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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O REFÚGIO / R. A. Salvatore
O REFÚGIO / R. A. Salvatore

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Sentado na ladeira nua, o elfo escuro observava ansioso enquanto a linha vermelha crescia sobre o horizonte oriental. Esta possivelmente era a centésima aurora, e conhecia bem o ardor que a luz abrazadora produziria em seus olhos lilás, olhos que só tinham conhecido as trevas da Antípoda Escura durante mais de quatro décadas.
De todas maneiras, o drow não se voltou quando o bordo superior do sol chamejante apareceu pelo horizonte. Aceitou a luz como seu purgatório, uma dor necessária se pretendia seguir o caminho eleito e converter-se em uma criatura do mundo da superfície. Uma fumaça cinza apareceu diante do negro rosto do drow. Sabia o que significava sem necessidade de olhar. O piwafwi, a capa mágica feita pelos elfos escuros que tantas vezes o tinha protegido dos olhares inimizades na Antípoda Escura, tinha sucumbido por fim à luz do dia. A magia da capa tinha começado a esfumar-se fazia semanas, e o tecido simplesmente se dissolvia. Apareceram grandes buracos no objeto, e o drow se abraçou o torso com força disposto a salvar o que pudesse. Em qualquer caso sabia que era inútil; a capa estava condenada a desaparecer neste mundo tão diferente do lugar onde a tinham criado. O drow a abraçou desesperado, possivelmente porque a via como uma analogia de seu próprio destino. elevou-se o sol, e brotaram as lágrimas dos olhos lilás entrecerrados do drow. Já não podia ver a fumaça; não distinguia mais que o brilho cegador daquela terrível bola de fogo.
Entretanto, não se moveu e olhou durante todo o amanhecer. Para sobreviver tinha que adaptar-se. Colocou a ponta do pé em uma greta da rocha e empurrou até sentir dor; isto o ajudou a desviar a atenção de seus olhos e diminuir o enjôo que ameaçava dominando. Pensou em quão gastas tinha as botas, e compreendeu que estas, também, não demorariam para converter-se em pó. O que aconteceria as cimitarras? Perderia as magníficas armas drows que o tinham salvado de tantas situações de risco? Qual seria o destino do Guenhwyvar, a pantera mágica que era sua companheira? Sem dar-se conta, o drow colocou uma mão na bolsa para tocar a maravilhosa estatueta, tão perfeita em todos os detalhes, que utilizava para invocar ao felino. Sua solidez lhe devolveu a confiança naquele momento de dúvida, mas se o talismã também tinha sido esculpido pelos elfos escuros, imbuída da magia tão particular de seus domínios, estaria condenada Guenhwyvar a desaparecer? "Converterei-me em uma criatura lastimosa", lamentou-se o drow em seu idioma nativo. perguntou-se, não pela primeira vez e por certo não a última, se tinha sido correta a decisão de abandonar a Antípoda Escura, de renunciar à maligna sociedade dos elfos escuros. Doía-lhe a cabeça, e o suor aumentava a ardência dos olhos. O sol prosseguiu a ascensão, e o drow não pôde agüentar mais. levantou-se e caminhou para a pequena cova que tinha adotado como casa, e uma vez mais apoiou a mão sobre a estatueta da pantera. Os farrapos do piwafwi lhe penduravam dos ombros, lhe oferecendo um mísero amparo contra o vento sorvete da montanha. Não havia ventos na Antípoda Escura exceto umas ligeiras correntes provocadas pelas fontes de magma, e nada gelado salvo o toque de um monstro não morto. O mundo da superfície, onde o drow levava já vários meses, desconcertava-o com tantas mudanças, com tantas variáveis, que às vezes lhe pareciam muitas. Drizzt Dou'Urdem não se renderia. A Antípoda Escura era o mundo de seu povo, de sua família, e na escuridão não encontraria descanso.
Fiel às exigências de seus princípios, tinha atacado ao Lloth, reina-a aranha, a deidade maligna que sua gente reverenciava por cima da própria vida. Os elfos escuros, a família do Drizzt, jamais lhe perdoariam a blasfêmia, e na Antípoda Escura não havia suficientes refúgios para escapar do castigo. Mesmo que acreditasse que o sol acabaria por abrasá-lo, como tinha queimado as botas e o precioso piwafwi, mesmo que se convertesse em um pouco tão etéreo como a fumaça cinza miserável pelo vento sorvete da montanha, manteria os princípios e a dignidade, os elementos que tinham dado sentido a sua vida. Drizzt arrancou as partes da capa e os jogou em um profundo precipício. O vento gelado lhe tocou a suarenta frente, mas o drow caminhou altivo e orgulhoso, a mandíbula firme e os olhos lilás bem abertos. Este era o destino eleito. Na ladeira de outra montanha, não muito longínqua, outra criatura observava o sol nascente. Também Ulgulu tinha abandonado seu lugar de nascimento, as pestilentos e fumegantes gretas que limitavam o plano da Gehenna, mas este monstro não tinha vindo por vontade própria. Era o destino do Ulgulu, sua penitência, crescer neste mundo até ter conseguido a força suficiente para retornar a sua casa. O ofício do Ulgulu era o assassinato; alimentava-se da força vital dos fracos mortais de seu redor. Agora, lhe faltando pouco para alcançar a maturidade, era enorme, forte e terrível. Cada morte lhe dava mais força.

 

 

 

 

 

 

PRIMEIRA PARTE
Amanhecer
Queimou-me os olhos e me produziu dores em todo o corpo. Destruiu meu piwafwi e as botas, roubou a magia da armadura, e debilitou minhas apreciadas cimitarras.
Entretanto, cada dia, sem falhar, eu estava ali, sentado em minha rocha, a cadeira do acusado, esperando o amanhecer. Cada dia se apresentava ante mim de uma forma
paradoxal. Não posso negar a dor, mas tampouco posso negar a beleza do espetáculo. As cores, imediatamente anteriores à aparição do sol, cativavam meu espírito
de uma forma que nenhum desenho das emanações de calor na Antípoda Escura podia igualar. Ao princípio, pensei que meu arroubo era resultado do inusitado da cena,
mas inclusive agora, muitos anos depois, sinto como aumentam os batimentos do coração de meu coração ante o brilho sutil que anuncia o amanhecer. Agora sei que
meu tempo ao sol --a penitência diária-- era algo mais que o mero desejo de me adaptar às coisas do mundo da superfície. O sol se converteu no símbolo da diferença
entre a Antípoda Escura e meu novo lar. A sociedade da que tinha fugido, um mundo de malignos pactos secretos e conspirações, não podia existir nos espaços abertos,
à luz do dia. Este sol, apesar de toda a angústia que me produziu fisicamente, chegou a representar meu rechaço a aquele outro mundo escuro. Aqueles raios de luz
reveladora reforçaram meus princípios da mesma maneira que debilitaram os objetos mágicos fabricados pelos drows. À luz do sol, o piwafwi, a capa protetora que
tinha derrotado os olhares dos olhos inimigos, o objeto de ladrões e assassinos, converteu-se em um montão de farrapos imprestáveis.
DRIZZT DOU'URDEM
1
Lições fedorentos
Drizzt se deslizou além dos arbustos que o ocultavam e cruzou a rocha Lisa e nua que levava até a cova que agora lhe servia de lar. Sabia que algo tinha passado
por ali fazia pouco, muito pouco. Não havia nenhum rastro à vista, mas o aroma era intenso. Guenhwyvar rondava pelas rochas, em cima da cova na ladeira. Ver a pantera
tranqüilizou um pouco ao drow. Drizzt tinha chegado a confiar sem reservas no Guenhwyvar e sabia que o felino se encarregaria de fazer sair de seu esconderijo a
qualquer inimigo emboscado. Drizzt desapareceu no oco escuro e sorriu para ouvir que a pantera descia para lhe vigiar as costas. Logo que transpassada a entrada,
Drizzt fez uma pausa detrás de uma pedra e deixou que os olhos se habituassem à penumbra interior. O sol ainda brilhava embora se afundava depressa no céu ocidental,
mas na cova estava muito mais escuro, o suficiente para permitir ao Drizzt utilizar a visão infravermelha. logo que completou o ajuste, o drow localizou ao intruso.
O brilho de uma fonte de calor --uma criatura vivente-- emanava por detrás de outra rocha quase no fundo da cova. Drizzt se relaxou. Guenhwyvar só estava a uns passos
mais atrás, e, à vista do tamanho da pedra, o intruso não podia ser uma besta muito grande. De todos os modos, Drizzt se tinha criado na Antípoda Escura, onde todas
as criaturas, com independência do tamanho, eram respeitadas e consideradas perigosas. Fez um sinal à pantera lhe indicando que mantivera a posição perto da entrada
e avançou sigilosamente para poder ver melhor ao intruso. Drizzt nunca tinha visto antes a este animal. parecia-se muito a um gato, mas a cabeça era bastante mais
pequena e bicuda. Seu peso não passava de uns poucos quilogramas. Este fato, unido à cauda peluda e a pele espessa, indicavam que devia ser um forrageiro mais que
um depredador. Agora revolvia um pacote de comida, ao parecer alheio à presença do drow. --Tranqüila, Guenhwyvar--sussurrou Drizzt, embainhando as cimitarras. Curioso,
deu um passo adiante, embora sem aproximar-se muito para não assustá-lo, iludido ante a possibilidade de ter outro companheiro. Se chegava a ganhá-la confiança de...
O pequeno animal se voltou bruscamente para ouvir a chamada do Drizzt, e suas curtas patas dianteiras o levaram rapidamente até a parede. --Tranqüilo --repetiu Drizzt
com voz suave, esta vez para o intruso. Não te farei mal. O elfo escuro avançou outro passo, e a criatura chiou e, lhe voltando as costas, arranhou o chão de pedra
com as patas traseiras. Drizzt quase pôs-se a rir, ao imaginar que o animal pretendia escalar pela parede traseira da cova. A pantera passou a seu lado de um salto,
e o súbito desespero do Guenhwyvar apagou a expressão de brincadeira do rosto do drow.
O animal elevou a cauda; Drizzt observou que a besta tinha umas raias brancas no lombo. Guenhwyvar gemeu e deu meia volta com a intenção de fugir, mas era muito
tarde... Uma hora depois, Drizzt e Guenhwyvar percorriam os atalhos mais baixos da montanha em busca de uma nova casa. Tinham resgatado tudo o que puderam, embora
não era muito. A pantera se mantinha bastante se separada do Drizzt. A proximidade fazia que o aroma fora insuportável. Drizzt o aceitou de bom humor, embora a fetidez
do próprio corpo fazia a lição muito fedorento para seu gosto. Certamente desconhecia o nome do pequeno animal, mas não esqueceria seu aspecto. A próxima vez que
encontrasse uma mofeta iria com mais cuidado. "E o que tem que os outros companheiros neste mundo estranho?", perguntou-se Drizzt. Não era a primeira vez que o drow
manifestava esta preocupação. Sabia muito pouco da superfície e ainda menos das criaturas que viviam ali. Tinha passado meses sem afastar-se da cova, com apenas
algumas excursões até as zonas mais baixas e povoadas. Em ditos percursos havia visto animais, pelo general ao longe e inclusive alguns humanos. Entretanto, ainda
não tinha tido a coragem de abandonar o esconderijo para saudar os vizinhos, temendo o rechaço e consciente de que não tinha outro lugar aonde ir. O ruído de uma
corrente guiou ao drow e à pantera até um arroio. Drizzt procurou o refúgio da sombra e começou a tirá-la armadura e a roupa, enquanto Guenhwyvar ia corrente abaixo
a pescar. O chapinho da pantera fez aparecer um sorriso nas severas feições do drow. Essa noite comeriam bem. Drizzt abriu o broche do cinturão e deixou as armas
junto à cota de malha. A verdade é que se sentia vulnerável sem a armadura e as cimitarras --nunca as teria deixado tão longe na Antípoda Escura-- mas tinham acontecido
muitos meses sem que precisasse as utilizar. Olhou as cimitarras e reviveu a lembrança agridoce da última vez que as tinha usado. Naquela ocasião se bateu contra
Zaknafein, seu pai, mentor e querido amigo. Só Drizzt tinha sobrevivido ao duelo. O legendário professor de armas tinha desaparecido para sempre, mas o triunfo naquela
batalha o tinham repartido entre os dois opositores, porque não tinha sido Zaknafein o que o tinha atacado nas pontes da caverna cheia de ácido, a não ser seu espectro
controlado pela maligna mãe do Drizzt, a matrona Malícia. Ela tinha querido vingar-se da blasfêmia do filho ao Lloth e de seu rechaço à sociedade drow em seu conjunto.
Drizzt tinha passado mais de trinta anos no Menzoberranzan mas nunca tinha aceito os modos perversos e cruéis que eram a norma na cidade drow. Tinha sido uma fonte
de escárnio para a casa Dou'Urdem apesar de sua considerável habilidade com as armas. A fuga da cidade para viver exilado nas regiões selvagens da Antípoda Escura,
significou que sua mãe, grande sacerdotisa da rainha arranha, perdesse o favor da deusa. Em conseqüência, a matrona Malícia Dou'Urdem tinha ressuscitado o espírito
do Zaknafein, o professor de armas que ela tinha sacrificado ao Lloth, e enviado à coisa não morta atrás do filho. Mas Malícia se equivocou, porque ainda ficava
bastante da alma do Zak no corpo para negar-se a atacar ao Drizzt. No instante em que Zak tinha conseguido livrar do controle de Malícia, tinha solto um grito de
triunfo e saltado ao lago de ácido. "Meu pai", sussurrou Drizzt, recuperando o ânimo com estas singelas palavras. Ele triunfaria ali onde Zaknafein tinha fracassado;
Drizzt tinha rechaçado a maligna vida dos drows enquanto que Zak tinha permanecido sujeito durante séculos, como um simples peão nos jogos de poder da matrona Malícia.
No fracasso do Zaknafein e em sua morte, o jovem Drizzt tinha encontrado força; da vitória do Zak
na caverna do ácido, tinha extraído determinação. Drizzt não tinha feito caso do montão de mentiras que os velhos professores da Academia do Menzoberranzan tinham
tentado lhe ensinar, e tinha saído à superfície para começar uma nova vida. Drizzt se estremeceu quando entrou na água geada. Na Antípoda Escura só tinha conhecido
temperaturas quase sempre constantes e uma escuridão invariável. Aqui, em troca, o mundo o surpreendia a cada novo passo. Já tinha observado que os períodos de luz
e escuridão não eram constantes; o sol ficava mais cedo cada dia e a temperatura --que ao parecer trocava com as horas-- descia desde fazia umas semanas. Inclusive
dentro destes períodos de luz e escuridão havia irregularidades. Algumas noites aparecia uma esfera chapeada, e havia dias nos que havia um manto cinza em lugar
de uma cúpula celeste por cima de sua cabeça. Apesar de tudo, Drizzt não se arrependia da decisão de vir a este mundo desconhecido. Ao olhar as armas e a armadura,
colocadas à sombra a uma dúzia de passados do lugar onde se banhava, o jovem teve que admitir que a superfície, em que pese a todas as raridades, era muito mais
pacífica que qualquer lugar da Antípoda Escura. Agora estava muito tranqüilo embora se encontrava na espessura. Tinha passado quatro meses na superfície e sempre
tinha estado sozinho exceto quando tinha invocado a sua companheira mágica. Mas agora se sentia vulnerável, nu salvo pelas calças quebradas, com os olhos avermelhados
pelas salpicaduras da mofeta, o sentido do olfato quebrado pelo fedor de seu próprio corpo, e seu fino ouvido ensurdecido pelo estrépito da água. --Vá aspecto que
devo ter --murmurou Drizzt, passando com força os magros dedos entre o matagal de sua espessa juba branca. Quando olhou outra vez seus pertences, desapareceu qualquer
outra preocupação. Cinco figuras encurvadas removiam sua equipe, e sem dúvida não lhes interessava para nada o aspecto desarrumado do elfo escuro. Drizzt observou
a pele cinzenta e os focinhos escuros dos humanoides de dois metros de estatura e rosto canino, mas sobre tudo se fixou nas lanças e espadas. Conhecia esta classe
de monstros, porque tinha visto criaturas similares que serviam como escravos no Menzoberranzan. Não obstante, nesta situação os gnolls pareciam diferentes, mais
perigosos de como os recordava. Por um momento considerou a possibilidade de correr em busca das cimitarras, mas descartou a idéia, consciente de que uma lança podia
detê-lo antes de conseguir seu propósito. O maior da banda, um gigante de quase dois metros e médio e cabelo vermelho, olhou ao Drizzt durante um bom momento, observou
a equipe, e voltou a olhá-lo. --No que pensa? --sussurrou Drizzt para si. Sabia muito pouco dos gnolls. Na Academia do Menzoberranzan lhe tinham ensinado que pertenciam
a uma raça goblinoide, maligna, imprevisível e muito perigosa. O mesmo lhe haviam dito dos elfos da superfície e dos humanos, e agora acabava de cair na conta de
que tinham incluído a quase todas as raças exceto a drow. Drizzt quase pôs-se a rir a gargalhadas a pesar do apuro em que se via. Por uma dessas ironias do destino,
a raça que mais se merecia o qualificativo de maligna era a drow. Os gnolls não fizeram nenhum outro movimento nem pronunciaram palavra alguma. Drizzt entendeu sua
inquietação ao ver um elfo escuro, e sabia que devia aproveitar-se desse medo natural se queria salvar a vida. O jovem apelou às habilidades mágicas inatas e com
um movimento de sua negra mão envolveu aos cinco gnolls em uma auréola de fogo fátuo. Uma das bestas se fincou de joelhos, tal como tinha esperado Drizzt, mas os
outros se detiveram um gesto de sua líder mais veterano. Olharam a seu redor inquietos, ao parecer preocupados com a conveniência de manter este encontro. O cacique
gnoll conhecia o fogo fátuo, de um combate com um desafortunado --e agora
morto-- explorador, e sabia que era inofensivo. Drizzt esticou os músculos e tratou de adivinhar o próximo movimento. O cacique gnoll olhou aos companheiros, como
se queria determinar até onde os rodeava o fogo. A julgar pela perfeição do feitiço, que estava no arroio não era um vulgar camponês drow; isto ao menos era o que
Drizzt esperava que pensasse. O elfo escuro se relaxou um pouco quando o líder baixou a lança e indicou a outros que o imitassem. Então o gnoll ladrou uma série
de palavras que soaram a gíria nos ouvidos do drow. Ao ver a óbvia confusão do Drizzt, o gnoll gritou algo na língua gutural dos goblins. Drizzt entendia a língua
goblin, mas o dialeto do gnoll era tão estranho que só alcançou a entender umas poucas palavras, "amigo" e "líder" entre elas. Com muita cautela, Drizzt avançou
para a borda. Os gnolls se apartaram, abrindo um atalho até seus pertences. Drizzt deu outro passo, e se tranqüilizou ao advertir a silhueta felina esconde entre
os arbustos a muito pouca distância. Não tinha mais que dar a ordem, e Guenhwyvar saltaria sobre a banda de gnolls. --Você e eu caminhar juntos? --perguntou-lhe
à líder gnoll, na língua goblin e com um acento que pretendia simular o dialeto da criatura. O gnoll replicou com um grito apressado, e a única coisa que Drizzt
acreditou entender foi a última palavra da pergunta: "... aliado?". O drow assentiu lentamente, crédulo em que tinha captado corretamente o significado. --Aliado!
--ladrou o gnoll. Todos outros sorriram e riram aliviados e se aplaudiram as costas. Drizzt chegou junto à equipe, e sem perder um segundo se grampeou o cinturão
com as cimitarras. Ao ver os gnolls distraídos, o drow olhou ao Guenhwyvar e moveu a cabeça para lhe indicar a espessura atalho acima. Rápida e silenciosamente,
a pantera se moveu à nova posição. Não havia nenhuma necessidade de revelar todos os segredos, pensou Drizzt, ao menos até compreender a fundo as intenções dos novos
companheiros. Drizzt caminhou com os gnolls pelos sinuosos atalhos dos contrafortes da montanha. As criaturas se mantinham a uma distância prudente, possivelmente
por respeito ao Drizzt e à reputação de sua raça ou por alguma outra razão que desconhecia. Embora acreditava que o motivo era o fedor, que o banho só tinha conseguido
diminuir um pouco. O líder gnoll não deixava de lhe dizer coisas, e acentuava as entusiastas palavras com uma piscada ardilosa ou um súbito esfregar das mãos peludas.
Drizzt não entendia nada do que dizia a criatura, embora pela forma de lamber-se supunha que o guiava a alguma classe de festa. O jovem adivinhou muito em breve
o destino da banda, porque freqüentemente tinha observado das alturas as luzes da pequena comunidade humana no vale. Drizzt não tinha nenhuma prova referente a como
eram as relações entre os gnolls e os camponeses humanos, mas supunha que não deviam ser amistosas. Quando se aproximaram da aldeia, adotaram um desdobramento defensivo,
e procuraram a proteção dos arbustos e as sombras em seu avanço. Já era quase de noite. O grupo rodeou a parte central da aldeia para aproximar-se de uma granja
isolada no oeste. O cacique gnoll sussurrou uma frase ao Drizzt, muito devagar para que o drow pudesse compreender cada palavra. --Uma família --disse. Três homens,
duas mulheres. --Uma jovem --acrescentou outro ansioso. O cacique gnoll o sossegou com um latido. --E três machos jovens --concluiu. Drizzt pensou que por fim compreendia
o propósito da viagem, e a expressão de surpresa que apareceu em seu rosto impulsionou ao gnoll a tirar o de dúvidas.
--Inimigos --declarou o líder. Drizzt, que o desconhecia quase tudo das duas raças, encontrava-se em um dilema. Os gnolls eram assaltantes --isto resultava evidente--
e pretendiam atacar a granja assim que desaparecesse a última luz do dia. O jovem não tinha intenção de somar-se à batalha sem conhecer a natureza do conflito. --Inimigos?
--perguntou. O chefe gnoll franziu o sobrecenho com evidente consternação. Soltou uma frase em seu jargão em que Drizzt acreditou ouvir "humano... débil... escravo".
Todos os gnolls notaram a súbita inquietação do elfo escuro, e começaram a brincar com as armas e a olhá-los uns aos outros, nervosos. --Três homens --disse Drizzt.
O cacique agitou furioso a lança. --Matar velho! Caçar dois! --exclamou. --Mulheres? O sorriso maligno que apareceu no rosto do gnoll respondeu à pergunta com toda
claridade, e Drizzt começou a compreender qual seria seu bando na briga. --O que tem que os meninos? Olhou à líder gnoll aos olhos e recalcou as palavras. Não podia
haver mal-entendidos. A última pergunta seria definitiva. Drizzt podia aceitar a selvageria típica entre inimigos mortais, mas era incapaz de esquecer a única vez
que tinha participado de uma incursão. Aquele dia tinha salvado a uma menina elfa, tinha-a oculto debaixo do corpo da mãe morta para liberar a da fúria de seus companheiros
drows. De todas as maldades que Drizzt tinha presenciado, o assassinato de meninos era a mais terrível. O gnoll cravou a ponta da lança no chão, e seu canino rosto
se contorsionó em um anseia assassina. --Não conte comigo --disse Drizzt simplesmente, os olhos lilás acesos. Os gnolls advertiram que, como por arte de magia, agora
empunhava as cimitarras. Uma vez mais o cacique gnoll franziu o focinho, esta vez confundido. Tentou levantar a lança para defender-se, sem saber o que faria este
estranho drow, mas foi muito tarde. O ataque do Drizzt foi como um raio. antes de que a lança do gnoll se elevasse, o drow avançou com as cimitarras por diante.
Os outros quatro gnolls observaram atônitos como os aços do jovem golpeavam duas vezes, e destroçavam a garganta do poderoso chefe. O gigante caiu de costas em silêncio,
tratando inutilmente de levá-las mãos ao pescoço. Um gnoll situado em um dos flancos foi o primeiro em reagir; levantou a lança e carregou contra Drizzt. O ágil
drow desviou sem problemas o ataque direto mas teve a precaução de não frear o impulso do gnoll. Quando a enorme criatura passou a seu lado, Drizzt a rodeou e descarregou
um chute contra os tornozelos. Perdido o equilíbrio, o gnoll se cambaleou, e a lança foi cravar se no peito de um dos companheiros. O gnoll tironeó da lança, mas
estava muito funda, com a dentada cabeça sujeita à coluna vertebral da vítima. Ao gnoll não lhe preocupava o companheiro moribundo, só queria recuperar a arma. Atirou,
sacudiu, retorceu, amaldiçoou e cuspiu o torturado rosto do ferido, até que uma cimitarra lhe fendeu o crânio. Outro dos gnolls, ao ver o drow distraído, decidiu
que era melhor atacar a distância e elevou a lança para lançá-la. Subiu o braço bem alto, mas antes de que pudesse lançá-la, Guenhwyvar caiu sobre ele; o gnoll
e a pantera rodaram pelo chão. A criatura descarregou os punhos contra os musculosos flancos do animal, mas de nada lhe serviram contra as garras da pantera. Na
fração de segundo que Drizzt demorou para desembaraçar-se dos três gnolls mortos a seus pés, o quarto integrante da banda
jazia cadáver entre as patas do felino. O quinto tinha fugido. Guenhwyvar se livrou do abraço do gnoll morto. Os grácis músculos da pantera tremiam ansiosos enquanto
esperava a ordem. Drizzt observou o açougue a seu redor, o sangue nas cimitarras e as expressões de horror nos rostos dos mortos. Queria acabar com tudo isto, porque
sabia que se encontrava em uma situação que ultrapassava sua experiência; havia-se interposto no caminho de duas raças que lhe eram virtualmente desconhecidas. Depois
de pensá-lo um momento, quão único via claro era a vontade do cacique gnoll de assassinar aos meninos humanos. Havia muito em jogo. voltou-se para o Guenhwyvar.
--Vê atrás dele --disse com tom decidido. O gnoll correu pelo atalho, o olhar enlouquecido enquanto imaginava formas escuras detrás de cada árvore ou pedra. --Drow!
--repetia uma e outra vez, como se a palavra fosse um incentivo para a fuga. Drow! Drow! Quase sem fôlego, o gnoll chegou a um bosquecillo entre duas paredes de
rocha cortadas a pico. Tropeçou com um tronco cansado, escorregou e machucou as costelas contra as pedras afiadas cobertas de musgo, embora os machucados não atrasariam
à aterrorizada criatura. Sabia que o perseguiam, notava uma presença que se deslizava entre as sombras justo fora de seu campo visual. Quando se aproximou do final
da arvoredo, em meio da escuridão, o gnoll descobriu um par de olhos amarelos resplandecentes que o olhavam. O gnoll tinha visto o companheiro abatido pela pantera
e não lhe resultou difícil saber o que era aquilo que lhe fechava o passo. Os gnolls eram monstros covardes, mas podiam lutar com uma tenacidade surpreendente quando
os encurralavam. O mesmo ocorreu agora. Ao compreender que não tinha escapatória --certamente não podia retroceder em direção ao elfo escuro--, o gnoll grunhiu e
lançou a pesada lança. O gnoll ouviu algo que se arrastava, um golpe e um chiado de dor quando a lança deu no branco. Os olhos amarelos desapareceram por um instante,
e depois um vulto se escorreu para uma árvore. movia-se muito perto do chão, quase como um gato, mas o gnoll advertiu no ato que não era a pantera. Quando o animal
ferido se encarapitou na árvore e olhou ao agressor, o gnoll o reconheceu. --Mapache! --exclamou o gnoll, e se pôs-se a rir. Escapava de um mapache! O gnoll sacudiu
a cabeça e descarregou todo seu regozijo em um estrondoso bufo. Ver o mapache lhe tinha proporcionado uma certa tranqüilidade, embora não podia esquecer o ocorrido.
Agora tinha que chegar à toca e informar ao Ulgulu, seu gigantesco amo goblin, seu costure-dios, da presença do drow. Deu um passo para recuperar a lança, e se deteve
bruscamente ao pressentir um movimento detrás. Pouco a pouco, voltou a cabeça. Podia ver seu ombro e a pedra coberta de musgo. O gnoll permaneceu imóvel. Não se
movia nada a suas costas, não havia nenhum som no bosquecillo, mas a besta sabia que ali havia algo. O goblinoide ofegava ao tempo que abria e fechava as mãos. de
repente deu meia volta e rugiu. O grito de raiva se converteu em outro de terror quando a pantera saltou sobre ele de um ramo baixo. O impacto o tombou no chão,
mas não era uma criatura adoentado. Sem fazer caso das terríveis feridas que lhe produziam as garras, o gnoll sujeitou a cabeça do Guenhwyvar em um intento desesperado
por impedir que as fauces mortais se fechassem sobre a garganta. A luta do gnoll se prolongou durante quase um minuto; os braços lhe tremiam pela pressão dos poderosos
músculos do pescoço da pantera. Por fim a cabeça se
aproximou, e Guenhwyvar alcançou o objetivo. Os grandes dentes se afundaram na garganta do gnoll e cortaram a respiração da besta condenada. O gnoll se retorceu
enlouquecido e em seus esforços conseguiu ficar em cima da pantera. Guenhwyvar o deixou fazer, imperturbável, sem afrouxar a pressão de suas mandíbulas. Ao cabo
de uns poucos minutos, cessaram os movimentos.
2
Questões de consciência
Drizzt deixou que sua visão passasse ao espectro infravermelho, a visão noturna que lhe permitia ver as variações de calor com tanta claridade como via os objetos
à luz do dia. Para seus olhos, as cimitarras resplandeciam com o calor do sangue fresca, e os destroçados cadáveres dos gnolls esparramavam seu calor no ar. O jovem
tentou olhar em outra direção, observar o atalho pelo que tinha partido Guenhwyvar à caça do quinto gnoll, mas cada vez, o olhar voltava para os gnolls mortos e
ao sangue nas armas. --O que tenho feito? --perguntou-se Drizzt em voz alta. Realmente, não sabia. Os gnolls tinham falado de matar meninos, um pensamento que despertava
a ira em seu interior, mas o que sabia ele do conflito entre os gnolls e os humanos da aldeia? Talvez os humanos, inclusive os meninos humanos, eram monstros. Possivelmente
tinham atacado o povoado gnoll e assassinado sem piedade. Talvez os gnolls pretendiam contra-atacar porque não tinham outra escolha, porque tinham que defender-se.
Drizzt apartou o olhar da horrível cena e de repente pôs-se a correr em busca do Guenhwyvar, confiando em poder alcançar à pantera antes de que matasse ao quinto
gnoll. Se podia encontrar à criatura e capturá-la, possivelmente conseguisse algumas respostas. moveu-se com passo ágil e elástico, sem fazer apenas ruído enquanto
cruzava os matagais com o passar do atalho. Podia ver sem problemas os rastros do gnoll e também as do Guenhwyvar, que lhe seguia o rastro. Quando por fim chegou
ao bosquecillo ainda esperava ter êxito. O coração lhe deu um tombo ao ver a pantera arremesso junto ao último gnoll. Guenhwyvar olhou ao Drizzt com curiosidade
enquanto o jovem se aproximava evidentemente nervoso. --O que temos feito, Guenhwyvar? --sussurrou Drizzt. A pantera inclinou a cabeça como se não lhe tivesse entendido.
Quem sou eu para julgar quem deve morrer? --acrescentou, mais para si mesmo que para o felino. separou-se do Guenhwyvar e do gnoll morto e se aproximou de um arbusto
frondoso onde poder limpar o sangue das cimitarras. Os gnolls não me atacaram quando tiveram a sua mercê no arroio. E lhes paguei derramando seu sangue. Drizzt
se voltou para o Guenhwyvar enquanto fazia esta proclama, como se esperasse e até desejasse que a pantera lhe reprovasse sua conduta, que o condenasse para assim
justificar sua culpa. Guenhwyvar não se moveu antes e tampouco o fez agora. Os grandes olhos da pantera, com um brilho amarelo esverdeado na escuridão, não brocaram
ao Drizzt, não o acusaram pelas ações cometidas. Drizzt começou a protestar, em um desejo de divertir-se na culpa, mas a tranqüila aceitação do Guenhwyvar se manteve
incólume. Na época em que tinham vivido sozinhos nas profundidades da Antípoda Escura, quando Drizzt tinha cedido aos impulsos selvagens que o levavam a matar, Guenhwyvar
o tinha desobedecido em
algumas ocasione, inclusive tinha chegado a partir ao plano astral por própria vontade. Agora, em troca, não dava nenhum sinal de sentir-se descontente. Guenhwyvar
se levantou, sacudiu o corpo para limpar a sedosa pele negra de pó e lâminas e, aproximando-se do Drizzt, esfregou-o com o focinho. Pouco a pouco, Drizzt se relaxou.
Limpou as cimitarras novamente, esta vez na erva espessa, e as guardou nas bainhas; depois pôs uma mão sobre a enorme cabeça do Guenhwyvar como uma expressão de
afeto.
--Eles mesmos se destacaram como malignos --murmurou o drow como um consolo. Suas intenções forçaram minha intervenção. A seu tom faltava convicção, mas no momento,
Drizzt não podia fazer outra coisa que acreditá-lo. Respirou com força para tranqüilizar-se e procurou em seu interior a força que necessitaria. Ao compreender que
Guenhwyvar levava a seu lado muito tempo e que precisava retornar ao plano astral, colocou a mão na bolsa pendurada do cinturão. antes de que Drizzt pudesse tirar
a estatueta de ônix da bolsa, a pantera levantou uma pata e lhe apartou a mão. Drizzt olhou ao Guenhwyvar surpreso, e o felino esteve a ponto de derrubá-lo ao recostar-se
contra ele. --Minha leal amiga! --exclamou Drizzt, ao ver que a pantera desejava permanecer a seu lado a pesar do esgotamento. Tirou a mão da bolsa e, joelho em
terra,
abraçou ao Guenhwyvar. Continuando, afastaram-se do bosquecillo. Drizzt não dormiu aquela noite, mas sim se dedicou a olhar as estrelas e a pensar. Guenhwyvar percebeu
sua angústia e não se apartou enquanto saía e ficava a lua, e, quando Drizzt se levantou para ir saudar o novo dia, Guenhwyvar o acompanhou. Encontraram uma crista
nos contrafortes e se sentaram a contemplar o espetáculo. Mais abaixo se apagavam as últimas luzes nas janelas da aldeia agrícola. O horizonte se tingiu de rosa
e depois de vermelho, mas o jovem se distraía com outra coisa. Seu olhar procurava as casas; sua mente tentava descobrir a atividade habitual desta comunidade desconhecida
e ao mesmo tempo encontrar uma justificação para os episódios do dia anterior. Sabia que os humanos eram camponeses, e também trabalhadores diligentes porque muitos
deles já se encontravam nos campos. Embora isto parecia prometedor, Drizzt não podia fazer hipóteses sobre o comportamento geral da raça humana. Então, à medida
que a luz do dia iluminava progressivamente as construções de madeira da aldeia e os grandes campos cultivados, Drizzt tomou uma decisão. --Tenho que saber mais,
Guenhwyvar --disse com voz suave. Se eu..., se nós queremos permanecer neste mundo, teremos que aprender como são nossos vizinhos. Drizzt assentiu ao refletir
sobre suas palavras. Já tinha comprovado, dolorosamente, que não podia ser um observador neutro da atividade do mundo da superfície. Freqüentemente a consciência
o impulsionava à ação, com uma força que não podia resistir. Entretanto, com um conhecimento tão escasso das raças que povoavam esta região, podia equivocar-se com
muita facilidade. Podia fazer mal a algum inocente, em aberta contradição com os princípios que aspirava a sustentar. O drow se protegeu os olhos da luz matutina
e contemplou a aldeia longínqua como se procurasse uma resposta. --Irei ali --comunicou-lhe à pantera. Irei ali, e olharei para poder aprender. Guenhwyvar permaneceu
imóvel escutando ao drow. Se a pantera aprovava ou não, ou sequer se compreendia as intenções do Drizzt, era algo que o jovem não podia saber. Mas esta vez Guenhwyvar
não fez nenhum movimento de protesto quando Drizzt
tirou a estatueta de ônix. Ao cabo de uns segundos, a grande pantera corria pelo túnel que conduzia a sua casa no plano astral, e Drizzt caminhava em direção à
aldeia humana em busca de respostas. Só fez uma pausa, junto ao cadáver do gnoll, para recolher a capa da criatura. Envergonhava-o despojar ao morto, mas o frio
da noite lhe recordou que a perda do piwafwi podia ter conseqüências sérias. Até este momento, o conhecimento que tinha Drizzt dos humanos e sua sociedade era muito
limitado. Nas profundidades da Antípoda Escura, os elfos escuros tinham pouca comunicação com os habitantes da superfície e sentiam pouco interesse por eles. A
única vez que Drizzt tinha escutado falar dos humanos no Menzoberranzan tinha sido na Academia, durante os seis meses passados no Sorcere, a escola de feiticeiros.
Os professores drows tinham advertido aos estudantes contra o emprego da magia "como o fazem os humanos", dando a entender um perigoso descuido por parte da outra
raça. "Os feiticeiros humanos --haviam dito os professores-- têm tantas ambições como os magos drows, mas enquanto que um drow pode empregar cinco séculos em conseguir
seus objetivos, um humano só dispõe de umas poucas décadas." Drizzt não tinha esquecido as implicações daquela afirmação e as tinha muito presentes nos últimos
meses, quando vigiava a aldeia dos homens quase diariamente. Se todos os humanos, não só os feiticeiros, eram tão ambiciosos como a maioria dos drows --fanáticos
capazes de gastar meio milênio em conseguir suas metas--, estariam consumidos por uma obstinação vizinha na neurastenia? Em qualquer caso, Drizzt não perdia a esperança
de que as histórias que tinha escutado sobre os humanos na Academia só fossem outra das tantas mentiras habituais que cercavam a sua sociedade em uma rede de intrigas
e paranóias. Possivelmente os humanos fixavam as metas a um nível mais razoável e encontravam alegria e satisfação nos pequenos prazeres de cada dia de sua curta
existência. Drizzt só tinha conhecido a um humano durante as viagens pela Antípoda Escura. Aquele homem, um mago, comportou-se de uma forma irracional, imprevisível,
e por último perigosa. O mago tinha transformado a um pek, uma inofensiva e pequena criatura humanoide, em um monstro horrível. Quando Drizzt e seus companheiros
tinham ido à torre do mago para emendar o feitiço, tinham sido recebidos com um raio mortífero. Ao final, o humano tinha morrido e o amigo do Drizzt, Clak, o pek,
não se tinha podido liberar do tortura. A experiência tinha deixado ao Drizzt com um gosto amargo. O comportamento do homem parecia confirmar as advertências dos
professores drows. portanto, Drizzt avançava agora cauteloso para o estabelecimento humano, pesaroso pelo crescente temor de que talvez tinha cometido um engano
ao matar aos gnolls. Drizzt escolheu observar a mesma granja isolada na parte ocidental da aldeia que os gnolls pensavam atacar. tratava-se de um edifício alargado
de uma só planta com uma porta e várias janelas com postigones. No fronte havia um alpendre. um pouco mais à frente estava o celeiro de dois novelo, com portas
dobre do tamanho suficiente para permitir o passo de uma carreta. Havia uns quantos cercados de diferentes tamanhos e materiais, alguns com galinhas e porcos, outro
com uma cabra e vários com fileiras de novelo que Drizzt não conhecia. O pátio limitava com os campos de cultivo por três lados, mas a parte traseira da casa dava
à ladeira da montanha coberta de matagais, árvores e rochas. Drizzt escolheu como posto de observação um pinheiro próximo a uma das esquinas posteriores do edifício,
de onde podia ver a maior parte do pátio, e se instalou oculto pelos ramos baixas da árvore. Os três homens adultos da casa --Drizzt supôs pelo parecido que eram
três gerações-- trabalhavam nos campos, muito longe das árvores para poder distinguir muitos detalhes. Mais perto da casa, uma menina quase adolescente e três
meninos menores se ocupavam de seus misteres, cuidavam as galinhas e os porcos e arrancavam ervas do horta. Trabalhavam por separado e quase sem conversar, e Drizzt
não averiguou grande coisa das relações familiares. Quando uma mulher robusta com o mesmo cabelo de cor trigo que os meninos apareceu no alpendre e tocou um sino
enorme, os pequenos trabalhadores deram rédea solta a seu espírito. Com fortes gritos e alaridos, os três meninos correram para a casa, atrasando-se só o necessário
para atirar verduras podres contra a irmã maior. Em um primeiro momento, Drizzt acreditou que o bombardeio era o prelúdio de um conflito mais sério; mas ao ver que
a moça lhes correspondia da mesma maneira, compreendeu que só se tratava de um jogo. Ao pouco momento, o mais jovem dos homens do campo, provavelmente o irmão maior,
chegou ao pátio à carreira, dando gritos e esgrimindo uma enxada de ferro. A moça chiou entusiasmada com a chegada deste novo aliado e os três meninos correram para
o alpendre. O jovem foi mais veloz; alcançou ao mais pequeno dos três, elevou-o em braços e o jogou de cabeça ao abrevadero dos porcos. A tudo isto, a mulher com
o sino sacudia a cabeça e soltava uma enxurrada interminável de protestos. Uma mulher anciã, de cabelos grisalhos e magra como uma estaca, saiu da casa e, colocando-se
junto à primeira, sacudiu uma colher de madeira com gesto ameaçador. Ao parecer satisfeito, o jovem rodeou com um braço os ombros da moça e seguiram aos dois meninos
ao interior da moradia. O terceiro menino saiu da água lamacenta e se dispôs a segui-los, mas a colher de madeira o manteve a raia. Drizzt não entendia nenhuma só
palavra do que diziam, embora supunha que as mulheres maiores não estavam dispostas a permitir a entrada do mais pequeno até que se secasse. O pequeno bagunceiro
murmurou algo contra a anciã da colher quando lhe voltou as costas e entrou na casa. Os outros dois homens, um com uma espessa barba cinza e o outro barbeado, chegaram
do campo e se aproximaram do menino por detrás enquanto protestava. Uma vez mais, o menino voou pelos ares e aterrissou estrepitosamente no abrevadero. Contentes
com seu proceder, os homens entraram na casa, onde os receberam com gritos de alegria. O menino empapado soltou um gemido e jogou um pouco de água aos focinhos de
um porco que se aproximou de investigar. Drizzt o observou tudo assombrado. Não tinha visto nada concludente, mas o comportamento brincalhão da família e a resignação
do perdedor do jogo lhe deram ânimos. Pressentia um espírito de unidade no grupo, com todos os membros trabalhando por uma meta comum. Se esta granja era um reflexo
de toda a vila, então o lugar sem dúvida se pareceria com o Blingdenstone, a cidade comunal dos pequenos das profundidades, e não ao Menzoberranzan. A tarde transcorreu
quase da mesma maneira que a manhã, com uma mescla de trabalho e jogo em toda a granja. A família se retirou cedo, e apagaram os abajures pouco depois do crepúsculo.
Por sua parte, Drizzt entrou um pouco mais na espessura da ladeira para refletir sobre o que tinha visto. Ainda não podia estar seguro de nada, mas aquela noite
dormiu mais tranqüilo, esquecidas por completo as dúvidas referentes à morte dos gnolls. Durante três dias o drow permaneceu nas sombras detrás da granja, contemplando
os trabalhos e os jogos da família. A intimidade do grupo se fazia cada vez mais evidente, e nas ocasiões em que se produzia uma briga a sério entre os meninos,
o adulto mais próximo se apressava a separá-los e atuava de mediador para estabelecer a paz. Invariavelmente, ao cabo de um momento os inimigos voltavam a jogar
juntos. Drizzt já não tinha dúvidas. "Cuidado com minhas armas, bandidos", sussurrou-lhes uma
noite às silenciosas montanhas. O jovem drow renegado tinha decidido que se qualquer gnoll ou goblin --ou uma criatura de alguma outra raça-- tentava atacar a esta
família ou a suas propriedades, teriam que as ver-se primeiro com as cimitarras do Drizzt Dou'Urdem. Drizzt compreendia o risco que corria observando à família.
Se os camponeses advertiam sua presença --coisa possível--, sem dúvida se espantariam. Entretanto, neste momento de sua vida, Drizzt estava disposto a aceitá-lo,
e inclusive uma parte dele desejava que o descobrissem. Muito cedo pela manhã do quarto dia, antes do amanhecer, Drizzt começou a ronda diária pelas colinas e bosques
que rodeavam a granja solitária. À hora que retornou ao posto habitual, a granja estava em plena atividade. O jovem se instalou comodamente em um leito de musgo
e contemplou o céu espaçoso. menos de uma hora depois, uma figura solitária saiu sigilosa da casa e caminhou em direção ao drow. tratava-se do menino mais Pequeno,
o mucoso loiro que parecia passar tanto tempo no abrevadero, geralmente contra sua vontade. Drizzt se ocultou atrás do tronco de uma árvore próxima, sem saber quais
eram as intenções do menino. Compreendeu quase imediatamente que não o tinha visto, porque o menino entrou na espessura, disse alguma coisa em direção à granja por
cima do ombro e subiu pela ladeira, assobiando alegremente. Drizzt adivinhou então que o menino tinha decidido evitar as obrigações, e quase o aplaudiu por sua independência.
Em troca lhe pareceu pouco prudente que se afastasse da casa em um terreno tão perigoso. O menino não podia ter mais de dez anos; era magro e de aspecto delicado,
com grandes e inocentes olhos azuis que espiavam por debaixo dos cachos loiros. O drow deixou acontecer uns segundos para que o menino lhe tirasse vantagem e ver
se alguém o seguia, e depois foi atrás dele deixando-se guiar pelo assobio. O menino continuou a marcha ladeira acima sem desviar-se, e o elfo escuro foi atrás dele
um centenar de passos mais atrás, disposto a salvar o de qualquer perigo. Nos túneis da Antípoda Escura, Drizzt teria podido aproximar-se do pequeno --ou a um goblin
ou virtualmente a qualquer--e lhe aplaudir o traseiro antes de ser descoberto. Mas depois de só meia hora de perseguição, os movimentos e as mudanças imprevistos
na velocidade de marcha, unido ao feito de que já não assobiava, alertaram ao Drizzt de que o menino sabia que o seguiam. Preocupado pela possibilidade de que o
menino tivesse advertido a presença de um terceiro, Drizzt chamou o Guenhwyvar com a estatueta de ônix e, depois de enviá-la em uma manobra de rodeio, reatou a marcha
com cautela. Um momento mais tarde, quando escutou o grito angustiado do menino, o drow desembainhou as cimitarras e se esqueceu de qualquer precaução. Não podia
entender
o que dizia mas o tom de desespero era inconfundível. --Guenhwyvar! --chamou o drow, para que a pantera voltasse para seu lado. Como não podia esperá-la, prosseguiu
a carreira. O atalho subia por uma costa levantada, saía de improviso das árvores e acabava no bordo de um ravina de uns seis metros de largura. Um tronco servia
de ponte, e, pendurado quase no outro extremo, encontrava-se o menino. Seus olhos se abriram grandemente ao ver aparecer ao elfo escuro, cimitarras em mão. Gaguejou
umas palavras que Drizzt não entendeu. Um sentimento de culpa invadiu ao Drizzt quando viu o menino em perigo: o pobre se achava em apuros por causa de sua perseguição.
O ravina não era profundo --não mais que seu largo--, mas a queda acabava em rochas bicudas e sarças. Em um primeiro instante, Drizzt vacilou, pilhado de surpresa
pelo súbito encontro e as inevitáveis conseqüências; depois se esqueceu dos problemas pessoais. Embainhou as cimitarras e, cruzando os braços sobre o peito como
sinal de paz, pôs um pé no tronco. O menino tinha outras idéias. logo que se recuperou da comoção de ver
ao estranho elfo, encarapitou-se ao bordo oposto e apartou o tronco do suporte. Drizzt retrocedeu de um salto enquanto o tronco caía ao fundo. Então o drow compreendeu
que o menino nunca tinha estado em perigo, mas sim tinha simulado o risco para fazer sair ao perseguidor. De passagem, se o perseguidor era um membro da família,
a añagaza poderia lhe haver evitado o castigo. Agora era Drizzt o que estava em uma situação comprometida, pois o tinham descoberto. Tentou pensar na maneira de
comunicar-se com o menino, explicar sua presença e acalmar seu medo. Mas o menino não esperou suas explicações. Com os olhos muito abertos e espantados, subiu pela
ladeira --por um atalho que ao parecer conhecia muito bem-- e desapareceu na espessura. --Espera! --gritou em língua drow, embora sabia que o menino não podia lhe
entender e que tampouco se deteria de havê-lo feito. Uma sombra negra passou rauda junto ao elfo e cruzou o ravina com um poderoso salto. Guenhwyvar trotou silenciosamente
pelo outro lado e seguiu ao menino pelo matagal. --Guenhwyvar! --chamou outra vez Drizzt, em um intento por deter a pantera. Não sabia qual seria a reação do animal
ante o menino. Que ele soubesse, Guenhwyvar só tinha conhecido a um humano, o mago que tinham matado seus companheiros. Drizzt procurou a maneira de cruzar o ravina.
Podia descer até o fundo, cruzá-lo e subir pela outra parede, mas demoraria muito. Drizzt retrocedeu uns quantos passos, tomou carreirinha e saltou ao vazio,
apelando aos poderes de levitação inatos enquanto saltava. Não pôde dissimular o alívio ao comprovar que seu corpo se liberava da atração da terra. Não tinha utilizado
a levitação desde que tinha saído à superfície. O feitiço não tinha muita utilidade para um drow em campo aberto. Pouco a pouco o impulso o levou perto do outro
bordo. Começou a concentrar-se para baixar, mas o feitiço desapareceu bruscamente e Drizzt caiu em picado. Não fez caso dos golpes no joelho e da falha da levitação,
e pôs-se a correr enquanto gritava ao Guenhwyvar que se detivesse. O elfo se tranqüilizou quando encontrou à pantera. Guenhwyvar estava tendida em um claro, com
uma garra sobre as costas do menino, tendido de barriga para baixo. O prisioneiro gritava --Drizzt supôs que pedia ajuda-- mas parecia ileso. --Vêem, Guenhwyvar
--disse Drizzt, sem elevar a voz. Deixemos ao menino em paz. A pantera bocejou preguiçosa e obedeceu; cruzou o claro a passo lento para colocar-se junto ao amo.
O menino permaneceu tendido durante um bom momento. Então, armou-se de coragem e se levantou de repente, para depois voltar-se e olhar ao elfo escuro e à pantera.
Ainda mantinha os olhos muito abertos, quase em uma caricatura de terror, que destacavam no rosto coberto de terra. --O que é? --perguntou o menino na língua comum
humana. Drizzt abriu os braços para indicar que não compreendia. Levado por um impulso, golpeou-se o peito com um dedo e replicou: --Drizzt Dou'Urdem. Observou que
o menino se movia pouco a pouco; primeiro retrocedia um pé e depois corria o outro para pô-lo ao mesmo tempo. O elfo não se surpreendeu, e esta vez se assegurou
de controlar à pantera, quando o pequeno deu meia volta e pôs-se a correr como alma que leva o diabo, enquanto gritava com cada pernada: --Socorro! Um "drizzit"!
Drizzt olhou ao Guenhwyvar e encolheu os ombros, e a pantera pareceu imitar o movimento.
3
Os cachorrinhos
Nathak, um goblin alto e magro, avançou lentamente pela levantado pendente rochoso, dominado pelo medo. O goblin tinha que informar de seus achados --não podia
ocultar a morte de cinco gnolls--, mas a pobre criatura duvidava muito que Ulgulu ou Kempfana recebessem a notícia com agrado. Entretanto, o que podia fazer? Podia
escapar, cruzar ao outro lado da montanha e perder-se na espessura. Mas isto parecia ainda pior porque o goblin sabia muito bem quão vingativo era Ulgulu. O gigantesco
amo de pele púrpura podia arrancar uma árvore com as mãos, fazer pó a rocha da caverna e lhe partir sem esforço o pescoço a um goblin desertor. Cada passado o fazia
tremer à medida que Nathak passava além dos arbustos e entrava na pequena cova de acesso à caverna de seu amo. --Já era hora de que voltasse --reprovou-lhe um dos
dois goblins pressente-- Leva dois dias fora! Nathak só assentiu e respondeu com força. --O que quer? --perguntou o terceiro goblin. encontraste aos gnolls? O
rosto do Nathak empalideceu ao escutar a pergunta, e por muito que tentou respirar pausadamente não conseguiu controlar o tembleque. --Ulgulu está dentro? --perguntou
com uma vocecita. Os dois sentinelas intercambiaram um olhar e se voltaram para o Nathak. --Encontrou aos gnolls --disse um deles, que adivinhou o problema. Gnolls
mortos. --Ulgulu terá um desgosto --comentou o outro, e, apartando-se, cada um deles levantou uma parte da pesada cortina que separava a cova da sala de audiências.
Nathak vacilou e olhou para trás, como se reconsiderasse a situação. Possivelmente escapar não seria tão mau. Os sentinelas goblins sujeitaram ao larguirucho companheiro
e de um empurrão o fizeram entrar na sala; depois cruzaram as lanças detrás do Nathak para lhe impedir a retirada. Nathak as arrumou para recuperar em parte a compostura
ao ver que era Kempfana, não Ulgulu, que ocupava a enorme cadeira ao outro lado da sala. Kempfana se tinha ganho a reputação entre os goblins de ser o mais tranqüilo
dos dois irmãos, embora Kempfana tinha devorado o número suficiente de criados para ganhar o respeito. Kempfana quase não se fixou na entrada do goblin, ocupado
como estava em uma animada conversação com o Lagerbottoms, o gordo gigante da colina que tinha sido o anterior ocupante da caverna. Nathak cruzou a sala arrastando
os pés, e atraiu as olhadas do gigante e do enorme goblinoide de pele púrpura, quase tão grande como o gigante da colina. --Sim, Nathak --disse Kempfana, que silenciou
ao gigante com um gesto de sua mão antes de que pudesse protestar. Qual é seu relatório? --Eu..., eu --gaguejou Nathak.
Nos olhos da Kempfana apareceu de repente um resplendor laranja, sinal inequívoco de perigo. --Encontrei aos gnolls --balbuciou Nathak. Mortos. Assassinados.
Lagerbottoms soltou um grunhido ameaçador, mas Kempfana apertou com força o braço do gigante da colina para lhe recordar que ele estava ao mando. --Mortos? --perguntou
o monstro em voz baixa. Nathak assentiu. Kempfana lamentava a morte de uns escravos tão valiosos, mas os pensamentos do cachorrinho de barje se centravam na inevitável
fúria de seu irmão quando soubesse a novidade. Não teve que esperar muito. --Mortos! --gritou uma voz tão capitalista que quase partiu a rocha da caverna. As três
criaturas da sala se agacharam instintivamente e se voltaram a tempo para ver como a enorme pedra que servia de porta a outra habitação voava pelos ares. --Ulgulu!
--chiou Nathak, e o pequeno goblin se tornou de cara ao chão, sem atrever-se a olhar. A gigantesca criatura goblinoide de pele púrpura entrou como uma tromba na
sala de audiências, os olhos convertidos em uma mancha de fúria laranja. Com três pernadas, Ulgulu se colocou junto ao gigante da colina, e de repente Lagerbottoms
pareceu muito pequeno e vulnerável. --Mortos! --rugiu uma vez mais Ulgulu, raivoso. Lamentava a perda da pequena banda de gnolls porque, à medida que se reduzia
a tribo de goblins --mortos pelos humanos da aldeia ou por outros monstros, ou devorados pelo Ulgulu durante seus habituais ataques de fúria--, aqueles se tinham
convertido em quão únicos podiam trazer alimento à guarida. Kempfana olhou aborrecido a seu irmão maior. Os dois cachorrinhos de barje tinham vindo juntos ao plano
material, para comer e crescer. Ulgulu não tinha demorado para autoproclamarse chefe, e devorava às vítimas mais fortes, com o qual ganhava em tamanho e força.
Pela cor da pele do Ulgulu, e pelo volume e potência, era óbvio que o cachorrinho muito em breve se encontraria em condições de retornar aos fumegantes e pestilentos
vales da Gehenna. Kempfana não via a hora de que chegasse esse dia. Sem o Ulgulu, ele seria o chefe; poderia comer e fazer-se forte. Então, poderia escapar do interminável
período de crescimento neste plano horrível, poderia retornar e competir entre os barjes de seu plano de existência. --Mortos --repetiu Ulgulu em um grunhido.
Te levante, goblin imundo, e me diga como! Quem fez isto a meus gnolls? --Não sei --gemeu o goblin, quando por fim conseguiu ficar de joelhos. Os gnolls morreram,
esfaqueados e esquartejados. Ulgulu se balançou sobre os talões de seus enormes pés brandos. Os gnolls tinham ido atacar uma granja com ordens de retornar com o
granjeiro e o filho maior. Aqueles dois humanos crescidos teriam fortalecido grandemente ao grande barje, possivelmente até o ponto de lhe fazer alcançar o nível
de maturação que necessitava para voltar para a Gehenna. Agora, depois do relatório do Nathak, Ulgulu teria que enviar ao Lagerbottoms, ou talvez ir ele mesmo, embora
isto apresentava o risco adicional de que, ao ver o gigante ou ao monstro de pele púrpura, os humanos podiam organizar-se. --Tephanis! --rugiu Ulgulu de repente.
Na parede mais longínqua, oposta à porta por onde Ulgulu fazia sua estrepitosa aparição, desprendeu-se uma pedra pequena e caiu. A queda só foi de uns poucos palmos,
mas no tempo que demorou a pedra em chegar ao chão, um trasgo mirrado saiu do buraco que lhe servia de dormitório, cruzou os seis metros da sala de audiências e
subiu pelo flanco do Ulgulu para sentar-se muito bojudo no imenso
ombro do barje. --Me-has-chamado, fui-lo-has-hecho, mi-amo --zumbiu Tephanis, a uma velocidade de vertigem. Outros nem sequer tinham advertido a entrada do trasgo,
que media sessenta centímetros de estatura. Kempfana se voltou e sacudiu a cabeça assombrado. Ulgulu soltou a gargalhada. adorava ver o espetáculo devotado pelo
Tephanis, seu servente mais valioso. Tephanis pertencia a um ramo dos trasgos que podia mover-se em uma dimensão que transcendia o conceito normal do tempo. Dotado
de uma energia inesgotável e uma agilidade que envergonhava ao mais perito ladrão halfling, podia realizar uma infinidade de tarefas que outras raças nem sequer
podiam tentar. Ulgulu se tinha feito amigo do Tephanis a pouco de chegar ao plano material -- o trasgo era o único dos diversos ocupantes da caverna ao que o barje
não tinha querido dominar-- e este vínculo lhe tinha dado ao jovem cachorrinho uma clara vantagem sobre seu irmão. Tephanis procurava as possíveis vítimas, e Ulgulu
sabia exatamente quais devia devorar e quais deixar a Kempfana, e sabia o que devia fazer para vencer a aqueles aventureiros que eram mais fortes que ele. --Querido
Tephanis --ronronou Ulgulu com um som parecido ao de uma serra. Nathak, o pobre Nathak --o goblin não passou por cima as implicações do tom-- informou-me que meus
gnolls sofreram uma terrível desgraça. --E - você - quer - que - vá - e - veja - o - que - eles - há - passado, meu - amo-- replicou Tephanis. Ulgulu demorou um
momento em decifrar a frase porque as palavras lhe tinham divulgado como uma sozinha, depois assentiu ansioso. --Ahora-mismo-mi-amo. Não-demorarei-nada-em-retornar.
Ulgulu notou um ligeiro tremor no ombro, e, antes de que ele ou qualquer de outros pudesse entender o que Tephanis havia dito, pesada-a cortina que separava a sala
do vestíbulo flutuava outra vez na posição de repouso. Um dos sentinelas goblins apareceu a cabeça só por um instante, para ver se Ulgulu ou Kempfana o tinham chamado,
e em seguida voltou para seu posto, convencido de que o movimento da cortina tinha sido coisa do vento. Ulgulu voltou a soltar a gargalhada. Kempfana o olhou aborrecido:
odiava ao trasgo e o teria matado fazia muito, de não ser pelos benefícios futuros, na hipótese de que Tephanis trabalharia para ele quando Ulgulu retornasse a Gehenna.
Nathak começou a retroceder pouco a pouco com a intenção de sair da sala sem chamar a atenção, mas Ulgulu o deteve com um olhar. --Agradeço-te a informação --disse
o barje. Nathak se relaxou, mas só pelo tempo que demorou Ulgulu em estirar uma de seus manazas, agarrar ao goblin pela garganta e levantá-lo em alto. Mas me teria
sido mais útil se te tivesse incomodado em averiguar o que aconteceu com meus gnolls. Nathak balbuciou uma desculpa e quase perdeu o sentido, e, quando já tinha
meio corpo metido na boca do Ulgulu, o pobre goblin desejou havê-lo perdido. "Esfregar o traseiro alivia o ardor, esfrega que esfrega e se vai a dor." Liam Thistledown
recitava a letanía uma e outra vez para esquecer da intensa dor que sentia debaixo dos calções, uma letanía que suas travessuras lhe faziam repetir freqüentemente.
Entretanto, esta vez era diferente, porque Liam tinha que reconhecer que efetivamente tinha descuidado suas obrigações. --Mas o "drizzit" era real --grunhiu Liam,
desafiante, em voz alta. Como uma resposta à afirmação, abriu-se a porta do abrigo e entraram Shawno, o terceiro de seus irmãos maiores, e Eleni, a única irmã. --Tem-lhe
isso bem castigo --reprovou-lhe Eleni com sua melhor voz de irmã maior. Não tiveste suficiente escapando quando havia trabalho que fazer a não ser
que além disso voltaste para casa contando coisas incríveis! --O "drizzit" era real --protestou Liam, ao que não gostava da atitude maternal do Eleni. Já tinha
muitos problemas com os pais para ter que suportar os ares de sua irmã. Negro como uma bigorna e com um leão tão escuro como ele. --lhes cale! --advertiu-lhes
Shawno. Se pai se inteira de que estamos aqui açoitará aos três. --É verdade! --exclamou Liam, muito forte, e Shawno lhe deu um bofetão. Os três se voltaram,
pálidos de medo, quando a porta se abriu de par em par. --Vêem aqui! --sussurrou Eleni com voz áspera sujeitando ao Flanny pelo pescoço. Este era maior que Shawno,
mas três anos menor que Eleni. Shawno, sempre preocupado por tudo, jogou uma olhada para comprovar que não havia ninguém no exterior, e depois fechou a porta sem
fazer ruído. Não se espião às pessoas! --E como podia saber que estavam aqui? --replicou Flanny. Vinha com a intenção de jorobar ao pequeno. --Olhou ao Liam,
retorceu a boca e moveu os dedos como as patas de uma aranha. Sou o "drizzit", que se come aos meninos pequenos. Liam lhe voltou as costas, mas Shawno não se
assustou. --Vamos, te cale! --disse ao Flanny, acompanhando as palavras com um cabeçada na cabeça do irmão maior. Flanny deu meia volta disposto a lhe devolver
o golpe, mas Eleni se interpôs entre os dois. --Basta! --gritou Eleni, tão forte que os três varões Thistledown se levaram um dedo à boca para reclamar silêncio.
--O "drizzit" era real --insistiu Liam. Posso prová-lo se não terem muito medo. Os três irmãos o olharam curiosos. Liam era um mentiroso de tomo e lombo, mas
o que podia ganhar agora mentindo? O pai não tinha acreditado no Liam e isto dava por acabado o tema dos castigos. Mesmo assim, o pequeno insistia, e seu tom lhes
deu a entender que podia haver algo de certo. --Como pode prová-lo? --perguntou Flanny. --Amanhã não temos que trabalhar --respondeu Liam. iremos procurar amoras
à montanha. --Mãe e pai não nos deixarão ir --interveio Eleni. --Não porão pegas se conseguirmos que Connor nos acompanhe --disse Liam, que se referia ao irmão
maior. --Connor não te acreditará! --afirmou Eleni. --Mas te acreditará em ti! --exclamou Liam, com tanto brio que provocou um chistido de todos outros. --Pois
eu não te acredito! --declarou Eleni em voz baixa. Não deixa de inventar coisas, de te colocar em confusões e de contar mentiras para te liberar do castigo. Liam
se cruzou de braços e sapateou impaciente para sossegar a regañina de sua irmã. --Pode dizer o que quiser --interrompeu-a, incapaz de agüentar-se--, mas me acreditará
se conseguir que Connor nos acompanhe! --Vamos, por favor, peça-lhe rogou- Flanny ao Eleni, embora Shawno, preocupado pelas possíveis conseqüências, sacudia a cabeça
para manifestar sua oposição. --E depois de subir à montanha, o que? --perguntou Eleni como uma aprovação tácita e um convite a que Liam lhes desse mais detalhes.
Liam sorriu satisfeito e apoiou um joelho em terra; alisou um pouco o serrín no chão para desenhar um mapa aproximado da zona onde tinha encontrado ao "drizzit".
O plano era singelo: Eleni, ocupada em recolher amoras, seria a ceva. Os quatro varões a seguiriam em segredo e vigiariam enquanto ela simulava torcer um tornozelo
ou qualquer
outra lesão. Os gritos de socorro atrairiam ao "drizzit"; não havia motivos para duvidar que fosse a socorrer a uma jovem bonita em apuros. Eleni protestou energicamente;
não a entusiasmava fazer de lombriga no anzol. --Mas se você não crie que exista --apressou-se a lhe recordar Liam. Seu sorriso, que deixava ao descoberto o buraco
onde lhe faltava um dente, demonstrou-lhe à moça que sua teima a tinha encurralado. --De acordo, farei-o! --resmungou Eleni. E não acredito em seu "drizzit", Liam
Thistledown! Mas se o leão é real e me remói, lhe verá comigo! Dito isto, Eleni deu meia volta e saiu furiosa do abrigo. Liam e Flanny cuspiram nas Palmas de suas
mãos, e depois se voltaram para olhar ameaçadores ao Shawno até que ele superou suas reticências. Então os três irmãos entrechocaron as Palmas ensalivadas em um
gesto de triunfo. Qualquer desacordo entre eles se esfumava quando algum descobria algo com que incomodar ao Eleni. Nenhum deles lhe falou com o Connor de que planejavam
caçar ao "drizzit". Foi Eleni a que se encarregou de lhe recordar os muitos favores que lhe tinha feito e lhe prometeu que consideraria paga a dívida se ele aceitava
acompanhá-los a recolher amoras. A ardilosa moça se assegurou antes de que Liam prometesse que se faria cargo da dívida do Connor se não encontravam ao "drizzit".
Connor tratou de escapar do compromisso, com a desculpa de que tinha que ferrar a uma das éguas, mas nunca tinha podido resistir ao olhar dos azuis olhos e à amplo
sorriso de sua irmã, e a promessa do Eleni de esquecer a considerável dívida selou seu destino. Com a bênção dos pais, Connor guiou aos meninos montanha acima. Os
pequenos levavam cubos e ele uma espada troca enganchada ao cinturão. Drizzt advertiu o engano muito antes de que a filha do granjeiro avançasse sozinha entre as
amoras. Também viu os quatro moços, agachados à sombra de um bosquecillo. Connor sujeitava a espada de forma bastante torpe. Sabia que o mais pequeno os tinha levado
ali. No dia anterior, o drow tinha visto como o arrastavam até o abrigo. Os gritos de "drizzit!" tinham acompanhado a cada cintada, ao menos ao princípio. Agora
o teimado menino queria demonstrar que havia dito a verdade. de repente a moça deixou de recolher amoras, atirou-se ao chão e gritou. Drizzt reconheceu a palavra
"Auxílio!"; era a mesma que tinha empregado o menino loiro, e um sorriso apareceu no rosto escuro. Pela forma ridícula da queda, Drizzt compreendeu o jogo. A jovem
não estava ferida; só tentava que aparecesse o "drizzit". Drizzt sacudiu a cabeça, assombrado pela inocência da armadilha, e se voltou disposto a partir, mas o dominou
um impulso. Olhou para as sarças, onde a moça se esfregava o tornozelo, sem deixar de olhar para onde se ocultavam seus irmãos. Uma necessidade irresistível surgiu
em seu peito. Quanto tempo levava sozinho, como um vagabundo solitário? Naquele momento sentiu falta da o Belwar, o pequeno que o tinha acompanhado em tantas aventuras
pelas profundidades da Antípoda Escura. Teve saudades ao Zaknafein, seu pai e amigo. Ver o comportamento dos irmãos era mais do que Drizzt Dou'Urdem podia suportar.
Tinha chegado a hora de que Drizzt conhecesse os vizinhos. O drow se cobriu a cabeça com o capuz da capa do gnoll, embora o objeto rasgado não servia de muito para
ocultar sua verdadeira natureza, e correu através do campo. Tinha a esperança de que, se ao menos podia suavizar a reação inicial da moça ao vê-lo, possivelmente
encontraria uma maneira de estabelecer a comunicação, embora era muito supor. --O "drizzit"! --ofegou Eleni quando o viu aparecer.
Queria gritar, mas não tinha fôlego. Queria correr, mas o terror a retinha. Do bosquecillo, Liam falou por ela. --O "drizzit"! --gritou o menino. Havia-lhes isso
dito! Havia-lhes isso dito! Olhou aos irmãos. A reação entusiasmada do Flanny e Shawno era a que esperava. Em troca, o rosto do Connor mostrava uma expressão de
medo tão profundo que com apenas vê-la-se esfumou a alegria do Liam. --Por todos os deuses! --sussurrou o maior dos filhos Thistledown. Connor tinha percorrido as
montanhas com o pai e tinha aprendido a reconhecer aos inimigos. Agora olhou aos três irmãos menores e murmurou uma só palavra que não esclareceu nada aos inexperientes
meninos--: Drow. Drizzt se deteve uma dúzia de passos da aterrorizada moça, a primeira mulher humana que tinha visto de perto, e a observou. Eleni era bonita, de
olhos grandes e expressivos, as bochechas com covinhas, e a pele suave e dourada. Compreendeu que não representava nenhuma ameaça. Sorriu-lhe e cruzou os braços
sobre o peito, sem fazer movimentos bruscos. --Drizzt --corrigiu-a, destacando-se. Com a extremidade do olho advertiu que algo se movia por um flanco e se voltou.
--Corre, Eleni! --gritou Connor Thistledown, enquanto corria espada em alto para o drow. É um elfo escuro! Um drow! Corre! De tudo o que Connor tinha gritado,
Drizzt só entendeu a palavra "drow". Entretanto, a atitude e a intenção do jovem resultavam muito claras, porque Connor se interpôs entre o Drizzt e Eleni, com a
ponta da espada apontando ao elfo. Eleni conseguiu ficar de pé detrás de seu irmão, mas não escapou como lhe havia dito. Ela também tinha escutado falar dos malignos
elfos escuros, e não estava disposta a deixar que Connor lhe enfrentasse a sós. --Vete, elfo escuro --grunhiu Connor. Sou um espadachim perito E muito mais forte
que você. Drizzt estendeu as mãos em um gesto de indefensión, sem entender nenhuma palavra. --te largue! --chiou Connor. Levado por um impulso, Drizzt tentou responder
com o código mudo dos drows, uma complicado linguagem de mãos e gestos faciais. --Cuidado, prepara um feitiço! --gritou Eleni, e se mergulhou entre as sarças. Connor
soltou um alarido e carregou. antes de que Connor pudesse fazer nada, Drizzt o sujeitou pelo antebraço, utilizou a outra emano para lhe retorcer a pulso e lhe tirar
a espada, fez girar a arma três vezes por cima da cabeça do Connor, lançou-a ao ar, agarrou-a pela lâmina quando caía e a devolveu ao moço pela manga. Drizzt abriu
os braços e sorriu. Segundo o costume drow, semelhante amostra de superioridade sem ferir o oponente representava o desejo de amizade. Em troca, no filho maior do
granjeiro Bartholemew Thistledown, a fulgurante exibição do drow só inspirou ainda mais terror. Connor permaneceu imóvel, boquiaberto, durante um bom momento. Deixou
cair a espada sem dar-se conta, e tampouco advertiu que acabava de urinar-se nas calças. Um grito de espanto surgiu por fim da garganta do Connor. Sujeitou a mão
do Eleni, que se uniu ao grito, e juntos escaparam para o bosquecillo para procurar a outros, e depois correram todos juntos até cruzar a soleira de sua casa. de
repente Drizzt se ficou sozinho entre as amoras com o sorriso nos lábios e os braços estendidos. Uns olhos muito atentos tinham vigiado o episódio com grande interesse.
A inesperada aparição de um elfo escuro, talher com a capa de um gnoll, explicava muitas das coisas que queria saber Tephanis. O trasgo tinha examinado os
cadáveres dos gnolls, e o tinha intrigado a limpeza das feridas mortais dos gnolls, que não podiam ter sido feitas com as armas vulgares que usavam os camponeses.
Ao ver as magníficas cimitarras penduradas no cinturão do elfo escuro e a facilidade com que tinha desarmado ao jovem lavrador, Tephanis descobriu a verdade. O rastro
que deixou o trasgo teria confundido aos melhores exploradores dos Reino. Tephanis, que nunca fazia nada diretamente, subiu pelos atalhos montanhosos, rodeou uns
quantos árvores, correu acima e abaixo pelos troncos de outros, e em geral dobrou, e inclusive triplicou, a rota. A distância jamais tinha sido um problema para
o Tephanis; apresentou-se ante o barje de pele púrpura antes de que Drizzt, ocupado em analisar as implicações do desastroso encontro, partisse do campo de amoras.
4
Preocupações
A opinião do granjeiro Bartholemew Thistledown trocou radicalmente quando Connor, o filho maior, designou ao "drizzit" do Liam como um elfo escuro. O granjeiro
Thistledown tinha passado seus quarenta e cinco anos de vida no Maldobar, uma aldeia cinqüenta quilômetros mais acima sobre o rio Orco Morto, ao norte do Sundabar.
O pai do Bartholemew tinha vivido aqui, e também seu avô antes que ele. Em todo esse tempo a única notícia que os granjeiros Thistledown tinham tido dos elfos escuros
tinha sido o relato de uma suposta incursão drow contra um pequeno acampamento de elfos selvagens a uns cento e sessenta quilômetros para o norte, no Coldwood.
Aquela incursão, se é que tinha sido obra dos drows, tinha ocorrido fazia ao redor de uma década. A falta de experiência pessoal com a raça drow não diminuiu os
temores do granjeiro Thistledown ao escutar o relato dos filhos daquele primeiro encontro no bosquecillo de amoras. Connor e Eleni, dois jovens com idade suficiente
para conservar a calma em momentos de crise, tinham visto o elfo de perto, e não tinham dúvidas sobre a cor da pele. --Quão único não acabo de entender --disse
Bartholemew ao Benson Delmo, o gordo e alegre prefeito do Maldobar, e a vários outros granjeiros reunidos em sua casa aquela noite-- é por que o drow deixou que
os meninos partissem. Não sou um perito em matéria de elfos escuros, mas ouvi o suficiente respeito a eles para esperar um comportamento distinto. --Possivelmente
Connor se comportou em seu ataque muito melhor do que crie --apontou Delmo com muito tato. Todos tinham escutado o relato de como o drow tinha desarmado ao moço.
Liam e os outros meninos Thistledown, exceto o pobre Connor, certamente, desfrutavam de horrores repetindo a história. Por muito que apreciasse o voto de confiança
do prefeito, Connor sacudiu a cabeça enfaticamente ante a sugestão. --Venceu-me --admitiu Connor. Possivelmente se aproveitou de meu estupor ao vê-lo, mas me
venceu... limpamente. --Coisa nada fácil --apressou-se a dizer Bartholemew, para evitar qualquer brincadeira dos pressente. Todos vimos como briga Connor. Precisamente
o inverno passado matou a três goblins e aos lobos em que cavalgavam! --te acalme, Thistledown! --quis tranqüilizá-lo o prefeito. Ninguém dúvida do valor de seu
filho. --Tenho minhas dúvidas sobre a identidade do inimigo! --vociferou Roddy McGristle, um homem grande e peludo como um urso, que era o mais experiente do grupo
em questões jaquetas. Roddy passava mais tempo nas montanhas que atendendo sua granja, um trabalho recente que não lhe agradava muito. Cada vez que alguém punha
preço à cabeça de um orco, era sempre Roddy o que se levava a maior fatia, às vezes mais que todos outros do povo juntos. Não levante tanto o
topete --disse Roddy ao Connor quando o moço quis erguer-se disposto a protestar com veemência. Sei o que há dito que viu, e acredito que viu o que diz. Mas você
o chama drow e esse título significa muito mais do que crie. Se tivesse sido um drow o que encontrou, diria que agora você e toda sua família estariam mortos naquele
bosquecillo de amoras. Não, não era um drow, conforme acredito, mas há outras coisas nessas montanhas que poderiam fazer o que você diz que fez essa coisa. --nos
diga quais --interveio Bartholemew zangado, com pouco aprecio pelas dúvidas que Roddy tinha jogado sobre o relato do filho. A verdade era que ao Bartholemew não
gostava de Roddy. O granjeiro Thistledown tinha uma família respeitável, e, cada vez que o vulgar e vocinglero Roddy McGristle os fazia uma visita, ao Bartholemew
e a sua esposa custava muitos dias de esforços lhes recordar aos meninos, especialmente ao Liam, qual era o comportamento correto. Roddy se limitou a encolher-se
de ombros, sem ofender-se pelo tom do Bartholemew. --Goblins, trolls, possivelmente um elfo do bosque que tomou muito o sol. A gargalhada que soltou depois destas
palavras, burlando-se da seriedade dos pressente, sacudiu ao grupo. --Então como podemos estar seguros? --disse Delmo. --Saberemos averiguando-o --ofereceu Roddy.
Amanhã pela manhã -- assinalou a cada um dos homens sentados à mesa do Bartholemew-- iremos ali a ver o que encontramos. Dito isto e dando por fechada a reunião,
Roddy golpeou a mesa com as mãos e ficou de pé. Quando chegou à porta da casa, voltou-se e dirigiu um sorriso quase desdentado e uma piscada exagerada ao grupo.
--Moços, não esqueçam as armas! A gargalhada do Roddy ressonou nos ouvidos dos homens muito depois da marcha do rude montanhês. --Poderíamos chamar um vigilante
--propôs um deles enquanto os desanimados granjeiros se dispunham a ir-se. ouvi dizer que há um no Sundabar, uma das irmãs da dama Alustriel. --É um pouco logo
para isso --respondeu o prefeito Delmo, apagando tudo os sorrisos de otimismo. --Crie que é muito logo quando há drows de por meio? --apontou rapidamente Bartholemew.
--Vamos primeiro com o McGristle --replicou. Se houver alguém capaz de averiguar algo nas montanhas, é ele. --voltou-se para o Connor e lhe disse conciliador--:
Acredito em seu relato, Connor. Mas temos que nos assegurar antes de pedir uma ajuda de alguém tão distinto como a irmã da dama de Lua Chapeada. --Não era um goblin
nem um elfo do bosque --manifestou Connor em voz baixa, em um tom onde se mesclava a irritação e a vergonha. Bartholemew aplaudiu as costas do filho, sem duvidar
de seu relato. Na cova da montanha, também Ulgulu e Kempfana tinham acontecido uma noite inquieta pela aparição de um elfo escuro. --Se for um drow, então é um aventureiro
experiente --comentou-lhe Kempfana ao irmão. Possivelmente com a experiência suficiente como para que Ulgulu alcance a maturidade. --E de retorno a Gehenna! --exclamou
Ulgulu acabando a frase do matreiro irmão. Não vê a hora de que desapareça. --Você também anseia o momento de voltar para os vales fumegantes --recordou-lhe Kempfana.
Ulgulu grunhiu como única resposta. A aparição do elfo escuro expor
muitas considerações e medos além da singela declaração lógica da Kempfana. Os barjes, como todas as criaturas inteligentes em quase todos outros planos de existência,
conheciam os drows e sentiam um prudente respeito pela raça. Embora um só drow podia não expor muitos problemas, Ulgulu sabia que uma partida de guerreiros drows,
possivelmente inclusive um exército, podia resultar desastrosa. Os cachorrinhos não eram invulneráveis. A aldeia humana lhes tinha permitido capturas fáceis aos
cachorrinhos barjes e podia lhes oferecer umas quantas mais durante um tempo se Ulgulu e Kempfana não abusavam dos ataques. Mas se apresentava uma banda de elfos
escuros, as presas fáceis podiam desaparecer muito depressa. --Temos que resolver o assunto do drow --assinalou Kempfana. Se for um explorador, não deve voltar
a informar. Ulgulu dirigiu um olhar geada ao irmão, e chamou o trasgo. --Tephanis --gritou, e o trasgo apareceu sobre seu ombro antes de que pudesse acabar de dizer
o nome. --Quer-que-vá-e-mate-ao-drow, mi-amo --disse o trasgo. Compreendo-loque-quieres-que-haga. --Não! --gritou Ulgulu no ato, consciente de que o trasgo pretendia
partir imediatamente. Tephanis já se encontrava a meio caminho da porta quando Ulgulu acabou de pronunciar a sílaba, mas retornou ao ombro do barje antes de que
se apagasse a última nota do grito. Não --repetiu Ulgulu, mais tranqüilo. Possivelmente se pode ganhar algo com a presença do drow. --Um novo inimigo para os
aldeãos --afirmou Kempfana, que tinha entendido a intenção de seu irmão assim que viu o sorriso maligno em seu rosto. Um novo inimigo para cobrir os assassinatos
do Ulgulu? --Tudo se pode converter em vantagens --repôs o gigantesco barje de pele púrpura com uma careta perversa--, até a aparição de um elfo escuro. Ulgulu voltou
a atenção ao Tephanis. --Quer-saber-mais-costure-do-drow, mi-amo --disse Tephanis, excitado. --Está sozinho? --perguntou Ulgulu. É o explorador de um grupo maior,
como tememos, ou um guerreiro solitário? Quais são suas intenções respeito às pessoas da aldeia? --O-drow-pôde-ter-matado-aos-meninos --repetiu Tephanis. Suponho-quebusca-amizade

