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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RAPTO / Georgina Devon
O RAPTO / Georgina Devon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

Ao regressar de um baile, a carruagem de Lilith é assaltada por um bandoleiro. Na verdade, trata-se de Lorde Perth, o noivo que ela abandonou no altar há 10 anos. Na época, ele não possuía fortuna e a família dela encontrava-se à beira da ruína. Para salvá-los da miséria, Lilith abriu mão do grande amor da sua vida e desposou o abominável Lorde de Lisle. Agora, ela é viúva e Perth, movido pela vingança, a seqüestra com o objetivo de seduzi-la.

 

 

 

 

                                           Capítulo Um

— Levante e renda-se!

Lillith, Lady de Lisle, reconheceu a voz imediatamente.

Jason Beaumair, Conde de Perth.

Ela não precisou olhar através da janela da carruagem para visualizá-lo. Taciturno, com frisas prateadas nas têmporas e cabelo da cor do ébano, ele assombrava os seus sonhos. Uma cicatriz, adquirida em um duelo pela esposa de outro homem, recobria a face esquerda. Ela foi — ou era — tal esposa.

Um calafrio de premonição deslizou espinha abaixo.

O que pretendia ele, ao deter a sua carruagem aqui em Hounslow Heath? Decerto não precisava das jóias dela. Era tão abastado quanto um sultão. Que jogo arriscado jogava o conde?

— Ei, cocheiro — ordenou a imperiosa voz de barítono de Perth —, desça com as mãos ao alto e vazias. E você… isto mesmo, você — acrescentou enfático para o único pajem —, largue a pistola ou o cocheiro pagará por seus atos.

Lillith entreabriu a cortina de veludo a tempo de ver o pajem largar a pistola. Perth assentava-se tranqüilo sobre um cavalo magnífico, um revólver em cada mão apontado para o cocheiro. Só mesmo o conde para reconhecer bons cavalos e não se importar com quem mais soubesse que o animal que montava era demasiado elegante para um salteador.

Ao menos, o sujeito usava uma máscara para cobrir o rosto. Acaso a sociedade ouvisse rumores da sua mais recente peripécia envolvendo-a, todos os escândalos de outrora seriam reavivados. Ela não tinha certeza se a própria reputação lograria resistir a outro assalto do conde. A única coisa que preservou seu bom nome da última vez foi a posição social do marido. Ninguém ofendeu De Lisle deliberadamente: o homem conhecia gente demais na corte.

Entretanto, como viúva, ela não mais contava com a proteção do marido falecido. E Deus sabe que, se o irmão dela tentasse preservar seu bom nome, ambos seriam escorraçados de Londres sob gargalhadas.

— Você, dentro do veículo — ordenou a voz lânguida de Perth —, saia e fique onde eu possa ver melhor o resultado da minha ação.

Ele permanecia arrogante como sempre. Era seu maior defeito e seu maior charme. Ela frustrou-o apenas uma única vez na vida e passou um longo tempo arrependida.

Com um suspiro e um sorriso sutil curvando-lhe os lábios, ela apertou a capa para proteger-se da friagem noturna e desceu. O verão há muito se fora. Uma brisa gélida fustigou os cabelos louros platinados, desfazendo os cachos intrincados nos quais a ama passou tantas horas caprichando. Os pés calçados em babuchas afundaram na grama úmida. O couro fino ficaria manchado. Não importava. Um par de babuchas arruinadas não significava nada. Uma grande fortuna foi o único benefício que ela recebeu por desposar De Lisle.

Ela fez uma mesura brejeira, sem jamais desviar o olhar da fisionomia arrogante de Perth. Ele lançou-lhe um sorriso sinistro, os majestosos dentes brancos reluzentes sob a luz pálida da lua cheia. Houve uma época em que aquela expressão no rosto dele a assustava. Agora a excitava. Ela era uma criança na primeira vez em que o enfrentou, ignorante e facilmente manipulada pela família. Era uma mulher agora, pronta para ele.

Os olhos dele cintilaram.

— Venha cá.

Ela retribuiu o olhar sem titubear.

— Acho melhor não.

Usando os joelhos, ele incitou a montaria a avançar, estacando apenas ao chegar perto o suficiente para que ela conseguisse sentir o odor almiscarado do animal.

— Venha cá — repetiu ele, um toque de afeto enfatizando as palavras.

Ela balançou a cabeça.

— Estou a caminho de casa e sem nenhuma disposição para frivolidades.

Os olhos dele aguçaram.

— Não se trata de nenhum assunto frívolo, madame. E falo sério.

Sem uma palavra, ele deu um tiro nos pés do cocheiro que saltou do assento e postou-se diante dos dois cavalos que puxavam a carruagem. O velho servo pulou para trás quando a lama se espalhou pelas botas.

A indignação fez Lillith dar um passo à frente.

— Você foi longe demais.

— Não longe o bastante — declarou Perth. — Venha cá ou a próxima bala penetrará a carne dele.

Lillith encarou aquele olhar implacável com outro.

— Você é um canalha, senhor, sem quaisquer escrúpulos.

Ele curvou-se numa breve cortesia.

— Você sempre foi observadora, assim como ambiciosa.

A frieza no tom dele fê-la recuar.

— Acabe logo com isso e siga o seu caminho. Estou farta dessa pantomima inconveniente.

— Isto não é uma pantomima, Lady de Lisle. Pretendo tomá-la como prisioneira.

Ela engasgou.

— Nunca. Vá embora.

O sorriso até então sinistro tornou-se vil, e Lillith recuou sem intenção de fazê-lo.

— De que jogo arriscado você está brincando agora? — indagou ela, a voz quase um sussurro.

Ele não retrucou.

Sob a proteção da capa, ela procurou a pequena pistola com cabo de madrepérola que sempre mantinha a postos na bolsa. Acaso ele pretendesse ameaçá-la com ruína, e Deus sabe o que mais, então protegeria a si mesma. Antes que lograsse pensar racionalmente acerca do que almejava fazer, ela sacou a pequena pistola e atirou.

E errou.

Furiosa ante a própria falha, arremessou a pistola nele. Perth simplesmente esquivou-se para o lado e deixou que ela passasse ao largo. Um sorriso de ansiedade suavizou a austeridade do queixo, mas de nada adiantou para atenuar a expressão de perigo nos olhos.

— Devo transformar em meta pessoal ensinar você a atirar — ironizou, com aquele sorriso irritante ainda no rosto.

Ela emburrou.

— Você não ficará perto de mim tempo suficiente para tanto, milorde.

O pajem aproveitou a altercação para investir contra o conde, só para que o bem treinado cavalo de Perth se esquivasse. A reação do animal dirigiu a atenção de Perth de volta para os servos.

— Chega de rodeios. Ordene que o lacaio recue, madame, ou serei forçado a feri-lo — falou Perth entre os dentes trincados, o sorriso apagado como se jamais houvesse surgido. Seu olhar não abandonou o rosto dela.

Um fluxo de irritação assomou as faces de Lillith.

— Saia da frente, Jim,

Quando o servo estava distante o suficiente para convir-lhe, Perth afirmou:

— Esta é a última vez que lhe digo para vir aqui. Da próxima vez eu vou até você. — A voz ameigou, embora sem perder o tom de ameaça. — E garanto que você não gostará nada se me obrigar a buscá-la.

A arma diminuta encontrava-se perdida em algum lugar em meio à grama atrás de Perth. Os servos estavam ambos desarmados. Todavia, ela não temia Perth. Ele era um homem desabrido com um gênio irascível, mas nunca a injuriaria fisicamente.

— Não. — Ela empinou o queixo e endireitou os ombros. — Se insistir nessa brincadeira, então deverá me buscar. Porque eu não vou até você, não desta maneira.

— Você sempre foi teimosa — murmurou ele.

Sem aviso, ele instigou o cavalo a avançar. Lillith debateu-se na grama úmida, o pé escorregando ao tentar desvencilhar-se. Ele avançou sobre ela. O braço direito tomou-a pela cintura de modo que a pistola que ele segurava espetou-a com força no flanco. Ela tomou fôlego para gritar com Perth só para aterrissar com um golpe imobilizante, de barriga no chão, na frente dele. Lillith estatelou-se igual a um saco de farinha sobre o lombo do cavalo, todo o ar drenado dos pulmões. Em meio ao troar do sangue nos ouvidos, ela escutou os servos berrarem e se aproximarem.

— Eu não faria isso no lugar de vocês — afirmou Perth segundos antes de dar um tiro de pistola.

O som reverberou através do corpo dela. Se ele realmente atirou em um de seus homens, ela cuidaria para que o conde pagasse.

Tentou debater-se, determinada a escapar mesmo se isso significasse cair de cara na lama. Uma das mãos grandes, másculas, plantou-se com firmeza no seu dorso, mantendo-a presa no lugar eficazmente. O calor alastrou-se pelos quadris até engolfar seu corpo inteiro. Parecia que estava despida e ele sem luvas, pois sentiu como se a carne nua de Perth tocasse a dela.

Lillith mordeu o lábio inferior. Perth sempre exercia tal efeito sobre ela. Mesmo após desposar De Lisle, ela reagia como uma devassa a um mero olhar de Perth. Essa era a sua vergonha.

De Lisle a chamava de fria. Graças a Deus ele não sabia a verdade.

Como se consciente dos receios dela para com o servo, Perth disse:

— Não se preocupe, madame, não feri ninguém. Algo que não se pode dizer de você.

O cavalo disparou avante, dispersando os pensamentos dela como nuvens ante uma ventania de inverno. Os ossos do pescoço do animal fincaram-se no seu abdome e fizeram-na sentir vontade de vomitar. Essa era uma situação abominável.

— Solte-me — replicou, tentando gritar e escutando a própria voz soar como um chiado.

— Na hora certa — retrucou Perth, o sarcasmo imbricado nas palavras.

Ao inferno com o sujeito! Ele estava se divertindo com isso.

O cabelo dela, agora completamente livre do coque que a aia levou tanto tempo para arrumar, pendia em mechas espessas em torno das faces, uma almofada providencial contra a rígida elegância das botas dele. A brisa fez com que o arrojo do cavalo levantasse a saia dela e a congelasse até os ossos.

Determinada a dificultar o rapto, ela enroscou ambas as mãos ao redor do tornozelo de Perth e puxou. Ele cambaleou para o lado.

— Cuidado, madame — ele vociferou. — Irá derrubar a nós dois. Tombar de um cavalo galopante não seria nada salutar.

A despeito da verdade no comentário, ela sorriu — momentaneamente. A mão poderosa espancou-lhe o traseiro. Ela ficou mais chocada que ferida. A capa e o vestido amorteceram qualquer contusão, e tornaram aquilo mais humilhante que doloroso.

— Como ousa, milorde? — disse ela, conservando o domínio no tornozelo dele embora não mais puxasse. Começava a ficar tonta por estar de cabeça para baixo.

— Ousaria muito mais — replicou, a voz um rosnado gutural de ameaça.

Ela sentiu como se o estômago houvesse aflorado à garganta. Decerto, logo ambos estariam longe o bastante da carruagem e dos servos para que ele parasse de maneira que ela pudesse trocar de posição. Ou, melhor ainda, fugir.

Chegaram a uma parada abrupta, que a sacudiu com violência contra a sela. Soltou a perna dele e apoiou-se no flanco do cavalo na tentativa de pular de pé. Perth a deteve saltando para o chão à sua frente e encurralando-a. Lillith aterrissou com as costas moldadas contra o peito de Perth, cujo braço estava enlaçado ao redor das costelas justo abaixo dos seios.

A respiração dela sufocou num engasgo. A proximidade dele era tão inebriante quanto o mais fino champanhe francês, bebida que ela apreciava escassamente por esta razão. O aroma de almíscar e canela que se desprendia dele era um afrodisíaco, uma forte lembrança de anos passados.

A mortificação ante a própria fraqueza deixou-a furiosa. Debateu-se, tentando romper a dominação dele. Em vez de libertá-la, ele aproveitou a oportunidade para tomá-la nos braços. O busto comprimiu-se com força contra o seu peito. A virilha mesclou-se à dele. A sua face encontrou a dele. Meros centímetros de ar frio separavam os lábios de ambos.

Ela estremeceu e virou a cabeça para o lado.

— Solte-me — sussurrou. Aos próprios ouvidos, ela soou ofegante e vulnerável. — Agora — afirmou com mais vigor, já que ele não a obedeceu imediatamente.

Uma risada profunda brotou no peito dele, a vibração atingindo-a através do tecido que os separava. O som escapou-lhe como um murmúrio discreto que deveria ser bem-humorado, mas não foi.

— Você fugiu de mim durante os últimos dez anos. Não fugirá mais — até que eu a esqueça.

A friagem da noite de fim de verão enregelou.

— Você não aprendeu que a vingança é um prato que se serve frio? O seu está quente. Esqueça o passado e me solte.

Mesmo ao proferir tais palavras, ela torcia contra as probabilidades que elas não se aplicassem a ele. Outrora Perth a amara o suficiente para desafiar a família dela para possuí-la. Ela queria que ele ainda a amasse.

— Você sempre foi tão inteligente quanto bonita.

— Então trata-se de vingança — ela falou baixinho, agarrando-se com firmeza ao tom ríspido da raiva.

Ele aquiesceu.

Vingança. Algo dentro dela ruiu e feneceu. Esperança, talvez. De Lisle retornara ao Criador há apenas um ano atrás. Desde então, ela esperava de todo o coração que Perth ainda a quisesse. E queria. Contudo não a amava. Ao raptá-la, ele demonstrou que pretendia arruiná-la.

Precisava escapar dele. Antes que lograsse pensar melhor a respeito, ela pisou no pé dele. A babucha de couro macio mal fez um arranhão na bota, porém ela o tomou de surpresa. A garra relaxou, e ela esquivou-se dos seus braços e empreendeu uma corrida para a estrada ao lado da qual ambos apearam.

Ele segurou-a pela capa e arrastou-a de volta, porém ela desvencilhou-se da peça pelos ombros e prosseguiu adiante. Os pés escorregavam na lama, e ela ofegava embora lograsse continuar correndo.

Segundos depois, ele a tinha.

Virou-a para si e esmagou-a contra o próprio corpo. Um braço enlaçou-a pela cintura, o outro lhe amparou a nuca.

Ele fitou-a, a luz pálida da lua crescente refulgindo nos cabelos raiados de prata. As feições eram sombras e saliências. Ela não conseguia discernir a expressão no rosto dele, mas havia certa tensão no corpo que revelou mais do que palavras o fariam.

Lillith encheu os pulmões de ar. As palmas das mãos pressionavam-no.

— Não faça isso — engasgou segundos antes da boca de Perth apoderar-se da sua.

Os lábios dele foram firmes e determinados contra os seus. A fome e o desejo pulsavam dentro dela. Calafrios perseguidos por labaredas perseguidas por mais calafrios dardejaram através do seu corpo. Acaso ele a soltasse, ela desabaria no chão.

Quando Lillith sentiu como se não lhe restasse mais ar no mundo para respirar, ele a libertou. Ela precipitou-se de encontro a ele.

A mão que amparava a sua nuca deslizou para a coluna do pescoço. Os dedos deslizaram ao longo da carne abrasada e enredaram-se nos cabelos longos. Ele a segurava com força.

— Eu pretendia fazer isso a qualquer hora nesses últimos dez anos — disse ele, a voz rascante.

A garra nos cabelos agrilhoou-a tão infalivelmente a ele quanto o amor que ela sempre sentiu. Lillith postou-se ereta, fazendo com que os dedos de Perth estreitassem mais o domínio, e especulou o que acontecera à sua coragem e determinação para evitá-lo. Foi um esforço concentrar a mente no que deveria dizer. Umedeceu os lábios que pareciam queimados. Os dedos divagaram até a carne túrgida sem vontade consciente.

— Dez anos é um longo tempo — ela enfim proferiu.

— Posso ser um homem paciente quando necessário.

A exaustão veio logo em seguida a tais palavras. Todas as esperanças e desejos dela combinaram-se para acaçapar as emoções. Os ombros afundaram antes que ela percebesse. Se ao menos o rapto não houvesse acontecido, bem como desejar o amor de Perth.

Ligeira, desafiadora, ela empertigou-se o máximo possível. Era alta para uma mulher, os olhos nivelados com o queixo dele.

— Considera isso a atitude de um homem paciente?

O sorriso, aquele devastador desfiladeiro de dentes, zombava dela.

— Considero que esperar dez anos é uma demonstração de paciência.

Pendeu para ela e levou uma das mechas de cabelo à própria face.

— Lilás — murmurou. — Lembro da primeira vez que a vi, você cheirava à doçura do lilás. Todas as outras usavam água de rosas ou lavanda, mas você não.

Ele deixou que a melena escorregasse por entre os dedos. O cabelo deslizou pelo ombro dela para ondular sobre o seio onde a musselina fina do vestido de baile desnudava a carne. O olhar acompanhou e aguçou. Desejo, ardente e ávido, flamejava nos traços do rosto. Ela notou sua reação e o próprio corpo a traiu. Sempre foi assim com ela.

— Eu renunciaria aos votos do matrimônio por você — sussurrou ela, as palavras ecoando de um recôndito do coração que julgara trancafiado a sete chaves. Elas anunciaram em voz alta o sonho que acalentara durante os primeiros meses do casamento com um homem que não se importava nada com o seu prazer no leito nupcial. Lillith os considerava há muito esquecidos.

O ardor feneceu no semblante dele. Os olhos tornaram-se gélidos estilhaços de ébano.

— Não desperdiço o meu tempo com mulheres casadas. Sequer divido o que é meu.

A vergonha ante as próprias palavras e fraqueza encorajou-a.

— Foi por isso que lutou um duelo com meu marido, um homem muito mais velho que você?

A mão dele, que ainda dominava-a pela nuca, apertou-a com mais força.

— Você era minha e eu pretendia tê-la da única maneira possível. — Agora ele deu de ombros tal qual afugentasse uma lembrança desagradável. — Mas De Lisle era melhor com a espada do que eu. Ele manteve você.

A garra afrouxou e a tentação de debater-se foi imensa. Ela resistiu. Ele era um homem forte, e acaso planejasse deixá-la ir a soltaria totalmente.

Lillith suspirou.

— Então, o que pretende fazer agora?

As nuvens correram por sobre a lua, lançando o rosto dele nas trevas. Lillith não podia vê-lo com clareza suficiente para interpretar suas emoções. Ela estremeceu.

— Pretendo compensar os anos perdidos. Meu refúgio no campo fica a uma longa jornada daqui. É para lá que vamos.

— Não. — A recusa foi automática.

O sorriso cruel dele retornou, e Perth encurralou-a com tamanha proximidade que ela conseguiu discernir os pêlos escuros da barba por fazer que obscurecia o maxilar dele.

— O que aconteceu com a paixão, a sua disposição de renegar os votos matrimoniais?

Ela explodiu de raiva.

— Uma coisa é dar tudo ao homem que nos ama, e outra é ter um homem que usa as suas paixões juvenis contra você e as transforma em vingança.

Os lábios de Perth franziram numa linha austera.

— Você é uma tola.

Ela não viu nem amor ou sequer carinho nos olhos dele. Ele a observava com uma determinação fria, e isso fez com que ela sentisse as mãos dormentes de pânico.

Vingança, vingança e vingança. Nada mais. Ele a arruinaria por vingança e, ao mesmo tempo, arruinaria a si mesmo. Ela não permitiria que fizesse tal coisa.

A resolução de resistir a ele aferrou-se, e ela pôs-se a lutar com afinco. Chutou-lhe a canela e, imediatamente, arrependeu-se quando a dor dardejou perna acima. Lançou os braços para o alto e contra ele. Perth soltou-lhe a cintura a tempo de capturar-lhe um dos pulsos em cada mão. Ele a segurava sem esforço, conforme ela arfava de cansaço e frustração.

— Eu não irei com você — disse ela entre os dentes trincados. — Não pode fazer isso comigo. Você me arruinará. A nós dois. — A amargura inundou-a. — Como você quase fez dez anos atrás.

Os olhos cintilaram com a luz que restava no céu noturno.

— E não contará com nenhum De Lisle para salvá-la dessa vez. E eu apostaria nas corridas de cavalo no Brook’s que seu irmão não o fará.

Ela mordeu o lábio e desviou o olhar, virando-se o máximo possível para o lado de acordo com o que a pressão contínua nos seus pulsos permitiria. Ele só falou a verdade, por mais que magoasse. Esta era uma noite para verdades há muito enterradas, e sofrimento há muito relembrado. Ela desejava infligir algum por sua vez.

— Você continua tão cruel e egoísta como sempre. Se fosse um homem diferente, minha família talvez me deixasse desposá-lo.

Ela escutou a inspiração aguda, e a satisfação pela qual ansiava escapou-lhe. Não importava o que existia entre eles, ela nunca o odiou. Longe disso.

— Se eu fosse um homem rico, em vez de um primo distante que ninguém esperava que recebesse herança, as coisas teriam sido diferentes. A sua família a vendeu pelo lance mais alto a um sujeito enrugado feito uma ameixa que não sabia o que fazer com você como com a primeira esposa quando ele possuía um rosto juvenil.

Ainda mais verdades. Ele estava determinado a despojá-la da altivez conquistada a duras penas na qual ela encontrara refúgio. Entre eles, Perth desnudou no ar frio da noite todo o passado, mesmo que ao fazê-lo ele atirasse fora qualquer futuro possível que talvez pudessem ter.

As lágrimas arderam nos olhos dela, e ela não conseguiu fazer nada para deter ou enxugá-las. Os dedos não eram seus para comandar.

— Solte-me — disse ela, tentando desesperadamente não engasgar e alertá-lo da sua comoção. — Prometo não correr ou dar-lhe mais trabalho.

A garra afrouxou, mas ele não a libertou.

Ela ouviu um estrondo à distância. Soou como se uma carruagem rumasse na direção de ambos, contudo não havia nenhuma luz semelhante àquela que irradiaria de lampiões externos. Ralhou consigo mesma. Se fosse o coche de Perth, não haveria luzes para que os outros avistassem. Os servos dela estariam à sua procura.

A carruagem surgiu à vista, uma sombra mais escura na estrada. Perth soltou-lhe uma das mãos e entrou na frente do veículo que se aproximava. Os olhos aguçados do cocheiro avistaram o conde, e a carruagem parou. Sem esperar que alguém os abordasse, Perth empurrou-a para frente, escancarou a porta ele mesmo e jogou-a lá dentro.

Ela aterrissou com uma pancada e o farfalhar das saias que se emaranharam nas pernas. A capa que perdera durante a luta com Perth rapidamente seguiu-a. Lillith tentou recobrar o equilíbrio para levantar-se, só para cair de costas de novo quando a carruagem disparou aos solavancos. Pouco antes que o veículo começasse a mover-se a porta abriu-se outra vez, e Perth saltou graciosamente para dentro.

Lillith conseguiu ajeitar-se no assento oposto ao que Perth se acomodara. O couro delicado encontrou as pontas dos dedos dela. Outrora, Perth foi um capitão dos hussardos, vivendo apenas do soldo do exército. Agora era rico o bastante para esbanjar dinheiro em qualquer brinquedo que cativasse seus caprichos. Os dedos alisaram o couro macio como manteiga. Acaso fosse rico assim dez anos atrás, não estariam sentados aqui agora, como adversários, um pretendendo magoar o outro.

Ela suspirou.

Nenhuma lamparina estava acesa, portanto o interior permanecia demasiado escuro para que ela enxergasse o semblante de Perth. Todavia, sentiu a energia que ele irradiava — uma energia que a excitava tanto quanto assustava. Ele comandaria a sua atenção e o seu amor, e depois a abandonaria sem sequer olhar para trás.

Um calafrio deslizou pela nuca. Sem tirar a atenção dele, ela pendeu para frente e tateou onde lograva alcançar no chão à procura da capa. Encontrou-a e envolveu-a em torno dos ombros, como alguém decerto se protegeria de um ataque.

— Venha cá — disse ele, a voz suave e perigosa.

 

                                       Capítulo Dois

Lillith permaneceu paralisada no assento.

A ordem ecoou na sua mente: Venha cá. Ela agarrou a capa com maior firmeza até a musselina delicada acariciar-lhe as faces e fazer cócegas no seu nariz. Mas não adiantou nada para mitigar o frio que inundou-lhe os ossos. Ela mordeu o lábio inferior.

— Creio que não — respondeu.

— Temos uma longa jornada pela frente, Lady de Lisle… Lillith. — A voz dele soou grave e densa como o mais doce mel quando pronunciou o nome dela. — Acredito que você virá até aqui mais cedo do que imagina.

— Você sempre foi arrogante e demasiado confiante de possuir tudo à sua maneira. Seus pecados de costume.

Ele deu uma risadinha gutural, um som desprovido de alegria.

— E quais são os seus, milady? Inconstância e infidelidade? Prefiro os meus.

Lillith encolheu-se como se ele a houvesse estapeado. De certo modo ele o fez.

— Faço o que for necessário quando preciso.

Ela investiu tais palavras de toda a convicção das suas escolhas do passado, recusando-se a permitir que ele fizesse com que ela desprezasse a si mesma pelo que necessitou fazer. A família dependia dela. E ela os salvou. Acaso a própria felicidade fenecesse em virtude da necessidade deles, então estava disposta a pagar o preço, um preço que pagaria hoje se preciso.

— Você faz o que lhe mandam — desdenhou ele.

A ira flamejou dentro dela, fazendo o peito esmurrar e o sangue subir.

— Você ultrapassou os limites da cortesia, milorde. O que fiz no passado e o que farei no futuro não é da sua alçada.

— Não é da minha alçada? — Perth inclinou-se para frente até que ela lograsse sentir seu hálito morno na face. Ele cheirava à canela e ao gélido ar noturno. — Quem você abandonou no altar? — Uma gargalhada desabrida irrompeu-lhe dos lábios. — Meu irmão gêmeo?

— Cumpri minha obrigação para com a minha família. Não me restava mais nada a fazer.

— Você foi vendida para salvar seu irmão do Rio Tick e do exílio para um continente onde Napoleão reinava absoluto — replicou, o desgosto e a abominação escorrendo de cada palavra. — Você não representou nada além de uma mercadoria vendida pelo lance mais alto. Infelizmente para mim, não ofereci o lance mais alto. Sequer fui considerado um concorrente.

Agora Inês é morta, e ela estava cansada de escutar coisas que não poderia mudar nem um pouco mais do que poderia mudar a posição das estrelas. Empertigou-se e deixou que a capa pendesse dos ombros.

— Já terminou de insultar a mim e à minha família, pois decerto estou farta de ouvi-lo?

Os olhos dele reluziram sob o pálido luar que conseguia bruxulear através da janela, todavia Perth nada falou. Ao contrário, apanhou a bengala que repousava no assento ao seu lado e bateu no teto da carruagem, indicando ao cocheiro que estacasse. As rodas mal pararam de girar antes que ele saísse pela porta.

A sensação de vitória de Lillith foi no máximo efêmera. Sem Perth, ela foi deixada com os próprios pensamentos, e eles não eram agradáveis. Coisas demais aconteceram e parecia que o pior ainda estava por vir.

O ritmo desacelerado do coche despertou Lillith. Ela piscou os olhos, tentando enxergar melhor. Não estava muito consciente ao acordar. O veículo parou completamente, e ela flagrou-se lançada para frente e amparada por um braço em torno da sua cintura. A lucidez retornou num átimo.

Perth. Raptada.

Vagamente, lembrou da carruagem parar uma vez antes, contudo caíra num sono exausto, os pensamentos e as lembranças emaranhados em pesadelos, mas sem acordar enquanto se revirava de um lado para o outro. Então, a calidez e a segurança envolveram-na, os sonhos serenaram, e ela caiu num sono mais profundo. Naquele instante atinou que Perth entrara e a tomara nos braços.

Agora ele a soltou antes que ela proferisse qualquer palavra ou sequer tentasse esquivar-se. Ela quase tombou do assento, mas conseguiu movimentar-se aos trancos e barrancos no veículo e sentar-se, encarando-o.

O interior permanecia mal iluminado pela luz natural. Ela supôs que deveriam ser as primeiras horas da manhã. Decerto, viajaram uma distância considerável desde o seqüestro.

— Pararemos aqui para trocar os cavalos e providenciar algo para comer. — A voz de Perth soou mais grave que de costume. Lillith especulou se ele acabara de acordar. — Fique aqui. Voltarei logo.

Antes que ela lograsse responder, ele se foi.

Qualquer fadiga remanescente desapareceu. Acaso pretendesse fugir, era melhor que ela tentasse agora. Erguendo a capa, esgueirou-se até a porta, a qual abriu e atravessou de um salto. Os degraus não estavam abaixados, e foi um longo trajeto até o chão. Ela aterrissou com uma pancada e torceu o tornozelo. A dor dardejou pela perna direita. Lillith cambaleou para trás até sentar-se na entrada da carruagem.

Respirou fundo e devagar, para tentar aliviar a dor. Qualquer idéia que tivesse de escapar dissipou-se como fumaça. Não podia correr e, pela aparência da estalagem, não havia para onde correr. Era uma taverna típica de vilarejo, e um vilarejo bem pequeno por falar nisso. Da sua perspectiva limitada, conseguiu distinguir vários chalés, um povoado modesto e nada mais. Ela não tinha noção de onde estavam.

Lillith tomava coragem para tentar ficar de pé quando Perth despontou à vista. Movia-se com uma espontaneidade graciosa que ela julgou intrigante. Os cabelos negros, um pouquinho mais compridos do que ditava a moda, jogados para trás da fronte saliente. A cicatriz que sulcava a face mostrava-se pronunciada na bruma escura de um rosto carente de ser barbeado. Os lábios cheios pareciam firmes, com um toque de sensualidade que fê-la recordar como era sentir o beijo dele — violento, devastador, excitante.

Ele a alcançou, as sobrancelhas negras franzidas de irritação.

— Avisei para ficar quieta.

Lillith deixou as lembranças de lado e levantou. Ignorou a pontada de dor que se alastrou pela perna desde o tornozelo,

— Eu faço o que quero. Você não é o meu guardião.

— Sou o guardião da sua reputação. E se alguém do nosso meio estivesse aqui e a reconhecesse?

Ela bufou de indignação.

— E daí? Não é um pouquinho tarde para se preocupar com o meu bom nome?

No calor da ira, ela deu um passo à frente, pretendendo encará-lo sem hesitação. Imediatamente, a perna direita vacilou e a inspiração súbita e cortante flagraram-na desprevenida. Os braços dele cingiram e ergueram-na antes que ela beirasse o solo.

— Que diabos você aprontou?

Ela virou a cabeça e lançou-lhe um olhar fulminante. Os olhos dele encontraram os seus. Lillith piscou, e piscou de novo. Perth estava próximo demais. Ela balançou a cabeça.

— Torci o tornozelo.

— Porque me desafiou. Acaso permanecesse na carruagem isso não aconteceria. — O rosto aproximou-se mais do dela. O hálito soprou uma das mechas de cabelo que despenharam sobre os olhos de Lillith.

Uma indignação renovada ante tamanha arrogância varreu para longe o charme dele.

— Que típico. É tudo minha culpa porque não fiz como você ordenou. — Lillith emitiu um grunhido nada feminino. — Se você se comportasse feito um cavalheiro e deixasse os degraus arriados e me ajudasse a sair, eu não precisaria pular e portanto me machucar.

Foi a vez dele de balançar a cabeça.

— Mulheres. Vocês não são racionais.

— E você não tem sentimentos — revidou ela.

A fúria assomou a fisionomia de Perth, porém ele não respondeu à provocação.

— Já que não há nenhum conhecido nosso por aqui, reservei um aposento onde poderá refrescar-se. Depois poderemos comer o desjejum antes de prosseguir viagem.

Ela assentiu, não confiante na própria voz o suficiente para argumentar.

— Vou levá-la para o seu aposento e cuidar desse tornozelo. A última coisa da qual precisamos agora é que o ferimento agrave e requeira a atenção de um médico.

Outra vez ela não respondeu. Os pensamentos eram uma confusão. Tampouco, a pressão do peito dele contra a lateral do seu busto, ou os braços tão intimamente enlaçados ao redor da cintura e das coxas dela, ajudaram a concentração. Bem poderiam estar nus ante a falta de obstáculo que o vestido e a capa e a sobrecasaca e a jaqueta dele ofereciam. Para a sua eterna vergonha, ela sempre reagia fisicamente à proximidade de Perth. Quando era jovem, os sentimentos por ele a assustavam. Agora, pura vergonha misturada ao ardor, e ela não sentia convicção de que vergonha bastava para evitar que sucumbisse a ele.

Foram recepcionados no estabelecimento por um estalajadeiro risonho, reverente. O homem era jovem e magro feito um chicote. Perth passou por ele com um meneio da cabeça. Ela sorriu.

O cheiro de ovos, presunto e pão fresco do forno assaltou as narinas de Lillith. Seu estômago roncou.

— Calma — disse Perth, um sorriso genuíno repuxando um dos cantos da boca pela primeira vez desde que a aventura começou.

Ele a carregou sem esforço pelo lance de escadas e ao longo do corredor, baixando a cabeça conforme diminuía a altura do teto. A hospedaria fora construída muito tempo atrás. O telhado de colmo e madeira revelavam uma origem elisabetana. Tal singeleza encantou-a.

Perth deteve-se em frente à porta e abriu-a com um chute do bico da bota. Inclinou-se tanto para frente que o queixo quase tocou-lhe o busto. Entretanto, a cabeça por pouco esquivou-se do batente. Todavia, os nervos dela ficaram à flor da pele. Ela tinha certeza de que o maxilar dele pousou momentaneamente na ondulação dos seios, deixando uma queimadura ardente e a carne túrgida para trás. Perth demonstrava não perceber nada.

Ele atravessou o quarto acanhado até a cama que quase ocupava todo o espaço e depositou-a com cuidado. Quando os braços dele afastaram-se, ela sentiu-se desolada e vulnerável de pronto. No mínimo, deveria sentir-se mais segura sem o corpo dele encostado ao seu. Mas não.

— Qual dos tornozelos? — Perth ajoelhou e empinou a cabeça para fitá-la.

O cabelo cascateava da fronte em ondas espessas. O ímpeto de alisar a massa encorpada com os dedos quase foi a ruína dela. Com um sobressalto, compreendeu no que estava pensando. Mas era tarde demais. Ele já percebera a sua reação.

O olhar dele tornou-se atento. Os olhos assumiram um anseio contido que irradiou choques que dardejaram através do seu corpo. As mãos dele insinuaram-se por debaixo da saia, e os dedos longos acariciaram a panturrilha esquerda.

Os olhos de Lillith arregalaram conforme um tímido ofego escapou-lhe.

— Tornozelo errado — conseguiu dizer apesar da opressão no peito.

Os dedos deslocaram-se para a outra perna, contudo não antes que ele massageasse vigorosamente o membro contundido. O olhar jamais deixou o rosto dela, um rosto que Lillith sabia denunciar cada emoção que sentia, cada tremor de desejo que o toque de Perth instigava.

Ela sentiu o calor assomar o pescoço e inundar as faces. No entanto, observou os dedos compridos, bem torneados, percorrerem o tornozelo machucado. Ele foi gentil conquanto firme, observando cada nuance. Ela se encolheu quando ele pressionou um ponto sensível.

A atenção de Perth transferiu-se para o pé dela.

— Seria melhor se você tirasse as meias — murmurou. — Bonito como está, creio que talvez existam hematomas além do inchaço.

Ela contemplou a sua cabeça inclinada e a protuberância orgulhosa do maxilar. Perth era um homem desejado por muitas mulheres. Olhou de volta para ela, uma das sobrancelhas negras ressabiadamente erguida. Lillith se sobressaltou, mais uma vez cativada pela admiração por ele.

— Saia do quarto, Perth, e farei o que pediu. — A voz soou rouca, e ela forçou os nervos alvoroçados a se acalmarem. — Mande uma criada para enfaixar o tornozelo. Você já fez o bastante.

— É mesmo?

Ele pôs-se de pé num único movimento, sutil e controlado com fibra. Os músculos das coxas engancharam e flexionaram, cativando a atenção dela como tudo sobre ele. Lillith virou a cabeça para o lado.

— Eu não penso assim — disse ele, a voz baixa e rascante. — Eu enfaixarei o seu tornozelo.

A cabeça de Lillith ricocheteou para trás.

— Não, não vai. Decerto a mulher do estalajadeiro é mais capacitada que você.

— Sou mais habilidoso do que pensa. Enfaixar o seu tornozelo não demorará mais que meros instantes. — Os olhos aguçaram até tornarem-se fendas quando ela abriu a boca para protestar. — Quanto menos contato tiver com os outros, menos provável será que alguém descubra o que realmente aconteceu com você. Eu apenas estou pensando na sua reputação.

— Verdade?

Perth deu um sorriso implacável que não alcançou-lhe os olhos.

— Sim.

— Honestamente, acredita que meus servos guardarão segredo do que aconteceu? Que ninguém descobrirá que fui raptada por um homem? — Balançou a cabeça, pensando o quanto ele a considerava ingênua.

— Creio que acaso se importem com a sua reputação, eles só confidenciarão o fato à sua família. Com discrição, ninguém mais precisa saber. — Um lampejo zombeteiro nos abismos negros dos olhos revelaram o que ele pensava da habilidade do irmão dela de permanecer em silêncio.

— Mathias pode ser muitas coisas, Perth, contudo sempre se preocupou com o meu bem-estar. — Isso pelo menos era verdade.

— À maneira dele. — Saiu sem qualquer outra palavra.

De imediato, Lillith sentiu-se abandonada, sozinha e vulnerável. Sacudiu a cabeça para dissipar tal idéia infantil. Melhor buscar um meio de escapar do que lamuriar-se pela partida de Perth. Ele não queria o seu bem.

Desceu da cama, cuidando para não colocar o pé machucado no chão. Numa perna só, ela pulou até a única janela. Daquela altura, conseguia avistar quilômetros das cercanias. Nada além de prados. Nada que parecesse familiar. Eles viajaram uma longa distância.

Com um suspiro, Lillith afundou numa cadeira próxima. As almofadas demasiado estufadas, recobertas de chintz, engoliram-na. Ela reclinou a cabeça e repousou-a na cadeira acolchoada, fechando os olhos. Mesmo se não estivesse machucada, encontraria dificuldades para fugir.

E desejava mesmo isso?

Ele a magoaria. Magoaria muito. Entretanto, uma parte dela ansiava incessantemente pelo que apenas ele poderia oferecer. Era assim desde que o vira pela primeira vez, dez anos antes. Temia que tal anseio por ele jamais cessasse.

O ruído da porta se abrindo fê-la pôr-se de pé. Perth entrou, sem casaca e com uma bandeja guarnecida nas mãos.

— Trouxe chá, rosbife e queijo.

Pousou a bandeja numa mesa próxima, depois desvencilhou-se da jaqueta azul-marinho e arregaçou as mangas da camisa fina de linho. De um dos bolsos da jaqueta ele sacou um alvíssimo rolo de tecido.

— Você interpreta bem o papel de criado — comentou ela, certo desespero nas palavras ao esforçar-se para manter a distância emocional.

A cicatriz na face dele contraiu.

— Que gentileza a sua lembrar-me que, sem a providência divina, eu poderia ser um.

— Essa não foi a minha intenção — replicou, magoada por Perth julgá-la capaz de tentar impingir a dor. — Eu apenas quis dizer que fez um bom trabalho.

Ele virou-se de maneira tal que os olhos se apossaram dos dela.

— Minhas desculpas, então. Seu irmão não hesitaria em fazer tal comparação e pretender todas as insinuações cruéis possíveis.

Lillith empertigou-se, esquecendo-se do tornozelo na sua ira.

— Meu irmão é um cavalheiro e não faria tal coisa. Você pode pensar o que quiser de mim, mas deixe meu irmão fora disso. Ele não tem nada a ver com o que existe entre nós.

Tais palavras saíram da sua boca num impulso, sucedidas por um ofego penetrante quando o tornozelo vacilou sob o peso do corpo. Ela afundou com um gemido de volta na cadeira. Lillith cerrou os olhos com força na vã tentativa de conter as lágrimas que brotaram nos olhos. Instantaneamente, ele postou-se a seu lado.

— Você sempre considerou seu irmão um exemplo de perfeição — retrucou Perth entre os dentes trincados, enquanto os dedos ergueram a saia o bastante para revelar a perna machucada. — Você não tirou as meias.

— Não, não tirei. — Ela obrigou-se a represar as lágrimas mesmo quando uma escapou para escorrer pela face.

Ele ergueu uma das mãos e colheu a gota solitária com o indicador. O toque atingiu-a até os dedos dos pés. O coração contorceu-se em nós quando ele sorveu a umidade da própria pele, os olhos sem abandonar os dela nenhum segundo.

A tensão misturada à raiva e à dor criou uma sensação inebriante de invulnerabilidade.

— Uma criada se sairia melhor que você, Perth.

— Tenho um bocado de prática enfaixando ferimentos e curando fraturas.

— Sem dúvida é verdade — retrucou com um esgar irônico nos lábios. — Contudo, pelo bem da moral, uma criada será mais apropriado.

— A moral não é uma das minhas preocupações — redargüiu ele, acariciando a parte interna da panturrilha dela. — Discrição, sim.

Um formigamento alastrou-se perna acima, compelindo-a a prender a respiração.

— Você planeja me seduzir? É o que tudo isso significa?

O lampejo ardente do desejo nos olhos sombrios dele revelaram tudo. Mas por quê?

— Não possuo o hábito de raptar mulheres — murmurou, sem jamais desviar o olhar dela. — Quando o faço, é porque tenho um propósito. Você o descobriu — arrematou com um sorriso implacável que contorceu a cicatriz branca na face. — Mas primeiro devemos nos assegurar de que você suportará o prazer quando chegar a hora.

— Prazer? — Lillith ergueu uma das sobrancelhas alvas, não tão surpresa ante a confidência quanto irritada pela presunção de que sucumbiria a ele.

A mão de Perth deslizou mais para cima, deflagrando centelhas ao longo da região interna da perna. Os olhos dele jamais deixaram os seus. Quando Lillith arfou de surpresa e… prazer… ante o toque, o sorriso de Perth exacerbou-se. Só então ela se sobressaltou face a total compreensão do que ele fez.

A mão de Lillith encontrou a face de Perth num sonoro tabefe que a surpreendeu. Foi inconsciente. A cabeça dele ricocheteou, a face com a cicatriz ficou vermelha.

— Eu… eu… — Ela gaguejou. — Você foi longe demais, Perth.

— Não fui longe o bastante. Ainda não. — A voz soou fria. A mão deslizou de volta para o tornozelo. — Retire a meia ou eu o farei.

A mudança de assunto roubou o fôlego de Lillith. Ele sempre foi imprevisível.

— Saia do quarto e eu tiro.

A contrariedade desfigurou a boca de Perth.

— Você já tentou essa saída antes.

Sem esperar resposta, ele deslizou ambas as mãos perna acima até o joelho. Os dedos ágeis seguraram a liga e arrancaram-na. A meia escorregou até o tornozelo e ele enrolou a delicada peça de seda que recobria o pé. Apesar da gentileza, o tornozelo estava inchado e a operação machucou. Lillith mordeu a parte de dentro da bochecha e prendeu a respiração para evitar chorar de dor.

Perth não gostou do que viu.

— Isso devia ser enfaixado imediatamente.

— Eu ficarei bem se me deixar sozinha e permitir que eu descanse.

— Você ficará bem depois que isso for enfaixado e descansar por vários dias no mínimo.

Ela abriu a boca para retorquir, mas ele começou a enrolar a faixa de linho ao redor do tornozelo e a agonia dissipou todos os pensamentos acerca do que ela pretendia dizer. Por longos minutos, ela se alternou entre prender a respiração e respirar com parcimônia. Nenhum nem outro ajudou. Fechou os olhos e tentou pensar em algo diferente, algo agradável. Tudo que conseguiu pensar foi nos olhos de Perth quando as mãos dele deslizaram perna acima, a paixão a envolvendo como um demônio. Ela desistiu.

