 38
as preocupações, a promessa que o imediato fizera, apenas reavivara a angústia que a envolvia desde que entrara a bordo do "Sea-New".
- Absolutamente, capitão, conte com a minha palavra de honra!
Uma tal frase, devia tê-la tranquilizado. Mas não, aumentara até o receio da jovem. É bem certo que desejava ter um protector, mas que a escolha tivesse recaído
em Sam Trill, parecia-lhe não só temível como paradoxal! Por muito que quisesse, não conseguia adaptar-se à ideia de pedir auxilio ao imediato.
Todavia, nenhuma atitude de Sam Trill lhe dera azo a que receasse a sua sorte! Era correcto, solícito, e tudo levava a crer que seria fiel à promessa se por um infeliz
acaso, Hyatt sucumbisse à doença! Apesar de tudo isto, não conseguia afastar esse sentimento de medo e de incerteza, que a oprimia ainda mais, desde que o imediato
os visitara!
- Meu Deus, suplicou, protegei-me, tende dó de mim. Afastai a impressão lancinante de que corro um grave perigo. E sobretudo, olhai pelo meu pai. Não o deixeis morrer!
No auge do desespero, Claudette invocava a Providência que parecia tê-la abandonado desde que perdera a mãe!
Ao certo, não saberia dizer quanto tempo esteve mergulhada em tristes pensamentos. Junto a Hyat continuava a dormir tranquilamente. Súbito, ao ouvir alguém bater
à porta, a rapariga estremeceu.
- Quem é? perguntou imediatamente.
-Sou eu, o Luiggi, e trago aqui o caldo do capitão! Claudette esforçou-se por reagir e foi abrir a porta ao cozinheiro-chefe.
IV
EMBARCADO À foRÇA
- Ai! A minha cabeça!
Catamount tentava endireitar-se, se bem que ainda meio mergulhado nessa inconsciência em que estava há horas, e esfregava a nuca dorida.
Estava envolto numa escuridão completa e sentia o odor do alcatrão, e uma frescura húmida penetrando-lhe por todo o corpo. Quis levantar-se, mas sentiu que duas
algemas lhe seguravam os tornozelos, obrigando-o a uma imobilidade forçada.
- God
Ainda atordoado, procurou pôr as ideias em ordem. Depois dum curto período de confusão e incerteza, começou a rever tudo, nitidamente.
O porto de Galveston. A Taverna do "Ocupus". Os copos de whisky tão amavelmente oferecidos por Sam Trill, tudo lhe veio à memória. E então, reviu o caminho que trilhara
até chegar junto à ponte do "Sea-New", que lhe custara tanto a subir. E depois disto, tinha sido essa súbita dor na nuca que o impedira de reagir e o mergulhara
numa profunda inconsciência.
O acordar era demasiado penoso, e Catamount procurava desentorpecer os membros cansados.
- Shangaied! É a primeira vez na vida que me
acontece semelhante coisa! E, segundo parece, estamos no mar alto. Tenho de me sujeitar, pois que, por agora, nada posso fazer!
E, passando de novo a mão pela nuca, disse de si para si:
- Bill Lern, meu caro amigo, tens de continuar a desempenhar o teu papel, esquecendo-te por algum tempo, que o teu nome é Catamount e que a tua missão é desmascarar
o tão tristemente célebre Steve Watron.".
Os ouvidos, já tão habituados a distinguir os mínimos ruídos, indicaram-lhe que tinha por companheiros alguns raios barulhentos.
Catamount continuava a sentir os tornozelos doridos, devido às correntes que os martirizavam e tinha a garganta seca e terríveis dores de cabeça, o que lhe recordava
os muitos copos de whisky que ingerira e a pancada que Cobilovici lhe dera em cheio na nuca.
- Por agora, concluiu endireitando-se, o mais que posso, é ter paciência. Mas apetecia-me bem ficar a conhecer melhor os coiotes que me puseram em semelhante estado!
No entanto, ainda teve de esperar mais de uma hora, até que tivesse com quem falar! Continuava a ter por companhia o constante ranger da madeira do casco, o marulhar
das ondas, e esse cheiro a alcatrão e a salmoira que o envolvia por completo e quase o fazia enjoar.
A pouca distância viu surgir, recortando-se contra um rectângulo de luz, a silhueta dum homem empunhando uma lanterna.
- Hello, vaqueiro! gritou uma voz irónica. Dorme-se, ou quê?
Catamount, imóvel e com o olhar cravado na abertura, não respondeu. E à luz fraca da lanterna viu os primeiros degraus duma escada de madeira e inúmeros fardos empilhados
uns sobre os outros, que apenas deixavam um estreito espaço, para o qual o prisioneiro fora arrastado.
Não sabia quem o estava a observar, pois quem quer que era, apenas mostrava as pernas. Mas em breve a sua curiosidade foi satisfeita porque o homem decidiu deixar
cair o alçapão e descer.
Era um marinheiro descalço e que apenas trazia umas calças arregaçadas por cima dos joelhos e uma camisa leve. Ao aproximar-se, Catamount reconheceu-o como um dos
companheiros do "Octopus".
A dois passos do preso, o recém-chegado parou:
- Hello, troçou Sardel, pareces uma coruja velha.
- O que querem de mim e por que razão me trouxeram para aqui?
- Se queres um bom conselho, old boy, não sejas muito curioso a bordo do "Sea-New".
- Ah! com que então o navio chama-se "Sea-New" ?
Sardell não vislumbrou o brilho que passou pelos olhos do prisioneiro por brevíssimos instantes. Mas Catamount insistiu:
- Tenho fome! Tenho sede!
- Damn. Estás cheio de pressa, ao menos espera para coseres a tua bebedeira!
E desatando a rir, exclamou :
- Na verdade, estavas num lindo estado quando te
trouxemos para bordo! Valsavas como um velho bote durante uma tempestade!
- Basta de brincadeiras, atalhou bruscamente. Deixem-me ir para o hotel!
- Para o hotel! Essa é boa!
E ao ver que Catamount mostrava a maior das surpresas, o acólito de Sam Trill, apressou-se a informar:
- com que então, não sabes que estamos no mar alto!
- O quê?! protestou o vaqueiro. Já saímos de Galveston?
- Nem mesmo considerando a hipótese de tu seres o campeão de natação, conseguirias voltar para trás!
com profunda satisfação, Sardel via a expressão do prisioneiro tornar-se melancólica.
- Mas então, o que vou fazer ? insistiu Catamount, continuando a fingir que nada percebia.
- Que pergunta, my boy, troçou o marinheiro, vais trabalhar!
E antes que surgisse um novo protesto, continuou:
- Deves estar contente, visto que procuravas um job! E esse job é-te oferecido sem teres o mínimo trabalho. Mas se queres um bom conselho, sê brandinho, pois o imediato
gosta muito da disciplina.
- O imediato. repetiu Catamount. Sempre imaginei que a bordo dum navio quem mandava era o capitão.
- Pois a bordo do "Sea-New" quem comanda é o imediato. É uma situação, digamos, provisória, mas que sem dúvida não tardará em tornar-se definitiva, visto que o pobre
capitão Hyatt continua a passar um mau bocado.
E, encorajado pelo interesse do prisioneiro, o marinheiro insistiu:
- Neste momento, Hyatt está no camarote com a filha. E não me parece que os caldinhos do Luiggi o consigam arrebitar!
- com a filha ? perguntou admirado. - Julguei que as mulheres.
- Na verdade, interrompeu Sardel, não é costume. Mas tudo se consegue, e como o capitão queria ter a filha junto de si.
E sorrindo com um ar de entendido, insinuou:
- Sam Trill não desdenhará certamente a presença duma mulher, no dia em que tiver substituído o capitão !
Catamount não respondeu, contentando-se em fixar o que acabava de ouvir.
- Como vês, a bordo do "Sea-New" há muita coisa com que a gente se entretenha, continuou o marinheiro com uma verbosidade inesgotável. Assim que chegarmos a Cuba.
-Ah! então vamos para Cuba?
- Um carregamento bastante importante, fardos de algodão e tuti quanti. ? ?
Por fim o acólito de Sam Trill calou-se, pois a atitude de Bill Lern estava a desconcertá-lo profundamente. Esperava ver uma pessoa indignadíssima e, o facto de
deparar em semelhantes circunstâncias, com uma pessoa calma, fascinava-o.
- A modos que ficaste mudo, old boy ? acabou por exclamar.
Catamount contentou-se em abanar a cabeça. Apetecia-lhe agir, mas compreendia que lhe era preciso
manter todo o sangue-frio. Por muito crítica que lhe parecesse a situação, achava preferível condescender e mostrar resignação. Essa atitude podia ser-lhe útil tempos
mais tarde.
- Então, não estás chateado? insistiu Sardel.
- Estou com uma fome danada e dispenso continuar aqui, amarrado como qualquer criminoso!
- Isso depende unicamente de ti, continuou o marinheiro. Se prometeres portar-te com juízo, avisarei o imediato. Dar-te-ão de comer e depois, irás trabalhar juntamente
com os outros!
Como o prisioneiro concordasse, o interlocutor continuou, enquanto fazia oscilar a lanterna:
- Não te esqueças que estás a substituir Kirby. E Kirby era o que se chama, um verdadeiro homem de trabalho! Foi uma pena ter apanhado aquela febre no Rio!
E dizendo isto, percorreu o estreito corredor que separava os fardos, escalou os degraus da escada e desapareceu rapidamente pelo alçapão.
Durante alguns minutos, o prisioneiro ficou a sós com os seus pensamentos e ao reflectir na situação em que se encontrava, esta não lhe deve ter parecido muito desesperada
visto que, a certa altura, teve um ligeiro sorriso.
Por fim, foi desperto dos sonhos, por um barulho de vozes. Ao levantar a cabeça, viu dois vultos que desciam de novo as escadas e reconheceu imediatamente Sam Trill
e Sardel.
O imediato parou junto do prisioneiro, enquanto que o ajudante o iluminava em pleno rosto:
- Hello, Lern, exclamou por fim Sam Trill, Sardel disse-me que estás decidido a trabalhar!
- Se me alimentarem bem, trabalho com certeza; contentou-se em responder.
- Sardel vai levar-te à despensa e o Luiggi dá-te de almoçar. E depois, contamos contigo.
- O. K. consentiu filosoficamente Catamount. O imediato pareceu ficar tão boquiaberto, como o ficara Sardel pouco tempo antes. Surpreendia-o tamanha resignação da
parte dum mocetão de tal têmpera. Esperava ver um homem revoltado, que o insultasse e recriminasse e deparava com uma placidez e quase submissão que o admiravam.
- Enquanto se decidem, objectou unicamente o prisioneiro, soltem-me, pois estou farto de estar amarrado !
E dizendo isto, apontava para as correntes que lhe seguravam os tornozelos. Sam Trill voltou-se para o subalterno e dirigiu-lhe algumas palavras em voz baixa.
Sardel procurou uma chave nas algibeiras e, ajoelhando-se, libertou o cativo das grilhetas.
- By god, murmurou este, enquanto distendia os membros imobilizados, assim sim! Até me parecia já estar paralítico!
No entanto, sentia-se tão entorpecido que cambaleou" e se não fosse o marinheiro deitar-lhe a mão, teria caído.
- Apoia-te a mim, propôs este. Vamos até à despensa! Sam Trill pegou na lanterna e tomou a dianteira. Num passo ainda pouco seguro, Catamount tentou alcançar a escada
. Continuava a doer-lhe a cabeça, mas esforçava-se por reagir, pois media a importância da partida que começava a travar!
Pela primeira vez, encontrava-se num ambiente que
lhe era estranho! Habitualmente, quando saía, era com o seu fiel Mesquita; a Pradaria e o Deserto, já não tinham segredos para ele, mas agora, tinha de trabalhar
em pleno mar alto e ele nunca tivera queda para marinheiro!
Quando, e depois duma difícil ascensão, Catamount se encontrou no convés, não pôde reter um suspiro de satisfação. Uma brisa suave veio acariciar-lhe o rosto. Consolado,
aspirou profundamente esse ar tão diferente da atmosfera viciada e empestada do porão. E o contraste era tão grande, que se sentiu quase desfalecer.
- Hello, gritou-lhe Sardel, vais ter um chilique!
- Não há perigo!
Tentava reagir, mas agora sentia-se cego pelo brilho dos raios de sol. Logo após ter dado meia dúzia de passos, levou as mãos aos olhos.
Ouviram-se então murmúrios de vozes e risos abafados ; eram os outros marinheiros do "Sea-New" que assistiam ao aparecimento do "vaqueiro" raptado em Galveston.
Brackson, Hermann, Cobilovici e os outros, estavam divertidíssimos a ver a reacção do último recruta, nesse primeiro contacto com um sol demasiado brilhante.
Durante um certo tempo, o falso Bill Lern não viu nada, nem mesmo os enormes mastros e as grandes velas enfunadas por um vento propício.
Brackson e os companheiros estavam com vontade de insistir na brincadeira, mas Sam Trill obrigou-os a calarem-se.
-Hello, boys! gritou. Apresento-lhes Bill Lern.
E apontava para o recém-chegado que, ainda tonto, esperava calmamente. Mas o imediato continuou:
- Bill Lern parece estar cheio de boa vontade! Tenho a certeza que, dentro em pouco, saberá tão bem colher as velas, como até aqui soube domar e ferrar as bestas!
Ouviram-se mais algumas gargalhadas, mas os marinheiros pareciam desapontados pela atitude resignada do novo companheiro. Esperavam "desporto", ou seja uma correcção
magistral aplicada ao recalcitrante por Sam Trill, como acontecia sempre que alguém era embarcado à força. Nessas alturas, o imediato gostava de mostrar que era
um boxeur temível.
Desta vez, a tripulação do "Sea-New" fora lograda, e alguns não conseguiam dissimular o profundo espanto, quando a voz imperiosa de Sam Trill se fez de novo ouvir:
- Todos para os seus postos, e depressa!
Os interpelados não esperaram que a ordem fosse repetida. Sabiam perfeitamente que o imediato exigia disciplina e não costumava dizer duas vezes a mesma coisa!
Sardel, pondo a mão no ombro do vaqueiro, propôs:
- E agora, anda comigo até à cantina. Catamount obedeceu docilmente e, dois minutos depois, encontrava-se no interior duma escura e minúscula divisão, onde predominava
um cheiro intenso a cebola frita. Um homenzinho, com uma opulenta cabeleira negra e frisada, e um bigode espesso que lhe sombreava a boca, apareceu com uma concha
na mão.
- Mas. começou por pronunciar.
- Trago-te Bill Lern, interrompeu Sardel, estás a ouvir, Luiggi? Dá-lhe de comer imediatamente.
- Macaroni? perguntou.
- E uma boa fatia de carne em sangue. Lern precisa de se recompor. Depois, se tiveres alguma coisa para ele fazer.
E, dizendo isto, Sardel deixou Catamount a sós com o cozinheiro. Enquanto este estava de roda do fogão, Lern, sentado num canto da mesa, notou que ele tinha um cuidado
extremo com o bigode e que não se cansava de o acamar e revirar com os dedos nojentos.
O cheiro da carne grilhada depressa se misturou com o da cebola. Encostado à mesa, Catamount já se sentia mais em forma. Se era verdade que ainda tinha a garganta
seca de ter bebido tanto whisky, pelo menos estava decidido a fazer honras à refeição que lhe estavam a preparar.
- Macaroni. Tomates. Bifes. enumerou por fim o Italiano, enquanto deitava para um prato de estanho, tudo o que acabara de arranjar.
O vaqueiro atirou-se então resolutamente à comida. Apesar de um pouco apimentada, a cozinha de Luiggi pareceu-lhe deliciosa. Enquanto ele comia, o cozinheiro de
mãos nas ancas, observava-o com satisfação.
- Excelente, este macaroni! acabou por dizer num péssimo inglês.
E vendo que o vaqueiro concordava, acrescentou com um suspiro:
- Madonna. Se ao menos eu tivesse um pouco de parmesão!
v
O DESPENSEIRO
Apesar da enxaqueca que teimava em não o deixar, e da dor aguda que continuava a sentir na nuca, Catamount sentia-se outro, pois a refeição que o Italiano lhe servira
fora substancial e bem preparada e a atmosfera quente que o rodeava, agradavelmente diferente da que respirara no porão.
- Famoso, hem?!
Ligeiramente barrigudo, Luiggi continuava a observar o visitante com as mãos cruzadas sobre o ventre. E, mesmo sem esperar que o vaqueiro pronunciasse qualquer palavra,
continuou com o rosto imundo iluminado por um sorriso alarve:
- Olhe que o Luiggi é um cozinheiro de primeira! Paris. Londres. Tudo isso ele conhece! O café Inglês. A casa Dourada! E Altezas, é o que lhe digo, ele já cozinhou,
para várias Altezas! Ah! os seus spaghetti!
E acompanhava o elogio lisonjeiro que fazia da sua pessoa, com gestos significativos. Enquanto Catamount enchia o copo de cerveja ele enumerava os diferentes menus
que elaborara e confeccionara para algumas recepções principescas.
-Os minestrone, insistia. Os rautoil. Nenhum
cozinheiro, nem mesmo Poccardi, conseguiria superar Luiggi!
O homem de olhar claro, achava por bem não interromper o brilhante interlocutor; de vez em quando mirava-o com a maior impassibilidade, nada deixando transparecer
dos pensamentos que lhe iam no íntimo.
Apesar do entusiasmo e da satisfação que o italiano demonstrava, o vaqueiro pensava que devia ter-lhe acontecido qualquer percalço, pois trocara os palaces sumptuosos
e os lambrins dourados dos melhores hotéis europeus, por essa cozinha sórdida e pestilenta, onde o fumo do fogão entrava pela boca dentro.
Subitamente, Catamount viu, com a mais profunda surpresa, a expressão do companheiro alterar-se e exprimir, não só indignação, como também uma enorme cólera:
- Ah! já apareceste bicho imundo! Madonna! Onde te terias escondido!
Bill Lern percebeu logo que estas palavras veementes e brutais não lhe eram dirigidas. Voltou-se rapidamente e viu um novo personagem junto à porta.
Era um chinês humilde e apagado, cujos andrajos eram ainda mais miseráveis e sujos que os do italiano. Os braços e as pernas estavam cobertos de nódoas negras, que
provavam bem que a bordo eram pródigos em pancada; e um luar passava por entre os seus olhinhos remelosos e oblíquos. De cabeça baixa, esperava humildemente e um
ligeiro estremecimento agitava-lhe as mãos pretas de pó de carvão.
- Eh! Chink, meu grande porco. Anda cá ! Luiggi estava de pé e ameaçava o recém-chegado
como o teria feito a um cão. Recuando uns passos, pegou num chicote que estava pendurado na parede e, aumentando o tom de voz, gritou ainda mais ameaçador:
- Já aqui, meu verme imundo.
O interpelado obedeceu e aproximou-se lentamente, enquanto protegia o rosto com o braço. Via-se que há muito tempo devia estar habituado a semelhante tratamento.
Catamount nem se mexia, contentando-se em observar os dois. E o cozinheiro, de mão no ar, ia impiedosamente bater no amarelo, quando de súbito sentiu o punho preso
por uma mão de ferro.
- Um momento, sim?!
Estava decidido a intervir, pois repugnava-lhe ver bater num infeliz indefeso. E Chink, que esperava sem dúvida ser espancado, endireitou-se, boquiaberto, perguntando
a si mesmo por que milagre escapara ao castigo.
Luiggi franziu as espessas sobrancelhas, surpreendido e irritado com a intervenção de Catamount.
- Madonna! protestou. Esta besta merecia uma correcção das boas, não percebo por que.
- E julga que ele lhe obedece mais facilmente, tratando-o assim ?
A calma que Catamount demonstrava nesse momento, contrastava brutalmente com a exasperação do italiano. Por instantes, o chinês, que os observava interdito, julgou
que o cozinheiro se ia precipitar sobre o seu protector, mas, bruscamente, a atitude do despenseiro mudou. com efeito, percebeu que não levaria a melhor se tomasse
a iniciativa dum combate. A expressão selvagem e resoluta do novo tripulante, incitou-o a mostrar-se mais prudente,
e foi quase num tom de desculpa e com um ligeiro estremecimento na voz, que disse:
- Mas. Vê-se logo que você não está habituado a viver com os amarelos! com eles só se pode ser bruto.
E, enquanto pronunciava estas palavras, consciente de ter conseguido convencer o interlocutor, Luiggi deixou cair o chicote! E voltando-se de novo para o chinês,
exclamou:
- Vai-te embora ! E não me apareças mais todo o dia. Torcer-te-ei o pescoço, como faço a um frango!
Chink não quis ouvir outra coisa, olhou disfarçadamente para Catamount, admirado e agradecido e fugiu tão rapidamente como tinha aparecido.
- Que rica prenda ! vociferou o italiano. O meu outro ajudante, aquele que tínhamos quando saímos de Boston, era um bambino atento e dócil. Per Bacco! Foi preciso
ter ido ao Rio! Por acaso encontrámos lá o amarelo. Trouxemo-lo. Foi uma bela compra !
E pôs-se a passear dum lado para o outro como um leão na jaula, com uns olhos furibundos e febris.
Catamount sempre calmo, tentou desviar a conversa para outro campo.
- Afinal, quem manda a bordo do "Sea-New" ?
- Oficialmente, disse sentando-se diante de Catamount, o Capitão Hyatt devia ser o único patrão, depois de Deus. Mas na verdade, é o imediato, Sam Trill!
E, como melhor esclarecimento, Luiggi acrescentou, com um sorriso de entendido:
- Outrora, o Capitão Hyatt, era alguém. Hoje
em dia, não passa dum pobre farrapo! E tenho fortes razões para pensar que, ao chegarmos a Cuba.
Vendo que Catamount estava interessado, Luiggi falava, fazendo gestos espalhafatosos.
- Mas Hyat está a bordo? perguntou o vaqueiro.
- com certeza, mas é como se não existisse! Não é preciso para nada. Nem sequer já tem forças para assinar o diário de bordo!
- E é Sam Trill que o está a substituir?
- Sim, senhor!
E, com um sorriso malicioso, onde deixava transparecer uma profunda admiração, Luiggi continuou:
-Madonna . Sam Trill é bestial! Mete-os a todos num chinelo! Quando chegou, ninguém dava por ele, mas a pouco e pouco começou a desemburrar e sabe muitas coisas
que são desconhecidas para Hyatt. Felizmente para nós, pois.
Subitamente, calou-se, como que arrependido de ter falado de mais. E ao ver o companheiro como que admirado, acrescentou:
- Naturalmente, tudo o que eu acabei de dizer, é absolutamente confidencial! Toda a tripulação o sabe a bordo e todos obedecem a Sam Trill. Mas visto que você também
faz parte da tripulação.
- Um pouco contra minha vontade, ripostou com uma certa amargura e passando a mão pela nuca ainda dorida. Mas, quando se abre uma garrafa de vinho, é preciso bebê-la!
- Tem razão, caro mio, temos de ter filosofia na vida, demais a mais sabendo que, qualquer resistência, provocaria inevitáveis represálias. Sabe uma coisa? Simpatizo
consigo. Sam Trill não gosta de ser contrariado,
mas quando concordamos com ele e lhe fazemos todas as vontades, sabe recompensar-nos. E isso satisfaz. Catamount concordou e, graças às informações que o italiano
lhe fizera, já tinha uma ideia mais ou menos exacta do que era a situação a bordo do "Sea-New".
- Mas quem é que trata o Capitão?
- Quem o trata? replicou Luiggi sem a mínima hesitação, é a sua filha!
- A filha?
- Madonna, é um verdadeiro anjo. Uma autêntica madona! Mas, pobrezinha, está a perder o seu tempo. Não conseguirá salvar o pai. E nessa altura ficará à mercê de
Sam Trill!
Catamount, a custo, conseguiu dissimular o interesse que as palavras de Luiggi lhe tinham suscitado.
- Mas não há nenhum médico, aqui! Per Bacco, não me faça rir! Já não há lugar para mais ninguém . E cada qual trata-se o melhor que pode! elucidou Luiggi.
E, apontando para uma panela que fervia sobre o fogão, o cozinheiro continuou, enquanto piscava o olho:
- Aquilo é um caldo, feito com ervas do Rio de Janeiro.
- É o quê?
- Três vezes por dia, levam uma taça de caldo ao Capitão. Ordens de Sam Trill. Mas tenho cá a impressão de que o remédio não é famoso, antes pelo contrário! Em vez
de melhorar, o pobre Hyatt parece que piora de dia para dia. Está a perceber?
Catamount acenou com a cabeça. Percebia perfeitamente, pois pouco tempo antes soubera dum caso de
envenenamento ocorrido na Argentina. O plano diabólico do imediato, apareceu-lhe em toda a nudez. Sam Trill queria fazer desaparecer, sem levantar a mínima suspeita,
o infeliz Hyat, a fim de se apoderar da filha e do navio!
- Escusado será dizer, acrescentou o italiano, que isto fica entre nós! Mas era preciso que você que é novo aqui, estivesse ao corrente da situação.
-Tem toda a razão, aprovou o vaqueiro. E pode estar absolutamente descansado, não costumo bater com a língua nos dentes.
- É essa a minha impressão, e foi por isso que lhe contei tudo. Mas não diga nada a ninguém!
- Pode contar comigo!
Os dois homens calaram-se, ao ouvir um barulho de passos que se aproximavam da cozinha. com a cabeça, Luiggi incitou uma vez mais Catamount a mostrar-se prudente.
Em seguida levantou-se e dirigiu um solícito sorriso aos recém-chegados.
O vaqueiro reconheceu imediatamente Sam Trill e Sardel que, parados, o observavam atentamente.
- Hello, Lern, muitas saudades da pradaria? O imediato parecia excelentemente humorado e a seu lado Sardel sorria e aprovava, aconselhando Catamount a mostrar-se
mais afável.
- Andavas à procura dum job, insistiu Sam Trill, já tens aquilo de que precisavas.
- E que rico job, refilou entre dentes.
- Não deves ser dado a enjoos, continuou o imediato. Tenho a impressão de que acabaste de provar que tens um apetite voraz.
- É que os macaroni do Luiggi.
Um olhar furioso de Sam Trill impediu o cozinheiro de acabar a frase.
- Queria que te tivessem ensinado a arrear as velas, prosseguiu o imediato. Mas hoje já é tarde para isso. Amanhã veremos se tens queda para o mar.
- Creio que ainda esta noite teremos um bailado artístico, interveio Sardel. Acabo de ver, na linha do horizonte, uma nuvem vaporosa que nos vai dar que fazer.
- Parece-me bem que vamos ter uma noite agitada, confirmou Sam Trill.
E, dirigindo-se de novo a Catamount, ordenou:
- Entretanto, não vais para aí ficar de braços a abanar. Ajudas o Luiggi naquilo que for preciso!
- Só falta descascar as batatas! objectou Luiggi. E não consigo fazer-me obedecer por esse estúpido Chink que se meteu sabe Deus onde!
O vaqueiro teve um gesto de resignação e ainda lembrado do conselho que o cozinheiro lhe dera, estava decidido a usar e abusar da astúcia, para sair da perigosa
situação em que se encontrava.
- O. K. limitou-se a responder.
Sam Trill, dando-lhe uma pancada nas costas, exclamou:
- Sim, senhor! Assim mesmo é que é! Aquele que é dócil, consegue tudo o que quer de mim! E nunca te esqueças disto, Bill Lern, se seguires sempre esta linha de conduta,
não lastimarás a maneira um pouco brutal como foste embarcado a bordo do "Sea-New"!
Catamount não respondeu e, logicamente, o seu silêncio foi interpretado como uma aprovação.
- Good bye, anunciou o imediato. E governa-te com o Luiggi. Mas não queiras provar todos os seus molhos!
Sam Trill e Sardel afastaram-se e Catamount ficou a sós com o italiano.
- Eu não lhe dizia? perguntou o cozinheiro, com um olhar de satisfação. A bem consegue-se tudo dele!
Mas, de repente, deu um salto, ao ver uma das panelas a deitar por fora.
- Madonna! Já me tinha esquecido do caldo! Precipitou-se e, ao queimar os dedos, soltou uma praga.
- Oiça cá, e se você fosse levar o caldo ao capitão? Costuma ser o Chink a fazer esse serviço . Mas o velhaco deve estar por aí escondido.
O vaqueiro aceitou de boa vontade, limitando-se a perguntar:
- Onde é o camarote?
- Ali adiante, à direita.
E, dizendo isto, começou a deitar o caldo numa taça.
- Mas que cheiro tão esquisito, não pôde deixar de notar Catamount.
- Tem razão, concordou Luiggi, aspirando o aroma. É feito com uma erva brasileira, que parece ter virtudes fortificantes.
- Mas se o estado de Hyatt piora, devia-se protestar.
- Limito-me a obedecer às ordens de Sam Trill, apregoou o cozinheiro.
- E faz você muito bem!
Enquanto o companheiro se afadigava, Catamount dificilmente dominava a impaciência. A conversa com Luiggi excitara-lhe a curiosidade de conhecer o capitão Hyatt
e a filha, que pareciam condenados a um destino sombrio, devido aos planos criminosos de Sam Trill.
Achava que era altura de agir e de ver se conseguia desviar as manobras do miserável.
- Pode seguir, declarou o italiano, pondo-lhe o tabuleiro nas mãos. Mas cuidado, não escorregue! Demais a mais, o trajecto é pequeno!
Catamount aquiesceu e esforçou-se por sair da cozinha, enquanto Luiggi, junto do fogão, o via partir um tudo-nada apreensivo.
A certa altura, deixou escapar uma exclamação satisfeita, pois o seu ajudante conseguiu percorrer a distância que o separava do beliche do capitão, sem o mínimo
percalço. Depois de o ter ouvido bater na porta por duas vezes, viu-o entrar desajeitadamente. Catamount fazia os possíveis por conservar o equilíbrio e não entornar
o conteúdo da taça. Ao chegar, deparou logo com o vulto de Hyat, repousando na cama. Claudete estava sentada à cabeceira e ao vê-lo, levantou-se e ajudou-o a livrar-se
do tabuleiro.
- Trago aqui o caldo, declarou simplesmente o vaqueiro.
Por instantes, a rapariga parou interdita, observando o visitante com insistência.
- Você é novo a bordo ? não pôde deixar de perguntar.
-Sou novo a bordo, disse Catamount, como num
eco. Chamam-me Bill Lern!
- Veio sem dúvida substituir o pobre Kirby, que era tão nosso amigo, não?
- com certeza! Limitou-se a responder o novo marinheiro.
E, desejoso de dizer qualquer coisa, perguntou:
- E o capitão? Sente-se melhor? Claudete abanou tristemente a cabeça:
- Hoje acho-o ainda mais fraco do que ontem, murmurou, desolada. E, no entanto, Sam Trill assegurou-me que estas ervas têm um poder verdadeiramente tonificante.
- Quer um bom conselho, miss Hyat?
A rapariga dificilmente conseguiu dominar a surpresa, pois a atitude do seu interlocutor mudara subitamente. E, enquanto o capitão continuava a descansar de olhos
fechados, ele baixou de tom, como se receasse ser surpreendido por ouvidos indiscretos:
- Dê outra coisa a seu pai, insistiu.
- Mas como pode ser isso?
- vou fazer os possíveis por trazer o que lhe é preciso, acrescentou o falso Bill Lern. E acredite-me, tenho a impressão de que o remédio é pior do que a cura!
Por instantes nada disseram. Claudete não se cansava de observar esse desconhecido, que acabava de a pôr de sobreaviso. E as suas palavras de desconfiança, concordavam
em absoluto com as dúvidas que atormentavam o seu espírito de há uns dias para trás.