--Sei --grunhiu Ulgulu. Já o há dito antes. Agora vê e averigua mais! Necessito algo mais que suas hipóteses, Tephanis, e todos sabem que as ações de um drow
nunca descobrem suas verdadeiras intenções! --Tephanis abandonou o ombro do Ulgulu e fez uma pausa, à espera de mais instruções. Por certo, querido Tephanis --ronronou
Ulgulu--, te ocupe de conseguir uma das armas do drow. Poderia resultar útil... Ulgulu se calou ao advertir o movimento na pesada cortina que fechava a entrada.
--Um personagem o mar de nervoso --comentou Kempfana. --Mas muito útil --replicou Ulgulu, e o irmão não pôde menos que assentir. Drizzt os viu vir de um quilômetro
de distância. Dez granjeiros armados seguidos pelo jovem que tinha conhecido no bosquecillo de amoras no dia anterior. Conversavam e riam enquanto caminhavam, mas
o passo era decidido e exibiam as armas, obviamente listas para ser usadas. Mais perigoso parecia o personagem que partia um tanto separado do grupo, um homem muito
fornido e de rosto sério, abrigado com peles grossas, carregado com uma tocha de primeira e acompanhado por dois grandes mastins de cabelo amarelo sujeitos com cadeias.
Drizzt queria estabelecer novos contatos com os aldeãos, desejava de tudo
coração continuar quão feitos tinha posto em movimento o dia antes e saber se, depois de tanto tempo, tinha encontrado um lugar ao que pudesse chamar lar, mas compreendeu
que o encontro que se morava não prometia muito. Se os granjeiros o encontravam, sem dúvida haveria problemas, e, embora não o preocupava sua própria segurança ante
a banda de esfarrapados, incluído o guerreiro de rosto sério, temia que algum dos lavradores acabasse ferido. O drow decidiu que devia evitar ao grupo e desviar
sua curiosidade. Conhecia a diversão perfeita para conseguir seus objetivos. Colocou a estatueta de ônix no chão e chamou o Guenhwyvar. Um zumbido a seu lado, seguido
por um súbito movimento da maleza, distraiu ao drow só por um momento enquanto se formava a névoa habitual ao redor da figurinha. Drizzt não advertiu a presença
de nada perigoso, e se esqueceu do tema. Tinha problemas mais urgentes, pensou. Quando chegou Guenhwyvar, Drizzt e a pantera desceram pelo atalho mais à frente do
bosquecillo de amoras, onde o elfo supunha que os aldeãos começariam a caça. O plano era singelo: deixaria que os lavradores rondassem a zona por um momento, permitiria
que o filho do granjeiro repetisse o relato do encontro. Então Guenhwyvar faria uma aparição perto do bosquecillo e guiaria ao grupo em uma perseguição inútil. A
visão da pantera negra podia expor algumas duvida sobre o relato do jovem; provavelmente os maiores suporiam que os meninos tinham topado com o felino e não com
um elfo escuro e que a imaginação havia provido o resto dos detalhes. Não deixava de ser um risco, mas como mínimo, Guenhwyvar podia semear algumas duvida referentes
à existência do elfo escuro e afastar aos caçadores durante um tempo. Os granjeiros chegaram ao bosquecillo de amoras a tempo, alguns sérios e dispostos para o combate,
mas a maioria entretidos em conversar e rir. Encontraram a espada queda, e Drizzt observou como o filho do camponês relatava o episódio do dia anterior. Também viu
que o levado da tocha quase não escutava o relato, e caminhava ao redor do grupo com os cães, assinalando distintos pontos das sarças e animando aos cães a que cheirassem
o rastro. Drizzt não tinha experiência prática com cães, mas sabia que muitas criaturas tinham muito sentidos desenvolvidos e que podiam ser úteis em uma caçada.
--Vê, Guenhwyvar --sussurrou o drow, sem esperar a que os cães descobrissem um rastro claro. A grande pantera se afastou silenciosa pelo atalho e tomou posição em
uma das árvores do mesmo bosquecillo onde os meninos se ocultaram no dia anterior. O súbito rugido do Guenhwyvar silenciou as conversações do grupo no ato, e todas
as cabeças se voltaram para as árvores. O felino saltou ao atalho, passou como uma flecha entre os atônitos humanos e se afastou entre as rochas da ladeira. Os granjeiros
gritaram e iniciaram a perseguição animando ao homem com os cães a que agarrasse a dianteira. Muito em breve todo o grupo, com os cães ladrando furiosos, desapareceu
da vista e Drizzt caminho até as árvores próximas às amoras para analisar o ocorrido e planejar o que faria depois. Pareceu-lhe notar que o seguia um zumbido, mas
o atribuiu a algum inseto. À vista do desconcerto dos cães, Roddy McGristle não demorou muito em chegar à conclusão de que a pantera não era a mesma criatura que
tinha deixado um rastro no bosquecillo de amoras. Além disso, Roddy compreendeu que seus torpes companheiros, sobre tudo o obeso prefeito, nem sequer com sua ajuda
podiam pensar em apanhar à pantera; o felino podia saltar através de gargantas que os granjeiros demorariam muitos minutos em rodear.
--Adiante! --gritou Roddy ao resto do grupo. Persigam a essa costure por este caminho! Levarei-me aos cães pelo outro lado e lhe cortarei o passo! Obrigarei-a
a que volte para vós! Os granjeiros gritaram sua aprovação e se afastaram. Roddy atirou das cadeias e se levou aos cães na outra direção. Os cães, treinados para
a caça, queriam seguir à pantera, mas seu amo tinha outra rota em mente. Havia várias coisas que o preocupavam naquele momento. Vivia nestas montanhas desde fazia
trinta anos e nunca tinha visto, ou sequer ouvido falar, de um animal como aquele. Além disso, a pantera teria podido deixar atrás aos perseguidores fazia momento,
e em troca sempre se mostrava em campo aberto não muito longe, como se queria guiar aos granjeiros. Roddy sabia o que era manobra de diversão, e acreditava saber
onde se ocultava a verdadeira presa. Colocou-lhes a focinheira aos cães para que não ladrassem e retornou por onde tinha vindo, de volta ao bosquecillo de amoras.
Drizzt descansava apoiado em uma árvore nas sombras da frondosa taça, perguntando-se qual poderia ser o caminho para mostrar-se aos granjeiros sem lhes provocar
pânico. Ao longo dos dias de observação da família da granja isolada, Drizzt tinha chegado à conclusão de que podia encontrar um lugar entre os humanos, deste ou
de qualquer outro assentamento, se conseguia convencer os de que suas intenções não eram perigosas. Um zumbido à esquerda do Drizzt o arrancou bruscamente de seus
pensamentos. apressou-se a empunhar as cimitarras, e então algo relampejou junto a ele, muito rápido para lhe dar tempo a reagir. Gritou ante a súbita dor na pulso,
e soltou a cimitarra. Confuso, Drizzt olhou a ferida, esperando ver uma flecha ou um dardo parecido na carne. O corte era limpo e não havia nada mais. Uma risada
aguda fez girar ao Drizzt à direita. Ali estava o trasgo, com a cimitarra pendurada ao ombro, quase tocando o chão detrás da criatura diminuta, e uma adaga, tinta
em sangue, na outra mão. Drizzt permaneceu imóvel e tentou adivinhar qual seria o próximo movimento do rival. Nunca tinha visto um trasgo, nem tinha escutado falar
de umas criaturas tão estranhas, mas já tinha uma boa idéia da vantagem que representava sua assombrosa velocidade. antes de que o drow pudesse planejar a maneira
de derrotar ao trasgo, apareceu outro rival. logo que ouviu o uivo, o drow compreendeu que o grito de dor o tinha descoberto. O primeiro dos mastins do Roddy McGristle
apareceu entre a maleza, lançado em linha reta para o elfo. O segundo, um par de passos mais atrás, saltou em busca da garganta do jovem. Esta vez, Drizzt foi mais
rápido. Descarregou um golpe com a outra cimitarra contra o primeiro cão e lhe golpeou o crânio. Sem vacilar, Drizzt se tornou para trás, investiu a sujeição da
arma e a levantou por cima da cabeça, em linha com o salto do cão. A manga da arma ficou apoiado contra o tronco da árvore e o animal, incapaz de desviar a trajetória,
chocou-se contra o outro extremo da lâmina de aço, que lhe atravessou a garganta e o peito. O terrível impacto arrancou a cimitarra da mão do Drizzt, e cão e arma
caíram entre uns arbustos ao lado da árvore. Drizzt apenas se recuperou quando apareceu Roddy McGristle como uma tromba. --mataste a meus cães! --rugiu o enorme
montanhês, descarregando um golpe com o Bleeder, sua grande tocha de combate, contra a cabeça do drow. O golpe levava uma velocidade tremenda, mas Drizzt conseguiu
esquivá-lo. O elfo não entendia nenhuma só das palavras da enxurrada de epítetos do McGristle, e era consciente de que o homenzarrão não podia compreender nenhuma
das explicações que pretendesse lhe dar.
Ferido e desarmado, a única defesa do Drizzt era continuar burlando o ataque. Outra machadada quase o pilhou; cortou a capa gnoll, mas obrigado a que conseguiu
afundar o estômago, a lâmina só roçou a fina cota de malha. Drizzt se moveu a um lado, para um apertado grupo de árvores mais pequenas, convencido de que sua maior
agilidade lhe daria algumas vantagens. Tinha que tentar cansar ao humano enfurecido, ou ao menos conseguir que o homem reconsiderasse o brutal ataque. Mas a ira
do McGristle não parecia diminuir. Seguiu ao Drizzt, lançando machadadas a torto e a direito. Agora Drizzt via as falhas de seu plano. Embora possivelmente podia
manter-se afastado do volumoso corpo da humana graças ao pouco espaço entre as árvores, a tocha do McGristle podia passar entre eles sem problemas. A poderosa arma
apareceu por um lado ao nível dos ombros. Drizzt se lançou de cabeça ao chão, salvando-se de morrer pelos cabelos. Esta vez McGristle não pôde controlar o golpe
a tempo, e a pesada tocha se cravou no tronco de dez centímetros de diâmetro de um arce jovem, e o destruiu. O ângulo formado pelo tronco ao dobrar-se reteve a
tocha com força. Roddy começou a dar puxões para liberar a arma, e não advertiu o perigo até o último minuto. Conseguiu apartar do tronco mas acabou sepultado debaixo
da taça. Os ramos formavam uma rede que o sujeitava bem escuro contra o chão. --Maldito seja, drow! --bramou McGristle, enquanto tentava escapar sem êxito da prisão
natural. Drizzt se afastou engatinhando, preocupado pela pulso ferida. Encontrou a segunda cimitarra, cravada até a manga no pobre cão. O espetáculo lhe causou
uma profunda pena, pois sabia o valor dos companheiros animais. Demorou uns segundos em recuperar a arma, momentos que se fizeram angustiantes ao ver que o outro
cão, só atordoado, começava a sacudir-se. --Maldito seja, drow! --rugiu McGristle outra vez. Drizzt compreendeu a referência à linhagem, e pôde adivinhar o resto.
Queria ajudar ao homem cansado, na convicção de que possivelmente podia estabelecer o caminho de uma comunicação mais civilizada, mas lhe pareceu que não poderia
contar com a colaboração do outro cão. Com um último olhar ao trasgo que tinha iniciado todo o problema, Drizzt saiu do bosque e escapou às montanhas. --Teríamos
que ter apanhado à pantera! --protestou Bartholemew Thistledown enquanto a tropa retornava ao bosquecillo de amoras. Se McGristle tivesse estado onde disse que
estaria, não nos teria escapado! Onde está agora esse tipo? Os gritos do Drow, drow!" procedentes do grupo de arces responderam a pergunta do Bartholemew. Os granjeiros
puseram-se a correr e encontraram ao Roddy ainda bem sujeito pelos ramos da árvore cansada. --Maldito drow! --chiou Roddy. Matou a meu cão! Condenado drow! --levou-se
uma mão à orelha esquerda quando liberaram um braço mas descobriu que já não a tinha. Maldito drow! --repetiu. Connor Thistledown não ocultou o orgulho ante a
confirmação de seu relato, que tinha sido posto em dúvida, mas o maior dos filhos Thistledown foi o único agradado com a inesperada proclama do Roddy. Os outros
granjeiros eram maiores que Connor; compreendiam muito bem as graves implicações de ter a um elfo escuro na região. Benson Delmo, secando o suor da frente, não
fez nenhum secreto do que opinava ante a notícia. Imediatamente se voltou para o granjeiro que tinha a seu lado, um jovem conhecido por sua habilidade como cavaleiro.
--Vá ao Sundabar! --ordenou-lhe o prefeito. Busca um vigilante agora mesmo! Ao cabo de uns minutos, Roddy ficou livre. O cão ferido estava a seu lado, mas a comprovação
de que um de seus preciosos animais tinha sobrevivido foi um
pobre consolo para o homem. --Maldito drow! --vociferou Roddy possivelmente pela centésima vez, enquanto se enxugava o sangue da bochecha. Já me encarregarei
eu de acabar com esse condenado drow! Furioso, descarregou ao Bleeder com uma só mão contra o tronco de outro arce próximo, e a ponto esteve de destrui-lo.
5
O caçador furtivo
Os guardas goblins se separaram de um salto quando o capitalista Ulgulu atravessou a cortina e abandonou a caverna. O ar frio da noite lhe pareceu delicioso ao
barje, e ainda mais ao pensar na tarefa que tinha por diante. Olhou a cimitarra que lhe tinha levado Tephanis; a arma parecia diminuta na mão enorme do Ulgulu.
Sem dar-se conta deixou cair a cimitarra. Não queria usá-la esta noite. O barje queria utilizar suas próprias armas letais --garras e dentes-- para poder saborear
às vítimas e devorar a essência da vida que lhe permitiria ser mais forte. Mas Ulgulu era uma criatura inteligente, e a razão dominou rapidamente os instintos básicos
que tanto desejavam o sabor do sangue. Havia um propósito no trabalho de esta noite, um método que prometia maiores lucros e a eliminação da ameaça exposta pela
inesperada aparição do elfo escuro. Com um grunhido gutural, um pequeno protesto dos instintos básicos do Ulgulu, o barje recolheu a cimitarra e pôs-se a andar
montanha abaixo com grandes pernadas. A besta se deteve o bordo de um ravina, onde havia um único atalho muito estreito que permitia baixar até o fundo. Levaria-lhe
um bom momento percorrê-lo. Mas Ulgulu tinha fome. A consciência do Ulgulu se voltou sobre si mesmo e enfocou aquele ponto de seu ser que flutuava com energia mágica.
Ele não era uma criatura do plano material, e os seres de outros planos indevidamente traziam com eles poderes que podiam parecer mágicos aos habitantes do plano
anfitrião. Os alaranjados olhos do Ulgulu resplandeciam de entusiasmo quando saiu do transe uns segundos mais tarde. Espiou sobre o bordo, e visualizou um ponto
no fundo, a uns quatrocentos metros de distância. Uma tremente porta multicolorido apareceu diante do Ulgulu, pendurada no ar um pouco mais à frente do bordo. Com
uma gargalhada parecida com um rugido, Ulgulu abriu a porta e encontrou, logo que passado a soleira, o ponto visualizado. Cruzou a porta, e percorreu a distância
até o fundo do ravina com um só passo ultradimensional. Ulgulu pôs-se a correr montanha abaixo para a aldeia humana, ansioso por pôr em marcha sua maligna maquinação.
Quando o barje chegou aos contrafortes apelou uma vez mais ao rincão mágico. Os passos do Ulgulu se cortaram; depois a criatura se parou de tudo, sacudida por fortes
espasmos, ao tempo que murmurava palavras indecifráveis. Os ossos se cortaram e uniram com um ruído como se se quebrassem, a pele se abriu e se obscureceu até ser
quase negra. Então Ulgulu reatou a marcha, mas esta vez seus passos --os passos de um elfo escuro-- eram mais curtos. Aquela noite Bartholemew Thistledown estava
sentado com seu pai, Markhe, e seu filho maior na cozinha da granja solitária nos subúrbios ocidentais de
Maldobar. A esposa do Bartholemew e sua mãe tinham ido ao celeiro para ocupar-se dos animais, e os quatro filhos menores dormiam na pequena habitação junto à cozinha.
Qualquer outra noite, toda a família Thistledown teria estado dormindo em suas camas, mas Bartholemew temia que passariam muitas noites antes de que a normalidade
retornasse à granja. Tinham visto um elfo escuro na região, e, embora Bartholemew não estava convencido de que o estranho tivesse a intenção de lhes fazer danifico
--o drow teria podido matar ao Connor e a outros meninos facilmente--, sabia que sua presença tinha provocado um grande revôo no Maldobar. --Poderíamos ir ao povo
--propôs Connor. Buscariam-nos um lugar onde nos instalar, e teríamos o respaldo de todos. --O respaldo de todos? --perguntou Bartholemew sarcástico. Deixariam
de atender suas granjas para vir até aqui e nos ajudar com nosso trabalho? Qual deles crie que estaria disposto a cavalgar até aqui cada noite para cuidar dos animais?
Connor agachou a cabeça ante a regañina do pai. Deslizou uma mão até o punho da espada, recordando-se a si mesmo que já não era um menino. De todos os modos, Connor
agradeceu em silêncio o consolo devotado pela mão que o avô lhe apoiou sobre o ombro. --Tem que pensar antes de dizer as coisas --acrescentou Bartholemew em um tom
mais suave ao compreender o profundo efeito que a dureza de suas palavras tinha tido no filho. A granja é nossa vida, quão único importa. --Poderíamos enviar aos
pequenos --opinou Markhe. O moço tem direito a preocupar-se, com um elfo escuro nos arredores. Bartholemew se voltou e, resignado, apoiou o queixo na palma da
mão. Desgostava-lhe pensar em ter que separar à família. A família era sua força, como o tinha sido ao longo de mais de cinco gerações do Thistledown. Entretanto,
aqui estava ele reprovando ao Connor, inclusive apesar de que o moço só tinha falado pelo bem de todos. --Teria que havê-lo pensado melhor, pai --escutou sussurrar
ao Connor, e compreendeu que seu próprio orgulho não podia impor-se à dor do jovem. Sinto muito. --Não é necessário --replicou Bartholemew, e se voltou para outros.
Sou eu quem deve pedir desculpas. A presença do elfo escuro altera a todos. Tem razão, Connor. Encontramo-nos muito isolados para estar seguros. Como um eco a estas
palavras, escutaram o forte estalo da madeira ao quebrar-se e um grito afogado no exterior da casa, procedente do celeiro. Naquele instante terrível, Bartholemew
Thistledown compreendeu que teria que haver-se decidido antes, quando a luz do dia ainda lhe oferecia à família um certo amparo. Connor foi o primeiro em reagir.
Correu até a porta e a abriu. No pátio da granja o silêncio era absoluto: nem o canto do grilo perturbava a tenebrosa cena. Uma lua silenciosa espreitava sobre o
horizonte, arrancando largas e sinistras sombras de cada poste e árvore. Connor observou, sem atrever-se a respirar, durante um segundo que lhe pareceu uma hora.
A porta do celeiro rangeu e se desprendeu das dobradiças. Um elfo escuro apareceu no pátio. Connor fechou a porta e se apoiou contra ela para não cair do susto.
Olhou os atônitos rostos do pai e do avô e sussurrou: --Mãe... O drow... Os Thistledown maiores vacilaram, suas mentes convertidas em torvelinhos onde se mesclavam
um milhar de imagens a qual mais espantosa. Abandonaram as cadeiras ao mesmo tempo, Bartholemew em busca de uma arma e Markhe em direção ao Connor e a porta.