Abriu os olhos e notou que os dele não mais expressavam emoção.

— Isso doeu. Desculpe-me — falou baixinho.

Ela assentiu, sem confiar em si mesma quanto a falar sem chorar.

Perth abriu um frasco e derramou um líquido espesso, então diluiu-o em um líquido marrom e estendeu-lhe a mistura.

— Beba. Vai ajudar.

— Láudano?

— Você deveria ter bebido antes, mas de certo modo não funcionaria daquele jeito — comentou ele com um esgar maroto dos lábios carnudos.

Ainda indisposta a falar muito, ela aceitou o copo e tomou a beberagem amarga de um único e demorado gole. Aquilo atingiu-lhe o estômago vazio como uma bomba.

Ela engasgou e tossiu.

— O que era isso? — indagou quando afinal tomou fôlego.

— Láudano — replicou ele, erguendo-se num movimento tão ligeiro e fluido, que as pernas poderosas aproximaram-se o bastante para que ela pudesse passar as mãos pelos flancos.

Lillith balançou a cabeça para tentar clarear as idéias.

— Sim, sei que tinha láudano. Mas o que mais?

— Uísque escocês — respondeu lacônico. — A combinação deverá resolver qualquer desconforto persistente. Temos um longo caminho a percorrer e não podemos nos dar ao luxo de permanecer aqui por mais tempo. — Lançou um olhar compungido para a bandeja de comida. — Encomendei um almoço e uma botelha de chá.

— Deverei desconfiar mais do que você me serve — ela conseguiu sussurrar, apesar da mistura ameaçar fazer a sua cabeça girar.

— Sim, deve — aquiesceu, avançando até a cama e arrancando a manta. Em algumas passadas ligeiras, estava ao lado dela de novo e jogou a coberta sobre os seus ombros.

— O que está fazendo? — perguntou Lillith, debatendo-se inutilmente contra a manta. — Tenho uma capa, obrigada.

— Sim, você tem e ela está a salvo na carruagem. O verão acabou embora o outono não esteja nos nossos calcanhares. Mais tarde, à noite, o ar se tornará frio e isso a manterá aquecida, pois pretendo viajar direto rumo ao nosso destino.

Ela tentou livrar-se daquela coisa, todavia as mãos dele a prenderam com segurança na altura da garganta ao inclinar-se tanto de modo que a face dele ficasse a centímetros da sua. Sem aviso, a boca de Perth esmagou a dela. Os lábios moviam-se contra os seus e a língua invadiu-a. A cabeça de Lillith pendeu para trás conforme ele intensificou o beijo. Os sentidos escaparam ao controle. A coluna arqueou, e para a sua vergonha, ela fincaria as mãos nos cabelos dele senão estivessem presas debaixo da manta.

Finalmente, quando julgou que o corpo e a mente não mais se encontravam sob o seu comando, ele encerrou o beijo. As pálpebras dela estavam pesadas como placas metálicas, o abdome era uma poça de lava. Entretanto, quando forçou-se a abrir os olhos, os dele encontraram os seus com fria indiferença. O mundo de Lillith fugiu ao controle enquanto ele cruelmente a seduziu.

A vergonha inundou-lhe as faces.

— Cuidado, Lady de Lisle. Você não quer dizer coisas das quais se arrependerá mais tarde.

— Não me arrependerei de nada mais tarde — começou. Exceto desse beijo e da minha reação. Deu as costas ao olhar perspicaz de Perth, e desejou força para resistir a ele.

Antes que conseguisse pensar em qualquer outra coisa para falar ou tentar uma vez mais livrar-se das pesadas dobras de pano, ele a tomou de volta nos braços. O cabelo, já solto, derramou-se por suas costas. Aborrecida pela própria covardia e, contudo, indisposta a contemplar o rosto de qualquer um que a visse nessa situação promíscua, ela pousou a face contra o ombro dele e deixou os longos cabelos cobrirem-lhe o rosto.

Não foi tão fácil bloquear as sensações que a proximidade de Perth desencadearam no corpo. Sentiu cada batimento do coração dele e cada gole de ar que ele sorvia.

Lillith tremia à medida que ele a carregou quarto afora e escada abaixo, a comida intocada e esquecida. Até a meia jazia abandonada no aposento.

Os calafrios começaram, fazendo-a estremecer. Calafrios que nenhuma intensidade de calor ou coberta alguma lograria abater. Ele a assustava, porém a sua reação a ele a assustava ainda mais.

 

                                                       Capítulo Três

O interior da carruagem era mais exíguo do que Lillith recordava. Perth sentou à sua frente, os joelhos encostados aos dela. Seus nervos tilintaram.

— Você está com fome? — indagou Perth, abrindo a cesta preparada pelo estalajadeiro.

Rosbife e pão fresco assaltaram as narinas de Lillith. Com atraso, lembrou-se da comida deixada intocada na hospedaria. O estômago roncou.

— Isso decerto ajudaria a atenuar os efeitos do seu elixir — comentou azeda, desejando que algo atenuasse o anseio que nutria por ele.

— A comida ajudará — concordou Perth. — Você precisará de outra dose daqui a umas duas horas se quiser manter a dor sob controle. Portanto, coma alguma coisa antes.

Ela fez uma careta. Por mais que detestasse a mistura, ele tinha razão. A dor que tanto afligira o tornozelo agora era um latejo moderado. Até cogitou fugir se a sensação estacionasse nesse nível.

— Garanto que se sentirá muito melhor, mas ainda não está em condições de ficar de pé.

Será que ele lera a sua mente? Ou a face se tornara transparente? Nunca foi hábil em esconder os sentimentos.

Mathias, o irmão mais velho, logo descobriu quando ela se apaixonou por Perth dez anos antes. Na época, Mathias aconselhou-a a jamais jogar cartas. Seu rosto denunciava cada pensamento e emoção que sentia. De Lisle, por outro lado, chamou-a de um peixe frio cuja face não revelava nada. Graças a Deus.

Lillith suspirou ao aceitar o prato de rosbife e pão com manteiga que Perth ofereceu. Estava faminta. Vários bocados depois, Perth estendeu-lhe uma pesada caneca de cerâmica com chá fumegante. Ela bebeu em goles generosos.

— Calma — resmungou ele. — Vai ficar enjoada.

— Eu estava morta de fome e sede. Você não é nada atencioso com os seus reféns,

Perth deu de ombros.

— Você só precisa pedir.

Lillith fez uma careta nada graciosa e quase entornou o que restava do chá.

— Sim, e você me mandaria esperar até que parássemos.

— Provavelmente — assentiu ele. Retirou um frasco dourado do compartimento lateral do coche e tomou um gole.

Lillith sentiu o odor indefectível da bebida âmbar que ele acrescentara ao láudano.

— Como pode beber essa coisa intragável? É como engolir fogo.

— Você já engoliu fogo? — indagou, uma expressão azeda no rosto.

— Claro que não. É só uma metáfora.

— Assim como tantas outras — retrucou ríspido. — Por acaso gosto de uísque. Desce queimando, mas sei o que estou bebendo. É honesto. Não há muitas coisas na vida que o sejam.

Lillith depositou o prato vazio e a caneca a seu lado.

— Se refere a algo que não o uísque?

— Refiro-me ao que quer que pense.

— Não aprecio charadas — retrucou ela com um muxoxo.

— Nem eu… não mais.

Ele guardou o frasco e voltou a atenção para a paisagem. Os campos jaziam estéreis. Ovelhas perambulavam por toda a parte. A estrada em si estava enlameada e transformar-se-ia num pântano se chovesse.

— Chegaremos logo ao nosso destino? — perguntou Lillith.

— Em breve.

Perth sequer olhou para ela. A frustração fê-la comichar para socá-lo e exigir que prestasse atenção nela.

— Por que está fazendo isso? Por que agora após todo esse tempo?

De novo, Perth não olhou para ela. Lillith pensou que ele não pretendia responder. Enganou-se.

— Agora você é uma viúva.

Longos minutos transcorreram. Lillith aguardou com toda a paciência que lhe restava para que ele continuasse. Começou a contorcer os dedos. Afortunadamente, as luvas que usava impediam que roesse as unhas, um péssimo hábito que adquirira logo após desposar De Lisle.

— Estou viúva há mais de um ano.

— O período de luto ideal — murmurou. De repente, virou-se e os olhos escuros apossaram-se dos dela. — Um ano mal seria tempo bastante para esquecer alguém que se amou profundamente.

Ela se sentiu acossada. Perth aparentava crer que ela devia entender o que ele de fato queria dizer só que ela não entendeu.

— Sobre o que está falando na verdade? — inquiriu ela.

O semblante dele tornou-se sombrio. Em vez de retrucar, apanhou a bengala e usou-a para cutucar o teto outra vez. Em minutos a carruagem parou. Ele escancarou a porta e saltou. Gesticulou para o pajem e logo estava montado no cavalo em que cavalgara quando a seqüestrou.

Ela quis esticar a cabeça para fora da janela e gritar com ele. Que tipo de entendimento poderiam alcançar se Perth não conversava com ela?

Nenhum. Absolutamente nenhum.

 

O tempo passava e Lillith se debatia sob o domínio da sua lentidão. Desacostumada a permanecer ociosa, mesmo por curtos períodos, a inatividade forçada provava-se uma tortura. Um livro, o bordado, até costurar seria bem-vindo. Qualquer coisa para ocupar a mente e impedi-la de cismar acerca de Perth e suas intenções, as quais decerto eram desonrosas.

O que era um latejo moderado no tornozelo agravou até beirar a dor original. O que não fez nada para melhorar a disposição dela. Tampouco ter que admitir para si mesma que o elixir de Perth funcionara e, provavelmente, funcionaria de novo.

Com um suspiro de derrota, apanhou a bengala com ponteira dourada que Perth largara no assento e bateu no teto. O conde, maldita seja a sua sabedoria, tinha razão quanto à necessidade dela se recuperar depressa.

A carruagem trepidou numa parada forçada. As rodas mal haviam estacado quando Perth escancarou a porta e franziu a testa.

— Você piorou?

A voz soou grave e, se ela não o conhecesse bem, diria que preocupada. Lillith amuou, sem querer confessar que desejava outra dose da poção. Nunca fora boa em admitir a derrota — não importava quem fosse o seu oponente.

— Sim.

— Precisa de outra dose?

— Pretende descer tão baixo a ponto de me fazer implorar?

— Simplesmente, desejo um esclarecimento.

— Decerto deseja me provocar, para o que está sempre pronto. Sim. Sim, eu quero outra dose daquela lavagem que você chama de remédio. Fui bastante clara? Está satisfeito?

Perth fez uma mesura debochada, entrou na carruagem e retirou diversas ampolas do compartimento de couro na lateral do seu assento. Saber que poderia ela mesma preparar o elixir acaso soubesse onde tudo estava guardado não fez Lillith se sentir melhor. Em minutos, ele entregou-lhe a caneca de cerâmica. Ela aceitou-a com uma ira indisfarçável.

Engoliu o uísque com láudano em dois goles. Os olhos lacrimejaram. A despeito da intenção de permanecer impassível enquanto a mistura queimava goela abaixo, Lillith acabou tossindo.

— Um pouco de chá ajudará — sugeriu Perth quase gentil.

— Por favor.

Ele tomou-lhe a caneca dos dedos submissos e abasteceu-a. Lillith aceitou-a de volta e sorveu a bebida. Jamais se habituara a beber destilados fortes. Os exemplos do pai e do irmão bastaram para compreender os prejuízos. Sequer apreciava licores. Ademais, a bebida forte subia direto à cabeça.

— Vai aliviar a dor e permitir que durma — disse Perth.

— Numa carruagem em movimento?

— Você já fez isso antes.

Lillith não podia contestar tal fato.

— Quanto tempo mais? — indagou, percebendo que o entorpecimento do álcool a fez soar muito semelhante a uma criança.

Perth respondeu com a paciência característica que se demonstraria a uma criança recalcitrante.

— Mais uma troca de cavalos e, então, chegaremos à meia-noite.

— Você planejou tudo muito bem — resmungou.

— A riqueza tem seus privilégios.

Mesmo em meio à bruma, ela não conseguiu ignorar a amargura na entonação de Perth.

— Você nem sempre é tão aborrecido.

— Há dez anos eu era jovem e idealista. Hoje sou muito mais experiente. — A voz soou fria como um vento de inverno escocês.

— Voltamos às meias palavras. Há dez anos desposei De Lisle. É a isso que se refere?

— Há dez anos você me abandonou. — Inclinou a cabeça para o lado. Um raio de sol de fim de tarde incidiu sobre a cicatriz na face direita e tornou-a vermelho-fogo. — Esperei até a noite, pensando que você não havia conseguido escapar.

— Mathias se comprometeu a encontrar você e avisar que eu não mais me casaria contra a vontade da minha família.

A risada dele foi cruel.

— A família que a vendeu a um velhote encarquilhado com dinheiro suficiente para pagar as dívidas de jogo do seu irmão. Bem, Mathias não chegou antes do anoitecer.

O primeiro impulso dela foi defender a família. Entretanto, ele tinha toda a razão. Ela o trocara por um homem mais velho e mais rico, e pelo motivo que ele mencionou. E, acaso Perth merecesse crédito, Mathias não agiu tão depressa quanto lhe assegurou.

— Não fiz nada que não seja feito todos os dias por membros da nossa classe. — As palavras embolaram ligeiramente e, apesar da discussão, as pálpebras dela pesaram.

O remédio a deixara sonolenta. Especulou se o desejo de escapar àquela dolorosa exposição da verdade também não estaria por trás da exaustão furtiva.

— Verdade. — A voz dele agora não ostentava emoção. Foi como se, ao desabafar, toda a emoção que talvez o comovesse houvesse evaporado.

— E eu não sabia que Mathias havia demorado tanto para alcançar você. Lamento por isso.

Havia um brilho sinistro nos olhos dele que fê-la indagar-se acaso não estaria equivocada quanto à falta de emoção. Imaginou se existiriam fatos que desconhecia, Mathias nunca contou-lhe sobre o encontro. Ela jamais teve coragem de perguntar.

— Não lamente. Foi uma ótima lição quanto às artimanhas da sua família.

Lillith foi a primeira a desviar o olhar. Por mais que tentasse não pensar tanto nisso, sabia que a sua família não o tratara bem. Deixá-lo no altar daquela capelinha bucólica onde prometera encontrá-lo para casar com ele não foi bonito. O único consolo era saber que fugir com o amante não era aceitável tampouco. Não, ela jamais deveria ter se envolvido com um jovem oficial do exército sem um tostão furado, por mais que o amasse. A família nunca guardou qualquer segredo acerca da necessidade de que ela fizesse um bom casamento. Ela é que permitira que as emoções a dominassem.

Agora colhia os frutos que tais atitudes impulsivas semearam. Não, não só agora. Ela os colhia há dez anos. De Lisle jamais confiou nela, e tornou a sua vida infeliz por causa disso. Não que a fina flor chegasse a aceitá-la. Qualquer mulher que abandone um amante e depois seja disputada em duelo entre o tal amante e o atual marido nunca é aceita. O estigma ainda permanecia. Este rapto, quando os boatos corressem como era inevitável, a arruinariam completamente. Talvez fosse a intenção de Perth. E talvez isso não mais importasse. Ela preferia o campo.

Quando ela o espiou de novo, a cabeça dele estava virada. Perfeitamente relaxado, ele aparentava haver caído no sono.

Todo o torvelinho emocional dos últimos minutos pareceu arrancado dos ombros dele. Como ela desejava esquecer aqueles dez anos!

 

Lillith acordou ante o súbito cessar dos ruídos. Sentou-se e olhou pela janela. Archotes iluminavam uma construção simétrica e acanhada, quase um caixote feito do que pareciam pedras cor de manteiga. Perguntou-se se estariam em Cotwolds. Já podiam ter chegado pelo tempo que viajaram.

Perth abriu a porta antes que tivesse a chance de atinar muito mais. Ele estendeu a mão e ajudou-a a descer.

Por um instante, ela pensou em resistir. Mas era muito provável que ele simplesmente a tirasse à força.

Lillith consentiu que a ajudasse. A cabeça doía por causa do uísque com láudano. Disse a si mesma que tal era a origem da sensação tão íntima da mão de Perth na sua. Mas sabia que isso era só uma desculpa. Ela sempre reagira a ele física e emocionalmente.

Quando Perth a soltou, ela conseguiu ficar de pé sozinha. O remédio não fez bem à cabeça, contudo ajudou o tornozelo. Respirou fundo, e olhou ao redor, determinada a não sentir a proximidade de Perth de maneira tão intensa.

Campos imaculados estendiam-se adiante como uma saia de veludo sob a luz prateada da lua. Bétulas contornavam a fachada. Rosas em seu último suspiro decoravam as cercas, o aroma perfumando o ar.

— É a sua arapuca? — indagou ela.

— Meu refúgio — retrucou. — Este não é território de caça.

Isso não significou muita coisa para Lillith. Taciturno, ele foi conversar com o cocheiro. As palavras flutuaram até ela na brisa.

— Leve os cavalos e os homens de volta à cidade. Avisarei quando quiser retornar.

Perth isolou-os lá. Ela deu um passo na direção deles, pretendendo dizer a Perth que não tinha qualquer intenção de permanecer ali indefinidamente, todavia, a perna ruim voltou a vacilar. Lillith deteve-se com um engasgo doloroso.

— Teimosa — disse Perth, marchando para o lado dela e tomando-a nos braços — outra vez.

— Estou farta desta posição — resmungou, virando a cabeça ao máximo para não olhar para ele.

— Mas eu não — redargüiu ele, segurando-a um pouco mais apertado.

Ela conteve um gemido. Mesmo através das camadas de roupa, pareceu que o corpo dele queimava o seu. O cheiro de Perth assaltou-lhe os sentidos. Recordou a primeira vez que o teve tão perto de si. Como ficou inebriada de deleite.

Acabaram de conhecer-se na noite anterior no Almack’s. Ele convidou-a para dançar duas quadrilhas e depois saiu. Agora a visitava, junto com inúmeros cavalheiros. Mas foi o único de quem ela se lembrava, os outros desvaneceram no passado. Ele inclinou-se para aceitar uma xícara de chá oferecida por ela, e o aroma de canela impregnou-a. Com um semblante intrigado, buscou os olhos dele — e se perdeu.

O hálito morno de Perth irradiou correntes sutis de entusiasmo que se alastraram pela coluna e trouxeram-na de volta ao presente num arroubo sensual. Esta situação comprometedora precisava acabar.

Debateu-se nos braços dele.

— Ponha-me no chão. Sou perfeitamente capaz de ficar de pé sozinha.

Ele galgou os últimos degraus e entrou na casa.

— É claro.

De chofre, colocou-a no chão. Ela ficou em pé por conta própria, no elegante vestíbulo da casa.

— Milorde — disse um homem, saindo apressado de uma porta lateral.

Era baixo, magro e tinha pernas arqueadas. O cabelo era castanho salpicado de grisalho. Uma barba curta, aparada com esmero, revelava independência. Usar barba não estava na moda. Ele vestia uma prática casaca campestre e calções que já viram melhores dias.

— Posso afiançar-me de que está tudo pronto, Fitch? O homenzinho empertigou-se.

— Assim espero, milorde.

Pela segunda vez apenas, desde que Perth a seqüestrara, Lillith viu-o sorrir com franqueza.

— É só o jeito de falar, Fitch. Jamais duvidei sequer por um segundo da sua competência.

Apenas ligeiramente embevecido, o servo fitou-a. O olhar vivaz observou cada detalhe.

Ela estendeu-lhe a mão. Não era a coisa aceitável a fazer com relação à criadagem, porém Lillith pressentiu que havia mais entre o sujeito e Perth do que uma ligação de senhor e servo.

— Eu sou Lillith, Lady de Lisle.

Fitch tornou-lhe a mão e curvou-se. Muito cosmopolita.

— Eu sou Fitch. Ajudante de milorde.

— Ajudante? — indagou Lillith.

— E faz-tudo oficial — completou Perth. — Ele está comigo desde que entrei para o exército.

O sorriso de Lillith esvaneceu. Pois ele sem dúvida sabia exatamente o que acontecera há dez anos. Ela seria mantida prisioneira por dois homens que não tinham motivo algum para se importar com o que era melhor para ela.

— O jantar está quase pronto, e o quarto de milady foi arrumado — anunciou Fitch, recuando.

— Rosbife e batatas — retorquiu Perth.

— Se quiser comida francesa, contrate um cozinheiro francês — disse Fitch. — Sou um inglês honesto, e cozinho comida inglesa.

— Com a sensibilidade de um celta — replicou Perth, um lampejo de bom humor nos olhos cinzentos, quase negros. — Levarei Lady de Lisle ao seu aposento para que possa refrescar-se, e então nos alegraremos muito em jantar.

Lillith esgueirou-se para longe, recusando-se a fazer uma careta conforme o tornozelo deu ares da sua graça.

— Lady de Lisle levará a si mesma.

Ambos olharam para ela. Perth sombrio e irônico, Fitch com as sobrancelhas franzidas de preocupação.

Ela rangeu os dentes e mancou até a escadaria. O mogno sólido era de um tom queimado lustroso. Respirando fundo, apoiou-se no corrimão que assumiu o seu peso e pulou o primeiro degrau com a perna boa. Três degraus depois, deteve-se para tomar fôlego. Ao olhar para cima quase gemeu. Parecia que o próximo degrau ficava no céu. A teimosia a colocara em enrascadas complicadas antes, mas nenhuma tão fisicamente desafiadora.

— Talvez prefira se apoiar em mim, milady — sugeriu Fitch.

— Talvez sim, Fitch — replicou, medindo cada palavra, pois elas lhe custaram muito. Ao menos, não seria Perth quem a ajudaria.

Espiou o conde. Ele permanecera imóvel. Os olhos velados vigiavam-na como aqueles de uma ave de rapina que não perde a próxima refeição de vista. Em algum lugar, ela encontrou energia suficiente para virar a cabeça em afronta. Os cabelos ondularam em torno dos ombros, mas, no fim das contas, o pequeno ato de rebeldia não fez nada para que se sentisse melhor.

Fitch postou-se a seu lado, e, ainda assim, Perth não se moveu ou falou. Ao continuar subindo a escada ela sentiu o olhar dele nas costas. Uma tensão abrasadora engolfou-a, e não a abandonaria por mais que tentasse expulsá-lo da mente ou resfolegar de exaustão.

— Estamos quase lá, Lady de Lisle — encorajou Fitch. — Só mais um pouco, e poderá descansar. Prepararei um bom banho quente para a senhora. Isso ajudará.

Ela assentiu com a cabeça. Não restava ar suficiente nos pulmões para falar. A perna esquerda ardia de cansaço. Por um efêmero instante, permitiu-se imaginar sendo carregada por Perth. Ele podia irritá-la, mas nunca fê-la sentir-se tão cansada a ponto de querer chorar de frustração.

Alcançaram o primeiro andar bem depois que Lillith decidiu que não conseguia ir mais adiante. E ela ainda precisava chegar ao quarto. Um suspiro escapou-lhe dos lábios crispados.

— Basta — disse Perth logo ao seu lado.

Lillith sobressaltou-se. Estava tão concentrada na provação seguinte que nem escutou-o acompanhá-la.

— Basta de quê? — gemeu ela. — Eu digo quando bastar, não você. Já é péssimo estar aqui contra a minha vontade.

Fitch petrificou, contudo nada disse. Ótimo. Rapidamente, ela se precipitava rumo a um mau humor terrível, e Perth não parecia nenhum pouco mais alegre. Ele nunca gostou de ser contrariado. Nesse caso, tampouco ela.

— Você vai se machucar ainda mais se insistir com isso.

— Farei o que me aprouver. — Empinou o queixo e respirou fundo. Saltaria até onde quer que o aposento ficasse. — Para onde vou?

Perth emitiu um grunhido que ela preferiu ignorar.

— Por aqui, Lady de Lisle — replicou Fitch.

— Não seja mais estúpida do que deve — rosnou Perth. — Use isso. — Ele fincou a bengala da carruagem na sua mão direita. — Não é o ideal, porém é melhor do que o que você planejou.

Ela reprimiu um suspiro de alívio. Por mais que desejasse demonstrar ao conde que faria o que lhe aprouvesse, não ansiava por outros saltos.

Guiada por Fitch, Lillith marchou ao longo do corredor atapetado. O ombro direito doía abominavelmente de tanto usar a mão direita como arrimo e a perna esquerda parecia prestes a desmoronar pela mesma razão. Por sorte, não precisavam ir muito longe. Esta não era uma casa ampla segundo os padrões aristocráticos.

Fitch abriu a porta com certa economia de gestos e acompanhou-a para dentro. O quarto era encantador. Amarelos suaves e bege embelezavam as paredes e cortinas. Uma cama espaçosa ocupava quase uma parede inteira. Móveis rústicos de nogueira, uma mesa e duas cadeiras aconchegantes, reuniam-se em torno de uma aprazível lareira. O ânimo elevou-se.

— Pronto, Lady de Lisle — afirmou Fitch. — Deixe-me ajudá-la agora. Milorde retirou-se para o aposento dele. Não há necessidade para torturar-se mais.

Esse criado era sábio. Espiou-o de soslaio.

— Seu mestre é um tirano.

— Ele possui tal hábito, milady. Deve-se ao fato de permanecer no exército por tantos anos. — Depositou-a na cadeira de cor creme antes de avançar até uma das três portas do quarto e abri-la. — É aqui que estão as suas roupas, milady. E se fizer a gentileza de repousar, cuidarei para que seu banho seja preparado em breve.

— Um banho? — Só a idéia já era divina. O prazer foi efêmero ao recordar as demais palavras. — Roupas? Essas não são minhas.

Então, Perth utilizava a casa para receber mulheres. Não devia ficar surpresa ou magoada com isso. Muitos homens faziam a mesma coisa. O irmão era um. Todavia, saber que Perth não a considerava melhor do que uma de suas coquetes magoou — magoou muito.

Disse a si mesma que era uma tola, mas isso não aliviou a tensão no peito. Ele a raptou e a manteve consigo durante quase um dia inteiro contra a vontade. Isto agora não significava nada. Nada, repetiu para si própria.

— Perdoe-me, Lady de Lisle — disse Fitch, interrompendo o seu protesto mental. — Porém, milorde cuidou para que fossem feitas e trazidas de Londres especialmente para a senhora. — Havia certa aura de bondade nos olhos castanhos. — Lorde Perth não traz mulheres aqui. Ele vem para ficar sozinho. A senhora é a primeira mulher recebida aqui.

A garra no peito pareceu afrouxar, e respirar tornou-se só um pouquinho mais fácil. Outra vez agia feito uma tonta em relação a Perth. Quando ela iria aprender? Entretanto, se sentiu melhor.

A graciosidade natural aflorou. Fitch não era responsável pelas atitudes do mestre.

— É um aposento encantador. E ficaria muito grata por um banho quente. Foi uma longa jornada.

Fitch anuiu.

— Eu sei, milady. Aprontarei tudo rapidamente.

Tão logo a porta se fechou atrás de Fitch, Lillith permitiu-se relaxar por completo. Reclinou a cabeça para descansar na cadeira acolchoada, e os olhos divagaram até cerrar. Até o tornozelo pareceu doer menos. Ela adormeceu.

Bem cedo escutou uma batida.

— Entre.

Fitch estava na entrada, arrastando uma banheira.

— Lamento por não dispormos de nada maior, milady, mas isto é tudo que consigo carregar. Milorde mandou todos os servos embora, exceto eu.

— Por quê? — indagou ela. — E um fardo pesado para você.

Fitch arrastou a banheira ao longo do tapete até posicioná-la diretamente diante do fogo. Com a perícia advinda da prática, enrolou diversas toalhas ao redor da banheira.

— Milorde não quer que se espalhem comentários acerca da sua presença.

— Ele devia ter se preocupado com isso antes de me raptar.

Fitch não contestou.

— Voltarei com mais baldes de água quente.

— Seu amo devia ajudá-lo — redargüiu Lillith quando Fitch saiu.

— E pretendo ajudar — retrucou Perth.

 

                                         Capítulo Quatro

— Quê…?

Lillith deparou-se com Perth no umbral.

— Onde vai dar essa porta? — inquiriu ela. Ele sorriu.

— No meu quarto.

A respiração sufocou na garganta.

— Eu devia ter adivinhado — retrucou amarga. — Você está determinado a tornar tudo o mais desagradável possível.

— Não preciso me esforçar. Você já está fazendo tudo para atingir tal finalidade.

Ele perambulou até ela. A jaqueta sumira e a gravata também. A gola da camisa branca de linho estava desabotoada.

Pêlos negros encaracolavam sedutoramente por sobre os debruns da camisa. Ela imaginou como seria senti-los crespos sob os dedos. A mão direita ergueu-se antes que percebesse o que fazia. Deixou-a cair com uma atípica falta de graça. O rubor alastrou-se pelas faces.

Quantas gafes cometera por causa desse homem? Pareciam inumeráveis.

— Sabe bater na porta? — Ante a pergunta malcriada, ele se deteve. Foi um grande alívio para os nervos à flor da pele.

— Quando me convém. — O olhar perscrutou-a. — Você está exausta. Logo que terminar o banho comeremos, e depois você irá para a cama.

Ir para a cama.

Calafrios percorreram a sua espinha. Essa era a situação que ela tanto temia quanto desejava. Por muito tempo, imaginou como seria fazer amor com ele. Mas não assim. Não por vingança.

Antes que lograsse pensar em algo que dizer, bateram à porta.

— Entre — falou ela, um pouquinho rouca demais. Fitch entrou com dois baldes de água fumegante.

Ver a água quente e sentir o perfume do sabão de lilás desviou a atenção de Lillith do conde.

O anseio devia estar estampado no seu rosto, pois Perth comentou:

— Vou com você, Fitch. Lady de Lisle parece disposta a mergulhar nesses dois dedos de água.

Ambos saíram. Lillith respirou fundo antes de se apoiar sobre o pé são e a bengala. Abeirou-se da banheira e apanhou o sabão. Cheirou a barra de cor creme. Lilás. Perth lembrou do que usava.

Sentiu um aperto doloroso no coração. Uma coisa tão insignificante, contudo, revelava emoções mais profundas do que ela esperava. Cuidadosa, caminhou até a porta pela qual Perth entrou. Deteve-se no umbral.

Os olhos aguçaram ao examinar o aposento. A versão masculina do dela. Cortinas verde-esmeralda e bege recobriam a janela e o tapete espesso. Móveis pesados de mogno — uma cama espaçosa e cadeiras e mesa — ocupavam quase o quarto inteiro. Uma penteadeira ficava no canto onde a luz matinal incidia no espelho anexo.

O sobretudo e as botas enlameadas estavam espalhados. Fitch não passou por aqui para arrumar.

— Acha meu quarto interessante? — A voz grave de Perth ecoou às suas costas.

Ela deu meia-volta, tomada de surpresa, e a bengala escorregou-lhe da mão. Depressa segurou-se na porta.

— Por que estamos em quartos contíguos?

Perth sorriu lânguido, com um brilho quase cruel.

— Por todos os motivos imagináveis.

— Você está fantasiando se pensa que faremos qualquer coisa juntos.

Ele avançou um passo.

— Houve um tempo em que você faria tudo o que eu pedisse.

Lillith recuou, desejando sumir, porque de coração sabia que era verdade. Ela mentiu.

— Você sempre superestimou a sua astúcia. Parece que mudou pouco.

Ele riu, mas sem escárnio ou complacência.

— Eu a conheço, Lillith. Você me largou no altar por causa do seu irmão, mas isso não muda o fato de que me queria naquela época e de me querer agora.

Deu outro passo em direção à Lillith. Desta feita, ela precisou esquivar-se. O perfume dele ameaçou dominá-la tal qual a sua virilidade já a perturbara. De algum modo, controlou-se.

— Agora só quero um banho. Se me der licença, descansarei até que você e Fitch aprontem tudo.

O servo entrou nesse exato momento trazendo mais água. Só então ela reparou que Perth também segurava dois baldes.

Ele fez uma reverência debochada, antes de levar os baldes até a banheira e esvaziá-los. Fitch fez o mesmo. O vapor elevou-se da pequenina banheira.

O anseio oprimiu-lhe o peito. Precisava daquele banho. Sentia-se suja e absolutamente exausta.

Quando eles saíram, Lillith mancou até a cadeira. Largando a bengala no chão, curvou-se e tirou as babuchas. A delicada pelica bordada estava arruinada. Serviriam por enquanto, porém não mais poderia usá-las em público. Pouco importava. Possuía dúzias de sapatos, assim como dúzias de todas as coisas. Casara por dinheiro, e assegurou-se de aproveitar o que ele lograva oferecer.

Ciente de que Perth e Fitch logo retornariam com mais água, soltou a liga azul de cetim depressa e tirou a meia de seda da perna esquerda. A meia estava manchada de lama e desfiada. Depois desenrolou a bandagem do tornozelo direito com cuidado. O tornozelo voltou a doer. Entretanto, o inchaço diminuíra, e já não parecia tão contundido.

Tão logo dobrou a meia junto com a liga, Perth retornou. Agora sem comentar nada, fitando-a apenas, antes de despejar a água. Fitch imitou-o e saiu.

Ela ergueu as sobrancelhas platinadas quando Perth ficou.

— Pretendo desfrutar completamente desta comodidade, Perth, mas não antes que saia.

— Como planeja despir-se?

Estupefata, Lillith ficou boquiaberta.

— Não com a sua ajuda!

— Você não tem aia.

— Não sou nenhuma aleijada. Posso cuidar de mim mesma.

Perth escorou-se no mármore bege da lareira.

— Eu não sabia que era contorcionista.

— Não preciso da sua assistência. E se carecer de ajuda, não é a você que recorrerei.

— Fitch?

Lillith fuzilou-o com o olhar.

— Sim, melhor que você.

— Compreendo. — Afastou-se da lareira e saiu do quarto.

Os olhos dela arregalaram ante a partida abrupta. Derrotara-o com demasiada prontidão.

Sem mais a fazer, contorceu os braços para trás de modo a alcançar os pequeninos botões que fechavam o vestido. Os três primeiros foram fáceis. Sufocou um gemido de frustração. Remexendo os braços, abriu os botões da cintura. Aqueles no meio das costas permaneceram fechados.

A tentação de rasgar o vestido foi grande. Mas mesmo sujo, era preferível a qualquer outro comprado por Perth. Obrigou-se a se acalmar.

Levantou e tentou puxar o vestido para cima de modo a alcançar os botões nas costas. Funcionou.

O vestido vaporoso escorregou do corpo e empoçou num monte branco enxovalhado. Apenas restou a combinação. Presa por laços de seda, foi facilmente descartada.

Mais uma vez usando a bengala, mancou até a banheira. Sem saber como conseguiu entrar dentro dela, um suspiro de puro prazer escapou-lhe ao submergir na água fumegante. Um travesseiro, outra dose do remédio de Perth, e poderia passar a noite inteira assim.

Lillith cochilou, só para despertar com a boca cheia de espuma de sabão. Tomada desprevenida, debateu-se na água, encharcando as toalhas na borda. A tosse assaltou-a.

Mãos fortes ergueram-na da banheira. Uma toalha imensa cobriu-a dos ombros até os pés descalços. A água escorreu com displicência pelo chão.

Ainda tossindo, apertou a toalha ao redor do pescoço. Só uma pessoa poderia estar aqui. O perfume de canela assaltou-a enquanto o intenso pressentimento arrepiou os pêlos da nuca.

Perth.

O ímpeto de virar-se para flagrar-se nos braços dele foi forte. Sentiu o calor do seu corpo, tão próximo que qualquer movimento faria com que se tocassem. Era tão fraca quando se tratava dele.

Lillith não se virou.

— Saia por favor.

As mãos de Perth seguraram-na pelos ombros e gentilmente a viraram, da maneira exata que ela desejava. Ela empinou o queixo em desafio a ele e às próprias reações. A boca de Perth estava bem perto para tocá-la caso ficasse na ponta dos pés.

— Vá embora — disse ela, incapaz de afastar a petulância da voz. — Não me sinto bem.

Ele não arredou pé.

— Você precisa de mais remédio. E comida.

— O que preciso é que me deixe em paz. — Suspirou, agarrando-se à toalha como se fosse a única proteção. — Se quer mesmo ajudar, então permita que eu coma sozinha e me dê outra dose da sua mistura, e depois me deixe em paz.

O negrume reluzente dos olhos insondáveis embaciou. Ele baixou o olhar e o semblante assumiu uma tensão que trincou-lhe o maxilar. Lillith notou que a toalha molhada aderia ao corpo feito uma segunda pele, sem deixar nada para a imaginação. Perth respirou fundo e soltou-a tão depressa que ela cambaleou.

— Agora não. Ainda não — retrucou ele com a voz abalada de anseio reprimido. — Trarei comida e remédio, mas não a deixarei sozinha. Ainda não.

Ela apoiou-se na borda da banheira e começou a tremer. Ele julgou que fosse de frio. Foi até a lareira e atiçou as brasas até obter um calor reconfortante. Várias passadas ligeiras depois, e ele estava no cômodo de vestir. Retornou com um robe roxo de seda bordada. Largou-o sobre a cadeira e saiu sem proferir palavra.

Lillith pasmou. A saída foi rápida demais para ser permanente. Secou-se apressada e vestiu o robe. Coube como se feito sob medida. Só então procurou uma escova, pois devia haver uma. Perth pensou em tudo.

Estava certa. Um conjunto de escova e espelho com entalhes dourados repousavam na penteadeira feminina. Manquejou até ela e voltou para a cadeira. Começava a considerar o estufado assento um velho amigo que a acolhia com braços fofos. Afundou-se nele e pôs-se a desembaraçar os cabelos louros.

Mal terminara uma mecha quando Perth retornou com uma bandeja guarnecida. Depositou a refeição e a bebida na mesa. O aroma de carneiro assado e molho de hortelã fez o estômago dela roncar.

Ela observou-o tal qual um rato observa o gato antes de fugir. A escova escorregou dos dedos e caiu no tapete onde permaneceu ignorada. A incapacidade de aliviar a tensão contraiu-lhe os lábios.

— Beba isto.

Perth estendeu-lhe uma caneca contendo a panacéia O odor acerbo do uísque assaltou-a. A beberagem abrandaria a ansiedade bem como ajudaria o tornozelo. Aceitou-a e engoliu depressa, só para quase engasgar.

— O que você fez? Dobrou a dose?

— Concluí que você precisa de uma boa noite de sono mais do que preciso obter o que desejo.

Os olhos dela lacrimejaram. Lillith sentiu como se uma bomba explodisse dentro de si. A boca de súbito ressecou.

— Pretende dispensar-me os seus cuidados?

Não foi o que planejou dizer. A última coisa que precisava fazer era provocá-lo, porém foi exatamente o que fez. O que deu nela? Desejo. Desejo por Perth. Só por Perth.

— Esta noite. — Deu meia-volta e rumou para a porta que separava os aposentos. — Mas é só uma trégua

Uma sensação pesarosa assomou-a como uma brisa relutante. Não importava o que disse a si própria ou a Perth, ela o queria. Sempre quis. Todavia, antes de dormir, trancaria a porta contígua, e escoraria a maçaneta com uma cadeira.

Acaso tais precauções se destinavam a mantê-lo do lado de fora, ou mantê-la do lado de dentro, Lillith sequer especulou.

 

                                     Capítulo Cinco

A luz derramou-se sobre a sua face, despertando Lillith e concedendo-lhe uma enxaqueca desnorteante. A qual o tornozelo uniu seu queixume antes que ela se esforçasse para sentar. Com a visão embaciada, contemplou o aposento estranho e imaginou onde estava. Afinal, distinguiu um homem que descansava numa cadeira.

Perth.

A memória retornou num átimo.

— Como entrou aqui? — inquiriu ela.

— Não tente me trancar na minha própria casa de novo.

Perth não ergueu a voz, porém a total ausência de inflexão foi como urna chibatada. Em vez de intimidar, a ordem a enfureceu.

— É cedo demais para vir bancar o tirano com mão-de-ferro.

Ao contrário do efeito que esperava, Perth ficou cabisbaixo. A frieza que o tornava formidável rapidamente transformou-se em ardente desejo. Ela empalideceu. Com atraso, percebeu que a camisola que vestia era de musselina transparente. Puxou as cobertas até o queixo.

Os olhos dele buscaram os seus. Um anseio abrasador, quase sufocante, a forçou à comoção que tanto tentou ignorar durante a longa noite.

— Por quê? — indagou, o grito arrancado do íntimo. — Por que está fazendo isso?

Antes que ela pudesse piscar, ele estava na cama, a boca muito próxima da sua.

— Porque devo — replicou.

Ela cerrou os olhos ante o desejo nos olhos dele, que transcendia à obsessão. Um gemido suave escapou-lhe justo quando os lábios de Perth tomaram os dela num beijo que punia enquanto recompensava.

Os dedos emaranharam-se nos cachos dela, segurando a cabeça para atacá-la. A língua demandou resposta. Lillith não conseguiu resistir. Ambos uniram-se numa batalha de sensações que deixou seu corpo em chamas.

Arqueou as costas e antes que percebesse fincou os dedos nas ondas espessas dos cabelos dele, segurando-o como ele a segurava. Sua boca moveu-se sob a de Perth, um convite a tudo que ele pedisse.

Nada importava, exceto a sensação do corpo dele contra o seu. Nada. Ela esperara tempo demais.

Escutou-o gemer quando seus lábios deslocaram-se dos dela para trilhar o pescoço até o lóbulo. A língua lambia a pele, deixando um rastro de deleite. As mãos dela deslizaram dos ombros onde os dedos cravaram-se nos músculos rijos. Ondas de sensação varreram-na. O desejo dominou-a.

Perth deitou-se ao lado dela. A cabeça pendeu para trás, oferecendo-lhe livre acesso à ondulação delicada do colo, as cobertas agora na cintura dela.

Com a boca, a língua e os dentes, ele trilhou o contorno da camisola, jamais aventurando-se sob a diáfana proteção. Ele instigou-a com habilidade e paixão. Ela reagiu como uma mulher desesperada. O corpo encontrava-se além do controle consciente. O instinto a comandava.

Incapaz de suportar tal assalto sem corresponder, Lillith agarrou-o e impeliu sua boca para onde a desejava. Os lábios circundaram um seio e sugaram. Os dentes mordiscavam com delicadeza, seguidos pela língua. Pontadas agudas de um deleite excruciante dardejaram até o ventre, e mais para baixo.

— Jason. — Ela sussurrou seu nome de batismo conforme a paixão consumia todo o resto.

Ele ergueu os olhos, negros de voluptuosidade, até os seus. Os dedos dormentes desprenderam os cordões da camisola enquanto contemplava o rosto dela. Com carícias que irradiaram calafrios ao longo da sua pele, ele explorou o volume do busto. Os polegares beliscaram os mamilos.

Nada separava a carne da dele. A boca de Perth apossou-se de um seio arfante conforme uma das mãos deslizou até as coxas.

Ela ofegou, depois gemeu quando o êxtase tomou-a nas suas garras, até que um grito lhe fosse arrancado dos lábios. Perth não parou até que ela jazesse saciada.

A realidade voltou lenta e vergonhosamente. Incapaz de encará-lo, Lillith lançou um braço sobre os olhos e virou a cabeça para o lado.

— Vá embora — disse afinal através dos lábios intumescidos e sensíveis devido aos beijos dele. — Já não conseguiu o bastante? Provar o seu poder sobre mim? Precisa ficar e gabar-se também?

— Olhe para mim, Lillith. — A voz soou grave e rouca. — Sinto-me assaz desconfortável para gabar-me. Eu a desejo demais, e não da maneira que acabamos de compartilhar. Quero penetrá-la. Quero o que você experimentou, mas quero estar cravado dentro de você quando o fizer e senti-la atingir o prazer comigo.

