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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O REFÚGIO / Jerry Jenkins
O REFÚGIO / Jerry Jenkins

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

DEPOIS DA TERCEIRA GUERRA MUNDIAL, uma guerra santa que destruiu nações inteiras, facções contra a religião e contra a guerra derrubaram quase todos os chefes de Estado. Um governo internacional surgiu das cinzas e da lama. A religião foi proibida no mundo inteiro, numa tentativa de erradicar a guerra.

Os Estados Unidos foram reformulados, com a divisão em sete regiões, passando a ser conhecido como Sete Estados Unidos da América (seua). O presidente foi deposto, e o vice-presidente tornou-se governador regional, su­bordinado ao Governo Internacional da Paz, em Berna, Suíça.

Quando o dr. Paul Stepola completou a pós-graduação em estudos religio­sos, sua esposa, Jae, exortou-o a trabalhar na Organização Nacional da Paz. O pai dela, o general reformado Ranold B. Decenti, ajudou a construir a onp, das cinzas do fbi e cia.

Pouco a pouco, Paul vai subindo na hierarquia da organização. Quando a onp cria uma nova força-tarefa, Fanáticos Clandestinos, para descobrir e eliminar a influência religiosa nos seua, o chefe do escritório da onp em Chicago, Bob Koontz, escolhe Paul como elemento fundamental.

Paul se envolve nas operações secretas da onp. É condecorado, como o úni­co sobrevivente de um ataque a uma pequena casa-igreja em São Francisco, em que atira e mata a líder religiosa, uma viúva. Durante uma investigação de sabotagem de poços de petróleo, no Texas, ele testemunha o assassinato de um cristão clandestino. Pouco depois, Paul perde a visão num incêndio num poço de petróleo.

Enquanto se recupera, Paul conhece Stuart "Straight" Rathe, um volun­tário no hospital e fiel secreto. Paul pede a seus superiores que lhe providen­ciem o Novo Testamento em disco. Assim, poderia analisar as convicções de seus alvos, caso algum dia volte a ver e retome seu trabalho. A exposição ao Novo Testamento e a Straight levam a sua conversão e à dramática recu­peração da visão.

Paul não pode contar a Jae, receando que ela revele tudo ao pai, o que acarretaria a condenação à morte. Straight apresenta Paul aos líderes do movimento clandestino cristão. Um deles — com o codinome Abraão — convence-o a se tornar um agente duplo, permanecendo na onp, ao mesmo tempo em que ajuda secretamente a resistência.

Paul pode simular o zelo pelas ações da onp ao prender falsas pessoas de fé, mas sua verdadeira lealdade é submetida a um teste durante uma grande operação em Los Angeles. Paul se torna suspeito e é quase descoberto quando trabalha secretamente com facções clandestinas para protegê-las do genocídio planejado pela onp. Eles oram para que Deus julgue seus inimigos, com uma seca que afeta todas as pessoas em Los Angeles, exceto os verdadeiros fiéis.

Depois de três trágicos atentados terroristas na Europa, desfechados por um homem que alega ser cristão, Paul é enviado ao exterior para encontrá-lo. Ali, ele faz contato secreto com fiéis clandestinos e descobre que o terrorista não é uma pessoa de fé.

Outra vez, Paul se torna suspeito de traição, passando a ser seguido e vigiado. Mas seu papel na caçada ao terrorista afasta temporariamente a ameaça. Enquanto isso, sua esposa começou a escutar os discos do Novo Testamento, alternadamente preocupada com a possibilidade de o marido ter se tornado fiel e impressionada com as palavras sobre sua própria vida que encontra no texto.

O governo internacional marca um prazo para que todos os cidadãos assi­nem um compromisso de lealdade, que diz o seguinte:

 

Por ordem do Conselho Supremo do Governo Internacional da Paz, sediado em Berna, Suíça, a partir desta segunda-feira, 21 de janeiro de 38 p.3, fica decidido que no prazo de sessenta dias, até 22 de março de

38 p.3, todo cidadão da comunidade internacional que tenha alcança­do a idade de dezoito anos será obrigado a estipular, pela assinatura deste documento, que terá registro público, o seguinte:

"Sob pena de prisão perpétua, ou pena de morte em casos extremos, declaro por este documento que apoio pessoalmente a proibição global da prática da religião. Não estou filiado a qualquer grupo ou organização, nem ligado a qualquer indivíduo que age em oposição às determinações do governo internacional nessa questão. Também declaro que se tiver conhecimento de qualquer cidadão violando este decreto, tenho a obrigação de comunicar às autoridades. O não-cumprimento dessa obrigação acarretará a mesma punição".

 

Com as informações da liderança clandestina dos cristãos na Europa, seua, e no resto do mundo, Paul prepara uma resposta, para ser divulgada ao máximo possível que os fiéis ousarem, inclusive para a imprensa de seus respectivos países. A resposta diz o seguinte:

 

Para: ilustre Baldwin Dengler, chanceler do Governo Internacional da Paz, Berna, Suíça

De: A Igreja Internacional de fiéis no único e verdadeiro Deus de Abraão, Isaque e Jacó, e do Filho de Deus, Jesus Cristo

Ref.: Seu decreto anunciado nesta segunda-feira, dia 21 de janeiro de 39 p.3, que nós chamamos o ano de Nosso Senhor de 2047 a.D.

Chanceler Dengler:

Declaramos que o atual sistema mundial, que há quase quatro décadas proíbe a prática da religião por pessoas de fé, é uma abominaçâo aos olhos do Deus Todo-Poderoso.

Estamos convencidos de que você e seu governo, assim como a maioria de seus cidadãos leais, desconhecem o tamanho e a influência potencial de um povo que, sob a pressão das ações oficiais, foi levado à clandestinidade e forçado a praticar sua fé ilegalmente.

Pedimos que revogue imediatamente o decreto anunciado hoje e determine uma moratória sobre todas as leis que proíbem a pratica da religião, até que possa determinar como as pessoas de fé conseguirão viver em paz nesta sociedade, sem medo de represálias.

Estamos suplicando a nosso Deus para agir em julgamento, caso esse pedido não seja atendido no prazo de quarenta horas depois de anunciado o decreto, ou meia-noite, horário de Berna, terça-feira, 22 de janeiro. Acreditamos que Deus agirá para nos livrar de você, nosso opressor, como fez em Los Angeles, Califórnia, no ano passado.

Advertimos, com todo respeito, que vai se arrepender se ignorar este pedido, já que invocamos Deus, expressamente, para agir como fez há milhares de anos, no Egito, quando o Faraó recusou-se a permitir que os Filhos de Israel deixassem seus domínios.

Sugerimos que leia o relato do Antigo Testamento sobre as dez pragas que Deus lançou contra o Egito. Há entre nós os que pedem a Deus para se abster das nove primeiras pragas e que não endureça o coração. É nosso desejo sincero que você evite as terríveis conseqüências da décima praga, ao final do prazo de quarenta horas. Se não for assim, receamos que Deus possa não limitar essa praga ao centro do poder, mas permitir que afete o mundo inteiro.

Aos nossos irmãos e irmãs ao redor do mundo, lembramos que não precisam se sentir obrigados pela condição do Antigo Testamento para a proteção de suas famílias, que era a de salpicar sangue nas portas como meio de identificação. Acreditamos que o sangue de Cristo já foi derramado por vocês e que Deus conhece os seus.

Concluindo: revogue o decreto de lealdade, suspenda as leis contra a prática da religião, ou assuma todos os riscos inevitáveis.

Para seu conhecimento, é o seguinte o texto da décima praga do Egito, que tememos Deus aplicar aos que se fizerem surdos as nossas súplicas.

Agora Moisés anunciou ao Faraó:

"Assim diz o Senhor: "Cerca de meia-noite passarei pelo meio do Egito. E todo primogênito na terra do Egito morrerá, desde o primogênito do Faraó, que se assenta no seu trono, até ao primogênito da serva que está junto à mó, e todo primogênito dos animais. Haverá grande clamor em toda a terra do Egito. Qual nunca houve nem haverá jamais; porém contra nenhum dos filhos de Israel, desde os homens até os animais, nem ainda um cão rosnará, para que saibais que o Senhor fez distinção entre os egípcios e os israelitas. Então, todos estes oficiais descerão a mim e se inclinarão perante mim, dizendo: 'Sai tu e todo o povo que te segue.' E, depois disto, sairei".

... Aconteceu que à meia-noite feriu o Senhor todos os primogênitos na terra do Egito, desde o primogênito de Faraó, que se assentava no seu trono, até ao primogênito do cativo que estava na enxovia, e todos os primogênitos dos animais. Levantou-se Faraó de noite, ele, todos os seus oficiais e todos os egípcios; e fez-se grande clamor no Egito, pois não havia casa em que não houvesse morto. Então, naquela mesma noite, Faraó chamou a Moisés e a Arão e lhes disse: "Levantai-vos, saiam do meio do meu povo, tanto vós como os filhos de Israel; ide, servi ao Senhor, como tendes dito".

 

O chanceler Baldwin Dengler responde que não haverá negociação, ale­gando que os fiéis são tão poucos que não contam com a atenção de Deus. Lembra ao mundo que essas crenças causaram a guerra mundial, que resul­tou na proibição da religião.

Jae viaja para a Europa, a fim de visitar Paul. Descobre no computador do marido que ele é o autor do Manifesto Cristão. Se o denuncia como traidor, ele será condenado à morte. Apesar de sua criação e de uma vida inteira de ateísmo, ela sente-se compelida a orar pelo marido.

Quando Paul finalmente volta, são e salvo, ela diz que conhece seu segredo: "Não sei onde estou em tudo isso, Paul, mas você já deve saber a esta altura que não vou entregá-lo. Quer concordemos quer não sobre Deus, não quero perdê-lo".

 

 

 

 

"NÃO IMPORTA O QUE ACONTEÇA, JAE, não poderei continuar trabalhan­do na onp. Mesmo que eu não me rebele hoje, a verdade vai aflorar daqui a sessenta dias, quando eu me recusar a assinar o documento de lealdade. E vai precisar decidir que tipo de vida isso significará para você e para as crianças."

 

No avião [de volta aos Sete Estados Unidos da América, a 22 de janeiro], Jae disse a Paul: "Não acredito que essa mortandade possa ocorrer. Se não acontecer, vai me dizer muita coisa sobre seus companheiros de fé e a efe­tividade de suas orações. Se acontecer, além de me tornar a pessoa mais chocada no mundo, não posso prever que sentimentos isso me despertará em relação a Deus. Creio que terei de acreditar que ele existe mesmo, mas teria muita dificuldade para compreendê-lo ou gostar dele".

Paul preocupava-se com Jae, é claro, e não podia deixar de olhar o re­lógio a todo instante. Meia-noite em Berna seriam seis horas da tarde em Washington. Com a diferença dos fusos horários, o avião deveria chegar a Washington no meio da manhã. Extremamente tenso, Paul não sabia mais o que dizer ou fazer. Ele baixou a cabeça e dormiu, durante todo o vôo, perdendo o lanche oferecido. Só acordou quando o avião pousou.

 

Jae também estava exausta, mas não conseguiu dormir. Queria descobrir o verso que ecoava no fundo da mente. Pôs para tocar o disco de Hebreus, e escutou tudo, até que encontrou o verso:

De fato, sem fé é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que se torna galardoador dos que o buscam.

E ela orou: "Quero acreditar que há um Deus, e estou sinceramente a sua procura".

 

A mãe de Jae pegou-os no aeroporto. As crianças estavam na escola, e ela disse que ambas vinham se divertindo e fazendo novas amizades.

— Ranold já foi trabalhar, mas está ansioso em vê-los. Berlitz e Aryana [o irmão de Jae e sua esposa] também jantarão conosco, às 18h30.

Jae teve a sensação de que um nevoeiro de loucura se dissipava em um arremedo de sanidade.

Quando voltaram da escola, naquela tarde, as crianças [Brie e Connor] jogaram-se em cima de Paul, rolando pelo chão. Contaram o que faziam, sobre as novas amizades, os professores.

— Temos de voltar para Chicago agora que você está em casa? — Perguntou Brie.

— Pensei que vocês quisessem voltar — comentou Paul.

— E queremos, mas não agora.

Ranold chegou em casa por volta de cinco horas. Saltou do carro, em seu melhor terno, já tirando a gravata. Apertou o ombro de Jae, e sacudiu vigorosamente a mão de Paul.

— Quero ouvir tudo, filho. Mas tudo mesmo! Deixe-me só trocar de roupa. Sua mãe avisou que Berlitz e a nova esposa estarão aqui para jantar?

Paul assentiu com a cabeça, enquanto as crianças gritavam: "Oba!"

Ranold subiu a escada quase correndo, com uma energia que Jae não observava há muito tempo. Desceu pouco depois, vestindo uma camisa de flanela, calça desbotada, e meias brancas.

— Perdoem a informalidade, mas não suportava aquele terno. Paul, va­mos para o escritório. Pode me acompanhar num uísque. Quero saber de tudo antes do jantar.

 

[No escritório] Paul olhava a todo instante para o relógio. Ranold percebeu.

— Está quase na hora do noticiário.

Ele ligou a tevê. Transmitido os últimos minutos de um seriado cômico, que começava às cinco e meia. Paul tamborilava no braço da poltrona.

— Eu não poderia me sentir mais orgulhoso de você — comentou Ranold. — Ei, não tocou na sua Coca-Cola!

— Não tenho sede.

Na verdade, Paul queria estar com Jae naquele momento. Podia ouvi-la conversar com a mãe na cozinha, enquanto as crianças brincavam na sala.

Às seis horas em ponto, foi como se toda a energia da sala fosse cortada. Tudo apagou, a televisão, todas as luzes. Brie gritou. Ranold disse:

— Mas o que aconteceu?

Paul ouviu-o levantar, ir até a janela, puxar as cortinas.

— Está tudo às escuras — informou Ranold. — Um blecaute geral.

E foi aí que as luzes acenderam. As crianças riram. Margaret disse algo coisa, a voz estridente e aliviada. A imagem na ressurgiu, mostrando o âncora caído sobre a mesa. A outra apresentadora estava de pé, gritando por ajuda.

— Olhe só para isso! — Ranold inclinou-se para frente. — Parece que o homem desmaiou. Um infarto, ou algo parecido.

O telefone tocou, e Margaret atendeu.

— O que aconteceu, Aryana? — indagou ela, alarmada.

Jae levantou os olhos para a mãe, enquanto as crianças entravam correndo na cozinha.

— As luzes apagaram! — gritou Connor.

Foi nesse instante que Margaret desmaiou, deixando cair o telefone.

—Papai! — gritou Jae.

Os homens vieram correndo do escritório, enquanto ela pegava o telefone.

— O que foi, Aryana?

A mulher estava histérica.

— Ele desmaiou! Quando a energia foi desligada, até os faróis do carro desligaram. Eu disse a Berlitz que era melhor parar, mas percebi no mesmo instante que ele não estava mais guiando. Peguei o volante, e senti seu corpo inerte. Consegui pisar no freio, no instante em que batemos no meio-fio. As luzes tornaram a acender, mas ele morreu, Jae!

— O quê?

— Ele morreu! Não há pulsação, nada!

— Papai! — chamou Jae. — Você precisa falar com Aryana!

Jae foi tentar despertar a mãe, enquanto Ranold pegava o telefone.

— Não é possível, Aryana! Ele é muito jovem! Chame uma ambulância! O celular de Paul estava tocando. E o de Ranold também.

— Tenho de atender uma ligação, Aryana — disse Ranold. — Peça ajuda, e depois volte a nos chamar.

 

Paul atendeu. Era Enzo Fabrício [líder do movimento cristão clandestino ita­liano], de Roma.

— Aconteceu, Paul. Está assistindo o noticiário? Ranold, pálido, também atendeu sua ligação.

— Oh, Bia, não! — exclamou ele. — Meu filho também! Ele bateu com o telefone no balcão da cozinha.

— Tenho de alcançar Berlitz e ajudar Aryana. Você vem comigo, Paul?

— Papai, deixe-o ficar com mamãe —, pediu Jae.

— Aconteceu, Ranold — disse Paul.

— O que aconteceu?

— A maldição. A praga. O aviso do movimento clandestino.

— Como? Como? — Ranold fitou a todos na cozinha, desesperado, até se fixar em Connor. — Mas seu filho... seu primogênito continua vivo!

As crianças desataram a chorar. Ranold saiu, angustiado. Jae ajudou a mãe a sentar numa cadeira, abanando-a.

— Vocês, crianças, podem ajudar sua avó. Tragam um copo com água. Paul, é melhor você assistir ao noticiário.

Paul voltou ao escritório, onde a tevê anunciava milhões de mortos no mundo inteiro. E sabendo que sua vida, de Jae e das crianças nunca mais se­ria a mesma, Paul ouviu uma notícia de Berna, informando que o chanceler Baldwin Dengler, do governo internacional, lamentava a perda de seu filho mais velho.

 

PAUL FICOU PARADO DIANTE DA TELEVISÃO, fazendo um esforço para não hiperventilar. Já estivera antes em situações de vida ou morte, enfrentara seus momentos de matar ou morrer. Há muito que confiava no instinto, e provara que seu intelecto prodigioso podia avaliar incontáveis possibilidades, mesmo sob pressão, e mantê-lo bastante calmo para tomar as decisões mais sensatas.

Entretanto, nunca tivera de enfrentar tantas conseqüências, todas as ruins. Alguém poderia, em qualquer lugar, duvidar que aquela catástrofe global — a súbita e inexplicável morte de cada primogênito, independente da idade, em cada família que se recusara a reconhecer Deus — fosse qualquer outra coisa que não a consumação da advertência?

Por um lado, Paul podia imaginar que incontáveis pessoas, apavoradas, no mundo inteiro, procurariam a fé. Por outro lado, a carnificina era inconcebível. Que porcentagem da população global morrera de repente, cada homem como estava naquele exato momento, de pé, sentado, deitado, correndo, andando? E o que isso significaria para a economia, para os serviços públicos, para as organizações policiais? O que acarretaria para a existência normal? Como as pessoas poderiam superar a tragédia?

Devia haver corpos por toda parte; e se era verdade que haviam sido abatidos pela ação sobrenatural de Deus, era mais que provável não haver nenhuma pato­logia evidente. Não haveria sinais de hemorragia ou trauma, nenhuma indicação do motivo pelo qual milhões de homens, meninos, e até mesmo bebês haviam deixado de existir de um momento para outro. Era possível que, em vez de uma busca maciça por Deus, ocorresse justamente o contrário.

A própria Jae dissera que uma praga global como aquela poderia persua­di-la a acreditar da intervenção de Deus nos assuntos humanos, mas também a deixaria com dificuldade para compreendê-lo ou apreciá-lo. Era isso o que se esperava de uma mulher que se encontrava à beira da fé. Milhões de pes­soas, com toda certeza, aproveitariam o caos e o lamento para justificar seu                     ódio contra um Deus que aparentemente era vingativo e rancoroso.

Seria um passo e tanto, pensou Paul, do ateísmo à relutante aceitação de que havia um ser supremo. Ele não tinha a menor dúvida que a maioria preferia estar convencida de que havia um Deus que se empenhava pelo amor, paz, e harmonia, não apenas por justiça e julgamento.

Enquanto trocava os canais na televisão, Paul lembrou-se das notícias de televisão amadoristas que examinara nos arquivos, quando fazia o douto­rado de estudos religiosos, anos antes. A história tivera ocasiões em que os acontecimentos prevaleciam até mesmo sobre os jornalistas mais profissio­nais. O assassinato do presidente americano John F. Kennedy, quase 85 anos antes, deixara os repórteres pálidos, e um famoso apresentador de noticiário sucumbira à emoção.

Um desastre espacial americano, no século anterior, deixara os jornalistas atordoados, noticiando rumores e informações não confirmadas, lendo notícias de telegramas no papel em vez do ponto eletrônico, para depois retificarem com uma raiva evidente.

Ataques terroristas ocorridos antes do nascimento de Paul mostraram os jornalistas das redes de televisão tentando separar fatos de rumores, com a maior inépcia, e tentando manter uma aparência de profissionalismo, embora estivessem visivelmente pálidos de medo. As transmissões históricas durante a Terceira Guerra Mundial mostravam a mesma coisa, à medida que a quantidade de mortes causadas pela tsunami e outros desastres provocados pelas explosões nucleares desesperavam os locutores em pleno ar.

A mesma coisa acontecia agora. Em apenas uns poucos minutos, as notícias terríveis do mundo inteiro deixaram os apresentadores abalados, desesperados para se manterem objetivos. Mas à medida que a enormidade da situação os envolveu — com repórteres e técnicos mortos ao redor — os sobreviventes começaram a compreender os desdobramentos.

Se aquilo era o que fanáticos clandestinos haviam previsto, o evento que oraram, todos seriam afetados, de uma maneira ou de outra. Rara era a pes­soa que não tinha um parente — pai, irmão, avô, tio, filho, primo — que fosse primogênito. E o que dizer de amigos e conhecidos? Paul viu a verdade começar a se registrar no rosto de repórteres e apresentadores. Deviam estar frenéticos para sair do ar e telefonar, a fim de confirmar seus piores receios.

E o número de mortos aumentava a cada segundo. Não se limitava, é claro, aos primogênitos. A mortandade estendia-se a outros inocentes, passageiros em aviões pilotados por primogênitos, vítimas de acidentes causados por motoristas primogênitos em carros, ônibus, e caminhões. Pedestres haviam sido atropelados por carros desgovernados; cirurgiões desabaram em cima de pacientes; pais largaram bebês no chão; eletricistas soltaram fios com a carga elétrica ligada; bombeiros abandonaram o trabalho, as mangueiras lançando água para longe das chamas.

A extensão do cataclismo não seria conhecida por dias, talvez semanas. Paul não podia calcular a demanda de serviços fúnebres. Não havia como realizar en­terros normais com a quantidade de mortos no mundo inteiro. Haveria necessi­dade de covas coletivas, fogueiras fúnebres colossais, refrigeração para os mortos cujas famílias tinham condições de esperar por uma sepultura exclusiva.

Além de tudo isso, haveria o tributo devastador do sofrimento humano. Como um família, um clã, um povo, uma nação, um mundo lamentaria uma perda tão vasta? Nada jamais voltaria a ser como antes, Paul sabia. Não nos seua. Não no mundo inteiro. E muito menos para ele.

Era assustador sofrer a ira de Deus.

 

NA COZINHA, JAE SENTIA-SE NERVOSA COM O silêncio das crianças. Normalmente agitadas e faladeiras, as duas estavam caladas agora, atordoadas, como era inevitável. A avó desmaiara, e só agora começava a recuperar os sentidos. O avô brigara com o pai, e parecia furioso pelo fato de Connor, o primogênito de Paul e Jae, ainda estar vivo.

Jae não podia determinar até que ponto Brie e Connor haviam compreendido o que acontecera. Torcia para que as crianças, com oito e seis anos, ainda fossem pequenas demais para entender. Mas as duas pareciam ter dificuldades para se moverem, estavam pálidas, e limitavam-se a seguir as ordens da mãe.

— Tudo vai acabar bem, crianças — disse Jae. — Mas precisam ajudar a mamãe.

— Para onde foi o vovô? — perguntou Brie.

— Foi buscar tio Berlitz e tia Aryana.

— Por quê?

— Já esqueceu que eles vão jantar conosco?

— O que aconteceu com o carro deles?

— Teremos de perguntar quando eles chegarem.

Jae não sabia por que estava mentindo, adiando o inevitável. Era impro­vável que vissem Aryana naquela noite, e não havia a menor possibilidade de verem o tio morto. E começou a ficar evidente para Jae que seria melhor se não estivessem ali quando Ranold voltasse.

— É mesmo verdade? — Margaret Decenti fez a pergunta num fio de voz, enquanto piscava os olhos, e fazia um esforço para sentar. — Berlitz morreu?

Jae viu as crianças se virarem.

__Papai foi ajudar. Saberemos o que aconteceu quando...

— Morreu? — balbuciou Connor.

— Mamãe! — exclamou Brie, começando a chorar.

— Quero que vocês dois me façam um favor — disse Jae. — Subam agora, e comecem a arrumar suas coisas para partirmos.

— Por quê? Para onde vamos?

— Temos de nos apressar — insistiu Jae. — Explicarei tudo mais tarde. Podem me ajudar?

— Quero saber agora — declarou Connor.

— Não! — interveio Margaret, fazendo um esforço para se levantar. — Sua mãe tem razão. Vocês precisam partir o mais depressa possível. Não de­vem estar aqui quando seu avô voltar.

Brie e Connor choravam agora. Jae chamou Paul.

 

Paul foi apressado para a cozinha. A sogra tinha uma aparência horrível, Jae estava abalada, e as crianças haviam perdido o controle.

A sra. Decenti, em geral dócil e hesitante, puxou Paul para o seu lado, enquanto dizia à filha:

— Suba com as crianças, Jae. Estou bem. Depois que eles saíram, ela acrescentou para Paul:

— Meu marido pode ser detestável em muitas coisas, Paul, mas burro não é. Já tirou todas as suas conclusões antes de sair de casa. Ouviu o que ele disse. Eu estava quase inconsciente, mas também ouvi. Temos conversado sobre isso desde que o movimento clandestino fez sua advertência. Ele mani­festou seu desdém pela ameaça, mas sempre acrescentou que até gostaria que acontecesse. Porque assim seria mais fácil saber quem era o inimigo. Seriam os cães cujos primogênitos permanecessem vivos.

Paul sentia-se desorientado. Margaret tinha razão, é claro. Mas para onde poderiam ir? Quanto tempo Ranold levaria, mesmo em sua dor, para lançar as forças da onp contra sua própria família? Paul e Jae seriam alvos reco­nhecíveis, ainda mais viajando com duas crianças. Havia uma possibilidade de que o pandemônio das circunstâncias pudesse lhes proporcionar algum tempo. A onp, com toda certeza, tinha coisas mais importantes para fazer do que se preocupar com um agente duplo, mesmo que fosse o genro de Ranold B. Decenti.

Mas quem podia determinar a profundidade da raiva, determinação, e desejo de vingança de Ranold? Ele seria capaz de fazer alguma coisa contra a própria filha? Contra os netos? Ranold se sentiria na obrigação de proteger os netos contra seu genro, um traidor.

Jae tinha dificuldade para fazer as crianças subirem a escada, porque am­bas queriam voltar à cozinha.

— Há muita coisa para fazer, Brie e Connor — gritou Paul. — Mostrem até que ponto são responsáveis.

Paul puxou a cortina para o lado e espiou pela janela da cozinha para a escuridão lá fora. Os olhos demoraram um pouco a se ajustarem à fraca clari­dade de uma lâmpada acesa no alto da garagem. O caminho para a garagem estava vazio. Em sua pressa, Ranold partira no carro alugado de Paul. Só restava o carro de Ranold na garagem, o seda da frota da onp. Como tinha um rádio sintonizado com o quartel-general da onp, talvez Paul conseguisse escapar dos perseguidores. Depois que tomasse conhecimento dos planos do inimigo, poderia fazer os seus. E se ouvisse a informação de que sabiam qual era o carro que ele usava, poderia trocar de carro no mesmo instante.

Mas para onde iriam? Estavam muito longe das minas de sal de Detroit e de Chicago. E seria sensato levar crianças apavoradas numa fuga como aquela?

A sogra declarou nesse momento, como se lesse seus pensamentos:

— Deixe as crianças comigo. Paul sacudiu a cabeça em negativa.

— Passamos muito tempo longe das crianças. Além do mais, Jae não per­mitiria. E quem sabe o que Ranold pode fazer?

— Ele teria de me matar antes de encostar um dedo nas crianças.

— Sei disso, Margaret, mas... Ele ajudou-a a se levantar.

— Você deve fazer o que é preciso, Paul. Mas é melhor fazer logo. O telefone tocou. Margaret atendeu.

— O que aconteceu querido? — Ela revirou os olhos para Paul. — Aryana está bem, nas circunstâncias? Eu? o que você esperava? Estou completamente atordoada... Ele está aqui, ao meu lado. Claro.

Ela estendeu o fone para Paul, e se inclinou para poder ouvir a conversa. Ranold foi direto ao assunto.

— Preciso de ajuda, filho. Preciso de conselho. Não precisa ter medo de mim, porque tudo se tornou claro agora. Você está certo. E eu estava errado. Preciso saber o que fazer. Talvez até precise que você ore comigo. Poderia fazer isso?

A resposta confirmaria pela primeira vez, para Ranold, qual era a posição de Paul. Mas que sentido haveria em tentar algum rodeio agora? O bem-estar de Connor era a única prova de que Ranold precisava.

— Claro. Mas...

— É um momento terrível para sua sogra e para mim, Paul. Só quero que prometa estar aí em casa quando eu voltar. Aryana ficará com Berlitz até de­cidirmos o que fazer com o corpo. Vai me esperar, Paul?

— Volte depressa, pai.

Assim que ele desligou, Margaret murmurou:

— Espero que não tenha acreditado no que ele disse.

— Não, não acreditei.

— Vocês precisam sair daqui... e depressa. Como posso ajudar?

 

Lá em cima, Jae arrumava as coisas, frenética. Conseguiria persuadir a mãe a acompanhá-los? Não na presença das crianças. Prometera a Brie e Connor que explicaria tudo se a ajudassem a fazer as malas. As crianças reprimiam soluços, obviamente apavoradas. Jae gostaria de poder sentar e chorar.

Entrou em pânico quando ouviu passos na escada. O pai já havia voltado? A mãe e Paul entraram. No mesmo instante, Paul assumiu o comando das crianças, ao mesmo tempo em que verificava seu assistente digital pessoal. Quando as crianças estavam absorvidas em arrumar suas coisas e não po­diam ouvi-la, Jae suplicou à mãe que fizesse uma mala e partisse também. Margaret Decenti meneou a cabeça negativamente desde a primeira palavra.

— Posso cuidar de mim mesma. Seu pai vai querer saber para onde vocês foram. Direi que pensei que a idéia era dele, que sabia de tudo. Ranold vai explorar, mas já passei por isso antes. Ouvirei seus gritos e reclamações, mas ele não passará disso. Agora, tratem de se apressar.

 

EM TODAS AS CRISES EM OUE SE envolvera ao longo dos anos, Paul nunca se preocupara com as crianças. Claro que especulava se Jae saberia cuidar direito delas, se alguma coisa lhe acontecesse. Embora detestasse pensar a respeito, sabia que uma mulher jovem e atraente como Jae não permaneceria sozinha por muito tempo. Além do mais, as crianças sempre precisariam de uma figura de pai.

Mas aquilo era diferente. Os filhos estavam agora com ele, sob sua tute­la... e ele se tornara um fugitivo internacional, passível da pena de morte. Além do peso terrível da responsabilidade pela segurança dos filhos, nunca tivera de agir de forma decisiva e profissional na presença de Brie e Connor. Como poderia se concentrar? Seria justo atribuir a Jae a responsabilidade de manter as crianças quietas, para que ele pudesse pensar?

Ele desceu com duas malas, encontrou as chaves do carro de Ranold num gancho na cozinha, e foi para a garagem. Quando voltou, Jae e as crianças já haviam descido com o resto da bagagem, e ela assegurava aos filhos que cum­priria sua promessa. Os dois saberiam em breve o que estava acontecendo.

Paul sabia que aumentava a tensão ao arrancar a bagagem das mãos das crianças e levar correndo para o porta-malas do carro, mas não havia alterna­tiva. O tempo não lhes era favorável. Enquanto Jae acomodava as crianças no banco traseiro, prendendo o cinto de segurança, Paul sussurrou:

— Sua mãe vai ficar bem?

— Pode me fazer um favor, Paul? Ajude-me a decidir. Vá se despedir de mamãe, e depois me diga o que achou. Tudo em mim diz que não devo deixá-la sozinha aqui.

— Temos de partir imediatamente, Jae.

— Por favor, Paul. Levará menos de um minuto.

Paul tornou a entrar na casa, apressado. Encontrou a sogra sentada e ba­lançando na frente da televisão, enquanto murmurava:

— Berlitz, Berlitz...

— Nós já vamos, Margaret. Tem certeza que não quer ir conosco?

Ela sacudiu a cabeça, mas parecia arrasada. Como poderia ser de outra forma? Seu filho adulto, o único filho homem, era um dos mortos. Milhões de mães lamentavam naquele momento, mas isso não fazia com que sua dor fosse menos pessoal. Seria capaz de enfrentar Ranold no estado em que se encontrava? Ele explodiria quando soubesse que Paul, Jae, e as crianças ha­viam partido. Eles se tornariam alvos de uma gigantesca caçada humana, os números de um a quatro em sua lista dos mais procurados.

— Paul, pode sentar comigo por um minuto?

— Sinto muito, Margaret, mas temos de...

— Só um instante.

Ele olhou para o relógio e sentou.

— Li a carta de seu pai, Paul... a que ele escreveu para que você lesse quando completasse doze anos. Jae entregou-a a Ranold, que me mostrou. Ele pensou que me deixaria furiosa, que tornaria tudo claro para mim. Mas não consegui mais tirá-la dos pensamentos. Teve em mim um efeito profundo. Seu pai era um devoto. Acreditava com toda sinceridade... e como amava você!

— É verdade.

— Não sou estúpida, Paul. Vivo à sombra de um homem poderoso, e aprendi a ficar no meu lugar. Mas isso não significa que não sei o que está acontecendo. O fato de Connor estar vivo prova que você é um fiel.

— Na verdade, não prova, não, apesar do que Ranold pensa. Por "primo­gênito", achamos que a Bíblia se refere à primeira criança que nasce e é do sexo masculino, não apenas o primeiro homem que nasce na família.

— Mas você, Paul, é um primogênito.

— Tem razão.

— E também é um fiel.

— Sou, sim.

Paul sentiu que se tornava mais livre ao admitir.

— E Jae?

Paul inclinou a cabeça para o lado.

— Ela está próxima, se é que ainda não retornou.

— Não vai demorar. Jae é muito parecida comigo, e não preciso de mais nada para me convencer. Não sei para onde tudo isso vai levar, mas quero estar no lado certo quando chegar o momento decisivo. Já perdi meu filho. Não quero perder minha alma.

Paul estava num impasse. Não podia abandonar a sogra num momento como aquele. Mas também não podia ficar e sofrer as conseqüências da fúria do sogro.

— Você não precisa perder a alma, Margaret.

— Sei disso. Encontrarei uma saída. Vá agora.

— Não acho certo deixá-la...

— Não diga bobagem. Sou uma mulher adulta e madura que conviveu durante muito tempo com um homem difícil. Para variar, temos uma coisa que podemos partilhar. Ele também amava Berlitz, a sua maneira desastra­da, mas amava.

— Acha que podem confortar um ao outro?

— É bem provável que ele nem pense em minha dor. Mas impedi-lo de exercer sua vingança vai me manter ocupada.

Paul não conseguia se lembrar de outra ocasião em que se sentira tão dividido. Precisava agir depressa, com toda determinação, mas se sentia atraído em muitas direções. Parte dele queria ficar e confrontar Ranold de-safiando-o a tirar de cena o pai de seus netos.

Nesse momento, ouviu alguém abrir a porta entre a cozinha e a gara­gem, e orou para que não fosse Ranold. Ainda não estava preparado. Mas foi Jae quem apareceu.

— Quero que os dois me escutem. Talvez eu não devesse fazer isso. Talvez não seja este o meu lugar. Mas tomei uma decisão, e ninguém vai me fazer mudar de idéia. Ficarei com mamãe até papai voltar.

— Não pode fazer isso, meu bem — protestou Margaret. — Precisa...

— Eu disse que tomei uma decisão, e não adianta tentar me dissuadir. Paul, sei que você tem algum plano. Leve as crianças e comece a pô-lo em pratica. Venha me buscar mais tarde, ou irei ao seu encontro, onde quer que você esteja.

— Não será fácil, Jae. Seu pai manterá esta casa sob vigilância e...

__ Vá logo, Paul. É a sua vida que está em jogo. Tenho certeza de que você dará um jeito. Estamos sem tempo. O único motivo para papai ainda não ter voltado é o tráfego.

 

Finalmente sozinha com a mãe, Jae descobriu que estava uma ruína emocio­nal. Queria ficar a sós com Deus para pensar em sua fé e na perda do irmão. E precisava desesperadamente estar com Paul, porque agora era evidente que poderia perdê-lo a qualquer momento. A onp receberia a ordem de atirar para matar os traidores. Além disso, ela acabara de se reunir com as crianças, só para perdê-las poucas horas depois.

Naquele momento, porém, a mãe era sua maior prioridade. Margaret po­dia ficar tão angustiada que desmaiaria de novo... ou pior. E se ela batesse com a cabeça ao cair? Ou se tivesse uma obsessão suicida? Jae achava que isso não aconteceria, mas a perda de um filho, mesmo adulto, podia levar qualquer mãe à beira do desespero total. E havia ainda o trauma de esperar pelo marido furioso, que chegaria em casa para descobrir que o alvo de sua vingança fugira em seu próprio carro...

 

Connor fizera o que próprio Paul gostaria de fazer também: batera em retira­da. Encostou o rosto no ombro da irmã e parecia estar dormindo. Sem chorar, sem gemer, sem falar. Absolutamente imóvel.

Brie também se mantinha impassível, mas de uma forma assustadora, ba­lançando no banco traseiro, de maneira que fez Paul se lembrar da sogra. Depois de ligar o carro, ele virou-se para a filha.

— Confia no papai, não é?

Brie acenou com a cabeça, numa resposta afirmativa.

— Assim que chegarmos ao lugar para onde vamos, explicarei tudo o que está acontecendo. Combinado?

A menina tornou a acenar com a cabeça.

— Para onde vamos?

— Você nunca esteve lá antes, mas garanto que vai gostar.

— Há crianças nesse lugar? Paul não havia pensado nisso.

— Há, sim... acho que sim.

Ele usou o controle remoto para abrir a porta da garagem. Fechou-a assim que saiu. O céu estava escuro e a noite era fria, mas havia uma intensa movimentação no bairro de casas bem cuidadas. Ele viu três carros acidentados, dois dentro de uma vala, o terceiro batido num poste de energia elétrica. Muitas pessoas estavam nas ruas, circulando entre as casas, conversando, se abraçando. Algumas pareciam à beira de um colapso, da dor e do medo.

Enquanto atravessava o bairro, Paul viu mais carros acidentados, alguns saindo da rua para bater em postes e muros, outros em batidas. Cada cruza­mento era uma confusão de veículos amontoados, pessoas chorando, cidadãos comuns tentando orientar o tráfego, umas poucas ambulâncias atendendo feridos. Pessoas entravam e saíam de lojas, levando suprimentos, cobertores, kits de primeiros socorros.

— O que aconteceu, papai? — perguntou Brie.

— Muitos acidentes.

— Eu vi. Mas por quê?

— Lembre que eu prometi explicar tudo mais tarde. Neste momento, pa­pai precisa falar ao telefone, e você deve ser paciente, está bem?

Paul tentava falar com Straight, seu mentor de fé e contato no movimento clandestino cristão, em Chicago. Mas ele não respondia. Tentava também falar com Paul, mas estava ocupado com outras ligações de células do movi­mento cristão no mundo inteiro.

Entre as tentativas, uma ligação conseguiu alcançar Paul. Era de Chicago.

— Paul? — murmurou sua secretária no escritório da onp.

— Felícia? De onde está ligando?

— De um telefone público. — A voz era trêmula. — Sabia que Bob Koontz era um primogênito?

 

JAE DESLIGOU A TELEVISÃO E SENTOU ao lado da mãe, segurando suas mãos. As duas choravam, desoladas com a morte do irmão e filho.

Jae nunca sentira tanto a presença de Deus, e isso a deixava apavorada. Adorara conhecê-lo através dos discos do Novo Testamento. No processo, compreendera o que acontecera com Paul, e o que devia acontecer com ela. Sabia que acreditava, mas não podia entender como ou por que a situação chegara a um ponto em que Deus tivera de agir daquela maneira.

Estranhamente, porém, embora tivesse previsto que não compreenderia e não gostaria mais de Deus se a praga se consumasse, só a primeira parte ocorrera. A segunda não fazia parte da equação. Não que ela se sentisse satis­feita pelo que acontecera. Quem poderia se sentir assim? Um ato, porém, tão específico e definitivo que a levava a temer a Deus com tanto respeito que não podia mais sentir nenhuma dúvida.

Era inevitável agora, ela concluiu, depositar sua fé num Deus que se re­velava de uma maneira tão óbvia e dinâmica. Quando refletia a respeito de tudo, tentando decifrar o enigma em que Paul se transformara, ao mesmo tempo em que adquiria vislumbres de Deus, através das gravações de suas palavras, todas as coisas que lhe fora ensinadas e nas quais passara a acredi­tar haviam sido contestadas. Quando admitira a possibilidade de que tudo aquilo poderia ser verdade, seu pouco conhecido músculo da fé fora testado e exigido além de sua capacidade. Quando descobrira que queria acredi­tar, Jae lutara contra uma vida inteira de resistência incutida. Chegara à conclusão de que precisaria ter uma conversa franca com Paul, talvez com Straight, e não sabia com quem mais — o próprio Deus? — antes de poder renunciar à sua descrença.

Mas tudo isso fora superado de um momento para outro. A tragédia in­ternacional a deixou abalada, e ela sabia que a plena intensidade não passa­ria além da superfície de sua consciência por vários dias. Mas o efeito sobre sua arma fora o oposto do que ela previra.

A princípio, pensara que orar por um ato assim do Todo-Poderoso era uma maldade inadmissível. E presumira que Deus, se era quem ela pouco a pouco começava a acreditar que era, não seria persuadido a fazer algo tão terrível.

Mas, de certa forma, Deus concordara que era necessário. Ninguém capaz de fazer uma coisa assim poderia ser bastante fraco de caráter para ser persuadido a agir contra sua vontade. O que Deus fizera em Los Angeles, no ano anterior, deveria ter convencido o mundo de que ele existe e não pode ser descartado. A própria Jae, no entanto, não pensara assim. Contra toda a razão, descobrira-se a explicar o que acontecera como uma aberração natural.

Entretanto, agora não era mais possível explicar assim. A morte de todo primogênito do mundo que não acreditasse no Deus de Abraão, Isaque e Jacó, e no Filho de Deus, Jesus o Cristo, era mais do que convincente. As pessoas podiam verberar o céu, sacudir o punho contra o Eterno, mas nin­guém podia mais negar por um momento sequer que o inimigo dos descren­tes existia e que era poderoso além da compreensão.

Se pessoas decidissem odiá-lo, depois de ignorá-lo por décadas, conside­rando-o imaginário, era uma opção que faziam. Mas Jae duvidava que ainda existisse um único ateu em todo o planeta.

Tudo isso ela murmurou às pressas para a mãe, as duas tentando confortar uma à outra. E Margaret Decenti, para seu crédito, parecia concordar, apesar de não contar com o benefício das gravações do Novo Testamento que Jae ouvira.

Entretanto, isso mudaria em breve. Jae providenciaria tudo o que fosse necessário para fazer sentido para que a mãe tomasse conhecimento. Jae orou, silenciosamente. Senhor, minha mente e coração mudaram por completo. Ela compreendeu que era a primeira vez que reconhecia Deus como seu Senhor. Creio no Senhor com todo o meu ser. Agradeço por Jesus. Perdoe-me por rejeitá-lo durante tanto tempo.

Jae não podia deixar de admitir que se beneficiara — uma estranha palavra, nas circunstâncias — do mais dramático ato de Deus em toda a história. Sua decisão parecia ter sido quase fácil demais. Mas nem por isso era menos real.

 

— Bob morreu?

Pau ficou atordoado. Koontz fora seu chefe e amigo por muitos anos.

— Aconteceu quase no final do expediente, Paul.

Paul podia imaginar aquela mulher negra e alta no outro lado da ligação.

— Muitos já se encaminhavam para os elevadores quando a gritaria começou. Voltamos correndo. Havia mortos por toda parte. Bob estava parado na porta de sua sala. Lembra como ele gostava de fazer isso, para verificar se a secretária tentaria partir às cinco horas? Ela contou que Bob simplesmente fitou-a com expressão perplexa, e depois caiu, como um saco de batatas. Recebemos telefonemas de escritórios do país inteiro. Lembra de Lester Harrelson, da Terra do Golfo?

— Tick? Claro que lembro.

— Também morreu. Assim como muitos outros que você conheceu, Paul. Por que não me contou?

Havia uma certa amargura em sua voz.

— Contar o quê?

— Por que acha que levei tanto tempo para lhe telefonar, Paul? Estava ocupada. Perdi meu filho. Meu marido perdeu o irmão e o pai. Perdi tam­bém um cunhado. Pensa que não sei que você é filho único? O que o torna primogênito. E aposto como seu doce filho Connor também continua vivo.

Paul sentiu pena de Felícia. O que podia dizer?

— Eu sei — acrescentou ela. — Em quem você podia confiar? Sei que era considerado suspeito por aqui, e tenho certeza de que você também sa­bia. Não sabia em quem confiar. Talvez estivesse certo de não confiar em mim. Mas quando essa profecia louca foi divulgada, esse desafio ao governo internacional, você não podia deixar de saber que ia realmente acontecer. Embora eu estivesse muito ligado a você, nunca me passou pela cabeça que pudesse acontecer. Mas você sabia. Não podia deixar de saber. Você sabia, não é mesmo, Paul?

— Esperava que não acontecesse.

— E não se importava o suficiente comigo para me contar.

— Claro que me importo com você, Felícia. Mas o que eu podia fazer?

— Sabe muito bem o que poderia fazer, Paul. Poderia ter me advertido. Talvez eu tivesse rido. Talvez ignorasse o aviso. Talvez o denunciasse. Mas talvez, apenas talvez, pudesse ter acreditado, e a mão da morte de Deus não atingiria minha família.

— Sinto muito, Felícia.

— Sente mesmo, Paul? Pois eu também. O que devo fazer agora? Houve uma vibração em um dos molares de Paul;

— Tenho outra ligação, Felícia.

— Muito conveniente.

— Ligarei para você mais tarde, se houver alguma coisa que eu possa fazer para ajudá-la agora.

— Acho que não há. E imagino que nunca mais tornarei a vê-lo.

— Pelo menos não no escritório.

— Eu não o denunciaria, Paul. E ainda quero conversar com você.

— Acredito em você, Felícia. E tenho certeza de que, de alguma forma, voltaremos a nos encontrar. Não sei quando ou onde, mas...

— Atenda sua ligação, chefe. Era Straight.

— Eu estava no hospital. Pode imaginar o que aconteceu.

— Você se tornou suspeito?

— Não. Ninguém sabe que fui um primogênito, e todos na minha família já morreram.

— Mal posso esperar para me encontrar com você, Straight. Mas agora preciso de informações. Preciso fazer contato com o movimento clandestino na Região de Colúmbia. Jack Pass ainda dirige?

— Ainda. Você tem um talismã?

— Não.

— Posso obter a autorização para seu acesso, mas você é tão procurado que eles ficarão preocupados com a possibilidade de estar sendo seguido.

Paul relatou o que lhe acontecera, quem estava no carro, e onde deixara Jae.

— Se eu fosse Jack, Paul, suplicaria para que você se escondesse em outro lugar.

— Para onde devo ir, Straight?

— Não faço a menor idéia. Falarei com Jack. É mais provável que eles se encontrem com você em algum lugar. Não podem deixar que você chegue perto de seus esconderijos, pois tudo indica que está sendo seguido.

— Parece que ainda não.

— Paul, as pessoas costumam perceber que estão sendo seguidas por agentes? Você deve saber disso, já que trabalha na onp. Minha sugestão é que se mantenha em movimento até que eu volte a fazer contato.

 

NÃO FOI DIFÍCIL PARA JAE PERCEBER O QUE o pai pensava. Nunca fora. Era um homem corpulento, de papada, rosto vermelho, que há muito deveria ter se aposentado. O fato de ter sido chamado de volta ao serviço ativo, dirigir a força-tarefa conhecida como Fanáticos Clandestinos, servira para revigorá-lo, transformara-o em um novo homem.

Como sempre, exibia os sentimentos no rosto. Tinha os olhos contraídos de um homem desconfiado, a angústia dos desconsolados, e a fúria da raiva quando passou da garagem para a cozinha.

— Como está sua mãe? — perguntou ele, num grunhido baixo.

— Descansando. E desesperada, como pode imaginar. Todos estamos.

— E onde está meu carro?

— Paul saiu com as crianças. Estavam inquietas demais, e achamos que...

— Acharam que sair com as crianças neste caos fazia algum sentido? Não estavam pensando direito. Deveriam imaginar como estão as ruas. As cenas me lembram a guerra.

Sentou-se em numa cadeira e cobriu o rosto com as mãos.

— Quando eles voltarão?

— É difícil dizer, papai. Não marcamos uma hora.

— Ele não está fugindo de mim, não é?

— Fugindo?

— Não banque a idiota. Tenho certeza de que compreende a situação crítica de Paul. Ele está tentando escapar?

— Num carro da onp? Que tipo de sentido isso faria?

— Pode ser uma manobra proposital. Poucas vezes enfrentei adversários tão insidiosos quanto Paul. Posso...

— Agora ele é seu adversário?

Ranold estreitou os olhos.

— É melhor que ele seja seu adversário também, menina, ou vamos nos meter na maior encrenca.

Jae sustentou o olhar do pai. Sentou no outro lado da mesa.

— Então estamos metidos numa encrenca, papai. Paul é meu marido, minha primeira lealdade. Mas ele disse que você mudou de idéia, que queria conversar, até orar.

— Você deve ter percebido que era uma armadilha, mesmo que ele não soubesse. Não esperava que Paul caísse, mas valia a pena tentar. Queria mantê-lo aqui. Onde você acha que ele vai encontrar uma sorveteria num momento como este?

— Não sei para onde eles foram.

— Mas jura que Paul não está fugindo?

— Não vou jurar nada, papai. Mas ele não vai longe sem mim.

— Por quê?

— Já expliquei. Independente do que acontecer, estamos juntos nisso. Ranold levantou-se, tremendo.

— Quer dizer que você está no outro lado agora? É isso?

— Há apenas um lado agora, papai. Não percebe isso? Quer enfrentar uma Força que pode exterminar um bilhão de homens? Quem não está pen­sando direito agora?

Ele sentou de novo, e bateu com a mão na mesa. Tudo na cozinha estre­meceu. Jae levantou-se de um pulo.

— Você perde uma batalha, e quer se render? Não é o meu caso, menina.

— Ainda é ateu?

— Não banque a engraçadinha comigo.

— Não tenho essa intenção. Vai me dizer que a Pessoa em que nunca acre­ditou vence uma batalha, como disse, uma batalha dessa magnitude, e ainda assim você não está disposto a admitir sua existência?

— Não admito nada. Nunca me rendo, nunca desisto.

— O que vai ser necessário, papai? Precisa perder tudo e todos?

Antes que ele pudesse responder, Margaret entrou na cozinha, tão trêmula e pálida quanto ficara antes de desmaiar. Jae levou-a para uma cadeira à mesa, na frente de Ranold. Jae ficou aturdida ao sentir a mãe frágil e magra, estremecendo sob uma suéter folgada.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou ela.

— Adivinhe — disse Jae.

— Sua filha está d izendo besteiras — resmungou Ranold. Jae sacudiu a cabeça.

— Não vou continuar a discutir com você por isso, papai. Seus inimigos oram para que Deus mande uma praga, um horror indescritível e inconcebível, que nem mesmo eu acreditava acontecer... até que aconteceu. Como pode continuar a negar, depois disso, que foi um ato de Deus?

— Você acredita a_gora?

— Quem pode deixar de acreditar, papai? Talvez você seja o único tolo obstinado que restou, sacudindo o punho insignificante para o Todo-Poderoso. É necessário que ele o esmague como se fosse um inseto?

— Com quem pernsa que está falando, Jae?

— Sei com quem estou falando, e este seria o melhor momento para evitar confrontação, não é mesmo? Se eu não o amasse, papai, por que me arriscaria a ofendê-lo? Estou além de me preocupar com isso agora.

— Vai me obrigar a fazer coisa que eu não quero.

— O que é? Pretende me entregar? Apresentar acusações contra mim? Faria isso com sua fiLha e com seus netos... deixaria que fossem criados sem pai e mãe?

— Cuidaremos das crianças. Vamos criá-las da maneira certa, sem acre­ditar em algum...

— Isso mesmo, p apai... independente de tudo, não deixe que acreditem em um Deus que prcrvou o que pode fazer.

Margaret interveio na conversa, a voz trêmula:

— Você não vai entregar sua filha.

Jae ficou tão surpresa quanto o pai devia estar. Nunca vira a mãe en­frentá-lo.

— Espere só para ver.

— Talvez você não se importe, Ranold — declarou Margaret. — Talvez nunca tenha se importado. Mas no instante em que fizer isso, nunca mais me verá enquanto viver.

O pai de Jae com-primiu os lábios com toda força. Estufou as bochechas. Levantou-se, e enfiou as mãos tremendo nos bolsos, para não fazer nada que se arrependeria depo-is. Pôs-se a andar de um lado para outro da cozinha.

__Você não compreende a lei, Margaret? Não respeita a autoridade?

Conhece a definição de traição?

— Preciso arrumar as malas, Ranold?

— Do que está falando?

— Não fui bem clara? Vai se arrepender se fizer alguma coisa contra minha filha e meus netos.

— Está me ameaçando?

— Agora você começa a entender.

— Mas o que me diz de Paul? Um agente duplo! Um traidor! É um epíto-me do risco de segurança nacional. Não pode esperar que eu fique de braços cruzados e deixe que ele...

Margaret pôs as mãos na mesa e tentou se levantar.

— Mamãe, por favor, não faça isso — murmurou Jae.

— Quero ficar de pé.

— Deixe-me ajudá-la.

Depois que se levantou, a velha apontou um dedo trêmulo para o marido.

— Aqui está o que espero de você, se por acaso se importa comigo e com sua família, mesmo que seja apenas um pouco. Deixe a situação como está. A onp não tem tempo para se preocupar com o lado que estão. Essa tragédia mundial vai exigir a participação de todas as mulheres e de todos os homens que sobraram para endireitar tudo e restabelecer a ordem. E, entretanto, se Paul e sua família estiverem determinados a ser inimigos de estado, você não precisa se envolver.

Jae podia perceber que a mãe, finalmente heróica depois de tantos anos, levara Raymond B. Decenti além do ponto de ebulição. Ele inclinou-se por cima da mesa, os olhos furiosos. Deu três murros na mesa.

— Como pode falar assim? Seria capaz de abrigar criminosos?

— Protegerei minha família — declarou Margaret, a respiração ofegante. — Até mesmo contra você.

— Não pode vencer! — gritou Ranold. — Quem você pensa que é?

— Sou uma mãe — sussurrou ela.