O médico que observara o Capitão Hyat durante a escala em Galveston, não conseguira descobrir as verdadeiras razões do mal que o atacara. O coração estava bom e
os pulmões funcionavam perfeitamente. E no
entanto, aquela febre pérfida e persistente e aquele estado de fraqueza que o iam tornando cada vez mais débil, não o abandonavam.
Claudette já, por várias vezes, pensava na possibilidade duma manobra da parte de Sam Trill, mas Hyatt confiava cegamente no subordinado, e repetia continuamente
à filha que, se alguma coisa lhe acontecesse, o imediato era a única pessoa no mundo em quem ela podia confiar!
A jovem fazia os possíveis por vencer a repugnância que sempre nutrira por Sam Trill, e não conseguia simpatizar com ele. Quando o surpreendia a olhá-la com uma
expressão estranha e indefinida, toda ela era sacudida por um estremecimento. Se se encontrasse algum dia em frente duma serpente, não sentiria maior asco!
Catamount e a rapariga não prolongaram por mais tempo o seu encontro, com receio de levantarem suspeitas. Mas Claudette, na altura em que o visitante saía, não pôde
deixar de fazer uma pergunta que lhe escaldava os beiços:
- Quem é você ? murmurou baixinho.
- Um amigo em quem pode confiar, aconteça o que acontecer, respondeu simplesmente.
Pôs um dedo na boca para lhe recomendar discrição e silêncio e ela achou por bem não insistir.
- Até breve!
E saiu, fechando cuidadosamente a porta. Depois dele ter partido, Claudette ficou imóvel, encostada à porta, com o coração aos pulos. Pela primeira vez desde que
estava a braços com essa cruel e intrincada situação, sentia uma esperança renascer dentro de si.
Lera nos olhos desse tal Bill Lern uma promessa de ajuda, caso a sua situação se tornasse ainda mais crítica.
A taça do caldo continuava em cima da mesa. Hesitou por breves instantes, mas logo lhe pegou e foi despejar o seu conteúdo através da vigia mais próxima.
Hyatt continuava a dormir. Nos bicos dos pés, Claudette voltou para o lugar habitual junto da cabeceira e pegando na mão que repousava ao longo da cama, apertou-a
entre as suas. Mais do que nunca, sentia ganas de lutar energicamente, para arrancar o pai, das garras da Morte que pairava sobre ele! E, de vez em quando, parecia-lhe
ouvir a voz do desconhecido, declarando-lhe com uma expressão profundamente convicta e resoluta:
- Um amigo em quem pode confiar, aconteça o
que acontecer!
VI
EM PLENA TEMPESTADE
- Per Bacco, vamos às batatas! Tome lá um avental, caro mio.
Luiggi já principiara a descascar as batatas, quando Catamount se lhe juntou. E, enquanto este último atava o avental, o incorrigível falador perguntou :
-Então? Viu o Capitão? Sempre na mesma, não?
- Sempre na mesma!
- E a Signorina? Não acha que eu tinha razão? Uma verdadeira Madonna!
- Sim, uma verdadeira Madonna! concordou o outro.
E deitaram mãos ao trabalho. Catamount desempenhava muito bem a sua missão, pois quando outrora andara pelos ranchos do Texas, adquirira uma certa prática de cozinha.
A certa altura, não pôde suster por mais tempo uma pergunta que o começava a preocupar :
- É para Cuba que nos dirigimos ?
- Sim, senhor, confirmou o italiano.
- Então porque é que o "Sea-New" vai de proa ao Sul? Deveria virar a Sudoeste.
Luiggi encolheu os ombros e não pareceu preocupado com semelhante objecção.
- Se Sam Trill acha que é mais simples ou mais
prudente seguir esta rota, devemos obedecer-lhe! Além disso, não é a primeira vez que o "Sea-New" segue pelo caminho mais comprido. É porque a carga.
- Ah! é por causa da carga?
Catamount esperava mais algumas explicações, mas o italiano calou-se, como que arrependido de ter falado de mais. Desejoso de desviar a conversa para outro lado,
disse, apontando para o horizonte:
- Per Bacco, parece-me que, daqui a pouco, vamos dançar a valer!
E foi então que o vaqueiro viu que as nuvens se amontoavam cada vez mais.
- Está calor! Não acha ? perguntou Luiggi. Até parece que estamos ao pé do Vesúvio, ou do Etna.
Catamount concordou que, realmente, a atmosfera estava a tornar-se pesada. E a prová-lo, estavam as gotas de suor que lhes escorriam pela cara abaixo.
Desde pequenino que estava habituado aos rigores do clima. Assistira às tempestades de areia no deserto da Morte, bem como a terríveis blizzards no grande Norte,
mas desta vez, sentia-se preocupado com o balanço do três-mastros e apesar de o suportar bem, estava apreensivo quanto ao iminente desencadeamento das forças da
Natureza.
- Per Bacco, isto está sério no golfo do México. Espere-lhe pela pancada. Começo a ver muito mexida no barco!
Após ter pronunciado estas palavras, ouviu-se um assobio estridente lançado por Sam Trill, que obrigou todos os tripulantes a precipitarem-se para colher as velas
na mastreação.
- Está cheio de sorte, disse o italiano dando uma cotovelada em Catamount. Vale mais estar na sua própria pele que na deles!
E dizendo isto, apontava para os homens que trepavam ao longo dos mastros com o desembaraço e a agilidade de quadrúmanos.
- He! He! troçou o cozinheiro, nada de vertigens!
Catamount não respondeu, mas ficou a pensar no assunto. Não lhe sorria nada a ideia de se ver suspenso entre o céu e as ondas que começavam a agitar-se cada vez
mais.
O sol tinha desaparecido por entre as nuvens. O cacho humano desempenhava a sua perigosa ginástica com uma destreza desconcertante que admirava o próprio vaqueiro.
- Depressa! exclamou Luiggi. Acabemos com isto!
E acrescentou, enquanto apontava para as batatas que restavam:
- Tenho muito medo de não as podermos cozinhar tão depressa!
Mas a sua voz foi abafada por um estrondoso trovão. Um enorme raio rasgou as nuvens a sul do horizonte e incapaz de se dominar por mais tempo, o italiano benzeu-se
com a mão a tremer.
- E o Chink ? perguntou Catamount. Não o vejo ao pé dos outros.
Sardel, Brackson, Hermann, Cobilovici e os companheiros continuavam entregues à sua tarefa, em riscos de caírem dum momento para o outro.
Imóvel, Sam Trill comandava a manobra, assobiando
de vez em quando para activar e coordenar os movimentos da tripulação.
Chink? O mais que eu podia esperar é que uma onda o atirasse pela borda fora! E os tubarões encarregavam-se logo de nos livrar desse verme imundo, troçou Luiggi,
enquanto acabava de descascar a última batata.
Mas, fazendo uma careta, continuou:
- Descanse, caro mio, que os canalhas dessa espécie têm a pele dura e a alma bem presa ao corpo!
E você verá que se o "Sea-New" naufragar - Deus nos livre de semelhante desgraça - entre os salvados estará esse malvado.
Ouviu-se segundo trovão e de novo o cozinheiro se benzeu. Ajudado pelo companheiro e como medida de segurança, resolveu apagar o fogão. Mas a tempestade aumentara
e já dificilmente se mantinham de pé, constantemente atirados um contra o outro.
A tigela entornou-se e as batatas rolaram pelo chão ao mesmo tempo que a cinza ainda quente se misturava com os legumes! E isto ainda mais exasperou o italiano .
- Cá estamos nós na dança! Tenha cautela ! Catamount não lhe respondeu. Através da vigia, olhava um pedaço de céu carregado de nuvens negras e o seu ouvido era continuamente
martelado pelo ensurdecedor barulho das ondas.
O espectáculo era deveras impressionante e grandioso na imensidade do mar em fúria! E o três-mastros parecia uma casquinha de noz nas mãos da tempestade .
Os marinheiros desciam rapidamente e alguns, ao
atravessarem o convés, perdiam o equilíbrio e caíam sobre os outros, no meio de gritos de aflição.
Ondas brutais sucediam-se ininterruptamente, ameaçando esmagar o navio a todo o momento.
Aqueles cuja presença não era necessária sobre o convés, tinham-se refugiado na sala comum, enquanto se continuava a ouvir o barulho constante da tempestade .
Sardel e Brackson, entre outros, lutavam e resistiam conforme podiam. Sam Trill estava solidamente amarrado ao pé do piloto, mas de vez em quando dobrava-se, devido
a uma volta mais violenta do leme. Ao longo do convés tinham sido postos dois cabos para que os marinheiros se pudessem agarrar.
Na cozinha, a situação tornava-se infernal e Luiggi, após cada sacudidela soltava gritos estridentes. Catamount colocou-se entre a mesa e a porta e, de maxilares
contraídos e olhos fechados, resistia, desvairado com o vaivém imprimido ao navio.
Ninguém a bordo soube por quanto tempo se manteve a fúria dos elementos. Estavam no meio duma verdadeira Apocalipse e cada um lutava pela própria existência. A mastreação
continuava a resistir perigosa e fortemente ao implacável vento. Por momentos, o mar cobria totalmente o "Sea-New" parecendo querer devorá-lo, mas logo o barco voltava
a aparecer, como que por milagre.
Sempre amarrado ao barco, Sam Trill esforçava-se por ultrapassar as vagas que subiam a alturas assustadoras. Encharcados até aos ossos, apesar dos impermeáveis que
os protegiam, os marinheiros lutavam até ao limite máximo das forças.
Perto da cozinha, Claudette resistia corajosamente. Logo nos primeiros balanços, Hyatt fora projectado da cama, e ela, de cabelos soltos, esforçava-se por reagir,
lutando e procurando, a todo o custo, proteger o doente, que soltava gemidos de horror. Nunca, na sua curta vida, a rapariga assistira a um temporal tão grande.
- Tenha coragem, Pai! Lembre-se de que eu
estou aqui!
Mas o mar prosseguia na infernal e alucinante dança. No camarote havia dezenas de coisas espalhadas pelo chão. Claudette estava cansada de lutar.
Subitamente, e como um sonho, viu a porta abrir-se e através dela passar uma silhueta já sua conhecida.
- Bill Lern! exclamou num grito.
Catamount tinha aproveitado o desmaio do companheiro, que fora atingido na cabeça, para sair e assim poder ajudar os ocupantes do camarote mais próximo.
Esteve quase a ser arrebatado pelo mar, pois as vagas surgiam de todos os lados, atirando-o contra a amurada. A muito custo, conseguiu reagir, apesar de lhe doer
horrivelmente o braço esquerdo. E agarrando um dos cabos e avançando às cegas, conseguiu finalmente atingir o seu objectivo.
Sam Trill e os acólitos, estavam demasiado preocupados com a tempestade para se lembrarem do prisioneiro.
Logo que fechou a porta, Catamount viu em que situação crítica miss Hyatt se encontrava e correu a socorrer o infeliz doente.
Fazendo uso de todas as suas forças, conseguiu deitar o Capitão sobre a cama e de maxilares contraídos
segurou-o, resistindo energicamente aos sucessivos balanços do barco.
Perdera a noção do tempo, mas prosseguia na sua missão, animado unicamente pelo desejo de proteger Hyatt e a filha.
Por fim a tempestade abrandou um pouco. O céu continuava carregado, mas os raios já rasgavam o ar com menos frequência. Parecia que o mar cansado de tanta luta,
resolvera parar para voltar à calma habitual!
- Tal foi a violência, hem? murmurou unicamente o vaqueiro.
Claudette concordou com um acenar de cabeça. Tinha os cabelos colados à testa e estava absolutamente extenuada, mas a sua única preocupação era o pai.
- Esteja descansada, ele está vivo! afirmou Catamount cheio de convicção, ao perceber o olhar ansioso da companheira.
O capitão tinha sido atirado várias vezes contra a parede, mas apenas ficara com umas ligeiras nódoas negras.
- E você, como é que se sente? lembrou-se de perguntar à rapariga.
- Eu? Estou óptima, obrigada!
Claudette mentia, pois pouco tempo antes ultrapassara os limites da resistência, e como tal, os seus olhos estavam rodeados de profundos círculos negros e rasos
de grossas lágrimas.
- Tem de ter coragem! continuou o vaqueiro. Resta-nos ainda esperar o tempo que for preciso!
E, dizendo isto, pegou na mão da infeliz rapariga e sentindo-a gelada, apertou-a com energia, enquanto ela
imóvel, sem pronunciar uma única palavra, continuava a sentir a cabeça extraordinariamente vazia!
No entanto, Catamount não quis prolongar por mais tempo a visita, para evitar as suspeitas da parte de Sam Trill e do seu grupo.
Aconselhando calma e paciência à sua protegida, abriu a porta e lançou um olhar pelo convés.
Os balanços eram agora mais suaves e ao mando de ordens e assobios, os marinheiros alcançavam os seus postos na ânsia de repararem as avarias causadas pela tempestade.
Catamount aproveitou a confusão que reinava a bordo, e transpôs num pulo a distância que o separava da cozinha. Ao entrar, deparou logo com o corpo do italiano que
jazia dobrado sobre si mesmo, com um golpe na testa.
Ajoelhando-se sem se preocupar com a água que se lhe infiltrava no fato, encharcando-o até aos ossos e escorrendo-lhe ao longo dos cabelos, pegou num pano que estava
pendurado ao pé do fogão e apressou-se a socorrê-lo.
Havia batatas e os mais diversos objectos espalhados pelo chão. Cuidadosamente, Catamount limpou a ferida, e, depois de procurar num armário encontrou uma garrafa
de rum. Abaixou-se e fez várias tentativas, antes de conseguir que Luiggi bebesse algumas gotas.
O cozinheiro respirava normalmente, mas foi preciso armar-se duma faca para lhe conseguir abrir os maxilares.
- Madonna! murmurou o italiano dèbilmente, enquanto o seu corpo estremecia num sobressalto.
- Coragem, old boy, isto é uma ferida sem importância nenhuma. Podia ter sido muito pior!
- Dê-me de beber! Mais! exclamava Luiggi sofregamente, enquanto abria os olhos.
- Beba o que quiser! só lhe pode fazer bem!
O cozinheiro arregalou os olhos, ao mesmo tempo que um sorriso distendeu o seu rosto até aí crispado.
- Ah, é você, o cow-boy. murmurou por fim. Per Bacco! Mas que vendaval!
- Levante-se! Temos muito que arrumar! E estendendo-lhe a mão, ajudou-o a pôr-se de pé.
VII
O CARREGAMENTO DO "SEA-New"
Luiggi restabeleceu-se rapidamente, graças aos cuidados prodigalizados por Catamount. E agora, refeito das emoções, ostentava orgulhosamente uma larga ligadura.
- Caro mio, não se cansava de repetir, Luiggi tem de acender uma vela em sua honra!
Mas o vaqueiro não ligava importância nenhuma a essas acções de graças, que vinham sempre acompanhadas de gestos teatrais. E, deixando o companheiro a arrumar a
cozinha, foi até ao convés.
As avarias pareciam complicadas, sem todavia atrasarem o andamento regular do três-mastros. Despedaçado pelo vento, o velame voara em mil bocados. Grandes bocados
de tela rasgada tinham sido arrancados do barco e volteavam ao sabor do vento.
Sam Trill sobressaía entre os marinheiros. Hermann e Cobilovici, munidos de machados, cortavam as adriças que estavam inutilizadas, enquanto outros limpavam o convés
dos destroços de toda a espécie.
Catamount escondeu-se por detrás do mastro grande, pois não lhe interessava ser visto. Pensava em Claudette e em Hyatt que deixara em tão perigosa situação. Esquivando-se
com mil cuidados, dirigiu-se novamente ao camarote do capitão.
Ao entrar, constatou logo que o doente se encontrava reanimado. Recuperara já toda a lucidez e Claudette, ao vê-lo observar o recém-chegado com uma certa surpresa,
apressou-se a esclarecê-lo:
- Não sabe quem é? É Bill Lern! Um amigo nosso!
- Aquele que nos ajudou há pouco? disse Hyat numa voz quase imperceptível.
- Esse mesmo!
Lentamente, o doente estendeu a mão ao visitante, que se apressou a corresponder ao gesto.
- Foi um temporal violentíssimo! observou o capitão sorrindo dèbilmente. No entanto, já assisti a outros piores!
Os olhos de Hyatt cintilaram e Catamount achou-o com melhor aspecto, do que antes da tempestade. A mão do doente pareceu-lhe menos quente e não pôde deixar de sorrir,
ao ouvi-lo dizer:
- Estou cheio de fome !
- Hello! Mas isso é um óptimo sintoma. E, dirigindo-se para a porta, acrescentou:
- vou à cozinha. Mas desta vez trago-lhe outra coisa!
- Ah! Esse caldo horrível que vá para o diabo! Depois de o tomar, fico com um sabor amargo e insuportável na boca, durante horas. E parece-me que a minha cabeça
se esvazia.
- Farei todos os possíveis por variar os menus, prometeu o cow-boy.
Dois minutos mais tarde, estava de volta à cozinha:
- Miss Hyatt queria comer.
- Madonna! O fogão ainda não está bem
ligado. E temos de pensar na comida da tripulação, disse Luiggi agitando os braços.
- Trate deles, que eu encarrego-me do capitão e da filha!
O italiano pareceu admirado:
- Ah! Você também sabe cozinhar?!
- Nas minhas horas vagas!
- Mas então não se esqueça do caldo!
- Pode estar descansado!
E deitaram ambos mãos ao trabalho. Um quarto de hora depois, continuando a aproveitar a distracção de Sam Trill, apressou-se a alcançar o camarote, com um tabuleiro
copiosamente guarnecido.
Encontrou o doente ligeiramente levantado e de rosto sorridente. Claudette aproveitara, entretanto, para refazer a toilete e, se o rosto ainda conservava traços
de fadiga, o olhar em contrapartida parecia mais brilhante.
- Como poderemos agradecer-lhe, Mr. Lern? exclamou ela, com entusiasmo. Não há dúvida que você nos foi enviado pela Providência!
- Aqui está um prato de sopa que substituirá com grande vantagem o habitual caldinho, declarou o vaqueiro, após ter fechado a porta.
- É puré de batata?
- Exactamente o mesmo que o Luiggi está a fazer para a tripulação!
E colocando sobre a mesa duas fatias de presunto, batatas cozidas e bolos de milho, exclamou alegremente:
- Vamos para a mesa!
E sorrindo para Claudette, acrescentou:
- Trouxe também a contar comigo, pois a tempestade
colou-me o estômago às costas! E prefiro muito mais comer aqui, do que com o resto da tripulação! Servido pela filha, Hyat comeu com um apetite devorador.
Estavam a meio do almoço, quando a porta se abriu bruscamente. Claudette ficou transida de medo, ao ouvir uma voz sarcástica;
- bom proveito!
Era Sam Trill que, surpreendido de encontrar o vaqueiro no camarote de Hyatt, exclamou, elevando a voz:
- Os meus cumprimentos, Lern! Será preciso eu lembrar-lhe que não embarcou no "Sea-New" para usufruir das regalias de qualquer vulgar passageiro?
Catamount não se assustou com a velada ameaça do imediato.
- Todos os outros estão a trabalhar, prosseguiu Sam Trill num tom de voz cada vez mais elevado, e você aqui armado em gentleman. Vai-me fazer o favor de.
- Um momento, Trill!
Ao ouvir a voz de Hyat, o imediato voltou-se, com cara de poucos amigos:
- Meu capitão?
- É capaz de me dizer quem é que manda a bordo? Será você, ou ainda sou eu?
Sam Trill fechou os punhos, cheio de raiva e esforçando-se por sorrir, concordou:
- Mas quem havia de ser, senão o nosso capitão?
- Pois bem, então sempre lhe digo que fui eu que ordenei a este rapaz que se considerasse à nossa disposição.
Por instantes, o imediato ficou calado e o seu rosto não tinha nem pinta de sangue. Claudette julgou que ele se ia atirar a Catamount, mas este esperava calmamente,
com os olhos bem fixos em Sam Trill que compreendeu que tinha na sua frente um adversário de categoria.
- O. K.! refilou desesperado. Pensei que.
- Basta, interrompeu Hyatt. O mal-entendido está dissipado e de hoje em diante já sabe a quem se deve dirigir.
- Às suas ordens, capitão!
O imediato rodou sobre si mesmo e saiu, enquanto fechava a porta com um gesto de raiva.
Catamount ainda não se mexera do mesmo sítio. Mas depois de o ver sair, assobiou:
- O homem estava com maus fígados e se os seus olhos fossem pistolas, tinham acabado hoje os meus dias!
- E, no entanto, foi ele que o contratou? objectou
o capitão.
- Isso também é uma história muito complicada!
E, aproveitando a oportunidade que lhe era oferecida, Catamount apressou-se a relatar em que condições fora embarcado a bordo do "Sea-New". Hyatt e a filha ouviam
pasmados, sem o interromper, mas deixando transparecer uma indignação profunda.
- E pensar que tudo isso se passou enquanto eu aqui estava, sem nada saber e incapaz de reagir, protestou o capitão, assim que Catamount terminou a narrativa.
-E acredite numa coisa, capitão, objectou o vaqueiro - se mudar de alimentação e deixar de tomar esse caldo
infecto, dentro de alguns dias ou mesmo de horas, estará curado.
E antes que o seu interlocutor formulasse qualquer pergunta, continuou:
- Sam Trill é um patife da pior espécie e essas ervas famosas que ele descobriu no Rio de Janeiro, em vez de o curarem, só agravam a sua doença. E, assim que achar
chegado o momento propício, entrará em acção. Receio até, que depois da cena de há pouco, esse malvado se desmascare mais cedo do que tencionava.
- Mas então, objectou Claudete, enquanto o pai se conservava imóvel, mudo de espanto, estamos absolutamente à mercê de Trill, visto que está rodeado de homens que
tudo farão por ele.
- Na verdade, não me parece que haja um só membro da tripulação com quem possais contar, concordou Catamount. Desde que resolveu substituir o capitão, Trill escolheu
os seus homens a dedo. E apenas um vos pode ajudar, exactamente aquele que foi embarcado à força!
- Se isso é verdade, murmurou a jovem, desanimada, estamos absolutamente perdidos!
- Não diga isso! Só quem se considera de antemão vencido, é que está na verdade perdido; e felizmente, eu não sou desses! replicou imediatamente o vaqueiro.
- No entanto, continuou ela, não me queira convencer de que, sozinho.
- Sozinho, na verdade, não valho grande coisa, mas temos de contar com a Providência que, numa altura destas, certamente não nos abandonará.
Pronunciou estas palavras com uma convicção tal, que os seus companheiros entreolharam-se, surpreendidos.
O tom enérgico deste companheiro inesperado, elevava-lhes o moral, apesar da situação precária que atravessavam.
Voltando-se de novo para Hyatt, o vaqueiro
perguntou:
- Que carregamento traz realmente a bordo? O capitão, como não podia deixar de ser, ficou surpreendido com semelhante pergunta, mas respondeu:
- Levamos fardos de algodão para Havana!
- Viu com os seus próprios olhos qual o conteúdo desses fardos?
- É claro que não! Como o poderia fazer, se estava
aqui deitado?
Após uns minutos de silêncio, Hyatt acrescentou:
- Porquê? Acha que não é de algodão o carregamento que transportamos?
- Pode ser que ele, na verdade, exista, mas que há mais qualquer outra coisa, disso tenho a certeza. E sobre este assunto, Sam Trill há-de ter muito que dizer!
- E se eu o mandasse chamar? propôs Hyatt.
- Livre-se dessa! Seria o suficiente para fazer rebentar a bomba e precisamos de tempo para nos prepararmos.
- Na sua opinião, esse miserável vai-nos atacar? perguntou Claudette.
- Estou absolutamente certo que fará todos os possíveis por se desembaraçar de vocês, antes de chegar a Cuba!
- Sendo assim, estamos perdidos, murmurou a jovem aterrada.
- Será preciso repetir-lhes novamente, que não desesperem? Têm alguma arma?
- Sim, temos dois revólveres, elucidou Claudette.
- Já não é nada mau, disse Catamount. Presentemente, estou desarmado, pois esses bandidos roubaram-me o cinturão. Mas vou ver o que posso fazer, e enquanto esperam
por mim, mantenham-se na defensiva e atirem sem piedade sobre quem quer que seja que queira entrar aqui à força.
Dizendo isto saiu e, cautelosamente, aproximou-se do convés. Ao passar pela cozinha, viu Luiggi muito absorvido na preparação dum guisado. E apesar do cheiro apetitoso
que perfumava o ambiente, Catamount seguiu em frente, sem se dar a conhecer. Chegou finalmente ao pé da escotilha, que permitia o acesso ao porão. Apressadamente
abriu-a e começou a descer os degraus. Estava escuro como breu e teve de se orientar às apalpadelas. Lembrava-se da existência duma lanterna e a custo reteve uma
exclamação de alegria ao vislumbrar uma leve claridade ao fundo da escada.
Respirava a mesma atmosfera nauseabunda, mas conseguiu dominar a repulsa ao ver os fardos empilhados uns sobre os outros. Aproximou-se e preparava-se para investigar,
quando viu surgir uma sombra a poucos passos de si. De punhos em riste, preparou-se para entrar em acção, quando de súbito um nome lhe veio à mente :
- Chink.
com efeito era o chinês que aparecia depois duma
longa ausência. Durante o tempo que durou a fempestade devia ter estado fechado no porão, mas agora e à
luz mortiça da lanterna, o seu rosto de olhos oblíquos,
surgia calmo. E via-se que tinha reconhecido aquele
que, poucos dias antes, intercedera em seu favor junto
de Luiggi.
Já há um certo tempo que Chink devia espiar o intruso e lhe adivinhara as intenções, visto que, com uma mímica engraçada, lhe fez sinal para se aproximar !
Passaram por vários fardos, até que o amarelo estacou e batendo repetidas vezes num determinado fardo, murmurou:
- Algodão não!
E, metendo a mão num buraco por ele feito, tirou um objecto de forma chata, cujos reflexos acobreados brilhavam devido à luz que se encontrava perto.
- Mas isto são cartuchos. murmurou o vaqueiro
muito baixinho.
Não havia a menor dúvida, eram realmente cartuchos próprios para carabinas aperfeiçoadas.
Ah! agora já sei, pensou Catamount. Sam Trill deve ser o chefe duma organização de contrabando de armas. E, segundo tudo leva a crer, estas munições são destinadas
aos revoltosos de Cuba, onde a situação é cada vez pior e onde a revolta aumenta dia a dia contra as autoridades espanholas.
Sam Trill estava finalmente desmascarado. E, para escapar aos barcos de guerra que o podiam obrigar a parar, fizera aquele desvio pelo Golfo do México.
Chink esperava, numa imobilidade total, e os seus olhos brilhavam extraordinariamente. Mas Catamount
perdera o entusiasmo:
- A minha pena, é não ter uma única arma para
poder combater estes patifes!
O chinês deu uma risadinha e, com um gesto, convidou o vaqueiro a esperá-lo. Desapareceu no escuro e quando Catamount começava a impacientar-se com a
sua longa ausência, o seu misterioso companheiro voltou, trazendo na mão um cinturão e dois revólveres.
- Hello! mas este Chink é a Providência personificada. Catamount, na verdade, reconhecera as armas que usava na altura em que fora raptado por Sam Trill e os seus
comparsas.
- Não podes calcular o jeito que me fizeste, caro Chink! Agora, já nada receio e sinto-me outro homem completamente diferente!
O amarelo sorriu de satisfação, mas o vaqueiro não se quis demorar mais tempo, não fosse alguém aparecer. Estava desejoso de se encontrar ao pé de Hyat e da filha,
pois receava um súbito ataque da parte do imediato .
- Não vens daí ? perguntou a Chink. Este acenou negativamente com a cabeça.
- Isso é lá contigo, se queres brincar às escondidas!
Subiu as escadas e ia a chegar ao convés quando, de súbito, ouviu o barulho de dois tiros, dominando o marulhar das ondas. Parou e, instintivamente, levou a mão
ao cinturão, que acabara de apertar solidamente.
- Alerta! Estes foram dirigidos ao camarote do capitão!
Preocupado com o perigo que os seus protegidos corriam, deu alguns passos e aproximou-se da cozinha.
VIII
REVOLTA Â BORDO
- Estão a ouvir-me, my boys? Temos de agir e de acabar com o capitão.
O imediato estava no auge da excitação e gesticulava no meio dos companheiros. Quando, pouco tempo antes, tinha ido ao camarote do capitão, julgara encontrar um
homem já acabado e uma rapariga indefesa . E a decepção foi tremenda, ao aperceber-se de que as famosas ervas não tinham produzido efeito tão rápido como seria de
desejar. Tinham-lhe assegurado que esse remédio privaria o doente de energia, que lhe provocaria uma moleza e um estado de prostração totais, e eis que Hyat, contra
o costume, fizera-lhe frente, chamando-lhe a atenção para o facto de não ser ele o patrão a bordo do "Sea-New" !
E além de tudo isto, Sam Trill deparara com um homem capaz de lhe encarrilar a vida. De princípio, achara Bill Lern um pobre diabo capaz de fazer tudo o que lhe
ordenassem, pois imaginava que o enjoo fizesse dele uma criatura dócil, como todas as outras que embarcara também à força.
Qual não foi portanto o seu espanto, ao ver que as contas lhe tinham saído erradas. E, subitamente, veio-lhe à ideia uma pergunta : de onde conhecia ele aquela cara?
Sam Trill nem sempre fora o que agora era. E no recôndito do seu tenebroso passado, surgia um outro personagem, que somente um embarque imprevisto pudera salvar
da forca. Era salteador nas estradas do Texas e passava a maior parte do tempo a cavalgar, como Bill Lern!
Mas os seus pensamentos foram interrompidos pelo aparecimento de Cobilovici.
- Então? perguntou o romeno, intrigado com a evidente preocupação do chefe. O que pensa fazer ?
- Temos de acabar com o capitão, respondeu Sam Trill numa voz cava.
E, num gesto que não admitia réplica, ordenou:
- Depressa, vai chamar os outros. Preciso de lhes falar com a máxima urgência!
Em menos de três minutos - e sem contar com Luiggi, o piloto e outros dois marinheiros em quem não tinha confiança absoluta - Sam Trill reunira os seus discípulos
mais dedicados, Sardel, Brackson, Hermann, Sambor, Merino e Carabal. Intrigado, o romeno, esperava, enquanto chupava um velho cachimbo.
O imediato contou então os pormenores da recente visita ao capitão e esclareceu a sua surpresa ao vê-lo com óptimo aspecto e sobretudo, tendo como aliado Bil Lern.
- Mas isso não é possível, estava tudo tão bem encaminhado, objectou Sardel. O capitão tinha os olhinhos fechados e o nosso objectivo estava quase a ser atingido.
- Está-me cá a parecer que temos de desistir, pois, o osso é mais duro de roer do que pensávamos.
Já estou arrependido de ter trazido esse Lern connosco. Tenho a certeza de que foi ele que conseguiu
convencer o capitão!
Ao ouvir isto, Brackson não pôde deixar de
objectar :
- Está a brincar, ou quê ? Não acredito que esse
vaqueiro bêbedo, tenha categoria para inutilizar os nossos planos!
- Por muito inverosímil que isso vos pareça, Bill Lern é um adversário de categoria com quem nos teremos de haver.
Mas, no entanto, o imediato não falou na inquietação instintiva que sentira ao ver Catamount fazer-lhe frente. Esforçava-se por dominar esse inexplicável mal?estar
que, entre outras apreensões, até o fazia duvidar
de si mesmo.
- Mein Gott, não façam disso um bicho de sete cabeças. Se temos de nos ver livres do capitão antes de chegarmos a Cuba e de largar a mercadoria em Alvarez, a única
coisa que há a fazer, é precipitar os acontecimentos - interveio o alemão.