O calor que ela julgara dissipado através do alívio retornou. O anseio que ele acabara de saciar renovou-se, mais forte e imperioso. Como isso era possível? Como podia ser tão devassa, tão… tão…

— Você me transformou na sua rameira — sussurrou.

— Não. Transformei-a em minha mulher. Como deveria ser há dez anos. Pretendo clamá-la, marcá-la com o meu corpo e a minha paixão até que nenhum outro homem possa satisfazê-la. Só então a libertarei.

Segurou-a pelo pulso e abaixou o braço dela. Sem delicadeza dessa vez.

Arrancou-lhe o vestido e despiu-a. Era um pirata, saqueando cada segredo. Lillith ergueu-se para enfrentá-lo: paixão com paixão, prazer com prazer.

Quando enfim penetrou-a, uma poderosa onda de tirar o fôlego uniu-os num encontro entre macho e fêmea. Ele arremeteu com força, preenchendo e arrebatando-a. O que se passara antes não foi nada comparado às contrações que a dilaceravam agora.

O coração dela disparou e um grito irrompeu do seu íntimo. Ele acelerou os movimentos e cobriu-lhe a boca com a sua, a língua imitando o outro enlace. Ela arqueou, o clímax deflagrando o dele.

Só mais tarde, quando o sol matinal invadiu o quarto onde jaziam cobertos de suor, as pernas entrelaçadas, ela recobrou a sanidade. Agora que ele parara de fazer amor com ela.

A vergonha centuplicou. A raiva ressurgiu. Só que desta vez em relação a si mesma pela fraqueza e pelo que implorara a ele que fizesse.

— Você é uma besta-fera devassa.

A calidez que aquecera os olhos dele transformou-se numa frieza de pedra.

— E você é melhor?

A zombaria enfureceu-a ainda mais.

— Saia.

Sem importar-se com a nudez, Perth levantou da cama e recolheu as roupas. Sequer olhou para trás.

Apesar da raiva, ela contemplou-o lasciva. A paixão foi incandescente, sem tempo para saborearem um ao outro. Agora, ela sorvia a silhueta altiva, corpulenta, os quadris musculosos. As pernas eram torneadas de tal maneira que muitas mulheres suspirariam ao vê-las.

A única pecha era uma série de cicatrizes nas costas. Algum dia fora severamente açoitado. Provavelmente, enquanto estava no exército.

O impulso de acariciar as cicatrizes foi quase irresistível. A mera noção de que tal gesto culminaria em mais volúpia a deteve.

Nenhuma satisfação acompanhou a privacidade.

Perth jurou que a faria desejá-lo acima de tudo, e ela já sucumbira. Agora precisava esconder isso dele.

 

Toque, toque, toque. Nos sonhos ela batia na porta de Perth, exigindo que a deixasse entrar. O anseio por ele era algo a que não conseguia resistir.

Toque…

Lillith acordou. Alguém batia à porta. Devia ser Fitch.

Pulou da cama. Imediatamente, as dores da atividade matinal assaltaram-na. Há muito desacostumara-se aos atos que ela e Perth desempenhavam.

— Volte depois. Não me sinto bem.

A batida cessou.

— Retornarei, milady, com comida e leite.

— Obrigada, Fitch, mas não será necessário. Só preciso repousar.

— Milorde não concordará, milady.

— Milorde pode ir para… — o inferno, completou muda.

Não houve resposta, portanto presumiu que Fitch debandara. Desabou nos travesseiros. Precisava do elixir de Perth para o tornozelo, uma xícara de chá quente e outro banho. Precisava da lua.

Mancou até a janela e espiou a paisagem. Um velho carvalho cresceu rente à lateral da casa, os ramos tão próximos que um homem ágil conseguiria adentrar o quarto dela. Hoje à noite, certificar-se-ia de trancar a janela.

Se não fugisse até lá.

Movendo-se com maior firmeza, porém não menos dolorosamente, retornou para a cama e usou a bengala para fisgar a camisola rasgada. Com um muxoxo, enfiou-a numa gaveta abarrotada de meias de seda e camisolas com laçarotes incrustados. Na véspera, maravilhou-se com todas as camisolas, cada uma tão diáfana quanto asas de borboleta. Imaginou se Perth planeja mantê-la cativa tempo o bastante para usar todas elas. Agora especulava se alguma sequer duraria uma noite se ele invadisse o seu aposento.

Um tremor de desejo fluiu através do seu corpo. Deliberadamente, pisou com o pé machucado. A agonia excruciante expulsou todos os pensamentos acerca do conde da mente. Mordendo o lábio, desmoronou na cama. Que coisa estúpida fizera.

Lutou para conter as lágrimas.

Se ao menos casasse com ele. As coisas não seriam assim. Mas não foi isso que aconteceu. Há muito tempo, disciplinou-se a não olhar para trás. Isso só trazia arrependimento.

Uma batida anunciou o retorno de Fitch.

Lillith respirou fundo e meteu-se no vestido que jazia próximo à cama. Estava nua por baixo, porém era inevitável. Da maneira como se sentia agora, não conseguiria vestir-se sozinha.

— Só um minuto — retrucou. Andar até a porta foi uma tortura. — Está sozinho?

— Sim, milady. O conde saiu para cavalgar. Não voltará tão cedo.

Ela soltou um suspiro de alívio.

Todavia, só relaxou após ingerir o uísque com láudano e tomar várias xícaras de chá.

A situação instigou a raiva a ressurgir. Seria demasiado fácil enfurecer-se de novo, contudo isso não resolveria nada. Precisava curar-se e fugir de Perth antes que ele arrebatasse toda a sua força.

 

Perth cavalgou como se o demônio o perseguisse. E se raiva e paixão inventaram o demônio, então ele o caçava.

Conseguira o que almejava. Fê-la desejá-lo, e implorar por ele. Todavia, não bastava. Ele queria mais.

Queria tudo o que ela pudesse oferecer. Queria que não terminasse nunca.

Ele gemeu. O corpo não estava em condições de cavalgar. O desejo era insaciável, e embora ela não estivesse por perto, era como se a visse nua na sua frente.

Gargalhou azedo, o som mesclando-se ao vento que agitava os cabelos. O garanhão reagiu correndo mais veloz. Uma cerca despontou adiante. De um salto, transpuseram o obstáculo e continuaram em carreira desabalada.

Só uma vez antes, Perth cavalgou com tamanha paixão. Há dez anos. Almadiçoou-se pela própria fraqueza. Todavia não lhe fez nenhum bem.

O desejo por Lillith o dominava como ele ao cavalo, implacável e inconseqüente. A queria mais do que há dez anos. Há dez anos não fizera amor com ela, sentiu-a envolver e acolhê-lo dentro do corpo. Há dez anos ele perdeu o coração. Hoje perdeu a alma.

Precisava possuí-la.

Achou-a sentada num banco no jardim. O lago de peixes ficava aos seus pés e os coelhos saltavam na grama que a rodeava. Roseiras a ocultavam, as últimas florações perfumando o ar.

Lillith observou-o marchar em sua direção.

— O que faz aqui? — inquiriu ele, sentando-se ao lado dela sem pedir permissão.

O banco era estreito para ambos — decerto não providenciou nenhuma distância. Entretanto, Lillith recuou até quase perder o equilíbrio. Não longe o bastante. Ele irradiava calor, e os cheiros do cavalo e do campo mesclaram-se com canela e almíscar.

Ela suspirou.

— Creio que entrarei agora. Está ficando quente.

— Como vai o tornozelo?

— Melhor — respondeu lacônica.

— Olhe para mim — ordenou Perth.

— Não — retrucou, desejando que a voz não soasse tão ofegante.

Tentou esquivar-se, porém ele a deteve pelo pulso. A mão livre segurou o queixo dela, de modo que ou o fitava ou fechava os olhos. Lillith fitou-o.

O olhar dele passeou pelo seu corpo, devorou-a com intensidade.

— Uma vez não basta — afirmou ele, a voz baixa e rouca. — Ansiei demais por isso para deixá-la ir agora.

— Então, pretende continuar a manter-me aqui contra a vontade. Esperava mais de você agora que conseguiu o que queria.

— Essa sua língua afiada. Prefiro o que fez com ela esta manhã.

O rubor que coloriu-lhe as faces avivou.

— Um cavalheiro não mencionaria isso.

Perth empalideceu.

— Não sou um cavalheiro, e nós dois sabemos disso muito bem.

Haveria mágoa nas palavras dele? Observando a austeridade do semblante de Perth, ela se julgou equivocada.

Ele ainda segurava seu pulso.

— Pretendo fazer amor com você até que não agüentemos mais.

Tal declaração ousada atingiu-a como um maremoto, e inundou o corpo e o coração dela de desejo.

Lillith respirou fundo tentando livrar-se da intolerável sensação.

— Estou faminta. Fitch disse que serviria o jantar quando você chegasse.

— Nada do que eu falei é importante para você.

— Nada.

Ele soltou-a, e ela afastou-se mancando, sem olhar para trás. Se cometesse tal deslize, Perth saberia que mentira.

Fitch aguardava atrás das portas francesas que se abriam para a biblioteca. Livros orlavam as paredes, e onde as prateleiras não alcançavam o teto, quadros preenchiam os espaços. O tom cálido da madeira e vermelhos vívidos tornavam o cômodo aconchegante.

— Se for do agrado de milady, servirei o jantar aqui. É apenas uma refeição leve.

— Ótimo — replicou Lillith. Ela afundou nas almofadas de brocado vermelho-fogo. — E traga chá, por favor.

— Lógico, milady.

Ela sorriu. A dignidade do mordomo era tão imponente quanto a do conde e, verdade seja dita, decerto ele era mais pomposo.

Fitch mal saíra quando Perth entrou.

— Presumo que jantaremos aqui.

O silêncio assomou.

Lá fora um passarinho gorjeava. Na biblioteca, o fogo crepitava e o relógio sobre a lareira tiquetaqueava. Vários livros jaziam sobre a mesa próxima à Lillith: Cícero, Scott e Byron.

— Costuma ler estes? — indagou, tentando aliviar a tensão.

— Quando não consigo dormir, ou o clima está demasiado inóspito.

— Eu já li Scott e Byron.

— Todo mundo já leu. Ambos são célebres.

Fitch retornou com a comida, interrompendo a conversa que depressa se esgotava.

— Eu mesmo servirei Lady de Lisle. Vá fazer algo que lhe agrade.

— Como desejar, milorde.

Perth alçou uma das sobrancelhas negras.

— Não vou devorá-la.

— Creio que não, milorde.

— Saia — ordenou Perth.

Fitch curvou-se, embora com certo ar de impertinência. Lillith pressentiu que o servo não aprovava aquela situação.

Comeram em silêncio.

Em vez de chamar Fitch quando terminaram, o próprio Perth arrumou a mesa. Ele não tardaria muito, e Lillith decidiu esperar. Se fosse para o quarto, sem dúvida, ele a seguiria. Era o último lugar onde desejava ficar com Perth.

Ao retornar, estava amuado como se algo desagradável houvesse acontecido, porém não mencionou nada, e ela não se atreveu a perguntar. Ele sentou-se na poltrona olhando fixo para o fogo.

— Você joga xadrez?

— Às vezes.

— Quer jogar comigo agora? — sugeriu Perth, o tom zombeteiro.

— Melhor que certos jogos da sua preferência.

Perth levantou e apanhou um tabuleiro e uma caixa de sândalo que continha peças de mármore. Ela assistiu enquanto ele armava o jogo. Os dedos compridos moviam-se com uma destreza que evocou lembranças de tais movimentos ao longo do corpo dela. A pele de Perth era suave, conquanto sem delicadeza. Ele não era nenhum almofadinha.

Quando o corpo começou a clamar por ser tocado como ele tocava as peças de xadrez, Lillith desviou a atenção. Não seria bom continuar a desejá-lo. Deveria existir mais entre ambos do que atração física.

— Pode começar.

A voz gutural sobressaltou-a.

— Ah, sim — resmungou, movendo descuidada um peão.

— Você não deve jogar com freqüência.

Em três movimentos, ele arrebatou aquele peão e um cavalo. Ela perdera sem sequer oferecer-lhe um desafio. O xadrez foi como fazer amor com ele. Os pêlos da nuca se eriçaram ante tal analogia. Precisava resistir. Perth derrotara-a facilmente.

— Joguemos outra partida — afirmou resoluta. Agora se concentraria em cada movimento.

— Quer ser vencida de novo? Jamais a considerei uma mulher que aprecia perder.

— Não mesmo. Pretendo vencer na próxima partida.

Calado, Perth rearrumou as peças. Agora ela se recusou a olhar para ele. Não tinha intenção de ser distraída.

Ele foi até a mesinha onde repousavam uma garrafa de licor e dois copos.

— Gostaria de um drinque?

— Não — retrucou lacônica, torcendo o nariz.

Perth retomou seu lugar.

— Está bem.

Ela lançou-lhe um olhar fulminante.

— Numa coisa você tem razão, meu irmão bebe por dez homens, assim como fazia o meu pai. Sei o que o excesso de álcool pode causar.

— Ambos sabemos.

As palavras dele foram uma punhalada. Beber e jogar afundaram Mathias numa dívida que a obrigou a desposar De Lisle para livrá-lo de ser atirado ao Rio Tick. Perth nunca a deixaria esquecer que o trocara por outro e o porquê. Nunca.

Ela tomou fôlego e moveu a primeira peça.

Duas horas depois, colocou-o em xeque. Perth analisou o tabuleiro.

— Você progrediu muito.

Lillith ofereceu-lhe um sorriso frio.

— Entretanto, creio que venci. — Moveu uma peça. — Xeque-mate.

Ela emburrou.

— Raios. Não esperava isso.

— Está ficando tarde.

Tais palavras e tudo o que implicavam deflagraram um calafrio na espinha de Lillith. Espiou o crepúsculo lá fora. Logo escureceria.

— Vamos jogar cartas — sugeriu apressada. Tudo para mantê-los afastados dos aposentos contíguos.

Um sorriso predatório vincou a face de Perth, exibindo dentes brancos que mordiscariam a sua pele com imensa ternura ou excitante provocação.

— Uma partida de canastra — sugeriu ele.

— Seria ótimo.

Perth acendeu um castiçal e apanhou um maço de cartas. Sentou-se e embaralhou-as.

— Vamos jogar com dinheiro? — indagou Lillith, julgando ser uma aposta segura.

— Está com medo?

— Um xelim por ponto.

Os olhos dele turvaram.

— Uma peça de roupa.

 

                                                     Capítulo Seis

— O quê? — Ela engasgou, insegura quanto a ter escutado direito. — Não jogarei por roupas. Nada do gênero. Um xelim, ou irei…

Não quis dizer para o quarto. Pelo semblante dele, Perth a seguiria sem quaisquer escrúpulos. Uma repetição das atividades daquela manhã não era o que queria, independente do que o coração e o corpo desejavam.

Ele sorriu malicioso.

— Facilitarei as coisas para você, Lillith. — Seu nome nos lábios dele soou sedutor e fê-la palpitar. — Pode apostar xelins. Eu apostarei roupas.

Fitou-o boquiaberta. O único meio de mantê-lo vestido era perder. O orgulho revoltou-se, contudo sabia o que devia fazer.

Ela concordou.

Com os dedos trêmulos, Lillith apanhou as cartas e abriu-as em leque. Sufocou um gemido. Eram mais do que boas.

— Você não deveria apostar quando não quer perder o que está em jogo — comentou Perth. — O seu rosto é transparente.

O irmão sempre dizia o mesmo e, portanto, não restou-lhe dúvida de que entregara a verdade. Ganharia a rodada pelo mérito das próprias cartas. E ganhou.

— Não se preocupe — afirmou ele. — Só vou tirar a gravata, por enquanto.

As palavras lânguidas insinuaram sensualidade. Perth sabia que ela se sentia atraída por ele contra a vontade. Provara isso de manhã.

— Pode olhar.

Lillith disse a si mesma que aquilo não era nada. Ele ainda estava vestido. Abriu os olhos para ver que ele abrira o primeiro botão da camisa. Caracóis negros ondulavam em torno do linho branco. Eram crespos ao toque e, uma vez enrolados em torno do dedo, agarrariam-se igual ao beijo de um amante. O olhar ergueu-se para o rosto dele, então ela percebeu que ele sabia exatamente o que se passava na sua mente. Os olhos estavam negros como a noite e repletos de fogo. Com as mãos ainda mais trêmulas, apanhou as cartas e embaralhou. Precisava perder.

Duas rodadas depois, ele murmurou.

— Você ganhou de novo. Por mais que tente, não pode perder sempre.

Ela evitou os olhos dele e embaralhou as cartas até os dedos doerem. Um xelim solitário jazia sobre a mesa.

O fogo ardia brando e as velas foram trocadas três vezes. O cômodo esfriava com o ar noturno. Contudo, Lillith sentia-se sentada sobre um braseiro.

Perth a observava feito um predador que avalia a presa. Com destreza, os dedos desabotoaram a camisa. O tecido fino desvendou um V de pele bronzeada com pêlos negros que desciam pelo peito. Com a graciosidade de um felino, ele despiu a camisa.

Os ombros eram largos tal qual ela se recordava. O abdome enxuto e rijo como o assoalho, que de súbito mostrou-se mais convidativo que uma cama. As chamas da lareira brincavam com os músculos, parecendo fazê-los serpear. Ela balançou a cabeça e desviou os olhos da sua máscula perfeição. Que os céus a ajudassem, ela o queria — justo como ele planejara.

Para aliviar a ansiedade e saciar a curiosidade, ela indagou.

— O que houve com as suas costas?

Ele se empertigou.

— Nada.

A resposta sucinta advertiu para não insistir. Seja lá o que aconteceu deve tê-lo magoado muito para sequer discutir.

— Podemos terminar esse jogo estúpido quando você quiser — falou ele, a voz rascante.

— Ótimo. Eu gostaria de ler um dos seus livros.

— Eu não disse que você escaparia ao inevitável. Só que pulássemos essa peculiar categoria de preliminares.

A ira ante tamanha covardia flamejou.

— Então da próxima vez que perder, tire as botas em vez dos calções.

Ele gargalhou.

— Essa é a garota que conheci e a primeira mulher que raptei. Pensei que o machucado no tornozelo houvesse lhe roubado todo o ânimo. Fico feliz por ter me enganado.

O ardor nos olhos dele revelaram algo inteiramente diverso. Não havia bom humor no olhar, apenas desejo e volúpia. Ela afundou na poltrona, toda a coragem esvaída ante a intensidade daquele escrutínio.

— Outra partida, então — retrucou afinal. — Não posso permitir tal afirmação de que temi acabar o que começamos.

Mesmo ao concordar, perguntou-se o que fez. Sabia aonde aquilo os levaria. Era inevitável. Ele a queria e estava determinado a possuí-la. Infelizmente, ela o queria com a mesma intensidade.

Perth mostrou a última carta.

— Creio que você ganhou outra vez.

Ela contemplou desesperada o próprio trunfo.

— É necessário mais habilidade para jogar mal do que para vencer.

— Talvez eu esteja mais motivado que você.

— Definitivamente sim.

Perth curvou-se e tentou tirar uma das botas e não conseguiu.

— Terá de me ajudar se pretende que eu não tire outra peça.

— Pretendo que não tire mais nada. É você quem está decidido a despir-se.

— Se se recusar a ajudar, então vou tirar outra coisa.

— Não.

Perth levantou e desabotoou os calções. Ela saltou, quase derrubando as velas.

— Tarde demais — provocou ele.

— Pervertido. Você é um pervertido — acusou Lillith, corando até a raiz dos cabelos. — Já não basta que eu o deseje acima de tudo, inclusive a minha honra? Precisa me torturar até que eu não pense em nada exceto em você e no que faz comigo?

— Farei o necessário para possuí-la, Lillith.

Os olhos tornaram-se mais trevosos que o inferno.

Ele contornou a mesa e agarrou-a. Ela engasgou e recuou. O salto do sapato prendeu na grade da lareira. O calor queimou-a quando ele agarrou-lhe os ombros e puxou-a para si.

Ela gritou, se de rejeição ou de súplica, não descobriu.

Perth cobriu sua boca com a dele, e Lillith derreteu ante o fogo devorador da paixão. Nada mais importava.

O desejo, ardente e insaciável, dominou-o a noite inteira. A volúpia instigou-o até afogar na paixão, dele, dela, de ambos. Logo que terminavam e jaziam entorpecidos, o desejo ressurgia, um ardor infatigável que o envolvia — aos dois. Ele a penetrava, devorava e era consumido por Lillith.

 

Era tarde, na manhã seguinte, quando enfim a deixou. Ela se encolheu quando o corpo dele se afastou. O impulso de acariciar-lhe os flancos e unir-se a ela novamente foi quase impossível de ignorar. Crispando os punhos, ele saiu sem olhar para trás.

Adentrou o próprio quarto e fechou a porta de mansinho, mantendo as emoções que ferviam dentro de si sob rédea curta. Alguém pigarreou.

— Perdoe-me, milorde — disse Fitch. Ao menos o servo teve a elegância de corar ao ver o amo nu.

— Raios, Fitch. Se eu precisar de você, eu chamo.

Não sentiu vergonha. Fitch o vira em piores condições. Um corpo nu não era nada. Um coração nu era deveras vulnerável.

Emburrado, Perth aceitou o robe que Fitch ofereceu.

— Então? — perguntou enfim.

— Perdoe-me por comentar, milorde…

— Você vai comentar de qualquer jeito. Como ontem à noite.

— Sim, milorde. Estamos juntos há muito tempo para que eu fique parado olhando, enquanto leva esse estratagema adiante sem tentar dissuadi-lo. A dama merece mais do que está lhe dando.

O cenho de Perth evoluiu para uma carranca de cólera.

— Você passou dos limites.

Fitch apenas observou o conde.

— Pretendo oferecer-lhe casamento. Isso cuidará das línguas ferinas caso os rumores se espalhem.

— Como queira, milorde.

Fitch não conseguiu disfarçar o desapontamento. Com uma curvatura, saiu do quarto.

Perth alisou os cabelos, relembrando contrariado como os dedos de Lillith seguraram punhados de cachos para unir os lábios dele aos seus. O perfume dela ainda estava impregnado nele, lilás e mulher.

— Maldição.

Esmurrou a parede. Não era isso o que esperava que acontecesse. Ela o queria e admitiu isso. Ele pretendia oferecer-lhe casamento. Ela aceitaria. Lillith lhe pertenceria, para fazer com ela o que bem entendesse.

Nada mais. Nada menos.

 

Lillith sentou-se à mesa e especulou por que descera. Fitch levaria o desjejum no quarto. Mas Fitch tinha que fazer tudo sozinho. Perth cuidou para que nada disso vazasse para o círculo de conhecidos de ambos.

A fome dissipou-se. Jamais se importara com aprovação. Ingressos para o Almack’s, convites para os bailes convenientes, nada disso nunca a interessou.

Ouviu a porta abrir e virou-se. Perth quedava na entrada.

Lillith tomou um gole de chá.

— O que você quer?

Ele permaneceu ali, a postura relaxada. Vestia uma jaqueta verde sobre uma camisa aberta na gola. A calça de equitação acentuava os músculos das coxas, coxas que ondularam sob os seus dedos horas antes.

— Quero casar com você.

Ela largou a xícara. A porcelana frágil se estilhaçou, derramando o chá. O líquido quente queimou-lhe a mão, porém não doeu. Nada doeria mais do que aquelas palavras. Ele só queria desposá-la por vingança. Perth não a amava.

— Casar com você? Depois do que fez? Nunca.

Perth paralisou. Acaso ela não soubesse o pouco que significava para ele, pensaria que suas palavras o feriram.

— Que outra escolha você tem?

— Sou uma viúva. Tenho qualquer escolha que me agrade.

— E se o boato se espalhar? Fiz tudo para evitar isso, mas afinal precisa desconfiar do seu servo.

— Tampouco fez algo para disfarçar o fato de que era um cavalheiro me raptando.

— Verdade. Pretendia desposá-la quando estivéssemos quites.

— Pensou que eu me casaria com você depois do que fez? Você me arrastou para cá sem nenhuma consideração pelos meus sentimentos. É mais arrogante do que pensei.

Ele deu de ombros.

— E se você engravidar? Já considerou tal possibilidade?

A pergunta tomou-a desprevenida. Um nó alojou-se na garganta.

— Após nove anos de casamento e nenhum filho, não creio que precise recear quanto a isso. E se acontecer, então o problema é meu.

A fúria desfigurou a face dele. Perth avançou e segurou-a pelos ombros.

— Não. Se conceber uma criança, ela será tão minha quanto sua. Tenho tanto direito de decisão quanto você.

Ela encarou-o, surpresa conquanto determinada.

— Você diz isso agora, mas não nos casaremos. Sequer saberá se isso acontecer.

Perth sacudiu-a, embora sem violência.

— Eu saberei.

O coração dela batia dolorosamente.

E após uma eternidade, ele a soltou e afastou-se.

— Cuidei para que uma carruagem a apanhe em uma hora. Ela a levará para onde quiser, e ninguém saberá que esteve aqui.

— Simples assim? Está me libertando?

— Se não quer casar comigo, então não há mais necessidade para que permaneça sob o meu teto.

Era o que ela queria, a liberdade. Todavia, ser pedida em casamento e conversar sobre uma criança que jamais existiria fez sua cabeça girar.

Confusa, viu-o sair. A porta bateu atrás dele.

Perth a pedira em casamento, e ela respondera não.

Uma lágrima escorreu pela face.

Se ao menos ele houvesse falado em amor.

Exato uma hora depois, Perth tomou-a pela mão. Ajudou-a a entrar na carruagem alugada onde sentou-se desajeitada.

Ela puxou a mão, tentando desvencilhar-se dele. Perth apertou-a mais.

— Olhe para mim, Lillith — ordenou.

— Por quê? Você só quer dizer algo que não quero escutar, ou tomar liberdades que não quero conceder.

Ele segurou-lhe o queixo e fê-la encará-lo.

— Eu a tratei abominavelmente, contudo também lhe dei prazer. As coisas não seriam fáceis entre nós, mas acredito que poderíamos tentar o casamento.

— Já tive um casamento de conveniência, não desejo outro.

O coração dele disparou.

— Então quer um enlace amoroso. — Algo oprimiu-lhe o peito. Ela o magoara em demasia, nunca lhe concederia tal poder sobre si outra vez, mesmo que isso significasse perdê-la. — Assim é melhor que siga o seu caminho, Lady de Lisle, pois não tenho intenção de desposar ninguém por amor. Sofri dessa mazela uma vez e jurei que jamais o faria.

Entretanto, por mais determinado que estivesse a expulsá-la do coração, não resistiu à sua proximidade. O perfume dela invadiu-lhe a mente, e a idéia de fazer amor quase levou-o a subir na carruagem e trancar o mundo lá fora.

Os lábios assaltaram os dela. Beijou-a com uma intensidade que surpreendeu a si próprio. Quando enfim a soltou, ofegava como se houvesse corrido uma longa distância. Os olhos dela mostravam-se assombrados.

Lillith não proferiu palavra, porém levou a mão livre à boca.

Ele recuou e indicou ao cocheiro que partisse.

— Caso mude de idéia, sabe onde me encontrar.

Ela se virou conforme a carruagem afastou-se. Perth não esperava ter notícias dela. Porém desejava-a o suficiente para segui-la? Temia que sim.

 

                                           Capítulo Sete

Lillith mancou até o vestíbulo de sua casa de viúva. A mansão elisabetana, outrora refúgio campestre dos Lordes de Lisle, legada pelo falecido marido até que ela morresse ou casasse novamente. Franziu os lábios amargurada. Ela morreria aqui.

— Milady. — O impecável mordomo, Simmons, apressou-se para recebê-la. — Ficamos preocupados. Ausentou-se por vários dias.

— Eu… hospedei-me com uma amiga. Ela carecia de companhia.

Percebeu que Simmons sabia que era mentira, apesar de aceitá-la. Era a história que contaria, e acaso os servos não abrissem o bico — quase gargalhou de amargura porque decerto abririam — ninguém descobriria. Entretanto, jamais admitiria nada. A aristocracia falaria pelas suas costas, e determinadas portas se fechariam, contudo, logo tal aventura cairia no esquecimento. A aventura de outrem tornar-se-ia a fofoca atual.

— Mandarei Cook preparar o chá — anunciou Simmons, ignorando a falta de bagagem dela por discrição.

Apiedou-se dele.

— Minhas coisas estão na soleira da porta. — As roupas que Perth encomendou para ela encontravam-se empacotadas do lado de fora. Ela as distribuiria aos pobres. Não queria nada que lembrasse a semana passada.

— O Sr. Wentworth aguarda na sala de visitas. Está aqui há dias. — Lillith empalideceu. Mathias viajara uma grande distância.

— Sirva o chá na sala e inclua biscoitos e bolo. — Agarrando-se aos laçarotes da touca, foi encontrar o irmão.

Mathias permanecia de costas; o olhar perdido no jardim dos fundos. Um gamo parou de ruminar uma das últimas rosas da estação.

Mathias virou-se.

— Querida, enfim chegou. Começava a preocupar-me. Você partiu sem avisar.

A entonação teve um toque sutil de censura. As palmas de Lillith transpiravam. Mathias era uns seis centímetros mais alto que ela e possuía o mesmo cabelo espesso, quase platinado. Era o único atributo que partilhavam. Ele era robusto, aprumado por uma cinta semelhante àquela utilizada pelo Príncipe de Gales.

Também apostava dinheiro com o príncipe e seus camaradas. Era bem-vindo em qualquer parte, apesar dos excessos na jogatina, porque o alfaiate talvez nunca fosse pago, porém as dívidas de jogo sempre o eram. Para a aristocracia inglesa, tratava-se de dívidas de honra e não de um vício.

Lillith atirou a touca sobre uma poltrona chippendale esforçando-se para mostrar-se indiferente. Mathias possuía a capacidade assustadora de enxergar através dela. Decerto, desafiaria Perth para um duelo, e um deles morreria. Não se arriscaria a perder nenhum dos dois homens mais importantes para ela.

— Eu estava com uma amiga. Contudo, Mathias, não posso — em absoluto — revelar-lhe quem é. Seria traição. Ela estava em dificuldades, e fiz o possível.

— Eu jamais pediria que traísse uma confidente, querida. Sabe disso.

Sim, sabia. Era similar às dívidas de jogo. Mathias abraçou-a e analisou seu rosto.

— Você parece diferente, Lillith. Cansada. Não anda doente, espero.

Ele era sempre tão perspicaz. Sempre. Ela deu uma risada forçada.

— Estou cansada, como disse. Nada mais. Passamos longas noites conversando e descansando pouco. Passarei a próxima semana me recuperando.

Simmons trouxe refrescos, e ela aproveitou a oportunidade para sentar na penumbra. As sombras lhe seriam úteis.

— Biscoitos? Bolo? — O objetivo era manter a conversa neutra.

— Obrigado, querida. Andei preocupado demais com você para comer direito. Vim logo que os servos avisaram do rapto. — Fitou-a como um falcão.

Ela quase berrou de frustração. Claro que os lacaios procuraram Mathias imediatamente. Por que acreditou que esconderia a façanha de Perth, era um mistério. Entretanto, precisava tentar.

— Minha amiga me raptou de brincadeira. Sabe como a vida torna-se enfadonha quando a temporada acaba. Ora, o falecido Duque de Richmond assaltou a própria esposa e um clérigo pomposo. Por que deveríamos ser menos intrépidos hoje em dia?

Mathias suspirou.

— Ah, sim, o falecido duque. Mas isso foi há muitos anos, querida. Não arriscou a reputação de ninguém, e você não costuma ser tão audaciosa. Todavia, a Sra. Russell diz que a raptou por diversão.

O queixo de Lillith caiu ante a surpresa pela oportuna ingenuidade da amiga, seguida pela indignação.

— Por que procurou outra pessoa para saber de mim, irmão? E por que não contou isso logo? — Mas ela sabia o porquê. Mathias a estava testando como ele e o pai sempre faziam. — Importou-se tão pouco com a minha reputação acaso os rumores se espalhassem acerca do meu desaparecimento?

— Temi pela sua segurança, e procurei a única pessoa de confiança atrás de notícias. Porém não antes de esperar vários dias para que retornasse. A Sra. Russell garantiu que foi uma brincadeira, que você estava a salvo, e que ela não contaria a ninguém. Quanto a contar-lhe isso desde o princípio, quis confirmar se você não mentiria.

Ela nunca enfrentara Mathias. Ele era bem mais velho. Entretanto, não toleraria tamanha intromissão.

— Mathias, o que faço não é da sua alçada. Sou uma viúva. Aos olhos do mundo, sou livre para ir e vir como me aprouver.

Havia um brilho cético nos olhos de Mathias.

— Mesmo a liberdade de uma viúva — uma viúva respeitável — tem limites. A Sra. Russell disse que mandou o marido seqüestrar você. Se realmente foi raptada pela sua amiga.

— Sim, Nathan Russell interpretou um bandoleiro com perfeição. — A mentira escapou-lhe, e o impulso de fugir ao inquérito foi forte, tão forte, que apoiou o peso no pé machucado. O tornozelo latejou e ela se contraiu.

— Está ferida. Como isso aconteceu quando permanecia segura entre amigos?

Todo esse engodo que levava de uma mentira a outra. Se ao menos ele parasse de interrogá-la. Usou o tornozelo como desculpa para safar-se.

— Torci o tornozelo ao saltar da carruagem. Nada demais, porém gostaria de ir para os meus aposentos descansar.

Sem permitir que ele a contrariasse, Lillith levantou. Agora o tornozelo protestou de verdade.

— Talvez eu devesse continuar usando a bengala. Mas fui deveras orgulhosa. Agora Inês é morta.

Mathias emburrou ao enlaçá-la pela cintura e ajudá-la a caminhar. Subiram a escada devagar. Tudo o que Lillith queria era privacidade. Com sorte, Mathias regressaria a Londres. Só lhe restava torcer.

No quarto, a dama de companhia, Agatha, a aguardava. Ele despachou-a com um aceno.

— Sei que há mais nesta história. Londres inteira sabe do rapto. Os criados têm língua. Se essa mulher é mesmo sua amiga, não lhe fez bem algum ao encarregar um homem de desempenhar a farsa.

— Ela não almejou causar-me mal.

— Lógico.

Mathias estava furioso.

— Retornarei à cidade amanhã — avisou ele. — O príncipe requisitou a minha companhia. Sugiro que permaneça no campo por um longo período.

— É tudo o que pretendo, irmão. Até o Natal. A metrópole é tão maçante.

Ele aguçou os olhos, mas saiu sem dizer nada. Lillith contemplou-o com o coração pesaroso. Não se entendiam bem desde o casamento. Outrora pensou tudo dele. Agora Mathias era quase um adversário.

Completamente só, permitiu-se pensar nas últimas palavras de Perth. Se mudar de idéia, sabe onde me encontrar. Se mudasse de idéia, seria internada num hospício, pois é onde terminaria se desposasse Perth sem amor.

Ele a usaria e depois a jogaria fora. Destruiria o seu coração e depois a sua alma.

Lillith contemplou a folha de papel na escrivaninha de cedro. Escrever sempre foi desgastante, contudo, passou hoje uma hora sentada tentando pensar no que dizer. Madeline Russell merecia saber o que aconteceu entre ela e Mathias. A tarefa estava além da sua capacidade de concentração. Pois bem. O que confidenciaria a Madeline não devia ser confiado ao papel.

 

Dois meses transcorreram desde o rapto. Sem notícias de Perth. Os dedos acariciaram o ventre.

O Natal chegaria em breve. O Parlamento entraria em recesso, e todas as anfitriãs acompanhariam os maridos políticos a Londres. Perth sempre freqüentava o Parlamento.

Observou uma corça deixar a segurança dos bosques e invadir o jardim. A fome guiava o animal. Ela era deveras semelhante àquela corça. A fome de ver Perth, ouvir a sua voz, a impelia ao descuido. Jamais o procuraria, porém iria à metrópole na esperança de encontrá-lo.

Lillith receava que o corpo a delatasse. Nunca revelaria a Perth, contudo a necessidade de estar com ele era grande demais para resistir.

 

Vários dias depois, a carruagem de Lillith estacou perante a casinha em Londres que Madeline Russell dividia com o marido há quase quatro anos, Nathan Russell. Nathan vinha de um ramo humilde de uma família de nobres. O casal vivia com conforto, mas longe da riqueza, na casinha afastada do sofisticado West End. Todavia, era aconchegante, e os Russell eram aceitos em qualquer lugar.

Quando o mordomo a anunciou, Lillith atravessou a saleta apressada. Madeline era sua melhor amiga desde a infância. As propriedades dos pais eram vizinhas, e as duas eram como irmãs.

— Senti terrivelmente a sua falta — disse Madeline, abraçando Lillith.

Lillith era uma cabeça mais alta que a amiga ruiva, a diferença uma fonte de chistes carinhosos da parte de Madeline. O papel de Vênus em miniatura não era um que Madeline apreciasse.

— E eu a sua — Lillith retrucou comovida. — Tantas coisas aconteceram. E agradeço pela história da carochinha que contou a Mathias.

— Psiu. Você faria o mesmo por mim. — Os olhos cinzentos se iluminaram. — Mas agora me deve uma história verdadeira, pois aposto que é mais picante do que qualquer coisa que eu pudesse inventar.

Lillith reclinou-se nas almofadas de chintz.

— Por onde começar? É uma longa história que principiou há dez anos.

— Ah. — Madeline suspirou. — O Conde de Perth. Sabia que ele ainda gostava de você.

Lillith gargalhou.

— Ele me deseja.

— É um bom começo.

— De Lisle me desejava — retrucou monocórdia.

— Isto é inteiramente diferente. De Lisle era velho o bastante para ser seu avô. Perth é um homem na flor da idade e, acaso os rumores digam a verdade, tão bom na cama quanto com a espada.

Lillith franziu a boca. O recato impediu-a de confirmar tais palavras. Entretanto, o rosto traiu os pensamentos.

— Eu sabia. Ele a raptou e depois a seduziu. Absolutamente delicioso.

— Isso não é um conto de fadas, Madeline. É a minha vida.

Madeline ficou séria.

— Lamento por gracejar disso, mas não pelo ocorrido. Seu lugar é com Perth. Penso assim desde que os vi juntos pela primeira vez.

— Nem você pode ser tão sentimental.

— Ah. A maneira como se olhavam naquela noite no Almack’s fez meu sangue ferver, e em tal época eu ignorava o que um homem e uma mulher faziam juntos. Agora sei e não trocaria esse deleite por nada.

Lillith riu.

— Você e Nathan têm um casamento atípico.

— Verdade. Uma união de amor.

— Não foi o que Perth me ofereceu.

Madeline observou a dor e a desilusão da amiga.

— Ah, ele ainda se ressente por ter sido abandonado. Mas decerto você explicou que o deixou pelo bem da sua família.

— Nada do que eu disse adiantou. Ele não se importa por que escolhi De Lisle. Ele quer… quer vingança. Nada mais. Ofereceu-me casamento. De conveniência. Nada mais.

— Então aceite — encorajou Madeline. — Muitos casamentos de conveniência acabam em amor.

Lillith empalideceu de vergonha.

— Eu não sobreviveria. Quero coisas demais dele. Deus é minha testemunha, eu enlouqueceria casada com Perth, sabendo que ele não gosta de mim da mesma forma. Toda vez que ele saísse de casa, eu imaginaria para onde foi e com quem. Ele faria amor comigo e deixaria a minha cama pela da amante. Casamentos de conveniência são assim.

Madeline suspirou.

— Então você não deve casar, se ele a faria tão infeliz. E não há razão para tanto. Você é bastante rica com o que De Lisle deixou para jamais precisar cogitar casar-se novamente. Pode fazer o que quiser sem dar satisfações a ninguém.

— Soa conveniente.

Por dentro, desejou que fosse tão fácil. As emoções ameaçavam mergulhá-la na própria intensidade, e parecia impossível escapar-lhes.

Lillith respirou fundo.

— Você vai à casa de Sally Jersey esta noite?

Madeline, mesmo disposta a fazer todo o possível para ajudá-la, concordou em mudar de assunto.

— Mas é claro. Todo mundo estará lá.

— Pensei em não ir — Lillith falou baixinho, atinando que o novo tópico levaria de volta a Perth.

— Decerto, você deve ir. Ninguém sabe o que aconteceu, exceto eu, Perth e você. Isto é, a menos que o seu irmão tenha contado aos outros.

Lillith sorriu meiga.

— Criados, até os melhores, fofocam, e antes que se perceba a fofoca se espalhou para outra casa e para outro patrão ou patroa. Mesmo se Mathias conseguisse guardar segredo, os outros saberiam.

— Infelizmente, você tem razão. No entanto, por motivo algum evite a sociedade. Tão logo o faça, todos saberão que qualquer coisa escandalosa que ouviram é verdade. Olhe-os nos olhos e cuspa na cara deles se precisar.

Pela primeira vez em semanas, a risada de Lillith foi genuína.

— Você é uma leoa quando se trata de proteger os seus. E tem razão. Não há nada que a aristocracia aprecie mais do que comentar os erros dos outros. Isso é bem menos divertido se a pessoa que almejam devorar os enfrenta. Eu irei.

— E estarei lá ao seu lado — asseverou Madeline. estendendo uma xícara de chá para Lillith. — Brindemos a isso.

Às gargalhadas, ambas ergueram as xícaras.

 

Naquela noite, Lillith adentrou a residência de Sally Jersey de cabeça erguida. O vestido acetinado de musselina lilás que envergava ajudou. Era o contraponto perfeito para a cútis pálida e a silhueta esguia. No mundo em que transitava, as roupas faziam a mulher. Bem como freqüentar reuniões desta estirpe garantia o lugar de alguém na sociedade. Felizmente, Sally era uma velha amiga que não a desprezaria e nem fracassaria em providenciar-lhe os deveras cobiçados ingressos para o Almack’s.

Os salões estavam lotados, todavia com o inverno no ar não ficaram abafados.

Diversas mulheres olharam na direção dela, mas evitaram encará-la. Lillith não esperava nada diferente. Outras a aceitariam.

Dirigiu-se aos grupos seletos, sorrindo para os conhecidos. A maioria acolheu-a. Madeline, presente como prometera, avistou-a e apartou-se dos acompanhantes.

— Lillith, viu como foi fácil? Embora eu começasse a temer que não viesse. — Os olhos risonhos ostentavam compaixão. — Ignore qualquer um que seja rude o bastante para encará-la.

— Já me recusei a encontrar ao menos meia dúzia de viúvas. — Sorriu. — É tão mais fácil ficar no campo e deixar as matronas londrinas fazerem o que julgarem melhor. É menos cansativo.

O que não contou a Madeline é que Perth a trouxe de volta. Não logrou forçar-se a revelar sequer à Madeline o segredo no seu coração.

— Tisc, tisc. Você possui mais energia que uma estufa abarrotada, e ninguém se enfurna o ano inteiro no campo. — Uniu o braço ao de Lillith e conduziu-a numa lenta peregrinação ao redor do salão. — Sorria como se não houvesse nada na sua cabeça salvo este momento.

Foi difícil de início, porém Lillith descobriu que quanto mais sorria, mais fácil a encenação tornou-se.

— Cuidado, Madeline. Num piscar de olhos posso me transformar numa decaída.

— Transformar? — gracejou Madeline. — Você já é uma. Nem a Sra. Drummond Burrell toleraria cumprimentá-la.

— Os rumores são tão pérfidos assim?

— Foi o que eu escutei — cochichou Madeline. — Mas, claro, ninguém ousaria mencioná-los na minha frente.

Continuaram o passeio, e Lillith até conseguiu sorrir para uma senhora que decerto espalhava os piores boatos sobre ela. Infelizmente, eles se aproximavam muito da verdade. O único elemento ausente era o nome do homem com quem passara algumas noites pecaminosas. Alguém da aristocracia podia fazer tudo, desafiar qualquer tabu, ignorar qualquer convenção, desde que sem ser flagrado. Diferente dela.