O rosto furioso de Ranold virou uma máscara de humor. Ele inclinou a cabeça para trás, rindo. Margaret tornou a sentar. Mas assim que Jae a soltou, a mãe inclinou-se para o lado e caiu, batendo com a cabeça no chão.

— Você a matou! — gritou Jae. — Olhe só o que você fez! O pai tinha o rosto todo contraído. Contornou a mesa.

— Não, Margaret! Vamos conversar e encontrar uma saída!

O corpo da mãe de Jae teve algumas convulsões, até que ficou imóvel.

— Margaret! — balbuciou Ranold. — Não!

Jae ajoelhou-se e encostou a ponta dos dedos no pescoço da mãe, sentin­do a carótida. Nada. Ela arriou no chão, balançando a cabeça para o pai.

— O que aconteceu? Não! Não! Margaret!

Ranold também se ajoelhou. Virou a mulher de costas, e abaixou o rosto, para escutar a respiração. Encostou o ouvido no peito. Depois, começou a bater no peito de Margaret e a tentar o ressuscitamento cardiorrespiratório.

— Não precisa continuar, papai — murmurou Jae. — Ela já morreu. Ranold virou-se e estendeu as mãos para a filha. Enlaçou-a, mas ela não retribuiu o abraço.

— O que eu fiz, minha filha? O que eu fiz?

Jae gostaria de poder dizer. As palavras "Você a matou" chegaram a aflorar a seus lábios, mas nem um monstro como o pai precisava ouvir isso de novo.

Ele balançava, soluçando, a respiração entrecortada.

— Você precisa sair daqui, Jae.

— Como?

— Apenas saia. Se ficar, posso fazer uma loucura. Saia antes que eu mude de idéia.

— Para onde irei?

— Não me interessa. Só quero que saia.

— Não vou deixar a mamãe desse jeito. Pelo menos deixe-me levá-la para a cama ou o sofá.

Jae, é claro, nunca vira o pai assim. Ao ajudá-lo a levar o corpo da mãe para o escritório e estendê-lo no sofá, Jae começou a forçar a dor e a raiva para um recesso profundo, de onde poderia tirá-las, quando tivesse tempo.

Ela fechou os olhos e a boca da mãe, e estendeu uma manta sobre o corpo, cobrindo a cabeça. Alguma coisa dentro de Jae dizia que precisava aproveitar logo a generosidade do pai e partir o mais depressa possível. Nem precisava fazer a mala. Bastava pegar o casaco e fugir.

E foi o que ela fez. Lançou um último olhar para o pai, arriado numa cadeira, ao lado da esposa, os ombros tremendo nos soluços. Ranold fitou a filha enquanto ela vestia o casaco, como se esperasse uma palavra de despedi­da, um abraço, qualquer coisa.

O triste fato era que Jae não sabia por quanto tempo mais poderia confiar no pai. Ele ficaria sozinho, como nunca estivera em toda a sua vida, e poderia se arrepender de deixá-la partir. Jae saiu apressada, pela garagem, tentando pensar como Ranold, quando ele estava em seu juízo perfeito. Ele estava cometendo um tremendo erro. Se queria pegar Paul, se queria se vingar, estava deixando escapulir a única ligação que poderia levá-lo até ele. Jae seria a refém perfeita, a isca a que Paul não resistiria.

Entretanto, agora ela estava em fuga.

O vento frio atingia-lhe o seu rosto, enquanto levantava o capuz e se afastava apressada pela rua. Não havia transcorrido duas horas desde que se concretizara a praga global. Jae tinha a impressão de que caminhava por uma zona de guerra. Ligou para o número particular de Paul enquanto corria. Ao cair na caixa postal, informou-o onde poderia encontrá-la.

 

Paul ligava para o número — fornecido por Straight — de um centro do mo­vimento clandestino, na região de Washington, d.c, quando uma vibração informou que estava recebendo uma chamada. Mas não podia desligar para atender no mesmo instante. Quando atendeu, descobriu que a pessoa deixava um recado na caixa postal. Quando acabou de ser transmitida, ele apertou o polegar e o dedo médio para ouvi-la. Jae parecia frenética.

— Paul, estou a pé. Encontre-me em Brightwood Park, na Rua 16, na direção da Silver Spring, dentro de vinte minutos.

 

JAE SUBESTIMARA A DISTÂNCIA ENTRE a casa do pai e o lugar em que pla­nejara se encontrar com paul e as crianças. Alternou entre correr e andar, o trauma do dia surtindo seus efeitos, e deixando-a com os músculos doloridos. E isso em cima dos pulmões ardendo e do coração disparado.

Ela não queria ligar de novo para Paul. Embora ele tivesse assegurado que a ligação era segura, não se passava um dia sem que alguém anunciasse a descoberta de nova tecnologia que permitia grampear todos os sistemas de telefones. Quem podia ter certeza? Talvez a ligação fosse segura, mas também era possível que a localizassem. Talvez o pai já tivesse mudado de idéia, e transmitido um aviso geral para procurá-los.

Ela fez sinal para um táxi que parou, o que não foi fácil. Uma mulher corpulenta estava ao volante, e pôs o taxímetro para correr mais depressa do que o normal. Tinha um sotaque da Europa Oriental que Jae não conseguiu situar. Puxou uma conversa pessoal no mesmo instante, como se a situação mundial permitisse essa liberdade. Jae não ficou irritada.

— Quem você perdeu? — perguntou a mulher.

— Como?

— Todo mundo perdeu alguém. Eu perdi dois tios e um irmão.

— Perdi a metade da família.

— A metade?

— Meu irmão e minha mãe.

— Sua mãe?

— Ela sofreu um ataque do coração.

— Acho que é o fim do mundo.

— É mesmo?

__O que mais a gente pode pensar? Quando soube da ameaça, achei

engraçado, como a maioria das pessoas. E acabou acontecendo. Só pode ser o fim do mundo.

— Acredita em Deus? — perguntou Jae.

— Acredito agora. Como alguém pode não acreditar?

Jack Pass parecia o telefonista solitário para uma cidade inteira.

— É um prazer finalmente conhecê-lo, Stepola, mesmo que seja apenas pelo telefone. Lamento pelas circunstâncias. Qual é sua história?

Paul relatou tudo da maneira mais sucinta possível.

— Portanto, você é o espião que quer sair do frio.

— Não quero ficar muito tempo, apenas o mínimo necessário. No entan­to, preciso garantir minha família.

— Faremos o que for possível. Mas deve compreender que nossos recur­sos são limitados, especialmente em espaço.

Paul disse quem eram as pessoas de sua família que precisavam de abrigo, e que idade tinham.

— E talvez eu possa ajudar com alguns recursos... em dinheiro.

— Fala sério?

— Sem promessas, mas posso dar alguns telefonemas para pedir ajuda. Pelo menos uma ligação.

— Já sei. Você participou do caso de Demetrius em Atlântica, não é mesmo?

— Boa memória.

— Precisamos de toda ajuda possível. Para não mencionar as mãos extras.

— Não aceitaríamos a ajuda sem oferecer nada em troca.

— Quero que saiba que temos uma situação delicada aqui, Stepola. Um dos nossos anciãos de maior confiança perdeu um filho.

— Às seis horas da tarde?

— Exatamente.

— É mesmo uma situação difícil.

— Não sabemos o que fazer. Ele jura que foi apenas uma coincidência, que não compreende, e diz todas as coisas certas. Temos de mantê-lo detido.

Não podemos correr o risco.

— Se ele é um agente infiltrado, provavelmente já denunciou o local do esconderijo.

— É esse o nosso medo.

— Planeja um êxodo, ou aumento da segurança?

— As duas coisas. O êxodo seria uma operação complicada.

— E preciso determinar quem esse homem representa.

— Pode ser qualquer um.

— Eu gostaria de conhecê-lo.

— Terá essa oportunidade. Vamos combinar hora e local para ir buscá-lo.

 

Depois de uns poucos minutos apenas no táxi, Jae achou que a tempera­tura caíra quando desembarcou na Rua 16. Não queria parecer óbvia de­mais, mas também não queria que Paul passasse sem avistá-la. Por isso, ficou entrando e saindo a todo instante das sombras perto de uma loja de equipamentos eletrônicos, enquanto fazia um esforço para controlar suas emoções.

Claro que estava exausta, em termos físicos e emocionais. Apavorada. Com uma tremenda saudade de Paul e das crianças. Não fazia muito tempo que os vira, mas não me sentiria segura enquanto não estivessem reunidos de novo.

Enquanto transferia o peso do corpo de um pé para outro, ela olhava para o aparelho de televisão ligado na vitrine. Não podia ouvir o que dizia o locutor, mas ficou atenta quando viu as letras onp passarem na base da tela. Esperou que a notícia voltasse, espiando ao redor a todo momento, na expectativa de avistar Paul. As informações na base da tela eram sobre o número de mortos no mundo inteiro, a notícia reapareceu: "Esposa de alta autoridade da onp foi assassinada. Carro oficial foi roubado...".

 

Paul recebeu uma ligação de sua secretária em Chicago.

— Você roubou o carro de seu sogro?

— Já esperava por essa notícia, Felícia. Apenas me apropriei do carro. Afinal, ainda estou na onp.

— Não por muito tempo. Todos nós fomos chamados de volta ao serviço, como pode imaginar.

— Não está ligando do escritório, não é?

— Dê-me algum crédito, Paul. Eu disse que precisava sair para fumar um cigarro.

— Você é um alvo de destaque nesse carro, Paul. Decenti alega que a filha matou a mãe, e que você fugiu em seu carro da onp.

— Margaret Decenti não morreu. Estive com ela...

— Só estou repetindo o que ele contou na onp, Paul. Se você está mesmo em seu carro, é melhor hastear uma bandeira branca.

 

Quando Jae pegou o telefone, para avisar Paul, uma mensagem escrita a aguardava: Peace Park, canto nordeste, depressa, sem ligações. Estaremos a pé.

Eram oito quarteirões para o norte e mais dois para oeste! O fato de Paul e as crianças estarem a pé significava que ele já fora alertado sobre o carro. E a bagagem? Não poderiam levar nada. E se as autoridades procuravam uma família jovem, Paul teria de abandonar quase tudo, e permanecer nas sombras e nas ruas secundárias.

Jae não ousou fazer sinal para um táxi. Quem não saberia das acusações contra ela? Não tinha vontade de dar outro passo, muito menos correr. Mas o que podia fazer? Descanse quando estiver morta, ela disse a si mesma.

 

Paul deixara o carro de Ranold num local isolado, na tênue esperança de que os emissários do movimento cristão que viessem buscá-los poderiam passar por lá para pegar algumas roupas.

Antes de ajeitar os casacos e gorros das crianças, ele arrancara todos os fios sob o capo, para deixar o carro inútil.

— Vamos nos encontrar com mamãe a seis quarteirões daqui — infor­mou ele.

— Quero ficar no carro! — protestou Brie.

— Eu também! — acrescentou Connor.

— Não podemos. E temos de nos apressar, ficar fora de vista.

— Por quê?

Paul não podia tentar dourar a pílula.

— Pessoas más estão atrás de nós. Se fizerem o que eu mandar, estare­mos seguros.

— E depois vai me contar tudo? — perguntou Brie.

— Prometo.

— Estou com medo — murmurou Connor. Paul também estava.

Jae entrou no Peace Park e permaneceu nas sombras, por trás de estátuas e árvores. Avistou uma van, as luzes apagadas, o motor ligado, parada numa esquina. Provavelmente apenas uns poucos minutos passaram, mas pareceram horas antes que ela visse Paul e as crianças entrarem no parque, pelo lado oeste.

As crianças começaram a falar ao mesmo tempo depois que todos se abraçaram, mas Jae mandou que se calassem. Paul fez uma ligação.

— Estamos no local combinado — disse ele. — Já vi. Pisque as luzes de freio duas vezes para confirmar.

As luzes traseiras da van piscaram duas vezes.

— Vamos embora.

Eles entraram na van, trocando o frio da noite pelo calor que havia lá dentro. Para alívio de Jae, o motorista — um homem alto e magro, usando um enorme parca — pôs-se a conversar com Brie e Connor, falando sobre as outras crianças que conheceriam em breve. Isso proporcionou a Jae e Paul a oportunidade de relatar o que acontecera desde que haviam se separado.

— Quer dizer que ela morreu mesmo? Sinto muito, Jae.

— Não pude acreditar quando papai disse que eu podia ir embora. Mas não deveria me surpreender que eleja tenha mudado de idéia. Quais são as nossas chances, Paul?

— Creio que você sabe.

— Neste momento, quase que me sinto aliviada por não precisar mais guardar segredo. Muito bem, viramos o inimigo. Agora, Paul, faça o que tem de fazer.

Paul acenou com a cabeça para Brie e Connor.

— E as crianças?

— Como minha mãe disse, teriam de me matar primeiro.

 

O MOTORISTA SEGUIU A ORIENTAÇÃO DE PAUL, e seguiu até o carro de Ranold.

— Não estou vendo ninguém, — disse ele —, mas a decisão é sua. A últi­ma coisa que queremos neste momento é que alguém nos siga.

— Nossa vida está naquele carro — murmurou Paul. — Temos de correr o risco.

Jae ofereceu-se para ajudar, mas Paul insistiu que ele e o motorista, trabalhando depressa, atrairiam menos atenção. Em poucos segundos, eles transferiram tudo do carro para a traseira da van.

O motorista logo partiu. Paul notou que ele era capaz de monitorar os espelhos retrovisores ao mesmo tempo em que distraía as crianças.

— Quer dizer que estão prontos para uma grande aventura? — inda­gou ele.

Os dois acenaram com a cabeça em concordância. Connor até sorriu. Paul estremeceu. Sussurrou para Jae:

— Algum motivo para que as crianças tenham de saber o que aconteceu com sua mãe?

Ela sacudiu a cabeça.

— No entanto, teremos de contar sobre Berl. Eles merecem isso.

O motorista finalmente entrou num parque industrial que parecia abando­nado. Parou e virou-se para falar com Paul e Jae:

— Há uma viela meio escondida daqui a três quarteirões. Se eu avistar alguém nos seguindo, ou perceber alguma coisa suspeita, não vou parar. Se eu parar, cada um de vocês pega a mão de uma criança e saltam. Devem ir para o lado esquerdo do primeiro prédio tão depressa quanto puderem. Estão

à espera, e avisarei pelo rádio que já chegaram. Batam duas vezes na porta lateral. Como a porta abre para fora, devem recuar em seguida. Dirão uma frase, vocês respondem, e deixarão que entrem.

— Que frase? — perguntou Jae.

— Se eu tiver de dizer, então peguei as pessoas erradas. Agora, um aviso. Esta é apenas uma de mais de uma dúzia de entradas fortemente guardadas para o nosso abrigo subterrâneo. Por acaso, é também uma das mais distan­tes do centro. Terão de andar cerca de meio quilômetro depois de entrar. Não precisam levar suas coisas. Eu as entregarei em outra entrada.

 

Jae olhou para Brie e Connor. Que tipo de infância era aquela? Pelo menos teriam a companhia de outras crianças. Mas nada sabiam de Deus, e de repente estariam cercados por famílias que arriscavam a vida por acreditar em Deus.

O ateísmo nas escolas para crianças daquela idade era mais uma questão de omissão que de negação. Deus simplesmente nunca era mencionado, nunca era reconhecido. Jae não sabia se Brie e Connor sequer tinham um conceito de Deus. Como ela gostaria que iniciassem a educação com a história de Deus enviar seu único Filho para este mundo! Como, porém, se podia esperar que o compreendessem quando era provável que descobris­sem, dentro de um ou dois dias, que seus pais eram seguidores de um Deus que tinha um terrível poder para matar?

 

— Está vendo?

O motorista parou e apontou. Paul acenou com a cabeça.

— Depressa. Não hesitem. Saiam agora. — O homem acrescentou pelo rádio: — menos quinze segundos e contando, câmbio.

Paul pegou a mão de Connor e seguiu direto para uma porta escura, qua­se invisível na parede de alvenaria, com Jae e Brie atrás. Ele notou um sen­sor de movimento no chão e uma pequena câmera por cima. Dificilmente alguém que não fosse de sua profissão teria percebido essas coisas.

Ele bateu na porta, num gesto firme. Uma voz de homem gritou do outro lado:

— Ele ressuscitou.

— É verdade, ele ressuscitou.

Paul recuou, enquanto a porta era aberta. Todos entraram, e só depois o homem acendeu uma lanterna na escuridão.

— Deixem-me olhar para vocês — disse ele. Paul fez as apresentações.

— Jack Pass — disse o homem, virando o facho da lanterna para o próprio rosto.

Paul não sabia o que esperar, mas não era com certeza um homem na casa dos quarenta anos, gorducho e careca. Não havia qualquer semelhança com o falecido irmão mais velho de Jack, sob cujo comando Paul servira, nas Forças Especiais, anos antes. Andrew Pass fora um clichê militar: cabelos rentes, esguio, empertigado.

— É isso o que chamo de serviço de primeira — comentou Paul. — O homem em pessoa.

— Somos todos servos aqui — declarou Jack. — Vamos embora. Temos uma boa caminhada pela frente.

— Não gosto deste lugar — resmungou Connor.

— Garanto que vai gostar — disse Jack, enquanto desciam pelo menos dois andares por uma escada de madeira. — Confie em mim. É como brincar de forte durante o dia inteiro, todos os dias.

 

JAE ESPERAVA QUE A ÁREA HABITADA fosse mais quente do que os túneis que levavam até lá. Não era, porém, a única coisa que lhe provocava cala­frios. Ela e Paul não haviam falado sobre o que encontrariam ali. Ângela Pass Barger, filha do martirizado Andy Pass e sobrinha de Jack, devia estar no abrigo.

Tudo o que Jae sabia sobre a mulher era que era bonita, jovem viúva, com dois filhos mais velhos do que suas crianças. Sabia também que Paul parecia atraído por ela quando trabalharam juntos num caso em Las Vegas. Jae até tentara encontrá-la ali quando viajara para Los Angeles, no ano anterior, mas descobrira que Ângela voltara para Washington.

 

Quando finalmente chegaram ao final do labirinto de túneis e saíram para o calor do abrigo subterrâneo, Paul se impressionou com a eficiência que preva­lecia ali. Jack Pass informara que mais de mil pessoas lá viviam.

Para Paul, parecia tão frio e anti-séptico como um escritório cheio de cubículos. Não podia descobrir seu uso original, até descobrir que fora apenas as fundações de vários prédios do parque industrial. Jack explicou que antes não passava de um espaço vazio, com paredes de concreto, cheio de canos de água e gás, tubos de energia elétrica, fios de telefone e computador.

— Quando ficou óbvio que o parque industrial estava morrendo, este lugar tornou-se mais uma área de despejo de lixo do que um depósito de material a ser usado. Quando descobrimos e assumimos o controle do lugar, passamos meio ano só fazendo uma arrumação.

Não tinha o mesmo fascínio dos quilômetros das minas de sal por baixo de Michigan e Ohio, onde se abrigava o movimento cristão clandestino na Terra Central. E também não havia o charme escuro dos cômodos iluminados por velas, como se fossem catacumbas, que alojavam a resistência italiana, em Roma.

Aquilo era a mais alta tecnologia, concluiu Paul. Cada cômodo e cubí­culo parecia ter uma finalidade. E os cérebros por trás daquela facção do movimento clandestino nos seua pareciam ter tirado o máximo de proveito dos recursos deixados ali. Além de centenas de quartos em que as famílias residiam, havia cômodos maiores usados como centros de comunicação, com discos, computadores e telefones. Havia ainda cozinhas comunitárias e refeitórios, assim como enormes instalações de lazer. Paul também encontrou várias salas de aulas, para todas as idades.

E, de repente, Angela apareceu. Paul notou o cansaço em seus olhos. Não deveria surpreendê-lo. Uma pessoa tão dedicada que se entregava por inteiro à causa, independente do custo, acabaria exibindo o esforço e a tensão. E só uma pessoa mal-intencionada sentiria qualquer alegria ou encontraria satis­fação na "vitória" que Deus consumara, ainda mais quando envolvia uma tragédia tão terrível.

Era evidente que Angela forçava o sorriso, que não envolvia os olhos. Paul não percebeu nada em sua expressão, a não ser exaustão. Ângela pegou a mão que ele estendeu entre as suas.

— É um prazer tornar a vê-lo. E esta deve ser Jae.

 

Jae ficou surpresa quando Angela foi além da mão estendida para abraçá-la.

— Tenho ouvido muitas coisas a seu respeito — disse Angela. — Todas boas, é claro... e todas de Paul. Seja bem-vinda.

— Obrigada.

Jae teve vontade de dizer que também ouvira muito sobre Ângela, mas não queria entrar no fato de que já a vira em fotos de vigilância da onp. O que mais a impressionou, porém, foi a maneira como Ângela se ajoelhou, fitou as crianças nos olhos, e chamou-as pelos nomes.

— Aposto que você não pode adivinhar qual é o meu trabalho aqui, Brie.

— Cozinhar?

— Não! — exclamou Angela, rindo.

— Brincar de palhaço? — sugeriu Connor. Ela caiu na gargalhada.

— Vocês dois são muito engraçados. Aposto que vamos nos divertir mui­to. Sou a encarregada de tomar conta de crianças de sua idade. E precisava de mais uma menina e mais um menino. Levantem a mão se quiserem entrar.

Brie e Connor levantaram a mão, radiantes. Jae não pode deixar de ad­mirar a maneira como Ângela aparentemente percebera o medo no rosto das crianças, desviara a atenção da realidade de que haviam sido arrancadas, e fi­zera com que se sentissem não apenas bem-vindas, mas também necessárias.

— Se seu pai e sua mãe permitirem, vamos ter apresentação de um filme dentro de dez minutos.

— Onde? — perguntou Brie. Angela apontou para um corredor.

— A cerca de cinco minutos a pé daqui, naquela direção. Não se preocu­pem que levarei vocês. Serão meus convidados especiais. E os apresentarei aos outros. Combinado?

— Qual é o filme?

— O menino que deu seu almoço para Jesus.

— Para quem?

— Tenho certeza de que vocês vão adorar. Posso levá-los... mamãe... papai?

Jae olhou para Paul, que acenou com a cabeça em concordância. Ela gesticulou com a mão em autorização. Quando Angela inclinou-se em sua direção, Jae explicou:

— Sou uma fiel recente. E as crianças não tiveram nenhuma exposição.

— É bom saber disso — murmurou Ângela. — Irei devagar e apenas res­ponderei às perguntas. E pode deixar que a manterei informada de tudo. Este é o filme perfeito para uma introdução a Jesus. Quando acabar, levarei as crianças para seus aposentos. Até lá, suas coisas já devem ter sido entregues e estarão assentados.

Apesar da relutância, Jae já amava Ângela. Como poderia não amar? Estava preparada para ser defensiva, procurar alguma coisa para invejar, de­safiar Paul a demonstrar alguma intimidade, por menor que fosse.

Enquanto as crianças se afastavam com Ângela, ansiosas, Jack apresen­tou Jae a outra mulher, que a levaria a seus aposentos e ajudaria a pegar a bagagem.

— Preciso tomar Paul emprestado por alguns momentos, se não se inco­moda — disse Jack.

Apesar da recepção cordial e da segurança que sentia, Jae hesitou. Não queria se separar outra vez de Jack e das crianças tão depressa. Aqueles estranhos eram maravilhosos, mas ela estava ansiosa em verificar onde sua família ficaria. Além disso, precisava deitar um pouco. Mesmo assim, lançou um olhar desesperado para Paul.

— Não vou demorar — disse ele. — Querem que eu fale com um prisioneiro que pode ser um agente infiltrado.

Não havia como impedi-lo de fazer isso. Mas Jae não pôde deixar de es­pecular: Se havia um traidor ali, não era provável que houvesse outros? Teria de desconfiar de todo mundo ali, apesar dos sorrisos e da cordialidade?

 

— Achamos que seria melhor instalar a prisão improvisada tão longe quanto possível da população em geral.

Jack indicou para Paul o banco de passageiro de um carrinho de golfe. Percorreram várias centenas de metros, passando por meia dúzia de pontos de controle, onde guardas improvisados acenavam com a cabeça para Jack passar, ao mesmo tempo em que lançavam olhares desconfiados para Paul.

Jack finalmente parou diante de uma tela reforçada, a janela substituída por madeira compensada e tela metálica. Lá dentro, um homem suado, de cabelos castanhos curtos, sentava-se a uma mesa pequena. Comia uma re­feição substancial com uma das mãos. A outra estava algemada a um cano na parede.

— É o nosso único prisioneiro — informou Jack. — Tomamos a decisão de lhe servir a mesma comida que oferecemos a todos os outros. Não o tra­tamos mal, não o torturamos. Apenas fizemos perguntas. Ele jura que é um dos nossos, e por muito tempo pensamos que era mesmo. Dizia as coisas certas, ajudava no que podia. Estava aqui com o único filho. No momento em que a praga foi consumada, o filho caiu morto. Este é Ernie Marmet.

O homem levantou os olhos do prato, mas continuou a comer. Paul sa­bia que a impassibilidade exigia um tremendo esforço, porque o homem não podia deixar de reconhecê-lo.

— Esse homem não é Ernie Marmet — disse ele. — Seu nome é Roscoe Wipers, da Terra do Golfo. Para ser mais específico, do escritório da onp em Baton Rouge, Louisiana. Como tem passado, Roscoe?

— Já estive melhor, Doutor.

— Posso apostar. Quer dizer que já denunciou este esconderijo à onp?

— Eu? — Wipers falava com a boca cheia. — Claro que não. Sou como você. Um convertido. Jogo nos dois lados contra o meio.

Apesar de furioso por dentro, Paul sorriu:

— Boa tentativa. A diferença entre nós é que todos no movimento clan­destino me conhecem. Não escondo minha identidade do lado a que devo minha lealdade. Há quanto tempo está aqui?

— Cerca de quatro meses.

— Seis meses e três semanas — informou Jack.

Paul balançou a cabeça. Parte dele queria atacar o indefeso Wipers. Um golpe certeiro e o homem morreria em segundos. Percebeu que o prisioneiro também sabia disso, porque se deslocava depressa de um lado para outro, a respiração acelerada, enquanto tentava manter o controle pelo ato de comer devagar.

Era irônico, pensou Paul, ter vontade de matar um homem por realizar com eficiência um trabalho que ele próprio fizera durante anos.

— É uma pena, Jack. A onp deve ter conhecimento de seu esconderijo a esta altura. — Para Roscoe, Paul acrescentou: — A que horas você faz sua chamada diária?

Wipers limitou-se a fitá-lo, sem dizer nada.

— Vamos, Roscoe, comece a falar imediatamente — disse Paul, os den­tes semicerrados. — Você é um prisioneiro de guerra. Não somos violen­tos, mas você expôs todos aqui a um perigo mortal. Em algum momento, vão me perguntar se faz sentido deixá-lo viver. Sabe o que vou responder, Roscoe?

— Por favor, diga-me.

Wipers empurrou a bandeja para o lado, e tomou um gole do suco de fruta numa caixa.

— Você e eu sabemos quais são os procedimentos adotados caso não faça contato na hora marcada. Se estiver disposto a fazer o contato e despis­tar a onp, removendo a pressão daqui, posso decidir que você vale mais vivo do que morto.

Wipers cocou a testa.

— É tudo trabalho para mim, Stepola. Estou sem opções. Não posso fazer contato, a menos que você queira que eu faça. Portanto, estou num impasse. E tenho de dançar conforme a música.

— Quando esperam ter notícias suas?

— Às duas horas da madrugada em ponto, todos os dias.

— E quem é seu contato?

— Você a conhece.

— Balaam... Bia Balaam?

— A própria.

— Esta madrugada, às duas horas, se você concordar, fará contato com ela, e informará que este lugar deixou de ser usado, que todo mundo foi embora. Está a caminho de um novo esconderijo, que ainda não foi anunciado.

— Está bem.

 

JAE ESTAVA SOZINHA NO APARTAMENTO de dois quartos, com um banheiro, no final do corredor. Quando a bagagem foi entregue, ela se ocupou em arrumar, tentando transformar os aposentos num lar improvisado. O lugar não era espaçoso, muito menos opulento, mas havia privacidade e lugar para todos deitarem e dormirem. Depois que acabou, ela seguiu as instruções, deixando as malas e caixas vazias no corredor. Dali a pouco seriam levadas para o depósito.

Jae deitou de costas numa das camas. Quando sentiu que resvalava para o sono, orou pelos filhos e o marido. Orou até pelo pai e Aryana. Virou de lado e chorou pela mãe, a dor logo se transformando em soluços profundos. Deitou de barriga para baixo, e não demorou a dormir.

 

— Voltarei para vigiá-lo durante o contato, Roscoe.

Talvez, até lá, pensou Paul, pudesse dissuadir a si mesmo de fazer o que queria fazer com o homem. Wipers acenou com a cabeça, resignado, e levan­tou a mão livre numa saudação.

Lá fora, no correr, Jack Pass sussurrou:

— Nunca fui militar ou policial, Paul. Minha área sempre foi a educação. Por isso, corrija-me se estiver enganado... mas achei que foi fácil demais.

— Tem toda razão. Roscoe só precisa ligar na hora errada, dizer a palavra de código, fazer algum comentário enigmático, e a onp saberá que ele foi cap­turado. E seus agentes cairão em cima de vocês no momento seguinte.

— O que podemos fazer?

— Estou presumindo que você dispõe de telefones seguros.

— Claro. Temos de tudo. Espere só para ver o que fazemos com carros e as roupas de pessoas mortas.

— Com o quê?

Jack olhou para o relógio.

— Conto tudo mais tarde. Você precisa de um telefone?

— Poderia ligar através do meu sistema pessoal, mas detestaria compro­meter a pessoa que é meu contato. Acho que meu sistema é seguro, mas vou ligar para a onp em Chicago, e eles têm os equipamentos mais modernos de gravação, rastreamento e localização das chamadas.

Jack levou-o para um enorme centro de comunicações, onde Paul foi conduzido para uma cabine revestida, sem qualquer interferência dos sons ao redor. Jack apontou para vários celulares em cima de uma prateleira.

— Qualquer uma dessas unidades tem uma tecnologia centrífuga, de có­digo aleatório, que não poderia ser traçado nem em um milhão de anos, com um milhão de combinações digitais por segundo.

Paul balançou a cabeça.

— É suficiente para mim.

Aquelas pessoas conseguiam de alguma forma acompanhar os avanços tecnológicos da onp. O que Jack queria dizer era que a unidade telefônica produzia um código digital em aceleração permanente; em essência, girava os números num círculo, como se fosse aquele jogo em que pessoas de skate correm de um lado para outro, em movimentos irregulares e imprevisíveis. Assim, duplicar o código era virtualmente invisível.

Paul ligou para o escritório da onp em Chicago. Disfarçou a voz, e pediu para falar com Felícia. Imaginou-a, assustada, cansada, provavelmente sen­tada a sua mesa.

— Aqui é Felícia.

— Devo ter ligado para o número errado — disse ele, com sua própria voz.

E ele desligou, antes que Felícia tivesse tempo de dizer "Paul". Menos de dois minutos depois ela ligou, através de seu telefone pessoal, implantado no molar.

— Uma coisa que a trará para o meu lado — disse Paul.

— É tarde demais para falar em código, chefe.

— Havia uma razão para que eu a deixasse por fora durante tanto tem­po, Felícia.

— Não podia confiar em mim.

— Não é isso. Eu não queria presumir que você mudaria de lado, como eu fiz. Não podia comprometê-la.

Ela suspirou.

— Como eu disse antes, Doutor, aparentemente não se importava o bas­tante comigo para tentar me poupar do que aconteceu.

Paul não sabia o que dizer. Claro que acreditara que a espada da morte se abateria sobre os primogênitos, e que muitos de seus amigos sofreriam.

— O que você diria ou faria se eu a avisasse, Felícia?

— Não sei. Mas tenho certeza de que não o denunciaria. E quem sabe se não poderia mudar de lado? É muito difícil argumentar com a morte nessa escala, Paul.

— Sinto muito. Sempre me importei com você e sua família, e sabe dis­so. Não sabia o que fazer, e agora sei que não fazer nada não era a coisa certa.

— Está bem. Ainda nos amamos, apesar de tudo. O que você precisa?

— É uma coisa que a fará trocar de lado.

— Você já deixou isso bem claro. Passei muitos anos aqui, Paul. E tam­bém passei muitos anos deixando que o governo me convencesse de que Deus não existe. Se não há Deus, quem matou tantos homens? Não vou dizer que estou pronta para me tornar uma devota. Finalmente descubro que Deus é real, e me pergunto que tipo de pessoa ele é. Mas também não quero ficar contra ele.

— Como assim?

— Estou agora envolvida por mim mesma. Se ajudá-lo pode me levar a marcar alguns pontos perante Deus, conte comigo.

— Não é assim que funciona, Felícia.

— Algum dia deixarei que você me explique tudo. Neste momento, sei apenas que suspeitaram de você por aqui durante vários meses. Não sei di­reito o que pensar. Imaginei que você poderia me contar se fosse um agente duplo. No entanto, por que diria? Quanto menos pessoas soubessem, me­lhor, não é mesmo? Bob sabia?

— Claro que não. Ninguém na onp sabia.

— Isso faz-me sentir melhor. Sei agora, e por assustador que isso seja, pre­firo estar ao seu lado do que na posição em que me encontrava antes. Entende o que estou querendo dizer?

— Entendo.

— Portando, você quer uma coisa: que eu me torne seu contato aqui. Se for descoberta, estarei no mesmo barco que você. Entretanto, se não fizer isso, talvez me meta numa encrenca com Deus. E, neste momento, tenho mais medo de Deus do que da onp.

— Não tenho certeza se esse é o melhor motivo, Felícia, mas preciso de sua ajuda e tenho de confiar em você.

— Sempre poderia confiar em mim, Paul..., mas como saberia? Basta me dizer o que precisa. Irei para casa daqui a pouco, não importa o que aconteça. Estou tão cansada que não consigo ver direito.

— Está bem. Você quer anotar, ou prefere confiar na memória?

— Pode falar, Paul.

— Há um arquivo secreto que Bob Koontz e eu partilhávamos. É invisível, até que você o projeta no monitor com o seguinte código. O código muda todos os dias, com base na data e na hora. O cálculo é o seguinte. — Paul explicou o que ela deveria fazer. — Depois que entrar no arquivo, encontrará uma lista de agentes infiltrados da onp, codinomes, senhas, contatos, horários de comunicação. Preciso de tudo o que puder encontrar sobre Roscoe Wipers, do escritório na Terra do Golfo.

 

JAE ACORDOU COM UMA BATIDA DE LEVE na porta. Levantou-se e foi abrir a porta. Era Angela Pass Berger, com Brie e Connor. As crianças estavam cansadas, mas também excitadas. Falaram sobre o filme e o milagre de Jesus alimentando milhares de pessoas com o almoço de um menino.

— Nunca tinha ouvido falar de Jesus antes — comentou Brie.

Jae tentou se lembrar da idade que tinha ao ouvir falar em Deus pela pri­meira vez. Devia estar ainda no início do curso secundário. Ela mandou as crianças se prepararem para dormir, e sentou com Angela.

— Obrigada por ficar com as crianças.

— Elas são maravilhosas. Como você está?

Ângela falou com tanta compaixão que Jae se emocionou. E quando Angela pôs a mão em seu braço, Jae se desmanchou. Descobriu-se a contar a história de sua vida, como fora criada, o casamento, a mudança que per­cebera em Paul, como ela própria chegara à fé, a perda do irmão, e depois da mãe.

— Orei com ela pouco antes de papai chegar em casa. Desculpe por des­carregar tudo isso em você.

— Não foi nada. Mas você teve de suportar uma carga maior do que o normal.

— Sinto-me culpada pelas crianças. Começamos tarde demais? Nunca lhes dizemos, é verdade, que Deus era mau, ou que não passava de um mito. Mas também nunca mencionamos Deus ou Jesus.

— E é claro que as escolas também nunca mencionaram — comentou Ângela.

Jae acenou com a cabeça em confirmação.

— Para dizer a verdade, Jae, as crianças estão numa idade perfeita. Seria

ótimo se pudessem começar mais cedo, é claro, mas aos oito e seis anos elas não têm astúcia, não têm ceticismo. Vamos avançar devagar, mas não vai le­var muito tempo para que compreendam que todas as outras crianças amam Jesus. E imagine todas as grandes histórias que as duas ainda vão ouvir.

— Mal posso esperar para ouvir também. Fico incomodada por saber tão pouco sobre a Bíblia e as histórias de Jesus.

— Estou precisando de uma assistente. Você pode trabalhar e ouvir as histórias ao mesmo tempo.

 

Paul sentou à mesa, na frente de Roscoe Wipers. Jack Pass ficou de pé, atrás de Paul.

— Disse-nos que seu contato é Bia Balaam, e que liga para ela todos os dias, às duas horas da madrugada.

— Isso mesmo — confirmou Roscoe.

— Qual é o seu código?

— Uma vaia.

— E sua senha?

— Pegue mo.

— Hum... E se alguma coisa sair errada, qual é sua frase de alerta?

— Devo dizer: "Está tudo bem por aqui, muito bem". Paul pôs os cotovelos nos joelhos e levou as mãos ao rosto.

— O que vou fazer com você, Roscoe? Não pode ser tão estúpido a ponto de não compreender que sua vida está em minhas mãos. Acha que essas pes­soas se incomodariam se eu torcesse seu pescoço agora?

— Confie em mim. Por que eu mentiria? Não tenho nada a ganhar, e tudo a perder.

Paul encostou o queixo nos punhos. Virou-se para fitar Jack.

— Não sei... Quer minha opinião profissional?

— Claro.

— Deve deixar que eu o alivie de seu sofrimento.

— A decisão é sua.

Roscoe inclinou a cabeça para o lado.

— Por que a decisão é dele? Esse homem não é novo aqui?

— Estamos em guerra, Roscoe. Somos pessoas de fé, pessoas redimidas, pessoas que oferecem uma segunda oportunidade. Você, porém, é um inimi­go de Deus. Se acreditarmos em suas mentiras, podemos perder toda a nossa população. Está disposto a ser responsável por isso, mas ainda assim acha que teremos escrúpulos em eliminá-lo?

— Não estou entendendo.

— Claro que está. A única coisa que parece verdadeira, em tudo o que disse até agora, é que Bia Balaam é seu contato. Mas não fala diretamente com ela, porque Bia é do tipo que dorme cedo e acorda cedo.

— Está bem, deixo a mensagem na secretária eletrônica. E daí?

— Pensa que sou otário, Roscoe?

— Como? Claro que não.

— Você me subestima. Não acha que ocupo posição bastante alta na onp para ter acesso a informações a seu respeito?

— Como assim?

— Em primeiro lugar, sua ligação deve ser feita às quatro horas da madru­gada, não às duas.

— É verdade. Mas foi apenas um lapso da minha parte.

— Claro, claro... apenas um pequeno equívoco. Mas esse errinho de duas horas poderia ter custado a vida de todos aqui, não é mesmo? Sua palavra de código é bumerangue, a senha é Cuba, e a frase de alerta é a mesma coisa de sempre.

— Não se pode culpar um homem por tentar. Paul esfregou os olhos.

— Não tenho tempo nem energia para isso. Você tem, Jack?

— Não creio, Paul. Se o matamos, no entanto, e ele não se comunica às quatro horas, o que acontece? Se já estamos comprometidos, temos de sair daqui.

 

ALGUMA COISA SINGULAR ESTAVA acontecendo com as crianças, con­clui Jae. Angela se despedira, e Jae esperava que no instante seguinte as crianças começassem a assediá-la para saber o que estava acontecendo. Jae prometera contar tudo. Devia-lhe isso. Podia se lembrar que naquela idade sentia-se sempre à margem, sem nunca saber direito o que acontecia entre os adultos.

Talvez fosse fadiga, a exasperação, o novo ambiente, o filme; ela não sabia o quê. No entanto, as crianças saíram do banheiro de pijama, com a escova de dentes na mão, tão exaustas que davam a impressão que poderiam arriar e dormir no mesmo instante.

Jae ajeitou-as nas camas de solteiro. Não demonstraram desejo de con­versar.

— Cansados? — perguntou ela.

Brie acenou com a cabeça, e virou-se para o lado. Connor esticou-se e bocejou.

— Podem adivinhar o que vou fazer antes de dormir? — perguntou Jae.

— Comer — respondeu Connor.

— Não. Está com fome?

Ele meneou a cabeça negativamente.

— Só de pão e peixe. Pareciam muito gostosos no filme.

— Vou orar — disse Jae.

As crianças fitaram-na com expressões aturdidas.

— Como Jesus orava? — indagou Brie. — Ele abençoou a comida antes de multiplicar para alimentar todas aquelas pessoas. Ângela disse que ele es­tava falando com seu pai.

— É para quem vou orar também, o Pai de Jesus. Ele é Deus. Connor ergueu o corpo, apoiado no cotovelo.

— Onde Deus mora?

— No céu.

— Onde fica isso?

— Não sabemos. Algum lugar muito longe.

As crianças ficaram em silêncio por um momento, até que Brie pergun­tou:

— É um conto de fadas? Uma história inventada? Jae meneou a cabeça negativamente.

— É verdadeira. Deus vive no céu, e Jesus é seu filho. Deus o mandou ao mundo para nos amar.

— Jesus nos ama? — perguntou Connor. — Como é possível, se ele nem nos conhece?

— Conhece, sim, porque ele é o Filho de Deus.

— E ele ainda está vivo? — perguntou Brie. — Essa história parece muito antiga.

— Tem mais de dois mil anos — responde Jae. — Mas querem saber de uma coisa? Jesus ainda está vivo. Viverá para sempre. E nós também podemos.

— Podemos? — murmurou Jae, os olhos quase fechando.

Jae sabia que as crianças pegariam no sono no instante em que parasse de falar. Foi o que ela fez. E Brie e Connor adormeceram.

Paul encontrou Jae cochilando quando voltou. Tentou não acordá-la, en­quanto tirava a camisa, sapatos, calça, e meias, antes de deitar de costas.

— Como foi a conversa com o prisioneiro? — murmurou Jae. Ele virou-se, para vê-la com os olhos fechados.

— Durma.

— Quero saber.

Paul contou tudo, e informou que teria de deixá-la de novo, pouco antes de quatro horas da madrugada, para acompanhar o telefonema do prisioneiro para a onp.

— Sinto muito — murmurou Jae.

— Eu também. Estou exausto.

Ela contou que orara com a mãe antes do pai chegar em casa.

— Quer dizer que ela também era uma fiel?

— Acho que era, Paul. E creio que as crianças também serão em breve, embora eu me preocupe com isso.

— Por quê?

Jae disse que as crianças haviam esquecido todas as perguntas sobre os acontecimentos, e não cobraram a promessa de contar tudo.

— É bastante estranho.

— As crianças estão enfrentando muitas coisas, Paul. Até demais. E me sinto culpada. Como se tudo fosse por minha causa. Como se devesse ser capaz de resguardá-las de tudo isso.

— Ambos sabemos que a culpa é minha, Jae. Claro que eu não faria de oura maneira e não posso pensar em alternativas, mas foi minha opção que acarretou o risco para toda a família.

Ela não respondeu. Paul sentiu-se grato por isso. Os dois precisavam dormir.

Quando faltavam dez minutos para quatro horas da madrugada, o alarme embutido no dente de Paul tocou, emitindo um som que só ele podia ouvir. Paul sentou na cama, atordoado, o corpo dolorido, como há muito tempo não se sentia. Levantou-se e vestiu-se. Jae e as crianças permaneceram imó­veis, com uma respiração profunda.

Paul pegou um aparelho com fios, fones, e um tubo de sucção em uma das malas. Foi se encontrar com Jack Pass, que o esperava no final do corredor, no carrinho de golfe.

— Como pode parecer tão desperto e alerta? — perguntou Paul.

— Tenho hábitos noturnos. De qualquer forma, mal posso distinguir o dia da noite aqui embaixo. E tenho uma idéia.

— Ahn...

— Já sei, já sei, é a mesma coisa que você me dar idéias sobre educação. Não sei nada de espionagem, mas...

— Fale logo, Jack. Não sou dono da verdade, e estou aberto a qualquer sugestão. Acabarei enlouquecendo se passar acuado aqui embaixo por muito tempo. Mas estou num impasse, a menos que alguém apareça com um plano. Devo ser o fugitivo mais reconhecível e vulnerável nos seua.

Jack passou pelo posto de controle, e finalmente pararam na frente da sala em que Roscoe Wipers estava detido.

— De onde será que veio esse nome? — murmurou Jack. — Parece o nome de uma loja.

Paul fitou-o. Jack, com toda certeza, não esperava uma resposta. E de onde viera também um nome como Jack Pass?

— Vou dizer qual é minha idéia, Paul. Esta arma... — Ele mostrou um Magnum 357, uma das armas mais antigas, mais sinistras, e mais pesadas que Paul já vira. — ... dispara balas dundum de alta velocidade, fazendo um barulho capaz de despertar os mortos.

— Não está planejando matar Wipers, não é?

— Não, não estou. Mas devo lhe perguntar a mesma coisa, Paul. Pude perceber em seus olhos antes uma vontade de liquidá-lo.

— Digamos que é melhor você ficar com a arma. Entretanto, o que preten­de fazer, se não tenciona matá-lo? Fingir?

— Exatamente. Deixamos que ele faça a ligação, esperamos que diga as coisas certas, avisando à secretária eletrônica da mulher que saímos de Washington. Interrompemos a ligação quando ele estiver informando para onde fomos, dizemos que está perdido, disparamos a arma, ele larga o telefo­ne, e fim da ameaça.

Paul pensou por um momento.

— Gosto da idéia. A dúvida é se avisamos Roscoe de que não vamos matá-lo.

— É melhor ele não saber de nada. Assim, não tentará nos enganar.

— Pretende mesmo disparar a arma, independente do que possa aconte­cer, e talvez mais de uma vez?

— Claro.

— É melhor avisar seu pessoal, para que não venham correndo com armas na mão.

— Tem toda razão. E aqui está o telefone para Roscoe.

Um minuto depois, Paul e Jack pararam diante da porta da sala escura.

— Precisamos deixá-lo na defensiva desde o inicio — disse Paul. — Destranque a porta, e abra apenas um dedo.

Jack abaixou-se junto da porta. Depois que a destrancou e abriu, apenas um mínimo, fez sinal para Jack, que acenou para que ele saísse da frente.

— Siga-me com a arma na mão.

Paul deu um passo para trás, e depois meteu o pé na porta, que foi arre­messada contra a parede, com um tremendo barulho. Ele entrou, acendendo a luz. Roscoe Wipers esticou-se, na mesa, meio sem jeito. Vestia apenas ca­miseta e cueca, com um cobertor militar em torno do corpo. Ficou furioso e praguejou. Esticou os braços, soltando um grito de dor quando a algema no pulso alcançou o limite.

— Por que tinham de fazer isso? — resmungou Roscoe.

— Está na hora de sua ligação — anunciou Paul. — Vamos ver se consigo persuadir meu amigo aqui a tirar as algemas.

Roscoe arregalou os olhos ao ver a arma.

— Eu não disse que ia cooperar?

— Já mentiu antes, dando uma palavra de código falsa, e todo o resto. Por que deveríamos confiar em você?

— Para começar, por isso — murmurou Roscoe, apontando para o Magnum.

Paul ligou seu equipamento de escuta no telefone que Roscoe. Ajeitou os fones nos ouvidos.

— Basta um erro, intencional ou não, e tudo que tenho de fazer é acenar com a cabeça para o nosso Wyatt Earp.

Roscoe suspirou.

— Não quero morrer, Stepola. Por isso, farei tudo como você quer.

Jack sentou na frente dele, a um metro e meio de distância, com a arma na mão. Como os fios no equipamento de escuta só tinham um metro de extensão, Paul sentou mais perto. Disse a Roscoe o que queria exatamente que ele falasse.

— Se disser algo parecido com "a mesma coisa de sempre", pode se con­siderar um homem morto.

Roscoe apertou os números. Parecia tão surpreso quanto Paul no momen­to em que a própria Bia atendeu.

— Balaam falando.

— Palavra de código bumerangue, senha Cuba — disse Roscoe.

— Reconheço sua voz, Wipers. Tudo bem?

— Sabe como é, a mesma canção, versos diferentes.

Ao ouvir a palavra mesma, Jack levantou-se. Engatilhou a arma, e encos­tou a ponta do cano na têmpora de Roscoe, com tanta firmeza que o homem se encolheu e tentou se esquivar.

— Se não se importa que eu pergunte, o que faz acordada a esta hora? — perguntou Roscoe.

— Não consigo dormir. Perdi meu filho, como deve saber.

— Sinto muito.

— Obrigada. Sei que não sou a única pessoa nessa situação, mas... Você perdeu alguém?

— Perdi, madame. Alguns parentes. Não tenho filhos.

— Aquele jovem que infiltramos com você... o que aconteceu com ele?

— Também morreu. Às seis horas em ponto. Uma longa pausa.

— Mas, neste caso... foi desmascarado, não é?

Paul estreitou os olhos para Roscoe, como se quisesse lembrá-lo de que sua vida dependia daquela resposta.

— Devo ser muito bom, porque consegui convencê-los de que se tratou de apenas uma coincidência. Pelo menos até agora. No entanto, farão uma autópsia.

— Isso não é nada bom, agente Wipers. O denominador comum dessas mortes é o fato de não terem uma causa patológica. A causa da morte vem sendo registrada como cessação irreversível das funções vitais. Nada de infarto, derrame ou aneurisma. As pessoas simplesmente morrem. O que pretende fazer quando eles constatarem isso?

— Não sei. Acho que espero que seus homens me tirem daqui antes.

— O que quis dizer com "verso diferente", agente Wipers?

— Como?

— Você disse "A mesma canção..."

— Ah, sim. Estão falando muito por aqui de um êxodo em massa. Todo mundo começou a arrumar as malas. Devemos partir dentro de uma hora.

— Para onde?

—Os líderes são espertos demais para revelarem essa informação. Não disseram nem mesmo aos mais antigos para onde vamos. Ouvi rumores de que o novo esconderijo fica a duas ou três horas para o norte. Mas isso é tudo o que sei.

— Já determinou em que lugar exatamente você se encontra? Não estou dizendo que temos forças suficientes para chegar aí antes da partida, mas precisamos ter uma idéia.

— Já disse que eles trazem até mesmo as pessoas que conhecem há mui­to tempo, em quem confiam plenamente, por um caminho indireto, com os olhos vendados e capuzes.

— Suas informações até agora têm sido boas, os nomes valiosos. Assim que souber onde é o novo esconderijo, quero que volte a fazer contato comigo.

— Farei isso... Não! Não!

— O que foi?

— A mesma coisa de sempre!

— Qual é o problema, agente?

— Fui descoberto!

— Como sabe? Largue o telefone!

Paul tirou seu equipamento de escuta, e arrancou o telefone da mão de Roscoe com um golpe firme. O aparelho caiu na mesa, e depois no chão. Paul torceu para que ainda estivesse ligado com Bia Balaam.

— Marmet! — berrou Jack.

— O que é?

— Para quem você trabalha?

— Para ninguém! O que está fazendo aqui?

A arma disparou duas vezes, e Paul abaixou-se para desligar

 

JAE ABRIU OS OLHOS POR VOLTA DE NOVE horas da manhã de quarta-feira, 23 de janeiro. Entretanto, não sentiu a menor vontade de se levantar. Nem sequer ouvira Paul voltar, e as crianças continuavam mergulhadas num sono profundo. Sentia fome, mas estava convencida de que o corpo precisava mais de descanso do que de comida.

Através de vendas nas persianas nas janelas, dando para o corredor, ela via vultos passando nas duas direções. O esconderijo subterrâneo do movi­mento clandestino cristão em Washington d.c. fervilhava de atividade, mas todos haviam lhe assegurado que ninguém incomodaria os Stepolas até que saíssem de seus aposentos aconchegantes.

Então era aquilo que significava ser uma fiel. A dor pelo irmão. O sofri­mento pela mãe. O horror pela tragédia indescritível que abalara o mundo. Apesar de tudo isso, porém, ela experimentava um enorme sentimento de paz. Não estava feliz. Não podia dizer que era isso, depois de tudo o que acontecera. Havia, porém, um contentamento básico por saber que Deus tinha o comando de tudo.

E ela não precisava compreendê-lo. Não lhe cabia julgar suas ações. A praga parecia excessiva? Claro que sim, para sua mente humana. No en­tanto, desde que efetuara a transição e entregara seu destino pela eternida­de nas mãos do Deus em que só passara a acreditar recentemente, sentia que sua inteligência era insignificante. Pelos discos que ouvira, sabia que a Bíblia ressaltava isso em vários pontos, dizendo por exemplo que a sabe­doria de Deus não era a sabedoria do homem, e que os caminhos de Deus estavam além da compreensão.

Jae não sabia até quando sua família frágil e fugitiva duraria neste mun­do, mas parte dela mal podia esperar pelo momento de encontrar Deus e Jesus no céu, para saber as explicações para os incontáveis mistérios. Seu ob­jetivo, na próxima vez em que ajustasse os fones para inundar sua alma com as verdades tranqüilizadoras do Novo Testamento, era encontrar o verso que dizia que Deus proporciona paz que ultrapassa toda compreensão. Palavras mais verdadeiras nunca haviam sido enunciadas.

Duas horas depois, Jae já se levantara, levara as crianças para tomar o café-da-manhã, e se encaminhava para seu primeiro dia como assistente de Angela. Ao sair dos aposentos, ela encontrou um bilhete de Jack Pass para Paul, enfiado por baixo da porta: Avise-me assim que estiver pronto para o café-da-manhã. Roscoe está ansioso para conversar.

 

Paul há muito que era grato por sua capacidade de se recuperar da exaustão prolongada com uma única noite de bom sono, desde que conseguisse dor­mir por horas suficientes. Sentia-se revigorado ao tomar um banho de chu­veiro e vestir-se. Já começava a sentir que o abrigo subterrâneo era restritivo, até mesmo claustrofóbico, mas também sentia-se melhor por saber que Jae e as crianças estavam protegidas ali.

Ficou mais animado ao ver dezenas de adultos correndo pelos corredores intermináveis, enquanto se dir sala de Jack Pass. Então era assim que as pes­soas permaneciam em forma e mantinham a sanidade lá embaixo.

— Espero que não se importe de comer ovos mexidos com presunto. Jack pegou uma embalagem de isopor na geladeira, tirou a tampa de pa­pel laminado, e pôs no microondas, enquanto Paul sentava.

— Eu esperava por um típico bufê americano.

Noventa segundos mais tarde, eles estavam comendo e conversando, sen­tados à mesa atravancada de Jack.

— O que houve com Roscoe? — perguntou Paul.

— Você já vai verificar. Ele acordou quase chorando esta manhã. Não dormiu bem.

