Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O REGRESSO
Terceira Parte
1942
Alojamentos do WRENS Horth End Portsmouth
Sexta-feira, 23 de janeiro
Queridos mamãe e papai
Não recebi mais nenhuma carta de vocês, desde a que enviaram logo depois do Ano-Novo e, portanto, imaginei que não tivessem podido escrever ou que, talvez, apenas algo esteja errado com os correios. Pode ser também que não haja suficientes navios (para correspondência) ou aviões. De qualquer modo, enviarei esta para OrchardRoad, na esperança de que ainda estejam nesse endereço ou de que alguém a faça chegar às suas mãos. Todos os dias leio os jornais e ouço os noticiários. Estou muito ansiosa sobre vocês, já que a cada dia parece haver mais e mais avanços japoneses em direção às Filipinas, Manilha, Rangoon e Hong Kong. Além disso, o Prince ofWales e o Repulse foram afundados, e agora Kuala Lumpur caiu. Tudo demasiado perto de vocês. O que está acontecendo? Por que ninguém parece capaz de detê-los? Tentei ligar para tio Bob em Scapa Flow, para saber se ele poderia obter alguma informação sobre vocês e, claro está, não pude completar a ligação. E, mesmo que a completasse, acho que não conseguiria falar com ele.
Assim, telefonei para Loveday, a fim de saber se tinha notícias de Gus. (Gus Callender, que faz parte do Segundo Gor-dons, em Cingapura. Faz algum tempo, vocês escreveram contando que o tinham conhecido em uma festa nos Quartéis de Selarig—que ele se aproximara e se apresentara. Lembram-se?) Bem, Gus e Loveday escrevem um para o outro com grande freqüência, e pensei que ela poderia ter qualquer notícia, porém Loveday também não vem recebendo cartas ultimamente. Ela imagina que Gus esteja indo para algum lugar ou fazendo manobras. Qualquer coisa.
Assim, continuei de mãos abanando.
Esta manhã, fui ao gabinete do capitão-de-corveta Crombie apanhar algumas cartas assinadas (ele é meu chefe, incumbido do setor do Incremento de Instrução Militar), e o encontrei lendo o jornal — algo que não devia estar fazendo, tenho certeza. Ele então perguntou:
- Sua família está em Cingapura, não?
Foi uma pergunta inesperada, uma vez que não costuma ser um homem muito amistoso. Não sei como ele sabia, mas suponho que a Wren primeiro-oficial lhe tenha contado. De qualquer modo, falei a ele sobre todos vocês e que estava muito ansiosa. Meu chefe respondeu que, no momento, as coisas pareciam negras em toda parte (não estamos indo bem em nenhum lugar, inclusive na África do Norte), porém garantiu-me que Cingapura era invencível, não apenas por sua posição de fortaleza, mas por ser tão pesadamente defendida. Espero que ele esteja certo, porém não gosto de imaginar nenhuma espécie de cerco. Por favor, mamãe, se tiver oportunidade de ser evacuada para algum lugar mais seguro, vá! Sempre poderá voltar, depois de terminado o perigo.
Agora que desabafei meus temores, posso falar de mim. O frio tem estado terrível, e estes alojamentos são como uma geladeira. Esta manhã havia gelo em minha água de beber! Acordei, e Portsdown Hill não estava verde, mas branca de neve. não muito espessa, e que agora já derreteu. Sempre me alegra ir trabalhar, porque a cabana que é nosso gabinete pelo menos está quente. Amanhã terei uma folga de fim de semana e passarei uma noite em Londres. (Não se preocupem, parece que, por ora, cessou a pior fase dos ataques.) Vou ficar em Cadogan Mews, que ainda está de pé e não foi bombardeada. Heather Warren também irá a Londres, vindo de seu altamente secreto sei-lá-o-que-seja. Não tornei a vê-la desde o início da Guerra, porque, ao nos mudarmos para a Dower House, ela começou a trabalhar e deixou Porthkerris. Por duas ou três vezes tentamos promover um encontro, mas Heather parece ter folgas em dias peculiares, jamais nos fins de semana, único tempo que posso arranjar. Por fim conseguimos marcar esta reunião, e stou realmente ansiosa por revê-la. Creio já lhes ter dito que Charlie Lanyon é prisioneiro de guerra na Alemanha. Não muito divertido para ele, mas preferível à alternativa.
Enfim, vou encontrá-la à porta do "Swan & Edgar", e depois iremos almoçar, após o que talvez assistamos a um concerto. Adoro comprar o que Athena chama de "uma roupinha", mas como agora uso uniforme, não tenho cupons para roupas, precisando mendigá-los com Phyllis ou Biddy.