— Entretanto — disse Madeline — se enfrentar a situação, em breve, haverá outro mexerico para ocupá-los.

— É verdade — murmurou Lillith, resistindo ao impulso de cuspir na mulher que acabara de evitá-la.

Mal conseguiu disfarçar o melindre.

— Grace Lovejoy é uma víbora, Lillith. Ignore-a. A mente dela é um esgoto, e cada palavra que profere confirma isso.

A surpresa ante a veemência da amiga serenou o coração de Lillith.

— Madeline, isso não é típico de você.

Madeline deu de ombros.

— Você é minha amiga.

— Obrigada. Sei que conto com você.

— Não é nada. Lá está Nathan. Ele é tão antiquado. Acha que eu devia passar cada minuto com ele.

— Dois filhos e quatro anos não diminuíram o amor antiquado que ele sente — gracejou Lillith com ternura. — Toda mulher devia ser afortunada igual a você, querida.

Madeline captou o desejo inconfesso.

— Você encontrará alguém. Você não escolheu De Lisle. Algum dia, terá com um homem o mesmo que tenho com Nathan, acredite em mim.

— Talvez. Agora vá, ou Nathan decerto virá buscá-la.

— Não seria a primeira vez — retrucou Madeline com uma pitada de vergonha.

Madeline mal havia se afastado quando uma voz de barítono comentou.

— Lady de Lisle, é um prazer ver que retornou à metrópole.

Lillith virou-se. Não percebera a aproximação do Marquês de Ravensford. Um bom amigo de Perth. Imediatamente a cútis alva corou.

— Quanta amabilidade sua dizer isso.

Ravensford era alto como Perth, todavia as semelhanças terminavam aí. O cabelo de Ravensford era ruivo e os olhos verdes. Era simpático e possuía uma certa aura capaz de seduzir qualquer cortesã — ou mais provavelmente a nova esposa. Diziam tratar-se de um casal predestinado.

— Perth está aqui.

Os olhos dela arregalaram.

— Sério? Que… interessante.

— Poderia ser. Ele está com um mau-humor dos diabos.

— E quando não está?

— Quando se trata de você, em geral não, infelizmente. Ele está no salão de carteado.

— Por que está me dizendo tais coisas?

— Porque ele é meu amigo, e não quero ver nenhum de vocês enfiar os pés pelas mãos. Tampouco fazer algo que apimente os comentários obscenos que andam circulando.

— Você é quase tão direto quanto ele, mas agradeço.

Ele assentiu. Ela deu-lhe as costas. Talvez fosse hora de partir. Havia armadilhas demais por aqui.

Espiou a porta que conduzia ao salão de jogos e paralisou. Perth estava escorado no umbral, observando-a como uma pantera observa a tão cobiçada presa. Que os céus a ajudassem, não conseguiu ignorá-lo.

Ele avançou rumo a Lillith. Ela viu o ardor turvar-lhe os olhos.

— Lady de Lisle — disse ele, tomando-lhe a mão e levando-a aos lábios. Os olhos jamais abandonaram os dela enquanto pressionou a boca nos seus dedos. — Torci para que estivesse aqui.

A luva não tolheu a paixão que tal beijo expressou.

— Já estou de saída.

— Permita-me chamar uma carruagem.

— Não, obrigada. Essa é a função do lacaio, senhor conde.

— Quanta bondade me lembrar disso — murmurou, afastando-se, os olhos frios. — Julguei mal ao esperar ser bem recebido… outra vez.

Perth foi embora antes que ela recuperasse o fôlego. Lillith ignorou a platéia que atraíram. Amanhã todos relembrariam o escândalo.

Mais tarde, a salvo dos olhos curiosos, permitiria-se recordar a sensação dos lábios dele e o som da sua voz.

Ela o amava tanto que isso tornou-se uma dor no peito que se recusava a passar.

 

                                             Capítulo Oito

Perth espreguiçou-se. Ravensford sentou-se à sua frente, e juntos beberam taças cheias do mais fino Borgonha do Brook’s. Quando Ravensford o chamava para ir ao Brook’s, Perth alegrava-se por abandonar a solidão do próprio lar.

A esnobada de Lillith no sarau de Sally de Jersey, na véspera, não melhorou o seu humor. Ele estava em Londres há dois dias, pois deixara o refúgio campestre quando o servo da propriedade de Lillith que subornou avisou que ela partiu. Ainda não sabia ao certo por que viera, porém era assim que se sentia acerca de tudo que envolvia a bela Lady de Lisle.

— A cidade está deserta — comentou Ravensford. Perth obrigou-se a esquecer Lillith.

— Desde quando você se preocupa com a sociedade? Supus que a considerasse passado desde que desposou a encantadora Mary Margaret.

Ravensford fez uma careta.

— O sarcasmo sempre foi o seu forte. Misturado à medida exata de verdade para espicaçar.

Perth ergueu a taça.

— À pontaria certeira.

Ambos beberam.

— E você? Vejo que anda se debatendo com a flecha do cupido.

— Eu não, meu amigo. As mulheres são como o vinho… para serem apreciadas e depois esquecidas.

— Ah! Vejamos o que o destino lhe reserva.

— Basta de disparates. Há coisas melhores para se fazer esta tarde. Ouvi dizer que a Tattersall’s tem cavalos de primeira à venda.

— Em vez de visitar Tattersall’s, ficará encantado em acompanhar-me numa visita vespertina à Lady de Lisle.

Só por um instante, Perth hesitou. Outro homem não notaria, contudo Ravensford notou e sorriu.

— É lógico. Garanto que ela e o irmão ficarão encantados em nos ver.

— Wentworth está hospedado com a irmã?

— Ele anda sendo perseguido pelos credores.

— O sujeito é um parasita. Sempre foi — afirmou Ravensford. — Mas vamos lá, velho amigo. Temos uma visita a fazer.

Recusar passou pela cabeça de Perth, todavia por mais que detestasse a própria fraqueza, queria vê-la. Ao menos na companhia de Ravensford, ele não poderia seduzi-la nem desafiar o irmão — ou não sem a intervenção de Ravensford.

Baixou a taça vazia.

— Uma alternativa recatada para se passar uma tarde perfeita, mas venha logo ou nos atrasaremos.

 

Lillith ouviu o irmão discutir a mais nova casaca com um dos visitantes enquanto ela servia o chá a Madeline, que esperava por uma conversa tranqüila. Lillith não sabia ao certo se estava contente pela presença de Mathias evitar que saciasse a curiosidade de Madeline ou não. Sua terrível suspeita depressa tornava-se uma certeza, e parte dela não queria debater a situação com Madeline. Fazer o quê?

Por enquanto, nada.

Virou-se para perguntar a Mathias sobre o talhe da casaca, e não viu Perth entrar. A voz dele fê-la estremecer como um raio abala uma árvore e depois a incendeia.

— Lady de Lisle, Sra. Russell, Wentworth, Peters. — A voz inconfundível de Perth cumprimentou a todos.

Um silêncio mortal se seguiu.

— Olá, todo mundo. — Ravensford rompeu o silêncio, uma expressão de pura diversão na bela fisionomia. — Dissemos ao mordomo para quebrar o protocolo e não nos anunciar. O pobre sujeito ficou desolado, mas o que poderia fazer?

Com um olhar inquisitivo para Lillith, Madeline estendeu a mão primeiro para o beijo ligeiro de Ravensford e depois para Perth.

— Ravensford, Perth, que encanto ver os dois. As coisas andavam tediosas por aqui.

— Assim pensamos — retrucou Ravensford. Tal divertimento não seria desperdiçado. Pena que Brabourne não estivesse aqui para apreciar isso, pois o duque tinha um senso de humor maroto. Contudo, ele e a noiva encontravam-se no continente.

Perth olhou para Lillith.

— Lady de Lisle. — Ela meneou a cabeça com frieza, mas não lhe ofereceu a mão.

Em contrapartida, Mathias franziu o cenho para ambos os homens.

— O que os levou a visitar-nos? Não há nada aqui que interesse patifes da sua laia.

O engasgo de Madeline foi o único som. Lillith olhou carrancuda para o irmão, que a ignorou.

Desesperada para evitar que a situação se agravasse, Lillith largou a xícara de chá que acabara de encher. O líquido derramou sobre o lilás do vestido, e a xícara de porcelana espatifou-se no chão.

— Oh — arfou ela. — Sou tão desastrada. Mathias, por favor, chame Simmons.

Contrariado, Mathias foi até a lareira e puxou a sineta para chamar o mordomo. E permaneceu onde estava.

Pressentindo que o irmão não deixaria que a futilidade de uma xícara quebrada alterasse a sua disposição, Lillith pulou de pé.

— Lamento terminar essa reunião encantadora, mas simplesmente preciso trocar de vestido.

Fitou cada convidado até que, um por um, todos levantassem.

Madeline murmurou:

— Não deixe isso aborrecer você. Os homens podem ser uns bárbaros.

Lillith sorriu abatida.

Perth aproximou-se, e tomou a mão que ela não lhe estendera. Choques de desejo inundaram-na, das pontas dos dedos das mãos até os pés. Endireitou os ombros, decidida a resistir à atração.

— Lady de Lisle, espero vê-la novamente. — Alçou-lhe a mão direita para o toque dos seus lábios.

Ela perdeu o fôlego quando a sua pele tocou a dela. Se o toque era eletrizante, o beijo dele era como uma tempestade com raios e trovoadas.

— Milorde Perth — retrucou ela, a voz rouca demais para o seu gosto. — Já que transitamos pelos mesmos círculos, avistar um ao outro é inevitável.

— Farei tudo ao meu alcance para assegurar não apenas que nos avistemos de longe, e sim bem mais de perto.

O rubor foi instantâneo.

Ela observou-o perambular porta afora. Lentamente, o rubor foi substituído pelo pânico. Mathias não arredou pé enquanto os demais não saíram.

— Ele não é homem para você, Lillith. Jamais lhe oferecerá casamento.

As palavras frias do irmão enregelaram-na. Perth ofereceu-lhe casamento, mas ela não poderia aceitar. Outrora casou-se sem amor. Não faria isso de novo.

— Eu julgo quem me serve — retorquiu — e se for Perth, então que seja.

Mathias atravessou a sala com passadas ligeiras e segurou-a pelo cotovelo.

— Ele não servia anos atrás. Não servirá hoje. Cuide para lembrar-se disso.

— Não sou mais uma criança, Mathias. Escolherei com quem me encontrar.

— E com quem se amasiar? — desdenhou. — Pois, não se iluda, é tudo o que conseguirá de um sujeito da raça de Perth. Ele não vai propor casamento. Não agora. É reconhecido como um patife mulherengo que flerta onde quer e parte sem olhar para trás. Será a próxima concubina dele?

O rubor retornou num ímpeto. Só que desta vez causado pela raiva, e não pelo desejo. E medo. Pois as palavras dele aproximavam-se muito da realidade.

— Solte-me.

Mathias obedeceu.

— Talvez eu tenha falado com muita rispidez, mas só por preocupação.

— Talvez? Como ousa chamar-me de concubina, ou sequer insinuar que serei uma! Você, meu irmão.

— Apenas preocupo-me com você, Lillith. Perth é um salafrário e, além de não ter intenções honrosas, é óbvio que ainda a deseja. Só espero que você fique longe das garras dele.

Quantas verdades mais o irmão proferiria? Eram como dardos venenosos dilacerando a sua pele. Ela respirou fundo.

— Estou absolutamente cônscia das intenções de Perth. E não planejo sucumbir. Sou uma mulher agora, não uma garotinha… como já disse. — Virou-se para esconder o brilho nos olhos que denunciaria as lágrimas. Tudo era tão complicado. — Faça a gentileza de sair agora. Preciso trocar-me e repousar. Esta noite comprometi-me a jantar com Lorde e Lady Holland.

— Como queira.

Ela escutou a porta fechar atrás dele, contudo pressentiu que não era o final daquelas objeções. Ele a vigiaria atentamente. E faria tudo ao seu alcance para mantê-la separada de Perth. Lillith não sabia se tal discernimento a havia alegrado ou entristecido.

 

Naquela noite, para a vergonha de Lillith, ela sentou-se à mesa de frente para Perth. Lorde e Lady Holland, como de costume, convidaram uma miscelânea de políticos e fanfarrões. Especulou onde ela se enquadrava. Decerto como mulher solteira. Outras anfitriãs sempre requisitavam homens solteiros; Lady Holland nunca.

— Não concorda, Lady de Lisle? — A voz grave de Perth indagou.

Política não era um grande interesse para ela, entretanto mantinha-se atualizada acerca das tendências. Até ela sabia que o plano de Perth não seria bem-sucedido.

— Creio que sua idéia é louvável, porém temo que encontrará oposição para executá-la.

O interesse lampejou nos olhos dele. Ele era tão lindo, que ela ponderou como resistiria às suas investidas. Lorde Holland interveio.

— As tropas que retornaram encontram-se numa preocupante carência de trabalho, senão tornar-se-ão foras-da-lei e um ônus maior para o país. Mas você tem razão, Lady de Lisle, Perth encontrará oposição no Parlamento, assim como Lorde Alastair St. Simon.

— A honra é sempre uma questão de pagar as dívidas de jogo — Perth redargüiu ríspido. — Nós, e toda a Europa, devemos a esses homens a chance de encontrar empregos e meios de sustentar as famílias.

Ela escutou-o discorrer com convicção sobre as necessidades das tropas. Agora que Napoleão fora enfim derrotado, os homens foram abandonados pelo exército e pela marinha. Muitos tornaram-se mendigos, outros ladrões.

O homem à direita fez um comentário que requisitou a atenção dela, e relutante desviou a mente das palavras de Perth. A obrigação de um convidado é entreter as pessoas sentadas a seu lado.

Uma das mulheres casadas, Constance Montford, sentou-se ao lado dela. Era mais velha e considerada uma das principais anfitriãs de Londres. Também era uma fofoqueira.

Ela concedeu a Lillith um sorriso largo.

— Querida Lady de Lisle, é tão encantador vê-la de volta à metrópole.

Lillith retribuiu o sorriso.

— Obrigada, Sra. Montford. Sinto-me encantada por estar aqui. — Não daria pano para mangas.

A Sra. Montford gargalhou, atitude nada condizente a uma dama.

— Ouvem-se rumores assaz maliciosos. Mas, é lógico, não se deve acreditar em todos eles.

— Sábia escolha — murmurou Lillith, imaginando quando a mulher mencionaria os boatos acerca do seu desaparecimento.

— As fofocas são como tempero. Animam uma noite do contrário tediosa.

— Pensei que apreciasse a política acima de tudo, Sra. Montford. Não estaria tentando armar um sarau para rivalizar com o de Lady Holland?

Foi um atrevimento dizer tal coisa, porém Lillith estava determinada a revidar. A mulher resolvera expor o escândalo de Lillith, portanto ela garantiria que as ambições da Sra. Montford seriam igualmente expostas.

A voz da Sra. Montford tornou-se um sussurro sibilante.

— Ouvi dizer que você ofendeu as convenções, Lady de Lisle, ao permitir-se raptar por um período de tempo indecoroso para uma dama respeitável.

— Ah, sem melindres. Não se deve crer em tudo que se escuta, cara Sra. Montford. A aristocracia é notória por rumores que arruínam a reputação das pessoas.

— Sim, não é?

O revide brotou na língua de Lillith só para ser engolido por Perth.

— Lady de Lisle, Sra. Montford, tanta beleza reunida. Posso juntar-me a vocês?

Ele sentou-se sem esperar ser convidado. A Sra. Montford sorriu dissimulada. Lillith fulminou-o com o olhar. Alguém poderia comentar e até ligá-lo ao desaparecimento.

— Lorde Perth — disse a Sra. Montford —, deve visitar-nos. Oferecerei uma pequena reunião amanhã. Aposto que encontrará muitos conhecidos lá.

— Sinto-me honrado, Sra. Montford.

Lillith notou que ele não aceitou nem declinou o convite. Ele tinha charme quando resolvia usá-lo.

— E quanto a você, Lady de Lisle? — indagou ele. — Está disposta a uma pequena reunião amanhã?

Foi uma provocação.

— Creio que não, milorde.

O sorriso dele tornou-se predatório.

— Uma pena. A que ofereceu esta tarde foi tão interessante.

— Meu irmão está hospedado comigo. Seus amigos andam sempre por lá.

O olhar atento da Sra. Montford resvalou de um para o outro.

— Ah, sim, esqueci que se conhecem.

Perth voltou-se para ela.

— Uma relação antiga. Se me dão licença, senhoras. Lorde Holland parece requisitar-me.

Lillith espumou. Ele botou lenha na fogueira da Sra. Montford e deixou que ela cuidasse de apagá-la. Não havia nada a dizer para despistar a mulher e, portanto, decidiu sair.

— Se me der licença também — escusou-se Lillith. Dirigiu-se a Lady Holland e apresentou-lhe suas desculpas.

— Meu tornozelo está doendo outra vez, receio.

— Por tudo que é mais sagrado, não precisa ficar quando se sente desconfortável. — Lady Holland acompanhou Lillith ao vestíbulo. — Percebi que a Sra. Montford a encurralou. A mulher é absolutamente antipática. Não a culpo por querer escapar.

Lillith sorriu. Não pretendia desabonar ninguém, nem mesmo alguém como a Sra. Montford. Sabia muito bem o quão nocivo isso poderia ser. A carruagem chegaria em breve, e ela debandaria de bom grado.

Perth observou Lillith sair. Sem dúvida ela e a Sra. Montford chegaram a um acordo quanto à antipatia mútua. Amanhã haveria carne fresca para as hienas fofoqueiras.

— Acabe logo com isso, homem — declarou Lorde Holland. — Case com a mulher.

Perth concentrou-se de novo.

— O que disse?

— Lady de Lisle. Case com ela e acabe com isso. Vê-lo admirá-la é como ver um lobo vigiando uma ovelha. É triste.

Perth enrubesceu.

— Mil perdões. Não atinei que o incomodava.

Lorde Holland sorriu comovido.

— Ela sente o mesmo em relação a você. Está estampado na testa.

— Compreendo.

— Então faça alguma coisa. — Lorde Holland deu-lhe um tapinha nas costas.

— Talvez. Se me der licença. — Perth curvou-se e debandou.

Lá fora a carruagem aguardava, os cavalos impacientes arrastando os cascos no solo. Saltou para dentro e partiram antes que ele sentasse.

Eram as primeiras horas da madrugada e não queria ir para casa. Não sentia sono e não faria nada exceto cismar sobre Lillith. Em vez disso iria ao Brook’s.

O clube elitista estava abarrotado de cavalheiros que jogavam, bebiam e conversavam. Perth abriu caminho até as mesas de carteado e tomou um assento vago. O Visconde Chillings, um homem alto, esbelto e de espessos cabelos grisalhos, já estava lá. Sem demora receberam a companhia de Lorde Alastair St. Simon, que desposou Lizabeth Stone, Lady Worth, há um ano atrás. Os três eram velhos amigos.

— Só falta Brabourne — comentou Chillings — mas ele está no continente com sua adorável noiva. Vamos cortar e apostar?

— Somos poucos — retrucou Lorde Alastair — mas tanto faz.

Enquanto isso, um quarto homem sentou-se na cadeira vazia. Perth fitou Mathias Wentworth. Indulgente como sempre. O cabelo louro platinado, tão semelhante ao da irmã, caía sobre os olhos cinzentos injetados de vermelho feito o pôr-do-sol.

Perth resistiu ao impulso de enxotar Wentworth e comentou:

— Você chegou bem a tempo de jogar. Mas duvido que apostemos tão alto como está acostumado.

A boca de Wentworth fendeu na paródia de um sorriso.

— Creio que hoje apostarão.

Chillings virou a carta, um ás de espadas.

— Não tenho o hábito de apostar minha herança.

Perth espiou o amigo de soslaio. Estaria Chillings tentando provocar Wentworth? Mostrou a própria carta, um dois de copas.

— Parece que não começarei o jogo.

Lorde Alastair St. Simon virou a dele para exibir o dez de ouros.

— Nem eu.

Desdenhoso, Wentworth mostrou sua carta, a rainha de espadas.

— Eu tampouco.

Chillings reuniu as cartas e embaralhou. Então ofereceu-as a Perth para cortar antes de distribuí-las. O jogo começou, as apostas relativamente baixas para homens de tamanha fortuna. Lorde Alastair nunca jogava por grandes quantias desde que o irmão caçula da esposa suicidou-se após perder uma soma exorbitante de dinheiro para Lorde Alastair naquele mesmo salão. Perth, de fato, surpreendeu-se por encontrá-lo aqui.

— Por onde anda Lady Worth? — indagou Perth. Lorde Alastair jogou antes de responder.

— Está com a mãe. Pelo jeito, elas acham que a minha casa de campo precisa de reformas. E não sou eu quem vai contrariá-las. Todavia, não pretendo estar por perto quando virarem o lugar pelo avesso.

Chillings anuiu.

— Sei como é. Minha esposa fez o mesmo. O fato do lugar ser bom o bastante para a minha família pelos últimos quatrocentos anos não fez nenhuma diferença. Agora não importa.

Ninguém falou nada. A esposa do Visconde morrera de parto há dois anos. O bebê falecera também.

O jogo continuou. Wentworth prosseguiu atirando suas fichas sobre a próspera pilha de apostas. Ninguém julgava-o capaz de reunir tal quantia se perdesse, contudo nada disseram. Cabia ao próprio Wentworth saber quando parar.

Abriram a sexta garrafa de vinho do porto quando Perth ganhou a última rodada. Todos brindaram a ele, até Wentworth.

— Creio que é hora de ir andando — declarou Chillings. — Volto amanhã com uma promissória do banco.

Perth assentiu.

— Eu também — disse Lorde Alastair, deixando o vinho pela metade.

Quando eles saíram, Wentworth permanecia sentado em frente a Perth. Um brilho febril nos olhos, um jogador viciado até a alma.

— Eu jogo outra partida. Tudo ou nada.

— Sério? Já me deve quase dez mil libras — retorquiu Perth, imaginando o que o sujeito tramava.

— É verdade. É verdade. Mas tenho um prêmio melhor para você, um que você cobiça há muitos anos.

Perth resistiu ao ímpeto de esganar aquele indivíduo repelente.

— É mesmo? Duvido que isso lhe pertença para apostar.

— Oh, nunca duvide que tal prêmio esteja a meu dispor. Você mais do que ninguém devia saber disso.

O sorriso malicioso de Wentworth quase provou-se a ruína de Perth. Entretanto, ele manteve a postura indiferente.

— Apostamos dinheiro, não vidas — falou baixinho.

— Claro. Não sabia que você era tão enfadonho. Particularmente, já que ainda sofre por ela depois de anos. Ora, esta tarde você foi lá xeretar.

A vontade de enfiar os dentes do sujeito goela abaixo foi quase irresistível. Contudo, isso apenas criaria mais escândalo do que seus atos em relação a Lillith já principiavam a fomentar.

— Aparentemente, estou mais interessado em permitir que as pessoas façam o que desejarem do que você. Mas isso nós já sabíamos.

— Sim, sabíamos. Uma lástima. De todos os pretendentes à mão de Lillith, você seria o mais fácil de agarrar, e o mais rico.

— Planeja vender sua irmã pelo lance mais alto outra vez?

— Mais ou menos isso. Gostaria de entrar na disputa?

Os olhos aguçados de Perth tornaram-se intimidadores.

— Se você não tivesse o descaramento de me pagar, eu até fingiria que não nos conhecemos. Porém, não tomarei a vida de sua irmã numa barganha.

— Você quer a minha irmã e estou disposto a entregá-la a você. Então, por que todo esse rebuliço? Por que não facilitar as coisas?

— Você sempre esteve disposto a entregá-la pela melhor oferta. Foi por isso que sentou-se aqui hoje, para apostar a liberdade de Lady de Lisle mais uma vez? E me escolheu porque pensou que eu aceitaria a transação? Você é um verme desprezível.

Wentworth deu um sorriso de mofa.

— Você é igual a De Lisle, só que mais jovem. Fora isso, quer exatamente o que ele queria. Ele tinha o dinheiro. Agora você também tem.

Quebrar todos os ossos de Wentworth seria tão fácil e gratificante. Mas não adiantaria nada.

— Não estou interessado em jogar o seu jogo. Não pague o que me deve… ou faça a sua irmã pagar. Ela é bastante rica para sustentá-lo por mais alguns anos.

As sobrancelhas de Wentworth franziram um segundo antes que o sujeito percebesse que o semblante o traiu. A suspeita flamejou dentro de Perth.

— O que você fez, Wentworth? Colocou-a à venda para manter a sua obsessão pela jogatina?

O irmão de Lillith engoliu o resto de vinho e levantou.

Perth levantou-se também.

— De Lisle cometeu um erro ao deixar a herança dela sob a sua administração. Contudo, imagino que vocês acertaram esse trato muito antes que ele falecesse. Você já a depauperou?

Wentworth virou-se sem retrucar. A figura corpulenta rastejou porta afora. Uma sensação horrível assomou Perth. Lillith estava à venda novamente pelo maior lance.

Com os diabos que ele a perderia pela segunda vez.

No dia seguinte, Perth recebeu a promissória de Mathias Wentworth referente a dez mil libras. Olhou fixo para o pedaço de papel. Ficou tentado a atirá-lo na lareira. Wentworth não possuía tal quantia, devia tê-la tirado da irmã.

Porém, se as suas suspeitas fossem verdadeiras, Lillith tampouco possuía todo aquele dinheiro. O sujeito jogava um jogo arriscado com o futuro de Lillith.

 

                                                   Capítulo Nove

Perth ergueu o binóculo e perscrutou a multidão do Covent Garden Opera House. Qualquer um que fosse alguém na sociedade estava presente. O Duque de Wellington encontrava-se no camarote com amigos. O Príncipe de Gales ocupava um camarote privativo. E… o escrutínio findou. Lillith achava-se sentada com Madeline e Nathan Russell.

— Encontrou-a enfim — comentou Ravensford.

— Andrew — Mary Margaret, Lady Ravensford, ralhou numa voz rouca que soou como se houvesse acabado de fazer amor. — Deixe o homem em paz.

Ravensford tomou os dedos da esposa para um beijo, com um sorriso devastador.

— Perth sentir-se-ia rejeitado se eu não implicasse com ele.

Mary Margaret fez um muxoxo. Era uma linda mulher, embora não de acordo com os padrões. Era morena, enquanto as louras estavam na moda. A silhueta era curvilínea e esbelta. Todavia, os olhos se destacavam, brilhantes feito esmeraldas; demonstravam compaixão e inteligência. Ravensford era louco por ela.

— Ignore-o, Perth — disse Mary.

— Sempre — replicou Perth.

No palco a dança continuava. Na galeria, aqueles que não podiam custear assentos ou camarotes cotejavam qualquer sinal de tornozelos delicados. Perth ignorou tudo isso e dirigiu-se ao camarote de Russell.

— Perth — grasnou Madeline Russell. — Junte-se a nós. Formamos um grupo e tanto.

Chillings permanecia ao lado de Lillith.

— A vida é um palco, como dizia o bardo.

— Assim parece — retrucou Perth, sentando-se do outro lado de Lillith.

— Ando acompanhando a sua proposta na assembléia — comentou Nathan. — Situação difícil. Me informe se eu puder ajudar. — Nathan Russell tinha influência na câmara e seria um aliado valioso.

— Claro, obrigado. — Voltou a atenção para Lillith. — Não sabia que gostava de ópera.

Ela fitou-o com frieza.

— Há muitas coisas a meu respeito que você não sabe.

— E muitas coisas que sei — cochichou.

Chillings assistia à interação do casal.

— Creio que devo ir. — Curvou-se perante Lillith e encarou Perth. — Estarei no Brook’s mais tarde.

Perth assentiu.

Logo que Chillings saiu, bateram à porta. O Príncipe de Gales entrou com Wentworth nos seus calcanhares. Todos levantaram e se curvaram. Pelas costas do príncipe, o irmão de Lillith sorria com escárnio.

— Sra. Russell, Lady De Lisle. — O príncipe tomou a mão de cada uma delas. — Não resisti a tamanha beleza. E Mathias insistiu para que eu cumprimentasse a irmã dele.

Perth comentou cínico:

— Parece que morar com ela não lhe basta.

O silêncio caiu e a tensão assomou. Lillith, ressentida, explicou:

— Mathias juntou-se a mim em Londres porque sabe o quanto detesto ficar sozinha numa casa tão grande.

Ninguém disse uma palavra. Madeline intercedeu.

— Estamos encantados em recebê-lo, alteza. Aceita um pouco de vinho?

O príncipe, jamais inclinado a sacrificar o prazer, aceitou. Quando todos sentaram, Mathias tomou Lillith pelo braço.

— Venha passear um momento comigo, Lillith — disse Mathias, o tom autoritário.

O sangue de Lillith subiu mas, com Perth pronto a atacar Mathias por qualquer pretexto, levantou-se. Melhor manter os dois apartados.

Pousou a mão no ombro de Mathias e permitiu-se guiar para fora do camarote. Escutou uma cadeira ser arrastada, e viu Perth pondo-se de pé. Fitou-o carrancuda e balançou a cabeça. Ele franziu os olhos, porém não a seguiu.

Fazia mais frio no corredor que no camarote. Soltou o braço de Mathias para apertar o xale.

— O que deseja conversar? — ela indagou, impaciente.

— Não devia encorajar Perth. Já lhe disse, ele não oferece nada honroso.

Lillith comprimiu os lábios. Perth era mais honrado do que o irmão julgava. O que o conde não ofereceu foi amor.

— Já discutimos isso antes, e essa estrada não leva a lugar algum — contestou irritada. — Será que eu deveria me insinuar para o Visconde Chillings? Parece que ele deixou o seu grupo para unir-se a mim hoje. Foi você quem sugeriu?

Um sorriso malicioso fez as bochechas de Mathias inflarem.

— Você está viúva há um ano. É hora de tentar casar de novo. Chillings seria um bom par. É viúvo, então os dois possuem algo em comum. E um homem, outrora casado, tende a casar novamente.

— Este não é o lugar para discutir isso, Mathias.

Ele deu de ombros.

— Nunca há uma hora certa para discutir matrimônio.

Todavia, ele os conduziu de volta ao camarote dos Russell. Abriu a porta sem bater, e acomodou Lillith na sua frente. O príncipe já saíra, mas Perth ocupava o assento dele, taciturno.

O conde levantou-se de supetão.

— Lady de Lisle, Sra. Russell, eu ficaria encantado se me acompanhassem num passeio a Rotten Row amanhã. Estará frio, mas será revigorante. — As palavras incluíram a todos, entretanto os olhos se concentraram em Lillith.

Embora ela abrisse a boca para recusar, Madeline foi mais rápida.

— Ora, Perth, ficaríamos encantadas. Não é, Nathan? Lillith? — Lançou um olhar para Lillith bradando mais alto que com palavras que elas iriam ao passeio.

Lillith deu-lhe as costas. Madeline era uma casamenteira inveterada. Mais cedo, tentou escandalosamente aproximá-la de Chillings.

— Lillith já se comprometeu comigo — retrucou Mathias, rubro de irritação.

Apesar de tentar manter o semblante impassível, os músculos de Lillith se rebelaram. Mathias apenas almejava afastá-la de Perth, o que não era mau. Ela não disse nada.

— Parece que Lady de Lisle continua dançando conforme a música — comentou Perth, numa entonação quase insultuosa.

O silêncio reinou enquanto todos fitavam Mathias. Ele era famoso por evitar duelos. Empertigou-se e apertou o braço de Lillith.

— Fará bem em lembrar-se disso, Perth — alfinetou Mathias antes de virar-se e sair sem elegância.

Perth, com uma expressão matreira, despediu-se, dizendo:

— Esperarei ansioso por vê-la em outra ocasião, Lady de Lisle.

Madeline, divertindo-se a valer, estendeu a mão para que Perth a beijasse. Nathan Russell observou bem-humorado as momices da esposa. Então, antes que Lillith atinasse o que Perth pretendia, ele tomou-lhe os dedos e levou-os aos lábios. A maioria dos britânicos não cumprimentava as mulheres assim. Contudo, ela não lograva negar-se tal prazer, bem como arrancar o amor que nutria por ele.

Os olhos dele cativaram os seus conforme os lábios tocaram a fina pelica da luva. A intimidade do olhar intensificou o desejo irracional. Ela sabia muito bem como era sentir aquela boca na pele nua. Ela enrubesceu e puxou a mão.

Perth acenou e saiu.

— Ele é diabolicamente lindo — comentou Madeline. — Qualquer mulher pularia de alegria ao receber tamanha atenção dele.

— Não sou qualquer mulher — retrucou Lillith azeda.

— E nem deveria ser. Ele não estaria tão interessado se assim fosse.

Lillith evitou os olhos astutos da amiga. Se não quisesse as atenções de Perth, então, não viria para a metrópole. Na verdade, ela ansiava por isso. Agora a intensidade dos encontros a assustava mais do que quando ele a seqüestrou. Começou a pensar que talvez ele de fato gostasse dela já que a perseguia com tamanha diligência. Mas não. Ele queria vingança.

Precisava lembrar disso. Do contrário se atiraria nos seus braços e seria infeliz para o resto da vida. Pois, como ele não a amava, não seria fiel.

Ela suspirou. Essa não era a vida que desejava.

 

Tão logo deixou o camarote dos Russell, Perth saiu do teatro. Ravensford ficaria intrigado, mas não preocupado. Lá fora, o clima estava frio e úmido. A bruma cobria as ruas de modo que sequer a luz dos archotes providenciava mais que três metros de visibilidade. O Brook’s era longe, mas, no humor em que se encontrava, Perth sabia que a caminhada lhe faria bem.

O ar noturno estava fresco e ele precisava aliviar a tensão do encontro com Lillith. Por mais que a visse, ou tentasse conquistá-la, ela resistia.

Bateu a bengala no chão frustrado. Ela queria coisas que ele não poderia, nem iria, oferecer. Um dia ele a amou, não cometeria o mesmo erro outra vez.

Acelerou o ritmo até dobrar a esquina da rua onde se localizava o Brook’ s. O interior do clube estava morno, enfumaçado e mal iluminado.

Em algum lugar, Chillings aguardava por ele. Em vez de inquirir a criadagem acerca do paradeiro do visconde, Perth procurou por conta própria. Encontrou Chillings acomodado numa poltrona de couro, num canto escuro, com uma garrafa de um líquido âmbar e dois copos ao seu lado.

— Uísque? — ofereceu Chillings.

— Obrigado — replicou Perth, aceitando o copo. Por longos minutos, nenhum dos dois falou. Cada um bebeu um copo de uísque e serviu-se de outro. Alguém acendeu um cachimbo. A névoa serpeou em torno do candelabro e dos castiçais. Uma lareira crepitante acrescentou seu odor peculiar ao ambiente.

Chillings sacou uma caixa de rapé do bolso da casaca, abriu e ofereceu a Perth.

— É a mistura original de Beau.

Chillings foi amigo íntimo de Beau Brummell e permaneceu a seu lado até Brummell cair em desgraça com o Príncipe de Gales. Se os rumores fossem verdadeiros, Chillings também emprestou uma grande soma em dinheiro a Beau e nunca foi pago. Ele não era o único.

— Não, obrigado — disse Perth. — Não gosto de cheirar rapé. Por que me chamou aqui?

Chillings alçou uma das sobrancelhas negras de modo que elas quase alcançassem o cacho de cabelos prematuramente grisalhos que pendia da fronte.

— Pensei que fosse óbvio… a adorável Lady de Lisle.

Os músculos das costas de Perth contraíram em nódulos dolorosos.

— Não sabia que tínhamos algo a discutir relacionado a ela.

— Basta de evasivas — afirmou Chillings. — A vida é muito curta para se permitir que mal-entendidos arruínem uma amizade, ou que o orgulho impeça de tentar conseguir o que se quer. Acredite-me, eu sei.

Perth baixou o copo vazio e esperou.

— Lady de Lisle é uma mulher extraordinária. Qualquer homem se interessaria por ela… se não for comprometido. — Chillings fitou-o nos olhos. — Aprecio a companhia dela, mas isso é tudo. Eu estava no camarote dela porque o irmão me pediu o favor de dar-lhe atenção. Aparentemente, ela carece de companhia masculina.

— Ou da espécie que Wentworth considera apropriada.

— Isso também. Amigos?

— Desejo-lhe a melhor das sortes com a dama que o cativou.

Chillings riu constrangido.

— Precisarei de toda a sorte possível. Ela é um tesouro, nova na cidade, e nem um pouco interessada em tornar-se uma cortesã. Espero convencê-la do contrário.

— Será bem-sucedido. Mas, neste meio tempo, que tal uma partida de baralho?

Por caridade mútua, ambos procederam ao salão onde grupos participavam de todos os tipos de jogos de azar.

— Aceita jogar bacará hoje, Perth? Sinto-me inclinado a um desafio.

Perth gargalhou.

— Se me for garantida uma rodada na banca, ficarei mais que feliz em satisfazer seu desejo.

Os dois dirigiram-se à mesa de bacará. Perth sabia que podia confiar em Chillings quanto a não estar interessado em Lillith.

Todavia, Perth sabia que Wentworth não descansaria até assegurar que Lillith fosse desposada outra vez pelo melhor comprador, um homem disposto a pagar as dívidas de Wentworth. Pretendia tê-la para si, porém maldito seria caso pagasse as dívidas de Wentworth em troca.

 

Dias depois, Lillith andava em círculos pelo quarto. O aposento amplo e arejado, decorado em tons de lilás e azul, normalmente tranqüilizava seus nervos. Esta manhã, nada adiantaria. Cada dia que passava tornava mais difícil negar o que o corpo lhe dizia.

— Milady — saudou Agatha —, os convidados chegarão logo. Ainda preciso penteá-la.

Lillith suspirou. Ela, Madeline e Nathan fariam um piquenique no campo. Madeline comentou que convidaria outras pessoas, porém a anfitriã era Lillith, e todos se encontrariam aqui. Ao propô-la, a idéia pareceu divertida e um bom esforço que, talvez, por algumas horas, afastaria Perth da sua mente. Agora estava cansada e rabugenta por causa do sistema digestivo que se recusava a cooperar. Desejava poder confessar o enjôo, mas não se atreveu.

Pressionou o abdome quando sentou para receber os cuidados de Agatha. Despertava enjoada há três semanas. E andava mais fatigada que de costume.

— Ai — lamuriou-se, as lágrimas brotando nos olhos. — Cuidado, Agatha.

— Perdão, milady. Não pretendia machucá-la.

Lillith suspirou.

— Eu sei que não.

Os pensamentos giravam às tontas. E se o temor fosse verdade? Estaria grávida de Perth? Não. Impossível. Nove anos de casamento jamais resultaram nisto — decerto não três noites?

— Traga-me o xale verde — pediu, desviando os pensamentos para a toalete. — E a touca orlada de cetim verde e flores de macieira.

— Sim, milady.

Agatha afobou-se para cumprir a ordem. Lillith ergueu-se e começou a andar em círculos. Basta.

Vestiu as roupas e saiu do quarto, resolvida a ignorar os protestos do estômago, embora soubesse que seria hora do almoço antes que conseguisse algum alívio. Agora queria certificar-se de que Cook empacotara tudo e que o coche se encontrava a postos.

Agatha disparou atrás dela com a pelerine verde-maçã.

Trinta minutos depois, Lillith assegurou-se de que tudo estava pronto. Escutou uma batida e o ruído da porta se abrindo.

— O Sr. e a Sra. Russell — anunciou o mordomo. Lillith avançou em direção aos braços abertos de Madeline.

— Você está decididamente radiante — derreteu-se Madeline.

— Obrigada — replicou Lillith, sorridente. — Você também está linda. Sair para um piquenique lhe fez bem.

— Uma idéia perfeita. Nesta época do ano é ainda mais encantador. A cidade fica tão enfadonha durante o Natal, tanta gente permanece no campo, que um piquenique num clima questionável espairece. Você sempre adorou o inusitado.

Lillith riu, apreciando o prazer da amiga pela aventura incomum.

— Torçamos para que não neve. Quem mais você coagiu a correr tal risco conosco?

Madeline espiou o marido, e o riso abandonou-lhe o semblante.

— Bem, veja… Nathan esbarrou em Lorde Ravensford e a esposa em Rotten Row. Ontem. E…

Calou-se quando o mordomo abriu a porta novamente e anunciou:

— Lorde e Lady Ravensford e Lorde Perth.

Lillith empalideceu conforme Madeline corou.

— Desculpe, Lillith, eu não… Oh, céus, eu aprontei a maior confusão.

Lillith forçou um sorriso.

— Ravensford, Lady Ravensford, Perth, que encanto se unirem a nós.

Os olhos de Ravensford reluziram.

— Não posso expressar o quanto estamos encantados por estarmos aqui. Que golpe de sorte esbarrar em Russell em Hyde Park ontem.

Os olhos de Lady Ravensford expressaram solidariedade.

— Espero que não sejamos muitos. Os homens em geral não pensam nestas coisas quando planejam um passeio, particularmente quando o plano do passeio não é deles.

O sorriso de Lillith provou-se genuíno.

— Não receie, Lady Ravensford. Pedi a Madeline que buscasse outras pessoas para juntarem-se a nós. Alegro-me que ela os tenha encontrado.

Um pouco da tensão na sala amainou. Então, Lillith cumprimentou Perth. Os olhos dele mostravam-se opacos.

— Perth.

— Lady de Lisle.

— Devemos sair se esperamos passar algum tempo no campo — retrucou ofegante, desejando resistir a ele e ciente de que não o conseguiria.

Sem aguardar resposta, Lillith sumiu da sala. O quanto antes impusesse distância entre ela e Perth melhor.

Permaneceu no vestíbulo. Ao erguer o olhar, viu Mathias no térreo. Ele a observava como um gato vigia o rato.

— Vai sair, irmã? Será que ouvi a voz de Perth?

Justo quando o restante do grupo espalhou-se pelo vestíbulo.

Madeline e Lady Ravensford riam por algum motivo. Lorde Ravensford, uma das sobrancelhas ruivas arqueadas, contemplou Mathias enquanto Perth ignorou o irmão dela.

Alvoroçada, Lillith disse:

— Vamos sair para um piquenique, Mathias. Como pode ver, formamos um grupo.

Imediatamente, ela se arrependeu das últimas palavras. Elas soaram como um recurso para enfatizar a inocência da situação.

Mathias se deteve a meio passo da escadaria. O olhar perscrutou a todos, e um sorriso de escárnio desfigurou-lhe a face.

A apreensão afligiu Lillith. Algo mais ocorreu desde o incidente no quarto dela dias atrás. Seria necessário sondar Mathias quando retornassem. Por ora, queria tirar o grupo daqui antes que a situação piorasse.

Saiu apressada tomando Madeline pelo braço, na esperança que os outros as seguissem. Lá fora, o cocheiro aguardava. A carruagem dos Russell, com cabine verde esmeralda, ficava atrás da sua. E atrás das duas, outro coche feito de ébano e ostentando o brasão do Marquês de Ravensford.

A tensão permanecia. Virou-se e falou sem pensar:

— Onde está a sua carruagem, Perth?

— Vim a pé.

— O quê? Isso é duro de acreditar.

Ele deu de ombros.

— Creio que após tanto tempo na cidade, eu carecia de exercício. Caminho muito no campo. Além do mais, moro a apenas algumas ruas daqui.

— Como pretende nos acompanhar? Você não tem carruagem, e os coches tanto de Nathan quanto de Ravensford só comportam duas pessoas.

Fitou-a nos olhos.

— Esperava que me oferecesse transporte.

— Não, não, impossível — intercedeu Madeline. — Você deve ir com Nathan, Perth. Eu irei com Lillith.