- Hermann tem toda a razão, aprovou Sam Trill, temos de expulsar do "Sea-New" esses dois vermes
infectos.
- Além disso, não há que ter medo de Lern. Já lhe tiramos o cinturão e as armas, objectou Cobilovici.
E discutiram, ainda durante algum tempo. O mar voltara à sua habitual calma, o sol brilhava alegremente e apenas algumas nuvens que corriam ao sabor do vento, lembravam
que pouco tempo antes houvera uma enorme tempestade.
- Vamos embora insistiu o romeno. Façamos esse malandro em estilhas.
- Cuidado, recomendou Sam Trill, não toquem na miúda!
- Esteja descansado que ninguém lhe mexe, troçou Brackson.
Esta frase foi seguida de risos descarados, mas o imediato reduziu logo os acólitos ao silêncio :
- Sigam-me, declarou simplesmente. Se o velhote se armar em teso, atiramo-lo aos tubarões.
Sam Trill, à frente do grupo e num passo firme, dirigiu-se para o camarote do capitão e, enquanto os outros se mantinham a certa distância, ele bateu duas vezes
à porta.
Imediatamente se ouviu a voz de Claudette:
- Quem é? interrogou, ansiosa.
- Trill. Quero falar ao capitão. Já, pois é urgente!
Ao pronunciar estas palavras, o imediato tirou o revólver da algibeira, enquanto os companheiros o imitavam ou seguravam punhais, prontos a assaltar o camarote.
- Então, abra depressa! exclamou Sam Trill impaciente, ao fim de poucos segundos.
Depois de ter falado com o pai, a rapariga continuou:
- É inútil insistir, vá-se embora!
- Mas se eu lhe estou a dizer que é urgente! insistiu o imediato, cheio de raiva.
- Vá-se embora! repetiu Claudete em tom mais forte.
Então, furioso, Cobilovici foi-se pôr ao lado de Sam Trill:
- Acabemos com isto, refilou. A modos que estão a fazer troça de nós!
Um murmúrio aprovador saiu da boca de todos os outros. E logo o romeno gritou, enquanto agitava os braços:
- Já que não querem abrir, arrombemos a porta!
Ia já a atirar-se para a frente, procurando derrubar o obstáculo com o ombro quando a rapariga gritou:
- Parem imediatamente! Voltem para trás, ou atiramos!
Imóvel e excitada, Claudette esperava junto da porta segurando uma arma.
Da cama, Hyat tentava apanhar o outro revólver, mas este, demasiado pesado, caiu-lhe da mão para longe do seu alcance.
O pai e a filha trocaram entre si um olhar cheio de angústia. Sabiam perfeitamente que a ameaça não chegava para suster os revoltosos, que pareciam mergulhados numa
exasperação intensa. - Se Lern aqui estivesse! murmurou o capitão desvairado.
Ignoravam o que acontecera ao companheiro e esperavam-no dum momento para o outro, na altura em que Sam Trill bateu à porta.
Cobilovici, arrastando Hermann e Carabal, atirou-se contra a porta.
- Olhem que eu atiro ! berrou Claudette assustada .
Então, fechando os olhos, carregou no gatilho por duas vezes. houve uma certa confusão e ouviu-se uma frase. Carabal tinha sido atingido no ombro pela
segunda bala e recuava blasfemando, enquanto que o romeno e o alemão se reuniam ao grupo como medida de segurança.
- Mas então o que é isso, vociferou Sam Trill - Parece que estão com medo!
O imediato ia tentar de novo o ataque quando de súbito, dominando o tumulto, se ouviu uma voz forte:
- Todos para trás!
De revólver em punho, surgiu um homem que, de cabeça descoberta e ar resoluto, os meteu na ordem. Ao vê-lo, o imediato não pôde deixar de exclamar :
- Bill Lern.
Era com efeito Catamount que, atraído pelos dois tiros, se precipitara em socorro dos dois infelizes.
Os rostos crispados de Hyat e da filha iluminaram-se. Pondo-se à escuta, ouviram de novo a voz do seu corajoso protector dirigindo-se ao grupo:
- Mãos ao ar, todos. E atirem os vossos brinquedos para o chão!
Brackson não obedeceu e ia visar o vaqueiro, quando se ouviu uma detonação. Antes de chegar a perceber o que lhe tinha acontecido, o marinheiro sentiu uma dor violentíssima
na mão e o sangue aflorou por entre os dedos despedaçados pela bala.
- Há por aí mais algum valentão ?
Seguindo o exemplo de Sam Trill, levantaram os braços. Aflito, Brackson via as gotas de sangue formarem a seus pés uma mancha cada vez maior.
- As cartas estão na mesa, Sam Trill, e assim estou mais satisfeito. E agora, eis-nos em idênticas circunstâncias. E eu não estou disposto a deixá-lo fazer todas
as patifarias que desejava, entendido?
Um silêncio carregado de ameaças caiu sobre o grupo. Mas nos olhos de Cobilovici surgiu um brilho radiante, ao ver a expressão assustada de Luiggi, que aparecera
à porta da cozinha. Ouvindo os tiros, o italiano Cuja virtude dominante não era a bravura, lançou um olhar curioso à sua volta, mas logo se meteu para dentro, apavorado.
- Cobardola! vociferou o romeno.
Sam Trill refilou por entre dentes, mas de maneira a ser ouvido pelos seus companheiros mais próximos :
- Vamo-nos embora! Estamos absolutamente à sua mercê e dispenso servir-lhe de alvo! E a nossa vingança não há-de tardar!
De expressões rancorosas e punhos cerrados, os marinheiros recuaram, tendo sempre a ameaçá-los o revólver de Catamount. Afastaram-se e, quando se viram longe do
seu alcance, correram para a sala mais próxima e aí se esconderam.
Claudette abriu a porta e Hyatt, ao ver entrar o seu corajoso aliado, exclamou:
- Obrigado, muito obrigado, você salvou-nos a vida!
Catamount, que continuava a empunhar o revólver, respondeu-lhe com um gesto vago. Sabia perfeitamente que o sucesso que alcançara não tinha futuro. Beneficiara da
surpresa e interviera no próprio momento em que os revoltosos do "Sea-New" julgavam ter ganho a partida. Mas não era por isso que vencera, pois o tom raivoso do
imediato, dera-lhe a entender que em breve voltariam à carga. E nessa altura teria de lutar contra todos, ou contra a maioria.
Não tinha ilusões a esse respeito. Que ajuda lhe
poderiam prestar a pobre Claudette e esse doente que ela tratava com tanto carinho? E a bordo do três-mastros não havia mais ninguém com quem pudesse contar.
Ou haveria? Catamount ainda não se esquecera da intervenção misteriosa e desconcertante do Chink! Mas que poderia ele esperar da parte desse ser enfezado e fraco?
Em contrapartida, os outros eram pelo menos doze, admitindo a hipótese de poder contar com Luiggi, que se mostrava um fraco combatente.
- Eles daqui a pouco voltam, não acha ?
A voz trémula da rapariga arrancou-o aos seus tétricos pensamentos. No entanto, fez os possíveis por a sossegar:
- E que voltem! Serão bem recebidos! Pronunciou estas palavras com tal ênfase que Claudette não pôde deixar de sorrir :
- Decididamente, você é a nossa salvação. Consigo, sinto-me absolutamente segura. Não acha, Dad?
Catamount, continuando a segurar a arma, foi-se pôr ao pé da vigia. Daí podia ver o que se passava no convés, mas foi em vão que procurou enxergar um dos marinheiros
do "Sea-New".
- Resta-nos apenas esperar, concluiu filosoficamente. Tenho a impressão de que, pelo menos até à noite, nos deixarão sossegados.
- E depois? perguntou Claudette deveras preocupada.
- À noite, todos os gatos são pardos, foi a resposta de Catamount. Se o céu continuar tão límpido como está agora, veremos tão bem como se fosse dia e os moços dificilmente
conseguirão jogar às escondidas.
Naquela expectativa da espera, o tempo passava lentamente. Atento ao menor ruído, o vaqueiro não saía do posto de observação, mas o convés continuava obstinadamente
deserto.
- Finalmente sei qual é a verdadeira carga que o seu navio transporta.
- E o que é? perguntou Hyatt, intrigado.
- Cartuchos e possivelmente armas, visto que, graças à intervenção do Chink, só pude inspeccionar um fardo.
- O quê? Chink? Esse chinês piolhoso?
Então, Catamount resolveu pôr o capitão ao corrente da estranha aventura em que se vira envolvido.
- Chink eclipsou-se, mas parece-me que ele conhece o porão até de olhos fechados. Os víveres que lá estão armazenados e o depósito de água, permitem-lhe viver.
- É um pobre diabo que era continuamente maltratado por Luiggi e pelos outros, continuou Hyatt. Fala mal o inglês e é uma espécie de faz-tudo.
- E por muito estranho que isso lhe possa parecer, é o único homem com quem podemos contar! Sam Trill tinha preparado tudo muito bem! O seu primeiro objectivo era
afastar-vos do caminho. E aproveitando a sua fraqueza, preparou tudo de maneira a substituí-lo e assim utilizar o "Sea-New" para as suas pérfidas manobras.
- E, segundo parece, opinou o capitão, essas munições devem ser destinadas aos insurrectos de Cuba!
- Estamos absolutamente de acordo, apoiou o vaqueiro. Mas por muito simpática que nos seja a causa dos revoltosos, temos de admitir que Sam Trill o metia num lindo
sarilho se, por acaso, um navio de guerra o
mandasse parar no Golfo do México! E estando o senhor convencido que transportava algodão!
- E pensar que, sem o seu auxilio, estaria à mercê desse miserável!
Claudette não pôde deixar de tremer, ao pensar em semelhante perspectiva. Sentia, como nunca, um terrível asco por Sam Trill.
- E tinha-te eu confiado a esse bandido! Tu, que és o que de mais querido eu tenho no mundo!
O capitão fez um gesto ameaçador, e deixando-se cair para cima da almofada, disse tristemente:
- Ainda por cima nada posso fazer, pois sou um inútil!
- Esteja descansado, que nem tudo está perdido! Deus permitiu-nos descobrir essa torpe maquinação ainda a tempo!
- Oxalá não seja demasiado tarde, objectou Claudette.
E no camarote continuavam a esperar. O convés permanecia deserto e silencioso, mas Catamount imaginava que os adversários não deviam estar inactivos. Assim que caísse
a noite, procurariam novamente atacar e tudo levava a crer que desta vez se mostrariam mais fortes.
Imóvel, ajoelhada junto à cama do capitão, Claudette esperava, mexendo imperceptivelmente os lábios. Rezava.
IX
 DERROTA
- Mas isto é espantoso! Não nos vamos com certeza deixar achincalhar por esse vaqueiro!
- Mein Gott, temos de lhe mostrar de que massa somos feitos!
Sam Trill e os acólitos já havia um momento que discutiam. Afastado, Carabal gemia. Apesar de ligado, tinha muitas dores.
- É preciso agir, insistiu Cobilovici, que parecia de todos o mais exaltado. Acabemos com esta enervante expectativa e vamos buscá-lo ao camarote!
Mas Sam Trill, bastante mais calmo, abanou lentamente a cabeça:
- Experimenta, Cobi. E depois veremos.
- Era mais que certo que não tardarias a ir para o cemitério! vociferou Brackson. E, num gesto bastante explícito, acrescentou :
-Vocês viram a maneira como ele desarmou Carabal. E se tivesse querido, também lhe tinha acertado mesmo no meio da testa! É um atirador de primeiríssima classe!
- Sendo assim, este jogo das escondidas durará eternamente.
- Se estás com muita vontade, experimenta, troçou Hermann.
Mas o romeno não fez o mínimo gesto para sair do sítio em que se encontrava, pois ainda se lembrava do que acontecera a Carabal. E não lhe apetecia nada servir de
alvo a tão hábil atirador.
Sambor e Merino jogavam às cartas e Sam Trill fumava cachimbo. Desde que recuara diante do perigo, havia uma interrogação que surgia permanentemente no seu espírito:
aonde e em que circunstâncias se encontrara já diante daquele homem ? Tinha a certeza de que o vira anteriormente, mas a memória não o ajudava no que respeita a
nomes e a factos. Tinha tido uma vida tão movimentada e cheia de aventuras, que o obrigara a conhecer tantos países e a afrontar um número tão elevado de adversários,
que não podia recordar-se.
A voz sonora de Sardel, arrancou-o a esses pensamentos :
- Já estamos perto de Cuba. E podemos acostar, antes que seja noite.
- Não é isso que me preocupa, declarou Sam Trill, pois o Alvarez e companhia hão-de fazer os sinais habituais.
- Pois com certeza, antes disso temos de nos ver livres do capitão e do outro, acrescentou.
- Hyat? murmurou o imediato enquanto fechava os punhos cheio de raiva. Sempre pensei que dessem cabo dele num instante! O Luiggi tinha ordem de lhe duplicar a dose.
- Mein Gott, mas esse é um cobardola inveterado, troçou Hermann com desprezo. Assim que ouviu os tiros, encafuou-se na cozinha e primeiro que saia de lá.
com Luiggi, à parte o jeito que tinha para cozinhar, não se podia contar para mais nada.
- Não nos podemos demorar, objectou Brackson, pois podemos ser apanhados antes de chegarmos à costa de Cuba.
- Não valia a pena termos tomado tantas precauções, nem dar a volta que demos para chegarmos a este ponto, refilou o romeno.
- Assim que escurecer, entraremos em acção, participou o imediato, farto de ouvir opiniões. Já estamos perto de Pinos!
- Estamos tramados se os espanhóis meterem o nariz no nosso carregamento.
Sardel fez uma careta e num gesto instintivo, levou a mão ao pescoço, com a sensação de sentir o contacto gelado da lâmina do carrasco.
- Mas por que razão estão vocês tão preocupados? objectou Sam Trill, enquanto continuava a fumar cachimbo. Desde que saímos de Galveston, tudo tem corrido às mil
maravilhas, e não nos podemos queixar de ter tido um mau encontro, à parte essa tempestade que nos fez passar um mau bocado.
- O pior foi termos embarcado esse gringo em Galveston! exclamou Merino, interrompendo por instantes a partida que travava com Sambor.
- Vocês são fantásticos, parece que tínhamos muito por onde escolher! Qualquer outro teria duvidado das nossas intenções e Kirby tinha de ser substituído a todo
o custo, desabafou Sam Trill.
- Esse maldito tem uma maneira muito sua de substituir Kirby! troçou Cobilovici. Numa altura destas, já devíamos estar senhores do navio! E assim que Hyatt fosse
suprimido, Sam Trill seria o único patrão a bordo!
- É possível, mas por enquanto o capitão ainda
está vivo e parece-me que é perigoso algum de nós tentar aproximar-se.
No convés mantinha-se a calma e apenas se ouvia o murmúrio regular das vagas batendo contra o casco e o ranger da madeira - Através do céu azul, passavam gaivotas.
- Já estou um bocado farto de estar aqui fechado, disse Carabal. E mais a mais, daqui a pouco são horas de jantar.
- Podes sair à vontade, mas asseguro-te que apanhas logo outra chumbada. E desta vez tenho a certeza de que te acerta em cheio!
O ferido fez uma careta, e o imediato continuou cheio de convicção:
- Em todo o caso, parece-me que vocês perdem o vosso tempo! O mais simples, é esperar que a noite caia. Assim que estiver bastante escuro, poderemos então sair daqui
e tentar tirar o rato da toca.
Tiveram realmente que se resignar a esperar mais um bocado. De vez em quando espreitavam pela vigia; o convés continuava deserto, mas julgavam ver o terrível atirador
emboscado no camarote, pronto a visar a primeira silhueta suspeita.
Para passar o tempo, o imediato estendeu um mapa sobre uma mesa e, enquanto Sardel e Brackson se debruçavam, explicou apontando com o dedo para a linha do litoral:
- Aqui está Pinos onde Pablo Alvarez e os seus pretos nos esperam. Dentro em pouco estaremos lá e desconfio que o desembarque das armas e das munições pode fazer-se
antes que chegue a madrugada.
- Isso é absolutamente indispensável, opinou Sardel.
Se não tivermos mudado de rumo antes do nascer do sol, pode-nos suceder algum dissabor.
- A entrega será suficiente, afirmou o imediato. Alvarez dar-nos-á a importância combinada.
E depois dividiremos entre todos! insistiu Brackson, com uns olhos cobiçosos.
- Isso é o que está combinado, concordou Sam Trill, mas não façam muitos projectos, pois temos de esperar pelo imprevisto! E é perigoso contar com sapatos de defunto!
Sam Trill recordava os esforços e as precauções sem número por que passara para fundar a sua organização. Primeiro tivera de pôr o capitão fora de combate; empregara
a astúcia quando, em Galveston, embarcara os pretensos fardos de algodão; escolhera cuidadosamente todos os membros da tripulação e aproveitara a fraqueza de Hyatt,
para se certificar da sua ajuda e cumplicidade!
Lembrava-se também doutro plano que fizera no começo de tão perigosa aventura. Revia a imagem de Claudette. Ao ficar privada de todo o carinho, a jovem ver-se-ia
obrigada a voltar-se para ele e então, facilmente se tornaria seu mestre e senhor!
Mas tudo isso não passavam de simples hipóteses, que se teriam realizado, se não fosse esse maldito dos olhos claros. A intervenção de Bill Lern podia estragar-lhes
todos os planos e não conseguia esquecer o olhar do seu temível adversário, cuja presença tanto o preocupava.
Finalmente, fez-se noite. Depois de abandonarem os jogos, os marinheiros aproximaram-se do chefe.
- Preparem-se, ordenou Sam Trill. Para conseguirmos vencer, temos de atacar todos ao mesmo tempo!
E ao ver as expressões surpreendidas de alguns, acrescentou:
- Isto não quer dizer que tudo se passe às mil maravilhas, mas pelo menos temos mais possibilidades de darmos cabo do intruso. E quando o tivermos atirado aos tubarões,
então poderemos respirar.
As suas palavras foram acolhidas com um murmúrio aprovador, pois todos queriam acabar com essa horrível expectativa, e com esse adversário que os prejudicara na
altura exacta em que julgavam ter alcançado o seu fim.
Sam Trill aproximou-se da porta e voltando-se para os companheiros, disse-lhes unicamente:
- Vamos embora!
com precauções infinitas, abriu a porta e espreitou. De rastos, aventurou-se, levando na mão o revólver, pronto a atirar à mínima suspeita.
A calma continuava e não se ouvia nenhum ruído no camarote mais próximo. Contudo, o imediato e os que o acompanhavam, caminhavam com cuidado. O céu estava estrelado,
mas a escuridão não era tanta como seria para desejar.
Enquanto o plano de ataque começava a ser posto em prática, no camarote do capitão continuavam à espera. Pela vigia, Catamount podia ver, facilmente, tudo o que
o rodeava, pois os olhos já estavam habituados à escassa claridade.
Os minutos pareciam-lhe intermináveis, mas o facto de pensar que a sorte dos companheiros dependia unicamente de si, dava-lhe forças para tentar resistir até ao
fim.
Agora já noite, sabia que o ataque não podia tardar.
Cuba não devia estar longe, e os revoltosos queriam apoderar-se definitivamente do barco.
Hyatt dormia tranquilo e Claudette acabara também por sucumbir ao sono e à fadiga. De cabeça caída sobre o ombro, os compridos cabelos espalhavam-se pelas costas.
Através da vigia, o vaqueiro sentia no rosto a aragem quente, e de ouvidos alerta, estremecia ao menor
ruído.
Subitamente, endireitou-se, pois parecia-lhe ter visto uma sombra dirigindo-se para o mastro grande. com os sentidos tensos, pôs o dedo no gatilho.
Apesar do vulto suspeito se ter sumido nas trevas, Catamount preparou-se para o pior. Tinha a certeza absoluta de não ter tido uma miragem. Estava mais que visto,
que o ataque surgiria em breve.
E nessa incerteza o tempo foi passando. Não ouvia nem via nada, mas continuava com a mesma sensação de perigo.
E, subitamente, ouviu-se uma ordem seca:
- Go!
Claudette acordou sobressaltada e Catamount sentiu a sua mão apoiada no ombro.
- O que aconteceu ? perguntou assustada. Mas o vaqueiro obrigou-a a recuar:
- Não fique aqui ao pé de mim! Eles aí vêm! com efeito, e depois de terem avançado de rastos e
o melhor que podiam, tinham finalmente chegado ao camarote.
Ouviram-se duas detonações. Atingido em cheio, Merino caiu, mas os outros conseguiram chegar junto da porta e encostando-se à parede, procuraram ficar longe do alcance
do perigoso atirador.
- Mas o que é isto?
Hyat, tendo-se sentado na cama, viu-se logo obrigado a deitar-se, pois os tiros dos assaltantes entravam pela vigia e iam enterrar-se nas paredes do refúgio.
- Deitem-se! E, por amor de Deus, não se mexam! recomendou Catamount.
Agora, os revoltosos esforçavam-se por arrombar a porta. E esta parecia estar prestes a ceder, quando subitamente, se ouviram três tiros.
Ouviu-se uma praga e Sambor foi atingido no braço esquerdo. Imediatamente os restantes recuaram para evitarem ser atingidos pelas balas que passavam através da porta.
- Mein Got, vociferou Hermann. Todos para trás!
Como resposta, atiraram de novo contra a vigia e a porta, que ameaçava tornar-se num passador, enquanto se espalhavam pelo barco.
Pouco depois, as sombras fugitivas dos revoltosos, desapareceram de novo na noite, deixando para trás o corpo de Merino que se torcia num último espasmo, no meio
dum enorme charco de sangue.
- Vencemos! Eles desistiram! murmurou Hyatt.
Catamount não respondeu, contentando-se em carregar novamente o revólver, na eventualidade de um novo ataque.
Mas parecia que, falhada esta segunda tentativa, o inimigo tinha desencorajado. O sossego regressara.
A certa altura, Claudette decidiu romper o silêncio e, aproximando-se do vaqueiro perguntou:
- Onde se meteram eles ?
Foram para fora do meu alcance de tiro, mas
não devem estar longe! ?
Então o que é que nós podemos fazer ?
Catamount encolheu os ombros:
Continuar a esperar! E há ainda outra coisa:
se é certo que nós impedimos o acesso ao camarote, também não o é menos, que eles não nos deixarão chegar ao convés!
Claudete percebeu, pelo tom de voz do seu companheiro, que a partida ainda não estava ganha.
- Querem vencer-nos pela fome, não ? perguntou.
- Pela fome? exclamou sorrindo. Que ideia ! isso levava muito tempo! E eles estão cheios de pressa!
E aventurando-se até à vigia, enquanto olhava o horizonte, continuou:
- Já não devemos estar muito longe de Cuba. Portanto, os tipos devem ter de tratar de negócios urgentes. O que os chateia, é nós ainda estarmos prontos para lhes
resistir. Se não fosse isso, tudo lhes correria bem!
Sabia quais eram as preocupações dos adversários e que se insistisse em resistir, poderia anular-lhes os projectos. Mas também não ignorava quão precária era a situação
em que se encontrava, com esses dois companheiros que apenas serviam para o estorvar.
Felizmente, o estado do capitão não se agravara, mas continuava muito fraco e incapaz de agarrar num revólver. Não podia ajudá-lo na resistência.
Catamount começava a inquietar-se com a calma prolongada, quando subitamente, estremeceu. Do lado da porta, vinha um ligeiro ruído.
Claudette também tinha ouvido e os seus enormes olhos volveram-se para o seu corajoso defensor.
- Escute. murmurou dèbilmente. Hyatt, intrigado, inclinou-se, pois o barulho aumentava cada vez mais.
- Será um rato? perguntou.
com um sinal, o cow-boy mandou-o calar-se e sustendo a respiração e de revólver em punho, aproximou-se da porta.
- Tenha cuidado! exclamou a jovem. Não abra! Eles matavam-no logo.
Por instantes, Catamount encostou o ouvido à porta. O barulho persistia! Parecia que estava alguém a pedir para entrar!
A princípio pensou que fosse o homem que tinha ferido no começo do ataque. Talvez ele se tivesse arrastado até ali para que o tratassem. E, não podendo conter-se:
- vou abrir! Vamos lá a ver quem é! Enquanto Claudette se conservava imóvel, estendeu o braço, agarrou no trinco e puxou-o. Depois, e muito lentamente, não fosse
provocar qualquer ruído, entreabriu a porta.
Imediatamente a silhueta vaga dum homem que esperava, de cócoras, se ergueu e correu para o interior do camarote. Temendo um ataque, Catamount preparava-se para
atirar, quando ouviu uma voz:
-Chink.
Era ele com efeito. Como teria conseguido chegar até ali e iludir a vigilância de Sam Trill e dos acólitos?
- Chink! repetiu a mesma voz, enquanto Bill Lern fechava cuidadosamente a porta.
Hyatt e a filha, tinham identificado o chinês, pois reconheceram o forte e repugnante cheiro que emanava
da sua pessoa, Catamount lambem não esquecera que o pequeno, até aí, se mostrara um poderoso aliado, que o ajudara a recuperar o cinturão e os revólveres, sem os
quais não teria podido resistir aos revoltosos do "Sea-New"!
- Donde é que vens?
Chink estropiou umas palavras, que o vaqueiro não conseguiu perceber. Mas Hyatt traduziu o melhor que pôde:
- Diz que vem do porão, que os outros estão metidos na sala e que, por agora, não há perigo!
O rapazito pôs-se a falar febrilmente, fazendo grandes gestos e empregando uma linguagem complicada, onde as palavras chinesas se misturavam às inglesas, estas deploràvelmente
pronunciadas. E, de vez em quando, apontava para a porta.
O capitão pôs Catamount ao corrente do que conseguira perceber:
- Chink afiança-nos que poderíamos aproveitar a calma que agora reina e a escuridão, para deixarmos o barco.
O vaqueiro pareceu ficar um pouco céptico:
- Sair do "Sea-New? objectou logo. Mas como?
- Muito simplesmente, na lancha.
- Para isso, era preciso que conseguíssemos lá chegar, exclamou Catamount.
x
A Invasão
Claudette, resolveu também interrogar Chink.
- Assegura que podemos muito bem consegui-lo! declarou ela ao vaqueiro. E parece que estamos a pouco menos de duas milhas das costas de Cuba!
-Só?
Catamount pareceu surpreendido mas, ao pensar melhor, chegou à conclusão de que o "Sea-New" tinha tido tempo de se aproximar da ilha. Ele é que estava tão preocupado,
que nunca mais se lembrara de ver qual a posição do barco.
No entanto, o rosto de Hyatt estava dolorosamente crispado.
- Sair do navio? protestou, medindo as consequências de tão arriscada tentativa. É absolutamente impossível!
- Porquê, se o Chink nos assegura?
- Porque um capitão nunca deve abandonar o seu barco!
- Mas quando é absolutamente preciso!
A princípio, Hyat parecia ter acatado, favoravelmente, o projecto da fuga. Mas agora mostrava-se mais reticente. Repugnava-lhe, apesar do seu estado de saúde, deixar
o "Sea-New" à mercê desses piratas sem fé nem lei.
- Enquanto estiver a bordo, continuarei a ser o único patrão. Mas se me for embora. Sam Trill.
- Esse patife tem tudo na mão, e a sua presença ou a sua ausência de nada servirão!
E, ao ver o seu interlocutor encolher os ombros, não parecendo ainda bem convencido, insistiu:
- Pode reaver o seu posto a bordo deste barco, capitão, e esses bandidos virão a ser castigados como merecem, mas se teimar em continuar aqui, será inevitavelmente
massacrado!
- Mas o facto de me ir embora, pode ser encarado como uma deserção! ripostou ainda Hyatt.
- Então, e a sua filha? Já se esqueceu dela?
E dizendo isto, Catamount apertou energicamente a mão do capitão.
Durante longos momentos, Hyatt lutou, revoltando-se contra a ideia da fuga, enquanto a filha esperava indecisa, não sabendo que fazer e Chink insistia apontando
para a porta.
Por fim murmurou, numa voz cava:
- Tem razão! Tenho de pensar em Claudette! E neste momento, preferia vê-la morta a sabê-la à mercê desse miserável!
E insistindo na sua teimosia, exclamou:
- Fuja com a minha filha. Confio-lha. Tenho a certeza de que é suficientemente corajoso e intrépido para a salvar! Quanto a mim, não se preocupem, deixem-me aqui!
- Isso não, Pai! protestou a jovem energicamente. Fique desde já sabendo que não partirei sem si!
- Então, vocês não vêem como eu estou? continuou numa voz emocionada. Nem sequer sou capaz de
agarrar numa arma! Não sirvo senão para vos estorvar. Serei um obstáculo para a vossa possível salvação !
- Se for preciso, levá-lo-ei às costas, capitão, exclamou Catamount. Mas tem de vir connosco!
Pararam de discutir e, aproveitando a altura, Chink levantou-se e inclinou-se para eles:
- Depressa, exclamou. Vocês virem!
O vaqueiro aproximou-se e com a ajuda da jovem, apressou-se a vestir o capitão o melhor que sabia.
Chink entreabriu a porta e lançou um olhar preocupado pelos arredores. Tudo continuava calmo e apenas se via o cadáver de Merino banhado em sangue.
- Vocês seguir Chink!
E saiu para fora do camarote, seguido por Catamount, que levava Hyatt ao colo. Claudete vinha no fim, segurando uma arma nas mãos trémulas.
Os fugitivos não ignoravam os riscos a que se expunham, ao saírem da sua trincheira. Dum momento para o outro, Sam Trill e os discípulos podiam aparecer a embargar-lhes
o caminho. Mas continuaram a avançar de coração aos pulos, aproveitando a escuridão.
Chink parecia conhecer o "Sea-New" tão bem como o próprio capitão. Era ele que conduzia o grupo para o sítio onde a lancha se encontrava amarrada e ao pé da qual
chegaram sem o mínimo incidente.
- Por amor de Deus, protestou o capitão. Deixem-me. Em nada vos posso ajudar. E sinto que o meu estado.
O vaqueiro obrigou Hyatt a calar-se e com a ajuda de Chink deitou a lancha ao mar, enquanto Claudette pesquisava a escuridão.
A bordo reinava ainda a calma, e esse prolongado silêncio depois do ataque travado no começo da noite, surpreendia bastante a rapariga. Mas lá adiante, o grupo de
revoltosos ignorava o que se estava a passar.
- Temos de voltar à carga! refilou Cobilovici,
fora de si.
- E pensar eu que esperávamos que, assim que a noite caísse.
Sardel não acabou a frase, pois a voz autoritária do imediato interrompeu-o.
- Calem-se todos! Deviam ter vergonha nessa
cara.
- Mein Gott! exclamou Hermann. Sambor ferido e Merino morto. Se tivéssemos insistido, creio que depois não seríamos bastantes para entregar a carga a Alvarez!
Alvarez! Ao ouvir este nome, Sam Trill lembrou-se de que havia coisas mais importantes a fazer, do que dar cabo do vaqueiro.
- Daqui a pouco é dia, acabou por dizer. E se continuarmos de braços cruzados, não conseguiremos chegar a Pinos a tempo e horas!
- E então? perguntou Brackson.
- Então acho que, em vez de estarmos a perder o nosso precioso tempo a querer acabar com Lern e o capitão, devemos pensar no principal assunto que nos interessa!
- Se eles se sentem bem no camarote, deixá-los estar. Quando não tivermos mais nada que fazer, tratar-lhes-emos da saúde. opinou Sardel por sua vez.
As suas palavras foram acolhidas por um murmúrio aprovador, pois todos concordavam que Hyatt,
fechado no beliche, não os poderia estorvar. E Sam Trill tinha liberdade absoluta para realizar os planos preconcebidos. Hesitar, seria arriscar-se a um falhanço
irremediável !