De vez em quando recebo uma carta de Nancherrow. Athena escreveu, porque queria enviar-me um instantâneo de Clementina, que agora está com dezoito meses e começando a andar. Devo dizer que ela parece uma bonequinha. Rupert, o marido de Athena, está agora na África do Norte, com a Divisão de Blindados. Nada mais de cavalaria, e sim tanques. Ela recebeu carta dele, que lhe enviou esta piada. Um oficial inglês partiu para o deserto em uma patrulha secreta, sozinho e montando um camelo. Após alguns dias, o QG recebeu um informe que dizia, "Retornando imediatamente, Rommel capturado." Todos comemoraram, dando saltos de alegria. Contudo, o que ele realmente tinha dito era: "Retornando imediatamente, Camelo arrebentado."
Não é muito divertida, mas pensei que papai acharia graça.
Por favor, entrem em contato comigo assim que lhes for possível, para minha tranqüilidade a respeito de todos vocês.
Recebam montanhas do meu amor,
Judith
Jogo de Palavras com Rommel (marechal alemão que comandou o Afrikakorps na Líbia e Egito durante a Segunda Guerra Mundial) e camel (camelo, em inglês), e ured (capturado) e ruptured (arrebentado). (N. da T.)
Os alojamentos das Wrens, as mulheres que faziam parte do Serviço Feminino da Marinha Real, eram um bloco de apartamentos requisitados, na extremidade norte de Portsmouth, erguido no ar durante a década de trinta, por algum construtor que utilizava materiais de qualidade inferior. O bloco situava-se na esquina da rua principal com uma monótona ruela suburbana, sendo difícil qualquer outro prédio arrebatar-lhe o primeiro lugar em questão de feiúra, desconforto e inconveniência. Construído em tijolos vermelhos e estilo moderno tinha teto plano, quinas arredondadas e horríveis janelas de aço. Não possuía um balcão ou jardins para suavizar sua fachada desumana, e nos fundos havia um pátio acimentado, onde um dia os infortunados inquilinos tinham pendurado sua roupa lavada, mas que a Marinha transformara, com divisórias e abrigos, em estacionamento para as bicicletas das Wrens.
Dotado de três pavimentos, o prédio continha doze apartamentos, todos idênticos. O acesso aos mesmos era através de uma escada de pedra, uma vez que não havia elevadores. Os apartamentos eram muito pequenos. Sala de estar, dois quartos, cozinha e banheiro. O prédio não dispunha de aquecimento central, por isso, não contava com lareiras nem chaminés. Somente a sala de estar e o corredor estreito eram providos de aquecedores elétricos, embutidos na parede, mas mesmo estes tinham sido desativados, por questões de economia de combustível. No inverno, o frio era tão intenso, que realmente chegava a ser doloroso.
Dez jovens ocupavam cada apartamento, dormindo em beliches duplos, no estilo da Marinha. Quatro na sala de estar, quatro no dormitório principal e duas no segundo quarto, que havia sido claramente destinado a uma criança muito pequena ou a um parente idoso, igualmente pequeno e sem importância. Judith e uma jovem chamada Sue Ford partilhavam este apinhado apartamento, que era, ela podia assegurar, do mesmo tamanho que a despensa da Dower House, e três vezes mais frígido. Sue, uma alta e lânguida criatura originária de Batn, era chefe Wren no Serviço de Comunicações, isto significando que trabalhava em turnos, situação bastante conveniente, pois ali dentro não havia espaço para duas pessoas se vestirem — ou se despirem ao mesmo tempo.
A cantina das Wrens ficava no porão, em permanente condição
De black-out e protegido por sacos de areia, posto que servia à dupla finalidade de refeitório e abrigo antiaéreo. O breakfast era às sete e a refeição da noite também às sete, e Judith por vezes pensava que seria capaz de gritar, se lhe pusessem à frente outra fatia de carne enlatada, outro ovo mexido desidratado ou outro amarelo pedaço de couve-flor, extraído de um jarro de picles apimentados.
Desta maneira, com uma e outra coisa, chegava a ser um alívio poder sair, afastar-se dali, ir a Londres, mesmo que por uma única noite. Envolta em seu casacão e levando uma sacola com artigos para passar a noite fora, Judith registrou sua saída no Gabinete de Regulamentos e depois saiu para a manhã frígida, pensando em tomar um ônibus que a levasse à estação ferroviária. (Podia ter ido pedalando, é claro, porém isso significaria ter de deixar a bicicleta na estação, e talvez não tornar a encontrá-la lá, quando voltasse. Além disso, sua bicicleta era uma parte tão essencial da existência, que ela não ousava arriscar-se a vê-la roubada.)