O súbito movimento dos maiores liberou ao Connor da paralisia. Desembainhou a espada e abriu a porta, disposto a enfrentar-se ao intruso. Um só salto de suas poderosas
pernas tinha bastado ao Ulgulu para chegar até a porta da casa. Connor cruzou a soleira cega de fúria, chocou-se contra a criatura -- que tinha o aspecto de um elfo
escuro magro-- e ricocheteou, atordoado, ao interior da cozinha. antes de que qualquer dos homens pudesse reagir, a cimitarra caiu sobre a cabeça do Connor com toda
a força do barje que a empunhava, e quase cortou ao jovem pela metade. Ulgulu entrou na cozinha. Viu o ancião --o inimigo menos importante-- que se lançava contra
ele, e apelou a sua natureza mágica para derrotar o ataque. Uma onda de emoção transmitida sacudiu ao Markhe Thistledown, uma onda de desespero e terror tão grande
que não podia combatê-la. Sua boca se abriu em um grito silencioso e retrocedeu cambaleante, com as mãos obstinadas ao peito, até chocar contra a parede. A carga
do Bartholemew Thistledown tinha todo o peso da raiva desbocada. O granjeiro chiava como um possesso enquanto baixava a forquilha e carregava contra o intruso que
tinha matado a seu filho. A magra figura que encarnava ao barje não diminuía a tremenda força do Ulgulu. Quando as pontas da forquilha estavam a uns poucos centímetros
do peito da criatura, Ulgulu descarregou um tapa contra a arma. Bartholemew se parou em seco ao receber o impacto do extremo da manga na barriga. Ulgulu tendeu uma
mão, levantou o Bartholemew do chão e estrelou a cabeça do granjeiro contra uma viga do teto com a força suficiente para lhe romper o pescoço. O barje lançou o
corpo do Bartholemew e sua improvisada arma ao outro extremo da cozinha, e se aproximou do ancião. Possivelmente Markhe o viu vir. Possivelmente o ancião estava
muito esmigalhado pela dor e a angústia para dar-se conta do que ocorria. Ulgulu se moveu para ele e abriu a boca bem grande. Queria devorar ao velho, nutrir-se
com a força vital do humano da mesma maneira que tinha feito com a mulher mais jovem no celeiro. Ulgulu tinha lamentado sua atuação no celeiro logo que se esfumou
o êxtase da matança. Uma vez mais a parte racional do barje se impôs aos instintos básicos. Com um grunhido de frustração, Ulgulu afundou a cimitarra no peito do
Markhe, e acabou com o sofrimento do ancião. O barje contemplou o resultado de suas ações. Lamentava não haver-se comido aos fortes granjeiros jovens, mas se recordou
a si mesmo que o ocorrido esta noite lhe reportaria grandes lucros. Um soluço afogado o levou a habitação onde dormiam os meninos. Ao dia seguinte Drizzt desceu
da montanha. Doía-lhe a pulso, onde o tinha ferido o trasgo, mas o corte se via limpo e o jovem confiava em que cicatrizaria sem problemas. escondeu-se entre a
maleza detrás da granja Thistledown, disposto a manter outro encontro com os meninos. Drizzt levava muito tempo só e tinha visto o suficiente da comunidade humana
para renunciar. Era aqui onde pretendia estabelecer seu lar, sempre e quando pudesse superar as barreiras do prejuízo, encarnadas sobre tudo por aquele homenzarrão
dos cães. Desde este ângulo, Drizzt não podia ver a porta do celeiro derrubada, e à luz de alvorada todo parecia normal na granja. Entretanto, os granjeiros não
apareceram como tinham por costume com a saída do sol. Cantou um galo e os animais se moveram no celeiro, mas a casa permaneceu em silêncio. Drizzt sabia que isto
era insólito, e o atribuiu ao encontro nas montanhas; a família se ocultava. Possivelmente inclusive tinham abandonado a granja, e ido procurar refúgio na aldeia.
Estes pensamentos escureceram o ânimo do drow; uma vez mais sua presença tinha prejudicado aos que tinha a seu redor. Recordou o
ocorrido no Blingdenstone, a cidade dos svirfneblis, o tumulto e o perigo provocado por sua aparição. O dia era radiante embora soprava uma forte brisa fria das
montanhas. Drizzt seguia sem ver nenhum movimento no pátio ou na casa. Continuou vigiando, cada vez mais preocupado. Um zumbido que já conhecia chamou a atenção
do Drizzt. Desembainhou a cimitarra e olhou a seu redor. Desejou poder chamar o Guenhwyvar, mas não tinha transcorrido o tempo suficiente da última visita do felino.
A pantera precisava descansar um dia mais em sua casa astral para recuperar forças e poder acompanhar ao Drizzt. Ao ver que não havia nenhum perigo iminente, o drow
se situou entre os troncos de duas árvores grandes, onde dispunha de uma posição mais fácil de defender frente à incrível velocidade do trasgo. O zumbido desapareceu
ao cabo de um instante, e não se via o trasgo por nenhuma parte. Drizzt dedicou o resto do dia a percorrer a maleza; montou armadilhas e escavou fossas pouco profundos.
Se tinha que lutar contra o trasgo, queria ter todas as vantagens possíveis. As sombras cada vez mais largas do ocaso voltaram a atenção do Drizzt para a granja
Thistledown. Não se acendeu nenhuma só vela na casa para dissipar a escuridão. A preocupação do Drizzt foi em aumento. A volta do trasgo lhe tinha recordado os perigos
da região, e, ante a falta de atividade na granja, começou a sentir um profundo temor. O crepúsculo cedeu passo de noite. Saiu a lua e subiu lentamente pelo este,
mas seguia sem ver nenhuma só luz e sem escutar nenhum som através das janelas obscurecidas. Drizzt abandonou a maleza e cruzou à carreira o curto pátio traseiro.
Não tinha intenção de aproximar-se da casa; só queria ver o que podia averiguar. Se não via os cavalos e a carreta pequena, então podia dar por seguro que a família
tinha procurado refúgio na aldeia. Quando acabou de dar a volta ao celeiro e viu a porta queda, Drizzt soube no ato que algo não ia bem. Seus temores cresceram com
cada novo passo. Espiou através do oco da entrada e não o surpreendeu ver a carreta no meio do celeiro e os cavalos nas quadras. junto à estrada jazia a anciã, encolhida
e coberta com seu próprio sangue seca. Drizzt se aproximou e viu que a tinham matado com uma arma muita afiada. Imediatamente pensou no maligno trasgo e a cimitarra
roubada, mas quando encontrou o outro cadáver, detrás da carreta, compreendeu que algum outro monstro, mais cruel e poderoso, tinha participado dos crímenes. Drizzt
nem sequer pôde identificar o segundo corpo, ao meio devorar. Drizzt se esqueceu de toda precaução e pôs-se a correr para a casa. Encontrou os corpos dos homens
na cozinha e, para seu horror, aos meninos imóveis nas camas. A repulsão e a culpa sacudiram ao drow enquanto olhava aos pequenos mortos. A palavra "drizzit" ressonou
em sua mente ao contemplar ao menino loiro. Não podia suportar o tumulto emocional. tampou-se os ouvidos para não escutar a palavra acusadora, "drizzit!", mas foi
em vão. Ao sentir que se afogava, abandonou a casa. Se tivesse observado com mais parada, teria descoberto, debaixo da cama, a cimitarra desaparecida, partida em
duas e deixada para que a encontrassem os aldeãos.
SEGUNDA PARTE
A vigilante
Existe no mundo algo que apesar mais que a culpa sobre os ombros de um homem? suportei essa carga muitas vezes, levei-a durante muito tempo, por caminhos muito
compridos. A culpa é como uma espada de dois fios. Por um, curta em nome da justiça, impondo uma moralidade prática sobre aqueles que a temem. A culpa, a conseqüência
da consciência, é o que separa às pessoas de bem da maldade. Dada uma situação que promete um ganho, a maioria dos drows matariam a qualquer, parente ou desconhecido,
e partiriam sem nenhuma preocupação. O assassino drow pode temer a vingança mas não chorará pela vítima. Para os humanos --e também para os elfos da superfície
e todas as demais raças boas--, o sofrimento imposto pela consciência superará qualquer ameaça externa. Algumas consideram que a culpa --a consciência-- é a diferença
primária entre as distintas raças dos Reino. Neste sentido, a culpa deve ser considerada como uma força positiva. Mas há outro aspecto nesta emoção. A consciência
não sempre segue o julgamento racional. A culpa sempre é uma carga que se impõe a gente mesmo, embora em ocasiões não existam motivos. É o que passou comigo com
o passar do caminho desde o Menzoberranzan até o vale do Vento Gelado. Saí do Menzoberranzan carregado com a culpa da morte do Zaknafein, meu pai, sacrificado para
me salvar. Entrei no Blingdenstone com a culpa do sofrimento do Belwar Dissengulp, o svirfnebli mutilado por meu irmão. No percurso de muitos outros caminhos suportei
novas cargas: Clak, assassinado pelo monstro que me perseguia; os gnolls, aos que eu mesmo matei; e os granjeiros --a mais dolorosa--, aquela singela família camponesa
assassinada pelo cachorrinho de barje. Racionalmente, sei que não foi minha culpa, que aquelas ações estiveram fora de meu controle, ou em alguns casos, como o
dos gnolls, que atuei como era devido. Mas a razão é uma má defesa contra o peso da culpa. Com o tempo, animado pela confiança dos amigos, liberei-me de muitas
daquelas cargas. Outras permanecerão sempre comigo. Aceito-o como algo inevitável, e me ajudarão a guiar meus passados futuros. Este, acredito, é o verdadeiro propósito
da consciência.
DRIZZT DOU'URDEM
6
Sundabar
--OH, basta, Fret --disse a mulher alta ao pequeno de barba grisalha e túnica branca, lhe apartando as mãos. passou-se os dedos pela espessa cabeleira castanha,
emaranhando-a.
--Vá, vá --replicou o pequeno, que imediatamente moveu as mãos outra vez para a mancha da capa da mulher. Esfregou-a frenético, mas os contínuos movimentos da vigilante
impediram que progredisse muito com a limpeza. Senhora Garra de Falcão, acredito que te viria muito bem consultar algum manual de bons maneiras. --Acabo de chegar
de Lua Chapeada --respondeu Pomba Garra de Falcão indignada, ao tempo que piscava os olhos um olho ao Gabriel, o outro guerreiro presente na habitação, um homem
alto de rosto severo. É normal sujar-se no caminho. --Faz quase uma semana disso! --protestou o pequeno. Ontem à noite assistiu ao banquete com esta mesma capa!
Então o pequeno advertiu que com a pressa por limpar a capa de Pomba se manchou a túnica de seda, e a catástrofe fez que se esquecesse da vigilante. --Querido Fret
--acrescentou Pomba, que molhou um dedo em saliva para depois esfregá-lo contra a mancha da capa--, é um ajudante do mais estranho. O rosto do pequeno se voltou
de
um vermelho aceso, e golpeou o chão de cerâmica com sua brilhante sapatilha. --Ajudante? --gritou. Eu diria... --Diga-o já! --burlou-se Pomba. --Sou o mais...,
um dos mais famosos sábios do norte! Minha tese sobre a etiqueta correta nos banquetes raciais... --Ou a falta da etiqueta correta --interrompeu-o Gabriel, sem poder
evitá-lo. O pequeno se voltou para ele com gesto azedo--: Ao menos no que concerne aos pequenos --acabou o guerreiro com uma expressão inocente. O pequeno tremeu
visivelmente,
e suas sapatilhas marcaram um ritmo furioso no duro chão. --OH, querido Fret --interveio Pomba, que apoiou uma mão sobre o ombro do pequeno em um gesto de consolo
e depois a fez correr ao longo de sua pulcra e bem recortada barba. --Fred! --exclamou o pequeno zangado, apartando a mão da dama. Fredegar! Pomba e Gabriel cruzaram
um olhar de picardia, e depois gritaram ao uníssono o sobrenome do pequeno em meio de uma explosão de risadas: --Triturarrocas! --Fredegar limpiaplumas seria mais
adequado! --acrescentou Gabriel. Um olhar ao furioso pequeno avisou ao homem que tinha chegado o momento de largar-se, assim recolheu a mochila e escapou da habitação,
não sem antes lhe fazer um
última piscada a Pomba. --Só desejava ajudar. O pequeno afundou as mãos nos imensos bolsos e agachou a cabeça. --E o tem feito! --afirmou Pomba para consolá-lo.
--Refiro-me
a que tem uma audiência com o Helm Amigo dos Pequenos -- prosseguiu Fret, recuperando parte de seu orgulho. Alguém deve vestir corretamente quando vê o senhor do
Sundabar. --Certamente --aceitou Pomba. Mas todo meu enxoval é o que vê, querido Fret, manchado e sujo pelo caminho. Muito me temo que não parecerei muito elegante
aos olhos do senhor do Sundabar: ele e minha irmã se feito tão amigos... --Esta vez tocou a Pomba fingir debilidade, e, embora sua espada tinha convertido a muitos
gigantes em comida para os abutres, a vigilante podia comportar-se como uma menina indefesa melhor que ninguém. O que farei? --Inclinou a cabeça enquanto observava
ao pequeno. Possivelmente --insinuou-- se pudesse... --O rosto do Fret começou a animar-se. Não --disse Pomba com um suspiro. Nunca me atreveria a lhe pedir
isso Fret começou a dar saltos de alegria e aplaudiu com suas gordinhas mãos. --Claro que pode, senhora Garra de Falcão! Pede! Pomba se mordeu o lábio para conter
a risada enquanto o pequeno entusiasmado saía da habitação. Apesar de que freqüentemente tirava o sarro, não vacilava em reconhecer que queria ao pequeno. Fret tinha
passado muitos anos em Lua Chapeada, onde governava a irmã de Pomba, e tinha feito muitas contribuições à famosa biblioteca daquele país. Fret era um sábio de fama,
conhecido por suas extensas investigações sobre os costumes de outras raças, tão boas como malignas, e também era um perito em temas de semidioses. Além disso o
considerava como um compositor de primeira. Quantas vezes, perguntou-se Pomba com humildade sincera, tinha cavalgado por um atalho montanhoso, assobiando uma melodia
alegre composta por ele? --Querido Fret --sussurrou a vigilante quando retornou o pequeno, com uma capa de seda pendurada do braço, mas bem pregada para que não
roçasse
o chão, diversas jóias e um par de sapatos na moda na outra mão, uma dúzia de alfinetes sujeitos entre os lábios, e uma cinta métrica pendurada de uma orelha. Pomba
ocultou o sorriso e decidiu render-se à vontade do pequeno. Entraria nas pontas dos pés na sala de audiências do Helm Amigo dos Pequenos embelezada com uma túnica
de
seda, a viva imagem de uma dama, com o diminuto sábio cheio de orgulho a seu lado. Enquanto isso, como bem sabia, os sapatos lhe provocariam dor de pés e lhe picaria
o corpo em algum lugar onde a túnica lhe impediria de arranhar-se. "São os inconvenientes da posição", pensou Pomba, com o olhar posto na túnica e os acessórios.
Depois olhou a expressão feliz no rosto do Fret e compreendeu que bem valia a pena suportar as moléstias. "São os inconvenientes da amizade", disse-se a si mesmo.
O camponês tinha cavalgado sem descanso durante mais de um dia; o avistamiento de um elfo escuro freqüentemente tinha estes efeitos na gente singela. Tinha saído
do Maldobar com dois cavalos; alguém o tinha deixado a uma trintena de quilômetros mais atrás, a meio caminho entre o povo e a cidade. Se tinha sorte, encontraria
ao cavalo são e salvo na viagem de volta. O segundo animal, o melhor semental do camponês, começava a dar amostras de cansaço. em que pese a isso, o cavaleiro se
tombou sobre a arreios e lhe cravou as esporas. As tochas do guarda noturno do Sundabar, colocadas no mais alto das grossas muralhas de pedra, estavam à vista. --Alto!
Quem vive? --gritou o capitão do guarda quando o cavaleiro apareceu ante o portão, meia hora mais tarde.
Pomba se apoiou no Fret enquanto seguiam ao ajudante do Helm pelo comprido e cenário corredor que conduzia à sala de audiências. A vigilante podia cruzar uma ponte
de cordas sem corrimões, podia disparar o arco com uma pontaria mortal montada em um cavalo ao galope, podia subir a uma árvore vestida com cota de malha, escudo
e espada em mão, mas era incapaz, apesar de sua experiência e agilidade, de caminhar com os elegantes sapatos que Fret a tinha obrigado a calçar. --E esta túnica
--murmurou Pomba zangada, segura de que a pouco prática gosta muito se rasgaria pelas costuras se tinha ocasião de blandir a espada, ou inclusive se enchia muito
os pulmões. Fret lhe dirigiu um olhar, ferido. --Esta túnica é a coisa mais bonita que vi... --gaguejou Pomba, preocupada com não provocar as iras do pulcro pequeno.
De verdade que não sei como expressar minha gratidão, querido Fret. Os cinzas olhos do pequeno resplandeceram de alegria, embora não tinha muito claro se devia acreditar
nas palavras da mulher. Em qualquer caso, Fret pensava que Pomba o apreciava o suficiente para aceitar suas sugestões, e este fato era o único importante para ele.
--Com sua permissão, minha senhora--disse uma voz detrás deles. Toda a comitiva se voltou para ver o capitão do guarda noturno, acompanhado por um camponês, que
se aproximavam pelo corredor. --Meu bom capitão! --protestou Fret ante a violação do protocolo. Se quiserem uma audiência com a dama, devem fazer a petição no
vestíbulo. Então, e só então, e unicamente se o senhor o permitir, poderão... Pomba apoiou uma mão sobre o ombro do pequeno para fazê-lo calar. Tinha reconhecido
a
urgência marcada nos rostos dos homens, uma expressão que a heroína aventureira havia visto muitas vezes. --Adiante, capitão --disse e, para aplacar ao Fret, acrescentou--:
Ficam uns momentos para que dê começo a audiência. O senhor Helm não terá que nos esperar. --Mil perdões, minha senhora --disse o camponês, manuseando a boina.
Sou um lavrador do Maldobar, um pequeno povo ao norte... --Conheço Maldobar --assegurou-lhe Pomba. Vi-o muitas vezes das montanhas. Um povo muito bonito de gente
honrada. --O camponês se animou ao escutar o completo. Espero que nenhum mal tenha cansado sobre o Maldobar. --Ainda não, minha senhora --respondeu o camponês--,
mas avistamos a um inimigo muito perigoso. --Fez uma pausa e olhou ao capitão em busca de apoio. Drow. Pomba abriu os olhos ao escutar a notícia. Inclusive Fret
deixou de repicar com o pé e emprestou atenção. --Quantos? --perguntou Pomba. --Só um, que nós tenhamos visto. Tememos que se trata de um explorador ou um espião,
e que traz más intenções. --Quem viu ao drow? --Primeiro uns meninos --respondeu o camponês. Fret suspirou ao escutar a resposta e reatou o repico. --Meninos? --exclamou
o pequeno. --E depois McGristle --afirmou o lavrador sem deixar-se intimidar, com o olhar posto em Pomba--, e McGristle não se equivoca. --O que é um McGristle?
--chiou
Fret. --refere-se ao Roddy McGristle --explicou-lhe Pomba com um tom um pouco azedo, antes de que o camponês pudesse dizer uma palavra. Um conhecido caçador de
recompensas e trapaceiro. --O drow matou a um dos cães do Roddy --acrescentou o camponês,
excitado--, e esteve a ponto de matá-lo a ele também. Tombou uma árvore em cima dele! Roddy perdeu uma orelha! Pomba não entendeu muito bem do que falava o homem,
mas tampouco o fazia falta. Tinham visto e confirmado a presença de um elfo escuro na região, e isto era suficiente para que a vigilante entrasse em ação. tirou-se
os elegantes sapatos e os alcançou ao Fret. Depois pediu a um de quão ajudantes procurasse imediatamente a seus companheiros de viagem e disse a outro que transmitisse
suas desculpas ao senhor do Sundabar. --Mas... senhora Garra de Falcão! --protestou Fret. --Não há tempo para cortesias --afirmou Pomba. Fret pôde ver por seu entusiasmo
que não lamentava muito cancelar a audiência com o Helm. Agora mesmo a mulher se retorcia tentando abrir o broche que lhe fechava a magnífica túnica pelas costas.
--Sua irmã não estará muito contente --grunhiu Fret, sem deixar de repicar com o pé. --Minha irmã pendurou a mochila faz muitos anos --replicou Pomba--, mas eu ainda
não tive tempo de tirar o barro do caminho da minha. --Isso é certo --murmurou o pequeno, em um tom que tinha pouco de completo. --Então, ocuparão-lhes do problema?
--perguntou o camponês esperançado. --Certamente --respondeu Pomba. Nenhum vigilante que se respeite pode passar por cima o avistamiento de um elfo escuro! Meus
três companheiros e eu sairemos para o Maldobar esta mesma noite, embora você deverá ficar. É óbvio que cavalgaste duro, e precisa dormir. Pomba olhou por um instante
a seu redor e se levou um dedo aos lábios. --E agora o que acontece? --inquiriu o pequeno, zangado. --Tenho pouca experiência em questões de drows --disse Pomba
com
uma súbita expressão de picardia, enquanto olhava ao Fret--, e que eu saiba meus companheiros nunca se enfrentaram a eles. --O sorriso cada vez mais amplo da mulher
preocupou ao pequeno. Vêem, meu querido Fret --acrescentou Pomba em tom carinhoso, e imediatamente pôs-se a andar para a sala de audiências do Helm escoltada pelo
sábio, o capitão e o camponês do Maldobar. Por um momento, Fret se sentiu confuso e também esperançado ao ver para onde foram. Assim que Pomba começou a falar com
o Helm, o amo do Fret, desculpando-se primeiro pelo imprevisto e depois lhe solicitando que atribuísse a alguém capaz de ajudá-la na missão no Maldobar, o pequeno
entendeu a jogada. À alvorada do dia seguinte, o grupo de Pomba, formado por um elfo arqueiro e dois guerreiros humanos, tinha cavalgado quase vinte quilômetros
das portas do Sundabar. --Que asco! --gemeu Fret quando saiu o sol. Cavalgava em um fornido poni adbar ao lado de Pomba. Olhe como tenho de sujos meus formosos
objetos! Sem dúvida, este será o fim de todos nós! Morrer imundos em um caminho infame! --Escreve uma canção --aconselhou-lhe Pomba, compartilhando um sorriso com
os outros três companheiros. Poderia chamá-la-a balada dos cinco aventureiros afogados. O furioso olhar do Fret só durou o tempo que demorou Pomba em lhe recordar
que Helm Amigo dos Pequenos, o senhor do Sundabar em pessoa, tinha ordenado que formasse parte da expedição.
7
Fúria lhe rutilem
A mesma manhã em que o grupo de Pomba tomou pela estrada para o Maldobar, Drizzt iniciou uma viagem por sua conta. O horror inicial do terrível descobrimento da
noite anterior não tinha diminuído, e o drow temia que nunca poderia superá-lo, mas também outra emoção se entremeteu no pensamento do Drizzt. Não podia fazer nada
pelos pobres granjeiros e seus filhos, nada exceto vingar sua morte. A idéia não lhe resultava muito agradável. Tinha deixado a Antípoda Escura para afastar da selvageria
de seu mundo, mas com as imagens do açougue ainda frescas em sua memória e sem ter a ninguém com quem discutir o problema, só podia pensar em sua cimitarra como
o meio de fazer justiça. Drizzt tomou duas precauções antes de seguir o rastro do assassino. Primeiro retornou até o pátio da granja, até a parte traseira da casa,
onde os granjeiros tinham deixado um arado quebrado. A grade era muito pesada, mas o drow, resolvido a tudo, carregou-a e a levou a ombros sem preocupar-se com a
moléstia. Depois chamou o Guenhwyvar. logo que apareceu a pantera e se fixou na expressão do Drizzt, adotou uma posição de alerta. Guenhwyvar levava com o Drizzt
o tempo suficiente para reconhecer o significado daquela expressão e saber que não demorariam para liberar uma batalha antes de que pudesse retornar a seu lar astral.
Partiram antes da madrugada. Guenhwyvar podia seguir o rastro do barje sem problemas, tal qual tinha esperado Ulgulu. Demorados pelo peso da grade, partiam a passo
lento mas constante, e, assim que Drizzt ouviu o rumor de um zumbido longínquo, soube que tinham feito bem em carregar com a peça do arado. De todos os modos, o
resto da manhã passou sem incidentes. O rastro levou aos companheiros até uma garganta pedregosa e ao pé de um alto escarpado. Ao Drizzt preocupou ter que escalar
o escarpado --e abandonar a grade-- mas muito em breve viu o estreito atalho que subia pela acidentada parede. O caminho não apresentava muitas dificuldades embora
sim abundavam as curvas cegas. Disposto a aproveitar ao máximo as vantagens do terreno, Drizzt mandou ao Guenhwyvar que se adiantasse e seguiu sozinho, carregado
com a grade, sentindo-se desprotegido a campo aberto. Mas esta sensação não apaziguou o fogo nos olhos lilás do elfo, que refulgiam sob a sombra do capuz da enorme
capa gnoll. Se a visão do precipício que se abria a seu lado o intimidava em algum momento, não necessitava mais que recordar aos camponeses assassinados para dar-se
ânimos. Ao cabo de uns poucos minutos, quando Drizzt ouviu o zumbido em algum lugar do atalho um pouco mais abaixo, limitou-se a sorrir. O zumbido se aproximou depressa.
Drizzt se apertou contra a parede do escarpado e, desembainhando a cimitarra, calculou cuidadosamente o tempo que demorava o trasgo em aproximar-se. Tephanis apareceu
como um raio junto ao drow, sem deixar de mover a pequena adaga em busca de um oco nas fintas defensivas da cimitarra. Um segundo depois já se foi, para a parte
mais alta, não sem antes alcançar ao Drizzt em um ombro.
O drow inspecionou a ferida e assentiu com expressão severo: não tinha nenhuma gravidade. Era consciente de que não podia igualar a rapidez do trasgo, e também
de que esta lesão o ajudaria a conseguir a vitória final. Um rugido pôs ao Drizzt outra vez alerta. Guenhwyvar tinha encontrado ao trasgo, e com suas garras relampagueantes,
capazes de igualar a velocidade da pequena criatura, tinha-a obrigado a retroceder. Uma vez mais, Drizzt apoiou as costas contra a parede e controlou a aproximação
do zumbido. No momento em que o trasgo apareceu pela curva, o jovem saltou ao centro do atalho, cimitarra em alto. A outra mão do drow era menos visível e sustentava
um objeto de metal, preparado para movê-lo e fechar o passo. O trasgo se moveu para a parede esquivando a arma do Drizzt sem nenhuma dificuldade; mas atento à cimitarra,
não viu a outra mão do Drizzt. O elfo, que quase não via os movimentos do trasgo, sorriu satisfeito quando um súbito "Bong!" e a forte sacudida no braço lhe indicaram
que a criatura se estrelou contra a grade do arado. Deixou cair a peça de metal, agarrou ao trasgo inconsciente pela garganta e o levantou bem alto. Guenhwyvar apareceu
na curva no momento em que o trasgo voltava em si e sacudia a cabeça com tanta violência que suas largas e bicudas orelhas produziram um ruído como o das bofetadas.
--Que criatura é você? --perguntou-lhe Drizzt em língua goblin, a mesma que lhe tinha servido para comunicar-se com a banda gnoll. surpreendeu-se ao ver que o trasgo
lhe compreendia, embora ele não conseguiu entender nenhuma sílaba da velocísima resposta. Sacudiu ao trasgo para que se calasse, e grunhiu--: Uma palavra de uma
vez! Como te chama? --Tephanis --respondeu o trasgo, indignado. Podia mover as pernas cem vezes por segundo, mas não lhe servia de nada pendurado no ar. Jogou um
olhar ao chão e viu a adaga junto à grade do arado. --Matou aos camponeses? --disse Drizzt, aproximando a cimitarra, e a ponto esteve de trespassar ao trasgo quando
este soltou a gargalhada. --Não --apressou-se a responder Tephanis. --Quem o fez? --Ulgulu! --proclamou o trasgo. Assinalou o atalho e pronunciou uma enxurrada de
palavras incompreensíveis. Drizzt conseguiu captar algumas: "Ulgulu... espera... janta". Drizzt não sabia o que fazer com o prisioneiro. Tephanis era muito rápido
para poder confiar-se nele se o soltava. Olhou ao Guenhwyvar, sentada tranqüilamente uns passos mais à frente, mas a pantera se limitou a bocejar. O elfo pensava
a seguinte pergunta que podia lhe esclarecer o papel do Tephanis no assassinato, quando o presumido trasgo decidiu que já tinha agüentado suficiente. Moveu as mãos
velozmente e, antes de que Drizzt pudesse reagir, tirou outra adaga de uma das botas e lhe fez outro talho na pulso ferida. Esta vez, o trasgo julgou mal ao oponente.
Drizzt não podia igualar sua velocidade; nem sequer podia seguir os movimentos da adaga. Entretanto, a pesar da dor, Drizzt se sentia muito furioso para preocupar-se
das feridas. Apertou com força a garganta do trasgo e moveu a cimitarra, mas Tephanis, sem deixar de rir, conseguiu esquivar o golpe. Tephanis atirou outra punhalada
no antebraço do drow. Farto, Drizzt escolheu uma tática que o trasgo não podia rebater, quão única o privava da vantagem da velocidade. Estrelou a cabeça do Tephanis
contra a parede, e depois lançou o corpo inconsciente ao precipício. Ao cabo de uns minutos, Drizzt e Guenhwyvar se encontravam escondidos entre os arbustos ao
pé de uma levantada e rochosa ladeira. Na cúpula, oculta detrás de ramos e maleza, havia uma cova, e de vez em quando se escutavam vozes goblins
procedentes do interior. Perto da cova, além do pendente, havia um escarpado e, além da entrada, a montanha ascendia quase verticalmente. O rastro, embora tênue
na pedra nua, tinha conduzido ao Drizzt e ao Guenhwyvar até ali; não cabia nenhuma dúvida de que o monstro que tinha assassinado aos granjeiros estava na cova. Uma
vez mais, Drizzt discutiu consigo mesmo a decisão de vingar a morte dos camponeses. Tivesse preferido uma justiça mais civilizada, uma corte que impor uma sentença,
mas o que podia fazer? Não podia ir à aldeia dos humanos e expor suas suspeitas, nem a eles nem a ninguém. Escondido entre os arbustos, Drizzt pensou outra vez nos
camponeses, no menino de cabelos loiros, na bonita adolescente, quase uma mulher, e no jovem que tinha desarmado no bosquecillo de amoras. Fez um esforço por serenar
a respiração. Na Antípoda Escura algumas vezes tinha aceito seus impulsos instintivos, a parte selvagem de si mesmo que lutava com uma eficácia mortal, e agora podia
sentir como aquele outro eu pugnava por dominá-lo. Ao princípio, tentou dominar a ira, mas depois recordou as lições aprendidas. Esta parte escura também era
dele, uma ferramenta para a sobrevivência, e não do todo maligna. Era necessária. De todos os modos, Drizzt compreendia sua desvantagem nesta situação. Não sabia
quantos
eram os inimigos, ou a classe de monstros que podiam ser. Ouvia os goblins, mas o açougue na granja indicava que alguém muito mais forte tinha intervindo nela. O
bom julgamento lhe aconselhou que devia sentar-se e esperar, averiguar algo mais do inimigo. Mas outra lembrança, a cena no dormitório dos meninos, fez-lhe desprezar
toda prudência. Com a cimitarra em uma mão e a adaga do trasgo na outra, Drizzt subiu levantada ladeira. Não diminuiu o passo quando chegou à cova; apartou sem mais
o montão de ramos que a dissimulavam e entrou. Guenhwyvar vacilou e se manteve atrasada, confundida pela tática direta do drow. Tephanis sentiu o ar fresco que lhe
acariciava o rosto e por um momento pensou que tinha um sonho muito agradável. A ilusão lhe durou muito pouco ao advertir que caía no vazio. Por fortuna, Tephanis
estava perto da parede. Começou a mover mãos e pés a uma velocidade tremenda e a descarregar tapas e chutes no escarpado em um esforço por diminuir o descida. Ao
mesmo tempo começou a recitar a letanía de um feitiço de levitação, provavelmente a única coisa que podia salvá-lo. Passaram uns segundos antes de notar que flutuava.
Chocou-se contra o chão com força, mas as feridas não revestiam muita importância. ficou de pé lentamente e se sacudiu o pó. Seu primeiro pensamento foi avisar ao
Ulgulu da presença do drow; não obstante, descartou-o no ato. Não podia levitar até a cova a tempo para alertar ao barje, e só havia um atalho na cara do escarpado:
o mesmo que ocupava o drow. Tephanis não tinha nenhuma vontade de voltar a enfrentar-se a ele. Ulgulu não tinha feito nenhum esforço por ocultar o rastro. O elfo
escuro tinha servido a seus propósitos; agora pensava comer-se ao Drizzt, uma comida que possivelmente seria suficiente para alcançar a maturidade e permitir retornar
a Gehenna. Os dois guardas goblins do Ulgulu não se surpreenderam ante a entrada do Drizzt. Ulgulu lhes tinha avisado que se apresentaria o drow e que só deviam
retê-lo no vestíbulo até que o barje pudesse atendê-lo. Os goblins calaram bruscamente ao vê-lo aparecer, cruzaram as lanças diante da cortina, e incharam os raquíticos
peitos, acatando como uns idiotas as ordens de seu chefe. --Ninguém pode em... --Foi tudo o que alcançou a dizer um deles antes de que
a cimitarra do Drizzt os degolasse aos dois com o mesmo golpe. As lanças caíram ao chão enquanto os sentinelas se levavam as mãos às gargantas; sem diminuir o passo,
Drizzt atravessou a cortina. No centro da sala interior, o drow viu seu inimigo. O gigantesco barje de pele púrpura o esperava com os braços cruzados e um sorriso
cruel no rosto. Drizzt lançou a adaga e carregou contra o rival. O lançamento lhe salvou a vida, porque, quando a adaga passou sem obstáculo pelo corpo do inimigo,
o drow compreendeu que lhe tinham tendido uma armadilha. Mesmo assim, ao não poder controlar o impulso da carga, sua cimitarra penetrou na imagem sem fazer branco
em nada tangível. O barje real se encontrava atrás do trono de pedra ao fundo da habitação. Graças a um truque de seu considerável repertório mágico, Kempfana tinha
projetado uma imagem de si mesmo no centro da sala para manter ao drow em seu lugar. Imediatamente os instintos do Drizzt lhe avisaram do engano. Não se enfrentava
a nenhum monstro real a não ser a uma aparição criada para deixá-lo ao descoberto em uma posição vulnerável. Apenas se havia móveis na habitação; não havia nada
perto onde poder refugiar-se. Ulgulu, levitando por cima do drow, baixou depressa e se posou com suavidade a suas costas. O plano era perfeito, e o objetivo estava
exatamente em seu sítio. Drizzt, com os músculos e reflexos treinados à perfeição para o combate, pressentiu-o e se mergulhou na imagem no momento em que Ulgulu
lançava um murro. A enorme emano do barje só roçou a longa cabeleira do Drizzt, mas foi suficiente para lhe fazer torcer a cabeça. O jovem deu meia volta no ar enquanto
se mergulhava e ficou de pé para enfrentar-se ao Ulgulu assim que tocou o chão. encontrou-se frente a um monstro ainda maior que a imagem gigante, mas isto não o
intimidou. Como uma mola, lançou-se contra o rival e, antes de que Ulgulu pudesse reagir, afundou-lhe a cimitarra três vezes na pança e lhe abriu um buraco debaixo
do queixo. O barje rugiu encolerizado embora as feridas não eram graves, porque a arma do Drizzt tinha perdido grande parte da magia durante o tempo passado na superfície
e só arma mágicas --como os dentes e as garras do Guenhwyvar-- podiam causar autêntico machuco a uma criatura dos abismos da Gehenna. A enorme pantera se chocou
contra a nuca do Ulgulu com a força suficiente para fazer cair ao barje de cara ao chão. Ulgulu jamais tinha experiente tanto dor como o que lhe produziam as garras
do Guenhwyvar ao lhe rasgar a cabeça. Drizzt se aproximou disposto a intervir no combate, quando ouviu um estrépito procedente do fundo da sala. Kempfana abandonou
seu esconderijo atrás do trono, chiando de fúria. Agora era o turno do Drizzt para utilizar algum truque mágico. Lançou um globo de escuridão no caminho do barje
de pele púrpura, mergulhou-se no interior e ficou a quatro patas. Incapaz de deter-se, Kempfana penetrou no globo, tropeçou com o corpo do drow --com tanta força
que ficou sem respiração-- e caiu ao chão. Kempfana sacudiu a cabeça para limpar-se e se apoiou nas mãos para levantar-se. Sem perder um instante, Drizzt se montou
escarranchado sobre as costas do barje e começou a descarregar ferozes cutiladas contra a cabeça. O sangue empapava o cabelo da Kempfana quando por fim conseguiu
tirar-se ao drow de cima. ergueu-se cambaleante e se voltou para fazer frente a Drizzt. Ao outro extremo da sala, Ulgulu se sacudia violentamente, rodava sobre si
mesmo e dava saltos. A pantera era muito rápida e ágil para os torpes tapas do gigante. Uma dúzia de talhos sulcavam o rosto do Ulgulu, e agora Guenhwyvar tinha
parecido os dentes na nuca do monstro e com as quatro patas lhe rasgava as costas.
Mas Ulgulu tinha outra opção. Os ossos rangeram e se reformaram. O ferido rosto do barje se converteu em um focinho enorme dotado com grandes e afiados dentes.
Um cabelo hirsuto cresceu por todo seu corpo protegendo o das garras da pantera. Os braços se transformaram em patas. Agora Guenhwyvar lutava contra um lobo gigante,
e sua vantagem não demorou para desaparecer. Kempfana avançou lentamente, consciente do perigo que representava Drizzt. --Você é o responsável por sua morte --disse
Drizzt na língua dos goblins, com um tom tão frio que o barje de pele púrpura se deteve. Kempfana não era uma criatura estúpida. O barje tinha sofrido o terrível
castigo da cimitarra e não estava disposto a receber mais feridas, assim utilizou seus outros poderes sobrenaturais. Em um abrir e fechar de olhos, o barje púrpura
se escabulló por uma porta extradimensional e reapareceu atrás do drow. Assim que viu desaparecer a Kempfana, Drizzt se moveu instintivamente para um lado. Mas o
golpe a traição foi mais rápido do que esperava: pilhou-o em metade das costas e o jogou no outro lado da sala. Drizzt se estrelou contra a parede e, sem fôlego,
só pôde ficar de joelhos. Esta vez Kempfana avançou sem precauções; o drow tinha perdido a cimitarra quase aos pés do monstro e não podia recuperá-la. O grande lobo-barje,
que quase dobrava em tamanho ao Guenhwyvar, rodou sobre si mesmo e esmagou à pantera. As enormes fauces estalaram muito perto da garganta do Guenhwyvar, que se defendeu
como pôde. Consciente de que não podia vencer em uma briga casal contra o lobo e de que sua única vantagem era a mobilidade, a pantera se escorreu de debaixo do
lobo e voou para a cortina como uma flecha negra. Ulgulu soltou um uivo e foi atrás dela; arrancou a cortina a seu passo e seguiu adiante, para a minguante luz diurna.
Guenhwyvar saiu da cova no momento em que Ulgulu arrancava a cortina, parou em seco e saltou para a ladeira por cima da entrada. Quando apareceu o grande lobo, a
pantera se lançou sobre as costas do Ulgulu e reatou o ataque com novos brios. --Foi Ulgulu quem matou aos camponeses, não eu --grunhiu Kempfana enquanto se aproximava.
De um chute lançou a cimitarra do Drizzt ao outro lado da sala. Ulgulu quer vingar a morte dos gnolls. Mas serei eu o que lhe mate, guerreiro drow. Alimentarei-me
com sua força vital para poder crescer e maturar! Drizzt, preocupado por recuperar o fôlego, apenas se escutou as palavras. A única coisa que ocupava sua mente era
a lembrança dos camponeses mortos, as imagens que lhe davam coragem. O barje se aproximou, e Drizzt o fulminou com um olhar terrível apesar do desesperado de sua
situação. Kempfana vacilou ante o ardente olhar dos olhos lilás, e a demora do barje deu ao Drizzt o tempo que necessitava. enfrentou-se antes a monstros gigantes,
sobre tudo a oseogarfios. As cimitarras lhe tinham servido para acabar as batalhas, mas no primeiro ataque sempre tinha empregado o corpo. A dor nas costas não era
nada comparado com sua fúria. separou-se da parede, permaneceu em cuclillas e no momento oportuno se mergulhou entre as pernas da Kempfana ao tempo que se girava
para sujeitar-se à curva do barje. Despreocupado, Kempfana se agachou para agarrar ao escorregadio elfo escuro. Drizzt evitou as manazas do gigante o suficiente
para encontrar um ponto de apoio. Kempfana aceitou os ataques como uma moléstia menor. Quando Drizzt fez perder o
equilíbrio ao barje, Kempfana não opôs resistência e se deixou cair, convencido de que esmagaria ao drow. Uma vez mais, Drizzt foi muito rápido. escorreu-se antes
de que o gigante tocasse o chão, deu um salto e correu para o outro extremo da sala. --Não, de maneira nenhuma! --vociferou Kempfana, ficando a quatro patas. O monstro
se incorporou e perseguiu o Drizzt. No preciso momento em que Drizzt recolhia a cimitarra, Kempfana o rodeou com os braços e o levantou no ar. Esmagarei-te e te
comerei! --rugiu a criatura, e Drizzt escutou o ruído de uma costela ao quebrar-se. Tentou escapar para olhar ao rival, mas depois trocou de idéia e se concentrou
em liberar o braço armado. partiu-se outra costela, e os enormes braços da Kempfana aumentaram a pressão. Entretanto, o barje não queria matar ao drow, consciente
do muito que avançaria para a maturidade se devorava vivo a um inimigo tão poderoso, se se nutria com a força vital do Drizzt. --Comerei-te, drow. --O gigante riu.
Devorarei-te vivo! Drizzt empunhou a cimitarra com as duas mãos com a força inspirada pelas imagens da granja. Conseguiu liberar a arma e a levantou por cima da
cabeça. A lâmina entrou na boca aberta da Kempfana e desceu pela garganta. Drizzt removeu a cimitarra de um lado a outro. Kempfana se sacudiu, enlouquecido pela
dor,
e os músculos e as articulações do Drizzt quase se romperam pela pressão. Mas tinha encontrado o ponto débil do inimigo e não retrocedeu no empenho. O barje se desabou,
afogado, e rodou sobre o Drizzt com a intenção de esmagá-lo. A dor começou a penetrar na consciência do Drizzt. --Não! --gritou o drow, aferrando-se à imagem do
menino loiro, assassinado em sua cama. Drizzt continuou movendo a cimitarra. Os sons do ar a seu passo pela garganta cheia de sangue do barje eram espantosos. O
jovem compreendeu que tinha ganho a batalha quando o monstro que tinha em cima deixou de sacudir-se. Drizzt não desejava outra coisa que acurrucarse e recuperar
a respiração, mas se disse a si mesmo que ainda não tinha terminado. Saiu de debaixo da mole da Kempfana, limpou-se o sangue dos lábios, seu próprio sangue, arrancou
a cimitarra da boca do barje e recuperou a adaga. Sabia que as feridas eram graves, que podia morrer se não as atendia imediatamente. Só com um grande esforço podia
levar um pouco de ar aos pulmões. Assim e tudo não podia abandonar o combate porque Ulgulu, o monstro assassino dos granjeiros, ainda seguia com vida. Guenhwyvar
saltou do lombo do lobo gigante outra vez à levantada ladeira por cima da boca da cova. Ulgulu se voltou, furioso, e arranhou as pedras em um esforço por persegui-la.
No ato a pantera repetiu o salto para cair sobre o lombo do Ulgulu e lhe dar quatro zarpazos. Quando o lobo se voltou, Guenhwyvar procurou refúgio na ladeira. O
jogo se repetiu várias vezes: Guenhwyvar atacava e fugia. Por fim o lobo se antecipou à manobra e apanhou à pantera com as poderosas mandíbulas. Guenhwyvar conseguiu
escapar mas foi dar ao bordo do abismo. Ulgulu se aproximou dela, lhe fechando o passo. Drizzt saiu da cova quando o grande lobo obrigava a retroceder ao Guenhwyvar.
desprenderam-se umas quantas pedras, que caíram ao fundo do abismo; as patas traseiras da pantera escorregaram e só de milagre encontraram um ponto de apoio. Inclusive
a capitalista Guenhwyvar não podia opor-se ao peso e a força do lobobarje.
O drow compreendeu imediatamente que não poderia apartar ao lobo a tempo para salvar a sua companheira. Tirou a estatueta de ônix e a lançou perto dos combatentes.
--Vete, Guenhwyvar --ordenou. Em outras circunstâncias a pantera não teria abandonado a seu amo em uma situação tão perigosa, mas Guenhwyvar entendeu o plano do
Drizzt. Ulgulu lançou a última investida disposto a despenhar ao Guenhwyvar de uma vez por todas. Então o monstro se encontrou empurrando em um nada. Ulgulu perdeu
o equilíbrio e tratou de sujeitar-se. Uma avalanche de pedras caiu ao vazio junto com a estatueta, e um segundo depois as seguiu o lobo. Os ossos se modificaram
uma vez mais e a pele se emagreceu. Ulgulu não podia realizar o feitiço de levitação com a forma de lobo. Desesperado, o barje concentrou todo o poder mental e começou
a recuperar o corpo de goblin. O focinho de lobo se cortou e voltou a ser um rosto achatado, as garras cederam passo aos braços. Quando Ulgulu se estrelou contra
o fundo só tinha conseguido transformar-se pela metade. Drizzt utilizou o feitiço de levitação para descer, sem dar-se pressa e bem perto da parede de pedra.
Como lhe tinha ocorrido em ocasiões anteriores, o feitiço não demorou para perder efeito. O elfo escorregou ao longo dos últimos seis metros e golpeou contra o chão
bastante forte. Viu o barje que se sacudia a uns poucos passos de distância e tentou levantar-se, mas perdeu o conhecimento e o envolveu a escuridão. Drizzt não
sabia quantas horas tinham transcorrido quando um rugido tremendo o arrancou do sonho. Já era de noite e o céu aparecia encapotado. Pouco a pouco, o drow ferido
recordou as alternativas do combate. Aliviado, viu que Ulgulu jazia imóvel entre as rochas, metade lobo, metade goblin. Estava morto. Um segundo rugido nas alturas,
junto à cova, fez que o drow olhasse naquela direção. Viu o Lagerbottoms, o gigante da colina, que tinha retornado de sua caçada e agora estava furioso ante o açougue
que tinha encontrado. Drizzt compreendeu no momento em que ficou de pé que não podia pensar em liberar outra batalha. Procurou entre as pedras, encontrou a estatueta
de ônix e a guardou na bolsa. Não lhe preocupava o estado do Guenhwyvar. Tinha visto a pantera sair bem sacada de piores calamidades --apanhada na explosão de uma
varinha mágica, arrastada ao plano de terra por um elementar enfurecido, inclusive tinha cansado em um lago de ácido hirviente. A estatueta não mostrava nenhum
dano, e Drizzt estava seguro de que Guenhwyvar descansava agora tranqüilamente em sua casa astral. Em troca Drizzt não podia permitir-se descansar. O gigante tinha
começado o descida do escarpado. Com um último olhar ao Ulgulu, Drizzt sentiu que a vingança era um pobre consolo para a dor que lhe produzia recordar a morte dos
camponeses. ficou em marcha e desapareceu na espessura, escapando do gigante e da culpa.
8
Pistas e adivinhações
Tinha passado mais de um dia da massacre quando o primeiro dos vizinhos dos Thistledown cavalgou até a granja solitária. O fedor da morte alertou da tragédia ao
camponês visitante inclusive antes de ter cuidadoso na casa ou no celeiro. Retornou uma hora mais tarde com o prefeito Delmo e vários granjeiros armados. Percorreram
cautelosamente a casa dos Thistledown e os pátios, cobrindo-os rostos com lenços para combater o terrível aroma. --Quem pode ter feito isto? --perguntou o prefeito.
Que monstro abominável é capaz de semelhante atrocidade? Como em resposta a sua pergunta, um dos camponeses saiu do dormitório e entrou na cozinha, sustentando uma
cimitarra rota nas mãos. --Uma arma drow? --inquiriu o homem. Teríamos que chamar o McGristle. Delmo vacilou. Esperava de um momento a outro a chegada do grupo
do Sundabar e considerava que a famosa vigilante Pomba Garra de Falcão estava muito mais capacitada para resolver a situação que o irascível e incontrolável montanhês.
O debate não chegou a expor-se porque o latido de um cão alertou aos da casa de que McGristle tinha chegado. O rude e sujo homenzarrão entrou na cozinha; um flanco
do rosto apresentava umas feridas rasgadas cobertas de sangue seca. --Uma arma drow! --grunhiu assim que viu a cimitarra. Quão mesma utilizou contra mim! --A vigilante
não demorará para chegar --disse Delmo, mas McGristle não lhe emprestou atenção. Percorreu a cozinha e o dormitório, empurrando sem olhares os cadáveres com o pé
para depois agachar-se e examinar alguns detalhes menores. --Vi os rastros fora --afirmou McGristle sem mais. Dois jogos diferentes. --O drow tem um aliado --raciocinou
o prefeito. Outro motivo para que esperemos ao grupo do Sundabar. --Ora, nem sequer sabe se virão! --protestou McGristle. Terá que perseguir o drow agora, enquanto
o rastro esteja afresco para o focinho de meu cão! Vários dos granjeiros pressente assentiram para expressar seu acordo até que Delmo lhes recordou prudentemente
o perigo ao que podiam ver-se expostos. --Um só drow pôde com você, McGristle --disse o prefeito. Agora pensa que são dois, possivelmente mais, e quer que nós
os persigamos e lhes demos caça? --Foi pura má sorte que me surpreendesse! --respondeu Roddy. Olhou a seu redor, disposto a apelar aos agora pouco dispostos camponeses.
Tinha-o a ponto para degolá-lo! Os camponeses se moveram inquietos e cochicharam entre eles enquanto o prefeito agarrava ao Roddy de um braço e o guiava até um extremo
da habitação. --Espere um dia --rogou-lhe Delmo. Nossas possibilidades de êxito aumentarão se vier a vigilante.
--De minhas batalhas me ocupo eu --replicou McGristle, sem deixar-se convencer. Matou a meu cão e me afeó a cara. --Quê-lo e o terá --prometeu o prefeito--, mas
pode haver em jogo algo mais que seu cão ou seu orgulho. O rosto do Roddy mostrou uma expressão de ameaça que não intimidou ao prefeito. Se era verdade que um grupo
drow atuava na região, todo Maldobar corria perigo. A melhor defesa para a pequena comunidade, até que pudesse receber ajuda do Sundabar, era permanecer unida, e
isto não se poderia conseguir se Roddy se levava a um grupo de homens --guerreiros que já eram bastante escassos-- em uma perseguição pelas montanhas. Entretanto,
Benson Delmo era o suficientemente ardiloso para saber que não podia tratar com o Roddy nestes términos. Embora o montanhês levava no Maldobar um par de anos, no
fundo sempre tinha sido um vagabundo e não formava parte do povo. Roddy lhe voltou as costas, convencido de que a conversação tinha acabado, mas o prefeito voltou
a sujeitá-lo do braço e o fez girar. O cão do Roddy lhe mostrou os dentes e grunhiu, embora isto não foi nada comparado com o olhar furioso que lhe dirigiu o montanhês.
--Terá ao drow--apressou-se a dizer o prefeito--, mas o rogo, espere a que chegue a ajuda do Sundabar. --Depois utilizou as palavras que Roddy entendia melhor.
Sou um homem em boa posição, McGristle, e você era um caçador de recompensas antes de vir aqui e espero que ainda o seja. --A expressão do Roddy passou rapidamente
da fúria à curiosidade. Espere a que chegue a ajuda, e depois vá caçar ao drow. --O prefeito fez uma pausa para considerar a oferta que pensava fazer. Não tinha
experiência nestas coisas e, embora não queria oferecer muito pouco e apagar o interesse despertado, tampouco queria afrouxar os cordões da bolsa mais do necessário.
Mil moedas de ouro pela cabeça do drow. Roddy tinha jogado a este jogo muitíssimas vezes. Ocultou o prazer que lhe produziu a oferta; a quantidade prometida pelo
prefeito era cinco vezes superior a sua tarifa normal, e em qualquer caso pensava caçar ao drow, pagassem-lhe ou não. --Dois mil! --grunhiu o montanhês sem pestanejar,
disposto a tirar o máximo benefício por seus esforços. O prefeito se balançou sobre os talões duvidando se aceitar ou não, mas se recordou a si mesmo várias vezes
que podia estar em jogo a existência de todo o povo. E nenhuma menos! --acrescentou Roddy, cruzando os musculosos braços sobre o peito. --Espere à dama Garra de
Falcão --disse Delmo submisso-- e receberá as duas mil moedas. Durante toda a noite, Lagerbottoms seguiu o rastro do drow ferido. O gigante das colinas ainda não
tinha muito claro seus sentimentos ante a morte do Ulgulu e Kempfana, que se tinham convertido em seus amos apoderando-se de sua guarida e de sua vida. Embora Lagerbottoms
temia a qualquer inimigo capaz de derrotar a aqueles dois, o gigante sabia que o elfo escuro estava ferido gravemente. Drizzt sabia que o perseguiam mas não podia
fazer grande coisa por ocultar seus rastros. Arrastava uma perna, machucada no brusco descida até o fundo do ravina, e só o preocupava afastá-lo máximo possível
do gigante. Quando chegou a aurora, clara e brilhante, o drow compreendeu que sua desvantagem se incrementou. Não podia confiar em escapar do gigante das colinas
tendo ante si as largas horas de luz diurna. O atalho descia até um pequeno bosquecillo de tenazes árvores que tinham aproveitado cada pequena parte de chão desprovido
de cantos rodados. O jovem planejava continuar a marcha em linha reta --não via outra opção que a fuga-- quando, enquanto descansava apoiado no tronco de uma árvore,
lhe ocorreu uma idéia ao
ver que os ramos pareciam fortes e flexíveis como cordas. Drizzt jogou um olhar ao atalho e viu o gigante que cruzava a passo lento uma zona plaina. Desembainhou
a cimitarra com o único braço que podia mover e cortou o ramo mais largo que encontrou. Depois procurou um penhasco adequado. O gigante entrou no bosque uma meia
hora mais tarde, balançando seu enorme pau. Lagerbottoms se deteve bruscamente ao ver que o drow saía de detrás de uma árvore com a intenção de lhe fechar o passo.
Drizzt quase soltou um suspiro de alegria quando o gigante se deteve, exatamente no lugar escolhido. Por um momento tinha tido medo de que o monstro não se detivera
e o esmagasse de um paulada, porque, ferido como estava, não podia oferecer muita resistência. Aproveitou o momento de dúvida do gigante e lhe deu o alto em idioma
goblin e imediatamente executou um feitiço singelo que rodeou à criatura em uma auréola de fogo fátuo. Lagerbottoms se moveu inquieto sem tentar prosseguir o avanço
para o estranho e perigoso inimigo. Drizzt vigiou o movimento dos pés do gigante com muito interesse. --por que me persegue? --perguntou Drizzt. Quer te unir
a outros no sonho da morte? O gigante passou a língua sobre os lábios ressecados. Até o momento, o encontro não tinha resultado como esperava. Passada a reação
instintiva que o tinha conduzido até ali, tentou considerar as opções. Ulgulu e Kempfana estavam mortos; também tinham morrido os goblins e os gnolls. Tinha recuperado
a caverna, e fazia tempo que não via aquele molesto trasgo. de repente lhe ocorreu uma idéia. --Amigos? --perguntou Lagerbottoms, com um tom ofegante. Embora sentiu
alívio ante a possibilidade de poder evitar o combate, Drizzt não tinha muita confiança na oferta. A banda gnoll lhe tinha proposto o mesmo e o resultado tinha
sido desastroso; além disso, era óbvio que o gigante tinha estado relacionado com os outros monstros que ele tinha matado, os assassinos da família de granjeiros.
--Amigos para que? --replicou Drizzt. Tinha a remota esperança de que a oferta da criatura pudesse estar inspirada em algum princípio moral e não na necessidade
de ter um novo companheiro para suas correrias. --Para matar --disse Lagerbottoms, como se a resposta tivesse sido algo óbvio. Drizzt grunhiu e sacudiu a cabeça
em uma violenta negativa que fez flutuar no ar sua larga juba branca. Desembainhou a cimitarra, sem preocupar-se de que o pé do gigante estivesse ou não metido
no
laço da armadilha. --Matarei-te! --gritou Lagerbottoms, ao ver a súbita mudança na situação. O gigante levantou o pau e deu um passo adiante, um passo cortado pela
liana que se ajustou ao redor do tornozelo. O drow dominou o impulso de aproximar-se. A armadilha funcionava e ele não estava em condições de sobreviver a um encontro
com o formidável gigante. Lagerbottoms olhou o laço e rugiu furioso. A liana não tinha a resistência de uma soga e o laço não estava muito apertado. O gigante não
tinha mais que agachar-se para tirar o laço do pé. Entretanto, os gigantes das colinas não destacam por sua inteligência. --Matarei-te! --repetiu o gigante, e deu
um chute com a intenção de romper o ramo. Impulsionada pela considerável força da patada, a rocha sujeita ao outro extremo do ramo, atrás do gigante, saiu disparada
do matagal e voou contra as costas do Lagerbottoms.
O gigante tinha começado a gritar pela terceira vez, mas a ameaça se transformou em um gemido surdo. O pesado pau caiu ao chão e Lagerbottoms, com as mãos nos rins,
fincou um joelho em terra. Drizzt vacilou por um momento, sem saber se devia pôr-se a correr ou rematar ao inimigo. Não temia por si mesmo, pois o gigante demoraria
algum tempo em recuperar-se, mas não podia esquecer a expressão sanguinária no rosto do Lagerbottoms quando lhe tinha proposto que podiam matar juntos. --Quantas
famílias mais pensa assassinar? --perguntou-lhe Drizzt em idioma drow. O gigante não podia entendê-lo porque desconhecia a linguagem, e continuou bramando de dor.
Quantas? --insistiu o jovem, com fogo nos olhos e a cimitarra bem apertada no punho. O ataque foi rápido e mortífero. Para grande alívio do Benson Delmo, o grupo
do Sundabar --Pomba Garra de Falcão, seus três companheiros guerreiros e Fret, o sábio anão-- chegou pela tarde daquele mesmo dia. O prefeito ofereceu à tropa alojamento
e comida, mas assim que Pomba escutou mencionar a massacre na granja Thistledown, ela e seus companheiros partiram para ali imediatamente, seguidos pelo prefeito,
Roddy McGristle e vários camponeses curiosos. Pomba não ocultou a desilusão quando chegaram à granja solitária. Um centenar de rastros diferentes obscureciam as
pistas principais, e muitas das coisas da casa, incluídos os corpos, tinham sido manuseadas e trocadas de sítio. De todos os modos, Pomba e os veteranos companheiros
realizaram uma inspeção metódica, tentando obter toda a informação possível da terrível cena. --Atalho de tolos! --reprovou-lhes Fret aos camponeses quando Pomba
e outros completaram a investigação. ajudastes a nossos inimigos! O prefeito e vários dos granjeiros mostraram uma expressão compungida ante a reprimenda. Em troca,
Roddy grunhiu de muito mau humor e pretendeu impressionar ao pequeno com sua estatura. Pomba se apressou a intervir. --Seu anterior visita danificou parcialmente
alguma
das pistas --explicou-lhe com tom tranqüilo e amável ao prefeito enquanto se colocava prudentemente entre o Fret e o rude montanhês. Pomba tinha escutado muitas
histórias referentes ao McGristle, e sua reputação o mostrava como um homem irascível e de muito mau trato. --Não sabíamos --justificou-se o prefeito. --Certamente
que não --disse Pomba. atuastes como qualquer outro na mesma situação. --Como uns novatos --particularizou Fret. --te cale! --rugiu McGristle, e seu cão lhe ecoou
com um grunhido. --Calma, senhor--pediu-lhe Pomba. Temos muitos inimigos fora do povo para nos buscar outros no interior. --Novato? --ladrou McGristle. cacei
a mais de um centenar de homens, e sei o suficiente deste maldito drow para caçá-lo a ele também. --Sabemos que foi o drow? --perguntou Pomba, que tinha dúvidas
sobre o verdadeiro autor dos assassinatos. A um sinal do Roddy, um dos camponeses lhe mostrou a cimitarra rota. --Uma arma drow --disse Roddy com voz áspera. Assinalou
a cara marcada e acrescentou--: Vi-a de perto! Um olhar à ferida rasgada no rosto do montanhês informou a Pomba que não a tinha feito o fio de uma cimitarra, mas
a vigilante não disse nada, consciente de que não valia a pena discutir. --E os rastros de drow--insistiu o cazarrecompensas. Os rastros das
botas são idênticas às encontradas no bosquecillo de amoras, onde vimos o drow. --Algo muito capitalista destroçou aquela porta --opinou Pomba com o olhar posto
na porta do celeiro. E à moça que há no interior não a matou um elfo escuro. --O drow tem um mascote --replicou Roddy, sem dar o braço a torcer. Uma enorme pantera
negra. Um gato condenamente grande! Pomba não se deixou convencer. Não tinha visto nenhuma sozinho rastro de pantera, e a forma em que tinha sido devorada uma parte
do corpo da mulher, com ossos e tudo, não encaixava com o que sabia sobre os grandes felinos. De todos os modos preferiu guardar-se seus pensamentos. O montanhês
não queria mistérios que pusessem em dúvidas suas conclusões. --Agora, se já viu suficiente este lugar, não percamos mais tempo --gritou Roddy. Meu cão tem descoberto
o rastro, e o drow já nos leva muita vantagem. Pomba dirigiu um olhar de preocupação ao prefeito, que se voltou, envergonhado. --Roddy McGristle lhes acompanhará
--balbuciou Delmo, arrependido de ter feito o trato com o Roddy. Ao ver a tranqüilidade da vigilante e seu grupo, tão diferente do violento comportamento do montanhês,
agora pensava que era melhor deixar em mãos de Pomba e seus companheiros a solução do problema. Mas um trato era um trato. Será o único do Maldobar que irá em
seu grupo --acrescentou. É um caçador veterano e conhece a região melhor que ninguém. Uma vez mais, Pomba, para assombro do Fret, não discutiu o plano. --O dia
está a ponto de concluir --disse Pomba ao McGristle. Sairemos com o alvorada. --O drow nos leva muita vantagem! --protestou Roddy. Teríamos que persegui-lo agora
mesmo! --Dá por sentado que o drow foge --replicou Pomba, sem perder a calma, mas esta vez com um tom muito mais duro. Quantos homens pagaram com a vida o mesmo
engano? --Roddy, perplexo, guardou silêncio. O drow, ou a banda de drows, bem pode estar oculto em algum lugar próximo. Gostaria de encontrar-se os de sopetón,
McGristle? Gostaria de combater contra os elfos escuros em plena escuridão? Roddy se limitou a levantar as mãos em um gesto de renúncia; grunhiu e se afastou, seguido
pelo cão. O prefeito ofereceu alojamento a Pomba e seus companheiros em sua própria casa, mas a vigilante preferiu ficar na granja Thistledown. Os camponeses se
foram, e Pomba sorriu ao ver que Roddy montava seu acampamento um pouco mais à frente, com a evidente intenção de não perder a de vista. perguntou-se qual seria
o interesse do McGristle por tudo este assunto, e chegou à conclusão de que havia algo mais que o desejo de vingança pela ferida no rosto e a orelha perdida. --De
verdade pensa deixar que essa besta venha conosco? --perguntou-lhe Fret mais tarde, enquanto o pequeno, Pomba e Gabriel estavam sentados ao redor da fogueira no
pátio
da granja. O elfo arqueiro e o outro membro do grupo se ausentaram para montar o primeiro turno de guarda. --É seu povo, querido Fret --respondeu Pomba. E não
posso negar que McGristle conhece a fundo a região. --Mas é tão sujo! --protestou o pequeno. Pomba e Gabriel intercambiaram um sorriso, e Fret, ao compreender que
não valia a pena discutir, deitou-se entre as mantas e lhes voltou as costas. --O bom do Limpiaplumas --murmurou Gabriel, que não deixou de ver que o sorriso de
Pomba não diminuía a expressão de sincera preocupação de seu rosto.
Tem algum problema, senhora Garra de Falcão? --inquiriu. --Há algumas costure que não encaixam como é devido em tudo isto. --Não foi uma pantera o que matou à mulher
no celeiro --assinalou Gabriel, que também tinha advertido algumas discrepâncias. --Nem tampouco foi um drow o assassino do granjeiro na cozinha, o tal Bartholemew
--acrescentou Pomba. A viga que lhe partiu o pescoço está quase quebrada em dois. Só um gigante possui tanta força. --Magia? --perguntou Gabriel. --A magia drow
está acostumado a ser mais sutil, conforme diz nosso sábio --repôs Pomba olhando ao Fret, que já roncava a perna solta. E mais completa. Fret não acredita que
a magia drow matasse ao Bartholemew ou à mulher, ou destruíra a porta do celeiro. Além disso há outro mistério no tema dos rastros. --Dois jogos --manifestou Gabriel--,
e feitos com quase um dia de diferença. --E de profundidades distintas --demarcou Pomba. Um, o segundo, pode ser o de um elfo escuro, mas o outro, pisada-las em
do assassino, são muito profundas para corresponder aos passos leves de um elfo. --Um agente dos drows? --propôs Gabriel. Possivelmente fetos dos planos inferiores?
Poderia ser que o elfo escuro viesse ao dia seguinte para inspecionar o trabalho do monstro? Esta vez, Gabriel encolheu os ombros ao mesmo tempo que Pomba. --Temos
muito que averiguar --concluiu Pomba. Gabriel acendeu a pipa, e a vigilante pôs-se a dormir. --Oh-amo, mi-amo --gemeu Tephanis, ao ver a forma grotesca do corpo
destroçado do barje ao meio transformar. O trasgo não tinha muita avaliação pelo Ulgulu nem por seu irmão, mas a morte de ambos expor alguns problemas para o futuro
do Tephanis. uniu-se ao grupo do Ulgulu por uma questão de interesse mútuo. antes de que aparecessem os barjes, o trasgo tinha vivido sozinho, roubando o que podia
nos povos próximos. As tinha arrumado bastante bem por sua conta, embora lhe desagradava a vida monótona e solitária. A chegada do Ulgulu significou uma grande mudança.
O grupo do barje lhe oferecia amparo e companhia, e Ulgulu, que não deixava de planejar novas e mais sinistras matanças, tinha-lhe encomendado ao Tephanis um sem-fim
de missões importantes. Agora o tinha perdido tudo, porque Ulgulu e Kempfana estavam mortos, e ele não podia fazer nada por trocar os fatos. "Lagerbottoms?", perguntou-se
a si mesmo de repente. Pensou que o gigante das colinas, o único membro ausente da guarida, podia ser um bom companheiro. Tephanis viu os rastros do gigante que
se afastavam da cova para entrar nas montanhas. Bateu Palmas, possivelmente cem vezes em um segundo, e depois partiu a toda pressa em busca de um novo amigo. De
um lugar muito alto na montanha, Drizzt Dou'Urdem olhou por última vez as luzes do Maldobar. Desde que tinha descido das cúpulas depois do desagradável encontro
com a mofeta, o drow se viu enfrentado a um mundo quase tão selvagem como o reino escuro que tinha deixado atrás. As esperanças alimentadas ao longo dos dias dedicados
a observar à família camponesa se esfumou, enterradas sob o peso da culpa e as terríveis imagens do açougue que o perseguiriam para sempre. A dor física do drow
tinha diminuído um pouco: respirava melhor embora com esforço, e as feridas nos braços e as pernas tinham cicatrizado. Sobreviveria.
Enquanto contemplava o povo, outro lugar que nunca poderia ser sua casa, Drizzt se perguntou se depois de tudo não seria melhor assim.
9
A perseguição
--O que é? --perguntou Fret, movendo-se com cautela detrás das dobras da capa verde folha de Pomba. A vigilante, e inclusive Roddy, também avançaram com precaução
porque, embora a criatura parecia morta, nunca tinham visto nada parecido. Parecia ser uma estranha mutação gigante entre um goblin e um lobo. Ganharam coragem quando
se aproximaram do corpo, convencidos de que efetivamente estava morto. Pomba se inclinou e o tocou com a espada. --Em minha opinião, leva morto mais de um dia --anunciou.
--Mas o que é? --insistiu Fret. --Um híbrido --murmurou Roddy. Pomba inspecionou atentamente as estranhas articulações da criatura. Não passou por cima as numerosas
feridas que apresentava o monstro; a carne parecia rasgada pelos zarpazos de um grande felino. --Um ser capaz de transformar-se? --sugeriu Gabriel, que montava guarda
em um flanco da zona rochosa. Pomba assentiu. --Morto em meio da transformação --acrescentou. --Nunca escutei falar de magos goblins --protestou Roddy. --OH, sim--interveio
Fret, tirando-as rugas das mangas da túnica. Havia, por certo, aquele persumido archimago, Grubby o Enganador, que... Um assobio do alto do escarpado interrompeu
ao pequeno. No bordo se encontrava Kellindil, o elfo arqueiro, que os fazia gestos com os braços. --Há mais aqui --gritou o elfo quando obteve sua atenção. Dois
goblins e um gigante de pele púrpura que não se parece com nada que tenha visto em toda minha vida. Pomba olhou o escarpado. Calculou que podia escalá-lo, mas um
olhar ao pobre Fret lhe fez compreender que teriam que retornar pelo atalho, um trajeto de quase dois quilômetros. --Você fique aqui --disse ao Gabriel. O homem
de rosto severo assentiu e se moveu para ocupar uma posição defensiva entre uns penhascos, enquanto Pomba, Roddy e Fret punham-se a andar para o atalho. A meio caminho
pelo estreito atalho que seguia a cara do escarpado, encontraram-se com a Darda, o outro guerreiro do grupo. O homem, baixo e muito musculoso, arranhava-se a barba
enquanto examinava o que parecia ser uma grade de arado. --É dos Thistledown! --gritou Roddy. Estava no pátio da casa, lista para reparar. --Como é que está aqui?
--perguntou Pomba. --E por que tem manchas de sangue? --acrescentou Darda, que assinalou a outros as manchas na parte côncava da folha. O guerreiro apareceu ao
bordo
do ravina,
olhou o fundo e depois outra vez a grade. Alguma pobre criatura se estrelou contra ela --murmurou--, e depois caiu ao fundo. Os olhares de todos se centraram
em Pomba quando a vigilante se apartou os cabelos da cara, apoiou o queixo em sua delicada mas calosa mão, e pensou em qual seria a solução deste novo enigma. As
pistas eram muito poucas, e, ao cabo de uns momentos, Pomba levantou as mãos em um gesto de zangou e reatou a marcha. O atalho se separava do abismo à medida que
se aproximava do topo, mas Pomba seguiu até o bordo, diretamente em cima do lugar onde tinham deixado ao Gabriel. O guerreiro a viu no ato e lhe fez um gesto para
lhe avisar que tudo estava em calma. --Venham --disse-lhes Kellindil, e guiou ao grupo até a caverna. Algumas pergunta ficaram respondidas assim que Pomba jogou
uma olhada ao açougue da sala interior. --Cachorrinho de barje! --exclamou Fret ao ver o cadáver do gigante de pele púrpura. --Barje? --perguntou Roddy, perplexo.
--Certamente --repôs Fret. Isto explica o lobo gigante no fundo do ravina. --Apanhado em plena mudança --raciocinou Darda. As muitas feridas e o chão de pedra
acabaram com ele antes de que pudesse acabar a transformação. --Barje? --insistiu Roddy, esta vez zangado, porque o deixavam fora de uma discussão que não compreendia.
--Uma criatura de outro plano de existência --explicou Fret. Se rumorea que procedem da Gehenna. Os barjes enviam aos cachorrinhos a outros planos, algumas vezes
ao nosso, para que se alimentem e cresçam. --Fez uma pausa enquanto pensava. Para que se alimentem --repetiu, com um tom que alertou a outros. --A mulher no celeiro!
--exclamou Pomba. Os membros do grupo da vigilante assentiram ao escutar a súbita revelação, mas McGristle se aferrou a sua teoria original. --O drow os matou!
--resmungou. --Tem a cimitarra rota? --perguntou-lhe Pomba. Roddy tirou a arma que guardava entre uma das muitas dobras de seus objetos de pele. Pomba agarrou a
cimitarra e se agachou para examinar ao barje morto. Saltava à vista que a lâmina coincidia com as feridas da besta, especialmente na ferida fatal da garganta.
--Você
disse que o drow utilizava duas cimitarras --comentou- a vigilante ao Roddy. --Disse-o o prefeito --corrigiu-a Roddy--, repetindo a história que contou o filho
do Thistledown. Quando vi o drow --explicou, agarrando a arma-- só levava uma, a que utilizou para matar à família Thistledown. Roddy ocultou de propósito que o
drow, embora tinha esgrimido uma só cimitarra, levava duas bainhas sujeitas ao cinto. --O drow matou ao barje --replicou Pomba, que duvidava da teoria do cazarrecompensas.
Ferida-las se correspondem com a arma, a cimitarra geme a da que tem você. E, se examinar aos goblins na sala de espera, poderá ver que suas gargantas as cortou
uma cimitarra curva. --Como as feridas dos Thistledown! --afirmou Roddy. Pomba decidiu não mencionar a hipótese que tinha pensado. Mas Fret, levado pelo desgosto
que lhe provocava o homem, manifestou em voz alta os pensamentos de seus companheiros. --Foram assassinados pelo barje --proclamou o pequeno, recordando os dois
jogos
de rastros no pátio da granja. Transformado em drow! --Roddy o olhou
furioso e Pomba também olhou ao pequeno em uma muda petição para que se calasse. Fret interpretou mal o olhar da vigilante e, pensando que era de assombro ante
seu
poder de dedução, acrescentou orgulhoso--: Isso explica os dois jogos de rastros. As primeiras, mais pesadas, correspondiam ao bar... --E o que diz da criatura do
ravina? --perguntou-lhe Darda a Pomba, ao compreender que a vigilante desejava que Fret se calasse. Crie que suas feridas também as fez uma cimitarra curva? --Possivelmente
algumas --respondeu Pomba depois de uma breve pausa, ao tempo que agradecia a intervenção da Darda com uma dissimulada inclinação de cabeça. Embora tudo parece
indicar que ao barje o matou a pantera. --Olhou diretamente ao Roddy. O felino que você diz que o drow tem de mascote. --O drow matou à família Thistledown! --insistiu
Roddy, descarregando um chute contra o barje morto. Tinha perdido um cão e uma orelha à mãos do elfo escuro e não aceitaria nenhuma conclusão que diminuíra as possibilidades
de cobrar as duas mil moedas de ouro prometidas pelo prefeito. Uma chamada do exterior da cova acabou com a discussão, coisa que agradou tanto a Pomba como ao Roddy.
depois de guiar ao grupo até a toca, Kellindil havia tornado a sair para seguir outras pistas que tinha descoberto. --O rastro de uma bota --explicou o elfo quando
saíram outros, assinalando uma pequena mancha de musgo esmagada. E aqui --acrescentou. Esta vez lhes indicou os raspões na pedra. Acredito que o drow se aproximou
do bordo. E depois saltou, possivelmente atrás do barje e a pantera, embora isto último só é uma hipótese. Pomba e Darda, e inclusive Roddy, estiveram de acordo
com a hipótese do Kellindil assim que acabaram de estudar as pistas. --Teríamos que voltar a baixar --sugeriu Pomba. Possivelmente encontremos um atalho mais à
frente do fundo rochoso que nos leve a conseguir respostas mais claras. Roddy se arranhou as crostas da cabeça e dirigiu a Pomba um olhar desdenhoso que revelou
suas emoções. Ao Roddy não interessavam no mais mínimo as "respostas mais claras" prometidas pela vigilante porque fazia tempo que tinha chegado às conclusões que
lhe interessavam. por cima de tudo, estava resolvido a retornar ao Maldobar com a cabeça do elfo escuro. Pomba Garra de Falcão não tinha tão clara a identidade do
assassino. Para a vigilante e seus companheiros ainda ficavam muitas perguntas sem responder. por que o drow não tinha matado aos meninos quando se encontraram pela
primeira vez nas montanhas? Se o relato do Connor ao prefeito era verdade, por que o drow lhe havia devolvido ao moço a espada? Pomba estava convencida de que o
barje, e não o drow, tinha assassinado à família Thistledown, mas então por que o drow tinha ido à guarida dos barjes? Tinha estado o drow em cumplicidade com os
barjes, uma união que não tinha demorado para romper-se? Ainda mais desconcertante para Pomba --cujo credo era defender aos civis na interminável guerra entre as
raças boas e os monstros-- era pensar que o drow tinha procurado o barje para vingar a morte dos granjeiros. A vigilante suspeitava que isto último era verdade,
mas não podia entender os motivos do drow. Acaso o barje, ao matar à família, tinha alertado aos habitantes do Maldobar, e como conseqüência quebrado a incursão
dos drows? Uma vez mais as peças não encaixavam. Se os elfos escuros planejavam uma incursão contra Maldobar, certamente que nenhum deles se deixou ver antes de
hora. Algo no interior de Pomba lhe disse que o drow tinha atuado a sós, que tinha vindo a vingar a morte dos granjeiros. Rechaçou a idéia como um truque de seu
próprio otimismo e se recordou a si mesmo que os elfos escuros não eram conhecidos precisamente por suas boas ações.
Quando os cinco chegaram ao final do estreito atalho e estiveram à vista do cadáver do monstro, Gabriel já tinha encontrado o rastro, que se encaminhava para as
montanhas. viam-se dois jogos de rastros, as do drow e outras mais frescas que pertenciam a outra criatura bípede gigante, provavelmente um terceiro barje. --O que
lhe terá passado à pantera? --perguntou Fret, um tanto afligido por sua primeira campanha em muitos anos. Pomba soltou uma gargalhada e sacudiu a cabeça sem saber
o que responder. Cada resposta parecia provocar uma multidão de novas perguntas. Drizzt não deixou de avançar durante a noite. Escapava, como o tinha feito durante
tantos anos, de outra horrível realidade. Ele não tinha matado aos camponeses -- inclusive os tinha salvado da banda de gnolls--, mas agora estavam mortos. Drizzt
não podia evitar este fato. Tinha entrado em suas vidas, por própria vontade, e agora estavam mortos. Durante a segunda noite depois do encontro com o gigante das
colinas, Drizzt viu a fogueira de um acampamento muito longínquo junto ao sinuoso atalho, na direção da toca do barje. Consciente de que não podia ser uma coincidência,
chamou o Guenhwyvar e enviou à pantera a investigar. Infatigável, Guenhwyvar correu para o acampamento, sua esbelta silhueta negra invisível nas sombras da noite.
Pomba e Gabriel descansavam junto à fogueira, divertidos com as incessantes queixa do Fret, muito ocupado em escovar a suave pele do colete com uma escova dura.
Roddy tinha preferido instalar-se afastado de outros, bem seguro em um oco formado por uma árvore cansada e um penhasco, com o cão jogado a seus pés. --Ai, o que
farei com estas manchas! --gemeu o pequeno. Não conseguirei nunca limpar este objeto! Terei que comprar uma nova! --Olhou a Pomba, que tentava inutilmente manter
a expressão séria. Já pode rir, senhora Garra de Falcão --advertiu-lhe o pequeno. O dinheiro sairá de sua bolsa, não o duvide. --Coisa triste ter que pagar a paquera
de um pequeno --comentou Gabriel, e, ao escutá-lo, Pomba soltou a gargalhada. --Reíd, reíd! --repetiu Fret, e esfregou a escova com tanta força que furou o objeto.
Maldita seja! --exclamou lançando a escova ao chão. --Calem de uma boa vez! --gritou-lhes Roddy, zangado. É que pretendem avisar aos drows de nossa presença?
--É hora de dormir, Gabriel --disse Pomba ao compreender que a advertência do montanhês, embora manifestada com grosseria, era apropriada. Darda e Kellindil não
demorarão para retornar e será nosso turno de montar o guarda. Se não me equivocar, a rota de amanhã será tão dura --olhou ao pequeno e lhe piscou os olhos um olho
ao guerreiro-- e suja como a de hoje. Gabriel encolheu os ombros, mordeu a boquilha da pipa e uniu as mãos detrás da nuca. Esta era a vida que tanto gostava a ele
e a seus companheiros de aventura: acampar sob as estrelas com o canto do vento da montanha nos ouvidos. Em troca, Fret se removia e dava voltas sobre o chão duro,
sem deixar de grunhir pelo desconforto de cada nova posição. Gabriel não precisou olhar a Pomba para saber que ela compartilhava seu sorriso. Nem tampouco teve que
olhar ao Roddy para saber que o montanhês rabiava pelo ruído incessante causado pelo pequeno. Este, sem dúvida, acostumado a viver na cidade, não se dava conta mas
soava estrepitosamente para aqueles habituados a dormir ao raso. Um assobio procedente da escuridão soou ao mesmo tempo que lhe arrepiava o cabelo ao cão do Roddy.
Pomba e Gabriel demoraram um segundo em levantar-se e sair do perímetro iluminado pelo fogo, em direção à chamada da Darda. Ao mesmo tempo, Roddy e o cão se deslizaram
atrás do penhasco, fora da luz direta, para que seus olhos se habituassem à escuridão. Fret, muito preocupado com seus próprios desconfortos, acabou por dar-se conta
de que passava algo. --O que? --perguntou o pequeno, curioso. O que é o que acontece? depois de uma breve conversação em sussurros com a Darda, Pomba e Gabriel se
separaram e rodearam o acampamento em direções opostas para assegurar sua integridade. --A árvore --murmurou uma voz. Pomba se agachou no ato. Demorou um momento
em ver o Roddy, muito bem escondo entre a rocha e a maleza. O montanhês sustentava a arma em uma mão e com a outra apertava o focinho do cão para que não ladrasse.
Pomba seguiu a sacudida de cabeça do Roddy para os ramos de um olmo solitário. Ao princípio, a vigilante não viu nada estranho entre as folhas mas depois captou
o resplendor amarelo dos olhos do felino. --A pantera do drow --sussurrou Pomba. Roddy assentiu. Permaneceram imóveis e vigiaram, conscientes de que o mais mínimo
movimento podia alertar ao felino. Uns segundos mais tarde, Gabriel se uniu a eles, ficou em cuclillas e seguiu a trajetória dos olhares até a mesma mancha escura
no olmo. Os três compreendiam que o tempo jogava a seu favor. Agora mesmo, Darda e Kellindil se moviam para ocupar suas posições. Possivelmente a armadilha teria
podido apanhar ao Guenhwyvar, de não ter sido porque o pequeno se afastou da fogueira e se levou por diante ao Roddy. O montanhês trastabilló e, para não cair, tendeu
a mão que sujeitava o focinho do cão. No ato, o animal começou a ladrar enquanto corria para a árvore. Como uma seta negra, a pantera saltou do olmo e voou na escuridão.
Mas a fortuna não esteve de parte do Guenhwyvar, pois cruzou diretamente por diante da posição do Kellindil, que a viu com toda claridade. O elfo arqueiro escutou
os latidos e os gritos na distância, em direção ao acampamento, embora sem saber o que tinha ocorrido. Suas dúvidas se dissiparam quando ouviu a voz do Roddy. --Matem
a essa coisa! --vociferou o montanhês. Convencido de que a pantera ou seu companheiro drow tinham atacado o acampamento, Kellindil disparou a flecha, e o dardo encantado
se afundou no flanco do Guenhwyvar. Então chegou a chamada de Pomba, que reprovava ao Roddy. --Não! --gritou a vigilante. A pantera não tem feito nada para merecer
nossa ira! Kellindil correu ao lugar por onde tinha passado a pantera. Graças à visão infravermelha, pôde ver claramente as ondas de calor emitidos pelas manchas
de sangue que salpicavam o rastro da fuga. Pomba e outros se apresentaram ao cabo de uns instantes. O rosto formoso do elfo parecia haver-se convertido em pedra
quando seu olhar furioso se posou no Roddy. --Fez que cometesse uma barbaridade, McGristle --declarou zangado. Por sua culpa disparei contra uma criatura que não
se merecia a flecha! O advirto por primeira e última vez: não o volte a fazer nunca mais. Com um olhar muito duro para lhe demonstrar ao montanhês que a coisa ia
a sério, Kellindil se afastou para seguir o rastro de sangue. Roddy jogava espuma pela boca mas se controlou, ao compreender que se encontrava sozinho frente ao
formidável quarteto e o pequeno. De todos os modos se enfrentou a
Fret, seguro de que outros compartilhariam sua opinião. --Mantenha a boca fechada quando ronda o perigo! --grunhiu Roddy. E não volte a me pisar com suas pestilentas
botas! Fret olhou incrédulo a outros, que se afastavam para seguir ao Kellindil. --Pestilentas? --perguntou em voz alta, e contemplou, ofendido, suas botas bem lustradas.
Pestilentas? --perguntou a Pomba, que se deteve para lhe oferecer um sorriso de consolo. Sujas pelas costas de quem eu sei! Guenhwyvar retornou aonde estava Drizzt
pouco depois do alvorada. O drow sacudiu a cabeça, quase sem surpreender-se ao ver a flecha que me sobressaía no flanco da pantera. A contra gosto, embora convencido
de que era o mais conveniente, agarrou a adaga do trasgo e alargou a ferida para tirar o dardo. A pantera gemeu brandamente durante a operação mas permaneceu quieta
sem oferecer resistência. Depois, e apesar de que queria manter ao Guenhwyvar a seu lado, Drizzt a enviou de retorno a sua casa astral, onde a ferida cicatrizaria
mais depressa. A flecha lhe tinha informado ao drow de tudo o que precisava saber sobre os perseguidores, e não duvidava que muito em breve voltaria a necessitar
à pantera. Subiu até um saliente rochoso e vigiou os atalhos inferiores, atento à presença do inimigo. Certamente, não viu nada porque, inclusive ferida, Guenhwyvar
tinha deixado muito atrás aos perseguidores e, para qualquer homem ou criatura parecida, o acampamento se encontrava a muitas horas de viagem. Mas Drizzt sabia que
se apresentariam e o forçariam a outra batalha que não queria liberar. O jovem estudou o terreno, e pensou nas armadilhas que podia montar, as vantagens que podia
conseguir quando chegasse o momento de desembainhar as armas. As lembranças do último encontro com os humanos, o homem com os cães e os camponeses, alteraram bruscamente
os pensamentos do Drizzt. Naquela ocasião, a batalha tinha sido provocada pela incapacidade de comunicar-se, uma barreira que Drizzt começava a considerar insuperável.
Então não tinha desejado combater contra os humanos e tampouco o desejava agora, apesar da ferida do Guenhwyvar. O sol subia no firmamento e o drow ferido, embora
tinha descansado toda a noite, queria encontrar um buraco escuro e cômodo. Mas Drizzt não podia permitir-se nenhuma demora se pretendia fugir da batalha. --Até onde
me seguirão? --sussurrou Drizzt na brisa da manhã. Em um tom sombrio e decidido, acrescentou--: Já o veremos.
10
Uma questão de honra
--A pantera encontrou ao drow --afirmou Pomba depois de que ela e seus companheiros acabaram de inspecionar o terreno perto do montículo rochoso. A flecha do Kellindil
jazia rota no chão, mais ou menos no mesmo lugar onde acabavam os rastros do animal. Logo a pantera desapareceu. --É o que parece --assentiu Gabriel, arranhando-a
cabeça enquanto estudava o confuso rastro. --Um gato do inferno! --grunhiu McGristle. retornou a sua imunda guarida! Fret esteve a ponto de lhe perguntar se se
referia a sua própria casa, mas optou prudentemente por não fazer nenhum comentário sarcástico. Também os outros deixaram acontecer a afirmação do montanhês. Não
tinham respostas a este enigma, e a opinião do Roddy era tão boa como a de outros. A pantera ferida e o rastro de sangue fresca tinham desaparecido, mas o cão do
Roddy não demorou para descobrir o aroma do Drizzt. O animal os guiou, e Pomba e Kellindil, os dois rastreadores peritos, encontraram mais indícios que lhes confirmaram
a direção. O rastro seguia a ladeira da montanha, baixava entre uma zona boscosa muito densa, continuava por uma extensão pedregosa e acabava bruscamente em outra
quebrada. O cão do Roddy se aproximou até o bordo e inclusive baixou até a primeira ladeira do traiçoeiro descida. --Maldita seja a magia drow --exclamou Roddy.
Olhou ao redor e descarregou um murro contra o quadril, ao comprovar que demoraria muitas horas em descer pela parede quase vertical. --O dia se acaba --disse Pomba.
Acamparemos aqui e procuraremos o caminho de baixada pela manhã. Gabriel e Fret se mostraram de acordo, mas o cazarrecompensas se opôs rotundamente. --O rastro está
fresco --afirmou o montanhês. Temos que levar a cão até abaixo e segui-lo um pouco, antes de pensar em dormir. --Levará-nos horas... --começou a protestar Fret,
que se interrompeu ante a intervenção de Pomba. --Vamos --disse a vigilante, e pôs-se a andar para o oeste, onde o estou acostumado a começava um declive bastante
forte mas permitia o descida sem tantas dificuldades. Embora Pomba não compartilhava o raciocínio do Roddy, não queria mais discussões com o representante do Maldobar.
No fundo da quebrada só se encontraram com mais enigmas. Roddy enviou ao cão em todas direções em um esforço inútil, porque não havia mais rastros do escorregadio
drow. depois de muito pensar, Pomba descobriu a verdade e seu sorriso foi explicação suficiente para seus companheiros veteranos. --Burlou-nos! --afirmou Gabriel
com uma gargalhada, adivinhando o motivo
do sorriso de Pomba. Levou-nos até o bordo da quebrada sabendo de que chegaríamos à conclusão de que tinha empregado a magia para descer até o fundo. --Do
que falam? --perguntou Roddy furioso, em que pese a que ele também compreendia perfeitamente o que tinha ocorrido. --Querem dizer que teremos que voltar a subir?
--perguntou Fret, com um tom lastimero. Ao escutá-lo, Pomba não pôde menos que tornar-se a rir, mas se controlou imediatamente. --Sim --respondeu com o olhar posto
no Roddy. Pela manhã. Esta vez o montanhês não pôs mais pegas. Quando apareceu o sol à manhã seguinte, o grupo já se encontrava de retorno no topo da quebrada
e o cão do Roddy tinha recuperado o rastro do drow, que voltava sobre o atalho para o montículo onde começava. Tinha sido um truque muito singelo, embora havia
uma pergunta que desconcertava aos perseguidores: como as tinha engenhado o elfo escuro para apartar do rastro até o extremo de enganar ao sabujo? Quando chegaram
à zona boscosa, Pomba encontrou a resposta. A vigilante fez um gesto ao Kellindil, que naquele momento se despojava da pesada mochila. O ágil elfo escolheu um dos
ramos flexíveis que quase tocavam o chão e subiu por ela até chegar à taça. Uma vez ali procurou as rotas que podia ter seguido o drow. Os ramos de muitas árvores
se entrelaçavam, e as opções eram muitas, mas ao cabo de uns minutos Kellindil guiou corretamente ao Roddy e ao cão até o novo rastro, que se separava do bosque
e descia em uma curva pela ladeira em direção ao Maldobar. --dirige-se ao povo! --exclamou Fret angustiado. Outros não compartilharam sua preocupação. --Não ao
povo! --afirmou Roddy, muito intrigado para mostrar-se furioso. Como bom cazarrecompensas, sempre desfrutava com um bom oponente, ao menos durante a caçada. Vai
para o arroio --explicou, convencido de que por fim tinha compreendido o plano do drow. Dirige-se ao arroio, para segui-lo durante um lance, e depois sair e internar-se
outra vez na espessura. --O drow é um adversário ardiloso --comentou Darda, que compartilhava as conclusões do Roddy. --E agora nos leva como mínimo um dia de vantagem
--demarcou Gabriel. Assim que Fret deixou de resmungar, Pomba lhe ofereceu ao pequeno um pouco de esperança. --Não tema --disse Pomba. A diferença do drow, estamos
bem providos. Em algum momento terá que deter-se caçar ou a compilar frutos, e nós em troca não teremos atrasos. --Dormiremos só quando for necessário! --interveio
Roddy, pouco disposto a tolerar as demoras de outros membros do grupo. E unicamente umas horas! Fret voltou a suspirar desconsolado. --E começaremos a racionar
as provisões agora mesmo --acrescentou Pomba, tanto para aplacar ao Roddy como por considerá-lo uma medida prudente. Já nos custará bastante nos aproximar do
drow. Não quero demoras. --Racionamento --murmurou Fret. Suspirou e apoiou uma mão sobre a barriga. Quanto desejava poder estar de retorno em sua cômoda e poda
habitação no castelo do Helm, no Sundabar! A intenção do Drizzt era entrar nas montanhas até que os perseguidores perdessem os ânimos. Continuou aplicando as táticas
de evasão; freqüentemente retrocedia sobre seus passos, subia a uma árvore, passava de um a outro, até que
baixava e começava um segundo rastro em uma direção totalmente distinta. Os numerosos arroios lhe serviam como novas barreiras ao olfato do cão. Entretanto, os
perseguidores não eram novatos, e o cão do Roddy era um dos melhores sabujos da região. O grupo não só seguiu corretamente o rastro do Drizzt mas também inclusive
cortaram distâncias durante os dias seguintes. Drizzt ainda acreditava que poderia evitá-los, mas a proximidade dos perseguidores despertou no drow outras preocupações
mais sutis. Não tinha feito nada para merecer um perseguição tão implacável; e ainda mais, tinha vingado a morte da família camponesa. E, apesar de ter jurado que
continuaria sozinho, que não voltaria a pôr em perigo a ninguém mais, tinha conhecido a solidão muito de perto durante muitos anos. Não podia evitar olhar por cima
do ombro, não por medo a não ser impulsionado pela curiosidade, e a saudade não diminuiu. Por fim, Drizzt não pôde reprimir a curiosidade por conhecer os perseguidores.
Este interesse, compreendeu Drizzt enquanto observava às figuras que se moviam ao redor da fogueira do acampamento durante uma noite escura, podia levá-lo a desastre.
De todos os modos, já era muito tarde para trocar de idéia. Seus desejos o tinham feito retornar, e agora se encontrava a vinte metros do acampamento. O bate-papo
alegre entre Pomba, Fret e Gabriel o comoveu, embora não podia compreender as palavras. Mas qualquer desejo que podia sentir o drow de apresentar-se no acampamento
ficava adiado cada vez que Roddy e seu cão passavam por diante da fogueira. Aqueles dois não esperariam a escutar suas explicações. O grupo tinha montado dois guardas;
a gente era um elfo e o outro, um humano muito alto. Drizzt tinha passado pelo posto do humano, na hipótese correta de que o homem não podia ver muito bem na escuridão.
Agora, contra toda precaução, o drow se movia para o outro lado do acampamento, em direção ao sentinela elfo. Só em uma ocasião anterior se encontrou Drizzt com
os primos da superfície, e tinha resultado um desastre. A patrulha de combate na qual Drizzt tinha servido de explorador tinha matado a todos os participantes de
uma festa élfica, exceto a uma menina a que Drizzt tinha conseguido ocultar. Impulsionado por aquelas memórias, Drizzt precisava voltar a ver um elfo, a um vivo.
A primeira indicação que teve Kellindil de que havia alguém mais em seu setor de vigilância chegou quando uma pequena adaga voou junto a seu peito e cortou a corda
de seu arco. O elfo se voltou no ato e viu os olhos lilás do drow a só uns poucos passos mais à frente. O resplendor vermelho nos olhos do Kellindil mostrava que
via o Drizzt no espectro infravermelho. O drow cruzou os braços sobre o peito no sinal de paz empregada na Antípoda Escura. --Por fim nos encontramos,
meu primo escuro --sussurrou Kellindil em idioma drow, com voz áspera e furiosa e os olhos entrecerrados perigosamente. Rápido como um gato, o elfo desembainhou
a espada de
lâmina brilhante que pendurava de seu cinturão. Drizzt se surpreendeu e também se alegrou ao ver que o elfo falava seu idioma, e pelo fato de que não tinha dado
imediatamente
a voz de alarme. O elfo da superfície era do mesmo tamanho que ele e com as mesmas feições agudas, mas os olhos eram mais pequenos e a cabeleira loira não tão larga
nem abundante como a branca juba do Drizzt. --Sou Drizzt Dou'Urdem --disse o jovem, vacilante. --Não me importa saber como te chama! --replicou Kellindil. É um
drow. É o único que preciso saber! Adiante, drow. te aproxime e descubramos qual dos dois é o mais forte! Drizzt ainda não havia desembainhado a cimitarra nem tinha
intenção de fazê-lo. Começou uma explicação mas se interrompeu ao compreender que as palavras não
serviam de nada ante o ódio intenso que lhe professava o elfo da superfície. O jovem queria explicar-lhe tudo ao elfo, lhe fazer um relato completo de sua história
e ver-se reivindicado por alguma voz além da sua. Se alguém --sobre tudo um elfo da superfície-- queria escutar suas vicissitudes e confirmar suas decisões, aceitar
que ele tinha atuado corretamente durante toda sua vida quando lhe tocou enfrentar-se às iniqüidades de sua raça, então desapareceria a culpa. Se podia conseguir
a aceitação daqueles que mais odiavam --quão mesmo ele-- as maldades dos elfos escuros, então Drizzt Dou'Urdem viveria em paz. Mas a ponta da espada do elfo não
se moveu nem um centímetro para baixo, nem tampouco desapareceu a expressão furiosa de seu rosto, um rosto onde o habitual eram os sorrisos. Drizzt pensou que não
encontraria aceitação aqui, nem agora nem alguma vez. É que sempre o interpretariam mal?, perguntou-se. Ou é que ele, possivelmente, julgava mal aos humanos e a
este elfo ao considerá-los melhores do que eram em realidade? Estes eram dois temas que Drizzt teria que considerar em outra ocasião, porque ao Kellindil lhe tinha
esgotado a paciência. O elfo se aproximou do drow com a ponta da espada por diante. Drizzt não se surpreendeu. Deu um salto para trás para situar-se fora do alcance
do rival e, apelando à magia inata, lançou um globo de escuridão diante do elfo. Bom conhecedor da magia, Kellindil compreendeu a mutreta do drow. Trocou de direção,
e saiu pela parte de atrás da esfera, com a espada preparada. Os olhos lilás tinham desaparecido. --Drow! --gritou Kellindil. Os do acampamento ficaram em movimento
no ato. O cão do Roddy começou a ladrar, e aqueles latidos excitados e ameaçadores seguiram ao Drizzt na volta às montanhas, condenando-o a seguir no exílio. Kellindil
se apoiou contra o tronco de uma árvore, alerta mas seguro de que o drow já não estava na zona. Drizzt não podia sabê-lo naquele momento, mas suas palavras e sua
ação posterior --fugir em lugar de brigar-- tinham plantado uma semente de dúvida na mente do elfo. --Perderá a vantagem com a luz do dia --afirmou Pomba, esperançada
depois de várias horas de perseguição inútil. encontravam-se no fundo de um vale rochoso, e o rastro do drow se perdia pelo lado mais longínquo em um pendente muito
levantado. --Vantagem? --gemeu Fret, a ponto de desabar-se pelo esgotamento. Olhou a seguinte ladeira e sacudiu a cabeça. Morreremos de cansaço antes de dar com
esse maldito drow. --Se não poder seguir, então abandone e deixe de aporrinhar!--rugiu Roddy. Esta vez não permitiremos que o drow nos escape! Não tinha acabado
o montanhês de pronunciar estas palavras, quando um novo incidente os separou da busca. de repente uma pedra caiu sobre o grupo, e golpeou o ombro da Darda com tanta
força que arrancou ao homem do chão e o fez voar pelos ares. Nem sequer pôde gritar antes de cair de bruces no pó. Pomba agarrou ao Fret e o arrastou detrás de um
penhasco próximo. Roddy e Gabriel os imitaram. Outra pedra, e depois várias mais, caíram a seu redor. --Uma avalanche? --perguntou o pequeno aturdido quando se recuperou
da surpresa. Pomba, muito preocupada com o bem-estar da Darda, não lhe respondeu, embora sabia que não se tratava de uma avalanche. --Está vivo --gritou-lhe Gabriel
desde seu refúgio detrás de um penhasco, a uma dúzia de passos de distância.
Outra pedra se estrelou violentamente contra o chão, muito perto da cabeça da Darda. --Maldita seja --murmurou Pomba. Apareceu a cabeça por cima do penhasco, e
observou a ladeira e os penhascos próximos à base. Agora, Kellindil --murmurou para si mesmo. Nos consiga um pouco de tempo. Como se tivesse escutado a petição,
ouviu-se o zumbido distante da corda do arco do elfo, seguido por um rugido furioso. Pomba e Gabriel cruzaram um olhar e mostraram um sorriso sério. --Gigantes
das pedras! --gritou Roddy, que tinha reconhecido o timbre do rugido. Pomba se escondeu disposta a esperar, as costas contra o penhasco e a mochila aberta na mão.
Não caíram mais projéteis em seu setor; em troca, uma chuva de rochas bombardeou a posição do Kellindil. Pomba correu até onde estava Darda e o ajudou a ficar de
barriga para cima com muita suavidade. --Dói --sussurrou Darda com um sorriso forçado. --Não fale --respondeu Pomba, enquanto procurava uma garrafa de poção na
mochila, mas lhe acabou o tempo. Os gigantes, ao vê-la ao descoberto, reataram o ataque contra a zona baixa. --Voltem para as rochas! --gritou Gabriel. Pomba deslizou
um braço por debaixo do ombro do ferido para sustentá-lo na difícil marcha de retorno até o refúgio. --Depressa! Depressa! --chiou Fret, que os olhava ansioso com
as costas apoiada no penhasco. Pomba se atirou de repente sobre a Darda e o esmagou contra o chão para esquivar outra pedra que passou a uns centímetros de suas
cabeças. Fret começou a mordê-las unhas; então viu o que fazia e se conteve, com uma expressão de desgosto no rosto. --Depressa! --repetiu. Outro projétil caiu
muito perto. Justo antes de que Pomba e Darda pudessem reunir-se com o Fret, uma pedra golpeou totalmente contra o penhasco. Fret, que estava apoiado na rocha,
saiu despedido e passou por cima dos companheiros que se arrastavam. Pomba deixou a Darda a boa cobrança, e depois se voltou, convencida de que teria que ir socorrer
ao pequeno cansado. Mas Fret já se levantou e protestava com grande veemência, mais preocupado por um novo buraco no colete que por qualquer ferida. --Volta aqui!
--gritou-lhe Pomba. --Turma de gigantes estúpidos e fedorentos --foi o único que respondeu Fret, enquanto caminhava para o penhasco com ar zangado, e sem deixar
de abrir e fechar os punhos contra os quadris. Prosseguiu o bombardeio por toda a zona. Então apareceu Kellindil, que se lançou corpo a terra assim que chegou
ao penhasco onde se protegiam Roddy e o cão. --Gigantes das pedras --disse o elfo. Ao menos uma dúzia. Assinalou um penhasco na metade da ladeira. --O drow nos
colocou na armadilha --afirmou Roddy, que descarregou um murro de raiva contra o penhasco. Kellindil não opinava o mesmo, mas não disse nada. Na cúpula da montanha,
Drizzt observava o desenvolvimento da batalha. Tinha passado pelos atalhos inferiores fazia coisa de uma hora, antes do alvorada. Na escuridão, os gigantes não
tinham sido um obstáculo para o sigiloso drow; Drizzt se tinha coado entre a linha sem problemas. Agora, com as pálpebras entrecerrados para proteger os olhos do
sol, Drizzt se
perguntou o que devia fazer. Quando passou entre os gigantes, tinha compreendido imediatamente que os perseguidores teriam dificuldades. Deveria ter tentado lhes
avisar? Ou teria que ter trocado de caminho para afastar aos humanos e ao elfo da região dos gigantes? Uma vez mais não compreendia onde encaixava no comportamento
deste mundo estranho e brutal. --Que se matem entre eles! --exclamou em voz alta, como se queria convencer-se a si mesmo. Drizzt recordou de propósito o encontro
da noite anterior. O elfo o tinha atacado apesar de que lhe havia dito que não queria brigar. Também recordou a flecha cravada no flanco do Guenhwyvar. --Que se
matem entre eles! --repetiu e se voltou disposto a partir. Jogou um último olhar por cima do ombro e viu que alguns gigantes se moviam. Um grupo permaneceu no penhasco,
bombardeando o fundo do vale com uma provisão de pedras ao parecer inesgotável, enquanto outros dois, um pela esquerda e o outro pela direita, desdobravam-se para
rodear aos sitiados. Drizzt compreendeu que os perseguidores não tinham escapatória. Uma vez que os gigantes os rodeassem, não encontrariam refúgio contra o fogo
cruzado. Algo se removeu no interior do drow naquele momento, as mesmas emoções que o tinham impulsionado a atuar contra a banda de gnolls. Não o deixava muito claro,
mas como tinha ocorrido com os gnolls e seus planos para atacar a granja, Drizzt suspeitava que os gigantes eram o bando dos maus nesta batalha. Outras lembranças
suavizaram o gesto severo do drow, as imagens dos meninos humanos que jogavam no pátio da granja, do menino de cabelos loiros lançado ao abrevadero. Drizzt depositou
a estatueta de ônix no chão. --Vêem, Guenhwyvar --ordenou. Necessitam-nos. --Rodeiam-nos! --gritou Roddy McGristle, ao ver os grupos de gigantes que se moviam
pelos atalhos nas alturas. Pomba, Gabriel e Kellindil olharam a seu redor e depois os uns aos outros, em busca de uma maneira de fugir. Tinham lutado muitas vezes
contra os gigantes durante suas viagens, juntos e com outros grupos. Em todas as ocasiões, lançaram-se ao combate com o coração alegre, dispostos a aliviar ao mundo
de uns quantos monstros indesejáveis. Esta vez, entretanto, suspeitavam que o resultado podia ser diferente. Os gigantes das pedras eram os melhores lançadores de
todos os Reino, e um só impacto podia acabar com o mais forte dos homens. Além disso, Darda não podia acompanhá-los na fuga, e nenhum dos outros tinha intenção de
abandoná-lo. --Escapa, montanhês --disse Kellindil ao Roddy. Não nos deve nada. --Eu não fujo, elfo --grunhiu Roddy, que olhou incrédulo ao arqueiro. Luto minhas
batalhas até o final. Kellindil assentiu e esticou o arco. --Se conseguem nos rodear, estamos perdidos --explicou- Pomba ao Fret. Peço-te perdão, querido Fret.
Não teria que te haver tirado de sua casa. Fret encolheu os ombros. Colocou uma mão entre suas roupas e tirou um pequeno e resistente martelo de prata. Pomba sorriu
ao ver o objeto; resultava-lhe muito estranho ver um martelo nas suaves mãos do pequeno, mais habituadas a sustentar a pluma. No penhasco superior, Drizzt e Guenhwyvar
seguiram os movimentos do grupo de gigantes que rodeavam o flanco esquerdo dos sitiados. O drow estava decidido a ajudar aos humanos, embora não sabia até que ponto
seria eficaz em um enfrentamento contra quatro gigantes armados. De todos os modos pensou que, com a
pantera a seu lado, encontraria a forma de distrair ao grupo o tempo suficiente para que os humanos pudessem escapar. O vale se alargava um pouco mais à frente,
e Drizzt advertiu que a banda de gigantes que se movia pelo outro lado, no flanco direito, estava muito longe para alcançar aos humanos com seus lançamentos. --Vêem,
amiga minha --sussurrou-lhe Drizzt à pantera e, desembainhando a cimitarra, começou a descer por um pendente de pedra solta. Ao cabo de um momento se deteve o
ver como era o terreno um pouco por diante da banda de gigantes. O jovem agarrou ao animal pela pele de trás do pescoço e o guiou de retorno ao penhasco superior.
O terreno
aparecia gretado e partido mas firme. um pouco mais à frente, havia centenares de penhascos e rochas mais pequenas dispersas junto ao bordo do pendente. Drizzt não
sabia grande coisa sobre as avalanches, mas mesmo assim compreendia que o setor estava a ponto de desprender-se. O drow e a pantera puseram-se a correr para situar-se
outra vez por cima da banda. Os gigantes se encontravam quase em posição; alguns inclusive tinham começado a lançar pedras aos humanos. Drizzt apoiou um ombro contra
um penhasco e o empurrou para fazê-lo rodar. A tática do Guenhwyvar foi menos sutil. Lançando-se montanha abaixo, desprendia as pedras com as patas cada vez que
tocava o chão, saltava sobre os penhascos para movê-los com seu peso e depois se apartava assim que se moviam. O desprendimento começou a tomar força. Drizzt, dedicado
a sua tarefa, corria em meio da avalanche, sem deixar de lançar e empurrar pedras. Muito em breve até o chão, debaixo dos pés do drow, começou a deslizar-se e uma
enorme parte da ladeira se veio abaixo. Guenhwyvar corria diante da avalanche, como um anúncio de morte para os gigantes espantados. A pantera saltou por cima deles,
mas os monstros logo que puderam vê-la porque um segundo depois resultaram esmagados por toneladas de pedras. Drizzt sabia que estava metido em um problema grave;
não era tão rápido nem ágil como Guenhwyvar e não podia pensar em avantajar à avalanche nem apartar-se. lançou-se ao vazio de uma pequena crista ao tempo que invocava
o feitiço de levitação. O jovem fez todo o possível por manter a concentração. O feitiço lhe tinha falhado em duas ocasiões e, se agora não podia mantê-lo, acabaria
em meio da avalanche. A pesar do esforço, notou que pesava cada vez mais. Moveu os braços sem êxito, procurando a energia mágica dentro de seu corpo, mas o descida
era imparable. --Quão únicos podem nos alcançar são os que temos diante!--gritou Roddy ao ver que uma pedra lançada do flanco direito ficava muito curta do objetivo.
os da direita estão muito longe, e os da esquerda... Pomba compreendeu a lógica do montanhês e seguiu seu olhar para a densa nuvem de pó no flanco esquerdo. Contemplou
atentamente a avalanche, e o que podia ter sido a silhueta de um elfo encapuzado. Quando se voltou para olhar ao Gabriel, descobriu que ele também tinha visto o
drow. --Temos que ir agora mesmo --avisou-lhe Pomba ao elfo. Kellindil assentiu e apareceu por um bordo do penhasco que lhe servia de escudo com o arco tenso. --Depressa
--acrescentou Gabriel--, antes de que o grupo da direita volte a ficar a tiro. O arco do Kellindil disparou uma vez e depois outra. Em frente, um gigante uivou de
dor. --Fica com a Darda --pediu- Pomba ao Fret, quando ela, Gabriel e Roddy,
com o cão bem sujeito pela correia, abandonaram o refúgio e correram a enfrentar-se com os gigantes. Corriam de penhasco a penhasco em um ziguezague violento, para
evitar que os gigantes previssem seus movimentos. Enquanto isso, Kellindil disparava por cima dos companheiros, e os gigantes estavam mais ocupados em esquivar as
flechas que em lançar pedras. Profundas gretas marcavam os contrafortes da montanha, gretas que ofereciam amparo mas que também separavam aos três guerreiros. Nenhum
podia ver os gigantes, e seguiam seu caminho o melhor que podiam. Ao passar por uma curva muito pronunciada entre duas paredes de pedra, Roddy encontrou a um dos
gigantes. No ato o montanhês soltou ao cão, que carregou sem medo e deu um salto que quase lhe permitiu alcançar a cintura do monstro de seis metros de estatura.
Surpreso pelo súbito ataque, o gigante soltou o pau, apanhou ao cão no ar, e o teria esmagado entre suas mãos em um abrir e fechar de olhos de não ter sido porque
Roddy descarregou a tocha com todas suas forças contra a coxa do inimigo. O gigante soltou ao cão, que escalou seu corpo até chegar à cabeça, onde começou a mordê-lo
no rosto e no pescoço. No chão, Roddy não deixava de dar machadadas contra o gigante como quem corte uma árvore. Sustentado em parte pelo feitiço de levitação, havia
momentos em que Drizzt flutuava sobre a cascata de pedras e outros em que corria entre elas. Viu um gigante escapar cambaleante da avalanche só para acabar entre
as garras do Guenhwyvar. Drizzt não tinha tempo para saborear o êxito de seu desesperado plano. O feitiço apenas se conseguia aliviar seu peso. Inclusive por cima
do deslizamento principal, as pedras lhe golpeavam o corpo, o pó o afogava e o fazia arder os olhos. Quase cego, alcançou a ver um penhasco que podia lhe servir
de refúgio, mas a única maneira de chegar até ali era abandonar a levitação e correr. Outra pedra golpeou ao Drizzt com tanta força que quase lhe fez dar uma cambalhota
no ar. Podia notar que o feitiço se esgotava, e compreendeu que só tinha uma oportunidade. Recuperou o equilíbrio, abandonou a levitação e caiu ao chão. Rodou várias
vezes sobre si mesmo, levantou-se de um salto e pôs-se a correr. Uma pedra o golpeou no joelho da perna ferida e o tombou. Uma vez mais, Drizzt começou a rodar,
disposto a alcançar como fora a segurança do penhasco. O impulso ficou curto. ergueu-se disposto a correr os últimos metros, mas a perna não tinha força e se encontrou
coxo em meio da avalanche. Sentiu um impacto nas costas e pensou que tinha chegado o final. Um momento mais tarde, enjoado, Drizzt advertiu que, sem saber como,
tinha chegado ao penhasco e que estava debaixo de algo que não eram pedras nem terra. Guenhwyvar permaneceu tendida sobre seu amigo, defendendo-o com o corpo até
que
passou a última pedra. À medida que chegavam a terreno aberto, Pomba e Gabriel puderam ver-se outra vez. Observaram movimentos diante deles, detrás de uma parede
de pedras de uns quatro metros de altura e outros quinze de comprimento. Um gigante apareceu por cima da parede, rugindo furioso e com uma pedra entre as mãos, elevada
sobre a cabeça. O monstro tinha várias flechas cravadas no pescoço e a frente, mas não pareciam preocupá-lo. O seguinte disparo do Kellindil sim teve um efeito fulminante.
A flecha se afundou em um cotovelo do monstro. O gigante uivou e se sujeitou o braço, ao parecer sem recordar a pedra, que caiu sobre sua cabeça. O gigante permaneceu
imóvel, atordoado,
e outras duas flechas fizeram branco no rosto. cambaleou-se durante um momento e caiu de bruces. Pomba e Gabriel sorriram satisfeitos, compartilhando a avaliação
pela pontaria do elfo arqueiro, e depois continuaram a carreira, cada um para um extremo da parede. A vigilante pilhou por surpresa a um dos gigantes assim que rodeou
o muro. O monstro tentou agarrar o pau, mas a espada de Pomba foi mais rápida e lhe cortou a mão. Os gigantes das pedras eram inimigos formidáveis, com punhos que
podiam esmagar a uma pessoa e a pele tão dura como a rocha. Mas ferido, atacado por surpresa e sem o pau, o gigante não era rival para Pomba, que se encarapitou
na parede para colocar-se à altura da cabeça e pôs a espada a trabalhar. Com duas estocadas deixou cego ao gigante. A terceira, um golpe horizontal, abriu um talho
na garganta do monstro. Então a vigilante ficou à defensiva e esquivou facilmente os últimos golpes se desesperados para o gigante moribundo. Gabriel não teve a
mesma sorte que sua companheira. O último gigante não estava tão perto da parede e, embora a aparição do humano o surpreendeu, teve tempo suficiente --e uma pedra
na mão-- para reagir. O homem levantou a espada para desviar o projétil, e isto lhe salvou a vida. A pedra arrancou a arma da mão do guerreiro e o fez cair ao chão.
Gabriel era um veterano, e a razão pela que ainda sobrevivia depois de tantas batalhas era que sabia quando tocavam a retirada. levantou-se, a pesar da intensa dor,
e pôs-se a correr para o outro lado da parede. O gigante, pau em mão, foi atrás dele. Uma flecha recebeu ao gigante assim que apareceu em campo aberto, mas este
não lhe fez mais caso que à picada de um mosquito e continuou a perseguição. Gabriel não demorou para encontrar-se sem espaço. Tentou chegar às gretas, mas o gigante
lhe impediu o passo e o encaixotou em um pequeno canhão formado pelos penhascos. O guerreiro desembainhou a adaga e amaldiçoou sua má sorte. Nestes momentos Pomba
já tinha acabado com seu inimigo, E advertiu o grave perigo que corria seu companheiro. Gabriel também viu a vigilante e encolheu os ombros, quase como uma desculpa,
consciente de que Pomba não podia chegar a tempo para salvá-lo. O furioso gigante avançou com o pau em alto, disposto a acabar com o homem. Naquele instante se ouviu
um golpe muito sonoro e o monstro se deteve bruscamente. Permaneceu boquiaberto um par de segundos, e depois se derrubou aos pés do Gabriel, fulminado. O guerreiro
olhou a um lado, para o alto da parede de penhascos, e a ponto esteve de soltar a gargalhada. O martelo do Fret não era uma arma muito grande --a cabeça não media
mais de cinco centímetros-- mas era muito sólida, e de um só golpe o pequeno tinha falho o grosso crânio do gigante. Pomba se aproximou com a espada embainhada,
sem
entender o ocorrido. Ao olhar as expressões de surpresa nos rostos dos companheiros, Fret não ocultou o desgosto. --depois de tudo, sou um pequeno! --gritou-lhes,
enquanto se cruzava de braços furioso. O movimento pôs em contato o martelo sujo de miolos com o colete do Fret, e a arrogância do pequeno se converteu em um ataque
de pânico. Molhou com saliva os gordinhos dedos, esfregou a mancha, e então mostrou um horror ainda maior ao ver a matéria gelatinosa enganchada na mão. Pomba e
Gabriel puseram-se a rir. --Já pode te fazer à idéia de que pagará um colete novo! --exclamou o pequeno. E não pense que te liberará!
Um grito na distância os separou de seu alívio momentâneo. Os quatro gigantes que ficavam, ao ver que um grupo de companheiros tinha sido sepultado por uma avalanche
e o outro abatido pelos humanos, tinham perdido todo interesse no ataque e agora empreendiam a fuga. detrás deles corriam Roddy McGristle e o sabujo. Um solo gigante
tinha conseguido escapar da avalanche e das terríveis garras da pantera. Agora corria desesperado pela ladeira, com a intenção de alcançar a cúpula. Drizzt enviou
ao Guenhwyvar em sua perseguição, depois encontrou um pau como fortificação e conseguiu ficar de pé. Machucado, sujo, ainda convalescente das feridas recebidas na
batalha com o barje --e com uma dúzia mais produto de seu rodeio sobre as rochas--, dispunha-se a partir quando um movimento ao pé da ladeira o reteve. Ao voltar-se,
viu o elfo frente a ele... e distinguiu a flecha no arco esticado. O jovem olhou a seu redor sem encontrar nenhum refúgio. Talvez podia colocar um globo de escuridão
entre ele e o arqueiro, mas compreendeu que não falharia o tiro, uma vez que o tinha pontudo, inclusive com o obstáculo. Drizzt ergueu os ombros e olhou ao elfo
com orgulho e valentia. Kellindil afrouxou o arco e retirou a flecha. Ele também tinha visto a silhueta escura flutuando sobre a avalanche. --Os outros estão com
a Darda --disse Pomba, que apareceu naquele momento--, e McGristle persegue A... Kellindil não respondeu nem olhou a vigilante. Apenas se moveu a cabeça para guiar
o olhar de Pomba para a ladeira, onde a silhueta escura subia outra vez para a cúpula. --Deixa-o ir --propôs a mulher. Aquele nunca foi nosso inimigo. --Assusta-me
deixar a um drow em liberdade --respondeu Kellindil. --A mim também --afirmou Pomba--, mas temo que as conseqüências serão maiores se McGristle encontrar ao drow.
--Retornaremos ao Maldobar e nos liberaremos do homem --disse Kellindil. Depois você e outros podem ir ao Sundabar, onde lhe esperam. Tenho parentes nestas montanhas,
juntos vigiaremos a nosso amigo escuro e nos ocuparemos de que não cause nenhum dano. --De acordo --respondeu Pomba. Deu meia volta e se afastou. Kellindil se dispôs
a fazer o mesmo mas antes se voltou para jogar um último olhar. Colocou uma mão na mochila, tirou um frasco e o deixou no chão bem à vista. Depois, como se o tivesse
pensado melhor, agarrou um segundo objeto e o colocou junto ao frasco. Satisfeito, pôs-se a andar detrás da vigilante. Quando Roddy McGristle retornou da inútil
perseguição, Pomba e outros tinham tudo recolhido e disposto para partir. --Preparados para caçar ao drow --anunciou Roddy. Tirou-nos um pouco de vantagem, mas
já é nosso. --O drow se partiu --respondeu Pomba cortante. Acabou-se a perseguição. --Roddy a olhou boquiaberto, e o rosto lhe pôs branco de raiva. Darda precisa
descansar! --acrescentou a vigilante, sem intimidar-se. Ao Kellindil quase não ficam flechas e nossas provisões estão a ponto de esgotar-se. --Não estou disposto
a esquecer aos Thistledown com tanta facilidade! --declarou Roddy.
--Tampouco os esqueceu o drow --interveio Kellindil. --Os Thistledown já foram vingados --disse Pomba--, e você sabe que é verdade, McGristle. O drow não os matou!
Em troca, sim que acabou com os assassinos! Roddy soltou um grunhido e lhe voltou as costas. Era um cazarrecompensas veterano e também um bom investigador. Sabia
a verdade desde fazia tempo, mas não podia fazer caso omisso da cicatriz no rosto, a perda da orelha, e menos ainda da forte recompensa prometida pela cabeça do
drow. --A gente do Maldobar não se alegrará de ver o drow morto quando se inteirarem da verdade da massacre --acrescentou a vigilante, advertida das razões do montanhês--
e não acredito que estejam muito dispostas a pagar. Roddy a olhou furioso, embora uma vez mais não podia negar a validez do dito. Quando o grupo de Pomba empreendeu
o caminho de volta ao Maldobar, Roddy McGristle foi com eles. Drizzt desceu da montanha ao cabo de umas horas em busca de algo que lhe informasse do paradeiro dos
perseguidores. Encontrou o frasco do Kellindil e se aproximou com desconfiança até que viu o outro objeto, a pequena adaga que lhe tinha arrebatado ao trasgo, quão
mesma tinha empregado para cortar a corda do arco do elfo no primeiro encontro. O líquido do frasco cheirava doce, e o drow, com a garganta ressecada pelo pó, bebeu
um bom gole. Um estremecimento sacudiu o corpo do Drizzt, que se notou fresco e revitalizado. Apenas se tinha comido nos últimos dias, mas os músculos recuperaram
força quase imediatamente. Inclusive a perna ferida melhorou rapidamente. Sentiu vertigem; caminhou até um penhasco próximo e se sentou à sombra disposto a descansar.
Quando despertou, era de noite e no céu brilhavam as estrelas. sentia-se muito melhor. Drizzt sabia quem lhe tinha deixado o frasco e a adaga, e, agora que compreendia
a natureza da bebida, sua confusão foi em aumento.
TERCEIRA PARTE
Montolio
Para todos os povos do mundo, não há nada tão fora de seu alcance, e ao mesmo tempo tão profundamente pessoal e dominante, como o conceito de "Deus". A experiência
em meu país natal me ensinou muito pouco sobre estes seres sobrenaturais, além das influências da maligna deidade drow, reina-a aranha, Lloth. depois de presenciar
os estragos das obras do Lloth, não me apressei a abraçar o conceito de nenhum deus, de qualquer ser que pudesse ditar os códigos de conduta e os preceitos de toda
uma sociedade. Acaso a moral não é uma força interior? E, se o for, os princípios têm que ser ditados ou sentidos? A isto segue a pergunta sobre os próprios deuses:
são estas entidades seres reais, ou são a manifestação de crenças compartilhadas? Os elfos escuros são malignos porque seguem os preceitos da rainha arranha, ou
é Lloth a culminação da conduta maligna inerente aos drows? Da mesma maneira, quando os bárbaros do vale do Vento Gelado carregam através da tundra caminho da guerra,
gritando o nome do Tempus, senhor das batalhas, seguem os preceitos do Tempus, ou é Tempus simplesmente o nome idealizado que dão a suas ações? Não sei a resposta,
e cheguei a compreender que tampouco sabem outros, não importa o muito que gritem o contrário, especialmente os sacerdotes de alguns deuses. Ao final, para grande
pena do pregador, a escolha de um deus é exclusivamente pessoal, e esta escolha está de acordo com o código de princípios de cada um. Um missionário pode coagir
e enganar aos futuros discípulos, mas nenhum ser racional pode honestamente seguir as ordens de qualquer figura divina se sortes ordens forem contra seus próprios
princípios. Nem eu, Drizzt Dou'Urdem, nem meu pai, Zaknafein, poderíamos ter sido nunca discípulos da rainha arranha. E Wulfgar do vale do Vento Gelado, meu amigo
dos últimos anos, embora possa invocar ao deus da batalha, tampouco agrada a esta entidade chamada Tempus exceto naquelas ocasiões em que utiliza sua poderosa maça
de combate. Os deuses dos Reino são muitos e diversos, ou talvez os muitos e diversos nomes e identidades correspondam a um mesmo ser. Não sei nem me importa.
Drizzt DOU'URDEM
11
Inverno
Drizzt procurou seu caminho através das altas e imponentes montanhas durante muitos dias, disposto a pôr a maior distancia possível entre o povo de camponeses e
as espantosas lembranças. A decisão de escapar não tinha sido consciente; se Drizzt não se houvesse sentido tão desesperado, possivelmente teria compreendido a boa
vontade que demonstravam os presentes do elfo, a bebida medicinal e a devolução da adaga, e a possibilidade de uma futura relação. Mas as lembranças do Maldobar
e a culpa que pesava sobre os ombros do drow não podiam ser descartados facilmente. O povo se converteu simplesmente em outra parada mais na busca de um lar, um
intento que cada dia lhe parecia mais fútil. Drizzt se perguntou se seria capaz de aproximar-se do próximo povo que encontrasse no caminho. acreditava-se responsável
por todas as tragédias. Não lhe ocorreu pensar que a presença dos barjes podia ser uma circunstância extraordinária, e que, possivelmente, sem eles, o resultado
do encontro poderia ter sido outro muito distinto. Neste momento tão amargo da vida, todos os pensamentos do Drizzt se enfocavam em uma só palavra que se repetia
incesantemente em sua cabeça e lhe transpassava o coração: "drizzit". O caminho do Drizzt acabou por levá-lo até um grande passo nas montanhas e uma profunda quebrada
de paredes abruptas coberta com a névoa de um rio turbulento que discorria no fundo. O ar era cada vez mais frio, algo que Drizzt não compreendia, e o vapor de água
lhe produziu uma sensação agradável. Procurou a forma de baixar, e demorou quase todo o resto do dia em chegar às bordas da corrente. Drizzt tinha visto rios na
Antípoda Escura, mas nenhum parecido a este. O Rauvin corria entre as pedras, lançando espuma a vários metros de altura. Rodeava penhascos enormes, percorria um
campo de cantos rodados, e se afundava de repente em umas cascatas que tinham cinco vezes a altura do drow. Drizzt estava encantado com a vista e o som, mas sobre
tudo, porque via as possibilidades deste lugar como refúgio. Nas bordas se viam numerosos atoleiros abastecidos pelos desvios do curso principal. Neles também havia
peixes, que descansavam da luta contra a corrente. A visão provocou um grunhido de fome no estômago do Drizzt. ajoelhou-se junto a um dos atoleiros, com a mão lista
para pescar. Custou-lhe muitos intentos compreender o fenômeno da refração da luz na água, mas era o bastante preparado e rápido para aprender o jogo. A mão do Drizzt
se afundou de repente e voltou para a superfície com uma truta de trinta centímetros bem sujeita no punho. Drizzt jogou no pescado sobre as pedras, longe da água,
e não demorou para pescar o segundo. Esta noite comeria bem, pela primeira vez desde que tinha escapado da região agrícola, e tinha água fresca e clara para todas
suas necessidades. Os que conheciam a região chamavam a este lugar o passado do Orco Morto. O nome enganava um pouco, porque, embora centenares de orcos tinham morrido
neste vale rochoso nas numerosas batalhas contra as legiões humanas, ainda ficavam
milhares que viviam nas numerosas covas, preparados para atacar aos intrusos. Em conseqüência, não eram muitos os visitantes e os que apareciam desconheciam o perigo.
Para o ingênuo Drizzt, a abundância de água e comida somada à névoa que o aliviava do frio do ar, faziam deste lugar um refúgio perfeito. O drow passava os dias
acurrucado nas sombras protetoras dos numerosos penhascos e covas pequenas; as horas da noite as dedicava a caçar e compilar. Não via este retorno aos hábitos noturnos
como uma regressão ao que tinha sido antes. Quando tinha abandonado a Antípoda Escura, tinha-o feito com a decisão de viver entre os habitantes da superfície como
um mais, e, portanto, fazia grandes esforços para habituar-se à vida diurna. Agora já não tinha as mesmas ilusões. Realizava as atividades de noite porque seus olhos
sofriam menos e também porque, quanto menos estivesse a cimitarra exposta à luz solar, mais tempo conservaria o fio mágico. De todos os modos, não demorou muito
em averiguar a razão pela qual os habitantes da superfície preferiam o dia. Com o calor do sol, a temperatura do ar ainda era suportável, embora um pouco fresca.
Durante a noite, freqüentemente tinha que proteger-se da brisa geada que soprava entre as paredes quase verticais da quebrada coberta de névoa. Chegava o inverno
às terras do norte, mas o drow, criado na Antípoda Escura, onde não existiam as estações, não sabia. Uma noite, quando soprava um vento brutal e gelado que lhe intumescia
as mãos, Drizzt fez um descobrimento fundamental. Inclusive com o Guenhwyvar a seu lado, acurrucada debaixo de um saliente, o jovem notava a dor intensa que o frio
provocava em suas extremidades. Faltavam muitas horas para o alvorada, e Drizzt se perguntou se chegaria a ver a saída do sol. --Faz muito frio, Guenhwyvar --gaguejou,
tiritando. Muito frio. Flexionou os músculos e se moveu vigorosamente, em um intento por reativar a circulação. Depois se preparou mentalmente; pensou nos dias
em que tinha calor, como uma forma de conter o desespero e enganar ao corpo para que esquecesse o frio. Sua mente se concentrou em um só pensamento: a lembrança
das cozinhas da Academia do Menzoberranzan. Na sempre cálida Antípoda Escura, Drizzt nunca tinha considerado o fogo como uma fonte de calor. O fogo unicamente tinha
sido um método para cozinhar, um meio para produzir luz e uma arma ofensiva. Agora, em troca, tinha um significado muito mais importante. Enquanto o vento soprava
cada vez mais frio, Drizzt compreendeu, espantado, que o calor do fogo era a única coisa que podia mantê-lo vivo. Olhou a sua redor em busca de lenha. Na Antípoda
Escura tinha queimado caules de cogumelos, mas na superfície não havia cogumelos tão grandes. Em troca havia novelo, árvores que cresciam mais altos que os cogumelos
da Antípoda Escura. --Busca... ramos --indicou-lhe gaguejando ao Guenhwyvar, que não conhecia as palavras para madeira ou árvore. A pantera o olhou curiosa. Fogo
--rogou. Tentou ficar de pé mas as pernas não o sustentavam. Então a pantera o compreendeu. Grunhiu e desapareceu na noite. O felino quase se levou por diante um
montão de ramos e lascas que tinha sido deixado --por quem, Guenhwyvar não sabia-- a uns passos da entrada. Drizzt, muito preocupado pela sobrevivência, não sentiu
saudades ante a súbita volta do animal. Durante vários minutos tentou sem êxito acender o fogo, golpeando a adaga contra uma faca. Por fim compreendeu que o vento
impedia que as faíscas chegassem à madeira, e moveu os ramos a um lugar mais protegido. Doíam-lhe as pernas, e a saliva lhe congelava nos lábios e o queixo. Uma
faísca prendeu nas lascas secas. Drizzt soprou com muito cuidado a pequena chama, encerrando-a entre as mãos para evitar que o vento a apagasse.
--acendeu um fogo --disse-lhe um elfo a seu companheiro. Kellindil assentiu muito sério, ainda pouco seguro respeito a se ele e seus companheiros tinham feito bem
em ajudar ao drow. O arqueiro tinha retornado imediatamente do Maldobar, enquanto Pomba e os outros partiam ao Sundabar, e se tinha reunido com uma pequena família
de elfos, parentes deles, que viviam nas montanhas perto do passado do Orco Morto. Com sua ajuda, o elfo não tinha tido muitas dificuldades em localizar ao drow,
e entre todos o tinham vigiado, com grande interesse, durante as últimas semanas. O inocente comportamento do Drizzt não tinha dissipado todas as dúvidas do elfo.
depois de tudo era um drow, de visível pele escura e coração negro por reputação. Em qualquer caso, Kellindil suspirou aliviado quando viu o pequeno e distante resplendor.
O drow não se congelaria; o arqueiro considerava que não se merecia semelhante destino. depois de jantar, Drizzt se apoiou no Guenhwyvar --a pantera aceitou gostosa
compartilhar o calor corporal-- e contemplou as estrelas que brilhavam com toda claridade no ar gelado. --Recorda Menzoberranzan? --perguntou-lhe à pantera. Recorda
quando nos vimos pela primeira vez? Guenhwyvar não deu nenhuma amostra de ter compreendido as palavras. Com um bocejo, estirou-se contra seu amo e apoiou a cabeça
sobre as patas estendidas. Drizzt sorriu e esfregou com força a orelha da pantera. Tinha conhecido ao Guenhwyvar no Sorcere, a escola de magia da Academia, quando
a pantera pertencia ao Masoj Hun'ett, o único drow que Drizzt tinha matado em sua vida. O jovem não queria recordar o episódio; com o fogo bem aceso e os pés quentes,
não era esta uma noite para lembranças desagradáveis. Apesar dos muitos horrores que tinha visto em sua cidade natal, Drizzt também tinha vivido alguns momentos
agradáveis e aprendido muitas coisas úteis. Inclusive Masoj lhe tinha ensinado coisas que agora o ajudavam mais do que tivesse esperado. Ao olhar as chamas, Drizzt
pensou que, de não ter sido por aquelas tarefas de aprendiz, nas que devia ocupar-se de acender velas, não teria sabido como acender um fogo. Não havia nenhuma dúvida
de que este conhecimento o tinha salvado de morrer de frio. O sorriso do Drizzt durou pouco enquanto seus pensamentos seguiam pela mesma linha. Uns poucos meses
depois daquela lição tão útil, viu-se forçado a matar ao Masoj. recostou-se uma vez mais e suspirou. Sem perigos iminentes nem más companhias, possivelmente esta
era a época mais singela de sua vida, mas nunca como agora as complexidades da existência o tinham afligido tanto. A tranqüilidade se quebrou ao cabo de uns momentos,
quando um pássaro grande, um mocho com duas mechas de plumas como chifres na cabeça, voou de repente por cima dele. Drizzt soltou uma gargalhada ao comprovar sua
incapacidade para relaxar-se; no segundo que tinha demorado para ver que o pássaro não era uma ameaça, pôs-se de pé e desembainhado a cimitarra e a adaga. Também
Guenhwyvar tinha reagido ante a inesperada aparição do mocho, mas de uma maneira muito diferente. Assim que Drizzt se apartou, a pantera se aproximou do fogo, se
desperezó e voltou a bocejar. O mocho voou silencioso entre as brisas invisíveis, subindo com a bruma do rio pela parede oposta à cova do Drizzt. O pássaro voou
através da noite até um espesso bosque na ladeira de uma montanha, e se posou em uma ponte de cordas construído entre os ramos mais altas de três das árvores. depois
de uns momentos dedicados a alisar a plumagem, o mocho fez soar uma campanita de prata, sujeita ao
ponte para estas ocasiões. Ao cabo de um segundo, o pássaro tocou outra vez o sino. --Já vou --disse uma voz desde mais abaixo. Paciência, Sereia. Deixa que um
cego caminhe ao passo que mais lhe acomode! Como se tivesse entendido, e desfrutasse de do jogo, o mocho repetiu o toque. Um ancião com um enorme e hirsuto bigode
cinza e os olhos brancos apareceu na ponte. Avançou com toda segurança pelos troncos da ponte em direção ao pássaro. Montolio era um antigo vigilante de muito renome,
que agora vivia seus últimos anos --por própria escolha-- encerrado nas montanhas e rodeado pelas criaturas às que mais queria (não considerava entre elas aos humanos,
elfos, anões, nem a nenhuma das outras raças inteligentes). Apesar de sua considerável idade, Montolio se conservava ágil e atlético, embora o passo dos anos se
deixou sentir, e o ermitão tinha uma mão retorcida até o ponto de que se parecia com a garra de um ave. --Paciência, Sereia --repetiu várias vezes. Qualquer que
o tivesse visto cruzar a perigosa ponte não teria imaginado que era cego, e aqueles que o conheciam tampouco o haveriam descrito como tal. Em troca, possivelmente
haveriam dito que os olhos não lhe funcionavam embora se teriam apressado a acrescentar que não os necessitava. Com suas habilidades e conhecimentos, e a ajuda de
seus muitos amigos animais, o velho vigilante podia "ver" muito mais do mundo que a maioria das pessoas com vista. Montolio estendeu um braço, e o grande mocho se
posou sobre ele e assegurou as garras na grossa manga de couro. --Viu ao drow? --perguntou Montolio. O mocho respondeu com um "uuuuuh!" e depois emitiu uma complicada
série de sons. Montolio escutou com grande atenção sem perder-se nem um só detalhe. Com a ajuda dos amigos, e em especial a do mocho falador, o vigilante tinha seguido
os movimentos do drow durante vários dias, curioso por saber as razões pelas que um elfo escuro tinha entrado no vale. Ao princípio, Montolio tinha pensado que o
drow podia ter alguma relação com o Graul, o chefe dos orcos da região; mas à medida que passava o tempo, o vigilante foi trocando de parecer. --Um bom sinal --comentou
Montolio quando o mocho lhe assegurou que o drow não tinha mantido nenhum contato com as tribos de orcos. Graul já era um pesadelo e só lhe faltava receber a ajuda
de um aliado tão capitalista como um elfo escuro! Mesmo assim, o vigilante não podia entender por que os orcos não tinham ido buscá-lo. Provavelmente não o tinham
visto; o drow se tomou muitas moléstias para passar inadvertido, não tinha aceso fogo (até esta noite) e só saía com o anoitecer, embora Montolio chegou à conclusão,
depois de pensar um pouco mais, que os orcos tinham visto o drow mas não tinham coragem para estabelecer contato. Em qualquer caso, todo o episódio proporcionava
uma distração que agradava ao vigilante enquanto se ocupava das tarefas habituais de preparar a casa para o inverno. Não temia a aparição do drow --Montolio não
lhe tinha medo a nada-- e, se o drow e os orcos não eram aliados, o conflito podia ser digno de ver-se. --Já pode ir --disse-lhe ao mocho, que resmungava. Vê
e caça uns quantos ratos! --O mocho remontou o vôo imediatamente, deu uma volta por cima da ponte, e desapareceu na noite. Tome cuidado de não te comer nenhum
dos que vigiam ao drow! --acrescentou Montolio, com uma gargalhada. Sacudiu a grande juba cinza, retornou à escada ao final da ponte. Jurou, enquanto descia,
que não demoraria para ater a espada à cintura e descobrir o que procurava o drow nesta região. O vigilante era muito dado a fazer-se estas promessas. Os avisos
do outono cederam aconteço rapidamente ao terrível inverno. Drizzt não
tinha demorado para compreender o significado das nuvens cinzas, mas quando estalou a tormenta, esta vez em forma de neve em lugar de chuva, o drow ficou boquiaberto.
Tinha visto o branco na cúpula das montanhas, embora nunca tinha subido até ali, e tinha pensado que só era a coloração das rochas. Agora contemplava a queda dos
flocos brancos no vale; desapareciam na corrente e se amontoavam nas pedras. À medida que aumentava a espessura da neve e as nuvens desciam de altura, Drizzt compreendeu
que devia atuar depressa, e se apressou a chamar o Guenhwyvar. --Temos que procurar um refúgio mais adequado --explicou-lhe à cansada pantera, que só tinha podido
estar um dia em sua casa astral. E devemos abastecê-lo com madeira para as fogueiras. Havia muitas covas na parede a este lado do rio. Drizzt encontrou uma, não
só profunda e escura mas também protegida do vento por um penhasco bastante alto. Entrou e se deteve para permitir que os olhos se habituassem à escuridão depois
de suportar o forte resplendor da neve. O chão da cova era irregular e o teto não muito alto. Havia um montão de pedras grandes dispersas, e em um extremo, perto
de uma destas, Drizzt observou uma sombra mais escura, que indicava uma segunda câmara. Deixou a braçada de lenha e se dirigiu para ali; de repente, Guenhwyvar e
ele se detiveram o pressentir outra presença. Drizzt desembainhou a cimitarra, ocultou-se atrás do penhasco, e espiou o interior da outra câmara. Com a infravisão
não foi difícil ver o outro habitante da cova, uma bola quente muito maior que o drow. Drizzt soube imediatamente quem era, embora não tinha um nome para ele. Tinha
visto a criatura de longe em repetidas ocasiões, tinha-a observado enquanto, com muita manha --e uma velocidade surpreendente, dado o tamanho--, pescava no rio.
Em qualquer caso lhe dava igual não saber o nome. Não tinha nenhum interesse em lutar contra ele para ocupar a cova; havia muitas mais na zona, mais fáceis de conseguir.
O grande urso pardo, em troca, parecia ter outras idéias. O animal despertou bruscamente, ergueu-se sobre as patas traseiras, e exibiu as garras enquanto seu capitalista
rugido ressonava como um trovão na caverna. Guenhwyvar, a entidade astral da pantera, conhecia urso como um inimigo ancestral, uma criatura que os felinos sensatos
tratavam de evitar. Entretanto, nesta ocasião a valente pantera se colocou diante do Drizzt, disposta a enfrentar-se com o urso para que seu amo tivesse tempo de
fugir. --Não, Guenhwyvar! --ordenou-lhe Drizzt, e sujeitou à pantera para ficar ele outra vez diante. O urso, outro dos muitos amigos do Montolio, não fez nenhum
movimento de ataque, mas sim manteve a posição com ferocidade, zangado pela interrupção do sonho invernal. Drizzt notou uma sensação que não podia explicar; não
uma amizade para o urso, a não ser uma estranha compreensão do ponto de vista da criatura. tratou-se a si mesmo de parvo quando embainhou a cimitarra, mas tampouco
podia negar a empatia, quase como se estivesse vendo a situação através dos olhos do animal. Com cautela, Drizzt se aproximou para olhar ao urso atentamente. O animal
pareceu quase surpreso e então, pouco a pouco, baixou as garras e a careta feroz foi substituída por uma expressão que o elfo compreendeu como de curiosidade. Drizzt
colocou uma mão na bolsa e tirou o pescado que tinha reservado para o jantar. O jogou no urso, que o cheirou uma vez e depois o engoliu quase sem mastigá-lo. Transcorreu
outro comprido momento de estudo, mas a tensão tinha desaparecido. O urso arrotou uma vez, voltou a tender-se no chão, e ao cabo de um par de minutos roncava satisfeito.
Drizzt olhou ao Guenhwyvar e encolheu os ombros, sem saber como explicar a comunicação tão profunda com o animal. Por sua parte, a pantera parecia ter compreendido
as conotações da mudança porque a pele já não se via arrepiada. Durante o resto do tempo que Drizzt passou naquela cova, nunca deixou de pôr um pouco de comida junto
ao urso dormido, cada vez que podia fazê-lo. Em ocasiões, especialmente se Drizzt tinha deixado pescado, o urso o cheirava e despertava o tempo suficiente para comer-lhe
Mas a maioria das vezes, o animal não fazia caso e continuava dormido sonhando com mel, frutas, ousa, todo aquilo com o que sonham os ursos. --Compartilha o lar
com o Bluster? --exclamou Montolio assombrado quando se inteirou por Sereia de que o drow e o intratável urso compartilhavam a cova. Montolio quase caiu de costas...
e se teria cansado de não ter tido perto uma árvore onde apoiar-se. Recostado no tronco, atônito, o velho vigilante se arranhou a barba e se tironeó os bigodes.
Conhecia urso desde fazia anos, e nem sequer ele estava seguro de estar disposto a compartilhar o alojamento com o animal. Bluster era uma criatura que se irritava
facilmente, como muito bem tinham podido averiguar os estúpidos orcos do Graul com o passo dos anos. "Suponho que Bluster está muito cansado para discutir", pensou
Montolio, embora sabia que aqui passava algo mais. Se um orco ou um goblin tivessem entrado na cova, Bluster os teria matado sem pensá-lo duas vezes. Não obstante,
o drow e a pantera passavam ali os dias, acendendo fogo na primeira câmara enquanto Bluster roncava na outra. Como vigilante, e conhecendo muitos outros vigilantes,
Montolio tinha visto e escutado muitas coisas estranhas. Em qualquer caso, até então sempre tinha considerado a habilidade inata para comunicar-se mentalmente com
os animais selvagens um domínio exclusivo dos elfos da superfície, os trasgos, os halflings, os gnomos e quão humanos tinham aprendido a vida dos bosques. --Como
pode um elfo escuro saber o que é um urso? --perguntou Montolio em voz alta, sem deixar de arranhá-la barba. O vigilante considerou duas possibilidades: ou desconhecia
coisas da raça drow, ou este elfo escuro não tinha muito que ver com os seus. À vista do estranho comportamento do drow, Montolio se inclinava pela segunda, embora
precisava confirmá-la. Mas as investigações teriam que esperar. Tinha cansado a primeira nevada, e a seguiriam muitas mais. Nas montanhas que rodeavam o passado
do Orco Morto não se movia ninguém quando começava a nevar. Guenhwyvar foi a salvação do Drizzt no transcurso das semanas seguintes. Nas ocasiões em que a pantera
caminhava pelo plano material, Guenhwyvar se aventurava constantemente pelos campos talheres de neve dedicada a caçar e, mais importante ainda, a compilar lenha
para o fogo. em que pese a isso, as coisas não eram fáceis para o drow. Cada dia tinha que ir até o rio e romper a capa de gelo dos atoleiros que se formavam na
borda, onde achava sua provisão de pesca. Não era uma caminhada muito larga, mas caminhar pela neve resultava difícil e perigoso; freqüentemente se produziam pequenas
avalanches que o sepultavam, e muitas vezes retornava à caverna com as mãos e os pés intumescidos. Não demorou para aprender que devia deixar o fogo aceso antes
de sair, porque à volta não tinha forças para sustentar a adaga e a pedra e fazer faíscas. Inclusive quando tinha o estômago cheio e permanecia sentado junto ao
fogo apoiado no corpo da pantera, tinha frio e se sentia desconsolado. Pela primeira vez em muitas semanas, o drow duvidava da decisão de abandonar a Antípoda Escura,
e,
à medida que crescia o desespero, perguntou-se uma e outra vez se tinha feito bem em partir do Menzoberranzan. compadecia-se de si mesmo e havia momentos em que
acreditava que acabaria por morrer de frio, só e abandonado. Drizzt não compreendia o que acontecia o estranho mundo que o rodeava. Voltaria alguma vez o calor que
tinha encontrado a sua chegada à superfície? Acaso o frio era o resultado de uma maldição lançada pelos capitalistas inimigos do Menzoberranzan? Esta confusão lhe
expôs um complexo dilema: devia permanecer na cova e esperar a que passasse a tormenta (não sabia outro nome para a estação invernal)? Ou devia abandonar o vale
e procurar um clima mais quente? teria ido, e sem dúvida teria morrido no cruzamento das montanhas, de não ter sido por outro feito coincidente com o mau tempo.
As horas diurnas eram menos e mais as noturnas. Significava isto que o sol desapareceria por completo, e a superfície ficaria envolta pela escuridão e o frio eternos?
Drizzt duvidava dessa possibilidade, assim, utilizando um pouco de areia e uma garrafa vazia que tinha na mochila, começou a medir os períodos de luz e escuridão.
Suas esperanças se desmoronaram ao ver que os cálculos demonstravam que o dia era cada vez mais curto. A estação avançava, e com ela aumentava o desespero. Sua saúde
piorou. Quase estava ao limite de suas forças, quando advertiu pela primeira vez uma mudança: o solstício de inverno. Apenas se podia dar crédito ao descobrimento
--as medições horarias eram pouco precisas-- mas depois de uns dias, Drizzt não podia negar a evidência do relógio de areia. Os dias voltavam a ser mais largos.
O jovem recuperou a esperança. Tinha suspeitado uma mudança de estação desde que tinham soprado os primeiros ventos frios. Tinha visto como o urso pescava afanosamente
à medida que piorava o tempo, e agora acreditava que o animal tinha previsto o frio e acumulado graxa para o comprido sonho. Este conhecimento e os achados sobre
a duração do dia, convenceram ao Drizzt de que esta paisagem gelada não o seria para sempre. Entretanto, o solstício não trouxe um alívio imediato. Os ventos não
amainaram e continuaram as nevadas. Mas Drizzt tinha outra vez o ânimo muito alto, e teria sido necessário algo mais que um inverno para derrotar ao indômito drow.
Então ocorreu. Ao parecer, quase da noite para o dia. Deixou de nevar, o rio correu livre de gelo e o vento trocou para trazer um ar mais quente. Drizzt notou uma
sensação de vitalidade e alegria, um alívio da dor e a culpa que não podia explicar. Embora não sabia do que se tratava nem podia lhe dar um nome, experimentava
os efeitos da primavera como todas as demais criaturas naturais do mundo da superfície. Uma manhã, enquanto Drizzt acabava de comer e se dispunha a ir-se dormir,
seu companheiro de cova saiu da outra câmara, visivelmente mais magro embora igual de formidável. Drizzt observou ao urso sem saber muito bem se devia empunhar a
cimitarra ou chamar o Guenhwyvar. O urso não lhe emprestou atenção. Passou junto a ele, deteve-se para cheirar e lamber a pedra que Drizzt tinha utilizado como prato,
e depois saiu à luz do sol. Bocejou e se desesperezó com tantas vontades que Drizzt compreendeu que tinha acabado a sesta invernal. Também compreendeu que, com o
animal em ativo, a cova resultaria pequena para dois. Decidiu que possivelmente, com um tempo mais benigno, não valia a pena lutar pela cova. Drizzt partiu antes
da volta do urso, mas para deleite do animal, deixou-lhe um pescado para o jantar. O jovem não demorou para encontrar outra cova adequada uns centenares de metros
mais abaixo.
12
Conhece seu inimigo
O inverno desapareceu tão depressa como tinha chegado. A neve se derretia rapidamente e o vento do sul já não era frio. Drizzt não demorou para estabelecer uma
rotina muito fácil de levar: o problema mais importante era o resplendor do sol no chão ainda talher de neve. O drow se adaptou bastante bem ao sol durante os primeiros
meses na superfície, movia-se sem impedimentos à luz do dia e inclusive tinha lutado nessas condições. Em troca agora, com o reflexo da neve no rosto, Drizzt apenas
se aventurava fora da cova. Saía só de noite e deixava o dia para o urso e outros animais. Tampouco o preocupava muito; a neve não demoraria para desaparecer, e
poderia levar outra vez a vida cômoda que tinha desfrutado nos últimos dias anteriores ao começo do inverno. Uma noite, bem comido e melhor descansado, à luz da
lua enche, Drizzt olhou ao outro lado do rio, para a parede mais longínqua do vale. "O que haverá ao outro lado?", perguntou-se a si mesmo. O rio corria com muita
força e a profundidade tinha aumentado com a água do degelo, mas aquela mesma noite Drizzt tinha encontrado uma via para cruzá-lo, uma fila de penhascos muito juntos
que apareciam por cima das turbulentas águas. A noite era jovem; a lua ainda não tinha alcançado a metade do percurso. Animado pelo espírito próprio da estação,
Drizzt decidiu investigar. Baixou até a borda e saltou agilmente sobre o primeiro dos penhascos. A um homem ou a um orco --e inclusive à maioria das outras raças
do mundo-- cruzar por umas rochas arredondadas, escorregadias, e dispostas a distâncias irregulares teria parecido um caminho muito difícil e perigoso para fazer
o intento. Mas o drow realizou o cruzamento em muito pouco tempo. Chegou ao outro lado e correu pela borda, saltando quando era necessário os numerosos obstáculos
apresentados pelas pedras e as gretas sem a menor preocupação. Muito outro teria sido seu comportamento de ter sabido que agora se encontrava na parte do vale dominada
pelo Graul, o grande cacique orco. Uma patrulha de orcos descobriu ao drow antes de que chegasse na metade da parede do vale. Os orcos já tinham visto o drow em
outras ocasiões, quando baixava a pescar no rio. Temeroso dos elfos escuros, Graul tinha ordenado aos seus que se mantiveram a distância, convencido de que as neve
se encarregariam de jogar ao intruso. Mas o inverno tinha passado, o drow não se foi, e agora tinha cruzado o rio. Graul esfregou as gordinhas mãos com um gesto
nervoso ao inteirar-se da notícia. O grande orco se consolou um pouco ao recordar que o drow estava sozinho e não pertencia a um grupo maior. Possivelmente era um
explorador ou um renegado. Não podia averiguá-lo, e em
qualquer caso as implicações não agradavam ao cacique. Se o drow era um explorador, não demorariam para chegar outros, e, se era um renegado, possivelmente podia
pensar nos orcos como possíveis aliados. Graul tinha sido cacique durante muitos anos, um fato pouco freqüente entre os indisciplinados orcos. Tinha sobrevivida
graças a não correr riscos e não pretendia corrê-los agora. Um elfo escuro podia usurpar o mando da tribo, uma posição que Graul protegia celosamente. Não podia
permiti-lo. Duas patrulhas de orcos abandonaram as covas com ordens explícitas de matar ao drow. O vento soprava frio na cúpula da parede do vale e a neve era mais
profunda, mas ao Drizzt não importava. Ante seu olhar se estendiam grandes zonas boscosas, que obscureciam os vales montanhosos e o convidavam, depois de passar
o inverno encerrado em uma cova, a que os explorasse. Tinha caminhado quase um quilômetro quando advertiu que o seguiam. Não tinha visto ninguém, exceto possivelmente
uma sombra fugaz com a extremidade do olho, mas os instintos guerreiros advertiram ao Drizzt que se tratava de algo real. Subiu por uma costa levantada, procurou
o amparo de um grupo de árvores muito altas e correu até a crista. Uma vez ali, ocultou-se detrás de um penhasco e esperou. Sete silhuetas escuras, seis humanas
e uma canina, saíram das árvores, e seguiram o rastro lento e metodicamente. A tanta distância, Drizzt não podia distinguir a raça, embora suspeitava que deviam
ser humano. Olhou a seu redor, em busca de um bom caminho para a retirada, ou um setor facilmente defensável. Drizzt quase não se deu conta de que tinha a cimitarra
em uma mão e a adaga na outra. Quando advertiu que empunhava as armas, e que o grupo de perseguidores estava muito perto, pensou no que devia fazer. Podia enfrentar-se
a eles aqui e agora, atacando-os enquanto escalavam os últimos metros do escorregadio e traiçoeiro pendente. --Não --grunhiu Drizzt, descartando a possibilidade
de um ataque. Não duvidava da vitória. Em troca, preocupava-o o fato de que depois teria que suportar o remorso e a culpa pela batalha. O drow não queria nem lhe
interessava ter nenhum tipo de contato. Já se sentia bastante culpado. Ouviu as vozes dos perseguidores, sons guturais parecidos com os do idioma goblin. --Orcos
--murmurou, ao relacionar a linguagem com a silhueta quase humana das criaturas. Saber o que eram não trocou a decisão do elfo escuro. Drizzt não sentia nenhuma
avaliação pelos orcos --tinha-os conhecido muito bem nos anos passados no Menzoberranzan--, mas tampouco tinha nenhum motivo nem justificação para lutar contra a
banda. Deu meia volta, escolheu um atalho e se perdeu na escuridão. Os perseguidores não desistiram. encontravam-se muito perto, e Drizzt não podia despistá-los.
Pensou que acabaria por ter problemas. Se os orcos eram hostis --e, a julgar pelos gritos e os grunhidos, este era o caso--, então tinha desperdiçado a oportunidade
de lutar em terreno favorável. A lua se pôs fazia momento e o céu mostrava o tom azul que anunciava o alvorada. Aos orcos não gostava da luz, embora isto não resultava
uma vantagem importante porque o resplendor da neve também o afetava a ele. Teimado, o drow não fez caso à opção do combate e tratou de deixar atrás aos perseguidores,
retrocedendo outra vez para o vale. Aqui Drizzt cometeu o segundo engano, porque outra banda de orcos, estes acompanhados por um lobo e alguém muito maior, um gigante
das rochas, esperavam-no. O atalho era bastante plano, limitado à esquerda por um pendente quase
vertical e pela direita por uma parede virtualmente inescalable. Drizzt sabia que os perseguidores não teriam nenhuma dificuldade em segui-lo por este único caminho,
e compreendeu que dependia exclusivamente da velocidade. Tinha que chegar à cova antes da saída do sol. Um grunhido foi o único aviso antes de que um worg, um enorme
lobo com a pele como cerdas, saltasse ao caminho para lhe fechar o passo. O worg lhe jogou em cima, as fauces abertas em busca da cabeça. Drizzt se agachou por debaixo
do animal e descarregou um golpe que abriu uma segunda boca no pescoço da besta. O worg caiu atrás do drow, afogado no próprio sangue. Drizzt se girou para lhe atirar
outro cutilada quando apareceram os seis orcos armados com lanças e paus. O drow se dispôs a fugir e então voltou a agachar-se, bem a tempo para evitar que uma pedra
enorme lhe arrancasse a cabeça. Sem deter-se pensar, Drizzt criou um globo de escuridão a seu redor. Os quatro orcos que foram à cabeça se meteram no globo sem dar-se
conta. Os outros dois conseguiram deter a carreira e esperaram inquietos, com as lanças preparadas. Não podiam ver o que ocorria no interior da escuridão mágica,
embora pelo ruído dos pauladas e o estalo metálico das espadas parecia como se ali dentro se enfrentassem dois exércitos completos. Então outro som surgiu das sombras:
o rugido de um felino. Os dois orcos retrocederam, sem deixar de olhar por cima do ombro, enquanto desejavam que o gigante das pedras se apressasse a vir a socorrê-los.
Um dos camaradas, e depois outro, saíram da escuridão, gritando aterrorizados. O primeiro passou como uma exalação junto aos companheiros, o segundo não o conseguiu.
Guenhwyvar saltou sobre o orco e acabou com ele em um instante. Continuando, quase sem solução de continuidade, abateu a um dos dois que esperavam sem lhe dar tempo
a escapar. Os que ficavam fora do globo se dispersaram em um intento inútil por escalar o pendente. A pantera rematou à segunda vítima e foi perseguir aos outros.
Drizzt apareceu pelo outro lado do globo, sem um só arranhão, com a cimitarra e a adaga tinge com sangue de orco. O gigante das pedras, enorme, de ombros quadrados
e pernas como troncos, enfrentou-se a ele. O drow não vacilou. encarapitou-se a um penhasco e o utilizou de trampolim para saltar com a cimitarra por diante contra
o monstro. A agilidade e a rapidez do jovem surpreenderam ao gigante, que não teve tempo para esgrimir o pau ou levantar uma mão. Mas esta vez a sorte não acompanhou
ao drow. A cimitarra, fortalecida com a magia da Antípoda Escura, tinha passado muitas horas exposta à luz do sol. Golpeou contra a pele dura como uma rocha do gigante
de quatro metros e meio de estatura, dobrou-se pela metade e se quebrou no punho. Drizzt se tornou atrás, traído pela primeira vez por sua arma mais apreciada. O
gigante lançou um uivo e levantou o pau, com um sorriso cruel que manteve até que uma forma escura passou por cima da presunta vítima e lhe cravou no peito quatro
garras formidáveis. Guenhwyvar tinha salvado uma vez mais ao Drizzt, mas não era tarefa fácil derrotar a um gigante, que começou a dar pauladas e a sacudir-se até
que a pantera voou pelos ares. O felino teve a má sorte de aterrissar no pendente e, ao tentar saltar para reatar o ataque, escorregou na neve. Guenhwyvar rodou
um grande trecho e, quando finalmente conseguiu frear a queda, já estava muito longe para ajudar ao drow. Esta vez o gigante não sorria. O sangue emanava da dúzia
de feridas profundas que lhe cruzavam o peito e o rosto. A suas costas, o outro grupo de orcos, guiados pelo segundo worg, aproximava-se da carreira. Como qualquer
outro guerreiro ao ver-se superado em número, o elfo escuro deu
meia volta e pôs-se a correr. Se os dois orcos que tinham escapado da pantera tivessem retornado sobre seus passos, poderiam ter pego ao drow. Mas os orcos nunca
se destacaram pela valentia, e aqueles dois já tinham acontecido a cúpula e ainda corriam, sem olhar atrás. Drizzt avançou pelo atalho em busca de algum lugar que
lhe permitisse baixar o pendente e reunir-se com a pantera. Não havia nenhum pelo qual pudesse descer depressa, porque não duvidava que teria que suportar a chuva
de pedras lançadas pelo gigante. Subir a ladeira tampouco prometia muito com o monstro tão perto, assim que o drow seguiu correndo, com a esperança de que o atalho
não se acabasse muito em breve. Então o sol apareceu pelo horizonte: outro problema --um entre muitos-- para o drow acossado. Consciente de que a fortuna havia lhe
tornado as costas, Drizzt compreendeu, até antes de rodear a seguinte curva, que tinha chegado ao final do trajeto. Um deslizamento havia talher o caminho fazia
anos. O drow se deteve em seco e se despojou da mochila; já quase não ficava tempo. A banda guiada pelo worg alcançou ao gigante e, mutuamente encorajados, reataram
juntos a perseguição, com o maligno worg à cabeça. A besta passou à carreira uma curva muito fechada, tropeçou e tentou deter-se quando viu que tinha a pata metida
em um laço. Os worgs não eram criaturas estúpidas, mas este não advertiu as conseqüências da armadilha quando o drow empurrou o penhasco ao pendente. O worg não
se preocupou até que a corda ficou tensa e a pedra o fez cair ao vazio. A singela armadilha tinha funcionado à perfeição; entretanto, era toda a vantagem que tinha
conseguido Drizzt. A suas costas, o deslizamento lhe fechava o passo, aos lados só podia escolher entre o precipício e a ladeira quase vertical. Quando os orcos
e o gigante apareceram, com uma certa precaução depois de presenciar o vôo do worg, Drizzt os esperava com a adaga como única arma. O drow tentou parlamentar, utilizando
a língua goblin, mas os orcos não estavam dispostos a escutar. antes de que a primeira palavra saísse da boca do Drizzt, um deles lançou a lança. A arma era uma
sombra que voava para o drow, cegado pelo sol. Não obstante, tinha-a lançado uma mão torpe e seguia uma trajetória curva. Drizzt a esquivou sem problemas e devolveu
o tiro com a adaga. Embora o orco podia ver melhor que o drow, era muito mais lento. Recebeu a adaga na garganta. Com um gemido rouco caiu ao chão, e o companheiro
mais próximo se apressou a sujeitar a arma pela manga e retirar a da ferida, não para salvá-lo a não ser para fazer-se com uma adaga tão boa. Drizzt recolheu a lança
e se plantou no meio do caminho disposto a enfrentar-se com o gigante. de repente um mocho sobrevoou ao gigante e ululou, mas isso não distraiu ao monstro. Um segundo
mais tarde, o enorme corpachón se sacudiu pelo impacto de uma flecha nas costas. Drizzt viu o cabo da flecha com as aletas de plumas negras quando o gigante se voltou
furioso. O drow não perdeu tempo em averiguar de onde tinha chegado a ajuda inesperada, e cravou a lança nas costas do rival com todas suas forças. O gigante teria
se tornado para lhe responder, mas o mocho se aproximou outra vez e, assim que ululou, uma segunda flecha se afundou no peito do gigante. Uma terceira chamada, e
outra flecha fez alvo. Os boquiabertos orcos procuraram ansiosos ao agressor invisível, embora sem êxito, porque o brilho cegador da neve dificultava a visão das
bestas noturnas. O gigante, com o coração atravessado, permaneceu erguido com o olhar extraviado, sem dar-se conta de que sua vida tinha acabado. O drow voltou a
lhe afundar a lança nas costas, e o monstro caiu de bruces.
Os orcos se olharam os uns aos outros e a seu redor, preocupados com descobrir a melhor via para escapar. O estranho mocho baixou outra vez para situar-se por cima
de um orco, e soltou o peculiar uivo. O orco, consciente das conseqüências, sacudiu os braços e gritou para espantá-lo; uma flecha o silenciou no ato. Os quatro
orcos restantes romperam filas e escaparam, um ladeira acima, outro pelo mesmo caminho pelo que tinha vindo, e os outros dois carregaram contra Drizzt. O drow fez
girar a lança, descarregou o extremo da manga contra o rosto de um dos atacantes e completou o movimento para desviar a lança do outro inimigo. O orco soltou a arma
ao compreender que não poderia levantá-la a tempo para deter o Drizzt. O orco que subia pela ladeira soube que estava condenado assim que o mocho voou por cima de
sua cabeça. Aterrorizada-a besta se mergulhou detrás de uma rocha no momento de ouvir o uivo. De ter sido mais preparado teria advertido o engano. Pelo ângulo das
flechadas que tinham convexo ao gigante, o arqueiro devia estar situado em algum ponto mais alto da ladeira. Uma flecha lhe atravessou a coxa enquanto se agachava
e o fez cair de costas, chiando de dor. Com tanto escândalo como montava o orco, o arqueiro invisível não necessitava da ajuda do mocho para orientar o segundo disparo,
que alcançou ao orco no peito e o sossegou para sempre. Drizzt trocou de direção no ato e descarregou outro golpe contra o orco. Com uma velocidade fulminante, o
drow investiu a lança e a cravou na garganta da criatura com tanta força que alcançou o cérebro. O orco que tinha recebido o primeiro golpe se cambaleou enquanto
sacudia a cabeça violentamente com a intenção de reorientar-se. Notou que as mãos do drow o sujeitavam pelo peito da jaqueta de pele imunda, e depois sentiu o
roce do ar enquanto caía ao vazio, seguindo o mesmo caminho do worg. Para ouvir os alaridos dos companheiros que morriam, o orco que escapava pelo caminho agachou
a cabeça e correu mais depressa, convencido de que era o mais ardiloso de todos. Trocou de opinião quando, ao dobrar uma curva, foi cair nas garras de uma enorme
pantera negra. Drizzt, esgotado, apoiou-se na ladeira, com a lança preparada para usá-la quando o mocho baixou do alto da montanha, embora esta vez o ave se manteve
a distância e se posou no saliente que formava a curva a uma dúzia de passos. Uns movimentos na ladeira chamaram a atenção do drow. Apenas se podia ver por culpa
da luz, mas conseguiu distinguir uma silhueta humana que baixava com muito cuidado. O mocho remontou o vôo e começou a ulular por cima do elfo escuro, que se acurrucó,
alerta e preparado, enquanto o homem se situava atrás do saliente. Entretanto, nenhuma flecha seguiu à chamada do mocho. Em troca apareceu o arqueiro. Era alto,
erguido e muito velho, com grandes bigodes cinzas e uma longa cabeleira emaranhada. O mais curioso de tudo eram os olhos brancos sem pupilas. Desde não ter sido
pela eficácia dos disparos, Drizzt haveria dito que era cego. Os membros do ancião pareciam adoentados, mas Drizzt não se deixou enganar pelas aparências. O homem
levava o arco preparado e sustentava a flecha quase sem nenhum esforço. O velho disse algo em uma linguagem que Drizzt não entendeu, depois em outro, e por último
em goblin. --Quem é? --perguntou o vigilante.
--Drizzt Dou'Urdem --respondeu o drow, muito sereno e esperançado ao ver que podia comunicar-se com o adversário. --É um nome? --perguntou o ancião. Soltou uma
risada seca e encolheu os ombros. Em qualquer caso, seu nome, o que possa ser, e por que está aqui, não têm muita importância. O mocho, ao advertir um movimento
inesperado, começou a revoar e a ulular, mas já era muito tarde para o velho. A suas costas apareceu Guenhwyvar, que se colocou a um par de passos, com as orelhas
esmagadas contra o crânio e as fauces abertas. Ao parecer despreocupado ante o perigo, o ancião acabou a frase. --Agora é meu prisioneiro. Guenhwyvar grunhiu uma
vez, e o drow mostrou um sorriso de orelha a orelha. --Acredito que não --respondeu Drizzt.
13
Montolio
--Amiga tua? --perguntou o velho sem alterar-se. --Guenhwyvar --explicou Drizzt. --Um grande felino? --OH, sim--respondeu Drizzt. O ancião afrouxou a corda do arco
e deixou deslizar a flecha pouco a pouco, apontando para baixo. Fechou os olhos, jogou a cabeça para trás, e pareceu replegarse em seu interior. Drizzt advertiu
quase imediatamente que Guenhwyvar levantava as orelhas, e compreendeu que este estranho humano era capaz de estabelecer uma comunicação telepática com a pantera.
--Um bom animal --comentou o velho assim que acabou a comunicação. A pantera rodeou o saliente, com o que o mocho remontou o vôo, espantado, e passou muito tranqüila
junto ao homem para ir colocar se ao lado do Drizzt. Ao parecer, a pantera já não considerava o ancião como um inimigo. Drizzt observou as ações do Guenhwyvar sem
dissimular a curiosidade, e pensou que se tratava de algo similar a seu entendimento com o urso no princípio do inverno. --Um bom animal --repetiu o velho. Drizzt
se apoiou contra as rochas e baixou a lança. --Sou Montolio --explicou o velho, com gesto orgulhoso, como se o nome tivesse alguma importância para o drow. Montolio
DeBrouchee. --Muito gosto em te conhecer --disse Drizzt, categórico. Se tivermos acabado com nosso encontro, já podemos continuar cada um com nosso caminho. --Podemos
--admitiu Montolio--, se for o que ambos desejamos. --Acaso volto a ser seu prisioneiro? --perguntou Drizzt com um ligeiro tom de sarcasmo. A sinceridade da risada
do Montolio ao escutar a pergunta provocou o sorriso do drow apesar de seu cinismo. --Meu prisioneiro? --repetiu o homem, incrédulo. Não, não, acreditava que já
tínhamos esclarecido esse ponto. Mas hoje mataste a uns quantos secuaces do Graul, algo que o rei orco desejará castigar. Deixa que te ofereça uma habitação em meu
castelo. Os orcos não se aproximarão do lugar. --Mostrou um sorriso severo e se inclinou sobre o Drizzt para sussurrar suas próximas palavras como se fossem algo
muito secreto. Não se aproximam de mim, sabe? --Montolio assinalou os olhos brancos. Acreditam que sou um bruxo maléfico por causa de mi... O ancião se desesperou
por encontrar a palavra adequada, mas o idioma gutural era limitado e acabou por renunciar ao esforço. Drizzt recapitulou para si mesmo o desenvolvimento da batalha,
e então ficou boquiaberto ao compreender a verdade. O ancião era cego! O mocho, que voava em círculo sobre os inimigos, tinha dirigido os disparos com seus gritos.
Drizzt olhou ao gigante e ao orco e seguiu com a boca aberta; o velho não tinha falhado.
--Virá? --perguntou Montolio. Eu gostaria de saber os... --uma vez mais teve que procurar a palavra correta-- motivos pelos quais um elfo escuro passou o inverno
em uma cova com o Bluster, o urso. Montolio sofria pela incapacidade de conversar de forma fluída com o drow, mas pelo contexto, Drizzt compreendeu quase tudo o
que havia dito o velho, e inclusive tinha captado términos desconhecidos como "inverno" e "urso". --Graul, o rei orco, tem outros mil guerreiros para enviar contra
ti --afirmou Montolio, ao perceber que o drow tinha dificuldades para tomar uma decisão. --Não irei contigo --respondeu Drizzt depois de muito pensar. Em realidade
o drow queria ir, queria aprender todo o possível deste homem extraordinário, mas o assustavam as tragédias sofridas por todos aqueles que se cruzaram em seu caminho.
O grunhido da pantera lhe avisou que ela não compartilhava a decisão. Trago má sorte a outros --acrescentou oferecendo uma explicação ao velho, à pantera e a si
mesmo. Irá melhor, Montolio DeBrouchee, se te mantém afastado de mim. --É uma ameaça? --Uma advertência --replicou Drizzt. Se me acolher, inclusive se deixar
que permaneça perto, então te verá perdido como ocorreu com os camponeses do povo. Montolio emprestou muita atenção ao escutar mencionar aos camponeses. Tinha ouvido
que tinham assassinado a uma família do Maldobar e que uma vigilante, Pomba Garra de Falcão, tinha ido investigar o caso. --Não tenho medo ao destino --afirmou Montolio,
com um sorriso forçado. sobrevivi a muitas... batalhas, Drizzt Dou'Urdem. participei de uma dúzia de guerras sangrentas e passei todo um inverno apanhado na ladeira
de uma montanha com uma perna rota. matei a um gigante com uma adaga como única arma Y... tenho-me feito amigo de todos os animais em um rádio de cinco mil passos
em qualquer direção. Não tema por mim. --Uma vez mais mostrou o sorriso severo. De todos os modos --acrescentou, lentamente--, acredito que não é por mim que tem
medo. --Drizzt se sentiu confuso e um tanto ofendido. Tem medo de ti mesmo --continuou Montolio, sem arredar-se. Sente autocompasión? Não se corresponde com
alguém de sua valia. te esqueça e vêem comigo. Se Montolio tivesse podido ver o gesto azedo do Drizzt, teria adivinhado qual ia ser a resposta. Guenhwyvar sim a
viu e golpeou com força a perna do drow. Pela reação da pantera, o ancião compreendeu a intenção do elfo escuro. --A pantera quer que me acompanhe --comentou.
Estará mais cômodo que na cova e comerá algo mais que pescado meio cru. Drizzt olhou ao Guenhwyvar, e uma vez mais a pantera lhe golpeou a perna, ao tempo que emitia
um grunhido mais forte e insistente que o anterior. O jovem não queria dar o braço a torcer, e para ajudar-se recordou a imagem da massacre cometida na granja. --Não
irei --declarou. --Então te considero meu inimigo e meu prisioneiro! --rugiu Montolio, esticando o arco. Esta vez a pantera não te ajudará, Drizzt Dou'Urdem! --O
vigilante se inclinou, mostrou seu sorriso, e sussurrou--: A pantera está de acordo comigo. Foi muito para o Drizzt. Sabia que o velho não lhe dispararia, mas o
rude encanto do Montolio não demorou para superar as defesas mentais do drow, apesar do fortes que eram. O castelo mencionado pelo Montolio resultou ser um grupo
de covas de madeira escavadas entre as raízes de um grupo de árvores gigantes. Paliçadas de paus entretecidos reforçavam as defesas e serviam para unir as covas
entre si. Um muro baixo feito de pedras empilhadas rodeava todo o conjunto. Ao aproximar-se do lugar, Drizzt advertiu várias pontes de madeira e sogas que foram
de árvore a árvore dispostas a
diversas alturas; acessava-se a eles por escalas de corda, e havia molas de suspensão montadas a espaços regulares. Em qualquer caso, o drow não se queixou de que
o castelo fora de madeira e terra. Drizzt tinha passado três décadas no Menzoberranzan vivendo em um maravilhoso palácio de pedra e rodeado de outros muitos edifícios
formosos, mas nenhum lhe era mais grato que o lar do Montolio. Os pássaros saudaram com seus gorjeios a chegada do velho vigilante. Os esquilos, e inclusive um mapache,
desceram até os ramos mais baixos para poder estar perto dele, embora mantiveram a distância ao ver que Montolio vinha acompanhado de uma pantera enorme. --Disponho
de muitas habitações --explicou-lhe Montolio. Abundantes mantas e comida. O velho detestava a pobre língua goblin. Tinha tantas coisas que lhe contar ao drow,
e muitas mais que queria aprender do elfo. Isto parecia impossível, além de extremamente aborrecido, se devia utilizar um idioma tão básico e negativo por natureza,
muito pouco apto para expressar pensamentos e idéias complexas. Os goblins tinham mais de cem palavras para matar e odiar, mas nenhuma só para sentimentos tais como
a compaixão. O término goblin correspondente a amizade podia ser traduzido também como "aliança militar temporal" ou "submissão a um goblin mais forte", e nenhuma
definição encaixava com as intenções do Montolio para o drow solitário. O vigilante acreditava que a tarefa mais urgente era ensinar ao Drizzt a língua comum. --Não
podemos falar... --não existia a palavra "corretamente" em goblin, assim Montolio improvisou-- bem neste idioma --explicou ao Drizzt--, mas nos servirá para que
possa te ensinar a linguagem dos humanos, se quer aprendê-lo. Drizzt vacilou. Quando tinha abandonado a vizinhança do povo agrícola, tinha decidido viver como um
ermitão, e até o momento lhe tinha ido bastante bem, melhor do que esperava. Mesmo assim, a oferta era tentadora, e a um nível prático o conhecimento da língua comum
podia lhe evitar muitos problemas. O sorriso do Montolio se estendeu quase de brinca a orelha quando o drow aceitou. Sereia, o mocho, não se mostrou tão agradado.
Com o drow --ou melhor dizendo, com a pantera do drow-- rondando pelo lugar, o mocho não poderia passar tanto tempo gostando da comodidade dos ramos baixos. --Primo,
Montolio DeBrouchee tem ao drow agasalhado em sua casa! --comunicou- um elfo ao Kellindil. Todo o grupo procurava o rastro do Drizzt do final do inverno. Quando
o drow deixou o passado do Orco Morto, os elfos, e em particular Kellindil, tinham pensado que teriam problemas, preocupados com a possibilidade de que o drow se
uniu ao Graul e sua tribo de orcos. Kellindil se levantou de um salto, quase sem poder aceitar a surpreendente noticia. Conhecia o Montolio, o legendário embora
um tanto excêntrico vigilante, e sabia que o homem, com todos seus contatos animais, podia julgar aos intrusos bastante bem. --Quando? Como? --perguntou Kellindil,
sem saber por onde começar. Se o drow tinha conseguido confundi-lo durante os meses anteriores, agora o elfo da superfície estava completamente sobressaltado. --Faz
uma semana --respondeu o outro elfo. Não sei como foi, mas agora o drow se passeia pelo horta do Montolio, à vista de todos e acompanhado pela pantera. --Montolio
está...? O outro elfo interrompeu ao Kellindil, ao ver qual era sua preocupação. --Montolio está bem e controla a situação --assegurou ao Kellindil. Ao parecer
tem ao drow como convidado, e agora lhe ensina a língua comum.
-- Surpreendente -- disse Kellindil, não sabendo mais o que dizer. -- Montamos um serviço de monitoramento -- sugeriu o outro elfo. Se você está preocupado com
a segurança
do Montolio ... -- Não -- respondeu Kellindil. Não, o drow demonstrou mais uma vez que não é um inimigo.
Suspeito que tenha boas intenções desde Maldobar. Agora estou calmo. Vamos continuar com
nossos assuntos e deixar o drow e o vigilante com os seus. O outro elfo acenou com a cabeça, mas uma pequena criatura,
que olhou para fora da tenda de Kellindil, discordou. Tephanis veio toda noite ao acampamento dos elfos, para roubar alimentos e as necessidades para sua conveniência.
O trasgo tinha ouvido o elfo escuro falar alguns dias atrás, quando os elfos começaram a procurar por Drizzt, e desde então tinha ido para grandes comprimentos
para
espionar todas as conversas, curioso como ninguém sabe o paradeiro do homem que havia matado Kempfana
e Ulgulu. Tephanis balançou a cabeça violentamente. -- Maldito-seja-a-dia-em-que
ele voltou! --Murmurou. Suas palavras soavam como o zumbido de uma abelha. Então ele correu tão rápido que os minúsculos pés mal
tocavam o chão. O trasgo tinha encontrado
um outro amigo durante os meses desde o desaparecimento
do Ulgulu, um aliado poderoso ao que não queria perder. Ao cabo de uns minutos encontrou ao Caroak, o grande lobo prateado que vivia na cúpula da montanha que
chamava de lar. - O-drow-está-com-o vigilante - Tephanis disse, o bicho parecia entender - Vá-com-cuidado-com-isso!
Ele-matou-a-meu-velho-mestres! Estão-Mortos! Caroak olhou
para a vastidão da montanha que abrigava o Jardim do Montolio. O lobo de prata sabia muito bem lá, e não abordá-lo para o mundo. Montolio DeBrouchee era amigo de
todos os tipos de animais, mas os lobos eram mais bestas monstros prata e protetores hostis. Tephanis também olhou na mesma direção, preocupados com a possibilidade
de tropeçar no drow traiçoeiro. O mero pensamento deu-lhe uma dor de cabeça (e reviveu a dor do golpe causado pelo arado, cujo sinal nunca tinha desaparecido completamente).
Durante as semanas seguintes, como o inverno deu lugar à primavera, Montolio Drizzt eo progresso na sua amizade. A linguagem comum da região não era tão diferente
do idioma goblin. Foi mais uma questão de acentuar que nenhuma mudança de palavras inteiras, e Drizzt os ensinamentos sem muita dificuldade, mesmo que eu pudesse
ler e escrever. Montolio era um bom professor, e apenas a terceira semana conversando com o drow em ralhar linguagem comum e impaciente a cada vez Drizzt utilizado
o goblin para completar uma frase. Drizzt foi um momento de lazer, um tempo de vida fácil e prazeres compartilhados. Montolio tinha uma grande coleção de livros
e drow passava horas absorto nas aventuras da imaginação, as histórias de dragões e contos de batalhas épicas. Drizzt dúvidas foram dissipadas, e mais confiante
a cada dia Montolio. As cavernas nas árvores eram um verdadeiro castelo, o velho o melhor anfitrião do mundo. O casal aprendeu muitas coisas durante as primeiras
semanas Montolio, aulas práticas, que serviria para o resto de sua vida. Montolio confirmou as suspeitas dos drow sobre a mudança das estações, e ensinou-lhe a
prever
o tempo, observando os animais do céu e do vento. Nem neste, como eu havia imaginado Montolio, Drizzt tinha dificuldades de aprendizagem. O velho nunca teria acreditado
que ele não tinha sido testemunha pessoal, mas
drow estranho tinha os ingredientes de um elfo da superfície, talvez até mesmo o coração de um cuidador. - Como poderia acalmar o urso? - Montolio perguntou um
dia.
Esta questão tinha intrigado quando Drizzt e Bluster tinha começado a partilha da caverna. Drizzt não sabia como responder, porque ele não entende o que aconteceu
naquele encontro. - Da mesma maneira você acalmar Guenhwyvar o dia que nos conhecemos - disse depois de pensar muito. O sorriso de Drizzt Montolio informado de
que
o velho entendê-lo claramente. - O coração de um vigilante - Montolio murmurou enquanto se afastava. Graças ao seu excelente senso de audição, Drizzt ouviu o comentário,
mas foi incapaz de interpretar o significado. As lições de Drizzt se tornou mais intensa o passar dos dias. Montolio agora sobre a vida em torno deles, os animais
e plantas. Ele ensinou Drizzt a colheita e entender as emoções dos animais apenas a observar os movimentos. O primeiro teste real veio logo depois quando Drizzt,
movendo-se os ramos de um arbusto de bagas, encontrou a entrada para uma pequena caverna e se viu diante de um texugo irritado. Sirena, a partir de cima, emitiu
uma série de gritos de alerta Montolio, eo primeiro impulso da guarda estava indo para ajudar o seu amigo drow. Texugos foram provavelmente as criaturas mais maligno
na região - ainda mais do que os orcs - Bluster mais irritado do que o urso e sempre disposta a tomar a ofensiva contra qualquer adversário, com indiferença ao
seu
tamanho. Mas Montolio decidiu não se mover e controlar a evolução da situação através de descrições da coruja. Em uma reação instintiva, Drizzt empunhou a adaga.
O texugo para trás e mostrou seus dentes afiados e garras terríveis, enquanto a gritar mil e uma acusações. Os drow deu um passo atrás e voltou a faca da bainha.
De repente, vi a partida do ponto de vista do texugo, e percebeu que o animal se sentiu ameaçado. De alguma forma, também percebeu que o texugo tinha escolhido
essa
caverna como o melhor lugar para criar uma ninhada que estava prestes a dar à luz. O texugo parecia confuso com os movimentos lentos
do rival. A futura mãe não queria brigar e, assim que Drizzt deixou que os ramos voltassem a ocultar a cova, o texugo ficou a quatro patas, cheirou o ar para
poder recordar o aroma do elfo escuro, e retornou ao buraco. Quando Drizzt deu meia volta se encontrou frente a Montolio, que começou a aplaudi-lo com um sorriso.
--Até um vigilante teria tido problemas para acalmar a um texugo furioso -- disse o ancião. --O texugo está a ponto de dar a luz --respondeu Drizzt. Tinha menos
interesse que eu em lutar. --Como o soubeste? --perguntou Montolio, embora não duvidava das percepções do drow. Drizzt ia responder, quando advertiu que
não podia. Olhou o arbusto e depois ao Montolio com um gesto de resignação. O ancião soltou uma gargalhada e voltou para seu trabalho. Ele, que tinha seguido os
ensinos
da deusa Mielikki durante tantos anos, sabia melhor que Drizzt o que ocorria. --O texugo poderia te haver feito pedaços, sabia? --comentou o vigilante com
severidade quando Drizzt ficou a seu lado. --Estava a ponto de ter os cachorrinhos --insistiu Drizzt--, e além não era tão grande.