Para todos esses homens que não davam valor à vida, só contava o ouro. E foi na mira da prometida recompensa, que iludiram a vigilância dos guarda-costas do Golfo
do México.
- Lern, Hyatt e a filha que vão para o diabo! exclamou Sam Trill. Não perdem nada em esperar! Vamos ao que nos interessa!
Ao imediato não lhe convinha ver reduzido o seu já tão pequeno número de adeptos. Preparava-se para dar as suas ordens, quando ouviu uma ligeira pancada na porta.
Num gesto instintivo, todos agarraram nas armas.
- Quem está aí? perguntou Cobilovici com voz de poucos amigos.
De arma aperrada, o romeno aproximou-se da porta. Ao ouvir mais duas pancadas, insistiu ainda numa voz mais ameaçadora:
- Responde-me ou não? Quem está aí?
- Luiggi! exclamou finalmente uma voz.
- Entra!
Cobilovici abriu a porta, e o italiano precipitou-se para dentro do salão. Ao verem-no, todos perceberam que estava profundamente excitado.
- O que é que se passa? perguntou Sam Trill. O que tens estado a fazer?
- Madonna! Sempre na cozinha! E eles que não pensassem em lá entrar, pois eu não os deixava.
Estas palavras, pronunciadas com ênfase, obrigaram os outros a rir. Mas ele depressa os interessou:
- Eles. murmurou.
- Oh homem, explica-te! Fala, por amor de Deus!
Luiggi estava tão estafado, como se tivesse acabado de correr os 100 metros, e no entanto, a distância que separava a cozinha da sala era mínima. Limpando a cara
banhada em suor, com a manga da camisa, continuou:
- A lancha.
- Ora esta! Desembucha! O que é que eles fizeram à lancha! irritou-se Cobilovici.
- Arriaram-na ao mar! Fugiram!
- Tens a certeza ?
- Juro pela minha saúde!
Estas palavras produziram uma chuva de imprecações.
- Depressa! berrou Sam Trill. Vamos a eles! O italiano esforçou-se por explicar a razão da sua
presença ali:
- Eu estava de guarda à cozinha. E per Bacco, vi uns vultos que passavam ali ao pé.
- Devias ter chamado! objectou Brackson.
- Pensei que fossem vocês.
Não pôde continuar, pois Sam Trill e os outros correram para o convés. Passaram pelo camarote, cuja porta estava aberta e dirigiram-se para o local onde se encontrava
a lancha.
Foi Hermann quem chegou primeiro e logo gritou:
- Gottem!
A lancha já lá não estava e Cobilovici e Sardel, ao
debruçarem-se na amurada, viram uma sombra afastando-se por entre as ondas calmas, cinquenta braças a bombordo do "Sea-New".
- Fogo! ordenou Sam Trill.
Ouviram-se alguns tiros, dominando o silêncio da noite. Os revoltosos visavam raivosamente os fugitivos que, remando, se afastavam cada vez mais.
- Precisamos das carabinas! gritou Cobilovici.
- Não vale a pena irmos buscá-las, pois quando as trouxermos, já eles estão fora do alcance de tiro! vociferou o imediato.
Hermann, Sardel, Brackson e os restantes, teimavam, em vão, em descarregar as suas armas na direcção da lancha que fugia na noite.
- É inútil gastarem a vossa pólvora! Não vêem que eles já vão longe ?
Se bem que contra vontade, obedeceram, mas as imprecações sucediam-se umas às outras. O imediato viu-se obrigado a chamar os acólitos à ordem:
- Além do mais, era o que de melhor nos podia ter acontecido! Estamos livres deles! O "Sea-New" é nosso!
E ao ouvir certas objecções, atalhou numa voz rude:
- E agora, já sabem qual é o santo-e-senha! Mãos à obra, já perdemos tempo de mais!
Deixaram de seguir o rasto dos fugitivos e, olhando para a linha do horizonte, viram a sombra vaga da costa que se propunham alcançar.
- Rumo Nordeste, e depressa! ordenou Sam Trill. Devemos chegar daqui a três quartos de hora!
Algum tempo depois, estavam nos seus postos, não
sem terem feito uma visita à cozinha, onde Luiggi os atendeu, orgulhoso da sua pessoa.
Sam Trill foi-se pôr ao lado do piloto. Parecia já ter esquecido as preocupações que o vaqueiro lhe causara. Agora que Hyat tinha partido, sentia-se finalmente o
dono do "Sea-New". E pouco importava que o capitão não tivesse sucumbido como estava planeado. O principal era ter o campo livre!
Contudo, não pôde reprimir uma blasfémia. Lembrava-se que Claudette lhe tinha escapado! Mas estava convencido de que, com a ajuda de Alvarez e dos seus pretos, conseguiria
encontrar a fugitiva.
Enquanto o três-mastros retomava a sua rota, avançando rapidamente, os quatro companheiros viam cada vez mais perto a margem da ilha.
Se Luiggi tivesse avisado os seus, cinco minutos mais cedo, a fuga do pequeno grupo tinha ficado irremediavelmente comprometida.
Assim que o barquinho tocou na água, os fugitivos instalaram-se o melhor que puderam e, enquanto Hyatt se estendia no centro da lancha, tendo ao pé Claudette, o
vaqueiro e Chink puseram-se a remar com quanta força tinham.
Começavam a afastar-se do "Sea-New", quando perceberam que a fuga tinha sido descoberta. Os gritos dos revoltosos, logo seguidos de vários tiros tiraram-lhes quaisquer
dúvidas.
- Deitem-se! ordenou Catamount.
Por instantes, foram alvo dum fogo cerrado, mas os adversários, com a precipitação, nem tinham tempo de visar. Algumas balas zumbiram, inofensivas, às orelhas de
Claudette e dos seus companheiros, outras
foram-se espetar na borda da embarcação, mas a maior parte delas perderam-se nas ondas.
- Mas que aselhas! troçou o vaqueiro.
Ao verem que estavam fora do alcance das armas, pararam para descansar.
- Desta vez, tenho a certeza de que nunca mais nos apanham, exclamou Catamount.
O chinês deu um gritinho de satisfação e Claudette voltou-se para trás, olhando para o barco. Conscientes da inutilidade dos seus esforços, Sam Trill e os amigos
tinham resolvido parar o tiroteio.
- E agora, perguntou a rapariga. O que vamos nós fazer?
- Desembarcar, declarou o vaqueiro, apontando para a margem mais próxima. É preciso ter azar se não descobrirmos logo uma casa qualquer, onde possam socorrer-nos
e indicar-nos o caminho!
Claudette suspirou de contente. Começava a sentir-se um bocado cansada devido ao esforço que fizera nas últimas horas. Mas estremeceu ao sentir a mão húmida do capitão
apertar-lhe o pulso.
- Honey!
- O que é, pai? perguntou inclinando-se. Sente-se melhor?
Hyatt abanou tristemente a cabeça:
- Creio que tinham feito melhor em deixar-me a bordo, murmurou numa voz cava.
E, como a sua interlocutora protestasse energicamente, acrescentou:
- Sei perfeitamente que só sirvo de entrave, insistiu. Não passo dum frangalho miserável!
O capitão cansara-se muito, desde que saíra do
camarote. Catamount tinha-o transportado, para lhe evitar qualquer esforço, mas apesar disso o desgraçado sentia-se sem energias.
- É preciso coragem, capitão.
Agarrando os remos com as suas mãos nervosas, o vaqueiro recomeçou a tarefa, logo -imitado por Chink.
- Mais um esforçozinho e chegamos! encorajou-o
Catamount.
A lancha deslizava rapidamente sobre as águas calmas, e à medida que se aproximava de terra, a brisa nocturna trazia-lhes aromas há muito desconhecidos. O vaqueiro
sentia-se reviver, pois o mar não era o seu elemento e, ultimamente, tinha sentido necessidade absoluta de abandonar o navio.
Aqui e ali, viam-se pequeninos rochedos emergindo do mar, o que os obrigou a abrandar o andamento, não fossem abalroar contra algum recife.
- Tenham cuidado, repetia Hyatt continuamente. Devagar se vai ao longe.
Catamount esforçava-se por cumprir à risca as ordens do capitão e Chink, apesar de estar já um pouco cansado, secundava-o desajeitadamente.
Os dois remadores, por várias vezes, tiveram que descansar para retomar o fôlego.
- Atenção! exclamou subitamente Hyatt. Tenham cuidado com os recifes!
O capitão exasperava-se por se ver assim impotente e condenado à mais completa inacção. Além disso, os esforços que tinha feito para sair do "Sea-New", e os balanços
violentos que sofrera apesar das precauções tomadas, tinham-no mergulhado num estado de prostração, agravado ainda pela consciência da gravidade do seu estado e
pela angústia de se ter visto obrigado a abandonar o navio como um vulgar criminoso.
- Para que se preocupam vocês comigo? perguntou a certa altura. Sinto que já não duro muito tempo!
- É preciso ter fé, apesar de tudo, capitão, replicou logo Catamount. Como vê, já estamos longe do alcance desses bandidos!
- É possível, admitiu Hyat. Mas em que sítio estamos nós?
E antes que o vaqueiro tivesse tido tempo de responder, o capitão acrescentou:
- Não é com certeza a costa de Cuba que estamos prestes a alcançar. Estou a ver muitos recifes.
- Não me diga.
Deve ser uma das ilhas que orlam o litoral da
Ilha Grande. Não se vê a mais pequena luz. O que quer dizer que estas costas não são habitadas!
Catamount olhou à sua frente e para lá das centenas de rochedos que emergiam franjados de espuma, não viu nem sequer uma palmeira. A barreira de corais, prolongava-se
em forma de meia-lua, dificultando os esforços dos fugitivos que se arriscavam a todo o momento a chocar contra alguns desses obstáculos.
- Cuidado, Chink!
Catamount não deixava de chamar a atenção do chinês para que não esbarrassem num dos muitos recifes, que surgiam à tona da água.
Durante mais de meia hora, ambos tiveram de unir os esforços, para evitar a catástrofe. O mar agora era pouco profundo e, com a pá dos remos de vez em quando experimentavam
o fundo, procurando localizar algum traiçoeiro estorvo.
Hyatt não pôde evitar um gesto de desalento.
- É inútil! Nunca conseguiremos passar daqui!
murmurou numa voz cava.
- Não diga isso capitão, objectou logo o vaqueiro. Como vê, estamos cada vez mais perto! E daqui a meia hora, poderemos finalmente acostar!
E dizendo isto, apontou para uma linha contínua que constituía uma muralha sólida contra os assaltos repetidos das vagas.
- Mas isso não é mais do que um camino de piedras, como dizem em Cuba, objectou Hyatt.
- Seja como for, esse caminho de pedra ajudar-nos-á a chegar a terra firme!
Avançavam lentamente e de quando em quando a lancha era sacudida, ameaçando virar-se. Vigorosamente agarrados aos remos, os dois homens prosseguiam na lenta e extenuante
tarefa.
Por fim, um encontrão mais violento que os outros, obrigou Claudette a cair para cima do pai. Ainda atordoada, e antevendo a catástrofe, ouviu a voz de Catamount,
gritando alegremente:
- Mais um esforçozinho! Parece que estamos salvos!
E, tomando a iniciativa, saltou para uma espécie de língua de terra, atatefada de calhaus e pedras. Era esse o tal camino de piedras que Hyat enxergara pouco tempo
antes e que se prolongava tal uma fita escura e sumosa à superfície das ondas.
Estava uma noite maravilhosa e soprava uma brisa quente e agradável. Mas os fugitivos não tinham ocasião para se extasiar perante cenário tão feérico. Catamount
estava cada vez mais preocupado com o estado alarmante do capitão, perigosamente agravado com tão trágica e audaciosa travessia.
Unindo mais uma vez os esforços, Lern e Chink conseguiram puxar a embarcação para fora do alcance da maré. Claudete, dormente devido à forçada imobilidade, saltou
para terra.
Aproximou-se então do doente que ficara a bordo da lancha e, à luz do luar, viram-lhe a face dolorosamente contraída.
-Como se sente, Pai ? perguntou Claudette, enquanto se ajoelhava junto dele.
Hyatt encolheu os ombros. Enormes gotas de suor, escorriam-lhe pela cara. Já nem tinha forças para falar.
- Meu Deus! exclamou Claudette de cabeça perdida.
O vaqueiro afastou-a e dirigindo-se ao companheiro,
disse:
- Depressa, Chink! Temos de o tirar daqui!
Pegaram em Hyat com a maior suavidade possível e transportaram-no para terra firme.
- Não posso acreditar, murmurou a rapariga. Ele vai morrer!
Catamount teve um gesto de impaciência. Ao saírem do "Sea-New" a precipitação fora tal, que não tinham tido tempo de trazer um pouco de água potável.
Por fim ouviram o capitão dizer numa voz quase imperceptível:
- Eu não lhes dizia ? Foi um disparate ter abandonado o barco!
- Mas tinha de ser, Capitão! respondeu o vaqueiro.
E, apontando para Claudette, continuou:
- Não podia deixar a sua filha à mercê desses patifes!
- Ah, Sam Trill! Meu miserável!
O doente cerrou raivosamente os punhos. Estava irritado com a sua incapacidade, mas a contracção que lhe surgiu no rosto, deu a entender que começara uma nova e
dolorosa crise.
- Nunca pensei que se pudesse sofrer tanto! É atroz, meu Deus!
Parecia lutar desesperadamente contra o sofrimento. Ajoelhada ao pé de si, Claudette enxugava-lhe o rosto com um lenço.
O silêncio da noite apenas era cortado pelo barulho
das ondas, que vinham desfazer-se contra os recifes e banhar os pés dos fugitivos. Mas a atenção de todos estava concentrada no moribundo, cujos olhos dilatados
pela dor, estavam rodeados de enormes círculos negros.
- Deus do Céu, soluçou Claudette. Está perdido!
Catamount não procurou desenganá-la, pois sabia bem que já não havia nada a fazer.
- É preciso coragem! contentou-se em murmurar. Hyatt tentou sentar-se, num supremo esforço:
- Não o devia ter feito! Não o devia ter feito! repetiu.
As suas mãos crispadas agarraram-se aos braços da filha e do vaqueiro. Chink mantinha-se afastado.
O suor continuava a cair abundantemente pela cara do moribundo e Claudette a custo sustinha as lágrimas.
- Dad, pediu, olha para mim. Sou eu, a tua Claudete!
- Pobre filha! O que será de ti, agora?
No rosto de Hyat lia-se uma preocupação sincera . Nesse momento, estava mais do que nunca consciente da sua impotência e grossas lágrimas lhe correram dos olhos
inflamados, enquanto a filha continuava a abraçá-lo com ansiedade.
Ouviu-se então a voz enérgica de Catamount:
- Pode estar descansado, capitão. Prometo solenemente olhar por ela.
Havia uma tão grande sinceridade naquelas palavras, que Hyatt estremeceu. À luz do luar, a silhueta enérgica do vaqueiro aparecia-lhe como a de um anjo da guarda
pronto a proteger e a salvar a filha.
- Dá-me a palavra de honra ? murmurou, procurando endireitar-se.
- com certeza! Não deixarei a sua filha, enquanto ela não estiver absolutamente segura.
- Que Deus o abençoe! Claudette.
E dizendo isto, o moribundo acariciou a longa cabeleira da filha.
- Claudette! .Minha querida pequenina! repetiu amiudadas vezes.
- Dad !
Compreendeu que o fim se aproximava e, transtornada abraçou o pai como se não o quisesse deixar partir. E foi muito a custo que conseguiu ouvi-lo dizer numa voz
já velada:
- "Sea-New"! Eu não devia ter.
Foram estas as últimas palavras. A cabeça caiu-lhe bruscamente para trás e os olhos abriram-se desmedidamente .
- Dad ! gritou Claudette, fora de si. Dad! Responde-me, sou eu!
Mas não conseguiu obter resposta. A morte acabara de por ali passar!
Claudette permaneceu por algum tempo imóvel, balbuciando palavras sem nexo. Não tinha forças para falar e teria caído desmaiada, se Catamount não a tivesse agarrado
nos seus braços robustos.
- Então, miss Hyat! é preciso coragem! Não se esqueça de que prometi velar por si!
E ao ouvi-la soluçar sem consolo, insistiu:
- Será possível que não tenha confiança em mim?
Mas logo ela protestou :
- Oh, Mr. Lern! Depois de tudo o que já fez por mim e pelo Pai!
- Pois é preciso tentar reagir! É absolutamente indispensável!
- Não devíamos tê-lo trazido, objectou a rapariga. Exigimos-lhe um esforço demasiado grande!
- Acha que ele seria mais feliz, se tivesse ficado entregue a Sam Trill, que já o tinha começado a envenenar, e que é o único responsável por este fim tão trágico?
A rapariga não respondeu. Concordava absolutamente com o companheiro.
- Tem toda a razão, exclamou por fim, entre dois soluços. Fizemos tudo o que pudemos por ele!
Calaram-se. E, enquanto Claudette chorava junto ao corpo do pai, Catamount aproveitou para lhe baixar as pálpebras.
- Deus guarde a sua alma ! exclamou unicamente .
Chink continuava imóvel e o seu rosto impassível, não deixava adivinhar se compartilhava da aflição e da emoção profunda dos companheiros: Foi ele que os chamou
à realidade, dizendo sobressaltado :
- Hello! Hello!
- O que é que aconteceu ?
Catamount olhou na direcção que Chink lhe apontava insistentemente.
- Ali em baixo! Fogos! disse simplesmente. O vaqueiro compreendeu logo qual o motivo do alarme. A cerca de duas milhas de distância e um pouco mais à direita, tinham
surgido três pontos luminosos.
- Tens razão, disse, levantando-se súbitamente. Acenderam ali umas fogueiras!
- Alguém ali em baixo! insistiu ChinK.
- Podíamos talvez ir buscar socorros!
No entanto, a expressão de Catamount modificou-se, ao ver surgir uma outra luz na zona em que se encontrava o barco que tinham abandonado.
- Hum! murmurou. Parece-me que não podemos esperar nada desses tipos! Como vês estão a trocar sinais com o "Sea-New"!
Não havia dúvida possível, tratavam-se realmente de sinais e parecia que Sam Trill e o grupo se preparava para desembarcar para se unir aos misteriosos homens que
os esperavam em terra firme.
- Esses patifes vão entregar armas aos insurrectos! Ai, se eu pudesse!
No entanto, o vaqueiro interrompeu a sua divagação. Não podiam continuar ali numa língua de terra cravada de pedras e de corais e constantemente batida pelas ondas!
- Depressa! ordenou a Chink, que continuava a esperar, impávido. Temos de alcançar a margem !
E, apontando para o corpo de Hyatt, continuou:
- Temos de o levar connosco. Não podemos deixá-lo aqui!
O chinês concordou e então, dirigindo-se a Claudette que continuava prostrada junto do cadáver, Catamount disse-lhe, pondo-lhe a mão no ombro:
- Temos de partir, miss Hyatt! Sente-se com forças para andar?
- Farei os possíveis! contentou-se em responder, numa voz surda.
Ajudada pelo vaqueiro, levantou-se, esforçando-se por sacudir a apatia que a paralisava.
- A caminho, então, murmurou Catamount. Precisamos absolutamente de encontrar socorros, ou pelo menos um abrigo!
Os dois homens tomaram a dianteira, levando o fúnebre fardo e Claudette seguiu-os. Por duas vezes, a infeliz voltou-se para trás, para olhar a lancha em que vivera
horas tão angustiosas.
A noite estava clara. Catamount e Chink tiveram de parar por vezes para descansar. Custava-lhes a andar devido às pedras e calhaus que obstruíam o caminho. Mas apesar
disso, estavam cada vez mais próximo da margem, onde se viam várias palmeiras recortando-se contra o horizonte.
- Coragem! Estamos quase a chegar!
Levaram no entanto mais de uma hora para alcançar o litoral, uma enorme língua de areia que formava uma praia. Cansados devido ao esforço que tinham despendido,
os dois homens pararam, colocando no chão o corpo de Hyatt.
Claudette juntou-se-lhes e os seus pés, feridos por tão longa caminhada, doíam-lhe atrozmente.
- Já não posso mais, queixou-se.
O coração batia-lhe desordenadamente e tinha uma mecha de cabelos colada à testa húmida.
- Descanse um pouco, miss Hyatt! exclamou o vaqueiro. Deixe-se ficar aqui quieta!
A expressão dolorosa da jovem foi alterada por uma onda de medo.
- Por Deus! Não me diga que me vai deixar aqui sozinha! protestou energicamente.
- Chink fica aqui ao pé de si, continuou o vaqueiro.
- Então, e você? insistiu a rapariga.
- É absolutamente indispensável que eu parta, pois não é ficando aqui que posso solucionar o problema.
- Espera arranjar socorros?
- Tenho esperanças de o conseguir, ou pelo menos, descobrir abrigo mais seguro.
Claudette teve mesmo de se resignar. E enquanto o chinês se colocava a seu lado, viu Catamount afastar-se para o interior.
Não longe dali, as fogueiras tinham-se apagado, não só na costa, como também a bordo. Mas a rapariga sabia muito bem que isso não passava da mais elementar medida
de segurança, pois Sam Trill e os outros, dispensavam atrair a atenção dos espanhóis, cujos navios de guerra cruzavam sem cessar aquelas paragens, exercendo uma
vigilância aturada.
- Nós esperar, tem de ser!
A rapariga estremeceu. Chink esforçava-se por a sossegar. E apontando insistentemente para o sítio por onde desaparecera o companheiro, declarou:
- Ele ser muito corajoso! E nós não ter medo. Claudette fez os possíveis por reagir:
- Eu não tenho medo nenhum, exclamou numa voz pouco convincente. E farei tudo o que puder, para me portar como deve ser!
- Ele voltar depressa, apostar! Esperarmos com paciência!
E resignaram-se à sua sorte. Enquanto o silêncio reinava junto do cadáver do capitão, Catamount avançava resolutamente para o norte.
Por vezes parava, investigando tudo à volta. O terreno que atravessava era baixo e arenoso. Charcos e buracos sucediam-se uns atrás dos outros e por vezes ele enterrava-se,
arriscado a sumir-se no solo movediço. Os únicos seres vivos que encontrava, eram os caranguejos. E para onde quer que se virasse, não via uma única casa, barco,
ou ser humano.
Catamount começava a impacientar-se com esse passeio tão longo como inútil. À luz do luar, via vagamente no horizonte uns montes. Mas, ainda durante umas milhas,
tinha à sua frente uma extensão plana, monótona e pérfida, onde a todo o momento corria o risco de se enterrar ou se perder.
- E durante este tempo, Trill e os companheiros estão tratando de desembarcar a carga, disse de si para si.
Imaginava facilmente a actividade que devia reinar próximo. E isso servia para o sossegar, pois os patifes, absorvidos como estavam, não tinham ocasião para os procurar!
Todavia, era absolutamente preciso sair da situação crítica em que se encontravam. Catamount não se esquecera da promessa que tinha feito ao moribundo e, mais do
que nunca, estava resolvido a proteger a filha do capitão, contra todos os perigos que a pudessem ameaçar. E, custasse o que custasse, tinha de a pôr em sítio seguro,
em Galveston, por exemplo!
No entanto, não tinha ilusões a esse respeito. Teria de afrontar terríveis obstáculos, mas antes de tudo o mais, precisava de encontrar socorros que lhe permitissem
assegurar, ao capitão do "Sea-New", uma sepultura digna!
E, presentemente, não parecia provável que ele encontrasse os reforços ambicionados! Cabanas nem
vê-las! Pântanos, fendas, buracos, covas enormes, sucediam-se ininterruptamente. E para não se arriscar, era obrigado a caminhar ao longo dos rochedos.
O vaqueiro começava a estar farto e pensava nos dois companheiros que o deviam esperar com legítima impaciência. Desesperado, estava resignado a voltar para trás,
quando de súbito e rompendo o silêncio da noite, ouviu uma voz:
- Quien vive!
Catamount escondeu-se atrás dum rochedo, pois a entoação ameaçadora do visitante, causava-lhe severas apreensões. Levando a mão ao cinturão, agarrou no revólver.
- Quien vive!
Mais imperativa que antes, a voz fez-se de novo ouvir. Sustendo a respiração, o vaqueiro imobilizou-se, ansioso. Perto, recortava-se um vulto caminhando na sua direcção.
Era o de um enorme cão que, ao chegar perto do seu refúgio, se pôs a ladrar furiosamente.
De pêlo eriçado, orelhas arrebitadas, raivoso, o animal avançava. Tinha localizado o homem e fixava a sua silhueta imóvel, enquanto rosnava. com o dedo no gatilho
e pronto a disparar, Catamount ouviu de novo a mesma voz:
- Atrás, Diablo. Atrás!
Agora, a silhueta do recém-chegado via-se quase nitidamente e, do esconderijo, o vaqueiro viu que se tratava dum enorme preto de cabeleira encarapinhada e andar
desengonçado. De carabina em punho e com o peito guarnecido de cartucheiras copiosamente recheadas, aproximou-se, atraído pelos latidos incessantes do animal.
O cão não sabia se havia de avançar e então o preto aproximou-se e passando-lhe uma mão ao correr do pêlo eriçado, repetiu mais uma vez:
- Atrás, Diablo.
E ao ver por sua vez o vulto vago, que continuava a proceder com prudente expectativa, disse ainda:
- Quien vive?
Desta vez, Catamount não hesitou mais em manifestar a sua presença. Tinha vontade de acabar com esse equívoco e, saindo do refúgio, aventurou-se, expondo o rosto
à luz do luar.
O cão ia saltar e teria inevitavelmente atacado Catamount, se o dono não tivesse agarrado com a mão esquerda a coleira de bicos aguçados.
- Amigo! ? exclamou o vaqueiro.
E, para provar que não estava com más intenções,
desviou a arma.
Em contrapartida, o negro continuava a apontar a carabina ao inquietante visitante que acabava de encontrar. E, de sobrolho carregado, examinava-o com extraordinária
minuciosidade.
- Não tenhas receio, amigo, insistiu Catamount.
Eu sou um amigo.
Mas estas afirmações não pareciam ter abrandado a desconfiança do recém-chegado. No entanto, pareceu ficar mais sossegado ao ouvir a pronúncia do seu interlocutor.
Percebeu logo que se tratava não dum espanhol, mas dum gringo, um americano vindo do Oeste.
- Que fazes tu aqui? interrogou-o, sem deixar de o ameaçar com a arma.
E a resposta não se fez esperar:
- Ando à procura de socorros!
Catamount falava o espanhol tão bem como o inglês e pôde ver a surpresa que a declaração causara
ao preto.
- Estás com os Mambi? perguntou, enquanto o cão se aproximava e se punha a farejar o vaqueiro insistentemente.
Não ignorava que Mambi era o nome que davam aos insurrectos de Cuba, e portanto respondeu diplomaticamente :
- Não sou um Mambi, mas sou um amigo dos
Mambi!
- Como conseguiste chegar aqui ?
O negro prosseguiu no interrogatório e, segundo parecia, a hostilidade ameaçadora que demonstrara de entrada, tendia a desaparecer a pouco e pouco.
- Viemos de barco desde Galveston!
- Nesse barco que nos traz as armas de que precisamos?
- Sim, senhor! No "Sea-New", pois é este o seu nome! O capitão vinha connosco e acaba de morrer!
Ao ouvir isto, o preto abriu os olhos, espantado:
- O capitão? repetiu. Julguei que ele estivesse a bordo com os outros!
- Esse não é o verdadeiro capitão, objectou o vaqueiro, mas sim um perigoso impostor!
E, sem dar tempo a que o interlocutor fizesse qualquer objecção, insistiu:
- Vem, amigo! Tenho ali uma jovem que precisa de ajuda, é a filha do capitão. Eu estava com ela, mas.
O negro começava a desnortear-se com história tão complicada. O capitão. o impostor. a rapariga. o gringo. Tudo isto lhe parecia demasiado estranho.
- O José tem de ir falar com o chefe! objectou.
- Quem é o José ?
- Sou eu, disse apontando para si próprio.
- Então segue-me e verás com os teus próprios olhos que não te menti.
O próprio cão também parecia mais calmo. O vaqueiro guardou o revólver no cinturão, mas o novo companheiro não deixou de lhe apontar a carabina, receando uma traição,
sempre possível.
- Vamos ! Vai tu à frente ! murmurou. Catamount obedeceu prontamente, e, seguido de José,
pôs-se a caminho da margem onde deixara os dois companheiros.
O preto parecia familiarizado com o terreno e saltava agilmente quando os pés se enterravam no lodo. Diablo avançava, sempre de nariz no chão.
Catamount enterrou-se por duas ou três vezes, mas logo José o ajudou sem demora, Quando chegaram à praia, caminhavam lado a lado e o Mambi transportava a carabina
a tiracolo.
- Eu não te dizia? exclamou então o vaqueiro. Aquela é a rapariga de que te falei há pouco!
Claudette e Chink esperavam ainda no mesmo sítio. Este último levantou-se e foi ao encontro de Catamount ao vê-lo acompanhado por um desconhecido.
Mas parou apavorado, quando viu o cão correr na sua direcção e não pôde suster um grito de pavor.
- Diablo!
Obedecendo à voz do dono, o cão estacou.
- Não há nada de novo ? perguntou Catamount ao chinês.
O interpelado abanou a cabeça e contentou-se em apontar para Claudette, que continuava imóvel junto do corpo do pai.
José avançou uns metros, enquanto o vaqueiro o elucidava, apontando para o vulto de Hyatt:
- Aqui está o capitão de que há pouco te falei! O negro fez uma careta e por instantes debruçou-se
sobre o cadáver, observando-o com insistência.
- Em que ponto exacto estamos nós, amigo ? perguntou finalmente Catamount.
Ao ouvir isto, uma sombra passou pelo olhar do Mambi.
Dios mio! exclamou. Não me digam que não sabem que estão na Isla dos Pinos!
- Na Isla dos Pinos!
O vaqueiro já tinha ouvido falar dessa enorme ilha situada no mar das Antilhas, ao sul de Cuba. Mas as circunstâncias especiais que tinham antecedido a sua chegada
a essas paragens, não lhe tinham permitido determinar a latitude e a longitude em que se encontravam.
José parecia extraordinariamente perplexo e apesar da presença do chinês lhe ter aguçado a desconfiança, não dissimulava o evidente interesse que lhe suscitava essa
rapariga, cuja expressão despedaçada pelo desgosto e pelo sofrimento, traía a sua dramática odisseia!
Mas Catamount apressou-se a pôr fim à penosa expectativa que ameaçava prolongar-se:
- Leva-nos até junto do teu chefe, pronto! insistiu voltando-se para o Mambi. Explicar-lhe-emos tudo o que se passou.
E ao ver que o negro parecia hesitar, insistiu:
- O teu chefe compreenderá. Mas vamos imediatamente, por amor de Deus!
Por fim, o negro pareceu convencido e com a mão acalmou Diablo, que continuava a mostrar os dentes a Chink.
Uma vez mais o vaqueiro e o amarelo pegaram no corpo do capitão Hyatt. Atrás seguia Claudete apoiada no preto e precedendo-os ao longo da margem, seguia o cão a
toda a velocidade.
Enquanto caminhavam, Catamount aproveitou para fazer algumas perguntas ao Mambi:
- Fica muito longe, o sítio para onde nos levas ?
- Nem por isso.
- Como é que se chama o teu chefe?
- É o fazendeiro Pablo Alvarez .
E foi assim que o vaqueiro pôde obter informações preciosas sobre a situação da Ilha dos Pinheiros.
Pablo Alvarez era um dos principais insurrectos, e já há uns anos que comandava a guerilla contra os espanhóis que ocupavam Cuba. Alguns meses atrás, o seu pai,
Alfonso Alvarez, morrera heroicamente ao combater o adversário detestado. Apesar de ter pouco mais de vinte anos, Pablo, seu único filho, tomou conta do comando
dos grupos de negros e de partidários que prosseguiam a luta na parte ocidental da ilha e na província de Havana.