De qualquer modo, não precisou esperar condução, porque quando estava na parada de ônibus, surgiu um caminhão da Marinha Real. O jovem marinheiro ao volante a viu, parou e inclinou-se para abrir a porta.
— Quer uma carona?
— Sim, quero.
Ela entrou no caminhão e bateu a porta atrás de si.
— Para onde?
— Para a estação. Obrigada — acrescentou ela.
—Está de folga? —perguntou ele, começando a rodar novamente, engrenando a mudança com um ruído de arrepiar.
— Só por um fim-de-semana.
— E para onde vai?
— Londres.
— Garota de sorte, indo para a Fumaceira. Eu sou deackney. Pelo menos costumava ser. A casa de minha mãe foi bombardeada durante a blitz. Ela agora está morando com uma prima, em Balham. Que frio infernal, não? Quer um cigarrinho?
— Eu não fumo, obrigada.
— Qual o horário do seu trem?
Londres. (N. da T.)
- Está programado para dez e quinze.
Se ele chegar a tempo.
Não chegou. Estava atrasado, porém isso não era surpresa. Atrasado para chegar à plataforma, e atrasado para partir. Judith ficou por ali durante algum tempo, batendo os pés para manter a circulação em andamento, e então, quando por fim os passageiros tiveram permissão para embarcar, ela entrou desafiadoramente em um compartimento de primeira classe. Seu bilhete era para a terceira classe, porém um destacamento de marinheiros com a equipagem completa viajava também para Londres, e ela não se sentiu com forças suficientes para abrir caminho à força pelos corredores lotados em busca de assento somente para terminar sentada em uma mochila de equipamento atirada a um canto, perto de um dos fedorentos banheiros. Se o coletor de passagens surgisse no trecho de Portsmouth a Waterloo — o que era freqüente não acontecer — ela se limitaria a pagar os poucos xelins a mais e continuar onde se encontrava.
Por sorte, o trem estava abafado e superaquecido. Judith tirou o casaco, o gorro, e os colocou, juntamente com sua sacola, no bagageiro acima do banco. Então sentou-se em um canto, perto da janela enegrecida de fuligem. Seu único outro companheiro era um comandante dos VRMR — os Voluntários da Reserva da Marinha Real — ja profundamente absorto em seu jornal e, claro, sem a menor disposição para conversar. Judith também comprou um jornal, um Daily ielem graph, porém o deixou em seu colo e ficou olhando através do vidro sujo para a estação, mal registrando os danos de uma explosão de bomba, porque tudo aquilo já se tornara demasiado familiar, era um parte da vida. Em sua cabeça, ela fez planos. Chegar a Waterloo. Pegar o trem subterrâneo para Sloane Square. Caminhar até Cadogan Mews e tirar as roupas da sacola e, havendo tempo, trocar o uniforme Por trajes civis. Em seguida, outro subterrâneo para Piccadilly Circus.
Foi então que percebeu um desconfortável e seco prurido no fundo da garganta, o que era sempre o clássico início de um dos seus pequenos resfriados. Quando criança, Judith não fora vítima de resfriados, mas desde que se juntara às Wrens, e vivendo em tão íntima proximidade
Com outras pessoas, sofrera pelo menos três, um dos quais se transformara em séria gripe, exigindo uma permanência de cinco dias na enfermaria..
Vou ignorar você, disse para o prurido, expulsando da mente a recordação de Sue Ford, chegando de seu turno daquela noite com o nariz escorrendo. Não lhe darei importância, e você irá embora. Tenho dois dias de licença, e você não irá arruiná-los para mim. Tinha aspirinas em sua bolsinha de cosméticos. Assim que chegasse a Cadogan Mews, tomaria uma aspirina. Isso devia sustentá-la no correr deste dia, e o amanhã cuidaria de si mesmo.
Ouviu o guarda descendo a plataforma, fechando as pesadas portas, isto significando que em breve, finalmente, estariam a caminho. Nesse momento, uma terceira pessoa se juntou a ela e ao comandante dos VRMR, um tenente da Marinha Real, em toda a alvura de seu melhor uniforme, e um longo e luxuoso sobretudo caqui. Ele viera pelo corredor.
— Com licença. Este assento está ocupado?