--Não tão grande? --exclamou Montolio com uma gargalhada de brincadeira. Me acredite quando te digo que é melhor brigar contra Bluster que com uma mãe texugo.
--Drizzt não
soube fazer outra coisa que encolher os ombros, porque não tinha argumentos para rebater ao velho. De verdade crie que essa ridícula adaga que leva poderia te
haver
servido de defesa? --inquiriu o vigilante, interessado em levar a discussão a outro terreno. Drizzt olhou a adaga, a mesma que lhe tinha arrebatado ao trasgo. Uma
vez mais não tinha a resposta adequada: a adaga era na verdade ridícula. Não pôde evitar rir de si mesmo. --É tudo o que tenho --repôs. --Já nos ocuparemos de
lhe pôr remedeio --prometeu o vigilante, sem acrescentar nada mais. Montolio, apesar de sua aparente calma e confiança, conhecia muito bem os perigos da selvagem
região
montanhosa, e agora confiava no drow sem nenhuma reserva. Montolio despertou ao Drizzt pouco depois do pôr-do-sol e o guiou até uma árvore enorme no extremo
norte do horta. Na base havia um grande buraco, quase uma cova, perfeitamente dissimulado pelos matagais e por uma manta grafite com as mesmas cores de
a casca. Quando Montolio apartou a manta, o jovem compreendeu o motivo de tão secreto. --Uma armería? --perguntou o drow, assombrado. --Você gosta das cimitarras
--respondeu Montolio, recordando a arma que Drizzt tinha quebrado no combate contra o gigante das pedras. Tenho uma muito boa. arrastou-se ao interior do
buraco, procurou durante uns minutos, e saiu provido de uma magnífica lâmina curva. Drizzt entrou para contemplar o excelente sortido do arsenal enquanto saía o
vigilante. Montolio possuía uma ampla variedade de armas, desde adagas de cerimônia até grandes tochas de combate e uma multidão de molas de suspensão, livianas
e pesadas,
todas cuidadas com grande esmero. Na parede do fundo, colocadas verticalmente, havia diversas lanças e fêmeas de javali, incluída uma lança de três metros com a
cabeça
muito afiada e dois ganchos de ferro que se sobressaíam perto da ponta. --Prefere um escudo, ou possivelmente um estilete, para a outra mão? --perguntou Montolio
quando reapareceu
o drow murmurando palavras de admiração. Pode escolher o que quiser exceto o escudo, a lança e o casco que levam o selo do mocho com garras. São meus!
Drizzt vacilou um instante, enquanto tentava imaginar ao vigilante cego equipado para a luta corpo a corpo. --Uma espada --respondeu--, ou melhor outra cimitarra
se a tiver. --Duas lâminas largas para o combate --comentou curioso. O mais provável é que termine te estorvando a ti mesmo. --É um estilo de combate freqüente
entre os drows. Montolio encolheu os ombros sem pôr em dúvida a afirmação e entrou outra vez na armería. --Temo-me que esta seja mais útil como adorno --disse
quando voltou com uma arma quase ornamental. Pode usá-la se quiser, ou agarra uma espada. Tenho umas quantas. Drizzt empunhou a cimitarra e a fez girar para comprovar
se estava bem equilibrada. Encontrou que era muito liviana e possivelmente frágil, mas mesmo assim decidiu conservá-la. A lâmina curva seria um complemento mais
adequado
para a outra cimitarra que uma espada reta, chata de mover. --Cuidarei-as tão bem como você --prometeu Drizzt, consciente da importância do presente que o
fazia o humano. E as utilizarei só quando for preciso -- acrescentou, porque sabia que isto era o que queria ouvir Montolio.

--Então roga para que nunca as necessite, Drizzt Dou'Urdem --repôs o vigilante. conheci a paz e conheci a guerra, e te juro que prefiro a primeira!
Agora vêem, meu amigo. Há muitas outras coisas que quero te ensinar. Depois de olhar as cimitarras uma vez mais, Drizzt as meteu nas bainhas enganchadas a seu cinturão
e seguiu ao Montolio. Com a proximidade do verão e com uma companhia tão agradável, professor e aluno se sentiam muito animados, e se prometiam uma época de valiosas
lições e feitos maravilhosos. Não se haveriam sentido tão felizes de ter sabido que certo rei orco, furioso pela perda de dez soldados, dois worgs e um gigante
aliado, tinha postos na região seus amarelos olhos injetados em sangue, disposto a encontrar ao drow. O grande orco começava a perguntar-se se o drow havia
retornado a Antípoda Escura ou se se tinha unido com algum outro grupo, possivelmente com uma das pequenas bandas de elfos que havia na zona, ou com aquele temível
vigilante cego, Montolio. Se o drow ainda permanecia na região, Graul daria com ele. O cacique orco não queria correr riscos, e a só presença do elfo escuro
era um autêntico perigo.

14

A prova do Montolio

--Bom, já esperei o bastante! --gritou Montolio com severidade, ao tempo que sacudia ao drow. Faltava pouco para o ocaso. --Esperado? --repetiu Drizzt, com
os olhos sonolentos. --É um guerreiro ou um bruxo? --acrescentou Montolio. Ou as duas coisas? É um desses tipos que sabem fazer tudo? Tem múltiplos talentos
como os elfos da superfície? --Não sou nenhum bruxo --respondeu Drizzt rendo-se depois de um momento de confusão. --Oculta-me seus segredos, verdade? --reprovou-lhe
Montolio, embora o sorriso traía a ferocidade da expressão. ergueu-se em toda sua estatura diante do buraco que servia de dormitório ao elfo e cruzou os
braços sobre o peito. Isto não vale. Acolhi-te e, se for um bruxo, devo sabê-lo! --por que diz estas coisas? --perguntou-lhe o drow, perplexo. De onde
tiraste...? --Há-me isso dito Sereia! --exclamou Montolio. Drizzt não entendia nada. Na briga, quando nos conhecemos --explicou o vigilante--, obscureceu a
zona onde estava você e alguns orcos. Não o negue, bruxo. Há-me isso dito Sereia! --Aquilo não foi o feitiço de um bruxo! --protestou Drizzt em sua defesa.
Não sou um bruxo. --Não foi um feitiço? --repetiu Montolio. Então, o que? Um artefato? Insígnia me o quero vê-lo. --Não é um artefato --replicou Drizzt--, a não
ser
uma habilidade. Todos os drows, inclusive os mais inferiores, podem criar globos de escuridão. Não é nada difícil. Montolio pensou na revelação durante uns momentos.
Não tinha tido contato com os elfos escuros antes da aparição do Drizzt. --O que outras "habilidades" poses? --O fogo fátuo. É uma linha... --Conheço o
feitiço --interrompeu-o Montolio. É algo que usam habitualmente os monges dos bosques. Isto também o podem fazer todos os drows? --Não sei --respondeu
Drizzt com toda sinceridade. Além disso, posso... ou podia... levitar. Só os nobres drows são capazes de fazê-lo. Acredito que agora perdi o poder, ou estou a
ponto
de perdê-lo. Desde que estou na superfície tive algumas falhas. Também meu piwafwi, as botas e as cimitarras perderam a magia que possuíam. --Tenta-o
--disse Montolio. Drizzt se concentrou durante um bom momento. Sentiu que perdia peso, e se separou do chão. Entretanto, quando só tinha subido uns dez centímetros,
recuperou o peso e voltou a tocar terra.