A enorme Ilha dos Pinos, sempre fora para os insurrectos um refúgio dos mais seguros. Estava dividida, praticamente, ao meio pela Sierra de la Canada, tendo dum
lado uma lagoa semeada de obstáculos, savanas, terrenos pantanosos e pradarias que se estendiam a perder de vista. A parte norte, pelo contrário, era essencialmente
montanhosa. E os Mambi, que a conheciam perfeitamente, com facilidade mantinham a distância as tropas espanholas que, por vezes, tentavam desalojá-los dos picos
rochosos e das colinas vizinhas.
Pinos constituía também um magnífico ponto de desembarque para o contrabando de armas. Barcos vindos dos Estados Unidos e do México, onde a insurreição cubana tinha
numerosos aliados, acostavam frequentemente nas margens da ilha, apesar da
vigilância cuidadosa que exerciam os navios de guerra espanhóis. Émulos dos antigos flibusteiros que enxameavam vitoriosamente o Mar das Antilhas, os fornecedores
dos Mambi rivalizavam em audácia para abastecer os revoltosos.
Era precisamente um desses carregamentos de armas que Sam Trill, sem o conhecimento do capitão Hyatt, cuja confiança atraiçoara, decidira desembarcar na costa sul
de Pinos! E Catamount, que agora percebia perfeitamente o jogo do malandrão, calculava que não era por puro desinteresse e com o único desejo de servir a causa dos
oprimidos, que ele se decidira a embrenhar-se em semelhante aventura! Unicamente a mira do dinheiro o obrigara a organizar e a tomar parte em semelhante comédia!
José, que a princípio se mostrara reservado, não hesitava agora em explicar os mínimos pormenores ao vaqueiro.
Durante perto de uma hora, continuaram a avançar. Catamount e Chink começavam a sentir-se cansados e José, ao ver que Claudette caminhava com extrema dificuldade,
não hesitou em pegar-lhe ao colo. Ela deixou-se levar já meia inconsciente, não tendo forças para pensar.
Por fim, o Mambi virou nitidamente para a esquerda. Por detrás de uns rochedos, tinha sido construída uma cabana de aspecto miserável, no fundo de uma espécie de
beco sem saída.
- Chegámos! exclamou José.
Um murmúrio de alegria acolheu esta declaração. Catamount já começava a ter saudades das cavalgadas na fronteira do Rio Grande, acompanhado do seu
fiel Mezquite! Além disso, estava cheio de curiosidade de conhecer esse Pablo Alvarez, por quem José parecia ter uma admiração e uma dedicação sem limites!
De vez em quando, o vaqueiro olhava para o mar. Apesar de não ver nenhuma luz, imaginava que a menos de uma milha de distância, o "Sea-New" estava ainda ancorado.
Os insurrectos deviam estar a desembarcar apressadamente as caixas de armas e munições.
A certa altura, quebrando o silêncio e dominando o barulho dos passos na areia, ouviu-se uma voz gritar:
- Quien vive?
- E logo José respondeu:
- Cuba y Libertad!
Alguns pinheiros enfezados ladeavam a cabana e desenhavam-se contra o céu. O Mambi, transportando Claudette que tinha os pés ensanguentados, avançou através de uma
espécie de corredor rochoso, no fim do qual se via uma luz. Estavam a poucos metros da cabana.
Imediatamente o pequeno grupo se viu rodeado de vários homens, na maioria armados como José e que surgiram de todos os lados. Demonstrando desconfiança e seriamente
intrigados, observavam os recém-chegados em silêncio.
- Onde está o chefe? Eu quero ver o chefe! insistia José.
Ouviram-se então vários latidos. Chink, que se sentia cada vez menos descansado, viu aparecerem vários outros cães da mesma raça de Diablo. Os temíveis animais farejaram-no,
mostrando raivosamente as presas. Gerou-se então uma discussão animada entre José
e os camaradas. Claudette, que continuava agarrada ao negro, observava com uma certa emoção todos esses rostos bronzeados que não deixavam de a olhar.
Subitamente a jovem estremeceu. Dominando os murmúrios das discussões, uma voz clara e bem timbrada, ouviu-se à entrada do refúgio:
- O que se passa, José? Alguma novidade? A porta abriu-se por completo e Claudette viu um rapaz alto, de curta barba, trazendo também uma carabina a tiracolo e um
cinturão carregado de cartuchos. José aproximou-se, transportando ainda o seu fardo vivo e Pablo Alvarez, visivelmente admirado, parou por instantes, incapaz de
pronunciar a mínima palavra, tão longe estava de encontrar uma mulher em semelhantes circunstâncias!
- Por favor, ajude-nos!
Estas palavras, que Claudette pronunciou numa voz fremente, pareceram quebrar a hesitação do recém-chegado:
- Seja bem-vinda, Senorita, na minha humilde casa! Os pretos afastaram-se para deixar passar José, que
colocou a rapariga sobre uma miserável cama de campanha que se encontrava no fundo da casa, perto de um montão de armas, equipamentos e provisões de todas as espécies.
Como num sonho, Claudette observava as formas confusas que agora se moviam à sua volta. Um cheiro pronunciado a couro e a tabaco arranhou-lhe a garganta, produzindo-lhe
um ataque de tosse.
- Desculpe-nos, Senorita. Mas estamos tão mal instalados!
- Tenho sede! Por favor, dêem-me de beber!
Sentia a garganta seca e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Vendo um barril de rum, Pablo Alvarez preparava-se para a satisfazer, quando ouviu:
- Quero água, insistiu. Só água, por amor de Deus!
- A la disposicion de Usted! exclamou amavelmente o chefe dos insurrectos.
Vendo então um cântaro húmido, debruçou-se sobre a cama e levou-o à boca da infeliz.
Claudette pôde então satisfazer a sede. Enquanto isso, Catamount e Chink pousavam na outra extremidade da casa, o corpo que com tanta dificuldade tinham transportado.
Por momentos, Pablo Alvarez pareceu alheio ao que se passava no refúgio, pois a sua atenção estava unicamente concentrada nessa desconhecida que surgira repentinamente.
- Nada receie, Senorita, - afirmou. Faça de conta que está em sua casa!
Falava num tom de voz tão agradável, que Claudette sentia-se surpresa e comovida. Como este acolhimento simpático era diferente da selvagem hostilidade dos revoltosos
do "Sea-New" e das frases melosas do temível Sam Trill! Sem se mexer, via o olhar escuro e resoluto do chefe dos insurrectos, que a observava com uma expressão de
profunda piedade e vivo interesse.
- Como é que conseguiu chegar aqui, Senorita ? perguntou por fim. E quem a pôs em semelhante estado?
- Contar-lhe-emos tudo daqui a bocado. Mas desde já lhe digo que miss Hyatt é a filha do infortunado
capitão cujo corpo ali está! Foram os dois vítimas de uns abomináveis patifes.
- Mas então de onde vieram vocês?
- Do "Sea-New"!
- "Sea-New"! Dios mio! mas esse não é o barco que nos traz armas de Galveston?
Claudete não tirava os olhos do seu vizinho. Enquanto falava com Catamount, Pablo Alvarez pegara-lhe na mão num gesto maquinal e ela não procurou livrar-se. Depois
de tantas angústias e incertezas, sentia pela primeira vez uma sensação de segurança e de bem-estar!
Catamount ia explicar em que circunstâncias ele e os companheiros tinham alcançado a margem da Ilha dos Pinheiros, quando um barulho de vozes e de exclamações se
fez ouvir mesmo à entrada do refúgio.
- O que aconteceu ? perguntou Pablo Alvarez franzindo as sobrancelhas.
Ouviram-se novas exclamações:
- Onde está o chefe? Eu queria falar-lhe, reclamou uma voz forte.
Pablo Alvarez saiu imediatamente para fora da cabana e encontrou-se diante de um numeroso grupo: alguns pretos, debaixo da vigilância de meia dúzia de brancos armados
de carabinas, transportavam pesadas caixas, as mesmas que tinham vindo escondidas no porão do "Sea-New".
- És tu, Jarvez? perguntou Alvarez dirigindo-se a um latagão que segurava uma lanterna. Diz-me lá o que foi!
- Os americanos querem ir-se embora, respondeu o interpelado visivelmente emocionado. Recusam-se a desembarcar o carregamento todo!
- Nós pagámos aos americanos, protestou Pablo Alvarez. E eles têm de desembarcar todas as caixas!
- Dizem que está assinalada nestas paragens a presença dum barco de guerra espanhol. Não se querem arriscar a ser apanhados e, portanto, propõem-se içar a âncora
antes da madrugada! Se houver ainda algumas caixas a bordo, partirão mesmo assim.
- Tripliquem o número das equipas, pronto!
ordenou o chefe dos insurrectos. Essas armas e essas munições são-nos absolutamente indispensáveis. Os membros do nosso comité de Galveston, além de tudo, especificaram
bem isso no acordo que foi feito com esse tal Sam Trill! Esperava-o aqui mesmo! Porque é que ele não vem ?
- Sam Trill por agora não pode sair do barco, devido à gravidade da situação!
- Pois bem, sou eu que irei a bordo do seu navio!
Deixando os ajudantes negros descarregar as caixas, o fazendeiro partiu. Aproximaram-se dele homens armados procurando dissuadi-lo do intento. Mas apontando para
o horizonte que já começava a empalidecer, cortou cerce qualquer explicação:
- Pronto, exclamou. Não temos nem mais um segundo a perder!
Pablo Alvarez media a gravidade da sua posição, pois não ignorava que numerosos navios de guerra navegavam ao largo das costas de Cuba e das ilhas próximas para
combater o contrabando de armas. E o "Sea-New", na verdade, arriscava-se a ser apanhado.
No entanto, enquanto avançavam pela praia, o chefe dos insurrectos e os companheiros não viram o mínimo sinal suspeito. Cruzaram-se com outros grupos que se apressavam
no carregamento de todas as caixas que havia a bordo.
Enquanto o fazendeiro saía assim da cabana, Catamount sentia-se intrigado pela efervescência que reinava por entre os grupos. Sem procurar tomar parte nas conversas,
o vaqueiro compreendeu que tinham acabado de surgir dificuldades imprevistas.
- Vai sair? perguntou-lhe Claudete ao vê-lo dirigir-se para a porta.
Esperava, enroscada junto do corpo do pai envolto numa manta.
- Penso demorar-me pouco, continuou o vaqueiro, mas o Chink fica consigo!
Este concordou com a cabeça e aproximou-se de Claudete. À sua volta, os negros continuavam a alinhar e a acamar os pesados fardos que traziam da margem.
Uma vez cá fora, Catamount não teve dificuldade em orientar-se. E os homens estavam tão absortos a discutir que não ligaram importância ao vaqueiro, que tomaram
por um dos do grupo.
Enquanto avançava num passo rápido, Catamount sentia-se terrivelmente perplexo. Reagindo à moleza que sentia depois de tantos esforços tão corajosamente despendidos,
queria à viva força saber o que acontecera a Sam Trill. Entre ele e o imediato havia contas a ajustar, pois o drama que se desenrolara no caminho de pedras, a morte
de Hyatt e muitos outros crimes, esperavam um castigo implacável. Portanto, Catamount não se podia conformar com a ideia de que o patife lhe pudesse escapar.
Pouco tempo depois, chegava à enseada onde se procedia ao desembarque das caixas de armas e de munições. A efervescência reinava por toda a parte. As embarcações
acostavam no "Sea-New", as preciosas cargas desciam solidamente amarradas e em seguida, içadas por numerosas mãos, eram arrumadas no fundo das chalupas e das pirogas.
No convés do três-mastros, toda a gente corria; Sam Trill, cuja tripulação fora reduzida devido aos incidentes
do começo da noite, observava atentamente a manobra.
No entanto, apesar da operação até aí ter corrido bem, o imediato estava impaciente. De vez em quando olhava para o horizonte. Dentro em pouco seria dia e arriscava-se
a ser assinalado por algum navio espanhol. Amaldiçoava Bill Lern e os companheiros por o terem tão perigosamente atrasado, devido à corajosa resistência que lhes
tinham oposto.
Presentemente, o miserável nem se lembrava do despeito que lhe causara a partida de Claudette, que ele tinha querido que ficasse a bordo à sua mercê, pois o desejo
de salvar a pele estava agora acima de tudo.
- Mais depressa ! Toca a despachar! não se cansava de repetir.
Os marinheiros apressavam-se o mais que podiam, secundados por uma quinzena de negros enviados por Pablo Alvarez, que os ajudavam a tirar as caixas do porão num
vaivém incessante.
Sam Trill estava como sobre brasas, quando viu uma embarcação acostar. Um homem subiu rapidamente por um cabo que estava pendente e alcançou num segundo o convés.
- Onde está o capitão ? perguntou.
- Sou eu próprio! respondeu Sam Trill. Então Pablo Alvarez dirigiu-se ao imediato:
- Disseram-me que você não quer descarregar a carga completa!
- Assim que acabar a noite, viraremos de bordo, continuou Sam Trill.
- Isso é impossível, lembre-se dos compromissos que tomou com os nossos agentes em Galveston!
- Esses compromissos não me obrigam a mim e aos meus homens, a arriscarmo-nos a ser pendurados pelo pescoço no cimo dum mastro. Olhe que os espanhóis não são para
brincadeiras! Sabe o que aconteceu o mês passado em Malanzas? Cinco ingleses, que se dedicavam ao mesmo tráfico, foram condenados ao garrote. E todos os protestos
do seu Consulado foram deitados para o cesto dos papéis. No que me diz respeito, não ignoro que trabalho com sérios riscos!
- Peço desculpa, objectou o fazendeiro, mas se quer lucros, tem de se arriscar! E nós contamos incondicionalmente consigo!
E ao ver que o seu interlocutor não parecia estar muito convencido, Pablo Alvarez insistiu :
- Não somos responsáveis pelo seu atraso ! Desde que a noite caiu, que o esperávamos!
Sam Trill torceu o nariz:
- Nessas condições, mande-nos homens. Não chegamos para despachar tudo a tempo e horas!
- Terá todo o pessoal de que precisar!
- Acredito piamente, mas daqui a uma hora precisamente, partirei.
A discussão ficou por aqui. Pablo Alvarez dirigiu-se aos seus homens e incitou-os a rivalizar de ardor e tenacidade. E logo surgiram novos grupos de Mambi para ajudar
as equipas que trabalhavam. O convés do "Sea-New" parecia um verdadeiro formigueiro. As embarcações não paravam de acostar e de voltar de novo para a margem, com
os pesados e preciosos fardos.
Catamount podia ter-se misturado aos pretos e entrar por sua vez a bordo do "Sea-New". Mas preferiu desistir dessa ideia. Semelhante iniciativa podia
eXpô-lo a graves complicações. Não se esquecera ainda de que, se jurara acabar de vez com esse bandido, também tinha prometido formalmente ao capitão Hyatt velar
pela filha e protegê-la custasse o que custasse.
Não podia deixar Claudette sozinha com os insurrectos, pois recordava ainda as palavras angustiadas que a infeliz lhe dirigira ao sair da cabana. Devia esperá-lo
ansiosamente e portanto era necessário sossegá-la e pôr tudo em ordem para assegurar a sua protecção.
Voltou portanto para trás, cruzando-se com vários grupos que prosseguiam no vaivém contínuo, para acabar com a tarefa antes que nascesse o dia. Todos os olhares
se dirigiam para o horizonte, mas não se via a mínima luz que pudesse anunciar a presença ou a aproximação de algum barco.
-? Até que enfim, chegou!
Claudette esperava-o junto do corpo do pai. Endireitou o busto e o rosto iluminou-se-lhe ao ver Catamount. Junto dela Chink continuava imóvel e silencioso, não tendo
saído do sítio em que ficara.
- Acabei agora mesmo de ver o Sam Trill, anunciou então o vaqueiro.
- Meu Deus do Céu! exclamou a rapariga. Não me diga que ele vai voltar!
-? Esteja descansada. Neste momento está demasiado preocupado para pensar em vir procurá-la! É pena, visto que gostava de me encontrar cara a cara ?com esse tipo.
?. Vi-o vagamente no convés.
- O "Sea-New" vai levantar ferro?
Tão certo como dois e dois serem quatro! Sam Trill receia a intervenção dos espanhóis e o aparecimento dum navio inimigo é sempre possível!
- Pobre "Sea-New! murmurou entristecida, em que estado irá ficar! O pai gostava tanto do seu barco! E até eu já lhe tinha amizade. Por muito que viva, não poderei
esquecer as semanas que passei a bordo, no nosso camarote!
Tinha os olhos embaciados, quando exclamou :
- E quem sabe, talvez o pai ainda estivesse vivo se nós lá tivéssemos ficado! Despedaçou-se-lhe o coração ao ser obrigado a abandonar o "Sea-New" !
- Tinha de ser assim, miss Hyatt, disse com energia. Acredite-me, não podíamos proceder doutro modo! Além disso, o coração teria falhado da mesma maneira. E a presença
de Sam Trill não ajudava nada a cura!
Ao ouvir este nome, Claudette fez uma careta.
- E pensar que esse monstro ousou olhar para mim com intenções reservadas!
- Mais tarde ou mais cedo, receberá o merecido castigo pelos crimes que praticou.
Catamount falou com uma tal entoação, que a rapariga ficou impressionada.
A conversa foi interrompida pela entrada dum grupo de Mambi trazendo mais caixas. O vaqueiro fumava despreocupadamente e Chink parecia dormir em pé, tal a sua imobilidade.
Mas, por vezes, passava um brilho malicioso nos seus olhos oblíquos.
A certa altura, Claudette rompeu novamente o silêncio:
- O que será de nós ? perguntou.
- Somente a Providência pode saber qual o nosso destino, disse o vaqueiro num gesto vago. No entanto, eu ainda não desesperei! E seja como for, estamos aqui mais
seguros, do que a bordo do "Sea-New"!
Os insurrectos parecem muito simpáticos, não acha? E creio que podemos contar com esse tal PabloAlvarez!
- Também sou dessa opinião !
A rapariga ainda não se tinha esquecido da excelente impressão que tivera no primeiro contacto com o chefe dos insurrectos. Ao vê-lo, sentiu que estava na presença
dum verdadeiro homem.
- Sempre acreditei na Providência, miss Hyat. E espero que, desta vez e como sempre tem acontecido, ela intervenha em nosso favor!
Enquanto isto, a efervescência continuava, não só no interior da cabana, mas também cá fora. Através da porta escancarada, o vaqueiro podia ver uma nesga do céu.
Mais uns minutos e o dia surgiria, rápido e resplandecente como sempre acontece nos países tropicais. E nessa altura o barco levantaria âncora!
Através das palavras trocadas pelos vários grupos de Mambi que não paravam de entrar e sair, os três fugitivos do "Sea-New" souberam que o desembarque estava no
fim. Graças à actividade e à diligência demonstradas por Pablo Alvarez e pela sua gente, os porões do navio estavam finalmente livres da perigosa carga.
Por fim Pablo Alvarez surgiu com uma quinzena de homens. Trazia o rosto encharcado em suor, mas parecia a pessoa mais feliz do mundo.
- Vitória! exclamou, acabámos de transportar a última caixa! Obrigado a todos! Agora eles já podem zarpar à vontade!
Deu ainda algumas ordens e em seguida voltou-se para Claudette:
- As minhas desculpas, Senorita. Não tínhamos
tempo a perder, mas agora, espero poder descansar um pouco e tratar da sua segurança!
A rapariga agradeceu-lhe e ele, sempre amável,
acrescentou:
- Devem estar todos com fome, não?
E ao ver o corpo de Hyatt embrulhado no cobertor, disse:
- Dios mio. vou chamar um dos meus negros. Vocês não podem ficar em jejum e demais a mais, é preciso prestar as últimas homenagens a este infeliz. Depois, então,
trataremos do que lhe diz respeito!
Apesar das absorventes preocupações, Pablo Alvarez sentia-se profundamente comovido na presença da fugitiva, cujos olhos, raiados pelo choro, observavam suplicantes.
Avistando um mulato que ajudava a descarregar uma das muitas caixas, o chefe fez-lhe sinal.
- Diego! Quero que caves uma sepultura para
o pai da Senorita.
Este obedeceu imediatamente. Então Pablo Alvarez
elucidou os visitantes:
- Diego é o meu mayordomo. Deu-me já frequentes provas de coragem e dedicação. É, em suma, um ?homem valente e destemido!
Diego falou em voz baixa com os negros e dois deles dirigiram-se a Claudette. Iam abaixar-se para pegar ?no corpo do capitão, quando ela começou a chorar.
- Não mo levem já! Esperem mais um bocadinho !
Catamount inclinou-se e tentou convencê-la:
- Por favor, miss Hyatt, tem mesmo que ser! Resignou-se e apoiando-se ao vaqueiro, acompanhou
os dois homens. Ia já a sair, quando sentiu uma mão sobre o ombro:
- Coragem, Senorita! Também eu perdi o meu pai em circunstâncias trágicas e odiosas!
Claudete sentiu-se comovida com o sorriso entristecido de Pablo Alvarez, que uma vez mais lhe deslumbrava a sua simpatia.
- Como você é bom! disse. Agradeço-lhe do fundo do coração.
Ao saírem da cabana, viram os negros cavando um buraco na areia, exactamente junto de um enorme rochedo.
Sempre apoiada a Catamount, a rapariga não parava de soluçar. Atrás estava Chink e um pouco mais à esquerda Pablo Alvarez, que começou a recitar as orações dos defuntos.
A comovedora cerimónia foi breve. Colocaram o corpo do capitão na cova e então, a areia caiu sobre essa forma inerte que não tardou em ficar coberta completamente.
Donald Hyatt ia para sempre dormir o último sono, neste recanto perdido da Isla dos Pinos. Estavam todos de cabeça inclinada e as vozes dos negros responderam às
orações que o chefe acabara de recitar. Por fim os grupos dispersaram-se e Claudette ficou sozinha junto dos dois companheiros de aventuras.
- Ainda nãoesqueci a minha promessa, miss Hyat, declarou Catamount com voz firme. Prometi a seu pai salvá-la e protegê-la sempre, e serei fiel à minha palavra!
A rapariga descansou a cabeça no ombro do companheiro e sentiu os dedos nervosos segurando-lhe a mão que parava de tremer. Em seguida olhou lá para
o largo. com todas as velas içadas, o "Sea-New" acabava de levantar ferro.
- Meu pobre Pai, suspirou. Quando penso que
esse miserável.
- Esteja descansada, miss Hyatt, Sam trill não poderá ir muito longe! Para onde quer que se dirija, ter-me-á na peugada! O capitão será vingado!
Ela não respondeu e benzeu-se junto da sepultura recente onde repousava para a eternidade, o único ser que lhe restava no mundo.
XIV
ALARME No ALTO MAR
Na margem, junto do cais, os insurrectos acabavam de transportar as últimas caixas. Pablo Alvarez e Diego vigiavam as idas e vindas dos Mambi.
Nesse momento, estavam pelo menos trezentos homens, junto das embarcações que rapidamente tinham descarregado. Bandos de gaivotas cruzavam-se no céu límpido que
o sol inundava de mil raios e apesar do dia ter nascido há pouco, o calor começava já a ser intenso.
Todavia, os insurrectos não se preocupavam com o cenário que os rodeava, nem sequer com o vulto branco do "Sea-New" que se afastava cada vez mais. E o barco estava
quase a atingir a linha do horizonte na direcção do Canal de Yucatan, quando Pablo Alvarez e os companheiros levantaram bruscamente a cabeça.
- Mil diabos! exclamou o mayordomo. Parece ter sido um tiro de canhão!
O fazendeiro não respondeu, mas a sua expressão modificou-se e como todos os outros, olhou para Sul.
O três-mastros, que navegava em mar calmo, parecia tão pequenino que fazia lembrar um brinquedo. Mas de repente, a atenção voltou-se para um minúsculo ponto branco
que acabava de aparecer ao longe no horizonte.
Nas expressões rudes dos insurrectos, surgiu imediatamente a inquietação. O fazendeiro lembrou-se, então, das razões que tinham levado Sam Trill a partir o mais
depressa possível. Segundo parecia, o barco tinha sido surpreendido por um navio espanhol.
Grupos corriam para a praia. Claudette, Catamount e Chink, que também tinham ouvido a detonação, observavam o mar atentamente.
- Atenção! Tenho a impressão de que se está a passar algo de inesperado! exclamou o vaqueiro.
- De certeza ? disse a rapariga, saindo da prostração em que se encontrava.
O chinês nada disse, mas também parecia terrivelmente intrigado.
- O "Sea-New" foi apanhado por um navio espanhol, elucidou o vaqueiro. E eles acabam de lhe mandar o sinal de aviso!
Mas a tripulação do três-mastros não parecia disposta a obtemperar. Descoberto no momento exacto em que se dispunha a avançar para o largo, abrandou de velocidade.
Ouviu-se então uma segunda detonação, que provocou o pânico entre as gaivotas que voaram lançando gritinhos estridentes e executaram enormes círculos à superfície
das águas.
- Ele quer esquivar-se! berrou Catamount. Está
a mudar de rumo!
com efeito, o três-mastros queria manobrar, mas o vento contrariava-lhe os movimentos.
- Eles podiam conseguir o que querem, se usassem as velas todas, objectou Claudette.
A bordo devia reinar uma confusão brutal e Sam
Trill pensou que a única maneira de escapar, era voltar para trás.
Dos grupos dos insurrectos, partiram exclamações de cólera. Pablo Alvarez e os companheiros tinham compreendido o perigo que corriam! E segundo parecia, a fuga do
"Sea-New" ia provocar um desembarque dos espanhóis.
- Pronto, berrou Diego, tragam as últimas caixas! Temos de evitar que as encontrem!
- Se esses malditos souberem qual é o seu recheio, estamos perdidos! rabujou o fazendeiro em surdina.
Até à data, os insurrectos tinham conseguido despistar a vigilância dos navios de guerra espanhóis. E foi com essa ideia, que Pablo Alvarez e os partidários tinham
escolhido a Isla dos Pinos como campo de acção, pois o terreno prestava-se admiravelmente para a guerilla e a resistência, favorecendo as manobras dos contrabandistas
de armas. Além disso, o facto de estar próximo de Cuba e da província de Havana, fazia que Pinos fosse um refúgio e um armazém dos mais seguros. Quantas vezes já
lá se tinham escondido grupos, que haviam escapado com sucesso às perseguições das tropas.
No entanto, hoje a situação parecia bastante mais séria, pois a presença do "Sea-New" incitaria o adversário a concentrar os esforços pesquisando a parte meridional
da costa, antes que os insurrectos tivessem tempo de transportar as caixas de armas e munições para o outro lado da ilha, como habitualmente faziam.
- Quais são as suas ordens, chefe? perguntou ansiosamente Diego.
- Para já, temos de recuar, aconselhou Pablo Alvarez. Não podemos de maneira nenhuma ser vistos.
E enquanto os Mambi se reuniam, o chefe dos insurrectos acrescentou:
- Seriamos uns belos alvos para os artilheiros espanhóis, se ficássemos aqui ao pé do cais!
Mas os espanhóis, presentemente, apenas estavam interessados no "Sea-New". Ouviram mais alguns tiros de canhão. Ao perceberem a manobra de Sam Trill, os seus adversários
tentavam atingir o navio fugitivo.
Os tiros eram cada vez mais certeiros. O mastro do traquete, atingido por um obus a meia altura, tombou sobre o convés. Mas apesar disso o barco continuou a avançar
para a margem.
- Estúpidos! exclamou o fazendeiro. Vão não só perder-nos, como também ficar impossibilitados de
escapar!
- Pronto, pronto! gritou o mayordomo. Apoiada a Catamount, Claudette observava o combate e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, ao ver o mastro cair.
O navio espanhol aproximava-se cada vez mais.
Era uma canhoneira!
- Estão perdidos! murmurou o vaqueiro, E, apontando para o "Sea-New", gritou:
- Está a ver? Sam Trill e os outros estão a abandonar o navio!
A bordo reinava a maior confusão. O imediato via as suas apreensões transformarem-se em ameaçadoras
realidades.
Ao ouvir o primeiro tiro, Luiggi apareceu, desvairado, empunhando uma caçarola:
- Madonna, berrou. Estamos perdidos, temos de
nos render!
Sam Trill, a princípio, parecia não estar decidido a capitular. Junto dele, a tripulação aguardava.
- Mein Got, eis-nos num beco sem saída, vociferou o alemão.
- Damn, berrou por sua vez Sam Trill" Não é a olharem-me, como se eu fosse um animal curioso, que conseguiremos afastar o perigo.
E dirigindo-se a Brackson, disse:
- Icem o pavilhão das estrelas. Pode ser que, ao vê-lo, os espanhóis se tornem mais prudentes!
Apressadamente, os marinheiros obedeceram. Mas o aparecimento da bandeira americana não pareceu intimidar a tripulação da canhoneira. E os fugitivos foram surpreendidos
por um novo tiro, desta vez mais próximo.
- Per Bacco, ou fugimos ou então rendamo-nos! gemeu Luiggi, enquanto agitava a caçarola insistentemente.
Sam Trill não podia escapar. Sempre esperara conseguir alcançar o mar alto e zarpar então a todo o pano
para a Flórida, mas o navio espanhol cortava-lhe a retirada, obrigando-o a parar se não queria ser metido no fundo.
Em volta do imediato, a tripulação continuava a agitar-se. Alguns concordavam com a rendição incondicional, outros discordavam em absoluto de semelhante capitulação.
A bordo da canhoneira começavam a estar impacientes. Mas assim que o mastro do "Sea-New" caiu, ameaçando esmagar todo o grupo, a indecisão desapareceu .
- Salve-se quem puder! berrou Luiggi.
- Todos para o mar! acrescentou Herman.
A fuga de Catamount e de Hyat privara-os da segunda lancha. Atiraram ao mar, portanto, a única de que dispunham e, apertando-se uns contra os outros, apressaram-se
a tomar lugar a bordo. E fizeram-no a tempo! Uma nova descarga atingiu o "Sea-New" e o mastro grande caiu no meio dum enorme estrondo.
Na canhoneira, que estava agora a cerca de meia milha do barco perseguido, ouviram-se gritos de triunfo. Mais algumas detonações e vários obuses atingiram o "Sea-New"
por sobre a linha de flutuação.
Na lancha, Sam Trill e os acólitos remavam o mais que podiam, tentando alcançar o litoral. E foi com o rosto crispado e o coração oprimido, que viram o seu navio
inclinar-se cada vez mais para bombordo.
- Devíamo-nos ter rendido logo que isto começou, gemeu Luiggi, mais piegas do que nunca.
- Shut up! ordenou o imediato, numa voz que não admitia réplicas.
E apontando para a praia, acrescentou:
- Ou alcançaremos a margem, ou estamos perdidos !
Os fugitivos multiplicavam os esforços para escapar aos adversários, mas a presença de inúmeros recifes emergindo à superfície, obrigava-os por vezes a abrandar
a velocidade.
À volta deles, os tubarões manifestavam a sua
presença.
- Madonna. murmurou o italiano enquanto se benzia. Desta vez é que é o fim!
Como resposta, apenas ouviu imprecações e blasfémias. Todos esperavam que o adversário se preocupasse unicamente com a destruição do "Sea-New" que se
afundava a pouco e pouco e contra o qual insistia em atirar.
Subitamente, a lancha bateu num recife, provocando um choque violento.
- Estúpidos! berrou Sam Trill.
No meio da confusão, nem se ouviram as outras imprecações. A água começava a entrar rapidamente pela fenda. Sardel e Hermann atiraram-se a nado, logo seguidos dos
outros companheiros.