Era evidente que não estava. O comandante dos VRMR mal lhe notou a presença, e foi Judith quem respondeu.
— Não.
— Que sorte a minha!
Ele fechou a porta ao entrar, tirou o quepe e o sobretudo, acomodou-os no bagageiro acima do banco, encolheu os joelhos a fim de examinar sua aparência no espelho, alisou o cabelo com a mão, e finalmente arriou no assento fronteiro ao de Judith.
— Nossa! Por pouco eu não conseguia!
O coração dela ficou opresso. Já o conhecia. Não gostaria de conhecê-lo, mas o conhecia. Anthony Borden-Smythe. Conhecera-o no Clube dos Oficiais Subalternos, em Southsea, onde fora com Sue Ford e dois jovens subtenentes. Anthony Borden-Smythe estava sozinho e fizera o possível para se juntar ao grupo, mantendo-se sempre perto dos quatro, em uma atitude francamente maçante, intrometendo-se na conversa e pagando rodadas de drinques com embaraçosa generosidade. Entretanto, ele se revelara impermeável como um rinoceronte, sobrevivera a piadas, e inclusive insultos. Por fim, Judith, Sue e seus acompanhantes acabaram desistindo e transferiram-se para o ”The Silver Prawn”.
Anthony Borden-Smythe. Sue o apelidara de Anthony Boçal Smith, e dizendo que ele provinha da ilustre família Boçal, que seu pai havia sido a boçalidade da Inglaterra e seu avô um famoso Boçal do Jogos Olímpicos.
Infelizmente, ele a reconheceu em seguida.
— Olá! Isto é mesmo um golpe de sorte!
— Olá.
— Judith Dunbar, não? Foi o que pensei. Lembra-se? Nós nos conhecemos no COS. Uma festa e tanto. Pena vocês terem ido embora.
— Sim.
O trem, por fim, começou a rodar. Entretanto, isso apenas piorava a situação, porque agora ela estava encurralada.
— Vai para a cidade?
— Para Londres, sim.
— Boa pedida. Eu também. Vou encontrar minha mãe para almoçar. Ela ficará alguns dias ausente de nossa propriedade no campo
Judith olhou para ele com raiva e tentou imaginar sua mãe, concluindo que ela provavelmente teria semelhança com um cavalo. Anthony parecia-se um pouco com um cavalo. Um cavalo magérrimo, de orelhas enormes, muitíssimos dentes e longas, muito longas pernas que se enroscavam entre si. Um pequeno bigode desenhava-se em seu lábio superior. A única coisa atraente nele era seu belo uniforme.
— Onde é o seu posto?
— No HMS Excellent — respondeu ela.
— Oh, Waley. Como se relaciona com todos aqueles artilheiros de polainas? Aposto que por lá não é muito divertido.
Judith pensou, com afeto e lealdade, no taciturno capitão-de-corveta Crombie.
— Relaciono-me muito bem, obrigada.
— Fiz meu curso de artilharia lá, naturalmente. Nunca fui tão bem-sucedido em toda a minha vida. Onde é que vai ficar em Londres-
Judith mentiu.
— Eu tenho uma casa. Ele arqueou as sobrancelhas.
— É mesmo? Tem casa em Londres? — Ela evitou explicações, deixando-o imaginar um prédio de seis andares, em Eaton Square
Eu geralmente vou para meu clube, mas como minha mãe está na cidade, provavelmente ficarei com ela. Pembroke Gardens.
— Que ótimo.
— Tem compromisso para esta noite? Não gostaria de ir ao ”Quags” comigo? Ofereço-lhe um jantar e tanto. Poderíamos dançar. Continuar no ”Coconut Grove”. Eles lá me conhecem. Sempre posso arranjar uma mesa.
Ela pensou: ”Eu nunca conheci, nunca vi nenhum homem tão insuportável como você”.
— Sinto muito, mas não vou poder.
— Compromisso anterior, hein?
— Vou encontrar uma pessoa amiga. Ele sorriu sugestivamente.
— M ou F?
— Como?
— Uma pessoa Masculina ou Feminina?
— Uma amiga.
— Formidável. Posso arranjar um conhecido. Formaremos um quarteto. Ela é tão bonita quanto você?
Judith vacilou, tentando decidir que resposta daria à pergunta. Várias alternativas surgiram em sua mente. Ela é simplesmente medonha.
É lindíssima, mas infelizmente tem uma perna de pau. É instrutora física, casada com um pugilista. A verdade, no entanto, era preferível.