--Impressionante --murmurou o vigilante. Drizzt soltou uma gargalhada e sacudiu a juba branca ao escutar o comentário. --Agora posso ir a dormir? --perguntou,
com o olhar posto na cama. Montolio tinha outras intenções. Tinha vindo para averiguar mais coisas de seu companheiro. Queria saber o limite das capacidades
do Drizzt, incluídas as mágicas. Tinha um plano e devia realizá-lo antes da queda do sol. --Espera --repôs. Poderá descansar mais tarde, quando for de noite.
Agora necessito a ti e a suas "habilidades". Pode invocar um globo de escuridão no ato, ou necessita tempo para realizar o feitiço? --Só são uns segundos
--respondeu Drizzt. --Então vá procurar a armadura e as armas --indicou Montolio--, e me acompanhe. Não demore. Não quero perder a vantagem da luz do dia. Drizzt
encolheu os ombros, foi vestir se, e depois acompanhou ao vigilante até o extremo norte do horta, que era um lugar pouco freqüentado. Montolio se ajoelhou
e pediu ao Drizzt que o imitasse ao tempo que assinalava um pequeno buraco na ladeira de um montículo coberto de erva. --Naquele buraco vive um javali --explicou
o velho. Não quero lhe fazer danifico, mas me preocupa ter que me aproximar muito. Os javalis são umas bestas bastante imprevisíveis. --produziu-se um comprido
silencio,
e Drizzt se perguntou se Montolio só tinha a intenção de esperar a que o animal saísse da cova. Então, o vigilante acrescentou-- Vamos, adiante. --O jovem
olhou-o incrédulo ao pensar que o homem pretendia enfrentá-lo com uma besta selvagem. Adiante --repetiu Montolio. Utiliza seu globo de escuridão. Frente a
a entrada do buraco, por favor. Drizzt compreendeu o plano, e seu suspiro de alívio quase provocou a risada do Montolio. Um segundo depois, o terreno diante do

montículo desapareceu na escuridão. O vigilante indicou ao Drizzt que mantivera a posição e avançou. O drow permaneceu atento a qualquer imprevisto. De
logo se ouviram vários chiados agudos, e a seguir o grito angustiado do Montolio. Drizzt deu um salto, entrou no globo de escuridão à carreira e a
ponto esteve de levar-se por diante o corpo tendido do amigo. O vigilante gemeu e se derrubou no chão sem responder a nenhuma das perguntas que o drow
formulava-lhe em voz baixa. Ao ver que não havia sinais do javali, Drizzt se agachou para averiguar o que tinha passado. O velho lhe deu um susto de morte quando
se
acurrucó com as mãos obstinadas ao peito. --Montolio --sussurrou Drizzt, convencido de que o homem se encontrava ferido gravemente. Aproximou o rosto ao do vigilante
para
escutar a resposta, e se apartou com rapidez quando o escudo do velho o golpeou em um flanco da cabeça. Sou eu, Drizzt! --gritou, esfregando-a zona dolorida.
Ouviu como Montolio ficava de pé, e logo o ruído da espada ao sair da bainha. --Já sei! --afirmou o velho entre risadas. --O que há do javali? --Javali?
Não há nenhum javali, estúpido drow. Não há tal. Aqui nós somos os únicos rivais. chegou o momento de nos divertir um pouco! Agora Drizzt compreendeu a
armadilha. Montolio o tinha enganado para que lançasse o globo de escuridão com o fim de privar o da vantagem da visão. O vigilante o desafiava em igualdade
de condições. --Com o plano da lâmina! --replicou Drizzt, muito disposto a seguir o jogo. Quanto tinha desfrutado com este tipo de duelos no Menzoberranzan
com o Zaknafein como adversário! --Por sua vida! --declarou Montolio com uma gargalhada. O vigilante lançou o primeiro golpe, e a cimitarra do Drizzt o desviou sem

problemas. O drow respondeu com dois rápidos golpes curtos a meia altura, em um ataque que teria vencido à maioria dos rivais, mas que nesta ocasião golpearam
no escudo do Montolio. Seguro da posição do Drizzt, o vigilante adiantou o escudo violentamente. Drizzt se balançou sobre os talões antes de poder apartar-se.
A espada do Montolio o atacou pelo flanco, e Drizzt a parou. O velho repetiu a manobra com o escudo; Drizzt desviou a trajetória e agüentou a pé firme. Então
o ardiloso vigilante levantou de repente o escudo em uma finta que não só arrancou uma das cimitarras da mão do Drizzt mas também além o fez trastabillar,
ao tempo que lançava uma estocada de través contra o ventre do rival. Drizzt pressentiu o ataque. Deu um salto atrás e afundou o ventre. Assim e tudo notou o
passo da lâmina a uns milímetros do corpo. O drow passou à ofensiva com uma série de complicadas manobras de ataque, convencido de que seriam suficientes para
ganhar o encontro. Mas Montolio prévio cada uma delas; o ruído metálico do escudo ao parar os golpes era o único fruto dos esforços do Drizzt. Então
foi o momento do contra-ataque do vigilante, e o jovem se viu em apuros. Não era inexperiente na luta às cegas, mas Montolio era cego desde fazia anos e podia
mover-se tão bem e com tanta facilidade como a maioria dos homens. Drizzt não demorou para compreender que não podia ganhar no globo. Tinha a intenção de tirar
ao vigilante da zona de escuridão, quando a situação trocou bruscamente ao esfumar o feitiço. Convencido de que o duelo tinha chegado a seu fim, Drizzt retrocedeu
uns quantos passos, medindo o chão com os pés até conseguir subir a uma grossa raiz. Montolio recebeu a mudança de atitude em seu oponente com uma expressão
de curiosidade; depois reatou o ataque, avançando agachado. O drow se considerou muito ardiloso enquanto iniciava um salto que lhe permitiria cair detrás do Montolio
e atacá-lo pelas costas enquanto o cego se voltava desconcertado. As coisas não funcionaram como esperava. O escudo do Montolio se chocou contra o rosto do Drizzt
em pleno vôo, e o jovem caiu a terra com um gemido. Quando conseguiu livrar do atordoamento, descobriu que tinha ao Montolio sentado sobre suas costas, com
a espada atravessada sobre seus ombros. --Como...? --Drizzt não pôde acabar a pergunta porque Montolio o interrompeu. --Subestimaste-me, drow--disse o velho,
com um tom desumano. Tomaste-me por um cego indefeso. Não o faça nunca mais! Por uma fração de segundo, Drizzt se perguntou se Montolio pensava matá-lo,
à vista de quão furioso estava. Sabia que sua soberba tinha ferido ao homem, e então compreendeu que Montolio DeBrouchee, sempre tão capaz e seguro de si
mesmo, também suportava sua própria carga. Pela primeira vez desde que tinha conhecido ao vigilante, considerou o doloroso que devia ter sido para este homem perder
a vista. Que mais, perguntou-se, tinha perdido Montolio? --Era óbvio o que faria --acrescentou Montolio depois de uma breve pausa, com voz mais suave--, ao atacar
eu
agachado. --Óbvio só no caso de saber que o globo de escuridão tinha desaparecido --respondeu Drizzt, que se perguntou até que ponto era real a incapacidade
do velho. Jamais teria tentado a manobra do salto na escuridão, sem poder me valer dos olhos. Como pudeste saber apesar de ser cego que o feitiço
tinha desaparecido? --Você mesmo me disse isso! --exclamou Montolio, sem mover-se das costas do Drizzt. Na atitude! A variação nos passos, muito ágeis
para ser jogo de dados na escuridão, e com seu suspiro, drow! Aquele suspiro te traiu, porque já sabia que não

podia me vencer sem a ajuda da vista. --Montolio se apartou, mas o drow permaneceu de barriga para baixo, digiriendo as palavras do velho. Compreendeu o pouco que
sabia
dele, o muito que tinha dado por sentado no que se referia a seu companheiro. Vamos --acrescentou o vigilante. A primeira lição de esta noite acabou. Há
sido muito proveitosa, mas ainda ficam outras coisas pendentes. --Disse que podia ir a dormir --recordou-lhe Drizzt. --Pensava que foi mais competente --replicou
Montolio fulminante, com um sorriso presunçoso. Da mesma maneira que Drizzt tirava proveito das muitas lições que Montolio lhe deu aquela noite e os dias
sucessivos, o vigilante recolhia informação referente ao drow. Seu trabalho se concentrava sobre tudo no presente; Montolio lhe ensinava coisas do mundo de seu redor
e como sobreviver nele. Mas sempre, em algum momento, um ou outro --a maioria das vezes Drizzt--deslizava um comentário sobre seu passado. converteu-se quase
em um jogo. A gente mencionava algum feito longínquo quase com a única intenção de ver a expressão de assombro do outro. Montolio tinha algumas anedotas muito boas
de
os anos passados nos caminhos, relatos de valentes batalha contra os goblins e as brincadeiras que os vigilantes, tão sérios na aparência, estavam acostumados a
gastar-se entre
eles. Drizzt se mostrava um pouco reservado, embora suas histórias do Menzoberranzan, da sinistra Academia e das guerras selvagens entre famílias, superavam
algo que Montolio tivesse imaginado. em que pese a todas as confidências, o vigilante sabia que Drizzt lhe ocultava algo, que se sentia afligido por uma terrível
carga, mas não insistiu. Esperou pacientemente, satisfeito de que ele e Drizzt compartilhassem os mesmos princípios e--à medida que Drizzt melhorava suas habilidades
de
vigilante-- a mesma visão do mundo. Uma noite de lua enche, Drizzt e Montolio descansavam nas cadeiras de madeira que o vigilante tinha construído nos ramos
mais altas de um carvalho enorme. O brilho da lua, que aparecia e se escondia entre o rápido passo das nuvens, encantava ao drow. Certamente Montolio não podia
ver a lua, mas o velho vigilante, com o Guenhwyvar acomodada sobre seu regaço como um gatinho, desfrutava com o frescor noturno. Passou uma mão com ar ausente
pela grossa pele do pescoço da pantera e escutou os diversos sons que trazia a brisa, o bate-papo de um milhar de criaturas que o drow não tinha escutado
nunca, apesar de que tinha o ouvido mais fino que Montolio. de vez em quando, o ancião soltava uma risita, uma vez ao escutar como um rato lhe chiava zangada
a um mocho --provavelmente Sereia-- por lhe interromper a comida e obrigá-la a procurar refúgio em um buraco. Ao olhar ao vigilante e à pantera, tão tranqüilos e
confiados o um no outro, Drizzt sentiu pontadas de amizade e de culpa. --Possivelmente não teria que ter vindo nunca --sussurrou quase para si mesmo, com o olhar
posta na lua. --O que há dito? --perguntou Montolio em voz baixa. Você não gosta de como cozinho? O sorriso do vigilante desarmou ao Drizzt enquanto se voltava
para
olhá-lo com ar sombrio. --Referia-me à superfície --explicou Drizzt, que conseguiu rir apesar da melancolia. Às vezes penso que minha decisão foi um ato
egoísta. --Sobreviver quase sempre o é --replicou Montolio. Em algumas ocasione pensei o mesmo. Uma vez tive que afundar a espada no coração de um homem.
A dureza deste mundo produz grandes remorsos, mas felizmente é um lamento passageiro e sem dúvida não é o mais apropriado para ir a uma batalha. --Quanto
desejo que desapareça para sempre --assinalou Drizzt, como se falasse com a lua e não com o velho.

Mas o comentário impregnou muito fundo no Montolio. À medida que aumentava a intimidade entre eles, mais compartilhava o vigilante a carga desconhecida do Drizzt.
O drow
era jovem segundo os patrões de sua raça mas era mais sábio e perito que a maioria dos soldados profissionais. Certamente um elfo escuro tropeçaria com muitas
barreiras no mundo da superfície, carregado de prejuízos. Entretanto, Montolio acreditava que Drizzt era capaz de superar estes prejuízos e desfrutar de uma larga
e próspera vida, jogo de dados seus consideráveis talentos. "Qual será a culpa que tanto atormenta a este elfo?", perguntou-se Montolio. Drizzt sofria mais do que
sorria,
e se castigava a si mesmo. --O teu é um lamento sincero? --perguntou Montolio. Sabe?, a maioria não o são. A maioria das cargas que nos imponhamos-se
fundam em interpretações errôneas. Nós... ao menos os que somos de caráter sincero... sempre julgamos a nós mesmos com normas muito mais exigentes
que aquelas que aplicamos a outros. Suponho que é uma bênção ou, segundo como se olhe, uma maldição. --Voltou os cegos olhos para o Drizzt. Toma-o como uma
bênção, meu amigo, uma chamada interior que te empurra para metas inalcançáveis. --Uma bênção lhe frustrem --opinou Drizzt. --Só quando não te pára a pensar
as vantagens que te deu essa busca -- apressou-se a responder Montolio, como se tivesse previsto as palavras do drow. Aqueles que aspiram a pouco não conseguem
nada. Nisto não há nenhuma dúvida. É melhor, penso, tentar agarrar as estrelas que não fazê-lo porque sabe que não pode as alcançar. --Mostrou o habitual sorriso
severo. Ao menos quem sobe desfrutará de uma magnífica vista, e possivelmente inclusive se faça com uma maçã pendurada do ramo em recompensa por seus esforços.
--E
possivelmente também com uma flecha rasante disparada por algum atacante desconhecido --comentou Drizzt em tom azedo. Montolio inclinou a cabeça, impotente ante
o perpétuo
pessimismo do Drizzt. Doía-lhe profundamente ver sofrer tanto ao nobre drow. --É provável --prosseguiu Montolio, com uma voz um pouco mais dura do que pensava--,
mas a perda da vida é só importante para quem tem a oportunidade de vivê-la em plenitude. Solta sua flecha e atravessa ao que se esconde no chão!
Que sua morte não seja uma tragédia! Drizzt não podia negar a lógica, nem o consolo que lhe oferecia o ancião vigilante. Durante as últimas semanas, a filosofia
caseira do Montolio e sua forma de entender o mundo --pragmática e ao mesmo tempo imbuída de uma exuberância juvenil-- haviam-lhe devolvido em parte a tranqüilidade
que tinha desfrutado naqueles longínquos tempos, no ginásio do Zaknafein, embora Drizzt tampouco podia negar o pouco que durava o consolo. As palavras podiam
aliviar, mas não conseguiam apagar as vozes distantes dos mortos: Zaknafein, Clak e a família camponesa. Um só eco da palavra "drizzit" podia apagar horas
de conselhos bem-intencionados do Montolio. --Já está bem de tanta monserga! --exclamou Montolio, ao parecer irritado. Considero-te meu amigo, Drizzt Dou'Urdem,
e espero que você me tenha como tal. Do que serve minha amizade se não poder fazer nada para aliviar a carga que leva sobre seus ombros? Sou seu amigo ou não o sou.
A decisão é tua; mas se não o sou, então não vejo nenhum sentido em compartilhar noites tão maravilhosas como esta a seu lado. Fala, Drizzt, ou vete de minha casa!
Drizzt logo que podia acreditar que Montolio, pelo general tão paciente e tranqüilo, pudesse lhe expor semelhante dilema. A primeira reação do drow foi de rechaço,
de criar uma muralha de ira ante a intromissão do velho e aferrar-se ao que considerava pessoal. Entretanto, à medida que Drizzt superava a surpresa inicial
e se tomava o tempo necessário para meditar as palavras do Montolio, chegou a compreender a verdade básica que desculpava este comportamento: Montolio e ele eram
amigos,
obrigado sobre

tudo aos esforços do vigilante. Montolio queria compartilhar o passado do Drizzt, para poder compreender melhor e ajudar ao novo amigo. --Sabe um pouco do Menzoberranzan,
a cidade onde nasci e em que vive minha gente? --perguntou Drizzt em voz baixa. Inclusive lhe doía pronunciar o nome. Conhece como vive minha raça, ou os decretos
da rainha arranha? --Conta-me o tudo, rogo-lhe isso --respondeu Montolio. Drizzt assentiu. --Montolio advertiu o movimento embora não podia vê-lo. Apoiou-se contra
o tronco. Dirigiu o olhar à lua embora em realidade olhava mais à frente através de suas aventuras, ao caminho do Menzoberranzan, à Academia e à casa Dou'Urdem.
Manteve os pensamentos fixos por um momento, refletindo sobre as complexidades da vida de família dos drows e a simplicidade de sua vida na época da aprendizagem
com o Zaknafein. Montolio esperou, paciente. Sabia que Drizzt procurava a maneira de começar. Por isso tinha sabido através dos comentários casuais do elfo,
a vida do Drizzt tinha estado cheia de aventuras e episódios turbulentos, e Montolio compreendia que não seria fácil ao Drizzt, com seu conhecimento ainda limitado
da língua comum, fazer um relato muito preciso. Além disso, à vista da culpa e a pena que o afetavam, suspeitava que Drizzt tinha seus receios. --Nasci
em um dia muito importante na história de minha família --começou Drizzt. Aquele dia, a casa Dou'Urdem eliminou à casa DeVir. --Eliminou? --Massacrou --explicou
Drizzt.
Os olhos cegos do Montolio não revelaram nada, mas a expressão do vigilante era de repulsão, tal como tinha esperado Drizzt. Queria que o companheiro compreendesse
os horrores da sociedade drow, assim acrescentou intencionadamente--: E, aquele mesmo dia, meu irmão Dinin afundou a espada no coração de nosso outro irmão,
Nalfein. --Montolio se estremeceu ao tempo que movia a cabeça. deu-se conta de que este era só o começo das tribulações do elfo. É a maneira de
os drows --prosseguiu Drizzt com voz calma, como se queria adotar o mesmo tom de despreocupação que mostravam outros elfos escuros ante o assassinato.
No Menzoberranzan existe uma estrutura hierárquica muito rígida. Para escalá-la, para ter uma fila superiora, trate-se de um indivíduo ou de uma família, o único
médio é eliminar aos que estão por cima. O vigilante percebeu o leve tremor na voz do Drizzt, e compreendeu que seu amigo nunca tinha aceito as canalhas
práticas de sua sociedade. Drizzt continuou com o relato, sem regular detalhes dos quarenta anos que tinha passado na Antípoda Escura. Falou-lhe dos dias
em que viveu submetido à estrita tutela de sua irmã Vierna, dedicado a limpar dia e noite a capela familiar, e a aprender a utilizar os poderes inatos
e sua posição na sociedade drow. Drizzt empregou muito tempo em lhe explicar a peculiar estrutura social, as hierarquias apoiadas na fila, e a hipocrisia de
a "lei" drow, uma brincadeira cruel que ocultava a anarquia da cidade. O vigilante se encolheu ante a narração das guerras entre famílias. tratava-se de conflitos
brutais que não permitiam a sobrevivência de nenhum nobre, nem sequer dos meninos. Montolio sofreu ainda mais quando Drizzt lhe falou da "justiça" drow, de
a destruição de uma casa que tinha fracassado no intento de assassinar a outra família. O relato foi menos terrível quando Drizzt falou do Zaknafein, seu pai
e mais querido amigo. Certamente, as felizes lembranças de seu pai significaram uma breve pausa, um prelúdio aos horrores da morte do Zaknafein. --Minha mãe
matou a meu pai --explicou Drizzt, com emoção contida embora sem poder dissimular da toda a profunda dor. Sacrificou-o ao Lloth por meus crímenes. Depois reanimou
o corpo e o enviou em minha perseguição para que me matasse, como

castigo por ter traído a minha família e à rainha arranha. Custou-lhe trabalho reatar o relato, mas quando o fez, falou com sinceridade e revelou sem temor
as debilidades e as falhas cometidas durante os anos passados a sós nas profundidades da Antípoda Escura. --Tinha medo de me haver perdido mesmo e
a meus princípios à mãos de um monstro instintivo e selvagem --manifestou Drizzt, em um tom vizinho no desespero. Mas então os sentimentos que haviam
animado sua existência voltaram a cobrar força, e um sorriso brilhou em seu rosto quando recapitulou a época vivida junto ao Belwar, o muito honorável capataz svirfnebli,
e do Clak, o pek que tinha sido transformado em um oseogarfio. Como era de esperar, o sorriso desapareceu no momento em que o relato chegou à morte do Clak
à mãos do ser infernal invocado pela matrona Malícia. Outro amigo morto por sua relação com o Drizzt. O alvorada despontou pelas montanhas do este quando Drizzt
começou a relatar a saída para a superfície. Escolheu as palavras com mais cuidado, pouco disposto a divulgar a tragédia da família camponesa por temor a que
Montolio lhe jogasse a culpa e destroçasse o vínculo de amizade que tinham formado. Racionalmente, Drizzt se recordou a si mesmo que ele não tinha matado aos granjeiros,
que inclusive tinha vingado os assassinatos, mas a culpa quase nunca é uma emoção racional, e Drizzt simplesmente não podia encontrar as palavras, ao menos por
agora. Montolio, velho, sábio e com exploradores animais por toda a região, compreendeu que Drizzt lhe ocultava algo. Quando se tinham conhecido, o drow tinha mencionado
a uma família humana, e o vigilante já estava à corrente do assassinato de uma família no povo do Maldobar. Montolio não acreditava que Drizzt fora o responsável,
embora suspeitava que o drow tinha alguma vinculação com o sucesso. Mesmo assim, preferiu não insistir; seu amigo tinha sido muito sincero e havia dito mais coisas
do
que tinha esperado; confiava em que Drizzt acabaria por encher as lacunas ao seu devido tempo. --É uma boa história --opinou Montolio, depois de uma larga pausa.
viveste mais costure em algo mais de quatro décadas que a maioria dos elfos em trezentos anos. Mas as feridas são poucas e acabarão por curar-se. Drizzt, muito
menos seguro, dirigiu-lhe um olhar triste, e Montolio só pôde lhe oferecer o consolo de uma palmada no ombro enquanto deixava a cadeira e se ia à cama. Drizzt
ainda dormia quando Montolio chamou sereia e lhe atou um cilindro de papel à pata. O mocho não se mostrou muito contente ao escutar as instruções do vigilante; o
viagem lhe levaria uma semana, um tempo muito valioso e agradável porque era o melhor momento da temporada para caçar ratos e aparearse. Entretanto, a pesar
dos protestos, não pensava desobedecer. Sereia se alisou as plumas, aproveitou a primeira rajada de vento e remontou o vôo. A viagem o conduziria por cima
das montanhas nevadas até o Maldobar e depois até o Sundabar, se era necessário. Uma vigilante de fama, irmã da dama de Lua Chapeada, ainda se encontrava
na região; Montolio sabia graças aos informe dos animais, e a mensagem ia dirigido a ela. --Es-que-esto-nunca-se-acabará? --gemeu o trasgo, ao
ver aparecer pelo atalho a um humano de aspecto feroz. Primeiro-aquele-desagradável-drow-e-ahoraeste-bruto! É-que-alguma vez-me-verei-livre-desta-gentinha? Tephanis
deu-se bofetadas na cabeça e golpeou os pés contra o chão com tanta rapidez que abriu um buraco.

No caminho, o grande sabujo de cabelo amarelo grunhiu e ensinou os dentes. Tephanis compreendeu que tinha armado muito escândalo com a rabieta e pôs-se a correr
em um amplo semicírculo, cruzou o atalho muito longe do viajante, e se deteve no outro flanco. O cão, com o olhar posto na direção contrária, agachou
a cabeça e gemeu confuso.

15

Uma sombra sobre o refúgio

Drizzt e Montolio não fizeram nenhum comentário referente ao relato do drow durante um par de dias. Drizzt refletia causar pena sobre as lembranças revividas e
Montolio, com muito tato, deixou-o fazer a seu ar. ocupavam-se das tarefas diárias como sempre, embora separados e com menos entusiasmo, mas ambos sabiam que
o distanciamento era só passageiro. Pouco a pouco voltaram a aproximar-se, e Drizzt pensou esperançado que tinha encontrado a um amigo tão digno como Belwar ou inclusive
Zaknafein. Não obstante, uma manhã o drow despertou para ouvir uma voz que conhecia muito bem, e acreditou no ato que os dias com o Montolio tinham chegado a um
desastroso
final. arrastou-se até a paliçada de madeira que protegia a cova e espiou entre os postes. --Um elfo escuro, Mooshie --dizia Roddy McGristle, levantando a
cimitarra rota para que o velho vigilante a visse. O fornido montanhês, que parecia enorme devido às muitas peles que o protegiam do frio, montava um pangaré
pequeno mas musculoso parado junto ao muro de pedra que rodeava o horta. Viu-o? --Ver? --exclamou Montolio sarcástico, ao tempo que piscava os olhos com exagero
os brancos olhos. Ao Roddy não fez nenhuma graça. --Já sabe a que me refiro --grunhiu Roddy. Vê mais que todos nós, assim não te faça o parvo! O cão
do Roddy, que tinha uma grande cicatriz na cabeça, onde o tinha golpeado Drizzt, farejou um aroma conhecido e começou a correr acima e abaixo pelos atalhos do
horta depois do rastro. Drizzt empunhou a cimitarra disposto a defender-se embora em seu rosto se refletia uma expressão de temor e preocupação. Não tinha nenhum
desejo de briga, nem sequer de enfrentar-se ao cão. --Ordena a seu cão que volte! --disse Montolio, cortante. --Viu ao elfo escuro, Mooshie? --repetiu McGristle,
esta vez com um tom de suspeita ao ver o comportamento do sabujo. --Possivelmente sim --respondeu Montolio. voltou-se e soltou um assobio agudo quase inaudível.
O cão,
ao escutar o assobio do vigilante, interpretou claramente a ira do velho e retornou depressa com o rabo entre as patas para acomodar-se junto ao cavalo de seu
amo. --Tenho uma ninhada de raposas ali dentro --mentiu o vigilante zangado. Se seu cão se meter com eles... --Montolio deixou a ameaça pendente, e ao parecer
foi suficiente para impressionar ao montanhês, que se apressou a jogar um laço ao pescoço do animal para mantê-lo sujeito contra suas pernas. Um drow... Deve
ser o mesmo, aquele que passou por aqui antes das primeiras nevadas --acrescentou. Terá que trabalhar duro se quer agarrá-lo, caçador de recompensas. --riu.
Por isso sei, teve

alguns problemas com o Graul, e depois continuou a viagem, suponho que de retorno a seu lar. Tem a intenção de perseguir o drow até a Antípoda Escura?
Sem dúvida te fará famoso, caçador de recompensas, embora te custe a vida. Drizzt se tranqüilizou ao escutar as palavras do velho. Montolio tinha mentido por
ele! Agora podia ver que o vigilante não tinha nenhuma estima pelo McGristle, e isto também o animou. Então Roddy voltou para a carga com força, e narrou a tragédia
do Maldobar de uma maneira tão brusca e retorcida que submeteu a amizade entre o Montolio e Drizzt a uma dura prova. --O drow matou aos Thistledown! --rugiu Roddy,
enfurecido pelo sorriso afetado do vigilante, que se esfumou no ato. Esquartejou-os, e a pantera devorou a um deles. Você conhecia o Bartholemew Thistledown,
vigilante. Teria que te envergonhar por falar com a ligeira do assassino! --O drow os assassinou? --perguntou Montolio, muito sério. --Fez-os pedaços! --respondeu
Roddy, lhe mostrando a cimitarra rota outra vez. Oferecem duas mil peças de ouro por sua cabeça. Darei-te quinhentas se consegue averiguar onde se oculta. --Não
necessito
seu ouro --apressou-se a responder Montolio. --É que não quer ver o assassino entre grades? --exclamou Roddy. Não chora a morte dos Thistledown, uma família
tão boa como qualquer outra? A larga pausa do Montolio fez que Drizzt acreditasse que o vigilante o entregaria. O elfo decidiu que não escaparia. Podia defender-se
contra a ira do caçador de recompensas, mas não contra a do Montolio. Se o vigilante o acusava, estava disposto a submeter-se e ser julgado. --Um dia triste
--murmurou Montolio. Uma excelente família. Apanha ao drow, McGristle. Será a melhor recompensa de toda sua vida. --Onde devo procurar? --perguntou Roddy mais
tranqüilo,
ao parecer convencido de que tinha ao Montolio de sua parte. Drizzt também o pensou ao ver que Montolio dava meia volta e olhava para o horta. --ouviste falar
da cova do Morueme? --perguntou Montolio. A expressão ufana do Roddy se esfumou para ouvi-lo. A cova do Morueme, no bordo do grande deserto do Anauroch, recebia
seu nome da família de dragões azuis que viviam ali. --A duzentos quilômetros daqui --gemeu McGristle. Através das Nethers, uma cordilheira muito difícil.
--O drow foi ali, ou aos arredores, a princípios do inverno--mentiu Montolio. --O drow se foi com os dragões? --inquiriu Roddy, atônito. --Suponho que
escondeu-se em algum outro buraco da região--replicou Montolio. É provável que os dragões do Morueme saibam algo. Teria que ir perguntar lhes. --Eu não gosto
muito ter entendimentos com os dragões --disse Roddy, sombrio. Muitos riscos e, mesmo que não passe nada, sempre sai caro! --Assim Roddy McGristle perdeu
sua primeira peça --comentou Montolio. De todos os modos, é compreensível frente a um rival tão difícil como um elfo escuro. Ao escutar o comentário um tanto
depreciativo,
Roddy atirou das rédeas do cavalo para reprimir ao animal. --Não te dê tanta pressa em cantar minha derrota, Mooshie! --gritou-lhe por cima do ombro. Não deixarei
que escape, embora tenha que revisar até o último buraco das Nethers! --Parece-me muito trabalho por duas mil peças de ouro --respondeu Montolio, sem
deixar-se impressionar.

--O drow matou a um de meus cães, cortou-me uma orelha e me fez esta cicatriz! --gritou Roddy, assinalando a cara marcada. O caçador de recompensas compreendeu o
absurdo de seu gesto, posto que o vigilante cego não podia vê-lo, e, cravando as esporas ao cavalo, afastou-se do horta ao galope. Montolio fez um gesto de
desgosto e se voltou para ir em busca do drow. Drizzt se reuniu com ele no muro de pedra, sem saber como lhe dar as obrigado. --Nunca me tem cansado bem --explicou
Montolio. --A família Thistledown foi assassinada --admitiu Drizzt, sem mais. Montolio assentiu. Sabia? --Desde antes que viesse aqui --respondeu o vigilante.
Reconheço que em um primeiro momento pensei que foi o assassino. --Eu não os matei. Montolio assentiu uma vez mais. Tinha chegado o momento de completar os detalhes
sobre os primeiros meses de estadia na superfície. Drizzt voltou a sentir-se culpado quando narrou a batalha contra o grupo de gnolls. Com voz afogada pelo
dor, falou dos Thistledown e do horrível assassinato. Montolio identificou ao trasgo, mas não soube explicar o que eram o goblin gigante e o lobo que se haviam
enfrentado ao Drizzt na cova. --Fez bem em matar aos gnolls --afirmou Montolio quando Drizzt acabou o relato. Não tenha remorsos e esquece-os. --Como
podia sabê-lo? --perguntou-lhe Drizzt, com toda sinceridade. Todos meus conhecimentos atam ao Menzoberranzan e ainda não aprendi a separar a verdade das
mentiras. --foi uma viagem muito confusa --disse Montolio, com um sorriso que aliviou muito a tensão. Me acompanhe, deixa que te fale das raças, e te diga a
razão pela qual suas cimitarras atuaram em nome da justiça quando abateram aos gnolls. Como vigilante, Montolio tinha dedicado toda sua vida à eterna
luta entre as raças boas --humanos, elfos, anões e halflings entre outros-- e os malignos goblinoides e gigantes que só viviam para destruir aos inocentes.
--Aos que mais detesto é aos orcos --manifestou Montolio. Assim agora me contento mantendo um olho vigilante..., refiro-me ao olho do mocho..., sobre o Graul
e sua infame turma. Por fim Drizzt teve as coisas mais claras. sentiu-se reanimado ao saber que tinha atuado corretamente e que ao menos, até certo ponto,
estava livre de culpa. --O que diz do caçador de recompensas e a outra gente como ele? -- inquiriu Drizzt. Não parecem encaixar muito bem em sua descrição de
as raças. --Em todas as raças há bons e maus --respondeu Montolio. Só me refiro à conduta em seu conjunto, e não duvido que a conduta dos goblinoides
e os gigantes é perversa. --Como pode sabê-lo? --insistiu Drizzt. --Basta olhando aos meninos --assegurou Montolio. Continuando, embarcou-se em uma larga
explicação sobre as pouco sutis diferencia entre os meninos das raças boas e as más. Drizzt o escutou, um pouco distante, porque não necessitava mais elucidações.
Ao parecer, sempre todo se reduzia aos meninos. Drizzt tinha deixado de reprovar-se seu ataque aos gnolls ao olhar os jogos dos meninos Thistledown. E, no Menzoberranzan,
seu pai tinha expresso a mesma opinião. Acaso são malignos todos os meninos drows?, perguntou-se Zaknafein, e durante toda sua vida o tinham acossado os
gritos dos moribundos meninos drows apanhados na guerra entre famílias. produziu-se uma larga pausa quando Montolio acabou a explicação, e os dois amigos se
tomaram seu tempo para digerir as muitas revelações do dia. O vigilante

compreendeu que Drizzt se sentia melhor quando o drow se voltou para ele e sem mais trocou de tema. --por que "Mooshie"? --perguntou Drizzt, recordando o mote que
McGristle tinha usado junto ao muro de pedra. --Montolio DeBrouchee. --O velho soltou uma risita, ao tempo que fazia uma piscada grotesca. Mooshie para os amigos,
e para aqueles como McGristle que são incapazes de dizer palavras mais largas que urso, burro e matar. --Mooshie --murmurou Drizzt outra vez, divertindo-se a costa
do Montolio. --Não tem nada que fazer, "drizzit"? --protestou Montolio. Drizzt assentiu e se afastou agradado. Esta vez "drizzit" não lhe tinha divulgado tão mal.
--A
cova do Morueme --resmungou Roddy. Maldita seja a cova do Morueme! Um segundo depois, um trasgo apareceu no pomo da arreios do Roddy, com o olhar posto
na assombrada expressão do caçador de recompensas. Tephanis tinha presenciado o encontro no horta do Montolio e tinha amaldiçoado sua má sorte quando o
vigilante tinha despachado ao Roddy. Tinha muito interesse em que este pudesse caçar ao Drizzt. Era a melhor maneira de livrar-se de dois inimigos ao mesmo tempo.
--Sem dúvida-não-é-tão-


estúpido-para-acreditar-naquele-velho-mentiroso-- disse Tephanis. --Né, quieto! --gritou Roddy, tratando inutilmente de agarrar ao trasgo, que desembarcou de um
salto,
rodeou ao cavalo e ao cão, e voltou a montar, esta vez atrás do homem. Quem demônios é você?--rugiu McGristle. E fica aquieto! --Sou um amigo --respondeu
Tephanis, com um esforço para não falar tão depressa. Roddy o olhou com cautela por cima do ombro. Si-quieres-cazar-al-drowvas-por-el-camino-equivocado--acrescentou.
Ao cabo de um momento, Roddy estava escondo entre os penhascos ao sul do horta do Montolio dedicado a espiar ao vigilante e a seu convidado de pele escura, muito
entretidos
em suas ocupações. --Boa-caza! --desejou-lhe Tephanis, antes de ir-se reunir com o Caroak, o grande lobo prateado que cheirava muito melhor que este humano. Roddy,
com
o olhar cravado na cena distante, não emprestou atenção à marcha do trasgo. --Pagará por suas mentiras, vigilante --murmurou. Um sorriso cruel apareceu em
seu rosto enquanto pensava na maneira de vingar-se dos companheiros. Seria uma questão delicada, pois tratar com o Graul sempre resultava difícil. O mensageiro
do Montolio retornou dois dias depois com uma nota de Pomba Garra de Falcão. Sereia tentou recapitular a resposta da vigilante, mas o mocho era incapaz de
transmitir uma mensagem tão larga e complicada. Montolio não pôde fazer outra coisa que dar a carta ao Drizzt e lhe pedir que a lesse em voz alta. O drow ainda tinha
dificuldades para ler de deslocado, e demorou um pouco em compreender o texto. A nota detalhava a versão de Pomba sobre os fatos ocorridos no Maldobar e durante
a perseguição. O relato da vigilante coincidia quase ponto por ponto com a verdade, desculpava ao Drizzt e citava aos cachorrinhos de barje como os assassinos. A
alegria do Drizzt era tão grande que só com esforço conseguiu ler as últimas palavras da carta, onde Pomba mencionava sua gratidão e seu prazer ao saber que
Montolio tinha acolhido a alguém tão "cabal" como o drow. --Como pode ver, ao final recebeste sua recompensa, meu amigo --

manifestou Montolio. Não teve necessidade de acrescentar nada mais.

QUARTA PARTE

Resoluções

Agora contemplo meu comprido viaje como uma busca da verdade; a verdade em meu coração, no mundo que me rodeia, e nos temas principais do propósito e da
existência. Como se definem o bem e o mal? Levava dentro de mim um código moral, embora nunca pude saber se tinha nascido com ele, se me tinha ensinado isso Zaknafein,
ou se simplesmente se desenvolveu a partir de minhas percepções. Este código me forçou a abandonar Menzoberranzan, porque, apesar de estar bastante seguro
de quais poderiam ser essas verdades, sabia fora de toda dúvida que não as poderia encontrar nos domínios do Lloth. depois de passar muitos anos na Antípoda Escura
fora do Menzoberranzan e atrás daquela primeira experiência horrível na superfície, cheguei a duvidar da existência de uma verdade universal, cheguei a me perguntar
se, ao fim e ao cabo, havia algum propósito na vida. No mundo dos drows, o único propósito era a ambição, a busca de lucros materiais provenientes
da ascensão de fila. Inclusive então, aquilo me parecia muito pouca coisa, uma razão que não justificava a existência. Dou-te as obrigado, Montolio DeBrouchee, por
confirmar minhas suspeitas. aprendi que a ambição daqueles que seguem preceitos egoístas não é mais que um desperdício caótico, um ganho mísero a que
segue uma perda infinita. Porque é certo que existe uma harmonia no universo, uma sinfonia coral de felicidade. Para unir-se ao coro, alguém deve encontrar a harmonia
interior, deve encontrar as notas verdadeiras. Há outra coisa que se deve assinalar referente à verdade: as criaturas malignas não sabem cantar.
DRIZZT DOU'URDEM

16

De deuses e propósitos

As lições continuaram a bom ritmo. O velho vigilante tinha diminuído a considerável carrega emocional do drow, e Drizzt resultava um aluno avantajado à
hora de aprender todo o referente ao mundo natural. Entretanto, Montolio pressentia que algo preocupava ao drow, embora não sabia o que podia ser. --Todos os humanos
têm o ouvido tão desenvolvido? --perguntou-lhe de repente o elfo enquanto arrastavam um enorme ramo queda fora do horta. Ou é que o tua é uma bênção,
possivelmente para compensar a cegueira? --Pergunta-a tão direta só surpreendeu ao Montolio durante o instante que demorou para compreender a frustração do drow,
uma inquietação
causada pelo fracasso do Drizzt na hora de entender as habilidades do homem. Ou sua cegueira é acaso um ardil, um engano que emprega para conseguir vantagem?
--E se o é, o que? --replicou Montolio. --Então é um ardil muito bom, Montolio DeBrouchee --disse o elfo. Certamente que te ajuda contra os inimigos... e
os amigos. Estas palavras deixaram um gosto amargo no Drizzt, e o drow suspeitou que se estava deixando levar pelo orgulho. --É evidente que não lhe venceram
nas batalhas --respondeu Montolio, ao descobrir que a origem das frustrações era o duelo que tinham mantido. De ter podido ver a expressão do elfo,
o vigilante teria tido a confirmação de seu raciocínio. Lhe toma muito a peito --acrescentou depois de uma pausa incômoda. A verdade é que não te venci.
--Tinha-me convexo e indefeso. --Derrotou-te você mesmo --explicou Montolio. É verdade que sou cego, mas não tão indefeso como parece acreditar. Subestimou-me.
Sabia que o faria, embora resisti a pensar que você pudesse ser tão cego. Drizzt se deteve súbitamente, e Montolio fez o mesmo quando o peso do ramo aumentou
de repente. O vigilante sacudiu a cabeça e soltou uma gargalhada. Então tirou a adaga, jogou-a no ar, agarrou-a pela lâmina, e ao grito do Abedul!", lançou-a
com força contra um dos poucos abedules que havia no horta. --Pode um cego fazer isto? --perguntou Montolio. --Então pode ver --declarou Drizzt. --Desde
logo que não --afirmou Montolio enfático. Meus olhos não vêem há cinco anos. Mas tampouco estou cego, Drizzt, sobre tudo neste lugar que chamo meu lar!
Entretanto me trata como a um cego --acrescentou mais tranqüilo. Em nosso duelo, quando desapareceu o globo de escuridão, creíste que tinha vantagem. É que pensou
que todas minhas ações..., devo assinalar que todas efetivas..., tanto na batalha contra os orcos como em nosso combate, respondiam simplesmente a um pouco ensaiado?
Se fosse um inválido como me considera Drizzt Dou'Urdem, como poderia sobreviver um só dia mais nestas montanhas?

--Eu não... --começou a dizer Drizzt, mas a vergonha o fez calar. Montolio havia dito a verdade, e ele sabia. Do primeiro encontro tinha considerado,
ao menos a um nível subconsciente, que o vigilante era um deficiente. Drizzt supunha que em nenhum momento lhe tinha faltado o respeito a seu amigo (ao contrário,
valorava-o muitíssimo), mas sim tinha dado por feito que podia mais que ele e que as limitações do ancião eram maiores que as suas. --Tem-no feito --corrigiu-o
Montolio--, e te perdôo. Para que saiba, trataste-me melhor que qualquer dos que conheci antes, inclusive aqueles que cavalgaram para meu lado em inumeráveis
campanhas. Agora sente-se. Chega meu turno de relatar minha história, como você me contaste a tua. Por onde começar? O velho se arranhou a barba. Tudo lhe parecia
tão longínquo, como se pertencesse a uma vida esquecida fazia tempo. De todos os modos, retinha um vínculo com o passado: a preparação de vigilante da deusa Mielikki.
Drizzt, que a tinha conhecido através dele, compreenderia-o. --Desde muito jovem dediquei minha vida ao bosque, à ordem natural --disse Montolio. Aprendi, da mesma
maneira que ensino a ti, os usos e os costumes do mundo selvagem e decidi muito em breve que defenderia aquela perfeição, aquela harmonia dos ciclos muito
vasta e maravilhosa para ser compreendida. Esta é a razão pela que eu gostava de brigar contra os orcos e outros como eles. Como hei dito antes, há inimigos do
ordem natural, inimigos das árvores e dos animais como os tem que os humanos e das outras raças boas. Todos eles monstros, e nunca me arrependi
de matá-los! Montolio dedicou muitas horas ao relato das campanhas, expedições nas que tinha atuado sozinho ou como explorador de grandes exércitos. Falou-lhe
de sua professora, Dilamon, uma vigilante tão perita com o arco que nunca a viu errar o alvo, nem sequer uma vez em dez mil disparos. --Morreu em combate --explicou
Montolio--, defendendo uma granja do ataque de uma banda de gigantes. Mas não choremos pela senhora Dilamon, porque nem um só granjeiro resultou ferido e nenhum
do punhado de gigantes que conseguiu escapar com vida voltou a mostrar nunca seu horrível rosto por aquela região. A voz do Montolio se fez muito mais moderada
quando chegou o momento de falar do passado recente. Falou-lhe dos vigilantes da serra, sua última companhia, e de como foram combater com um dragão vermelho
que aterrorizava aos povos da zona. Tinham conseguido liquidar ao dragão, mas na batalha morreram três vigilantes, e Montolio acabou com a cara queimada.
--Os sacerdotes me curaram muito bem --relatou Montolio com tom sombrio. Quase não ficaram cicatrizes como prova do sofrimento. --Fez uma pausa, e, por primeira
vez desde que tinha conhecido ao vigilante, Drizzt pôde ver uma expressão de dor no rosto do ancião. Mas não puderam fazer nada por meus olhos. Ferida-las
estavam além de seus conhecimentos. --Então veio aqui para morrer --manifestou Drizzt, com um tom acusador que não tinha pretendido. --suportei o fôlego
dos dragões, as lanças dos orcos, a fúria de homens malignos e a cobiça daqueles dispostos a exaurir a terra em seu próprio benefício --disse o
vigilante sem negar a afirmação. Nenhuma de todas essas coisas me afetou tanto como a piedade. Inclusive meus companheiros, que tinham lutado a meu lado tantas
vezes,
tinham piedade de mim. Você também. --Eu não... --tratou de dizer Drizzt. --Você também --replicou Drizzt. Em nosso duelo, considerou-te superior. Aí tem a razão
de sua derrota! A força de qualquer vigilante é a sabedoria, Drizzt. Um vigilante se compreende a si mesmo, aos inimigos e aos amigos. Tomou por um inválido;
se não, nunca teria tentado uma manobra tão atrevida como

a de saltar por cima de mim. Mas te compreendi e previ o movimento. --No rosto do velho apareceu o sorriso ardiloso de sempre. Ainda te dói a cabeça?
--Sim --admitiu Drizzt, esfregando-a cicatriz. Mas pouco a pouco, me esclarecem idéias. --Quanto a seu primeira pergunta --continuou Montolio, satisfeito de
deixar bem sentado o ponto--, não há nada excepcional em meu ouvido, ou em qualquer dos outros sentidos. O que acontece é que, a diferença das demais pessoas,
empresto mais atenção ao que eles me dizem; e, como pudeste comprovar, guiam-me bastante bem. Se quer saber a verdade, eu tampouco conhecia suas capacidades
quando vim aqui, e acertaste no referente a meus motivos. Sem os olhos, considerava-me um homem acabado, e queria morrer aqui, neste horta que tinha conhecido
em minhas primeiras viagens e eu gostava tanto. "Possivelmente se deveu ao Mielikki, a senhora do bosque..., embora seja mais provável que fora pelo Graul, o inimigo
tão próximo...,
mas não me levou muito trocar as intenções respeito a minha própria vida. Aqui encontrei um propósito, só e deficiente... e reconheço que naqueles dias era
um deficiente. Dito propósito veio acompanhado com um novo sentido da vida, e isto a sua vez levou a compreender minhas limitações. Se tivesse morrido faz cinco
anos, como tinha sido minha intenção, teria morrido com minha vida incompleta. Nunca teria podido saber o que era capaz de fazer. Só na adversidade, muito mais à
frente
de algo que Montolio DeBrouchee tivesse podido imaginar, fui capaz de me conhecer mim mesmo e a minha deusa tão bem. Montolio fez uma pausa e voltou a cabeça
para o Drizzt. Tinha escutado um ruído ao mencionar o nome da deusa, e o interpretou como um movimento de mal-estar. Interessado por averiguar esta revelação,
o velho colocou uma mão por debaixo da cota de malha e tirou um pendente que reproduzia a cabeça de um unicórnio. --Não é formoso? --perguntou com toda intenção.
Drizzt vacilou. O unicórnio era uma maravilha de desenho e de uma talha deliciosa, mas as conotações do pendente não lhe faziam nenhuma graça. No Menzoberranzan,
Drizzt tinha sido testemunha da insensatez de obedecer os ditados dos deuses, e lhe parecia detestável. --Qual é seu deus, drow? --quis saber Montolio. Em
todo o tempo que levavam juntos, nunca tinham falado a fundo de religião. --Não tenho deus --afirmou Drizzt, atrevido--, nem quero o ter. --Esta vez lhe tocou
ao Montolio fazer uma pausa. Drizzt se levantou e se afastou uns passos. Minha gente segue ao Lloth --acrescentou. Ela, se não ser a causa, sim que é a prolongação
de seu
perversidade, da mesma maneira que Gruumsh o é para os orcos, e os outros deuses o são para outras gente. Seguir a um deus é uma estupidez. Eu, em troca,
sigo a meu coração. --Você também tem um deus, Drizzt Dou'Urdem --assegurou Montolio, com uma risada suave que subtraiu todo dramatismo à declaração do jovem elfo.
--Meu deus é meu coração --proclamou Drizzt, lhe dando as costas. --E o meu. --Você deste a sua deusa o nome do Mielikki --repôs Drizzt. --E em troca você ainda
não encontraste um nome para o teu --replicou Montolio. Isto não quer dizer que não tenha deus. Seu deus é seu coração, e o que te diz seu coração? --Não o
sei --respondeu Drizzt depois de meditar uns instantes. --Então, pensa! --gritou Montolio. O que lhe disseram seus instintos sobre a banda de gnolls, ou dos
granjeiros no Maldobar? Lloth não é sua deidade, isso já sabemos. Qual é o deus ou a deusa que se ajusta ao que há no coração do Drizzt Dou'Urdem? --Montolio
quase podia escutar os repetidos encolhimentos de ombros que fazia o elfo escuro. Não sabe? --perguntou o velho. Eu sim.

--Presume muito --disse Drizzt, pouco convencido. --Observo muito --retificou-o Montolio com uma gargalhada. Crie que tem o mesmo coração do Guenhwyvar!
--Nunca o pus em dúvida --afirmou Drizzt. --Guenhwyvar segue ao Mielikki. --Como pode sabê-lo? --protestou Drizzt, um tanto preocupado. Não lhe incomodavam as
hipóteses do Montolio referentes a sua pessoa, mas considerou as palavras do velho como um ataque à pantera. Drizzt sempre tinha pensado que Guenhwyvar
estava por cima dos deuses e de tudo o que representava acreditar em um. --Como sei? --replicou Montolio incrédulo. Porque a pantera me disse isso! Guenhwyvar
é a entidade de uma pantera, uma criatura do reino do Mielikki. --Guenhwyvar não necessita suas etiquetas --declarou Drizzt furioso, enquanto voltava a sentar-se
junto
ao vigilante. --Certamente que não --admitiu Montolio. Mas isto não troca as coisas. Não o entende, Drizzt Dou'Urdem. cresceste rodeado da perversão de
uma deidade. --E a tua é a autêntica? --inquiriu Drizzt, sarcástico. --Todas são verdadeiras, e todas são uma mesma --respondeu Montolio. Drizzt reconheceu que
o velho tinha razão em uma coisa: não o entendia. --Considera os deuses como entidades exteriores --tentou lhe explicar Montolio. Vê-os como seres físicos
que pretendem controlar suas ações para seus próprios fins, e portanto você, em sua teimada independência, as rechaças. Eu digo que os deuses estão em nosso
interior, e dá igual a lhe tenha dado um nome ou não. Você seguiste ao Mielikki toda sua vida, Drizzt. Só que não lhe deste um nome em seu coração. --de repente
Drizzt se mostrou mais intrigado que cético. O que sentia quando abandonou a Antípoda Escura? --perguntou Montolio. O que te disse o coração quando olhou
pela primeira vez o sol ou as estrelas, ou o verde dos bosques? Drizzt recordou aquele dia no passado, quando ele e a patrulha drow tinham saído da Antípoda
Escura para atacar a um grupo de elfos. Eram memórias dolorosas, mas nelas havia um consolo, um momento de exaltação ao sentir o contato do vento e os
aromas das flores. --E como pôde falar com o Bluster? --acrescentou Montolio. Não é nenhuma tolice compartilhar uma cova com aquele urso! Queira-o ou não, tem
o coração de um vigilante. E o coração de um vigilante é um coração que pertence ao Mielikki. --E o que é o que requer sua deusa? --perguntou em tom irado
Drizzt, molesto por uma afirmação tão concludente. Quis levantar-se, mas Montolio lhe pôs uma mão sobre as pernas e o impediu. --Requerer? --O vigilante
riu. Não sou um missionário que prega a palavra e impõe regras de comportamento! Não te acabo de dizer que os deuses estão em nosso interior? Conhece as
regras do Mielikki tão bem como eu. Seguiste-as durante toda sua vida. Ofereço-te um nome, nada mais, e a personificação de um comportamento ideal, um exemplo
que te servirá nos momentos em que te separe do que sabe que é verdade. Dito isto, Montolio agarrou o ramo e Drizzt o imitou. O drow considerou as palavras
do vigilante durante muito tempo. Aquele dia não dormiu e permaneceu no dormitório, pensando. --Eu gostaria de saber algo mais de você... de nossa... deusa --reconheceu
Drizzt aquela noite, enquanto Montolio preparava o jantar. --E eu desejo te ensinar --respondeu Montolio. Um centenar de olhos amarelos injetados em sangue seguiram
a figura do

humano que cruzava o acampamento em companhia de um cão amarelo bem sujeito a seu lado. Ao Roddy não o fazia nenhuma graça acudir ali, à fortaleza do Graul,
o rei orco, mas tampouco tinha a intenção de permitir que o drow se voltasse a escapar. Roddy tinha tratado várias vezes com o Graul durante os últimos anos:
o chefe orco, com tantos espiões nas montanhas, era um aliado muito valioso, e também muito caro, na caçada de fugitivos. Vários orcos muito grandes se cruzaram
de propósito em seu caminho, para incomodá-los a ele e ao cão. Mas Roddy conteve ao animal embora não lhe faltavam vontades de lançá-lo contra os fedorentos orcos.
Repetiam
o mesmo jogo cada vez que aparecia por ali: empurravam-no, cuspiam-lhe, o que fora por provocar a briga. Os orcos sempre se mostravam muito valentes quando
superavam ao rival cem a um. Todo o grupo partiu detrás do McGristle ao longo dos últimos cinqüenta metros, até uma ladeira rochosa, a entrada à cova
do Graul. Dois orcos apareceram na porta, armados com lanças, para deter o intruso. --por que vieste? --perguntou um em sua língua nativa. O outro estendeu
a mão como se esperasse um pagamento. --Esta vez não pago eu --respondeu Roddy no mesmo dialeto. Esta vez paga Graul! Os orcos intercambiaram um olhar incrédulo;
depois voltaram a olhar ao humano, e grunhiram ameaçadores até que de repente os interrompeu a aparição de um orco maior ainda. Graul saiu da cova,
apartou aos guardas de um tranco, e sem deter-se avançou até pôr o focinho coberto de mucos quase pego ao nariz do Roddy McGristle. --Graul paga? --gritou,
e quase tombou ao humano com o fôlego. A gargalhada do Roddy foi exclusivamente a favor da chusma. Não podia demonstrar a mais mínima debilidade. Como os cães
selvagens, os orcos atacavam a todo aquele que não se mantinha firme contra eles. --Tenho informação, rei Graul --disse o cazarrecompensas, sem vacilar. Informação
que Graul precisa saber. --Fala --ordenou Graul. --E o pagamento? --perguntou Roddy, consciente de que abusava da sorte. --Fala! --grunhiu Graul. Se suas palavras
têm valor, Graul te deixará viver. Roddy lamentou para seus adentros que os entendimentos com o Graul sempre funcionassem desta maneira. Era difícil conseguir alguma
vantagem
com o fedorento cacique quando tinha o apoio de um centenar de guerreiros armados. Mesmo assim, permaneceu tranqüilo. Não tinha ido por dinheiro --embora não perdia
a
esperança de conseguir um pouco-- mas sim por vingança. Não podia atacar abertamente ao drow enquanto este estivesse com o Mooshie. Nestas montanhas, com o apoio
de
os animais amigos, Mooshie era um rival formidável. Inclusive se conseguia tirar o de no meio e acabar com o drow, os muitos aliados do vigilante, veteranos
como Pomba Garra de Falcão, tomariam a revanche. --Há um elfo escuro em seus domínios, poderoso rei orco! --prosseguiu Roddy, sem provocar a reação imaginada.
--Um renegado --esclareceu Graul. --Sabia? Os olhos como pratos do Roddy descobriram sua incredulidade. --O drow matou aos guerreiros do Graul --disse o cacique,
muito sério. Os orcos pressente começaram a dar golpes no chão e a cuspir, amaldiçoando ao elfo escuro. --Então, como é que o drow vive? --perguntou Roddy
sem rodeios. O caçador de recompensas entrecerró os olhos ao suspeitar que Graul desconhecia o paradeiro do elfo escuro. Possivelmente ainda ficava algo com que
poder

negociar. --Meus exploradores não podem encontrá-lo! --rugiu Graul. E não mentia. Mas a frustração que mostrava era simulada. O cacique, a diferença dos exploradores,
sim sabia qual era o paradeiro do drow. --Eu o encontrei! --vociferou Roddy. Todos os orcos começaram a gritar e a saltar de alegria. Graul levantou uma mão
para fazê-los calar. O cacique orco era consciente de que este era um momento crítico. Procurou com o olhar entre a concorrência ao chamán da tribo, ao chefe
espiritual, e descobriu ao orco embelezado com uma capa vermelha que emprestava grande atenção às palavras do cazarrecompensas. Por conselho do chamán, Graul tinha
evitado
qualquer ação contra Montolio durante todos estes anos. O chamán considerava que o cego tinha poderes de magia negra, e, devido às advertências do chefe
espiritual, os orcos da tribo se acovardavam cada vez que Montolio estava perto. Mas ao aliar-se com o drow --e, se as suspeitas do Graul eram certas, ao
ajudar ao elfo escuro a ganhar a batalha no topo da montanha--, Montolio se tinha metido em assuntos alheios, tinha violado os domínios do Graul da mesma
maneira que o drow vagabundo. Seguro de que o drow era um renegado, pois não tinham aparecido mais elfos escuros na região. O cacique orco só esperava uma desculpa
que pudesse animar aos súditos a tomar uma ação contra o horta. Ao Graul haviam dito que Roddy possivelmente poderia lhe facilitar a desculpa. --Fala! --rugiu uma
vez mais Graul à cara do Roddy, para evitar que insistisse em algum tipo de recompensa. --O drow está com o vigilante --respondeu Roddy. Sinta-se no horta
do vigilante cego! Se Roddy tinha tido a esperança de que o anúncio provocasse outro estalo de gritos, saltos e escupitajos, ficou com as vontades. A menção
do vigilante cego apagou qualquer amostra de entusiasmo dos reunidos, e todos os orcos olharam ao chamán e ao Graul em busca de uma orientação. Tinha chegado
o momento de que o humano começasse a relatar uma história de conspirações, tal qual Graul tinha sido avisado que faria. --Têm que ir ali e agarrá-los! --gritou.
Não podemos... O cacique levantou os braços para silenciar os murmúrios dos vassalos e também ao Roddy. --Foi o vigilante cego quem matou ao gigante? --o
perguntou o rei orco com um tom de astúcia. E ajudou ao drow a matar aos guerreiros? Certamente, Roddy não sabia a que se referia Graul, mas captou no ato
as intenções do cacique. --Foi ele! --proclamou com voz altissonante. E agora o drow e o vigilante conspiram contra vós! Devem ir e acabar com eles
antes de que se pressentem aqui dispostos a lhes aniquilar! O vigilante trará para seus animais, aos elfos..., muitíssimos elfos, e também aos pequenos para que
lutem
contra Graul! A menção dos amigos do Montolio, em particular os elfos e os pequenos, aos que a gente do Graul odiavam mais que a qualquer outra costure no
mundo, provocou expressões azedas em todos os pressente, e houve mais de um que olhou nervoso por cima do ombro, como se esperasse ver o exército do vigilante
rodeando o acampamento. Graul olhou ao chamán. --El-que-vigia deve benzer o ataque --respondeu o chamán à pergunta silenciosa. Na noite de lua nova!
Graul assentiu, e o orco da túnica vermelha se voltou, chamou a uns quantos súditos e partiu a ocupar-se dos preparativos. Graul colocou a mão na bolsa e
tirou um punhado de moedas de prata para

Roddy. O homem não lhe havia dito nada que ele não soubesse, mas a mentira da conspiração contra a tribo inventada pelo cazarrecompensas tinha sido de muita
ajuda no intento de convencer ao supersticioso chamán de que devia benzer o ataque. Roddy aceitou o pagamento sem pigarrear, porque já se dava por satisfeito com
ter conseguido seus propósitos, e se voltou disposto a partir. --Fica --disse Graul de repente a suas costas. A um sinal do rei orco, vários guardas
adiantaram-se e rodearam ao caçador de recompensas, que o olhou desconfiado. Hóspede --explicou o rei muito tranqüilo. Participará da briga. Ao Roddy não o
ficava muito onde escolher. Graul despediu do guarda pessoal e retornou sozinho à cova. Os guardas encolheram os ombros e sorriram, sem muitas vontades de
segui-lo e ter que suportar aos outros convidados do rei, em especial ao enorme lobo prateado. Assim que Graul ocupou seu sítio habitual, dirigiu-se a um dos
convidados. --Tinha razão --disse-lhe ao pequeno trasgo. --Sou-muito-bom-para-conseguir-informação --afirmou Tephanis, e para seus adentros acrescentou: "E-para-criar-situações-que

 

me beneficien". Naquele momento se considerava muito preparado, porque não só tinha avisado ao Roddy que o drow se encontrava no horta do Montolio, mas também se
havia
posto de acordo com o rei Graul para que Roddy os ajudasse. Sabia que o orco odiava ao vigilante cego, e que, com a desculpa da presença do drow, poderia
por fim convencer ao chamán para que benzera o ataque. --Caroak ajudará na briga? --perguntou Graul, com um olhar de suspeita ao enorme e imprevisível lobo
prateado. --Certamente --respondeu Tephanis no ato. A-destrucción-de-losenemigos-también-favorece-a-nuestros-intereses! Caroak, que podia entender perfeitamente
a conversação, levantou-se e saiu da cova. Os guardas da entrada não tentaram lhe fechar o passo. --Caroak-se-encarregará-dos-worgs--explicou Tephanis.
Reunirá-una-fuerzamuy-poderosa-contra-el-vigilante-ciego.Faz-mucho-tiempo-que-es-enemigo-decaroak. Graul assentiu e pensou nas semanas vindouras. Se podia livrar-se
do vigilante e do drow, desfrutaria de uma segurança que não tinha desde fazia anos; para ser precisos, da chegada do Montolio. O vigilante quase nunca combatia
contra os orcos, mas Graul sabia que os animais espiões do vigilante sempre alertavam às caravanas. O cacique já não recordava qual tinha sido a última
vez que tinham atacado a uma caravana por surpresa, o método favorito dos orcos. Em troca, com o vigilante ausente... Com a chegada do verão aumentaria
o passo de caravanas, e os orcos conseguiriam excelentes botas de cano longo. Agora o único que precisava era a confirmação do chamán, saber que El-que-vigia, o
deus
orco Gruumsh o Caolho, aprovava o ataque. A lua nova, um tempo sagrado para os orcos e o momento que o chamán considerava como o mais propício para conhecer
a vontade do deus, produziria-se dentro de pouco mais de duas semanas. Ansioso e impaciente, Graul protestou contra a demora, mas sabia que não podia fazer outra
coisa que esperar. O cacique, muito menos religioso que outros, tinha a intenção de atacar de todas maneiras, mas não queria desafiar à líder espiritual de
a tribo a menos que fosse algo absolutamente necessário. Tampouco faltava tanto para a lua nova, pensou Graul. Então se livraria para sempre do vigilante cego
e do misterioso drow.

17

Em desvantagem

--Parece preocupado --disse Drizzt ao Montolio quando, à manhã seguinte encontrou ao vigilante em uma das pontes de sogas. Sereia estava sentado em uma
ramo por cima dele. Montolio, absorto em seus pensamentos, demorou para responder. O drow, sem incomodar-se pelo silêncio, encolheu os ombros e lhe voltou as costas,
disposto a respeitar a intimidade de seu amigo. Tirou do bolso a estatueta de ônix. --irei caçar um momento com o Guenhwyvar --acrescentou por cima do ombro--, antes
de que o sol esteja muito alto. Depois me irei dormir e poderá acontecer o dia com a pantera. Montolio pareceu não lhe haver escutado, mas ao ver que Drizzt colocava
a estatueta sobre as pranchas da ponte, as palavras do drow se registraram com maior claridade e saiu do ensimismamiento. --Espera --disse Montolio. Deixa
que a pantera descanse. --Guenhwyvar leva mais de um dia e meio de ausência --replicou o elfo, sentido saudades pela petição. --Possivelmente necessitaremos à pantera
para
algo mais que uma caçada antes de que passe muito tempo --acrescentou o ancião. Deixa-a descansar. --Qual é o problema? --perguntou Drizzt, de repente muito sério.
O que viu Sereia? --Ontem à noite foi lua nova --respondeu Montolio. Drizzt, que tinha aprendido os ciclos lunares, assentiu. Um dia sagrado para os orcos --continuou
o vigilante. Seu acampamento está a muitos quilômetros daqui, mas ontem à noite pude ouvir os gritos. Uma vez mais Drizzt assentiu. --Eu também os ouvi, mas pensei
que
era o vento ao sopro entre as árvores. --Era o lamento dos orcos --assegurou-lhe Montolio. Cada mês se reúnen para dançar e gritar como selvagens inundados
em um estupor inato. Os orcos não necessitam nenhuma bebida para induzi-lo, sabia? Nunca me preocuparam, mas ontem à noite se mostraram muito mais ruidosos que
de costume. Pelo general não os pode ouvir daqui. Um vento favorável... ou desfavorável trouxe os cânticos até aqui. --E agora sabe que havia algo
mais que os cânticos? --supôs Drizzt. --Sereia também os ouviu --explicou Montolio. Sempre disposto a olhar por mim. --Moveu a cabeça para onde estava o mocho.
Voou até ali para jogar uma olhada. Drizzt também olhou ao maravilhoso pássaro, posado com a plumagem cheia de orgulho como se compreendesse os elogios do
ancião. De todos os modos, apesar da grave preocupação do vigilante, o elfo se perguntou até que ponto podia Montolio entender as mensagens do mocho, e, por
o outro lado, até onde chegava a compreensão do mocho de quão feitos via. --Os orcos parecem preparar-se para a guerra --disse Montolio, arranhando-a

barba. Tudo indica que Graul despertou que comprido inverno com a intenção de resolver algum pleito pendente. --Como pode sabê-lo? --perguntou Drizzt.
Acaso Sereia entende suas palavras? --Não, não, certamente que não --respondeu Montolio, com uma expressão risonha ante a ridicularia da idéia. --Então, como
pode sabê-lo? --Sereia me informou que uma matilha de worgs se encontra no acampamento. Os orcos e os worgs não são bons amigos, mas se unem cada vez
que se prepara algo feio. A celebração de ontem à noite foi muito selvagem, e a presença dos worgs não dá lugar a muitas dúvidas. --Há algum povo próximo? --inquiriu
Drizzt. --Nenhum exceto Maldobar --respondeu o vigilante. Duvido que os orcos pretendam chegar tão longe, mas já quase não fica neve e as caravanas começarão
a cruzar o passo, desde o Sundabar até a cidadela do Adbar e viceversa. Haverá muitas procedentes do Sundabar, e não acredito que Graul seja tão atrevido, ou tão
estúpido,
para atacar a uma caravana de pequenos fortemente armados procedentes do Adbar. --Quantos guerreiros tem o rei orco? --Graul poderia reunir vários milhares se
toma o trabalho e a moléstia --disse Montolio. Mas demoraria semanas, e Graul nunca destacou por sua paciência. Além disso, não teria trazido para os worgs tão
logo se pensava esperar a reunir suas legiões. Os orcos revistam desaparecer quando rondam os worgs, e os worgs revistam engordar e converter-se em preguiçosos com
tantos orcos por ali. Não sei se me entende. -- O movimento de ombros do Drizzt indicou que lhe entendia. Suponho que Graul tem uns cem guerreiros --acrescentou
Montolio--, e entre doze e vinte worgs, segundo a recontagem de Sereia, e provavelmente um gigante ou dois. --Uma força muito considerável para atacar a uma caravana
--opinou Drizzt. Mas tanto ele como o vigilante suspeitavam outra coisa. Quando se tinham conhecido, um par de meses antes, Graul tinha saído maltratado. --Demorarão
um dia ou dois em estar preparados --assinalou Montolio, depois de uma pausa incômoda. Sereia se encarregará de vigiá-los esta noite, e eu chamarei os outros espiões.
--Eu me ocuparei dos orcos --manifestou Drizzt. Viu uma sombra de preocupação no rosto do Montolio e se apressou a dissipá-la. Muitas vezes realizei o
trabalho de explorador nas patrulhas do Menzoberranzan. É uma tarefa que sei fazer muito bem. Não tema. --Aquilo foi na Antípoda Escura --recordou-lhe Montolio.
--A escuridão é a mesma --replicou Drizzt com uma piscada e um sorriso. Teremos as respostas que necessitamos. Drizzt se despediu com um "bom dia" e se
partiu para seu dormitório. Montolio escutou com sincera admiração os passados do amigo que se afastava, apenas um sussurro entre as árvores muito juntas, e pensou
que
era um bom plano. O dia transcorreu lenta e pacificamente para o vigilante. entreteve-se na preparação dos planos defensivos do horta. Nunca tinha tido
que defender o lugar, exceto a vez em que uma banda de ladrões despistados tinha aparecido por ali, mas tinha dedicado muitas horas ao estudo e o ensaio
de diferentes estratégias, pensando em que um dia ou outro Graul se cansaria da intromissão do vigilante e reuniria a coragem suficiente para atacar. Se se apresentava
a ocasião, Montolio confiava em estar preparado. De todas maneiras, não podia fazer muito no momento --não podia instalar as defesas antes de ter sabor de ciência
certa quais eram as intenções do Graul-- a espera se o fazia interminável.

Por fim, Sereia lhe informou que o drow acabava de despertar. --É hora de me pôr em marcha --disse Drizzt assim que encontrou ao vigilante. O sol se encontrava quase
atrás do horizonte. vamos averiguar o que planejam nossos pouco amistosos vizinhos. --Vê com cuidado, Drizzt --pediu-lhe Montolio, e o tom de preocupação em
sua voz comoveu ao drow. Graul pode ser um orco, mas é muito ardiloso. É possível que espere a visita de algum de nós dois. Drizzt desembainhou as cimitarras
novas e as fez girar para acostumar-se ao peso e ao equilíbrio. Depois as guardou e colocou uma mão em ao bolso, para animar-se com o roce da estatueta
de ônix. Com uma última palmada nas costas do vigilante, ficou em marcha. --Sereia estará por ali! --gritou-lhe o vigilante. E outros amigos que não conhece.
Não tem mais que gritar se as coisas ficam muito feias. O acampamento orco não resultou difícil de encontrar, porque a luz da enorme fogueira central se
divisava desde muito longe. Drizzt viu as silhuetas, incluída a de um gigante, que dançava ao redor das chamas e escutou os uivos e os latidos dos grandes
lobos: worgs, tinha-os chamado Montolio. O acampamento estava em um pequeno vale, em um claro rodeado por árvores muito altos e paredes de pedra. Drizzt podia escutar
as vozes dos orcos com bastante claridade na quietude da noite, e decidiu não aproximar-se muito. Escolheu uma das árvores, concentrou-se em uma das
ramos baixos e tentou utilizar a levitação para subir. O feitiço, tal como supunha, não funcionou. Drizzt embainhou as cimitarras e começou a subir. Havia ramos
até o mais alto da taça, entre seis e sete metros do chão. O elfo chegou até uma destas e se dispunha a encarapitar-se quando escutou uma respiração. Com
muita cautela, Drizzt apareceu a cabeça por um flanco do tronco. No lado oposto, acomodado na bifurcação de outro ramo, havia um sentinela orco com as mãos
na nuca e uma expressão aborrecida no rosto. Ao parecer, a criatura não tinha advertido a presença do silencioso drow pendurado a menos de um metro de distância.
Drizzt sujeitou o punho de uma das cimitarras, mas depois, convencido de que a estúpida criatura se encontrava muito cômoda, trocou de opinião e, sem
fazer caso do orco, dirigiu a atenção ao que ocorria no claro. A linguagem orco era similar ao dos goblins em estrutura e entonação. Entretanto, Drizzt,
que não falava muito bem o goblin, só conseguiu captar algumas palavras soltas. Por fortuna, os orcos eram muito jogo de dados às demonstrações. Dois bonecos, efígies
de um elfo escuro e um humano com bigodes, descobriram as intenções da tribo. O maior dos orcos, provavelmente o rei Graul, cuspiu e amaldiçoou a
os bonecos. Depois os soldados orcos e os worgs se alternaram para destroçá-los, no meio da gritaria dos frenéticos espectadores, um frenesi que chegou ao
delírio quando apareceu o gigante das pedras e de um tapa esmagou a efígie do drow. O espetáculo se prolongou durante muitas horas, e Drizzt pensou que
concluiria com o alvorada. Graul e outros orcos grandes se separaram da multidão e começaram a desenhar na terra, ao parecer, os planos da batalha. Drizzt
não tinha nenhuma possibilidade de aproximá-lo suficiente para escutar a conversação nem tampouco podia permanecer na árvore quando faltava tão pouco para a saída
do sol. Pensou no sentinela orco ao outro lado da árvore, que agora roncava muito forte. Os orcos pensavam atacar o lar do Montolio. Era o momento de atirar
o primeiro golpe? A consciência o traiu. Desceu da árvore e escapou do acampamento, deixando ao orco dormir tranqüilamente na bifurcação.