— Não posso dizer a mesma coisa — comentou Paul. — Dormi como uma pedra tumular.

— Uma boa imagem. Mas entendo o que está querendo dizer. Também dormi muito bem. Devo dizer que me assustou quando identificou Marmet como agente da onp. Pensei que estávamos todos perdidos.

— Podia acontecer. Mas acredito que Deus escolhe o momento.

— Eu também deveria acreditar, a esta altura.

Quando acabaram de comer, Jack perguntou se Paul queria visitar Roscoe logo de uma vez.

— Agora não. Vamos deixá-lo se angustiar mais um pouco.

— Ele está bastante agitado.

— Isso faz com que você se sinta culpado, Jack? Acha que devemos deixá-lo tranqüilo e confortado? Não se esqueça de que há poucas horas ele estava disposto a sacrificar todas as pessoas aqui.

Jack deu de ombros.

— É difícil argumentar com a lógica. Ele vai esperar. Quer ouvir explica­ções sobre as funções de cada pessoa aqui?

 

Jae jamais conhecera alguém como Ângela. A mulher tinha seus próprios pe-sares, por ser uma mulher sozinha com dois filhos pequenos, vivendo debaixo da terra, incerta sobre seu futuro. Era evidente, porém, que Angela aprendera a desviar o foco de si mesma. Parecia que vivia para servir os outros.

E onde aprendera tanto sobre a Bíblia? Jae fora enriquecida, saciada, quase sufocada, pelo que ouvira em todos aqueles discos. No entanto, tinha de admitir que achava que mais da metade era desconcertante. Detestava reconhecer, até para si mesma, que receava estar no nível daquelas crianças pequenas em seu conhecimento da Bíblia.

Isso significava que se encontrava no lugar perfeito. As questões que as crianças apresentavam eram as mesmas em que ela pensava. Angela expli­cava tudo com tanta clareza e simplicidade que Jae absorvia com o maior entusiasmo. Sentia que aprendera mais em duas horas do que no resto de sua vida.

O que mais apreciava, é claro, era a oportunidade de acompanhar as ex­pressões de seus próprios filhos. Brie e Connor estavam encantados com as histórias, fascinados por Jesus, e tinham uma porção de perguntas. Os três aprenderiam juntos, e ela orou para que não levasse muito tempo antes que as crianças partilhassem sua fé.

 

— Creio que terá uma agradável surpresa, Paul.

Jack entregou-lhe um macacão e uma máscara protetora.

— Tem toda a minha atenção.

Eles foram para a outra extremidade do abrigo subterrâneo. Jack verifi­cou os postos de controle nas proximidades de várias entradas. Finalmente alcançaram uma área enorme, que pareciam ter quilômetros de extensão, com tubos de descarga de incontáveis carros subindo para o teto.

— Estão ligados a saídas de ar ocultas na superfície — informou Jack. A área estava repleta de homens e mulheres trabalhando nos carros.

— Detesto dizer isso, mas essa última catástrofe foi a melhor coisa que poderia acontecer para esse tipo de trabalho — comentou Jack.

— E que trabalho é esse?

— Nós nos apropriamos de carros, roupas, e identidades.

Paul contraiu os olhos. Como se lesse seus pensamentos, Jack antecipou-se à pergunta:

— Não, não roubamos o dinheiro. Presumimos que deixaram famílias que vão precisar dos recursos. Se estão mortos, no entanto, não vão mais precisar das roupas, carteira de motorista, essas coisas. Sei que é lamentável que deixemos famílias desesperadas sem os carros, mas esse é o preço da guerra.

— Resume tudo para mim, Jack — disse Paul. — Qual é a extensão da operação?

Enquanto andavam, Jack explicou:

— Toda a Região de Colúmbia. No entanto, para os nossos propósitos aqui, operamos apenas no Distrito de Colúmbia. A área está repleta de carros abandonados, muitos com os corpos ainda dentro. Pode ter certeza de que respeitamos os corpos, apesar de tirar as roupas e documentos de identidade. Deixamos os corpos onde as autoridades e as famílias podem encontrá-los.

— Mas levam suas coisas, inclusive o carro.

Jack acenou com a cabeça em confirmação.

— Mas não haverá em breve um banco de dados com os números de iden­tificação dos carros roubados?

— Claro. Entretanto, não nos limitamos a deixar os carros nas melhores condições possíveis, Paul. Também trocamos os nics... ou placas, como as pessoas costumam chamar. Se você precisasse de um carro, por exemplo, en­contraríamos algum que pertenceu a alguém com sua altura, peso e complei­ção. Teria o documento de identidade apropriado e um vin com a indicação da marca e cor do carro. Se você mantiver um comportamento controlado ao volante, estará seguro. Deixe-me mostrar a oficina de pintura.

Foi ali que Paul compreendeu a necessidade da máscara. Havia uma dúzia de carros na oficina, em vários estágios de lixamento, lanternagem e pintura. Jack fez um sinal para que Paul o seguisse.

Voltaram ao carrinho de golfe. Jack parou no meio de um longo corredor, onde ninguém poderia ouvi-los.

— Parece um pouco perplexo, Paul. Paul inclinou a cabeça para o lado.

— Estou pensando a respeito. Vocês fazem o que fiz durante anos na onp, mas acho que não esperava encontrar neste lado do conflito.

— Não matamos pessoas, exceto em legítima defesa. E estamos no lado certo, no final das contas.

— Claro.

— Não sei como podemos enfrentar o inimigo, nos manter vivos, perma­necer na batalha, se não lutamos com criatividade.

— O que os anciãos pensam de tudo isso? Alguém tem um problema com o roubo?

— Todos nós temos. E oramos muito. Conversamos muito. Discutimos muito. Como estou no comando, tenho de ouvir os protestos. Se eu estiver errado, Deus vai me considerar responsável. Contudo, não sei mais o que fazer, Paul. Uma coisa, no entanto, posso lhe garantir: nunca vou contra o voto da maioria dos anciãos.

— A votação, porém, não precisa ser unânime? Jack balançou a cabeça.

— Não temos tempo para procurar o consenso em todas as situações.

— Eu gostaria de conhecer os anciãos.

— E eles gostariam de conhecê-lo. Consideram-no uma espécie de gigan­te espiritual. Estão ansiosos em sentar a seus pés, esperando que lhes ofereça grandes percepções espirituais.

— Seu tom de voz me diz que pensa de forma diferente. Sou mais novo no pensamento religioso do que a maioria de vocês... provavelmente do que todos.

— Sei disso, Paul. Mas você esteve na linha de frente, como um agente duplo.

— Entretanto, Deus retirou minha cobertura. Não passo agora de um fugitivo internacional.

Paul fitou Jack, como se perguntasse por que continuavam sentados no meio do corredor, ao mesmo tempo em que dava permissão tácita para se­guirem em frente. Mas era evidente que Jack tinha mais alguma coisa em mente.

— Tem outro minuto? Porque eu gostaria de saber uma coisa.

— Minha agenda está cheia hoje, Jack, mas arrumarei tempo para você.

— Tenho um braço direito muito bom aqui, Paul. Como eu, ele é solteiro, sem família. Para ser franco, acho que está interessado em minha sobrinha. Não tem problema, desde que isso não distraia sua atenção quando lhe en­trego as rédeas do comando.

— Como assim?

— Você comentou que se sente irrequieto aqui embaixo... e acaba de chegar. Imagine quando estiver aqui há tanto tempo quanto eu. Devo lhe dizer, Paul, que a perda de meu irmão foi um golpe terrível para mim. Era ele quem sempre se arriscava lá fora. Eu ficava. Não pude nem ir ao funeral, porque seria reconhecido e me seguiriam até aqui. No entanto, você sabe que uma família de cristãos clandestinos que se comunicam por e-mail e telefone regularmente. E nos tornamos amigos e companheiros, apesar de nunca ter­mos nos encontrado pessoalmente.

— Sabe como a onp chama todos vocês, não é? Jack acenou com a cabeça.

— Os fanáticos clandestinos. Sei que usam o termo de maneira pejorativa, e nos comparam aos nazistas, Al Qaeda, extremistas, e todo o resto. Para dizer a verdade, até que gosto do nome. Não somos extremistas. Não somos assassinos. Contudo, somos mesmo fanáticos, no sentido bíblico. E o Senhor sabe que somos obrigados a viver na clandestinidade, em esconderijos subterrâneos. Creio que o termo descreve muito bem a mim e meus amigos.

— Já conheci vários amigos.

— Sei disso. E quero que você me apresente.

— Pode ser muito arriscado, um exercício social de alto custo.

— Pode ter certeza, Paul, de que é mais do que apenas o desejo de sair daqui e conhecer novas pessoas.

— E o que é?

— Que tal eu lhe contar depois da conversa com Roscoe Wipers?

 

O ENCONTRO COM WIPERS TEVE DE SER adiado de novo, enquanto Paul falava, por mais tempo do que esperava, com Arthur Demetrius, da Demetrius & Demetrius, em Nova York.

Arthur, o irmão sobrevivente e um dos poucos fiéis no colossal mercado de metais preciosos, nem mesmo perguntou qual era o motivo da chamada. Atendeu no mesmo instante, interrompendo tudo o que fazia.

— Estou com saudade, Paul. Sinto sua falta. Gostaria que estivesse aqui, me aconselhando, ensinando, orientando.

— Também sinto saudade, Arthur, mas não tenho muito para oferecer em termos de...

— O que você acha da grande praga? Nunca vi nada parecido. Não sei qual é a situação aí em Chicago, mas aqui...

— Estou em Washington.

— Não sabia. Pode imaginar a terrível confusão numa cidade como Nova York. É incrível. Perdi uma boa parte de meus empregados. O que aconteceu em todas as grandes empresas. As pessoas ainda estão tentando entender o que aconteceu. Não posso compreender como alguém ainda pode agora du­vidar da existência de Deus. Você pode?

— Não, não posso. Mas...

— As pessoas estão cegas? Gostaria que me dissesse uma coisa, Paul. Quanto tempo acha que ainda nos resta?

— Tempo?

— Neste mundo. Por quanto tempo mais Deus vai aturar isso? Ele não tem de interferir, ainda mais do que já fez, se você pode imaginar que isso é possível?

— Jesus disse a seus discípulos que nem mesmo ele sabia quando o fim viria. Só o Pai sabia.

— Deve, porém, haver sinais. E não acha que ele tem se afirmado muito ultimamente?

— Não posso contestar isso. Os sinais são guerras e rumores de guerras, nações se levantando contra nações. Contudo, Jesus disse que seria apenas o princípio do fim.

— Estou numa situação difícil aqui, Paul, e gostaria de saber o que você acha. Tem tempo?

— Para você? Claro que tenho.

— Não posso imaginar Deus permitindo que isso continue por mais um ano, mas vamos lhe conceder o beneficio da dúvida. Você me disse numa ocasião que um dia para Deus é como mil anos e mil anos é como um dia.

— Eu disse isso?

— E acho que foi bastante perceptivo.

— Mas não é original. Está na Bíblia.

— Claro que está. Muito bem, tenho feito alguns cálculos. Por alguma razão, Deus me fez absurdamente rico. Eu poderia me desfazer da metade de meus recursos, e ainda assim teria mais do que suficiente para fazer o que gostaria de propor pelos próximos vinte anos. E independente da economia de tempo de Deus, como você diz, aposto minha vida como nenhum de nós vai sobreviver por mais de duas décadas. Curioso?

— O que você gostaria de propor?

— Muito bem, aqui vai. Há facções clandestinas em cada uma das sete regiões, não é mesmo?

— É, sim.

— Sei que representam muitas células e grupos diferentes, mas que tam­bém estão centralizadas por estado.

— Certo de novo.

— Sei que algumas regiões são maiores e mais necessitadas do que outras, mas estou tratando todas como entidades iguais, para argumentar. Digamos que eu deposite um mar de dinheiro numa conta secreta na Suíça. Se o movimento clandestino em cada estado retirasse cinco milhões de dólares por mês, durante os próximos vinte anos, não seria suficiente para esgotar o fundo.

Paul estava atônito. Como era possível? Pensava que tinha uma noção da fortuna de Arthur Demetrius, mas descobria agora que a subestimara, que era pelo menos cem vezes maior.

— Ainda está me ouvindo, Paul?

— Estou, Arthur. Por que teve essa idéia?

— Por causa dos aspectos práticos. O mercado pode mudar da noite para o dia. Portanto, se eu depositar uma parte do dinheiro, ficará protegido. E não precisarei, ainda mais se o nosso tempo for limitado. De quanto um ho­mem precisa? Passei a vida inteira tentando adquirir coisas para mim mesmo. Agora, estou cansado disso. Ainda por cima, como eu disse, ainda terei muito mais do que qualquer pessoa seria capaz de gastar numa vida inteira.

— Arthur, isso igualaria as posições do governo internacional e do movi­mento cristão.

— Igualaria? Com essa última praga, eu diria que a situação já se inclina para o nosso lado.

— É possível. Mas o chanceler Dengler pode ser um homem obstinado.

— Neste caso, Paul, deixe-o tentar competir com os recursos que porei à disposição de vocês.

 

Jae viu o sinal de Ângela e seguiu seu olhar até Brie, sentada num círculo de crianças escutando uma história. Brie chorava silenciosamente. Seu embaraço era evidente, e dava a impressão de fazer um esforço para contar as lágrimas.

Jae foi perguntar à filha se não estava cansada e gostaria de tirar um cochilo. Com isso, Brie desatou em soluços, e abraçou a mãe. Foram para os aposentos da família. Sentaram a uma mesa.

— Qual é o problema, querida?

— Não sei o que pensar. Estávamos na casa de vovô e vovó, esperando tio Berl e tia Aryana para o jantar. No entanto, de repente aconteceu alguma coisa, saímos de lá, e viemos para cá. Não vamos mais para a nossa casa em Chicago? E minha antiga escola?

— Não gosta daqui?

— Claro que gosto, e adoro tia Ângela. Mas que lugar é este, e por que estamos aqui?

Jae orou silenciosamente. Estava numa situação difícil. O quanto dizer? Queria contar a verdade, mas seria demais para um menina de oito anos.

Paul ainda se sentia atordoado com o plano de Arthur Demetrius quando finalmente sentou na frente de Roscoe Wipers, junto com Jack.

Roscoe estava abatido. Tinha os cabelos sebosos e desgrenhados, os olhos saltados, o rosto vermelho de tanto esfregá-lo nas mãos. O pulso algemado estava quase em carne viva.

— Mandei que deixassem você tomar um banho de chuveiro esta manhã — disse Jack. — Isso não aconteceu?

— Tomei o banho.

— E o estado em que se encontra agora... ficou assim depois do banho? Roscoe acenou com a cabeça em confirmação, desesperado.

— Vocês me pegaram. Venceram a batalha. Estou liquidado.

— Do que está falando? — indagou Paul.

— Imaginou um bom plano, Stepola. E você também, Pass. A verdade é que nunca descobri onde estava. Vocês adulteraram o gps aqui embaixo, para qualquer emergência. A onp não sabe onde estamos. De qualquer forma, acha que estão mudando de esconderijo, e pensa que eu morri. Meu parceiro morreu. E sei que sou o próximo. Por que não acabam logo com meu sofri­mento, ou me entrega aquela arma que me deixou surdo, para que eu mesmo possa fazer o serviço?

— Quer mesmo morrer?

— Claro que não. Mas não tenho mais nenhuma utilidade para vocês. Se trocássemos de lugar, podem ter certeza de que eu liquidaria qualquer dos dois.

— Obrigado, Roscoe. Agradecemos a franqueza.

— Só estou sendo honesto.

— Sei como é sua honestidade — comentou Paul. — É o seu estilo: mente para nós até provarmos que está errado. Tem mesmo um desejo de morte, ou quer apenas ser tranqüilizado com a garantia de que não vamos matá-lo?

— Seria ótimo saber disso.

— Não vamos matá-lo — declarou Jack.

Roscoe mostrou-se sinceramente surpreso.

— Não vão? Prometem?

— Palavra de escoteiro.

A tensão pareceu se dissipar do rosto e pescoço de Roscoe, que relaxou. Sua voz saiu fraca, quase como uma lamúria.

— Posso perguntar por quê?

— Passou todo esse tempo conosco, e ainda não conhece os nossos moti­vos? — indagou Jack. — Sinto-me insultado.

Roscoe estudou-o por um momento.

— Sei quais são. Não duvido que sejam sinceros, e todo o resto. No entan­to, fui um mentiroso, um agente duplo, e destruiria todos vocês, se tivesse a oportunidade. Não vão me julgar e condenar? Não pretendem fazer nada?

— Vamos mantê-lo confinado, se é isso o que quer saber. Mas não matamos pessoas a menos que haja uma necessidade absoluta.

Paul ficou surpreso ao perceber que começava a sentir pena de Roscoe. Era uma compaixão que só podia vir de Deus, mas ainda assim ele não pôde resistir à convicção de que era prematura.

— Parte de nossa fé, Wipers, consiste em acreditar que sempre há esperança para todo o mundo. Se o matássemos, seria o fim da esperança.

— Não vão testemunhar minha conversão na prisão — garantiu Roscoe.

— Isso é um problema entre você e Deus.

— Deus! — exclamou Roscoe, desdenhoso. — Não me ponha na mesma frase junto com Deus!

Paul olhou para Jack.

— Talvez devêssemos matá-lo.

Roscoe balançou a cabeça, enquanto olhava para os dois homens.

— Não se preocupe — acrescentou Jack. — É apenas um desejo de nossa parte. Deus mandaria poupá-lo. Entretanto, tome cuidado ao se referir a Deus em nossa presença.

— Desculpem.

— Está desculpado.

 

Jae sentia-se um fracasso. Não conseguia pensar numa maneira de explicar a morte de Berlitz para Brie. Disse que ele e tia Aryana haviam sofrido um acidente de carro. Isso fez Brie chorar ainda mais, embora não respondesse a nenhuma pergunta. Alguma coisa no comportamento da menina, no en­tanto, persuadiu Jae que a filha já estava preparada para ouvir um mínimo de explicação para o fato da família estar fugindo e se escondendo.

Jae começou devagar, dizendo a Brie que ela nascera num país e numa cultura em que poucas pessoas acreditavam em Deus.

— Para ser mais exata, os líderes decidiram que isso era ilegal. Se as pessoas queriam acreditar em Deus e Jesus, ou em qualquer outra religião, tinham de fazer isso em segredo, escondidas.

— Como aqui? É por isso que estamos aqui? Estamos violando a lei?

— Estamos.

— Mas pensei que papai trabalhava para o governo.

— E trabalhava mesmo. Mas quando descobriu que Deus existia e pas­sou a acreditar em Jesus, tivemos de nos esconder.

— Tenho medo, mamãe.

— Também tenho, querida. Mas também acredito em Deus, e tenho certeza de que ele cuidará de nós.

 

Greenie ("Por favor, não pergunte") Macintosh esperava na frente da sala de Jack quando ele e Paul voltaram. Ficou evidente para Paul que o homem era uma pilha de nervos. Dava a impressão de que preferiria qualquer outra coisa a esperar. Deslocava o peso do corpo de um pé para outro, estudava seu bloco de anotações, e tentava se manter produtivo — ou pelo menos ocupado — até descobrir o que Pass queria.

Era baixo, magro, agitado, com trinta e tantos anos, beirando os qua­renta, cabelos pretos bem curtos, nariz proeminente, dentes um pouco tor­tos, olhos esbugalhados. Parecia ansioso. Para fazer o que, Paul não podia adivinhar. Contudo, era óbvio que se tratava de um homem de ação, talvez de idéias.

Greenie também não se preocupava com a moda. Usava o que Paul descreveria como roupa de zelador, sapatos velhos, com grossas solas de borracha. A calça e a camisa eram verdes, de zuarte, e só faltava a tira com o nome por cima do bolso.

E apesar do pedido na hora da apresentação e do aperto de mão, Paul não pôde deixar de indagar:

— Greenie?

— Explicarei o nome, mas depois nunca mais voltaremos a falar sobre isso. Combinado?

— Combinado.

— Sou irlandês, é claro, mas minha mãe me deu um nome pelo qual você mataria seu melhor amigo. Meu nome é Grenadier. Isso mesmo, Grenadier. O granadeiro, o soldado que lançava granadas. Somos um povo guerreiro num mundo sem guerra. Eu me queixei e lamentei tanto quando entrei na escola que mamãe disse que passaria a me chamar por um apelido normal, como Greg, Gil ou qualquer outro parecido.

Greenie fez uma pausa.

— Gostei de Gil, mas qual foi a reação dos colegas na escola? Disseram que Gil é a mesma coisa que guelra, que sempre pareci um peixe... e com as guelras verdes ainda por cima. Por isso, ninguém mais me chamou de Gil. Passei a ser Greenie.

— E você aceitou o apelido. Isso é ótimo.

— Eu não disse que aceitei. Seria mais apropriado dizer que me resignei. Seja como for, sou o braço direito de Jack, assistente dos anciãos e o herdeiro presumido, embora haja muito pouco para herdar neste buraco. Ele queria que nos conhecêssemos, isto é, eu queria conhecê-lo.

 

JAE OBSERVOU QUANDO BRIE SE JUNTOU AS OUTRAS crianças, e foi para o lado de Connor. Por um lado, Jae preocupava-se como a noticia abalaria o filho; por outro, esperava que Brie fosse capaz de partilhar a informação melhor do que ela fizera.

Entretanto, Connor pareceu achar muito engraçado. Correu para a mãe, inclinou-se e disse, como se nenhuma outra coisa pudesse lhe proporcionar tanto prazer:

— É verdade, mamãe? Somos bandidos?

— Se é errado acreditar em Deus e Jesus, então é verdade, mamãe e papai são bandidos.

Connor balançou a cabeça e saiu correndo. Haveria necessidade de muito mais conversa.

 

Greenie movia-se como se estivesse com a cabeça em chamas, sentava como se preferisse ficar de pé, e falava como se representasse. Paul decidiu falar sem rodeios.

— As pessoas respeitam você por aqui?

— Acho que sim.

— Claro que respeitam — declarou Jack. — Sabem que ele fala por mim, e ninguém jamais o vê vadiando. Isso é importante.

— Quer assumir a responsabilidade, o comando da operação aqui?

— Não, senhor, não quero — respondeu Greenie no mesmo instante, inclinando-se para a frente. — E desconfiaria de qualquer homem ou mulher que quisesse. Não se trata de um comando. É uma questão de servir as pes­soas e realizar um trabalho. Portando, digamos apenas que estou disposto a assumir a responsabilidade. Relutante, mas disposto.

— Relutante?

— Preferia que Jack não saísse. E acho que esse plano é temerário, se querem saber a verdade.

— Sempre dizemos a verdade aqui — declarou Jack.

— Foi o que imaginei — comentou Paul. — Mas é bom lembrá-lo que ainda não tomei conhecimento de seu plano.

Greenie virou-se para Jack.

— Ainda não contou a ele? Neste caso, não estamos nos antecipando? Jack ergueu as mãos.

— Uma coisa de cada vez. Conte ao dr. Stepola o que nossos técnicos estão descobrindo.

Greenie cocou a cabeça. Passou a mão pelo rosto.

— Há alguns indícios de que alguém pode estar interferindo em nosso servidor na Internet.

— Como é possível?

— Não sabemos. Também não encontramos indicações de ameaças para nossos telefones, mas essa deve ser a etapa seguinte.

— O que exatamente eles descobriram?

— Não sei, e você também não entenderia se eu lhe dissesse, não é mesmo?

— Acho que não.

— Confiamos, porém, em nossos técnicos, e eles acham que a situação é crítica.

Os três permaneceram em silêncio por um breve momento. Depois, Paul levantou-se.

— Vou chegar ao fundo dessa história.

Ele pediu licença, e saiu para o corredor. Seu telefone não fazia parte do sistema local, e ainda era seguro, até onde ele podia determinar. Paul ligou para Felícia, explicando de forma enigmática que ela deveria fazer uma ligação para ele de uma linha externa. Foi o que aconteceu poucos minutos depois.

— Eu ia mesmo ligar para você — disse Felícia.

— E mesmo?

— O movimento já descobriu o que estamos fazendo?

— Já, sim. Quanto tempo falta para uma contaminação completa?

— Poucas horas. A Região de Colúmbia já foi toda comprometida.

— Toda?

— Isso mesmo. E quase todas as outras estão sendo controladas. Nossos técnicos garantem que monitorarão todas as transmissões que entrarem e sa­írem dos sete estados até o final do expediente.

Paul suspirou.

— Compreendo como a situação é difícil para você, Felícia. Não sei o que dizer.

— Está me devendo, Paul.

— Sei disso muito bem. O que posso fazer por você?

— Já estou bastante comprometida com o seu lado agora, não é mesmo? Gostaria de saber se fiz a escolha certa... e, com toda franqueza, o que ganho com isso.

— Pelo nível de risco que está assumindo, eu faria qualquer coisa por você. O que você precisa?

— Acha que estou pensando em dinheiro?

— Também temos dinheiro. Basta me dizer.

— Depois de tantos anos, você ainda não me conhece.

— Como assim?

— O que eu preciso mesmo, Paul, é de Deus.

 

EMBORA ESTIVESSE EXAUSTO, PAUL TEVE dificuldade para dormir. Dei­xara uma mensagem importante para Felícia, com quem gostaria de falar novamente.

Jae relatara o que estava acontecendo com as crianças, quanto já sabiam, quanto ainda precisavam compreender. Por enquanto, consideravam tudo uma aventura. Embora Brie se mostrasse mais apreensiva do que Connor, Jae achava que ambos aceitavam a situação e cooperariam, se não tivessem de ficar retidos no abrigo subterrâneo por muito tempo.

Era o plano temerário de Jack Pass — e a advertência em contrário de Greenie Macintosh — que abalava a mente de Paul, deixando-o acordado.

Finalmente, o plano fora revelado a Paul.

— Operação Noé — disse Jack.

Paul piscou, aturdido. Olhou para Greenie, que balançou a cabeça, alteou as sobrancelhas e deu de ombros.

— Está percebendo agora? Não sou um estudioso, mas até mesmo eu sei que Deus prometeu que nunca mais faria aquilo.

— Faria o quê? — indagou Paul.

— Não se lembra da história de Noé? — disse Greenie. — O dilúvio que inundou a terra.

Paul fez uma careta para Jack.

— Ele tem razão nesse ponto, irmão. Deus não vai violar sua própria pa­lavra. Lembra que o arco-íris foi uma promessa? Nunca mais.

— Podem ser dilúvios seletivos — sugeriu Jack. — Deus inunda a onp, seu sogro, o chanceler Dengler, todos os nossos inimigos nos mais altos postos.

— Seria de qualquer maneira um dilúvio em escala mundial — comentou Paul. — Afinal, nossos inimigos estão em toda parte.

— Mas por que não? Talvez Deus poupe Los Angeles, mantendo toda a área um lugar seco. Os fiéis podem fugir para lá. E para qualquer outro que tentar, será o banquete ou a fome. Ser encoberto pelo dilúvio ou morrer de desidratação em Los Angeles.

Agora, deitado, Paul mantinha as mãos atrás da cabeça, grato pela respiração profunda de Jae. Ela estaria mergulhada num sono profundo, sentindo-se segura, aconchegada, feliz por ter a família sob o mesmo teto? O conforto por estar entre companheiros de fé não era consolo para viver naquele abrigo claustrofóbico, por baixo da antiga capital da nação.

Não fazia muito tempo, pensou Paul, que ele teria descartado de imediato a sugestão de Jack. A idéia de tentar mobilizar todos os líderes do movimento cristão, a fim de orar juntos por um julgamento dos inimigos de Deus, teria lhe parecido absurda há pouco mais de um ano. Antes que a calamidade da seca se abatesse sobre Los Angeles. Antes que o anjo da morte matasse os primogênitos dos descrentes.

Agora, Paul temia que Deus pudesse ouvir e atender as orações fervorosas de sua resistência oprimida. Paul tinha de admitir que estava cansado de julgamento, de tantos mortos e feridos, de todo o caos. Quando Deus agia, lembrava-o do ditado antigo de que o raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar: porque não precisava. Quando Deus agia, não havia a menor dúvida — nem mesmo na mente de seus inimigos — que ele era real. Depois que Deus decidia interferir, em nome de seu povo, não havia como reagir. Talvez pudesse ocorrer uma retaliação depois, mas nunca haveria uma confrontação frente a frente.

Felícia Thompson detestava trabalhar até tarde, mas isso não era nada em comparação ao risco de morte por se juntar à resistência. Durante anos ela pensara que trabalhar para Paul Stepola, num cargo de segurança máxima, no escritório da onp em Chicago, era a própria definição de estresse. Quando desconfiara pela primeira vez que Paul passara para o outro lado, depois tivera certeza, ela passara a entender fato o que era conviver com o estresse todos os dias.

Pois agora ela ingressara no movimento clandestino. Não podia mais ignorar, não podia mais evitar os riscos. Se não estivesse absolutamente convencida teria de entregar Paul, deixar que o capturassem. No entanto, Felícia não podia imagi­nar como era possível que alguém ainda estivesse no outro lado daquela batalha.

Contudo, a verdade é que muitos ainda insistiam na negação. Os sobre­viventes no alto comando da organização, os homens que não eram primo­gênitos, pareciam não apenas ainda mais empenhados na guerra contra o inimigo e contra Deus, mas também mais furiosos do que nunca. Circulavam pelo escritório com expressões determinadas e sombrias, os rostos vermelhos e contraídos. De certa forma, Felícia sentia-se contente por não haver mais as conversas descontraídas que acompanhavam aquele tipo de atividade. Muitas pessoas haviam perdido demais... inclusive ela. A perda de um filho — inteli­gente, bonito, um sucesso profissional e pessoal aos 27 anos — fora um golpe que a deixara curvada pela dor. E seu marido... Felícia temia por ele. Anos como professor numa escola média, um dos homens mais otimistas e joviais que ela já conhecera... e agora Cletus parecia ter uma obsessão suicida.

Ela havia deixado vários recados para Paul antes que ele finalmente ligasse, pouco antes de sua partida para a comunidade suburbana de Deeríield, ao norte de Chicago. Aquela hora da noite, ela deixaria o movimentado centro urbano de Chicago em menos de uma hora, apesar dos veículos acidentados que ornamentavam as margens de todas as ruas, em conseqüência do que a polícia passara a chamar de o incidente.

— Ou me diga o que preciso fazer para me juntar a seu lado, ou me aponte o caminho certo — dissera Felícia numa das mensagens para Paul.

Ela esperara impaciente pelo retorno, até descobrir que Paul já ligara e deixara uma mensagem. Devia ter sido breve quando ela falava pelo telefone com Cletus, prometendo que logo estaria em casa.

Paul informava sobre um arquivo secreto, algo que escondera até mesmo de sua secretária. Foi uma surpresa para Felícia. Ela pensava que conhecia todos os segredos, códigos, senhas, e esconderijos de Paul. Ele disse onde estava, e comunicou o código para abrir.

— Parecem anotações aleatórias sobre crentes malucos, mas é uma pres­crição para receber Cristo — explicou Paul na mensagem.

Os dedos de Felícia tremiam quando ela encontrou o arquivo e guardou em sua enorme bolsa. Vestiu o casaco de visom comprido. Não era tão caro quanto parecia, mas ainda assim servia como um lembrete de como a onp fora proveitosa para ela, uma funcionária antiga. Felícia antes adorava aquele casaco, mas agora parecia apenas funcional.

Na saída, Felícia se encontrou no elevador com Hector Hernandez, um mago do computador, ainda na casa dos vinte anos. Fora ele quem a infor­mara e aos outros no andar sobre o progresso de sua equipe para entrar no sistema da resistência clandestina.

— Os fanáticos estão numa encrenca tecnológica — anunciara ele.

Felícia não sabia por que a frase a deixara tão perturbada. Talvez pare­cesse óbvia demais, muito ostensiva para tudo o que estava em jogo. Todos sabiam o que os técnicos faziam, e o que representava um risco para os dois lados. A simples apresentação de um relatório de progresso seria suficiente. Ninguém precisava ser informado das conseqüências.

Felícia acenou com a cabeça para o jovem.

— Olá, Hector.

— Senhora...

— Você deve ser quase da idade de meu filho.

— Faço trinta anos no mês que vem, sra. Thompson.

— Danny tinha 27 anos.

— Sinto muito, senhora... sinto profundamente.

— Com tanto senhora, você fala comigo como se eu fosse sua mãe.

— Peço desculpa. É que fui criado para respeitar as... sabe como é... para não chamá-la de Feli... pelo primeiro nome. Sinto muito, mas não poderia fazer isso mesmo que me pedisse.

— Poderia fazer o favor de me acompanhar até meu carro, Hector? Enquanto os passos ressoavam pela câmara de concreto, Felícia podia ver sua respiração. O jovem prendia a dele por um momento, para depois soltar em enormes nuvens de vapor. Felícia sentiu que ele se preparava para dizer alguma coisa. Finalmente ele quase parou e sussurrou:

— Pode transmitir meus cumprimentos ao agente Stepola? Ela fitou o jovem em silêncio por um longo momento.

— Deve saber qual é a situação de Stepola...

— Claro que sei. Sei também da grande consideração que sempre tiveram um pelo outro, e pensei...

— Transmitirei seu recado, se falar com ele.

Hector saiu da garagem atrás dela. Quando os caminhos se separaram, acenaram um para o outro. Depois de se afastar um pouco, Felícia parou o car­ro na frente de uma loja escura, abriu o envelope arquivado. Paul escrevera:

Essas pessoas acreditam que o destino eterno está selado quando "recebem Cristo". Baseiam essa convicção em versos do Novo Testamento, que parecem alegar que cada pessoa nasce em pecado, e assim é separada de um Deus Sagrado. Romanos 3:23 diz que todos pecaram e carecem da glória de Deus. Romanos 6:23 diz que o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus.

No Evangelho escrito por João (1:12), diz que todos os que o "receberam", deu-lhes o poder de serem feitos "filhos de Deus".

As pessoas "recebem" Cristo pelo que chamam de Método a-c-c Aceitar essa verdade. Crer em Deus e Jesus e no que ele fez pela salvação de todos... morrer na cruz pelos pecados. E confessar isso, ou contar para alguém. A conversão, como alguns gostam de chamar, ocorrem quando as pessoas admitem isso em oração... que são pecadoras, precisam do perdão de Deus, e que recebem esse perdão.

Oração... Felícia tinha parentes mais velhos — muito mais velhos — que ain­da oravam. Duas tias e um tio eram discretos e cuidadosos em público, mas não faziam segredo que nunca aceitaram as decisões do governo contra Deus e a fé. A própria Felícia tinha dez anos quando entrara em vigor a proibição da religião. Não podia se lembrar de ter praticado a religião antes disso, mas tinha de admitir para si mesma que acreditava haver um Deus. Até que tudo fora removido de sua mente na escola primária.

No entanto, oração? Talvez ela nunca tivesse orado, a menos que verberar contra Deus por ter levado seu único filho pudesse ser considerado uma ora­ção. E ela se enfurecera com Deus. Erguera o punho para Deus. E sabia, ao fazer isso, que reconhecera uma coisa que não considerara desde a infância: que Deus existia e agira.

Felícia deu uma olhada pelo espelho retrovisor. A última coisa que queria naquele momento era atrair qualquer atenção, ainda menos de um guarda. Como explicaria o fato de estar parada ali, no escuro, lendo um arquivo federal secreto, com a ajuda da luz interna do carro... e chorando?

Tudo o que ela podia ver em movimento nas ruas eram veículos de emer­gência e reboques, aqui e ali, removendo os carros, como vinha acontecendo há dias. Os veículos acidentados eram primeiro tirados do meio das ruas. Os carros abandonados eram levados para estacionamentos próximos, sempre que possível. E a noite de um dia de semana era o melhor momento para esse trabalho.

Felícia descobriu-se emocionada, mas não sabia qual era a causa. Sentia necessidade de voltar com urgência para Cletus, ao mesmo tempo em que era repelida por algum presságio, como se fosse uma casa da morte. Não que alguém tivesse morrido na modesta casa de dois andares em que criara uma família, a um quarteirão e meio dos trilhos do trem. Haviam-na com­prado anos antes, na única parte de Deerfield onde tinham condições de morar. Hoje, não teriam mais como comprá-la.

No entanto, havia muitas lembranças naquela casa de alvenaria de dois andares, com um pequeno quintal nos fundos. Fora ali que criara seis filhos, de bebês aos sorrisos desdentados, a adolescência desajeitada, os primeiros namoros e bailes. Fora ali que ela conhecera a namorada de Danny, a mes­ma que se tornara sua noiva, a que fizera uma ligação histérica para Felícia, informada que Danny morrera em seus braços.

— Felícia levantou a gola do casaco, desejando que o carro pegasse mais depressa — devido ao gelo —, enquanto olhava para as anotações de Paul Stepola com os olhos cheios de lágrimas. Tinha alguma importância, ela se perguntou, se compreendia muito pouco? Era tudo novo, muito estranho. Aceitar? Que havia um Deus? Quem podia deixar de aceitar agora? Ele en­trara na consciência de todos pela força, entrara na vida de todos, em todas as famílias. O que acontecera em Los Angeles, no ano anterior, a fez parar para pensar. Aquele último ataque — de que outra maneira se podia chamar? — a empurrara para o outro lado da linha.

Ela acreditava? Não era mais essa a questão. Sentia-se uma pecadora? Podia reconhecer um Deus que sentia que era seu inimigo? E esse inimigo podia salvar sua alma? Felícia sentia-se insignificante, e sabia disso. Indefesa. Sem a menor importância. Que base era essa para a "conversão", como Paul a chamava?

O que queria mesmo, decidiu Felícia, era um Deus que a amasse, que se importasse com ela, que pudesse confortá-la. Mas não fora esse Deus que causara tanta dor? De alguma forma, ela precisava se reconciliar com esse fato. A própria lembrança, porém, tornou a dominá-la, trazendo ressenti­mento e raiva.

— Por quê? Por quê? — indagou ela. — Por que você tinha de fazer isso comigo, com Cletus, com Danny, com meus amigos, com todos?

Felícia sentava dentro do carro, que esquentava lentamente, as janelas embaçadas. Era extravagante passar de uma ateia completa e dócil para uma mulher que orava e esperava uma resposta! E ela queria mesmo saber, queria ouvir uma resposta. E esperava uma resposta. Quem era tão poderoso para abater seus inimigos, num ato terrível, podia responder ao desafio de uma mãe desesperada, não é mesmo?

Felícia guardou o envelope na bolsa e cruzou os braços, sentindo que o corpo esquentava lentamente. Levantou o queixo, acomodou-se no banco, e esperou. Não podia se convencer de que sua pergunta não era justa, um desafio legítimo. A necessidade irrelevante de voltar para o marido foi dimi­nuindo, enquanto ela esperava, decidida.

Tomara sua decisão. Não haveria mais o fingimento de que Deus não existia. E ela já pusera sua carreira e a própria vida em jogo para servir à resistência, através de Paul. Entretanto, fazer a conversão pessoalmente? Isso exigiria alguma resposta. Uma coisa era se sentir privada de algo. Fora esse o seu destino, há tanto tempo quanto podia se lembrar. Contudo, outra coisa era se sentir responsável pelo terrível ato de Deus que levara seu filho.

 

O CHANCELER BALDWIN DENGLER SAIU de sua limusine na garagem sub­terrânea da sede do Governo Internacional da Paz, em Berna, Suíça. Parou de repente, quando se encaminhava para o elevador, com dois seguranças a seu lado. Os homens pararam.

— Esqueceu alguma coisa, senhor? — perguntou um deles. — Posso ir buscar?

— Só um momento — murmurou ele.

Alto, grisalho e elegante, Dengler entregou a pasta de couro a um dos ho­mens, enfiou as mãos nos bolsos do casaco e tirou as luvas de pelica. Pegou as pontas do cachecol e meteu por dentro do casaco, que abotoou até o pescoço. Ouvira no rádio que a temperatura ao amanhecer era de 17o C negativos.

— Nada mais apropriado — comentou ele.

— Como, senhor? — perguntou um dos seguranças.

— A temperatura — explicou Dengler. — Nada mais apropriado. O chanceler encaminhou-se para uma das saídas.

— Para onde vamos, senhor, se me permite perguntar?

— Quero caminhar sobre o rio. Fiquem aqui, aquecidos.

— Sabe que não podemos deixá-lo sair sozinho, senhor.

— Como quiserem.

Em sua dor intensa pela perda do filho, pai de três de seus netos, Dengler não podia deixar de perceber que tudo nele mudara. Não apenas a voz, que passara de um barítono firme e incisivo para um sussurro rouco, mas também sua postura. Há muito que se divertia com os comentários na imprensa de que seus passos eram a metade mais longa do que seria normal para um homem de sua altura. Tinha certeza que não era verdade, mas alguma coisa em sua maneira de andar — pelo menos desde que fora eleito chanceler — produzia maravilhas, se não um temor respeitoso, nos observadores. Talvez fosse a im­pressão de confiança e determinação a cada passo com os sapatos elegantes.

Entretanto, agora ele quase que se arrastava, encurvado. O que o reduzira a um ancião que não a tristeza? Usava as mesmas roupas, levava os mesmos apêndices. E, no entanto, sentia que era apenas uma casca, sem nada por den­tro. Não se esquivaria de seus deveres, apesar das noites insones, não entregaria o comando — nem mesmo em caráter temporário — ao vice-chanceler, que também sofria com a morte do filho. E, de alguma forma, disfarçaria o turbi­lhão pessoal quando as câmeras rodassem. Agora, contudo, naquele momento, não podia suportar o escritório palaciano, com chãos de mármore, com muita teca e mogno, o que antes aceitava como os ornamentos de seu cargo.

Agora, queria simplesmente caminhar sozinho pelo Aare. A superfície congelada do rio combinava com a temperatura em sua alma. Talvez — quem podia saber? — ele mergulhasse na água, e deixasse que o levasse ao encontro de seu amado filho.

— Andar sobre a ponte, eu presumo — murmurou o segurança, passando pela porta atrás de Dengler, depois de fazer sinal para o outro esperar.

Dengler não tinha a menor vontade de falar. Sacudiu a cabeça.

— Eu falava mesmo do rio.

— Não está congelado em toda a extensão, senhor. E há dois palmos de neve nos lados.

Dengler parou e virou-se para o homem, tão cansado e resignado como nunca se sentira antes. Era como se tivesse de mobilizar até a última gota de sua força para enfrentar aquele desafio. Ele aspirou o ar gelado.

— Por favor... espere aqui por mim. Voltarei num instante.

— Senhor, eu...

Dengler ergueu a mão para silenciá-lo.

— Não se preocupe.

Ele não tinha muita certeza sobre isso, ainda mais se o homem estava preocupado com sua segurança... ou sua sanidade.

O chanceler virou-se e afastou-se pela neve, os sapatos escurecendo com a umidade. Ao se aproximar do rio de correnteza rápida, coberto por uma crosta de gelo por dois ou três metros além da margem, a neve se tornou mais profunda. Ele sentiu o frio nas meias e canelas.

Incongruentemente o céu espiando por cima do horizonte fazia a paisa­gem faiscar, num ar festivo. Dengler sentia-se vazio... ainda não comera, mas não tinha a menor fome. Podia perceber, pelos olhares das pessoas em sua órbita — a família, motorista, seguranças, assessores — que todos se preocu­pavam com a possibilidade de sua angústia ser autodestrutiva.

Era verdade que a vida parecia não ter mais nenhum valor, ser inútil, sem esperança. E, no entanto, uma vida inteira de serviço público tornara-o quem ele era. Afinal, era responsável por bilhões de pessoas, e não se esquivaria a seus deveres, por mais que quisesse se refugiar em algum canto, longe de tudo. De alguma forma, encontraria a saída daquele buraco negro, apesar de ter decepcionado a família. Todos haviam se reunido em sua mansão, lamentan­do o irmão mais velho, lamentando os netos primogênitos, lamentando uma dúzia de outros primogênitos entre os parentes próximos. E todos haviam se virado para ele, em busca de força, caráter, perspectiva.

Ele não era o único que não tinha nada a dizer, mas também não podia se forçar a confortar outros, nem mesmo sua esposa por mais de quarenta anos. Seu próprio semblante, ele sabia, agravava a situação. Não queriam muita coisa dele. Era evidente que não esperavam que dissesse ou fizesse nada que pudesse aliviar um desespero tão profundo. Contudo, também era evidente que não esperavam que o líder do mundo cambaleasse para trás, atordoado, impotente, desorientado. E silencioso.

Estranhamente, também não haviam tentado confortá-lo. Dengler sentira-se carente, com vontade de chorar — embora fizesse um esforço para conter as lágrimas —, mas alguma coisa em sua presença prevenia qualquer tentati­va de ajudá-lo.

O chanceler nem sequer tentara dormir. Passara a noite inteira andando de um lado para outro. A esposa levantara-se algumas vezes e fora ao seu encontro, mas ele não a fitara. E ela parecia ter aprendido, ao longo dos anos, que o marido não se ligara se não estivesse olhando e de nada adiantaria tentar se comunicar.

Fazer a barba, tomar um banho de chuveiro e vestir seu uniforme de líder mundial — um terno cinza elegante — proporcionaram a aparência de que assumira o papel. No entanto, ao se contemplar no espelho de corpo inteiro em seu closet, vira tudo, menos o próprio rosto. Tinha os olhos vazios, sem nenhuma expressão definida. Era como se fosse invisível.

E agora, ao alcançar a margem do Aare, Baldwin Dengler baixou os ombros, enfiou as mãos nos bolsos e pisou no gelo, cauteloso. Não sabia o que aquela obsessão podia significar. Tinha, contudo, de caminhar pelo rio de qualquer maneira. Sentiu o olhar preocupado do segurança e ouviu a porta do estacionamento ser aberta, para que o outro homem pudesse ver se estava tudo bem.

Paul Stepola... Era com ele que Dengler precisava falar. O homem ad­vertira-o, sob o pretexto de ser um consultor especializado, que os cristãos clandestinos haviam suplicado a seu Deus por aquela calamidade. E a notí­cia que chegara dos Sete Estados Unidos da América era a de que Stepola fora poupado, embora fosse filho único e por isso um primogênito. Ele era agora um fugitivo internacional, denunciado como fanático.

A reação inicial do chanceler Dengler fora de raiva, uma raiva intensa e amarga, que o tentara a lançar toda a força do governo internacional, em apoio aos seua, para capturar o traidor.

E, no entanto, Stepola estava certo.

Dengler poderia culpar Stepola por não convencê-lo que acreditava sinceramente que Deus agiria? O chanceler nunca admitira a possibilida­de de acreditar no cenário. Até agora. Só que a passagem prometida do anjo da morte se concretizara. O que Stepola poderia ter feito para provar, para impedir que acontecesse? Dengler não queria ser um herói, queria que Stepola tivesse sido, que argumentasse de uma forma tão convincente que ele, Dengler, teria hesitado, talvez reconsiderasse, recuasse diante das ameaças.

Dengler sacudiu a cabeça. Deus precisara agora daquela maneira tão dramática para atrair sua atenção. A culpa fora sua. Afinal, era o símbolo do pensamento internacional. E ninguém acreditara, fora da resistência clandestina, que aquilo pudesse mesmo acontecer.

O frio finalmente envolveu Dengler totalmente. Ele parou. Virou-se e saiu da crosta de gelo, atravessou a neve, na direção dos seguranças, que já haviam começado a se aproximar. Dengler ergueu a mão para que paras­sem. Não havia necessidade de se aventurarem mais adiante.

Ele tirou o celular do bolso do casaco. A placa de platina, encostada em seu peito, estava aquecida quando a levou ao ouvido. Dengler ligou para seu chefe de gabinete.

— Estarei em minha mesa dentro de cinco minutos. Quero falar com o agente da onp Paul Stepola o mais depressa possível.

— Não se esqueça de o horário nos seua é de seis a nove a menos, se­nhor, dependendo do lugar em que ele estiver.

Dengler parou, sentindo que sua determinação de executivo começava a voltar.

— Desculpe se deixei essa impressão, mas por acaso perguntei que horas eram na América?

— Providenciarei a ligação imediatamente, senhor.

 

STUART "STRAIGHT" RATHE JÁ VIRA O MÉDICO, é claro, mas não sabia qual era o seu nome, muito menos a especialização. Pensando bem, vira-o no uniforme cirúrgico verde. O que significava trabalhar numa sala de cirurgia.

O cirurgião procurara Straight. Isso era evidente. Straight fazia sua ronda, visitando os novos pacientes, em seu trabalho como voluntário, tentando manter as pessoas calmas, querendo distraí-las para que não pensassem em seus problemas. Isso se tornara mais difícil da noite para o dia, por causa do motivo para a nova onda de pacientes. Famílias poupadas de uma perda, porque uma mulher nascera primeiro, também haviam sofrido por causa do que acontecera na esteira de tantas mortes súbitas.

Straight descobriu-se a seguir apressado de um andar para outro, de uma ala para outra, de um departamento para outro, visitando feridos de todas as idades. O cirurgião encontrou-o num corredor entre prédios.

— Você é Rathe, não é?

O homem tinha olhos azuis excepcionais, talvez o resultado de lentes de contato de grife, que se deslocavam apressados de um lado para outro, como se quisesse ter certeza de que estavam mesmo a sós.

— Isso mesmo, Doutor. Chame-me de Straight, como todo mundo. Posso ajudá-lo?

— Pode, sim. — O médico era grande, cabelos pretos e crespos. Carregava uma pasta de couro e usava terno. — Sou Gregor Graybill.

Ele enfiou um cartão de visita no bolso de Straight. O homem mais alto e mais velho quase o esqueceu por completo no instante seguinte, quando o cirurgião se afastou, apressado.

Straight só lembrou quando tirou a roupa, depois de meia-noite, em seu apartamento com muita corrente de ar. O cartão era comum, identificando o médico como cirurgião no psl em Chicago (antigo Presbiteriano-São Lucas), mas as palavras escritas no verso tornavam-no excepcional.

Em letra pequena, mas meticulosa, desmentindo o ditado de que todo médico tem uma letra ilegível, o dr. Graybill escrevera:

Se quiser me fazer a gentileza, me ligue às duas horas da madrugada. Ficarei esperando, durante os próximos três dias. Este número é seguro.

 

Felícia Thompson continuava sentada, esperando. Ousaria acreditar que o Todo-Poderoso Deus do universo lhe devia mesmo uma resposta? Talvez de­via não fosse a palavra correta, mas ela permaneceria ali até que Deus respon­desse... ou até que demorasse tanto que ela ficaria convencida de que nunca receberia uma resposta.

Imersa em seu próprio mundo, ela sentiu de repente que os ombros rela­xavam. Só então percebeu que os contraíra contra o frio, até sentir cãibras dolorosas. A tensão pareceu se esvair de seu corpo e ela sentiu calor.

Estou aqui.

Ninguém falara. Felícia não se sentira tentada a olhar para o banco tra­seiro, verificar o rádio, ou baixar uma janela. As palavras Estou aqui haviam sido comunicadas diretamente a seu coração, a seu ser interior. Não teria tanta certeza de que era Deus se ele tivesse aparecido de repente no banco de passageiro.

— Você está aqui? — sussurrou ela. Aparentemente, ele não sentia necessidade de se repetir. Eu amo você.

Muito bem, pode ser Deus, mas se for mesmo, teremos uma conversa e tanto.

— Você me ama? E como demonstra isso? Levando meu filho? Tornando meu chefe e amigo fugitivos, o que me deixou sozinha? E deixando meu marido tão desesperado que já não é mais o mesmo homem que antes?

Também perdi um Filho.

Isso a fez parar. Já ouvira aquela história. Seria possível que Deus soubes­se o que ela sentia? Não fora ele, no entanto, quem fizera tudo acontecer? Não poderia ter evitado? Sua perda realmente contava?

Foi como se Deus lesse seus pensamentos, e ela concluiu que isso fazia sentido. Se eu evitasse a morte de meu Filho, não haveria pagamento pelo pecado.

— Meu pecado?

Felícia se perguntou se queria mesmo que Deus fizesse um inventário. Nunca se sentira uma pecadora. Tentava ser uma boa pessoa, tratava a todos da melhor forma possível. Contudo, de alguma forma, na presença de Deus, ou pelo menos na presença da voz de Deus em seu coração, ela sentia-se microscópica, indigna, suja.

Por que deveria se sentir suja? Não compreendia, mas sentia-se tão distante de Deus, embora ele estivesse se comunicando claramente com ela, que desejou fugir e se esconder.

Meu Filho morreu para que você pudesse ter vida.

Com isso, tudo pareceu se juntar para Felícia, num relance. Mesmo que ela fosse perfeita, mesmo que não tivesse cometido nenhum outro pecado, o próprio fato de ter ignorado Deus já era pecado suficiente. Rejeitara Deus, seu Filho, seus desígnios. O mundo inteiro fizera isso. Era de surpreender que ele não tivesse agido de forma tão dramática antes. Felícia baixou a cabeça.

— Sinto muito... sinto profundamente.

E foi como se a presença, a voz, a tivesse deixado. Seria por ela ser um caso perdido, ou apenas porque não havia mais nada a dizer?

— Sou uma pecadora — murmurou ele, lembrando o que Paul escrevera. — Aceito você. Acredito em você. E confessarei para alguém. Contarei tudo a Cletus.

E embora não sentisse mais palavras em seu espírito, Felícia sentiu que a presença de Deus voltara; e foi ela quem se sentiu aceita nesse instante.

Ela chegou em casa poucos minutos depois de uma hora da madruga­da. Parou na garagem. Havia uma luz acesa na sala e ela torceu para que não significasse que o marido continuava acordado. Com um pouco de sorte, Cletus estaria na cama, dormindo, com sua angústia e depressão. Ela usou o controle remoto para fechar a porta da garagem antes de sair do carro, a fim de evitar a temperatura gelada lá fora.

Não adiantou muito, pois o interior da garagem parecia tão frio quanto a rua. Ela entrou pela cozinha e foi para a sala. Cletus sentava em sua poltrona, retorcendo as mãos. A única luz era do abajur aceso em cima do piano. Se ele estivesse tentando assistir televisão, Felícia poderia até encorajá-lo. Mas a televisão estava desligada. E a sala recendia a cerveja.

— Ainda acordado, querido? — perguntou Felícia, sabendo que ele estava, mas na expectativa de avaliar seu ânimo e sobriedade pela resposta.

Cletus meneou a cabeça em confirmação. Ela acendeu uma luz perto da pol­trona, fazendo-o contrair os olhos. Notou a confusão na parede do outro lado.

— Estava bebendo, meu amor? Ele sacudiu a cabeça.

— Tentando matar Deus.

Felícia estremeceu. Sentou no braço do sofá, não muito longe do marido. A casa estava aquecida, mas não o suficiente para que ela tirasse o casaco, pelo menos por enquanto.

— Não acredita em Deus, querido. Foi o que me disse.