— Ela é uma influente funcionária civil, ocupando um posto importantíssimo.
Isto deu certo. Ele realmente pareceu um tanto desencorajado.
— Céus! — exclamou. — Uma garota com cérebro. Receio que esteja um pouco fora do meu alcance.
Tendo finalmente atingido o ego de Anthony Borden-Smythe, Judith passou à punhalada final.
—De qualquer modo, não poderíamos ir ao ”Quaglino” esta noite. Vamos a uma palestra no Museu Britânico. Artefatos da Dinastia Ming, da China. Fascinante.
Do outro canto do compartimento, de trás do jornal, o comandante da VRMR emitiu um ruído semelhante ao de um leve pigarro, que poderia ter significado desaprovação ou possível divertimento.
— Minha nossa! Tudo bem. Fica para outra vez.
Judith, contudo, já tivera o suficiente. Desdobrou seu Daily Tele-graphe e refugiou-se atrás de suas páginas. Imediatamente, seu pequeno momento de triunfo por afinal ter silenciado Boçal-Smythe foi minimizado pelos últimos e aterradores acontecimentos no Extremo Oriente.
AVANÇO JAPONÊS AMEAÇA CINGAPURA era a manchete, e foi preciso certa dose de coragem para fazê-la examinar os desenhos de mapas e ler o texto alusivo.
O tempo escasseia para os rudemente pressionados defensores de Malaia. Com Kuala Lumpur em poder dos japoneses e seus habitantes em fuga, a 5a Divisão e a Divisão de Guardas japonesas estão pressionando para o sul, na direção do estado dejohore, onde a próxima batalha decidirá o futuro de Cingapura. Brigada Indiana derrotada no rio Muar. o exército do general-de-divisão Percival, forçado a recuar para Cingapura.
Ela foi tomada de apreensão. Pensou em seus pais e em Jess, depois rezou para que a esta altura já estivessem em outro lugar, que houvessem abandonado a bela casa em Orchard Road e ido embora. Ido embora de Cingapura. Para Sumatra ou Java. Qualquer lugar. Algum lugar seguro. Jess agora estava com dez anos, mas para Judith continuava a mesma de quando se tinham despedido: quatro anos de idade, chorando e agarrada a seu boneco. Oh, Deus, suplicou, não permita que algum mal aconteça a eles. São a minha família, são meus, e são tão queridos! Mantenha-os a salvo. Mantenha-os a salvo.
O trem parou em Petersfield. O comandante da VRMR desembarcou e foi acolhido por sua esposa na plataforma. Ninguém mais entrou no compartimento. Anthony Borden-Smythe havia pegado no sono e ressonava suavemente. A garganta de Judith começava a incomodar bastante. Ela dobrou o jornal, deixou-o a seu lado e ficou olhando para o dia cinzento de meados de inverno e os campos gelados do Harnps hire, odiando a guerra por estragar tudo.
A propriedade de Diana em Londres, à qual ela sempre se referia como sua casinha, havia sido reformada da moradia de dois cocheiros com estábulos para cavalos sob ela, pouco antes da Primeira Guerra Mundial. A porta da frente ficava no meio, com a garagem a um lado e a cozinha no outro. Uma estreita e íngreme escada levava diretamente ao andar de cima, que era inesperadamente espaçoso. Uma comprida sala de estar (o ponto de encontro para inúmeras festinhas memoráveis antes da guerra), um grande dormitório, um banheiro, outro banheiro e um quarto pequeno, geralmente usado para guardar malas, a tábua de passar e as poucas roupas que Diana nunca se preocupara em levar para a Cornualha. Não obstante, ali ainda cabia uma cama, e o aposento era útil para abrigar uma pessoa extra.
Não havia sala de refeições. Isto não deixara Diana nem um pouco preocupada, porque quando estava em Londres, ela geralmente comia fora, exceto nas raras noites de solidão que partilhava com Tommy Mortimer, jantando de uma bandeja e ouvindo bela música no rádio.