Montolio, com o mocho posado em um ombro, esperava a volta do Drizzt sentado em uma das pontes. --Virão por nós --disse o velho vigilante quando se
apresentou o elfo. Graul ainda tem engasgado aquele pequeno incidente no ravina do Rogee. Montolio assinalou para o oeste, em direção ao lugar onde
ele e Drizzt se encontraram. --Tem algum refúgio seguro para ocasiões como esta? --perguntou Drizzt. Acredito que os orcos virão esta mesma noite. São
quase um centenar e contam com aliados poderosos. --Escapar? --gritou Montolio. Agarrou uma soga próxima e se desprendeu para reunir-se com o drow, com Sereia enganchado
a sua jaqueta. Escapar dos orcos? Não te hei dito que os orcos são meus inimigos favoritos? Não há nada mais agradável no mundo que o som de uma espada
abrindo a barriga de um orco! --É necessário que te recorde a diferença de forças? --disse Drizzt, com um sorriso apesar da preocupação. --Teria
que dizer-lhe ao Graul! --Montolio riu. O velho orco perdeu a presilha, ou sofreu um repentino ataque de coragem, quando se dispõe a atacar em uma evidente
inferioridade numérica! --A única resposta possível do Drizzt a uma afirmação tão descarada chegou em forma de gargalhada. Arrumado um cubo de trutas frescas e
três lhes semeie de primeira a que o velho Graul não participará do ataque. Permanecerá escondo entre as árvores, retorcendo-se suas gordas mãos, e, quando acabarmos
com suas tropas, será o primeiro em pôr-se a correr. Nunca teve a coragem para brigar a pé firme, ao menos desde que se converteu em rei. tornou-se muito
comodista e suponho que tem muito que perder. Já verá quando lhe surrarmos a badana! Uma vez mais, Drizzt não soube encontrar as palavras para dar uma resposta e
não pôde deixar de rir a mandíbula batente. De todos os modos, não podia negar o entusiasmo e os ânimos que lhe tinham infundido os disparates do velho. --Agora

e descansa --recomendou-lhe Montolio, arranhando-a barba ao tempo que se voltava para estudar o entorno. Tenho que começar com os preparativos; surpreenderá-te,
prometo-lhe isso. E te chamarei quando for a hora. --Os últimos murmúrios lhe chegaram ao drow enquanto se metia entre as mantas. Sim, Sereia, esperava isto desde
faz muito tempo --disse o vigilante entusiasmado. E Drizzt lhe acreditou a pé juntillas. Tinha sido uma primavera pacífica para o Kellindil e seus parentes elfos.
Formavam
um grupo nômade, que percorria a região e se alojava onde podia, em bosques e covas. adoravam viver ao ar livre, dançar à luz das estrelas, cantar
com o acompanhamento dos rápidos nas montanhas, caçar veados e javalis nos bosques que cobriam as ladeiras. Assim que sua primo apareceu no acampamento
uma noite, já tarde, Kellindil advertiu em seu rosto o temor, uma emoção pouco freqüente neste grupo livre de preocupações. Todos outros o rodearam. --Os
orcos se preparam --anunciou o elfo. --Graul encontrou uma caravana? --perguntou Kellindil. --É muito logo para que venham os traficantes --respondeu
o primo, que pareceu desconcertado pela pergunta. --O horta! --exclamaram vários elfos ao mesmo tempo. O grupo se voltou para olhar ao Kellindil, ao que consideravam
responsável pelo drow. --Não acredito que o drow esteja aliado com o Graul --respondeu Kellindil à pergunta implícita. Com todos os exploradores que Montolio tem,
já o teria descoberto. Se

o drow é amigo do vigilante, então não é inimigo nosso. --O horta está a muitos quilômetros daqui --disse um dos pressente. Se queremos nos inteirar
pelo que prepara o rei orco, e chegar a tempo para ajudar ao vigilante, teremos que nos pôr em marcha agora mesmo. Sem uma palavra mais, os elfos recolheram
as provisões necessárias, consistentes sobre tudo em seus grandes arcos e abundantes flecha. Ao cabo de uns minutos, corriam pelos bosques e os atalhos montanhosos,
sem fazer mais ruído que uma leve brisa. Drizzt despertou a primeira hora da tarde e teve oportunidade de presenciar algo surpreendente. O céu estava encapotado,
mas mesmo assim ao drow lhe pareceu muito claro quando saiu da cova e se desperezó. por cima dele descobriu ao vigilante, que se movia entre os ramos superiores
de um pinheiro muito alto. A curiosidade do elfo se transformou em horror, quando Montolio, com um uivo selvagem, jogou-se no vazio com os braços bem abertos. Montolio
levava um arnês de cordas sujeito ao tronco magro do pinheiro. À medida que baixava o peso torcia a árvore, e, quando o vigilante aterrissou brandamente, o pinheiro
estava
dobrado quase em dois. Assim que pisou em terra, apressou-se a assegurar as cordas em umas raízes bem gordas. Enquanto se desenvolvia esta cena, Drizzt advertiu
que havia vários pinheiros mais torcidos da mesma maneira, todos apontando para o oeste e maços entre si com sogas. O drow avançou com muito cuidado para o Montolio,
e ao passar viu uma rede, várias cordas tendidas quase a ras do chão, e uma soga a que tinham sujeito uma dúzia ou mais de facas de dobro fio. Quando acionassem
a armadilha e as árvores se endireitassem, também subiria a soga, com o conseguinte perigo para qualquer criatura que estivesse perto. --Drizzt... --chamou Montolio,
ao escutar as ligeiras pegadas do amigo. Olhe bem onde põe os pés. Não queria ter que voltar a dobrar tudas estas árvores, embora admita que resulta
muito divertido. --Ao parecer tem os preparativos muito adiantados --comentou Drizzt ao chegar junto ao vigilante. --Faz muito tempo que espero a chegada deste
dia --respondeu Montolio. livrei esta batalha um centenar de vezes em minha cabeça e sei o curso que seguirá. -- agachou-se e desenhou um ovalóide no chão, que
correspondia
aproximadamente à forma do horta. Deixa que lhe ensine isso --acrescentou. Desenhou as características do terreno ao redor do horta com tanto detalhe e exatidão
que Drizzt sacudiu a cabeça e voltou a duvidar de que o vigilante fora realmente cego. O horta consistia em várias dúzias de árvores, que se estendiam do norte
ao sul ao longo de uns cinqüenta metros e em um largo de algo menos da metade. O estou acostumado a formava um pendente suave mas apreciável, de modo que o extremo
norte
ficava meio árvore mais baixo que o sul. Mais para o norte, o terreno pedregoso era quebrado, com algumas partes talheres de hierbajos e gretas bastante profundas,
cruzado por alguns atalhos retorcidos. --A força principal chegará pelo oeste --explicou Montolio assinalando além da parede de pedra e, através de um
pequeno prado, a dois grupos de matagais encaixados entre rochas e cornijas. Aquele é o único caminho que dispõem para chegar unidos. Drizzt jogou uma rápida olhada
à zona e esteve de acordo. Ao outro lado do horta, pelo este, era acidentado e irregular. Um exército que avançasse por aquela direção se encontraria com
um campo de erva alta, e depois teria que passar quase em fila a Índia entre dois penhascos imensos, com o risco de converter-se em um branco fácil para as flechas
mortais do Montolio. Para o sul, mais à frente do horta, aumentava a

pendente, um lugar perfeito para os arqueiros e lançadores, exceto pelo fato de que por cima do penhasco mais próximo se elevava uma profunda quebrada com uma parede
quase inescalable. --Não teremos nenhum problema pelo sul --comentou Montolio, como se tivesse lido os pensamentos do drow. E, se vierem pelo norte, terão
que correr colina acima para chegar até nós, e sei que Graul não o fará. Com a vantagem de sua parte, enviará a sua horda diretamente pelo oeste, com a
intenção de nos esmagar. --Desde aí as árvores --exclamou Drizzt, com admiração. A rede e a soga com as facas. --Muito ardiloso. --Montolio se felicitou a si
mesmo. Mas recorda-o: tive cinco anos para me preparar. Vêem comigo. As árvores só são o começo. Tenho umas tarefas reservadas para ti enquanto eu acabo
com as árvores. O vigilante levou ao Drizzt até outra cova secreta. No interior penduravam numerosos artefatos de ferro, que pareciam mandíbulas de animais
com cadeias muito grossas sujeitas às bases. --São armadilhas --explicou o velho. Os caçadores de peles as colocam nas montanhas. Coisas malignas. Eu as busco...
Sereia é muito hábil nas descobrir... e me levo isso. Oxalá tivesse olhos para ver a cara do caçador quando vai retirá-la ao cabo de uma semana. Esta pertenceu
ao Roddy McGristle --acrescentou Montolio, agarrando o artefato que tinha mais perto. O vigilante o colocou no chão e com muito cuidado se valeu dos pés para
abrir as mandíbulas até que engancharam. Isto teria que demorar a um orco --disse, ao tempo que, munido de um pau, começou a dar golpes até alcançar o
disparador. As mandíbulas de ferro se fecharam violentamente e com tanta força que, não só quebraram o pau, mas também o arrancaram da mão do velho, quem
deu um coice ao escutar o estalo da armadilha. --Tenho mais de uma vintena de armadilhas --comentou Montolio severo. Nunca pensei que podia as utilizar, pois são
uma coisa maligna, mas contra Graul e os seus servirão para lhes dar um castigo pelo muito mal que têm feito. Drizzt não necessitava mais instruções. Carregou
com as armadilhas até o prado ocidental, onde as colocou as dissimulando no terreno, e cravou as cadeias a vários passos de distância. Também colocou algumas
onde começava a parede de pedra, com a segurança de que os chiados dos primeiros orcos vítimas das armadilhas atrasariam a outros. Quando o elfo escuro
acabou de distribuir as armadilhas, também Montolio tinha terminado seu trabalho com as árvores; tinha dobrado e pacote mais de uma dúzia. Agora o vigilante se encontrava
na ponte de sogas que corria do norte ao sul, muito ocupado em sujeitar uma série de molas de suspensão nos suportes que davam ao oeste. Uma vez carregadas, Montolio
ou Drizzt
não tinham mais que correr pela ponte e disparar à medida que avançavam. antes de ir ajudar o, Drizzt queria preparar sua própria armadilha. Foi até a armería e
recolheu a larga e pesada lança de dois fios. Procurou uma raiz bem grossa na zona que seria seu posto de combate e cavou um pequeno buraco detrás da raiz. Apoiou
a arma na raiz, afundou o extremo da manga no buraco e o tampou tudo com folhas e ramos. No momento em que dava os últimos toques, o vigilante o chamou.
--Ainda nos falta o melhor --anunciou Montolio com um sorriso ardiloso. Levou ao Drizzt até um tronco esvaziado a fogo, e com o interior recubierto de breu para
selar qualquer greta. Uma boa canoa quando o rio está crescido e a corrente é suave. E também excelente para conter o conhaque do Adbar --acrescentou com outra
sorriso. Drizzt o olhou curioso ao não compreender seus propósitos. Montolio lhe tinha mostrado os barris de licor a semana passada, um presente que tinha recebido
por ter avisado a uma caravana do Sundabar da emboscada preparada pelo Graul, mas o elfo

escuro não entendia qual era o objetivo de jogar a bebida no tronco vazio. --O conhaque do Adbar é uma substância muito volátil --explicou Montolio. Arde com mais
força e rapidez que o melhor azeite. Agora Drizzt compreendeu. Juntos carregaram o tronco e o colocaram ao final do único passo pelo este. Esvaziaram o licor, e
a seguir o tamparam com folhas e palha seca. Ao retornar à ponte de soga, Drizzt viu que Montolio já tinha feito os preparativos correspondentes. Uma mola de suspensão
apontava ao este, com a ponta do dardo envolta em um trapo empapado de azeite. Ao lado havia isca e pederneira. --Terá que apontá-la --disse Montolio. Sem
Sereia não posso estar seguro e, até com sua ajuda, algumas vezes disparo muito alto. O sol já se ocultou atrás do horizonte, e a aguda visão noturna
do Drizzt lhe permitiu se localizar rapidamente o tronco oco. Montolio tinha construído muito bem os suportes da ponte de soga, precisamente com este propósito,
e
umas ligeiras correções bastariam para centrar o branco. Com todas as defesas principais instaladas, Drizzt e Montolio ultimaram os detalhes estratégicos.
Cada vez com mais freqüência, Sereia ou algum outro mocho aparecia com novas mensagens. Por fim receberam a confirmação: o rei Graul e seu exército partiam para
o horta. --Pode chamar o Guenhwyvar --disse Montolio. Teremo-los aqui esta noite. --Vá estupidez a sua --comentou o drow. A noite nos favorece. Você
é cego e não necessita luz e eu certamente prefiro a escuridão. O mocho voltou a ulular. --O grupo principal chegará pelo oeste --informou-lhe Montolio a
Drizzt, agradado. Já lhe havia isso dito. mais de uma cincuentena de orcos e um gigante! Sereia vigia a um grupo mais pequeno que se separou do primeiro. A menção
do gigante estremeceu ao Drizzt, mas estava disposto a enfrentar-se com o monstro, e tinha um plano preparado para isso. --O gigante é meu --anunciou o drow.
--Esperemos a ver como se desenvolve a batalha --respondeu o vigilante sem dissimular a curiosidade. Só há um gigante: você ou eu acabaremos com ele. --Quero
o gigante para mim --insistiu Drizzt com mais firmeza. Montolio não podia ver a expressão decidida no rosto do jovem nem o fogo que ardia em seus olhos lilás,
mas em troca podia captar a vontade de ferro na voz. --Mangura bok woklok --disse e sorriu, consciente de que a estranha frase tinha pilhado ao drow por surpresa.
Surripiasse bok woklok --repetiu. Traduzido literalmente significa "estúpido cabeça de alcornoque". Os gigantes das pedras odeiam a frase. Carregam como loucos
em
quanto a escutam. --Mangura bok woklok --pronunciou Drizzt, lentamente. Teria que recordá-la.

18

A batalha do horta do Mooshie

Drizzt observou que Montolio parecia bastante preocupado depois de que Sereia, que havia trazido mais notícias, voltasse a partir. --A divisão das forças de
Graul? --perguntou. --Orcos montados em worgs, só um punhado, que dão um rodeio para o este -- respondeu Montolio, muito sério. --Podemos detê-los --afirmou Drizzt,
depois de olhar além da parede de pedra, para o passo protegido pelo tronco cheio de licor. Entretanto, suas palavras não serviram para animar ao vigilante.
--Outro grupo de worgs, ao redor de uma vintena ou mais, aproxima-se pelo sul. --Drizzt não passou por cima o temor do velho quando acrescentou--: Os guia Caroak.
Nunca
pensei que chegaria a converter-se em aliado do Graul. --Um gigante? --Não, um lobo prateado --respondeu Montolio. Ao escutar a resposta, Guenhwyvar esmagou as
orelhas e grunhiu furiosa. A pantera sabe quem é --adicionou enquanto Drizzt olhava assombrado. Um lobo prateado é uma perversão da natureza, um atentado
contra as criaturas que seguem a ordem natural, e, portanto, inimigo do Guenhwyvar. --A pantera voltou a grunhir. É uma besta muito grande e muito ardilosa
para ser um lobo. Já lutei antes contra Caroak. Ele sozinho se bastaria para nos fazer passar um mau momento. Com o amparo dos worgs, e nós ocupados em
lutar contra os orcos, possivelmente poderia sair-se com a sua. Guenhwyvar grunhiu pela terceira vez e escavou o chão com suas enormes garras. --Guenhwyvar se encarregará
do Caroak --afirmou Drizzt. Montolio se aproximou da pantera e, sujeitando-a pelas orelhas, sustentou o olhar do Guenhwyvar com seus olhos cegos. --te cuide do fôlego
do lobo --disse o vigilante. É um sopro gelado que te congelará os músculos até os ossos. Vi como tombava a um gigante! -- Montolio se voltou para
Drizzt e adivinhou a expressão preocupada no rosto do drow. Guenhwyvar tem que mantê-los afastados de nós até que nos desfaçamos do Graul e os seus
--acrescentou o velho. Então poderemos fazer o necessário para nos ocupar do Caroak. Soltou as orelhas da pantera e lhe deu uma palmada bem forte no pescoço.
Guenhwyvar rugiu pela quarta vez e pôs-se a correr através do horta, como uma flecha negra apontada ao coração do mal. A força principal do Graul chegou, tal como
esperavam, pelo oeste, precedida por um vocerío infernal, e avançou em dois grupos entre os densos matagais. --Aponta ao grupo do sul! --avisou-lhe Montolio a
Drizzt, apostado na ponte de soga onde tinham as molas de suspensão preparadas. Temos amigos no outro!

Como uma confirmação às palavras do vigilante, no matagal do norte os orcos começaram a gritar, e suas vozes soavam mais a chiados de terror que a gritos
de combate. Um coro de roucos grunhidos acompanhava aos gritos. Drizzt compreendeu que Bluster, o urso, tinha ido em resposta à chamada do Montolio, e, por
os ruídos, parecia ter trazido consigo a uns quantos amigos. Drizzt não estava disposto a pôr pegas a sua boa fortuna. situou-se detrás da mola de suspensão mais
próxima
e disparou quando os primeiros orcos saíram dos matagais do sul. Correu com o passar da ponte, apertando o gatilho das molas de suspensão a seu passo. Desde sua
posição,
Montolio disparou umas quantas flechas por cima da parede. Entre tantos corpos em movimento, Drizzt não podia saber quantos disparos tinham dado no branco,
mas os dardos demoraram a carga dos orcos e dispersaram as filas. Vários caíram de bruces; uns poucos deram meia volta e retornaram por onde tinham vindo.
Mas o grosso do grupo, aos que se somaram a toda pressa alguns que saíam do outro matagal, prosseguiu a carga. Montolio disparou uma última vez, e depois
situou-se no corredor criado pelas taças dos pinheiros dobrados, onde o protegiam por três lados as paredes de madeira e as árvores. Com o arco em uma mão,
comprovou a espada e a seguir posou a outra sobre uma corda. Drizzt observou os movimentos do vigilante, situado a uns seis metros mais ao norte, e pensou
que esta poderia ser sua última oportunidade para disparar sem estorvos. Escolheu um objeto pendurado sobre a cabeça do Montolio e lançou um feitiço sobre ele. As
flechas
só tinham provocado uma certa desordem entre os orcos, mas as armadilhas resultaram muito efetivas. Primeiro um, depois outro, pisaram nas armadilhas, e seus gritos
soaram
por cima do estrépito geral. À medida que outros viam a dor dos companheiros e eram conscientes do perigo, foram demorando o passo ou detendo-se.
Enquanto aumentava a confusão no campo de batalha, Drizzt fez uma pausa e considerou cuidadosamente o último disparo. Descobriu a um orco muito grande e bem
equipado que seguia o desenvolvimento da luta protegido pelos ramos do matagal norte. O drow compreendeu que aquele era Graul, mas então sua atenção passou
à figura erguida junto ao rei orco. --Maldita seja --murmurou, ao reconhecer ao McGristle. Agora estava em um dilema e moveu a olhe da mola de suspensão de um a
outro.
Drizzt queria disparar contra Roddy, acabar com sua tortura pessoal naquele momento. Mas Roddy não era um orco, e lhe repugnava a idéia de matar a um humano. --Graul
é o objetivo principal --disse-se a si mesmo como uma maneira de resolver as dúvidas. Depressa, antes de pensar em mais desculpa, apontou e disparou. O dardo foi
cravar se
em uma árvore apenas uns centímetros por cima da cabeça do Graul. Roddy se apressou a sujeitar ao rei orco e arrastá-lo para uma parte mais protegida. Em seu
lugar apareceu um gigante com uma pedra na mão. O projétil golpeou as árvores detrás do Drizzt, e sacudiu os ramos e a ponte. Um segundo tiro fez branco
em um dos pilares, e a primeira metade da ponte se derrubou. Embora Drizzt o tinha visto vir, isto não diminuiu o assombro e o horror ante a incrível
pontaria do monstro a tanta distância. No momento em que a ponte começou a cair, Drizzt saltou da passarela e se sujeitou a um ramo. Então se viu enfrentado
a um novo problema. Pelo este chegavam os orcos montados em worgs, providos com tochas. O drow olhou para o tronco cheio de líquido inflamável, e depois
à mola de suspensão. A arma e o poste que a sujeitava seguiam em pé, mas não podia chegar até ela pela ponte quebrada.

Os líderes do grupo principal, agora detrás do Drizzt, chegaram à parede de pedra. Por sorte, o primeiro orco que saltou foi dar em uma das armadilhas e os
companheiros já não tiveram tanta pressa por segui-lo. Guenhwyvar se moveu entre as numerosas gretas que marcavam o descida para o norte. A pantera escutou os
primeiros gritos da batalha no horta, mas sua atenção se centrava nos uivos da manada de lobos. Saltou sobre uma cornija baixa e esperou. Caroak, a
enorme besta chapeada, guiava a carga. Atento só aos fatos no horta, a surpresa do lobo foi total quando a pantera aterrissou sobre seu lombo e começou
a afundar as garras e os dentes na carne. Partes de pele chapeava voaram por toda parte a conseqüência do assalto. Com um uivo de dor, Caroak se tombou
de flanco e rodou sobre si mesmo. Guenhwyvar cavalgou sobre o lobo como um lenhador sobre um tronco na água, sem interromper o ataque. Mas Caroak era um lutador
curtido, veterano de cem batalhas. Ao mesmo tempo que rodava levantou a cabeça e lançou um jorro gelado contra a pantera. Guenhwyvar se fez a um lado, para evitar
a geada e o ataque de vários worgs. A geada alcançou a roçar o focinho da pantera e lhe intumesceu a mandíbula. Então começou a perseguição; Guenhwyvar
voava sobre as rochas, e os worgs encabeçados pelo Caroak a seguiam pegos a seus talões. Ao Drizzt e Montolio lhes esgotava o tempo. por cima de tudo, o
drow sabia que devia proteger a retaguarda. Com uma perfeita sincronização de movimentos, tirou-se as botas, agarrou o pederneira em uma mão, sujeitou a parte
de aço entre os dentes e saltou a um ramo que lhe permitiria chegar até a mola de suspensão solitária. Conseguiu situar-se em cima dela. Pego de uma mão, golpeou
o pederneira com força. As faíscas saltaram perto do branco. O drow realizou vários intentos até que por fim uma faísca deu no trapo empapado de azeite e
acendeu-o. Agora Drizzt já não teve tanta sorte. moveu-se de um lado a outro mas não podia aproximar o pé para acionar o gatilho. Certamente Montolio não podia
ver nada do que ocorria embora sim tinha um conhecimento bastante exato da situação. Escutou aos worgs que se aproximavam pelo fundo do horta e compreendeu
que os que tinha em frente tinham superado a parede. Disparou outra flecha entre os ramos das árvores dobradas, como uma medida de precaução, e ululou três vezes
muito forte. Ao escutar o sinal, um grupo de mochos remontou o vôo entre os pinheiros e se lançou contra os orcos que tinham alcançado a parede de pedra. Igual a
as armadilhas, os pássaros só podiam ocasionar uns danos mínimos, mas a confusão que criavam servia para dar um pouco mais de tempo aos defensores. Até o
momento, o único lugar onde os defensores tinham vantagem era o matagal norte, onde Bluster e outros três de seus amigos ursos tinham acabado com uma dúzia de
orcos e posto em fuga a uma vintena. Um orco, em seu intento por escapar de um urso, apareceu por detrás de uma árvore e se encontrou diante do Bluster. O orco teve
a coragem suficiente para levantar a lança mas não a força necessária para cravá-la na dura pele do animal. Bluster respondeu com um tapa que fez voar
a cabeça do orco entre as árvores. Outro urso imenso passou a seu lado, com os braços pegos ao peito. O único indício de que o animal levava a um orco aprisionado
em seu abraço mortal eram os pés que apareciam por debaixo dos braços.

Bluster descobriu a outro inimigo, mais pequeno e rápido que um orco. O urso lançou um rugido e carregou inutilmente, porque a criatura desapareceu muito antes de
que
pudesse dar um par de passos. Tephanis não tinha intenção de unir-se à batalha. Tinha acompanhado ao grupo do norte só para manter-se longe da vista do Graul,
e pensava manter-se oculto nas árvores até o final do combate. Agora as árvores não pareciam um lugar seguro, por isso o trasgo pôs-se a correr para o
matagal sul. A meio caminho, derrubaram-se os planos do Tephanis. Sua grande velocidade quase o havia posto a salvo da armadilha antes de que se fechassem as mandíbulas
de ferro, mas uns dentes agudos se afundaram na junta do pé. A dor o deixou sem fôlego, e o puxão da cadeia o fez cair de bruces. Drizzt sabia
que a chama acesa na ponta do dardo delatava sua posição e portanto não se surpreendeu quando um projétil lançado pelo gigante golpeou o ramo à
que estava sujeito; acompanhada por uns rangidos indicadores de que se partiria de um momento a outro, o ramo baixou uns centímetros. O drow enganchou o pé na
mola de suspensão e apertou o gatilho antes de que a arma se desviasse muito. Depois manteve a posição e observou. A flecha incendiária voou na escuridão mais à
frente
da parede de pedra ocidental, passou entre a erva alta acompanhada por uma esteira de faíscas, e finalmente se cravou no exterior do tronco cheio de licor.
A primeira metade dos cavaleiros conseguiu cruzar a armadilha, mas os outros três não tiveram tanta sorte. As chamas alcançaram a acender o licor e a erva seca
no momento em que os worgs saltavam por cima do tronco. Convertidos em bolas de fogo, os orcos e os worgs rodaram pelo chão, com o que provocaram vários
incêndios. Os que já tinham acontecido se voltaram bruscamente ante a presença das chamas. Um dos cavaleiros orcos saiu lançado pelos ares e foi cair sobre
sua própria tocha, e os outros dois com muita dificuldade conseguiram manter-se no lombo dos animais. por cima de tudo, os worgs odiavam o fogo, e o ver como
três de sua raça se assavam vivos contribuiu muito pouco a sua moral de combate. Guenhwyvar chegou a uma pequena zona plaina dominada por um arce solitário. A pantera
subiu
com a mesma rapidez que se o tronco tivesse estado cansado. A manada de worgs apareceu um segundo depois, e os lobos começaram a dar voltas e a farejar por
todas partes, seguros de que a pantera se encontrava na árvore, embora incapazes de descobri-la entre as profundas sombras da taça. A pantera só esperava
o momento propício para reaparecer. Assim que viu o lobo prateado em posição, deixou-se cair sobre seu lombo, e esta vez se preocupou de lhe enganchar as orelhas
com
as garras. O lobo se sacudiu enlouquecido sem deixar de ladrar enquanto as garras do Guenhwyvar faziam seu trabalho. Caroak conseguiu voltar a cabeça, e a pantera
escutou como inalava com força, para descarregar o jorro gelado. Guenhwyvar flexionou os poderosos músculos do pescoço e conseguiu torcer em outra direção as
abertas fauces do lobo justo quando este soltava o fôlego, que alcançou a três worgs que iam em sua ajuda e os congelou no ato. Uma vez mais, a pantera
moveu a cabeça do Caroak para um lado e depois bruscamente para o outro e se ouviu um estalo seco quando lhe partiu o pescoço. O lobo prateado se desabou com
Guenhwyvar erguida sobre seu lombo. Os três worgs mais próximos à pantera, os três que tinham recebido totalmente o fôlego do Caroak, não representavam uma ameaça.
A gente jazia convexo, sem conseguir

levar ar aos pulmões congelados; o segundo dava voltas fechadas totalmente cego, e o terceiro permanecia imóvel, atento a suas patas dianteiras, que se
negavam a mover-se. O resto da manada, quase uns vinte, rodearam à pantera em um anel mortal. Guenhwyvar procurou uma brecha por onde escapar, mas os worgs
avançaram metodicamente para não abrir ocos. Trabalhavam em harmonia, ombro com ombro, sem deixar de fechar o círculo. Os orcos que partiam na vanguarda
formaram redemoinhos se diante dos pinheiros dobrados, em busca de um lugar por onde passar. Alguns tinham conseguido avançar entre os ramos, embora de nada ia a
servir porque as armadilhas estavam interconectadas, e qualquer da dúzia de cordas a ras do estou acostumado a podia fazer que os pinheiros se levantassem. Então
um de
os orcos teve a má sorte de descobrir a rede do Montolio. Tropeçou com uma das cordas, caiu de bruces sobre a rede e se viu elevado às alturas junto com
um de seus companheiros. Nenhum dos dois tivesse imaginado nunca que outros invejariam sua sorte, em particular o orco que foi vítima de uma das diabólicas
armadilhas, que se ativou ao endireitá-los árvores; as facas de dobro fio o agarraram totalmente e o abriram em canal. Tampouco foi melhor aos orcos que
não foram surpreendidos pelas armadilhas secundárias. Entrelaçada-las ramos estavam arrepiados de agudos espinhos, e alguns orcos suportaram um pouco agradável rodeio,
enquanto que outros acabavam cheios de arranhões e espetadas. Para piorar a sorte dos atacantes, Montolio se serve do ruído produzido pelas árvores
ao endireitar-se como sinal para disparar. Uma flecha atrás de outra voaram para os brancos, e muito poucas falharam. Um orco levantou a lança mas, antes de que
pudesse
lançá-la, recebeu uma flechada no rosto e outro no peito. que estava a seu lado deu meia volta e pôs-se a correr, sem deixar de gritar frenético: --Magia
negra! Os que cruzavam a parede de pedra pensaram que o orco voava, porque movia os pés por cima do chão. Descobriram a verdade quando caiu de bruces
e puderam ver a flecha cravada nas costas. Drizzt, ainda pendurado do ramo, não teve tempo de maravilhar-se da perfeita execução dos planos do Montolio,
pois pelo oeste avançava o gigante e, na outra direção, os dois orcos restantes montados nos worgs reatavam a carga, hasteando as tochas. O círculo
de worgs se estreitou. Guenhwyvar podia cheirar os pestilentos fôlegos. Não tinha nenhuma possibilidade de romper o cerco, ou de poder saltar por cima dele o bastante
rápido para escapar. Guenhwyvar encontrou outra rota. Afirmou as patas traseiras no cadáver ainda quente do Caroak se elevou em um salto prodigioso, de uns
seis metros ou mais de altura, que lhe permitiu alcançar os ramos mais baixas do arce com suas poderosas garras, onde se encarapitou. Então desapareceu entre a folhagem,
seguida de um coro de uivos e grunhidos da furiosa manada. Não demorou nada em reaparecer pelo outro lado e saltar outra vez ao chão. A manada pôs-se a correr
em sua perseguição. A pantera conhecia muito bem o terreno depois de ter acontecido ali várias semanas e agora sabia exatamente para onde guiar aos worgs. Correram
ao longo de um penhasco, com um profundo precipício no flanco esquerdo. Guenhwyvar seguia com muita atenção todas as marcas o que lhe ofereciam os

penhascos e as poucas árvores dispersas. Não podia ver o outro lado do abismo e tinha que confiar unicamente na memória. Com uma velocidade incrível, a pantera
trocou de rumo, saltou ao vazio, aterrissou brandamente no outro bordo e se afastou para o horta. Os worgs teriam que efetuar o mesmo salto --muito comprido
para a maioria deles-- ou efetuar um comprido rodeio se pretendiam segui-la. aproximaram-se do precipício sem deixar de grunhir. A gente chegou até o bordo com a
intenção
de saltar, mas desistiu quando uma flecha fez branco entre suas costelas. Os worgs não eram animais estúpidos e ao ver a flecha ficaram à defensiva, mas
não contavam com a chuva de flechas que dispararam Kellindil e seus parentes. Só uns poucos conseguiram escapar da matança e se esparramaram para encontrar
refugio ao amparo da escuridão. Drizzt apelou a outro truque mágico para deter os portadores de tochas. de repente o fogo fátuo, um pouco totalmente inofensivo,
apareceu por debaixo das tochas e se estendeu ao longo destas até rodear as mãos dos orcos. O fogo fátuo não queimava --nem sequer era quente--
mas ao ver que tinham as mãos envoltas em chamas, os orcos esqueceram toda conduta racional. A gente lançou a tocha com tanta violência que perdeu o equilíbrio
e foi dar com os ossos contra o chão. O worg se deteve e lançou um grunhido de frustração. O outro orco simplesmente deixou cair a tocha, que deu na
cabeça do animal. O fogo queimou a espessa capa de cabelo, as orelhas e as sobrancelhas do worg, e a besta se voltou louca. Começou a rodar pelo chão e se levou
por
diante ao cavaleiro. O orco ficou de pé, cambaleante e dolorido, e abriu os braços em sinal de desculpa. Mas o worg não estava para desculpas. Saltou sobre o
orco e lhe cravou os dentes na garganta. Drizzt não viu nada de tudo isto. O drow só podia confiar em que o truque tivesse dado resultado, porque, assim que
realizou o feitiço, apartou o pé da mola de suspensão e deixou que o ramo rota o levasse até o chão. Dois orcos, ao ver por fim um branco concreto, lançaram-se sobre
o drow logo que tocou terra, mas Drizzt empunhou no ato as cimitarras, um detalhe que os atacantes tinham passado por cima e que lhes custou a vida. Sem encontrar
muita resistência, o drow se abriu passo para o posto que tinha eleito. Um sorriso apareceu em seu rosto quando seu pé nu pisou na manga metálica da
lança. Recordava muito bem ao monstro que tinha matado à família de granjeiros no Maldobar, e o consolava saber que agora poderia acabar com outro monstro. --Surripiasse
bok woklok! --gritou Drizzt, com um pé apoiado na raiz e o outro no extremo coveiro da arma oculta. Montolio sorriu ao escutar a chamada do drow, e o
reanimou saber que tinha perto a um aliado tão poderoso. Disparou umas quantas flechas, mas pressentia que os orcos se aproximavam por detrás protegidos pelos numerosos
árvores. O vigilante esperou, fazendo de ceva de sua própria armadilha. Então, quando estavam a ponto de rodeá-lo, Montolio deixou cair o arco, empunhou a espada
e
cortou a soga que tinha a seu lado, por debaixo de um nó muito grande. O extremo talhado se perdeu nas alturas, o nó se enganchou na bifurcação do ramo mais
baixa e o escudo do Montolio, envolto no globo de escuridão que lhe tinha lançado Drizzt, baixou até ficar pendurado no ponto exato onde o esperava o braço
estendido do vigilante. A escuridão não afetava ao Montolio; em troca, para o punhado de orcos que tinham tentado surpreender ao velho, expor uma grande dificuldade.
Começaram a repartir estocadas a torto e a direito --uma das quais matou a outro companheiro-- enquanto Montolio atuava com toda precisão. Em um minuto, quatro
dos cinco atacantes estavam mortos ou agonizantes e o quinto tinha fugido.

longe de dar-se por satisfeito, o vigilante avançou, provido com seu globo de escuridão portátil, em busca de vozes ou sons que lhe permitissem encontrar mais orcos.
Soou uma vez mais a chamada do drow, e Montolio repetiu o sorriso. --Mangura bok woklok!--voltou a gritar Drizzt. Um orco lançou a lança contra o drow, e ele
desviou-a com um golpe de cimitarra. Agora o inimigo estava desarmado, mas Drizzt não o perseguiu, disposto a manter a posição. --Mangura bok woklok! Vêem
aqui, besta estúpida! --Esta vez o gigante, que partia em direção ao Montolio, escutou as palavras. Vacilou um momento, e olhou ao drow com curiosidade. Este
não desperdiçou a oportunidade. Mangura bok woklok! -- Com um uivo e um chute que fez tremer a terra, o gigante abriu um buraco na parede de pedra.
Mangura bok woklok!--repetiu o drow para maior segurança, enquanto acomodava os pés na posição correta. O gigante pôs-se a correr, e dispersou aos orcos
aterrorizados que se interpunham no caminho, ao tempo que golpeava a maça contra a pedra com um gesto de fúria. Naqueles poucos segundos amaldiçoou mil vezes
ao Drizzt, em uma língua que o drow não entendia. Três vezes mais alto que o elfo escuro e várias vezes mais pesado, pareceu que sua carga conseguiria esmagar ao
Drizzt,
que o esperava impassível. Quando o gigante se encontrava só a dois passos de distância, sem nenhuma possibilidade de frear sua investida, Drizzt apoiou todo o peso
no pé atrasado. Um extremo da lança se afundou no buraco. A ponta se levantou. Drizzt se separou de um salto no momento em que o gigante se chocou contra
a lança. A ponta e a lâmina de dobro fio provida de ganchos de ferro desapareceram no ventre do monstro, e continuaram a trajetória através do diafragma para
alojar-se nos pulmões e o coração. O haste de metal se dobrou e pareceu estar a ponto de quebrar-se, enquanto o extremo se afundava mais de um palmo no chão.
A lança agüentou, e o gigante se parou em seco. Deixou cair a maça e a pedra, e aproximou as mãos à haste, mas não tinha sequer a força suficiente para sujeitá-la.
Os olhos lhe saíram das órbitas em uma expressão de terror e surpresa. A enorme boca se contorsionó em um grito mudo, porque já não tinha ar nos pulmões.
Também Drizzt esteve a ponto de gritar, mas se conteve. --Surpreendente --murmurou, com o olhar posto no Montolio, porque o que tinha estado a ponto de gritar
era um louvor ao Mielikki. Drizzt sacudiu a cabeça e sorriu, assombrado da perspicácia do companheiro. Com estes pensamentos na mente, convencido de que
lutava pelo bem, Drizzt subiu pelo haste e descarregou as cimitarras contra a garganta do gigante. Depois se encarapitou sobre o ombro e a cabeça do monstro
e de ali saltou para um grupo de orcos que presenciavam o combate. Ver a agonia e morte de seu campeão tinha inquietado aos orcos, e agora só lhes faltou
advertir que o drow os tinha escolhido como as próximas vítimas para pôr-se a correr aterrorizados. O elfo escuro alcançou a dois atrasados, abateu-os com caminhos
estocadas, e continuou a carreira. A uns seis metros de distância, o globo de escuridão saiu das árvores, e uma dúzia de orcos retrocederam espantados. Sabiam
que entrar na zona escura significava a morte à mãos do cego. Dois orcos e três worgs, tudo o que ficava do grupo montado, reuniram-se e se escorreram
em silencio para o bordo oriental do horta. Pensavam que, se conseguiam situar-se na retaguarda do inimigo, ainda podiam ganhar a batalha. O orco que fechava
a marcha nem sequer viu a forma negra que lhe vinha

em cima. Guenhwyvar o enrolou e seguiu adiante, segura de que aquele não voltaria a levantar-se. O seguinte na coluna era um worg. Mais rápido de reflexos que
o orco, o animal se voltou para enfrentar-se à pantera, com as fauces bem abertas. Guenhwyvar respondeu com um rugido, deteve-se, e atacou com as garras.
O worg não podia superar a velocidade do felino. Lançava batidas os dentes a um lado e a outro, mas sempre muito tarde para apanhar as garras. Cinco zarpazos foram
suficientes para derrotar ao worg. Tinha perdido um olho; a língua, feita um farrapo, pendurava-lhe por um flanco da boca, e tinha a mandíbula inferior deslocada.
Só a presença de outros objetivos lhe salvou a vida, porque, quando deu meia volta e fugiu, a pantera preferiu as presas mais próximas e não se incomodou em persegui-lo.
Drizzt e Montolio tinham conseguido rechaçar a maior parte da força invasora que agora retrocedia para a parede de pedra. --Magia negra! --gritavam os
orcos desesperados. Sereia e uma legião de mochos colaboravam à desordem geral; lançavam-se em picado contra os orcos, bicavam-lhes o rosto ou lhes cravavam
as garras, e remontavam outra vez o vôo. Um dos orcos colocou o pé em uma armadilha, e seus uivos de dor aumentaram o pânico dos companheiros. --Não! --gritou
Roddy McGristle, incapaz de dar crédito a seus olhos. deixaste que aqueles dois destroçassem seu exército! --Graul dirigiu ao montanhês um olhar carregado de ódio.
Podemos conseguir que voltem! --acrescentou Roddy. Se lhe virem, voltarão para combate! O julgamento do homem não ia desencaminhado. A presença do Graul e Roddy
naquele
momento teria servido para reagrupar a cincuentena larga de guerreiros de que ainda dispunham. Com a maioria das armadilhas esgotadas, Drizzt e Montolio se
teriam encontrado em uma situação muito comprometida. Mas o rei orco tinha advertido que se expor outro problema pelo norte e, apesar dos protestos de
Roddy, decidiu que não valia a pena realizar tantos esforços para matar ao drow e ao vigilante. Os orcos que se achavam no campo de batalha tiveram notícias
da presença inimizade antes de vê-la, porque Bluster e seus amigos formavam uma turma muito ruidosa. A maior dificuldade que tiveram os ursos enquanto atravessavam
as filas orcas era escolher um branco em meio da espantada. Surravam aos orcos à medida que passavam, e os perseguiam pelo matagal até seus buracos junto
ao rio. Era primavera; o ar estava carregado de energia e entusiasmo, e aos ursos adoravam surrar aos orcos. A horda fugitiva passou à carreira junto ao
corpo do trasgo. Quando Tephanis voltou em si, descobriu que era o único vivo no campo empapado de sangue. Os uivos e os gritos dos fugitivos chegavam
pelo oeste, e no horta do vigilante continuava a batalha. Tephanis compreendeu que tinha acabado sua intervenção no combate. Sentia uma dor terrível em
a perna. Olhou o pé esmigalhado e para seu grande espanto comprovou que a única maneira de livrar-se da armadilha era completar o corte, o que significava a perda
dos cinco dedos e de parte do pé. Não era difícil --só uma parte de pele mantinha unida a ponta do pé-- e Tephanis não vacilou, temeroso de que em qualquer
momento aparecesse o drow e acabasse com ele. O trasgo afogou um grito e enfaixou a ferida com uma parte de tecido da camisa feita farrapos, e se afastou --à pata
agarre--
entre as árvores. O orco avançou em silêncio, satisfeito porque os ruídos da briga entre a pantera e um worg dissimulavam seus passos. Já não pensava em matar
ao velho nem ao drow.

Tinha visto seus companheiros perseguidos por uma panda de ursos, e agora só desejava encontrar a maneira de escapar, coisa bastante difícil no matagal dos ramos
baixas dos pinheiros. Pisou em umas folhas secas ao entrar em um claro e ficou imóvel para ouvir o rangido. Olhou à esquerda, e depois moveu lentamente a cabeça
para
a direita. de repente, deu um salto e se girou, atento a um ataque pela retaguarda. Mas não viu nada, e, exceto pelos rugidos da pantera e os latidos do
worg, reinava o silêncio. O orco soltou um suspiro de alívio e reatou a marcha. Não tinha dado mais de um passo quando, levado pelo instinto, jogou a cabeça para
atrás para olhar para cima. Havia uma silhueta escura acurrucada em um ramo, justo sobre sua cabeça, e o brilho resistente desceu sem lhe dar tempo a reagir.
A curva da cimitarra se deslizou à perfeição por debaixo do queixo para afundar-se na garganta. O orco permaneceu muito quieto com os braços abertos,
e tentou gritar sem êxito porque a lâmina o tinha degolado; depois caiu para trás, mas já estava morto antes de tocar o chão. um pouco mais à frente, um dos
orcos apanhados na rede conseguiu livrar-se e soltou ao companheiro. Furiosos e pouco dispostos a escapar sem ter participado do combate, avançaram em silêncio.
O primeiro, ao ver uma esfera negra junto a uns arbustos, voltou-se para o camarada. --Na escuridão. Dentro --disse. Levantaram as lanças ao mesmo tempo e
lançaram-nas, com um grunhido selvagem pelo esforço. As lanças desapareceram no centro do globo de escuridão e ao cabo de um instante se ouviu um ruído metálico
e algo que soou mais brando. Os gritos de vitória dos orcos foram interrompidos no ato pelos zumbidos da corda de um arco. Uma das criaturas caiu
de bruces, mas o outro agüentou de pé e pôde ver o cabo da flecha cravada em seu peito. Viveu o suficiente para ver o Montolio entrar tranqüilamente no
globo e recuperar o escudo. Drizzt também presenciou a cena e não pôde fazer outra coisa que mover a cabeça em sinal de admiração. --acabou-se --disse o elfo
explorador a outros quando se reuniram com ele entre os penhascos, ao sul do horta do Mooshie. --Não estou tão seguro --replicou Kellindil com o olhar posto
no oeste, onde ainda se escutavam os grunhidos dos ursos e os chiados dos orcos. Suspeitava que havia alguém mais além do Graul na execução
do ataque e, ao considerar-se em parte responsável pelo drow, queria averiguar quem podia ser. --O vigilante e o drow ganharam a batalha --afirmou o explorador.
--De acordo --disse Kellindil--, e sua parte terminou. Voltem todos para acampamento. --E você virá conosco? --perguntou outro dos elfos, embora já
tinha adivinhado a resposta. --Se o quiser a fortuna --respondeu Kellindil. Agora tenho que atender outros assuntos. Outros não expuseram objeções. Kellindil
só os visitava de vez em quando e nunca por muito tempo. Era um aventureiro, e seu lar era o caminho. Partiu imediatamente em perseguição dos orcos e, quando
alcançou-os, avançou paralelo a eles um pouco mais ao sul. --deixaste que aqueles dois lhe derrotassem! --protestou Roddy quando Graul e ele se tomaram um momento
de
descanso. Só eram dois!

A resposta do Graul foi um golpe de maça. Roddy conseguiu parar em parte o impacto, mas sua força o fez cambalear. --Pagará por isso! --grunhiu o montanhês,
empunhando a tocha. Uma dúzia de orcos apareceram junto a seu rei e compreenderam imediatamente a situação. --Você nos trouxeste a desgraça! --respondeu-lhe Graul
e, voltando-se para os seus, ordenou--: Matem! O cão do Roddy se encarou com os orcos mais próximos, e Roddy não esperou a que outros lhes unissem. Dando
meia volta, pôs-se a correr em meio da noite, e utilizou todos os truques que sabia para afastar-se dos perseguidores. Seus esforços tiveram êxito --em realidade
os orcos já não queriam mais briga aquela noite--, e Roddy fizesse bem em deixar de olhar por cima do ombro. Ouviu um ruído diante e se voltou a tempo
para receber em pleno rosto o pomo de uma espada. A força do golpe, multiplicada pelo impulso do homem, deixou-o inconsciente no chão. --Não me surpreende
--comentou Kellindil junto ao montanhês cansado.

19

Caminhos separados

Oito dias não tinham sido suficientes para aliviar a dor no pé do Tephanis. O trasgo caminhava o melhor que podia, mas cada vez que punha-se a correr, invariavelmente
desviava-se e freqüentemente ia chocar contra algum arbusto ou, ainda pior, contra o tronco de uma árvore. --Quer-por favor-deixar-de-me grunhir, cão-estúpido! --o
reprovou Tephanis ao sabujo amarelo que o fazia companhia desde dia seguinte à batalha. Nenhum dos dois se encontrava a gosto com o outro. Com freqüência,
o trasgo lamentava que este feio animal não se parecesse em nada ao Caroak. Caroak estava morto: Tephanis tinha encontrado o cadáver destroçado do lobo prateado.
Outro companheiro desaparecido, e agora estava sozinho outra vez. --Só-exceto-por-ti, cão-estúpido! --lamentou-se. O cão lhe ensinou os dentes e grunhiu. Tephanis
sentiu vontades de lhe fatiar a garganta, e de atravessar de cima abaixo todo o corpo do cão sarnento com sua faca. Entretanto viu que faltava pouco para a
pôr-do-sol e pensou que a besta poderia lhe ser de utilidade. --É-hora-de-ir ! --anunciou o trasgo. antes de que o cão pudesse reagir, Tephanis passou junto
a ele, agarrou a corda que lhe tinha passado pelo pescoço e a sujeitou com três voltas ao redor de uma árvore próxima. O cão tentou caçá-lo mas não pôde ir mais
lá do que dava a corda. --Em seguida-volto, estúpido! Tephanis correu pelos atalhos da montanha, consciente de que esta noite poderia ser a última oportunidade.
As luzes do Maldobar brilhavam na distância, mas o trasgo se guiava por outra luz, a de uma fogueira. Chegou ao pequeno acampamento ao cabo de uns minutos, e
alegrou-lhe ver que o elfo não estava. Encontrou ao Roddy McGristle sentado no chão com as costas apoiada no tronco de uma árvore, os braços atrás e as pulsos
atadas com uma corda. O montanhês tinha um aspecto lamentável --tão lamentável como o cão-- mas Tephanis não tinha onde escolher. Ulgulu e Kempfana estavam mortos,
igual a Caroak, e Graul, depois da derrota no horta, tinha posto preço à cabeça do trasgo. Isto só deixava ao Roddy, que não era grande coisa. Sem
embargo, Tephanis não queria ter que depender exclusivamente de si mesmo para a sobrevivência. aproximou-se, sem ser visto, à árvore. --Amanhã-estará-no Maldobar
--sussurrou ao ouvido do montanhês. Roddy ficou de uma peça ao escutar a voz gritã. Amanhã estará no Maldobar --repetiu Tephanis, muito mais devagar. --Vete
--grunhiu-lhe Roddy, convencido de que o trasgo tirava o sarro. --Teria-que-ser-mais-amável-comigo, sim, senhor! --replicou Tephanis. Elelfo-quer-te levar-ao-cárcere.
Por-atentar-contra-o-vigilante-cego.

--te cale! --ordenou-lhe McGristle, mais forte do que esperava. --Com quem falas? --perguntou Kellindil, que não estava muito longe. --Eu-la-has-jorobado, tolo!
--murmurou o trasgo. --Hei dito que te largue! --exclamou Roddy. --Se--for, sabe? Ao-cárcere! Eu-te-posso-ajudar, si-es-que-quieres-mi-ajuda!
--me desate as mãos --ordenou Roddy, que ao fim parecia compreender as intenções do trasgo. --Eu-están-desatadas --respondeu Tephanis, e Roddy comprovou que era
verdade. Fez um movimento para levantar-se mas se deteve o ver que Kellindil entrava no acampamento. --Não-te-mova --disse Tephanis. Eu-me-encarregarei-de-distrair-ao-elfo.
Tephanis já se pôs em movimento enquanto falava, por isso Roddy só escutou um murmúrio incompreensível. De todos os modos, manteve as mãos à costas
como uma precaução, ao ver que se aproximava o elfo, fortemente armado. --Nossa última noite no caminho --comentou Kellindil, deixando cair junto ao fogo o
coelho que tinha caçado para o jantar. aproximou-se do Roddy e se agachou. Enviarei recado à dama Garra de Falcão assim que cheguemos ao Maldobar --acrescentou.
Considera
ao Montolio DeBrouchee um bom amigo e lhe interessará saber os fatos ocorridos no horta. --E você o que sabe? --replicou Roddy. O vigilante também é amigo
meu! --Se for amigo do Graul, o rei orco, então não é amigo do vigilante do horta --afirmou Kellindil. Roddy ficou sem respostas, mas Tephanis lhe deu
uma. Um zumbido soou atrás do elfo, e Kellindil se voltou com a mão no punho da espada. --Que classe de criatura é você? --perguntou-lhe ao trasgo,
com um olhar de assombro. Kellindil não teve ocasião de ouvir a resposta, porque Roddy se equilibrou sobre ele e o esmagou contra o chão. O elfo era um guerreiro
veterano, mas no combate corpo a corpo não podia superar a enorme diferencia de peso do montanhês. As gordas e sujas mãos do Roddy McGristle se fecharam
ao redor do esbelto pescoço do elfo. --Tenho-a-seu-cão --disse Tephanis assim que Roddy acabou de estrangular ao elfo. Atado-a-un-árbol. --Você quem é? --inquiriu
Roddy, dissimulando a alegria por ter recuperado a liberdade e saber que seu cão estava vivo. O que quer de mim? --Sou-uma-coisa-pequena e, como-puedes-ver,
não-minto --explicou o trasgo. Eu gosto de-ter-amigos-grandes. --Bom, ganhaste-lhe isso --reconheceu Roddy, com uma gargalhada. Encontrou a tocha entre as pertences
do elfo morto. Com uma expressão séria, acrescentou--: Vamos, temos que voltar para as montanhas. Devo me ocupar de um drow. Durante um segundo, uma expressão azeda
apareceu
nas delicadas feições do Tephanis, que não tinha nenhum interesse em aproximar-se da horta do vigilante. Além do preço posto a sua cabeça pelo rei orco, sabia
que outros elfos poderiam suspeitar se viam aparecer ao Roddy sem o Kellindil. Além disso, o solo feito de pensar em ter que enfrentar-se outra vez ao elfo escuro
aumentava
grandemente a dor na cabeça e o pé do Tephanis. --Não! --exclamou o trasgo. Roddy, pouco acostumado a que o desobedecessem, olhou-o zangado. Não-é-necessário
--mentiu Tephanis. O-drowha-morto. Matou-o-um-worg. --O montanhês não pareceu muito convencido. Eu-teguié-uma vez-até-o-drow --recordou-lhe o trasgo. Roddy
levou-se uma grande desilusão, mas já não duvidava da palavra de seu pequeno amigo. Desde não ter sido pelo Tephanis, jamais teria encontrado ao Drizzt.

Agora teria estado a quase duzentos quilômetros de distância, dedicado a farejar pela cova do Morueme e esbanjando seu ouro nas mentiras do dragão. --E o que
diz-me do vigilante cego? --perguntou. --Estejam, pero-déjalo-vivir-respondeu Tephanis. É-le-han-unido-muchosamigos-peligrosos. --Guiou o olhar do Roddy
para o cadáver do Kellindil. Elfos, muitos-elfos. Roddy assentiu. Não tinha nenhuma dívida pendente com o Mooshie e não lhe interessava enfrentar-se aos parentes
do Kellindil. Enterraram ao elfo e todas as provisões que não podiam levar-se, procuraram o cão do Roddy, e aquela mesma noite puseram-se a andar para os amplos
territórios do oeste. O verão foi um período tranqüilo e produtivo no horta do Mooshie. Drizzt aprendeu todo o referente aos princípios e os métodos
dos vigilantes com muita mais facilidade do que tinha esperado Montolio. O velho lhe ensinou os nomes de tudas as árvores e arbustos da região, e o de
os animais, e também lhe ensinou a interpretar as pistáis que lhe dava Mielikki. Quando se encontrava com um animal que não conhecia, só observando os movimentos
e as ações podia deduzir seu comportamento. --Vê e lhe toque a pele --sussurrou-lhe Montolio um dia à hora do crepúsculo. O velho assinalou através do campo uma
fileira de árvores e uma cauda de cervo branca. Inclusive na penumbra, Drizzt tinha dificuldades para ver o animal, mas ao igual ao cego, pressentia sua presença.
--Deixará-me? --perguntou. Montolio se limitou a sorrir. Drizzt se deslizou pelo bordo do prado em silêncio e com muito cuidado, sem apartar-se das sombras. Escolheu
aproximar-se pelo norte, em contra do vento, mas para situar-se ao norte do cervo, tinha que rodeá-lo pelo este. Compreendeu o engano quando ainda lhe faltavam
uns vinte metros para alcançar ao animal. O cervo levantou a cabeça, farejou o ar e sacudiu a branca cauda. O drow permaneceu imóvel e esperou um bom momento
enquanto o cervo voltava a pastar. Mas a criatura estava sobre aviso e, assim que Drizzt deu outro passo, saiu disparada. Montolio, em troca, que se tinha aproximado
pelo sul, teve tempo de aplaudi-lo na garupa quando passou a seu lado. --Tinha o vento a meu favor! --protestou Drizzt, surpreso, ao ver a expressão ufana
do vigilante. --Só durante os últimos vinte metros, quando te aproximou pelo norte --explicou-lhe Montolio. Antes era melhor o oeste que o este. --Mas não
podia me situar no norte do oeste --objetou o elfo. --Não era necessário --respondeu o velho. Há um penhasco lá atrás --assinalou o sul--, que curta o vento
neste ângulo e o desvia. --Não sabia. --Tem que sabê-lo --afirmou Montolio. Aí está o truque. Tem que ter a visão do pássaro e olhar a região desde
o alto antes de escolher uma rota. --Não sei voar --replicou Drizzt, sarcástico. --Nem eu! --exclamou o vigilante. Olhe o céu. Drizzt entreabriu as pálpebras e
olhou
o céu encapotado. Distinguiu uma silhueta solitária, que planejava com as grandes asas bem abertas para aproveitar as correntes de ar. --Vejo um falcão --disse.
--Que chegou com a brisa do sul --comentou Montolio--, e depois se desviou ao

oeste ao encontrar-se com o cruzamento das correntes provocado pelo penhasco. Se tivesse observado seu vôo, poderia ter suspeitado a mudança no terreno. --Isso
é impossível --afirmou Drizzt. --É-o? --perguntou Montolio, e se afastou... para ocultar seu sorriso. Certamente o drow tinha razão: não se podia saber qual era
a
topografia do terreno a partir do vôo de um falcão. O velho se inteirou da mudança do vento graças a um mocho ao que tinha chamado assim que Drizzt
internou-se no prado, mas o jovem não tinha por que sabê-lo. Decidiu que ao drow lhe viria muito bem um repasse de seus conhecimentos. Descobrir a verdade por seus
próprios médios seria uma lição muito valiosa. --Disse-lhe isso Sereia --declarou Drizzt ao cabo de meia hora, no caminho de volta à horta. O mocho te avisou do
mudança de vento e da presença do falcão. --Parece estar muito seguro. --Assim é --disse Drizzt, com firmeza. O falcão não gritou, porque eu o teria ouvido. Você
não podia ver o pássaro e sei que tampouco escutou o ruído do vento contra suas asas, por muito que diga o contrário. O elfo sorriu ao escutar a gargalhada
do Montolio que confirmava suas deduções. --Tem-no feito muito bem --comentou o vigilante. --Não consegui tocar ao cervo --recordou-lhe Drizzt. --Essa não era a
prova
--replicou Montolio. confiaste em seus conhecimentos para rebater minhas afirmações. Está bem seguro do que aprendeste. Agora aprenderá algumas costure
mais. Deixa que te ensine alguns truques sobre como aproximar-se de um cervo. Falaram durante todo o caminho de volta à horta e até bem entrada a noite. Drizzt
escutava absorto as palavras que lhe ensinavam novas e maravilhosos secretos da natureza. Uma semana mais tarde, em outro campo, Drizzt apoiou uma mão na
garupa de uma cierva, e a outra no lombo de seu cervo. Os animais escaparam espantados ao sentir-se tocados, mas Montolio "viu" o sorriso do companheiro desde
um centenar de metros mais à frente. Ainda lhe faltavam muitas lições quando acabou o verão, mas Montolio já não dedicava tanto tempo ao ensino do drow. Drizzt
já sabia o suficiente para sair e aprender por sua conta sobre as vozes dos animais e os sinais sutis nas árvores e as novelo. Tão interessado estava
Drizzt em seus estudos que não se deu conta das profundas mudanças que ocorriam no Montolio. O vigilante se sentia muito mais velho. Apenas se podia endireitar
a espada os dias de mais frio, e as mãos se o agarrotaban. Montolio o suportava tudo em silêncio, porque sempre tinha rechaçado a autocompasión e não o preocupava
o que não demoraria para chegar. Tinha vivido muitos anos, tinha conseguido muitas coisas, e tinha desfrutado da vida muito mais que a maioria dos homens. --Quais
são seus planos? --perguntou- uma noite ao Drizzt enquanto jantavam um guisado de verduras preparado pelo drow. Pergunta-a surpreendeu ao elfo. Não tinha nenhum
plano
mais à frente do presente, e por que ia ter o, quando desfrutava de uma vida tão tranqüila e agradável como jamais tivesse imaginado? Drizzt não queria pensar em
o tema, assim que lançou uma bolacha ao Guenhwyvar para trocar de tema. A pantera se havia aficionado à cama do Drizzt, e se envolvia com as mantas até
o extremo que o drow tinha chegado a pensar que a única maneira de tirá-la dali era enviando a de retorno ao plano astral. --Quais são seus planos, Drizzt
Dou'Urdem? --insistiu o vigilante. Onde e como viverá? --Joga-me daqui? --sentiu saudades Drizzt.

--Certamente que não. --Então ficarei vivendo contigo --declarou Drizzt, muito tranqüilo. --Refiro a depois --disse Montolio, com certo embaraço. --Depois
do que? --inquiriu Drizzt, caso que Mooshie sabia algo que não lhe havia dito. A risada do Montolio se burlou de suas suspeitas. --Sou um homem velho --explicou
o vigilante--, e você é um elfo jovem. Sou maior que você, mas inclusive se fosse um bebê, você viveria mais que eu. Aonde irá Drizzt Dou'Urdem quando Montolio DeBrouchee
já não esteja? --Eu não... --gaguejou o drow, sem olhar ao velho. Ficarei aqui. --Não --disse Montolio, com voz séria. Tem muitas mais costure por diante que
isto. Esta vida não é para ti. --te valeu --respondeu Drizzt com certa brutalidade. --Durante cinco anos --respondeu Montolio, sem ofender-se. Cinco anos
depois de uma vida cheia de aventuras e emoções. --Minha vida não foi muito plácida --recordou-lhe Drizzt. --Mas você ainda é um menino --afirmou Montolio. Cinco
anos não são quão mesmo quinhentos, e quinhentos são os que lhe subtraem. me prometa que meditará sua decisão quando eu não esteja. Há um mundo inteiro que te espera,
meu amigo, cheio de dor, mas também cheio de alegria. O primeiro te ajudará a crescer, e o segundo fará mais passível a viagem. me prometa agora --acrescentou o
velho--
que, quando Mooshie já não esteja, procurará o lugar que te corresponde. Drizzt desejava discutir; queria lhe perguntar ao vigilante por que estava tão seguro de
que o
horta não era seu "lugar". Depois penso no Maldobar, na morte dos granjeiros, e nas provas que tinha passado. E também recordou seu desejo de conhecer o mundo.
Quantas pessoas como Mooshie poderia encontrar? Quantos amigos? de repente lhe ocorreu que o horta seria um lugar muito solitário para o Guenhwyvar e ele sozinhos.
Montolio aceitou o silêncio, consciente de quão difícil era para seu amigo tomar uma decisão. Por fim, decidiu-se a falar. --Ao menos me prometa que, quando chegar
o momento, pensará no que te hei dito --pediu o vigilante, e Drizzt assentiu. A primeira nevada chegou muito em breve; era só um pó branco que descarregaram as
nuvens que ocultavam a momentos a lua enche. Drizzt, que tinha saído a passear com o Guenhwyvar, desfrutava com a mudança de estação, contente com a reafirmación
do
interminável ciclo. Desde muito bom humor retornou à horta, sacudindo os ramos baixas dos pinheiros para ver como caía a neve. Na fogueira só ficavam as brasas.
Sereia permanecia imóvel sobre um ramo e inclusive o vento parecia não fazer nenhum ruído. Drizzt olhou à pantera como se lhe pedisse uma explicação, mas o
animal se instalou junto ao fogo com ar sombrio. O temor é uma emoção estranha, a culminação de umas pistas muito sutis que produzem tanto desconcerto como
medo. --Mooshie... --chamou Drizzt em voz baixa, aproximando-se do dormitório do vigilante. Apartou a cortina e a utilizou para proteger do resplendor das brasas,
enquanto acomodava os olhos à visão infravermelha. Permaneceu na entrada durante muito tempo, observando como o corpo do velho irradiava as últimas ondas
de calor. Mas se o cadáver do Mooshie estava frio, o sorriso satisfeito seguia cálida. Drizzt chorou muitas vezes durante os dias seguintes, embora, cada vez
que recordava aquele sorriso e a paz que emanava dela, compreendia que chorava seu

própria perda e não a do Mooshie. O drow enterrou ao vigilante debaixo de um montículo de pedras junto à horta, e depois passou o inverno ocupado nas tarefas
cotidianas enquanto pensava no futuro. Sereia aparecia cada vez menos, e, em uma ocasião, pelo olhar que dirigiu ao drow enquanto remontava o vôo, Drizzt
soube que não voltaria mais. Com a chegada da primavera, Drizzt chegou a compreender os sentimentos do mocho. Durante mais de uma década tinha procurado um lar e
tinha-o encontrado com o Montolio. Mas desaparecido o vigilante, o horta já não era o mesmo. Este era o lugar do Mooshie, não o do Drizzt. --Cumpro com minha promessa
--murmurou Drizzt uma manhã. Montolio lhe tinha pedido que meditasse com muito cuidado sobre o futuro depois de seu desaparecimento, e ele agora cumpria a palavra
dada.
encontrava-se a gosto no horta e ainda era aceito, mas este já não era seu lar. O seu se encontrava em outra parte, naquele mundo que Montolio lhe havia
dito que estava "cheio de dor, e também cheio de alegria". Drizzt recolheu umas quantas coisas --provisões e alguns dos livros mais interessantes do vigilante--,
sujeitou as cimitarras ao cinto e jogou o arco ao ombro. Então deu um último passeio pelo horta; contemplou as pontes de sogas, a armería, os barris
de licor e o tronco oco, a raiz da árvore onde tinha detido a carga do gigante, o lugar onde Mooshie tinha batalhado. Chamou o Guenhwyvar, e a pantera
compreendeu a situação no ato. Não voltaram a olhar atrás enquanto se afastavam pelo atalho para o mundo cheio de penúrias e alegrias.

QUINTA PARTE

Em busca de lar

Que diferente parecia o caminho quando deixei o horta do Mooshie daquele que me tinha levado até ali. Uma vez mais estava sozinho, exceto quando Guenhwyvar respondia
a minha chamada. Entretanto, neste caminho minha solidão era exclusivamente física. Na mente levava um nome, a encarnação de meus princípios. Mooshie lhe havia
dado o nome de sua deusa, Mielikki; para mim ela era uma forma de vida. Acompanhou-me ao longo de todas as estradas que percorri. Guiou-me para a segurança
e combateu meu desespero quando fui expulso e açoitado pelos pequenos da cidadela do Adbar, uma fortaleza ao nordeste do horta do Mooshie. Mielikki,
e a fé em meus valores, deu-me a coragem para me apresentar em uma cidade atrás de outra através das terras do norte. A recepção sempre era a mesma: surpresa
e temor que rapidamente se transformava em ira. Os mais generosos que encontrei se limitavam a me dizer que me fora; outros me perseguiam com as armas na mão.
Em duas ocasiões me vi forçado a brigar, embora consegui fugir sem que ninguém resultasse ferido gravemente. Não lhe dava nenhuma importância a minhas feridas e
arranhões. Mooshie
havia-me dito que não vivesse como ele, e os conselhos do velho vigilante demonstraram ser, como sempre, verdade. Durante minhas viagens pelas terras do norte, conservei
algo que nunca teria tido, de ter permanecido na solidão do horta: a esperança. Cada vez que aparecia um novo povo no horizonte, o entusiasmo animava
meus passos. Algum dia me aceitariam e encontraria meu lar. Imaginava que ocorreria de repente. Aproximaria-me de uma porta, saudaria, e então me apresentaria como
um elfo escuro. Inclusive a fantasia estava limitada pela realidade, pois sabia que a porta nunca se abriria de tudo ante minha presença. Me permitiria uma entrada
vigiada, um período de prova muito parecido ao que tinha suportado no Blingdenstone, a cidade dos svirfneblis. As suspeitas durariam meses, mas ao meu final
princípios seriam aceitos pelo que valiam; o caráter de uma pessoa valeria mais que a cor de sua pele e a reputação de sua raça. Mantive viva esta fantasia
ao longo dos anos. Cada palavra de cada encontro na cidade imaginária se converteu em uma letanía que me protegia contra os contínuos rechaços. Não haveria
sido suficiente se não tivesse tido ao Guenhwyvar, e agora tinha também ao Mielikki.
DRIZZT DOU'URDEM

20

Anos e quilômetros

A Hospedaria Camponesa do Westbridge era o ponto de reunião favorito de quão viajantes percorriam a grande estrada que se estendia entre as duas grandes cidades
norteñas de Águas Profundas e Mirabar. Além de uma boa cama a preço módico, a hospedaria contava com o botequim e o comilão do Derry, um local famoso pelas histórias
que contavam os paroquianos. Qualquer noite da semana, o visitante podia encontrar aventureiros de regiões tão distantes como Luskan e Sundabar. O lar
sempre estava bem abastecido de lenha, as taças eram abundantes, e os relatos que se escutavam eram daqueles que se repetiriam depois por todos os Reino.
Roddy manteve o capuz da imunda capa bem escura sobre a cabeça, para ocultar as cicatrizes do rosto, enquanto devorava sua ração de cordeiro e bolachas.
O velho cão amarelo permanecia sentado junto à cadeira, sem deixar de grunhir, e de vez em quando Roddy deixava cair uma parte de carne. O faminto caçador de
recompensas não levantava a cabeça do prato, mas seus olhos, injetados em sangue, não deixavam de olhar com desconfiança das sombras do capuz. Conhecia
a alguns dos rufiões pressente esta noite no local, já fora pessoalmente ou por sua reputação, e não confiava neles, assim como eles, se eram inteligentes,
não confiariam nele. Um homem alto reconheceu ao cão do Roddy quando passou junto à mesa e se deteve com a idéia de saudar o caçador de recompensas. Mas em seguida
seguiu seu caminho, ao compreender que não valia a pena fazer o esforço com alguém da índole do McGristle. Ninguém sabia o que tinha ocorrido anos atrás nas montanhas
próximas ao Maldobar, mas Roddy tinha deixado aquela região profundamente afetado, em corpo e alma. Sempre de mau gênio, McGristle não fazia mais que grunhir e resmungar
a todas as horas. Roddy mordiscou a pata de cordeiro um pouco mais, deu o osso ao cão e se limpou as gordurentas mãos na capa, apartando sem dar-se conta o
lado do capuz que ocultava as cicatrizes. apressou-se a colocá-la corretamente, e seu olhar percorreu o salão para saber se alguém o tinha advertido. Uma

expressão de desgosto haveria flanco a vida a vários homens. McGristle não estava para brincadeiras quando se tratava de suas cicatrizes. Ninguém parecia havê-lo
visto.
Todos aqueles que não tinham o nariz metido no prato, encontravam-se na barra, discutindo a todo pulmão. --Não é verdade! --grunhiu um homem. --Já te hei
dito o que vi! --respondeu outro. E não é nenhuma mentira! --Para ti! --gritou o primeiro, e um terceiro acrescentou--: Não o reconheceria embora o tivesse visto!
Vários paroquianos se amontoaram, ombro com ombro. --Silêncio! --ordenou uma voz. Um homem se separou do grupo e assinalou ao Roddy, quem, ao não reconhecer ao indivíduo,
alargou a mão para a tocha de guerra. Lhe perguntem ao McGristle! Ele conhece os elfos escuros melhor que ninguém!