O alívio rivalizou com o desapontamento. Entretanto, o que Madeline propôs era melhor. Podia ser uma viúva, contudo isso não lhe dava carta branca para ficar sozinha com um homem que não fosse seu parente numa carruagem. Não com os rumores que circulavam a respeito de ambos, pois o nome dele agora era vinculado ao seu.

Perth lançou-lhe um olhar ardoroso antes de juntar-se a Nathan no veículo. Ela e Madeline entraram na carruagem, e o cocheiro fustigou os cavalos.

Cruzaram Londres rapidamente, os paralelepípedos ressoando alto ao longo do West End, e chegaram ao seu destino no campo, Richmond.

— Lamento tanto — disse Madeline. — Eu só soube tarde demais que Nathan convidara Ravensford. E que Ravensford traria Perth. Desculpe-me. Sei que julga a presença dele incômoda.

Lillith sorriu constrangida.

— Não importa, Madeline. Preciso aprender a lidar melhor com a companhia dele, mas é complicado.

Espiou a paisagem que atravessavam. As árvores perderam as folhas e os sulcos nos campos estavam marrons. Novembro chegou, e a terra adormeceria.

Vários membros da aristocracia possuíam residências em Richmond. Era uma viagem tranqüila por água. De Lisle tinha uma casa aqui, herdada por um sobrinho distante, não muito mais velho que Lillith. O novo Lorde de Lisle não gostava dela, sendo contrário ao casamento desde o início. Todavia, conseguiam manter uma relação afastada de tolerância.

— Ora, então — retrucou Madeline — resta-me torcer pelo melhor. Ainda acho que você deve aceitar a proposta dele. É hora de casar de novo.

— Quer que me case com o Conde de Perth? Um homem que não me ama?

Madeline deu de ombros, nem um tiquinho arrependida.

— Ele obviamente gosta de você. E os rumores já associam um ao outro. Um casamento resolveria isso logo.

Lillith suspirou.

— Sim, os rumores existem. De alguma forma, meu desaparecimento foi associado a Perth, e não sei por quê.

— Não? Decerto está fingindo que não, algo que não precisa fazer comigo.

— Por que a minha ausência da casa de campo seria imediatamente vinculada à ausência de Perth da cidade? Cada um poderia ausentar-se por inúmeras razões não relacionadas entre si.

— Lógico. Eu concordo. Mas ninguém acredita nisso.

— Por quê? — Lillith voltou o semblante intrigado para a amiga.

Madeline balançou a cabeça como se a resposta a tal pergunta fosse tão óbvia que era ridículo que Lillith não a enxergasse.

— Porque vocês dois se olham como se um fosse o mais cobiçado tesouro para o outro. Todo mundo notou, e todo mundo comenta de vez em quando. Muitos especulam quando se casarão. Ou, excluindo isso, começarão um romance. O desaparecimento foi entendido como o início do romance.

Um engasgo escapou de Lillith.

— Por que não escutei nada disso?

— Como posso saber? Talvez você tenha se recusado a ouvir os comentários. Mas nada disso importa realmente. Você o ama, devia casar com ele e encerrar essa história.

— Talvez — replicou Lillith. Havia tanto a considerar. — Ele não me ama — concluiu baixinho.

Madeline mal escutou as últimas palavras da amiga e não pôde reprimir um comentário.

— Muito dramático, porém creio que longe da verdade.

A esperança brotou no coração de Lillith apenas para ser implacavelmente sufocada.

— Ele me deseja.

— Oh, sim, claro — retorquiu Madeline animada. — Deve ser assaz empolgante ser desejada por um homem da estirpe dele. Eu ficaria extasiada.

Lillith gargalhou.

— Ora, sei que é brincadeira. Você é loucamente apaixonada por Nathan. Você não olha para nenhum outro homem.

— Mesmo assim, mulher nenhuma pode ignorar o Conde de Perth por completo. Ele parece tão intrépido. É fácil imaginá-lo raptando alguém sem se preocupar com o que os outros irão pensar. Um sátiro.

— Sim, ele é tudo isso e muito mais. Entretanto, como eu já disse, ele não me ama. O desejo não basta. Não para mim. Já tive isso antes, e é um consolo medíocre.

— Oh, querida — sussurrou Madeline. — Lamento, não pensei nisso, só que onde há desejo tão ardente decerto florescerá o amor.

— Mas nem sempre. Nem sempre.

A carruagem diminuiu a marcha e ambas se calaram. Atravessavam uma das margens lamacentas da estrada e logo chegariam ao seu destino, uma pequena colina na propriedade do falecido marido de Lillith. Era um charmoso refúgio dos prédios e da poeira de Londres.

Lillith sempre vinha aqui para buscar a paz. Hoje seria inteiramente diferente.

Dirigiu-se a Madeline.

— Chegamos.

Madeline assentiu e deixou que o assunto anterior fenecesse.

Em instantes, todos saltaram das carruagens, e os servos abriram as cestas de comida. As mantas tremularam ao vento, e depois recobriram a grama mortiça de novembro. Nenhuma flor silvestre saudou-os, todavia o panorama bucólico recompensou a jornada. A noite seria insuportavelmente fria. O sol fraco de novembro não aqueceu ninguém. Vieram mais pela confraternização do que pelo clima. Por sorte, não estava chovendo, ou pior, nevando.

 

                                                     Capítulo Dez

Lillith deparou-se com Perth sentado ao lado dela na manta, a reação a ele aquecendo-a apesar do sol fraco. Ele serviu-lhe chá, embora um lacaio rondasse a postos. Ela aceitou a xícara, os dedos roçando nos dele, e as lembranças da primeira vez em que Perth serviu-lhe chá inundou-lhe os sentidos. Foi durante aquela viagem de coche. Enrubesceu ao relembrar as implicações do rapto.

Ele aparentou ler seus pensamentos.

— Podemos fazer aquilo de novo — murmurou, a voz rouca.

— Não, não podemos. E por favor… não fale mais nada. Senão por outra razão que a presença dos demais à nossa volta.

Um sorriso sombrio contraiu os lábios de Perth. Levantou-se e foi conversar com Nathan, que encontrava-se meio afastado contemplando as pradarias.

Mary Margaret, Lady Ravensford, sentou-se no lugar de Perth.

— Ele é um homem passional — comentou discreta. Lillith fitou-a impassível.

— Às vezes se deve fazer o que o coração manda, não o que a cabeça aconselha — prosseguiu Mary. — Creia-me, sei que não é fácil.

— Obrigada — replicou Lillith. No entanto, não queria conversar a respeito. — Já esteve aqui antes?

Lady Ravensford entendeu a deixa. Madeline juntou-se a elas, e as três debateram os mais recentes falatórios com entusiasmo. Logo os cavalheiros uniram-se a elas e organizaram o pandemônio, quando os criados puseram-se a servir a comida nas louças e praianas cuidadosamente embrulhadas. Cálices de cristal foram abastecidos de champanhe. O riso encheu o ar.

— A Lady de Lisle e seus fantásticos programas — brindou Ravensford.

— Sim — os outros responderam em uníssono. Lillith gargalhou encantada, só para sentir o olhar de Perth sobre si. Ele ergueu a taça.

— A Lady de Lisle — declarou, afinal.

Sucedeu-se uma pausa angustiante, como se os demais presenciassem algo muito íntimo. Calafrios deslizaram pela espinha de Lillith.

Contra o senso de autopreservação, sentia-se atraída por Perth tal qual a mariposa é atraída pela chama que a destruirá. Devia regressar para o campo logo, ou estaria perdida.

 

Na tarde seguinte, Lillith cavalgava em Hyde Park apesar do frio e da exaustão, sem saber como permitiu que Mathias a convencesse a passear. Discutiram quando ela questionou a hostilidade entre ele e Perth. Mathias disse que não havia nada. Ela sabia que não.

Hoje, saíram num grupo reduzido de três homens, Lillith e outra mulher. Tratava-se de Lady Annabelle Fenwick-Clyde, irmã gêmea do Visconde Chillings. Lillith acabara de conhecê-la.

Como o irmão, que também os acompanhava, Lady Annabelle possuía os prematuros cabelos grisalhos e sobrancelhas negras feito a noite. Mostrava-se elegantemente trajada num hábito de montaria verde-esmeralda e um sofisticado chapéu. Os olhos azuis reluziam, e o senso de humor era mordaz. Lillith julgou-a divertida.

— Oh, veja — comentou Lady Annabelle —, o Conde de Perth. Ouvi dizer que é um demônio com as damas e um herói militar. — Cutucou o irmão com o chicote. — Chame-o aqui, Chillings, pois não duvido que o conheça.

O visconde soltou um longo suspiro.

— Há certas ocasiões como agora quando gostaria de não ter regressado do Cairo, Belle.

A dama riu e piscou para Lillith.

— Sou um grande tormento para ele. Algo que decerto você jamais foi para o Sr. Wentworth.

Lillith espiou Mathias e sufocou o impulso de comentar que parecia que ele engolira um limão inteiro. Afinal o passeio foi idéia dele.

— Tento não ser um fardo. Prefiro não encarar as conseqüências.

Lady Annabelle fitou-a sem retrucar. O terceiro homem do grupo, o Sr. Carstairs, aproximou-se de Lillith e disse:

— Não posso acreditar que você já causou problemas.

Lillith sorriu e torceu para que Perth notasse o belo homem assaz elegante sobre o cavalo. Seria bom se Perth descobrisse que outros homens a julgavam atraente. Seria ainda melhor se ela julgasse alguém atraente além do conde.

O Sr. Thomas Carstairs era um nababo da Companhia das índias que, recentemente, retornara à Inglaterra. O cabelo louro era desbotado e a face bronzeada pelo sol indiano. Os dentes alvos ofuscavam a visão quando sorria, e a pele em torno dos penetrantes olhos azuis vincava. Um homem muito bonito.

Lillith suspirou. Pena que não fizesse seu coração disparar. O aroma de canela flutuou no gélido ar de novembro. Perth estava próximo.

Ela virou-se na direção dele o mais indiferente possível, quando o ímpeto de arregalar os olhos era quase asfixiante.

— Será que vi você me chamar, Chillings? — indagou ele.

O visconde riu.

— Minha irmã quer conhecê-lo. Ingleses são uma raridade onde ela passou os últimos dois anos, e até agora não se saciou dos compatriotas.

Perth contemplou Lady Annabelle, e os olhos se iluminaram de apreço.

— É um prazer ajudar uma dama em apuros. Sou Perth.

Ela estendeu a mão enluvada e covinhas apareceram na face.

— Sou Annabelle Fenwick-Clyde, irmã gêmea de Chillings.

Lillith observou a cena angustiada. Lady Annabelle era uma mulher bonita, com inteligência e bom-humor, qualidades que Perth admirava. A dama também não escondeu o interesse pelo conde.

— Lady de Lisle, gostaria de cavalgar até aquela árvore frondosa adiante? — sugeriu o Sr. Carstairs.

Temendo não disfarçar o tom de gratidão, ela anuiu com a cabeça e instigou a égua a avançar. Não era algo que normalmente aceitaria, mas o açoite do vento no rosto era necessário feito uma bofetada para recuperar o juízo. O flerte entre Perth e Lady Annabelle era outra razão para não desposá-lo.

Ela e o Sr. Carstairs chegaram à árvore esbaforidos. O chapéu de veludo negro com plumas brancas de avestruz ameaçava cair. Aquietou a montaria e ajeitou o chapéu.

— Permita-me — disse o Sr. Carstairs. — Afinal, causei tão precária situação.

Foi uma oferta inesperada. O Sr. Carstairs emparelhou o garanhão cinzento com a égua, alçando as mãos à cabeça dela. Ele cheirava a sândalo, agradável embora nada excitante.

Julgou que talvez ele haveria demorado mais que o estritamente necessário para consertar o chapéu, contudo não teve certeza.

— Obrigada — murmurou risonha. Ele retribuiu o sorriso.

— O prazer foi meu.

A expressão nos olhos azuis insinuou outras coisas as quais poderia fazer por ela que seriam um prazer. Contudo, Lillith não sentiu empolgação. Sequer corou.

Mal impusera distância entre ambos quando o resto do grupo os alcançou. Ignorou a óbvia irritação de Perth, e voltou-se para Mathias.

— Não é hora de voltarmos para casa? Creio que você tem uma reunião esta tarde.

— Temos tempo suficiente para outro galope ao redor do parque.

A relutância apenas provocaria uma cena.

— Como desejar.

Infeliz com a situação toda, Lillith galopou, torcendo para deixar os outros para trás. O desapontamento afligiu-a quando ouviu o trotar dos cascos de outro cavalo.

— Você está livre de compromissos — afirmou Perth, ríspido.

— Como você. Lady Annabelle é uma mulher muito interessante.

— É mesmo — murmurou. — Mas não fiz amor com ela.

O rubor que não brotara pelo Sr. Carstairs flamejou.

— Quieto. Alguém pode escutar.

— Eles estão muito longe. Além disso, Carstairs talvez agora saiba que as chances dele são nulas.

— Tal decisão não é sua.

— Por Deus é. Você é minha, Lillith, quer admita ou não.

— Não sou o brinquedinho de ninguém. E muito menos seu.

A raiva enegreceu os olhos de Perth.

— Não avisei para ficar longe da minha irmã? — A voz de Mathias separou-os.

Lillith saltou. Ficou tão envolvida na altercação com Perth que não ouviu o irmão se aproximar. Perth fitou Mathias com asco.

— Faço tudo que me apraz, Wentworth. Você já devia saber disso.

— Então vá flertar com Lady Annabelle — revidou Mathias. — Aquilo pareceu aprazê-lo bastante, e deixe minha irmã em paz,

Perth acenou para Lillith.

— Discutiremos isso mais tarde.

Ele reuniu-se ao grupo a galope e postou-se ao lado de Lady Annabelle. A raiva de Mathias mesclou-se com a raiva de Perth e o ciúme que Lady Annabelle provocou.

— Fique fora dos meus assuntos, Mathias.

— Perto desse camarada você se comporta feito uma rameira. Quantas vezes devo dizer que ele não serve para você? Você precisa casar de novo, e Perth não lhe convém.

— O que faço com Perth é interesse meu, não seu. Tampouco preciso me casar. Meu casamento não foi tão agradável para que eu anseie por repetir a experiência. E não tenho tal necessidade. De Lisle tornou-me uma mulher abastada, como deve saber já que ele o nomeou tutor dos meus bens.

Por um segundo, os olhos dele vacilaram.

— Você é teimosa, Lillith, e isso só lhe trará problemas. Todos andam comentando sobre você e Perth. Prefere que acreditem que os dois têm um caso? Pretende ser uma daquelas viúvas amantes de homens ricos? Pois é para onde se encaminha.

Ela não respondeu. Havia verdade demais nas palavras dele.

— Além do mais — continuou Mathias — faz um ano desde que De Lisle morreu. Passou da hora de se casar. Carstairs ou Chillings seriam perfeitos.

A suspeita brotou.

— Por que está tão decidido a me casar, Mathias? Herdei dinheiro em abundância. E outro marido talvez não anseie por tê-lo morando conosco como é seu costume há seis meses.

Longos minutos transcorreram até Mathias responder.

— Uma mulher que desfrutou do leito nupcial é inclinada a procurar tais prazeres em outro lugar se não casar novamente. E você anda enrabichada demais por Perth para o próprio bem. Outro homem o afastaria de você e dos seus pensamentos. Só estou pensando em você.

— Você me considera uma messalina e demasiado fraca para defender a mim mesma. Você me insulta.

— Não, não.

O que mais Mathias diria, e ela rebateria, nunca aconteceu. Os outros alcançaram-nos. Ela ofertou-lhes um sorriso falso.

— Meu irmão resolveu continuar cavalgando. Perdão, mas tenho assuntos a tratar em casa.

Contemplou as faces de todos. Surpresa na de Lady Annabelle, decepção na do Sr. Carstairs, consideração na de Chillings e, lógico, deboche na de Perth. O irmão ela ignorou.

Perth observou-a ir, notando as costas empertigadas. Seja lá o que Wentworth andou tagarelando, enfureceu Lillith. Considerou isso bom. Ela era assaz controlada pelo irmão, e lhe faria bem enfrentá-lo. Particularmente, já que Wentworth ultrapassou os limites do que qualquer irmã amorosa aceitaria, ou assim ele esperava.

 

Lillith ergueu a cabeça dolorida da comadre. As regras estavam atrasadas há três meses. Não podia mais negar a verdade. Ela carregava o filho de Perth.

Todos esses anos acreditando-se estéril, ouvindo De Lisle tripudiá-la pela incapacidade de conceber.

Não sabia se sentia alegria ou desespero. Sempre quis filhos, porém ao longo dos últimos anos enfim alcançou certa resignação a não tê-los nunca.

Em seis meses ela teria um filho.

Seria menino ou menina? Não importava.

Se Perth descobrisse, a forçaria a casar-se com ele.

Não queria outro casamento de conveniência. Em especial, não com Perth. Seria o fim de tantos sonhos juvenis que acalentou apesar dos fatos comprovarem que as chances de uma união de amor com ele feneceram.

E quanto ao filho? Poderia condená-lo a ser um bastardo por causa da própria covardia?

Devia ir para o continente, ter a criança e deixá-la com um casal que cuidaria dela. Ouviu falar de mulheres que o fizeram. O coração encolheu. Não, jamais faria tal coisa.

A criança que carregava lhe pertencia, e a criaria com todo o amor.

Todavia, não podia dar a notícia a Perth.

Iria para a residência no campo e aguardaria até o parto. Mentiria, contaria a todos que conheceu e desposou o pai do bebê durante o tempo em que se ausentou. Caso necessário, iria ao continente na primavera, teria o bebê e retornaria. Ninguém acreditaria, mas não importava. Outras famílias aristocratas criavam bastardos aceitos na sociedade. O dela também seria.

Tomada a decisão, ela se levantou.

— Agatha.

A criada espiou do quarto de vestir onde consertava alguns vestidos de Lillith.

— Sim, milady?

— Partiremos de manhã cedo para a casa de campo.

A criada assentiu. Era normal a patroa retornar ao campo nessa época do ano.

Lillith sentiu alívio no coração. Não se arrependeria da escolha. A criança lhe bastaria pelo resto da vida.

Não podia ter Perth. Então, teria o seu filho.

 

                                     Capítulo Onze

Perth contemplava o fogo amargurado.

Um mês após regressar da metrópole, não estava mais próximo de atingir o objetivo em relação aos veteranos do exército, ou de conquistar Lillith. A frustração azedou-lhe o espírito. Como os olhares condenatórios de Fitch. O servo escolheu este exato instante para adentrar a biblioteca.

Perth afirmou irritado:

— Pedi uma dúzia de vezes que ela se casasse comigo. Isso satisfaz a sua bitolada concepção de responsabilidade?

— Perdoe-me, milorde, mas confessou-lhe que a ama?

— Eu não minto, não importa a que custo.

Fitch bufou.

— Tem se saído muito bem quanto a isso nos últimos dez anos.

— Você passa dos limites.

— Creio que o senhor também, milorde.

— Saia.

Fitch obedeceu sem titubear. Perth foi até a mesa onde uma garrafa de bom uísque escocês aguardava. Serviu um copo e engoliu. O álcool queimou goela abaixo e explodiu no estômago. Não mudou nada.

— Maldição!

Atirou o copo na lareira onde ele se estilhaçou contra os tijolos. Só restava uma coisa a fazer.

 

Menos de uma hora depois, Perth estava perante a porta de Lillith. O ar noturno sussurrava nos ouvidos. A aldrava sumira. Ela fora embora da cidade.

Bateu à porta assim mesmo. Com sorte, ela teria deixado alguns servos para cuidar da casa vazia.

Bateu mais forte. Devia haver alguém. Arrombaria uma janela caso necessário.

Contudo, sabia onde encontrá-la: na casa de campo. Se do contrário ela foi para o continente, seria difícil localizá-la. Todavia, era uma possibilidade. Desde a derrota de Napoleão, a aristocracia migrava em bandos para outros países da Europa. Acaso Lillith estivesse lá, obter tal informação dos servos dela pouparia semanas do seu tempo.

Como ninguém respondeu, Perth praguejou e rumou para os fundos. Esmurrou a porta e espiou todas as janelas. Sequer uma réstia de luz. Tampouco alguém atendeu a porta.

Madeline Russell saberia onde Lillith estava.

Receando perder tempo, Perth alugou um coche para levá-lo até a casinha de Nathan e Madeline na cidade. A casa estava iluminada, e através da janela ele viu o rebuliço. Podiam não ser ricos, contudo eram benquistos.

Sem hesitar, bateu à porta. O mordomo atendeu imediatamente.

— Avise a Sra. Russell que o Conde de Perth veio vê-la.

— Se me acompanhar, milorde, informarei madame de sua presença.

Perth flagrou-se numa saleta encantadora decorada em tons pastéis de rosa e azul. Longe de sofisticada, porém tais cores o agradaram. Não se sentou. Tempo era fundamental.

A porta se abriu e Madeline apareceu. Os cabelos ruivos encaracolados em torno da face e o vestido de fina musselina branca. Ao contrário da saleta nada convencional, ela estava assaz elegante.

Perth forçou um sorriso.

— Sra. Russell, lamento incomodá-la, mas preciso saber para onde foi Lady de Lisle.

Madeline arregalou os olhos.

— Por que deseja saber?

— Não vim aqui para ser interrogado, Sra. Russell. Vim atrás de informação. Tão logo a obtenha, permitirei que retorne para os seus convidados.

— Lillith cansou-se dos seus modos autoritários, Perth, e concordo com ela. Se não puder dar-se ao trabalho de apresentar-me uma boa razão para trair a confiança dela, então não o farei.

Ele rangeu os dentes, impaciente.

— Você é uma coquete impertinente.

— Elogios não vão levá-lo a nada — replicou meiga.

— Com os diabos que não — resmungou Perth. — Muito bem, pretendo pedi-la em casamento.

O semblante de Madeline adoçou.

— Isto é bom e algo que você deveria fazer, todavia não tenho certeza se é suficiente.

— Tem que ser. Não posso oferecer mais nada.

O olhar dele mostrava-se implacável. Ele precisava de Lillith. Talvez, por enquanto, isso bastasse.

— Ela foi para a casa de campo.

— Como pensei. E perdi mais de uma hora à toa. Obrigada, Sra. Russell, devo partir agora.

— Tsc, tsc, Perth. Talvez, ela tenha rumado para o continente. — Os olhos de Madeline anuviaram. — E decerto deveria.

Perth deteve-se a caminho da porta.

— O que quis dizer com isso? — Contudo, no íntimo, ele teve um pressentimento.

— Se quiser descobrir, então pergunte a ela.

Perth assentiu.

Marchou porta afora e saiu da casa. A ansiedade o dominava mais do que nunca. O orgulho misturou-se ao desejo e ao instinto de proteção.

Precisava encontrar Lillith.

Permaneceu em frente à casa de Madeline e balançou a bengala para frente e para trás de irritação. Nenhuma carruagem passara nos últimos quinze minutos, e era uma longa caminhada até sua residência em Grosvenor Square. Não restava nada a fazer. A passos largos, partiu.

O nevoeiro enrodilhava-se aos seus pés. O frio ar noturno infiltrou-se através da casaca. Às vezes, o brilho de uma vela na janela de alguma casa iluminava o caminho. Ficou tentado a bater numa das portas e oferecer qualquer quantia por um cavalo.

Estacou num logradouro provável. Sentiu o cheiro de estábulo, o que significava que lá encontraria um cavalo. Mas não havia luzes.

Passos ressoaram atrás dele. Espiou curioso.

Três vultos moveram-se na escuridão, porém nenhum avançou. O que está havendo, indagou-se, enfim atinando que se encontrava sozinho. Era corajoso, todavia os malfeitores atacavam em bandos. Mesmo ele, apesar da espada na cinta, encontraria dificuldades para enfrentar um grande número de homens.

— Quem vem lá? — inquiriu.

Um dos vultos abeirou-se, as mãos erguidas sob o pálido luar. Aqui nenhuma lamparina a gás iluminava a estrada.

— Só eu, patrão. Não teria alguns xelins para um homem faminto?

Os dois outros vultos esgueiraram-se na direção dele. O açoite da brisa gelada no rosto, o gosto de piche na boca e a chance de arriscar a vida o animaram. Isso era vida para ele. Era assim que se sentia com Lillith. Tal conclusão arrebatou-lhe o fôlego. Não era de admirar que a desejasse tanto. Ela o fazia se sentir vivo.

Os bandidos se aproximaram mais, impelindo-o de volta ao presente.

— Não tenho nada. Leve seus amigos daqui, antes que se arrependa.

O sujeito deteve-se enquanto os outros rodeavam Perth. De um golpe, Perth desembainhou a espada. A lâmina reluziu nas trevas. Os homens hesitaram, depois atacaram juntos.

Perth recuou, então firmou-se no solo. A espada cintilou ao rechaçar o ataque. Sentiu o aço atingir a carne, e um dos homens ganiu.

— Raios, ele me acertou. Que o diabo o carregue.

O sujeito cambaleou e abandonou os comparsas.

— Agora vão — ordenou Perth entre os dentes — e ninguém mais sairá ferido.

Os dois bandidos não debandaram. Perth preparou-se para outra investida. Que veio antes do esperado. A espada reluziu, e o homem à direita largou o bastão. A madeira maciça caiu com estrondo e aquele que a segurava recuou aos trombolhões, uma torrente de impropérios vertendo da sua boca como refluxo de esgoto.

Perth observou-o fugir.

— Está sozinho agora. Acredita que conseguirá fazer o que três homens não conseguiram?

O sujeito avançou. Perth tomou-lhe o bastão da mão esquerda.

— Isso devia ser fácil — gemeu o salteador. — Foi o que o camarada falou. Desgraçado.

— Ahh, raiou a aurora. Pagarei o dobro de quanto lhe ofereceram para me atacar se me levar ao sujeito que o contratou.

O facínora coçou o queixo.

— Boa idéia. Mas quem garante que me pagará?

O homem era definitivamente mesquinho. Perth sacou uma bolsa de couro do casaco que tilintou. Atirou-a para o ladrão.

— A primeira parcela do pagamento. Diga onde e quando receberá a segunda parte pelo trabalho de hoje, e eu o encontrarei lá. Então ganhará mais, e eu ficarei cara a cara com quem tramou o ataque.

O patife espiou Perth desconfiado.

— E como saberei que não vai me enganar?

— Porque eu poderia cortar você ao meio agora mesmo.

O sujeito esquivou-se.

— Contudo quero provas de quem o contratou, e sua palavra não basta. Ademais, decerto ele sequer forneceu o verdadeiro nome.

— Às cinco da manhã — respondeu afobado, mencionando um local perto de Nightingale Inn no East End. Uma área inóspita, embora popular entre os rapazolas.

— Estarei lá. Agora vá.

Quando adentrou o próprio vestíbulo, era quase hora de sair. Fitch recebeu Perth na porta.

— Milorde — saudou Fitch, empinando o nariz. — Está encharcado.

Perth despiu a casaca e depois as luvas. Entregou a espada a Fitch.

— Isto precisará de limpeza.

Fitch esbugalhou os olhos, emudecido. Perth sorriu.

— Sim, tive um pouco de ação.

— Felizmente, pela primeira vez. Certos lugares que freqüenta não são nada aprazíveis.

— Desde que resolvi conquistar Lady de Lisle, minha vida tornou-se uma grande aventura.

— Lady de Lisle? Decerto, ela não foi o motivo para que usasse a espada. — Retirou a arma da bainha e observou o sangue coagulado. — Uma boa limpeza a deixará nova em folha.

— Depressa, Fitch. Temos um encontro em menos de uma hora numa vizinhança infame, e talvez a espada se prove um salva-vidas.

Fitch rumou para a cozinha, enquanto Perth subiu para o quarto.

Nos seus aposentos, despiu-se rapidamente e vestiu roupas limpas e secas.

A sensação de perigo deixou-o alerta a tudo ao seu redor, o calor do fogo, o assobio do vento nas janelas

Era o que sentia com Lillith, pronto para tudo, embora não associasse o deleite inebriante da companhia dela à agressividade que sentia no exército. Não era de admirar que a desejasse tanto.

Lillith deu-lhe um objetivo, algo pelo que lutar. Agora a situação com o irmão dela — pois, sem dúvida, Wentworth estava por trás do ataque — deu-lhe outra razão para conquistá-la.

Estava certo quanto a Wentworth haver esbanjado a herança de Lillith. Não poderia existir outro motivo para o irmão tentar empurrá-la para o casamento. Todavia, por que o sujeito o queria fora do caminho quando ele tentava desposá-la? Muito provável que Wentworth soubesse que Perth não pagaria suas dívidas de jogo.

Lá embaixo, Fitch aguardava com a espada limpa.

— Como nos velhos tempos, milorde.

— Já mandou que trouxessem os cavalos?

— Claro. Não estamos no exército agora, milorde, porém ainda conheço os procedimentos.

 

Na área de Londres, onde logo se encontraram, não se abandonava dois puro-sangues sem alguém para montar guarda.

— Ei, você — disse Fitch, acenando para um garoto parado em frente à taverna. — Vigie os cavalos e será bem pago.

— Mais lucrativo que roubá-los — arrematou Perth, jogando uma moeda para o rapazote que apanhou o dinheiro com alegria.

Perth dirigiu-se para a esquina, onde o salteador afirmou que encontraria o homem que o contratou.

Em vez de postar-se onde o encontro aconteceria, Perth escondeu-se na penumbra. Fitch o seguiria, a mão na pistola que mantinha engatilhada no bolso. O ladrão chegou pouco depois, entretanto, o conspirador estava atrasado.

Vinte minutos se passaram. Perth não se surpreenderia acaso Wentworth não aparecesse. O trato foi cumprido e pagar a segunda parcela seria um desperdício de dinheiro que Wentworth não tinha. O ladrão jamais o localizaria, e Wentworth continuaria a salvo.

Após mais dezesseis minutos, Perth deu um passo avante.

— É provável que nunca mais veja o sujeito que o contratou.

— Aquele almofadinha, é melhor que ele não me veja mais. E quanto ao dinheiro que me deve?

— Já paguei mais do que pretendia. A segunda parte dependia do meu encontro com o homem que o contratou. Isso não aconteceu.

O bandido avançou ameaçador.

— Não faria isso se fosse você — avisou Fitch. — Tenho uma pistola, e não hesitarei em usá-la.

O ladrão recuou.

— E se eu achar o poltrão?

Perth balançou a cabeça.

— Eu mesmo quero achar o patife.

O homem viu-os reunir os cavalos e escutou um dos almofadinhas que freqüentavam a taverna mais próxima chamar o camarada perigoso de Perth. Não tardaria muito a encontrar o lorde outra vez, pois sem dúvida era um lorde. Era demasiado arrogante para não ser.

Perth cavalgou em silêncio de volta para casa. Fitch imitou-o. Só falaram ao entrar.

— Milorde — disse Fitch agastado. — O que planeja fazer?

— Arrumar as malas.

— Para onde vai? E o que fará com a pessoa que pagou para que o ferissem?

— Sairei à procura de Lady de Lisle que foi para o campo. Quanto à pessoa que me queria ferir, tenho uma boa idéia de quem seja. Ainda planejo encontrá-lo.

— Aposto minhas fichas em Wentworth.

— Como sabe?

— Só pode ser. Ele nunca o desejou na família. E já conseguiu prejudicá-lo uma vez.

— Eu era jovem e estúpido. Dez anos fazem uma vasta diferença.

— Agora carregue sempre a espada consigo.

— Exato. — Perth pendurou uma sacola no ombro e marchou quarto afora. — Não espere me ver tão cedo.

 

                                                        Capítulo Doze

Lillith postou-se nua perante o espelho. Virou-se e analisou o perfil.

O ventre estaria ligeiramente mais arredondado? Passaram-se três meses. Decerto era visível. E logo sentiria o bebê se mexer. O filho de Perth. Seu filho.

A porta se escancarou.

Lillith cobriu os quadris com os braços, decidida a repreender severamente quem quer que teve o desplante de invadir a privacidade de seus aposentos. Engasgou. Perth estava no umbral.

— Oh, milady — suplicou Agatha, atrás do conde. — Lamento muito. Ele subiu antes que alguém percebesse.

Lillith virou-se e apanhou um robe.

— Deixe-nos a sós, Agatha. Você não fez nada errado.

Ele entrou e fechou a porta cuidadosamente. Tal gesto contido revelou o quanto estava furioso. O cabelo úmido reluzia, e a água da casaca encharcou o tapete verde-claro. As botas estavam enlameadas. Parecia que cavalgara um longo percurso sem importar-se com a atmosfera inclemente.

— Você é atrevido, e sua falta de modos é mais que aparente — alfinetou fria.

— Você partiu sem avisar.

Os olhos dele perscrutaram os seus, antes de baixarem até o ventre. Perth avançou e Lillith nada podia fazer para esquivar-se. Prendendo o robe com as mãos, permaneceu firme.

— Não lhe devo explicações das minhas idas e vindas.

Ele não se deteve até ficar a centímetros de distância.

— Você está carregando um filho meu.

A voz soou grave e sombria. Os olhos eram poças de ébano. De repente, segurou-a pelos ombros e abaixou o robe até a cintura.

— Como ousa! — bradou Lillith, tentando inutilmente cobrir os seios.

— Ouso tudo por você e pela criança que carrega — retorquiu. — Tudo.

Ela fitou-o, abalada pela voracidade que enxergou no seu rosto.

— Isto a surpreende? — indagou amargurado. — Bem, não tanto quanto a mim. Pensei que houvesse esquecido você.

O olhar de Perth a violou, passeando pelas ondulações do busto e fazendo-os arfar de desejo. Ela ansiou pelo seu toque, nos seios e na junção das coxas. Mas…

— Você me ama? — perguntou afinal, quase sussurrando.

O olhar dele retornou para a sua face.

— Não.

— Ah…

A palavra irrompeu como o gemido de uma criatura agonizante. A dor a dilacerou.

— Saia — ordenou ela. — Saia da minha vida e nunca mais ouse voltar. Ou mandarei que o açoitem.

— Como o seu irmão fez?

Ela empalideceu.

— Mentira. Mathias jamais faria isso apesar dos seus muitos defeitos.

— Diga o que quiser. Por que acredita que ele não faria o mesmo?

— Saia — repetiu, desvencilhando-se.

O estrilo do rasgar da seda encheu o ar. Livrou-se das mãos de Perth, contudo permaneceu nua diante dele. Perth admirou-a, o olhar perambulando pelo seu corpo como uma onda tórrida de paixão.

Ele engoliu em seco e saiu.

Lillith observou-o incrédula. A porta bateu com estrondo. O silêncio envolveu-a num véu sufocante. Tirou outro robe do armário e vestiu-o. Só então permitiu-se prostrar no divã.

Como pôde ameaçar açoitá-lo como um cão? Não importava o que ele dissera, Perth era um homem.

Será que Mathias realmente mandou que o chicoteassem? Ela duvidava. Contudo, isso explicaria as cicatrizes nas costas dele.

Justo agora, Perth encontrava-se na casa e devia confrontá-lo. Conhecia-o bem o suficiente para saber que ele não iria embora antes disso. Porém, não se obrigaria a discutir o fato de Mathias chicoteá-lo. Era algo para o que não estava preparada ainda.

Algo que Mathias deveria explicar, se fosse verdade. E, por mais doloroso que fosse, não acreditou que Perth mentiria acerca de tal coisa.

Esfregou os olhos. Ainda precisava encarar Perth.

Trinta minutos depois, e totalmente composta, entrou na saleta contígua ao quarto com toda a dignidade que a raiva de Perth e a decepção com o irmão permitiriam.

Perth observou-a cruzar o aposento, de queixo empinado, e notou que estava zangada com ele. Trajando um vestido verde de casimira listrada, deveria parecer sóbria. Ao contrário, estava radiante. Ele perdeu o fôlego.

Deu um passo na direção dela.

— Não se aproxime — ordenou. — Você não tem o direito de vir aqui, e ainda invadir meus aposentos. — A voz oscilava de fúria. — Quero que saia imediatamente.

— Tudo a seu tempo. Creio que temos algo a discutir.

— Está enganado. Não temos nada a discutir.

O ímpeto de oferecer-lhe seu nome e proteção foi grande. Perth resistiu.

— Você carrega um filho meu. Admita.

Se antes a julgara pálida, se equivocara. A cútis de Lillith ficou quase tão alva quanto os cabelos.

— Ridículo.

Todavia a voz soou vacilante.

— Mentira — ele redargüiu baixinho. Lenta, inexoravelmente, Perth puxou-a para si.

— Você carrega o meu filho, e deixou Londres na esperança de impedir-me de descobrir.

Os olhos dela arregalaram, e agora o encarou.

— Deixei Londres na mesma época do ano de sempre. Você não tem nada a ver com isso.

— Você soaria mais atrevida se a sua voz não oscilasse. — Agarrou-a pelos ombros. — Tudo o que você faz é problema meu.

— Não.

— Ah, mas é sim — murmurou, deslizando uma das mãos até a nuca. — Tudo.

Ele sentiu o coração dela bater e o arfar dos seios. O desejo, ardente e poderoso, dardejou dolorosamente ao longo do seu corpo. A prudência desapareceu. Amoldou-a ao corpo, os seios contra o peito, coxas com coxas.

Um suspiro escapou aos lábios entreabertos de Lillith. Ele se aproveitou da sua vulnerabilidade. A boca apoderou-se da sua. O anseio inundou-lhe os sentidos. Ele a queria, só a ela.

Perth pressentiu a rendição segundos antes que ela emaranhasse os dedos nos cabelos dele. Sempre foi assim entre ambos. Ele jurou que sempre seria.

Ele recuou. A necessidade de admirá-la, ver as emoções brincar no seu rosto enquanto a amava, era forte demais para resistir. Tomou um dos seios na mão e apertou com delicadeza. Um suspirou escapou dos lábios dela. A virilha de Perth retesou numa volúpia que demandava alívio.

Ele rosnou e curvou-se para colher o outro seio na boca. Mesmo sobre a lã espessa, sentiu o mamilo enrijecer. O êxtase avultou dentro dele.

Sugou-a enquanto as mãos deslizavam pela miríade de botões que orlavam as costas. Abriu-os com a destreza de anos de prática. Só ao sentir o algodão diáfano da camisola ergueu a cabeça e baixou o vestido até os ombros apenas para expor o busto ao olhar e à boca.

Os mamilos despontaram rosados e túrgidos através do tecido transparente. Beliscou um dos bicos com o polegar conforme a língua banhava o outro. Os suspiros suaves dela o excitaram.

Com os dedos experientes, desfez os laços de cetim e abaixou o algodão fino pelo torso até a cintura de maneira a expô-la inteiramente ao seu olhar voraz. As chamas brincavam na pele de Lillith como o toque de um amante, o toque dele.

Enterrou a face no vale entre os seios e inalou o perfume dela. Lilás e mulher. De joelhos, abaixou a camisola até desnudar o ventre contra o seu rosto. Com um toque leve feito uma pluma, lambeu o umbigo dela antes de descer mais. Os dedos de Lillith agarraram-no pelos cabelos.

— Por favor — ofegou ela.

— Relaxe — murmurou, maravilhado ante a reação dela. Jamais uma mulher fora tão libertina com ele. E nunca esforçou-se tanto para satisfazer uma mulher.

Puxou o resto da roupa pelos flancos. Ela permaneceu diante dele em toda a sua estonteante beleza.

Os cabelos platinados pendiam em torno dela como um véu de seda. A luz das velas tornavam a pele marfim e mostravam cavidades escuras que clamavam suas mãos, a boca e a lascívia. Ela era tudo o que ele queria, tudo de que precisava. Ela era sua.

Um rosnado dilacerou a garganta de Perth ao encorajá-la a permitir que a tocasse com maior intimidade.

Não parou antes que ela ofegasse e estremecesse nos seus braços.

Mais carinhoso que nunca, correu as pontas dos dedos sobre a ondulação macia da barriga dela. Trilhou a carne com beijos. Ela carregava o seu filho e o enlevo era comovente.

Perth ficou de pé e abraçou-a forte.

— Você é minha. Agora e sempre.

Lillith abriu os olhos ainda pesados de paixão e fitou-o. Um sorriso curvou os lábios abrasados pelos beijos.

Era assim que desejava que ele a visse. Sempre. Embriagada de paixão, entorpecida nos seus braços.

Ele correu as mãos possessivas ao longo das curvas dos quadris, e depois subiu até colher um dos seios fartos.

— Logo amamentará nosso filho — murmurou, assombrado pela idéia.

Acariciou o mamilo ainda ereto antes de tomar a carne intumescida na boca. Os ofegos dela excitaram-no. A virilha explodiu ao perder o controle. A surpresa flagrou-o. Ele arfou.

Nem a havia penetrado, e contudo ela o drenara de tudo o que tinha para dar.

Trêmulo de alívio, tomou-a nos braços e levou-a para o sofá onde a deitou. Com os dedos agora vacilantes, desabotoou a braguilha das calças e libertou a própria carne. Apartou as pernas de Lillith e penetrou-a por inteiro.

Ela estremeceu debaixo dele. Perth observou-a cerrar os olhos, determinado a fazê-la bradar seu nome. Iniciou um movimento lânguido, tão lento que torturava, embora recompensasse cada momento quando a viu tremer, e então escutou um longo gemido de prazer irromper do íntimo de Lillith.

Excitado mais que a própria paixão, acelerou o ritmo até que ela gritasse e cravasse as unhas nos seus ombros. Ele arremetia e ela implorava por mais. Perth deu-lhe tudo e mais um pouco. Morreu nos braços dela e renasceu outra vez, mais poderoso e potente. E então ofereceu-lhe mais.

 

Mais tarde, muito mais tarde, o fogo reduzido às brasas cintilantes, jaziam desfalecidos no tapete.

Perth apoiou-se no cotovelo e contemplou a pele corada pela paixão de Lillith.

— Possuo uma licença especial — murmurou. — Podemos casar imediatamente. Nosso filho precisa de um nome.

— Não me casarei com você. — Ela respirou fundo. — Sei que sou fraca quando se trata de você, mas não tão fraca a ponto de entrar numa união da qual ambos nos arrependeremos. Nem mesmo pelo filho que carrego.

Desvencilhou-se dele e levantou de costas para Perth. Recolheu as roupas no chão e meteu-se no vestido.

— Lillith, olhe para mim.

— Não. Não até você estar vestido e podermos conversar feito adultos, e não como dois animais no cio.

Ela soltou um suspiro profundo, e ele percebeu que chorara. Levantou e foi até ela, totalmente despreocupado com a nudez. Lançou os braços em torno dela e virou-a para encará-lo. Tinha razão.

— Não chore, Lillith. Tudo acabará bem. Prometo. — Enxugou as lágrimas com as pontas dos dedos. Ela o empurrou.

— Não me toque. Não chegue perto de mim. Vista-se. Não casarei por conveniência outra vez. Entendeu? Não.

— Pensa que o nosso casamento será de conveniência após a paixão que acabamos de partilhar?

Ele recuou e apanhou as roupas. Enfiou as calças e fechou os botões. De mãos na cintura, fuzilou-a com os olhos.

— Paixão — debochou ela. — Paixão e nada mais.

— É melhor do que aquilo que tinha com De Lisle. Ou pretende mentir e dizer que ele fazia você se sentir como eu acabei de fazer?

— Por quê? Por que torna tudo tão difícil? — demandou, a voz quase um brado. — Não me casarei com você. E ponto final.

— Entendo. Mas e quanto ao nosso filho? Vai condená-lo a uma vida infeliz ou, pior ainda, a um pai que não é o seu verdadeiro pai? — A voz tornou-se cruel. — Conheço mulheres da elite que regularmente parem bastardos dos amantes, e esperam que os maridos os reconheçam como filhos. Certos homens até autorizam a criança a herdar seus títulos e honrarias. É o que você quer?

— Não. E não preciso optar por nada disso. Sou rica por conta própria. — A boca retorceu amargurada. — O casamento com De Lisle me assegurou isso.