A sra. Hickson, que nos velhos tempos trabalhara para Diana, cuidando de tudo quando ela estava na casa e tomando conta do lugar quando ela não estava, agora encontrava-se ocupada em tempo integral no esforço de guerra, servindo na Cantina das Forças, na estação de Paddington. Entretanto, como morava em um bloco de apartamentos do conselho perto dali, duas ou três noites por semana ia até o Mews, para uma rápida vistoria. A sra. Carey-Lewis agora não vinha a Londres, e a sra. Hickson sentia grande falta de sua companhia. Entretanto, como ela distribuíra chaves do Mews para várias pessoas jovens alistadas nas forças armadas, fora de sua própria família, a sra. Hickson nunca tinha certeza de encontrar Athena na casa ou algum jovem aviador desconhecido. Por vezes, a única evidência de ocupação eram alguns poucos restos de comida na geladeira ou um punhado de lençóis no chão do banheiro. Quando isso acontecia, ela arrumava tudo, tornava a preparar as camas com lençóis limpos e levava os usados para casa, em uma sacola de papel para compras, a fim de lavá-los pessoalmente. Ela até gostava desses breves encontros, e sempre havia quase cinco xelins em cima do toucador, que desapareciam no bolso de seu avental.
Durante os meses iniciais de 1940, quando a guerra ainda era uma mistificação, Edward Carey-Lewis havia sido o visitante mais freqüente, em geral trazendo um amigo consigo e usando a casinha para receber várias jovens de estonteante beleza. A sra. Carey-Lewis escrevera à sra. Hickson comunicando a morte de Edward, fazendo-a chorar sem parar durante um dia inteiro. Por fim, sua supervisora na Cantina das Forças decidira muito sensatamente que as lágrimas da sra. Hickson em nada contribuíam para o moral dos homens em luta e a mandara para casa. Miraculosamente, a pequenina casa sobrevivera à blitz. No auge dos ataques, uma enorme bomba caíra bem perto, enchendo a sra Hickson de medo. O único dano feito, no entanto, tinha sido algumas rachaduras nas paredes e a perda das vidraças. Havia cacos de vidro por todo o chão, e tudo — móveis, louças, cristais, quadros, carpetes e tapetes — ficara amortalhado por espessa camada de poeira acasta-nhada e fuliginosa. Ela levara uma semana de noites para limpar a sujeira geral.
Judith pegou sua chave, girou-a na fechadura e entrou, fechando a porta da frente atrás de si. A sua direita ficava a cozinha. Ao espiá-la, viu a geladeira vazia e aberta, então foi até lá para fechar-lhe a porta e ligar a tomada. A geladeira começou a zumbir. Antes que o pequeno estabelecimento da esquina fechasse, ela pretendia ir até lá, comprar algumas rações para colocar na geladeira. Por ora, no entanto, as compras teriam de esperar.
Segurando sua mochila, subiu a empinada escada que terminava diretamente dentro da sala de estar. Não havia aquecimento central e fazia um pouco de frio, mas quando voltasse mais tarde, ela acenderia a lareira a gás e tudo ficaria quente em pouco tempo. O segundo quarto de dormir e o outro banheiro situavam-se acima da cozinha.
Judith sentiu-se serenamente aliviada por finalmente haver chegado. Sempre que vinha à casinha (e, valendo-se da generosa oferta de Diana, ela agora já estivera ali três ou quatro vezes, vindo de Ports-mouth), era tomada pela confortadora sensação de chegar em casa. Isto acontecia devido ao toque de Diana, ao seu estilo e seu gosto, tão únicos e pessoais, que davam um pouco a impressão de chegar-se a uma Nancherrow em miniatura. A arrumação era confortável, inclusive luxuosa: cortinas de seda crua cor de creme e carpetes espessos forrando todos os aposentos e corredores, a monotonia aliviada aqui e ali por tapetes persas. Os sofás e poltronas tinham o estofamento em tecido de padronagem variada, os móveis eram de pequeno tamanho e elegantes. Havia quadros e espelhos, gordas almofadas e retratos de família. Faltavam ali somente os arranjos de flores frescas.
Ela foi para o quarto. Cortinas creme novamente e a macia cama de casal, velada por um dossel de renda. Cobertura de chintz, estampada de rosas, e as mesmas rosas franzindo o contorno do toucador e da pequena chaise-longue vitoriana. Diana nunca mais estivera ali desde o início da guerra, mas seu vidro de perfume continuava sobre o toucador, e o ar abafado pesava com a recordada fragrância.