— Acredito agora.

Havia uma embalagem de seis cervejas no chão, quatro garrafas tomadas, duas restando, perto de Cletus. Ele jogara quatro garrafas na parede no outro lado, três quebrando e espalhando o resto da bebida. A quarta não quebrara, mas abrira um buraco na parede pré-fabricada.

— Vamos deitar, querido. Precisamos conversar.

— Não quero mais conversar.

— Não faça isso comigo. Ambos sofremos. Ambos perdemos. Não me exclua de sua vida. Temos de partilhar isso para sobreviver.

Cletus pegou uma das duas garrafas restantes e estendeu o braço para arremessá-la. A garrafa, no entanto, escapuliu de sua mão, no momento em que ele erguia o braço. Bateu no teto, caiu no tapete, deslizou até a parede, girando. Ele suspirou e soluçou:

— Não consigo nem mesmo quebrar uma garrafa.

— Passe a outra garrafa. Deixe-me tentar.

Cletus fitou-a, a cabeça inclinada para o lado, e ela teve certeza de que o marido finalmente fizera contato com sua presença. E estava sorrindo? Impressionado? Ele entregou a garrafa, como se estivesse ansioso para ver o que Felícia faria.

Ela jogara beisebol na juventude. Abriu o casaco e estendeu os braços, ga­nhando espaço. Ergueu a garrafa por cima da cabeça, como um lançador faria. Deu um passo para trás, baixando a garrafa. Com tudo o que tinha, ela empe­nhou o corpo todo no arremesso. A garrafa atingiu a parede no alto, quebran­do em pedacinhos, com uma chuva de cerveja espumando por toda parte.

Entretanto, o salto prendeu, quando deveria deslizar pelo carpete e o impulso levou-a a cair. Felícia não pôde deixar de rir pelo tombo, contra a vontade, apesar da dor, apesar da raiva, remorso e frustração. E Cletus também achou engraçado porque soltou uma risada.

— Foi um pouco alto, mas tenho de reconhecer que acertou no alvo!

A risada se prolongou, até terminar num gemido. Felícia levantou-se e foi sentar no colo do marido, tirando o casaco pelo caminho. Arriou em seus braços. A poltrona inclinou-se para trás, a ponto de ela pensar que iam cair. Contudo, logo endireitou e os dois ficaram abraçados, com os soluços dos desamparados, devastados e quase destruídos.

Trocaram carícias, partilhando a dor. Quando sentiu que Cletus estava exausto e se acalmara um pouco, Felícia disse:

— Preciso contar o que fiz esta noite, querido.

 

Straight teve de fazer um esforço para permanecer acordado. Sabia que não deveria se estender na cama. Cochilou por alguns segundos. Acordou sobressaltado, convencido de que já passara da hora. No entanto, isso não acontecera.

Finalmente às duas horas da madrugada, ele ligou para o número no car­tão do dr. Graybill. O cirurgião atendeu de imediato.

— Sr. Rathe?

— Isso mesmo. E me chame de Straight.

— Fico agradecido pela ligação. Preciso encontrá-lo em particular.

— Como posso ajudá-lo?

— Não devemos falar pelo telefone, senhor. Posso vê-lo amanhã?

— Quando?

— Recebo pacientes no consultório até o meio-dia. Não tenho de chegar ao hospital até duas da tarde. Poderia encontrá-lo ao meio-dia e meia.

Straight então perguntou:

— Está bem. Onde?

 

— Você recebeu a Cristo?

Cletus enfatizou tanto o verbo que Felícia entendeu que teria muito que explicar. Ele se empertigou na poltrona. Felícia levantou-se e pegou o casaco.

— Limparei a sujeira pela manhã.

— Se eu sujei, tenho de limpar. Agora, quero que me conte tudo.

Foi o que ela fez, mostrando inclusive o que estava escrito no arquivo secreto. Cletus tinha as mesmas perguntas que ela fizera: Como Deus fizera que ela se sentisse uma pecadora? Deus não era o pecador?

— Fomos avisados, Cletus. Todos nós fomos avisados. Não se pode ex­cluir Deus da vida e depois especular onde ele está quando tudo sai errado. Havia uma solução para isso, uma saída. Entretanto, em nosso orgulho e ig­norância, não quisemos escutar, não acreditamos. Los Angeles deveria servir de indicação, mas preferimos não dar importância.

Cletus sacudiu a cabeça.

— Admito que Deus provou sua existência, mas ainda não sei como você passou para o outro lado. Por que fez isso? Porque Deus não lhe deixou opção? Porque Deus a pressionou?

— Ainda tenho uma opção. Posso sacudir o punho para Deus, jogar gar­rafas na parede, tentar matá-lo. Contudo, se é verdade, se tudo isso é real, se Deus tem poder de vida e morte, de dar e tirar, o resto deve ser real também.

— O resto?

— O fato de que Deus tenta atrair nossa atenção há décadas. Ele oferece perdão e vida, mas nós.... todos nós... o repelimos, o tornamos ilegal, até ne­gamos sua existência. É de admirar que ele não tenha exterminado a todos.

— Você está agora no lado de Deus. Para a onp, é uma traidora do país, uma agente dupla, uma fugitiva, assim que for descoberta.

— Isso mesmo, Cletus. Você está comigo?

 

— DEUS FALOU COM VOCÊ? - PERGUNTOU CLETUS. — De que maneira? Ouviu sua voz?

Felícia estava outra vez no braço do sofá, inclinada para o marido. Cletus devia pensar que ela dizia insanidades e por isso Felícia empenhava-se ao máximo em ser séria e objetiva. Se alguma vez uma conversa maluca tinha de ser levada a sério, era aquela.

— Não ouvi com os ouvidos. Ouvi com o coração, a alma e a mente.

— Ouviu a si mesma... ouviu o que queria ouvir.

— Não foi isso, Cletus. Esperei e esperei. Cada vez que estava prestes a ex­plodir, a injuriá-lo de novo, podia sentir Deus ou alguma coisa, ou alguém... exortando-me a esperar. Deveria sentar e escutar. Tinha feito uma pergunta e não apenas merecia e esperava uma resposta, mas também estava prestes a recebê-la.

— Por isso, ele falou com você, com seu ser interior. — Era evidente que Cletus não estava acreditando. — O que ele disse?

Felícia sentiu a voz embargada. O que a surpreendeu, embora não deves­se. A mensagem a fizera chorar quando a ouvira. Não sabia porque pensara que poderia relatar tudo para o marido sem se sentir emocionada de novo. Ela forçou um sussurro através da garganta apertada:

— Ele me lembrou que eu não era a primeira mãe ou pai a perder um filho. Que também perdera seu Filho.

Cletus piscou, aturdido.

— Sei disso, mas....

Felícia esperou. Sei disso, mas... o quê? O que Cletus podia dizer? Que não era justo porque Deus era Deus e tinha o poder para trazer seu Filho de volta à vida? Que não era justo porque Danny não voltaria para eles?

— Isso o fez se sentir melhor? — perguntou Cletus. Ela sacudiu a cabeça.

— Nada me faz sentir melhor, meu amor. Às vezes sinto que nunca vou superar, que não conseguirei sobreviver.

— Não tenho certeza se quero continuar a viver.

— Claro que quer, Cletus. Preciso de você. É o meu rochedo. Não posso continuar sem você.

Ele baixou o rosto nas mãos.

— Que rochedo... um velho maluco sentado no escuro, jogando garrafas na parede.

— Fazemos o que temos de fazer.

— O que isso significa? Joguei as garrafas na parede porque era uma coisa que tinha de fazer?

Felícia colocou a mão no joelho do marido.

— Vamos permanecer juntos, companheiro. Fomos você e eu durante tan­tos anos, enfrentando todas as outras coisas.

— É verdade, mas... — Lá vinha ele com outra ressalva. — Agora é muito diferente, meu bem. Isso é evidente. Quase enlouqueci, enquanto você ouve Deus em sua alma.

— Mas eu ouvi! E ele disse que me amava! Ele ama todo mundo!

— É uma estranha maneira de demonstrar.

— É justamente isso. Ele vem tentando demonstrar seu amor há séculos, mas sua criação é sempre rejeitada. Adoramos tudo, menos a Deus. Adoramos nossa mente, satisfazemos nossos anseios e necessidades. Decidimos que ele nem sequer existe. Ele ouve as orações de seus fiéis e dá seu julgamento em Los Angeles, mas nos apressamos em encontrar uma explicação e continua­mos a viver como antes.

— Ele lhe disse tudo isso?

— E o que eu sei. Deus é mais do que amor, bondade e paciência. Também é virtuoso e justo. E sua paciência tem limites.

— O que parece óbvio — comentou Cletus. — Ele disse alguma coisa sobre matar uma mosca com uma bomba atômica?

— Não estou entendendo.

— Não acha que a reação foi exagerada? Não deveria haver alguma etapa intermediária entre a seca em Los Angeles e a morte de um bilhão de homens, meninos e até bebês? Ele não poderia tentar atrair nossa atenção de novo an­tes de descarregar todo o seu arsenal?

Felícia foi subitamente dominada por uma imensa fadiga. Tinha pensa­mentos; tinha até argumentos. Entretanto, não podia enunciá-los. Sacudiu a cabeça.

— Não sei. E acho que não saberei até encará-lo.

— Eu gostaria de encará-lo neste momento — declarou Cletus.

— Tome cuidado, meu amor. Temos um jeito de conseguir o que pedimos para acontecer.

— E é isso o que tinha de nos acontecer?

Felícia não notara como ele parecia, os movimentos dando a impressão de que era o velho que alegava ser. Pobre Cletus. Ele está no final de si.

— Tudo o que sei, Cletus, é que pagamos um preço muito alto para final­mente concentrar nossa atenção em Deus. E agora que ele conseguiu, quero que saiba disso. Aceito que ele é Deus, que é Todo-Poderoso, que fez o que tinha de fazer. Não gosto. E às vezes não gosto dele. No entanto, acredito nele. Como poderia deixar de acreditar? Recebi Deus e confessei para você, porque não quero que nada de ruim aconteça comigo, conosco. Talvez tenha sido em parte por isso. Mas aceitei, Cletus. Não importa o quanto mais cus­te, o quanto possa significar, estou do lado de Deus. Lutarei por sua causa. Combaterei seus inimigos.

— Ou seja, seu empregador, seu governo.

— Isso mesmo. Fomos nós que tentamos excluí-lo, ignorá-lo, fingir que ele não existia. Conhece alguém que ainda diz isso? As pessoas podem lutar contra Deus, sentir raiva de Deus, mas só um tolo ainda alegaria que Deus não existe.

 

RANOLD B. DECENTI TINHA UMA ROTINA, em que se apegou. Um privilé­gio de sua posição era o acesso a serviços de emergência com que o homem comum não contava. Conseguira levar o corpo do filho Berlitz e da esposa Margaret para um necrotério oficial. Os funerais, no entanto, estavam além de seu controle, pela imensa quantidade de corpos para dispor.

No entanto, Ranold encontrou um mínimo de satisfação em cumprir suas obrigações. Fizera tudo o que podia, pelo menos por enquanto e se os entes queridos tivessem de permanecer em câmaras refrigeradas — talvez por meses — que assim fosse. E, para ser franco, ele sentia-se contente por não ter de se preocupar com os corpos agora. Nem tinha urgência em fazer mais.

Aryana, a viúva de Berl, já começava a se mostrar desagradável. A princípio, fora gentil com ela, acompanhando o tom solene de Aryana, mostrando-se compadecido pelas perdas comum, de marido e filho, sogra e esposa. Ninguém poderia imaginar nada pior.

Isto é, claro que podia. Ranold conseguira reprimir sua verdadeira avaliação da esposa e do filho. Margaret fora uma companheira submissa, embora chata, durante muitos anos. E embora condenasse o genro — o exuberante Paul Stepola — por suas infidelidades, Ranold também tivera numerosas aventuras amorosas, sem que Margaret tomasse conhecimento.

Sentiria saudade da esposa? Não podia imaginar. Sempre seria possível pagar pelos serviços que ela prestava, na casa e no quarto. E com seu poder, rendimentos e prestígio em alguns casos não teria de pagar um único centavo. Ele descobria-se a pensar em Margaret de vez em quando; afinal, havia as lembranças comuns. Como as viagens e cerimônias de alto nível, recepções e banquetes com chefes de estado. E a criação dos filhos, quando eram bastante jovens para serem maleáveis, dóceis, sem causar maiores desapontamentos.

Entretanto, Berl amadurecera — uma estranha palavra para o que aconte­cera — para se tornar um arrependimento profundo. As mulheres, o dinheiro, os casamentos. Os empregos. As esperanças e sonhos... ou sua ausência. Ora, enfrente a verdade, disse Ranold a si mesmo. Berlitz era um perdedor. E a emo­ção que ele sentira pela morte do filho? Nada mais natural. Ficara chocado, surpreso, revoltado. Contudo, de uma estranha maneira, perder o menino — um menino de meia-idade — não chegava a ser uma grande perda. Na ver­dade, Berl vivo fora um complicador, como acontecia agora com sua viúva.

A paciência de Ranold com Aryana esgotou-se no início da noite de quar­ta-feira, quando ela ligou pela milésima vez, e disse:

— Você e eu temos de planejar o funeral.

— Haverá tempo suficiente para isso mais tarde. Você não tem idéia da quantidade de corpos que está atravancando o necrotério.

— Seu disso, mas... mas, papai, prefiro não pensar em Berl atravancando.

— E prefiro que não me chame de papai, Aryana.

— Desculpe. Mas neste momento me sinto tão próxima...

— Já conversamos sobre isso antes. Você não foi a primeira esposa de Berl e é difícil para mim, com toda franqueza, sequer considerá-la como alguém da família. Espero ter sido sempre cordial, mas...

— Claro que sempre foi cordial — declarou ela, embora o tom de voz indicasse o oposto.

Ranold considerava-se um observador experiente da natureza humana. Sabia quando as pessoas mentiam, até mesmo quando enganavam a si mesmas.

— Preferia que me chamasse de sr. Decenti, ou...

— Parece muito formal. Afinal, meu sobrenome agora também é Decenti. Seria como chamar Berl de sr. De...

— ... ou Ranold. Mas quer saber de uma coisa, Aryana?

— Como, senhor?

— Perguntei se quer saber de uma coisa.

— O que, senhor?

— Preferia que não me chamasse mais.

— Como, senhor?

— Não me ouviu, ou não compreendeu?

— Ouvi, senhor, mas espero não ter compreendido.

— Não estou querendo ser grosseiro, Aryana. Mas não temos mais nada para falar. Meu filho... seu marido... morreu. Resta o funeral, em que estarei presente, é claro, e espero encontrá-la lá.

— Espera me encontrar?

— Entendeu o que eu quis dizer. Por favor, não analise de forma negativa cada palavra que eu disser. Faremos a coisa certa pelo homem, e...

— Pelo homem?

— Ele era um homem, Aryana. Talvez não um homem para valer, mas não vamos pensar nessas coisas agora. Ele morreu e farei a coisa certa, como você sabe muito bem.

Ele a silenciara. Não sabia direito como e não se importava. Era melhor não ouvir nada do outro lado da ligação, ainda mais quando considerava a alternativa: as queixas, as súplicas chorosas. No entanto o silêncio foi de curta duração.

— É minha família agora, sr. Decenti. Preciso...

— Não, você não precisa. Não comece com isso. É difícil dizer que for­mávamos uma família quando você casou. E tudo terminou com a morte de Berl. Claro que você sabe que em termos legais não é mais minha nora.

— Mas quero ser! Não precisa ser legal, oficial, qualquer coisa. Você é minha última ligação com Berl. Eu o amava e...

— Acha que ter sido casada com ele por um breve período lhe dá direito a alguma coisa? Pois deixe-me lhe dizer, minha jovem, que ele tinha um patri­mônio negativo, como deve saber. E nenhum centavo meu vai parar em suas mãos gananciosas e...

— Ranold! Fala assim por causa de seu pesar. De sua raiva. Não quero nada de você. Nunca presumiria...

— Aryana, Aryana, pode me fazer um favor? Vamos voltar a minha decla­ração anterior. Não quero ser grosseiro ou insensível. Meu desejo é que você não me ligue mais. Pode deixar que eu ligo para você quando receber o aviso do necrotério, marcando a data e o local do funeral. Ali, poderemos ser cordiais, partilhar algumas recordações e depois prosseguir em nossa vida separadas.

O clique do telefone desligado surpreendeu Ranold, mas não foi uma reação indesejável. O melhor de tudo, ele presumiu, é que significava o fim daquelas ligações incessantes.

Naquela noite, Ranold vestiu um pijama de seda, pôs o chambre que descia até os pés e assistiu uma hora de noticias, todas péssimas, é claro. Foi se deitar, com sua revista noticiosa semanal predileta e a leu até pegar no sono.

Pela manhã, fez a barba, tomou uma chuveirada e vestiu um terno sob me­dida. A gravata custava mais do que outrora pagava pelas camisas, mas sabia, que no final do dia, estaria ansioso para tirar tudo.

O roubo de seu carro da onp pelo genro, tornando depois uma prova do crime, provou ser uma bênção mista. Ranold tinha de usar o próprio carro para missões pessoais depois do horário de trabalho, mas recebera um carro com motorista para levá-lo e trazê-lo do escritório, apesar da tremenda escassez de pessoal desde que ocorrera o incidente.

Ranold observou o carro se aproximar, sabendo que o motorista não cometeria o mesmo erro duas vezes. No dia anterior, ele estacionara o carro junto ao meio-fio e esperara. E Ranold também esperara. Depois, viera o toque cortês da buzina, que Ranold também ignorara. Finalmente o motorista ligara para a casa de Ranold por seu celular. Ranold, no entanto, recusara-se a atender. O motorista deixara uma mensagem: "Disseram-me para vir buscá-lo, mas acho que não está em casa".

Enquanto o carro se afastava, Ranold telefonara para o escritório e dissera a sua secretária:

— Fale com o idiota que foi designado para ser meu motorista. Mande que ele traga o carro de volta, venha até a porta, como um cavalheiro educado, pegue a minha pasta, abra a porta do carro para mim e faça o seu trabalho direito, se quiser mantê-lo.

Hoje o homem parou na frente da garagem e foi até a porta. Tocou a cam­painha e pegou pasta assim que Ranold abriu a porta. O motorista mostrou-se subserviente e deferente, mas Ranold não respondeu a nenhum comentário e não fez contato visual.

A caminho do escritório, sua secretária ligou para informar que o pessoal de Baldwin Dengler, o chanceler internacional, telefonara para marcar uma ligação pessoal, uma hora depois que Ranold chegasse ao trabalho. Ranold sabia que o incidente dizimara a força de trabalho do serviço de inteligência, no mundo inteiro, inclusive na onp. O chanceler mundial querendo falar com ele pessoalmente? Só podia significar uma coisa: promoção. Talvez ele ascendesse para o posto que sempre deveria ser seu, o de diretor-geral da onp nos seua, ou até mesmo — quem podia saber? — assumisse o comando da onp Internacional.

 

EMBORA CLETUS ESTIVESSE INQUIETO, provavelmente insone, Felícia des­cobriu-se bastante descansada na manhã de terça-feira. Despertara várias ve­zes durante a noite para verificar se o marido ainda estava na cama, ao seu lado. Quase sempre estava. Suspirando e se virando de um lado para outro. Numa das ocasiões, encontrara-o olhando pela janela.

— Você está bem, Cletus?

— Claro que não, Felícia. Você está?

— Sim e não. Sinto um aperto no coração. Estou apavorada. E, no entan­to, experimento uma profunda paz. Não posso explicar.

Ele apontara para a têmpora e girara o dedo.

— Acha que estou louca?

— Claro. Ambos estamos, ou já teríamos morrido.

Felícia voltara a dormir, por algum motivo confiante de que Cletus alcançaria vivo o sol da manhã. Seu próprio pesar estava sempre à beira de sua consciência, mas sentia que tomara uma decisão que alterava o resto de sua vida. Fizera uma opção; a sorte estava lançada. Comprometera-se com a resistência, ao risco da própria segurança, para não falar da segurança de Cletus. Mesmo assim, ela sabia que não havia alternativa. Nenhuma outra decisão permitiria que ela dormisse e descansasse realmente, com tudo o que lhe acontecia na mente.

Não fazia sentido, ela disse a si mesma. Repetiu isso, várias vezes, a caminho do escritório, na manhã de quinta-feira, até em voz alta. Persuadira Cletus a ligar para seu trabalho e alegar doença, a fim de poder ficar em casa e descansar. Ele planejava voltar a dar aulas dentro de uma semana. Felícia sentira nele uma faísca de vida. Tudo o que ela queria, naquele momento, era distraí-lo de sua

perda. A possibilidade de poderem um dia partilhar a fé era sonhar demais, pelo menos por enquanto. A prioridade maior era mantê-lo vivo.

O escritório fervilhava com a busca por Paul Stepola. O chanceler Dengler queria falar com Paul e a direção do escritório sugerira a seu pessoal que tentasse localizá-lo através de Raymond B. Decenti, em Colúmbia. Havia também muitos comentários sobre a pessoa escolhida para substituir Bob Koontz: seria Harriet Johns, que dirigira o escritório em Los Angeles. Ela fora transferida para San Francisco, depois da seca e agora uma redistribuição geral de cargos de chefia, em escala nacional, a levava para Chicago.

Quem era a primeira pessoa que ela queria falar? Felícia Thompson.

— Eu esperava que chegasse ao escritório na hora certa todos os dias, ain­da mais tão pouco tempo depois de o incidente — declarou Harriet Johns.

Felícia acabara de pendurar o casaco. O atraso não chegava a vinte minutos.

— Peço desculpa. Meu marido e eu perdemos um filho.

— Meus pêsames. Tenho certeza de que, contudo, sabe que as pessoas em cargos de confiança devem separar a vida pessoal da profissional. Devo também lembrá-la de que não foi a única a sofrer uma perda.

Felícia acenou com a cabeça, sem dizer nada.

— Espero que, daqui por diante, esteja à mesa e pronta para começar a trabalhar na hora certa.

— Claro, senhora.

— Isso dito, sra. Thompson, preciso saber se alguma vez, durante todos os anos em que trabalhou com o agente Stepola, desconfiou que ele era um agente duplo.

— Não desconfiamos todos... inclusive você?

— Não está aqui para me interrogar — declarou Harriet. — Eu é que faço o interrogatório.

— É mesmo?

— Só quero fazer algumas perguntas.

— Sou suspeita de alguma coisa? Há acusações contra mim?

— Claro que não. Só preciso de suas informações. Afinal, estava mais ligada ao agente Stepola do que qualquer outra pessoa.

— O que era natural.

— E então?

— Claro que desconfiei. E, por algum tempo, ele foi investigado. Depois, Paul resolveu o caso dos atentados terroristas na Europa e todas as suspeitas se dissiparam. Ele conseguiu me enganar.

Felícia achava difícil aceitar a presença daquela estranha na sala de Bob Koontz. A mulher era objetiva, não muito diferente de Bob. Felícia tinha de admitir isso.

— Sabe onde o agente Stepola está agora?

— Não.

— Tem alguma idéia do seu paradeiro?

— Não.

— Não tem pensado a respeito?

— Claro que tenho.

— E qual é seu palpite?

— Acho que eu ficaria surpresa se ele estivesse longe do lugar em que foi visto pela última vez.

— Na casa do sogro.

— Isso mesmo.

— Se ele está se escondendo em Colúmbia, deve ser fácil encontrá-lo. Felícia sorriu.

— Você discorda.

— Discordo.

— Permanece leal ao agente Stepola?

— Permaneço uma funcionária da Organização Nacional da Paz.

— E se tiver notícias do agente Stepola?

— Farei a coisa certa.

— Muito bem. E teve notícias dele?

— Se tivesse, teria feito a coisa certa.

— Excelente.

 

Ranold Decenti pendurou o casaco e o chapéu e foi para seu banheiro parti­cular. Arrumou-se diante do espelho, embora sua conversa com o chanceler Dengler fosse pelo telefone.

Abotoou o paletó, puxou as mangas, endireitou a gravata e passou os dedos pelos cabelos. Dengler podia não vê-lo, mas devia sentir que falava com um homem de prestígio e poder, um homem de realizações. Devia ser capaz de perceber que falava com um igual... não havia outra palavra para descrever a situação.

Ranold deixou que sua secretária falasse com o pessoal de Dengler, até chegar o momento dos dois conversarem por uma linha segura. Ranold lem­brou a si mesmo para reprimir a tendência a dominar uma conversa. Devia se mostrar respeitoso e deferente, ainda mais se era cogitado para uma missão importante.

— General Decenti?

— Sim, senhor.

— Baldwin Dengler, de Berna, apresentando suas saudações da sede do governo internacional.

— Bom dia, Senhor Chanceler.

Ranold especulou a princípio se era mesmo Dengler. Onde estava a voz firme e incisiva, a impressão de confiança? Dengler era formal e profissional, mas não irradiava poder.

— Sei que também sofreu, como muitos de nós, General.

— Por favor, chame-me de Ranold.

— Apresento minhas condolências pelo morte do filho e sua esposa, Ranold.

— Obrigado, senhor. Estou absorvendo o golpe.

— Soube que o agente Stepola é seu genro.

— Lamentavelmente, sim.

— Preciso falar com ele. Pode me ajudar a fazer o contato?

— Como, senhor?

— Presumo que tem o número do celular de seu genro. Em suma: eu gos­taria que ele ligasse para mim.

— Ahn... claro. Posso transmitir a mensagem. Ou posso dar o número do celular...

— Por favor, General. Creio que ambos sabemos que não é provável que ele aceite uma ligação de Berna.

— Parei de tentar prever o comportamento de Paul Stepola, Chanceler. Sabia que ele fez uma lavagem cerebral em minha filha, convencendo-a a assassinar minha esposa.

— Lamento profundamente.

— Perdoe-me por não reconhecer sua perda, senhor. Também sofreu a morte de um filho, não é mesmo?

— Todos nós estamos tentando enfrentar da melhor maneira possível, General. Obrigado. Por favor, avise ao agente Stepola que...

— Ele não é mais um agente, senhor.

— Claro, claro... Veja se consegue pedir a ele para me ligar, está bem?

— Farei o melhor que puder. Foi uma honra lhe falar, senhor.

— O prazer foi meu.

— Mais alguma coisa que eu possa fazer?

— Isso é tudo.

— Mas eu... desculpe.

— Quer me dizer alguma coisa, General?

— Eu... ahn... perdoe-me, senhor, mas posso presumir que seu motivo para querer falar com Stepola se relaciona com sua eventual captura e julgamento?

Uma longa pausa sinalizou para Ranold que ultrapassara os limites da conveniência.

— Desculpe, Chanceler. Isso não é da minha conta. Eu... Dengler suspirou.

— Não tem problema. Suponho que se alguém tem o direito de saber é você. Claro que como responsável pelo cumprimento da lei quero a captura de Stepola. Por outro lado... tem um minuto?

— Claro que sim.

— Temos idade e experiências similares, General. Já testemunhamos nos­sa quota de tragédias. Conheço sua história.

— Obrigado, senhor.

— Talvez Stepola tenha se mantido reticente com você até o fim, mas o fato é que, a sua maneira, ele tentou me avisar.

— Tentou avisar?

— Do que estava para acontecer. Ele me exortou a considerar com todo cuidado a advertência do movimento de resistência.

— Os fanáticos clandestinos — resmungou Ranold, com uma irritação evidente.

— Na ocasião, General, pensei que ele estava apenas sendo um bom sol­dado, no sentido da onp. Considerar os dois lados; reduzir as perdas; manter

uma margem de segurança não esquecer o panorama geral e quanto maior, melhor.

— Ah, sim, tudo isso... Ele, contudo, não falou a respeito comigo. Fez-me acreditar que era leal, até que se tornou evidente que não era mais. Como deve saber, eu já estava de olho nele, há algum tempo.

Outro suspiro do chanceler.

— Agora, todos nós estamos, não é mesmo?

— É verdade. É por isso que estou curioso sobre suas intenções.

— Para ser absolutamente franco, General, quero saber mais sobre o que ele sabe. É óbvio o lado em que ele está; e quer gostemos quer não, ele ligou seu destino ao lado que está vencendo.

— O que está querendo dizer com isso?

— Ora, Decenti, não pode admitir que sofremos uma derrota fragorosa esta semana? A negação pode ser pior do que a derrota.

— No entanto, não se perde uma batalha e se entrega a guerra, não é mes­mo, senhor? Estou na ofensiva. Quero retaliar, sem fazer prisioneiros, vencer a qualquer custo.

— Não é o que todos nós sempre queremos? Se a história, contudo, já nos ensinou qualquer coisa, é saber quando estamos numa situação de inferioridade.

Ranold não podia mais se conter.

— Acha que estamos vencidos?

— Você também não acha?

— Absolutamente não! Estou disposto a admitir que posso ter subestimado o inimigo, mas o que aconteceu na terça-feira só me tornou ainda mais determinado.

— Meus parabéns, General. É isso o que queremos, em seu nível na co­munidade de inteligência.

— E não é a sua posição, Chanceler?

— Na minha posição tenho de encarar a realidade. Enfrentamos uma for­ça que tem o poder de matar um bilhão de homens e meninos num instante. Isso deve nos fazer pensar e talvez solicitar uma reunião com o outro lado.

Ranold descobriu-se de pé, furioso. Quando a conversa acabou, ele voltou ao banheiro. Chutou a porta com tanta força que arrancou a maçaneta, deixando um buraco na madeira. A secretária veio correndo.

— Está bem, senhor?

Ranold foi até o vaso e vomitou.

— Precisa que eu chame alguém?

— Estou bem! — balbuciou Ranold.

Ele limpou a boca e tornou a se fitar no espelho. Fervia de raiva. Quem po­deria imaginar que o chanceler Baldwin Dengler demonstraria ser um fraco? Ranold seria forçado a lutar sozinho aquela batalha? Se o mundo precisava de alguma coisa naquele momento, era de um líder.

 

Paul acordou para encontrar várias mensagens em seu telefone: três de Felícia, seis do sogro.

Felícia relatou o que estava acontecendo em Chicago e avisou-o para não ligar para ela. A própria Felícia ligaria, sempre que tivesse uma oportunidade. As mensagens de Ranold eram cheias de insultos e ameaças. Em resumo, ordenavam que ele ligasse para Dengler.

O interessante era que Paul deixaria o homem — isso mesmo, o chanceler — esperar um pouco. Precisava ter certeza de que Dengler não poderia loca­lizar a origem da ligação. No entanto, o que o homem podia querer, além de falar sobre Deus e o que ele fizera? Não havia muito mais para dizer. Com toda certeza, Dengler não daria os parabéns a Paul por enganá-lo. O tempo para falar diretamente com o chanceler poderia chegar e teria a maior impor­tância estratégica. Agora, porém, a ligação teria de esperar.

 

O dr. Gregor Graybill disse a Straight que aprendera que o melhor lugar para um encontro clandestino era bem à vista de muitas pessoas. Por isso, marca­ram o encontro no refeitório do hospital.

— As pessoas podem pensar que estamos conversando sobre uma estraté­gia para os pacientes — comentou o médico. — E talvez falemos sobre isso.

Puseram comida nas bandejas e foram sentar, fingindo que eram velhos amigos. Assim que sentaram, o médico abriu um copinho com pudim e inclinou-se para frente para que só Straight pudesse ouvi-lo.

— Precisamos confiar um no outro.

— É mesmo? Por quê?

— Porque sei que você é um cristão.

— Não sou nada disso. E você arrisca sua liberdade e a própria vida ao falar sobre essas coisas. Portanto, recomendo que tenha mais cuidado.

— Há muito que já passou o tempo para ter cuidado — declarou o dr. Graybill. — Se isso lhe deixa mais seguro, eu me declaro primeiro. Sou um fiel. Trabalho com médicos que pensam da mesma forma para determinar quem está conosco e quem não está. Quando o inimigo está sob nossos cui­dados, retardamo-nos um pouco.

— Como assim?

— Não violamos o juramento hipocrático, mas digamos que essas pesso­as demoram mais do que outras a voltar ao trabalho. Fiz isso, por exemplo, com um paciente cego com quem você trabalhou no ano passado.

Straight estremeceu. Fora isso que o incidente conseguira? Deixara os fi­éis clandestinos mais temerários?

— O que acontece se me interpretou da maneira errada Doutor?

— Saberei muito em breve, não é mesmo? Você me denunciaria. E quan­do as forças dizimadas do governo forem acionadas, serei preso, julgado e, presumo, executado.

— Tão simples assim?

O médico acenou com a cabeça.

— Eu não faria esse contato se não tivesse certeza sobre você. Agora ficarei mais tranqüilo se me assegurar que estamos no mesmo lado.

Straight recostou-se na cadeira e estudou o homem. Bravata ou deses­pero? Não sabia como entender o médico. O homem não podia desconfiar das estreitas ligações de Straight com todo o movimento clandestino. Se Graybill tivesse chegado a essa conclusão, a situação de Straight poderia ser crítica.

— Pelo bem da conversa, vamos presumir que você não acaba de come­ter suicídio. O que pode querer comigo?

O dr. Graybill mastigou uma bolacha salgada, seguindo com um gole do chá gelado.

— Informações sobre os pacientes. Você sabe melhor que nós com quem estamos lidando. Nós só sabemos os nomes... reconhecemos alguns, é cla­ro... e os registros médicos. Imagino que você tem uma noção melhor de quem é quem, para que pessoas devemos reservar um tratamento... mais lento e deliberado, digamos assim.

Straight tomou um gole do café. Esfregou os olhos. Passou a mão pelo rosto, percebendo que esquecera de fazer a barba. Se fossem jogadores de pôquer, ele teria revelado tudo e o dr. Graybill saberia que encontrara o homem.

— Vamos pôr da seguinte maneira — disse Straight. — Se você receber informações sobre um ou outro paciente, pode respirar mais tranqüilo e agir de acordo. Se, em vez disso, for preso, saberá que cometeu um equívoco lamentável.

 

Felícia esperou até que a maioria das pessoas tivesse ido embora, inclusive Harriet Johns, antes de seguir para o cubículo de Hector Hernandez. O ho­mem estava absorvido em alguma coisa no computador e, por isso, teve um sobressalto, derramando café na mesa, quando ela bateu de leve na parede.

— Desculpe — murmurou Felícia. — Não tive a intenção...

— Não foi nada, senhora. Entre, por favor.

Hector limpou o tampo de vidro da mesa com um pequeno guardanapo de papel e usou o dedo indicador da outra mão para traçar arcos opostos e cruzados no resíduo.

Ele limpou tudo no instante seguinte, mas Felícia percebeu o signifi­cado.

— Gosta de frutos do mar, Hector?

— Adoro peixe.

Ela balançou a cabeça, sussurrando:

— Está correndo um enorme risco.

— Quando começaram os rumores sobre seu chefe, perguntei como você podia trabalhar para ele. A menos...

— A menos que eu também gostasse de peixe?

Ele indicou com um aceno de cabeça que Felícia devia se aproximar mais.

— Sabe que há uma rede de... ahn... pessoas que gostam de peixe aqui e em outros escritórios.

— Por que ninguém me disse nada? Eu bem que precisava de algum apoio.

— Não tem outros amigos que gostam de peixe? Felícia sacudiu a cabeça.

— Um ou dois parentes, mas não são próximos.

— Quero lhe mostrar uma coisa.

Ela inclinou-se por cima do ombro de Hector para dar uma olhada na tela.

— Isso é seguro?

— Acha que eu arriscaria se não fosse? Sou eu quem projeta os sistemas de segurança aqui.

Felícia estremeceu quando alguém se aproximou e perguntou:

— O que vocês dois estão fazendo aqui tão tarde?

 

SERIA POSSÍVEL QUE O ESQUEMA DE FEÜCIA acabasse tão depressa? Como Paul durara tanto tempo? Ela era mesmo uma amadora. Dois dias em sua nova vida e já fora descoberta.

A intrusa era Trudy Naberkowitz, no uniforme cinza da segurança. Corpulenta e de cabelos curtos, ela estava no escritório de Chicago há quase tanto tempo quanto Felícia. Ela ainda se lembrava do primeiro dia de Trudy no serviço. Era jovem e magra, sorridente e dinâmica. Parecia adorar o uni­forme, o cinturão de couro, as algemas, o cassetete, a autoridade presumida. E dava a impressão de não ter endurecido ao longo dos anos, como acontecia com muitas mulheres da segurança.

— Oi — disse Felícia. — Nós estávamos... Hector interrompeu-a:

— Finalizando um relatório para o General Decenti, em Washington.

— O problema é o seguinte, sra. Thompson — disse Trudy, a voz pouco acima de um sussurro. — Meu chefe a viu no monitor, disse que não pode deixar de ter muito cuidado hoje em dia, que não se pode confiar em ninguém, mais isso e mais aquilo. Ele queria vir até aqui para censurá-la por incomodar um técnico que provavelmente tem autorização para trabalhar depois do expediente. Eu disse que a conhecia e ele comentou que todo mundo a conhecia. Falei que precisava esticar as pernas, que viria lhe falar e aproveitaria para pegar um café. Ele concordou.

Hector parecia aceitar com a maior naturalidade, mas Felícia tinha a sensação de que o coração batia tão forte que todo o mundo podia ouvir. Não era feita para aquilo. Frenética em encontrar uma explicação, ela ficou paralisada, olhando primeiro para Trudy, depois para Hector, já se imaginando no uniforme laranja da prisão.

— Eu já ia embora e resolvi me despedir... — murmurou Felícia, a voz esganiçada.

Os olhos de Trudy faiscaram.

— Mas que história é essa, sra. Thompson? Hector falava sobre seu anti­go chefe para incluir mais informações num relatório para Washington, ou apenas veio se despedir de um amigo que ninguém sabia que era seu amigo até agora?

— Eu... isto é, nós...

Trudy piscara para Hector? Felícia caíra numa armadilha? Poderia ter sido tão descuidada? Tão estúpida? Ela fechou a boca, determinada a não dizer nada, até chamar um advogado.

— Não o vi no Wilson's no mês passado, Hector — comentou Trudy.

— Estarei lá dentro de duas semanas — disse Hector. — Todos irão. Provavelmente até a sra. Thompson.

Reunião mensal?No Wilson's?

— Conhece o Wilson's, não é mesmo, Felícia? — perguntou Trudy.

— Conheço um Wilson's. — A voz de Felícia tremia. Sentia-se como os Três Patetas bancando os espiões. — O restaurante em Joliet?

Hector fitou-a com um olhar sugestivo.

— Para ser mais especifico, um restaurante de frutos do mar em Joliet.

— Temos uma reunião mensal ali — disse Trudy — de pessoas que adoram frutos do mar. Hector está certo. Talvez esteja presente no próximo encontro?

Felícia não podia controlar a pulsação.

— É possível.

— A paz esteja com você — sussurrou Trudy.

— E com você também — respondeu Hector. Trudy olhou para Felícia.

— A paz esteja com você.

Felícia hesitou. Era evidente que se tratava de algum código. Ela olhou para Hector, que acenou com a cabeça. Felícia disse:

— E com você também.

Trudy sorriu, mas Felícia estava perplexa.

— Estou totalmente confusa. Como você....?

—Vim até aqui para proteger um irmão, mas percebi pela expressão de Hector que ele sente-se seguro com você — explicou Trudy. — Desde o incidente, mais

e mais dos nossos estão saindo de seus esconderijos. E por isso que a próxima reunião do peixe-frito será a maior de todas.

— O que a tornará mais perigosa — comentou Felícia.

— Por que mais perigosa? Tem lido os jornais?

— Os jornais? Não. Quem tem tempo?

— Encontre um tempo. Editoriais, cartas dos leitores... Todos estão dis­postos a dar mais liberdade ao movimento cristão. É uma onda que cresce cada vez mais.

— Isso não significa que vai acontecer — insistiu Felícia. — Essas pessoas estão apenas se identificando para as autoridades, na maior insensatez.

— Pois saiba que até os descrentes estão apoiando. Ninguém quer uma repetição do que acaba de acontecer. E agora, por favor, diga que tem auto­rização para permanecer no escritório depois do expediente, como Hector, para eu não ter de mentir para meu chefe.

— Claro que tenho.

— Ainda bem. Podem continuar.

— Quer saber o que estávamos realmente fazendo? — indagou Hector. Trudy ergueu a mão.

— Quanto menos eu souber, melhor.

 

Na segunda-feira, 28 de janeiro, Paul ainda não ligara para Ranold, muito menos para Baldwin Dengler. A interferência no sistema de computador persistia e não havia um único técnico que pudesse assegurar a Paul que uma ligação teria segurança absoluta. Tudo estava comprometido. Ele perguntou a Jack como era possível, com um sistema de segurança aparentemente impenetrável.

— Você não vai querer saber — comentou Jack.

— Claro que quero.

— Só pode ter sido alguém de dentro. De outra forma, ninguém poderia decifrar o código.

Jae parecia assentada e pensativa ao mesmo tempo, preocupada com as crianças, mas também muito satisfeita por seu trabalho com Ângela. Todos os dias, as crianças mostravam-se ansiosas em contar a Paul o que haviam apren­dido. Ele escutava com a maior atenção, assim como Jae os dois também aprendiam. Histórias da Bíblia e da vida de Jesus... fascinantes, comoventes, perceptivas, que eles já deveriam conhecer há anos.

Jack Pass estava mais ansioso do que nunca em viajar para os outros es­conderijos subterrâneos, a fim de exortar as pessoas a se unir e orar por um novo ato de Deus, ainda mais dramático. Paul resistia, concordando com Greenie: se a morte dos primogênitos, no mundo inteiro, não alcançara o coração endurecido das pessoas, nada mais poderia fazê-lo.

Contudo, Jack não se deixava dissuadir. Espalhou meia dúzia de dossiês em cima da mesa, na frente de Paul, mostrando como podia se apropriar da identidade de homens de sua idade e compleição que haviam morrido no incidente. Alguns eram pretos, alguns índios, alguns hispânicos.

— Tenho pessoas que podem torná-lo parecido com qualquer um — ga­rantiu Jack. — Pintam a pele, tingem os cabelos, usam lentes de contato, próteses dentárias, roupas, tudo o que for necessário. Sua própria esposa não o reconheceria.

— Nem ela ia querer. Se eu a deixasse agora, provavelmente me diria para não voltar.

O telefone no molar de Paul vibrou. Ele comprimiu as pontas dos dedos, fazendo o interlocutor se comunicar diretamente com seu ouvido interno.

— Número secreto e privado.

Ele sussurrou um código e foi informado que o número era do governo. Ainda bem que resistira ao impulso de atender. Ele esperou que soasse o bípe que indicava o fim da mensagem, depois pediu licença e afastou-se por um corredor vazio.

Dengler? Ranold? Felicia? Harriet Johns?

Não poderia ficar mais surpreso ao ouvir a voz de Bia Balaam. Tinham uma história... e que história! Uma pesquisa cautelosa de Paul indicara que ela se encontrava por trás do martírio de Andy Pass, seu ex-comandante nas forças especiais e irmão de Jack. Bia desconfiara de Paul desde o início, não fizera segredo e seguira-o por vários países na tentativa de incriminá-lo.

Com mais de um metro e oitenta de altura, magra, olhos prateados que combinavam com os cabelos, Bia era tudo o que o antigo Paul teria admirado em alguém num posto de comando na onp: implacável, fria, cruel, ambiciosa, condescendente, sarcástica.

No entanto, não foi isso que ele ouviu na mensagem. Era mesmo a voz de Bia, sem nenhuma dúvida, mas num tom e num timbre como ele nunca ouvira antes. Não confiava nela. Nem podia. Mas Bia recorrera a tudo o que podia para convencê-lo de que era sincera.

— Paul, você precisa me ligar. Por favor. Tem o número do meu celular pessoal. É uma linha segura. Ignore seu sogro, se for preciso. E ignore tam­bém o chanceler, se não confia nele. Mas não deixe de me ligar. Para mostrar como falo sério e com total transparência. Antes mesmo de lhe dizer o que quero, devo avisá-lo que vou trair a onp, trair meu governo, ir contra tudo o que eu sempre soube, tudo o que sempre me ensinaram. Contarei o que sabem sobre seu paradeiro e o que pretendem fazer com as pessoas no escon­derijo subterrâneo em Colúmbia.

Você pode não acreditar, mas terá de especular como eu sei, e por que estou lhe dizendo isso. Há apenas uma razão. Estou admitindo. Você venceu. Seu povo e seu Deus provaram do que são capazes, pelo menos para mim. Perdi meu filho que era tudo para mim. Nada mais tenho a perder, nada mais tenho a oferecer. E não posso arriscar a vida de minha filha por uma causa em que não acredito mais.

Sei onde você está, Paul. Sei com quem você está. E conheço o perigo que todos correm, quanto tempo mais ainda tem para sair daí. Quando eu der os detalhes, você compreenderá que estou dizendo a verdade e espero que tenha certeza de que estou sendo sincera. Preciso que você me ligue. Por favor.

 

FELÍCIA PAROU PARA COMPRAR UM exemplar do Chicago Tribune antes de sair da cidade. Guardaria para partilhar com Cletus. Tinham de fazer alguma coisa juntos, além de chorar e se compadecer, comer e tentar descansar. No entanto, não pôde evitar um olhar para as manchetes. Trudy Naberkowitz tinha razão. Alguma coisa encorajara a população, até mesmo as pessoas que se descreviam como não-religiosas.

Devia ser assim há quarenta anos, pensou Felícia, antes de o mundo ser arrasado por uma guerra terrível, com a perda de vida pandêmica, a ponto de até as pessoas bem-intencionadas concordarem que a proibição da religião seria um bom começo para erradicar a guerra.

Agora, parecia haver finalmente uma reversão dos sentimentos. Ela e Cletus sentaram lado a lado à mesa da cozinha, forçando-se a comer para manter as forças. Os ombros se encostavam, como se pudessem cair se não houvesse esse apoio, enquanto liam notícias do jornal um para o outro.

As muitas histórias de pessoas corajosas se manifestando, até mesmo em anúncios de página inteira com dezenas de assinaturas, fizeram Felícia e Cletus ligar a televisão para acompanhar o noticiário. E histórias de manifestações, desfiles e discursos eram transmitidos do mundo inteiro. Um homem na praça Bughouse, em Chicago, declarou:

— Os fiéis clandestinos, fanáticos, extremistas, como quer que sejam cha­mados, são a nova minoria, os novos oprimidos.

— Como eles podem ser oprimidos? — protestou outro. — Não sofreram! Nós é que perdemos filhos, irmãos, pais!

— Deus está do nosso lado! — disse o orador. — Eu era um ateu e agora sou um agnóstico. Isso parece, no entanto, absurdo até para mim, quando a

promessa de uma praga se consumou diante de meus olhos. Não vou idolatrar esse Deus vingativo. Entretanto, nunca mais fingirei que ele não existe, que não tem o poder de me esmagar como se fosse um mosquito. Só estou dizendo que não será o fim do mundo se suplicarmos ao governo para revogar a proibição da prática da religião. O mundo pode muito bem acabar se a proibição não for revogada. Queremos outro julgamento? Outra demonstração do poder além de nossa compreensão? Eu não quero! As pessoas de fé jogaram seu trunfo e nós perdemos a mão. Não vamos correr o risco de perder todo o jogo.

Os discursos e as discussões estavam acontecendo no mundo inteiro.

"Não precisamos admitir nada, acreditar em alguma coisa, ou até mudar nossa maneira de viver", opinou um francês, numa carta ao mundo. "Não aprendemos a viver e deixar viver? Nossas leis provincianas oprimiram essas pessoas de maneiras que nunca permitiríamos que nos oprimissem. Não temos de concordar. Não precisamos nem mesmo gostar delas nem reconhecê-las. Basta deixar que vivam como desejarem. É um preço muito pequeno para evitar uma repetição do que sofremos... ou ainda pior."

 

Ranold Decenti concentrou-se no trabalho. Passara da semi-aposentadoria para o comando em tempo integral da força-tarefa de Fanáticos Clandestinos, e agora também era o diretor interino da onp nacional. Não apenas era um cargo que sempre desejara, mas também proporcionava intensa satisfação por ocupar todo o seu dia, de manhã cedo até tarde da noite, com um trabalho real. Não precisava mais voltar para jantar em casa ao final de um longo dia. Podia ordenar que a comida fosse entregue no escritório e continuar a trabalhar.

O ex-general verificou seu orçamento, satisfeito — embora nunca usasse esse termo — ao constatar que a redução nos salários em conseqüência do incidente muito em breve superaria o que tinha de ser pago aos sobreviventes. Decenti transferiu milhões de orçamentos com sobras para o seu. Mandou a secretária marcar uma audiência pessoal com o chanceler Dengler na Suíça. Alguém tinha de incutir um pouco de bom senso no homem, ou pressioná-lo para sair do caminho. A resistência consistia de tigres de papel que só com­preendiam uma única linguagem: um dialeto de intimidação que Ranold B.

Decenti ainda entendia, mesmo que Baldwin Dengler não quisesse mais usá-lo. Dengler deixava Ranold nauseado. Agora, ele daria um jeito no chanceler.

— O prazo de 22 de março para assinar os juramentos de lealdade ainda está em vigor, ou foi revogado? — perguntou Ranold a Dengler, pelo telefone.

— Responderei daqui a pouco, General. Primeiro, quero saber se o ex-agente Stepola recebeu minha mensagem. Não recebi notícia dele ou sua.

— Fiz a minha parte, senhor Chanceler, mas não posso obrigá-lo a ligar.

— Entendo...

— E o prazo para a assinatura?

— Como pode imaginar, General, tudo está suspenso agora. Tudo é con­dicional, sob revisão.

Ranold não podia sequer fazer um comentário, com medo de explodir.

— Compreende a situação, não é mesmo, General? Ele compreendia... e compreendia muito bem.

— Há alguma coisa faltando nessas histórias — comentou Felícia.

— O que é? — perguntou Cletus.

— Não chegam a contar o que é a resistência clandestina. Reconhecem que é formada por pessoas de fé e que invocaram Deus para agir por sua conta, o que ele fez. Mas ninguém reconhece o outro lado de Deus. Seu amor, misericórdia, interesse em atrair nossa atenção.

Cletus sacudiu a cabeça.

— Ele atraiu mesmo a atenção de todo o mundo, Felícia. Ninguém pode dizer que ele não fez isso.

— Tenho uma idéia. Por que não transmitir as anotações de Paul... a ex­plicação sobre a maneira de receber a Cristo... para todos que tenham um computador?

— Isso é redundante, Felícia. Todo mundo tem um computador. E a maio­ria das pessoas tem mais de um.

— Então vamos fazer isso.

 

Se havia uma ligação que Paul queria retornar era a de Bia Balaam. Pensara em sua mensagem, orara a respeito, avaliara por horas e não podia deixar de encontrar uma explicação, além do que ela alegara.

Se era verdade que Bia violava todos os regulamentos da onp ao lhe contar tanto, que motivo ela podia ter, além do pessoal? Paul não sabia, mas não queria ser enganado.

A bola permanecia no lado da quadra em que Bia estava. Ela queria falar com Paul, não o contrário. Isto é, o oposto também era verdade, mas ela não precisava saber. O fardo caberia a Bia. Que ela o procurasse.

Ela tentou. E tentou de novo. Cada vez que não conseguia falar com Paul — e era dele a opção de não falar — Bia deixava uma mensagem mais deta­lhada. Finalmente, ela disse:

— Muito bem, se é isso o que é preciso para convencê-lo, esquecerei a cautela e me tornarei vulnerável a uma acusação de traição.

E Bia disse onde ele e sua família estavam escondidos; indicou onde ficava exatamente o esconderijo subterrâneo; deu os nomes de Jack Pass, Ângela Pass Barger e até mesmo Greenie Macintosh; a extensão da infiltração dos técnicos da onp no sistema de computador; e até a hora marcada para o ata­que que dizimaria o movimento cristão de Colúmbia.

Paul foi imediatamente falar com Jack. Ousariam pedir ajuda a outras regiões? E como poderiam usar o sistema de computador comprometido?

 

Hector Hernandez disse a Felícia que adorou a idéia de divulgar as instruções de Paul Stepola sobre a maneira de receber a Cristo. Foi trabalhar em casa, no esforço para construir um programa que pudesse ser acionado por controle remoto. Não apareceria nenhuma referencia ao trabalho de Hector nos com­putadores da onp; mas se tudo funcionasse direito, todos os computadores do mundo receberiam as instruções de Paul.

E todos os interessados em saber como uma pessoa podia trocar de lado não teriam mais nenhuma desculpa.

 

STRAIGHT ACREDITAVA QUE HAVIA SABEDORIA em muitos conselhei­ros, mas por enquanto queria apenas um, Abraão, o codinome do líder dos Vigilantes, um grupo de elite formado em grande parte pelos homens nas minas de sal de Michigan / Ohio. E apesar da complicação de viajar num período caótico como aquele, Abraão se mostrara bastante alarmado com a história de Straight para sugerir um encontro pessoal em Chicago.

— O homem me parece crível — comentou Abraão, os dois sentados num banco gelado perto da Fonte de Buckingham, desligada durante o inverno.

— E se ele merece credibilidade, o quanto devo lhe revelar?

— O quanto você sabe?

— O suficiente. Recebo uma lista impressa de novos pacientes. Reconheço muitos nomes do noticiário, e meus contatos ajudam com outros. Stepola conhece a maioria, é claro, mas outros também são úteis.

— E o que você tira disso?

— Como, senhor?

— Não acha que deve ser recíproco, dr. Rathe? Straight deu de ombros.

— Eu não havia pensado nisso.

— Pois então comece a pensar. Na melhor das hipóteses, você e esse cirurgião estão do mesmo lado e podemos obter um grande beneficio com o que ele pretende fazer. No entanto, você se torna tão vulnerável quanto ele. Digamos que você dê um ou outro nome, confirmando que faz parte da resistência e ele não é quem diz ser. Você se incriminou. Pelo menos faça o risco valer a pena.

— E o que devo querer dele? Abraão ofereceu um sorriso cansado.

— Pense, homem. O que mais precisamos?

— Não consigo pensar com clareza há dias, irmão. Perdoe-me e diga. Abraão suspirou.

— Você diz que esse médico assegurou que não causa nenhum mal aos pacientes, o que violaria seu juramento. Mesmo assim, uma porcentagem de seus casos é de pacientes terminais. Parece uma coisa sem maior importância que ele informe a você quem são os pacientes que vão morrer de qualquer maneira, para que possamos aproveitar o aviso.

— Com a apropriação de suas identidades. Abraão pôs a mão no joelho de Straight.

— Não está tão cansado que não possa pensar de forma objetiva.

 

Depois de dias de frustração, o governador da Região de Colúmbia, Haywood Hale, designou oficialmente Ranold B. Decenti para diretor interino da onp-seua. Ranold desejou que o governador o visitasse em seu escritório. Mas o protocolo exigia que o general fosse à Ala Oeste da antiga Casa Branca.