Uma dúzia de conversações se iniciaram ao uníssono enquanto todo o grupo, como uma grande massa amorfa, aproximava-se do Roddy, que já tinha solto a tocha e agora
mantinha as mãos cruzadas sobre a mesa. --Você é McGristle, não é assim? --perguntou o homem com um tom muito respeitoso. --É possível --respondeu Roddy com
voz serena, desfrutando da atenção. Não o tinha rodeado tanta gente interessada em ouvir suas palavras desde dia em que tinham encontrado os cadáveres da
família Thistledown. --Ora --disse alguém do fundo. O que sabe ele de elfos escuros? O furioso olhar do Roddy ante o comentário fez retroceder um passo
aos que estavam em primeira fila, e o caçador de recompensas não passou por cima este fato. Gostava da sensação de ser importante, de ser temido e respeitado.
--O drow matou a meu cão --declarou com voz áspera. Tendeu uma mão e levantou o cão pelo cangote para mostrar a cicatriz na cabeça do animal--, e a este
deixou-o ferido gravemente. O maldito elfo escuro --acrescentou lentamente, ao tempo que apartava o capuz-- fez-me isto. Roddy quase sempre ocultava as horríveis
cicatrize,
mas as exclamações e os murmúrios dos pressente foram uma adulação para o caçador de recompensas. Voltou a cara para um lado, para que pudessem ver melhor,
e saboreou a reação tudo o que pôde. --De pele negra e cabelo branco? --perguntou um homem baixo e gordo, o mesmo que tinha dada origem à discussão na barra
com o relato sobre o elfo escuro. --Não poderia ser de outra maneira se era um elfo escuro --assegurou Roddy. O homem olhou a outros com ar de triunfador. --É
o que tentei lhes dizer --manifestou o homem. Dizem que vi um elfo sujo, ou possivelmente um orco. Mas eu sabia que era um drow! --Se tiver visto um drow--disse
Roddy muito sério e enfático, dando importância a cada palavra--, então sabe que viu a um drow. E não esquecerá que viu a um drow! Qualquer que duvide
de sua palavra, que vá e procure um drow! Já voltará a lhe pedir desculpas! --Pois eu vi a um elfo escuro --proclamou o homem. Tinha acampado no Lurkwood,
ao norte do Grunwald. Uma noite muito tranqüila, pensei, assim fiz uma grande fogueira para me proteger do vento gelado. Então apareceu esse estranho sem nenhuma
advertência, sem dizer uma palavra. --Agora todos estavam pendentes do relato, e o escutavam melhor dispostos depois da confirmação do cazarrecompensas. Sem
uma palavra ou chamada! Nada!--acrescentou o homem. Mantinha o capuz baixo, e tinha um ar suspeito, assim que lhe disse: "O que faz por aqui?". "Procuro um lugar
onde meus companheiros e eu possamos passar a noite", respondeu tão tranqüilo. me pareceu uma resposta razoável, mas não confiava naquele capuz rodeado.
"À parte então o capuz--disse eu. Não compartilho nada com um homem sem lhe ver antes a cara." Pensou em minhas palavras durante uns instantes, e então levantou
as mãos, pouco a pouco. O homem imitou o movimento com o olhar posto em outros para assegurar-se de que lhe dedicavam toda a atenção. --Não me fez falta
ver mais! --gritou o homem de repente, e os pressente, apesar de que haviam escutem o relato uns minutos antes, deram um coice. As mãos eram negras
como o carvão e magras como as de um elfo. Então soube, embora não me perguntem como, que me encontrava diante de um drow. Digo que era um drow, e que qualquer
que duvide dê minhas palavras que vá e procure um! --Ao parecer, não faço mais que escutar histórias de drows há um tempo --comentou Roddy, com um olhar de
aprovação ao homem gordo. --Eu só escutei uma --interveio outro contertulio. Quero dizer, até que falamos com você e nos inteiramos de sua batalha.
Ou seja que são dois drows em seis

anos. --Como hei dito --respondeu Roddy muito sério--, ao parecer não faço mais que... Roddy não acabou a frase porque seu publico estalou em uma gargalhada estrondosa.
Para ele era como se houvessem tornado os velhos tempos, os dias em que todos esperavam ansiosos poder escutar seus relatos. O único que não ria era o homem
gordo, muito assustado detrás reviver o encontro com o drow. --Entretanto --disse quase a gritos para fazer-se ouvir sobre o barulho-- quando penso naqueles
olhos lilás que me olhavam das sombras do capuz... O sorriso do Roddy desapareceu imediatamente ao escutar esta informação. --Olhos lilás? --exclamou Roddy
com voz afogada. Conhecia muitas criaturas que utilizavam visão infravermelha, coisa bastante freqüente nos habitantes da Antípoda Escura, e sabia que, pelo
general, seus olhos tinham o aspecto de pontos vermelhos. Ele ainda recordava claramente os olhos lilás que o tinham observado enquanto permanecia apanhado entre
as
ramos do arce. Naquele momento tinha sabido, como sabia agora, que os olhos lilás eram uma raridade incluso entre os elfos escuros. Os integrantes do grupo mais
próximos ao Roddy deixaram de rir ao acreditar que a pergunta do montanhês punha em dúvida a veracidade do relato. --Eram lilás --repetiu o homem gordo, embora sem
muita
convicção em sua voz tremente. Outros aguardaram o rechaço ou a aprovação do Roddy, para saber se deviam rir ou não do relator. --Que armas levava o
drow? --inquiriu Roddy, ao tempo que ficava de pé com uma careta feroz. --Espadas curvas --gaguejou o homem, depois de pensar um instante. --Cimitarras?
--Cimitarras --assentiu o outro. --O drow disse seu nome? --perguntou Roddy e, quando o homem vacilou, agarrou-o do pescoço e o arrastou sobre a mesa. O drow
disse seu nome? --repetiu o caçador de recompensas, lançando o fôlego diretamente ao rosto do homem. --Não... né, Driz... --"Drizzit"? --O homem encolheu
os ombros, e Roddy o voltou a pôr sobre seus pés. Onde? --rugiu o montanhês. E quando? --No Lurkwood --respondeu o homem com um tremor. Faz três
semanas. Suponho que o drow se dirigia ao Mirabar com os frades chorosos. A maioria dos pressente gemeu ao escutar o nome dos fanáticos religiosos.
Os frades chorosos eram uma banda de zaparrastrosos penitentes mendicantes que acreditavam, ou diziam acreditar, que havia uma quantidade de sofrimento finita no
mundo.
quanto mais sofriam eles, diziam os frades, menos sofrimento ficava para o resto do mundo. Quase todos desprezavam a ordem. Alguns eram sinceros, mas alguns
pediam jóias ou dinheiro, prometendo sofrer horrores pelo bem do doador. --Eles eram os acompanhantes do drow. Sempre vão ao Mirabar, em busca do frio, quando
chega o inverno. --Um caminho muito comprido --comentou alguém. --Larguísimo --disse outro. Os frades chorosos sempre escolhem o caminho do túnel. --Quinhentos
quilômetros --assinalou o homem que tinha reconhecido ao Roddy, em um intento por serenar ao caçador de recompensas. Roddy nem o escutou. Seguido pelo cão, deu meia
volta e saiu do botequim com uma portada deixando ao grupo absolutamente pasmado. Foi "Drizzit" o que matou ao cão e cortou a orelha ao Roddy --acrescentou o
homem, esta vez para os pressente. Não sabia se era o nome verdadeiro do drow; era uma hipótese apoiada na

reação do Roddy. Agora todos se reuniram a seu redor para escutar a história do Roddy McGristle e o drow dos olhos lilás. Como bom paroquiano do botequim
do Derry, a falta de dados precisos não era um obstáculo para um bom relato. Enganchou os polegares no cinturão e começou; quando não sabia uma coisa, dizia o
que soava melhor e continuava tão tranqüilamente. Da rua se podiam escutar as exclamações e os aplausos dos ouvintes, mas Roddy McGristle e o cão
amarelo, que avançavam já com a carreta pela lama da estrada, não se inteiraram. --Né, faz? --resmungou uma voz do interior de um saco, detrás
do assento do Roddy. Tephanis apareceu a cabeça. Por-qué-nos-vejamos? Roddy se girou e lhe lançou um sopapo, que Tephanis, até médio dormido, esquivou com facilidade.
--Mentiste-me, maldito trasgo! --grunhiu Roddy. Disse que o drow tinha morrido. Mas não é verdade! Vai caminho do Mirabar, e penso apanhá-lo! --Mirabar!
--gritou Tephanis. Muito-longe, muito-longe! --O trasgo e Roddy tinham passado pelo Mirabar a primavera anterior. Ao Tephanis tinha parecido um lugar
horrível, povoado de pequenos resmungões e homens de olhar duro, e para encho com um vento muito frio para seu gosto. Devemos-ir-a-pasar-elinvierno-al-sur!
É-no-sul-onde-sempre-faz-calor! --Esquecerei o que me tem feito --interrompeu-o Roddy com um olhar furioso--, se apanharmos ao drow. Voltou-lhe as costas,
e Tephanis voltou a inundar-se no saco, melancólico e perguntando-se se a companhia do Roddy McGristle se merecia tantos sacrifícios. Roddy conduziu através
da noite, agachado sobre as rédeas para urgir ao cavalo, sem deixar de repetir: --Seis anos! Drizzt se acomodou junto ao fogo, que ardia em uma velha Cuba
de mineral que tinha encontrado o grupo. Este seria o sétimo inverno do drow na superfície, mas ainda lhe incomodava o frio. Tinha passado décadas --e seu
povo tinha vivido assim durante milênios-- na atmosfera sempre cálida da Antípoda Escura. Apesar de que ainda faltavam meses para a chegada do inverno,
já se anunciava nos ventos gelados que sopravam das montanhas chamadas a Coluna do Mundo. Drizzt só levava uma velha manta, fina e rasgada, sobre
a roupa, a cota de malhas e o cinturão com as armas. O drow sorriu ao advertir a discussão dos companheiros sobre quem seria o seguinte em beber da garrafa
de vinho que lhes tinham dado, e sobre a quantidade bebida pelo último deles. Drizzt se encontrava sozinho junto à Cuba; os frades chorosos, embora não o
rechaçavam, tampouco lhe aproximavam muito. O elfo o aceitava e compreendia que os fanáticos aceitavam sua presença por razões práticas. Alguns membros da
banda chegavam a desfrutar com os ataques dos diversos monstros da região, mas os mais pragmáticos apreciavam ter a um drow bem armado e perito que
protegesse-os. A relação também era conveniente para o Drizzt, embora pouco lhe gratifiquem. Tinha deixado o horta do Mooshie esperançoso, embora era uma esperança
moderada pelas verdades de sua existência. Uma e outra vez se apresentou nos povos e o tinham rechaçado com uma barreira de insultos, desprezos e armas
desencapadas. Em cada ocasião, fazia caso omisso do rechaço. Fiel a seu espírito de vigilante --porque Drizzt era agora um vigilante, por treinamento e coração--,
aceitava seu destino com estoicismo. Entretanto, o último rechaço lhe tinha demonstrado que sua vontade começava a fraquejar. No Luskan, uma cidade na Costa de
a Espada, não tinham sido os guardas

quem o tinha rechaçado, porque nem sequer chegou a apresentar-se ante as portas. Seus próprios temores o tinham mantido afastado, e este fato o assustava
mais que qualquer arma. Na estrada que levava a cidade, Drizzt tinha encontrado ao grupo dos frades chorosos, e os emparelha o tinham aceito, em
parte porque não tinham médios para afastá-lo e também porque, em sua desgraça, não os preocupavam as diferenças raciais. Inclusive dois do grupo se lançaram
aos pés do drow, e lhe tinham rogado que descarregasse contra eles a "malignidad dos elfos escuros" e os fizesse sofrer. Ao longo da primavera e o verão,
a relação tinha evoluído, e agora Drizzt atuava de guardião silencioso enquanto os frades continuavam com as práticas de mendicidade e sofrimento. Em
conjunto, era uma situação bastante desagradável, e inclusive falsa, mas o drow não tinha encontrado nada melhor. O elfo contemplou o fogo e pensou em seu destino.
Ainda tinha ao Guenhwyvar, e em várias ocasiões tinha feito bom uso das cimitarras e o arco. Cada dia se repetia que, além de ajudar aos fanáticos até certo
ponto indefesos, também servia ao Mielikki e a seus princípios. De todas maneiras, não tinha muito respeito pelos frades e não podia considerá-los amigos. Ao observar
aos cinco homens bêbados, que discutiam entre eles, pensou que nunca o seriam. --me pegue! me açoite! --gritou de repente um dos frades, que pôs-se a correr
para a Cuba. Tropeçou com o drow, e o jovem o sustentou em pé, embora só um instante. Descarrega sua maldade drow sobre minha cabeça! --balbuciou o frade imundo
e sem barbear, e seu esquelético corpo caiu ao chão feito um novelo. Drizzt lhe voltou as costas, sacudiu a cabeça e, com um gesto inconsciente, colocou a mão
na bolsa para sentir o contato da estatueta de ônix e recordar que não estava sozinho. Sobrevivia, mantinha uma batalha interminável e solitária, mas distava
muito de estar satisfeito. Tinha encontrado um lugar, não um lar. --Como o horta sem o Montolio --murmurou o drow. Sem um lar. --Há dito algo? --perguntou
um frade gordo, o irmão Mateo, que se aproximava para recolher ao companheiro bêbado. Perdoa ao irmão Jankin, meu amigo. Acredito que bebeu muito. O sorriso
do Drizzt lhe disse que não se considerava ofendido, mas as palavras que pronunciou depois agarraram por surpresa ao irmão Mateo, o líder e o mais inteligente do
grupo... embora não o mais honrado. --Completarei com vós a viagem até o Mirabar --anunciou Drizzt--, e depois irei. --Irá? --perguntou Mateo, preocupado.
--Este não é meu lugar --respondeu Drizzt. --Dez Cidades é o lugar --exclamou Jankin. --Se alguém te ofendeu... --disse Mateo, sem fazer caso ao bêbado. --Ninguém
--respondeu Drizzt com um sorriso. Para mim há algo mais na vida, irmano Mateo. Não te zangue, rogo-lhe isso, mas me parto. Não é uma decisão tomada à
ligeira. --Como quer --repôs Mateo depois de considerar um momento a situação. Seria muito pedir que nos escoltasse através do túnel até o Mirabar? --Dez
Cidades! --insistiu Jankin. Aquele é o lugar para sofrer! Também você gostará, drow. Uma terra de renegados, onde um patife pode encontrar seu lugar...
--Freqüentemente há ladrões que se ocultam nas sombras para assaltar aos frades desarmados --interrompeu-o Mateo, ao tempo que sacudia ao Jankin. Drizzt fez uma
pausa para refletir nas palavras do Jankin, que acabava de deprimir-se, e logo se dirigiu ao Mateo. --Não é a razão pela que escolhem a rota do túnel
para entrar na cidade?

--inquiriu. O túnel estava reservado aos carros carregados de minerais, provenientes da Coluna do Mundo, mas os frades foram sempre por ali, apesar de
os riscos, para poder dar um rodeio completo à cidade antes de entrar nela. Para ser vítimas e sofrer? Sem dúvida, o caminho será menos difícil agora que
faltam meses para a chegada do inverno. Ao Drizzt não gostava do túnel do Mirabar. Todo aquele com quem se cruzasse ali descobriria sua identidade antes de que
pudesse ocultá-la. Já o tinham detido nas duas viagens anteriores. --Outros insistem em que aconteçamos o túnel, embora nos aparta muitos quilômetros de nosso
destino --respondeu Mateo, com um tom um pouco mais duro. Mas eu prefiro outras formas de sofrimento mais pessoais e apreciaria sua companhia até o Mirabar. Drizzt
teve vontades de lhe pegar quatro gritos ao frade mentiroso. Mateo considerava um suplício perder uma comida e só mantinha esta fachada porque muitas pessoas ingênuas
davam moedas aos fanáticos com batinas, embora só fora por livrar-se deles. O drow assentiu e observou como Mateo se levava ao Jankin a rastros. --Depois
irei --murmurou para si mesmo. Podia repetir-se até o cansaço que servia a sua deusa e a seu coração ao proteger aos frades desamparados, mas seu comportamento
freqüentemente contradizia o que proclamavam. --Drow! Drow! --balbuciou o irmão Jankin enquanto Mateo o arrastava para onde estavam outros.

21

Hephaestus

Tephanis observou ao grupo dos cinco frades e Drizzt, que partia lentamente para o túnel que constituía o acesso ocidental ao Mirabar. Roddy tinha enviado
ao trasgo a explorar a região, e lhe tinha dada ordem de conseguir que o drow retornasse para onde estava ele, se é que o encontrava. --Minha tocha se encarregará
de resolver este assunto --tinha manifestado o montanhês com uma palmada no aço da formidável arma. O trasgo tinha suas dúvidas. Tinha visto como o drow despachava
ao Ulgulu, um amo muitíssimo mais capitalista que Roddy McGristle, e como outra besta temível, Caroak, tinha sido destroçada pelas garras da pantera negra. Se Roddy
saía-se com a sua e plantava cara ao drow em um combate, Tephanis provavelmente teria que começar a procurar um novo amo. --Isto-vez-no, drow --sussurrou de repente
o trasgo, quando lhe ocorreu uma idéia. Isto-vez-te-atraparé! Tephanis conhecia o túnel do Mirabar --ele e Roddy o tinham utilizado fazia dois invernos, quando
a neve tinha enterrado a estrada ocidental-- e tinha aprendido muitos de seus segredos, incluído o que agora pensava usar em seu proveito. Fez um comprido rodeio
para evitar que o drow pudesse advertir sua presença, e assim e tudo chegou à entrada do túnel muito antes que outros. Ao cabo de uns minutos, o trasgo se
encontrava quase a dois quilômetros no interior do túnel, ocupado em forçar uma fechadura de aspecto formidável, embora para ele bastante primitiva, na alavanca
que permitia levantar uma grossa grade de ferro. O irmão Mateo abria a marcha para o túnel junto a outro frade, e os outros três completavam um escudo protetor
ao redor do Drizzt, que caminhava com o capuz bem ajustado e curvado de costas. Isto o tinha pedido o próprio Drizzt para poder ocultar-se dos olhares
alheias. Avançaram a bom ritmo pela passagem iluminada com tochas, sem encontrar a ninguém, até que chegaram a uma intercessão. Mateo se deteve bruscamente,
ao ver a grade levantada em um corredor à direita. Uma dúzia de passos mais à frente, via-se uma porta de ferro aberta e depois só escuridão, porque, a diferença
do túnel principal, não havia tochas. --Que estranho --comentou Mateo. --Um descuido imperdoável --disse outro. Roguemos que nenhum viajante, menos perito que
nós, equivoque o rumo e tome por ali. --Possivelmente teríamos que baixar a grade --propôs um terceiro. --Não --opôs-se Mateo. Pode haver alguém ali abaixo,
possivelmente algum mercado, ao que não gostaria de encontrar a grade baixada. --Não! --gritou de repente o irmão Jankin, e correu a situar-se à cabeça do

grupo. É um sinal! Um sinal divino! Nos chama, meus irmãos, para que nos reunamos com o Phaestus, o sofrimento final! --Jankin deu meia volta disposto
a entrar no corredor, mas Mateo e outros, acostumados aos disparates do frade, lhe jogaram em cima e o sujeitaram. Phaestus! --chiou Jankin enlouquecido.
Já vou! --A que vem tudo isto? --perguntou Drizzt, que não sabia do que falavam os frades, embora acreditava recordar a referência. Quem, ou o que é Phaestus?
--Hephaestus --corrigiu-o o irmão Mateo. Drizzt conhecia o nome. Um dos livros que tinha recolhido do horta do Mooshie tratava o tema dos dragões,
e Hephaestus, um venerável dragão vermelho que vivia nas montanhas ao noroeste do Mirabar, figurava no texto. Certamente não é o nome verdadeiro do dragão
-- acrescentou o frade entre grunhidos enquanto lutava com o Jankin. Ninguém sabe. Jankin se retorceu bruscamente. Conseguiu separar do outro frade e deu um
pisão na sandália do Mateo. --Hephaestus é um velho dragão vermelho que vive nas covas ao oeste do Mirabar há tanto tempo que nem sequer os pequenos
recordam quando chegou --explicou outro frade, o irmão Herschel, menos ocupado que Mateo. A cidade o tolera porque é ocioso e estúpido, embora eu não me atreveria
a dizer-lhe Suponho que a maioria das cidades estão dispostas a aceitar a presença de um dragão vermelho se com isso conseguem evitar uma briga. Mas Hephaestus
não é muito dado à pilhagem (ninguém recorda quando saiu por última vez de seu buraco), e de vez em quando inclusive o contratam para fundir minerais, embora a tarifa
é bastante cara. --Há quem a paga --acrescentou Mateo, que já tinha outra vez bem sujeito ao Jankin--, a finais da temporada, com a intenção de levar uma
última caravana para o sul. Não há nada como o fôlego de um dragão vermelho para fundir os metais! A gargalhada do Mateo se cortou de repente quando Jankin o tombou
ao chão de um murro. Jankin pôs-se a correr, mas a liberdade lhe durou muito pouco. antes de que outros frades pudessem reagir, Drizzt se tirou a capa e foi
depois dele; deu-lhe caça logo que passada a porta de ferro. Uma rasteira e um movimento de pulso bastaram para tombar de costas ao homem e deixá-lo sem fôlego.
--Saiamos daqui quanto antes --disse o drow, com o olhar posto no frade cansado. Estou farto das tolices do Jankin, e se insistir o deixarei que vá
a reunir-se com o dragão. Dois frades se aproximaram para fazer-se carrego do Jankin, e o grupo se dispôs a reatar a marcha. --Socorro! --gritou uma voz das
profundidades da passagem. Drizzt empunhou as cimitarras. Os frades se apinharam a seu redor e espiaram na escuridão. --Vê algo? --perguntou-lhe Mateo ao drow,
porque sabia que Drizzt dispunha de visão infravermelha. --Não, mas há uma curva um pouco mais à frente --respondeu o elfo. --Socorro! --repetiu a voz. A costas
do
grupo, oculto em uma curva do túnel principal, Tephanis teve que reprimir a gargalhada. Os trasgos eram muito bons ventríloquos, e a maior dificuldade que tinha
Tephanis na realização do engano era pronunciar com a lentidão suficiente para ser entendido. Drizzt avançou cauteloso, e os frades, preocupados com a chamada
de auxílio, seguiram-no. O drow lhes indicou que retrocedessem, ao compreender que podia tratar-se de uma armadilha. Mas Tephanis era muito rápido. A porta se
fechou com grande estrépito e, antes de que o drow, a só dois passos de distância, pudesse passar entre os frades, o trasgo já tinha acionado a fechadura. Um segundo
depois, Drizzt e os frades

escutaram o ruído da grade ao baixar. Tephanis retornou à superfície ao cabo de uns minutos, muito orgulhoso pelo que tinha feito e recordando-se a si mesmo
que devia manter uma expressão de desconcerto quando explicasse ao Roddy que não tinha dado com o paradeiro do drow. Os frades deixaram de gritar assim que
Drizzt lhes avisou que os gritos podiam despertar ao ocupante do outro extremo do túnel. --Além disso, embora alguém passasse junto à grade, não escutaria nada através
desta porta --comentou o drow enquanto inspecionava o portal à luz da vela que sustentava Mateo. A porta, construída pelos pequenos, era feita de uma
combinação de ferro, pedra e couro, e encaixava perfeitamente no marco. Drizzt deu uns quantos golpes com o pomo da cimitarra, e o ruído não chegou mais
lá do que tinham chegado os gritos. --Estamos perdidos --gemeu Mateo. Não temos maneira de sair e nossas provisões são escassas. --Outro sinal! --exclamou
de repente Jankin. Os dois frades que o vigiavam o tombaram no ato e se sentaram sobre seu corpo para impedir que pusesse-se a correr para a guarida do dragão.
--Possivelmente o irmão Jankin tenha um pouco de razão --disse Drizzt depois de uma larga pausa. --Crie que nossas provisões durarão mais se o irmão Jankin for a
reunir-se com o Hephaestus? --perguntou Mateo com um olhar de suspeita. --Não tenho a intenção de sacrificar a ninguém --afirmou Drizzt com uma gargalhada e olhando
a
Jankin, que tentava livrar-se de seus companheiros. Mas ao parecer só fica uma saída. --Se não pensar sacrificar a ninguém, então olha na direção
equivocada -- protestou o frade ao ver que Drizzt observava a passagem em trevas. Não pensará passar por onde está o dragão! --Já o veremos --respondeu Drizzt.
Acendeu outra vela com a primeira e avançou uns quantos metros. O sentido comum do drow se opunha ao inegável entusiasmo que sentia ante a perspectiva de enfrentar-se
ao Hephaestus, embora pensava que a necessidade acabaria com a discussão. Montolio tinha lutado contra um dragão, e o fogo lhe tinha queimado os olhos. Mas à parte
das feridas, as lembranças do vigilante não tinham sido tão terríveis. Drizzt começava a compreender o que o vigilante cego lhe havia dito sobre as diferenças
entre sobreviver e viver. até que ponto resultariam valiosos os quinhentos anos que tinha por diante? Pelo bem dos frades, Drizzt confiava em que aparecesse
alguém para abrir a grade e a porta. Entretanto, lhe faziam cócegas os dedos quando colocou a mão na bolsa e tirou o livro sobre dragões. Os olhos do drow
não necessitavam muita luz, e podiam ver as letras quase sem dificuldades. Tal como suspeitava, havia uma referência à venerável dragão vermelho que vivia ao oeste
de
Mirabar. O texto confirmava que Hephaestus não era seu nome verdadeiro, a não ser um que lhe tinham dado e que fazia referência a um escuro deus dos ferreiros. O
comentário
não era muito extenso. As entrevistas correspondiam a mercados que tinham contratado ao dragão por seu fôlego, e mencionava a outros que ao parecer haviam dito um
pouco equivocado
ou regateado muito o preço --ou possivelmente simplesmente o dragão tinha fome ou estava de mau humor-- e nunca mais tinham retornado. O mais importante para o Drizzt
era a confirmação do que haviam dito os frades: que o dragão era preguiçoso e um tanto estúpido. Segundo o livro, Hephaestus era muito orgulhoso,

coisa habitual entre os dragões, e sabia falar a língua comum, mas carecia da astúcia e a inteligência que normalmente se atribuíam à raça, e em especial
aos veneráveis vermelhos. --O irmão Herschel tenta abrir a fechadura --comunicou-lhe Mateo. Seus dedos são mais hábeis. Não quer tentá-lo? --Nem ele nem eu
podemos abrir essa fechadura --respondeu Drizzt com ar ausente, sem apartar o olhar do livro. --Ao menos Herschel o tenta --grunhiu Mateo--, e não se aparta
a um lado nem esbanja velas para ler um livro inútil. --Não é imprestável para quem pretende sair vivo daqui --respondeu Drizzt, atento à leitura. A resposta
despertou o interesse do frade. --Do que trata? --perguntou Mateo, inclinando-se sobre o ombro do Drizzt, embora não sabia ler. --Fala da vaidade. --A vaidade?
O que tem que ver a vaidade...? --A vaidade dos dragões --interrompeu-o Drizzt. Um pouco muito importante. Todos os dragões são muito vaidosos, os malignos
mais que os bons. --Com garras largas como espadas e um fôlego capaz de derreter as pedras, não é de sentir saudades --resmungou Mateo. --Possivelmente, mas a vaidade
é
sem dúvida um ponto débil inclusive para um dragão. Vários heróis se aproveitaram desta fraqueza para derrotá-los. --Agora pensa matar ao dragão? --exclamou Mateo.
--Se for necessário --repôs Drizzt, sem lhe fazer muito caso. Mateo elevou as mãos e se afastou, sacudindo a cabeça como única resposta aos olhares de outros
frades. Drizzt sorriu para seus adentros e voltou para enfrascarse na leitura. Os planos começavam a definir-se. Leu a referência várias vezes, até aprendê-la
de cor. Três velas mais tarde, Drizzt continuava lendo e os frades estavam cada vez mais impacientes e famintos. Aporrinharam ao Mateo, que por fim ficou
de pé, acomodou o cinturão por cima da barriga, e se aproximou do drow. --Mais vaidades? --perguntou sarcástico. --Já acabei com essa parte --respondeu Drizzt.
Levantou o livro para lhe mostrar ao Mateo o desenho de um enorme dragão negro acurrucado entre várias árvores cansadas em um pântano. Agora estudo ao dragão que
pode
ajudar a nossa causa. --Hephaestus é vermelho --comentou Mateo com desprezo--, não negro. --Este é um dragão diferente --explicou Drizzt. Mergandevinasander do
Chult,
possivelmente o visitante que falará com o Hephaestus. --Os negros e os vermelhos não se levam bem --afirmou Mateo desconcertado mas também cético. Até os parvos
sabem. --Poucas vezes faço caso dos parvos --replicou Drizzt, e uma vez mais o frade se afastou movendo a cabeça. Há algo mais que você não sabe, mas que Hephaestus
sem dúvida conhece --acrescentou Drizzt, tão baixo que ninguém mais o ouviu. Mergandevinasander tem os olhos lilás! Drizzt fechou o livro, seguro de que agora
sabia o suficiente
para fazer o intento. Se alguma vez tivesse visto antes o terrível esplendor de um venerável vermelho, agora não teria sorrido. Mas a ignorância e as memórias
do Montolio alimentaram a coragem do jovem guerreiro drow, que não tinha nada que perder. Além disso, não estava disposto a morrer de inanição; por medo a um perigo
desconhecido, embora ainda era muito logo para iniciar a aventura. Antes tinha que praticar sua melhor voz de dragão.

De todas as maravilhas que Drizzt tinha visto ao longo de sua vida aventureira, nenhuma --nem as grandes mansões do Menzoberranzan, nem a caverna dos illitas
ou o lago de ácido-- podia aspirar a comparar-se com o impressionante espetáculo da guarida do dragão. Montanhas de ouro e gemas tapizaban o chão da enorme
sala, formando ondas como a esteira de um navio enorme no mar. Armas e armaduras reluzentes se amontoavam por toda parte, e a abundância de objetos manufaturados
--cálices, copos, griales-- era suficiente para abastecer os tesouros de um centenar de reis ricos. O drow teve que fazer um esforço para voltar para a realidade.
Não eram as riquezas o que acendia sua imaginação --não lhe dava valor às posses materiais-- a não ser as aventuras que sugeriam todos aqueles objetos preciosos.
Ao contemplar a guarida do dragão, as peripécias vividas no caminho com os frades chorosos e o singelo sonho de ter um lar lhe pareceram fúteis.
Pensou uma vez mais no relato do Montolio sobre seu encontro com o dragão e em todas as outras aventuras que lhe tinha contado o vigilante cego. de repente sentiu
a necessidade de viver o mesmo tipo de proezas. O elfo queria um lar e desejava que o aceitassem, mas ao olhar os tesouros, compreendeu que também queria aparecer
nos livros dos bardos. Desejou poder viajar por estradas cheias de perigo, e escrever inclusive suas próprias histórias. A sala era imensa e irregular, com
muitos rincões cegos, e a iluminação lhe dava um resplendor dourado. O ambiente era quente, e tanto Drizzt como os frades se inquietaram ao pensar na fonte
de calor. Drizzt se voltou para os frades e lhes piscou os olhos um olho. Depois assinalou para a esquerda, em direção à única saída, e, sem emitir som algum,
moveu os lábios para dizer: "Já sabem o sinal". Mateo assentiu inquieto; ainda duvidava se tinha feito bem em confiar no drow. Drizzt tinha sido um bom aliado
na estrada, mas um dragão era um dragão. O jovem voltou a examinar a sala, esta vez olhando além dos tesouros. Entre duas pilhas de ouro viu seu objetivo,
e era tanto ou mais esplêndido que as jóias e as gemas. No oco formado pelas duas pilhas havia uma cauda enorme coberta de escamas, com o mesmo tom dourado
avermelhado da luz, que se movia lenta e brandamente de um lado a outro, aumentando a profundidade do sulco. O drow tinha visto figuras de dragões; um dos magos
da Academia incluso tinha criado imagens das diversas classes de dragões para os estudantes. em que pese a isso, nada tinha preparado ao jovem para o espetáculo
de um dragão vivo. Em todos os Reino não havia nada mais impressionante, e, de todas as variedades de dragões, os vermelhos eram os mais imponentes. Quando Drizzt
conseguiu desviar a vista da cauda, escolheu o caminho a seguir através da sala. A passagem desembocava a bastante altura em uma das paredes, mas havia
um caminho bem marcado para chegar até o chão. Drizzt o estudou durante um bom momento, até memorizar cada degrau. Depois jogou dois punhados de terra nos
bolsos, tirou uma flecha da aljaba e a dotou com um feitiço de escuridão. Com muito cuidado e em silêncio, baixou um a um os degraus, guiado pelo suave
roce da cauda contra o ouro. Esteve a ponto de cair quando tropeçou com a primeira montanha de gemas, e ouviu como a cauda se detinha. --Aventura --murmurou para
si
mesmo. Prosseguiu a marcha, concentrado na imagem mental da sala. Imaginou que o dragão se erguia ante ele, capaz de ver através do globo de escuridão. Se
encolheu instintivamente, convencido de que uma bola de fogo o abrasaria de um momento a outro. Mas seguiu adiante e, quando por fim chegou à pilha de ouro, se
alegrou de ouvir a pausada respiração do dragão, que dormitava. Drizzt começou a subir a segunda pilha passo a passo, enquanto deixava que o

feitiço de levitação surgisse em sua mente. Não tinha muita confiança em obtê-lo porque o feitiço lhe tinha falhado em todas as últimas provas, mas qualquer
ajuda era bem-vinda neste momento. Chegou na metade da pilha, pôs-se a correr e executou o feitiço, que lhe permitiu permanecer no ar durante uma fração
de segundo antes de perder efeito. Então Drizzt caiu, ao mesmo tempo que disparava o arco para lançar a flecha com o globo de escuridão ao outro lado da
sala. Jamais tivesse acreditado que um monstro tão grande pudesse ser tão ágil, mas quando caiu com todo seu peso sobre uma pilha de taças e ânforas recamadas de
pedras
preciosas, encontrou-se diante mesmo da cara de uma besta muito furiosa. Que olhos! Como raios gêmeos, seu olhar se cravou no Drizzt, atravessou-o, empurrou-o a
prosternar-se e a suplicar misericórdia, a revelar todos os enganos, e a confessar todos os pecados ao Hephaestus, o deus. O comprido pescoço do dragão se inclinou
ligeiramente a um lado, mas o olhar não se separou do drow, mantendo-o sujeito com a mesma firmeza que o abraço do Bluster, o urso. Uma voz soou fraco mas
insistente nos pensamentos do Drizzt: a voz do vigilante cego quando relatava histórias de batalhas e heroísmo. Ao princípio, o drow apenas se a ouvia: mas
a voz insistia para lhe recordar a sua maneira que cinco homens dependiam dele. Se fracassava, os frades morreriam. Esta parte do plano não foi difícil para o Drizzt,
porque acreditava sinceramente nas palavras. --Hephaestus! --gritou na língua comum. Pode ser finalmente que você seja? OH, é magnífico! Muito mais magnífico
pelo que dizem os relatos! A cabeça do dragão se apartou uma dúzia de passos, e uma expressão de desconcerto apareceu naqueles olhos sábios. --Conhece-me?
--rugiu Hephaestus, e o ardente fôlego do dragão agitou a cabeleira branca do drow com a força do vento. --Todos lhe conhecem, capitalista Hephaestus! --gritou
Drizzt, que se ajoelhou, sem atrever-se a permanecer de pé. Era a ti ao que procurava e agora que te encontro posso dizer que não me decepciona! --por que o
elfo escuro procura o Hephaestus? --perguntou o dragão com um olhar de suspeita. O destruidor do Cockleby e devorador de dez mil cabeças de gado, que esmagou Angalander,
que... Continuou o recitado durante vários minutos, e Drizzt suportou o fôlego fétido estoicamente, sem deixar de fingir uma profunda admiração pela larga
lista de maldades. Quando Hephaestus terminou, o drow teve que fazer uma pausa para recordar a pergunta inicial. Seu desconcerto serve para melhorar o engano.
--Elfo escuro? --perguntou como se não tivesse entendido a pergunta. Olhou ao dragão e repetiu as palavras, ainda com mais desconcerto. Elfo escuro? O dragão
jogou uma olhada à sala, observou as montanhas de tesouros, e se deteve um momento no globo de escuridão, quase ao outro lado do recinto. --Refiro a ti! --bramou
de repente, e a força do grito fez cair de costas ao Drizzt. Elfo escuro! --Drow? --disse Drizzt, que se recuperou no ato e esta vez sim que ficou de
pé. Não, não o sou. --olhou-se o corpo e assentiu como se de repente se visse na realidade. Sim, certamente --acrescentou. Muitas vezes esquecimento o corpo
que tenho
agora! --Hephaestus soltou um grunhido de impaciência, e o jovem compreendeu que devia atuar depressa. Não sou um drow --afirmou--, embora não demorarei para sê-lo
se Hephaestus
não pode me ajudar. --Drizzt só podia confiar em despertar a curiosidade do dragão. Estou seguro de que escutaste falar de mim, capitalista Hephaestus. Sou,
ou era... e espero voltar a sê-lo, Mergandevinasander do Chult, um velho negro de larga fama. --Mergandevin...? --Hephaestus se interrompeu em metade do nome.
Certamente, tinha-o escutado mencionar. Os dragões conheciam os nomes de quase todos outros dragões do mundo. Hephaestus também sabia, como havia

suspeitado Drizzt, que Mergandevinasander tinha os olhos lilás. Para ajudar-se na explicação, Drizzt recordou suas experiências com o Clak, o desgraçado pek que
tinha sido transformado em oseogarfio por um mago. --Um mago me derrotou --disse compungido. Um grupo de aventureiros entrou em minha guarida. Ladrões! Apanhei
a um
deles, um paladín! --Ao Hephaestus pareceu lhe gostar deste pequeno detalhe, e Drizzt se felicitou por sua criatividade. Como se derretia sua armadura chapeada
com o
ácido de meu fôlego! --Uma pena havê-lo desperdiçado --comentou Hephaestus. Os paladines são um bocado delicioso! Drizzt sorriu para ocultar a inquietação ante
o comentário. "Que gosto terá a carne de elfo escuro?", perguntou-se ao ver a boca do dragão tão perto. --Os teria matado com não ter sido por aquele maldito
feiticeiro. Foi ele quem me fez esta coisa tão terrível! Drizzt olhou seu corpo de drow com um gesto de asco. --Refere a polimorfía? --perguntou Hephaestus,
e ao Drizzt pareceu perceber um tom de compaixão na voz. --Um feitiço maligno --assentiu solene. Tirou-me a forma, as asas, o fôlego. Em meu pensamento
não deixei de ser Mergandevinasander, mas... --Hephaestus abriu os olhos ante a pausa, e o olhar de angústia e desconcerto que lhe dirigiu Drizzt fez que o dragão
apartasse-se. de repente tenho descoberto que eu gosto das aranhas -- murmurou o drow. lhes fazer mímicos, as beijar... "De maneira que este é o aspecto que
tem um dragão
enojado", pensou Drizzt quando voltou a olhar ao monstro. As moedas e as jóias tilintaram por toda a sala quando um tremor involuntário sacudiu ao dragão.
Os frades, apinhados na boca do túnel, não podiam ver o encontro, mas sim escutavam a conversação com toda claridade e compreendiam o jogo que o drow se
trazia entre mãos. Pela primeira vez desde que o conheciam, o irmão Jankin tinha emudecido, e foi Mateo o que sussurrou umas poucas palavras que expressavam o sentimento
general. --Terá que reconhecer que tem guelra! O frade gordo soltou uma risita, e se tampou a boca no ato, assustado pela possibilidade de ter falado muito
alto. --por que vieste a mim? --rugiu Hephaestus, furioso. Drizzt trastabilló, mas conseguiu manter-se em pé. --Rogo-lhe isso, capitalista Hephaestus! --suplicou
Drizzt. Não tenho escolha. Viajei ao Menzoberranzan, a cidade dos drows, mas me disseram que o feitiço era muito poderoso, que não podia fazer nada por dissipá-lo.
Assim vim a ti, grande e capitalista Hephaestus, famoso por seus conhecimentos dos feitiços de transmutação. Possivelmente alguém como eu... --Um negro? --vociferou
Hephaestus, e esta vez Drizzt rodou pelo chão. Alguém como você? --Não, não, um dragão --apressou-se a dizer o drow, retificando o aparente insulto ao tempo
que voltava a levantar-se, convencido de que em qualquer momento teria que pôr-se a correr. O grunhido do Hephaestus lhe indicou que necessitava uma distração, e
encontrou-a atrás do dragão, nos profundos rastros produzidos pelo fogo nas paredes e o fundo de um nicho retangular. Drizzt deduziu que era ali onde
Hephaestus ganhava

fortunas derretendo metais. O drow não pôde evitar um estremecimento ao pensar em quantos desafortunados mercados e aventureiros deviam ter encontrado a
morte entre aquelas paredes enegrecidas. --O que causou semelhante cataclismo? --gritou Drizzt, assombrado. Hephaestus não voltou a cabeça, atento a uma traição.
Ao cabo de um momento, entendeu a que se referia o drow e deixou de grunhir. Que deus se posou sobre ti, todo-poderoso Hephaestus, e te benzeu com semelhante
poder? Não há em nenhuma parte dos Reino uma pedra tão calcinada! Não desde que os fogos formaram o mundo...! --Já é suficiente! --trovejou Hephaestus.
Você que é tão sábio não conhece o fôlego de um vermelho? --Sem dúvida o fogo é o dom de um vermelho --replicou Drizzt, sem apartar o olhar do nicho. Mas tão
intensas podem ser as chamas? Não é possível que causem semelhante destruição! --Quer que lhe demonstre isso? --manifestou o dragão com um bufo carregado de
fumaça. --Sim! --gritou o drow. Quero dizer, não! --acrescentou, enquanto se acurrucaba em uma posição fetal. Era consciente de que caminhava sobre a corda frouxa,
mas era um risco necessário. Em realidade desejo ser testemunha da descarga, embora tema sentir seu calor. --Então observa, Mergandevinasander do Chult! Não
perca-lhe isso! A profunda inspiração do dragão arrastou ao Drizzt dois passos para diante, jogou-lhe a cabeleira contra o rosto, e quase lhe arrancou a manta de
as costas. Na montanha, detrás dele, as moedas caíram pelo pendente. O pescoço do dragão se moveu em um arco muito amplo para situar a grande cabeça vermelha
em linha com o nicho. A baforada de fogo consumiu o ar da sala; Drizzt sentiu que os pulmões lhe ardiam e lhe ardiam os olhos, tanto pelo calor como
pelo resplendor. Mesmo assim, não apartou o olhar enquanto o fogo do dragão convertia o nicho em uma terrível fogueira. O drow não passou por cima que o dragão fechava
os olhos ao tempo de cuspir o fogo. Quando acabou a exibição, Hephaestus se voltou triunfante. Drizzt, que ainda olhava o nicho e as pedras derretidas que
jorravam das paredes e o teto, não teve necessidade de fingir assombro. --Por todos os deuses! --sussurrou com voz rouca. Conseguiu olhar a expressão ufana do
dragão. Por todos os deuses! --repetiu. Mergandevinasander do Chult, que se acreditava supremo, humilha-se ante ti! --Não é para menos! --gritou Hephaestus.
Nenhum negro se pode comparar com um vermelho! Não o esqueça nunca, Mergandevinasander. É uma verdade que pode te salvar a vida se alguma vez um vermelho se apresentar
a sua porta! --Certamente! --assentiu Drizzt. Mas muito me temo que não terei porta! --Uma vez mais olhou sua forma e mostrou seu desgosto. Nenhuma outra porta
que não seja a da cidade dos elfos escuros. --Esse é seu destino, não o meu --replicou Hephaestus. Entretanto, terei piedade de ti. Deixarei-te partir vivo, embora
é mais do que te merece por ter perturbado minha sesta. Tinha chegado o momento crítico. Drizzt podia aceitar a oferta do Hephaestus. Não desejava outra coisa
que poder sair dali quanto antes. Mas seus princípios e a lembrança do Mooshie o impediam. O que aconteceria os companheiros que aguardavam no túnel? O que
aventuras mencionariam os livros de bardos? --Então me devore --disse-lhe ao dragão, embora ele mesmo não podia acreditar em suas palavras. Eu, que conheci a glória
dos dragões, não posso me contentar vivendo como um elfo escuro. --A enorme boca do Hephaestus se aproximou. Adeus a

todos os dragões! --choramingou o drow. Cada vez somos menos, enquanto os humanos se multiplicam como vermes! Adeus aos tesouros dos dragões, que serão
roubados por feiticeiros e paladines! --A forma em que pronunciou esta última palavra deteve o Hephaestus. E adeus ao Mergandevinasander --proclamou Drizzt--,
derrotado
por um feiticeiro humano cujo poder inclusive supera ao do Hephaestus, o mais capitalista dos dragões! --Supera! --vociferou Hephaestus, e toda a sala tremeu com
o poder daquele rugido. --O que devo acreditar se não? --gritou Drizzt, embora sua voz pareceu um sussurro comparada com a do dragão. É que Hephaestus não pode
ajudar
a um de sua mesma raça? Não, nego-me a acreditá-lo. O mundo inteiro não acreditará. --Drizzt assinalou com um dedo o teto da sala procurando as palavras mais adequadas.
Não precisava recordar qual era o preço do fracasso. Não. O que dirão de um extremo ao outro dos Reino é que Hephaestus não se atreveu a dissipar a magia
do feiticeiro, que o grande vermelho não se atreveu a mostrar sua debilidade ante um feitiço tão capitalista por medo de que sua debilidade pudesse convidar ao grupo
do mago
a vir ao norte para apoderar-se das riquezas de outro dragão! Ah! --acrescentou Drizzt, com os olhos exagerados. Mas acaso esta suposta debilidade não dará também
pie ao feiticeiro e a sua banda de sujos ladrões para albergar esperanças de fazer-se com semelhante bota de cano longo? E que dragão tem um tesouro maior que o
do Hephaestus,
o vermelho da rica Mirabar? O dragão não sabia o que fazer. Ao Hephaestus gostava de sua forma de vida, gostava de dormir sobre os tesouros cada vez maiores que
lhe subministravam
os mercados em troca de seus serviços. Não necessitava para nada que uma turma de heróicos aventureiros se apresentassem em sua toca. Estes eram os sentimentos
que Drizzt esperava provocar. --Amanhã! --rugiu o dragão. Hoje estudarei o feitiço e amanhã Mergandevinasander voltará a ser negro outra vez! Mas partirá
com a cauda em chamas, se se atrever a pronunciar uma só blasfêmia mais! Agora devo descansar para recordar o feitiço. Não te ocorra te mover, dragão com forma
de drow. Cheirarei-te ali aonde vá e escutarei qualquer movimento. Não tenho o sonho tão profundo como desejam os ladrões! Certamente, Drizzt não punha em dúvida
suas palavras. Mas embora as coisas tinham saído tal como esperava, agora se encontrava com outro problema. Não podia esperar um dia inteiro para reatar a conversação
com o vermelho, nem tampouco podiam esperar seus companheiros. Como reagiria o dragão quando tentasse recordar um feitiço que não existia? E o que passaria, perguntou-se
Drizzt de repente aterrorizado, se Hephaestus o transformava em um dragão negro? --É evidente --disse Drizzt-- que o fôlego de um negro tem vantagens sobre o
de um vermelho. O dragão se voltou como um raio, furioso uma vez mais. --Quer sentir meu fôlego? --bramou. Crie que suas bravatas o suportarão? --Não, não --replicou
Drizzt. Não tome como um insulto, capitalista Hephaestus. O espetáculo de seu fogo me tirou o orgulho! Mas não há por que desprezar o fôlego dos
negros! Tem algumas qualidades que superam inclusive o poder do fogo dos vermelhos! --Quais? --O ácido, sem ir mais longe, OH Hephaestus o incrível, devorador
de dez mil cabeças de gado --respondeu o drow. O ácido se adere à armadura do cavalheiro, atravessa-a para causar um tortura incomparável. --Um pouco parecido
ao metal
derretido? --perguntou o dragão vermelho, sarcástico. O metal fundido pelo fogo de um vermelho? --Temo-me que mais duradouro --repôs Drizzt, com o olhar baixo.
O fôlego

de um vermelho é só um estalo de destruição imediata, mas o do negro permanece para desespero do inimigo. --Um estalo? --grunhiu Hephaestus. Quanto
tempo pode lançar seu fôlego, pobre negro? Demoro eu mais em respirar, sei! --Mas... --começou a dizer Drizzt, assinalando o nicho. Esta vez a súbita inspiração
do dragão o arrastou uns quantos passos e quase o levantou pelos ares. O drow manteve a calma suficiente para gritar o sinal, "Fogo dos Nove Infernos!",
enquanto Hephaestus voltava a cabeça para o nicho. --O sinal! --gritou Mateo por cima do tumulto. Corram se querem salvar a vida! Corram! --Não! --replicou
o irmão Herschel aterrorizado, e outros, exceto Jankin, estiveram de acordo. --OH, que alegria poder sofrer tanto! --uivou o fanático, que se apressou
a sair do túnel. --Temos que escapar! Vai a vida nisso! --recordou-lhes Mateo, ao tempo que sujeitava ao Jankin pelo cabelo para evitar que fora na
direção equivocada. Os outros frades, ao compreender que possivelmente esta era a última oportunidade, abandonaram o túnel com tanta pressa que escorregaram pelo
pendente.
Quando ficaram de pé, começaram a dar voltas, sem saber se deviam voltar para túnel ou correr para a saída. Tentaram subir sem êxito, sobre tudo porque
Mateo ainda tratava de dominar ao Jankin e lhes impedia o passo, assim que o caminho obrigado era a saída. Desesperado-se, os frades correram através da sala.
Entretanto, nem sequer o terror impediu que cada um deles, incluído Jankin, enchesse-se os bolsos com jóias à medida que corriam. Nunca se tinha visto
nada igual! Hephaestus, com os olhos fechados, soltava chamas em um jorro interminável que desintegrava as paredes do nicho. O fogo transbordava o recinto --Drizzt
estava a ponto de deprimir-se pelo calor-- mas o furioso dragão não cedia, disposto a humilhar de uma vez para sempre a seu insolente visitante. Hephaestus espiou
uma só vez, para ver os efeitos de sua demonstração. Os dragões conheciam suas salas de tesouros melhor que qualquer outra costure no mundo, e Hephaestus não passou
por alto a imagem de cinco figuras que corriam através da sala em direção à saída. Cessou o jorro de fogo, e o dragão deu meia volta. --Ladrões!
--rugiu com uma força capaz de partir pedras. Drizzt compreendeu que tinha acabado o jogo. A enorme boca com dentes como lanças se lançou contra o drow. Drizzt
fez-se a um lado e saltou para diante porque não podia fazê-lo em nenhuma outra direção. sujeitou-se a um dos chifres do dragão, subiu para situar-se sobre a
cabeça e se aferrou com todas suas forças enquanto o monstro tentava fazê-lo voar pelos ares. O drow quis agarrar a cimitarra, mas em troca colocou a mão
no bolso e tirou um punhado de terra. Sem a menor vacilação lançou a terra contra os olhos do dragão. Hephaestus sacudiu a cabeça de cima abaixo, enlouquecido.
Ao ver que Drizzt resistia com alma e vida, o ardiloso dragão escolheu um método mais eficaz. O drow adivinhou a intenção do Hephaestus assim que a cabeça começou
a subir a grande velocidade. O teto era alto, mas não para o pescoço do dragão. Era uma queda muito larga, mas preferível a morrer esmagado, e Drizzt se deixou cair
antes de que a cabeça se estrelasse contra a pedra. O drow se levantou cambaleante no momento em que Hephaestus, pouco

afetado pelo golpe, tomava ar. Esta vez a sorte acompanhou ao drow. Uma grande parte de pedra se desprendeu do teto, foi dar contra a cabeça do dragão,
e Hephaestus deixou escapar o fôlego antes de convertê-lo em chamas. Drizzt correu por uma das montanhas de ouro e se mergulhou ao outro lado. Hephaestus rugiu raivoso
e, sem pensá-lo, soltou o resto de fôlego contra a pilha. As moedas de ouro se derreteram, e gemas enormes se quebraram por efeito do calor. A montanha tinha
uma espessura de mais de seis metros e era muito compacta, mas assim e tudo, Drizzt notou que lhe queimava as costas. Escapou da pilha, deixando atrás a capa fumegante
mesclada com ouro fundido. Com as cimitarras em alto, Drizzt se lançou contra o dragão, que retrocedia. Em uma ação tão valente como estúpida descarregou as cimitarras
com todas suas forças, mas só alcançou a dar dois golpes; depois se deteve porque não podia suportar a dor nas mãos. Era como pegar em uma parede de pedra.
Hephaestus, com a cabeça bem alta, não emprestou nenhuma atenção ao ataque. --Meu ouro! --gemeu o dragão. Então o monstro olhou para baixo, procurando o drow.
Meu ouro! --repetiu. Drizzt encolheu os ombros como desculpando-se e pôs-se a correr. Hephaestus descarregou um golpe com a cauda, que chocou contra outra montanha
de tesouros,
e uma chuva de moedas de ouro e prata e gemas preciosas se dispersou por toda a sala. --Meu ouro! --chiava o dragão enquanto derrubava as pilhas a seu passo. Drizzt,
escondido detrás de uma pilha, agarrou a estatueta de ônix e chamou à pantera. --me ajude, Guenhwyvar! --Cheiro-te, ladrão! --anunciou o dragão com uma voz de
trovão não muito longe do esconderijo do drow. Em resposta ao grito, a pantera apareceu no alto da pilha, soltou um rugido e se afastou de um salto. Drizzt, bem
acurrucado, contou cuidadosamente os passos do Hephaestus. --Farei-te pedaços a batidas os dentes, transformista! --gritou o dragão, e abriu as mandíbulas para engolir
à pantera. Mas nem sequer os dentes de um dragão podiam morder a névoa insustancial em que se converteu de repente a pantera. Drizzt se embolsou umas
quantas gemas enquanto corria para a saída, e os rugidos de raiva do dragão afogaram o ruído de seus passos. A sala era muito grande, e Drizzt não tinha chegado
ainda à saída quando Hephaestus o descobriu. Desconcertado, mas não por isso menos furioso, o dragão se lançou em sua perseguição. Ao Drizzt lhe ocorreu um
último ardil ao recordar que, segundo o livro, o dragão vermelho falava a língua dos goblins. --Quando essa estúpida besta saia detrás de mim, entrem e lhes leve
o resto! -- gritou em dito idioma. Hephaestus se deteve em seco e se voltou para olhar desconfiado o buraco do túnel que comunicava com as minas. O estúpido
dragão se enfrentava a um dilema: queria perseguir o drow mas ao mesmo tempo tinha medo de ser vítima de um roubo. Hephaestus se aproximou do túnel, colocou a cabeça
no buraco para comprovar se havia alguém no interior, e depois se apartou para pensar as coisas com mais calma. Os ladrões sem dúvida já estariam longe, pensou.
Teria que sair a céu aberto se queria apanhá-los, algo de pouco proveito nesta época do ano, a mais lucrativa. Ao final, Hephaestus resolveu o dilema de
a mesma maneira que solucionava todos os outros problemas. Jurou que se comeria ao próximo grupo de mercados que fosse a visitá-lo. Recuperado o orgulho com
esta decisão, que esqueceria assim que se fora a dormir, o dragão voltou para a sala para ordenar os tesouros e salvar o que pudesse das

pilhas que tinha fundido sem dar-se conta.

22

Caminho do lar

--Tem-nos feito passar! --gritou o irmão Herschel. Todos os frades exceto Jankin abraçaram ao Drizzt assim que este se reuniu com eles em um vale rochoso, ao
leste da entrada à guarida do dragão. Se houver uma maneira de te recompensar pelo que há...! O drow esvaziou o conteúdo de seus bolsos como única resposta,
e cinco pares de olhos ambiciosos se abriram como pratos ao ver as jóias de ouro e pedras que resplandeciam à luz de sol. Uma gema em particular, um rubi grande
como um ovo de galinha, prometia riquezas para toda a vida. --Para vós --explicou Drizzt. Todas. Não necessito tesouros. Os frades se olharam contritos,
embora nenhum estava disposto a mostrar o bota de cano longo oculto em seus próprios bolsos. --Possivelmente teria que guardar um pouco --sugeriu Mateo--, se ainda
pensa em
partir. --Assim é --respondeu o elfo. --Não pode ficar aqui--assinalou Mateo. Aonde pensa ir? Drizzt ainda não tinha pensado em um ponto do destino. Só
sabia que seu lugar não era com os frades chorosos. Meditou durante uns momentos, recordando os muitos becos sem saída que tinha percorrido. de repente teve
uma idéia. --Você mencionou o lugar --disse ao Jankin. Você me disse o nome do lugar uma semana antes de entrar no túnel. --Jankin o olhou com curiosidade,
sem recordar o bate-papo. Dez Cidades--acrescentou Drizzt. Terra de renegados, onde um patife pode encontrar seu lugar. --Dez Cidades? --protestou Mateo. Espero
que repense, amigo. O vale do Vento Gelado não é um lugar muito prazenteiro, e não acredito que os assassinos de Dez Cidades lhe vão receber com os braços abertos.
--O vento não cessa nunca --acrescentou Jankin com um olhar nostálgico em seus negros olhos afundados nas órbitas. Sempre carregado de areia e muito frio. Acompanharei-te.
--E os monstros! --acrescentou outro, ao tempo que dava um cabeçada ao Jankin. Yetis da tundra, leões brancos, e bárbaros ferozes! Não, eu não iria a Dez
Cidades nem que me perseguisse o muito mesmo Hephaestus! --Coisa que o dragão bem poderia fazer --replicou Herschel, com um olhar inquieto para a cova não tão
distante. Há várias granjas nos arredores. Possivelmente nos deixem acontecer a noite em alguma delas e retornar ao túnel amanhã. --Eu não vou--repetiu Drizzt.
Hão
dito que Dez Cidades é um lugar pouco acolhedor, mas me receberiam melhor no Mirabar? --Passaremos a noite em alguma granja --interveio Mateo, que tinha trocado
de opinião. Compraremo-lhe um cavalo, e as provisões necessárias. Não quero que vá --acrescentou--, embora reconheça que Dez Cidades é uma boa escolha...
--

Olhou ao Jankin. Para um drow. Muitos encontraram ali um lugar. Em realidade é um lar para aquele que não tem nenhum. --Como chego até ali? --perguntou
Drizzt, que compreendeu a sinceridade na voz do frade e apreciou sua generosidade. --Segue as montanhas --respondeu Mateo. Mantinha sempre a sua direita. Quando
rodeie a cordilheira, terá entrado no vale do Vento Gelado. Um pico solitário marca a planície que se estende ao norte da Coluna do Mundo. As cidades
levantam-se seu redor. Oxalá todas respondam a suas esperanças! Dito isto, os frades se prepararam para a marcha. Drizzt cruzou as mãos detrás da nuca
e se apoiou contra a parede do vale. Sabia que era a hora de separar-se dos frades, mas não podia negar a sensação de culpa e de solidão que isto lhe produzia.
As pequenas riquezas que tinham pego na cova do dragão trocariam a vida de seus companheiros, serviriam para lhes procurar cubro e atender a suas necessidades.
Em seu caso, em troca, não podiam derrubar as barreiras às que ele se enfrentava. Dez Cidades, a terra que Jankin tinha mencionado como uma casa para os
desamparados, um ponto de reunião para aqueles que não tinham aonde ir, reanimou um pouco as esperanças do drow. Quantas vezes o destino se tornou em seu
contra? A quantas comporta se aproximou cheio de ilusão só para ser rechaçado a ponta de lança? Esta vez seria diferente, pensou Drizzt; porque, se não podia
encontrar um lugar na terra dos renegados, o que outro sítio ficava para ele? Para o drow, que tinha passado tanto tempo escapando da tragédia, a culpa
e os prejuízos que não podia evitar, não era grato contar só com a esperança. Aquela noite Drizzt acampou em um bosquecillo enquanto os frades foram ao povoado.
Retornaram à manhã seguinte com um cavalo magnífico, mas com um menos no grupo. --Onde está Jankin? --perguntou Drizzt, preocupado. --Pacote em um celeiro
--respondeu Mateo. Ontem à noite tentou escapar para ir A... --Reunir-se com o Hephaestus --acabou o drow por ele. --Se quando voltarmos ainda insiste, possivelmente
o deixemos
ir --acrescentou Herschel aborrecido. --Aqui tem seu cavalo --disse Mateo--, se é que a noite não te tem feito trocar de opinião. --E este casaco é para ti --manifestou
Herschel, lhe tendendo ao Drizzt uma formosa capa forrada de pele. O drow sabia que este era um ato de generosidade inusitado por parte dos frades, e a ponto
esteve de trocar sua decisão. Entretanto, não podia esquecer as outras necessidades que este grupo não lhe permitia satisfazer. Para demonstrar que não havia volta
atrás,
o drow se aproximou do animal disposto a montá-lo. Drizzt tinha visto uma vez um cavalo, mas nunca desde tão perto. Surpreendeu-o a fortaleza da besta, o
movimento dos músculos do cangote, e sobre tudo a altura do lombo. Olhou ao animal aos olhos durante uns instantes para lhe comunicar suas intenções. Então,
para surpresa de todos, inclusive a do drow, o cavalo se agachou para permitir que Drizzt se acomodasse sem esforços na arreios. --Vejo que sabe tratar aos
cavalos --comentou Mateo. Não havia dito nunca que foi um cavaleiro perito. Drizzt se limitou a assentir e fez todo o possível para manter-se na cadeira quando
o cavalo pôs-se a trotar. Levou-lhe um bom momento descobrir o modo de controlar à besta e já tinha percorrido uma ampla curva para o este --a direção equivocada--
antes de conseguir dar a volta. Durante a cavalgada, Drizzt tentou não passar vergonha, e os frades, que tampouco entendiam muito, sorriram satisfeitos ao

ver suas evoluções. Horas mais tarde, Drizzt partia ao galope para o oeste, sem apartar do bordo sul da Coluna do Mundo. --Os frades chorosos --sussurrou
Roddy McGristle, que espiava ao grupo do alto de um montículo enquanto os frades se dirigiam outra vez para o túnel do Mirabar. --O que? --exclamou Tephanis,
que se apressou a sair de seu saco para unir-se ao Roddy. Pela primeira vez em sua vida, a velocidade do trasgo foi uma desvantagem. Sem dar-se conta do que dizia,
acrescentou--: Não-pode-ser! O-dragão... --O furioso olhar do montanhês caiu sobre o Tephanis como a sombra de uma nuvem de tormenta. Quierodecir, supunha... --gaguejou
o trasgo, mas compreendeu que Roddy, que conhecia o túnel melhor que ele e também estava informado de sua habilidade com as fechaduras, tinha adivinhado seu estratagema.
--Te ocorreu que podia matar ao drow --disse Roddy, com calma. --Por favor, mi-amo --replicou Tephanis. Não-tinha-intenção... Tinha-miedopor-ti. O-drow-é-um-demônio!
Os-envié-al-túnel-del-dragón. Pensei-que-tú... --Esquece-o --grunhiu Roddy. Fez o que acreditava melhor, e nada mais. Agora volta para seu saco. Possivelmente
possamos arrumar
o que tem feito, se o drow não estiver morto. --Tephanis assentiu, mais tranqüilo, e se meteu no saco. Roddy o recolheu e chamou o cão. Conseguirei que os frades
falem --prometeu--, mas primeiro... Roddy levantou o tirou e o estrelou contra a rocha. --Amo! --gritou o trasgo. --Maldito ladrão de elfos...! --chiou Roddy
sem deixar de golpear o saco contra a pedra. Tephanis resistiu os primeiros golpes, e inclusive chegou a cortar o tecido com a adaga. Mas logo o saco se obscureceu
com a umidade do sangue, e acabou a resistência do trasgo. Maldito mutante ladrão de elfos --murmurou Roddy, lançando o saco. Vêem, cão. Se o drow estiver
vivo, os frades saberão onde encontrá-lo. Os frades chorosos pertenciam a uma ordem dedicada ao sofrimento e um par deles, em especial Jankin, haviam
sofrido muito em suas vidas. Mesmo assim, nenhum tinha imaginado a crueldade de que era capaz Roddy McGristle, e, antes de uma hora, Roddy partia para o oeste sem
apartar do bordo sul da cordilheira. O frio vento do este zumbia em seus ouvidos como uma canção interminável. Drizzt o escutava desde que tinha rodeado
o extremo oeste da Coluna do Mundo, para dirigir-se primeiro para o norte e depois ao este, pela extensa e árida planície que levava o nome do vento:
o vale do Vento Gelado. Aceitava o lamento e a dentada gelada do vento, porque eram um símbolo de liberdade. Quando rodeou a cordilheira encontrou outro símbolo:
o mar aberto. Tinha visitado a costa em uma ocasião anterior, durante a viagem ao Luskan, e agora queria fazer uma pausa e percorrer os poucos quilômetros que havia
até a praia. Mas o vento frio lhe recordou que estava às portas do inverno, e compreendeu as dificuldades que encontraria se percorria o vale depois
das primeiras nevadas. O primeiro dia depois de entrar no vale divisou a cúpula do Kelvin, a montanha que se erguia solitária na tundra, ao norte da
grande cordilheira. dirigiu-se para ali ao galope; para ele era o sinal que lhe indicava a terra onde teria seu lar. Seu coração transbordava de entusiasma cada
vez
que olhava o pico. Adiantou a vários grupos pequenos, carretas solitárias ou um punhado de homens a cavalo, enquanto se aproximava da região de Dez Cidades
pelo sudoeste, a rota das caravanas. O sol estava no ocaso, e Drizzt mantinha bem apertada o capuz de

sua capa nova, para ocultar a pele negra. Saudou com um movimento de cabeça a cada viajante que adiantou. Três lagos dominavam a região, junto com a cúpula de
Kelvin, que se elevava até os trezentos e cinqüenta metros de altura por cima da planície; havia neve no topo incluso no verão. Das dez cidades
que davam seu nome à zona, só a principal, Bryn Shander, encontrava-se separada dos lagos. Tinham-na construído sobre uma. colina, e agora sua bandeira ondeava
orgulhosa no vento. A rota das caravanas, a rota do Drizzt, conduzia a esta cidade, que temia o mercado mais importante. Drizzt podia ver pelas colunas
de fumaça que havia outras comunidades a poucos quilômetros da cidade. Por um momento pensou se devia dirigir-se aos povos mais pequenos em lugar de ir diretamente
à cidade. --Não --exclamou em voz alta. Colocou a mão na bolsa para tocar a estatueta de ônix, taloneó ao cavalo e cavalgou colina acima. --Mercado? --o
perguntou um dos dois guardas que se aborreciam diante do portão de ferro. É um pouco tarde para dever fazer negócios. --Não sou mercado --respondeu Drizzt,
bastante nervoso agora que tinha chegado o momento decisivo. Levou as mãos ao capuz, tentando dissimular o tremor. --Então, de que cidade? --perguntou
o outro guarda. Drizzt baixou as mãos, surpreso pela pergunta. --Do Mirabar --respondeu sinceramente, e então, antes de deter-se si mesmo e de que os
guardas o distraíram com alguma outra pergunta, apartou o capuz. Os guardas, boquiabertos, aproximaram as mãos às espadas. Não --exclamou Drizzt, com um
cansaço na voz e a postura que os guardas não compreendiam. Não, por favor. Já não ficavam forças para sustentar batalhas motivadas por mal-entendidos.
Contra uma horda de goblins ou um gigante não vacilava em empunhar as cimitarras; mas frente a alguém que só brigava por uma falta de entendimento, as armas
pesavam-lhe nas mãos. --vim a Dez Cidades procedente do Mirabar com a intenção de residir em paz. Manteve as mãos bem se separadas do corpo, sem expor
nenhuma ameaça. Os guardas não sabiam o que fazer. Nenhum tinha visto nunca a um elfo escuro --embora não duvidavam que Drizzt o era-- nem sabia algo mais que as
histórias
sobre a antiga guerra que tinha dividido para sempre ao povo elfo. --Espera aqui --sussurrou-lhe um dos guardas a seu companheiro, ao que não pareceu lhe gostar
de
a ordem. irei informar ao porta-voz Cassius. Golpeou o portão de ferro e se deslizou ao interior assim que abriram o suficiente para que pudesse passar. O outro
guarda manteve o olhar fixo no Drizzt, sem apartar a mão da espada. --Se me matas, um centenar de molas de suspensão lhe acribillarán --declarou o homem, em um intento
fracassado de simular confiança. --por que ia fazer o? --replicou Drizzt, sem mover as mãos. até agora o encontro tinha ido bastante bem. Em todos outros
povos nos que se apresentou, os primeiros em vê-lo tinham fugido dominados pelo terror ou o tinham jogado com as armas na mão. O outro guarda retornou
ao cabo de uns minutos acompanhado por um homem baixo e magro, bem barbeado e com brilhantes olhos azuis de olhar penetrante, que não perdiam detalhe. Vestia
objetos de qualidade e, pelo respeito que lhe demonstravam os guardas, Drizzt compreendeu que se tratava de alguém muito importante. O homem

observou ao Drizzt durante um bom momento. --Sou Cassius --declarou por fim--, porta-voz do Bryn Shander e do conselho regente de Dez Cidades. --Sou Drizzt Dou'Urdem
--respondeu Drizzt com uma ligeira reverência--, do Mirabar e outras cidades mais longínquas, que agora vem a Dez Cidades. --por que? --inquiriu Cassius bruscamente,
com a intenção de pilhá-lo por surpresa. --Faz falta uma razão? --Para um elfo escuro, possivelmente --respondeu Cassius com franqueza. O sincero sorriso do Drizzt
desarmou
ao porta-voz e tranqüilizou aos guardas apostados junto a ele. --Não posso oferecer uma razão para vir aqui, exceto meu desejo de vir -- acrescentou Drizzt. percorri
um caminho muito comprido, porta-voz Cassius. Estou cansado e necessito repouso. Hão-me dito que Dez Cidades é o refúgio dos renegados, e não duvido que um elfo
escuro
é um renegado entre os habitantes da superfície. Parecia uma resposta lógica, e a sinceridade do Drizzt resultou evidente para o porta-voz. Cassius apoiou a
queixo na palma da mão e pensou durante uns minutos. Não tinha medo do drow, nem duvidava de suas palavras, mas não tinha a intenção de permitir o revôo
que provocaria a presença de um elfo escuro na cidade. --Bryn Shander não é o lugar para ti --comunicou-lhe Cassius sem rodeios, e os olhos do Drizzt se entreabriram
ante a injustiça. Sem preocupar-se da reação, Cassius assinalou para o norte. Vá a Bosque Solitário, na borda norte do Maer Dualdon -- disse. Depois assinalou
para o sudeste. Ou ao Good Mijem ou ao Dougan's Hole no lago de Águas Avermelhadas. São cidades mais pequenas, onde não provocará tanto alvoroço e terá menos problemas.
--E quando me recusarem a entrada, o que? --perguntou Drizzt. O que farei então, justo porta-voz? Esperar a morte na planície deserta? --Não sabe se... --O
sei --interrompeu-o Drizzt. joguei a este jogo muitas vezes. Quem dará a bem-vinda a um drow, mesmo que tenha abandonado a sua gente e seus costumes e
não deseje outra coisa que paz? A voz do Drizzt era severo e não mostrava nenhuma autocompasión, e uma vez mais Cassius compreendeu que dizia a verdade. Em realidade,
o
porta-voz se compadecia do drow. Ele também tinha sido um renegado e tinha tido que vir até aqui, ao longínquo vale do Vento Gelado, para encontrar um lar.
Não havia nada mais lá; o vale do Vento Gelado era a última parada. Então lhe ocorreu outra solução, algo que podia resolver o dilema sem que lhe remoesse
a consciência. --Quanto tempo leva na superfície? --interrogou-o Cassius, com um interesse sincero. --Sete anos --respondeu Drizzt depois de pensar um momento,
sem saber muito bem o que pretendia o porta-voz. --Nas terras do norte? --Sim. --Entretanto não encontraste um lar, nenhum povo que queria te acolher --disse
Cassius. sobreviveste à hostilidade do inverno e, sem dúvida, a inimigos mais diretos. Sabe como usar as cimitarras que leva a cinto? --Sou um vigilante
--respondeu Drizzt, tranqüilo. --Uma profissão pouco habitual para um drow --assinalou Cassius. --Sou um vigilante --repetiu Drizzt, com um tom um pouco mais duro--,
bem treinado nas coisas da natureza e no uso de minhas armas. --Não o duvido --murmurou Cassius. Fez uma pausa e acrescentou--: Há um lugar

que oferece refúgio e isolamento. --O porta-voz guiou o olhar do Drizzt para o norte, em direção às ladeiras rochosas da cúpula do Kelvin. Mais à frente do
vale dos pequenos está a montanha --explicou Cassius--, e ainda mais longe, a tundra. A Dez Cidades conviria ter um explorador na saia norte da
montanha. O perigo sempre parece vir daquela direção. --vim a procurar meu lar --exclamou Drizzt--, e me oferece um buraco em um montão de rochas e
uma obrigação com aqueles aos que nada devo. Não obstante, a sugestão era uma tentação para seu espírito aventureiro. --Prefere que te diga que as coisas
são diferentes? --disse Cassius. Não permitirei a presença de um drow vagabundo no Bryn Shander. --Exigiria a um homem demonstrar sua valia? --Um homem não carrega
com uma reputação tão terrível --respondeu Cassius brandamente e no ato. Se me mostrasse magnânimo, se te desse a bem-vinda confiando unicamente em sua palavra
e abrisse as portas de par em par, entraria e encontraria um lar? Os dois sabemos que não, drow. Não todo mundo no Bryn Shander seria tão generoso, você o
asseguro. Causaria uma comoção ali onde fosse e, por muito que queria evitá-lo, acabaria obrigado a lutar. Seria o mesmo em qualquer das outras cidades
--acrescentou o porta-voz, consciente de que suas palavras tinham encontrado um eco no drow. Ofereço-te um buraco em um montão de rochas, dentro dos limites de
Dez Cidades, onde suas ações, boas ou más, converterão-se em sua reputação mais à frente da cor de sua pele. Parece-te agora tão desagradável minha oferta? --Necessitarei
provisões --repôs Drizzt, aceitando a verdade nas palavras do Cassius. O que farei com meu cavalo? Não acredito que as ladeiras de uma montanha sejam o melhor
lugar
para a besta. --Vende-o --ofereceu Cassius. Meus guardas lhe conseguirão um preço justo e lhe trarão as provisões que necessite. O porta-voz partiu, convencido
de que tinha atuado com inteligência. Não só tinha evitado o problema imediato, mas também além disso tinha convencido ao Drizzt para que vigiasse as fronteiras,
em
um lugar onde Bruenor Battlehammer e seu clã de pequenos se encarregariam de que o drow não provocasse dificuldades. Roddy McGristle deteve a carreta em uma pequena
aldeia que se elevava à sombra do extremo oeste da cordilheira. Não demorariam para começar as nevadas, e o caçador de recompensas não queria ver-se apanhado a
meio caminho do vale. Passaria o inverno com os camponeses. Ninguém podia sair do vale sem passar pela aldeia. Se o drow estava ali, tal como haviam dito
os frades, já não tinha outro lugar aonde escapar. Drizzt se afastou dos portões aquela mesma noite; preferia viajar de meio da escuridão, a pesar do frio.
A marcha em linha reta à montanha o levou pelo bordo oriental do terreno baixo que os pequenos tinham reclamado como seu lar. Drizzt pôs muita atenção para
evitar a qualquer sentinela apostado pela gente a Barbuda. Só se tinha encontrado uma vez com os pequenos, quando passou pela cidadela do Adbar em uma de seus
primeiras saídas do horta do Mooshie, e não tinha sido uma experiência agradável. As patrulhas dos pequenos o tinham açoitado sem esperar explicações, e
durante vários dias. face ao que lhe ditava a prudência, Drizzt não pôde resistir a tentação ao chegar a um montículo com degraus cortados a golpes de pico.
Só tinha percorrido a metade do caminho, e ficavam muitas horas de marcha, mas começou a subir os degraus, entusiasmado pelo espetáculo das luzes de
as cidades a seu redor.