Judith tirou o chapéu, o bibico, e os jogou em cima da cama. Depois, sentando-se, olhou para seu relógio. Meio-dia e meia. Não havia tempo para vestir roupas civis. Heather teria de aceitá-la como se achava agora, uniformizada. Sua garganta estava áspera como tábuas esmerilhadas, e ela já sentia o começo de uma dor de cabeça. Abriu o zíper da mochila, apanhou sua bolsinha de cosméticos e entrou no banheiro (mármore rosa e um tapete de pele de cordeiro), a fim de encher uma caneca com água e tomar umas duas aspirinas. Em seguida, abriu o armário espelhado e examinou-o, por fim encontrando um frasco de Glicerina Timolada, com a qual fez um gargarejo, desejando apenas que tais medicações lhe permitissem atravessar aquele dia. Lavou as mãos, o rosto, depois voltou ao quarto e sentou-se diante do espelho para ajeitar o cabelo, passar alguma maquiagem e perfumar-se. Inspecionou a gola branca em busca de marcas da fuligem do trem e ajeitou o nó da gravata preta de cetim (a sua melhor, de Gieves). Atrás dela, o reflexo da cama era não apenas tentador, mas enfeitiçante. Judith pensou em enfiar-se nas cobertas, com travesseiros frescos e garrafas de água quente, para dormir e poder ficar doente em paz.
Contudo, já estava ficando atrasada para o encontro com Heather, de modo que a cama, juntamente com o resto, teria que esperar até mais tarde.
Judith pretendia tomar o trem subterrâneo para Piccadilly, mas assim que chegou à Sloane Street surgiu um ônibus, ela entrou e comprou uma passagem para Piccadilly Circus. Fazia muito frio, o céu estava cinzento, havia cheiro de neve no ar, e as ruas de Londres se mostravam destroçadas e sujas, com casas bombardeadas formando vazios semelhantes a dentes faltosos, e vitrines de lojas por trás de tábuas pregadas deixando apenas um buraco como visor, para as pessoas apreciarem os artigos que continham. Acima do parque, a barragem de balões se encontrava no alto, perdida entre as nuvens, e os gramados verdes estavam tomados por sacos de areia e abrigos antiaéreos. Todas as ornadas grades de ferro forjado tinham desaparecido, a fim de serem derretidas para a fabricação de armamentos. A adorável e velha igreja de São Jaime, que tinha sido atingida diretamente por uma bomba, era agora uma ruína. Em Piccadilly Circus, a estátua de Eros fora removida levada para algum lugar seguro, porém o povo continuava a sentar-se nos degraus do plinto que suportara a estátua, alimentara pombos e vendera jornais.
Era uma cidade em guerra, onde quase todos pareciam usar uniforme.
O ônibus parou, ela desceu, seguiu pela calçada ao lado do "Swan & Edgar's", dobrou a esquina e caminhou para a entrada principal. Heather já estava lá. Imediatamente visível, com seus cabelos escuros e brilhantes, usando um invejável sobretudo escarlate e compridas botas de camurça, forradas de peles.
— Heather!
— Pensei que você nunca mais chegaria.
— Sinto muito. Atrasei-me dez minutos. Está gelada? Não, não me abrace nem beije, porque acho que estou ficando resfriada e não quero transmitir-lhe nenhum micróbio.
— Oh, estou pouco ligando para micróbios!
Assim, elas acabaram abraçadas e então começaram a rir, porque era bom demais estarem juntas novamente, depois de tanto tempo-
— O que faremos? —perguntou Heather.
— De quanto tempo você dispõe?
— De hoje apenas. Desta tarde. Tenho que voltar ao anoitecer. Estarei trabalhando amanhã.
— Amanhã é domingo.
— Onde eu trabalho não temos domingos.
- É uma pena. Pensei que você podia ir comigo para a casa de Diana e passar a noite lá.
- Eu adoraria, mas não posso. Não importa. Meu trem só partirá às sete e meia. Temos todo o resto do dia para nós. Estou morrendo A fome. Vamos almoçar em algum lugar e, enquanto comemos, decidiremos o que fazer. E agora, para onde?
Discutiram isto por um momento, rejeitando o "Kardomah Café" o "Lyons Corner House". Por fim, Judith disse:
— Vamos ao "Berkeley".
Oh, mas lá é terrivelmente luxuoso!
E daí? De qualquer modo, o almoço não deverá custar mais de cinco xelins. Com um pouco de sorte, talvez consigamos uma mesa.
Resolvido o assunto, elas partiram em direção ao "Berkeley", caminhando a curta distância de volta a Piccadilly. Ao passarem pelas portas perpetuamente giratórias, as duas foram transportadas para um mundo de conforto, de aromas caros e dispendiosos. Havia muita gente lá dentro e o bar estava apinhado, mas Heather avistou uma mesa livre e duas cadeiras vazias, que rapidamente foi ocupada, enquanto Judith ia em busca do restaurante e do chefe dos garçons, para saber se seria possível conseguirem uma mesa para duas pessoas. Ele era um homem bastante simpático e não a fitou com superioridade (uma Wren sozinha, e nem mesmo oficial), mas foi até sua mesa de trabalho, examinar as reservas feitas. Quando voltou, disse que se ela quisesse esperar quinze minutos, então haveria uma mesa disponível.