— Mesmo? Tem certeza?

Ele viu a dúvida fremir no semblante dela antes que ela negasse tal possibilidade.

— Sim, certeza absoluta. Mathias administra a minha fortuna. De Lisle decidiu assim. Meu irmão jamais me arruinaria.

Perth gargalhou.

— Wentworth? Com a sua incapacidade para ficar longe das mesas de carteado? Sabe que ele perdeu dez mil libras para mim duas semanas atrás? Sabe que ele me pagou com uma promissória do seu banco?

Ela encolheu-se.

— Ele tem dinheiro e o guarda no mesmo banco que eu.

— Mas tem certeza absoluta? — Intimidou-a com as palavras e a proximidade do corpo. — E se estiver enganada e seu irmão gastar suas economias? E se não for mais uma viúva rica? Então, o que será de nosso filho?

Viu o medo infiltrar-se nos olhos expressivos.

— Pode dar-se ao luxo de continuar me rejeitando quando não tem certeza?

— Eu tenho certeza — retorquiu. — Sim, eu tenho. — Virou-se e andou até a lareira onde estendeu as mãos para o braseiro.

Ele a seguiu.

— Confira tudo antes de me mandar embora outra vez. Dois dias. É tudo o que lhe custará. Aguardarei aqui. — Lillith estremeceu. — Não na sua casa — garantiu. — Me hospedarei na pousada do vilarejo.

Ela não retrucou, apenas fitou o carvão alaranjado. Começou a tremer. O impulso de abraçá-la foi forte. Perth resistiu. Ela precisava decidir.

Lillith virou-se, a face uma máscara de raiva e suspeita.

— Farei como sugere. Mas tenho certeza de que está equivocado.

Ele não sorriu. Sabia o que Lillith descobriria.

 

                                                         Capítulo Treze

Lillith empenhou-se para mostrar-se calma ao ser conduzida ao escritório do administrador de negócios. Joseph Sinclair foi procurador de Lorde De Lisle, que deixara a herança de Lillith sob a tutela de Mathias com a condição de que o dinheiro fosse administrado pelo Sr. Sinclair. Até agora, Lillith não visitara o Sr. Sinclair, na confiança de que ele ou o irmão informariam caso houvesse necessidade.

O Sr. Sinclair levantou quando Lillith entrou. Era um homem alto, cadavérico, com pele macilenta e óculos metálicos. Um sujeito cerimonioso, os ombros vergados sob o peso de carregar o futuro financeiro de vários aristocratas.

— Lady de Lisle, sente-se por favor. Alegro-me que tenha vindo me ver. — O vinco entre as sobrancelhas peludas aprofundou. — Enviei diversas cartas pedindo uma reunião com a senhora.

— Oh. Eu… — Estacou. Por que jamais recebera tais cartas? Imediatamente, pensou em Mathias. Mas, não, isso era ridículo. — Nunca recebi suas cartas. Deve ter extraviado. — O advogado nada falou. A preocupação que ela censurou a si mesma por sentir intensificou-se. — Obrigada por me atender tão de improviso.

Sinclair amuou e os dedos magros folhearam uma papelada como se precisasse tranqüilizar os nervos.

— Alegro-me em vê-la, Lady de Lisle. Não cheguei a bater na sua porta porque o Sr. Wentworth alegou que a mantinha informada de tudo, e que se carecesse da minha ajuda me procuraria. — Pigarreou. — Agora compreendo que eu deveria ter ignorado o Sr. Wentworth.

Mathias nunca proferira uma palavra sobre as finanças dela ou a apreensão do Sr. Sinclair.

— Por que desejava falar comigo?

— Preparei esses documentos para o seu irmão de modo que lhe fossem entregues.

Lillith apanhou o maço e depositou-o no colo, os dedos trêmulos. Isso não cheirava bem.

— Talvez possa me explicar o que dizem esses papéis. Ganharíamos tempo, e eu poderia obter um esclarecimento imediato sem precisar esperar por outra reunião.

Ele respirou fundo.

— Não há nenhum jeito delicado de dizer isso, e creia que tentei diversas vezes. Milady, está quase falida. — Pausou e o silêncio tornou-se sufocante. — Como bem sabe o Sr. Wentworth.

Lillith engasgou.

— Ele tinha razão. — Desespero, ressentimento pela prodigalidade do irmão e fúria cooperaram para revirar-lhe o estômago. Engoliu em seco, determinada a não chorar. — Acabou tudo? De Lisle deixou-me muito bem, e isso há apenas um ano.

Os olhos castanhos de Sinclair ostentavam compaixão.

— Resta-lhe a casa de campo até casar ou falecer. A casa em Londres lhe foi deixada para sempre, contudo o Sr. Wentworth a hipotecou para pagar certas… despesas urgentes. Foi uma das ocasiões em que lhe escrevi. Queria assegurar-me de que sabia o que andava acontecendo.

— Dívidas de jogo — Lillith retrucou amarga. — E nunca recebi as suas cartas. Quantas me enviou?

— Três.

Cerrou os olhos ante a piedade nos dele. De algum modo a correspondência se extraviou. Ou foi interceptada. Como Mathias pôde fazer uma coisa dessas?

Finalmente, quando certificou-se de que não desabaria, abriu os olhos.

— Continue, por favor.

— O dinheiro dos fundos sumiu há seis meses. Lamento que seja tudo tão ruim.

A dor da traição oprimiu-lhe o peito. Mais uma vez, Mathias a usou para os próprios fins sem qualquer interesse pelo seu bem. A mágoa rivalizava com o amor. Ele era tudo que lhe restava.

— Eu devia ter me empenhado mais para encontrá-la. Talvez, a senhora conseguisse dissuadir o Sr. Wentworth.

— Não, creio que não.

Era normal que o parente mais próximo de uma mulher cuidasse de todos os seus assuntos financeiros. Ele não ficou surpreso ante a resolução do falecido marido, e ficaria deveras surpreso acaso ela mesma administrasse as finanças. Porém se entristeceu ao ver para onde o Sr. Wentworth rumava. O sujeito dilapidou uma fortuna considerável no espaço de quinze meses.

— Posso vender a casa de Londres para obter recursos para me sustentar? Se permanecer na casa de campo posso viver frugalmente.

— Decerto precisará vendê-la, todavia o dinheiro servirá para pagar a hipoteca. Se sobrar algum, e duvido que será muito, posso investir no fundo de ações, e com sorte angariar um lucro modesto.

Não era de admirar que Mathias andasse pressionando-a para se casar de novo. Precisava de outra fortuna para esbanjar, e ela representava dinheiro em caixa. Um suspiro de desespero escapou-lhe antes de conter-se por um triz. Não era a hora e nem o local para autopiedade.

— Bem — disse ela, endireitando os ombros — isto é melhor do que nada. — Levantou e estendeu a mão. — Obrigada, Sr. Sinclair. Não foi uma reunião alegre, mas foi elucidativa. Pode impedir meu irmão de gastar qualquer xelim obtido com a venda da casa de Londres?

Ele levantou e tomou-lhe a mão.

— Posso levar uma petição ao tribunal, milady.

— Uma exibição infame de problemas familiares — murmurou.

— Ou posso apanhar o dinheiro e entregar-lhe diretamente, e orientá-la sobre como investir. Isso significa contornar o testamento do falecido Lorde de Lisle, mas pode ser feito.

Ela assentiu.

— Seria muito melhor. Obrigada novamente — afirmou, despedindo-se.

Saiu do edifício de cabeça erguida. Estava no centro de Londres, próxima ao Banco da Inglaterra e outros gigantes do comércio. A carruagem parou na calçada, os cavalos atritavam os cascos nos paralelepípedos. Ao menos não chovia. O dia já estava infeliz o bastante sem a inclemência do tempo.

Ergueu a saia e com altivez adentrou a carruagem. O servo abriu a porta e baixou os degraus.

— Para casa — ordenou ela, acrescentando baixinho — mas não por muito tempo.

Lá dentro, longe dos olhos curiosos. Desmoronou sobre as almofadas em estado de choque. Nada sobrou. Quase nove anos de casamento com De Lisle à toa. Tudo esbanjado nas malditas jogatinas de Mathias.

Esmurrou o assento de couro e desejou estar surrando o irmão. Ele sequer teve a decência de contar. Ao contrário, tentou empurrá-la para outro casamento de conveniência, a conveniência dele. Desgraçado, desgraçado, desgraçado.

As lágrimas escorriam livremente agora ao liberar as emoções. Tudo que julgava seu não era. Precisaria retirar tudo da casa de Londres em breve. Despedir muitos bons criados. Que não mereciam isso.

Respirou fundo, e sentiu o peito arder em chamas. Mathias tinha muito o que explicar.

Enxugou as lágrimas que ainda trilhavam as faces. Basta de choramingos, tinha trabalho a fazer. Depois confrontaria Mathias. E, então, umedeceu os lábios, devia voltar para a casa de campo e Perth.

Um sorriso melancólico curvou-lhe os lábios. Queria Perth, sempre quis. Mas sabia que tal união não lhe faria bem. Agora, graças a Mathias, restava muito pouca escolha. Sem o nome de Perth, a criança não teria nada. Não podia fazer isso com o seu bebê.

O desespero principiou a arrefecer. O que Mathias fez estava além do perdão, todavia…

Agora faria o que o coração sempre mandou. A razão concordou. Não haveria outra saída para a criança.

Devia casar-se com Perth.

 

Quatro dias depois, a carruagem de Lillith apeou na entrada do antigo lar. Não vinha aqui há vários anos. O pai morreu logo após o casamento com De Lisle, e Mathias jamais passava tempo aqui.

Contemplou impassível enquanto rumavam ao longo das faias que orlavam a estrada. Nunca se importara com o lugar onde nascera. A mãe falecera quando Lillith tinha três anos. O pai era distante e frio. O primeiro amor era a jogatina, como o filho. Sequer sabia se Mathias se encontrava aqui, mas ele não estava em Londres, e sem o dinheiro dela não restavam muitos lugares onde pudesse estar.

O coche estacou, e ela aguardou que abrissem a porta e baixassem os degraus. Não tinha pressa para o que jazia à sua frente.

— Obrigada — disse ao desembarcar.

Diante de Lillith estava uma casa torta de idade indeterminada. Certas partes eram elisabetanas, outras jacobinas e as mais recentes renascentistas. Ela não lembrava das colunas de mármore. Mathias deve tê-las acrescentado numa das suas épocas de fartura. Bem provável que depois do casamento dela com De Lisle.

Galgou os degraus, especulando se devia bater ou se haveria sequer um lacaio para deixá-la entrar. Hesitou, reunindo a coragem que a raiva lhe deu para vir de tão longe confrontar o irmão a quem outrora sempre se resignou. Marchou os últimos metros e escancarou as portas duplas sem hesitação.

Adentrou o vestíbulo onde recordava não ser permitida a sua presença quando criança. Sempre precisava entrar e sair pelas portas dos fundos. Crianças eram para ser vistas, de vez em quando, e jamais ouvidas.

Pairava uma aura de abandono no lugar. A mesa lateral, onde uma bandeja de prata deveria estar, permanecia vazia e carente de limpeza. Os quadrados de mármore preto e branco sob os seus pés careciam de polimento. Nenhum dos quadros que recordava da juventude pendia das paredes. Mathias provavelmente vendeu todos.

Entretanto, nenhum servo apareceu e nenhum ruído indicou que houvesse outra pessoa além dela na casa.

— Tem alguém aí? — bradou, escutando o eco da própria voz. Espiou em volta e reparou que o candelabro Waterford desaparecera.

Pela primeira vez, desde que entrou, ela ouviu um barulho. Vinha da biblioteca. Caminhou naquela direção, imaginando se todos os livros sumiram e se os lugares onde antigamente pendiam os retratos de família agora eram brechas do tecido desbotado que recobria as paredes.

— Ah, Lillith — falou Mathias ao abrir a pesada porta de carvalho e adentrar o cômodo. — O que a traz ao campo e sem um bilhete sequer para avisar que viria?

Ele se refestelou numa poltrona de couro próxima a uma mesinha de jogos. Com destreza, embaralhou um maço de cartas e começou a arrumá-las para uma partida de paciência.

A indiferença dele e o baralho onipresente adicionaram o combustível necessário à cólera que começou a despontar durante a triste inspeção da casa da família.

— Cartas, como sempre — alfinetou ela. — Após todo o prejuízo que lhe causaram seria natural acreditar que você deveria estar farto delas. Mas parece que não é o caso.

— Você está de mau-humor, irmã. Sente-se e pedirei um refresco.

Ela tomou a cadeira mais próxima, uma delicada Chippendale.

— Fico surpresa que tenha servos para trazer refrescos. Ninguém me recebeu na porta.

— Você sequer bateu — retorquiu. — Qual é o seu problema?

— Não quero refresco, Mathias. Quero satisfações. Quero uma explicação. E por tudo que é mais sagrado, pare de brincar com essas malditas cartas.

Ele não era um homem estúpido, apenas muito egoísta.

— Então você foi ver Sinclair, e ele revelou o estado deplorável das suas — nossas — finanças. Não creio que devesse ficar surpreso, contudo fiquei. De Lisle me incumbiu de administrar a sua herança. O que a fez averiguar?

— Por que averigüei não é da sua conta. O que importa agora é por que você perdeu tudo. Tudo. Sequer lhe restaria isso… — agitou os braços indicando a casa — acaso não fosse inalienável e impossível de ser desperdiçado na jogatina. Do jeito como está, é bem provável que caia aos pedaços à sua volta, pois você não tem dinheiro e nenhuma disposição para conservá-la intacta.

Ela respirou fundo e aguçou os olhos.

— Você interceptou as cartas do Sr. Sinclair? Pois ele afirma que enviou três, e não recebi nenhuma.

Por um segundo, Lillith pensou que Mathias planejava mentir.

— Os lacaios sempre apreciam um xelim extra.

— Você me enoja.

— Não há necessidade de erguer a voz, Lillith. Posso escutá-la muito bem.

Tal reprimenda a espantou. Não percebeu que elevara a voz. Obrigou-se a reclinar na poltrona. Também deixou de lado a informação de que havia um lacaio a seu serviço em quem não podia confiar. Era uma traição insignificante comparada ao que Mathias fizera.

Tentou outra vez.

— Coloquei a casa de Londres à venda para pagar a hipoteca.

— Sinclair mencionou algo a respeito. Eu não queria fazer isso. Supus que a minha sorte poderia mudar. — Deu de ombros. — Não mudou. Então a casa deve ir. Dívidas de honra devem ser pagas.

Ela balançou a cabeça incrédula e respirou fundo, e toda a imensa tristeza daquilo tudo a dominou.

— Você não tem remorsos? — perguntou baixinho Mathias revirou-se na cadeira como se incomodado, porém o semblante nada revelou.

— Está no meu sangue. Não há nada a fazer.

Consternada ante o insensível menosprezo por toda a mágoa e prejuízo que ele causou e a plácida aceitação de tal vício destrutivo, Lillith permaneceu imóvel e emudecida. Ele continuou a jogar paciência, os dedos acariciando as cartas ao virá-las de face para cima. Era como se ela não estivesse presente.

Lillith deu uma última olhadela ao redor da biblioteca Não tinha intenção de passear pela casa e pelos jardins. Ela não retornaria. O futuro jazia em outro lugar.

Apoiou as mãos nos braços da poltrona e levantou. Sentiu-se puxada para baixo pelo peso da melancolia.

— Partirei agora — avisou. Ele alçou o olhar. — Passarei a noite na hospedaria da cidade. — Respirou fundo. Não havia sentido em esconder o plano dele. Mathias era, afinal de contas, seu único parente vivo. — Eu me casarei com Perth. Será uma cerimônia discreta na capelinha da minha casa de campo. — A qual não mais lhe pertenceria após o matrimônio. Outra perda.

Pela primeira vez, desde a sua chegada, a face de Mathias ostentou uma emoção genuína. Ele saltou de pé, vermelho feito um pimentão.

— Perth! Não consentirei nisso.

A raiva que a trouxe até aqui e, lentamente, se esvaiu foi substituída pela tristeza.

— Você não consentirá? Você não tem que dizer nada a respeito. Você dilapidou a minha fortuna no jogo e não guarda o menor remorso por isso.

Ele deu um passo ameaçador na direção dela, derrubando a mesa de carteado.

— Tenho planos para que você despose Chillings ou Carstairs. Eles são tão abastados quanto Perth e seriam melhores maridos.

Ela fuzilou-o com o olhar.

— Vá para o inferno, irmão. Casei-me sob a sua orientação uma vez. Não o farei novamente. Se está tão desesperado para cobrir suas dívidas, então encontre uma rica herdeira e case-se com ela… se alguma o aceitar.

Lillith lançou-lhe um olhar realista, enxergando pela primeira vez o homem dissoluto que ele se tornara. Outrora, Mathias era esbelto e ostentava uma figura imponente. Andava com a corriola do Príncipe de Gales, e seria difícil encontrar um bando mais gaiato e depravado. Ela deixou que o amor a cegasse quanto aos defeitos dele. Ela inventou desculpas para Mathias.

Fechou os olhos por um breve instante e tentou se acalmar. Não importava o que ele fez, ou no que havia se transformado, ainda eram irmãos. Quando discerniu que conseguiria falar sem perder a temperança, abriu os olhos e disse:

— Não posso perdoá-lo pelo que fez, mas você é meu irmão. Meu único parente vivo. No momento, estou muito magoada pelo que fez, e prefiro que não me visite. Você está, porém, convidado para o casamento desde que aceite esta união e não faça nada para impedir ou atrapalhar.

Embora não retrucasse. Mathias levantou trêmulo de ódio. Quando ela percebeu que ele não pretendia falar, deu-lhe as costas, estacou e virou-se.

— Mandou que açoitassem Perth há dez anos?

As palavras lhe escaparam aos lábios antes de pressentir que tencionava proferi-las. Pensou que não queria descobrir, e que era melhor enterrar o passado.

Mathias estremeceu.

— Não é da sua conta. Uma dama não se envolveria nisso.

O desapontamento a consumiu.

— Você o fez.

Sequer deu-se ao trabalho de ficar para escutar o que ele poderia dizer. A desilusão foi demais para suportar. Torcera para que Perth estivesse enganado.

As mãos tremiam ao tomar a mão oferecida pelo cocheiro. Quando abaixou a cabeça para entrar na carruagem, uma lágrima escapuliu. Enxugou-a.

Ao partir, lançou um derradeiro olhar de volta para a casa onde crescera. Lá estava ela, um pálido simulacro do antigo esplendor. Lillith jamais regressaria.

Desviou o olhar e estremeceu como se uma lufada da brisa gélida a envolvesse. Contrariando a lógica, seu futuro jazia com Perth. Ela o amava e sabia que ele cuidaria dela e da criança que conceberam. Talvez, com o tempo, o desejo se transformasse em amor. Precisava acreditar nisso. Pois não tinha nenhuma outra opção.

Talvez pudesse recompensá-lo pelos males que lhe foram causados no passado. Se ela fosse forte o bastante.

 

Perth estava sentado no salão da hospedaria e bebia cerveja. Lá fora, a neve caía em diáfanas ondas de branco. O verde do vilarejo estava recoberto e o lago repousava sob uma fina camada de gelo. Lillith passaria por aqui a caminho da casa de campo.

Transcorrera quase uma semana. Fitch chegou no segundo dia com o coche e a bagagem que o mordomo julgou apropriada.

Perth terminou a cerveja e levantou. O estalajadeiro se apressou, enxugando as mãos no avental.

— Há mais alguma coisa que eu possa fazer pelo senhor? — Mostrou-se radiante. Perth era um bom freguês.

— Não, obrigado — retrucou Perth.

Agora ele já conhecia todos os que freqüentavam a taverna, e muitos que não. Saudava a todos no vilarejo com familiaridade. Também aprendeu que cada homem, mulher e criança na cidade respeitava e gostavam de Lillith. Todo mundo o vigiava para conferir se ele era bom o bastante para ela.

— Milorde — bradou um garoto, entrando às pressas, as bochechas vermelhas de frio. — A carruagem de milady acaba de passar.

— Obrigado — replicou Perth, atirando uma moeda — Você fez um bom trabalho de sentinela.

O menino sorriu radiante antes de sair orgulhoso feito um pavão.

Perth voltou-se para o estalajadeiro.

— Mande que tragam o meu cavalo.

Ciente de que o trato fora cumprido, Perth foi até o quarto e vestiu um casaco, luvas e chapéu. Espiou a bainha da espada largada sobre uma cadeira. Não era provável que necessitasse utilizá-la aqui.

Fitch adentrou o aposento neste exato instante.

— Nunca se sabe, milorde. Isso lhe salvou a vida naquela ocasião, ou ao menos evitou que fosse violentamente espancado.

— Duvido que Wentworth esteja aqui ou que contrate malfeitores outra vez.

Fitch apenas fitou-o.

— Mas tem razão. Existem bandidos no campo assim como na metrópole.

A ansiedade de Fitch atenuou.

— Lady de Lisle retornou.

— Sim, e pretendo falar com ela antes que tenha a chance de inventar outro pretexto para recusar minha proposta. Embora não duvide que ela descobriu o quão tenebrosa é a sua situação.

— Ela é orgulhosa. Como o senhor, milorde.

Perth sorriu melancólico.

— Sim, e enfrentaremos dificuldades por causa de tais atributos.

Perth saiu. Lá fora o cavalo aguardava. Acomodou-se na sela justo quando outra carruagem atravessava a estrada estreita. Recuou o cavalo para a calçada bem a tempo de evitar um atropelamento. O sujeito que guiava o coche era canhestro e afobado.

A espada que decidira carregar na garupa jazia no solo onde caíra quando o cavalo se assustou. Contemplou-a pesaroso.

— Fitch — disse ao mordomo, que testemunhara a cena —, por favor, leve isso de volta ao meu quarto. Cavalgarei com mais pressa do que calculei, e carregar isso vai apenas me atrapalhar.

Fitch emburrou, porém apanhou a espada.

— Seja cauteloso se planeja perseguir aquele idiota.

Por se sentir o protetor do pequeno vilarejo, Perth cogitou perseguir o veículo e matar seu ocupante de medo. Todavia, a necessidade de ver Lillith foi maior.

— Tenho um encontro mais importante.

Partiu para a casa de campo, e logo ficou intrigado ao constatar que era para lá que rumava a tal carruagem. Diminuiu o ritmo para emparelhar com a traseira do coche porque agora tinha uma suspeita de quem correria com tamanha imprudência sobre o gelo.

Que os céus o amaldiçoassem caso deixasse Wentworth se intrometer dessa vez.

Quando alcançaram a casa de Lillith, apeou o cavalo logo atrás da carruagem de Wentworth e desmontou. Os pajens apanharam o cavalo, e levaram o coche de Wentworth para o estábulo.

Wentworth desembarcou, viu Perth e empalideceu. Hesitou um momento antes de avançar rumo à porta. Perth obstruiu o caminho.

Perth espiou o outro homem com repugnância. O nariz de Wentworth começou a brilhar de tão vermelho de frio. O casaco com sua variedade de babados elegantes tornava-o semelhante a um balão à beira de estourar, em vez da aparência imponente que decerto acreditava mostrar.

— O que faz aqui? — inquiriu Perth, com as mãos na cintura. Arrependeu-se de largar a espada para trás quando a carruagem de Wentworth quase o atropelou

— Saia da minha frente — vociferou Wentworth. — Preciso falar com a minha irmã. O que ela planeja é loucura. — Por mais desaforadas que fossem tais palavras, ele não avançou.

Um sorriso implacável mostrou os dentes de Perth e acentuou a cicatriz, apesar do júbilo. Lillith pretendia casar com ele.

— O que ela planeja é a única salvação que lhe resta após a ruína na qual você a deixou. — Avançou até quase encostar o nariz no de Wentworth. — Uma situação que você jamais terá a oportunidade de provocar novamente. Grave as minhas palavras, Wentworth, não admitirei as suas importunações. Não pagarei uma única dívida que tenha agora ou terá no futuro. E se tornar a aparecer aqui, ficarei tentado a açoitá-lo com minhas próprias mãos, em vez da covardia de contratar alguém… como você fez.

As palavras mortíferas encheram o ar. A face rubra de Wentworth ficou lívida. Sem pestanejar, Perth esquivou-se para o lado. Wentworth saiu correndo, puxando a casaca para garantir que não tocasse o conde.

Perth seguiu-o num ritmo preguiçoso. Não desejava ver o irmão de Lillith outra vez. Quando enfim adentrou o vestíbulo, Wentworth se fora.

— Milorde — disse o imperturbável mordomo. — Não estávamos à sua espera. Milady está indisposta.

— Milady está com o irmão, e não almejo interrompê-los. Leve-me a uma sala onde eu possa esperar por ela.

— Hum… sim, milorde. Por aqui, milorde. — Simmons enveredou pelo corredor.

Perth flagrou-se numa saleta similar ao gabinete de Lillith. Havia uma escrivaninha entulhada de papéis e uma cesta de costura ao lado de uma poltrona. O fogo crepitava na lareira e as cortinas estavam abertas para revelar o jardim de inverno. Julgou o cômodo aconchegante e ficou à vontade.

Ele e Lillith ainda precisavam discutir os termos do casamento. Aguardaria pacientemente até que ela chegasse, agora que lhe pertencia.

Ela irrompeu porta adentro, decerto agitada.

— O que faz aqui? Mandei avisar na hospedaria que aceito sua proposta de casamento.

Perth levantou e curvou-se.

— A conversa com o seu irmão não deve ter sido alegre. Receio que ele não estivesse de bom humor após nosso encontro na entrada.

Lillith se encaminhou para a janela, de costas para ele. Possuía uma coluna elegante, a qual o vestido grosso de lã não lograva ocultar. Ele pensou que talvez a cintura estivesse um pouquinho mais dilatada, contudo podia ser só imaginação. Queria o filho que ela carregava. O impulso de tomá-la nos braços foi forte, porém o queixo empinado advertiu que tal gesto apenas dificultaria as coisas. Devia esperar, agora que ela era sua.

— Por que está aqui? — enfim ela indagou, a voz exaurida.

— Você anda descansando o suficiente? — retrucou, ignorando a pergunta.

— Durmo o suficiente, mas não há descanso no mundo que baste para compensar o tormento que meu irmão me fez passar, e depois saber que você está aqui para fazer o mesmo.

Tais palavras detiveram-no. Ele foi rude ao conquistá-la. Talvez fosse hora de mimá-la. Aquela não era uma união de amor, todavia ele desejava mais do que um casamento de conveniência.

— Não estou aqui para achacá-la, Lillith. Vim discutir o acordo que pretendo fazer em relação a você e à criança. Pensei que não gostaria que eu discutisse isso com o seu irmão, dadas as circunstâncias.

— É verdade — redargüiu amarga. — Quero uma cláusula relativa ao nosso filho, seja menino ou menina. Não permitirei que um filho meu seja negociado como uma mercadoria. Sei muito bem como é. E quero uma propriedade independente da sua. Creio que não nomeará Mathias como meu tutor.

Um sorriso reservado fendeu os lábios dele.

— Você terá tudo isso. Também providenciarei para que nosso futuro filho tenha independência financeira. Também sei como é ser considerado uma propriedade em vez de uma pessoa.

Ela corou ante tais palavras. Perth também pagou pelas maquinações de Mathias.

— E eu não dormirei com você.

Perth concedeu-lhe um sorriso sensual, enquanto o olhar passeava pelo seu corpo.

— É o que veremos.

— Não dormirei. Aceite essa condição, ou não me casarei com você.

— Eu não a forçarei.

— Nem me seduzirá.

— Não posso prometer isso. Mas você sempre poderá me rejeitar.

Perth escutou-a respirar fundo e sentiu certa satisfação. Com os diabos que a desposaria, moraria na mesma casa e não dormiria com ela.

— Bem — disse Lillith, a voz rascante —, está resolvido. Nos casaremos amanhã. Agora estou cansada.

Ele se postou na frente dela, bloqueando a passagem até a porta.

— Estou ansioso pelo nosso casamento, Lillith. A protelação foi demasiada.

Os olhos dela arregalaram. Contornou-o, e ele a deixou sair. Ele podia ser paciente. Seria paciente. Amanhã ela seria sua.

 

                                                   Capítulo Quatorze

Lillith estava na capelinha contígua à casa de campo. Em geral, não assistia à missa aqui, preferindo a igreja do vilarejo onde encontrava as pessoas que trabalhavam nas terras de Lorde de Lisle. Da congregação, apenas o ministro estava presente.

Era início de dezembro, e o prédio estava escuro, apesar das velas acesas. Lá fora nevava. Ela estremeceu.

Mathias postou-se atrás dela à esquerda. Passou a noite com ela apesar de tudo. Lillith não teve forças ou rancor para mandar os criados enxotarem-no. Estava comovida demais por causa do casamento e tudo o que ele representava.

Perth estava a seu lado em trajes formais. Ela podia jurar que sentiu a animosidade entre os dois homens como ondas rolando sobre si.

O ministro pigarreou. Lillith se concentrou nele. Os proclamas não foram divulgados. Perth tinha uma licença especial. Ainda assim todos na aldeia sabiam que ambos se casariam. Haveria uma recepção à tarde para o povo da cidade, preparada às pressas embora fosse algo que ela queria fazer. Era o seu presente de despedida para aquela gente pela qual se interessava, e que nos últimos dez anos ajudou sempre que necessário

Sentiria saudades deles tal qual dos criados de Londres que precisou demitir e dos servos daqui que não a acompanhariam à propriedade de Perth. Simmons, graças aos céus, iria com ela.

Recusou-se a chorar.

Não houve tempo para encomendar um vestido especial embora o desejasse. Encontrou um vestido de lã no mais tênue tom de rosa, que usara há vários invernos. Estava apertado no busto, onde aparentemente ganhara peso por conta da gravidez, portanto passou horas a fio soltando as costuras. Agatha pediu para fazer o reparo, porém Lillith declinou. Costurar a acalmava. O vaivém compassado da agulha tranqüilizou os nervos suscetíveis. Amanhã começaria a fazer roupas para o bebê.

O ministro pigarreou outra vez, como se engasgado. E principiou a cerimônia.

Ela proferiu as palavras requisitadas e, vagamente, escutou Perth aceitar tomá-la como esposa. Ninguém objetou.

— As alianças.

Ela espiou o ministro.

— Eu não tenho aliança nenhuma.

Ele pigarreou de novo e olhou em volta. Perth pagou-lhe uma bela quantia para desempenhar a cerimônia tão rapidamente.

— Eu tenho — afirmou Perth, a voz grave e segura.

Fitch revirou um dos bolsos e sacou um anel que cintilou sob a luz dourada de uma vela. Opalas e diamantes formavam um ornato ovalado maior que o nódulo do polegar dela. A opala traz má sorte acaso não seja a sua pedra de nascimento. Mas era a dela.

Estendeu a mão esquerda para que Perth colocasse o anel. Serviu de tal forma que parecia feito sob medida.

— Pertenceu à minha mãe — murmurou o conde. — Sei que ela gostaria que você o usasse.

Tamanha ternura não era algo que Lillith esperasse Ele estava se casando, não, ele a obrigou a casar pelo bem da criança que geraram. E ela concordou pelo bem da criança. Em nome do filho, o condado de Perth não era algo de que uma mulher abriria mão com facilidade. Especialmente agora.

— Pode beijar a noiva — anunciou o ministro, a voz hesitante.

Ela não previra isso. Sentiu a mão de Perth na cintura como aço em brasa, puxando-a para ele. Escutou Mathias bufar de irritação. Então, não escutou mais nada quando os lábios de Perth tocaram os seus e o troado nos ouvidos sufocou tudo o mais.

Não foi um beijo sutil, impessoal. Aquilo queimou-a até os ossos. Ele fincou os dedos no seu dorso e apertou-a com força contra si de modo que ela sentisse a ereção. Os lábios se moveram sobre os seus, e a língua se insinuou para dentro dela. Lillith sentiu o sabor do uísque que ele bebera antes de chegar. Decerto ele não estaria nervoso? O perfume de canela e almíscar inundou-lhe as narinas. Foi um beijo titilante que a deixou querendo mais.

Ele a soltou, e Lillith cambaleou para trás a ponto de Mathias precisar ampará-la.

— Que reação indecente — sibilou no ouvido da irmã.

Ela corou ante a verdade de tais palavras. Espiar Perth e ver o desejo voraz nos olhos dele não ajudou. Ele declarou que não a forçaria, porém aquele beijo que partilharam diante de testemunhas a fez desejá-lo. Estava perdida. Ele a possuiria e ela imploraria para que o fizesse.

De algum modo, Lillith controlou as emoções e afastou-se de Mathias. Empinou o queixo e aceitou o braço que Perth lhe ofereceu. Lado a lado, saíram juntos da capela. Os outros não os seguiram.

A salvo dos olhares curiosos, Lillith desvencilhou-se dele.

— Devo ir preparar as festividades. E não me siga. Lembre do que lhe falei.

— Suas palavras dizem uma coisa, e seu corpo e cada gesto que faz diz algo diferente.

— Tenho controle sobre o meu corpo — retrucou, desejando que fosse verdade.

Ele deu um sorriso maroto como se soubesse o quão falsa foi tal gabolice.

— Então, a vejo mais tarde.

Ela saiu apressada, tentando expulsá-lo dos pensamentos ao revisar uma lista mental do que precisava fazer para a festa de hoje à noite. Precisava conversar com Cook sobre a comida, com Simmons sobre as bebidas e com Agatha sobre o que trajar. Todas as roupas estavam apertadas.

Os pés acompanharam o ritmo do raciocínio. E, contudo, ela não logrou evitar relembrar a sensação da boca de Perth na sua.

Estava perdida.

Perth ergueu a terceira taça de champanhe num brinde ao estalajadeiro, que passou rodopiando com a esposa conforme executavam um movimento da quadrilha que agora todos bailavam. Divertido, Perth reparou que Wentworth consumiu tanta bebida quanto ele, e aqui não haveria jogatina. O sujeito devia estar enlouquecendo.

Ao ver Lillith contornar a multidão, ignorando-o de propósito, ele entendeu facilmente o que a loucura significava. Ele a queria das piores maneiras possíveis.

Ela se movia com uma graça que raras mulheres possuem. E foi atenciosa com todos.

A mãe dele era assim. Filha de um latifundiário riquíssimo, ela fugiu com o filho caçula de um filho caçula que era oficial de carreira. Os pais dele casaram por amor e, até onde sabia, jamais se arrependeram. Perth era o único filho de ambos.

Lillith passou na sua frente, dançando animada com o ferreiro. O sujeito era duas vezes maior do que ele e desajeitado. Ela teria sorte se não acabasse com hematomas nos pés.

Era benquista pelo povo da aldeia.

Como a rudeza não era um dos atributos de Perth, ele foi tirar uma das damas para dançar. Escolheu uma mulher mais idosa que se divertiria, e não flertaria consigo. Não tolerava flertes.

Enquanto isso, passaria o tempo até a noite.

Uma eternidade mais tarde, ou ao menos assim pareceu a Perth, ele postou-se ao lado de Lillith e se despediu dos últimos convidados. Wentworth há muito desaparecera.

— Simmons — disse ela, ignorando Perth totalmente —, por favor cuide para que todos recebam um abono por essa noite, e antes que sejam dispensados. Escrevi cartas de recomendação para cada um.

Ele anuiu.

Ela se virou com os ombros curvados de uma forma que Perth raras vezes testemunhara. As últimas semanas foram extenuantes para ela.

Como se percebesse a atenção dele, Lillith endireitou os ombros e fitou-o.

— Estou cansada e vou para a cama. Sozinha.

— É a nossa noite de núpcias.

— Temos um pacto.

— Uma condição. E eu não disse que a honraria.

Ela engasgou.

— Decerto que sim.

— Não. Eu disse que não a forçaria, não que eu não seduziria ou dormiria com você. Somos casados.

— Esta é a minha casa, e eu o proíbo de me seguir. — Deu meia-volta e saiu.

Perth a observou, admirando o requebro dos quadris e a elegante curvatura das costas. Mas Lillith estava assaz equivocada se pensava que não se uniria a ele. Perambulou atrás dela, distante o suficiente para não sobressaltá-la.

— Milorde… — Simmons se materializou em pleno ar — bom… eu o conduzirei ao seu aposento.

Perth encarou o mordomo.

— Obrigado, mas sei onde fica meu quarto. E estou indo para lá.

Esquivou-se, mas não antes de ouvir Simmons resmungar. Entretanto, o mordomo encontrava-se numa situação delicada, e não restava nada que pudesse fazer.

Perth marchou atrás da esposa, chegando ao quarto logo depois dela. Não bateu, e felizmente Lillith não trancara a porta. Quase acreditou que ela queria que entrasse, contudo pensou melhor. Ela não imaginava que ele a seguiria após ser proibido de fazê-lo. Ela tinha muito o que aprender.

Perth entrou e fechou a porta. Lillith estava refestelada no divã. E fez o sangue dele ferver.

Ela saltou de pé.

— O que faz aqui? Falei para não me seguir.

Perth sentou numa cadeira, cruzando as pernas. Os sapatos de festa reluziram ao fogo.

— E eu falei que seguiria.

— Bem, pode ir saindo. Agora!

— Lillith, eu já disse. Somos casados. Pretendo desfrutar dos direitos conjugais.

Ela bufou e corou e desviou o olhar do desejo que Perth não fazia questão de esconder.

— Então, terá que me seduzir, pois não me atirarei aos seus braços.

Ele a observou, notando a luminosidade da cútis e dos cabelos. Lillith era inteligente e espirituosa, duas qualidades que ele admirava. E a desejava com um ardor constante e doloroso em intensidade.

Todavia, ela estava cansada de confrontos e recriminações. Talvez desejá-la já não bastasse. Pôs-se a cismar se não seria perfeito caso ela retribuísse o seu interesse sem que primeiro ele a excitasse à força.

— Talvez tenha razão — replicou pensativo. — Por mais que eu queira fazer amor com você… e sem dúvida me perder dentro de você é algo que desejo acima de tudo… ponderei se a sua resistência não se tornou fatigante.

O queixo dela caiu.

— Você está se cansando?

Ele assentiu.

— Um pouquinho. Veja, não estou acostumado a me esforçar tanto para obter prazer.

— Oh. Não pensei que se esforçasse. Em parte, é um dos motivos pelos quais nosso casamento ainda é de conveniência.

— Um casamento de conveniência costuma dar ao marido o direito de desfrutar dos encantos da esposa.

— Você já desfrutou deles. E estou carregando o seu filho. Tal é a meta do nosso casamento de conveniência. Nós a atingimos.

— Compreendo. No que se trata de você, se gerar meu filho, então haverá cumprido a sua obrigação.

Ela aquiesceu.

De repente, Perth se esgotou além do tolerável.

— Por mais que eu a queira, creio que talvez seja hora de poupá-la das minhas atenções indesejáveis. Após um tempo, mesmo o mais insensível dos homens percebe quando a sua presença não é desejada, e sim temida.

Ele nunca pensou que chegaria ao ponto de não querer fazer nada com ela. Mas chegou. Curvou-se e saiu.

 

Lillith observou a suíte de aposentos contíguos na residência londrina de Perth. Verdes e dourados vistosos tornavam o amplo espaço acolhedor. Móveis pesados de outras épocas enchiam a área de conforto. Em suma, não era um aposento muito feminino apesar de apreciá-lo. Quanto ao aspecto do quarto de Perth, ela não sabia e nem queria saber.

Salvo que tal curiosidade impeliu-a na direção da porta. Escutou-o sair imediatamente após trazê-la para cá, então não haveria ninguém lá dentro. Disse a si mesma que não seria invasão de privacidade. Ele estava mais do que disposto a recebê-la no próprio quarto.

Respirando fundo, Lillith girou a maçaneta e abriu a porta. O aposento estava escuro com as cortinas cerradas. Entretanto, discerniu que era tão espaçoso quanto o dela e decorado nas mesmas cores. Os dois quartos eram reflexos um do outro. Que esquisito.

Ligeira, fechou a porta. Jamais saberia por que foram decorados de forma idêntica, pois não deixaria Perth descobrir que entrou no aposento dele na sua ausência. O mistério permaneceria insolúvel.

Agatha entrou naquele exato momento no quarto de Lillith, os braços atulhados de vestidos.

— Milady, alegro-me que esteja aqui. O Sr. Fitch acabou de me informar que o conde tem um compromisso para jantar com Lorde Ravensford. Precisará escolher seu vestido e teremos que abrir as costuras do busto.

Não só o ventre de Lillith crescia, mas os seios estavam cheios e doloridos, os mamilos constantemente intumescidos e atritando na camisola. A vida em família era assaz constrangedora.

A última coisa que Lillith queria era encarar a sociedade londrina. Mas devia. Quanto antes o fizesse, mais depressa os rumores do casamento impetuoso cairiam no esquecimento.

— O de musselina branca com renda cor-de-rosa — disse a Agatha. — Enquanto você o alarga, tirarei uma soneca. — A gravidez mal aparecia, contudo ela se cansava mais facilmente e ficava mais emotiva. Não havia outra explicação para a maneira como escorraçou Perth na noite de núpcias.

Despiu o vestido e meteu-se numa camisola. Mas antes de deitar na cama com dossel escreveu um bilhete para Madeline e pediu à Agatha para mandar alguém enviá-lo. Nada a animaria mais do que uma visita da amiga. Feito isso, caiu num sono profundo.

Lillith despertou com os ruídos de alguém movendo-se ao redor. O quarto estava iluminado pelo fogo, e custou-lhe alguns minutos até acostumar a vista.

Perth quedava em frente à lareira, contemplando as chamas. Trajava calças pretas, meias e sapatos. A camisa branca brilhava em contraste com as cores escuras. Na mão ele segurava uma caixa.

Lillith sentou-se e puxou o cobertor até o pescoço.

— O que faz aqui?

Ele deu um sorriso debochado.

— Até onde sei, esta é a minha casa.

Lillith aguçou os olhos, porém não soltou as palavras desabridas que brotaram nos lábios.

— Temos um acordo. Não dormimos juntos.

Cabisbaixo, caminhou na direção dela.

— Só porque estou no seu quarto não significa que pretendo seduzir você. Embora… — deteve-se aos pés da cama — bom… tal idéia seja atraente.

O calor que ele tão facilmente acendia nela flamejou. Lillith pulou da cama.

— Então, por que está aqui?

— Trouxe-lhe algo — replicou, estendendo a caixa. A qual ela espiou como se fosse uma bomba.

— O que é?

— Um presente, Lillith. Nada mais — afirmou com a entonação de alguém exausto. — Não vai magoá-la, e tampouco é um suborno pelos seus favores. É um presente espontâneo porque imaginei que iria abrilhantar você.

— Oh — exclamou, sentindo-se envergonhada pelas suspeitas. O que tornou-as mais feias foi saber que desejava que ele tentasse seduzi-la. Independente do que disse, o corpo ansiava por ele.

Apanhou a caixa, abriu e engasgou. Um conjunto de diamantes e opalas refulgiu na penumbra.

— Gostou? — indagou ele, um toque de hesitação na voz.

Essa era a primeira vez que ela escutou-o soar inseguro.

— São lindas.

Pareceu-lhe que o corpo relaxou, embora até aquele momento ela não houvesse notado que estava tensa.

— Mandei fazer para combinar com o anel.

— Mas por quê? Possuo jóias em abundância. Não precisa me dar mais. — Ela falou sem pensar, imaginando apenas o dinheiro que decerto lhe custaram. Já lhe custara tanto.

A voz dele endureceu e Perth afastou-se, dando-lhe as costas.

— Tudo o que você possui veio de Lorde De Lisle. Estes são meus. Espero vê-la usando isso hoje à noite.

Sem que ela conseguisse atinar algo para dizer que compensasse as palavras anteriores, Perth saiu. Lillith suspirou. Poderia segui-lo, todavia não acreditava que isso resolveria a questão das jóias. E significaria precipitar outra situação.