Quanto mais tempo esperava, mais agitado Ranold ficava. Pensou em demonstrar sua irritação, até mesmo falar mal do chanceler internacional, mas achou que era melhor se manifestar depois que fosse marcada a audiência.

O Gabinete Oval era uma pálida representação do que fora quando os presidentes americanos residiam ali. O Governador Hale instalara cubículos no Gabinete Oval, retirando os lindos móveis que havia ali.

O governador alto e magro já tinha mais de oitenta anos. Fora o último vice-presidente no sistema antigo, antes de ser designado para seu cargo atual pelo antecessor de Baldwin Dengler. Apesar da pele muito pálida e murcha e das enormes manchas da idade nas mãos, Hale ainda parecia perceptivo e determinado. Tremia um pouco, mas também seus deveres, em grande parte cerimoniais, não exigiam muito. De qualquer forma, pensou Ranold, ele parecia mais objetivo e decidido do que Dengler.

— Há duas coisas que preciso esclarecer, General. A primeira é de que só vai ocupar o cargo interinamente. Estamos procurando um homem com idade mais apropriada para comandar a onp. Você tem todas as condições, é claro, reputação, experiência, respeito dos colegas... todos os quais serão seus subordinados a partir de hoje. No entanto, não somos mais jovens, Ranold.

— Tem razão. — Ranold sorriu, embora fervesse de raiva. Detestava quando o óbvio era apresentado como uma novidade. — E qual é a segunda coisa, senhor?

— Talvez tenha especulado um pouco sobre a demora. Ranold especulara até demais.

— Claro que não. Sei que essas coisas levam tempo.

— Levou mais tempo do que deveria e peço desculpa. O fato é que o chanceler Dengler demorou um pouco para se decidir. Sabe que ele perdeu um filho e outros membros da família, e por isso...

— Como a maioria das pessoas. — Ranold arrependeu-se no momen­to mesmo em que falou, porque percebeu que ofendera o governador pela interrupção, ou pelo menos deixara-o irritado. — Perdoe-me, senhor, por interrompê-lo.

— Eu estava dizendo que além do problema das perdas pessoais, creio que ele demonstrou alguma hesitação por sua escolha.

Ranold simulou surpresa.

— Por causa da minha idade? Eu...

— Não creio que tenha sido por isso, General. Ao que parece, você pres­sionou o chanceler em determinadas questões...

— Não vou negar. Mas tinha a impressão de que ele apreciava a franqueza...

— Claro que ele aprecia, desde que seja...

— Deferente e respeitosa, é claro.

O governador levantou-se e foi sentar no canto da mesa. Ranold sen­tiu-se insultado pela tentativa óbvia de intimidação. Ele próprio usava aquela técnica.

— General Decenti, logo você, entre todas as pessoas com sua experiência militar sabe que é indispensável a adesão absoluta à cadeia de comando. O chanceler, como seu supremo superior, tem o direito até mesmo de estar errado. Pode argumentar em defesa de suas posições, até que ele...

— Anuncia uma ordem. Sei disso.

— General, permita-me terminar um pensamento antes...

— Peço desculpa, Governador.

— Se fez isso com o chanceler Dengler, posso compreender a hesita­ção dele...

— Não creio que tenha feito, Senhor. Mas permita-me dizer o seguinte: minha prioridade é uma visita à Berna, onde poderei assegurar ao chanceler que estamos na mesma página.

Hale inclinou-se para apertar a mão de Ranold, que ficou impressionado com a fragilidade do velho.

— Agora está falando como deve, General. Por outro lado, não cometa o erro de presumir que eu não sabia que já havia providenciado essa viagem.

Decenti sentiu que ficava vermelho.

— Preciso despedir minha secretária? Ela está comigo há... Hale sacudiu a cabeça e ergueu a mão, sorrindo.

— Sua secretária não o traiu, General. Foi o próprio chanceler Dengler quem traiu a si mesmo.

 

Paul bateu na porta e entrou para a reunião dos anciãos. Jack Pass estava de pé ao lado de um cavalete, com vários gráficos expostos. Greenie Macintosh sentava na primeira fila. Paul sinalizou para Jack que precisava lhe falar com urgência, mas Jack continuou em sua apresentação. Escrevera Isaías 59 no quadro. Quando Paul sentou, o ancião ao seu lado estendeu uma Bíblia. Paul abriu na passagem indicada e leu:

Eis que a mão do senhor não está encolhida, para que não possa sal­var; nem surdo o seu ouvido, para não poder ouvir.

Mas as vossas iniqüidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vós não ouça.

Porque as vossas mãos estão contaminadas de sangue e os vossos dedos de iniqüidade; e os vossos lábios falam mentiras, a vossa língua profere maldade.

Ninguém há que clame pela justiça, ninguém que compareça em juízo pela verdade; confiam no que é nulo, e andam falando mentiras; concebem o mal, e dão à luz à iniqüidade...

Os seus pés correm para o mal, são velozes para derramar o san­gue inocente, os seus pensamentos são pensamentos de iniqüidade; nos seus caminhos há desolação e abatimento.

Desconhecem o caminho da paz, nem há justiça nos seus passos; fizeram para si veredas tortuosas; quem andar por elas não conhece a paz.

Por isso está longe de nós o juízo, e a justiça não nos alcança; es­peramos pela luz, e eis que há só trevas; pelo resplendor, mas andamos na escuridão...

Pelo que o direito se retirou e a justiça se pôs de longe, porque a verdade anda tropeçando pelas praças e a retidão não pode entrar.

Sim, a verdade sumiu, e quem se desvia do mal é tratado como presa. O senhor viu isso, e desaprovou o não haver justiça.

Viu que não havia ajudador algum, e maravilhou-se de que não houvesse um intercessor; pelo que o sei próprio braço lhe trouxe a sal­vação e a sua própria justiça o susteve.

Vestiu-se de justiça, como de uma couraça, e pôs o capacete da salvação na cabeça; pôs sobre si a vestidura da vingança, e se cobriu de zelo, como de um manto.

Segundo as obras deles, assim retribuirá; furor aos seus adversários e o devido a seus inimigos; às terras do mar dar-lhes-á a paga.

Temerão, pois, o nome do senhor desde o poente, e a sua gloria desde o nascer do sol; pois virá como torrente impetuosa, impelida pelo Espírito do senhor.

— Percebem o que está dito, senhores? — indagou Jack. — As pessoas te­mem o nome do Senhor do oeste porque ele levou a seca para Los Angeles. Temerão sua glória do nascer, que acontece onde?

— No leste — disse alguém. — Onde estamos.

— Tome muito cuidado, Jack — interveio Greenie. — Não pode me dizer que o autor, quando escreveu isso, estava pensando na Califórnia e Washington, d.c.

Isso pareceu deter Jack, mas não por muito tempo.

— Vejam em Amos 5:24 — disse ele. — "Antes corra o juízo como as águas, e a justiça como ribeiro perene."

— Não vai nos dizer que isso é uma receita para a Operação Noé — mur­murou Greenie.

— O que você chamaria?

— Concordo com você, Jack — disse um dos anciãos mais jovens. — Se votássemos agora...

— Não vamos votar neste momento — interveio Paul. — Temos assuntos mais preementes para resolver.

— O que pode ser mais urgente do que isso, Paul? — perguntou Jack. — Temos de agir.

— O que temos de fazer é sair daqui. E só nos restam dez dias.

 

ERA UM MOMENTO EM QUE AS CRIANÇAS estavam sossegadas, e duas jovens estavam tomando conta.

— Você está estranha hoje — comentou Ângela. — O que aconteceu?

— Compreende que não posso ir ao funeral de meu irmão, nem de mi­nha mãe?

Angela acenou com a cabeça.

— Eu não poderia ir ao funeral de meu pai se fosse hoje. Por mais horrível que tenha sido, pelo menos não sabiam que eu fazia parte do movimento clandestino quando ele foi assassinado. Minha presença na ocasião ajudou.

— Não posso nem falar com meu pai — murmurou Jae. — Quem sabe se ele vai mesmo fazer funerais para os dois?

— Claro que vai... afinal, eram a esposa e o filho.

— Você não o conhece, Ângela. Terei de ligar para minha cunhada para descobrir.

— É muito triste. Gostaria de ouvir uma boa notícia?

— Mais do que nunca.

— Acho que suas crianças estão próximas.

— É mesmo?

— Tanto que meus filhos acham que Brie e Connor já são fiéis. Estavam lhes dizendo que a etapa seguinte é sair daqui e falar com seus amigos sobre Jesus.

— Não sei se Brie e Connor poderiam fazer amigos na escola em que estu­davam, mesmo que pudessem sair daqui. E não podem, não é mesmo?

— Não podem fazer amigos? Por que não?

— Não, não é isso. Eles passaram muito pouco tempo na escola aqui. Se quisessem contar para alguém sobre Jesus, seria para seus amigos em

Chicago. Contudo, o que eu quis dizer foi que eles não podem sair daqui, não é mesmo?

— Sem sua permissão ou conhecimento? Não. É tão difícil sair daqui quanto entrar.

 

Todos os olhos fixavam-se em tempo. Era tempo de contar logo, ou permane­cer calado. Mas antes que ele pudesse falar sobre a advertência de Bia Balaam, um técnico de computador entrou apressado e estendeu um papel impresso para Jack. Ele leu.

— De onde veio isso?

— Ninguém sabe. Mas tudo indica que é uma transmissão universal.

— Mas o que é isso? — indagou alguém.

— Leia para nós.

Jack leu. Paul reconheceu no mesmo instante.

— São as minhas anotações sobre a salvação — disse ele. — O que me diz de onde veio. Só espero que a pessoa tenha sido cuidadosa.

— Se isso foi divulgado no mundo inteiro, podemos ter um reavivamento — disse Greenie. — Nem precisaríamos dissuadir Jack da Operação Noé.

— Não vamos nos precipitar — declarou Jack. — Agora, Paul, pode nos contar o que você ia dizer?

 

Assim que voltou ao carro, Ranold falou ao telefone com sua secretária, deter­minando que ela convocasse a equipe de agentes de elite. Quando ele chegou ao escritório, os seis agentes, sob o comando de Bia Balaam, esperavam numa sala de reunião. Todos se apressaram em levantar quando ele entrou. Era apenas sua imaginação, ou Bia fora mesmo a última a ficar de pé?

Ela tinha uma aparência horrível. Vestia-se de forma impecável, como sempre, mas a pele azeitonada parecia desbotada. Os olhos indicavam um cansaço profundo, o rosto era tenso. Era como se estivesse sem maquilagem. No entanto, Ranold sabia que não podia ser isso. Não havia a menor possibilidade da Comandante Bia Balaam aparecer em público, ainda mais no trabalho, sem parecer o melhor possível. Por outro lado, se aquilo era o seu melhor agora...

Era evidente que ela ficara abalada com a morte do filho. Era sempre um problema para as mulheres. No entanto, Ranold tinha de admitir que não notara antes nenhum sentimento ou compaixão em Bia. Ela era uma líder destacada porque tinha o instinto de um homem. Ranold tinha certeza disso. Ele próprio não estava além da emoção, ou pelo menos um pouco de melan­colia, pelas perdas em sua família. Entretanto, para ser franco consigo, sentia o afastamento de Jae mais do que qualquer pesar por Berlitz ou sua esposa.

Já quase esquecera o filho. Ou pelo menos não pensava muito em Berl. Margaret era uma história diferente, é claro, mas ele atribuía isso às déca­das que haviam passado juntos, numa convivência diária. Na verdade, não considerava Margaret excitante ou mesmo atraente como, por exemplo, Bia Balaam. Se ela pudesse ir além da preocupação com os próprios problemas e recuperar o brilho que tinha antes, agora que ambos estavam disponíveis... Talvez ela não o considerasse tão velho. Ranold achava que as mulheres sen­tiam-se atraídas pelo poder e dinheiro; ele tinha muito do primeiro, e mais do que o suficiente do segundo.

 

A INFORMAÇÃO DE PAUL DEIXOU OS anciãos abalados. Jack Pass arriou numa cadeira perto de Greenie. Fitou o grupo, e dirigiu-se a Paul, ainda nos fundos da sala:

— Creio que foi por isso que Deus mandou você para nós. De outra forma, como poderíamos saber?

Greenie estava preocupado com questões mais práticas.

— Sei que não pode revelar quem é essa pessoa com quem mantém um contato, mas diz que ela está em posição para saber?

— Exatamente. A pessoa está infiltrada nos mais altos níveis da oposição.

— E marcaram 8 de fevereiro como o Dia d, uma semana depois da próxima sexta-feira. Isso torna inevitável uma pergunta. Se eles sabem onde estamos, o que esperam?

— O novo chefe da onp tem outra prioridade. Uma visita a Berna.

 

Felícia sentia-se tão exultante quanto Hector parecia assustado. Encontrara-o no elevador, no início do dia, e ele levou um dedo aos lábios no mesmo instante. Os olhos pretos estavam arregalados e apavorados. Ela arrumou um pretexto para passar por seu cubículo, a caminho de uma reunião, mas ele desviou os olhos assim que a viu.

Felícia queria lhe dizer que fora genial sua idéia de enviar a mensagem para os computadores da onp também. Até mesmo sensacional! Além de afastar as suspeitas de qualquer um lá dentro, também se tornara o assunto de todas as conversas. Harriet Johns chamou-a.

— Já viu isto? — perguntou Harriet, acenando com um impresso de com­putador antes mesmo de Felícia sentar.

— O que é isso?

— Propaganda dos fanáticos clandestinos. Se você pensa em se salvar, aqui está como deve fazer.

Felícia deu uma olhada e sacudiu a cabeça.

— Não é nada que eu precise.

— Nem eu. Mas é um complicador. Você ficaria espantada com a quan­tidade de pessoas que serão influenciadas por isso. Eu não pensaria assim há um mês, mas agora... Com toda essa inquietação? Com a mudança da opinião pública? Não posso pensar em ocasião pior para esse tipo de propaganda.

— O que vamos fazer?

— Não há muita coisa que possamos fazer, a não ser tentar descobrir a origem. No entanto, os danos já foram causados. Não é possível tentar fechar o pára-quedas quando se está no ar.

Felícia lançou um olhar surpreso para a mulher.

— Nunca tinha ouvido essa antes.

— Gostou? É sua.

— Não, obrigada. Pode ficar.

 

— Vocês seis têm o mais alto nível de verificação de segurança na história da ONP.

Ranold ficou esperando pelos olhos brilhantes, na reação de orgulho. Não vendo nada disso, ele continuou:

— Há pessoas que me aconselhariam a interrogá-los individualmente, administrar o soro da verdade ou fazer testes com o detector de mentiras, para ter a certeza de que continuam a manter a lealdade internacional. Contudo, não preciso disso. Conheço todos vocês muito bem, em termos pessoais e profissionais. Se não confiasse implicitamente em todos, não estariam aqui.

Finalmente, o barulho de pés se arrastando, mudanças de postura, em particular entre os cinco homens. Todos ficaram mais empertigados. Eram a elite, os eleitos e se regozijavam por isso. Ou pelo menos Ranold achava que deveriam.

— Fui convidado a ir a Berna para uma reunião particular com o chanceler Dengler, que quer me dar as boas vindas oficialmente no novo cargo. Só estou lhes dizendo isso porque é uma realização tanto de vocês quanto minha.

"Ainda temos de providenciar a destruição do complexo subterrâneo dos fanáticos em Colúmbia. Quero um relatório completo dos planos de ataque, necessidades, prazos e assim por diante, daqui a uma semana. Vou me encontrar com o chanceler na sexta-feira e estarei de volta aqui na segunda-feira, bem cedo.

Pelo que sei, perdemos dois homens ali. Só isso, mesmo que não houves­se nenhuma outra razão já seria justificativa suficiente para desfechar um ataque rápido e total, com toda força. Um homem morreu de repente, já que era um primogênito, enquanto o outro, informa a Comandante Balaam, foi surpreendido quando fazia contato e assassinado. Além do golpe mortal que eles desfecharam no mundo inteiro, temos de vingar os nossos.

Bia acenou com a cabeça, cansada e Ranold especulou se ela não estaria prestes a desfalecer. Durante um intervalo na reunião, ele pegou-a pelo bra­ço, e levou-a para um canto.

— Preciso de uma coisa. Soube que há um talismã usado por todos os membros desse ramo da resistência. Quero um, o que quer que seja.

— É uma pedra branca e achatada.

— Temos acesso a essas pedras?

— Claro. Confiscamos algumas, ao longo dos anos.

— Eu gostaria de ter uma ainda hoje. Bia limitou-se a fitá-lo, sem dizer nada.

— É possível, sra. Balaam? Ainda está me ouvindo?

— Claro. Desculpe, senhor. Receberá a pedra até o final do dia.

 

— Creio que é o fim da Operação Noé e do meu plano — comentou Greenie.

— Qual era o seu plano? — perguntou Paul.

— Podemos deixar isso de lado? — interveio Jack. — Se a informação é correta, Paul, precisamos nos mobilizar o mais depressa possível. Temos cerca mil homens, mulheres e crianças para tirar daqui e quem sabe para onde podemos levá-los?

— As minas de sal são a única opção — disse Greenie. Muitos acenaram com a cabeça em concordância, inclusive Paul.

— Resta saber se eles têm condições de aceitar todos nós — ressaltou Paul. — Se não, teremos de distribuir essas pessoas por diversos outros refúgios.

— Vamos precisar de muitos veículos — lembrou Greenie.

— O dinheiro de Demetrius deve facilitar essa parte — declarou Paul. — Não vamos precisar da "apropriação", mudança de placas ou nova pintura. Basta comprá-los, sob nomes falsos, o que será maravilhoso para a economia de Colúmbia e tirar todo mundo daqui.

— Ainda quero saber qual era o plano de Greenie — declarou um dos homens.

Jack sacudiu a cabeça. Soltou um suspiro alto.

— Ele queria que usássemos todos os nossos veículos para criar uma pa­ralisação total no distrito.

— Com que propósito?

— Isso não era tudo — acrescentou Greenie. — Eu também queria obstruir o rio Potomac, para criar uma seca aqui.

— Só para irritar as autoridades?

— Dê-me um pouco de crédito. Eu tinha um plano completo, um esquema com todos os detalhes previstos. Envolvia Fort McNair, que tem uma plataforma de carga e inúmeros túneis de serviços, para criar o máximo de confusão. Não está dito em algum lugar da Bíblia que ter fé sem fazer nada é como a morte?

— Algo parecido — confirmou alguém. — Seu plano, porém, ainda pare­ce apenas uma maneira de criar problemas para as autoridades.

— Está bem, podem esquecer! — exclamou Greenie. — De qualquer forma, não podemos mais fazer isso agora. Nossa prioridade acaba de ser apresentada numa bandeja de prata.

Paul não podia contestar isso. Chegara o momento de retornar a ligação de Bia Balaam.

 

PAUL PERMANECEU NA SALA DEPOIS da reunião com os anciãos, junto com Jack e Greenie. Jack dava a impressão de que não dormia há dias, mas sempre parecia assim. Apoiou os cotovelos na mesa e aninhou a cabeça entre as mãos.

— Então é isso mesmo?

— Infelizmente — murmurou Paul.

— Esse contato é mesmo digno de confiança? Valioso como ouro?

— Esse contato informou onde fica nosso refúgio.

— E tem certeza de que a posição indicada é correta? Afinal, você foi trazido para cá às pressas, durante uma crise pessoal.

— Por favor, Jack. Já trabalhei nesta cidade. Sei onde estamos. Minha maior preocupação, neste momento, é a de que possa haver outro agente in­filtrado aqui, talvez mais.

— Seu contato não pode nos dar essa informação?

— Vamos torcer para que possa.

Jack encarregou Greenie de coordenar o êxodo em massa, ainda sem sa­ber para onde iam.

— Não acha que saber o destino antes é muito importante? — perguntou Greenie.

— Ainda não — respondeu Jack. — Temos de sair daqui, isso é certo. Para onde vamos depois de sair não é crucial até o último momento. E se nem nós soubermos até lá, é improvável que a notícia vaze, não é mesmo?

Greenie acenou com a cabeça em concordância.

— O que você quer eu faça?

— Tudo. A parte da logística. Quantos veículos, quantas pessoas, como serão acomodadas, para onde serão enviadas... tudo isso.

— E também vamos levar o material mais pesado, como equipamentos e computadores?

Jack olhou para Paul.

— Só o que pudermos levar sem maiores transtornos — respondeu Paul. — Obviamente, as pessoas são nossa prioridade.

— Claro.

Jack levou Paul para o centro técnico. O chefe ali informou tudo o que sabia sobre a infiltração no sistema de comunicação do refugio. Também exa­minou os implantes nos molares de Paul.

— Tenho 99 por cento de certeza que você está limpo — declarou ele. Paul olhou para Jack.

— Normalmente, não gosto de ter nem um por cento de dúvida pairando sobre a minha cabeça. Mas nas atuais circunstâncias...

— A decisão é sua — disse Jack. — Só sei que não podemos perder tempo.

— Pode me emprestar seu carrinho?

— Claro. Tenho mesmo de ficar aqui, para resolver alguns problemas. Paul correu para o final do corredor, ligando para Bia Balaam durante o percurso. Ficou desapontado quando a ligação caiu na caixa postal. Esperava que ela atendesse ao reconhecer sua voz.

— Comandante Balaam, estou finalmente retornando suas ligações. Sabe onde me encontrar. Precisamos conversar o mais depressa possível.

— Não desligue, Paul.

— Estou aqui.

— Muito obrigado por me ligar de volta.

— Não foi nada. Mas preciso saber...

— Já sei. Como e por que deve confiar em mim.

— Estou escutando.

— Não fui bastante específica? Por que ainda não está convencido? Prefere correr o risco?

Paul podia perceber cansaço e resignação na voz de Bia, mas ainda havia o tom que dizia poder se arrepender se falasse alguma coisa que a irritasse.

— Como eu disse, estou escutando. Se fosse um homem desconfiado, claro que especularia se não me enganou na data do ataque. O que seria um engano.

— Tem toda razão, Doutor. Eu também especularia sobre esse pequeno detalhe. Quanto tempo será necessário para levar mil pessoas para um lugar seguro?

Paul hesitou. Como ela podia saber tanto?

— Queria que me informasse uma coisa, comandante. Há outros agentes infiltrados aqui com que preciso me preocupar?

— Uma pergunta justa. Se eu estivesse fazendo um jogo, poderia deixá-lo em dúvida. A verdade, porém, é que o agente Wipers era melhor do que mui­tos jamais lhe deram o crédito.

— Portanto, você já sabia de tudo, antes de falar com ele pela última vez.

— Sabia. Gostou da minha pergunta se ele já descobrira onde se encon­trava? Presumi que alguém poderia escutar a conversa. Não sabia se era você. Por favor, diga-me que a morte de Wipers foi apenas uma encenação.

— Roscoe está vivo e bem. Ou pelo menos vivo.

— E nosso outro homem?

— Se você sabia onde estávamos, Bia, Roscoe já deve tê-la informado sobre o bem-estar do outro homem.

— Claro que informou... e sabendo que ela era um primogênito, eu já sa­bia o que acontecera. Ele só teria continuado vivo se tivesse trocado de lado.

— Você compreende mais do que eu lhe dava crédito — comentou Paul. — Agora, precisamos conversar.

— Quer saber se há mais por trás de tudo isso.

— Apenas se há mais na mensagem que deixou. Afora isso, foi bastante clara.

— Oh, dr. Stepola...

Bia parecia tão magoada que Paul não sabia o que dizer. Esperou que ela continuasse.

— Sabe que nunca fui grande fã de seu sogro.

— Não, não sabia. Poderia ter me enganado nesse ponto.

— Não me entenda mal. Reconheço que ele tem algum talento. Os rumores no escritório são de que ele suplicou uma audiência com Dengler em Berna, mas diz que o chanceler chamou-o, supostamente para dar os parabéns por sua promoção a diretor interino da onp.

— Diretor interino? Desde quando?

— A nomeação saiu esta manhã. Mas não é essa a questão.

— Sei disso. Suportei o homem durante muitos anos. Quando ele vai se encontrar com Dengler?

— Na sexta-feira.

— Como eu gostaria de ouvir essa conversa!

— Todos nós gostaríamos. Ele quer que esteja tudo preparado para o ataque quando voltar. Pode deixar que o avisarei se ele ficar impaciente e quiser agir antes. Tenho mais uma informação.

Bia relatou o pedido de Ranold para providenciar um talismã de iden­tificação.

— Quer que eu lhe entregue um? — perguntou Paul.

— Já temos um. Acredite ou não, ainda estou com o talismã de Andy Pass.

— Fala sério?

— Ele tentou se descartar durante a perseguição, mas um de meus homens recuperou-o. É uma espécie de lembrança. Pensei que poderia oferecer a você algum dia ou então à filha ou irmão de Andy. Significaria muito mais para um de vocês.

— Pode me fazer um favor, Bia?

— Acho que já estamos trocando alguns favores terríveis.

— Tem razão. Pode fazer alguma marca no talismã que entregar a Decenti? Talvez um arranhão, para que eu possa reconhecê-lo quando aparecer aqui.

— O que o faz pensar que vai aparecer aí? Paul ficou surpreso com a pergunta.

— O que acha que ele fará com o talismã? Não é para tentar infiltrar alguém em nosso refúgio?

— Não sei. Talvez você tenha razão. Seja como for, não precisamos de mais ninguém infiltrado entre vocês. Só precisamos evitar o vazamento da informação sobre o ataque, para poder surpreender todo mundo no mesmo lugar, ao mesmo tempo.

— Suponho que você compreende que salvará muitas vidas se confiarmos em você.

— Nunca poderei compensar...

— Diga-me uma coisa, Bia. Foi a perda de seu filho que causou essa mudança?

— Isso e muitas outras coisas, Paul. Tenho um cérebro. Como poderia tomar qualquer outra decisão?

— Sabe o que precisa fazer, não é?

— Claro.

— E vai fazer?

— Tenho de fazer. Recebi o e-mail, como todas as outras pessoas no mundo.

— E...7

— Talvez eu tenha de ligar para você e pedir algum esclarecimento.

— Sabe onde me encontrar.

 

AQUELA ERA UMA EXPERIÊNCIA NOVA e estranha para Paul. Manter em se­gredo para a esposa coisas que fazia jamais fora um problema. Não se sentira tentado. Jae não precisava saber, não queria saber e de qualquer forma não haveria nenhuma vantagem em contar.

Agora, no entanto, que partilhavam uma fé comum, agora que estavam apaixonados um pelo outro como nunca antes, a situação era diferente. E, no entanto, Paul concordara com Jack, Greenie e os anciãos que ninguém mais deveria saber da verdadeira situação, pelo menos por enquanto.

Havia, porém, muitos anciãos para esperar que permanecesse um segredo por muito tempo. Além disso, as pessoas desconfiariam quando Greenie e seus assistentes começassem a fazer perguntas de logística. Quem não espe­cularia sobre o que estava para acontecer se indagassem o que poderia ser crucial para uma partida súbita, o que poderia ser deixado para trás?

Paul descobriu que sua primeira inclinação foi chamar Jae para uma conversa e pedir que começasse a pensar nos detalhes da mudança da família. Qual seria o mínimo que precisariam levar? Como poderiam esconder das crianças? Seria possível que as crianças considerassem a mudança também como uma aventura ou Paul e Jae estariam pedindo demais?

Paul, entretanto, resistiu a sequer mencionar o assunto. Ficou aturdido ao perceber como era difícil. Não estava preocupado com a possibilidade de Jae se sentir ofendida mais tarde, quando chegasse o momento de contar. Mas ela se tornara a confidente em que mais confiava, quase da noite para o dia e Paul sentia-se frustrado por não revelar nada.

Tornou-se ainda mais difícil quando ela relatou a ligação que fizera para Aryana. Jae estava quase roxa de raiva.

— Papai permitiu que Aryana fizesse um serviço memorial para Berl e nem fui informada.

— Não poderia ir de nenhuma maneira, meu bem.

— Sei disso, Paul. Mas ele era meu irmão. Eu gostaria de saber, para poder pensar nele no momento do serviço. E papai tem o número de meu celular. Poderia ligar, tentar dizer as coisas certas.

— Agora você está sonhando.

Ela ficou irritada. Paul compreendeu que a mulher não queria ouvir um sermão, não queria explicações. Queria apenas que a ouvisse.

— Desculpe, meu amor. Você tem toda razão. É inconcebível que não tenha sido avisada. Por que Aryana não ligou?

— Papai contou a ela que me ligara e deixara um recado, e que eu retor­nara para dizer que não me considerava mais uma Decenti, e que ele podia ir você sabe para onde.

Paul sacudiu a cabeça. Logo no momento em que ele se perguntava se Ranold seria capaz de se rebaixar ainda mais...

— Neste caso, Aryana deve ter ficado espantada quando você ligou para ela.

— Nem me diga! Ela se mostrou fria a princípio. Perguntei qual era o problema, e ela declarou que sabia que eu não me importava. Ao que res­pondi: "Eu amo você, Aryana. E me importo com você. Estou triste por você, porque sua perda também é minha perda". Foi quando ela disse que o serviço já fora realizado e relatou o que papai dissera. Juro, Paul, que se ele estivesse aqui neste momento, na minha frente, não posso dizer que não tentaria matá-lo. Não foi uma coisa horrível?

Fora mesmo, mas Paul tentou amenizar. Ele próprio seria capaz de esganar o general, nas circunstâncias. O homem iria longe demais um dia, e Paul teria de confrontá-lo. Não era uma questão de uma luta física contra um velho. Ranold era treinado em combate, e, por causa de seu tamanho, poderia derrotar Paul, quando estava no auge do vigor físico. Mas não agora. De qualquer forma, não era esse o problema. Paul trabalhara com o sogro por tanto tempo que o conhecia muito bem. Agora, Ranold agravava a mentira de que a filha matara a mãe, torcendo seu pescoço, com a informação de que Jae tencionava se afastar e ignorar por completo a família.

Ainda por cima, Ranold se encontrava por trás da ordem para a destrui­ção do movimento cristão de Colúmbia, determinando a aniquilação de mil pessoas. Havia dias, como aquele, em que Paul desejava que fossem apenas os dois, ele e Ranold, mano-a-mano, para matar ou morrer.

— O que ela disse sobre sua mãe?

— Essa é outra história muito diferente, como diria Connor. Sabia que papai tentou convencer Aryana que você fez uma lavagem cerebral em mim para que matasse mamãe?

— Não posso dizer que isso me surpreende. Foi a história que ele contou à mídia.

Jae tinha os punhos cerrados.

— Para seu crédito, Aryana nunca aceitou essa história. Relatei o que aconteceu exatamente. Ela disse que já chegara à conclusão de que fora isso, que nunca me vira tratar mamãe de nenhuma outra forma que não fosse com amor e respeito. Depois, ela acrescentou: "Se alguém me dissesse que você tentou estrangular seu pai...". Não pude deixar de rir. Chorava bastante, mas desatei a rir. Aryana é nova na família, e mal me conhece, mas sabia que não havia a menor possibilidade de eu matar minha própria mãe. Quanto a um serviço fúnebre, papai assegurou a Aryana que mamãe dissera expressamente que não queria nenhum funeral.

— Não me parece coisa de sua mãe.

— E não é, mas é de papai. E no meio de toda essa conversa, Aryana in­formou que papai viaja para Berna na sexta-feira.

— É mesmo?

— Parece que o chanceler Dengler chamou-o para cumprimentá-lo por seu novo cargo, diretor da onp nos seua.

— Interino. Jae estremeceu.

— Você já sabia. Claro que já sabia. Afinal, sabe tudo. Quer dizer que ele é apenas interino?

— Isso mesmo. Não costumam oferecer cargos assim para velhos, mesmo quando há uma deficiência de pessoal.

— Acha então que faz sentido que Dengler o chame até a Suíça para um aperto de mão e uma foto?

— Não, Jae, não faz. Claro que a onp é importante para o governo inter­nacional, e Dengler tem de aprovar a nomeação. Na operação, porém, são entidades separadas.

— Portanto, é mais provável que a viagem tenha sido idéia de papai, e que o resto seja apenas invenção dele.

— A sra. Decenti não criou patetas. Por que não fazemos nosso serviço memorial para Berl e sua mãe, Jae? As crianças precisam saber que ela tam­bém morreu e precisam de um ponto final nesse episódio.

 

Straight finalmente sentia sua idade. Desde que se tornara sóbrio e sozinho, não tivera de admitir isso. E embora uma pessoa de sessenta anos já não fosse mais tão velha como antes, o estresse de levar uma vida dupla o consumia. A notícia vinda de Michigan para que o movimento clandestino arrumasse espa­ço para mil pessoas que seriam transferidas de Washington, deixara Straight deprimido. Ainda mais pelo motivo e ele preferia não pensar a respeito.

Sentia, no entanto, que Paul precisava ouvir notícias suas, e por isso telefonou.

— Já sabe qual é a resposta das minas de sal? — perguntou Paul. — Eles podem nos acomodar?

— Ainda não sei. Só posso dizer que não será fácil. A maioria parece preferir a idéia de distribuir vocês entre vários refúgios. Mas saiba que ficaria com Jae e as crianças.

— Seriam um estorvo para você.

— Não importa para mim.

— Sei disso, irmão. E espero que saiba também que deve permanecer longe de nossa casa. O escritório de Chicago a mantém sob vigilância, como se eu pudesse ser bastante estúpido para me esgueirar até lá e pegar algumas coisas.

— Eu já imaginara que eles estariam vigiando a casa.

— Está com uma voz horrível, Straight. Sente-se mal?

— Mais ou menos. Cansado e velho.

— Eu gostaria de ser na sua idade como você.

— Estou apenas sentindo o peso da idade.

— Como vai seu homem no hospital?

— O cirurgião? Parece que ele é mesmo sério. Eu disse a ele que precisava receber alguma coisa no acordo. Foi a sugestão de Abraão. E trocamos informações em 48 horas. Informei-o sobre dois homens do governo, que estão agora num sono profundo, como há muito não acontecia. Ambos estão bem, mas apenas letárgicos, com uma recuperação lenta. E ele me informou sobre dois pacientes terminais, que podem proporcionar ótimas identidades para você.

— Não preciso neste momento, Straight, mas avisarei assim que tiver ne­cessidade.

— Estou iniciando um banco de dados. Avisarei a seu pessoal sobre o que estiver disponível. Tenho o pressentimento de que vão precisar mais cedo do que imaginam.

 

No início da noite de quarta-feira, 30 de janeiro, Paul e Jae conversaram com as crianças depois do jantar. Informaram que não apenas o tio Berlitz mor­rera, mas também a avó. Pela reação dos filhos, Paul teve dúvidas se haviam tomado a decisão correta.

— Como ela morreu? — perguntou Brie. — Também foi um desastre de carro?

— Foi um infarto — respondeu Jae.

— O que é isso? — indagou Connor.

— O coração pára de bater. Ela ficou transtornada quando soube que o filho havia morrido. E com todo o resto que acontecia. Como nossa vinda para cá foi demais para ela.

— Onde ela está agora? — perguntou Connor. — Vamos vê-la de novo?

— Nunca mais a veremos neste mundo, porque precisam enterrá-la, e nós temos de passar mais algum tempo aqui — respondeu Jae.

— Ela está no céu? — indagou Brie.

Paul sentiu o olhar de Jae. Apesar dos recentes fluxos de crescimento, as crianças nunca haviam parecido tão pequenas.

— Nem todas as pessoas que morrem vão para o céu — comentou Paul.

— Vão se tiverem Jesus no coração — declarou Brie. — Berl e vovó tinham?

— Não sabemos — disse Jae. — Esperamos que sim, não é mesmo? Tenho quase certeza que sua avó tinha.

— O que aconteceu com Jesus quando ela teve o ataque do coração? — perguntou Connor. — Afinal, Jesus não estava ali?

O que Paul deveria responder? Precisava explicar que Jesus não estava fisicamente dentro do corpo de uma pessoa, muito menos em seu coração?

— Porque tenho Jesus em meu coração — acrescentou Connor. — Brie também tem.

— É mesmo? — murmurou Jae. — Fale-nos a respeito.

 

OCORREU ABRUPTAMENTE A RANOLD, no meio da noite, dois dias antes do vôo para Berna. Em circunstâncias normais, ele tinha um sono profundo. Abriu os olhos de repente, por volta de duas horas da madrugada, o instinto lhe dizendo que havia alguma coisa errada no seu círculo interno de poder.

Ele estendeu os pés para o chão, e ficou sentado no escuro, tentando determinar qual era o problema. Bia estava cansada e abatida. Era a assistente em quem mais confiava. Mas os cinco homens... O que havia com eles? O contato visual? Ranold observara-os numa atitude instintiva. O contato visual não existira, ou fora contraditório? Dois homens estavam na casa dos cinqüenta anos, e há muito que ele os conhecia. Dois tinham quarenta e poucos anos, com currículos que eram a inveja de homens mais jovens. No entanto, o que dizer do outro, o mais jovem? Era alto e corpulento, o rosto Uso, cabelos louros e curtos.

Na verdade, não era tão jovem assim. Dick Aikman esforçara-se para su­bir na hierarquia da onp. Com trinta e tantos anos, era um homem dedicado à família. Não sofrerá perdas imediatas em o incidente, porque só tinha filhas. Ranold recordou que alguém mencionara que ele perdera um tio idoso.

Por que Aikman se destacou assim em sua mente? Apenas um pressenti­mento? Ranold tentou reconstituir mentalmente as últimas reuniões. Também era capaz de perceber quem eram os bajuladores. Gostava de deferência e respeito — até mesmo de admiração — tanto quanto qualquer outra pessoa, mas sabia que não devia se cercar apenas de homens que concordassem com tudo o que dissesse. Podiam fazê-los se sentirem bem, mas um líder precisava, em última análise, saber a verdade. Depois que tomava uma decisão, porém, queria que todos concordassem. Mas durante o processo de planejamento, precisava de informações objetivas e honestas.

E Ranold acreditava que era isso o que recebia. De todas as pessoas. Contudo, também tinha o contato visual e a linguagem do corpo para acom­panhar? Os homens da equipe trocavam olhares durante as reuniões, ou se comunicavam por outros meios não-verbais? Poderia ter um traidor em suas fileiras, mesmo naquele nível? Mais de um? Um motim?

Ranold não queria dar a sua inquietação mais importância do que deveria, mas começou a mudar de idéia sobre a intenção de isentar seu círculo interior da assinatura do juramento de lealdade. Também não excluiu a possibilidade de exigir testes no detector de mentiras. Talvez fosse melhor pedir a Bia que os aplicasse imediatamente, antes de sua viagem, para deixá-lo sossegado.

Ranold foi para a cozinha e comeu alguma coisa. Ligou para Bia e deixou um recado. Instruiu-a a providenciar as assinaturas no juramento de lealdade e administrar os testes com o polígrafo, até o meio-dia. Finalmente conseguiu dormir de novo, um sono profundo.

No entanto, Ranold ficou surpreso, quando chegou ao escritório, pela ma­nhã, ao encontrar Bia à espera na ante-sala. Era evidente que ela estava irritada. Foram para a sala de Ranold. Bia começou a falar antes mesmo de sentar.

— Há muito que aprecio sua abertura para a verdade, por mais difícil que seja, e mesmo quando contradiz inicialmente seus desejos. Como sabe muito bem, sempre fui uma subordinada leal e segui todas as ordens à risca.

— Foi por isso que a escolhi para esse serviço tão crucial que...

— Perdoe-me, senhor, mas é um erro. A mensagem que deixou na máquina estava marcada pelo cansaço da madrugada. Gostaria que considerasse a possi­bilidade de sua idéia ter sido o resultado de alguma coisa que comeu ou sonhou.

— Estou escutando. Bia contraiu os lábios.

— Diz que está escutando, mas não é essa a impressão que transmite. Apesar de toda a confiança na própria capacidade de ler as indicações físicas, Ranold descobriu que sentava rígido, recostado, os braços cruzados de maneira desconfortável sobre o peito musculoso.

— Talvez você tenha razão nesse ponto, Bia. Estou escutando, mas o rumo da conversa não me agrada nem um pouco.

— Deixe-me assegurar, Chefe, que seguirei suas ordens, enquanto for sua subordinada. No entanto, solicito que me permita pelo menos tentar dissuadi-lo dessa idéia.

— É justo. Pode falar.

— Receio que essa iniciativa terá os piores reflexos e levantará dúvidas na mente das pessoas de sua maior confiança. Escolheu-as por sua habilidade e experiência, mas também por causa da lealdade incontestável. Estou certa?

Ranold meneou a cabeça em confirmação.

— Se quiser que eu exija que assinem o juramento de lealdade, não muito diferente do que todos os assinamos quando fomos contratados...

— Podem, porém, ter mudado de idéia desde então — interveio Ranold. —... e depois aplicar testes com o polígrafo, ninguém jamais poderá dizer de novo que sua lealdade era incontestável. Não estou certa?

Ranold contraiu os lábios e deu de ombros. Ainda podia impor sua decisão, mas começava a aceitar que o argumento era procedente.

— Vai deixá-los com dúvidas sobre a maneira como os considera...

— Ainda mais se todos passarem nos testes.

— Exatamente. Eles terão demonstrado sua lealdade e o senhor vai pare­cer paranóico. Como os homens poderão esquecer que um dia teve dúvidas? E se não pode confiar nessas pessoas, sua situação é muito difícil.

Ranold avaliou depressa sua dúvida insistente contra o conselho da Comandante Balaam. E se ambos estivessem certos? E se houvesse mesmo uma maçã podre no barril, mas não insistisse em suas suspeitas por causa do reflexo negativo para ele próprio?

— Preciso de alguém para ser meu companheiro e segurança na viagem. Talvez devesse levar um dos homens.

— É uma boa idéia.

— Vamos nos reunir a uma hora da tarde.

— Está bem. — Bia tirou do bolso uma pedra branca brilhante. — Queria isto.

Ranold avaliou a pedra na palma da mão, antes de virá-la para um lado e outro. Era fria e lisa ao contato, exceto por um pequeno arranhão de dois ou três centímetros.

— Qual é o significado deste arranhão? Ela deu de ombros.

— Apenas o desgaste normal. Algumas estão arranhadas, outras não.

— E esta pedra identifica um fanático clandestino?

— Em Colúmbia. Outros estados usam talismãs diferentes.

— Tem razão. Na Terra do Sol usavam aquela antiga moeda de um centa­vo com a cabeça de Lincoln, não é mesmo?

Bia inclinou a cabeça para confirmar.

— Importa-se que eu pergunte...

— Para que eu quero isto? Claro que não me importo. Apenas como um souvenir. Você também não guarda souvenirsl

— Claro que sim. Também tenho uma dessas pedras. Ranold soltou uma risada.

— Ainda bem que não foi apanhada com ela.

— E quem poderia me pegar? — Bia finalmente sorriu. — Duvido muito que eu esteja sob vigilância.

— O mundo estaria completamente tumultuado no dia em que isso acontecesse.

 

Mais tarde, ainda naquela manhã, quando Ranold ligou para confirmar alguma coisa com Bia, a secretária informou-o que ela estava numa reunião com Dick Aikman.

— Só com Aikman?

— Creio que sim, senhor.

— Mande ela me ligar imediatamente.

Quando Bia ligou, poucos minutos depois, Ranold exigiu que ela relatasse o que conversara com Aikman.

— Como, senhor?

— Você me ouviu. Deixei que dissipasse minhas suspeitas e você se en­contra com ele logo em seguida. O que devo pensar?

Silêncio.

— E então?

— Informei-o sobre a reunião a uma hora da tarde, senhor.

— E por que não os outros também?

— Estou falando com um de cada vez, como determina nosso protocolo, senhor. Não queremos que o resto do pessoal saiba sobre essas reuniões, e por isso evitamos o e-mail e o telefone. Convoco cada um pessoalmente. Mas se deseja mudar o procedimento...

Ranold ficou embaraçado, o que o irritou. Sabia que seu comportamento era irracional, talvez mesmo paranóico. No entanto, não fora esse aspecto de seu caráter que o levara à posição em que encontrava agora?

Na reunião, a uma hora da tarde, embora com a respiração pesada e sentindo-se empanturrado depois de um lauto almoço — entregue no escritório por uma churrascaria próxima — Ranold descobriu-se a estudar, ainda mais atentamente, os olhos e a linguagem de corpo de todos os seus subordinados. Seria apenas sua imaginação ou Dick Aikman parecia ao mesmo tempo aliviado e abalado? O homem estava pálido, os olhos azuis claros deslocavam-se rapidamente de um lado para outro, observando Bia a todo instante.

— Sr. Aikman, qual é a arma que costuma usar?

— A mesma que a sua, senhor, como ex-militar. Uma nove milímetros.

— Quantas balas tem em seu carregador?

— Dez, senhor.

— Mas cabem quinze balas.

— O que pode enfraquecer a mola.

— Excelente. Continua a ser eficiente com a arma?

— Pratico no estande de tiro pelo menos uma vez por semana. E ainda participo de competições.

— E costuma vencer?

— De vez em quando. Mas, como sabe, Chuck Finney ainda integra a equipe.

— Posso imaginar. Durante muitos anos ele até me venceu.

Ranold perguntou se Aikman não queria acompanhá-lo na viagem a Berna, servindo como seu segurança.

— Estou a sua disposição, General. Não creio que precise de um segurança na sede do governo internacional, mas...

— Nunca se sabe. E por causa da drástica redução na força de trabalho, viajaremos num vôo comercial.

— Sempre uso os vôos comerciais, senhor. Todos riram.

 

COM SEUS NÍVEIS DE SEGURANÇA, Ranold e Dick Aikman não tiveram nenhum problema para embarcar no avião para Berna com suas armas na bagagem registrada e a munição na bagagem de mão.

— Não estamos esperando ameaças na Suíça, não é mesmo, Chefe? — perguntou Aikman.

— Não. Mas hoje em dia todo cuidado é pouco. Se o pessoal do quartel-general internacional fizer qualquer tentativa de nos conduzir por detectores de metal, cabe a você intimidá-los.

— Como assim, senhor?

— Sabe como o pessoal de segurança de nível médio pode se comportar: como um ninguém tentando ser alguém. Obrigar um executivo do meu nível a passar pelo esquema de segurança, a caminho de uma audiência com o chanceler, seria uma tremenda violação do protocolo diplomático, que deixaria Dengler muito embaraçado. Pela reputação do próprio chanceler, você precisa providenciar para que isso não aconteça. Eu poderia protestar, é claro, mas isso seria abaixo de mim. Não abaixo pessoalmente. Não me considero superior a você, por exemplo. No entanto, abaixo da dignidade do meu cargo. Entende agora?

— Acho que sim.

Ranold, porém, tinha dúvidas. Ficou satisfeito quando o comandante pe­diu esclarecimentos.

— Quer que eu pressione quem estiver no comando, caso tentem...

— Se insultarem meu cargo ao tentarem me obrigar a passar... ou a você também, diga-se de passagem, pelo esquema de segurança. Uma advertência apropriada, envolvendo a dignidade da pessoa, deve ser suficiente. Talvez baste lembrar quem eu sou, e nada mais será necessário.

— Não deve mesmo ser, se recordo corretamente o protocolo internacio­nal. Temos níveis de segurança bastante altos para não sermos investigados. Só precisamos...

— Provar que somos quem dizemos ser — declarou Ranold. — Sei disso.

Cerca de meia hora antes do pouso em Berna, Ranold pediu a uma co­missária de bordo que chamasse o comandante Aikman para sentar com ele na primeira classe.

— Com essa poltrona vazia ao seu lado, General, nós teríamos o maior prazer em acomodá-lo aqui desde o início da viagem.

— Obrigado. Eu devia ter pensado nisso antes. Mas que mulher idiota!

Quando Aikman sentou ao seu lado, Ranold tinha mais instruções.

— Guardou a nove milímetros na mala menor, não é mesmo?

— É, sim, de acordo com suas instruções.

— Ótimo. Antes de desembarcar, transfira o carregador com a munição da bagagem de mão para seu bolso. Obviamente, deve fazer isso com a devi­da discrição, pois não queremos alarmar os passageiros. Quando pegarmos a bagagem, é provável que tenhamos a ajuda de alguém da assessoria do chanceler, designado para nos levar até o quartel-general. Depois que pegar­mos tudo, poderemos deixar a bagagem de mão com o ajudante, e levar o resto para um reservado no banheiro, onde vamos tirar as armas e carregá-las. Entende o motivo para isso?

— Claro, senhor. Para não termos de carregar as armas em público.

— Nem na frente do assistente do chanceler. Seria uma falta de educação.

— Entendo, senhor.

— Propus alugar um carro, mas o chanceler Dengler insistiu em mandar alguém nos buscar. Ele sabe como estender um tapete vermelho.

— Foi o que me contaram. Eu me sentirei honrado em conhecê-lo. Obrigado pelo privilégio.

— Você merece, Comandante. Tenho um pequeno presente para o chan­celer que gostaria que você guardasse no bolso, até eu pedir. Será uma boa surpresa. É uma coisa de que ele já ouviu falar, e tenho certeza de que vai gostar de receber.

Ranold tirou do bolso o talismã de pedra e entregou-o a Aikman. Depois de olhar por um instante, Aikman esfregou a pedra entre as palmas.

— Essas pedras são exclusivas, não é mesmo? Gostaria de saber de onde os fanáticos as tiram.

— Nunca pensei nisso. Eles devem usar um instrumento manual ou uma máquina, para que fiquem lisas e brilhantes.

— Só pode ser isso. Quando vai me pedir a pedra?

— Provavelmente no final da reunião. Guarde-a num lugar de onde possa tirá-la no mesmo instante.

 

Já passava de meia-noite nos Sete Estados Unidos da América quando Paul foi acordado por uma vibração no molar. Saiu da cama, esperando não perturbar Jae, e foi atender a ligação no corredor. Bia Balaam relatou seus últimos contatos com Ranold.

— Ele está ficando desconfiado, mas não de mim, por alguma razão.

— Porque você é competente, Bia.

— Não podia deixar de ser, depois de tantos anos. E aprendi tudo com Ranold. Só que nunca antes usei minhas habilidades contra ele.

— Ranold é o melhor.

— Já foi. Vamos esperar, para o nosso próprio bem, que sejamos agora melhores do que ele.

— Torço para que assim seja. O que está fazendo agora, se me permite perguntar?

— Recebendo ligações de vários agentes infiltrados aqui e ali.

— Eles não podem deixar mensagens?

— Claro que podem, mas resolvi atender porque não consigo mais dormir. A verdade, Doutor, é que venho estudando aquele seu documento, o texto sobre a salvação.

— É mesmo?

— Ainda não entendi. Parece muito fácil. Pensei que essa gente... seu pessoal... se empenhasse em ser boa, em tentar ser perfeita, para permanecer nas boas graças de Deus, que assim não as puniria.

— O que diz o texto?

— Fala sobre a salvação pela graça, através da fé...

— E não pelas obras de que ninguém pode se gabar que fez por si mesmo.

— Como uma pessoa pode se qualificar? Como alcança essa graça?

— O que diz o texto? Bia suspirou.

— Já sei. Você aceita tudo o que o texto diz. É o seu livro de regras.

— Exatamente.

Ela leu num murmúrio, quase que para si mesma:

— Pela graça vocês são salvos, através da fé, não por si mesmos; é uma dádiva de Deus, não das obras, para que ninguém se gabe.

Paul sentiu-se tentado a explicar, mas sabia que não podia fazer melhor do que deixar as palavras falarem por si mesmas, ainda mais no caso de uma pessoa tão inteligente quanto Bia Balaam. Ficou ouvindo sua respiração, até que ela acrescentou:

— Como eu disse, é fácil demais.

— Você quer alcançar a graça.

— Claro que quero. Consegui alcançar tudo o que já desejei na vida.

— E o que pretende fazer com isso?

— Mudar minha vida. Ser boa. Jogar na equipe certa. Frustrar as ope­rações da onp, trabalhar contra os seua, denunciar o governo internacional ateu, que nos trouxe essa desgraça.

— E o que pretende fazer para compensar todas as outras coisas que fez no resto de sua vida? Que idade você tem, Bia?

— Não é da sua conta, mas tenho certeza de que sabe que sou um pouco mais velha do que você.

— Já matou alguém?

— O que você acha? Perdi a conta.

— Quantas coisas serão necessárias para compensar cada uma dessas mortes?

 

Felícia Thompson, em Deerfield, também não conseguia dormir. Cletus an­dava de um lado para outro.

— Quero acreditar, mas não consigo me livrar da raiva — murmurou ele, em evidente agonia.

— Também sinto raiva, querido, raiva de mim mesma, por ter sido tão cega e estúpida durante tantos anos. Atraímos isso para nós mesmos. O mun­do inteiro.

— Quer dizer que não sente raiva de Deus?

— Não sei... Acho que uma parte de mim ainda sente.

— Parte de você? No meu caso é o todo.

 

Ranold contou com a atenção não apenas de um, mas de dois assessores do gabinete de Dengler. Poderiam ser gêmeos, homens discretos e calados, quase chegando aos trinta anos, ambos usando casacos de lã e luvas pretas.

Ranold viajara com pouca bagagem, com uma mala apenas para separar a arma da munição, e uma muda de roupa, se precisasse passar a noite em Berna. O vôo de volta estava marcado para o final da tarde. O avião aterrissara às oito horas da manhã.

Ranold considerou que os assessores eram quietos e atenciosos. As armas foram carregadas, sem nenhum contratempo. Ele deixou que os assessores carregassem as malas... embora Aikman desse a impressão de que preferia levar sua própria bagagem. Ele aprenderia.

Fazia muito frio em Berna, em torno de 15° C negativos mesmo com o sol da manhã brilhando no céu sem nuvens. Ranold sentiu todo o frio nos tornozelos, por mais estranho que pudesse parecer. E não sentiram mais calor no carro, embora estivesse com o aquecimento ligado.

— Estamos prontos para oferecer uma excursão pela cidade — anunciou o motorista.

Aikman empertigou-se.

— Seria...

Ranold apressou-se em interrompê-lo:

— Não é necessário. Já estivemos aqui antes. Ou pelo menos eu estive.

— O comandante Aikman não gostaria...

— Precisamos conversar.

Ranold revirou os olhos para Aikman. Isso finalmente silenciou os asses­sores. Ranold improvisou uma conversa irrelevante, que sussurrou para seu subordinado.

O carro deixou os americanos na entrada do quartel-general internacional.

Foram recebidos por uma mulher atarracada, num uniforme cinza e azul-marinho que podia ter sido elegante quando era mais jovem, mas agora parecia uma criança com roupa herdada de outra mais velha. Era a epítome de chefe de segurança que Ranold previra.