Embora a costa não era muito alta --uns quinze ou dezesseis metros--, sua localização em meio da planície e a noite clara lhe permitiram ver cinco cidades: dois
nas ribeiras do lago mais oriental; dois no oeste, sobre o lago maior; e Bryn Shander, em sua colina, uns poucos quilômetros para o sul. Drizzt não se deu conta
do passado do tempo porque o panorama despertava nele um sinnúmero de fantasias e esperanças. Levava menos de um dia em Dez Cidades e já se sentia a gosto,
contente de saber que milhares de pessoas teriam notícias de seus atos e possivelmente chegariam a aceitá-lo. Uma voz que resmungava arrancou ao Drizzt de seus ensoñaciones.
Adotou uma posição defensiva e se ocultou detrás de uma rocha. A enxurrada de queixa assinalava com precisão a localização do recém-chegado. Tinha os ombros largos
e era uns trinta centímetros mais baixo que Drizzt, embora muito mais fornido. O drow compreendeu que se tratava de um pequeno incluso antes de que a figura se detivera
a ajustar o casco... com o singelo procedimento de golpear a cabeça contra a rocha. --Condenado cacharro --murmurou o pequeno "ajustando" o casco uma segunda
vez. Drizzt sentiu curiosidade, mas era o bastante preparado para compreender que um pequeno mal-humorado não receberia com os braços abertos a um drow em metade
da
noite. Enquanto o pequeno continuava com seus problemas, o elfo se escabulló com passos rápidos e silenciosos por um lado do atalho. Passou junto ao pequeno e se
afastou
sem fazer mais ruído que a sombra de uma nuvem. --Né? --murmurou o pequeno quando por fim ficou satisfeito com o ajuste. Quem é? Onde está? Começou a saltar
daqui para lá, olhando em todas direções. Só havia escuridão, pedras e vento.

23

Uma lembrança volta para a vida

A primeira nevada da estação caiu lentamente sobre o vale do Vento Gelado; os grandes flocos flutuavam em uma dança lhe ziguezagueiem, muito distinta das fortes
tempestades de neve habituais da região. A jovem Catti-brie contemplava com grande deleite como caía a neve da entrada da caverna que era seu lar; os reflexos
do branco manto do estou acostumado a realçavam o tom azul escuro de seus olhos. --Demora para vir, mas é muito duro quando chega --grunhiu Bruenor Battlehammer,
um pequeno de barba
vermelha, quando se reuniu com o Catti-brie, sua filha adotiva. Seguro que teremos outro inverno muito duro, como sempre neste vale. --OH, pai! --exclamou Catti-brie,
severo. Deixa já de te queixar! É precioso ver como cai a neve, e não molesta porque não a acompanha o vento! --Humanos! --protestou o pequeno zombador, ainda
a costas da moça. Catti-brie não podia lhe ver a expressão, tenra apesar dos protestos, mas não o fazia falta. Sabia que Bruenor era um cascarrabias
e resmungão incorrigível. de repente a moça se voltou para o pequeno, e seus longos cachos castanhos avermelhados flutuaram por diante de seu rosto. --Posso sair
a
jogar?
--perguntou com um sorriso de entusiasmo. Sim, por favor, pai! --Sair! --gritou Bruenor, que tentou mostrar um aspecto feroz. Ninguém a não ser um louco espera
a
chegada do inverno neste cerque para sair a jogar! Mostra um pouco de sentido comum, moça! Congelará-te! --Bem dito para um pequeno! --replicou Catti-brie,

disposta a não dar o braço a torcer, para horror do Bruenor. Está feito para viver em um buraco e, quanto menos vê o céu, mais sorri! Mas me espera um
inverno muito comprido, e esta pode ser a última ocasião de ver o céu. Por favor, pai. Bruenor não pôde resistir o encanto de sua filha e abandonou a expressão
severo,
mas tampouco queria vê-la fora da caverna. --Tenho medo de que algo ronde por aí fora --explicou com seu melhor tom de autoridade. Pressenti-o faz umas noites
quando subia a ladeira, embora não o vi. Possivelmente se trate de um leão branco ou de um urso. O melhor... O pequeno não acabou a frase porque a expressão desiludida
do Catti-brie acabou com as reticências. A moça não era nenhuma novata nos perigos da região. Vivia desde fazia mais de sete anos com o Bruenor e o clã
de anões. Uma banda de goblins tinha matado aos pais do Catti-brie quando era muito pequena, e, embora era humano, Bruenor a tinha criado como se fora sua autêntica
filha. --É muito teimosa, moça! --disse Bruenor em resposta ao evidente desconsolo do Catti-brie. De acordo, pode sair a jogar, mas não vá muito
longe! Não perca de vista as cavernas, jovenzinha, e recorda levar uma espada e um corno ao cinto!

Catti-brie abraçou ao Bruenor e lhe deu um beijo úmido na bochecha. O pequeno se apressou a secar o rosto, e protestou a costas da moça, que já corria
pelo túnel. Bruenor era o líder do clã, duro como o mineral que escavavam. Mas cada vez que Catti-brie lhe dava um beijo na bochecha, o pequeno reconhecia que
tinham-no vencido. --Humanos! --grunhiu outra vez, e se encaminhou para o poço da mina, disposto a amassar uma boa quantidade de mineral de ferro para recordar-se
a si mesmo sua dureza. À moça resultou muito fácil encontrar uma desculpa a sua desobediência quando olhou através do vale dos primeiros contrafortes
da cúpula do Kelvin, a quase cinco quilômetros da porta do Bruenor. O pequeno lhe havia dito que não perdesse de vista as covas, e ali estavam, ou ao menos
podia-se apreciar a grande planície que as rodeava. Mas Catti-brie, que se deslizava sentada pela pendente coberta de neve, não demorou para descobrir que havia
feito mal em não atender às recomendações de seu pai. Tinha chegado ao final do percurso, e se esfregava as mãos energicamente para livrar do frio, quando
ouviu um grunhido rouco e ameaçador. --Leão branco --sussurrou Catti-brie, ao recordar as suspeitas do Bruenor. Quando olhou para trás, viu que seu pai não tinha
acertado
de tudo. Certamente se tratava de um grande felino encarapitado em um penhasco, mas era negro, não branco, e se tratava de uma pantera enorme, não de um leão. Desafiante,
Catti-brie empunhou a faca. --Não te aproxime, gato! --disse, só com um muito leve tremor na voz, porque sabia que o medo convida ao ataque dos animais
selvagens. Guenhwyvar esmagou as orelhas e se deixou cair de pança; depois soltou um comprido e estrondoso rugido que ressonou por todo o vale. Catti-brie não podia
responder
ao poder daquele rugido, e aos compridos e afiados dentes que mostrou a pantera. Procurou com o olhar alguma via de escapamento embora sabia que não poderia ficar
fora
do alcance do primeiro salto da fera. --Guenhwyvar! --chamou uma voz das alturas. Catti-brie olhou a extensão branca e viu uma figura esbelta coberta
com uma capa que avançava com muito cuidado para ela. Guenhwyvar! --repetiu o desconhecido. Vêem aqui! A pantera soltou um forte grunhido de protesto, e se
afastou, saltando sobre os penhascos talheres de neve e por cima das pequenas ladeiras como se corresse sobre um terreno plano. A pesar do medo, Catti-brie
contemplou a marcha da pantera com grande admiração. Sempre tinha querido aos animais e freqüentemente os observava, mas nunca tinha visto um movimento de músculos
tão majestoso. Quando deixou de olhar à pantera, advertiu que o desconhecido se encontrava detrás dela. voltou-se, faca em mão. Então deixou cair a arma
e lhe cortou a respiração ao ver-se diante de um drow. Também Drizzt ficou boquiaberto pelo encontro. Queria assegurar-se de que a moça se encontrava
bem, mas ao olhar ao Catti-brie esqueceu a intenção, sobressaltado pelas lembranças. O elfo observou que tinha mais ou menos a mesma idade que o menino loiro da
granja, e isto o levou indevidamente a reviver o trágico episódio do Maldobar. Depois, ao olhar com mais atenção os olhos do Catti-brie, seus pensamentos se
voltaram para tempos ainda mais longínquos, aos dias em que formava parte das patrulhas de sua gente. Os olhos do Catti-brie tinham a mesma alegria e o brilho
inocente que Drizzt tinha visto nos olhos da menina elfa, uma menina a que tinha salvado de morrer à mãos de seus companheiros. A lembrança estremeceu ao Drizzt,
fez-o retroceder ao prado coberto de sangre no bosque dos elfos, onde seu irmão e outros drows tinham assassinado brutalmente a todos os participantes
de uma festa. No frenesi do

combate, Drizzt tinha estado a ponto de matar à menina elfa, tinha estado a ponto de seguir o mesmo caminho escuro que seus iguais seguiam entusiasmadas. Drizzt
livrou-se destas lembranças terríveis e se disse a si mesmo que esta era outra menina de outra raça diferente. dispôs-se a saudá-la, mas a moça tinha desaparecido.
A palavra maldita, "drizzit", apareceu várias vezes nos pensamentos do drow enquanto se encaminhava de retorno à cova, na cara norte da montanha onde
tinha instalado seu lar. Aquela mesma noite, o inverno começou com toda sua força. O vento gelado do este soprou da geleira Reghed e trouxe consigo a
neve. Catti-brie contemplou a nevada com olhar ausente, convencida de que passariam muitas semanas antes de que pudesse retornar à cúpula do Kelvin. Não lhe havia
mencionado ao Bruenor nem a nenhum dos outros pequenos a presença do drow, por medo ao castigo e a que Bruenor pudesse expulsar ao elfo escuro do vale. Enquanto
olhava como se acumulava a neve, desejou ter sido mais valente, haver ficado a falar com o estranho elfo. Cada uivo do vento aumentava seus desejos, e a
moça se perguntou se não teria deixado passar sua única oportunidade. --Vou ao Bryn Shander --anunciou Bruenor uma manhã, dois meses mais tarde. O vale do Vento
Gelado desfrutava de uma inesperada rajada de bom tempo no comprido inverno de sete meses, um janeiro de uma bonança muito pouco habitual. O pequeno olhou a sua
filha
com ar de suspeita durante um bom momento. Tem a intenção de sair? --perguntou-lhe. --Talvez --respondeu Catti-brie. As covas me curvam e o vento
não parece muito frio. --Direi a um par de anões que lhe acompanhem --ofereceu Bruenor. --Estão muito ocupados com o acerto das portas de suas casas! -- replicou
a moça, em um tom muito brusco. Catti-brie pensava que esta era uma ocasião perfeita para procurar o drow, e não queria perdê-la. Não os incomode com
algo tão parvo como cuidar de uma menina! --Cada dia é mais teimosa e respondona! --afirmou Bruenor, com um olhar suspicaz. --Aprendi-o de meu pai --disse Catti-brie
com uma piscada que evitou novos protestos. --De acordo, te cuide --manifestou Bruenor--, e não... ... perca de vista as cavernas --acabou Catti-brie por ele.
Bruenor
deu meia volta e saiu da cova, sem deixar de resmungar e amaldiçoando o dia que tinha tomado a uma humana por filha. A moça riu ante a irritação simulada.
Uma vez mais foi Guenhwyvar a que encontrou primeiro à moça. Catti-brie se partiu sem perder um segundo para a montanha, e avançava pelos atalhos
mais ao oeste quando viu a pantera negra mais acima, que a vigiava de um esporão. --Guenhwyvar --chamou a menina, recordando o nome que tinha empregado o
drow. A pantera grunhiu e desceu de um salto, para aproximar-se. Guenhwyvar?--repetiu, menos segura, quando viu a pantera muito mais perto. Guenhwyvar levantou
as
orelhas ante a segunda menção de seu nome, relaxou os músculos. Catti-brie avançou cautelosa, um passo de uma vez. Onde está o elfo escuro, Guenhwyvar? --perguntou
em voz baixa. Pode me levar aonde está ele? --E por que quer ir ver o? --inquiriu uma voz.

Catti-brie ficou imóvel, ao recordar a voz suave e melódica, e se voltou pouco a pouco para olhar ao drow. Só estava a três passos de distância, e o olhar
dos olhos lilás procurou a sua logo que se enfrentaram. A moça não sabia o que dizer, e ele, absorto outra vez em suas lembranças, não disse nada e esperou, sem
deixar de olhá-la. --Você é um drow? --perguntou Catti-brie quando o silêncio se fez insuportável. No mesmo momento de pronunciar as palavras se reprovou a
si mesmo o ter feito uma pergunta tão estúpida. --Sou-o --respondeu Drizzt. O que significa para ti? --escutei dizer que os drows são malignos, mas você
não o parece --disse Catti-brie, um tanto desconcertada pela estranha resposta. --Então correste um grande risco ao vir até aqui sozinha --comentou Drizzt.
Mas não tema --apressou-se a acrescentar ao ver a súbita inquietação da moça--, porque não sou um maligno e não te farei nenhum dano. depois de muitos meses de solidão
em sua cova, Drizzt não queria que o encontro acabasse tão logo. --Meu nome é Catti-brie --apresentou-se a moça, disposta a acreditar na palavra do elfo escuro.
Meu pai é Bruenor, rei do clã Battlehammer. --Drizzt torceu a cabeça cheio de curiosidade. Os pequenos --explicou Catti-brie, assinalando para o vale. Compreendeu
o desconcerto do Drizzt assim que pronunciou as palavras. Não é meu pai verdadeiro. Bruenor me recolheu quando eu não era mais que um bebê, porque a meus pais
os... Não pôde acabar a frase mas não fez falta. Drizzt entendeu perfeitamente sua expressão de dor. --Meu nome é Drizzt Dou'Urdem --manifestou o drow. Encantado
de te conhecer, Catti-brie, filha do Bruenor. É bom ter alguém com quem poder falar. Durante todas estas semanas de inverno, só tive a companhia de
Guenhwyvar, quando a pantera está por aqui, e minha amiga não diz muito, certamente. Catti-brie mostrou um sorriso de orelha a orelha. Jogou um olhar por cima do
ombro à pantera, que descansava tendida no atalho. --É uma pantera muito formosa --opinou Catti-brie, e Drizzt não duvidou da sinceridade de suas palavras, ou
da admiração em seu olhar. --Vêem aqui, Guenhwyvar --chamou-a Drizzt. A pantera se desperezó e se levantou sem pressas. Depois caminhou até situar-se junto ao Catti-brie,
e Drizzt assentiu ao desejo óbvio embora não expresso da moça. Ao princípio com um pouco de desconfiança, e logo com firmeza, Catti-brie acariciou a suave pele
da pantera, e sentiu o poder e a perfeição da besta. Guenhwyvar aceitou as carícias sem protestar, e inclusive empurrou ao Catti-brie lhe pedindo mais mímicos quando
ela se deteve um momento. --vieste sozinha? --perguntou Drizzt. --Meu pai diz que não devo perder de vista as covas --repôs a moça com uma gargalhada.
daqui se vêem muito bem, não crie? Drizzt olhou para o vale, à longínqua parede de pedra que se elevava a vários quilômetros de distância. --A seu pai não o
gostará. Esta terra não é muito pacífica. Levo na montanha só dois meses, e já tive que lutar em duas ocasiões contra uma besta peluda branca que não conheço.
--Yetis da tundra --explicou Catti-brie. Você deve viver na cara norte. Os yetis não vêm a este lado da montanha. --Como sabe? --replicou Drizzt,
sarcástico. --Nunca vi a nenhum --declarou Catti-brie--, mas não os temo. Vim a te buscar e te encontrei.

--Assim é. E agora o que? --inquiriu o drow. Catti-brie encolheu os ombros e voltou a acariciar ao Guenhwyvar. Vêem --acrescentou Drizzt. Procuremos um lugar
mais cômodo
onde poder falar. O resplendor da neve me faz mal nos olhos. --Está habituado aos túneis escuros? --interrogou-o Catti-brie, ansiosa por escutar
relatos das terras além da fronteira de Dez Cidades, o único lugar que conhecia. Drizzt e a moça passaram um maravilhoso dia juntos. O drow lhe falou
do Menzoberranzan, e Catti-brie lhe relatou histórias do vale do Vento Gelado e de sua vida com os pequenos. Drizzt tinha muito interesse em saber coisas do Bruenor
e sua gente, à vista de que os pequenos eram seus mais próximos, e mais temidos, vizinhos. --Bruenor fala com a aspereza das pedras, mas eu o conheço muito bem
-- assegurou-lhe Catti-brie ao drow. É muito bom, e também o são todos outros. Drizzt se alegrou ao escutar suas palavras, e também o alegrou este encontro,
tanto pelo que significava ter um amigo como porque desfrutava com a companhia de uma moça tão vivaz. A energia e as vontades de viver do Catti-brie eram
admiráveis. Em sua presença, o drow se esquecia dos episódios trágicos e sentia prazer de ter salvado a vida da menina elfa. A cantarina voz do Catti-brie
e a maneira despreocupada em que movia os cabelos sobre os ombros o aliviava do peso da culpa com a mesma facilidade com que uma gigante lança um calhau.
Poderiam ter contínuo com as histórias durante dias e semanas, mas quando Drizzt observou que o sol se aproximava do horizonte, compreendeu que tinha chegado o
momento de que a moça retornasse a sua casa. --Acompanho-te --ofereceu o drow. --Não --disse Catti-brie. Não é prudente. Bruenor não o entenderia e me veria colocada
em uma boa confusão. Não se preocupe, voltarei! Conheço estes atalhos muito melhor que você, Drizzt Dou'Urdem, e não poderia me seguir, embora o tentasse! Drizzt
riu
ante o desafio mas quase acreditou. ficaram em marcha imediatamente em direção ao contraforte sul, onde se disseram adeus e prometeram voltar a encontrar-se
assim que se produzira outra melhora no tempo, ou, de não ser assim, na primavera. A moça caminhava sobre nuvens quando entrou nas cavernas dos pequenos, mas
bastou-lhe ver a azeda cara de seu pai para perder a alegria. Bruenor tinha ido aquela manhã ao Bryn Shander para tratar uns assuntos com o Cassius. O pequeno não
havia-se sentido muito feliz quando lhe informaram que um elfo escuro tinha instalado seu lar muito perto do dele, embora supunha que à moça --sempre tão curiosa--
pareceria-lhe fantástico. --Não te aproxime nunca mais à montanha --advertiu-lhe Bruenor assim que a viu chegar. --Mas pai... --tentou protestar Catti-brie. --Nada
de mas! --exclamou o pequeno. Não voltará a pisar na montanha sem minha permissão. Há-me dito Cassius que há um elfo escuro. me prometa que não irá! Catti-brie assentiu
desconsolada, e seguiu ao Bruenor, consciente de que lhe custaria muito fazer trocar de opinião a seu pai, mas também segura de que Bruenor estava muito equivocado
respeito ao drow. Chegou outra rajada de bom tempo ao cabo de um mês, e Catti-brie manteve sua promessa. Não pôs um pé na cúpula do Kelvin, mas sim percorreu os
atalhos do vale ao pé da cúpula, chamando gritos ao Drizzt e ao Guenhwyvar. O drow e a pantera, que levavam já momento na zona, não demoraram para reunir-se
com ela. Esta vez instalados no fundo do vale compartilharam mais historia e o lanche que tinha levado a moça. Quando Catti-brie retornou às covas
com o pôr-do-sol, Bruenor, que

suspeitava dela, perguntou-lhe se tinha mantido a palavra dada. O pequeno sempre tinha crédulo em sua filha, mas a resposta afirmativa não diminuiu suas suspeitas.

24

Revelações

Bruenor perambulou pelos contrafortes inferiores da cúpula do Kelvin durante boa parte da manhã. A neve se derreteu como um anúncio da primavera,
mas ainda ficavam emplastros que dificultavam a marcha pelos atalhos. Com a tocha em uma mão e na outra o escudo com o brasão da jarra espumante do
clã Battlehammer, Bruenor caminhava, sem deixar de amaldiçoar cada atoleiro, cada pedra, e aos elfos escuros em geral. Rodeou o extremo noroeste da montanha, com
o nariz vermelho pelo vento frio e quase sem fôlego. --Hora de descansar --murmurou o pequeno ao ver um nicho de pedra protegido do vento por paredes muito altas.
Bruenor não tinha sido o único em descobrir o cômodo refúgio. Quando lhe faltava muito pouco para alcançar a abertura de três metros de largura na parede de pedra,
um súbito bater de asas correosas fez aparecer ante seus olhos uma enorme cabeça de inseto. O pequeno retrocedeu, surpreso e alerta. Tinha reconhecido à besta
como um remorhaz, um verme polar, e não pensava lutar contra ele. O remorhaz saiu de cubículo e se lançou à perseguição; o corpo cilíndrico de doze metros
de comprimento se ondulava sobre o terreno como uma cinta de gelo azul. Os resplandecentes olhos polifacéticos não perdiam de vista ao pequeno. As pequenas asas
correosas
mantinham elevada e arremesso para trás a cabeça para atacar à primeira ocasião, enquanto dúzias de patas propulsavam o resto do corpo. Bruenor notou o aumento
de temperatura à medida que o dorso da criatura se esquentava, primeiro a um marrom avermelhado, e depois ao vermelho vivo. --Ao menos me esquentará do frio --riu
o pequeno.
Compreendendo que não podia afastar-se da besta, deteve-se e levantou a tocha em um gesto ameaçador. Sem perder um segundo, o remorhaz lançou o ataque. A enorme
boca, capaz de engolir ao pequeno de um bocado, baixou como uma flecha. Bruenor saltou a um lado e inclinou o escudo e o corpo para evitar que as mandíbulas lhe
aprisionassem
as pernas, ao tempo que descarregava a tocha entre os chifres do verme polar. As asas bateram com um ritmo feroz para levantar a cabeça outra vez para trás.
O remorhaz, apenas meio doido, dispôs-se para um segundo ataque, mas Bruenor lhe antecipou. Agarrou a tocha com a mão do escudo e, desembainhando com a outra uma
adaga de lâmina larga e comprida, lançou-se para diante, diretamente entre o primeiro par de patas do monstro. A enorme cabeça desceu em picado sem encontrar a presa,
porque
Bruenor já se colocou debaixo do ventre, o ponto mais vulnerável da besta. --adivinhaste o que vou fazer? --exclamou o pequeno em tom de brincadeira,
cravando a adaga entre as escamas. Bruenor era muito duro e estava muito bem protegido para sofrer as

conseqüências das sacudidas do verme, mas então a besta rodou sobre si mesmo, com a intenção de queimá-lo vivo com o lombo ardente. --Não, não tente
bancar esperto comigo, condenado inseto-dragão-gusanopájaro! --chiou Bruenor, que se apartou rapidamente para afastar do calor. situou-se a um flanco e empurrou
com todas suas forças até tombar ao remorhaz. A neve se fundiu em uma nuvem de vapor ao entrar em contato com o lombo ao vermelho. Bruenor se abriu passo entre as
patas, que se moviam como sinais de multiplicação de moinho, para alcançar a parte vulnerável. Depois começou a descarregar machadadas até conseguir abrir uma larga
e profunda ferida.
O remorhaz enroscou e estirou o corpo como uma mola, e em uma das sacudidas lançou ao Bruenor pelos ares. O pequeno ficou de pé assim que tocou o chão,
mas não foi o bastante rápido, e o verme avançou para ele. O lombo ardente tocou a coxa do Bruenor quando este tentava afastar-se, e o pequeno viu como saía
fumaça das perneiras de couro. Então se enfrentaram outra vez, com muito mais respeito. A boca atacou. Com um golpe rápido, a tocha do Bruenor lhe partiu um dente
e desviou a trajetória. Entretanto, a perna ferida cedeu com o golpe, e o pequeno não pôde apartar-se. Um dos chifres enganchou ao Bruenor pela axila e o
lançou muito longe. O pequeno caiu em meio de um pequeno campo de pedras; recuperou-se imediatamente e estrelou de propósito a cabeça contra um penhasco para ajustar
o casco
e livrar do enjôo. O remorhaz não cedeu apesar do sangue que perdia ao mover-se. A enorme boca se abriu uma vez mais, e Bruenor, sem perder nem um instante,
lançou-lhe uma pedra ao interior. Guenhwyvar alertou ao Drizzt de que havia problemas no contraforte do noroeste. O drow nunca tinha visto um verme polar,
mas assim que avistou aos combatentes de um penhasco, compreendeu que o pequeno levava a pior parte. Desembainhou as cimitarras, sem deixar de lamentar-se por haver
deixado o arco na cova, e seguiu à pantera no descida todo quão rápido permitiam os escorregadios atalhos. --Vamos, te atreva! --desafiou o pequeno ao
remorhaz. O monstro não vacilou. Bruenor se afirmou sobre os pés, disposto a resistir todo o possível antes de converter-se em comida de verme. A enorme cabeça
aproximou-se, mas então o remorhaz ouviu um rugido detrás, vacilou e desviou o olhar. --Um movimento estúpido! --gritou o pequeno, exultante, e descarregou uma machadada
contra a mandíbula inferior do monstro, com tanta força e acerto que a partiu entre os dois grandes incisivos. O remorhaz soltou um chiado de dor, e as
asas bateram se desesperadas, em um intento por afastar a cabeça do alcance do pequeno. Este repetiu os golpes, que abriram grandes feridas no focinho ao tempo
que obrigava à besta a baixar a cabeça. --Acreditava que já me tinha, né? --burlou-se Bruenor. Tendeu a mão do escudo e sujeitou um dos chifres quando o remorhaz
começava a levantar a cabeça. Com um violento puxão, torceu esta em um ângulo vulnerável e afundou a tocha no crânio da besta. A criatura se enrolou e
estirou em uma última sacudida e depois permaneceu imóvel, com o lombo ainda ao vermelho vivo. Um segundo rugido do Guenhwyvar fez que o pequeno desviasse do cadáver
do monstro seu orgulhoso olhar. Bruenor, ferido e vacilante, viu o Drizzt e à pantera,

que se aproximavam da carreira, o drow com as armas na mão. --Vamos! --gritou-lhes Bruenor, que interpretou mal a carga. Em um gesto de desafio, golpeou a tocha
contra o escudo. Te aproxime e provará o fio de meu aço! Drizzt se deteve no ato e ordenou ao Guenhwyvar que fizesse o mesmo. A pantera não fez conta
e avançou com as orelhas pegas ao crânio. --Vete, Guenhwyvar! --ordenou Drizzt. A pantera soltou um último grunhido de indignação e se afastou. Satisfeito com a
marcha do felino, Bruenor dirigiu o olhar ao Drizzt, que se encontrava junto à cauda do verme polar morto. --Você e eu, então? --exclamou o pequeno. Tem
guelra para te enfrentar à tocha, drow, ou prefere às meninas pequenas? --A óbvia referência ao Catti-brie fez aparecer uma chama de fúria nos olhos do Drizzt,
que apertou com força os punhos das cimitarras. Bruenor balançou a tocha. Vamos --provocou-o. Acaso não te atreve a jogar um pouco com um pequeno? Drizzt
desejava gritar tão forte como para que todo mundo pudesse ouvi-lo. Queria saltar por cima do monstro morto e golpear ao pequeno, negar as palavras com uma
força desumana e brutal, mas não podia. Não podia negar ao Mielikki e não podia trair ao Mooshie. Uma vez mais tinha que controlar a raiva, suportar os insultos
com estoicismo, consciente de que ele e a deusa conheciam a verdade do que havia em seu coração. Guardou as cimitarras e se afastou, em companhia do Guenhwyvar.
Bruenor
observou a marcha do casal sem ocultar sua curiosidade. Primeiro tomou ao drow por um covarde, mas logo, ao desaparecer a excitação do combate, o pequeno se
perguntou pelas intenções do drow. Tinha acudido disposto a rematar aos combatentes? Ou acaso tinha o propósito de ajudá-lo? --Não --murmurou o pequeno, rechaçando
esta última possibilidade. Não é o proceder de um elfo escuro! A caminhada de volta foi muito larga para o anão coxo, e lhe deu tempo de sobra para refletir
sobre os fatos ocorridos no contraforte do noroeste. Quando por fim chegou às minas, era de noite; esperavam-no Catti-brie e vários pequenos, preparados já
para sair em sua busca. --Está ferido --comentou um dos pequenos. Imediatamente, Catti-brie imaginou uma briga entre o Drizzt e seu pai. --Um verme polar --respondeu
Bruenor, sem lhe dar muita importância. Acabei com a besta, embora no esforço me chamuscou a coxa. Outros assentiram, admirados pela capacidade combativa
de sua líder --um verme polar não era uma presa fácil--, e Catti-brie suspirou mais tranqüila. --Vi o drow! --grunhiu-lhe Bruenor, ao suspeitar a causa do suspiro.
O pequeno seguia confuso respeito ao encontro com o elfo escuro, e tampouco tinha muito claro onde encaixava Catti-brie. Acaso a menina se encontrou com o
drow? --Vi-o! --acrescentou, esta vez para outros anões. Vi o drow e ao gato mais negro e maior que tenha visto em toda minha vida! lançou-se sobre mim, no
momento em que tombei ao verme. --Drizzt não seria capaz! --Catti-brie interrompeu a seu pai antes de que ele pudesse embarcar-se em outro relato interminável. --Drizzt?
--perguntou Bruenor, e a moça lhe deu as costas, ao compreender que tinha descoberto sua mentira. De todos os modos, o pequeno o deixou passar. Digo que o fez!
--prosseguiu. Lançou-se sobre mim com as armas nas mãos! Mas os fiz fugir ele e ao gato! --Poderíamos persegui-lo --propôs um dos pressente--, jogá-lo
da montanha. Outros assentiram com murmúrios e movimentos de cabeça, mas Bruenor,

duvidando ainda das verdadeiras intenções do drow, opôs-se. --A montanha é dela --afirmou Bruenor. A deu Cassius, e não nos interessa ter problemas com
Bryn Shander. Enquanto o drow fique onde está e não se meta conosco, deixaremo-lo em paz. Mas --acrescentou com o olhar posto no Catti-brie--, você não voltará
a falar, nem a te aproximar dele nunca mais! --Mas... --protestou Catti-brie. --Nunca mais! --rugiu Bruenor. Quero que me dê sua palavra, ou pelo Moradin que lhe
cortarei
a cabeça ao elfo escuro! --Catti-brie vacilou, sem saber como sair do atoleiro. Sua palavra! --Prometo-lhe isso --murmurou a moça, e pôs-se a correr para o
interior da cova. --Cassius, porta-voz do Bryn Shander, enviou-me aqui --explicou o rude homenzarrão. Disse que se houver alguém que sabe onde está o drow esse é
você. Bruenor jogou uma olhada aos numerosos pequenos presentes na sala de audiências; nenhum parecia muito impressionado com o grosseiro forasteiro. Bruenor apoiou
a
queixo na palma da mão e bocejou com força, disposto a não intervir neste conflito. Teria podido enganar ao homem sujo e a seu cão fedorento
e conseguir que partissem, mas Catti-brie, sentada junto ao pai, moveu-se inquieta. --Cassius disse que deveste ver o drow, porque é seu vizinho--acrescentou
Roddy McGristle, que não tinha passado por cima o movimento da moça. --Se o viu algum de meus --respondeu Bruenor, sem lhe fazer muito caso--, não
há-me isso dito. Se seu drow rondar por aqui, não se colocou conosco. Catti-brie dirigiu um olhar de curiosidade a seu pai e respirou mais tranqüila. --Não se
colocou com vós? --murmurou Roddy, com um brilho de astúcia no olhar. Esse nunca molesta a ninguém. --Pouco a pouco, o montanhês jogou para trás o capuz,
para mostrar as cicatrizes. Não se mete com ninguém até que de repente te encontra assim! --O drow fez isso? --perguntou Bruenor, sem deixar-se impressionar.
Boas
cicatrizes, melhor que muitas que vi por ali. --Matou a meu cão! --grunhiu Roddy. --Não me parece morto --respondeu Bruenor, provocando as gargalhadas
de todos os pressente. --Meu outro cão! --gritou Roddy, ao compreendê-la atitude do pequeno. Não lhe interessam meus problemas, e não me queixo. Mas não é por mim
que
persigo-o, nem tampouco pelo preço posto a sua cabeça. Alguma vez ouviste falar do Maldobar? --Bruenor encolheu os ombros. Um lugar bonito e tranqüilo. Todos
camponeses. Uma família, os Thistledown, viviam nos subúrbios do povo; três gerações na mesma casa, como corresponde às famílias decentes. Bartholemew
Thistledown era um bom homem, juro-lhe isso, como foi o pai, e os filhos, quatro varões e uma moça... muito parecida com a sua... alta, forte, com o espírito
alegre e disposta a desfrutar da vida. Bruenor começou a suspeitar o final da história, e, pela inquietação que demonstrava Catti-brie, pensou que a moça
também sabia. --Boa família --murmurou Roddy, com uma falsa expressão nostálgica. Nove na casa. --de repente o homem endureceu o gesto e olhou furioso
ao Bruenor. Nove mortos na casa --declarou. Esquartejados por seu drow, e a gente devorado pela maldita pantera. Catti-brie tentou responder, mas suas palavras
soaram como um grito confuso. Bruenor se alegrou de que assim fora, porque, de haver-se podido entender as palavras, o montanhês teria recebido uma informação que
o pequeno não queria lhe dar. Pôs um braço sobre os ombros da moça.

--vieste a nos contar uma história muito desagradável --disse sem perder a calma. assustaste a minha filha, e eu não gosto que a assustem! --Peço-te perdão --respondeu
Roddy com uma reverência--, mas deve saber o perigo que ronda sua porta. O drow é um ser perverso e também o é a pantera! Não quero que se repita a tragédia
do Maldobar. --E não a verá em nenhuma de minhas salas --assegurou-lhe Bruenor. Não somos uns vulgares camponeses. O drow não nos incomodará mais do que você nos

incomodado. Roddy não se surpreendeu de que Bruenor não estivesse disposto a ajudá-lo, porque sabia muito bem que o pequeno, ou ao menos a moça, tinha mais informação
sobre o paradeiro do drow do que tinham admitido. --Se não ser por mim, então faz-o pelo Bartholemew Thistledown. Rogo-lhe isso, anão. me diga onde posso encontrar
ao demônio negro. Ou, se não souber, me empreste alguns soldados para que me ajudem para buscá-lo. --Minha gente está muito ocupada com a fundição --respondeu Bruenor.
Não posso enviar a ninguém a perseguir os inimigos de algum outro. Ao Bruenor não interessava no mais mínimo o pleito que Roddy podia ter com o drow, mas a
história do montanhês tinha confirmado a opinião de que o elfo escuro era má companhia, em especial para a moça. Inclusive poderia ter colaborado com o Roddy,
não por razões morais a não ser para livrar-se de uma vez do cazarrecompensas e do drow, de não ter sido pela óbvia preocupação do Catti-brie. Roddy fez um esforço
inútil por dissimular o aborrecimento, e pensou em alguma outra maneira de conseguir seus propósitos. --Aonde iria você se tivesse que fugir, rei Bruenor? --perguntou.
Cassius
disse que conhece as montanhas melhor que ninguém. Aonde deveria procurar? --O vale é muito grande --respondeu Bruenor, sem comprometer-se. Cada vez lhe resultava
mais
divertido ver o aborrecimento do grosseiro personagem. Montanhas muito altas. Montões de buracos. Dito isto permaneceu em silencio durante um bom momento, movendo
a cabeça.
--É que está de parte do drow? --chiou Roddy, incapaz já de controlar-se. Chama a ti mesmo rei, mas... Bruenor saltou de seu trono de pedra, e Roddy deu
um passo atrás, ao tempo que colocava uma mão sobre a manga da tocha. --Só escutei a palavra de um renegado contra outro --replicou Bruenor. E, a meu
julgamento, alguém é tão boa... ou má como a outra! --Não para os Thistledown! --gritou Roddy. O sabujo, ao ver a fúria de seu amo, ensinou os dentes e grunhiu ameaçador.
Bruenor olhou curioso à estranha besta amarela. Era quase a hora do jantar e as discussões sempre aumentavam seu apetite. Que tal um bom prato de cão amarelo?
Não tem nada mais que me oferecer? -- insistiu Roddy. --Um chute de minha bota --grunhiu Bruenor. Vários soldados bem armados se aproximaram para evitar que o irascível
humano cometesse alguma tolice. Poderia te convidar para jantar --acrescentou o pequeno--, mas cheira muito mal, e não parece dos que estão dispostos a tomar um
banho. Roddy atirou da correia do cão e partiu feito uma fúria. Seus taconazos e as portadas que dava cada vez que cruzava uma porta ressonavam na sala de
audiências. A um sinal do Bruenor, quatro soldados seguiram ao montanhês para assegurar-se de que não se produzira nenhum incidente. Na sala, pressente-os celebraram
com gritos e gargalhadas a forma em que seu rei tinha tratado ao humano. Bruenor advertiu que Catti-brie não se somava à diversão, e pensou que conhecia o motivo.
O relato do Roddy, verídico ou não, tinha semeado a dúvida na moça. --Agora já sabe --disse Bruenor em tom áspero, disposto a tirar vantagem

na discussão pendente. O drow é um assassino prófugo! A ver se por fim toma minhas advertências ao pé da letra! Os lábios do Catti-brie desapareceram
em um gesto de amargura. Drizzt não lhe tinha contado muitas coisas de sua vida na superfície, mas não podia acreditar que seu amigo fosse um assassino. Tampouco
podia negar
o óbvio: Drizzt era um elfo escuro, e para seu pai, ao menos, isto era suficiente para legitimar o relato do McGristle. --Escuta-me, moça? --grunhiu Bruenor.
--Tem que reunidos a todos! --exclamou Catti-brie de repente. Ao drow, ao Cassius e ao horrível Roddy McGristle. Tem que... --Não é meu assunto! --rugiu Bruenor,
pouco disposto a escutar. As lágrimas apareceram nos olhos do Catti-brie ao ver a súbita cólera do pai. Acreditou que o mundo se tornou do reverso. Drizzt
estava em perigo e agora seu pai, ao que tanto queria e admirava, fazia ouvidos surdos à chamada da justiça. Naquele terrível momento, Catti-brie fez a
única coisa que uma menina de onze anos pode fazer nestes casos: deu meia volta e pôs-se a correr. Catti-brie se perguntou o que pretendia conseguir, enquanto corria
pelos contrafortes da cúpula do Kelvin, face à palavra dada a seu pai. A moça não podia negar o desejo de vir até aqui, embora não podia lhe oferecer
ao Drizzt nada mais que o aviso de que McGristle o buscava. Ainda não tinha conseguido esclarecer seus pensamentos, quando de repente se encontrou com o drow e então
compreendeu a verdadeira razão. Não era pelo Drizzt que tinha vindo, embora lhe preocupava sua segurança, mas sim por sua própria paz de consciência. --Nunca me
falou
dos Thistledown do Maldobar --disse-lhe com um tom gelado que apagou o sorriso do drow. A expressão amarga que apareceu no rosto do elfo refletiu claramente
sua dor. Acreditando que a tristeza do drow significava que aceitava a culpa da tragédia, a moça se voltou e tentou escapar. Drizzt a sujeitou pelo ombro,
fez-a dar a volta, e a estreitou entre seus braços. Não estava disposto a tolerar que a menina, que o tinha aceito de todo coração, acreditasse agora uma mentira.
--Eu não matei a ninguém --sussurrou Drizzt entre os soluços do Catti-brie--, exceto aos monstros que assassinaram aos Thistledown. Dou-te minha palavra! -- Então
relatou-lhe toda a história, incluída a perseguição do grupo de Pomba Garra de Falcão. E agora estou aqui --concluiu--, com o único desejo de esquecer para sempre
aquela tragédia, embora acredite que nunca o conseguirei. --São duas histórias muito diferentes --disse Catti-brie. Refiro-me à tua e a do McGristle. --McGristle?
--ofegou Drizzt como se de repente se ficou sem fôlego. Fazia anos que não via o montanhês e pensava no Roddy como uma coisa do passado. --veio hoje
--explicou Catti-brie. Um homem muito grande com um cão amarelo. Persegue-te. A confirmação sobressaltou ao Drizzt. É que alguma vez escaparia de seu passado?,
pensou.
Se não o conseguia, como podia esperar que o aceitassem? --McGristle disse que você os assassinou --acrescentou a moça. --Então não tem mais que nossas palavras
--raciocinou Drizzt--, e não há provas que confirmem nenhuma das duas versões. O silêncio que seguiu a suas palavras se fez eterno. --Nunca eu gostei desse bruto
horrível. Catti-brie se sorveu os mucos, e conseguiu sorrir pela primeira vez desde que tinha visto o caçador de recompensas.

A afirmação de sua amizade comoveu profundamente ao Drizzt, embora não podia esquecer os problemas que se moravam. Teria que lutar contra Roddy, e possivelmente
com
alguns mais se o montanhês conseguia despertar o ressentimento de outras pessoas, coisa bastante fácil se se tinha em conta a raça do Drizzt. Ou teria que reatar
a fuga, aceitar que o caminho era seu único lar. --O que fará? --perguntou Catti-brie, ao perceber sua angústia. --Não tema por mim --respondeu Drizzt, ao tempo
que a abraçava mais forte, pensando que possivelmente era um abraço de despedida. O dia se acaba. Deve voltar para sua casa. --Ele te encontrará --afirmou Catti-brie
muito
séria. --Não --disse Drizzt, tranqüilo. Ao menos não tão logo. Com a ajuda do Guenhwyvar, manteremos ao Roddy McGristle bem longe até que resolva o que fazer.
Agora, vete. A noite chega depressa e não acredito que a seu pai goste que tenha vindo aqui. Recordar que teria que enfrentar-se outra vez ao Bruenor fez que Catti-brie
ficasse em marcha. Disse adeus ao Drizzt e deu uns passos; então deu meia volta, retornou e lhe deu um abraço. Seu andar era mais ligeiro quando desceu pela
ladeira. Não havia resolvido os problemas do Drizzt, mas as preocupações do drow lhe pareciam algo muito distante em comparação com a alegria de saber que seu amigo
não era um monstro como diziam alguns. A noite seria muito negra para o Drizzt Dou'Urdem. Tinha pensado no McGristle como um problema muito longínquo, mas agora
a ameaça
tinha chegado, e ninguém salvo Catti-brie tinha saído em sua defesa. Uma vez mais teria que resistir sozinho, se é que pensava resistir. Não tinha aliados exceto
Guenhwyvar
e suas cimitarras, e a perspectiva de bater-se com o McGristle --com indiferença do resultado--não lhe interessava. --Isto não é um lar --sussurrou no meio do vento
gelado. Tirou a estatueta de ônix e chamou à pantera. Vamos, amiga minha --disse-lhe. Temos que ir antes de que apareça nosso adversário. Guenhwyvar
ocupou-se do guarda enquanto Drizzt, farto de vagar, esvaziava o que até esse momento tinha sido seu lar.

25

As divagações de um pequeno

Catti-brie ouviu o grunhido do cão, mas não teve tempo de reagir quando o homenzarrão saiu de seu esconderijo detrás de um penhasco e a sujeitou rudamente
pelo pulso. --Sabia que sabia! --gritou McGristle, jogando seu pestilento fôlego contra o rosto da moça. --me solte! --replicou Catti-brie ao tempo que
o propinaba um chute na tíbia. Roddy se surpreendeu ao advertir que em sua voz não havia o menor rastro de medo. Sacudiu-a com força quando ela tentou
chutá-lo outra vez. --vieste à montanha por alguma razão --disse Roddy, sem afrouxar a pressão. vieste a ver o drow. Sabia que vós foram amigos.
Vi-o em seus olhos! --Você não sabe nada! --afirmou Catti-brie. Não diz mais que mentiras. --Assim que o drow te contou sua história dos Thistledown, não? --
manifestou Roddy, que interpretou corretamente o significado de suas palavras. Catti-brie compreendeu que a irritação a tinha descoberto. --O drow? --disse a moça,
com uma indiferença simulada. Não sei de que falas. --estiveste com o drow, moça --insistiu Roddy, com uma gargalhada. Há-o dito com toda claridade. E
agora me levará aonde está ele. --Catti-brie lhe fez uma careta, e o montanhês a voltou a sacudir. de repente a expressão do Roddy se suavizou, e ao Catti-brie
gostou ainda menos a expressão que apareceu em seus olhos. É uma moça muito corajosa, verdade? --ronronou Roddy, sujeitando ao Catti-brie pelo outro ombro
para obrigar a que o olhasse à cara. Cheia de vida, né? Levará-me aonde está o drow, moça, disso pode estar segura. Mas possivelmente antes possamos
fazer algumas outras coisas, coisas que ensinarão a não te cruzar no caminho de gente como Roddy McGristle. Sua carícia na bochecha do Catti-brie não só resultou
grotesca, mas também horrível e ameaçadora. A moça pensou que ia vomitar. Catti-brie teve que apelar a toda sua fortaleza para enfrentar-se ao Roddy naquele
momento. Não era mais que uma menina, mas se tinha criado entre os pequenos do clã Battlehammer, um grupo orgulhoso e valente. Bruenor era um guerreiro e também
o
era sua filha. Catti-brie descarregou um joelhada na entrepierna do Roddy e, quando este afrouxou a pressão, aproveitou para lhe arranhar o rosto. Repetiu o golpe
em
a entrepierna, com menos efeito, embora o suficiente como para que o movimento defensivo do Roddy lhe permitisse quase escapar. A mão de ferro do Roddy lhe apertou
bruscamente a pulso, e lutaram durante um momento. Então Catti-brie sentiu que alguém a agarrava da outra mão, e, antes de que pudesse compreender o que ocorria,
viu-se livre e em companhia de uma silhueta

escura. --De maneira que vieste a te enfrentar com seu castigo? --exclamou Roddy, encantado ao ver o Drizzt. --Vete --disse o elfo ao Catti-brie. Isto não é assunto
teu. A moça, tremente e muito assustada, não discutiu. As mãos do Roddy empunharam a manga da tocha. O caçador de recompensas tinha combatido antes com o
drow e não tinha a intenção de medir-se com os passos ágeis e as fintas do elfo. Sem perder um segundo soltou ao cão. O sabujo só conseguiu fazer um par
de metros, antes de que Guenhwyvar o lançasse pelos ares de um zarpazo. O animal se levantou, ferido de pouca consideração, mas se manteve a uma distância prudente.
--Já está bem --disse Drizzt, muito sério. Perseguiste-me durante muitos anos e muitas léguas. Reconheço seu empenho embora te tenha equivocado de pessoa. Eu não
matei aos Thistledown. Nunca me tivesse atrevido a elevar minhas armas contra eles! --Ao inferno com os Thistledown! --rugiu Roddy. Crie que eles são a razão
de tudo isto? --Não há nenhuma recompensa por minha cabeça --replicou Drizzt. --Ao inferno com o ouro! --vociferou Roddy. Tirou-me um cão e uma orelha, drow!
Com um dedo sarnento assinalou o flanco da cara marcada. Drizzt queria explicar-se, queria lhe recordar ao Roddy que tinha sido ele quem tinha iniciado a briga,
e que
sua tocha tinha derrubado a árvore que lhe tinha esmigalhado a cara. Mas compreendeu os motivos do Roddy e soube que as palavras não eram suficientes. Tinha ferido
o orgulho do homem, e para alguém como aquilo Roddy era muito pior que qualquer dor física. --Não quero brigas --manifestou Drizzt com firmeza. Chama a
seu cão e vete daqui. Só quero que me dê sua palavra de que não voltará a me perseguir. A risada zombadora do Roddy estremeceu ao drow. --Perseguirei-te até
o fim do mundo, drow! --rugiu Roddy. E sempre te encontrarei! Não haverá nenhum buraco o bastante profundo para te ocultar! Nem mares o bastante largos! Já
tenho-te, drow! E, se escapar, terei-te depois! Roddy mostrou os amarelados dentes em um sorriso repulsivo e avançou com precaução. --Já te tenho, drow --repetiu
quase para si mesmo. de repente carregou e lançou um golpe horizontal com a tocha. Drizzt se separou de um salto. Um segundo ataque obteve idêntico resultado, mas
Roddy,
em lugar de seguir o movimento, investiu-o em um reverso que roçou o queixo do Drizzt. No instante seguinte, sua tocha era um molinete que atacava pelos
dois flancos. --Fica aquieto! --gritou enfurecido enquanto Drizzt esquivava, saltava por cima ou se agachava ao passado da arma. O elfo sabia que corria um grande
risco ao não responder aos golpes, mas confiava em que, se conseguia esgotar ao montanhês, possivelmente pudesse encontrar uma solução pacífica. Roddy era muito
ágil e rápido
para ser um homem tão corpulento; mesmo assim, Drizzt o superava e acreditava poder suportar o jogo durante muito mais tempo. A tocha se moveu em uma trajetória
horizontal
à altura do peito do drow. O golpe era uma armadilha; Roddy pretendia que Drizzt se agachasse para poder lhe dar um chute na cara. Mas o drow advertiu o
engano. Saltou em lugar de agachar-se, deu uma cambalhota por cima da tocha, e aterrissou brandamente, ainda mais perto do Roddy. Agora Drizzt passou à ofensiva,
e estrelou os punhos das cimitarras contra o rosto do

homem. O caçador de recompensas retrocedeu cambaleante, com o nariz cheia de sangue. --Vete --disse-lhe Drizzt, com toda sinceridade. Vete com seu cão ao Maldobar,
ou aonde seja que tenha sua casa. Se Drizzt pensava que Roddy se renderia depois de sofrer uma nova humilhação, cometia um grave engano. Roddy lançou um grito de
raiva e carregou com a cabeça encurvada, disposto a enrolar ao drow. Drizzt amassou a cabeça do homem com os pomos e saltou por cima das costas do Roddy. O
montanhês caiu de bruces, mas imediatamente ficou de joelhos, tirou uma adaga e a lançou antes de que Drizzt pudesse acabar de voltar-se. O elfo viu o brilho
prateado no segundo último e elevou a cimitarra para desviá-la. Outra adaga seguiu à primeira e depois outra, e cada vez Roddy avançava um passo mais para o drow.
--Conheço seus truques, drow --anunciou Roddy, com um sorriso maligno. Com dois passos mais ficou à distância adequada e descarregou outra machadada. Drizzt se mergulhou
para um lado e se levantou uns passos mais à frente. A confiança do homem em suas próprias forças começou a preocupar ao elfo. Os golpes que lhe tinha dado ao montanhês
teriam bastado para derrubar à maioria dos humanos, e se perguntou até quando poderia agüentar seu rival. Este pensamento o levou a inevitável conclusão
de que talvez teria que empregar algo mais que os punhos. Uma vez mais, a tocha atacou pelo flanco. Agora, Drizzt não fez um te regue. Avançou para ficar
dentro do arco da trajetória e a deteve com uma cimitarra, deixando ao Roddy indefeso ao golpe com a outra. Três rápidos puntazos com a direita fecharam um
dos olhos do Roddy, mas o caçador de recompensas só sorriu e se equilibrou sobre o Drizzt, conseguiu sujeitá-lo e caíram ao estou acostumado a abraçados. O drow
se defendeu
como pôde, consciente de que ele era o único culpado desta situação. Na luta corpo a corpo não podia igualar a força do Roddy, e a falta de espaço apagava
a vantagem da rapidez. Roddy manteve a posição e elevou a tocha para rematar ao Drizzt. Um latido do cão amarelo foi a única advertência, mas não chegou
a tempo para evitar o ataque da pantera. Guenhwyvar apartou ao Roddy e o tombou de flanco. O montanhês conservou a serenidade suficiente para atacar à pantera
quando passou por cima dele, e a feriu na garupa. O sabujo se somou ao ataque, mas a pantera se recuperou, rodeou o corpo do Roddy e espantou ao cão. Quando
o montanhês voltou a atenção ao Drizzt, recebeu um vendaval de golpes de cimitarras que não podia seguir nem replicar. Drizzt tinha visto o golpe que tinha ferido
à pantera, e o fogo nos olhos lilás indicava que agora as coisas foram a sério. Um pomo esmagou a cara do Roddy, seguido por um golpe de plano da outra
cimitarra. Um pé o golpeou no peito, o estômago e a entrepierna no que pareceu um só movimento. Imperturbável, Roddy o agüentou tudo com um grunhido,
mas o enfurecido drow não se conteve. Uma cimitarra enganchou a cabeça da tocha, e Roddy tentou atacar, convencido de que podia tombar ao elfo. A segunda cimitarra
golpeou primeiro e abriu um profundo talho no antebraço do homem. Roddy retrocedeu, deixou cair a tocha, e sujeitou com a mão livre o braço ferido. Drizzt não se
deteve. A ofensiva pilhou ao Roddy com o guarda baixo, e uma sucessão de murros e chutes o fizeram cambalear. Então Drizzt deu um salto e lançou os dois
pés juntos contra a mandíbula do Roddy, que se desabou. Quando este tentou levantar-se, o impediram os fios das cimitarras cruzadas contra a garganta.
--Disse-te que te largasse --declarou Drizzt com uma voz terrível, sem apartar as

armas nem um milímetro para que o homem pudesse sentir o frio do aço contra a pele. --me mate --disse Roddy muito tranqüilo, ao adivinhar uma debilidade no oponente--,
se tiver guelra. Drizzt vacilou, embora não desapareceu de seu rosto a expressão de fúria. --Vete --repetiu com toda a calma que pôde, uma calma que dissimulava
o calvário pelo que teria que acontecer. Roddy lhe riu nas barbas. --me mate, asqueroso demônio negro! --gritou provocador, embora sem tentar levantar-se.
me mate ou te agarrarei! Não o duvide, drow! Perseguirei-te até o último rincão do mundo e debaixo da superfície se for preciso! --Drizzt empalideceu e olhou ao
Guenhwyvar
em busca de apoio. Me mate! --chiou quase histérico e, sujeitando as pulsos do Drizzt, empurrou-as contra ele. Duas linhas de sangue apareceram no pescoço do
homem. Me mate como matou a meu cão! --Horrorizado, o drow tentou apartar-se sem consegui-lo. Não tem estômago para fazê-lo? --vociferou o caçador de
recompensas. Então deixa que te ajude! Sacudiu as pulsos do Drizzt, e os cortes se fizeram mais profundos. Se o enlouquecido homem sentia dor, o sorriso
nota desmentia. Um sem-fim de emoções contraditórias sacudiram ao Drizzt. Naquele momento queria matar ao Roddy, mais como uma resposta à frustração que
como vingança, e entretanto sabia que não podia fazê-lo. Para ele, o único crime cometido pelo Roddy era esta perseguição implacável, e não era razão suficiente.
De acordo com seus princípios, Drizzt tinha que respeitar a vida humana, inclusive a de alguém tão ruim como Roddy McGristle. --me mate! --repetia uma e outra vez
Roddy, que desfrutava com a repugnância do drow. --Não! --gritou-lhe Drizzt à cara com tanta força que silenciou ao caçador de recompensas. Enfurecido até tal
ponto que era incapaz de conter o tremor dos músculos, Drizzt não esperou a que Roddy voltasse a gritar como um louco. Empurrou a cabeça do Roddy com o joelho,
liberou as pulsos das mãos do homem, e o golpeou nas têmporas com as mangas das cimitarras. Roddy pôs os olhos vesgos, mas não perdeu o conhecimento,
e sacudiu a cabeça, teimado por livrar-se dos efeitos dos golpes. Drizzt o esmurrou uma e outra vez, até conseguir desabá-lo, horrorizado por suas ações
e o contínuo desafio do caçador de recompensas. Quando esgotou sua fúria, permaneceu de pé junto ao homem tendido, tremendo de emoção e com lágrimas nos olhos.
--Espanta a esse cão! --gritou ao Guenhwyvar. Soltou as cimitarras e se agachou para comprovar que McGristle não tinha morrido. Roddy abriu os olhos e viu o cão
amarelo a seu lado. Caía a noite, e o vento voltava para soprar com força. Doíam-lhe a cabeça e o braço, mas não fez caso da dor; só desejava reatar a
perseguição, seguro de que Drizzt nunca teria a coragem de matá-lo. O sabujo encontrou o rastro, que ia para o sul, e ficaram em marcha. O entusiasmo
do Roddy se esfriou um pouco quando, ao rodear um saliente, topou-se com um pequeno de barba vermelha e a moça, que o esperavam. --Não teria que haver meio doido
a minha menina, McGristle --manifestou Bruenor, com voz tranqüila. --Ela é cúmplice do drow! --protestou Roddy. Avisou ao demônio assassino de minha presença! --Drizzt
não
é um assassino! --gritou Catti-brie. Ele não matou aos granjeiros! Disse que só o diz para que outros lhe ajudem a capturá-lo!

Catti-brie compreendeu de repente que acabava de admitir ante seu pai que se reuniu com o drow. Quando a moça tinha encontrado ao Bruenor, só lhe havia
falado do mau trato sofrido à mãos do McGristle. --foste ver o --disse Bruenor, ferido. Mentiste-me, estiveste com o drow! Disse-te que não, e você me...
A recriminação do Bruenor afetou profundamente à moça, mas se manteve firme em suas convicções. Bruenor lhe tinha ensinado a ser honrada, e isto incluía ser
honrada com o que era correto. --Uma vez me disse que todo mundo recebe o que se merece --replicou Cattibrie. Que cada um é diferente e que deve ser tratado
por isso é. estive com o Drizzt e acredito que é sincero. Ele não é um assassino! E ele --a moça assinalou ao Roddy-- é um mentiroso! Não me orgulho por mim
mentira, mas nunca permitirei que apanhe ao Drizzt! Bruenor pensou nas palavras de sua filha por um momento, depois lhe rodeou a cintura com um braço e a estreitou
com força. O engano da moça ainda lhe doía, mas estava orgulhoso de que estivesse disposta a lutar pelo que acreditava. Em realidade, Bruenor tinha acudido
ali, não em busca do Catti-brie, a que acreditava nas minas desafogando seu mau humor, a não ser para encontrar ao drow. Não tinha deixado de pensar na batalha contra
o remorhaz, e tinha chegado à conclusão de que Drizzt se apresentou com a intenção de ajudá-lo, não de brigar contra ele. Agora, à vista dos últimos
acontecimentos, já não ficavam mais dúvidas. --Drizzt veio e me liberou dele --acrescentou Catti-brie. Salvou-me a vida. --O drow a enganou --afirmou Roddy, ao
pressentir
a mudança de atitude do Bruenor e sem nenhuma ganha de lutar com o perigoso pequeno. Digo-te que é um cão assassino, e também o diria Bartholemew Thistledown
se os mortos pudessem falar! --Ora! --exclamou Bruenor. Não conhece minha menina, ou o pensaria duas vezes antes de chamá-la mentirosa! E lhe hei isso dito antes,
McGristle, eu não gosto que maltratem a minha filha! Penso que teria que sair de meu vale. Acredito que deveria ir agora mesmo. Roddy grunhiu e o mesmo fez o cão,
que saltou entre o montanhês e o pequeno e lhe mostrou os dentes. Bruenor encolheu os ombros, despreocupado, e lhe devolveu o grunhido, coisa que provocou ainda
mais
à besta. O cão lançou uma dentada contra o tornozelo do pequeno, mas este, com grande agilidade, colocou-lhe a grossa expulsa entre as fauces e lhe esmagou a mandíbula
inferior contra o chão. --E te leve a seu sujo cão contigo! --rugiu Bruenor, que, ao admirar o carnudo costillar do cão, pensou que ele podia lhe dar melhor
uso ao animal. --Eu vou aonde me agrada, anão! --respondeu Roddy. vou caçar ao drow, e, se o drow estiver em seu vale, ninguém me tirará daqui! Bruenor advertiu
a frustração na voz do homem, e então se fixou nas marcas dos golpes no rosto do Roddy e a ferida no antebraço.
--O drow te deu uma boa surra e se foi --afirmou o pequeno, e sua gargalhada sentou ao McGristle como uma bofetada. --Não irá muito longe --prometeu Roddy. E nenhum
pequeno se interporá
em meu caminho! --Volta para as minas --disse Bruenor ao Catti-brie. Avisa a outros que talvez chegue um pouco tarde para o jantar. O pequeno agarrou a tocha que
levava no ombro. --lhe dê uma boa --murmurou Catti-brie, sem duvidar nem por um instante da capacidade de seu pai. Deu-lhe um beijo no casco, e pôs-se a correr
feliz. Seu pai confiava nela: nada

podia ir mau. Roddy McGristle e seu cão com três patas não demoraram muito em abandonar o vale. O montanhês tinha advertido qual era a debilidade do Drizzt e havia
pensado que podia vencê-lo, mas não ocorreu o mesmo com o Bruenor Battlehammer. Quando o pequeno tombou ao Roddy, coisa que não lhe levou muito, o homem não duvidou
nem por
um segundo que, se tentava repetir o jogo e lhe pedir que o matasse, Bruenor o agradaria. Do alto da ladeira sul, aonde tinha ido jogar uma última
olhar a Dez Cidades, Drizzt viu que a carreta saía do vale, e suspeitou que pertencia ao caçador de recompensas. Não sabia o que significava, mas estava seguro
de que Roddy não tinha trocado suas intenções. O drow jogou uma olhada a seus pertences e pensou no caminho a seguir. Começaram a acendê-las luzes dos
povos, e Drizzt as contemplou emocionado. Tinha estado muitas vezes nesta cúpula, pois adorava o panorama que se divisava desde ela, e a considerava
como seu lar. Que distinta lhe resultava agora a vista! A aparição do McGristle o havia devolvido à realidade, lhe recordando que era um emparelha e que sempre
seria igual. --"Drizzit" --murmurou para si mesmo, uma palavra maldita. Naquele momento, Drizzt não acreditava que alguma vez chegaria a ter um lar, não acreditava
que um
drow, embora não fora tal em seu coração, pudesse ter um sítio nos Reino, na superfície ou na Antípoda Escura. A esperança, sempre esquiva no fatigado
coração do elfo, tinha pirado para sempre. --Este lugar se chama a cúpula do Bruenor --disse uma voz áspera detrás do Drizzt. O elfo se voltou disposto a escapar,
mas o pequeno de barba vermelha estava muito perto e lhe fechava o passo. Guenhwyvar correu ao flanco do Drizzt e mostrou os dentes. Aparta a seu mascote, elfo
--acrescentou Bruenor. Se o gato souber tão mal como o cão, não quero nem vê-la! Este lugar é meu, porque eu sou Bruenor e esta é a cúpula do Bruenor! --Não vi
nenhum sinal de propriedade! --replicou Drizzt indignado, farto de tantos inconvenientes. Agora sei que é tua e portanto irei. Tem minha palavra, anão, não
voltarei. Bruenor tendeu uma mão para silenciar ao drow e impedir que se fora. --Não é mais que um montão de pedras --repôs Bruenor a modo de desculpa, algo pouco
freqüente nele. Pu-lhe meu nome, mas por isso é minha? Não é mais que um maldito montão de pedras! --Drizzt torceu a cabeça ante as inesperadas divagações
do pequeno. Nada é o que parece, drow! --declarou Bruenor. Nada! A gente tenta ater-se ao que sabe! Mas então descobre que não sabe aquilo que pensava
que sabia! Pensava que o cão teria bom sabor, parecia apetitoso, mas agora a barriga amaldiçoa cada vez que me movo! A segunda menção ao cão fez que
Drizzt compreendesse a súbita partida do caçador de recompensas. --Você lhe ordenou que partisse --disse Drizzt, assinalando a estrada de saída do vale.
apartaste ao McGristle de meu rastro. Bruenor apenas se emprestou atenção a suas palavras, e em qualquer caso não teria admitido a boa ação. --Nunca confiei
nos humanos --afirmou, com voz pausada. Nunca sabe o que querem e, quando o descobre, muitas vezes é muito tarde para fazer nada! Mas sempre hei
tido as idéias claras respeito a outras gente. depois de tudo, um elfo é um elfo, e o mesmo passa com os pequenos. E os orcos são estúpidos e feios. Nunca encontrei
nenhum que não o fora, e conheci a uns quantos! Bruenor aplaudiu a tocha, e Drizzt entendeu o gesto. --E o que penso dos drows? Nunca conheci nenhum,
nunca quis

conhecê-los. Quem quer, pergunto eu? Os drows são maus, têm o coração perverso, é o que me disse meu pai e o pai de meu pai, e o que me dizem todos
outros. --Bruenor olhou as luzes do Termalaine, junto ao lago do Maer Dualdon, ao oeste; sacudiu a cabeça e chutou uma pedra. Agora escuto que um drow ronda
por meu vale, e o que deve fazer um rei? Então minha filha vai ver o! --Um súbito fogo apareceu nos olhos do Bruenor, mas se apaziguou rapidamente, quase envergonhado,
assim que olhou ao Drizzt. Mentiu-me à cara! Nunca o tinha feito antes, e nunca mais voltará a me mentir se souber o que lhe convém. --Não foi culpa dela --começou
a dizer Drizzt, mas Bruenor moveu frenético as mãos para indicar que o tema já estava esquecido. --Pensei que sabia o que sabia --prosseguiu Bruenor depois de
uma breve pausa, sua voz quase como um lamento. Tinha tudo muito claro. É fácil quando não sai de seu buraco. --Olhou diretamente aos olhos do drow. A cúpula
do Bruenor? -- perguntou o pequeno, e encolheu os ombros com um gesto de resignação. Do que serve pôr seu nome a um montão de pedras? Entretanto, pensei que
sabia, e também pensei que a carne de cão podia ser saborosa. --Bruenor se esfregou o estômago e franziu o sobrecenho. Dava que é um montão de pedras, e não
terei mais direito que você! Dava que se chama a cúpula do Drizzt, e poderá me jogar a chutes! --Não o faria --respondeu Drizzt em voz baixa. Não sabia que podia
fazê-lo se o desejava! --Chama-a como quer! --gritou Bruenor, de repente angustiado. E dava que um cão é uma vaca! Isso não trocará o gosto da carne. --Bruenor
levantou as mãos frustrado, deu-lhe as costas, e pôs-se a andar costa abaixo, sem deixar de resmungar. E não se esqueça de vigiar a minha filha --escutou Drizzt
que dizia--,
se for tão teimosa para ir passeio por estas montanhas cheias de orcos e vermes pestilentos. Inteira-se de que te farei responsável... O resto se perdeu no
momento em que Bruenor desapareceu em uma curva. Drizzt não sabia por onde começar a interpretar as divagações do pequeno, mas tampouco precisava pôr em ordem
as palavras do Bruenor. Apoiou uma mão na cabeça do Guenhwyvar, e rogou para que a pantera compartilhasse com ele a maravilha da vista panorâmica. Drizzt compreendeu
então que voltaria muitas vezes aqui, à cúpula do Bruenor, a contemplar como se acendiam as luzes. Porque, entre as muitas coisas que havia dito o pequeno,
tinha deduzido uma frase que tinha esperado ouvir durante muitos anos: Bem-vindo a casa.

Epílogo

De todas as raças dos Reino, nenhuma é mais difícil de entender, ou mais desconcertante, que a humana. Mooshie me ensinou que os deuses, mais que entidades exteriores,
são a personificação do que há em nossos corações. Se isto for verdade, então os muitos e diversos deuses das seitas humanas --deidades de comportamentos
muito diferentes-- ensinam-nos muito sobre a raça. Se encontrar a um halfling, a um elfo, a um pequeno, ou a qualquer das outras raças, boas ou más, tem
uma idéia bastante correta do que pode esperar. Há exceções, certamente, e me ponho como o melhor exemplo. Um pequeno será duro, embora justo, e nunca conheci
a um elfo disposto a trocar os céus abertos por uma cova. Em troca, as preferências de um humano só as conhece ele, se é que se esclarece. portanto,
em términos de bem e mau, a raça humana deve ser julgada com muito cuidado. briguei contra vis assassinos humanos, conheci a magos humanos tão enlouquecidos
com seu poder que destruíam sem piedade a todos os seres que encontravam a seu passo, e vi cidades onde grupos de humanos exploravam aos desafortunados de
sua própria raça, vivendo em grandes palácios enquanto os outros homens e mulheres, e inclusive os meninos, morriam de fome entre o lixo das ruas. Mas também
conheci a outros humanos --Catti-brie, Mooshie, Wulfgar, Agorwal do Termalaine-- cuja honra não pode ser questionado e cujas contribuições ao bem-estar dos
Reino durante sua curta vida superarão o que têm feito a maioria dos pequenos e os elfos, que podem chegar a viver quinhentos anos ou mais. Certamente é uma
raça desconcertante, e o destino do mundo está cada vez mais em suas mãos. Pode ser uma situação complexa, mas nada aborrecida. A raça humana é a única das
raças "boas" capaz de sustentar uma guerra entre seus membros, com uma freqüência preocupem-se. Os elfos da superfície são os que têm mais esperança depositadas
nela. Eles, que vivem tanto tempo e viram o nascimento de muitos séculos, têm fé em que a raça humana maturará para o bem de todos, que desaparecerá
o mal de seu seio, e deixará o mundo para os que fiquem. Na cidade onde nasci fui testemunha das limitações do mal: a autodestruição e a incapacidade de
conseguir grandes coloque, inclusive as metas apoiadas na aquisição de poder. Por esta razão, eu também tenho minhas esperanças postas nos humanos, e nos Reino.
Assim como são os mais diversos, também são os mais maleáveis, os que com maior facilidade podem estar em desacordo com aquilo que sabem que é falso dentro de
si mesmos. Minha própria sobrevivência esteve apoiada na crença de que há um propósito superior nesta vida, que os princípios são uma recompensa em si mesmos.
portanto, contemplo o futuro com grandes esperança e com o convencimento de que posso ajudá-los a alcançar grandes objetivos. Esta é minha história, tão completa
como posso recordá-la e ampla até onde desejei. Minha vida foi um comprido caminho cheio de tropeços e dificuldades, e só agora, depois de ter acontecido tantas
coisas, sou capaz de contá-la com toda sinceridade. Nunca poderei recordar o passado com um sorriso, pois o preço foi muito terrível. Entretanto, lembrança
muito freqüentemente ao Zaknafein, ao Belwar, ao Mooshie, e a todos os outros amigos que deixei atrás.


Também recordei com freqüência aos muitos inimigos com os que me enfrentei, as muitas vidas que se truncaram por minhas cimitarras. A minha foi uma vida
violenta em um mundo violento, cheio de inimigos dispostos a acabar comigo e com aqueles que estimava. Elogiaram-me pelo fio de minhas cimitarras, por minhas habilidades
na batalha, e devo admitir que eu também me hei sentido orgulhoso de minha capacidade no combate. De todos os modos, nos momentos de calma, quando reflito sobre
ocorrido-o, lamento que as coisas não tenham sido diferentes. Dói-me recordar ao Masoj Hun'ett, o único drow que matei; foi ele quem começou a briga e, por
certo, me teria matado com não ter sido eu o mais forte. Posso justificar minhas ações naquele dia desgraçado, mas nunca poderei aceitar sua necessidade. Tem que
existir
uma maneira melhor de resolver as coisas que não seja a espada. Em um mundo tão cheio de perigos, onde ao parecer espreitam os orcos e os trolls à volta de cada
curva do caminho, aquele que é capaz de lutar freqüentemente é saudado como um herói e recebe grandes aplausos. Eu digo que há algo mais que o manto do "herói",
que a força do braço ou a capacidade para o combate. Mooshie era um autêntico herói, porque tinha superado a adversidade, porque nunca vacilava ante as situações
mais comprometidas, e sobre tudo porque atuava submetido a uns princípios bem definidos. pode-se dizer menos do Belwar Dissengulp, o pequeno sem mãos das profundidades
que fez amizade com um drow renegado? Ou do Clak, que ofereceu sua vida para salvar a do amigo? Da mesma maneira, nomeio herói ao Wulfgar do vale do Vento
Gelado, que se manteve firme aos princípios por cima do anseia de batalha. Wulfgar superou os maus ensinos de uma infância selvagem, e aprendeu a ver o mundo
como um lugar de esperança e não como algo que se devia conquistar. E Bruenor, o pequeno que ensinou ao Wulfgar esta importante diferencia, é o rei de mais pleno
direito
de todos os Reino. Encarna os mandamentos que mais estima seu povo, e eles o defenderiam com a vida, dispostos a morrer lhe dedicando uma canção enquanto agonizam.
Ao final, quando meu pai encontrou o valor para rechaçar à matrona Malícia, também ele foi um herói. Zaknafein, que, ao longo de quase toda sua vida, tinha perdido
a batalha ante seus princípios e sua identidade, acabou por ser o vencedor depois de morto. Não obstante, nenhum destes guerreiros supera à moça que conheci
quando cheguei a Dez Cidades. Entre toda a gente que conheci, nenhum vive de acordo com umas normas de honra e decência tão elevadas como as do Catti-brie.
Ela viu muitas batalha, mas seus olhos brilham com a claridade da inocência e seu sorriso resplandece sem mácula. Triste será o dia, e todo mundo o
lamentará, quando uma nota discordante de cinismo rompa a harmonia de sua melodiosa voz. Freqüentemente, aqueles que me chamam herói se referem só a minha capacidade
para
o combate e não sabem nada dos princípios que guiam minhas cimitarras. Aceito o nome pelo que vale, para satisfação deles, não minha. Quando Catti-brie me
chame herói, então deixarei que meu coração se inflame com o orgulho de saber que fui julgado por meus princípios e não por meu braço armado. Só então me
atreverei a acreditar que o título está justificado. E assim acaba minha história. Agora me sinto junto a meu amigo, o justo rei do Mithril Hall, e tudo é quietude, paz
e prosperidade. Este drow encontrou seu lar e seu lugar. Mas devo recordar que sou jovem, que ainda ficam dez vezes mais anos dos que já vivi.
E que, apesar de minha atual felicidade, o mundo não deixou que ser um lugar perigoso, onde um vigilante não só deve sustentar os princípios mas também também empunhar as armas. Posso acreditar que o contei tudo? Penso que não.

 

 

                                                    R. A. Salvatore         

 

 

 

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