Em vez disso, ela colocou a caixa na cama e acendeu as velas do candelabro para examinar melhor as jóias. Colar, brincos, duas pulseiras e um broche resplandeceram sob a luz dourada. As opalas eram furta-cores e plenas de fogo. Os diamantes que circundavam as opalas de lapidação cabochon eram cristalinos. Perth deve ter empenhado tempo e consideração neste presente.

Lillith depositou as velas na mesa e apanhou o colar. Ele cascateou por entre os dedos, pesado e deslumbrante. Levou-o consigo ao espelho e colocou-o no pescoço. A jóia cintilava, um contraste perfeito para a cútis alva e os cabelos platinados. Sim, Perth escolhera bem.

Sobressaltou-se quando a porta abriu, supondo que fosse Perth. O alívio, seguido pelo desapontamento, a inundou ao avistar Agatha.

— Milady, fiz o melhor possível com o corpete. Espero que sirva. — Ergueu os olhos do vestido nas mãos e pasmou. — Milady… o conde lhe deu isso? É mais sofisticado do que tudo que possui.

Lillith deu à criada um sorriso contrito.

— Sim, é verdade, e ele quer que eu as use essa noite.

Agatha aproximou-se mais, o olhar fixo no colar.

— Ficará magnífico com o vestido. Foram… perdoe a indiscrição, mas foram um presente devido ao seu estado?

Ela não pensara nisso.

— Talvez. Ele não falou. — Espiou o delicado relógio de porcelana perto da cama, um objeto feminino que parecia destoar do aposento. — Mas precisamos nos apressar.

Uma hora depois, Lillith postou-se em frente ao espelho em todo o seu esplendor. Agatha ajeitou as pulseiras, uma em cada braço por cima das mangas, e Lillith colocou os brincos. O colar ainda jazia no estojo de veludo. Resolveu esperar para ver se Perth viria colocá-lo nela como forma de desculpar as palavras que ela proferiu mais cedo.

— Milady, chegará atrasada se nos demorarmos — comentou Agatha, apanhando o colar e colocando-o em torno do pescoço de Lillith.

Lillith suspirou quando a criada travou o fecho. Melhor assim. Antes o toque impessoal de Agatha. Os dedos de Perth na sua nuca, e o hálito morno acariciando a pele, só causariam aflição.

Agatha estendeu um xale delicado de padrão paisley sob os ombros de Lillith e recuou um passo.

— Perfeito, milady.

Lillith admirou a toalete completa. Virou-se de um lado para o outro. Sua aparência era ótima, e ninguém desconfiaria que estava grávida. Isso viria mais tarde quando parisse a criança cinco meses após o casamento. Bem, isso tampouco era incomum.

Perth aguardava no vestíbulo. Quando ela se uniu a ele, Perth lançou-lhe um olhar efêmero.

— As jóias realçaram você — elogiou, apanhando o chapéu e a bengala de Simmons.

— Obrigada — replicou Lillith, imaginando por que sentiu como se faltasse algo. Não queria lisonjas dele, porém precisava admitir que esperava mais.

Do lado de fora, tomou-lhe a frente e permitiu que o pajem a ajudasse a subir na carruagem. Novamente, ficou desapontada. Por mais que reclamasse de Perth e da própria reação a ele, pareceu estranho que outra pessoa a tomasse pela mão ao entrar no coche.

Na noite de núpcias, ela o desejara acima de tudo. Desde que chegaram em Londres, ele estava, com raras exceções, distante. Comportava-se tal qual o casamento fosse mesmo de conveniência. E então lhe deu aquelas jóias magníficas. Ela balançou a cabeça aturdida.

— O que há de errado? — indagou Perth, sentado de costas para os cavalos.

Ela inclinou a cabeça e observou-o sob a luz pálida das lamparinas. O semblante estava melancólico, a cicatriz pronunciada. Parecia intimidador e definitivamente entediado.

— Você mudou desde que viemos para a cidade. — Lillith foi sincera, sem querer complicar ainda mais o relacionamento com mentiras e subterfúgios.

— Cansei-me de perseguir você e ter que derrubar as suas defesas. Nossa noite de núpcias ensinou-me que não há prazer em forçá-la.

— Você sempre fez isso antes e não parecia menos excitado. — Por mais ridículo que fosse, ela não conseguiu dissimular um tiquinho de mágoa na voz. Estava emotiva.

Ele desviou o olhar para a paisagem.

— Isso foi antes de nos casarmos. Ainda quero você. — Voltou-se para ela e os olhos sombrios penetraram os seus. — Mas cansei de brigar. Quando estiver pronta para mais do que uma cama fria à noite, é só dizer.

Tais palavras magoaram, o que a surpreendeu. Foi isso o que ela própria exigira. Infelizmente para ela, jamais pensou de fato que ele cederia às suas exigências. Agora cedeu, e ela não gostou. Todavia era melhor assim. Caso ele não a perseguisse, não ficaria tentada a se render a ele.

Sim, definitivente era melhor assim.

 

                                               Capítulo Quinze

Por sorte, chegaram à casa de Ravensford logo em seguida. A reunião era mais numerosa do que Lillith previra. Cerca de cinqüenta à sessenta pessoas em alvoroço no salão do marquês: algumas dançando, outras conversando, e ainda aqueles que jogavam carteado nas alcovas.

Perth manteve uma pressão sutil na sua cintura ao conduzi-la em direção ao casal de anfitriões. Mesmo sabendo que ele não a tocava com a intenção de seduzir, a sensação dos dedos de Perth era reconfortante. Não importava que tipo de casamento era aquele, Perth protegeria a ela e à criança.

— Ah, Perth — disse Ravensford, esquivando-se do pequeno aglomerado de gente com quem estava e aproximando-se deles. — E a adorável Lady de Lisle.

— Lady Perth — corrigiu o marido com firmeza. Os olhos verdes de Ravensford arregalaram antes que ele sorrisse.

— Enfim, você conseguiu. As algemas do casamento lhe caem bem, Perth. — O sorriso assumiu um ar zombeteiro quando Perth fez uma careta. — E você, Lady Perth — acrescentou, tomando a mão de Lillith e levando-a aos lábios. — Parabéns a ambos.

Lillith enrubesceu sob o escrutínio de Ravensford.

— Obrigada, milorde.

Ele soltou-lhe a mão e recuou.

— Suma daqui, Perth, desejo conversar com a sua esposa.

Lillith julgou notar um efêmero semblante de apreensão esmorecer a fleuma do, ao contrário, imperturbável Perth, mas ele desapareceu antes que pudesse ter certeza.

— Então, irei prestar meus respeitos à sua esposa — retorquiu Perth, perambulando rumo a Lady Ravensford e seu cortejo de admiradores.

Lillith lançou um olhar ressabiado para Ravensford. Ele tomou-lhe a mão e acomodou-a no próprio braço.

— Um passeio pelos arredores nos manterá a salvo daqueles mais curiosos. — Guiou-a até o recanto mais deserto. — Vejo que ele lhe deu as opalas. Eu estava com Perth no dia em que as encomendou. Ele mostrou-se preocupado se seriam boas o bastante para você.

— Perth? — perguntou, incrédula mediante tamanha insegurança do marido. Esse não era o homem que conhecia.

— As opalas eram as pedras preciosas favoritas da mãe dele, mas a família não dispunha de dinheiro para comprar muitas. O anel que ele provavelmente lhe deu no casamento era tudo o que ela possuía, e o pai gastou o soldo de um ano inteiro para adquiri-lo. Uma proeza para um oficial do exército. Os pais de Perth já eram falecidos há muito tempo quando ele herdou o condado.

Uma janela se abriu para o passado do marido.

— Eu não sabia de nada disso.

— Decerto que não. Ele não lhe contaria, mas eu… bom — Fitou-a nos olhos. — Perth não lhe contará isto tampouco, mas eu sim. Ele ama você, mas ainda não caiu em si. Dê-lhe tempo.

Ela o encarou, abismada.

— Isto é demasiado íntimo, Lorde Ravensford. Peço-lhe que não diga mais nada.

Ele deu de ombros.

— Eu a considerava uma pessoa mais forte. Também pensei que gostaria de saber. Vejo que foi um erro. Vamos retornar para o resto dos convidados?

Não aguardou que ela respondesse, todavia conduziu-a de volta a Perth, e entregou-a com uma cortesia abrupta. Perth ficou intrigado.

— O que deu em Ravensford? Isto não são modos de tratar você. — Deu um passo na direção do amigo, contudo Lillith agarrou-o pelo braço. — O que foi?

— Estou evitando que cometa um erro, Perth. Eu provoquei Ravensford. É justo que esteja aborrecido comigo. Deixe estar.

Ele observou-a atentamente por longos instantes Lillith sentiu outros olhares sobre eles. Escutou vozes sussurrarem. Os rumores acerca do casamento de improviso se espalhavam.

Perth relaxou e soltou o braço dela.

— Olhe para aquela senhora perto da coluna — comentou ele, a voz mais próxima do normal.

Ela olhou na direção indicada e avistou uma mulher de beleza impressionante com os cabelos grisalhos curtos segundo os ditames da moda, um contraponto ideal para a perfeição da cútis do rosto oval. Vestia-se no tom de violeta predileto de Lillith.

— Ela é linda. Quem é?

— A viúva do Conde de Ravensford.

— Mas pensei que ela fosse contra o casamento de Ravensford. Não esperava encontrá-la aqui. — Avançou um passo para olhar melhor. A condessa não parecia tão feliz quanto à primeira vista.

— Ela era contrária à união, e ainda está infeliz por causa disso, mas Ravensford deixou claro que a cortaria da vida dele em vez de desistir de Mary Margaret. Ele é filho único e sempre foi a alegria dos pais. Ainda é o foco dos carinhos da mãe, e ela cumpre com o seu papel.

Lillith sentiu uma pontada de inveja. Jamais soube o que era ter mãe, e o pai nunca demonstrou se importar. Assim, ofertou todo o seu amor e devoção a Mathias, e foi traída.

— Ele é um felizardo.

Perth fitou-a.

— Nosso filho terá o mesmo amor e devoção, eu juro.

Lillith piscou num esforço de conter as lágrimas súbitas e inexplicáveis que tais palavras provocaram. Não confiou em si própria para responder sem chorar, portanto deu-lhe as costas. Percebeu que ele se afastou, e imediatamente sentiu-se rejeitada, contudo não logrou chamá-lo de volta. As coisas estavam acontecendo de um modo inesperado, e ela encontrava dificuldade para absorvê-las.

Perdida em pensamentos, flanou até adentrar um dos salões onde se jogava carteado. Uma das mesas acomodava quatro para o uíste. A outra uma partida de bacará. A mulher que jogava na banca sorriu, os outros ou emburraram ou gemeram.

Tocaram-lhe no ombro e ela saltou. Só então percebeu que os ombros vergaram e que crispou os dedos.

— Lillith — Perth falou baixinho nos seus ouvidos —, nem todos que apostam perdem uma fortuna. A maioria das pessoas joga por diversão. Nenhuma dessas pessoas aqui hoje está endividada ou perdeu a herança.

O consolo que as palavras dele trouxeram, por mais que parecesse simplório, permitiu que ela relaxasse.

— Tem razão — sussurrou Lillith. — Apenas me deixei impressionar pela minha experiência com Mathias.

— Eu sei — retrucou meigo, levando a mão à nuca de Lillith e massageando com carinho os músculos tensos.

— Cá estão os pombinhos — uma voz animada declarou.

Lillith sobressaltou-se, e teria pulado para longe de Perth se ele não a apertasse mais forte. Virou-se e viu Madeline Russell com Nathan a tiracolo. Lillith sorriu de alegria.

— Não sabia que você viria — afirmou, estendendo as mãos para tomar as de Madeline.

— Eu não avisei porque sabia que como esposa de Perth você estaria aqui e quis fazer uma surpresa. Fico tão feliz por vê-la com uma aparência tão boa — murmurou. — O casamento lhe cai bem.

Lillith espiou Perth furtivamente de esguelha para conferir se ele havia escutado, mas ele e Nathan se afastaram.

— Obrigada pelo elogio, e você está indescritível como sempre.

Em vez de se mostrar encabulada, Madeline pareceu satisfeita.

— Agora que a vi, alegro-me por ter revelado a Perth para onde você foi.

— Então foi você. Bem que pensei. — Porém, as palavras não ostentaram censura. As coisas progrediram para melhor.

Madeline agitou os ombros recobertos por uma musselina vaporosa muito em voga.

— Ele estava desesperado para encontrar você. Pensei que ele soubesse — arrematou num cochicho.

Lillith aquiesceu.

— Muita coisa aconteceu desde a última vez que a vi. — Arrastou Madeline para uma alcova onde quedaram de costas para a parede de modo a avistar qualquer um que se abeirasse. — Mathias esbanjou minha herança na jogatina.

— Aquela víbora — retrucou Madeline. — Sei que é seu irmão, mas ele é mais rastejante que uma cobra. Ele é… ele é… não consigo imaginar nada pior do que ele.

Lillith suspirou, e de novo sentiu-se à beira das lágrimas. Respirou fundo.

— Perth concordaria com você completamente. — Deve ter soado chorosa porque Madeline abraçou-a.

— Oh, Lillith, lamento aborrecer você.

— Tem razão quanto a Mathias. Eu sei e deveria estar acima disso. Não sei o que há de errado comigo, mas tudo me entristece mais do que o normal. Este foi apenas mais um incidente.

— Bom, sorria. Nós estamos sendo observadas. — Espocou um sorriso ofuscante para duas viúvas. — Quanto ao humor, trata-se do seu estado. Juro, chorei de sol a sol. — Gargalhou. — Nathan ameaçou me abandonar por nove meses.

Lilith riu.

— Decerto que não. Nathan é louco por você.

— É verdade, mas até ele sofreu amargamente.

Sentindo-se muito melhor devido às risadas, e por contar a Madeline o horror causado por Mathias, Lillith permitiu que a amiga a guiasse para onde Perth e Nathan conversavam com Carstairs, Chillings e Lady Annabelle. Notando que Perth estava ao lado de Lady Annabelle, Lillith não conseguiu reprimir uma pontada de ciúme.

Disse a si mesma que era o seu estado que a tornara suscetível. Então, sempre honesta consigo mesma, admitiu que não. Estava com ciúmes pelo interesse de Perth por outra mulher. Lady Annabelle era pior porque era assaz intrigante.

— Nathan, querido — bajulou Madeline ao tomar o braço do marido —, seja bonzinho e apanhe uma bebida para mim e Lillith. — Lançou um olhar ressabiado para Perth. — A menos que você prefira ir.

O olhar de Perth resvalou de Madeline para Lillith.

— Seria um prazer.

Pela expressão no rosto dele, Lillith concluiu que estaria longe de ser um prazer. Todavia, alegrou-se pela manobra de Madeline. Tal artimanha separou Perth de Lady Annabelle.

— Parabéns — disse Lady Annabelle, aproximando-se de Lillith. — Soube que você e Perth estão recém-casados.

— Obrigada — murmurou Lillith.

— Meus parabéns também — declarou Chillings.

— E os meus — acrescentou Carstairs um pouquinho devagar. — A boa sorte dele é o nosso azar.

— Obrigada novamente — retrucou Lillith.

Perth retornou com as bebidas. Entregou a de Madeline com um floreio.

— Da próxima vez, deixarei que Russell faça as honras.

— Em geral eu faço — redargüiu Nathan bem-humorado.

Madeline riu.

— Gostaria de dançar, Lady Perth? — convidou Carstairs.

Lillith espiou o marido que pareceu prestes a meter-se entre ela e o outro homem. Ligeira, respondeu:

— Por favor.

Carstairs estendeu o braço, e ela o acompanhou ao local onde a dança acontecia. Era uma quadrilha rupestre. Para Lillith, a música durou tempo demais, e no momento em que terminaram, ela estava às zonzas.

— Gostaria de ir ao terraço tomar um pouco de ar fresco? — sugeriu Carstairs.

Ela bem que gostaria, entretanto pensou melhor.

— Não, obrigada, Sr. Carstairs. Devo retornar para o meu marido.

— Como desejar. Eu imaginei que carecesse de um desafogo.

Lillith hesitou ante o tom da voz dele e encarou-o.

— Por que pensaria uma coisa dessas?

A pele bronzeada de Carstairs ficou vermelha.

— Eu não deveria comentar nada. Mil desculpas.

— Não — sussurrou. — Eu realmente quero saber por que pensou isso.

Ele a conduziu para longe do rumo que tomavam de modo que caminhassem com privacidade suficiente para conversar.

— Eu ultrapassei os limites da discrição, contudo seu irmão afirmou que este casamento não é de seu agrado. — Parou e esperou como se tentando decidir o que mais falar. — Um dia, ele confessou que você talvez estivesse disposta a aceitar um pedido meu.

Lillith petrificou.

— Lamento muitíssimo — desculpou-se Carstairs, a voz grave plena de vergonha. — Agora vejo que o Sr. Wentworth se enganou.

Outra perfídia de Mathias, Lillith refletiu amargurada. Manteve a entonação serena.

— Sou eu quem de fato lamenta, Sr. Carstairs. Meu irmão pode ser tirânico quando crê que seus atos beneficiam os meus principais interesses. — Precisou pausar um momento para deixar a mentira assentar. Não gostava de contar lorotas, mas nesse caso não podia revelar a verdade. — Concordei com esse casamento de livre e espontânea vontade.

— Entendo — replicou Carstairs circunspecto. — É melhor devolvê-la a Perth.

— Não há necessidade — afirmou a voz de barítono de Perth bem ao lado deles. — Vim buscar minha esposa. É hora de irmos. Ela carece de todo o repouso possível.

Lillith sorriu para ele antes de permitir que Perth a acompanhasse ao vestíbulo onde ele a envolveu numa pesada capa, e depois a levou para a rua onde a carruagem aguardava. Em vez de consentir que o pajem a ajudasse, Perth auxiliou-a a entrar.

Ela acabara de sentar quando Perth inquiriu:

— Carstairs importunou você?

A pergunta tomou-a de surpresa. Jamais poderia contar a verdade. Ele desafiaria Carstairs e depois Mathias.

— Não, ele simplesmente permitiu que eu tomasse fôlego antes de me devolver a você. A dança foi mais extenuante do que imaginei. — Sorriu meiga. — Parece que dançar requer mais esforço agora do que antes.

— Garanto que há mais do que isso que está dizendo, mas deixarei passar.

— Não há nada — retrucou calma. — E se houvesse, e daí? Estou carregando o seu filho.

Ela não teve intenção de espezinhá-lo. Quanto menor o interesse dele nas intrigas que Mathias insistia em tramar, melhor para todos. Mathias tinha muito o que explicar, contudo ela não o queria ferido ou morto, e em particular não pelo próprio marido. Todavia, a falta de interesse de Perth em relação a ela, ultimamente, a indignava. Contrariando o bom senso, queria que ele a desejasse. Tão logo compreendeu isso, ralhou consigo mesma. Ela era uma absoluta desmiolada! Tinha que ser o seu estado.

— Bem, decerto não será de outro homem — retorquiu Lillith.

Ele sorriu, os dentes um rasgo de brancura na tez morena. Mas em vez de retrucar, ele bateu a bengala no teto da carruagem. O veículo parou e, sem olhar para trás, Perth saltou e pôs-se a caminhar.

Perplexa e um pouquinho zangada ante a deserção, Lillith lutou contra a inclinação de segui-lo. O impulso de gritar com ele feito uma vendedora de peixes foi forte. Ela estava doida. Ele apenas a tratava da maneira como ela exigira. A tratava como um homem trataria a mulher que desposou por conveniência. Afinal de contas, ela carregava o seu filho.

Entretanto, as mãos tremiam incontrolavelmente, e as lágrimas vieram à tona. As coisas se encaminhavam de uma forma horrível na direção que ela temia.

 

Na manhã seguinte, Lillith estava no salão do desjejum bebendo chocolate quente quando Perth uniu-se a ela. Lillith não conseguiu evitar o cenho com o qual saudou-o. Ele não voltara na noite anterior, ou, se voltara, ela não ouvira seus passos apesar de deitar insone até o alvorecer.

— Bom dia para você, também — disse ele, servindo-se de uma generosa fatia de presunto e sentando-se na sua frente. — Alegro-me por encontrá-la antes que saísse hoje. Tenho algo para você.

— Sério? — Ela bebericou o chocolate e mordiscou a torrada. — Mais jóias? — indagou, no ensejo de alfinetá-lo.

— Se é o que deseja, então providenciarei mais. Já levei as jóias da família Perth ao Gerrard’s para serem polidas e consertadas. Há rubis e safiras e algumas pérolas dos mares do sul.

Exasperada consigo mesma e com ele, Lillith replicou azeda.

— Não era nada do gênero. Eu só fiquei curiosa.

— Então, talvez, você se alegre mais com o presente de hoje do que com as opalas. — Levantou-se e rumou para a porta onde parou e esperou por ela.

O cenho de Lillith agravou. Quis um casamento de conveniência, e era exatamente o que ele estava lhe dando, exceto pelos magníficos presentes. Sorveu o último gole do chocolate e levantou-se, movendo-se com calma apesar da afobação dele.

Seja lá o que ele lhe trouxe, estava do lado de fora, e ele parecia entusiasmado. Observá-lo praticamente dançar de um lado para o outro, enfim, arrefeceu o seu descontentamento. Perth arrebatou-a porta afora e se deteve.

Na rua, um imponente par de cavalos cinzentos estava atrelado a um cabriolé prateado com debruns e capota negros. A porta ostentava o brasão dos Perth.

— É sua — ele anunciou baixinho.

Ela engasgou.

— Minha? É fabulosa. Ou melhor, é linda. Decerto é para nós dois.

— Não — retrucou firme, tomando-a pelo braço e conduzindo-a escada abaixo até o coche. — É só para você.

— Mas… obrigada — replicou, lembrando o quanto ele especulou se ela gostaria mais desse presente que do anterior. — É de fato um presente formidável. — Virou-se para ele, perplexa. — Mas por quê? Eu já tenho uma carruagem, e já recebi muito de você pelo pacto nupcial.

— A sua outra carruagem pertencia a De Lisle e tem o brasão dele. Você não é mais a viúva de Lorde de Lisle. Você é Lillith, Condessa de Perth. Este cabriolé é um reflexo disso.

— Ah — suspirou como se entendesse, mas não entendeu. — Serve para mostrar ao mundo que eu sou sua propriedade.

— Que você é minha esposa — corrigiu. — Pensei que talvez quisesse se encontrar com o Sr. Sinclair. Veja se gosta, ou se existe algo que prefere trocar.

Ela balançou a cabeça aturdida. Ele a estava cobrindo de coisas caras. Isso era desconcertante.

— É uma boa idéia. Preciso buscar minha pelerine e uma capa. O dia está frio e vai começar a chuviscar.

Lillith correu escada acima, mais para escapar dele e da situação do que por pressa. Ainda restava muito tempo antes de precisar sair. Entretanto, os cavalos que puxavam a carruagem careciam de exercício. Ela poderia dar um passeio pelos arredores de Londres, possivelmente Hyde Park, antes de ir ter com o Sr. Sinclair. De fato, era um belo veículo.

 

Uma hora depois, Lillith saiu da nova carruagem.

Faltavam cinco minutos para o compromisso com o Sr. Sinclair. O Parlamento permaneceria fechado por vários dias, e Lillith queria inteirar-se dos seus negócios antes que ela e Perth partissem para o campo.

Adentrou o escritório, e logo a conduziram às pressas para o gabinete particular de Sinclair. Ele levantou e ofereceu-lhe um assento próximo à lareira. Ela sentou satisfeita.

— Está cada vez mais frio — comentou Lillith.

— Que inverno. Suponho que você e o conde, em breve, partirão para o campo.

— Assim que o Parlamento fechar. Há certos interesses que o conde está tentando convencer o Parlamento a discutir.

— Sim. A proposta para os soldados que retornaram da guerra. Muita gente é a favor, mas duvido que ele consiga aprovação. É uma vergonha.

Momentaneamente, Lillith pasmou. Sabia que a maioria das pessoas nos seus círculos de amizade estava a par da campanha de Perth, entretanto não atinara que fora daquela esfera as pessoas também tinham conhecimento do que ele fazia. O orgulho pelo empenho do marido causou um nó na garganta.

— Meu marido possui muitas qualidades notáveis — conseguiu enfim dizer.

— Muitas — assentiu Sinclair. — E é assaz generoso.

Lillith corou e especulou se rumores acerca das jóias magníficas e da nova carruagem conseguiram se espalhar tão rápido.

— É mesmo.

— Estou com os documentos do acordo nupcial aqui para que leia e assine. Verá que o conde concordou com muito mais do que pediu.

— O quê?

— Ele comprou a sua casa de Londres, e ela pertencerá ao segundo filho que tiverem, caso o primeiro seja um menino. Se o primogênito for uma menina, então a casa será dela. Ele também lhe deu uma grande propriedade que, na eventualidade do falecimento dele, continuará sua quer se case de novo ou não. E ele destinou dez mil libras para cada criança que não herdar o condado. Muito generoso mesmo.

Ela ficou boquiaberta.

— Muito generoso mesmo — repetiu, demasiado atônita para pensar em algo diferente.

O Sr. Sinclair pigarreou.

— Existe uma condição referente a tudo. O Sr. Wentworth jamais deverá ser incumbido de administrar nada disso.

— É uma cláusula sensata — aquiesceu Lillith, imediatamente aliviada.

Dadas as boas e más notícias, ela assinou os papéis aliviada.

— Muito obrigada, Sr. Sinclair. Sei que enfrentou dificuldades nos últimos meses, porém acredito que considerará o futuro deveras mais agradável.

Ele estendeu-lhe a mão.

— Como espero em relação à senhora, milady.

Ela saiu do escritório com uma leveza que não experimentava há muito tempo. E tudo por causa de Perth. A jornada para casa foi bem mais aprazível do que a jornada até o Sr. Sinclair.

E a generosidade de Perth para consigo e os filhos… Este podia ser um casamento de conveniência, e Perth talvez a tratasse como se fosse, porém tal atitude condizia a um homem determinado a demonstrar que aquela era uma união de amor, e o quanto ele se importava com a segurança dela. O que ela sabia não ser o caso. Tampouco, deveria permitir-se ser tão fraca a ponto de pensar que era.

Isso era muito angustiante.

 

                                                     Capítulo Dezesseis

Lillith apeou da égua. Ela e Perth partiriam para Londres amanhã, e ela andava ocupada arrumando as malas; não queria vir aqui. Entretanto, Mathias enviou-lhe um bilhete pedindo que o encontrasse em Hyde Park. Ele não aparecia desde o casamento, e ela descobriu que sentiu saudades dele, e esta seria a última chance de ver o irmão durante um bom tempo.

Era fim de tarde, e o sol logo desapareceria. Desejou que ele houvesse escolhido um ponto de encontro mais quente, de preferência entre quatro paredes. Contudo, ele alegou não querer que ela pisasse no seu quarto alugado. Nenhum dos amigos dela, nem mesmo Madeline, o acolheria no próprio lar e a maioria dos amigos dele era de homens solteiros.

Um vento penetrante fustigou os galhos desfolhados das árvores ao redor, e provocou ondulações sutis na superfície alva do lago. Os patos que ali nadavam durante o verão sumiram.

Escutou o ruído de cascos de cavalo castigar o solo, e guinou a montaria na mesma direção. Ao contrário de ver o irmão, viu o marido. Ele cavalgava rapidamente, e fez o cavalo parar justo quando ela pensou que seria atropelada. Num instante, percebeu que ele estava furioso.

— Que diabos você pensa que está fazendo? No parque a essa hora do dia, quando o sol quase se pôs, e sem pajem? — vociferou. — Poderia acontecer de tudo com você. E se não se importa consigo mesma, pense em nosso filho.

Consciente de que deveria ter trazido um pajem, na defensiva, ela revidou.

— Vim aqui encontrar Mathias, que não irá à nossa casa… como você sabe muito bem. Ele ainda é meu irmão, e eu ainda quero manter o contato com ele.

— Então, encontre-o num lugar mais aquecido e seguro que Hyde Park ao crepúsculo no inverno, quando não há quase ninguém por perto.

Perth guinou o cavalo e desembestou como se esperasse que ela o seguisse automaticamente. A raiva de Lillith aflorou de imediato e ela não arredou pé. Ele olhou para trás, as sobrancelhas vincadas.

— Venha logo.

— Já disse, estou esperando Mathias.

— E eu estou esperando você — retrucou frio.

Ela se empertigou, preparada para contrariá-lo. Um tiro disparou. O cavalo empinou e ela caiu no chão, com uma força que arrebatou-lhe o fôlego.

— Lillith!

Escutou o grito angustiado de Perth, porém não conseguiu sentar e dizer que estava bem. Os pulmões ardiam e não pareciam se encher de ar. Perth estava ao seu lado antes que se recuperasse.

— Lillith, meu Deus, você está bem?

Ele a ergueu nos braços justo quando dispararam outro tiro. Imediatamente, ele deitou, cobrindo o corpo dela com o seu. As mãos protegeram o rosto e a cabeça de Lillith. Ela ouviu o relincho dos cavalos.

— Temos que sair daqui — resmungou ele. — Consegue correr?

A compreensão do perigo assaltou-a como uma carruagem desgovernada.

— Sim, creio que sim. É necessário.

— Essa é a minha Lillith. Agora.

Perth levantou e puxou-a para cima. Atirou-a para frente e a impeliu a avançar. Dispararam outro tiro. Ela sentiu a mão dele escorregar das suas costas e retornar quase de pronto.

Ela segurou a saia de equitação com ambas as mãos, amaldiçoando tal estorvo, e correu para salvar a vida. Os pulmões doíam. Ouviu o tropel das botas de Perth e sentiu seu hálito morno no pescoço. Alcançaram um arvoredo onde Perth a empurrou para trás de um largo tronco e fê-la se agachar.

— Assim você se torna um alvo menor — explicou ele, ajoelhando ao lado dela e acobertando as partes do corpo de Lillith que a árvore não protegia.

Ela ofegava. Desesperada para saber o que estava acontecendo, esticou a cabeça para olhar ao redor do tronco.

— Maldição — praguejou Perth, puxando-a pelo braço para que a cabeça não ficasse exposta. — O que está tentando fazer, oferecer o alvo perfeito?

Envergonhada, ela disse:

— Tem razão. Foi sem pensar.

Ele soltou um suspiro frustrado.

— A melhor coisa que poderia acontecer conosco justo agora era que seu irmão chegasse. Quem quer que seja o pistoleiro decerto fugirá se muita gente se envolver.

— Mas por que ele está atirando em nós?

Ele deu de ombros.

— Quem sabe? É um inverno rigoroso. Talvez seja alguém desesperado além do limite, e disposto a correr o risco da grande possibilidade de ser apanhado.

— Decerto que não — afinal ela conseguiu desabafar entre os dentes trêmulos.

Ele deu de ombros outra vez, e agora se encolheu. Lillith observou-o e viu a mancha vermelha no ombro direito que se alastrava lentamente.

— Você foi atingido — afirmou, de súbito desesperada de preocupação. — Precisamos chamar um médico.

— Quieta — retrucou gentil. — Primeiro temos que fugir daqui. Todo o resto pode esperar.

Lillith sabia que ele tinha razão, todavia isso não impediu que as garras glaciais do medo dominassem o seu coração.

— Ao menos precisamos estancar o sangramento.

Ergueu a saia e rasgou a anágua. Dispararam outro tiro.

— Pare com isso — avisou Perth. — O tronco da árvore não é largo o bastante, e toda essa agitação transforma você no alvo perfeito. Prefiro sangrar até morrer do que ver você ferida. Portanto, pare.

Um tiro acertou a árvore, fazendo os estilhaços de casca voar pelos ares. Uma lasca atingiu a face de Lillith. Ela gemeu e tateou para ver se a farpa ficou presa. Não ficou, contudo as luvas ficaram manchadas de sangue.

Perth murmurou:

— Quem quer que esteja por trás disso pagará caro.

O orgulho inundou-a, pois sabia que ele havia falado sério, e até ela mesma não queria nada mais que vingar-se da pessoa que atirou nele. Independente do que ele sentia por ela, Lillith o amava.

Rapidamente, a escuridão assomava.

— Tentaremos escapar de novo. Eles não serão capazes de enxergar no escuro melhor do que nós. Quer dizer, se alguém não vier procurar por nós muito em breve. Os cavalos decerto retornaram para casa, e o pajem logo informará Fitch. — Mal pronunciara tais palavras escutaram o tropel de cavalos que se aproximavam. — Ah, eu sabia que podia contar com Fitch — desabafou com grande satisfação.

Para o alívio de Lillith, parecia que Fitch trouxera um pequeno exército. Vários cavaleiros brandiam archotes para iluminar a área. Cada um deles carregava uma pistola.

— Fitch — bradou Perth. — Aqui.

Lillith ouviu Fitch ordenar a alguns dos cavaleiros que se espalhassem para localizar os agressores. Homens e tochas se dispersaram sob o crepúsculo, deixando um rastro de fumaça e cheiro de piche. Ela ficou maravilhada ante a eficiência de Fitch.

Depressa os homens restantes cercaram a ela e a Perth. As labaredas amarelas e alaranjadas dos archotes elevavam-se para o céu e lançavam as sombras dos homens para trás num simulacro gigantesco de cada um deles.

— Sabia que algo estava errado — comentou Fitch, desmontando. — Ainda bem que a senhora mencionou algo quanto a vir até aqui. — Sem querer, deu uma olhadela furtiva para Lillith.

Ela o flagrou olhando, embora brevemente, e compreendeu que toda essa barafunda era culpa sua. Mas decerto o seu irmão não planejara isso! Alguém talvez descobrira que ele lhe enviara um bilhete, ou a vira sair de casa e a seguira, acreditando que seria uma presa fácil. Mathias tinha lá seus defeitos, como ela sabia muito bem, contudo, isso ia além de desbaratar uma herança na jogatina, ou mesmo chicotear alguém. Decerto…

— Leve Lady Perth para casa — ordenou o conde, empurrando-a para os braços de um cavaleiro próximo. — O cavalo a derrubou, e quero que seja examinada imediatamente por um médico.

Com os membros frouxos, Lillith flagrou-se sentada em frente ao chefe dos pajens.

— Você também está ferido, Perth. Precisa de um médico mais do que eu. Vamos para casa.

Fitch sobressaltou-se e deu meia-volta. Andou um passo na direção do conde, mas ao falar a voz soou calma.

— Ela tem razão, milorde.

Perth resmungou.

— Eu sobreviverei. Já passei por coisa pior. No momento, devemos procurar os patifes ou qualquer pista que deixaram. — Cerrou os punhos. — Eles não sairão impunes.

Lillith estremeceu de repente, com o frio e tais arrepiantes palavras, enfim, penetrando o torpor que se abatera sobre ela.

— Então, não cumpra a vontade deles ao ficar e permitir que o ferimento piore.

— Leve-a para casa, Thomas — ordenou Perth ao pajem. Para atenuar a rispidez da ordem, ele segurou a mão de Lillith. — Eu não ficaria aqui se pensasse que minha vida corre perigo. Acredite que entendo dessas coisas.

Ela o fitou e compreendeu que Perth falava sério. Isso não seria tão ruim se Lillith não visse Fitch virar a cabeça para o lado de apreensão. Contudo, não restava nada a fazer.

— Cuide-se, então — retrucou ela, curvando-se e beijando-o de leve. Perth deu um passo para trás de surpresa. — Chamarei um médico para garantir que nem o bebê e tampouco eu sofremos algum ferimento. E mandarei que ele fique para examinar você.

Perth encarou-a, e ela notou que a demonstração espontânea de afeição o espantara. Ela nunca o beijara antes, a não ser durante a paixão, e depois que ele já a excitara.

Ele recuou.

— Não me demorarei muito.

Perth virou-se e gesticulou para que Fitch o acompanhasse.

— Os tiros vieram daquela direção — afirmou, afastando-se a passos largos. Por mais ocupado que estivesse vasculhando pelos rastros dos agressores, ele ainda escutou os ruídos que anunciaram a partida de Lillith.

— Milady ficará bem — asseverou Fitch. Perth embrenhou-se num arvoredo e agachou.

— Tragam a luz até aqui.

Fitch chegou e acocorou-se ao lado do conde. E resmungou aborrecido.

— Nada aqui além de um monte de terra pisoteada. — Colheu alguns grãos entre os dedos. — E vestígios de pólvora. Isso nunca o ajudará a encontrá-los.

Perth levantou, a frustração presente em cada linha do corpo teso.

— Eu sei, mas precisava tentar. — Deu meia-volta e gemeu de dor. — Creio que é melhor voltar para casa e deixar você examinar isso.

— O que deveria ter feito em vez de perseguir evidências que não encontrará — comentou Fitch azedo.

Perth diminuiu o ritmo da caminhada para diminuir a dor no ombro.

— Esperava achar alguma coisa. — Espiou Fitch de soslaio. — O irmão dela mandou um bilhete pedindo para que o encontrasse aqui.

O suspiro de Fitch soou alto no silêncio gelado.

— Por que ele faria uma tolice dessas?

— Só nos resta adivinhar — replicou Perth, movendo-se com demasiada lentidão para o seu gosto.

Trinta minutos depois, sentou-se numa cadeira no quarto em frente ao fogo crepitante só de calças e meias, e destratou o médico que o examinava.

— Raios, homem, precisa cutucar tão fundo? — Passou os dedos da mão livre pelos cabelos. — Como está a minha esposa? O bebê passa bem?

O dr. Johnson, um jovem de cabelos cor de avelã e olhos castanhos penetrantes, prosseguiu o exame.

— Sua esposa e a criança que ela carrega passam bem. Ambos estão repousando. Ela se encontra em melhores condições que você. Se me chamasse imediatamente, talvez a incisão não precisasse ser tão profunda, todavia a bala se alojou no músculo com firmeza, talvez até no osso. Para a sua sorte, eu era cirurgião antes de ser médico. Contudo, você será um felizardo se não acabar com febre.

— Serei um felizardo se não me mandarem prender pelo seu assassinato — resmungou Perth. Porém, o alivio que sentiu por Lillith ajudou muito a torná-lo mais gentil com o médico.

Postado do lado oposto ao conde, Fitch comentou:

— Ele nunca foi um bom paciente.

— Nisso eu posso acreditar — disse o médico. — Quase. Agora fique quieto.

Ficar quieto. Perth viu estrelas e mordeu com força o pedaço de couro que Fitch lhe deu para abocanhar. Então, seguiu-se uma pontada excruciante, e o médico ergueu o fórceps no alto. Entre as hastes estava a bala.

— Uísque — exigiu Perth.

— Depois que eu terminar — retrucou o médico, derramando generosamente o conteúdo de uma garrafa sobre o ferimento.

Perth prendeu a respiração.

— Podia ter me avisado que faria isso.

— Não ajudaria a doer menos. — O médico entregou-lhe a garrafa.

Perth tomou um grande gole.

— Não, não ajudaria.

— Você está com uma lividez comparável àquela exibida por Byron[1] nos salões — ironizou o médico. — Sugiro que permaneça na cama por um bom tempo.

Perth cerrou os olhos e tomou outro gole generoso.

— Obrigado, doutor. Faça a gentileza de olhar minha esposa antes de ir embora.

O médico espiou Fitch por cima da cabeça de Perth. Fitch deu de ombros.

— Melhor fazer o que ele manda. Saber que milady é bem tratada o tranqüilizará mais que qualquer outra coisa.

O médico assentiu e saiu pela porta que conduzia aos aposentos de Lady Perth. Ele ministrou-lhe uma dose de láudano para acalmar os nervos, e ela jazia serena na cama. Porém, ele notou que os olhos estavam abertos.

— Como vai meu marido? — indagou baixinho antes que ele desse dois passos para dentro do quarto.

Ele fechou a porta e foi até a cama.

— Sua cor voltou, e seu marido possui uma compleição resistente. Constatei que ele sofreu ferimentos similares diversas vezes. As cicatrizes no corpo dele demonstram isso. — Não mencionou as marcas de chicote nas costas do conde.

Lillith deu-lhe um pálido sorriso.

— É o seu jeito de me dizer que ele ficará bem?

— É o meu jeito de dizer que ele é um tolo, mas felizmente não sofrerá nenhuma seqüela definitiva. Embora o avisasse que talvez tenha uma febre. O criado alega saber o que fazer. — Estendeu a mão e tomou o pulso dela para conferir os batimentos cardíacos. — O conde está mais preocupado com o seu bem-estar do que com o dele, e o criado me disse que se eu cuidar de você seu marido ficará bem.

O sorriso de Lillith alargou. Mesmo ferido, Perth era teimoso feito uma mula.

Pouco depois, o médico declarou:

— Você está tão bem quanto era de se esperar após tudo o que passou. Darei o mesmo conselho que dei a milorde: repouse bastante. Creio que seguirá tais recomendações melhor do que ele, pois tem uma criança a considerar.

Ela pretendia desafiá-lo e ir sentar-se ao lado de Perth e cuidar dele, contudo as palavras do médico a refrearam. Hoje ela não pensou muito na vida que carregava dentro de si e, conseqüentemente, arriscou o bebê.

Lillith aquiesceu.

— Farei o melhor possível, doutor. E obrigada.

— Obrigado por deixar-me cuidar da senhora. — Ele fechou a valise e encaminhou-se para a porta. — Voltarei amanhã para ver como a senhora e o conde estão passando. Espero encontrar melhoras.

Ela aguardou até que a porta fechasse para levantar. Descansaria numa poltrona na cabeceira do leito de Perth. O médico falou que o marido era forte, todavia ela também notou a raiva nos olhos do médico. Sabia que tal emoção foi causada pela displicência de Perth em relação à própria segurança.

Saiu da cama e descalça dirigiu-se para o quarto de Perth. Não bateu, sem querer perturbá-lo caso ele estivesse adormecido. Para o seu alívio, ele estava na cama, porém a luz de uma única vela revelou uma acentuada palidez. A apreensão acelerou-lhe os passos.

— Ele dormiu mais em virtude do uísque que do ferimento — cochichou Fitch.

Ela não o vira e sua voz a surpreendeu. Deu meia-volta. Fitch estava numa cadeira em frente à lareira.

— Você me assustou — sussurrou ela. Olhou de novo para Perth. — O médico não ficou satisfeito com ele.

— Nem eu — retrucou Fitch, levantando e encaminhando-se para a cama. — Mas a senhora sabe como ele é.

— Sim. Teimoso e arrogante. — Indecisa, muito consciente da presença do servo atrás de si, Lillith pôs a mão na fronte de Perth. — Ele parece frio.

— Por enquanto — concordou Fitch. — Se ele ficar com febre, ela surgirá mais tarde.

— Oh. Eu não tenho nenhum conhecimento para tratar de gente ferida. — Retirou a mão. — Minha experiência como enfermeira se reduz a partos e doenças.

— Não faz muita diferença no fim das contas. Chamarei alguém para trazer chá e biscoitos. Se planeja ficar, precisará manter as forças.

Ela não sentia fome, porém sabia que ele tinha razão.

— Voltarei logo. — Correu de volta ao próprio aposento onde apanhou um robe grosso de lã, e envolveu-o em torno da cintura. Retornou a tempo de ver Fitch abrir a porta e um lacaio entrar carregando uma bandeja abastecida.

Serviu o chá para ela e Fitch. Ofereceu-lhe biscoitos.

— Sem dúvida, você está cansado — comentou. — Posso vigiá-lo sozinha.

Fitch sorveu um gole antes de responder.

— Obrigado, milady, mas a senhora sofreu quase tanto hoje quanto o conde. É melhor que eu o vigie esta noite enquanto a senhora dorme. De manhã, poderá ocupar o meu lugar.

Fazia sentido e ela estava fatigada, contudo não logrou obrigar-se a sair.

— Não estou cansada.