— Apresento as saudações e as boas vindas do chanceler Dengler — disse ela, com um sotaque do Caribe. — Ele aguarda sua presença ansiosamente. Terei o maior prazer em levá-los através da segurança até seu gabinete.

Ranold limitou-se a acenar com a cabeça, enquanto Aikman agradecia. Entretanto, quando a mulher levou-os ao detector de metal, Ranold lançou um olhar firme ao subordinado, que entrou em ação imediatamente.

— Tenho certeza que não vai exigir uma verificação de segurança no di­retor da onp nos seua.

— É apenas uma questão de rotina. Estamos em particular aqui.

— Não importa — insistiu Aikman. — Não pode embaraçar o General Decenti. Tenho a certeza de que o chanceler não gostaria de violar o proto­colo diplomático.

A mulher parou na frente de Aikman.

— Minha obrigação é submetê-los aos procedimentos de segurança. Agora...

— E minha obrigação é proteger a dignidade do cargo de diretor da onp nos seua, para não mencionar a reputação do chanceler.

— Tem alguma coisa para esconder, senhor?

— Claro que não, e me sinto ofendido com a sugestão. Aikman olhou para Ranold, que levou uma das mãos ao ouvido.

— Por favor, dê-me o número do telefone do gabinete do chanceler, para que eu possa informá-lo sobre os nossos níveis de segurança.

— Os níveis de segurança nos seua não significam necessariamente a mes­ma coisa...

— Mesmo neste nível?

Aikman mostrou sua identificação. A mulher já havia pegado o celular. Fechou-o agora.

— Esse nível tem aprovação internacional. Peço desculpas, senhor. O erro foi meu.

Enquanto Aikman e a mulher falavam, Ranold tirou as luvas e guardou nos bolsos do casaco.

— Queiram me acompanhar, por favor, senhores — disse ela, finalmente. Ao entregá-los aos homens da equipe de Dengler, lá em cima, a mulher iniciou um pequeno discurso de agradecimento. Ranold virou as costas. Ficou irritado porque Aikman mostrou-se simpático e agradeceu. Foram apresentados à equipe do chanceler. A última era uma japonesa pequena, a vice-chanceler, madame Hoshi Tamika. Ela fez uma pequena reverência, e Decenti retribuiu o gesto. No entanto, só para ter certeza de que ela conhecia seu lugar, tirou o casaco e entregou-lhe, com um agradecimento. A japonesa hesitou, e a secretária de Dengler adiantou-se apressada para pegar o casaco.

Um minuto depois, o chanceler Dengler apareceu na porta de sua sala, com um sorriso cansado e a mão estendida.

Ranold ficou aturdido com a aparência do homem. Ainda tinha aquela altura impressiva, o corpo esguio e forte, o ar distinto, mas o poder pare­cia ter se esvaído. Dengler lamentava seus mortos, é claro, mas quem não lamentava? Ele dava a impressão de que não dormia há dias, embora se vestisse de forma impecável, estivesse bem barbeado e penteado. Depois de apresentado a Aikman, Dengler disse:

— Ele pode esperar por você aqui? Não vai precisar de um segurança em minha sala.

Ranold hesitou, os pensamentos em disparada. Aquele era o território de Dengler, que decidia as questões de protocolo, mas mesmo assim...

— Ele é mais do que meu segurança, Chanceler. O comandante Aikman é um dos membros mais importantes da minha assessoria, e eu agradeceria se ele pudesse participar da reunião.

O rosto de Dengler murchou, e ele soltou um suspiro alto.

— Está bem.

Ele entrou na frente na sala enorme. Ranold virou-se e fez sinal para Aikman fechar a porta. Isso acarretou outro olhar surpreso de Dengler, enquanto se ocupava em puxar uma segunda cadeira para a frente de sua mesa.

O general teve certeza de que pressionara Dengler além do nível de conforto quando o chanceler sentou-se atrás da mesa. Sabia que Dengler tinha o hábito de sentar ao lado dos visitantes, não com a mesa a separá-los. Por outro lado, Ranold não queria que Aikman soubesse que a reunião não tinha como objetivo dar as boas vindas oficiais a seu novo cargo. Por isso, em vez de esperar que Dengler perguntasse por que pedira o encontro, ele tomou a iniciativa da conversa.

— Não tenho palavras para descrever o que significa para mim ser convi­dado para esta reunião, Chanceler.

— Posso entender. Mas eu...

— É uma honra servi-lo. Embora a onp seja uma organização autônoma, como acontece também com as outras agências de serviços, todas funcionam sob o comando do governo internacional, em particular as operações de inteligência. Por isso, senhor, tenho de lhe agradecer. É um prazer.

Dengler cruzou as mãos de dedos compridos sobre a mesa, e fitou Ranold nos olhos. O general ficou em silêncio, como se esperasse por pa­lavras formais do chanceler. No entanto, logo ficou evidente que Dengler esperava que ele explicasse o motivo para seu pedido de reunião. E Ranold odiou-o por isso.

— Há algum problema específico que deseja tratar comigo, General? — perguntou Dengler, insinuando que tinha um dia movimentado.

— Para ser franco, tenho, sim, Chanceler. Preciso saber se vai manter a determinação de que todos os cidadãos do mundo assinem o juramento de lealdade até março...

— Perdoe-me por interrompê-lo, General, mas sua jurisdição não se esten­de além das fronteiras dos Sete Estados Unidos da América, não é mesmo?

— Claro que não. Mas, como é natural, o que se aplica ao mundo também se aplica ao meu país.

— E qual foi mesmo a sua pergunta? Ranold sentiu que corava.

— Vai ou não exigir de todos os cidadãos o juramento de lealdade?

— Ouviu alguma informação em contrário?

— Foi evasivo quando conversamos pelo telefone. O chanceler recostou-se e cruzou os braços.

— Levando em consideração o que aconteceu no mundo inteiro...

— É uma questão de sim ou não, Chanceler. Dengler baixou a voz, contraindo os olhos.

— Presumo que sabe com quem está falando, General.

— Claro que sei. O homem que está chafurdando em sua...

— Presumo que também sabe que não estou subordinado a você e que não tenho a menor obrigação de responder.

Ranold assumiu uma expressão irritada, balançando a cabeça, com uma repulsa por Dengler que meras palavras não podiam descrever. Dengler olhou para Aikman.

— Seu chefe não é muito simpático, não é mesmo?

Ranold virou-se para verificar se havia o menor sinal de capitulação em Aikman. O comandante, para seu crédito, manteve-se impassível e calado. Dengler empurrou a cadeira para trás, como se fosse levantar, mas Ranold deteve-o.

— Gostaria de tentar salvar a reunião, Chanceler, se me permite mais um momento.

Dengler tornou a se recostar.

— Tenho muitos compromissos hoje.

— Não esperava que a reunião terminasse tão cedo, com toda certeza.

— Tem razão. Mas, por favor...

— Queria lhe mostrar nossas armas. Ranold tirou a luva esquerda do bolso.

— Como?

— Não me ouviu, Chanceler?

— Ouvi, sim, mas... por que eu...

— Não sente certo fascínio pela espionagem, o serviço de informações, meu caro Chanceler?

Ranold enfiou a mão na luva enquanto falava.

— Claro que sim, mas...

— Comandante Aikman, mostre sua nove milímetros e explique por que pomos menos balas no carregador do que o previsto.

Ranold ficou irritado quando Aikman hesitou. Como receava, isso deu tempo a Dengler para protestar.

— Aprecio sua área de competência, mas...

— Mostre logo sua arma, comandante. Permita-me a demonstração, Chanceler.

Aikman abriu o coldre e tirou a arma preta, lentamente, constrangido, como se pudesse perceber a impaciência de Dengler e a inconveniência de Decenti.

— Só pomos dez balas no carregador, porque o total previsto ameaça a integridade da mola.

— A mola estica, para ser mais simples. — Ranold sacou sua própria arma, e pela primeira vez percebeu o alarme nos olhos de Dengler. — Ambos usamos a mesma arma, já que somos ex-militares.

— Isso é muito interessante, mas agora...

Decenti estendeu a mão esquerda para a arma de Aikman. O homem mais jovem hesitou por um instante, e depois ofereceu-a. Ranold disparou dois tiros em Dengler, com a arma de Aikman, uma bala acertando o olho esquerdo, a outra destruindo-lhe a face. O impacto arremessou Dengler para trás, a cadeira virando. O olho restante aberto, os dentes à mostra, ele estava morto antes de bater no chão.

Aikman ainda tentou recuar e levantar, mas Ranold usou sua própria arma para acertar um tiro em sua testa, depois outro no coração, enquanto o corpo caía.

O general ouviu gritos e passos. Sabia que ninguém ousaria entrar en­quanto não tivesse certeza de que o tiroteio cessara. Ele largou a arma de Aikman em cima do corpo, tirou a luva e pôs no bolso, guardou sua arma no coldre. Só depois é que gritou:

— Socorro! Pelo amor de todas as coisas mais sagradas, socorro!

 

— VOCÊ JÁ OROU ALGUMA VEZ, BIA? — perguntou Paul.

— Nunca.

— Nem mesmo por acaso, quando corria risco de morte ou qualquer coisa parecida?

— Não. Quando estou com um problema, digo para mim mesma: "Vamos, Balaam, faça o que tem de fazer". Nunca oro.

— No entanto, agora acredita em Deus, não é mesmo? Não é isso o que está me dizendo?

— Claro.

— Pode orar para Deus.

— Já tinha pensado nisso. Mas como? O que alguém pode dizer a Deus?

— O que você quer dizer?

— Estou recebendo outra chamada, Paul. Tenho de acabar depressa. Quero dizer a Deus que sinto muito, que acredito nele agora.

— Pois então diga isso.

— Não posso falar com Deus da mesma maneira como falo com você, não é mesmo? Eu não saberia como falar. Desculpe, mas agora tenho de atender.

— Está certo, pode atender. Ligue-me depois. E você pode falar com Deus como fala comigo. Ele é seu criador. Vai entender.

 

Quando um assessor de Dengler abriu a porta, lentamente, Ranold caiu de joelhos, as mãos na cabeça, lamentando.

— Tive de atirar em meu comandante! Ele assassinou o chanceler! Cha­mem a segurança!

Antes que Ranold pudesse dizer mais alguma coisa, a sala transbordava de seguranças, assessores e curiosos.

— Não posso acreditar que não desconfiei de meu próprio comandante! — bradou Ranold, furioso. — Mas quem poderia suspeitar? E era um dos meus principais assistentes!

A mulher que tentara submetê-los ao esquema de segurança pediu a Ranold que a acompanhasse para a ante-sala.

— Você sabe que o homem quase teve um ataque quando tentei passá-los pelo detector de metais.

Ranold acenou com a cabeça, exibindo uma expressão angustiada.

— Não compreendi na ocasião, mas tudo faz sentido agora. Nem pensei a respeito quando ele insistiu.

— Nem eu. Não imaginei que pudesse haver motivos escusos. Pensei que ele só queria facilitar sua passagem.

— Foi o que eu também pensei. E, no entanto, conheço a importância das medidas de segurança, mais do que qualquer outra pessoa. Não me incomo­daria nem um pouco de ser revistado. Costumo até entregar minha arma, em situações seguras. Apenas não pensei desta vez.

— Eu compreendo. Pode me contar o que aconteceu?

— Estou bastante abalado, mas tentarei.

— Não precisa ter pressa, senhor.

— A reunião seria muito importante. Propus a Aikman esperar aqui, já que ele não precisava ter uma participação direta. No entanto, o chanceler, gentil e generoso como sempre, convidou-o a entrar. Ele deu-me os parabéns pela promoção, e disse algumas palavras gentis sobre a minha experiência... essas coisas. Apresentei minhas condolências, porque ambos perdemos um filho no incidente, como deve saber.

— Sinto muito.

— Obrigado. É uma situação difícil, porque minha esposa também foi assassinada...

— Que coisa terrível!

— Eu estava indo bem, cercado por pessoas que se preocupam comigo. Todos achavam que esta viagem seria a melhor coisa para mim. Devo dizer que a conversa com o chanceler afastara minha mente dos problemas, até que o comandante Aikman levantou-se, sacou sua arma, e matou-o.

— O que aconteceu depois?

— O que eu podia fazer? Quase sem pensar, porque fui treinado durante a vida inteira a reagir instintivamente, também saquei minha arma, no mo­mento em que Aikman virava-se para mim. Sabia que era ele ou eu, e por isso não hesitei em atirar.

— Vou precisar de sua arma, senhor.

— Claro.

— E também precisarei que permaneça em Berna por alguns dias, até que seja concluída a investigação.

— Não tem problema.

Ao se encaminharem para a porta da sala de Dengler, um investigador saiu com três sacos de plástico transparentes. Um deles continha a carteira e o documento de identificação de Aikman, outro a pistola de nove milímetros, e o terceiro uma pedra branca e lisa.

— Oh, não! — exclamou Ranold. — Onde encontrou essa pedra?

— Estava no bolso do assassino, senhor. Sabe o que é?

— Claro que sei. Identifica-o como membro dos fanáticos clandestinos da Região de Colúmbia.

O investigador estudou Ranold por um momento.

— Por que ele seria tão estúpido a ponto de trazer essa pedra, se o assassi­nato foi premeditado? Devia saber que nunca sairia vivo daqui.

Ranold deu de ombros.

— Como podemos saber?

 

Felícia não conseguia alcançar Clerus. Nada do que fizesse ou dissesse pare­cia causar nenhuma diferença.

— O que você quer, Clerus... além de ter Danny de volta?

— Isso é tudo o que eu quero. Afora isso, não sei se tenho forças para continuar.

— Está me assustando.

— Quero apenas ser honesto, Felícia. Se não puder ser honesto com você...

— Claro que pode. Mas como acha que isso me faz sentir? Ainda estou aqui, e preciso de você.

Cletus arriou numa cadeira da cozinha. Recusou a oferta de Felícia para comer ou beber alguma coisa.

— Não tenho nada para lhe dar, Fel. Nada restou em mim. Claro que também quero o que você encontrou. No entanto, mesmo que eu acredite em Deus, porque não tenho opção, não podemos nos tornar amigos... não enquanto eu odiá-lo.

 

Vinte minutos depois, enquanto Paul orava por Bia, antes de tentar dormir mais um pouco, ela ligou de novo. Ele saiu apressado para atender no corredor.

— Paul, você não vai acreditar no que aconteceu.

 

O ASSASSINATO DO CHANCELER BALDWIN DENGLER, do governo inter­nacional, lançou o mundo num caos ainda maior. Paul não achava que era possível, que a morte de um único homem, depois da morte de um bilhão, pudesse balançar a frágil porta da sociedade.

A vice-chanceler, antes anônima, a asiática quase invisível de que poucos já tinham ouvido falar antes, assumiu o papel de liderança. No entanto, to­dos sabiam que era temporário. Ela parecia impotente para conter a maré de agitação e protestos que se alastrou pelo mundo. A população, até mesmo as centenas de milhões de pessoas que ainda se declaravam não-religiosas, exi­giam que o governo suspendesse a proibição da prática da religião.

A maré estava virando. Paul previu — pela primeira vez em sua vida — a possibilidade de que os oprimidos, os angustiados, os excluídos, pudessem sair de seus refúgios, assumindo seu legítimo lugar na sociedade.

Três dias depois, segunda-feira, 4 de fevereiro, Paul, Jack Pass e Greenie Macintosh passaram horas numa sala de televisão, assistindo ao noticiário sobre o assassinato do chanceler, enquanto planejavam o êxodo de Washington para as minas de sal na Terra Central.

— Com toda essa agitação, é possível que não sejamos atacados — co­mentou Greenie.

Paul e Jack trocaram um olhar.

— E um sonho e tanto — murmurou Paul. — Por que pensa assim?

— Seu sogro volta para casa como herói, por ter matado o assassino. Vai querer arruinar sua imagem com o massacre de mil fiéis secretos? O mundo finalmente está do nosso lado, Paul.

Foi nesse instante que Paul sentiu a vibração no molar. Virou-se para aten­der, murmurando:

— Stepola.

— Bia. Preciso de asilo.

Ela falava de um jeito que Paul nunca ouvira antes. Apavorada.

— Por quê? O que aconteceu?

— Está assistindo ao noticiário?

Paul levantou os olhos para ver um dose do talismã na tela.

— Ligarei para você mais tarde.

— Espere, por favor. Decenti volta esta tarde.Tenho de desaparecer antes.

— Por quê?

— Fui eu que dei o talismã a Decenti, Paul. Sou a única pessoa que pode dizer que foi uma farsa. Aikman não era traidor. Muito pelo contrário.

— Mas o que está tentando dizer?

— Dei aquele talismã a Decenti, e é encontrado no bolso de um suspeito de assassinato? Não é preciso pensar duas vezes para chegar a uma conclusão, Paul. O general quer que eu vá buscá-lo no aeroporto. Acha mesmo que tornarei a ver a luz do dia? Estou indo para o refúgio. Pode dar meu nome em alguma entrada, para me deixarem passar?

— De que adiantaria sua vinda? Planejamos uma saída em massa.

— Não sei para onde mais posso ir, Paul. Decenti está sendo quase conde­corado, e eu me tornarei um alvo fácil.

 

— Lamento incomodá-la no trabalho, sra. Thompson, mas estamos preocu­pados com Cletus — disse a diretora da escola secundária de Lake-Cook.

— Por quê? O que aconteceu?

— De um modo geral, um de vocês dois telefona quando ele não vem trabalhar.

— Cletus já se aprontava quando saí de casa.

— Só que ele não veio para cá.

 

Os três homens que eram os principais líderes do movimento em Colúmbia acompanhavam atentamente o noticiário da televisão.

— Aikman não é um dos nossos — declarou Greenie. — Não reconheço seu rosto, e nunca ouvi falar no nome.

Paul relatou a conversa que acabara de ter. Também explicou seu relacio­namento com Bia Balaam.

— Balaam será bem-vinda aqui, — disse Jack — se isso serve de alguma ajuda e se você tiver certeza de que ela...

— Ei, espere um pouco! — interrompeu Greenie. — Não é a mesma mulher por trás do ataque aos fiéis na Terra do Sol? Não esqueceram que ela e Decenti são os únicos responsáveis pela seca em Los Angeles?

Paul ergueu a mão, enquanto na tela da televisão aparecia a pedra branca e lisa, mostrada por todos os ângulos. O arranhão atrás foi ampliado.

— Essa é a prova do crime, o fator que liga Decenti ao assassinato — declarou Paul.

— Como ele fez isso? — indagou Jack. — A arma do crime tem as im­pressões digitais de Aikman. As únicas marcas de pólvora na mão de Decen­ti são de sua própria arma. O talismã faz com que Aikman pareça um dos nossos. Se Decenti armou tudo, ele é mesmo muito bom.

— Você não faz idéia do quanto ele é competente.

O noticiário mostrou uma entrevista de Ranold um dia antes, incriminando Aikman ainda mais.

— Sinto-me envergonhado por não ter percebido os sinais antes. Claro que a percepção posterior é sempre mais acurada, mas só depois do assassinato me ocorreu que podia haver alguma coisa errada. Não entendi antes, mas o Comandante Aikman parecia meio transtornado ultimamente. Eu deveria concluir que alguma coisa estava errada, mas não pensei mais a respeito.

O noticiário também mostrou a sra. Aikman e duas filhas adolescentes, de rostos vermelhos e olhos inchados, olhando furiosas para a câmera, enquanto eram levadas às pressas por agentes da onp.

— Não há a menor possibilidade de meu marido ser um fanático clan­destino — declarou ela. — Ele odiava essas pessoas, e dedicou sua vida a capturá-las.

A locutora da televisão acrescentou:

— O resto da família está sob suspeita. As três estão detidas e serão in­terrogadas até que as autoridades dos seua estejam convencidas de que não tinham conhecimento das atividades clandestinas de seu marido e pai.

Um especialista informou que o único mistério que ainda restava na investigação de homicídio era o fato de Aikman não apresentar marcas de queimadura.

— Por outro lado, com armas desse tipo, isso é possível e acontece de vez em quando. Ao que tudo indica, foi o que ocorreu neste caso.

 

— Estamos com uma enorme deficiência de pessoal, como você sabe mui­to bem — declarou Harriet Johns para uma desesperada Felícia Johnson.

— Não podemos voltar correndo para casa no meio do expediente só por causa de problemas conjugais.

— É mais do que um problema conjugai. Preciso ir de qualquer maneira, mesmo que isso custe meu emprego.

— Não custará seu emprego, sra. Johns — disse Harriet, enquanto Felícia se retirava apressada. — Mas o fato será registrado em sua ficha!

Na volta para casa, a toda velocidade, Felícia ligou para o amigo e ajudante de Cletus como técnico do time da escola.

— Buddy, você se importaria de ir até lá em casa durante sua folga para verificar se Cletus dormiu demais? Ele não tem dormido bem e pode...

— Eu já havia pensado nisso, Felícia. Estou indo para lá.

— Obrigado. Por favor, telefone-me.

Buddy, porém, não ligou. E quando Felícia telefonou, ele não atendeu. Ela ligou para a diretora.

— Tem alguma notícia de Buddy? Ele estava a caminho de minha casa...

— Ele espera por você ali — disse a diretora.

 

— Não sou grande conhecedor de espionagem internacional, mas insisto que devemos ter o máximo de cautela — declarou Greenie. — Essa mulher ocupa um cargo muito alto na onp, logo abaixo de Decenti. Ela sabe mesmo onde estamos? E deixá-la entrar aqui não seria a mesma coisa que permitir que o camelo enfie o focinho por baixo da tenda? Digamos até que ela é sincera, que mudou de lado, e pode incriminar Decenti no assassinato. Se ele descobrir que a mulher está escondida aqui, vai tentar nos destruir ainda mais depressa.

 

Felícia parou o carro na rua. Na frente da casa já havia duas radiopatrulhas, uma ambulância, o que parecia ser um carro da polícia sem identificação, e a caminhonete de Buddy. Ela teve de fazer um esforço para não subir na calça­da e parar o carro no jardim, junto da varanda. Encostou a testa no volante, e bateu nas coxas com os punhos. Levantou os olhos quando ouviu uma batida na janela do carro.

Buddy abriu a porta e ajudou-a a sair.

— Ele morreu?

Buddy acenou com a cabeça em confirmação, a expressão sombria.

— Como?

— Carro. Garagem.

— Deixou um bilhete? Buddy entregou-o.

Fel, perdoe-me, por favor. Sei que verá isso como um abandono da minha parte, mas você é forte. Conseguirá sobreviver. Tentei tudo, e até orei. Mas sinto muito. Eu amo você. Adeus. Cletus

 

PAUL PRECISAVA DE UM MINUTO. Na verdade, ele precisava de mais de um minuto. Precisava de Jae. Encontrou-a com Ângela Pass Berger e as crianças, e chamou-a para uma conversa. Foram para seus aposentos. Paul sentou, exausto, com um esforço para manter o controle. Sabia que Jae via um novo aspecto seu. Não queria preocupá-la, mas sentia que alcançava seu limite.

— Tenho de admitir, Jae, que fiquei emocionado com o que Deus fez em Los Angeles. Ele provou do que é capaz, e deixou-me orgulhoso de estar no lado vencedor. Não posso dizer a mesma coisa em relação à morte dos primogênitos. Reagi como muitos sobreviventes. Fiquei abalado. Arrasado. O fato de que as pessoas estão clamando pelo fim da idiotice da proibição da prática da religião não me surpreende, depois de tudo o que aconteceu. Mas pense no que está acontecendo agora.

Ele relatou a ligação que acabara de receber de Felícia, e que o impelira a procurar Jae.

— Pense no que está acontecendo com meus amigos, meus colegas, com os novos fiéis. Em sã consciência, devo encaminhá-los para Deus, quando podem esperar esse tipo de resultado?

Jae começou a massagear os ombros do marido.

— Pense um pouco, Paul. Todos nós sofremos. Lembre-se que também sou uma fiel agora. E veja o que aconteceu comigo. Meu irmão. Minha mãe. Nossa família vivendo num refugio subterrâneo, com medo de morrer. Fugitivos. E meu pai provavelmente é um assassino.

Paul balançou a cabeça.

— Felícia perde um filho e agora o marido, e nem sequer tem o conforto de saber que Cletus era um fiel. E pense no caso de Bia. Nunca imaginei que ela

pudesse algum dia se converter, nem mesmo considerar a possibilidade da exis­tência de Deus. Agora, Bia tenta encontrar uma maneira de falar com Deus, de dizer que está arrependida, de encontrá-lo. E, de repente, tem de fugir para salvar sua vida. O que vai acontecer? Como tudo isso pode terminar? Jae foi até a janela que dava para o corredor.

— Começo a sentir as conseqüências do confinamento aqui. Sei que isso parece insignificante, em comparação com todo o resto, mas...

— E é mesmo.

— Mas o que você sempre me diz quando me sinto sufocada e deprimida, Paul?

— Tenho certeza de que é algum conselho de prudência, querida, mas não estou lembrando. O que é?

— Para mudar o foco. Concentrar-me em alguma coisa pequena que possa resolver. Não há nada que você possa fazer neste momento para im­pulsioná-lo, nem que seja apenas um pouco? Você não pode salvar o mun­do. Talvez não seja capaz de salvar este refúgio. Não pode trazer Cletus de volta. Não pode mudar meu pai. No entanto, talvez possamos receber Bia Balaam. E talvez você encontre alguma maneira de ajudar Felícia.

Paul esfregou os olhos.

— Bia já está a caminho. Vamos torcer para que ela não traga mais nin­guém até aqui. Quanto a Felícia, sinto-me desorientado. Ela ainda é nova na fé, muito frágil. O que pode sustentá-la?

— Ela não poderia vir para cá também?

— É possível, mas não seria o melhor para nós, nem para ela.

— O que está querendo dizer com isso, Paul?

— Ela seria ainda mais vulnerável aqui. Quando seu pai voltar e desco­brir que Bia escapou, vai retaliar com um ataque antes do prazo marcado. E Felícia encontrará o fim se estiver aqui.

Paul percebeu o que acabara de fazer antes mesmo da reação de Jae.

— Um ataque antes do prazo? O que isso significa?

Ele vinha se deteriorando tão depressa? Era a segunda vez que deixava escapar uma informação secreta numa conversa com Jae, o que nunca teria acontecido antes. Paul desejou que fosse um indicador do que havia agora entre os dois, o novo relacionamento, a fé partilhada. Não planejara revelar primeiro que sabia mais do que ela sobre seu pai, que ele era apenas diretor interino da onp e viajaria para Berna. Agora, vazava a informação de que Ranold planejava um ataque ao refúgio subterrâneo em Colúmbia. Ele rangeu os dentes e balançou a cabeça.

— O que está acontecendo, Paul? Meus filhos correm perigo até mesmo aqui?

Mas como pôde ser tão estúpido? Paul teve de fazer um esforço para não se recriminar.

— Todos nós corremos perigo, até mesmo aqui.

Os olhos de Jae ficaram cheios de lágrimas, enquanto ouvia o relato. Paul sabia que ela já começava a especular como podia tirar as crianças dali, levá-las para um lugar seguro.

— Para onde poderíamos ir, Paul? As minas de sal?

— Provavelmente.

Ele falou da logística necessária para um êxodo em massa de mil pessoas. E depois, pela primeira vez em sua vida, Paul baixou a guarda e permitiu-se ser vulnerável na presença da esposa. Disse a Jae que estava muito preocupa­do, a ponto de revelar duas coisas que nunca deveria ter dito... logo ele, que sempre fora enaltecido por sua capacidade de guardar segredos.

— Estou me sentindo fraco e cansado. Todas essas pessoas contam comigo, e sinto que não sou mais nem a metade do homem que era há duas semanas. Deveria ser um trunfo aqui, com meus contatos, experiência e treinamento. No entanto, me sinto como um trapalhão, alguém que pode estragar tudo para to­dos. Em vez de ajudar, posso me tornar a causa de um desastre, um massacre.

Jae estudou-o por um momento. Estendeu a mão como se fosse tocá-lo, mas mudou de idéia.

— Pense no foco, Paul. Afaste os pensamentos de si mesmo e concentre-se nas mulheres importantes para você neste momento. Pense bem. Primeiro eu, depois minha mãe, Felícia e Bia. Todas alcançaram a fé, ou estão prestes a alcançar. Já é alguma coisa. Foi obra de Deus, eu sei, mas você estava envolvido.

— E por isso que sinto que devo alguma coisa a Felícia e a Bia.

— Disse que Bia está vindo para cá. Trataremos dela assim que chegar. O que você pode fazer neste momento por Felícia?

Paul sacudiu a cabeça.

— Ela precisa de alguém para conversar e não pode ser pelo telefone.

— O que nós somos? Cegos? Se não podemos nos encontrar com Felícia agora, temos de procurar a melhor pessoa em seguida. Talvez até melhor do que nós mesmos.

— E quem poderia ser, Jae?

— Straight.

 

O retorno triunfal de Ranold B. Decenti a Washington foi uma notícia de des­taque. O Governador Haywood Hale, de Colúmbia, recebeu-o pessoalmente no aeroporto, e condecorou-o com uma medalha de honra por bravura no meio de uma crise fatal.

Decenti pegou o microfone. Os olhos baixos e a expressão mais humilde, expressou seu profundo pesar pela perda de "nosso amado líder mundial".

— Baldwin Dengler era um homem de grande visão, coragem e percepção. É improvável que possamos contar com mais alguém de seu valor em nossa vida.

 

Paul recebeu Bia Balaam em uma das entradas secretas do refugio subterrâ­neo, mas nem deixou que ela largasse a bolsa.

— Não temos mais ninguém dentro da onp — disse ele.

— Essa não, Stepola! Quer que eu volte?

— Até que ponto você é eficiente?

— Sou uma das melhores, mas não quero ser voluntária para o martírio.

— Precisamos inventar uma razão para que você não tenha esperado Ranold no aeroporto. Tem de convencê-lo que ainda é leal. Não podemos deixar de conhecer os planos para o ataque. Faltam quatro dias e estamos sem opções.

Bia fechou os olhos. Passou a mão pelos cabelos prateados. Paul podia sentir as engrenagens virando.

— Sabia que o governador ia recebê-lo no aeroporto, e por isso efetuei um trabalho de reconhecimento, assumindo o papel de Aikman no planejamento do ataque.

— Isso é ótimo.

— Mas como posso contornar a certeza de Decenti de que sou a única pessoa que pode ligá-lo ao talismã, Paul?

— Fale francamente. Diga que sabe o que ele fez, e que considera um golpe de gênio. Ele sabia alguma coisa sobre Aikman que você ignorava. Por isso, assassinar um fraco como Dengler e atribuir a Aikman, até mesmo im­plicá-lo como um fanático clandestino, apenas serviu para consolidar a posi­ção como seu herói.

— É demais.

— Pode fazer isso, Bia.

— Sei que posso.

 

Observar o corpo do marido ser levado para o rabecão, coberto por um lençol, foi a coisa mais difícil que Felícia Thompson já suportara. Saber que o filho morrera no incidente quase a destruíra, mas tinha a certeza de que ele não sofrerá. O que não fora o caso de Cletus...

Ela pensou em acompanhar o corpo até o necrotério superlotado, mas não havia mais nada que pudesse fazer ali. Já o identificara, e sabia que Cletus se­ria agora metido num gavetão refrigerado, ninguém sabia por quanto tempo.

Quando as autoridades finalmente partiram, Felícia agradeceu a Buddy, garantindo que ficaria bem. Depois, atendeu o telefonema de condolências da diretora. Ainda no jardim, no frio, temendo o momento de entrar na casa vazia, ela ligou para Harriet Johns.

— Sinto muito, Felícia — disse Harriet, parecendo mais indiferente do que compadecida. — Tire alguns dias de folga, se precisar, mas me mantenha informada sobre sua volta.

Felícia finalmente entrou. Foi sentar à mesa da sala de jantar, ainda com o casaco. Baixou a cabeça e chorou. Tentou orar, tencionando atribuir a culpa a Deus, desafiá-lo, questioná-lo, mas não sabia como fazê-lo. E não parecia since­ro. Não era culpa de Deus. Cletus tomara aquela decisão. O que mais preocupa­va Felícia era o fato de que não podia culpá-lo pelo que fizera. Sentia-se furiosa com Cletus, é verdade. E a palavra não era bastante forte para descrever o que sentia pelo que ele fizera. Como Cletus ousara deixá-la sozinha logo agora?

O celular tocou. A ligação era de um número desconhecido de Chicago. O que seria agora?

Bia ficara contra ele? Isso era tudo o que Ranold B. Decenti queria saber. Claro que sim. Se não fosse por isso, por que ela deixara de comparecer ao aeroporto, e não fizera nenhuma tentativa de entrar em contato? Tivera de mencionar para Hale que precisava de uma carona até o escritório.

— Todo pessoal está ocupado numa missão importante. Devemos des­fechar a qualquer momento um ataque contra um importante esconderijo subterrâneo dos fanáticos.

Hale pediu ao motorista para fechar a divisória que os separava do banco da frente.

— Perdoe-me, General, mas ficou louco? Compreendo que faça todo o planejamento, mas não acredito que pense mesmo em efetuar um ataque no atual clima da opinião pública.

Ranold não se importaria de também disparar dois tiros em Hale naquele momento.

— O clima atual é de covardia, Governador. Alguém precisa fazer alguma coisa. Vai virar as costas e fugir porque perdemos uma batalha? É tempo de ganhar outra.

O telefone de Decenti tocou. Ele verificou que a ligação era da coman­dante Balaam.

— Onde você está?

— A caminho para encontrá-lo no escritório, senhor. Lamento muito por não estar a sua espera no aeroporto, mas sabia que o governador ia recebê-lo, e achei que conseguiria transporte com ele.

— E consegui. Mas você deveria ter me avisado.

— Peço desculpa outra vez. Mas estava no meio de contatos importantes, tentando providenciar tudo para a operação no fim de semana. As coisas se tornaram mais difíceis com a perda de nosso companheiro. Por falar nisso, a manobra com o talismã foi um golpe de gênio. Nunca deixa de me espantar, senhor.

Decenti limpou a garganta.

— Hum... retomaremos o contato dentro de poucos minutos.

— Não pode falar agora, eu presumo?

— Isso mesmo, comandante.

— Pois deixe-me dizer de novo que fiquei impressionada. Não completa­mente surpresa, pois tem um longo histórico de fazer coisas assim. Perdoe-me pelo entusiasmo, mas é uma honra servir sob o seu comando, senhor.

 

ELE RESSUSCITOU.

Felícia ficou aturdida. Quem podia ser a pessoa ao telefone?

— É verdade, ele ressuscitou — murmurou ela, sentindo um aperto no coração.

Um homem apresentou-se como confidente de Paul Stepola.

— Ele me pediu para verificar se posso ajudá-la em seu momento de dor. Sinto muito por sua perda.

— Obrigada. É desnecessário dizer que precisarei confirmar...

— Com Paul, sem dúvida. Eu compreendo. Se não receber notícias suas, presumirei que ele me afiançou e que está disposta a se encontrar comigo. Conhece o Ray Radigan's?

— Em Kenosha? Claro que conheço. Fica na beira da estrada. Mas não tenho a menor vontade de comer.

— Mas eu tenho. E é um bom lugar para nos encontrarmos e conversar. Se não receber notícias suas antes, estarei à espera ali às seis horas.

— Como vai me reconhecer?

— Não se preocupe com isso. Paul descreveu-a. Digamos que ambos sere­mos fáceis de reconhecer.

 

Bia Balaam tinha uma pistola 38 de cano cortado num coldre preso no cinto, por baixo do blazer. Não esperava que Ranold Decenti a matasse em sua sala, mas também não podia esquecer o que ele fizera com Baldwin Dengler. Devia estar preparada para tudo, e desconfiar de qualquer sugestão de encontro.

Para seu espanto, depois que a secretária a introduziu na sala, Ranold saiu de trás da mesa com os braços abertos, para abraçá-la. Bia não se lembrava de uma única ocasião em que ele tivesse sequer tocado em sua mão, durante todos os anos em que se conheciam. Torceu para que as mãos de Ranold não descessem até sua cintura, onde encontrariam a arma. Fechada a porta, ele sorriu, enquanto tornava a sentar por trás da escrivaninha.

— Quer dizer que compreendeu tudo, não é?

— Tive certeza assim que vi o talismã. Você é mesmo incrível.

— É a única pessoa que sabe, comandante.

— Foi o meu segundo pensamento. Senti a maior admiração por sua as-túcia, e depois experimentei orgulho e gratidão por saber que confia tanto em mim. Sinto-me honrada por ser sua confidente, senhor.

A menos que ele fosse mesmo tão bom quanto ela sugeria, Bia achou que conseguira persuadi-lo. O ego de Ranold não conhecia limites. Embora ela quisesse se conter, para não deixá-lo desconfiado com um excesso de lisonja, sabia que a vaidade de Ranold seria suficiente para sustentá-lo. Ainda dando a impressão de que fazia um esforço para não sorrir, ele declarou;

— Agora que já deixamos para trás o que é irrelevante, onde vamos atacar? Bia inclinou-se para a frente, a fim de evitar que a arma pressionasse suas

costas.

— Tudo está correndo bem, apesar da perda do líder do projeto.

— Não chegou a ser uma grande perda, pois era essencial para que eu pudesse fazer o que fiz.

— Presumo que sabia de coisas sobre Aikman que eu ignorava.

— Claro. Mas eu gostaria que você tivesse dado mais crédito as minhas suspeitas. Sabia que havia alguma coisa errada com ele.

— Tem razão. — Se Ranold podia simular remorso por não ter percebido nada antes, ela também podia. — Não percebi nada, senhor. Serve para refor­çar minha determinação de ser uma observadora tão atenta quanto o senhor.

— Também não precisa se afligir com isso. Poucas coisas escapam quando se chega a minha idade.

— Só posso torcer para que assim seja. Mas queria saber, senhor, se ainda pensa da mesma forma sobre a data do ataque.

— Por que pergunta?

— Por causa do clima atual da opinião pública.

— Parece que andou conversando com Hale. Bia balançou a cabeça, soltando uma risada.

— Só me encontrei com o governador uma ou duas vezes, e apenas para um aperto da mão.

— Ele também está preocupado com a opinião pública. No entanto, como uma operação bem-sucedida pode afetar de forma negativa o suposto clima atual da opinião pública? Não seria possível que virássemos a maré da opinião pública em nosso favor?

— Era o que eu estava pensando. Curiosa para saber se mais uma se­mana pode fazer grande diferença. — Bia entregou um envelope bastante grosso e pesado que continha uma pasta de documentos. — Leitura para a hora de dormir.

 

Felícia Thompson sentia-se aturdida com a perspectiva de se encontrar com um fiel secreto, que poderia ajudá-la a relevar sua dor, mesmo que fosse ape­nas em caráter temporário. Quando se permitia pensar no horror da morte do amor de sua vida, compreendia pela primeira vez o que era a depressão.

O futuro parecia sombrio e desolado. Felícia não podia se imaginar com a motivação para se levantar da cama uma só vez, muito menos em todas as manhãs pelo resto de sua vida. Só lhe restava Paul... e o que podia fazer por ele e seus novos irmãos e irmãs no movimento clandestino. E havia Hector Hernandez, a quem mal conhecia. E Trudy Nabertowitz.

Entretanto, voltar ao trabalho, voltar ao escritório, onde era agora uma agente dupla, a descoberta acarretando a pena capital? Que sentido ainda podia haver?

O Radigan's, uma churrascaria antiga, no norte, na fronteira Illinois-Winsconsin, estava mais movimentado do que ela esperava. Felícia, porém, sentiu-se subitamente segura ao avistar o homem alto e grisalho, que se levantou no instante em que ela entrou no pequeno saguão.

Notou que ele claudicava um pouco, apoiando-se no corrimão ao subi­rem a escada. Como ele sugerira, eram os únicos negros na churrascaria. Ao chegarem à mesa, ele já contara a história de sua vida, numa voz rouca de barítono. Professor universitário, perdera toda a família — e o pé — num desastre que ele próprio causara, ao dirigir embriagado. Perdera o emprego.

Tornara-se sóbrio, encontrara Cristo. Agora, ajudava o movimento clandesti­no e trabalhava como voluntário no Hospital psl.

Felícia disse que encontrara Deus depois do incidente.

— É lamentável que tenha havido necessidade de tamanha devastação — comentou ele.

— Nem me fale.

Straight pediu uma lauta refeição. Felícia contentou-se com uma salada. Enquanto comia, o homem enorme disse, baixinho:

— Sei que o momento é horrível, sra. Thompson. E só posso imaginar o que tem passado. Compreendo a dor. Compreendo a vergonha. E, pode ter certeza, compreendo como o futuro parece quando todo o seu mundo desmorona. No entanto, como seu irmão em Cristo, apresentarei uma sugestão, desafiando-a a fazer a coisa mais difícil que já fez em toda a sua vida.

 

Seria possível, especulou Ranold naquela noite, em casa, que não precisaria mais eliminar Bia Balaam? Seria ótimo se pudesse evitar. Mas também era capaz de matá-la. Se fora capaz de assassinar o chanceler internacional e escapar impune, poderia com certeza encontrar uma maneira de fazer a mesma coisa com Bia.

Ranold considerava-a como um dano colateral, até que ela reconhecera que fora um golpe magistral. Ele estava acima de ser influenciado pela lison-ja; realmente acreditava nisso. Mas Bia sempre fora uma de suas melhores agentes, em quem tinha a maior confiança. Achava que ela estava na mesma categoria de Paul.

Paul... Um terrível desapontamento. E Jae também. Ranold sempre tivera as maiores esperanças pela filha. Uma jovem brilhante. Ou pelo menos fora o que ele pensara. Agora, Jae era pouco mais que Berlitz de saia, uma lâmpada fraca, sob aqueles cabelos bonitos.

Ranold estava de chambre, estendido de costas na cama. Abriu o envelope que Bia lhe entregara. Ela fizera um bom trabalho. Reformulara os prepara­tivos anteriores de Aikman. Agora, no entanto, o plano estava pronto, com a indicação de todas as etapas para sua execução.

Exigia a cooperação do exército. O que não seria um problema, com o prestígio de Ranold. Os documentos indicavam a localização do refugio subterrâneo de Colúmbia — muito maior do que Ranold esperava — e revelavam sua população. Ele sabia que o genro se encontrava ali, o que o deixava com vontade de cuspir em desprezo ou esfregar as mãos em contentamento. Mas sua filha e netos também estavam ali.

Ele desviou a atenção das páginas frias e burocráticas. Olhando para o teto, recordou. O nascimento de Jae. Como ele se sentira orgulhoso. A crian­ça maravilhosa que ela fora. E os netos. Deveria sentir alguma coisa além da nostalgia? Seria capaz de ordenar um ataque com mísseis, para aniquilar o esconderijo e todos os fanáticos ali, mesmo com o sacrifício de seu próprio sangue?

Nunca fora mole antes, e não tinha a menor intenção de se tornar agora. Perdera quase um exército inteiro numa tsunami no Havaí. A vida e a morte eram o preço da guerra. E apesar da indecisão dos fracos — um dos quais ocupara a cadeira do chanceler, com outro ocupando a Ala Oeste da antiga Casa Branca — a situação ainda podia ser considerada apenas uma guerra.

Uma guerra contra Deus? Ele ousaria admitir isso? Muito bem, era isso mesmo. O que significava que Deus existia. Aquela era uma batalha de vontades, de ideologias. Ranold jamais enfrentara um inimigo que o fizesse vacilar, que causasse medo ou mesmo hesitação. Não restava a menor dúvida de que aquele era o inimigo mais formidável com quem já lutara. O que tornaria a vitória muito mais doce.

Ranold B. Decenti enfrentara o chanceler do mundo e vencera. Agora, enfrentaria o próprio Deus, e que acontecesse o que tivesse de acontecer.

 

Felícia sacudiu a cabeça.

— Acha que é demais? — indagou Straight. — E cedo demais?

— Tudo é demais. Para começar, é demais para imaginar. Devo continuar a trabalhar na onp em benefício de Paul?

— Não apenas de Paul. De todo o movimento cristão. Precisamos de você ali. Sua presença é fundamental. E o que mais você poderia fazer? Se passar o dia inteiro sentada naquela casa vazia, todos os dias, não vai ser bom para ninguém. Permaneça no jogo, e pode fazer uma diferença de vida ou morte para os fiéis no mundo inteiro.

 

DUAS SEMANAS DEPOIS DE TER PERDIDO SEU único filho no incidente, Bia Balaam sentava no sofá da sala-de-estar de seu duplex em Georgetown, olhan­do para a tela em branco da televisão, perguntando-se como deveria se sentir.

Nunca pensara a respeito antes, mas agora tinha de especular: Quando a dor intensa da perda de um filho dá lugar à angústia permanente do lamento? Apesar de ter de se concentrar em adular Ranold B. Decenti e procurar Deus em sua alma, em busca de salvação, a amargura profunda da perda ainda a atormentava.

Havia ocasiões em que Bia quase desmoronava. Era mesmo verdade que o tempo curava todas as feridas? Aquela fora tão súbita e tão profunda que tudo o que ela podia fazer era tentar sobreviver até que a dor lancinante diminuís­se. Esperar e sofrer lhe proporcionava uma nova perspectiva sobre o tempo. Claro que nunca considerara antes que duas semanas era um longo período; já se recuperara de pequenas cirurgias nesse prazo.

Se acontecesse com outra pessoa, Bia não esperaria que se recuperasse por completo em catorze dias. Mas provavelmente pensaria que a pessoa pelo menos começaria a ver uma luz no horizonte.

No entanto, ela não tinha tanta sorte. Ainda sentia que o filho estava vivo num instante e morto no seguinte. Se alguém lhe dissesse que acontecera no dia anterior, poderia até indagar: Já faz tanto tempo? Finalmente ela compre­endia o clichê de que o tempo pode parar.

Oh, Deus, ela se descobriu a orar, deixe-me descansar, deixe-me respirar, deixe-me saber que é uma coisa com que poderei conviver algum dia. Isso era tudo o que ela queria. Não o alívio instantâneo, embora pudesse ser ótimo, mas apenas a certeza de que a passagem do tempo faria diferença. O fato de que a dor não diminuíra nem um pouco em catorze dias a deixava assustada. Por quantos dias, semanas, e meses a mais poderia suportar aquele vazio desesperado em seu coração? Não podia se lembrar de ter chorado desde a escola primária, e não chorou agora. O que havia de errado com ela?

Por mais estranho que pudesse parecer, uma parte de Bia não queria que o sofrimento se atenuasse. Isso não seria um insulto ao filho? Nunca o esque­ceria, nunca se acostumaria com sua ausência, e nunca se sentiria bem. Só precisava saber que um dia valeria a pena de novo viver a vida.

Ela orara. O que fizera com que pensasse. Paul Stepola a exortara a tentar falar com Deus como falava com ele. Parecia esquisito. A pouca exposição que tivera aos antigos ritos religiosos fazia que todos parecessem formais, rígidos, cerimoniais. Conhecia o protocolo internacional. Podia mesmo con­versar de igual para igual com o Deus do universo, quando não ousava falar em termos informais com um chefe de estado, ou mesmo com um burocrata de nível intermediário?

E, no entanto, tinha de fazê-lo. Bia reconhecera que Deus tinha o poder de lhe proporcionar algum alívio, ou pelo menos algum conhecimento. Há muito que deixara de especular se Deus existia. A própria idéia de ateísmo parecia absurda agora, e ela não podia deixar de especular se seu chefe era o único homem que restava no planeta que ainda insistia nessa negação.

Quando confrontada pela primeira vez com a idéia de um Deus que existia mesmo, era ativo, aparentemente vingativo e sem paciência, Bia fora dominada pelo medo. No mesmo instante, passara a acreditar. Fora como descobrir que o rosto e a voz nas chamas de O mágico de Oz não eram uma artimanha, mas uma coisa real e grande, poderosa e terrível.

Agora, porém, ao considerar as anotações de Paul Stepola sobre a maneira de fazer contato com esse ser assustador, Bia sentia-se confusa e apreensiva. Fora uma curta viagem do ponto em que se encontrava até a admissão de que não havia nada que pudesse se comparar a uma força cósmica como Deus. No entanto, isso a tornava uma pecadora, separada de Deus, alguém que precisava reconhecer seu mal e receber a dádiva de uma ponte para Deus?

Bia mal podia se aprofundar. E, no entanto, de uma maneira desconcer-tante, sentia-se assediada. Seria a pressão de Paul, ou do próprio Deus? O medo era uma razão legítima para se tornar humilde? As anotações de Paul pareciam apontar para um Deus de amor, perdão e reconciliação, mas ela apenas o temia. E sussurrou:

— Deus, mostre-me o caminho.

 

Ranold Decenti tinha uma reunião marcada com o General Chester "c.c." Creighton, que ele conhecia desde a Terceira Guerra Mundial. Embora mantivessem pouco contato durante a última década, c.c. fora um dos que demonstraram compaixão sincera quando Ranold perdera a maioria dos homens sob seu comando para a tsunami que destruíra as ilhas do Havaí, há mais de trinta anos.

— Não precisa me dizer, Dece, que não havia a menor possibilidade de prever ou evitar o que aconteceu.

Isso não fizera com que Ranold se sentisse melhor, mas ele nunca esque­cera o esforço.

Havia a lenda de que o General Creighton, mesmo próximo dos setenta anos, ainda fazia exercícios todos os dias e mantinha o mesmo peso de trinta anos antes. Ranold decidiu que C.C. ficaria impressionado se ele aparecesse em seu uniforme do exército, também com o mesmo corpo do passado.

Ranold ficou chocado ao descobrir que mentira para si durante anos. O espelho não mentia. Nem seu velho uniforme. Dissera a si mesmo que só por­que aumentara dois números no tamanho do terno, um sinal da idade, isso não significava que não poderia se espremer dentro de seu velho uniforme, mesmo que não se sentisse confortável.

Estava enganado. Mal conseguiu suspender a calça pelas coxas, e descobriu que não havia espaço para o enorme traseiro. Havia uma diferença na hora de fechar na frente de quase dez centímetros, mesmo quando ele dobrou o corpo e encolheu a barriga. A túnica estava mais do que apertada nos ombros e no peito, e também não havia a menor possibilidade de abotoá-la.

Ranold estava furioso consigo mesmo ao pendurar o uniforme no cabide e cobri-lo com o plástico grosso e transparente. Teria de usar seu melhor terno.

Meia hora depois, seu motorista deixou-o na frente do quartel-general do exército, um prédio imponente, em grande parte ignorado e esquecido desde o final da guerra, quando a erradicação da religião conseguira eliminar todos os conflitos. Os militares americanos eram apenas uma sombra do que haviam sido no passado. Empenhavam-se em combater apenas em pequenas escaramuças em países do Terceiro Mundo e em ataques a seus próprios compatriotas... os fanáticos clandestinos. Durante todo esse tempo, não ocorrera o que alguém poderia considerar uma guerra de verdade.

Ironicamente, as armas de qualquer tipo eram proibidas no quartel-gene­ral do exército, sem exceções. Ranold sabia disso, e deixara a pistola em casa, embora pudesse se divertir ao recordar com C.C. o treinamento de ambos.

Ranold gostava da decoração e da formalidade antiquada do prédio do quartel-general do exército muito mais que a ostentação e opulência da sede do governo internacional em Berna. Embora muitos considerassem que o esvaziado Exército dos Estados Unidos não passava de uma relíquia, era a herança orgulhosa de Decenti, que amava cada palmo daquelas instalações.

Chester Creighton e Ranold Decenti ofereciam um estudo de contrastes. Ranold sentiu-se orgulhoso ao refletir que os não-iniciados que os vissem lado a lado pensariam, em sua vasta maioria, nove em cada dez, que era ele o general no comando de um exército. Creighton era baixo e musculoso, enquanto Ranold era alto, largo e corpulento. Os dois bateram continência um para o outro, e trocaram um aperto de mão efusivo.

O General Creighton levou-o para sua sala. Mais uma vez, Ranold prefe­riu-a à sala do chanceler em Berna. Ali, tudo parecia deliberado, funcional, sem nenhuma consideração pelo brilho e ostentação. Ali, tudo era antiquado e firme. Cada placa e foto nas paredes parecia presa de maneira a nunca sair de seu lugar.

C.C. apontou para uma cadeira a uma mesa no lado da sala. Sentou na frente de Ranold. Uma estranha tentação e emoção dominaram o visitante. Ranold descobriu que tinha de morder a língua para não fazer um comentário insolente, que C.C. tinha o comando supremo de uma organização que se tornara uma contrafação. Não havia mais guerra. Por que alguém precisava de um exército?

E, no entanto, Ranold acreditava que a própria questão inflamaria um veterano como C.C. Depois de brincarem um com o outro e trocarem infor­mações, Creighton foi direto ao assunto, como era seu hábito:

— Então você quer jogar uma bomba no refúgio subterrâneo dos fanáticos de Colúmbia. Tem certeza de que não é por vingança pela perda de metade da sua família?

Isso nem passara pela cabeça de Ranold, que deve ter deixado transparecer.

— Você deve compreender que sei quem está lá embaixo, Dece. Pretende tirar sua filha e a família de lá?

Decenti desviou os olhos.

— Não. Eles escolheram seu lado. E passaram a ser o inimigo.

Creighton ficou imóvel. Seu olhar deixou Ranold constrangido. Ele fitou o velho amigo por um instante, mas logo desviou os olhos.

— O que foi? — perguntou Ranold.

— Você me toma por idiota, Dece? Este exército pode não ser mais o que você lembra, mas nunca sequer sugira que não temos mais um dos melhores serviços de inteligência do mundo, incluindo até sua organização.

O que C.C. estava querendo insinuar? Era um insulto à onp? Ranold que­ria lhe conceder o benefício da dúvida.

— Não tive a intenção de insultar...

— Mas insultou, Dece. Insinuou que o comandante do exército não sa­beria que você tem dois netos com menos de dez anos de idade naquele refúgio.

— Como assim? Eu não disse isso. Creighton inclinou a cabeça para o lado.

— Você se tornou um velho tolo.

— Está falando sério?

— Primeiro, você nega qualquer motivo de vingança, apesar de ter perdido o filho e a esposa há duas semanas, depois...

— Deve saber que minha filha assassinou a mãe.

— Ouvi essa informação, mas francamente acho difícil acreditar. A autópsia mostrou que não havia trauma no pescoço coerente com...

— Autópsia? — gritou Ranold. — Não houve nenhuma autópsia! Eu teria sido consultado!

— É comigo que está falando, Dece. Larga o corpo num necrotério lotado, e depois...

— Todos os necrotérios estavam lotados, C.C!

— ... e depois diz que não haverá serviço fúnebre, que devem cremar o corpo e avisá-lo quando isso acontecer.

— Onde está querendo chegar? Creighton balançou a cabeça.