E o drama desenrolou-se com incrível rapidez. Antes mesmo do três-mastros ter desaparecido, a lancha afundou-se, ouvindo-se logo um grito desesperado:
- Agora são os tubarões!
Desvairados, tentavam escapar à voracidade dos animais. Subitamente, um berro transiu de medo os nadadores. Um dos monstros conseguira abocar a coxa de Brackson
e arrastava-o para o fundo.
Luiggi foi o primeiro a atingir um dos rochedos que emergiam à superfície. O medo era tal, que conseguiu subir, sem se preocupar em arranhar as mãos e os joelhos.
- Madonna! Madonna! repetia incessantemente.
Sam Trill, Sardel e Hermann agarraram-se ao acólito e à superfície das águas surgiu um verdadeiro cacho humano. Apertados uns contra os outros, os quatro homens
tentavam escapar aos tubarões que, agora, executavam grandes círculos em redor do minúsculo refúgio.
Os outros todos tinham desaparecido. E começaram então a aparecer enormes manchas encarnadas. com os olhos esbugalhados pelo terror, os náufragos agarravam-se
desesperadamente uns aos outros, enquanto Luiggi continuava a berrar de pavor.
Por fim, a canhoneira soltou uma lancha.
- Já nos viram, gritou Sardel.
- Estamos salvos!
E os seus olhos iluminaram-se. Alguns minutos antes, estavam prontos a dar tudo para tentar escapar aos espanhóis. Mas a presença dos tubarões, a sorte atroz dos
acólitos e o desaparecimento do "Sea-New" que acabava de se afundar no meio dum enorme turbilhão, fizera-os compreender que daí em diante nada mais tinham a esperar
e que era preferível resignarem-se. Agora, consideravam os espanhóis como amigos e os olhares ansiosos estavam cravados na lancha que se dirigia na sua direcção.
Passaram-se ainda alguns minutos, que lhes pareceram longos como séculos. A embarcação aproximou-se e, a certa altura, ouviram uma voz:
- Adelante! Já estão nas nossas mãos! Quatro dos ocupantes da lancha estavam armados de
carabina, mas no entanto não precisaram de as usar. Uns atrás dos outros, foram agarrados por mãos possantes.
Ouviu-se uma ordem seca. Habilmente manobrada, a embarcação afastou-se da linha de recifes, contra a qual os fugitivos tinham chocado tão desajeitadamente. Impulsionada
pelos remadores, mudou de rumo e dirigiu-se para a canhoneira, em cuja driça flutuavam ao vento as cores encarnada e amarela.
Junto da cabana, os insurrectos tinham assistido ao drama que se desenrolava a tão pouca distância. Comovida, Claudette viu a agonia e o desaparecimento desse barco,
onde outrora conhecera horas angustiosas.
- Sam Trill e os prosélitos não se gozaram muito tempo do navio, observou Catamount, que também testemunhara o fim trágico da lancha e o desaparecimento de alguns
dos ocupantes.
- Pronto, não podemos ficar aqui!
Pablo Alvarez, que seguiu as peripécias acompanhado dos seus homens, apressou-se a intervir. E como os Mambi o observavam indecisos, esperando ordens, repetiu:
- Vamo-nos embora! Estamos em perigo de vida!
- Dios mio! Mas se fugirmos, esses malditos descobrem logo as caixas! não pôde deixar de objectar o mayordomo.
- E não achas que as nossas vidas são bastante mais importantes? replicou o fazendeiro com brusquidão.
Percebendo que alguns eram da opinião de Diego, continuou:
- Os espanhóis estão armados e podem dar cabo de nós. Não adianta nada irmos buscar as munições!
Catamount concordou em absoluto. O facto de
alguns tripulantes do "Sea-New" terem caído nas mãos do adversário, fazia que fosse receado um novo ataque. Tudo levava a crer, na verdade, que os náufragos não
hesitariam em denunciar os insurrectos, para assim obterem as indulgências dos agentes.
-Aproximem-se todos! ordenou Pablo Alvarez.
Acha que pode vir connosco? perguntou a Claudette.
- Espero ter forças para tal, respondeu tentando sorrir.
No entanto, ao ver a sua expressão alterada, o fazendeiro compreendeu que seria exigir-lhe um esforço
demasiado grande. E resolveu chamar um preto que, devido à colossal estatura, se evidenciava no meio dos
outros.
- Kobo! Anda cá! Este aproximou-se, solícito.
- Tu levas a Senorita, disse, apontando para Claudette.
O preto sorriu, mostrando uma admirável dentadura
dum branco imaculado.
- Quanto a si, penso que pode. disse Pablo Alvarez dirigindo-se a Catamount.
- com certeza, interrompeu-o este imediatamente. E se houver alguma coisa em que lhe possa ser útil.
- Recuemos, quanto antes! ordenou o chefe. Não
há tempo a perder!
Kobo pegou na rapariga como se fosse um simples embrulho, enquanto os negros se reuniam sob as ordens
de Diego.
Em fila, caminharam por entre os rochedos, olhando de vez em quando para a canhoneira, que continuava pronta a entrar em acção.
XV
 BORDO DO "SAN SEbASTIAN"
Os marinheiros espanhóis empurraram, com rudeza, os quatro náufragos para a escada que permitia o acesso ao convés da canhoneira. De cabeças baixas, não murmuravam
uma única palavra. Caminhavam desanimados e ainda sob o efeito de toda a espécie de emoções por que tinham passado, durante a sua pretensa fuga.
Ao chegarem ao camarote do capitão, Luiggi soltou uma exclamação de espanto. Sobre uns cabos, jazia inanimado o corpo de Cobilovici.
O romeno estava num estado lamentável e com o fato todo colado ao corpo. Todavia, tinha conseguido escapar aos tubarões, nadando velozmente para a canhoneira, para
onde se tinha içado por um cabo. E agora, esperava a vez de comparecer com os restantes.
O oficial que comandava a lancha, dirigiu umas palavras aos seus homens, ao mesmo tempo que apontava para os cinco prisioneiros. Entrou para o camarote contíguo
e três minutos depois voltou a aparecer:
- Venham cá todos, ordenou numa voz pouco amável.
Sam Trill e os companheiros obedeceram. A aventura parecia tê-los privado da pouca energia que lhes
restava. Sentiam-se à mercê dos espanhóis e um único desejo os dominava: salvar a vida, a todo o custo!
O imediato do "Sea-New" não tinha a mínima ilusão a esse respeito, pois como contrabandista de armas, corria o risco de ser executado. Os espanhóis nesse capítulo
eram intransigentes, pois além disso os cubanos já há muito que lhes davam que ver e que pensar. Exasperados pelos levantamentos que se declaravam em muitas partes
da ilha, exerciam uma repressão impiedosa, tendo mesmo proclamado a lei marcial. E dezenas de insurrectos capturados, tinham caído sob as suas balas ou estrangulados
pela argola de ferro do garrote!
Tais perspectivas, não eram nada agradáveis para o pequeno grupo. Até aqui, apenas tinham analisado as vantagens do negócio, considerando os espanhóis como adversários
que facilmente enganariam. Mas a verdade era bem mais cruel!
Pouco tempo depois, os cinco cativos estavam na presença do Capitão Espital que comandava a canhoneira "San Sebastian". Era um homem baixo e magro, de expressão
severa e completamente careca. Estava mergulhado na leitura dum relatório, quando lhe foi anunciada a chegada dos contrabandistas. Sem interromper a sua ocupação,
mandou-os entrar.
Um silêncio pesado reinava no beliche. Prontos a reprimir qualquer tentativa de fuga e de carabina em riste, dois marinheiros ladeavam os prisioneiros.
O imediato, apesar de tudo, esforçava-se por mostrar presença de espírito, mas a seu lado, Luiggi tremia como varas verdes. Os outros, dificilmente se conseguiam
manter de pé.
Por fim, Espital dobrou cuidadosamente a folha que acabara de ler e observou esses homens que esperavam fosse resolvida a sua sorte.
E um sorriso de desprezo bailou nos finos lábios do oficial, ao murmurar unicamente :
- Americanos!
- Peço desculpa, mas eu sou italiano, objectou Luiggi.
com um gesto brusco, o capitão interrompeu-o. E, em seguida, chamando o tenente que participara na captura do pequeno grupo, perguntou-lhe em que condições esta
se tinha efectuado.
O interpelado não se fez rogado, e numa voz ligeiramente entaramelada, contou como conseguira alcançar os fugitivos, refugiados nos recifes, ao mesmo tempo que o
romeno era içado para bordo. Espital ouvia, retorcendo lentamente as pontas afiladas do bigode. Por vezes, mimoseava os prisioneiros, que se mantinham silenciosos,
com um sorriso cruel e despido de qualquer amabilidade.
Sentia um verdadeiro ódio pelos "Americanos", sentimento esse também partilhado pela maioria dos espanhóis que pertenciam não só à marinha como às guarnições de
Cuba. Sabia que os americanos tinham favorecido o movimento dos insurrectos, tendo-lhes até fornecido armas e dinheiro. Muitos deles tinham sido apanhados, combatendo
ao lado dos revoltosos e portanto esses perigosos aliados da independência cubana, seriam tratados sem a mínima consideração.
- Qual de vocês é o chefe? decidiu-se finalmente a perguntar.
Após curta hesitação, Sam Trill respondeu:
- Não sei o que é feito do capitão. Eu sou o
imediato!
- Como se chama ?
- Sam Trill!
- E vinha de.
- Galveston!
A sua expressão rude, abriu-se num sorriso maldoso. E voltando-se de novo para o tenente, troçou:
- Eu não te dizia, Gomez, são também Americanos. Desde o princípio da semana que já nos escaparam três, mas desta vez, apanhámos os gringos e não os deixaremos fugir!
Há que dar o exemplo. Além disso, recebemos de Madrid instruções formais a esse respeito!
Sam Trill não falava correntemente o espanhol, mas pela mímica expressiva de Espital, compreendeu que não podia esperar a mínima clemência da parte do oficial.
Pensou negar, para mais facilmente escapar ao castigo, mas chegou à conclusão de que só uma submissão total lhe poderia valer.
- Pode perguntar-me o que quiser Capitão, sussurrou em voz branda. Direi tudo o que souber!
Os dois oficiais olharam-se incrédulos. Habitualmente os gringos opunham-lhes uma resistência mais
enérgica e mais bélica.
- Se prometerem deixar-nos a todos em liberdade, dar-lhe-emos informações sobre a maneira de derrotar os insurrectos da Ilha de Pinos! anunciou Sam Trill.
Estas palavras foram acolhidas com satisfação, pois nenhum dos seus companheiros estava interessado em travar conhecimento com o garrote ou com qualquer pelotão
de fuzilamento.
- Estou-me minando para esses tipos! exclamou o cozinheiro. Sou de Parma e tanto me faz que Cuba seja espanhola, como não. Além disso.
Mas a voz sonora e cortante de Espital, obrigou-o a calar-se:
- Chega de palavreado! Vocês sabiam perfeitamente o perigo que corriam, ao dedicarem-se ao contrabando de armas! E não desconheciam também que, no caso de serem
apanhados, arriscavam-se a receber o castigo dum vulgar espião!
- O Capitão enganou-nos a todos, pois foi ele que nos arrastou para esta estúpida aventura, mentiu Sam Trill, descaradamente. Sempre julguei que a carga fosse, única
e exclusivamente, de fardos de algodão.
- Ora! protestou com veemência. Não me queiram convencer de que não sabiam qual era o verdadeiro conteúdo dos fardos!
- Desculpe, capitão, replicou o imediato, mas Hyatt era quem mandava e a nós cumpria-nos obedecer!
No entanto Sam Trill resolveu desviar a conversa para um assunto menos delicado:
- Admitamos que nos enganámos, acrescentou. Mas já devia ter percebido que lhe podemos ainda ser úteis! Pecado confessado está meio perdoado! prometemos reparar
a nossa falta.
- Pode contar connosco! apoiou Luiggi, enquanto os restantes acenavam afirmativamente com a cabeça.
Espital sentia asco por esses homens, os primeiros que lhe proponham trair os seus, até então, aliados. E ia mandá-los embora quando o tenente lhe murmurou ao ouvido:
- Talvez fosse oportuno estudarmos as propostas
destes gringos! objectou. E se eles nos permitissem dar cabo dos nossos inimigos? Parece-me imprudente deixar fugir a oportunidade de nos evidenciarmos!
Um brilho estranho iluminou os olhos do capitão. Espital era extraordinariamente vaidoso e dum orgulho sem limites e o tenente tinha conseguido tocar-lhe no ponto
fraco. Já há cinco meses que esperava ser promovido, mas até então apenas conseguira efectuar umas insignificantes capturas, além de algumas inspecções em outros
tantos barcos suspeitos.
Sam Trill e os companheiros sentiram as suas esperanças renascer ao verem o sorriso do capitão. Mas se ouvissem a proposta que Gomez lhe fazia, não estariam tão
à vontade.
- Em princípio, podemos aceitar! E depois, arranjaremos maneira de nos vermos livres destes tratantes. E não devemos poupá-los!
- Dios mio, tem toda a razão, tenente! Só se fôssemos parvos é que deixaríamos fugir uma ocasião destas!
E Espital resolveu dirigir a palavra ao imediato do
barco afundado:
- Pode começar, Sam Trill. Ainda não esqueci a proposta que me fez, tão desleal para os seus amigos, mas aceito considerar o pedido, se é que as informações que
me der forem julgadas valiosas!
A alegria que os invadiu foi tão grande, que Luiggi não resistiu a coroar as palavras do capitão, com uma ruidosa salva de palmas, o que lhe valeu uma descompostura.
Depois de muito matutar, Sam Trill declarou:
- Sei para onde foi transportado o carregamento do "Sea-New". Facilmente poderá recuperá-lo!
- Sobretudo, o que me interessa, é agarrar esses malditos. Os nossos esforços têm sido baldados!
- Esteja descansado, que nós ajudá-lo-emos a capturar Pablo Alvarez, prometeu Sam Trill.
- Pablo Alvarez ? repetiu o oficial, foi este nome que você disse ?
O imediato percebeu que tinha marcado alguns pontos. Por seu lado, Gomez, não dissimulou o espanto que lhe causara esta afirmação.
- Caramba! exclamou numa voz excitada. Se é do invisível Alvarez que você fala, podem contar desde já tudo o que nos permita apanhá-lo vivo ou morto.
Espital, bem como todos os espanhóis da armada e da marinha de Cuba, conheciam de tradição a intrepidez desse fazendeiro indómito, que lhes opunha uma resistência
selvagem e implacável. A presença do insurrecto e dos numerosos grupos de negros e mulatos que combatiam a seu lado, era assinalada, sucessivamente, nas províncias
de Havana, Sabana ou Marien. E apesar de terem conseguido matar Alfonso, o pai, ele continuava a resistir, invencível, encarnando a independência cubana e contando
com um número de partidários cada vez maior.
Espital viu logo que tinha uma ocasião única de se distinguir e de alcançar um objectivo em que muitos haviam falhado.
- Neste momento, em que sítio está o nosso homem ? perguntou ansioso.
- Se tiver um mapa da Ilha de Pinos, posso dizer-lho exactamente.
A um sinal do capitão, Gomez procurou numa
gaveta, e tirou um papel que desdobrou diante do
superior.
- Aproxime-se! disse este ao imediato.
Sam Trill obedeceu, encantado. E então, fazendo apelo a todo o seu sangue-frio, declarou:
- Como sabem, a Ilha de Pinos está dividida em duas partes por uma espécie de canal pantanoso que serpenteia de Este a Oeste.
- É o Genaga. o Pântano! elucidou o oficial.
- A Ilha de Pinos constitui um refúgio ideal para os insurrectos, pois já conhecem os mínimos recantos desse terreno traiçoeiro, que se estende até junto da pequena
cadeia montanhosa da Canada. Assim que Alvarez, e os seus partidários atingirem essa linha natural, podem facilmente refugiar-se na Savana ou no mato que cobre as
regiões setentrionais de Santa Fé e de Nueva Gerona.
- E se eles o conseguem? perguntou o capitão.
- Temos de agir quanto antes, para evitar semelhante coisa, interrompeu Sam Trill já senhor da sua
pessoa.
E, depois de apontar para o sítio em que se encontrava a canhoneira, continuou:
- Aqui está a Ponta de Piedra. E é exactamente nesta cabana, escondida no meio dos rochedos, e que não podemos distinguir de tão longe, que estão guardadas as caixas.
E é também onde Pablo Alvarez estabeleceu, provisoriamente, o quartel-general. Se nos apressarmos, podemos apanhar ainda o bicho no covil! Mas não se esqueçam de
que cada minuto perdido é de extrema importância.
- Pronto! ordenou imediatamente Espital voltando-se
para Gomez. Reúna no convés o grupo de desembarque. Partiremos ao mesmo tempo!
Os prisioneiros trocaram um olhar de profunda satisfação. O facto do capitão ter aceitado a proposta de Sam Trill, permitia-lhes gozar uma certa liberdade e escapar,
pelo menos por um tempo, à ameaça de execução sumária que lhes pesava sobre a cabeça.
Os guardas levaram-nos para o convés do "San Sebastian", a tempo de verem o grupo de desembarque instalar-se a bordo das quatro lanchas que haviam sido lançadas
à água.
- Eles também vêm connosco, declarou Espital ao tenente.
Sam Trill reparou com uma certa satisfação, que os espanhóis estavam armados e as duas metralhadoras Maxim que transportavam, ser-lhes-iam duma grande utilidade
durante a luta que se iria travar dentro em breve.
Espital, que tomou lugar na primeira embarcação juntamente com Sam Trill, deu uma breve ordem e logo a pequena flotilha se dirigiu para o porto onde durante a noite,
tinha sido desembarcado o carregamento do "Sea-New".
Luiggi e os outros companheiros, que entraram com Gomez para o segundo barco, olharam para esse mar onde alguns dos seus tinham encontrado uma morte tão horrorosa.
Ao cimo da água, continuavam a ver-se os sulcos dos tubarões que, em número sempre crescente, rodeavam as lanchas.
Os espanhóis tinham outras preocupações. Os seus olhares procuravam surpreender qualquer vulto suspeito que lhes pudesse servir de alvo, mas não se via vivalma.
As quatro embarcações atingiram finalmente a margem, e logo os tripulantes depararam com alguns escaleres encalhados e meia dúzia de caixas que os insurrectos, na
precipitação da fuga, tinham abandonado.
Espital foi o primeiro a pôr pé em terra e fê-lo de revólver na mão. Mas à sua volta, estava tudo calmo e silencioso, ouvindo-se apenas o murmúrio das vagas que
se vinham desfazer na areia e os gritos estridentes das gaivotas.
- Os malvados não devem andar longe, opinou o comandante a Gomez.
E, dizendo isto, apontou para as pegadas recentes, que se dirigiam em direcção dos rochedos onde Sam Trill dissera que se encontrava a cabana.
O tenente preparava-se para arrombar uma das caixas, quando Espital fez desviar a sua atenção para os rochedos encarniçados.
- Ali! Pronto! Adelante!
As expressões tornaram-se mais graves, pois não era de ânimo leve que se aventuravam assim em terreno descoberto. Todos tinham uma única preocupação; dum momento
para o outro, os Mambi, emboscados por detrás das rochas, podiam mimoseá-los com um tiroteio inesperado. No entanto, resignaram-se a seguir o chefe, que dirigia
o grupo através das pistas desenhadas na areia.
Sam Trill caminhava à direita do capitão, logo seguido de Luiggi e dos seus outros companheiros, receosos dos hipotéticos inimigos. Finalmente, chegaram ao refúgio
sem que tivesse sido disparado um único tiro. Mas a cabana estava vazia.
- Já se foram embora! declarou Gomez em surdina. Chegámos tarde demais!
Enquanto os espanhóis se aventuravam em busca do adversário, Pablo Alvarez recuava com os seus Mambi para o interior da ilha, para esses montes que se destacavam
em tons violáceos, contra o horizonte.
Primeiramente, o chefe dos insurrectos pensou resistir, entrincheirado pelos rochedos que existiam junto da cabana, mas ao lembrar-se dos canhões do "San Sebastian",
mudou de ideias.
com a táctica adoptada, Pablo Alvarez propôs-se realizar uma manobra subtil. Sabia que, servindo de isco ao grupo de desembarque, desviaria as atenções da valiosa
carga que há pouco recebera. Para o capturar, os perseguidores embrenhar-se-iam perigosamente através do terreno que ele conhecia a palmo e que estava semeado de
armadilhas e de obstáculos de toda a espécie.
Catamount e Diego seguiam Pablo Alvarez. Um pouco atrás, Kobo caminhava, transportando ainda Claudette. Armados de carabinas, os Mambi avançavam com uma certa dificuldade,
devido à irregularidade do solo. Por vezes voltavam-se para observar o chefe e os dois companheiros que constituíam a retaguarda de tão reduzido exército.
A certa altura, o fazendeiro parou e fez sinal para que os dois homens que o acompanhavam, fizessem o mesmo.
Catamount limpou a cara à manga da camisa. Estava um calor sufocante e sentia tremendamente a falta do seu fiel amigo Mezquite. Cavaleiro intrépido, dificilmente
mantinha o mesmo andamento dos outros.
- Já está perto, amigo! informou Pablo Alvarez sorrindo. Esteja descansado, que vamos fazer um pouco de repouso.
Sentaram-se à sombra, ao abrigo dos rochedos avermelhados. O chefe dos insurrectos pegou então num óculo de ver ao longe e focou-o em direcção à margem.
- Lá estão eles! Já chegaram! anunciou.
Por instantes, observou as minúsculas silhuetas dos espanhóis destacando-se contra o azul do mar. Tinham puxado para a areia seca as quatro lanchas e começavam as
buscas.
- Caramba! Estão armados de metralhadoras, elucidou, ao notar o pesado carregamento dos marinheiros.
E, oferecendo o óculo a Catamount, acrescentou:
- Repare! Parece que estão indecisos!
O vaqueiro, ao ver uma silhueta sua conhecida, junto do capitão, franziu o sobrolho e deixou escapar uma exclamação de raiva.
- O que aconteceu? perguntou Pablo Alvarez, intrigado.
- Apenas isto: esses gentlemen fazem-se acompanhar de Sam Trill. E reconheço também alguns marinheiros do "Sea-New".
O chefe dos insurrectos não se mostrou preocupado com semelhante facto.
- Mas que importância tem isso? Esses homens não me metem medo! Não conhecem a Ilha de Pinos!
E, antes que Catamount tivesse tempo de dizer qualquer coisa, acrescentou com um sorriso malicioso:
- Pois a Ilha de Pinos reserva-lhes uma boa surpresa, acredite, amigo!
Diego aprovou as palavras do chefe, com um risinho cínico.
Continuaram a observar as manobras dos espanhóis, encantados com a prudência por eles demonstrada.
-? Não estão lá muito convencidos ! observou Catamount com certa ironia.
- Caramba, replicou Alvarez, se a Senorita não estivesse aqui connosco, dormia absolutamente descansado e esses cães haviam de receber uma lição que não esqueceriam
tão depressa!
Ao vaqueiro, não escapou a expressão inquieta que entristeceu o rosto do interlocutor, por breves instantes. Já tinha reparado no interesse que Pablo Alvarez demonstrava
pela filha do comandante.
- Esteja descansado, objectou, miss Hyatt é uma mulher de armas! Eu mesmo pude observá-lo já várias vezes !
- Pode ser que tenha razão, admitiu o fazendeiro, mas confesso que preferia vê-la bem longe daqui, neste momento.
- Pois também lhe digo que ela antes quer estar consigo, por muito precária que a nossa situação pareça, do que junto do malvado Sam Trill!
- Tem a certeza ? perguntou Pablo com uma expressão subitamente transformada.
- Estou tão certo disso, como do facto do seu maldito perseguidor estar agora do lado dos espanhóis!
E Catamount explicou então em que condições Claudette tinha conseguido escapar a semelhante espécime. O seu interlocutor ouvia-o sem o interromper, mas ao pensar
nos perigos por que a rapariga passara, cerrou os punhos com raiva.
- Se eu conseguisse apanhar esse miserável!
murmurou em surdina.
- Quem sabe? Talvez o consigamos encontrar, continuou o cow-boy. Mas há uma coisa que lhe quero pedir.
- O que é?
Pablo Alvarez pareceu intrigado, mas Catamount
apressou-se a elucidá-lo:
- Aconteça o que acontecer, esse homem pertence-me, amigo. Quero-o vivo!
Diego, por sua vez, parecia tão intrigado como o chefe, e não pôde deixar de intervir:
- Ora! Tem umas contas a ajustar com esse
coiote, não?
- É isso mesmo.
- Se assim é, ponho, de boa vontade, o destino desse patife nas suas mãos, consentiu o fazendeiro. Mas a minha ideia é evitar qualquer contacto com os espanhóis.
E desse modo, não me parece que consiga o seu intento!
Os recém-chegados avançavam lenta e prudentemente e pelas precauções tomadas, adivinhava-se o receio de serem alvejados por atiradores emboscados.
- Está tudo a correr pelo melhor! declarou Pablo Alvarez. Tenho a impressão de que, antes que anoiteça, não conseguirão ultrapassar a cabana! E isso dá-nos mais
tempo para pormos em prática o nosso plano.
E tirando uma cigarreira do bolso, o fazendeiro ofereceu:
- É servido?
- De boa vontade!
Enquanto esperavam, todos três, resolveram fumar. A determinada altura viram os espanhóis alcançar o refúgio. Pablo Alvarez não se impressionou com o caso e olhava
atentamente para o interior da ilha. Os Mambi lá prosseguiam na fuga e o rapaz não pôde deixar de pensar, mais uma vez, naquela cujo destino o emocionara, e que
queria pôr a salvo o mais depressa possível.
Enquanto eles espiavam os passos do inimigo, Claudette avançava ao colo de Kobo. Este não se mostrava cansado e, sempre que parava, mimoseava-a com um sorriso simpático.
Por vezes, os insurrectos eram obrigados a dar uma grande volta, para não saírem da calçada pedregosa, único acesso que tinham para atravessar essa zona traiçoeira
da Ilha de Pinos.
Claudette olhava para trás com frequência, pois começava a preocupar-se com a ausência prolongada de Catamount e de Pablo Alvarez, que, a princípio, constituíam
a guarda de cobertura. Receava ouvir tiros de um momento para o outro, mas a calma continuava e os Mambi avançavam sem dificuldade.
Por fim Kobo e os companheiros pararam ao abrigo de um maciço de palmeiras enfezadas, que davam uma
fraca sombra. Estenderam um cobertor, para que Claudette pudesse descansar.
O cansaço e as emoções sofridas, obrigaram-na a fechar os olhos, imóvel. As atribulações por que passara, pareciam-lhe tão extraordinárias que dir-se-ia viver um
pesadelo! E ao seu espírito surgiam, obcecantes, as imagens do pai, de Catamount e de Sam Trill. Pensava também nesse tal Pablo Alvarez, que a fatalidade tinha duramente
marcado.
Mas, apesar de todas estas aflições, Claudette sentia uma esperança nova! Tinha a impressão de que Catamount e o fazendeiro eram dois amigos com quem podia contar
em absoluto.
Esperou durante longas horas, rodeada dos negros que se conservavam de cócoras, imóveis e tendo as carabinas seguras entre as pernas. Não pareciam sossegados e olhavam
constantemente para trás, provavelmente inquietos com a prolongada ausência do chefe! Kobo tirou alguns bolos de milho dum saco que trazia a tiracolo, e ofereceu-os
à rapariga. Mas ela mal lhes tocou, pois além de não ter fome, continuava preocupada! Dava tudo para que Pablo Alvarez voltasse finalmente para junto dela!
Ouviram chamar e, intrigados, os Mambi levantaram-se, julgando tratar-se da chegada do chefe. Mas afinal era o mayordomo que corria, a ordenar apressadamente:
- Pronto, continuem a marcha!
- E o chefe? objectou Kobo.
- Foi ele que me mandou aqui vir, elucidou Diego. Continua à espera e se o inimigo atacar, unir-se-ão a vocês.
E ao ver Claudette olhá-lo com desconfiança, o mayordomo apressou-se a acrescentar:
- O chefe aconselha-a sobretudo a descansar e a ter coragem, Senorita!
- Diga-lhe que tenho a maior das confianças nele. Mas que seja prudente!
E o mayordomo partiu correndo. Kobo, pegando de novo em Claudette, disse-lhe:
- Chegaremos à montanha de noite e aí, já não haverá perigo para nós.
Os negros avançavam dando enormes passadas num terreno cada vez mais incerto e traiçoeiro e sob um sol escaldante. Corriam o risco de se enterrar e Claudette, apavorada,
agarrava-se a Kobo com todas as forças.
Mas este, ao ouvir os gritos assustados da sua companheira, animava-a! Não é caso para isso!
Mas apesar do que ele lhe dizia, a rapariga continuava a abraçá-lo desesperadamente. À roda, não se viam senão pântanos e nuvens de mosquitos. A atmosfera estava
impregnada de um cheiro repugnante, que provocava náuseas a Claudette, pouco habituada a percorrer semelhantes regiões.
O sol, a pouco e pouco, desaparecia no horizonte. Para alcançarem a outra margem, os Mambi tiveram de transpor uma espécie de estreito, o que fez que se molhassem
até quase à cintura.
Claudette, ao olhar para trás, viu três homens embrenhando-se no pântano.
- Olhem! exclamou alegremente. São eles!
Era na verdade Pablo Alvarez acompanhado de Catamount e do mayordomo. Ao vê-los, os insurrectos pararam.
Espalhando a água à sua roda, os três recém-chegados alcançaram finalmente os restantes companheiros.
- Eles aí vêm! anunciou Pablo Alvarez. Claudette mostrou-se amedrontada:
- Estamos perdidos, meu Deus!
- Está tudo a correr pelo melhor! Vão cair na esparrela, tão certo como dois e dois serem quatro! disse o fazendeiro, procurando acalmá-la.
Diego reuniu os Mambi o mais depressa que pôde e o chefe começou imediatamente a dar ordens.
O plano era subtil e relativamente fácil de realizar.
- Esses malvados estão a fazer todos os possíveis por nos apanhar, explicou Pablo Alvarez. Mas é absolutamente preciso que os nossos planos saiam certos!
E, ao dizer isto, apontou para uma vasta zona pantanosa que se espraiava à esquerda. Os Mambi rodeavam-no impacientes por terminarem com essa retirada que se prolongava
há um bom par de horas.
- Vocês vão manobrar de maneira a atrair esses cães. Mas, no entanto, tenham cuidado, pois eles estão armados de metralhadoras!
Semelhante pormenor não pareceu preocupar os insurrectos, pois sabiam que o terreno era seu fiel aliado. E dentro em pouco, os adversários arrepender-se-iam amargamente
de se terem lançado em sua perseguição.
Kobo colocou Claudette junto duma palmeira, e foi com imensa alegria que esta viu Catamount aproximar-se,
sorrindo:
- Hello, miss Hyatt, sente-se melhor? O caso ainda não está resolvido, mas parece-me que a nossa situação é melhor. Alvarez saberá defendê-la, se acaso Bill Lern
não o puder fazer!
Foi a custo que a rapariga dominou a emoção profunda que lhe tinha provocado semelhante alusão.
- Esteja descansada, miss Heat, Bill Lern ainda não morreu e não se esquece da promessa que fez ao comandante.
- Mas o que estão a fazer, agora ? Por que é que se reúnem todos?
- Isso são assuntos que não nos dizem respeito directamente, respondeu o vaqueiro. E não penso misturar-me no barulho, a não ser que Sam Trill e companhia se resolvam
a entrar em cena!
Ao ouvir isto, Claudette franziu o sobrolho:
- O quê? esse miserável.
- É verdade, o nosso homem ainda não se fartou de dar que falar! Mas esteja descansada, que estamos todos prontos a defendê-la contra qualquer ataque desses patifes.