— É tão teimosa quanto ele e sem nenhum bom motivo. Se ele piorar, não será dentro de poucas horas. Será muito mais útil a ele quando estiver descansada.

Fitch ficou irritado com ela e por uma justa causa. Tais palavras eram sensatas. Com toda a graciosidade que pôde congregar, Lillith obedeceu. Mas antes de sair, precisou conferir Perth uma última vez.

Ele jazia tão inerte e pálido quanto antes. Alheia a Fitch que agora postou-se atrás dela, Lillith carinhosamente afastou o cabelo do marido do rosto. Então, acariciou de leve a cicatriz. Mesmo com a linha branca ao longo da face, ele parecia vulnerável de certa maneira.

Ela percebeu sobressaltada que jamais o vira assim. Todas as outras ocasiões em que o vira na cama, ele estava desperto e fazendo amor com ela. Agora jazia ferido e tudo por sua causa. Lillith não tinha ilusões. Perth levou o tiro quando saíram correndo, quando a mão dele por um instante afastou-se das costas dela. Ele foi atingido por uma bala que acertaria em cheio entre as espáduas dela.

Franziu os olhos com força. Por favor, não permita que a ferida infeccione. Por favor, não permita que ele morra. Talvez não a amasse, porém gostava o suficiente para arriscar a vida por ela. Isso significava muita coisa.

E mais arrasadora era a certeza de que ela não sobreviveria sem Perth.

 

Na manhã seguinte, Lillith acordou com Agatha perambulando pelo quarto.

— Milady, seu irmão veio vê-la.

— Meu irmão — murmurou Lillith, sentando-se na cama.

— Ele está aqui há quase uma hora, milady — informou Agatha, abaixando a bandeja com o chocolate quente e as torradas para o desjejum de Lillith.

Lillith arrastou-se para fora da cama. Não dormira bem devido à preocupação com Perth. Mas ao menos livrara-se dos enjôos matinais. Comeu a torrada primeiro para assegurar-se da calmaria do estômago. Depois, Agatha a auxiliou a meter-se no vestido largo de casimira azul-clara que saíra de moda há muito tempo.

Só então ela foi receber o irmão. Mesmo assim, sentiu-se perturbada. Por mais que tentasse convencer a si própria de que ele não estava envolvido no que acontecera ontem, não conseguia menosprezar o fato de que ele pediu que o encontrasse no local onde ela e Perth foram atacados.

Mathias estava sentado no salão de desjejum bebendo café e comendo uma bisteca. Aparentava estar totalmente à vontade. Ergueu o olhar quando ela entrou.

— Pedi um pouco de comida quando ficou óbvio que você não desceria tão cedo. — Deu outra mordida.

Ela se acomodou numa cadeira do outro lado da mesa e dispensou um criado que lhe ofereceu mais chocolate.

— Perth foi ferido.

— Foi o que o lacaio… Simmons, não é?… mencionou. É apavorante que Hyde Park não seja seguro. E em plena luz do dia. — Continuou a comer.

Lillith observou-o.

— Não foi exatamente à luz do dia. O horário que você marcou para o nosso encontro beirava os trinta ou quarenta minutos antes do crepúsculo. Perth saiu atrás de mim… e você não apareceu.

Ele balançou o garfo, uma fatia de carne pendendo dos dentes.

— Fiquei enrascado. Prinny careceu de meus conselhos acerca de um casaco. Não podia despachar o Príncipe de Gales.

Os olhos de Lillith brilharam, porém a história não era de todo improvável. O Príncipe de Gales era um notório almofadinha e era possessivo com os amigos. Poderia com muita facilidade exigir a presença do irmão por algo tão insignificante quanto uma opinião sobre a sofisticação de um peça de vestuário.

— Então, você veio conversar comigo hoje sobre o que não conseguimos conversar ontem? Embora eu considere estranho que venha à nossa casa pela primeira vez quando Perth está ferido e confinado ao leito.

Mathias franziu a boca.

— Está tentando insinuar alguma coisa, Lillith? Porque se estiver, e se for o que imagino, então você está redondamente enganada. Eu vim porque sei que fui deveras grosseiro por não mandar o pajem encontrá-la e avisar que eu não compareceria. Isso me escapou à mente.

Ela aceitou a desculpa, todavia sem aceitar a justificativa de todo.

— E, afinal, por que você queria me encontrar?

— Quero me instalar na casa da cidade que De Lisle lhe deixou. Segundo os rumores, Perth a comprou para você, e como esposa dele você pode muito bem permitir que eu a use. — Os olhos azuis assumiram um brilho sinistro. — O sujeito lhe dá tudo e não faz nada por mim. Isso é o mínimo que ele poderia fazer, por seu intermédio, é claro.

Ela mal logrou acreditar nos próprios ouvidos. Mesmo tratando-se de Mathias, a idéia era ultrajante. Contudo, ele era seu irmão. Seria duro dizer não a ele. Talvez duro demais.

— Por que você quer ficar na cidade? Todos estão de partida.

— O príncipe não deixará a cidade antes de alguns dias. Ele me quer por perto e não mais desejo permanecer em acomodações de aluguel. Encontro-me impossibilitado de custeá-las.

Lillith cerrou os punhos sob a toalha da mesa e seus olhos brilharam. Ele era incorrigível. Mas era o irmão dela. Por mais que desejasse dizer não, as palavras embargaram na garganta.

Respirou fundo e torceu para que a voz não denunciasse a sua fúria.

— Você pode ficar lá por enquanto. Perth decerto vai descobrir e querer expulsá-lo.

Mathias levantou e uma expressão hedionda assomou-lhe a face.

— Ele colocou a casa no seu nome.

— Não é verdade. A casa está sob a minha tutela para o nosso segundo filho ou primeira menina.

— É a mesma coisa — retrucou enfático.

— Não exatamente. E se Perth quiser expulsar você quando ele descobrir, então serei obrigada a pedir que saia.

— Ele já é mais importante para você do que o próprio sangue do seu sangue. E eu que pensei que tratava-se de um casamento de conveniência. Vejo que foi um equívoco. Ele lhe dá mais presentes do que um homem daria à amante.

Ela petrificou.

— Creio que nossa conversa prolongou-se em demasia, Mathias. Esperava outra atitude de você, mas percebo que nada mudou.

— Nem tanto — retorquiu. — Em geral, você prestava mais atenção às minhas palavras.

Deu-lhe as costas e saiu. Lillith observou-o, a tristeza sucedendo a raiva de minutos antes. Ele ainda era eu único parente vivo. O que significava muito para ela. Doeu ver que o irmão não nutria os mesmos sentimentos de amor e devoção. Por mais difícil que fosse, precisava admitir que ela não era nada além de um meio de sustento para Mathias.

Sentou-se de novo. Encontrava-se cansada esta manhã, e a visita de Mathias e o lamentável confronto entre ambos só a exauriu ainda mais. Essa era a razão pela qual as lágrimas brotaram. Tampouco a partida dele serenou as emoções lúgubres que pareciam permear o cômodo.

Pela primeira vez na vida, Lillith sentiu-se desesperada por haver acalentado tal vínculo afetivo com o irmão. Durante todo esse tempo, ela era quem conciliava tudo e fazia o necessário para manter o relacionamento. Agora, pela primeira vez, ela não era tão complacente, e o abismo entre ambos se alargava a cada encontro, enquanto o relacionamento com Perth seguia o rumo contrário.

Respirou fundo e levantou-se. Passava da hora de ver o marido. Antes de descer para o desjejum, ela deu uma espiadela, e tanto ele quanto Fitch dormiam. Deixou-os para comer. Agora precisava ir e liberar Fitch, e queria tomar conta do marido.

 

                                                   Capítulo Dezessete

Lillith adentrou o quarto de Perth o mais silenciosamente possível, sem querer despertar o marido. De imediato, percebeu que não o acordaria mesmo se entrasse montada a cavalo. Fitch esparramara-se numa poltrona a menos de dois passos do leito e roncava alto o bastante para despertar os mortos.

Balançou a cabeça, risonha, e abeirou-se do mordomo. Cuidando para não assustá-lo, tocou-lhe um dos ombros.

— Que…? — Fitch pôs-se de pé.

— Psiu — ralhou Lillith. — Vim liberar você. Na cozinha há ovos e rins quentes. Você se sentirá melhor depois de comer.

Uma vez acordado, Fitch se espreguiçou.

— Certo, milady. Apenas comerei um pouco e voltarei.

— Você fará mais que isso. Comerá até não mais poder e descansará o necessário. Esse foi o nosso acordo ontem à noite. Cumpri a minha parte e fui deitar. Agora deve cumprir a sua.

Ele aparentou querer discutir, e Lillith endireitou os ombros e preparou-se para a batalha. Fitch encolheu-se um pouquinho e um magnífico bocejo o surpreendeu.

— Tem razão, milady. Concordei com isso e será feito o que prometi. — Outro bocejo o dominou. — E estou cansado. Duas horas numa cadeira não são grande serventia.

— E você roncava alto o bastante para acordar Perth.

Fitch meneou a cabeça.

— Não. Milorde consegue dormir até sob um bombardeio de canhão quando está muito cansado ou ferido. Pode confiar em mim.

— Suponho que deva — retrucou Lillith, crédula, após já ter visto a prova. — Agora vá. O médico chegará em breve.

— Me chame acaso precisar de ajuda — afirmou Fitch, lançando uma última olhadela para o conde que ainda jazia profundamente adormecido.

— Chamarei — prometeu Lillith.

Assim que a porta se fechou atrás de Fitch, Lillith marchou até a cama e contemplou Perth. Os cabelos negros caíam em miríades de ondas sobre a testa larga, conferindo-lhe uma aparência jovial e vulnerável. Nem mesmo as frisas prateadas nas têmporas logravam desabonar tal imagem. Os cílios de ébano fremiam sobre os pômulos salientes. Até a cicatriz parecia relaxada.

De mansinho, para não despertá-lo, ela afastou o cabelo de Perth da testa. Os dedos roçaram na pele. Deteve-se. Ele estava quente. Colheu a face dele entre as palmas das mãos. Ele estava muito quente. A apreensão vincou-lhe a fronte.

Recuou e procurou água. Segundo a própria experiência, ela sabia que água fria ajudava a baixar a febre. Encontrou o que buscava sobre a penteadeira. Derramou um pouco do líquido no jarro e umedeceu um conveniente pedaço de pano. Torceu o tecido para eliminar o excesso de água e retornou para o lado de Perth. Os olhos estavam abertos, e ele a observava.

— Você está acordado — comentou sem pensar.

— O que está fazendo? — indagou ele, a voz quase um chiado.

— Refrescando você. Está com febre — explicou calma, sem querer aborrecê-lo com a preocupação.

— Sinto sede — disse ele. — Trouxe água para beber?

Colocou o pano na testa de Perth antes de retornar ao jarro e encher um copo de água. Levou-o para ele e amparou-lhe a cabeça enquanto ele terminava de beber tudo.

— Obrigado — murmurou Perth, a voz menos rascante.

— Não há de quê. Agora continue deitado e me deixe refrescá-lo. Irá se sentir muito melhor.

Perth deu-lhe um sorriso que foi quase, embora não de todo, lascivo.

— Aposto que sim.

Observou-o atenta, especulando se ele não se sentiria melhor do que imaginara. Quando Perth cerrou os olhos, ela concluiu que não. Passou o pano úmido no rosto dele até sentir o tecido aquecer, o que não demorou muito. A esta altura, tornou-se necessário trazer o jarro e a bacia para perto da cama. Ela o fez, mas não sem dificuldade. Ao terminar, e fitar o paciente mais uma vez, ele a contemplava sorridente.

— Muito divertido. Por que não chamou Fitch para ajudar?

— Porque ele passou a noite vigiando você. É a minha vez agora enquanto ele dorme o sono dos justos.

— Vocês dois estão se revezando em turnos? — indagou ele, uma expressão enigmática no olhar.

— O médico chegará logo para examinar você.

— E você — acrescentou resoluto. — Como está passando? E o bebê?

Lillith parou de torcer o pano e olhou para Perth. O que viu foi apreensão.

— Ambos estamos bem. O Doutor Johnson falou que estamos melhor do que você.

— Aquele frangote é muito presunçoso. Fitch bastaria.

Virou-se para ele, as mãos nas cadeiras de exaspero.

— Então, por que deu-se ao trabalho de chamar um médico se não respeita a opinião dele?

— Porque Fitch poderia cuidar de mim, mas não possui experiência com mulheres grávidas.

— Ah — exclamou enfática.

Abruptamente, Lillith deu-lhe as costas para umedecer o pano esquecido na água e esconder as reações às palavras deles. Tudo o que Perth fez ontem foi pelo seu bem e do filho. Primeiro foi atrás dela em Hyde Park. Depois levou um tiro no ombro para protegê-la. E, enfim, convocou um médico do qual julgava não carecer para que ela e a criança fossem examinados. Tamanho zelo arrebatou-lhe o fôlego.

Justo quando voltava para o lado dele com o pano úmido alguém bateu à porta.

— Entre — ordenou ela, deixando o pano sobre a testa de Perth.

— Milady — disse Simmons, o nariz em pé. — Há uma… pessoa… aqui que alega conhecer o conde.

Lillith sorriu. O mordomo era um esnobe.

— De que tipo de pessoa se trata?

Na cama, Perth indagou:

— É um rufião desdentado?

— Sim, milorde — retrucou Simmons mal contendo o desdém. — E sujo.

Lillith escutou a risada de Perth, seguida por um suspiro. Virou-se e marchou de volta para a cabeceira do leito.

— Você deve ser mais cuidadoso.

— Sei o que é necessário ser — redargüiu, atirando longe as cobertas e sentando-se na cama. — E sei o que pretendo ser.

A face dele tornou-se tão alva quanto o lençol que pendia dos quadris esguios, e Perth desequilibrou-se. Lillith amparou-o.

— Pode ir, Simmons — avisou ela, sem querer que o mordomo visse o que aconteceria em instantes entre ela e o marido.

— Mande o sujeito esperar — ordenou Perth logo antes da porta fechar. — Ou arrancarei o seu couro — bradou. Numa entonação mais serena, explicou: — Esse rufião é importante. Ele sabe quem me atacou semanas atrás e talvez seja capaz de descobrir quem atirou contra nós ontem.

— É uma responsabilidade e tanto para um homem que Simmons poderia enxotar porta afora sem pestanejar. — Ajudou-o a sentar acomodado nos travesseiros. — Mas isso é irrelevante. Você não se sente bem, e não devia sair da cama.

— Bem — retrucou Perth, tentando levantar —, eu pretendo ficar de pé por conta própria em breve.

Ela debruçou-se sobre ele e colocou as mãos no seu peito para empurrá-lo para trás com delicadeza. O calor manou da carne de Perth através do tecido fino do camisolão que vestia. Ele praguejou ao reclinar.

— Você não vai a lugar nenhum. Está com febre. — Lillith conservou as mãos em Perth por temer que ele tentasse levantar tão logo as removesse. — Talvez depois que o doutor Johnson examinar você.

— Farei o que diabos eu quiser, Lillith. Esta não é a primeira vez que tenho febre, tampouco a primeira vez que sou ferido. Jamais fiquei de repouso numa cama, e não tenho intenção de fazer isso agora. — O olhar sedutor perscrutou-a. — A menos que você tenha algo divertido em mente que talvez me convença?

Ela corou.

— Não — redargüiu.

— Que pena — declarou ele, sem nenhum sinal de arrependimento sincero. — Agora me ajude ou farei tudo sozinho.

Lillith encarou o olhar desafiador de Perth sem piscar. Soube ante a mandíbula trincada e aquele brilho nos olhos que ele falava sério.

Com um suspiro de resignação ela aquiesceu contrariada.

— Como desejar. Mas deixe-me conferir o sangramento na bandagem primeiro.

Ele assentiu. Lillith desabotoou o camisolão e abaixou até o ombro. Perth curvou-se o bastante para que ela visse as costas. O ferimento fora bem enfaixado.

— Fitch trocou o curativo durante a noite — contou Perth.

— Ah, isso explica porque não há sangue.

— Agora está satisfeita? Vou até ensinar-lhe como amarrar a tipóia de modo que o braço não sacrifique o músculo.

— Obviamente, você sabe muito mais sobre isso do que eu.

— Como falei — retrucou paciente —, já passei por isso antes.

Mais uma vez ele sentou na beira da cama. Desequilibrou-se de novo e a face empalideceu, contudo permaneceu empertigado.

— Fique quieto o tempo necessário para que eu chame Fitch — ela argumentou afinal, irritada pela teimosia dele, todavia sem querer que ele se machucasse ainda mais.

— Não — ordenou Perth. — Fitch carece de repouso. Você pode me ajudar; quando acabarmos com o nosso visitante, o médico estará aqui. Depois que ele for embora, podemos acordar Fitch.

— Isso não é nada razoável — resmungou ela. Pela primeira vez em dias, ele deu um sorriso genuíno.

— É o melhor que tenho a lhe oferecer. Agora, seria conveniente trajar um robe por cima do meu camisolão. Será muito mais fácil do que me vestir.

Ela fitou-o de esguelha, imaginando se o tom da voz almejava ser sedutor ou debochado, ou ambos.

— Onde está o seu robe? — indagou ela, esquivando-se da tentação na qual ele de súbito se transformou. Mesmo ferido, Perth era o homem mais viril que ela já conhecera. Balançou a cabeça admirada e envergonhada ante a fraqueza da própria carne quando se tratava dele.

— Atrás daquela porta — indicou Perth.

Lillith entrou no quarto de vestir. Uma pequena cama de campanha ficava encostada num canto para caso ele precisasse, embora Lillith soubesse que o mordomo possuía a própria suíte, por mais estranho que fosse, no terceiro andar. Como ela sempre soube, Fitch não era um mero criado.

Uma fileira de trajes pendia dos ganchos.

— Qual deles você quer? — bradou.

— Aquele que você preferir — respondeu ele, o que não ajudou.

Ligeira, de modo a não abusar da escassa paciência de Perth, Lillith apanhou o primeiro, que parecia mais quente. Era feito de casimira preta bordada com dragões de seda prateada. Devia ser aconchegante e imponente. Quem quer que os aguardasse ficaria favoravelmente impressionado.

Ela saiu do quarto e aproximou-se dele. Perth estava de pé apoiado na cama onde o braço são o sustentava.

— Eu ajudaria você — comentou exasperada.

— Não sou nenhum aleijado, Lillith — retrucou com rispidez.

Ela o encarou.

— É lógico que não é, porém não precisa arriscar-se a se machucar quando sou perfeitamente capaz de apoiá-lo conforme você tenta levantar e se equilibrar.

Perth riu desdenhoso.

— Não gosto de ser dependente.

— Ninguém gosta — retorquiu, irritada.

— Alguns mais que outros — afirmou categórico, estendendo as mãos para o robe.

Ela ficou tão aborrecida que atirou o traje em cima dele. Perth apanhou-a com a mão boa e começou a vesti-lo. Foi uma singela satisfação quando ele puxou a manga do braço machucado e gemeu.

— Talvez eu o poupasse da dor — alfinetou. — Vamos torcer para que o seu ferimento não comece a sangrar outra vez.

— Isso não parece provável — garantiu, apertando o cinto.

Ela notou que ele se movia com mais confiança.

— Um pouco de chá e comida ajudariam.

Ele aquiesceu.

— E aposto que nosso convidado também gostaria disso. — Alçou o olhar até ela após calçar as chinelas — Você poderia mandar Simmons arrumar a mesa para o desjejum.

Ela franziu a boca em tácita obediência.

— Onde está a minha bengala? — resmungou Perth. Minutos depois, Lillith encontrou-a no quarto de vestir e a levou para ele. Perth apanhou-a e marchou lentamente rumo à porta. Ela o seguiu, especulando se seria forte o bastante para impedir-lhe a queda caso ele perdesse o equilíbrio. No corredor, disparou na frente para buscar um lacaio a fim de ajudar Perth a descer a escada. O marido já beirava o térreo quando ela retornou.

— Deixe que Robert o ajude, Perth — ordenou Lillith.

Perth olhou fixo para ela.

— Lembra-se de alguém usando esta mesma bengala para subir esses degraus, recusando-se a ser ajudada? Eu lembro.

— Bem, eu não subi sozinha até o fim. Fitch me ajudou.

— Estou descendo, creio que posso conseguir sozinho. Foi o meu ombro, madame, não a perna. Pode ir. Robert.

O olhar do pobre lacaio resvalou de um para o outro. Furiosa, Lillith retrucou:

— Sim, Robert, vá e informe Simmons que desceremos logo.

O criado afastou-se após uma reverência.

Perth continuou a descer a escada, e Lillith o acompanhou.

Os aromas de presunto, bisteca, café, chocolate quente e torradas assaltaram-lhe os sentidos quando ela entrou no salão de desjejum do qual saíra há menos de uma hora. Observou Perth tomar o seu assento costumeiro. Notou as gotas de transpiração na fronte, contudo ele se movia com determinação. Tão logo ela se assegurou de que ele conseguiria, Lillith estudou o convidado.

O homem era um rufião, e tudo o que Simmons descrevera a seu respeito era verdade. No momento, ele se empanturrava de bisteca e presunto ao mesmo tempo. Uma das mãos circundava uma caneca de cerveja, a qual ele sorvia ruidosamente de boca cheia.

Perth fitou-o com um sorriso de contentamento. Simmons entrou e serviu o presunto favorito do conde. Os ovos estavam num prato à parte com as torradas. O café preto e forte fumegava numa caneca. Perth comeu devagar, atento ao ombro ferido ao cortar a comida.

Lillith sentou ao lado de Perth, uma vez que o convidado ocupou o seu lugar habitual. Ela serviu-se de chá e uma fatia de torrada, bebericando o primeiro e mordiscando o segundo. Não sentia fome, mas estava deveras curiosa.

O sujeito engoliu o último bocado e bebeu o último trago, arrotou e sorriu de satisfação.

— Obrigado pela comida — disse ele, o semblante demonstrando tudo exceto gratidão. — Consegui o nome que queria, patrão.

— Do homem que o contratou para me assaltar?

— Assaltar? Oh, atacá-lo. Sim. — O sorriso alargou.

— Consegui mais informações, as quais acredito que deseja. Algo sobre um ataque em Hyde Park.

Lillith sobressaltou-se de espanto, e o chá transbordou da xícara para manchar a toalha de mesa de linho branco. Ela reparou que o marido recebeu a notícia com calma, quase como se já a esperasse.

— Ambos foram encomendados pela mesma pessoa — afirmou Perth categórico.

— Correto. Quanto vale o nome do almofadinha para você?

— Eu já sei o nome do camarada — retorquiu Perth baixinho, a voz irradiando calafrios pela espinha de Lillith. — O que desejo é que você conte à minha esposa. Eu pagarei bem.

O rufião mencionou uma quantia que fez Lillith engasgar.

— Simmons — disse Perth —, vá à biblioteca e abra a gaveta do meio da minha escrivaninha. Você encontrará um maço de notas. Traga-o para mim. — Simmons saiu. — Agora, o nome.

— Primeiro o dinheiro.

— O nome.

— Como saberei que manterá a sua palavra? O outro não manteve.

Perth pendeu para frente, o punho esquerdo cerrado sobre a mesa.

— Não sou igual ao outro homem. — A voz soou fria. — Seria ajuizado que se lembrasse disso.

O rufião reclinou na cadeira.

— Certo, patrão. Certo. Sem insultos. Só não se pode confiar sempre num sujeito fanfarrão. Eles têm a gabolice, mas nem sempre pagam.

Os olhos de Perth flamejaram.

— O nome.

— Certo. Wentworth. — O sorriso do homem retornou. — Segundo os rumores, o camarada contratou os homens que atiraram em você ontem, inclusive. Meu parceiro, Mike, contou que ouviu falar.

— É mais provável que o seu amigo Mike seja a pessoa que atirou em mim.

— Não, patrão. Não.

O tempo inteiro Lillith ficou paralisada. As sensações regressaram como agulhadas.

— Não — murmurou. — Não, você está enganado. Seu amigo está enganado. — Entretanto, mesmo ao proferir tais palavras a dúvida inundou-a. Era lógico. Lógico até demais. — Oh, não — sussurrou, fechando os olhos para evitar os rostos dos dois homens.

O rufião deu uma risadinha.

— Conhece o sujeito? Ele é um patife. Nunca me pagou o que devia por atacar o patrão aqui.

Lillith abriu os olhos e contemplou o homem. Quer estivesse certo ou não, gabar-se era desnecessário. O ímpeto de esbofeteá-lo foi forte. Em vez disso, ela fincou as mãos na borda da mesa. Os nós dos dedos ficaram brancos e as unhas cravaram-se no tecido.

— Você tem certeza? — indagou ela.

Apesar de perguntar, Lillith sabia que a resposta dele permaneceria idêntica. Mathias cometera atrocidades demais. Mas por quê? Não fazia sentido.

O informante fechou o semblante.

— Não sou esnobe feito gente igual a vocês, porém mantenho a minha palavra. É tudo que possuo. Eu não minto.

— Você tem provas? — inquiriu Lillith. — Ou devemos aceitar a sua palavra?

O rufião encrespou.

— Minha palavra é meu tesouro.

Lillith desviou os olhos. Apenas descontava a raiva e a mágoa no sujeito. Se Mathias realmente cometera tais atos, vá lá, mas até obterem provas, ela concederia ao irmão o benefício da dúvida.

Perth levantou.

— Eu acredito em você. Minha esposa ficou aborrecida. Você receberá seu dinheiro.

Simmons retornou com as notas. O maço tinha a grossura de uma polegada.

A surpresa deixou o rufião boquiaberto.

— É mais do que o combinado.

— Aceite. Pela sua honra… e discrição. Não desejo escutar outra palavra acerca do incidente de ontem ou desta conversa. Fui claro?

— Sim. Obrigado. Preciso ir — arrematou, contornando a mesa, cuidando para manter uma distância segura entre ele e Lillith.

— Por favor, mostre a saída ao nosso convidado, Simmons — disse Perth.

Todavia, o homem escafedeu-se porta afora. Lillith contemplou-o desatinada.

— Ele mentiu. Não pode ser. Mathias é muitas coisas, mas não é um assassino. Todavia, creio que você deva averiguar.

Perth observou-a inventar desculpas para o irmão — de novo —, e a cólera que sentia ferveu a ponto de quase explodir.

— Por que julga tão difícil acreditar nisso?

— Mathias é meu irmão — retorquiu como se isso explicasse tudo. — E aquele homem só queria dinheiro. Ele citaria qualquer nome. Simplesmente, lhe ocorreu Wentworth. Talvez até saiba que é o nome de meu irmão. Como posso saber?

— O irmão que vendeu você para De Lisle, que esbanjou a sua herança na jogatina e tentou vendê-la uma segunda vez. Mandou que me chicoteassem enquanto assistia. Por que não se rebaixaria a me agredir e quase nos matar? — argumentou, as palavras quase um rosnado. — O sangue nem sempre significa amor.

Ela fulminou-o com o olhar.

— Atacou você. Nisso eu consigo acreditar. Não duvido que o tenha açoitado há dez anos, mas ele era jovem. Jamais faria isso outra vez.

— Se você acredita nisso, então não se importará de confrontá-lo com as acusações daquele homem. Seu irmão negará tudo, e você ficará ainda mais convicta da inocência dele.

— Você de fato odeia o meu irmão, não é?

— Sim. Ele usou você e fez tudo ao seu alcance para ferir-me.

Ela respirou fundo.

— Tudo bem. Enviarei um bilhete, pedindo que nos visite. Desse jeito, você não precisará viajar. — Deu-lhe as costas e andou até a porta. Hesitou antes de sair. — Assim ficará satisfeito?

— Sim.

Lilhth não se levantou quando ele saiu do cômodo. Imaginou que sequer conseguiria erguer as mãos, quanto menos ficar de pé. Tudo parecia um pesadelo interminável. Brigou por causa de Mathias, contudo uma tênue pontada de mágoa e suspeita oprimiu-lhe o peito.

Mathias fizera tantas coisas abomináveis. Mas, Deus, ela não queria considerá-lo capaz disso.

 

                                                           Capítulo Dezoito

Lillith sentou-se empertigada na cadeira de carvalho. Perth descansava no macio divã verde e dourado. O doutor Johnson acabara de sair, após pronunciar que o paciente passava bem apesar da febre amena.

Ambos estavam na sala principal. Um tapete dourado cobria o assoalho de tábuas corridas, e cortinas douradas salpicadas de verde emolduravam as janelas amplas com vista para a rua. A iluminação era boa e ela conseguiria discernir cada nuance na face do irmão quando relatasse as acusações do rufião.

Ela e Perth não se falavam desde que ele saíra do salão de desjejum. Ela mandou Simmons avisá-lo sobre o encontro, e Simmons trouxe de volta o diagnóstico do doutor Johnson.

Ela não tolerava escutar mais nada a respeito de Mathias.

A porta abriu e Simmons anunciou:

— O Sr. Wentworth.

Mathias viu Lillith primeiro e dirigiu-se a ela.

— Vim tão logo recebi o seu bilhete — explicou. Viu Perth quando era demasiado tarde para sentar-se mais afastado. — Perth — balbuciou entre os dentes.

Perth saudou-o.

— Há quanto tempo, Wentworth. Ganhou alguma aposta alta ultimamente?

Lillith olhou zangada para Perth.

— Pare com isso. — Ele a fitou impassível, o semblante enigmático. — Sente-se por favor, Mathias — disse ela, voltando-se para o irmão.

Ela indicou a cadeira mais próxima de si que de Perth. Uma grande mesa, abarrotada de livros, providenciou uma barreira entre os dois homens. Lillith não imaginava que na atual condição Perth pudesse pular sobre a mesa caso alguma coisa saísse errado. De imediato pôs tal idéia de lado. Nada sairia errado porque Mathias era inocente das terríveis acusações.

Mathias cruzou as pernas com seus calçados vistosos.

— Espero que esteja passando bem — comentou, fitando o vazio na direção de Perth.

— Já estive pior — debochou Perth. — De fato, há dez anos fiquei acamado por quase um mês.

— Ouvi falar — retrucou Wentworth.

Eles se referiam à ocasião em que Perth fora chicoteado. Ver o irmão discorrer com tamanha fleuma acerca de um ferimento que causara deixou-a nervosa. A frieza exibiu urna faceta de Mathias que ela agora percebia cada vez mais.

— Mathias, pedi que viesse aqui para revelar-lhe a coisa horrível que um homem sórdido, sem qualquer prestígio, nos contou a seu respeito. Sei que tudo que ele alega é mentira, porém…

O queixo de Mathias contraiu, um tique nervoso que Lillith sabia aflorar apenas quando ficava melindrado.

— Vá em frente — disse ele. Às pressas, ela relatou tudo.

Perth encarou Mathias.

— Desta vez, você foi longe demais, Wentworth. Desta vez, você arriscou a vida de Lillith. Não importa que explicação você nos ofereça, cuidarei para que você seja destroçado.

A única evidência de que ele ao menos escutara Lillith era o tique ininterrupto. Wentworth, libertino viciado em jogos de azar e covarde, evitou olhá-la nos olhos.

— Perth sabe a verdade, Lillith.

Lillith ficou boquiaberta. Tudo o que podia fazer era contemplar o irmão com tristeza.

Perth viu Lillith empalidecer. Wentworth não olhou para a irmã sequer uma vez. Só por isso, Perth já desejava espancar aquele insensato. Entretanto, não fez e nem falou nada. O que aconteceria em seguida dependia de Lillith. Pensou que ela defenderia os atos indefensáveis do irmão. Fizera isso tantas vezes no passado que ele não tinha dúvida de que o faria novamente, sem importar o quão abjetos fossem.

Os olhos de Lillith refulgiam de lágrimas.

— Você mandou aqueles bandidos atacarem a mim e a Perth. E mandou alguém atirar em nós.

Como se discorresse sobre o tempo, Wentworth afirmou:

— Os imbecis deviam surrar Perth, e com sorte convencê-lo a afastar-se de você. Já funcionou uma vez. Quanto aos atiradores, eles deviam seguir Perth e acertá-lo. Mas foram demasiado estúpidos para atirar enquanto você estava junto. Isso não deveria ter acontecido. Eu de fato pretendia encontrá-la.

Lillith se encolheu mais na cadeira, a face contorcida de dor e desilusão. Perth quase levantou e foi até ela.

Agora, mais do que em qualquer época desde que a conhecera, Lillith precisava de apoio. Ele fortaleceu a própria determinação. Ela também precisava enxergar o irmão como ele era realmente.

— Quanto ao motivo — prosseguiu Wentworth agora espiando as janelas abertas — avisei para não se casar com Perth. Ele não era e não é o homem que lhe convém. — Fitou o conde. — Avisei para deixá-la em paz.

Perth retribuiu o olhar.

— Eu faço o que me apraz.

— Você a deixou em paz certa época.

— Porque ela se casou antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, e quando desafiei De Lisle para um duelo honrado que talvez a tornasse viúva, ele me derrotou. Não me restou nenhuma outra escolha.

Lá fora, a neve começara a cair. A lenha na lareira crepitava, provocando uma singela explosão de fagulhas.

— Como pôde? — inquiriu Lillith. — Como pôde cometer atos tão desprezíveis?

Wentworth pareceu incomodado pela primeira vez

— Foi necessário. Perth recusou-se a me ajudar financeiramente. Estou enfrentando a ruína e o ostracismo da aristocracia. De Lisle me salvou uma vez. Eu precisava que você desposasse outro homem que pagasse as minhas dívidas ou me desse o dinheiro para tanto.

— Para jogar — vociferou. — Eu devia saber. Nós já tivemos essa discussão. Eu apenas não previ até que ponto você desceria para sustentar o vício. Você é detestável, Mathias. — Levantou e postou-se diante dele — Você é pior que detestável. Você é desonrado. Até segundo os seus padrões equivocados.

— Fiz o que era preciso — retorquiu tranqüilo, sem demonstrar remorsos.

As lágrimas que antes refulgiram agora começaram a escorrer.

— Vá embora da minha casa. Vá embora da Inglaterra. Nem mesmo você, meu irmão, um amigo do Príncipe de Gales, pode fazer as coisas que fez e escapar impune.

Mathias conseguiu permanecer impassível.

— Não partirei para o continente. Ninguém exceto você e Perth sabe de nada.

— Mas você irá — ela quase berrou. — Você mandou que atacassem e depois atirassem no meu marido. Ele poderia ter se ferido gravemente. Talvez até morresse. E fez tudo isso por causa das suas dívidas de jogo. Você partirá para o continente, ou eu contarei a todos do que você foi capaz. Eu o arruinarei.

— Você está histérica — escarneceu ele. — Se me arruinar, arruinará a si própria. Nem mesmo o prestígio de Perth a salvará.

— Eu não me importo — retorquiu Lillith. — Você irá. Não o quero perto de nós onde talvez decida fazer alguma outra coisa. Da próxima vez… — ela respirou fundo — bom… da próxima vez, você talvez o mate. Vá agora. Hoje. Ou juro que cumprirei todas as minhas ameaças.

Perth levantou e deu um passo na direção deles. Jamais vira Lillith em tal estado quando se tratava do irmão. Jamais ocorreu-lhe que ela o baniria para o continente. E, em especial, não pelo seu bem.

Wentworth não arredou pé.

— O que aconteceu ao seu amor de irmã por mim?

— Você passou dos limites do que posso aceitar. Quase matou meu marido, e tudo porque desejava me casar com outro homem que pagasse as suas dívidas de jogo. Ser sua irmã agora é uma vergonha para mim. Saia da minha casa e não volte. Tampouco pise na minha casa em Londres. Você não é mais bem-vindo em qualquer lugar onde eu estiver. E… se não partir para Dover pela manhã, juro que revelarei ao mundo o que você fez.

Pela primeira vez, desde que Perth conheceu Wentworth, ele pensou que o sujeito sentia alguma coisa além de egoísmo. Ele quase parecia abatido.

— Você não me deixou escolha — Wentworth, finalmente, replicou com a voz embargada.

Ela fulminou-o com o olhar, sem nada dizer. Depois do que pareceu uma eternidade para Perth, Wentworth saiu. Simmons encontrou-o na porta, e Perth sabia que o mordomo conduziria Wentworth até a saída. Só então Perth olhou para Lillith.

Pretendia lançar os braços em torno dela, contudo ela o repeliu e foi até a janela onde poderia observar o irmão partir. Perth escutou o barulho das rodas sobre os paralelepípedos, e soube que Wentworth fora embora. Só então virou-a para si.

— Está satisfeito? — ela indagou amargurada.

— Sim. — Não havia nada mais que ele pudesse dizer que não fosse mentira.

— Ótimo. Então, por favor, vá embora para que eu possa sofrer sozinha. — Deu-lhe as costas outra vez, e resoluta olhou fixo pela janela, mesmo embora ele notasse que ela tremia de frio que se infiltrava através das vidraças.

Perth deu um passo em direção a ela. As costas elegantes suplicavam pelo seu toque. O coração dele suplicava para consolá-la. Eliminar a distância entre ambos seria duro, mas não tão duro quanto o que viria a seguir.

— Lillith — murmurou. — Por favor, olhe para mim. Tenho certas coisas a lhe dizer.

— Não há nada que possa dizer que alivie o sofrimento do que acabou de me forçar a reconhecer.

— Preferia continuar ignorante do que seu irmão se dispõe a fazer? Eu a julgava mais forte.

Ela soluçou, e ele não pôde conter-se. Segurou-a pelos ombros e abraçou-a junto ao peito. A necessidade de consolá-la era primordial. Uma emoção que considerou extirpada de si há dez anos.

— Lillith, lamento o que aconteceu, mas não posso lamentar pelo que finalmente sabe. Não posso, por mais que a magoe.

Ela petrificou sob os seus dedos, uma reação inesperada, pois Lillith já estava fria como gelo.

— Creio que devo me ausentar por uns tempos. Preciso de tempo para aceitar o que descobri hoje. Talvez eu fique aqui em Londres, na minha casa, enquanto você vai para o campo. Sim, é o que farei. Será melhor assim.

— Não — retrucou ele. — Eu não permitirei.

A paciência que ele esperava ter com Lillith evaporou. Girou-a de volta para si e segurou-a pelo queixo. A antiga raiva flamejou nos olhos dela, mas isso não lhe trouxe qualquer entusiasmo.

Ele estava assustado demais.

O suor escorria da fronte. Perth sabia que se não contasse agora que a amava, ele a perderia. Ela sofrera tanto, e ele lhe oferecera tão pouco.

— Lillith, minha esposa. Meu amor. — As últimas palavras embargaram.

Surpresa e choque assomaram no rosto dela ao fitá-lo. As lágrimas que vertera pelo irmão agora cessaram ao bradar:

— Perth… Jason, o que está dizendo?

Ele a sentiu trêmula nos braços.

— Eu… — gaguejou ele. — É mais fácil lutar uma batalha do que dizer que eu amo você. — Perth sorriu, sorvendo o amor que refulgia no semblante dela. — Eu amo você, Lillith, Condessa de Perth, mãe dos meus filhos. Amo você mais do que a minha vida e sempre amei.

— Mas por que agora? — Balançou a cabeça, perplexa.

— Sempre amei você. Apenas me recusava a acreditar nisso após tudo o que aconteceu. Mas sabia que a queria mais que a vida em si, e quando descobri que carregava o meu filho eu precisava tê-la. Todavia… não me permiti confiar em você porque sabia que o seu irmão vinha em primeiro lugar nas suas afeições. Ele não nos queria casados, e faria tudo para nos separar. Enquanto tal possibilidade existiu, eu não podia, não iria, sequer me deixar perceber… que amo você.

— Oh, Jason, lamento tanto. Nunca soube. Até agora, eu não conseguiria abandonar Mathias. Mas prometo: não importa o que venha a acontecer, nunca vai nos separar.

Ele arqueou uma sobrancelha, ressabiado.

— É verdade — insistiu ela. — Pois eu o amo desde o início. Foi por isso que não queria casar com você. Não queria vê-lo todos os dias, sabendo que não me amava enquanto eu o amava acima de tudo. Não pensei que suportaria isso sem enlouquecer. Mas o bebê mudou tudo.

— Para você, não para mim. O bebê lhe deu um motivo para casar comigo. Eu sempre a desejei, mas precisei superar o ressentimento para descobrir que jamais deixei de amá-la.

Inclinou-se para beijá-la; antes, indagou com ternura:

— Lillith, você aceita se casar comigo novamente, de verdade?

Ela lançou os braços em torno do pescoço dele.

— Sim, meu amor. Sim.

 

                                                       Epílogo

Lillith contemplou o pequeno grupo reunido na casa de campo de Ravensford para a temporada natalina. O Duque de Brabourne e a noiva retornaram do continente. Simpatizou com o casal quase de imediato. Havia algo quanto a um libertino aposentado que muito a encantava. Ele também tratava a esposa como se ela fosse o seu maior tesouro. Por sua vez, Juliet, Duquesa de Brabourne, derretia sempre que o marido olhava para ela.

Lillith observou os homens que conversavam perto da lareira. Era óbvio que se gostavam e respeitavam um ao outro.

— Um brinde aos mais recentes recém-casados — propôs Brabourne, erguendo o copo de uísque, a bebida preferida dos três. — Que o casal tenha uma vida longa e próspera.

— Que todos nós tenhamos uma vida longa e próspera — bradou Perth com um olhar amoroso para Lillith ao beber.

— A qual estamos nos esforçando ao máximo para preencher — revelou Mary Margaret insinuante.

Lillith riu. Todas as três estavam nas primeiras etapas da gravidez.

— Ahã. — Perth pigarreou. — Eu talvez precise desopilar o peito também. — Lançou um olhar maroto para os dois amigos. — Vocês, particularmente, ficarão interessados no que tenho a dizer.

Os olhos verdes de Ravensford aguçaram.

— Eu decerto ficaria encabulado se a minha atitude não mudasse as coisas para melhor… como todos nós concordamos — continuou Perth.

— O que você fez, Perth? Escreveu aquelas apostas escandalosas quanto a nós no livro de apostas do Brook’s? — indagou Ravensford.

Perth deu de ombros, depois explodiu em gargalhadas.

— E quem mais? Imaginei que seria a única maneira de você e Brabourne caírem em si. E seriam infelizes para o resto da vida se deixassem Juliet e Mary Margaret escapar. — Ergueu o copo novamente. — Fiz com a melhor das intenções.

— Seu debochado — retrucou Ravensford, o riso borbulhante na voz. — Eu deveria saber.

Lillith maravilhou-se. O marido era um homem arrogante, mas também sensível o bastante para perceber que os amigos estavam apaixonados e indispostos a admitir isso para si próprios. Muito similar à situação de Perth.

Ela levantou e aproximou-se dele.

— Jason, você é incorrigível.

Perth fitou-a com amor suficiente nos olhos para durar uma eternidade.

— Eu faço o que é necessário, madame.

— E faz mesmo — murmurou ela. Lillith beijou-o de leve na cicatriz. — Oh! — exclamou. — Oh, meu Deus.

— O que foi? — indagou ele, abraçando-a imediatamente. — Você está passando mal?

Ela sorriu.

— Eu… eu estou maravilhosa. — Tomou a mão dele e comprimiu-a sobre o ventre. — Mas nosso filho está alvoroçado.

Uma expressão de admiração transformou-lhe a fisionomia.

— Nosso filho — murmurou ele. — Sim, eu… eu senti um chute.

— Outro brinde — anunciou Ravensford. — Ao futuro Conde de Perth.

Lillith sorriu. Perth exultou.

— À futura Lady Amélia Beaumair, pois é como se chamará acaso seja menina — revelou Perth.

— Ao nosso filho — Lillith afirmou simplesmente.

— Ao nosso amor — replicou Perth, beijando-a.

 

 

[1] Lorde George Gordon Byron (1788-1824), poeta romântico inglês notório pelo comportamento extravagante (N. da T.).

 

                                                                                Georgina Devon  

 

 

                      

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