— Está me saindo muito ingênuo para um homem na sua posição, Dece. Acha que não tenho um cargo tão importante quanto o seu neste governo? Você fez publicamente a acusação de que seu genro efetuou uma lavagem cerebral em sua filha, persuadindo-a a assassinar a mãe. Pensou que isso ficaria sem contestação, ou pelo menos não seria investigado?

Ranold nunca tivera o instinto para fugir, em toda a sua vida. No entanto, aquela reunião ia de mal a pior. Seu velho amigo — um amigo de confiança, o homem que presumira ficar na maior animação com a oportunidade de desfechar um autêntico ataque militar contra um inimigo — virara-se contra ele.

— Duvidaram de minha palavra? — indagou Ranold. — Fui promovido a diretor da onp, mas mesmo assim me investi...

— Diretor interino — interrompeu-o Creighton, com um desdém tão evidente que Ranold teve vontade de se levantar e acusá-lo de ocupar um cargo de tigre de papel. — Vamos com calma, companheiro. Sua esposa tinha um trauma craniano coerente com um golpe na cabeça ou a batida em alguma coisa ao cair, mas foi um infarto que a matou.

— Está me dizendo que não encontrei minha própria filha estrangulando a mãe até a morte, os braços em torno de seu pescoço, sacudindo-a de um lado para outro, e batendo com a cabeça no processo?

— Não estou lhe dizendo nada além do que foi verificado na autópsia.

— Uma autópsia ilegal! Uma autópsia que não foi aprovada pelo parente mais próximo, nem ao menos informada!

— Trate de se acalmar, Dece. A única coisa que me surpreendeu neste caso foi o fato de haver pessoal suficiente para efetuar a autópsia, com todas as outras mortes. Entretanto, você sabe muito bem que uma autópsia é o procedimento padrão quando há suspeita de homicídio. Nunca lhe ocorreu que era estranho o fato de sua filha não ser incluída imediatamente na lista dos mais procurados?

— Meu genro foi incluído.

— O dr. Paul Stepola desapareceu depois do incidente, e pelo que po­demos determinar, com base em seu depoimento, é um primogênito ainda vivo. O que deixa bem claro qual é sua posição.

— Um traidor.

— Admito. Mas não há nenhuma prova de que a esposa também seja...

— Jae está com ele, C.C.!

— E você se sente tão determinado a ganhar essa briga de família que está disposto a bombardear seus próprios netos?

 

FALTAM MENOR DE SETENTA E DUAS horas para o Dia d, e acho que está na hora de todo mundo embarcar — declarou Greenie Macintosh.

Era difícil para Paul argumentar, mas ele fitou Jack Pass, obviamente esperando por alguma razão para protelar a decisão.

— E se provocarmos um pânico com a decisão? — indagou ele.

— Ora, Paul, pare com isso — disse Jack. — O momento chegou. Não pos­so acreditar que a onp mantenha o plano de ataque, ao considerar a maneira como o público vem reagindo ao incidente. Entretanto, se o seu sogro começar a pensar que está em minoria, é capaz até de agir antes do prazo previsto.

Paul acenou com a cabeça em concordância.

— Infelizmente, sei como o velho pensa. Creio que ele se imagina como o último defensor do regime ateu.

— Ele não está sozinho — comentou Greenie. — Concordo que a maioria das pessoas está mudando de opinião, mas ainda há bolsões de resistência furiosa aqui e ali, no lado de Decenti.

— Ele tem acesso a vigilantes, mercenários e revolucionários — acres­centou Paul. — Já combateu-os no passado, mas sempre falou deles com entusiasmo, chamando-os de patriotas. Nunca compreendi sua posição. Receio que o general possa chegar à conclusão de que seu próprio governo é avesso a erradicar os fiéis.

Greenie andava de um lado para outro.

— Temos de parar de falar e começar a agir. Podemos fazer tudo com a logística apropriada. Não será fácil, mas o pessoal das minas de sal está nos esperando, temos todo o transporte necessário, e agora é apenas uma questão de tomar a decisão de partir. Como não queremos chamar atenção com a saída de todo mundo ao mesmo tempo, acho que devemos começar o êxodo esta noite.

— Quem vai primeiro? — perguntou Paul.

Ele percebeu que Greenie e Jack trocavam um olhar.

— O que foi?

— É uma questão de antigüidade — explicou Jack. — Sei que isso afeta você sua família, Paul, mas...

Paul não deixou que ele continuasse.

— Nada mais justo. As pessoas que chegaram primeiro devem partir na frente. Compreendo perfeitamente.

— De qualquer forma, a liderança deve ficar até o fim — acrescentou Jack. — Alguém tem de apagar as luzes.

 

— Meus netos não são da sua conta, C.C. — declarou Ranold.

— São, sim, mesmo que não sejam da sua, Ranold. São civis inocentes, e não estou disposto a atacar um alvo não-militar.

— O que está me dizendo, C.C? Que não vai me oferecer o poder de fogo de que preciso, depois de todo o nosso planejamento? Você deve ver a mudan­ça da opinião pública. Se não atacarmos dentro do prazo, perderemos todo o ímpeto e apoio popular.

— Você não tem nenhum apoio público, Dece. Não lê os jornais? Não assiste os noticiários na televisão?

— Não me insulte.

— Eu poderia dizer a mesma coisa. Você vem até aqui para me dizer que conta com o apoio popular para retaliar pelo incidente, exterminando mil ou mais fanáticos clandestinos, em seu refúgio subterrâneo? Será o homem mais odiado da América.

— Serei um herói!

As palavras saíram antes que Ranold pudesse se controlar. No entanto, a verdade é que ele acreditava nisso. As pessoas estavam apavoradas, é claro. Não queriam provocar ainda mais o monstro que haviam despertado. Entretanto, se ele vencesse aquela pequena batalha, as pessoas compreenderiam que Deus não podia ou não queria controlar tudo.

Ranold, porém, percebeu que deixara C.C. ainda mais alarmado. E tinha de salvar a reunião do desastre.

— Escute, C.C, vamos pegar um jato para a Geórgia e conversar com o Terceiro...

— Conversar com o Comando Central? Sobre o quê?

— Digamos que eu admita que você está certo, e que se trata mesmo de uma situação de não-guerra. O Forte McPherson pode fornecer as forças de terra.

— Para quê?

— Para acompanhar o ataque aéreo. Para ter certeza de que vamos captu­rar todos os sobreviventes.

Chester Creighton levantou-se e inclinou-se sobre a mesa.

— Deixe-me dizer uma coisa, companheiro. Você enlouqueceu por completo. Para começar, se eu fosse bastante louco para lhe conceder o poder de fogo que me pede, não apenas não haveria sobreviventes, mas também haveria mais baixas do que está prevendo. É isso o que você quer? Porque eu não quero.

— Você é tão medroso quanto Dengler era. Creighton empertigou-se. Tornou a sentar.

— São palavras agressivas demais, Ranold. Ousa chamar o comandante do Exército de covarde? Eu deveria processá-lo.

Ranold recostou-se, cruzando os braços.

— Você não tem jurisdição sobre mim.

— Ambos estamos subordinados ao governador, que aceitaria as acusações.

— Ele não é melhor do que Dengler era.

— Por que o seu ressentimento contra Dengler, Ranold? Eu o vi fazendo os maiores elogios ao falecido chanceler nos noticiários.

— O que mais eu podia fazer?

— Foi até lá para assassiná-lo, Dece?

— Como? Claro que não! Mas reconheço que não senti a menor pena por sua morte. O que deu em você, C.C? Onde está o soldado que eu conheci? Os fanáticos clandestinos são nossos inimigos, há muitos anos. Sofremos um revés, e agora você quer amolecer com essa gente?

— Um revés? É a mesma coisa que dizer que Hiroxima e Nagasaki sofre­ram reveses há um século.

— Pois que seja. — Ranold inclinou-se para a frente. — E você quer fazer como os japoneses. Oferecer a rendição incondicional. Faremos isso num encouraçado, solicitando a presença de Deus?

Creighton olhou para o relógio.

— Seu tempo acabou, Dece.

— Não, C.C, não acabou. Vamos até o Centro de Defesa Aérea, onde está o comando de mísseis. Fica perto.

— Você não entendeu, Ranold. Não quero que tenha esse tipo de acesso ou apoio.

—Você não acredita que os violadores da lei são nossos inimigos.

— E possível que sejam, mas quem sabe se ou quando isso pode mudar, com base na opinião pública?

— Desde quando permitimos que a opinião pública determine a lei?

— Desde que este país foi fundado como uma república democrática, Dece. Decenti suspirou e desviou os olhos.

— Não vai me deixar sequer ter acesso ao Comando de Material Bélico, nãoé?

— Posso deixar.

— Pode?

— Se você mudar suas intenções. Quer aniquilar pessoas desarmadas e inocentes...

— Está enganado nesse ponto, C.C. Eles descobriram dois de nossos agen­tes infiltrados e os assassinaram, um deles enquanto apresentava um relatório pelo telefone.

— Por que mente para mim, Dece? Ranold estudou-o com os olhos contraídos.

— Como assim?

— Não compreende que sei tanto quanto você? Se acredita que seus dois homens foram assassinados, você está por fora de tudo. O homem mais jovem, o que bancava o filho, morreu no incidente, porque era um primogênito. Mas não tenha tanta certeza de que o outro homem também morreu.

Ranold fez um esforço para manter o controle. Se havia um fundo de verdade no que C.C. dizia, seria o segundo golpe contra Bia Balaam. E não havia um terceiro golpe naquele jogo. Bia lhe dissera que Roscoe Wipers havia morrido; se não fosse verdade, ela teria de ser executada.

O problema, é claro, era que se Bia o enganara nesse ponto, talvez já o tivesse incriminado por sua ligação com o talismã encontrado no corpo de Dick Aikman.

— Quero que entenda uma coisa, Dece — acrescentou Creighton. — Se procura apoio militar para uma operação normal de captura de dissidentes, eu poderia ajudá-lo.

— De que forma?

— Os fanáticos clandestinos de Colúmbia são violadores da lei atual. Por que não reúne suas informações, se conhece a localização do refúgio subter­râneo, e ocupa todos os acessos? E depois informa às pessoas lá dentro que estão cercadas, não podem escapar, e que ninguém sairá ferido se todos se renderem pacificamente?

— É uma atitude revoltante, C.C., e você sabe disso. Retaliamos contra um bilhão de homens mortos com a prisão de mil homens, mulheres e crianças?

— Acha que é melhor matar todo mundo?

— Claro que é!

C.C. sacudiu a cabeça, com uma expressão triste.

— A supressão da prática da religião tinha como objetivo a erradicação da guerra. O que você sugere agora é uma guerra santa. Se acredita mesmo que é melhor exterminar essas pessoas, em vez de prendê-las e julgá-las, Dece, você é culpado de uma notável incompetência para ser líder.

 

BIA BALAAM NUNCA FORA O TIPO DE MULHER que tirava folga no trabalho. Não tinha nada contra as pessoas que o faziam. Apenas não era o seu jeito. Hoje, no entanto, ela andava tão distraída que precisava de algum tempo para pensar. Para onde as pessoas iam nessas ocasiões? Não havia muitos recessos íntimos no quartel-general da onp.

Ela pegou a pasta de couro que continha as anotações de Stepola, e per­guntou à secretaria para onde ia quando queria ficar sozinha. A jovem corou e falou baixinho:

— É fácil. Vou para meu carro.

— Não quero sair daqui. Gostaria apenas...

— Eu também não saio. Apenas fico sentada no carro.

— Na garagem? Era uma idéia.

O carro de Bia estava na sombra, encostado na parede. Ela sentia que chamava a atenção? Não havia ninguém por perto; e a menos que alguém estacionasse ao seu lado, não era provável que a vissem. Sentar ali, na escuridão silenciosa, era como ter um segredo maravilhoso. Ainda mais fascinante era o conceito de falar com Deus numa estrutura de concreto que interferia com as comunicações por celular. Seria um autêntico teste.

Fazia o maior sentido o que Paul dissera. Se Deus era mesmo como deve­ria ser, ela poderia falar com ele da maneira que fosse mais confortável. Deus a ouviria e compreenderia. Por alguma razão, parecia apropriado sussurrar.

— Deus, eu me sinto estranha. Não sei por onde começar. Acredito em você, sei disso. E acho que você também sabe, porque sabe de tudo. Não consigo entendê-lo. Não sei por que você tinha de fazer o que fez. Contudo, sou bastante inteligente para compreender que foi você, apenas você. Não pode ter sido alguma manobra do esforço humano. Seus seguidores disseram que havia um registro de que você fez a mesma coisa há milhares de anos, mas a maioria das pessoas, inclusive eu, achava que era apenas um conto de fadas. Quando avisaram que oravam para que você fizesse de novo, ninguém acreditou.

"Isto é, talvez alguns tenham acreditado, depois do que aconteceu em Los Angeles. Pensei que era outra coisa. Não sabia o que era, mas achei que fora apenas coincidência que ocorresse o que os fanáticos clandestinos avi­saram que aconteceria. Sabe, portanto, qual foi a conclusão a que cheguei? Claro que sabe. Pensei que algumas mentes científicas brilhantes constata­ram que era iminente uma aberração da natureza, fizeram a previsão, e lhe concederam o crédito. Teve o efeito desejado; não pude deixar de reconhe­cer. Mas intervenção divina? Não, eu não cairia nesse engodo."

Bia parou de falar. Olhava ao redor cada vez que ouvia um barulho. Tudo que precisava agora era que alguém a visse no carro parado, falando sozinha.

— Oh, Deus, como sinto saudade de meu filho! Dói tanto que mal consigo suportar. Não sei porque estou lhe dizendo isso. Afinal, foi você quem o levou. Devo perguntar se fez isso para o melhor, ou se pode me garantir que ele foi para o céu?

"É nesse ponto que eu estou. Sinto-me magoada. Furiosa. Envergonhada. Culpo-me por sua morte, porque acho que deveria reconhecê-lo muito antes de acontecer uma coisa tão terrível. No entanto, eu me conheço, e duvido que qualquer coisa menos do que isso poderia atrair minha atenção. Sinto muito. Sou indigna. Acredito. Não sei mais o que dizer ou fazer."

Bia descobriu-se subitamente emocionada. O que era aquilo? Não chorara nem mesmo com a perda do filho. E agora, ao tomar uma decisão como aquela, experimentou sentimentos contra os quais lutara desde a infância. Sentia-se sufocada pela monumental reviravolta em sua vida. Aninhou o rosto entre as mãos, e sentiu que as lágrimas escorriam entre os dedos. Era como se tivesse chegado em casa, num lugar que nem sequer sabia existir.

Estranhamente também sentia-se diferente em termos físicos. Era como se a tensão se esvaísse do corpo. Tinha a sensação de que podia se dissolver numa poça. Sentia o corpo pesado, letárgico, sem definição. Se lhe ordenas­sem que saísse do carro naquele instante, não sabia se teria pernas para se manter de pé.

Por que piscava tão devagar? Por que a cabeça parecia flutuar? Seria possível que pudesse adormecer de repente, depois de permanecer no piloto automático por duas semanas? Não se recordava de ter dormido durante esse período, embora soubesse que isso acontecera. Só que devia ter sido mais como um desfalecimento, em que nunca estivera muito longe da percepção.

Se a resposta de Deus a sua oração desajeitada fosse apenas aquilo, uma capacidade de fechar os olhos e finalmente resvalar para o sono, já lhe parecia uma dádiva tão sublime que mal poderia traduzir em palavras. Significava que era parte da família de Deus, mesmo depois de tudo o que fizera, da pessoa que fora durante toda a sua vida? Que doce misericórdia isso representava!

Bia deixou o queixo pender para o peito. O ar entrava e saía dos pulmões no mesmo ritmo, e ela sussurrou, enquanto sentia o corpo ficar inerte:

— Obrigada, Deus... muito obrigada.

 

Ranold B. Decenti não sabia direito por que, mas antes de deixar a sala de Creighton — em circunstâncias muito diferentes das que havia quando fora convidado a entrar — sentiu-se compelido a tentar reparar a situação. Ele e seu antigo companheiro haviam se desentendido. Essa parte não tinha proble­ma. Afinal, Ranold já discordara das pessoas muitas vezes. Mas C.C. falara em termos que pareciam oficiais. Seria mesmo possível que o comandante do Exército solapasse Ranold ao procurar o governador?

Como C.C. dissera, os dois eram subordinados a Haywood Hale. E nada do que Ranold pretendia fazer agora podia ser iniciado sem a aprovação de Hale. Nunca a conseguiria se Creighton procurasse o governador e usasse palavras como civis inocentes, lado não-militar, mais do que o previsto, incompetência. E Creighton poderia ainda dizer a Hale que Ranold declarara que seria um herói, que o comandante do Exército e o chanceler internacional eram covardes, e que o governador não era melhor do que Dengler.

Decenti levantou-se e estendeu a mão. Ficou magoado quando Creighton demonstrou uma evidente relutância em apertá-la. No entanto, finalmente trocaram o aperto de mão. Ranold disse:

— C.C, há muito tempo que nos conhecemos, e você sabe que sou o pior do mundo em matéria de pedir desculpa. É bem provável que tenha me ouvido fazê-lo. Deixe-me dizer apenas que espero que você me conheça muito bem para saber que rosnei muito aqui só porque estava transtornado. Sabe que me sinto perturbado pela perda de meu filho e minha esposa. Claro que não quero que nada de mal aconteça com minha filha e as crianças. Admito que não sinto a mesma coisa em relação a meu genro. O que estou tentando dizer é que deve considerar com algum ceticismo o que acabei de dizer. Conceda-me o beneficio da dúvida, de que eu apenas descarregava os ressentimentos. Nada pessoal, sem nenhuma raiva. Certo, companheiro?

Depois de passar pela porta, Decenti virou-se 180 graus e bateu conti­nência. O gesto deveria dizer tudo. Teria indicado para C.C. que Ranold fora sincero em seu suposto pedido de desculpa, e que tinha o maior respeito pelo comandante do Exército.

Contudo, C.C. limitou-se a fitá-lo com uma expressão compadecida, er­gueu a mão para um aceno indefinido, e murmurou:

— Até outro dia, Dece.

Era o supremo insulto. Ranold foi para o carro à espera sentindo-se magoado, preocupado, e determinado a fazer pelo menos uma coisa que podia controlar, antes de encerrar o dia. Precisava resolver o problema de Bia Balaam.

 

Bia estava mergulhada num sono profundo, como não experimentava há duas semanas, quando o telefone acordou-a. Ela fez um esforço para falar através da garganta ressequida.

— Aqui é Bia Balaam.

— Decenti. Onde você está para a ligação ser tão ruim?

— Na garagem, senhor. Sinto muito.

— Para onde vai? Ela saltou do carro.

— Não estou saindo, senhor, mas chegando. A caminho de minha sala. Quer que eu procure uma posição melhor para a ligação?

— Posso ouvi-la. Mas seria bom se encontrasse uma posição melhor.

— Quer que eu vá para sua sala?

— Não. Quero resolver um problema imediatamente. Preciso saber qual é a situação exata do agente Roscoe Wipers.

— Pensei ter sido bastante clara a respeito, chefe.

— E eu também pensava. Qual é a situação dele?

Bia podia sentir que o coração batia duas vezes mais depressa, no meio da estática intensa. Fez uma pausa, esperando que a ligação ruim lhe ganhasse algum tempo.

— Não soube de nada diferente além do que já informei há dias, senhor.

— Não ouvi direito, Balaam. Procure uma posição melhor.

— Desculpe, senhor.

— Agora pode me dar a informação? O homem está vivo ou morto?

— Ajudaria se eu relatasse o que aconteceu na noite em que falava com ele e ouvi os tiros?

— Ajudaria se você fosse para uma área melhor e me ligasse de lá, o mais depressa possível. E esteja preparara para me dizer a verdade. Depois, vamos nos encontrar em minha sala, dentro de meia hora. Entendido?

— Como, senhor?

— Fui bem claro?

— A ligação está péssima, senhor. Procurarei uma posição melhor.

 

FELICIA THOMPSON COMPREENDEU QUE alguma coisa estava acontecendo assim que chegou ao escritório da onp em Chicago. Primeiro, presumiu que as pessoas pareciam e se comportavam de uma maneira diferente porque não esperavam que voltasse ao trabalho tão cedo, e não sabiam o que dizer sobre o suicídio de seu marido. Logo descobriu que não tinha nada a ver com ela. Era mais provável que fosse por causa da notícia que ouvira pelo rádio a caminho do escritório.

Felícia ainda se sentia atordoada, meio entorpecida, especulando com freqüência qual era o sentido. Levantar e voltar ao jogo — como sugerira Straight, seu novo mentor — fora um tônico para ela. Não podia dizer que se sentia animada ou entusiasmada. Entretanto, ter alguma coisa para fazer — mesmo que significasse apenas sair da cama, comer, tomar uma chuveirada, vestir-se, pegar o carro — era melhor do que nada.

Não que ela fosse capaz de parar de pensar em tudo o que perdera. O melhor que se ocupar com alguma coisa tinha a oferecer, ao contrário de ficar sentada em casa sozinha com sua depressão, era que fazia o relógio andar.

Felícia sintonizara o rádio numa emissora só de notícias durante o percurso, mas não ouvia direito, até que um bloco atraiu sua atenção. Circulavam rumores em Washington de que uma reunião de alto nível fora convocada pela chanceler internacional interina, Madame Hoshi Tamika. Chefes de estado do mundo deveriam se reunir na Suíça dentro de 24 horas.

As pessoas notaram Felícia no elevador, mas desviaram os olhos, menos Trudy Nabertowitz, que apertou seu ombro, sem dizer nada. Afora isso, pare­cia que Felícia seria capaz de alcançar sua sala sem ser percebida.

Estranho... Na caixa de entrada, em sua mesa, junto com o trabalho normal acumulado, havia mais de uma dúzia de envelopes brancos comuns, lacrados. Cada um continha um papel dobrado com o símbolo simples do peixe, feito com duas linhas curvas cruzadas. Seria possível que houvesse tanto fiéis secretos ali? Hector Hernandez telefonou.

— Sra. Thompson, poderia me ajudar com um problema?

— Já estou indo.

Portanto, ela não fora invisível. Como Hector, trabalhando em outro an­dar, tomara conhecimento de sua presença? Trudy.

A caminho do cubículo de Hector, levando uma pilha de fichas e pastas de arquivo, Felícia notou que todos os chefes estavam fora de suas salas. Havia muitas pessoas em todas as salas de reuniões, grandes e pequenas, discutindo, participando de conferências pelo telefone.

Hector levantou-se e apertou sua mão, formalmente. Afora isso, manteve uma certa distância, para enganar os curiosos.

— Espalhe alguns papéis sobre a minha mesa — sussurrou ele.

Ao sentarem de frente um para o outro, ostensivamente para estudar os papéis na mesa, Hector sussurrou:

— Você está bem?

— Nas circunstâncias.

— Lamentei muito ao saber...

— Obrigada.

— Recebeu as mensagens de encorajamento?

Felícia apontou uma fileira de números, e ele inclinou-se para a frente, como se estivesse lendo.

— Vamos dizer apenas que há muitos peixes nadando em minha sala. Eram todos de pessoas diferentes?

Hector acenou com a cabeça, numa resposta positiva.

— Ficaria espantada se soubesse quantos são aqui. Esta é a noite da reu­nião mensal.

— Eu não sabia. No Wilson's?

— Isso mesmo. Em Joliet. Precisa de orientação para chegar lá?

— Não. Conheço o lugar.

— Jantar às seis horas. Temos uma sala particular.

— Quantos estarão presentes?

— Quase trinta.

— Nem todos são do escritório, não é?

— Todos.

— Você tinha razão, Hector. Estou mesmo espantada.

Ele abriu uma pasta de arquivo e folheou as páginas. Felícia calculou que era apenas pelo efeito. Hector tornou a fitá-la.

— Suponho que já sabe o que está acontecendo.

— Sei apenas o que acabei de ouvir no noticiário. A nova chanceler con­vocou os chefes de estado para uma reunião.

— Mais do que isso. Ela estendeu o convite aos sete governadores dos seua.

— Para quê?

— Ninguém sabe com certeza, mas podemos tentar adivinhar.

— Dê seu palpite.

— Tem alguma relação com o prazo iminente para a assinatura do jura­mento de lealdade.

— Ela pretende antecipar a data? Para descobrir quem está do seu lado e quem não está?

— Essa é uma teoria.

— Há outra?

Hector recostou-se e aspirou fundo, entre os dentes.

— Alguns acham que ela pode pedir uma votação para a suspensão da proibição da prática da religião.

 

— Temos de esperar mais um pouco — disse Paul.

Não foi surpresa que Jack e Greenie tivessem um sobressalto. Sentavam a uma mesa pequena, não muito longe do lugar em que Roscoe Wipers estava encarcerado.

— Não podemos esperar mais nada! — protestou Greenie. — Deveríamos ter começado a tirar nosso pessoal daqui ontem à noite. Temos setenta horas agora, no máximo, e como podemos ter certeza de que a informação de seu contato é boa?

— Ela foi minha secretária durante anos — disse Paul. — Tem acesso a tudo em Chicago.

— A reunião internacional, se vai mesmo se realizar, deve ser fácil de con­firmar — disse Jack. — Mas como podemos saber o que vão discutir? E se for o oposto do que você está esperando, Paul? E se decidirem antecipar o prazo para a assinatura do juramento de lealdade?

Paul empurrou a cadeira para trás.

— Não pense que ignoro os riscos envolvidos, Jack. Mas nada é mais ar­riscado do que expor mil fiéis à luz do dia, ou mesmo na escuridão da noite.

— Nada? — disse Greenie. — Acha mesmo que nada é mais arriscado do que sair daqui? O mais arriscado é continuar sentados aqui, como alvos para o lunático do seu sogro. Quem sabe o que ele pode fazer, ainda mais se a votação nos for favorável?

— O que você acha que pode acontecer? — perguntou Jack. Greenie levantou-se e começou a andar de um lado para outro.

— Muito bem. O melhor cenário: o governo internacional revoga a proi­bição. Subitamente, estamos livres. Decenti saberá antes de nós. Ainda quer nos eliminar, e por isso puxa o gatilho. Independente do que possa acontecer em Berna, temos de sair daqui.

Se Paul sabia alguma coisa, era que ele precisava sair. Nunca se sentira tão irrequieto, tão confinado, tão impotente. Queria estar lá em cima e, no fundo de seu coração, queria confrontar Ranold.

— Tomarei uma decisão executiva neste caso — anunciou Jack.

— Não vai consultar os anciãos? — perguntou Greenie.

— Não. Mas não se preocupe. Farei o que sugere. Se tudo estiver em ordem, iniciaremos o êxodo ainda hoje, ao pôr-do-sol. As famílias originais partirão primeiro. Depois, seguirão as outras mulheres e crianças. Na noite de quinta-feira, os homens. Depois, será a vez dos anciãos. Nós seremos os últimos.

 

Ranold voltou a sua sala pensando em várias opções, e poucas eram boas. Esperara que a ascensão a diretor da onp lhe devolveria um papel de influên­cia em Washington. Não tinha a deferência e respeito compatíveis com sua história e feitos desde a guerra, quando lutara pela criação da organização.

Agora, era lembrado a todo instante de sua posição de interino, mas tam­bém contestado, questionado, até mesmo por velhos amigos. Era o mesmo homem do passado? Queria pensar que sim. Claro que os anos haviam lhe custado alguns reflexos e um pouco da acuidade, mas ele achava que, para um velho, ainda estava muito bem.

No entanto, podia confiar em seu pessoal? Estava certo sobre Aikman, não é mesmo? Como podia saber? Em relação a Dengler, tinha certeza. Fora o ponto alto de sua carreira. Sem a aprovação do Governador Hale e sem a cooperação de Chester Creighton no ataque ao refúgio subterrâneo dos fanáticos de Colúmbia, a eliminação de Dengler poderia ter sido inútil.

Ranold deveria se sentir culpado, mesmo que apenas um pouco, por ter assassinado dois homens? Passara a reconhecer, como a vasta maioria do mundo conhecido, que se enganara sobre a existência de Deus. Mas isso significava que tinha de aceitar a lei de Deus e viver de acordo? Todo mundo sabia que o assassinato era errado. Não era preciso ser um religioso para compreender isso. Ele, porém, era um soldado, em combate. Nem todo ato de matar era igual.

Deus não deveria querer que Ranold B. Decenti morresse, ou já o teria abatido àquela altura, não é mesmo?

A secretária deteve-o quando ele se encaminhava para sua sala.

— O governador Hale voltará a Washington na segunda-feira, e gostaria de visitá-lo, na hora em que o senhor julgar mais conveniente.

— Ele quer falar comigo aqui? Em vez de me chamar a seu gabinete?

— Foi esse o recado. E fiz a mesma pergunta.

— Então vamos marcar para a manhã de segunda-feira.

Ranold entrou apressado em sua sala. Foi ao banheiro. Estudou seu rosto no espelho. Ia ser demitido. Só podia ser isso. Que outro motivo Hale teria para marcar uma reunião ali? De outra forma, não fazia sentido. A menos, que quisesse informá-lo pessoalmente sobre o que acontecera na conferência de chefes de estado em Berna. E por que Ranold não fora convidado? Fora inocentado na investigação do assassinato, mas ainda desconfiavam dele?

Decenti foi para sua mesa. Mandou a secretária deixar a comandante Balaam esperar dez minutos, antes de anunciá-la. Depois, pegou o telefone.

Bia hesitou, num recesso perto da sala de Ranold. Ligou para Paul.

— Ele vai me encostar na parede, Paul. Devo mentir em tudo?

— Por que não? — murmurou Paul, esperando que a resposta de Bia lhe dissesse mais do que perguntara.

— Porque sou uma de vocês agora. E não é certo mentir, não é mesmo?

— Essa é uma questão que perdura ao longo dos séculos, Bia. Contudo, antes, deixe-me dar as boas vindas à família.

— Obrigada. Mas as regras não mudam agora?

— Está querendo saber se tem de ser boa?

— Isso mesmo. Sei como me esquivar, como enrolar, mas o que aconte­ce se ele perguntar expressamente se tenho certeza de que o agente Wipers morreu?

— Você tem certeza?

— Não tenho? Você mesmo me disse que ele estava bem, que os tiros não passaram de uma encenação, em meu benefício.

— E foi isso mesmo. Mas ele morreu depois.

— É mesmo? Morreu de quê? Causas naturais?

— Como adivinhou?

— Está mentindo para mim, Paul. Não tem problema, desde que seja entre fiéis?

— Deixe-me aliviar a pressão para você, Bia. Não estará mentindo. Eu é que estarei. Estou lhe dizendo que o homem morreu, para que você possa repetir para seu chefe quando ele perguntar.

— Devo dizer que liguei para confirmar, e fui informada de que Wipers está mesmo morto?

— Isso mesmo.

— Vai me executar, Paul.

— Duvido muito. É uma agente competente, e Ranold confia em você. Mais do que isso, precisa de você.

— Não se esqueça de que sou a única pessoa que pode incriminá-lo no assassinato de Dengler. Mais uma coisa. Quando ele perguntar com quem confirmei a situação de Wipers, o que devo dizer?

— Diga a verdade.

— Que eu falei com você? Sério?

— Estou tentando atraí-lo, Bia. Quero um encontro pessoal.

— Ele vem esperando por sua chamada há séculos, Paul.

— Isso é diferente. Talvez eu ligue mais tarde, se ele concordar em se en­contrar comigo em algum lugar.

— Quer que eu arrume o encontro?

— Não formalmente. Diga apenas que confirmou a morte de Roscoe e que eu dei essa informação. O resto deve se resolver por si mesmo.

 

BIA BALAAM ESPECULOU SE AQUILO seria o fim de tudo. Quando a secre­tária de Decenti lhe disse que teria de esperar alguns minutos, ela sentiu-se contente por ter trazido a pasta, porque assim teria alguma coisa para ler.

Não conseguiu se concentrar. Só podia pensar na melhor maneira de formular as respostas para manter a velha raposa à distância. Era, porém, esse o problema. Ranold podia estar velho, mas ainda era uma raposa. O ego sempre afetara seu julgamento, e ele não era mais, nem de longe, como o homem que a contratara, anos antes. No entanto, ela seria capaz de continuar a envolvê-lo, como fizera nos últimos dias. Ele parecia furioso agora, como se tivesse descoberto alguma coisa. Quando desconfiava de uma pessoa, ainda mais se tinha razão, Ranold não descansava enquanto não soubesse de tudo.

Aquele novo capítulo em sua vida tornaria Bia uma profissional menos competente? Não deveria. E era melhor que não fosse. Sua vida estava em jogo. Mas sempre considerara os fiéis como fracos. Afinal, eles se escondiam. Viviam em refúgios subterrâneos. Faziam tudo furtivamente. Por outro lado, o que podiam fazer contra um governo poderoso e a opinião mundial? Seria uma imprudência desfechar um ataque frontal.

Sua opinião, porém, começara a mudar, é claro. Paul Stepola não era ne­nhum fraco. Ela também não seria. Não podia se dar a esse luxo.

Quando Bia finalmente foi chamada à sala de Ranold, o teor da conversa foi diferente, desde o início. Não apenas o chefe não se levantou para tentar abraçá-la, mas também não se mexeu, nem sequer sorriu. Tinha a cabeça inclinada para o lado, os cotovelos em cima da mesa, os dedos entrelaçados a sua frente. Era evidente que não tentava disfarçar a suspeita, desconfiança e ceticismo. Bia acenou com a cabeça.

— Chefe Decenti...

Ela se encaminhou para uma cadeira no lado da mesa. Ficou de pé na frente.

— Se pensa que vou convidá-la a sentar, comandante, terá de esperar mui­to tempo.

Bia sentou.

— Fiz uma pergunta direta e vou repeti-la, aqui, neste momento, com menos de dois metros a nos separar, sem a interferência de celulares, sem ligações ruins. Roscoe Wipers está vivo ou morto?

— Quer saber o que acredito, ou o que sei? Decenti bateu com as mãos na mesa.

— Pare de fazer esse jogo! O homem está vivo ou morto?

— Não sei.

— Você me disse que ele havia morrido!

— Era o que eu acreditava na ocasião.

— Mudou de idéia?

— Só posso dizer o que ouvi. Falava ao telefone com ele quando ouvi vozes chamando-o pelo pseudônimo. Ele deu o sinal de que fora descoberto. Ouvi o telefone cair no chão. E ouvi dois tiros. Não tive mais notícias do agente Wipers desde então. Pode entender por que acreditei que ele havia morrido.

— Então por que diz agora que não sabe? Bia mudou de posição na cadeira.

— Com toda franqueza, senhor, suas perguntas me levaram a ter dúvidas. Parece que dispõe de informações que eu desconheço.

Decenti soltou um grunhido.

— E tenho mesmo... e informações que me foram dadas pelo comandante do Exército.

— Há mais de um ano que não falo com o General Creighton, senhor. Se ele tem informações diferentes, não fui eu quem as deu.

— Sabia que Creighton e eu já nos conhecíamos antes da guerra?

— Sabia, senhor.

— Posso falar com ele pelo telefone em sessenta segundos. Por acaso você se incomodaria se eu lhe pedisse para confirmar que não fala com ele há mais de um ano? Quer pensar um pouco a respeito, mudar sua alegação, qualquer coisa?

— Não, senhor. Não tenho lembrança de nenhum contato com o general, por telefone ou pessoalmente. Se bem me lembro, a última vez em que vi o general foi no Wintermas, há um ano.

— Por que ele insinuou que Wipers pode estar ainda vivo?

— Não tenho a menor idéia.

— E investigou para confirmar o que acredita ter ouvido?

— Tentei ligar para a linha segura de Wipers, mas não tive sorte.

— Sabe quem teria essa informação, com toda certeza, não é mesmo, comandante?

— Claro que sei, senhor. Presumo que não gostaria que eu me comunicas­se com seu genro.

Ela esperava que Ranold concordasse no mesmo instante. Ficou sem saber o que pensar quando ele não respondeu. O general foi até uma janela, entreabriu as persianas horizontais e contemplou a capital.

— Quando foi a última vez que falou com ele?

— Como, senhor?

— Você me ouviu, comandante. — Ele virou-se para fitá-la. — Está ten­tando ganhar tempo?

— Pensei tê-lo ouvido perguntar quando foi a última vez que falei com o ex-agente Stepola.

— Pelo menos você o chama de ex-agente.

— É o óbvio.

Decenti voltou e sentou na beira da mesa, fitando-a de cima.

— O que a faz pensar que Paul saberia qual é a situação de Roscoe Wipers?

Bia ficou imóvel. Ranold não sabia que Paul se encontrava no refugio subterrâneo de Colúmbia? Isso não era do conhecimento geral, ou pelo menos uma suposição comum na onp? Ela não tinha certeza.

— Como é evidente que ele deixou a onp sem pedir licença e foi poupado do incidente, é óbvio que se trata de uma pessoa de fé. E estou presumindo que eles formam um grupo pequeno e unido, os membros informados de tudo o que acontece. Posso, portanto, estar enganada, é claro.

— Está bastante nervosa, não é, comandante Balaam?

— Não, senhor. Apenas me sinto inquieta. Fala em tom acusador e não faço a menor idéia do problema.

— Esqueceu que temos dois agentes infiltrados no refúgio subterrâneo de Colúmbia e que eles informaram, expressamente para você, que Paul Stepola era uma lenda ali, antes mesmo que se revelasse para nós, na noite da morte do meu filho e do assassinato de minha esposa?

— Claro que lembro, senhor.

— Então por que essa história de que ele é membro de um grupo pequeno e unido que...

— Não pensei direito, senhor. Quase não tenho dormido, ainda sofrendo pela perda de meu filho. Desculpe.

— Não estamos todos sofrendo? Mas fiz uma pergunta, e você se esquivou de novo. Quando foi a última vez que falou com Paul Stepola?

— Não me recordo, senhor.

Era verdade. Ela não olhara para o relógio. Fora na última hora, há pou­cos minutos, mas o momento exato? Bia sentiu-se aliviada por ser capaz de dizer que não sabia.

— Desde o incidente?

Ali estava, a mãe de todas as perguntas. Uma mentira era permissível agora? Salvaria não apenas sua própria vida, mas também a de Paul, sua família e mil outras pessoas. Ela era nova naquilo, ainda não conhecia as regras.

— Falei com ele depois. E exortei-o a retornar suas ligações.

— Falou com Stepola e não me informou? Ela confirmou com um aceno de cabeça.

— Desculpe, senhor. Provavelmente deveria ter avisado. Mas não queria...

— Provavelmente? Onde ele está?

— Falei com ele pelo celular.

— Ele atende suas ligações, mas não as minhas? Por quê?

— Posso imaginar algumas razões, senhor. Não queria deixar claro que ele aceitava falar comigo, mas não com o senhor. Talvez eu estivesse sendo sentimental.

Ranold voltou à cadeira por trás da mesa, sentou, recostou-se, cruzou as mãos atrás da cabeça.

— Alguma vez dei a impressão de que era sentimental, comandante?

— Não, senhor.

— Nunca?

— Pelo menos não na minha presença.

— Meus sentimentos teriam sobrevivido. O que me deixa mais irritado é quando subordinados não me transmitem todas as informações.

— Tem razão, senhor.

— Deixei vários recados para Stepola. Disse a ele que mudara de lado, que me tornara um fiel, que ele estava certo, eu era o errado, queria me arrepender, encontrar Jesus... ou qualquer que seja o nome que eles dão. Fui muito bom, comandante. Teria enganado até o demônio. Mas ele não me ligou de volta.

— Pode ter certeza, senhor, que insisti para que ele fizesse contato, res­pondesse às ligações.

— Então por que ele não me ligou?

— Só ele pode dar essa resposta, senhor. Mas eu recomendaria que não desistisse.

— Não desistir? Quantas vezes devo deixar recados para ele? Depois de algum tempo, você entende o que o silêncio do outro significa.

— Talvez ele queira um encontro pessoal.

— Eu não hesitaria em aceitar. Descubra quando e onde, e pode ter certeza de que estarei lá.

— Tentarei.

— Quando foi a última vez que falou com ele?

— Como eu disse, não...

— Não se recorda. Mas foi depois do incidente. Na semana passada?

— Isso mesmo. Falei com ele há cerca de uma semana.

— E desde então?

— Senhor!

— O que é? Acha que não tenho o direito de perguntar?

— Claro que tem, mas...

— Apenas responda a minha pergunta! Quando falou com Stepola pela última vez?

— Recentemente. Ranold ficou vermelho. -Hoje?

— Sim, senhor.

— Chame-o pelo telefone.

— Agora?

— Isso mesmo. E use meu telefone.

— Mas ele tem identificador de chamada e...

— É justamente esse o objetivo, comandante. Experimente meu telefone primeiro.

 

PAUL ISTAVA NA SALA DE REUNIÃO PRINCIPAL, com mais de setecentos residentes, esperando para ouvir o discurso de Jack Pass, quando recebeu a ligação do telefone de Ranold. Ele não deveria estar reunido com Bia naquele momento? Paul resistiu à tentação de sair da sala e atender. Talvez ela tivesse persuadido Ranold a aceitar um encontro pessoal, mas sempre podia ligar para o velho depois.

Não demorou para que houvesse outra ligação, desta vez do celular de Bia. Paul sabia que tinha de atender. No entanto, havia alguma coisa estranha quando ele atendeu.

— Estou no viva-voz, Bia?

Uma pausa, antes de Ranold responder:

— Está, sim, seu covarde. Por que atende o telefone de Bia, mas não o meu?

— Porque quero falar com ela.

— E não quer falar comigo.

— Aprende depressa, papai.

— E se eu quisesse fazer as pazes?

— Já tentou essa manobra antes, como viu a luz e todo o resto. Gostaria que me lembrasse: isso foi antes ou depois de me acusar de fazer uma lavagem cerebral em sua filha para persuadi-la a assassinar a mãe? Já esqueceu que Jae estava presente na ocasião, Ranold? Confio nela. Sei o que aconteceu.

— Sabe, hem? Bom para você. Onde está agora?

— Sabe onde estou. E o mais absurdo é que quero mesmo conversar com você, mas pessoalmente.

— O que há de errado com o telefone?

— Pelo telefone seria mais seguro, a julgar pelas experiências de Dick Aikman e Baldwin Dengler.

— Fui inocentado nesse caso e você sabe bem disso. Claro que sabe. Afinal, você sabe de tudo. Há quanto tempo Aikman era membro de seu movimento?

— Não insulte minha inteligência, Ranold. Conheci Dick e sei que ele era tão leal à onp quanto você. Alguém o incriminou.

— Talvez precisemos conversar, Paul.

— Onde? Quando?

— Quando é uma decisão sua. Onde? Que tal o local da minha primeira e brilhante operação com a onp, no tempo em que você era um bebê?

— Eu podia ser um bebê quando aconteceu, mas estudei a operação no curso de pós-graduação.

— Prendi mais de quatrocentos fiéis quando saíam do culto. Foi um golpe de gênio, Paul, uma manobra de extrema beleza. Aqueles episcopais não sa­biam de nada, até que aconteceu.

— Aprendi no curso que eles estavam sendo monitorados e tinham per­missão para celebrar a comunhão por mais duas semanas.

— Quem pode se lembrar depois de tanto tempo? Tudo o que sei é que apareci na primeira página do Post, junto de um bando de malucos religiosos sendo retirados da catedral nacional como se fossem gado.

— Você me deixa muito orgulhoso, papai.

— Obrigado. Dá para perceber.

— E é lá que você quer se encontrar? Claro. Não é mais uma igreja. Ranold riu.

— Tem toda razão. A maior parte do prédio não é usada. Alugam o andar térreo para bazares e feiras de arte, coisas assim.

— Pode ser na noite de sexta-feira, às sete horas? — perguntou Paul. Outra pausa. O que Ranold podia dizer?, especulou Paul. Claro que ele queria Paul no refugio subterrâneo quando o ataque fosse desfechado.

— A noite de sexta-feira não é conveniente para mim. Que tal se nos en­contrássemos mais cedo?

— Sinto muito, mas não posso. Vamos continuar a manter contato e tentar marcar o encontro em outra data.

Ronald então perguntou:

— Vai atender minhas ligações?

— Se prometer que vai ligar no momento apropriado para um encontro.

 

Subitamente, Bia já não tinha mais tanta certeza em relação à fé. Voltou para sua sala com as pernas trêmulas, sentindo-se vulnerável e fraca. Onde estava a dureza que era sua marca registrada? O esgotamento podia ser atribuído à mudança de lado? O que não era nada bom. Claro que não tinha a menor intenção de voltar, mas naquele momento sentia que sua contribuição era mínima. Talvez fosse esse o problema.

Ela sentara à mesa há menos de dois minutos quando a secretária avisou que o chefe Decenti estava na linha.

— Pois não, senhor?

— Importa-se de ter um pequeno trabalho extra esta noite?

— O que deseja, senhor?

— Quero que revise os planos de ataque. Fiz algumas alterações.

— Claro. Algum problema se eu trabalhar em casa?

— Está brincando, não é, comandante? Quando já permitimos que docu­mentos tão secretos saiam do prédio?

— Tem toda razão. Trabalharei aqui.

— Deixarei tudo com você antes de sair e teremos reunião pela manhã. Como aquilo podia ser interpretado? Ranold queria que ela revisasse o plano de batalha, quando era evidente que perdera toda confiança nela? Só podia ser um teste. Teria feito mudanças óbvias, que dariam uma vantagem à onp, se mostradas a Paul ou qualquer outra pessoa no refúgio? Ou a denun­ciariam como uma traidora?

A data mudara. O ataque estava marcado para a última hora antes do amanhecer de segunda-feira, 11 de fevereiro de 38 p.3. As autoridades ain­da nem teriam voltado da reunião de cúpula em Berna. Era mais provável, embora parecesse uma manobra transparente e amadorista, que Decenti quisesse que Bia contasse tudo para Paul. Isso faria as pessoas no refúgio pensar que tinham todo o fim de semana, apenas para sofrer o ataque nas coordenadas originais, logo depois do escurecer da sexta-feira. Paul saberia, é claro, mas com certeza não precisaria ser lembrado de que devia ser uma manobra para despistar.

Por sua própria vida, Bia não conseguia encontrar outro detalhe em todo o plano que tivesse sido alterado, nem mesmo uma vírgula. Despediu-se da secretária ao final do expediente. Sabia que quase todo mundo estava deixan­do o prédio. No entanto, fez um esforço para permanecer acordada e alerta, enquanto examinava o documento.

Se o momento do ataque era a única mudança, por que o Decenti não a in­formara logo e pedira sua opinião? Sabia que ela pressionava para um ataque mais tarde, mas a nova data não fazia tanta diferença. Bia queria um adia­mento por duas semanas, alegando que estava preocupada com a opinião pú­blica, por causa do assassinato do chanceler, e o sofrimento global pela morte de um bilhão de homens. Na verdade, ela esperava que a proibição da prática da religião fosse revogada, o que tornaria todo aquele plano irrelevante.

Às oito horas, Bia verificou o termômetro fora de sua janela. A temperatura era de 23° C negativos. Ela guardou a pasta no cofre, pôs o casaco, o chapéu e as luvas. Guardou as sandálias na bolsa, e calçou botas de salto altos.

Havia poucas pessoas ainda no prédio, e apenas algumas a cumprimentaram com um aceno de cabeça. Bia acostumara-se com isso, ao longo dos anos. Era sempre precedida por seu porte, altivez e reputação. Talvez fosse uma coisa que pudesse mudar.

Seu andar no estacionamento estava lotado quando sentara no carro em busca de conforto espiritual. Agora, só havia três carros nas proximidades. Quanto tempo levaria para seu carro esquentar? Aprendera que não deveria partir enquanto a temperatura interior não aumentasse. De outra forma, o pára-brisa ficaria embaçado, e ela teria de parar o carro para resolver o problema.

Quando a luz interna deixou de acender no instante em que abriu a porta, Bia suspirou e presumiu que o frio afetara a bateria. Por outro lado, não sabia o suficiente de mecânica para presumir que o carro híbrido não pegaria. Por isso, sentou ao volante e inseriu a chave na ignição.

Nem começara a virar a chave quando sentiu o aço frio na nuca. Incrível, pensou ela. Não percebera a armação. O estranho pedido para ficar no es­critório até mais tarde. O documento a ser revisado que tinha apenas uma alteração mínima. A luz interna do carro.

Ela fez menção de se virar para suplicar, mas sabia que já era tarde demais. Dizem que a pessoa não ouve o tiro que a mata. Por isso, os dois primeiros disparos não deviam ter sido fatais. Bia ouviu-os, e também viu seu sangue no pára-brisa e painel. Sentiu o cano subir para o meio da cabeça e depois não ouviu mais nada.

 

O PERCURSO DE MAIS DE CINQÜENTA quilômetros para o sul do Loop, como é chamado o centro comercial de Chicago, até Joliet, podia exigir mais de uma hora de carro, durante o período de maior movimento. Felícia não queria ir para o norte, passando primeiro por Deerfield, pois isso tornaria a viagem quase insuportável. Foi o motivo pelo qual ela permaneceu no escritório mesmo depois que a maioria dos outros foi embora. Harriet Johns parou na sala de Felícia ao sair.

— Não posso deixar de louvar sua capacidade de pôr as questões pessoais de lado em prol da organização — disse ela, parada na porta, vestida para o frio lá fora.

— Obrigada — murmurou Felícia. — Mas não é fácil.

— Ninguém disse que seria fácil. Sua situação, porém, deve melhorar na semana que vem. Uma amiga minha virá substituir seu antigo chefe. Ela foi minha vice em Los Angeles e depois em San Francisco. Tenho certeza de que vai gostar dela. É uma mulher séria e objetiva.

Felícia acenou com a cabeça e conseguiu murmurar:

— Aguardarei ansiosa o momento de conhecê-la.

A verdade é que Felícia não tinha tanta certeza se a mulher era parecida com Harriet Johns. Como não podia deixar de ser, especulara quem pode­ria substituir Paul. Tinha de admitir, para sua consternação, que nem sequer admitira a possibilidade de que pudesse ser uma mulher. Pensara nos vários homens que disputavam o cargo, mas devia ter imaginado que Harriet traria uma pessoa que já conhecia. A semana que vem seria mesmo interessante.

Felícia passou pelo cubículo de Hector Hernandez antes de sair. Ele ficou surpreso ao vê-la.

— Tentamos ser ainda mais cuidadosos nos dias de reunião. Há muitos olhos curiosos.

— Nada mais certo.

— E não seguimos em caravana para Joliet. Tenho certeza de que pode compreender.

— Claro que posso. Presumi que cada um ia sozinho. Mas como descobrimos a festa?

Hector sorriu.

— Nós nos apresentamos como a Liga Suprema de Boliche da Zona Sul. Basta dizer que é associada e será encaminha à nossa sala particular.

— Boliche?

— Até distribuímos falsos troféus, se achamos que há um intruso infiltrado.

— Parece que saberiam se um estranho aparecesse.

— Com toda certeza. Sempre fechamos a porta, mas não se pode conside­rar que o Wilson's é um lugar seguro. Como saber quem são os empregados?

— As reuniões são um risco?

Ele acenou com a cabeça em confirmação.

— Mas também são um sopro de ar fresco. E como ir à igreja.

— Não tenho como comparar.

— Eu também não. Mas você terá um gosto esta noite. Não pode ima­ginar o sentimento de estar com muitos outros da mesma fé. É perigoso, sem dúvida, mas precisamos disso desesperadamente. As coisas ditas em público, da plataforma com um microfone, são falsos resultados de partidas de boliche. É em torno das mesas, as vozes abafadas por alguém falando ao microfone, que trocamos pedidos de orações, contamos nossas histórias, relatamos planos.

— Mal posso esperar.

Felícia notou que Trudy se aproximava.

— Fomos vistos de novo.

— O chefe ainda está desconfiado — disse Trudy. — E observando. Vou fingir que verifico suas autorizações para ficar no escritório depois do expediente, antes de me afastar. Podem se comportar como se estivessem ofendidos, para parecer mais realista.

Felícia e Hector aderiram no mesmo instante à encenação. Felícia pôs as mãos nos quadris.

— Já não passamos por isso antes? — indagou ela. — Não mostrei meu passe há poucos dias? Acha que minha posição mudou?

— Excelente — disse Trudy, estendendo a mão. — Agora, mostre-me o passe.

Hector balançou a cabeça, parecendo relutante em tirar a carteira. Trudy fingiu que anotava os números dos passes.

— Vejo vocês no cardume esta noite — murmurou ela, encostando os dedos no quepe. — Os peixinhos se divertem ali.

 

A primeira leva de fiéis deixou o refúgio subterrâneo de Colúmbia naquela noite, sob a supervisão de Greenie Macintosh. Cerca de duzentos membros originais puseram o que cabia nas malas dos carros e nas áreas de carga das vans, e saíram por várias passagens. Seguiram por diferentes percursos, que os levariam às minas de sal da Terra Central.

Paul ainda gostaria que esperassem, na expectativa de que um fato novo em Berna mudasse o curso da história, trazendo a anistia para todas aquelas pessoas, inclusive ele próprio. Sabia, porém, que essa possibilidade era re­mota. Independente da situação dos fiéis secretos depois de Berna, ele ainda teria de enfrentar a justiça por seus crimes.

Porque eram crimes. Mesmo que fosse absolvido como um cidadão par­ticular querendo praticar sua fé, Paul ainda tinha de assumir a responsa­bilidade pela violação da lei, por se apresentar como um membro leal do governo dos seua, ao mesmo tempo em que frustrava suas decisões políti­cas, como um agente duplo, encorajando e ajudando a oposição que jurara capturar e condenar.

Jae não estava disposta a discutir as conseqüências de uma possível con­denação de Paul. Disse que precisava dele e de sua maturidade na fé — por mais limitada que fosse, ainda assim Paul se encontrava anos-luz a sua frente — e que se sentiria perdida sem ele ao seu lado.

— E o que vai acontecer com Brie e Connor, Paul? Quanto tempo eles podem ficar sem o pai?

A conversa não foi muito longe porque as crianças entravam e saíam a todo instante, entusiasmadas, como Paul não as via há dias. Haviam sido instruídas para selecionar apenas as coisas que podiam caber numa mala. Brie tivera o cuidado de separar suas roupas prediletas, deixando espaço para uma boneca apenas. Connor enchera sua mala com brinquedos, a ponto que no início não cabia mais nem uma cueca.

Ângela Pass Barger tivera uma idéia que Paul considerara brilhante. Sugerira que as crianças, que partiriam na leva seguinte, arrumassem suas coisas e depois se encontrassem com ela para uma festa e filmes. Isso evitaria que as crianças ficassem preocupadas, e daria aos pais o tempo necessário para fazer suas malas.

 

Straight Rathe recebeu uma ligação do celular do dr. Graybill.