Por mim, estou radiante, pois tenho umas contas a ajustar com o Trill.
- Como é que vamos sair daqui? perguntou então a rapariga. O "Sea-New" já foi ao fundo.
- Sempre pensei que não quisesse voltar para esse barco, donde saímos em circunstâncias tão tristes.
Subitamente, Catamount quase gritou:
- Mas onde é que está o Chink?
- Tem razão! Estava convencida que tinha ido consigo.
- Nem por sombras! E eu a pensar que ele andava com os pretos.
- Não o vejo, desde que abandonámos a cabana! De repente calaram-se, com a ideia de uma possível
traição, mas fizeram esforços por afastar do pensamento semelhante hipótese pois, até aí, o chinês
mostrara-se sempre corajoso e fiel, partilhando todos os perigos e aparecendo na hora H.
- Se calhar, preferiu ir-se embora, opinou Claudete.
- Quando há pouco passei ao pé dos Mambi, não o vi.
A certa altura, Claudette apontou para um vulto que chapinhava, tentando alcançar os insurrectos.
- Lá está ele. É o Chink! exclamou alegremente.
Diego e os pretos apontaram as armas para o recém-chegado, que dificilmente se conseguiu livrar do pântano através do qual se embrenhara, ao pretender encontrar
os seus amigos o mais depressa possível.
- Cuidado, não atirem! gritou Catamount.
E, sem hesitar, correu ao encontro do chinês, que se esforçava em vão por se soltar do lodaçal. Tinha o rosto encharcado em suor e estava exausto pelo esforço despendido.
- Então, o que é que aconteceu?
O vaqueiro conseguiu finalmente chegar junto de Chink. Puxou-o bruscamente para si e, antes que tivesse tempo de lhe fazer nova pergunta, este declarou numa
voz cava:
- Atenção! Trill! E os espanhóis! Vêm
aí!
XVII
O PÂNTANO
- Coragem! Nunca mais conseguiremos sair daqui!
Enquanto avançava, o Sargento Mendoza não conseguia esconder a cólera. Veterano das guerras das Filipinas, conhecera variadíssimos adversários e triunfara sobre
muitos obstáculos. Mas este desembarque na Ilha dos Pinos, ultrapassava tudo o que poderia ter imaginado!
Após saírem da cabana, onde os insurrectos tinham armazenado os caixotes das armas e munições, os marinheiros da canhoneira embrenharam-se num terreno traiçoeiro,
onde cada vez se atolavam mais. De vez em quando, olhavam para o comandante, esperando que este se resolvesse a voltar para trás. Mas Espital parecia, mais do que
nunca, decidido a perseguir os insurrectos até aos montes da Canada que barravam a rota para o Norte.
Por seu lado, o Tenente Gomez começava a preocupar-se seriamente com o andamento das coisas. A princípio, sempre pensara que, dispondo a coluna de metralhadoras
e dum armamento superior ao dos Mambi, conseguisse facilmente alcançá-los, e aniquilá-los. Numa zona extensa e plana, que se prolongava por uma distância de cerca
de seis quilómetros, tudo parecia facílimo.
- Adelante! repetia amiúde, para encorajar os
seus homens.
Mas a progressão não se fazia tão rapidamente, como os dois oficiais a principio tinham suposto. Depois de atravessarem um terreno arenoso, os espanhóis chegavam
agora a um pântano, onde os indígenas e os insurrectos apenas se aventuravam cheios de mil cautelas. E os seus olhos que, até aí, apenas viam a fila dos adversários
recuando apressadamente, observaram então os arredores.
Além disso, os marinheiros tinham ainda que vigiar os cinco prisioneiros que estavam sob a alçada do Sargento Mendoza.
Até à data, os náufragos tinham afectado a maior resignação. Mas, à medida que o grupo se embrenhava nessa zona difícil, os cinco companheiros, conscientes das variadíssimas
dificuldades com que os guardas haviam de deparar, estavam decididos a agir na ocasião mais propícia.
Por enquanto esperavam, patinhando ao desafio. Aproveitando o embaraço dos guardas, Sardel aproximou-se de Sam Trill.
- Hello, sussurrou-lhe ao ouvido, o caso está negro
para os hidalgos! O imediato sorriu:
- Espero que, dentro em pouco, nos possamos despedir à francesa! foi a sua única resposta.
E, ao ver o companheiro acenar afirmativamente com a cabeça, resolveu acrescentar:
- Diz aos outros que esperem pelo meu sinal! Quando os riscos estiverem reduzidos à expressão mais simples, entraremos em acção!
E nada mais disseram, para não chamar a atenção, nem atrair suspeitas.
- Nunca conseguiremos apanhar esses cães malditos, praguejou Mendoza raivosamente.
E, dizendo isto, apontou a fila que continuava a sua caminhada para o norte. Em seguida, dirigindo-se ao tenente, gritou:
- Caramba! em vez de nos conduzirmos como imbecis, por que razão não tentamos seguir o mesmo caminho ?
Espital começou a reunir os homens, mas o terreno pantanoso apagara qualquer pista. À medida que avançavam, ouviam-se exclamações e pragas. O chão cedia sob os passos
dos perseguidores e muitos deles já pediam auxílio aos companheiros.
- Ainda acabam por nos escapar! berrou o comandante, enquanto cerrava o punho de raiva.
- Mas por que razão não fizemos ainda pontaria nesses tipos? objectou o tenente. com certeza que não vamos deixá-los fugir com armas e bagagens?
Ao ouvirem o assobio do chefe, os espanhóis pararam. Estavam todos com um aspecto miserável e tinham a cara e os fatos sujos de lama. Há muito que procuravam um
terreno sólido, onde lhes seria mais fácil progredir, mas à sua volta, só ouviam arrepiantes gluglus provenientes do lodaçal. Estavam impregnados de um cheiro nauseabundo
a morte e a putrefacção. Nuvens de enormes mosquitos perseguiam-os sem cessar, e o sol continuava a lançar raios implacáveis, o que dificultava ainda mais os esforços.
Sam Trill e os companheiros nada diziam, esforçando-se por dissimular a satisfação profunda que sentiam, ao verem os guardas em tão maus lençóis!
Ao saírem do refúgio de Pablo Alvarez, estavam com uma cara que metia dó, pois sabiam que em breve seriam executados. Mas, à medida que o grupo de desembarque do
"San Sebastian" se embrenhava através do pântano, sentiam as esperanças renascer. Se os cálculos não saíssem errados, dentro em pouco poderiam fugir.
Por agora, lutavam com as mesmas dificuldades dos espanhóis. De vez em quando soltavam uma praga, pois o terreno, cedendo bruscamente sob o seu peso, obrigava-os
a enterrarem-se até à cintura. Unindo então os esforços ajudavam-se mutuamente, mas o solo parecia cada vez mais movediço. Aqui e ali surgiam algumas ervas e arbustos
enfezados, aos quais eles se agarravam, esperando encontrar um mínimo de apoio.
Subitamente, uma ordem breve obrigou os prisioneiros a pararem. Quase logo a seguir, ouviram-se várias detonações.
- Imbecis! exclamou Sam Trill.
Os espanhóis, enraivecidos, continuavam a visar os adversários que prosseguiam na retirada, mas com a precipitação, nem acertavam no alvo.
Apesar disso, Pablo Alvarez acelerava o andamento das suas tropas, em direcção às montanhas. Desde que o chinês tinha aparecido, dando o alerta, os fugitivos foram
obrigados a abandonar a linha dos rochedos, avançando sobre terreno plano. Por acaso, os Mambi conheciam perfeitamente o local onde se encontrava uma espécie de
calçada que lhes permitia avançar, sem correrem o risco de se atascar.
Catamount esforçava-se por seguir passo a passo o chefe dos insurrectos. Um pouco mais à frente, Claudette
caminhava ao colo do infatigável Kobo. Ao ouvir zumbir as balas dos espanhóis, a rapariga tremeu, mas o colosso negro acalmou-a com um sorriso simpático:
- Não ter medo, Senorita. Eles atirar muito mal!
Chink seguia o vaqueiro, com um andar saltitante, soltando por vezes exclamações de espanto.
Enquanto avançavam, o mayordomo aproximou-se do chefe.
- Ainda não nos apanharam! troçou.
- Estão a atolar-se cada vez mais. respondeu Alvarez, com o rosto iluminado por um sorriso cheio de confiança.
Os tiros continuavam a soar, mas as balas iam enterrar-se na lama, sem atingir ninguém. E Claudette já começava a habituar-se ao silvo desagradável dos projécteis.
No entanto, os Mambi não estavam inteiramente descansados, pois sabiam que não se achavam fora do alcance de tiro. Os montes ainda se encontravam longe e antes de
lá chegarem, tinham de se aventurar numa região bastante difícil. Se conseguissem alcançar os contrafortes arborizados, estariam salvos, mas antes disso, tinham
de atravessar uma zona descoberta.
Catamount voltava-se para trás amiúde. Os espanhóis não eram mais que pequeninos pontos brancos que se destacavam aqui e ali, contra o fundo acinzentado do pântano
e para lá dos tufos de ervas.
Os insurrectos continuaram a avançar durante mais algum tempo, até que os negros, que formavam a frente da coluna, pararam bruscamente. Haviam por sua vez deparado
com um terreno difícil e alguns quase tinham
desaparecido por completo nas areias movediças, donde os companheiros tentavam corajosamente tirá-los.
Na máscara rude de Pablo Alvarez, transpareceu uma enorme inquietação.
- O que aconteceu? perguntou o vaqueiro. Acho-o
preocupado!
Pela primeira vez desde que tinham saído da cabana, o fazendeiro parecia estar a braços com tremendas
apreensões.
- Parece-me que vamos ser obrigados a obliquar para a esquerda para alcançarmos a língua de areia que se estende ao longo da margem, respondeu Pablo
Alvarez.
- E então ?
- Quer dizer que, a distância que teremos a percorrer, será prolongada um bom bocado. E, além disso, arriscamo-nos a ser atingidos pela artilharia da canhoneira.
Diego então resolveu intervir:
- E se nos dividíssemos em dois grupos? propôs. Enquanto tenta alcançar o litoral juntamente com a Senorita e os seus companheiros, eu e os negros esforçar-nos-emos
por atrair a atenção dos espanhóis. E assim que tiverem conseguido alcançar os montes, nós imitá-los-emos de boa vontade.
Pablo Alvarez hesitou antes de responder. Custava-lhe separar-se dos seus valentes companheiros de luta, mas no entanto, ao olhar para Claudette, Queria a todo o
custo afastar a ameaça que pairava sobre ela e pô-la em sítio seguro.
- Muy bien! aprovou finalmente. Vamos então
tentar contornar o obstáculo.
- Assim que chegarem, acendam qualquer lume
na colina e nós meter-nos-emos logo a caminho! acrescentou o mayordomo.
O chefe dos insurrectos chamou Kobo, que se aproximou trazendo Claudete. E voltando-se para Catamount perguntou:
- Está preparado?
Este respondeu afirmativamente, e os dois grupos separaram-se. Enquanto Pablo Alvarez, Catamount, Chink, Kobo e Claudette obliquavam na direcção da margem, o mayordomo
dirigia os Mambi. Quando o primeiro grupo se encontrava já a uns cinquenta metros, ouviram-se algumas detonações. Eram os insurrectos que atiravam sobre os perseguidores,
que dificilmente conseguiam progredir através do pântano.
Desta vez, a situação estava a tornar-se complicada para Espital e os seus homens. Até aqui, ainda não tinham precisado de se defender dos adversários que eles julgavam
estar unicamente desejosos de se achar em lugar seguro. Quando um dos marinheiros caiu, atingido em pleno peito, logo seguido do tenente mortalmente ferido, ouviram-se
exclamações assustadas.
- Caramba. berrou o Sargento Mendoza. Esses Mambi vão matar-nos como tordos!
- Socorro. Tirem-me daqui! berrou Espital do fundo dum buraco.
Como as balas zumbiam desagradavelmente aos seus ouvidos, os espanhóis levaram um certo tempo a acudir ao chamamento angustioso do chefe. Este multiplicava os esforços
para se livrar, mas à medida que se mexia, mais se enterrava no pântano. Já estava submerso até aos ombros, quando quatro dos seus marinheiros se aproximaram.
- Uma corda! ? Um laço! Qualquer coisa! Mas tirem-me daqui por amor de Deus!
Foi uma tarefa difícil. Os tiros sucediam-se ininterruptamente e quanto mais os quatro homens se apressavam, mais o lamaçal parecia querer tragar o infeliz comandante.
Tentavam coordenar os esforços para o tirar, mas os pés enterravam-se e estavam também em risco de se submergirem.
Reinava a maior confusão no grupo dos espanhóis. Ouviam-se pragas aqui e ali, e muitos não conseguiam soltar-se das areias ou da lama onde se tinham enterrado.
Era esta precisamente a ocasião que Sam Trill e os companheiros esperavam ansiosamente! Até aqui tinham observado uma reserva escrupulosa, pouco desejosos de se
deixarem matar pelos guardas, à mínima tentativa de fuga. Mas à medida que as dificuldades aumentavam, depressa compreenderam que qualquer vigilância seria ilusória
e que facilmente poderiam reconquistar a liberdade de movimentos.
O comandante vociferava, incitando os homens a continuar a atirar, a atirar sempre. Mendoza, aterrado pelo desaparecimento do tenente, que acabava de morrer, chafurdava,
procurando aproximar-se do chefe, para o pôr ao corrente. E ninguém mais se preocupou com os cinco prisioneiros.
Então Sam Trill voltou-se para os acólitos e piscando-lhes o olho, deu a entender que tinha chegado a hora de agir.
- Go!. disse unicamente.
E apontando para a esquerda, mostrou a margem que estava a pouca distância. Todos obedeceram prontamente.
Um espanhol que assistiu à cena, quis dar o alarme e opor-se à fuga do pequeno grupo. Triste ideia a sua ! Hermann, de punho cerrado, correu e acertou-lhe em cheio
na cara. Atordoado, o marinheiro caiu para trás e, ao vê-lo estendido no meio do lodo, o alemão apressou-se a tirar-lhe a espingarda.
- Coragem ! Estamos aqui todos! berrou Sardel.
Hermann, segurando na arma pela coronha, atingiu um outro espanhol que tentava cortar-lhe a passagem.
Espital e os restantes homens estavam demasiado preocupados, para que pudessem agir eficazmente. Aproveitando a surpresa, Sam Trill e os outros continuaram a avançar,
levantando à sua volta uma água lamacenta e suja.
Caminharam a direito, animados duma força e dum ardor que julgavam invencíveis, quando, bruscamente, se ouviu uma enorme praga:
- Der Teufel!
Hermann, que continuava à cabeça do grupo, acabava de se afundar bruscamente.
- Trill! Cobi! chamou desesperado.
O imediato e os três restantes tinham recuado rapidamente, ao sentirem o chão ceder sob os seus passos. Obrigados a parar em plena fuga, ficaram desorientados. A
poucos metros de distância, o alemão agitava-se desesperadamente, já enterrado até à cintura.
- Gott im Himmel! insistiu em tom de súplica, Tirem-me daqui!
Sam Trill e Cobilovici trocaram um olhar. Parar, era o mesmo que serem apanhados pelos espanhóis, que já lhes deviam vir no encalço.
Sardel quis intervir, mas o romeno impediu-o:
- É impossível! murmurou. Não temos tempo
para isso!
Hermann continuava a agitar-se, com os mesmos vãos resultados que obtivera Espital. Cada movimento que fazia, enterrava-o ainda mais.
- Socorro ! Atirem-me uma corda!
- Não temos aqui nenhuma corda! respondeu
Sam Trill secamente.
- Por piedade, façam qualquer coisa!
O alemão estava agora submerso até aos ombros e só se lhe via a cara, onde olhos dilatados pelo medo, se cravavam angustiadamente nos quatro companheiros.
- A carabina! exclamou então Luiggi, que até
aqui se mantivera numa prudente reserva.
A arma também desaparecia rapidamente e o italiano, ao querer recuperá-la, arriscou-se a ser, por sua vez, tragado pelo lodaçal. E lá teria caído, se Sam Trill não
o tivesse agarrado pela manga.
- Madonna. balbuciou, subitamente pálido.
A hesitação dos quatro fugitivos, foi quebrada por uns tiros com que os espanhóis os resolveram mimosear.
- Paciência! berrou Sam Trill. Já não temos
tempo!
- Salve-se quem puder, acrescentou Cobilovici. Hermann, desesperado, vendo o grupo afastar-se,
invectivou-os raivosamente:
- Cobardes! Vocês não passam duns cobardes! Mas depressa deixaram de ouvir as injúrias do alemão. Continuava a desaparecer rapidamente e o lodaçal
cedo lhe chegou à boca. Num esforço supremo, o miserável ainda tentou soltar-se, mas desapareceu bruscamente. Durante alguns segundos, emergiu uma mão crispada e
coberta duma camada de lodo, até que se deixou de ver de todo. Bolhas amarelas subiram então à superfície, provocando um sinistro gluglu. E foi tudo!
Sam Trill e os outros, indiferentes à sorte do infeliz companheiro, tinham retomado a precipitada fuga. No entanto, foram obrigados a abrandar sensivelmente o andamento,
pois eram a todo o momento ameaçados pelo mesmo perigo. Para onde se virassem, deparavam com a campina tremente e com as suas traiçoeiras armadilhas.
Aventuravam-se portanto ao acaso, sem a mínima coesão, esforçando-se por se desenvencilhar o melhor que pudessem. Eram constantemente obrigados a recuar e, assim,
a interromper a progressão para a margem. O cheiro obcecante do lodaçal, causava-lhes náuseas e nuvens de enormes mosquitos continuavam a zunir à sua volta. O que,
além do calor intenso, lhes dificultava os esforços.
Mas apesar de tudo, continuavam a avançar, unicamente movidos pelo instinto de conservação. Os fatos, enlameados, colavam-se-lhes ao corpo e os pés pareciam presos
ao solo por potentes ventosas. Insistiam, raivosamente, mas apenas haviam triunfado duma armadilha, caíam imediatamente noutra!
- Nunca conseguiremos sair daqui, exclamou Sardel que começava a sentir-se cansado.
Sam Trill não respondeu e, com o olhar cravado na zona da margem que parecia sã, continuava a avançar.
Enormes gotas de suor escorriam-lhe pela cara e os cabelos, cobertos de lama, colavam-se-lhe à testa.
- Madonna!
Luiggi, estimulado pelo terror de morrer como Hermann, realizava prodígios de que ninguém o julgaria capaz. E soltou um grito de aflição, ao ver Sardel enterrar-se
por sua vez até às ancas.
O seu amor à vida era tal, que se agarrou a Cobilovici que, nesse momento, se encontrava junto dele. O romeno tentou soltar-se, dando um soco a tão indesejável vizinho,
mas sentiu-se também deslizar.
Desenrolou-se então uma luta atroz, em que Sardel e Cobilovici se agarravam com fúria. Mas estavam prisioneiros e era em vão que as suas mãos crispadas se estendiam.
Sam Trill e Luiggi afastaram-se apressadamente, pouco desejosos de comprometerem a sua salvação, ao prestar auxílio aos outros companheiros.
Todavia, os dois miseráveis tiveram a mesma sorte de Hermann. Mas os restantes, prestes a sucumbir, fizeram um esforço sobre-humano e conseguiram afastar-se da zona
pantanosa.
- Salvos! Estamos salvos! exclamou Luiggi no auge do cansaço, e sentindo o chão duro debaixo dos pés.
Pararam ao pé duma palmeira e a fraqueza era tão grande, que se sentiam incapazes de esboçar o mínimo gesto. Assim ficaram durante certo tempo, aproveitando a sombra
precária da solitária árvore. Tudo lhes era indiferente e já não pensavam nos espanhóis, nem no risco a que se expunham ao vaguear nessas paragens,
quando, subitamente, viram um vulto a pouca distância.
Imóveis, e com os olhos cravados no recém-chegado, os dois comparsas julgaram-se vítimas duma ilusão. com efeito, reconheciam o homem que avançava para eles com
passo rápido. E um mesmo nome lhes veio aos lábios:
- Bill Lern!
Sam Trill e Luiggi não estavam a sonhar, era com efeito Catamount que se dirigia na sua direcção. Tirou um revólver do cinturão e aproximou-se. Apesar do seu andar
trair um certo cansaço, parecia radiante por ter finalmente encontrado os dois fugitivos.
O imediato e o cozinheiro, nem se mexiam. Arrasados pelos esforços incessantes que tinham feito durante a fuga através do pântano, sentiam-se incapazes de se defender,
pois além do mais, não traziam nenhuma arma. com o coração aos pulos, resolveram esperar.
- Hello, Trill, tinha cá um palpite que havíamos de nos encontrar mais cedo ou mais tarde! disse o vaqueiro parando a poucos metros da palmeira.
Já há um momento que se tinha separado dos companheiros, que deixara junto da margem, pois chamara-lhe a atenção o aparecimento dos dois vultos suspeitos. Preocupado,
quis certificar-se com os seus próprios olhos e agora, apesar do estado lamentável dos fugitivos, não tardou em reconhecê-los.
Catamount depressa compreendeu que nada tinha a recear da parte de Sam Trill e do italiano. Observavam-no com ar idiota e os membros agitavam-se em
movimentos convulsivos, resultado de tantos esforços incessantemente repetidos.
- Onde estão os outros ? Só restam vocês ?
O imediato não respondeu. Além disso, ignorava absolutamente que Sardel e Cobilovici tivessem tido o mesmo trágico destino de Hermann! Ainda estava vivo, era a única
coisa de que tinha a absoluta certeza.
O vaqueiro não se quis preocupar com explicações e, aproximando-se ainda mais, ordenou numa voz imperativa :
- Levantem-se, os dois!
Estavam ainda tão enfraquecidos, que teve de os ajudar a pôr de pé. E, ao vê-los na expectativa, hesitantes, moídos e apoiando-se um contra o outro, insistiu:
- Sempre em frente. E livrem-se de fugir, senão. com um gesto suficientemente explícito, o vaqueiro mostrou a arma que trazia. Mas os dois tratantes não estavam
em estado de lhe fugir e teve disso a prova, ao vê-los dar meia dúzia de passos, cambaleando como bêbados.
- Vá, mais depressa!
Durante mais de um quarto de hora, avançaram tal autómatos, através da praia onde vinham morrer suavemente pequeninas vagas. Bandos de gaivotas passavam por sobre
as suas cabeças, soltando gritos estridentes. Mas continuaram a andar, até ao local em que Catamount deixara os companheiros.
Claudette esperava junto de Pablo Alvarez e Chink e Kobo estavam um pouco afastados.
Desde que o vaqueiro se tinha afastado em serviço de reconhecimento, a inquietação aumentara nos quatro amigos. E os seus olhares dirigiam-se para a zona que
tinham abandonado precipitadamente e donde o mayordomo, obedecendo docilmente às ordens do chefe, continuava a atirar sobre os espanhóis.
Presentemente, não lhes parecia que Espital e os seus marinheiros, fossem de recear, pois a imprudência que tinham cometido ao aventurarem-se através de um terreno
repleto de armadilhas, podia conduzi-los a um verdadeiro desastre. A única hipótese, era interromper imediatamente a perseguição e voltar para o "San Sebastian".
- Acha que eles insistirão na ideia de nos agarrar?
perguntou a rapariga a certa altura.
Pablo Alvarez abanou a cabeça negativamente:
- Para lhe ser franco, não me parece. Perderiam três quartos do seu efectivo, se tentassem atravessar o pântano! E além disso, e pode vê-lo com os seus próprios
olhos, Senorita, parece que eles querem desistir!
Os tiros quase tinham cessado de um e outro lado e Espital reunia apressadamente os homens que lhe restavam.
Claudette sentiu-se outra mas, no entanto, o seu olhar ficou de novo sombrio ao ouvir o chefe dos insurrectos acrescentar:
- O que mais me preocupa é a canhoneira! A tripulação pode tentar bombardear-nos e além disso, este navio não é o único nestas paragens! Outros virão em seu socorro.
Mas apesar de tudo, Pablo Alvarez esforçou-se por
sossegar a sua companheira:
- A Senorita pode estar descansada, pois ao pé de
mim, nada terá a temer!
A infeliz fez um esforço para sorrir e assim agradecer
ao seu corajoso protector, que a olhou demoradamente. Sempre que estava na presença desta companheira imprevista, para quem o destino fora tão cruel, Pablo sentia-se
profundamente impressionado. Instintivamente, sentia-se atraído para Claudette e quando ela lhe estendeu a mão em sinal de agradecimento, respondeu ao gesto com
ardor. E assim ficaram até que a rapariga se endireitou, ao ver no sítio exacto em que o vaqueiro desaparecera algum tempo antes, três vultos.
- Bill Lern! exclamou alegremente. É ele que ali vem!
- Parece que traz dois prisioneiros!
Intrigados, esperaram sem nada mais dizer. Chink e Kobo também tinham reconhecido o vaqueiro, e, logo que o trio se aproximou, viram que os dois estranhos companheiros
de Catamount, pareciam mortos de cansaço.
- Ora! exclamou Pablo Alvarez. Mal se têm
nas pernas!
O chefe dos insurrectos, a princípio, julgou serem dois marinheiros espanhóis, surpreendidos durante o reconhecimento que Catamount fizera nos arredores. Este aproximava-se
lentamente e guardara o revólver, limitando-se a, de vez em quando, amparar os desconhecidos.
Sam Trill e Luiggi estavam num estado tão lastimoso, que Claudete a princípio não os reconheceu. Admirada, observava esses dois farrapos humanos que, assim que chegaram
junto dela, se deixaram cair, desfalecidos, sobre a areia quente.
- Hello, miss Hyatt, saudou o vaqueiro. Trago-lhe aqui dois velhos conhecidos!
Chink aproximou-se e olhou. No rosto surgiu-lhe,
então, uma expressão de imenso desprezo ao reconhecer o italiano que tão mal o tratara a bordo do "Sea-New". Claudette levou um certo tempo a perceber, até que um
nome lhe veio à boca:
- Sam Trill!
- Adivinhou, miss Hyatt, confirmou Catamount, sorrindo. Está novamente diante do honrado Sam Trill, ou pelo menos, daquele que afirmava ser esse o seu nome e exercia
as funções de imediato a bordo do Sea-New".
A rapariga não pôde reprimir um estremecimento. Sentiu uma repulsa incontrolável, ao ver esse miserável que sabia ser o assassino de seu pai. E o vaqueiro apressou-se
a acalmar-lhe a emoção:
- A Providência faz tudo pelo melhor, assegurou. Estava-me a custar sair da Ilha dos Pinos, sem saber o que tinha acontecido a este tratante. Agora, far-se-á justiça,
asseguro-lhe.
E em seguida, apontando para Luiggi que continuava em estado de prostração, continuou:
- Os testemunhos deste, serão preciosos! Ele, com efeito, sabe melhor do que ninguém, em que condições o capitão Hyatt foi posto em tão grande estado de fraqueza,
por esse Sam Trill que procurava a todo o custo tomar o lugar do comandante.
No entanto, por agora, os dois comparsas pareciam completamente incapazes de falar ou de reagir. Estavam deitados e a sua única preocupação era descansar e esquecer
o pesadelo que tinham vivido, durante a dramática travessia do pântano.
- Então nós agora é que vamos tomar conta destes tipos? Eles só nos estorvam! exclamou Pablo Alvarez.
- Para já, parece-me a melhor solução! retorquiu Catamount.
- Não seria preferível atirá-los aos tubarões? É este o castigo que merecem! insistiu o chefe dos insurrectos.
Estas palavras foram acolhidas com entusiasmo. Chink perdeu, por momentos, a sua habitual reserva e Kobo, por meio de gestos, concordou com a supressão dos dois
fugitivos.
- Custe o que custar, temos de os levar connosco, insistiu Bill Lern. Tanto mais que parece estarmos com sorte!
E dizendo isto, apontou para os espanhóis, que continuavam a debater-se inutilmente.
- Dentro em pouco, continuou, poderemos juntar-nos aos Mambi. E nessa altura, com todo o sossego, saberão por que acho indispensável semelhante companhia !
Pablo Alvarez não rebateu semelhante afirmação. Sabia que o companheiro, para assim agir, é porque tinha sérias razões para isso. E, voltando-se novamente para Claudette,
perguntou:
- Já se sente melhor, Senorita ? Acha-se com coragem de apontar mais uma etapa?
A rapariga concordou com a cabeça. Aquele repouso, tinha-lhe feito bem. E preparava-se para responder, quando viu Kobo surgir bruscamente junto dela.
- Whoo! Whoo. Lá ao longe!
O colosso negro parecia tomado duma agitação desmesurada e Alvarez ia interrogá-lo, quando o viu apontar para o largo.
Imediatamente todos os olhares convergiram para o ponto que o preto designava com insistência. E logo o
chefe dos insurrectos franziu o cenho, ao ver um navio aproximar-se rapidamente da terra.
- O que é que aconteceu? perguntou Catamount, enquanto observava atentamente o novo barco, que se dirigia para a Ilha dos Pinos, deixando para trás um rasto de fumo.
Se calhar é uma unidade que vai a passar ao largo.
Pablo Alvarez pegou no óculo de ver ao longe e procurou um indício que o pudesse elucidar. Segundos depois, soltava quase um grito:
- É outra canhoneira!
- Também espanhola? perguntou Catamount.
- Dirige-se para a que está ancorada e até estão a trocar sinais! Mas veja você mesmo! aconselhou o fazendeiro.
Não havia dúvidas possíveis. Tinham visto o "San Sebastian" e minúsculas silhuetas movimentavam-se no convés.
Pablo Alvarez continuou a observar as evoluções da canhoneira que, longe de se dirigir para junto da outra, avançou sobre a direita, como se procurasse alcançar
um leve promontório situado a menos de dois quilómetros do sítio em que o pequeno grupo se encontrava.
- Fomos localizados, confidenciou o fazendeiro a Catamount. Estes malditos espanhóis vão cortar-nos todas as saídas!
- A única coisa que temos a fazer, é procurar juntarmo-nos ao seu mayordomo e aos Mambi, alvitrou
o vaqueiro.
Mas a resposta não se fez esperar:
- Já é tarde demais! Dentro em pouco a canhoneira
há-de lançar a âncora próximo da Ponta de Piedras. Desembarca uns poucos de homens e então ficaremos presos entre dois fogos.
E, desejoso de não perder mais tempo, exclamou:
- Pronto! temos uma lancha lá em baixo!
E apontou para uma embarcação que ficara encalhada quando da sua precipitada fuga. E antes que o vaqueiro lhe fizesse qualquer pergunta, precisou:
- Vamos embarcar o mais depressa possível e tentar alcançar o largo.
- Nessa altura arriscamo-nos a ser atingidos pelo fogo do navio espanhol, objectou Bill Lern.
- Santa Madre! Não vê que esses malditos estão a combinar todos os movimentos! Os espanhóis tentam alcançar o ancoradoiro a toda a pressa. Dentro em pouco, avançarão
ao longo da costa em perfeito acordo com os outros e ficaremos entre a espada e a parede.
E, dirigindo-se a Kobo, Alvarez gritou:
- Agarra na Senorita e corre para o barco!
O preto pegou de novo em Claudette e o fazendeiro, ao ver Catamount inclinar-se sobre os dois prisioneiros, quis interpor-se:
- Deixe lá esses dois canalhas.
- Não posso! replicou o vaqueiro. Se eles ficarem, ficarei com eles!
E sem a mínima delicadeza, obrigou os dois comparsas a levantarem-se. Fizeram-no muito a custo e não sem vociferar. Mas Chink aproximou-se e, enquanto ele mesmo
se encarregava de Luiggi, o vaqueiro pegava no imediato e levava-o como se fosse um farrapo inerte.