— Ainda bem que o encontrei — disse o cirurgião. — Temos um paciente interessante, e achei que você poderia querer saber. O nome é Stephenson Davis, mais conhecido como Scooter. É um cinegrafista de Chicago. Trabalha para a rede de televisão dos seua.

— Ele estava naquele acidente que ocorreu esta manhã?

— Isso mesmo. Um motorista bêbado seguindo para o norte invadiu a outra pista, na estrada de Lake Shore, e bateu de frente na van da emissora de televisão, seguindo para o sul. Davis foi o único sobrevivente.

— Aquela estrada pode ser perigosa. Sua idéia é mantê-lo sedado no hos­pital, para que ele não possa ajudar a transmitir a propaganda do governo pela rede oficial?

— É justamente esse o problema, sr. Rathe. Ele não está tão ferido quanto deveria ter ficado. Sentava no banco da frente, com o cinto de segurança. Ao que parece, bateu com a testa no pára-brisa, o que o deixou com os olhos pre­tos. Fui chamado para fazer uma punção, a fim de aliviar a pressão do líquido no crânio. Fazia primeiro um exame meticuloso de todo o corpo, pois o pes­soal da emergência sempre pode deixar passar alguma coisa, e imagina o que encontrei entre o dedão do pé e o seguinte? Uma tatuagem. De um peixe.

— É mesmo?

— E tem mais uma coisa. Constatei que não havia nenhuma pressão cra­niana anormal. Assim, não havia necessidade da punção. No entanto, anotei em sua ficha que ele precisa passar alguns dias na uti em observação. Não

queria que Scooter fosse embora antes de descobrir se ele pode ter alguma utilidade para você.

— Ele está acordado?

— E lúcido. Não agüenta mais ficar no hospital e quer ir embora. Não posso culpá-lo por isso. Incluí, porém, em sua ficha dados suficientes para persuadir seus superiores de que ele deve ficar sob os meus cuidados por mais algum tempo.

— Tentarei ir até aí para falar com ele ainda esta noite.

— Isso não vai despertar nenhuma suspeita? Pode vê-lo pela manhã, em suas rondas particulares.

— Não se preocupe. Sempre faço isso. As pessoas estão acostumadas a me verem a qualquer momento. Eu escolho meus horários.

 

Hector aconselhara Felícia a tomar cuidado para evitar que alguém a seguisse. Como ela podia saber? Paul fora um dos melhores, na espionagem e contra-espionagem, mas aquele não era o jogo de Felícia. Como podia saber se algum dos milhares de carros que seguiam para o sul, pela 1-294, estava seguindo-a? Parecia que todos estavam.

De qualquer forma, não dava para distinguir um carro de outro. O sol de­saparecia cedo durante o inverno em Chicago. Por isso, Felícia podia divisar apenas pares de faróis. Um par que parecia ter permanecido sistematicamente em sua esteira, a cerca de uma dúzia de carros de distância, também pegou a saída para Joliet, mas pelo menos vinte outros carros fizeram a mesma coisa naquele instante. Felícia decidiu que não podia se preocupar com todos os carros por trás, a menos que algum se tornasse óbvio. E o que Paul lhe disse­ra? Que os profissionais nunca eram óbvios? Somente alguém da onp poderia segui-la, e eles eram os melhores.

 

Ranold B. Decenti sentava à mesa da cozinha, comendo comida chinesa, en­tregue em casa. Olhava para o relógio a todo instante, sempre tentado a ligar e pedir um relatório de situação. No entanto, ela prometera que o avisaria quando o ato fosse consumado.

A ansiedade o fazia comer muito depressa, quase engasgando. Estava tão desequilibrado a ponto de pensar que alguém poderia tê-lo envenenado! Talvez pedir que trouxessem a comida em casa não fosse mais o ideal. Ele fora o caçador durante décadas. Virará a caça agora? Mas as pessoas paga­riam por isso.

O telefone tocou. Não podia ser ela. Nunca lhe dera o número de sua casa. Por outro lado, a mulher era bem situada, e provavelmente poderia obter qualquer informação que quisesse. Ele torcia para que ela fosse digna de confiança. Devia isso a ele.

— Residência de Decenti.

— Chefe, aqui é a segurança do quartel-general. Lamento, mas tenho más notícias.

— Estou escutando, filho. O que aconteceu?

— A comandante Bia Balaam trabalha para o senhor, não é?

— Isso mesmo. O que aconteceu?

— Nós a encontramos morta em seu carro.

— Morta?

— Tudo indica que foi um trabalho de profissional, senhor. Três balas de pequeno calibre disparadas atrás da cabeça.

Ranold assumiu seu tom mais solene.

— Não posso acreditar. Pode ligar para o serviço de transporte e pedir que mandem um carro me buscar?

— Terei o maior prazer, senhor. Mas o corpo já foi removido, e não há mais nada que possa fazer aqui.

— Alguém informou sua filha?

— Não sei, senhor.

— Providenciarei para que alguém avise.

— Obrigado, senhor. Lamento ter de...

— Não se preocupe, filho. Sinto-me grato pelo que fez.

Ranold desligou, e jogou a caixa com a comida no outro lado da cozinha. Não se podia confiar em mais ninguém? Aquela notícia deveria lhe ter sido transmitida de Chicago antes que o corpo fosse sequer descoberto.

 

STRAIGHT FOI PARA O VESTIÁRIO, onde vestiu o uniforme de voluntário, o palhaço na versão adulta, um pouco diferente da versão para as crianças. Para as crianças, ele usava também os sapatos enormes e o nariz vermelho bulboso, além de maquilar o rosto. Para os adultos, usava apenas o velho terno de palhaço, e empurrava um carrinho com livros e revistas. A enfermeira de plantão na uti cumprimentou-o pelo nome.

— Quem vai ver esta noite?

— Um certo sr. Davis... Stephenson Davis. Ela apontou para o quarto.

— Uma palavra de aviso. Ele detesta esse primeiro nome. Straight parou e inclinou-se, como um conspirador.

— Ele tem um apelido?

— Scooter.

Com uma piscadela para a enfermeira, ele afastou-se pelo corredor, can­tando baixinho:

— Ninguém conhece os problemas que eu tenho, com um primeiro nome que acho medonho. O nome é Stephenson, mas pode me chamar de Scooter...

Straight abriu a porta para encontrar um paciente que parecia um guaxi-nim, com dois olhos roxos e uma testa branca.

— Se não gosta do meu canto, posso dançar.

Scooter Davis forçou um sorriso. Straight fechou a porta.

— Sou o recepcionista oficial. Se está sentindo dor, posso voltar mais tarde.

— Não se preocupe. Estou bem. A verdade é que quero sair daqui.

— Não me compete decidir isso. Quer alguma coisa para ler?

Ele empurrou o carrinho para o lado da cama. Enquanto Davis dava uma olhada no que havia ali, Straight puxou o lençol, deixando à mostra os pés do paciente.

— Ei, o que está fazendo?

— Apenas confirmando.

Straight pegou os dedos do pé. Davis desvencilhou-se.

— Quer se meter numa encrenca, meu velho? Preciso chamar alguém?

— O que tem entre os dedos, meu jovem?

— Não sei do que está falando.

— Soube que tinha uma pequena tatuagem.

— Foi uma coisa que fiz quando era um garoto tolo. Então é essa a priva­cidade que dispensam aos pacientes aqui, hem? Creio que sabe que trabalho para a rede de televisão do governo.

— Claro que sei. Ele ressuscitou.

Scooter Davis fitou-o nos olhos. Straight ficou gelado. Se não tivesse a resposta correta, teria se revelado para a pessoa errada... o que podia ter trágicas conseqüências. Seria possível que o homem tivesse se tatuado quando era garoto apenas para ser rebelde? Para atormentar os pais?

— Ele ressuscitou realmente — sussurrou Davis.

 

— Já recebi o aviso, Harriet — disse Ranold. — Mas não de você, como esperava.

— Tenho outras coisas com que me preocupar, General.

— Deveria ter ligado antes.

— Estou ligando agora.

— Usou alguém daqui?

— Claro. Não havia tempo suficiente para enviar alguém de Chicago.

— Como está aquele outro assunto?

— Tudo de acordo com o plano. Estou indo para lá agora.

— Quem vai usar para o serviço?

— Quase todo mundo é de Chicago. Não conheço ninguém aqui fora do escritório.

— Tem certeza de que todos merecem confiança?

— Está brincando? Depois de descobrir quantos cúmplices de Stepola ti­nha aqui, não podia deixar de passar o pessoal pelos detectores de metal e o pentobarbital. Peguei um na rede. Os outros foram mobilizados.

— Conheço essa pessoa que você pegou?

— Duvido muito. Um guarda de segurança. Cantou como um canário quando lhe prometi a vida em troca da verdade.

— Prometeu que pouparia sua vida?

— Eu menti.

 

Por trás da porta fechada numa sala particular do Wilson's, em Joliet, Felícia encontrou Hector e abraçou-o.

— Todo o mundo fica sempre atordoado assim nessas reuniões? — per­guntou ela.

— Não. Mas estamos todos angustiados neste momento. Esperançosos pelo que está acontecendo em Berna. O resultado deve ser anunciado nas próximas horas. Se a decisão não for favorável...

— É preciso ter pensamento positivo. Hector recuou.

— Está brincando, não é?

Felícia estudou-o por um momento.

— Acho que sim. Não há muito motivo para ser otimista, não é mesmo?

— Não neste lado da eternidade.

Felícia correu os olhos pela sala; muitos estavam tão chocados ao vê-la quanto ela se sentia aturdida por encontrá-los ali. Todos começaram a cum­primentá-la da mesma maneira. Em vez de "Ele ressuscitou ", indagavam: "O que está fazendo aqui?". Ela é que tinha de iniciar a saudação apropriada, para deixá-los à vontade.

Depois que todos estavam ali, Hector fechou a porta. Uma mulher — que Felícia reconheceu do processamento de dados — pegou o microfone.

— Sejam bem-vindos à reunião mensal da Liga de Boliche da Zona Sul. As pessoas riram e bateram palmas. A mulher acrescentou:

— Deixem-me ler os principais resultados da semana passada.

Os nomes associados aos escores mais altos não eram de pessoas reunidas ali, concluiu Felícia, a menos que houvesse muita gente no escritório que ela não conhecia. E ela achava que havia reconhecido todos os presentes. Trudy apareceu pouco depois. Sentou ao lado de Felícia e sussurrou:

— Acho que fui seguida. Por isso, dei algumas voltas antes de estacionar.

— Quero dar as boas vindas aos novos — disse a mestre de cerimônias. — E espero que apreciem seu jantar de peixe.

Não havia cardápio. Os empregados entraram em fila, as bandejas suspen­sas por cima da cabeça. Distribuíram os pratos de frutos-do-mar, e anotaram os pedidos de bebidas. Depois que se retiraram, com a porta fechada, as pessoas começaram a comer. Felícia viu que algumas juntavam as mãos em oração, enquanto outras falavam baixinho.

Houve um silêncio total quando a porta foi aberta de novo e Harriet Johns entrou na sala. Ela foi para o microfone;

— Boa noite. Ninguém respondeu.

— Eu disse boa noite!

Uns poucos murmuraram uma resposta.

— Aqui é bastante agradável, não é? Adoro quando os nossos funcioná­rios se reúnem informalmente. Não acham que isso faz todos trabalharem melhor? Antes que eu me esqueça, gostaria que ouvissem uma coisa. Prestem atenção.

Ela pegou um pequeno gravador e aproximou-o do microfone. A estática e a voz rouca de Trudy Nabertowitz espalharam-se pela sala.

— O chefe ainda está desconfiado. E observando. Vou fingir que verifico suas autorizações para ficar no escritório depois do expediente, antes de me afastar. Podem se comportar como se estivessem ofendidos, para parecer mais realista.

Felícia sentiu que Trudy estremecia. Virou-se para vê-la com o rosto ver­melho, as lágrimas escorrendo.

— Oh, não! — balbuciou ela. — Oh, Deus, por favor, não!

Felícia inclinou-se para tocá-la. Trudy baixou a cabeça para a mesa. A gravação continuou a tocar. A voz de Felícia:

— Já não passamos por isso antes? Não mostrei meu passe há poucos dias? Acha que minha posição mudou?

Trudy:

— Excelente. Agora mostre-me o passe... Vejo vocês no cardume esta noi­te. Os peixinhos se divertem ali.

— Os peixinhos se divertem ali — repetiu Harriet. — Sabem o que isso significa? Ele ressuscitou!

As pessoas trocaram olhares.

Felícia compreendeu que sua vida chegara ao fim.

— Falei errado? — indagou Harriet. — Sim? Não? Acho que não sou bem-vinda aqui. Apreciem a refeição e as bebidas.

Ela se retirou. Os empregados do restaurante tornaram a entrar na sala. Distribuíram as bebidas. Assim que eles se retiraram, Hector se levantou.

— Que ninguém seja bastante tolo para comer mais alguma coisa ou tomar um gole! Há alguém armado?

Um estalido alto indicou que a porta fora trancada por fora. Felícia ouviu alguma coisa sendo forçada contra a porta. Uma nuvem de fumaça branca começou a se projetar por baixo. Alguns se adiantaram para tentar bloquear, com guardanapos molhados, mas logo caíram, em convulsões. Felícia agarrou a toalha da mesa e deu um puxão, jogando oito pratos no chão. A nuvem já a alcançava, ardendo nos olhos e garganta.

— A janela! — gritou Hector.

Várias pessoas correram na direção. Felícia caiu de joelhos, mas logo se levantou e seguiu a multidão. No entanto, quando Hector tirou um sapato e quebrou o vidro, um tiro foi disparado lá de fora. Sua cabeça pareceu explodir, enquanto ele caía. Os outros afastaram-se da porta e da janela, comprimindo-se nos cantos opostos da sala. Uma a uma, porém, as pessoas foram caindo.

 

Com as crianças na atividade coletiva, Paul e Jae conversavam sobre as perspectivas para o futuro, como se pudessem ter alguma idéia do que lhes estava reservado. Ao sentir a vibração na boca, Paul verificou o identifica­dor de chamada e atendeu.

— Olá, Ranold.

— Posso me encontrar com você na hora que quiser, Paul, se concordar com a minha sugestão sobre o local.

— Às sete horas da noite de sexta-feira, na antiga catedral nacional.

— Estarei lá — declarou Ranold.

 

STRAIGHT NUNCA OUVIRA PAUL TÃO DEPRIMIDO.

— Está assistindo ao noticiário?

— Não — respondeu Straight. — Por quê? A voz de Paul tremia.

— A notícia de Washington é que Bia Balaam foi assassinada em seu carro, na garagem da onp.

— Oh, não!

— Estou convencido de que ela era uma fiel, Straight, mas acontece... não posso...

— Compreendo, Paul. Isto não é um jogo, mas uma questão de vida ou morte. Temos de compreender que nós mesmos talvez não continuemos neste mundo por muito tempo.

— Isso não é tudo, Straight. Felícia lhe falou sobre a reunião que teria esta noite?

— A reunião em Joliet. Aconteceu alguma coisa?

— Foram descobertos. Harriet Johns supervisionou pessoalmente a in­trodução de gás na sala. Oxido nítrico. Não há sobreviventes.

— Felícia...

— Não há sobreviventes, Straight.

Jae também nunca vira Paul tão abatido.

— Tudo isso é obra de seu pai.

— Ora, Paul...

— Nada tão grande poderia ser feito na onp sem a aprovação de Ranold, ou até mesmo sem seu planejamento. Tenho certeza de que ele está adorando, Jae. Mal pode esperar para saber qual é a minha reação. Ainda bem que só vamos nos encontrar na noite de sexta-feira porque neste momento sinto um instinto assassino.

Jae deixou-o ferver de raiva, sem saber o que dizer. Depois de vários mi­nutos de silêncio, ela comentou:

— Sei que não vai tomar a lei em suas próprias mãos, Paul.

— Não vou? E por que não? É o que venho fazendo desde que me tornei um fiel, não é mesmo? Estamos em guerra, Jae. Não acha que seu pai já sabia o que havia acontecido quando ligou para marcar a reunião? Ele mal pode esperar para ver minha cara.

— O que vamos fazer, Paul?

— Ainda não sei. Entretanto, Straight tem uma possibilidade interessante. Descobriu um fiel secreto que trabalha para a rede de televisão estatal. O homem deveria passar o fim de semana no hospital, mas o médico que é contato de Straight assegura que ele está bem. Talvez possamos usá-lo de alguma forma.

Jae foi abrir a porta quando ouviram batidas vigorosas. Jack Pass e Greenie Macintosh entraram, pedindo desculpa.

— Podemos roubar Paul por alguns minutos? — perguntou Jack.

— Vamos conversar aqui — disse Paul. — Não há nada que Jae não possa ouvir.

Pass e Macintosh trocaram um olhar. Jae disse que podia se retirar.

— Não se preocupe com isso, sra. Stepola. Não há mais necessidade de manter segredos.

Todos sentados, Greenie explicou a situação:

— As execuções da onp saíram em todos os noticiários. As pessoas estão indignadas, Paul. Pode haver uma reação violenta, o que talvez afete a reunião em Berna. É o tipo de coisas que as pessoas queriam evitar. Agora, com a paz e, quem sabe, a anistia no horizonte, é como se a onp estivesse disparando suas últimas rajadas.

— É por isso que quero fazer alguma coisa drástica — acrescentou Jack.

— Sei o que vocês pensam sobre orar para um dilúvio...

— Não tenha tanta certeza que sabe como me sinto agora — disse Paul.

— Achei a princípio que você era louco, mas agora...

— Também mudei de idéia — anunciou Greenie. — Se o seu sogro está tão preocupado com a reunião em Berna, pode fazer alguma coisa, a qualquer momento.

— Posso dizer uma coisa? — interveio Jae. — Não me importo com o que vocês façam. Podem invocar a chuva. Podem invocar o fogo. Podem fazer qualquer coisa. Temos de continuar a tirar todas as pessoas do refúgio. Ainda temos crianças aqui. Você acham que alguém lá em cima está ligan­do para a segurança delas?

— Tem toda razão — concordou Jack. — Greenie, temos de avisar ao pessoal que manteremos a mesma ordem, mas não haverá intervalos entre os turnos.

— Ainda pretende invocar a chuva? — perguntou Greenie.

— Não sei — respondeu Jack.

— Vou conversar com Angela.

— Boa idéia. Pode ir.

Quando Greenie se retirou, Jack virou-se para Paul.

— Estou curioso sobre esse seu tal encontro com Decenti. Se o ataque já está planejado para a próxima sexta-feira, por que ele quer você são e salvo?

— Eu não estaria seguro. Pelo menos não na mente de Ranold. Talvez ele não imagine que eu sei quando o ataque deverá ser desfechado.

— Neste caso, por que ele mataria Bia Balaam?

— Por muitos motivos, inclusive pelo fato de que foi ela quem lhe deu o talismã encontrado com Aikman. Mesmo que ele estivesse ciente de que eu sei que o ataque será desfechado ao anoitecer de sexta-feira, o encontro foi marcado para duas horas depois. Se eu estiver na catedral, ele saberá que escapei dos mísseis.

A explosão quebrou as janelas e apagou as luzes. Jae foi jogada no chão, mas levantou-se de um pulo no instante seguinte.

— As crianças!

— Você está bem, Jae? — perguntou Paul.

— Estou! E você? Jack?

— Eu estou bem — respondeu Paul.

— Não sofri nada demais — informou Jack. — As luzes de emergência nos corredores devem ter acendido.

Jae procurou Paul, no escuro. Os três passaram pela porta avariada. Jack tinha razão. As fracas luzes de emergência iluminavam o corredor, até onde ela podia avistar, onde ficavam as saídas que as pessoas vinham usando.

Mas as crianças estavam para a direita. E foi nessa direção que Jae seguiu.

 

Se Ranold Decenti matara as crianças, Paul o encontraria e se vingaria, para pedir perdão depois. Ele pegou Jae pelo braço e virou-se para Jack.

— Mantenha-se em contato comigo pelo celular. Avalie os danos e as baixas, e veja se pode fazer as pessoas continuarem a sair. Se houver mais alguma explosão, todos devem fugir como puderem.

Ele e Jae seguiram na outra direção. Paul tinha a sensação de que podia tropeçar ou esbarrar em alguma coisa a qualquer momento. Jae desvencilhou-se de Paul.

— Tenho de ligar para Ângela.

Para imenso alívio de Paul, era evidente que Ângela atendera. Jae parou.

— O barulho assustou as crianças. Ela disse que achava que era uma trovoada, mas sabe que não foi isso. Quer saber se fomos atacados.

Paul pegou o telefone.

— As luzes estão acesas aí, Ângela?

— Estão. O filme continua a ser projetado.

— Foi um impacto direto, provavelmente na área central do refúgio.

— Há um Deus — disse Ângela.

— Pode repetir.

— Foi providencial. Todas as crianças estão aqui. E os adultos devem estar no outro lado, prontos para a partida.

— Está presumindo que não seremos mais atingidos.

— Não estou presumindo nada, Paul.

— Estamos indo para aí.

Paul e Jae recomeçaram a andar. Logo encontraram uma pilha de es­combros que se estendia do chão ao teto, de uma parede a outra. Jae tentou remover fragmentos de tijolos e concreto, mas não havia como passar por ali.

— Não adianta, meu bem — murmurou Paul.

— Não me diga isso. Alcançarei as crianças nem que passe a noite inteira trabalhando aqui. Há outro caminho?

Ele sacudiu a cabeça em negativa.

— Vou verificar se podem mandar algum equipamento para cá.

— De qualquer maneira, Paul, continuarei a tentar remover os escombros. E você pode ir fazer o que precisa. Não sairei daqui sem Brie e Connor.

— Nem eu, Jae. Mas haveria necessidade de várias pessoas para abrir uma passagem aqui.

— Tenho de tentar. Você pode ir. Falo serio.

— Também não partirei sem você, Jae.

— Vamos manter contato pelo telefone, Paul. Sabe onde pode me encontrar.

— Voltarei o mais depressa possível.

 

Paul encontrou Jack e alguns pais frenéticos, querendo saber como podiam alcançar as crianças. Paul relatou o que Angela lhe dissera.

— É possível que ainda não tenhamos sofrido nenhuma baixa — comen­tou ele.

— Não seja ingênuo — disse um homem. — Havia seis guardas de vigia na entrada do meio. Alguém teve notícias desses homens?

Jack começou a fazer uma ligação. Paul perguntou:

— Alguém soube de Greenie?

Os outros sacudiram a cabeça, e Paul acrescentou:

— Ele deveria voltar para cá, a fim de acelerar o êxodo.

— Se você não o encontrou no caminho, Paul, isso significa que ele foi para o outro lado.

Era verdade. Greenie avisara que ia falar com Ângela. Mas ela nada disse­ra a seu respeito. Ele devia ter sido soterrado pelo desabamento do túnel.

As saídas maiores, usadas pelos carros com refugiados, continuavam intactas. Paul disse a Jack que devia fazer as pessoas continuarem a sair. Quem quisesse poderia ajudar Jae a tentar alcançar as crianças, mas os outros tinham de partir, o mais depressa possível. Mais de uma dúzia de pessoas correram na direção de Jae e dos escombros que obstruíam o túnel. Por insistência de Paul, Jack pediu uma pequena escavadeira, com uma caçamba na frente. Talvez fosse possível, com muita ajuda, passar pelos escombros. Foi nesse instante que Jae telefonou.

— Acabo de encontrar o sr. Macintosh. Não havia a menor possibilidade de sobrevivência, mas ele está vivo. Sua cabeça deveria ter sido esmagada. Se alguma vez já duvidei que Deus existia e se importava...

— Estou a caminho.

— Não precisa se preocupar, Paul. Estamos bem. Eu o avisarei assim que conseguirmos abrir uma passagem.

— Jae, pessoas e equipamentos estão indo ajudar.

 

O SEGUNDO MÍSSIL EXPLODIU quando Jae, Greenie e mais de uma dúzia de pessoas tentavam manter se fora da passagem da escavadeira, enquanto aju­davam a remover os escombros, para alcançar as crianças. O impacto sacudiu o corredor e levantou nuvens de poeira. As luzes de emergência apagaram.

— Vão matar todos nós! — berrou uma mulher.

— Morreremos sufocados! — gritou um homem.

— Cubram a boca e o nariz com algum pano, e continuem a trabalhar!

— Não posso ver nada! Jae ligou para Ângela.

— Sentimos a explosão, mas estamos bem — informou Ângela.

— Ainda há eletricidade aí?

— Ainda. Mas as crianças estão apavoradas e muitas começaram a chorar.

— Estamos tentando chegar aí.

 

Paul queria pegar Ranold mais que qualquer coisa. Ligou para Straight e pediu que fizesse tudo o que fosse necessário para levar o cinegrafista a Washington. Paul indicou um cruzamento três quarteirões ao norte da cate­dral nacional.

— Diga-lhe me ligue quando chegar lá e vou encontrá-lo. Straight ligou de volta poucos minutos depois.

— Vai sair caro. Uma limusine está a caminho do hospital para nos buscar.

— Você não pode vir.

— Claro que vou. E não perca o fôlego tentando me dissuadir. Graybill está assinando a alta do paciente, e estaremos no aeroporto em quinze mi­nutos. Fretaremos um jato. Paul, presumo que falou sério.

— Sobre fazer qualquer coisa que for necessária? Claro que sim.

— Estaremos aí dentro de uma hora.

Paul ajudava Jack na supervisão do êxodo quando recebeu uma ligação de Abraão, das minas de sal.

— Não deve tornar pessoal a questão entre você e o diretor da onp, Paul.

Straight sempre tivera o hábito de relatar as atividades de Paul para os anciãos.

— Não tenho tempo para discutir isso, Abraão. No entanto, há muito tempo que é uma questão pessoal. O homem é meu sogro, e só se importa com ele próprio. Nunca se importou com o filho, a esposa, a filha, os netos, muito menos comigo. Agora, ele está bombardeando nosso refúgio subter­râneo. E já deveríamos ter sofrido pelo menos sete baixas. Milagrosamente, Deus salvou um dos nossos homens e agora alguém me faz um sinal com o polegar levantado sobre os outros seis que guardavam a entrada onde ocor­reu um impacto direto.

— Isso significa que Deus está protegendo você, Paul. Deixe-o cuidar de seu sogro.

— Ele pode cuidar de Ranold por meu intermédio, Abraão. Só porque esses sete foram poupados não significa que ele não queria massacrar todos nós. Quem sabe quantos mortos podemos ainda encontrar? Se ele continuar a atacar, nossas perdas podem ser monumentais.

— A vingança pertence ao Senhor.

— Sugere que eu fique de braços cruzados?

— Sugiro que aceite os conselhos de pessoas mais controladas.

— Não há mais pessoas controladas aqui, Abraão.

— Estamos orando por vocês.

— Obrigado.

— Orando para que você faça o que Jesus faria.

Poupe o fôlego, pensou Paul, mas se conteve, sem fazer o comentário.

 

Ranold sentava no banco de passageiro de um jipe, ao lado do chefe de um grupo de milícia que outrora tentara processar. Havia um desenho do refúgio subterrâneo dos fanáticos estendido sobre seus joelhos.

— Um míssil acertou aqui e o outro aqui — disse o homem, em uniforme de combate. — É tudo o que temos.

— E se eu pagasse mais?

— Já disse que é tudo o que temos e tudo o que queremos arriscar. Deve ter conseguido uma porcentagem de cinqüenta por cento de mortos com essas explosões. Se pudéssemos ter lançado os mísseis do ar, a precisão seria ainda maior.

— Não pode conhecer o índice de mortos. Precisaria saber onde as pessoas se encontravam no momento das explosões.

— Acertamos na área mais central possível, General. Espere um instante. — Ele olhou para o celular. — É um dos meus homens.

Ele virou o rosto para atender.

— Pode falar, Jimmy. Que lado? Não, deixe-os saírem. Já fizemos tudo o que podíamos fazer.

Ele desligou. Decenti perguntou o que acontecera.

— Um êxodo em massa. Acho que os fizemos correr para a saída no lado sul.

— Deveria ter homens ali para exterminá-los.

— Estou retirando todo o meu pessoal da área. De qualquer forma, não teria condições de pagar. Esse dinheiro não pode ter saído de seu orçamento, não é mesmo? Deve ter desviado algum dinheiro.

— Posso manipular algumas coisas. Quanto me custaria...

— Já acabamos aqui, General. Posso deixá-lo onde quiser. Para nós, foi uma missão de mercenário. Só nos expomos até o ponto que queremos, e não preciso ser visto em sua companhia.

— Deixe-me no quartel-general da onp, para que eu possa pegar um carro.

— Está bem. Na noite em que o refúgio subterrâneo dos fanáticos foi bombardeado, eu sou visto a largá-lo ali. Não quero que ninguém me veja ao seu lado.

— Deixe-me pelo menos num lugar em que eu possa pegar um táxi.

 

Jack levou Paul para um lado.

— Temos de fazer alguma coisa, Paul. Não podemos sofrer outra explo­são. Tudo aqui desabaria. As pessoas estão quase em pânico, frenéticas para escaparem. Como podemos saber que não as estamos enviando para uma emboscada?

— Farei qualquer coisa que me sugerir, Jack. Fui eu quem provocou essa situação, pela minha simples presença.

— Procure Decenti e faça o que for necessário para acabar com isso.

— Posso ter de matá-lo.

— É matar ou morrer, Paul.

— Ligarei para ele. Vou precisar de um veículo.

— Estamos quase sem veículos. Mas talvez você possa levar algumas pes­soas. Deixá-las no caminho.

— Onde, Jack? Não posso deixá-las nas ruas?

— Ei, lembrei de uma coisa. Sabe quem temos de tirar daqui? Marmet!

— Está se referindo a Wipers. Ele continua acorrentado à parede?

— Continua, e provavelmente gritando sem parar, apavorado.

— Eu não me importaria de deixá-lo na rua. Jack entregou-lhe as chaves.

— Vá buscá-lo. Terei carro e arma a sua espera na rampa a sudeste.

 

Ainda em total escuridão, Jae continuava a trabalhar, as unhas quebradas, os dedos sangrando. Qual seria a extensão daquela pilha de escombros? Ela não se importava. Escavaria até que visse luz, e depois abriria um buraco suficiente para passar, ou morreria tentando. Sentia-se nauseada pelo cheiro de gás da descarga da escavadeira. Era provável que morresse de qualquer maneira naquela noite, mas não iria para a sepultura sem saber que fizera tudo o que podia para alcançar Brie e Connor.

— Deus, ajude-nos — murmurou ela.

Ao seu redor, pessoas ofegavam, grunhiam, escavavam, removiam frag­mentos de tijolos e concreto.

— Não adianta! — gritou alguém. Jae continuou a trabalhar.

 

Enquanto corria para o lugar em que Roscoe Wipers estava detido, Paul especulou se algum dia se perdoaria por deixar o refúgio sem as crianças. Estava ansioso por notícias, frenético para saber se Jae conseguira passar, se estavam todos bem. Mas também sabia que não havia mais nada que pudesse fazer ali, a não ser escavar pessoalmente através dos escombros. E já havia bastante pessoas fazendo isso. Talvez até demais. Era provável que estivessem atrapalhando uns aos outros. Ele ligou para Ranold.

— Fico surpreso em ouvi-lo, Paul. Há rumores sobre fogos de artifício por aí.

— Boa tentativa, mas não acertou ninguém, papai.

— Não pode ser.

— Na catedral nacional, em noventa minutos.

— Estarei lá.

Paul tateou pela sala escura.

— Quem está aí? — indagou Roscoe, a voz esganiçada. — Dê-me um tiro, por favor! Não quero morrer assim! Não quero ser esmagado! Nem passar fome até a morte!

— Acalme-se, Roscoe. Você vem comigo.

— Como?

Paul abriu as algemas que prendiam Roscoe à parede.

— Não vai tentar me atacar, não é, Wipers?

— Atacá-lo? Eu deveria beijá-lo! Para onde vamos?

— Estou tentando alcançar seu chefe. No caminho, vou soltá-lo.

— Está brincando.

— Se eu estivesse brincando, deixaria você aqui.

 

JAE NUNCA TRABALHARA TANTO EM TODA a sua vida. Pelos sons dos outros, ofegantes, presumia que a mesma coisa acontecia com eles. Não havia nada como a motivação de tentar alcançar seus filhos. Em determinado momento, um dos homens pediu que todos ficassem quietos.

— Ouviram também? — indagou ele. — Se podemos escutar as pessoas no outro lado, muito em breve veremos luz!

Todos prestaram atenção por um momento. Jae não ouviu nada. Outros disseram que ouviram vozes, talvez do filme. Jae achava que era apenas ima­ginação e estava ansiosa em voltar ao trabalho. Na metade do tempo, não sabia se tinha os olhos abertos ou fechados, de tão escuro. Sentiu o gosto de terra na boca e cuspiu.

 

Paul e Roscoe seguiram para a rampa sudeste, onde os carros esperavam, os faróis acesos. Jack estava ali com outros, com lanternas acesas nas mãos. Ele entregou a Paul uma velha Uzi.

— Carregada e como se estivesse nova, Paul.

Roscoe balbuciava palavras sem sentido, aparentemente inebriado por ter escapado da morte certa para a possível liberdade. Paul, porém, não prestava atenção. Concentrava-se em seus problemas. Podia deixar a esposa e os filhos correndo riscos, enquanto ele escapava?

Não era bem uma fuga. Quem podia saber o que o sogro preparara? Mas Paul nunca se perdoaria se sobrevivesse agora e sua família morresse. Ligou para Jae ao entrar no carro, junto com Roscoe.

— Não seja tolo, Paul — disse ela — Vá suplicar pela vida das crianças.

— Não vou suplicar coisa alguma, Jae. E terei de fazer o maior esforço para não esquartejá-lo.

— Quero que o detenha. Isso é tudo. Por favor.

Paul não entendia o tráfego. Longas fileiras de carros deixavam o refugio, mas cada um seguia por um caminho diferente depois que chegava lá em cima. Mas por que havia tantos outros carros? O tráfego era lento, as ruas perigosas com a neve que caía. E ali estava ele, com Roscoe Wipers, nenhum dos dois usando um casaco. Paul ligou o aquecimento do carro e seguiu para o sul, no tráfego lento, pela Rua 29.

— Não consigo entender — disse Wipers. — Qual a minha utilidade para você? Por que não me deixou lá embaixo para morrer?

— Como a onp fez?

— Eles pensam que já morri. Você conseguiu isso. Teriam me soltado antes, se soubessem que continuo vivo.

— Acredita mesmo nisso?

— Gostaria de acreditar.

— Pare de sonhar, Roscoe. Lembre-se de quem está por trás de tudo isso.

— Decenti, é claro.

— E sabe que ele é meu sogro.

— Sei.

— E também sabe que a filha e os netos de Decenti estão lá embaixo.

— Sei.

— E, mesmo assim, ele bombardeia o refúgio. Acha que ele se importaria com você?

Wipers deu de ombros.

— Ainda assim, eu me deixaria lá embaixo, se estivesse no seu lugar. Afinal, ajudei a provocar essa situação.

Ao passarem pelo Centro Médico do Exército Walter Reed, Paul teve uma idéia. Poderia seguir para sudoeste e depois para oeste, pela Estrada Militar, até a Avenida Nebraska, depois continuar para sudoeste, atravessando a Connecticut, até a Massachusetts. Com isso, a catedral ficaria logo a sudeste, com acesso pela Avenida Wisconsin e Estrada Woodley.

Péssima idéia. Depois de entrar na Estrada Militar, Paul não tinha mais como sair e o tráfego ali, se alguma diferença havia, estava pior.

— O que está acontecendo? — indagou Roscoe. Paul ligou o rádio.

 

Agora Jae também podia ouvir alguma coisa através dos escombros. Mas o que seria? Ela não queria se iludir, nem imaginar as vozes de seus próprios filhos. Mas também nunca estivera tão concentrada. Cada vez que ouvia um rangido na estrutura, Jae imaginava outro desmoronamento... ou, pior ainda, outra explosão.

Os outros ouviam o que ela ouvia, e Jae podia perceber que escavavam mais depressa. Tinha de haver um final para aquilo. Assim que conseguissem abrir uma passagem, haveria uma corrida vertiginosa para levar as crianças a uma saída em que carros esperavam.

 

— Então por que, Stepola? — indagou Wipers. — Isso é tudo o que quero saber. Creio que sei por que você mudou de lado. Estudei bastante religião para enganá-los, até que meu suposto filho morreu no incidente. Muito bem, você é um fiel. Mas isso não explica por que foi me buscar.

— Que tipo de homem eu seria se não fizesse isso?

— Seria como eu.

— E você mesmo disse, Roscoe, que não é um fiel. Os fiéis fazem a coisa certa. Ou pelo menos deveriam.

— É o que você está fazendo agora? Procura seu sogro para abraçá-lo?

O tráfego era intenso demais para que Paul arriscasse lançar um olhar para Roscoe.

— Não sou menos humano do que ninguém e uma enorme parte de mim quer liquidá-lo.

— Posso imaginar.

— Mas não pretendo atirar nele.

— Acredito.

— Falo sério.

— Então é mais louco do que eu pensava, Stepola.

— As pessoas sabem para onde vou e com quem me encontrarei. Se Ranold tentar qualquer coisa contra mim, não poderá escapar impune.

— Que diferença faz se ele for apanhado? Você morre de qualquer jeito. O que está pensando? Quer deixar a família sem você, se todos sobreviverem?

Paul mantinha a conversa com os ouvido atento ao noticiário pelo rádio, à espera da explicação do movimento exagerado àquela hora. Até que final­mente ouviu:

— O tráfego continua a aumentar, procedente do norte de Washington, D.c, onde ocorreram duas explosões, num parque industrial abandonado. As explosões provocaram pânico, e muitos moradores da região fugiram, temendo um ataque militar, embora não encontrem nenhuma indicação de que isso tenha ocorrido. As pessoas em fuga engrossaram o movimento intenso, provocando engarrafamento nas ruas principais.

Paul recebeu uma ligação de Straight.

— Ouviu a notícia?

— Ouvi. Onde você está?

— O sr. Davis e eu estamos no lugar que você indicou. E onde você está?

— Provavelmente ainda levarei meia hora para chegar. Não quer levar Davis para dentro? As portas estão sempre abertas.

— Onde?

— Tentarei atrair Decenti para o nártex principal, perto do altar. O governo cobriu as imagens com grossas cortinas, o que pode proporcionar uma boa cobertura para Davis. Não tenho a menor idéia da iluminação no local. Apenas diga a ele para manter a câmera rolando, e gravar todo o som que puder.

 

Ranold nem mesmo precisou assinar o formulário de retirada do carro. O responsável pela garagem disse que cuidaria de tudo.

— Nem preciso ver sua licença, não é mesmo? — comentou ele, rindo, na expectativa de obter a mesma reação de Decenti.

Entretano, o diretor interino da onp não tinha a menor disposição para di­zer qualquer coisa, nem sequer um agradecimento. Não era um homem feliz quando partiu. Pediu uma equipe da swat e avisou onde estaria.

— Mas não quero que ninguém entre... repito, ninguém... sem a minha autorização expressa.

Ranold estava convencido de que alguém o seguia. Deslocava os olhos do pára-brisa para o espelho retrovisor a todo instante, e dava voltas sempre que podia, deixando as ruas principais para as transversais. Não podia determinar com certeza se havia mesmo alguém seguindo-o. Sabia apenas que já estava ficando atrasado. Verificou a pistola de nove milímetros que levava no quadril, rangeu os dentes, bateu no volante. O telefone tocou.

— Um momento, por favor, que o governador Hale já vai falar. O governador gritou, ao entrar na linha:

— Decenti?

— Estou aqui. Continua em Berna, governador?

— Continuo. E estamos fazendo progresso.

— Em quê?

— O mundo deve saber dentro de uma ou duas horas.

— Saber o quê?

— Uma notícia sensacional. Vamos nos reunir na manhã de segunda-feira?

— A menos que pretenda me dispensar antes. Pode fazê-lo agora, pelo telefone.

— Não há necessidade, Ranold.

Ranold decidiu que Hale podia não pensar da mesma forma se realizasse sua missão com Paul Stepola.

 

ROSCOE WIPERS ESTENDEU A MÃO PARA PAUL.

— Aperte.

Paul apertou a mão estendida.

— Por quê?

— Eu planejava sumir quando você me deixasse. Terei de dar explicações por não tentar prendê-lo, mas não precisa se preocupar comigo. Para mim, você é um homem livre. Devo-lhe isso. Mesmo que eu fique sentado aqui, no frio, sem casaco.

— Não se preocupe que o deixarei em algum lugar aquecido.

— Sei disso.

— E enquanto faço o que tenho de fazer, você pode esperar no carro, com o aquecimento ligado.

 

Jae tinha certeza agora de que ouvira alguma coisa. E não era qualquer coisa. Vozes de crianças. Não deviam estar a muito mais que um metro de distância. Angela devia estar tentando abrir uma passagem pelo outro lado. Jae sinalizou para que o operador da escavadeira desligasse o motor, para depois gritar:

— Crianças! Podem nos ouvir?

Um coro afirmativo foi a resposta. O som de escavação aumentou, nos dois lados. Finalmente surgiram pontos de luz, depois pequenas aberturas, e um buraco bastante grande para uma criança passar.

— Esperem! — gritou Jae. — Ângela, ponha as crianças em fila e vamos aumentar o buraco!

Jae foi a primeira a passar. Tropeçou e caiu aos pés das crianças gritando. Quando se levantou, pôde perceber, pelas expressões em seus rostos, que de­via ser uma visão e tanto. Brie e Connor correram para abraçá-la.

— Todos prontos? Teremos de fazer uma longa caminhada no escuro, mas vamos sair daqui, obrigada, Deus!

 

Quando o prédio de calcário, com noventa metros de altura e 150 metros de comprimento, surgiu a sua vista, Paul não pôde deixar de admirá-lo, como sempre acontecia.

— O prédio tem cento e quarenta anos — murmurou ele. — E levou mais de oitenta anos para ser construído.

— Era guia turístico? — perguntou Roscoe. Paul balançou a cabeça.

— Aprendi quando estudava religião. Espere aqui.

Paul ligou para Straight, enquanto seguia entre os arbustos para a entrada no lado sul.

— Davis já está no lugar?

— Já, sim. Mas não há o menor sinal de seu sogro.

— Pode ter certeza que ele virá. Onde você está?

— Estarei por perto.

— Veio armado, Straight? Uma risada.

— Você não ia querer. Acabaria acertando um tiro no pé que me resta. Presumo que você tem uma arma.

— Acertou. Mas estou tentado me dissuadir de dar um tiro entre os olhos de Ranold.

Dentro da catedral escura e arejada, Paul descobriu que era difícil se deslocar sem que os passos ressoassem pelo vasto espaço. Ele parava de vez em quando para ouvir. Passos? Os seus, ainda ressoando? Não. Havia mais alguém ali.

Paul entrou na vasta nave e olhou para o vitral na entrada oeste. Os lampiões e a neve faziam com que brilhasse e tremeluzisse. Ele foi para as arcadas num lado, entrando e saindo das sombras. Até que parou e esperou.

Passos, pesados e lentos.

Paul imaginou Ranold. Quase que podia vê-lo. Seria possível que o ho­mem viera sozinho? Era bastante improvável. Os passos cessaram.

— Está sozinho, papai?

— Claro. Também desarmado. E você?

— É melhor não contar com isso.

Pela primeira vez, ele viu Decenti no lado oposto, passando de trás de uma coluna para outra.

— Como se sentiria, papai, se soubesse que mais pessoas de sua família morreram pelo que fez esta noite?

— Esta noite? O que eu fiz esta noite? E pare de me chamar de papai. Você não é meu filho. Não o escolhi.

— Isso é mais importante do que saber se sua filha e netos estão vivos ou mortos?

Ranold hesitava? Paul não podia imaginar que atingira um ponto vital. Passou por mais duas arcadas, aproximando-se do altar principal.

— Para onde vamos, Paul?

— Só quero sair de sua linha de fogo, papai.

— Não confie em mim.

Paul soltou uma risada desdenhosa.

— Você deve ser um observador experiente.

— Não zombe.

Paul avançou apressado até a última arcada antes do altar. Ajoelhou-se por trás da coluna.

Ranold parecia contente em permanecer onde estava, a cerca de oito me­tros de distância, no lado oposto do santuário. Por causa da acústica, nenhum dos dois precisava elevar a voz.

— Sei por que matou a comandante Balaam, papai. Silêncio. Depois:

— Eu a matei? Não, não fui eu.

— Ou mandou matá-la. Ela era a única que podia incriminá-lo no assas­sinato do chanceler.

Outra pausa.

— Assassinato é um termo de leigo, Paul. Não acha que morte em combate soa melhor? Estamos em guerra. Alguma coisa tinha de ser feita.

Como agora. Tenho um traidor na minha frente e estou em serviço. Tenho de pegá-lo.

— Já terminou a tentativa de destruir o refúgio subterrâneo, papai? Ranold soltou um grunhido, como se estivesse irritado pela maneira como era chamado.

— Não sei do que está falando.

— Deixe disso. Pensei que ficaria orgulhoso.

— Claro que me orgulho de mim mesmo. Pelo menos não sou um trai­dor. Minha carreira fala por si mesma. E se sou o último baluarte de re­sistência ainda restante, que assim seja. Podemos passar sem os Denglers, Hales e Tamikas.

— O povo parece estar se virando contra você agora, papai. Não sei como vai lidar com isso.

Foi a gota d'água, o gatilho que pressionou Ranold. Ele avançou por duas colunas. Paul teve a impressão de ouvir outro conjunto de passos... talvez mais dois. Ranold devia ter ouvido também. Parou de andar e abaixou-se, apoiado num joelho.

— Mandei que esperassem lá fora! Os passos recuaram, mas não muito.

— Pediu reforço, hem, papai? Está com medo de mim?

Paul ouviu uma explosão, e no instante seguinte o impacto no ombro lançou-o contra a parede. Ele caiu, incapaz de se mexer. Ranold soltou um grito de triunfo, no outro lado da nave. Os passos se aproximaram de novo, correndo agora.

— Estou bem! — exclamou Ranold. — E mandei que esperassem lá fora! Consegui acertá-lo!

Paul, no entanto, teve a impressão de que Ranold fora derrubado.

— Quem é você? — perguntou Ranold, enquanto a arma deslizava pelo chão. — Wipers? Saia de cima de mim ou terei... e quem é você?

— Pode me chamar de Straight. — Uma pausa. — Você está bem, Paul?

— Infelizmente, não.

Straight correu para ele e ajudou-o a deitar de costas.

— Agüente firme, irmão.

— Não estou me sentindo bem — murmurou Paul.

— Também não parece nada bem. Fique comigo, irmão.

Paul estranhou que Straight falasse assim. O ferimento não podia ser uma ameaça a sua vida. Não fora tão perto do coração, não é mesmo? A freqüên­cia cardíaca era rápida e irregular, mas isso era de se esperar.

Straight falava pelo telefone, pedindo uma ambulância.

E Paul perdeu a consciência.

 

PAUL ACORDOU - não sabia quanto tempo depois — num quarto no Hospital Naval de Bethesda, cercado por Straight, Jack, Greenie, Jae, Brie, e Connor. Nunca se sentira tão aliviado em ver alguém, em toda a sua vida. Tentou sentar para abraçar as crianças, mas Jae não deixou, assegurando que haveria muito tempo para isso depois.

— O ferimento foi grave, Paul. Mas você vai ficar bom. Ei, o noticiário começou! Vamos assistir.

Puxaram a cortina para que Paul também pudesse assitir a televisão. As imagens feitas por Scooter Davis apareceram na tela, escuras, em rede na­cional. Ranold ajoelhou-se na antiga catedral apontou a arma e disparou.

— Agora, escutem o que antecedeu o ataque — disse a apresentadora. — O dr. Paul Stepola, agente duplo da onp há pouco denunciado, ironica­mente, genro de Ranold B. Decenti, é o primeiro a falar. Ele se refere a uma das principais agentes do diretor Decenti, comandante Bia Balaam, que foi assassinada na garagem da onp.

A apresentadora ficou calada, enquanto a conversa na catedral era re­produzida:

— Sei por que matou a comandante Balaam, papai.

— Eu a matei? Não, não fui eu.

— Ou mandou matá-la. Ela era a única que podia incriminá-lo no assas­sinato do chanceler.

— Assassinato é um termo de leigo, Paul. Não acha que morte em combate soa melhor? Estamos em guerra. Alguma coisa tinha de ser feita. Como agora. Tenho um traidor na minha frente e estou de serviço. Tenho de pegá-lo.

— Já terminou a tentativa de destruir o refúgio subterrâneo, papai?

— Não sei do que está falando.

— Deixe disso. Pensei que ficaria orgulhoso.

— Claro que me orgulho de mim mesmo. Pelo menos não sou um traidor. Minha carreira fala por si. E se sou o último baluarte de resistência ainda res­tante, que assim seja. Podemos passar sem os Denglers, Hales e Tamikas.

— O povo parece estar se virando contra você agora, papai. Não sei como vai lidar com isso.

A apresentadora voltou a falar:

— Depois do atentado, Decenti foi subjugado por dois homens não iden­tificados e levado preso pela equipe de reforço que pedira. Aqui estão as imagens do diretor Decenti sendo retirado da catedral.

Um membro da equipe da swat foi entrevistado pelos repórteres, enquan­to a falange se encaminhava os veículos, levando Decenti.

— Todos nós ouvimos. Ele praticamente admitiu que assassinou o chan­celer e disparou aqueles mísseis contra o refugio subterrâneo.

— Não fiz nada disso! — berrou Decenti, furioso, o rosto vermelho, a saliva voando. — Eu disse o que tinha de dizer a um fugitivo! Além disso...

Seus próprios homens empurraram-no para um Hummer. A apresenta­dora tornou a aparecer:

— E agora, vamos transmitir diretamente de Berna, Suíça, onde a chan­celer internacional interina Hoshi Tamika falará para o mundo. Ela está reu­nida desde o início da manhã com chefes de estado do mundo inteiro.

Paul estava ansioso. O que aquilo podia significar? A chanceler interna demorou para arrumar seus papéis, enquanto os mi­crofones eram ajustados e algumas pessoas aplaudiam.

— Senhoras e senhores da comunidade internacional. Este é um dia his­tórico. Eu me apresento a vocês diante dos chefes de estado ou seus designa­dos do mundo inteiro. Estão aqui comigo em solidariedade e unanimidade, depois de passarem as últimas horas num debate profundo.

"Nosso objetivo? Um ajustamento no meio do percurso, em escala inter­nacional, para que todos os homens e mulheres possam continuar a viver em paz. Como todos sabem e muitos ainda se lembram, o mundo iniciou uma era nova e ousada, há trinta e oito anos, na esteira de uma guerra devastado­ra, que quase destruiu a todos nós. Em conseqüência de uma guerra santa, estivemos próximos de perder o planeta.

"Acreditava-se na ocasião que a criminalização da atividade religiosa era o único recurso na tentativa de evitar que algo assim nunca mais ocorresse.

E, na maior parte do tempo, desde então, temos vivido em paz relativa. Ou pelo menos a maioria.

"Estamos aqui hoje para reconhecer que isso não aconteceu com todos os nossos cidadãos. As pessoas de fé que amam a paz foram obrigadas a cair na clandestinidade e tratadas como cidadãos de segunda classe. Não tinham mais os privilégios e direitos de todas as pessoas livres deste mundo.

Ironicamente, isso resultou em outra guerra santa, desta vez contra pessoas oprimidas, devotas, com seus direitos negados, pessoas que partilham nosso compromisso com a paz. Tornou-se um absurdo sugerir que não existe um Ser Supremo, desde o incidente, quando morreram mais primogênitos do que as baixas na Terceira Guerra Mundial. Eu mesma perdi um filho amado, como aconteceu também com incontáveis pessoas.

Não se pode absolutamente dizer que o pêndulo voltou para a posição anterior, apesar da votação hoje e da decisão que estou prestes a anunciar. Todos continuam a ter plena liberdade para serem ateus. Confesso que eu não sou mais. Ninguém será obrigado a reconhecer nenhuma forma de es­piritualidade. Contudo, o seguinte foi aprovado como lei internacional, há poucos momentos:

"Nenhum cidadão da comunidade mundial será penalizado ou discrimi­nado de nenhuma forma em conseqüência da prática da religião de sua es­colha. A obrigação de assinar o juramento de lealdade está revogada. Além disso, todos os cidadãos encarcerados, indiciados, suspeitos ou obrigados a viver em refúgios subterrâneos, por causa de violações anteriores, são aqui e agora eximidos de toda culpa, recebendo anistia total."

"Este é o teor do documento. Podem ter certeza de que os aspectos técnicos e as condições relacionadas com esta decisão serão resolvidos o mais depressa possível. Essa parte refere-se a pessoas que violaram outras leis durante a prática de sua religião. No entanto, a decisão aqui anunciada entrará em vigor imediatamente, e será divulgada o mais depressa possível. Obrigada e bom dia."

As pessoas cercando a cama de Paul se abraçaram, exultantes.

— Há um Deus! — exclamou Jae.

Paul sacudiu a cabeça. Era difícil compreender.

— Acho que não preciso mais orar pelo dilúvio da justiça — comentou Jack Pass.

— Graças a Deus por isso.

Paul estendeu a mão para Brie e Connor, que se aproximaram, tímidos.

— Não somos mais bandidos, papai? — perguntou Connor.

— Não, não somos mais.

Paul sorriu diante do rosto franzido do filho. O menino daria um bom proscrito.

Ele sabia que ainda teria de enfrentar um processo pela violação do jura­mento que prestara ao ingressar na onp. E alguma coisa lhe dizia que aquela decisão, por mais gloriosa que fosse, não seria o fim da história.

Menos de meia hora depois, por causa da conversa alegre das pessoas no quarto, Paul não podia mais ouvir o que a televisão dizia. Mas, por cima do ombro de Jae, viu as cenas das manifestações que já ocorriam no mundo inteiro.

Algumas mostravam fiéis saindo de refúgios subterrâneos para as ruas, elevando as mãos para o céu. Outras, no entanto mostravam pessoas furio­sas, de todos os níveis de vida, protestando, gritando, sacudindo o punho para o céu. Ele só podia imaginar as ameaças e epítetos para as pessoas de fé recém-anistiadas.

Paul apertou a mão e abraçou os amigos e pessoas da família, tomando cuidado para não agravar o ferimento. Mal podia imaginar a diferença que a notícia faria na vida de todos os fiéis no mundo inteiro, a começar pela sua.

E, subitamente, sentiu uma profunda emoção. Entretanto, apesar das lá­grimas de alegria, Paul não pôde deixar de se perguntar por quanto tempo duraria a trégua. Quanto tempo antes que o mundo, mais uma vez, mergu­lhasse nas trevas da perseguição?

 

 

                                                                                                    Jerry Jenkins

 

 

 

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