Em menos de cinco minutos, o pequeno grupo tinha
alcançado a chalupa! A canhoneira aproximava-se cada vez mais e, na altura em que os fugitivos começavam a
embarcar, parou.
- Estão a ver? gritou Pablo Alvarez. Vão também
lançar uma lancha ao mar!
O fazendeiro tinha razão. Avisados pelos sinais dos marinheiros do "San Sebastian", os recém-chegados apressavam-se a manobrar, de maneira a evitar a fuga
dos fugitivos.
- Seja o que Deus quiser! murmurou o rapaz. A minha pena, é trazermos esses dois tratantes connosco! Catamount lá tinha as suas razões que deviam ser poderosas,
para insistir no seu procedimento! Ajudado por Chink, conseguira estender os dois prisioneiros no fundo do barco. Estes não reagiram, parecendo resignados com o
seu destino.
- Os remos? perguntou Pablo Alvarez. Pronto/. Catamount, Kobo e Chink prontificaram-se a cumprir a ordem. Claudete sentou-se atrás e o seu olhar não abandonava a
lancha que se dirigia para a margem a toda a velocidade.
- Os espanhóis vão chegar um pouco tarde, troçou o fazendeiro. Temos de agir energicamente e, se conseguirmos chegar ao mar alto, estamos salvos!
Catamount nada disse, mas não tinha ilusões acerca das dificuldades de tal empreendimento. Em primeiro lugar, o adversário jogava com o maior número de homens e
com armas. E os tripulantes do "San Sebastian", decerto desejavam ardentemente vingar-se da desastrosa derrota que haviam sofrido no pântano.
Ouviu-se de novo a voz de Alvarez perguntando:
- Estão a postos, amigos ?
- Go! foi a única resposta do vaqueiro.
com denodo, os quatro homens curvaram-se sobre os remos e a embarcação começou a afastar-se rapidamente.
A bordo das duas canhoneiras, reinava a efervescência, pois a fuga do pequeno grupo fora já assinalada. Desconcertados, os espanhóis assistiam à tentativa desse
punhado de homens de evitar a armadilha que lhes fora armada.
Quando a lancha da segunda canhoneira chegou à Ponta de Piedras, os marinheiros, armados, apressaram-se a desembarcar. Mas ao verem que a embarcação se afastava
para o largo, começaram a agitar os braços cheios de raiva.
Claudette, imóvel, mas com o coração oprimido, sentia-se mais angustiada que nunca. Apesar de confiar na bravura e na energia dos companheiros, sabia com exactidão
os obstáculos que precisariam de transpor, para escaparem a tão implacáveis inimigos.
Os homens nada diziam. com o rosto tenso e encharcado em suor e as veias da testa tão inchadas, que parecia quererem rebentar, estreitavam os remos nas mãos nervosas,
obrigando-os a um movimento continuo de vaivém.
- Coragem! gritou Pablo Alvarez. Raivosamente, esforçavam-se quanto podiam. Mas os seus olhares obscureceram-se, ao ouvirem numerosas detonações, dominando o murmúrio
regular das ondas que rebentavam contra as rochas.
- Todos de barriga para baixo! berrou o fazendeiro. Estão a fazer fogo sobre nós!
Eram os marinheiros que tinham há pouco chegado
à Ponta de Piedras que, exasperados, procuravam atingir os fugitivos. As balas zumbiam e, conquanto algumas se desfizessem na borda da embarcação, as outras perdiam-se
no meio das ondas.
Por momentos, mantiveram-se imóveis, apertados uns contra os outros e deixando-se levar ao sabor da corrente. Os tiros continuaram e, a certa altura, Chink lançou
um grito de dor: tinha sido atingido no ombro.
XIX
A ESCUNA "HARTLAND"
Evitavam a todo o custo ser atingidos pelos espanhóis, que mantinham um fogo quase cerrado contra eles. Mas, a pouco e pouco, o tiroteio diminuiu de violência, pois
os atiradores fartaram-se de gastar munições em vão.
Assim que a calma pareceu reinar de novo, Catamount endireitou-se:
- Vamos lá carregar nos remos! gritou. Parece que nos querem dar caça!
Não se enganara. Os espanhóis voltaram apressadamente para os barcos e, desistindo de alcançar a segunda canhoneira, avançaram na direcção dos fugitivos.
- Temos de dar tudo por tudo, declarou Alvarez. A situação do pequeno grupo agravava-se a olhos vistos, e tudo levava a crer que os adversários não tardariam a alcançá-los.
Apesar disso, não desesperaram e pegaram nos remos com a ideia de se afastarem para bem longe.
Chink tentou cooperar com os restantes companheiros, mas o sangue corria abundantemente da ferida que tinha no ombro. Claudette aproximou-se e, arrancando-lhe um
bocado à camisa, arranjou uma compressa para parar a hemorragia que ameaçava agravar-se.
- Tem de ser! Coragem!
com os fatos colados ao corpo e de maxilares cerrados, remavam com energia selvagem. Os espanhóis ainda não tinham recuperado a distância que os separava, mas a situação, apesar disso, continuava critica. Subitamente e dominando o bater incessante dos remos na água, ouviu-se a voz da rapariga:
- Olhem todos para ali! Mesmo à nossa frente!
Estão a ver ?
Os três homens pararam de remar e olharam na direcção indicada. Contra o azul-escuro do mar, destacava-se uma mancha branca, apenas perceptível.
- É um navio. gritou Pablo Alvarez.
Era realmente um navio que passava ao largo das águas cubanas. Ao vê-lo, Catamount exclamou:
- É a nossa única hipótese! E temos de tentar alcançá-lo por todos os meios possíveis!
- E se for uma unidade espanhola ? objectou o
chefe dos insurrectos.
- Isso não interessa. Temos de agir como se se tratasse de um barco amigo. E Deus permita que não nos
enganemos!
Pegaram novamente nos remos. Os dois prisioneiros continuavam imóveis, devido ao esforço despendido. Aliás, eles bem sabiam que estavam absolutamente à mercê dos
seus vencedores. Se acaso lhes viesse à ideia fugirem a nado, a presença de inúmeros tubarões tê-los-ia incitado à prudência. Semelhantes animais, eram ainda mais
terríveis que o próprio Catamount! Mantinham-se portanto num estado de semiprostração, parecendo indiferentes a tudo o que os rodeava.
Chink continuava incapacitado de ajudar os valorosos
companheiros e como tal, aproveitou para observar, atentamente, o navio para o qual avançavam em ritmo não suficientemente rápido.
Os espanhóis também tinham visto e, adivinhando as intenções dos fugitivos, redobraram de esforços, para tentar agarrá-los. Mas a lancha comandada por Alvarez continuava
a avançar e dificilmente conseguiriam diminuir a distância que os separava.
O barco via-se agora mais nitidamente. De repente, o vaqueiro exclamou entusiasmado:
- Coragem, rapazes! berrou. Vejo a bandeira americana flutuando na driça!
Era realmente uma escuna americana, de três mastros, a "Maryland".
As esperanças dos fugitivos renasceram, pois esse navio era como que um amigo, a bordo do qual poderiam achar refúgio, se conseguissem alcançá-lo já fora das águas
territoriais cubanas. Pablo Alvarez, a exemplo de Catamount, não ignorava a verdadeira simpatia que o governo dos Estados Unidos sempre manifestara pelos insurrectos.
O tráfico de contrabando de armas, partia a maioria das vezes das costas americanas e muitos exilados tinham encontrado asilo nessa terra livre.
Subitamente, um estrondo sobressaltou os ocupantes da lancha. A peça de bordo da segunda canhoneira tinha disparado. A menos de cinquenta braças dos fugitivos, ergueu-se
um enorme jacto de água.
- Que falta de pontaria! gritou Pablo Alvarez. Mas as feições tornaram-se graves, pois todos sabiam
que a situação ia tornar-se ainda mais critica. Exasperados por não conseguirem agarrá-los, os adversários iam tentar vencê-los com a ajuda do canhão.
Continuavam a recuar energicamente, mas ziguezagueavam, de maneira a evitar o tiro dos espanhóis. A certa altura, estalou nova detonação; ergueu-se então uma vaga
próximo do barco, que inundou todos os ocupantes. O obus tinha deflagrado, desta vez, a umas dez braças de distância e por instantes a chalupa, agitada por um violento
remoinho, ameaçou voltar-se.
Pablo Alvarez olhou ansiosamente para Claudette. Não tinha medo da morte, mas não conseguia habituar-se à ideia de que a companheira corria um perigo
tão grande.
Quebrando o silêncio, ouviu-se a voz forte de Catamount:
- Depressa, depressa! Estamos perto! De
bordo da escuna já nos viram !
com efeito, os marinheiros, encostados à amurada, assistiam à impressionante caça ao homem, que se desenrolava exactamente no limite das águas cubanas.
Nova descarga sacudiu terrivelmente a embarcação, sem todavia a atingir. Mas todos compreenderam que o momento fatal se aproximava. O adversário rectificava o tiro
e os artilheiros pareciam mais decididos que nunca a mandá-los para o fundo.
Passaram-se mais alguns segundos, durante os quais os três remadores despenderam uma coragem e uma perseverança sobre-humanas. Mas no momento exacto em que deixavam
para trás as águas da ilha grande, sentiram-se brutalmente sacudidos. Uma granada atingira em cheio a embarcação. Mortalmente feridos, Chink, Kobo e Luiggi desapareceram.
Da canhoneira, partiram gritos de triunfo. Atordoada pelo tremendo choque, Claudette sentiu-se arrastada para
um profundo redemoinho. Desvairada, a infeliz quis debater-se e tentar voltar à superfície. Mas teria ido para o fundo, se Pablo Alvarez não a tivesse segurado energicamente
pelos longos cabelos.
O fazendeiro, que fora projectado para fora do barco, devido à explosão, fazia todos os possíveis por não ser arrastado. E uma única preocupação o obcecava, socorrer
Claudette que estava em perigo de sucumbir. Era um magnífico nadador e, enquanto avançava apenas mexendo um braço, segredou-lhe:
- Agarre-se a mim, Senorita! Por amor de Deus, faça o que lhe digo!
Docilmente, ela obedeceu. A água entrava-lhe para a boca e para o nariz e sentia-se prestes a desfalecer. Mas o pulso enérgico do companheiro continuava a segurá-la
e ela deixava-se ir, arrastada pelo vigoroso nadador.
A certa altura, Pablo Alvarez viu duas cabeças emergindo a pouca distância. Era Catamount, trazendo um homem, que não era outro senão Sam Trill. Os outros já tinham
desaparecido e viam-se algumas madeiras aqui e ali.
A atenção de Alvarez foi despertada por uma exclamação de Claudete. A umas trinta braças para a esquerda, surgia uma inquietadora esteira, demonstrando que os tubarões
procuravam uma presa.
O rapaz apertou ainda mais a cintura da sua protegida. A barbatana aproximava-se e não tardaria a estar junto dos dois.
Apesar do perigo, Pablo Alvarez não perdeu, nem por um instante, o sangue-frio e, na altura em que o esqualo julgava ter duas presas à sua mercê, mergulhou
e desapareceu por instantes. O tubarão passou, enquanto o hábil nadador, manobrando com rapidez, voltou à
superfície.
Catamount a custo sustinha Sam Trill, devido ao seu
peso, mas continuava decidido a não o abandonar. com os compridos cabelos colados à testa, tinha visto as esteiras dos tubarões, que o podiam atacar dum momento
para o outro. Mas o seu olhar tinha outro objectivo, a escuna onde o pavilhão estrelado continuava a flutuar orgulhosamente ao vento.
Testemunhas do drama, os marinheiros da "Maryland" arriaram uma lancha e, remando com energia correram em socorro dos infelizes.
Então, o vaqueiro não teve olhos senão para o grupo que se aproximava. E, apesar de extenuado, compreendeu que a salvação estava perto. Meio inconsciente, o prisioneiro
agarrava-se-lhe desesperadamente, entravando-lhe perigosamente os movimentos. De maxilares cerrados, observava Pablo Alvarez, que continuava a lutar enquanto segurava
a sua protegida.
Por três vezes, Catamount teve de opor-se ao ataque dum tubarão. Mas ao mesmo tempo, via a lancha aproximar-se cada vez mais.
Claudette e Pablo foram os primeiros a ser recolhidos. A rapariga já estava meio inconsciente, na altura em que a agarraram e o fazendeiro gesticulava para que socorressem
Catamount.
- Primeiro esse! gritou o vaqueiro, enquanto se segurava firmemente ao rebordo do pequeno barco. E apontou para Sam Trill que já mal se mexia.
Assim que viu este último estendido ao pé de Claudette, Catamount deixou-se finalmente içar para
bordo. Cansado devido ao esforço que fizera desde que o pequeno grupo se afastara da Ilha dos Pinos, nem vontade tinha para falar. Além disso, como se sentia em
segurança!
Dez minutos mais tarde, os quatro náufragos estavam no convés da "Maryland" onde a chegada de Claudette provocou enorme sensação. Aproximou-se um rapaz alto, de
rosto tisnado e rodeado duma espessa barba, era Gene Larkey, comandante da escuna.
- Levem-na para o meu camarote! ordenou. E dirigindo-se a Catamount: - Sejam bem-vindos a bordo! Sinto-me feliz por ter podido intervir.
- By god, exclamou o vaqueiro que já recobrara parte da energia, todos lhe estamos gratos. Se vocêsnão tivessem aparecido, tínhamos escapado dos hidalgos para cair
nas mandíbulas dos tubarões!
-Hello! declarou então Larkey, você é americano.
- Do Texas! elucidou o vaqueiro.
- Calculem! Eu sou de Galveston!
- Galveston? Tenho algumas recordações ligadas a esse porto!
Mas o comandante não teve tempo de perguntar porque razão se tinham encontrado em situação tão crítica, exactamente, nas águas da Ilha dos Pinos, pois um marinheiro
gritou:
- Parece que eles estão a fazer sinais!
E apontou para a ilha e para as duas canhoneiras, que, de longe, pareciam simples brinquedos de criança.
- Não temos tempo para perder com esses tipos, declarou o comandante. Depressa, colham as velas. Rumo a oeste! Vamos voltar para Galveston!
- Mas os outros. tentou ainda objectar o marinheiro.
Larkey não o deixou terminar a frase:
- Os outros que vão para o diabo!
Estas palavras, pronunciadas num tom enérgico,
foram acolhidas com um murmúrio aprovador. Todos
queriam mostrar que não se preocupavam nada com os
espanhóis.
Mas as discussões foram interrompidas por uma
descarga de canhão.
- Cá está o aviso. troçou o comandante.
Querem-nos obrigar a parar.
De principio estupefactos, os espanhóis estavam dispostos a intervir mais uma vez. O obus tinha caído a umas cinquenta braças a bombordo, da "Maryland", mas o comandante
e a tripulação não se preocuparam
com o caso.
- A bandeira está bem à vista, gritou Larkey.
E além disso estamos fora das águas territoriais cubanas. com certeza que, antes de nos atacarem, pensarão
duas vezes.
E voltando-se para os seus homens, continuou:
- E vocês, old boys, todos a postos! Mais do
que nunca, rumo a oeste!
Os marinheiros entregaram-se ardorosamente à manobra. Enquanto isto, Alvarez e Catamount, debruçados na amurada e de olhos fixos nas duas canhoneiras e nas lanchas
que não tinham conseguido alcançá-los, tentavam adivinhar as possíveis reacções dos adversários. A bordo dos barcos espanhóis, devia haver muita agitação e, provavelmente,
discutia-se acerca das medidas a tomar. A intervenção da "Maryland" contrariara os
projectos dos perseguidores, que julgavam já ter os fugitivos em seu poder. Depois da surpresa que lhes causara o aparecimento dos americanos, davam agora largas
à sua cólera e exasperação.
- Vão bombardear-nos! replicou Pablo Alvarez. Tenho a certeza absoluta!
Catamount encolheu os ombros, incrédulo.
- Hum! objectou por sua vez. Não sou da mesma opinião!
- A escuna está desarmada e portanto à sua mercê! insistiu o fazendeiro.
- É possível, mas é preciso não esquecer que a bandeira das muitas estrelas flutua na driça da "Maryland"!
- Mas então.
- Os espanhóis farão todos os possíveis para evitar um acidente susceptível de os incompatibilizar com as autoridades americanas! Se acaso isso acontecesse, o único
caminho a seguir era evacuar Cuba quanto antes! Os Estados Unidos entrariam em acção e permitiriam que os insurrectos conquistassem, finalmente, a independência!
O rosto de Alvarez iluminou-se:
- Sendo assim, oxalá atirem! exclamou.
- Tire daí o sentido! Está a ver ? Hesitam e o medo dos tiros é um princípio de prudência! Esses hidalgos sabem perfeitamente que, o facto de atacar um barco americano,
lhes traria sérias consequências!
Os marinheiros afadigavam-se nas vergas e os dois náufragos esperavam, em vão, que qualquer das canhoneiras disparasse nova descarga.
- Tem toda razão, murmurou o chefe dos insurrectos. Não farão nada daquilo que pensei!
Por momentos, silenciosos, passearam o olhar pelas ondas semeadas de tubarões e sentiram o coração dilacerado. Apesar de terem conseguido salvar Claudette e Sam
Trill, dois dos seus companheiros tinham desaparecido, juntamente com Luiggi.
Chink e Kobo haviam pago a dedicação aos amigos, com a própria vida. Se bem que o chinês sempre se tivesse mostrado misterioso, o vaqueiro não podia esquecer a ajuda
preciosa que ele lhe prestara durante a revolta do "Sea-New". Vítima de Sam Trill e dos acólitos, Chink fora um soberbo aliado!
Quanto a Kobo, o seu desaparecimento causaria um vazio no grupo de negros que combatiam ao lado de Alvarez. O fazendeiro sentia a falta desse colosso, fiel como
um cão de guarda, que lutara consigo até ao fim.
E a "Maryland" prosseguiu lentamente na rota traçada. O tiro de aviso, não tivera consequências pois apesar da sua raiva sem limites, os oficiais das duas canhoneiras
preferiram ficar de mãos cruzadas. Espital, de volta do pântano onde deixara parte do seu efectivo, estava pouco interessado em recomeçar a luta. Dando um suspiro
de satisfação, o vaqueiro viu desaparecerem, a pouco e pouco, no horizonte, as margens azuladas da Ilha dos Pinos!
com todas as velas desfraldadas e favorecidas por uma boa brisa, a escuna fazia rumo a Galveston. E, se bem que Catamount estivesse radiante por voltar para o ponto
de partida, o chefe dos insurrectos lastimava ver-se separado de Diego e dos restantes companheiros que em vão o esperavam, por um período mais ou menos largo.
XX
ABAIXO AS MáSCARAS!
- Na verdade, há uma coisa que não consigo perceber! dizia Alvarez dirigindo-se a Catamount.
Já se tinham passado vinte e quatro horas depois que os quatro náufragos haviam sido recolhidos a bordo da "Maitland". Favorecida por um tempo maravilhoso, a escuna
prosseguia na rota através do Golfo do México e apenas faltavam meia dúzia de horas para chegar à vista das costas do Texas.
O vaqueiro sentou-se à sombra do mastro grande e Claudette e Alvarez logo o imitaram. Sentiam-se revigorados e Catamount, depois de se deliciar dando uma fumaça,
resolveu responder ao seu interlocutor:
- Do que se trata ?
- Apenas isto, não consigo descobrir qual é o interesse que você pode ter por um canalha como Sam Trill. Depois de todas as patifarias que esse miserável fez, inclusive
a maneira infame como se portou para com o comandante Hyatt, não percebo por que razão você não deixou que ele fosse devorado pelos tubarões.
Claudette concordou, pois também se sentira, por várias vezes, com a preocupação permanente de Catamount, em querer conservar o imediato.
O vaqueiro hesitou por instantes. Os seus dois-
companheiros ignoravam qual a sua verdadeira identidade, pois para eles continuava a ser Bill Lern, um homem do oeste que tinha sido raptado e recrutado, à força,
por Sam Trill e os cúmplices.
No entanto, a indecisão não durou muito. Agora que a dramática aventura estava quase no fim e pouco faltava para voltar para o Texas, podia levantar o véu do mistério
que até aqui tinha envolvido os seus actos.
- Sam Trill foi posto a ferros pelo comandante Larkey, assim que este soube dos delitos que praticou. Venham comigo, vamos vê-lo ao porão!
Claudette não pôde deixar de estremecer, pois custava-lhe encontrar-se diante do bandido que tinha sido o responsável da morte de seu pai. No entanto, sorriu ao
sentir a mão de Pablo Alvarez no braço e ao ouvi-lo dizer numa voz meiga:
- Comigo, Senorita, pode ir à vontade. Nada de
mal lhe acontecerá!
A amizade que a filha de Hyatt sentia pelo corajoso companheiro que a livrara de uma morte certa, tornava-se cada vez mais sólida. E certas palavras que ele lhe
murmurara baixinho ao ouvido, levaram-na a crer que havia uma pessoa no mundo que pensava nela, e a faria enfrentar o futuro com confiança!
Dois minutos mais tarde, penetravam os três através da escotilha. Catamount, munido de uma lanterna, caminhava à frente e depois de terem descido uma escada estreita
e íngreme, e atravessado parte do porão, chegaram junto dum banco onde um homem estava amarrado. Claudette reconheceu imediatamente Sam Trill, apesar, de o preso
em nada se parecer com o pretenso patrão do "Sea-New". O rosto, macilento, estava enquadrado
por uma barba de muitos dias. Descalço e apenas vestido com uma camisola e umas calças imundas, o prisioneiro baixou os olhos ofuscado pela luz da lanterna.
- Vão todos para o diabo! murmurou ao reconhecer os visitantes.
E, voltando deliberadamente as costas, mergulhou num silêncio ostensivo. Mas Catamount aproximou-se ainda mais e, inclinando-se, declarou ?.
- Agora já estás quase bom e podes perfeitamente falar. E antes de chegarmos a Galveston, temos de ajustar umas contas.
Estas palavras devem ter surpreendido Sam Trill, que se voltou perguntando ao vaqueiro: -Vamos voltar para Galveston?
- Não percebo qual é a admiração, ripostou Catamount, cuja calma contrastava com a perturbação do seu interlocutor.
Não foi nesse porto que tu me raptaste com tanta habilidade? volta-se sempre ao ponto da partida e foi uma sorte a "Maryland" ter como porto de abrigo exactamente
Galveston!
Claudette e Alvarez nada diziam e conservavam-se um pouco afastados. Mas apesar disso, compreenderam que o bandido estava deveras preocupado. Subitamente, a voz
de Catamount fez-se de novo ouvir, sarcástica:
- Deves ter muitas recordações ligadas a Galveston . E além disso encontras-te no Texas, um Estado que tu conheces desde pequenino. É, ou não é, verdade?
Sam Trill fez mais uma vez menção de afastar o seu implacável interlocutor, mas este insistiu:
- O Texas estava a tornar-se uma zona muito perigosa para um homem que já trazia alguns pecados na
consciência! Não te lembras de ter ouvido falar de um certo assalto ao Banco de Rednater, já lá vão uns anos ? Por mim recordo-me dum certo rapaz que comandava um
bando de rustlers, que salteava os ranchos do vale de Brazos! Puxa bem pela cabeça, isto não te lembra mesmo nada?
O prisioneiro não respondeu, mas era visível a emoção que estas palavras lhe causavam.
- E o assassínio do ranchman Stcauss ? Continuas esquecido? Durante anos foi impossível apanhar o criminoso e, a certa altura, julgou-se que ele tinha sido finalmente
encontrado, mas afinal, o preso de então, não passava dum pobre louco. E, enquanto o inocente expiava na prisão um crime que não tinha cometido, o culpado continuava
à solta. Sob um nome suposto, conseguira iludir os Texas Rangers que lhe tinham sido lançados no encalço!
Sam Trill mostrou-se farto de ouvir todas essas verdades e declarou:
- Não sei até onde é que você quer chegar, Lern! Ignoro absolutamente.
- Ignoras onde está Steve Watson, não é? Pois é este o nome do culpado, desse miserável que a justiça procura. Mas eu sei, agora, que tu és o único que nos pode
dizer porque razão Steve Watson arranjou a identidade de Sam Trill!
- Isso é uma tremenda mentira! O prisioneiro queria negar energicamente, mas o olhar límpido do vaqueiro continuava cravado nele. Implacável, este insistiu, martelando
bem todas as palavras:
- Tens de as pagar, Steve Watson. A hora do ajuste de contas, soou finalmente!
Olhando à volta com ar de animal assustado, quis negar, protestar.
- com que direito me fala dessa maneira, Bill Lern? objectou desnorteado. Continuo a não o perceber!
- Mudarás de opinião quando te disser que não é esse o meu nome, mas sim Catamount!
- Catamount? Bem me queria parecer! Parecia que tinha sido fulminado por um raio. Já há muito que conhecia a reputação de Catamount, mas custava-lhe a acreditar
que fosse esse homem que o increpava.
- Isso não é verdade! protestou. Você não é o Catamount!
- Ainda duvidas? Assim que desembarcarmos, serás elucidado!
E o vaqueiro, voltando-se para Pablo Alvarez, continuou :
- Sabe, finalmente, por que razão não quis abandonar Sam Trill? É que tinha prometido ao meu chefe, o Coronel Morley, de o trazer vivo ou morto!
Claudette e o companheiro, souberam então quais as razões da sua presença a bordo do "Sea-New".
- Já há muito que nos encontramos, mas na altura em que Watson prosseguia na sua interminável série de crimes no Vale de Brazos, eu estava a tratar duns determinados
inquéritos. Foi a outros que competiu a delicada missão de o prender. Mas, infelizmente, Steve Watson era um bandido de categoria e conseguiu passar por entre as
malhas da rede que lhe haviam lançado, transpôs a fronteira e durante largo tempo, não se ouviu falar nele.
Catamount exprimia-se com calma e dirigia-se únicamente
aos dois jovens que pareciam ter ficado consideràvelmente impressionados com o começo da narrativa.
- Aconteceu que, há pouco tempo, recebemos em El Paso a visita de um velhote, outrora cowpuncher, que nos afirmou ter encontrado Watson em Galveston. Então o Coronel
Morley decidiu mandar-me para lá.
- E partiu logo para Galveston ? perguntou Claudette.
- Não hesitei nem um instante, continuou o vaqueiro, mas antes, tive de estudar todo o processo e saber porque razão Steve Watson tinha sido perseguido durante tanto
tempo pela polícia e pelos Texas Rangers! Observei os retratos do criminoso e verifiquei se o velhote se tinha enganado!
E, depois de parar para acender um cigarro, continuou a narrativa:
- Durante dias e dias, acreditei que me tinha deslocado em vão. Desiludido, pensava voltar para El Paso, quando vi no porto, um homem cujo físico e feições se assemelhavam
bastante aos de Steve Watson. Tirei informações a seu respeito e soube que se tratava dum tal Sam Trill, que exercia o lugar de imediato a bordo do três-mastros
"Sea-New"!
Tive de entrar logo em acção, pois o "Sea-New" ia zarpar para Havana. Pensei vir a bordo, a fim de obter algumas informações indispensáveis da parte do comandante
Hyatt, mas soube que o infeliz estava absolutamente incapaz de me auxiliar na minha tarefa.
Mas, apesar disso, conseguiu que o contratassem? observou a rapariga.
- Que ideia, miss Hyatt! Se eu me tivesse apresentado a bordo, tinham-me mandado logo embora.
Acha que tenho aspecto de lobo do mar? Felizmente, a providência faz tudo pelo melhor. Na altura do aprestar, Sam Trill precisou de mais um homem. E o patife estava
com uma certa pressa! No "Octopus, encontrou-se diante de um homem do Oeste que parecia apreciar demasiado o whisky, e que tinha um aspecto sólido e vigoroso. E
então, Sam Trill e os comparsas decidiram raptá-lo no último momento. Eis a razão porque me sujeitei tão mansamente a todo este jogo. E, depois de me terem desancado,
atiraram-me para o porão. E aquele que eu procurava, não desconfiou nem por um instante sequer, que era ele próprio que introduzia o adversário no local adequado!
E, ao ver que os seus interlocutores nada diziam, de espantados que estavam, continuou com voz calma, como se achasse tudo isso natural:
- Não preciso dizer-lhe o que se passou em seguida, miss Hyatt! com certeza que se lembra das circunstâncias em que nos conhecemos! O tagarela do Luiggi não hesitou
em fazer-me seu confidente e facilmente soube como Sam Trill manobrara de modo a substituir o comandante. O antigo rustler, era agora contrabandista de armas. Confesso
que o negócio estava bem montado, e se um tal Bill Lern não tivesse entrado no "Sea-New", os acontecimentos teriam tido outro desfecho !
- Admiro sinceramente a sua audácia e sagacidade, não pôde deixar de observar Pablo Alvarez.
- E sabe agora porque me preocupei tanto em repescar o pretenso Sam Trill. Tinha urgência em cumprir a missão que o meu chefe me confiara e pressa também em me vingar
desse reles bandido, provando-lhe
que um homem do Oeste ainda serve para alguma coisa!
E concluiu:
- Já pus o comandante Larkey ao corrente. Dentro em pouco, Steve Watson será conduzido, algemado a El Paso, onde deverá responder pelos seus numerosos delitos.
Poucos minutos depois, o trio estava novamente no
convés.
- Ainda não me esqueci da promessa que fiz a seu pai, miss Hyatt! Catamount, ao cumprir a palavra de Bill Lern, será para si um protector dedicado.
Mas Pablo Alvarez não o deixou acabar a frase:
- A Senorita não ficará abandonada! assegurou energicamente. Quando a libertação do nosso país for um facto e se ela o consentir, alguém a irá buscar.
A rapariga parecia admirada, mas a perturbação do seu interlocutor não dava margem a dúvidas. A sua expressão e a sua atitude, eram tão explícitas como as
palavras.
- Esse alguém será Pablo Alvarez, se assim o quiser, Senorita. Um homem que queria tê-la por companheira para toda a vida!
E, ao ver que Claudete parecia ainda hesitante o fazendeiro arriscou, visivelmente ansioso:
- Aceita, Senorita?
- com todo o coração!
Desta vez, a resposta não se fez esperar e, quando se encostaram os três à amurada, os seus rostos estavam serenos, devido à alegria e à satisfação do dever cumprido.
Pouco depois, as costas do Texas apareceram no
horizonte e Catamount dificilmente dominou a emoção que sentiu. Tivera uma vida bastante aventurosa desde que tinha embarcado no "Sea-New", mas já começava a estar
cansado de navegar. Cavaleiro intrépido, não tinha queda para o mar e estava desejoso de encontrar o seu fiel Mesquita, para poder retomar as intermináveis cavalgadas!
E olhava insistentemente para a costa baixa e arenosa do Texas. Mais um pouco, e Galveston surgiria por sua vez! Estava prestes a terminar uma nova aventura e, como
de costume, trazia o seu homem!
E enquanto a "Maytland" continuava a vogar com todas as velas desfraldadas, Claudette e Pablo acalentavam projectos para o futuro e trocavam palavras de amor!
Mergulhados nos seus sonhos, esqueceram-se das emoções porque passaram. Dentro de alguns meses, a Providência encarregar-se-ia de cicatrizar todas as feridas! O
fazendeiro iria ainda reunir-se aos companheiros e à pátria bem amada. E quando Cuba fosse independente, a filha do Comandante Hyatt lá encontraria o esquecimento
para as tristezas passadas.
Mais tarde, na ilha cheia de sol, o jovem casal pensaria muitas vezes naquele que foi o companheiro das horas de perigo e aventuras, esse inesquecível Catamount, o intrépido vaqueiro texano!

 

 

                                                                                                    Albert Bonneau

 

 

 

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