— Espero que não seja ao lado da porta da cozinha — disse ela. Ele pareceu um pouco surpreso pela segurança com que ela se expressava, mas continuou respeitoso.
— Não, senhora, ficará perto da janela.
— Assim está ótimo — replicou ela, exibindo-lhe seu melhor sorriso.
— Eu irei chamá-la, logo que a mesa vagar.
- Poderá encontrar-nos no bar.
Ela voltou para junto de Heather, fazendo um tímido sinal de polegar erguido, e imediatamente começou o divertimento. As duas tiraram os sobretudos, um empregado apareceu e os levou para o armário, então um garçom aproximou-se, perguntou o que desejavam beber, e antes que Judith chegasse a abrir a boca, Heather já tinha pedido champanha.
— Na taça, senhora?
— Não, prefiro uma meia garrafa.
Ele as deixou em seguida, e Judith murmurou:
— Frutos da Escola do Conselho de Porthkerris.
As duas começaram a dar risadinhas sufocadas, Judith comeu batatas fritas de um pratinho de porcelana, e Heather acendeu cigarro.
Ao contemplar sua amiga, Judith concluiu que ela estava com uma aparência fabulosa. Não alta, porém encantadoramente esguia, com os cabelos escuros deixando-a em bastante evidência. Usava uma saia justa de flanela cinza e uma bela suéter azul-marinho, de gola pólo. Tinha uma comprida corrente de ouro em torno do pescoço e brincos também de ouro nas orelhas.
— Você está ótima, Heather. Eu pretendia mudar o uniforme, mas não tive tempo.
— Também a acho formidável. E gosto do uniforme. Ainda bem que não preferiu servir nos Transportes Aéreos ou no Corpo Auxiliar Feminino do Exército. Os uniformes só têm bolsos, botões e bustos. Além disso, os gorros são horrorosos. Você cortou o cabelo.
—Tive de cortar. Segundo o Regulamento, o cabelo não pode tocar a gola. Seria cortá-lo ou fazer um coque.
— Gostei do corte. Fica bem em você.
O garçom voltou com as taças e a garrafa que, cerimoniosa e eficientemente, ele mesmo abriu. A bebida espumou na taça de Heather, sem respingar uma só gota. Depois, a taça de Judith foi servida.
— Obrigada.
— É um prazer, senhora.
Elas ergueram as taças e beberam. Quase imediatamente Judith se sentiu muitíssimo melhor.
— Não vou esquecer. Champanha é o melhor remédio para resfriados. Elas ficaram bebericando o champanha e olhando em torno, observando as mulheres elegantes, coronéis do Estado-maior, oficiais da França Livre e jovens membros das guardas, todos falando sem parar, bebendo e rindo como se não tivessem uma só preocupação no mundo. Um bom número deles acompanhava damas que visivelmente não erAM suas esposas, porém isto gerava apenas um murmúrio picante; o caso sentimental dos tempos de guerra, os subtons do amor ilícito. Uma jovem em particular era incrivelmente sedutora, com uma massa de cabelos ruivos e um corpo sinuoso, acentuado ainda mais por um justo vestido de jérsei preto. Tinha unhas compridas como garras, esmaltadas em vermelho-sangue, e havia um casaco de mink pendurado no encosto de sua cadeira.
Seu acompanhante era um capitão de grupo com os cabelos escasseando, sua libido de meia-idade ofegando inteiramente com a luxúria da juventude.
Divertida com o quadro, Judith comentou:
— Ele mal tira os olhos de cima dela.
— E muito menos as mãos.
Precisamente quando elas terminavam o champanha, o chefe dos garçons veio dizer-lhes que sua mesa estava à espera, e as guiou através do restaurante apinhado. Após instalá-las em seus lugares, desdobrou vastos guardanapos de linho que Heather e Judith puseram no colo, deu a cada jovem um enorme cardápio para estudo e perguntou se desejavam um aperitivo.
Elas o recusaram, porque ambas já se sentiam extremamente felizes.
Foi um almoço inesquecível, naquele restaurante tão arejado e bonito, totalmente diferente das ruas sujas, escuras e maltratadas, além das janelas veladas por cortinas. Comeram ostras e galinha, tomaram sorvete e partilharam uma garrafa de vinho branco. Conversaram e puseram as respectivas vidas em dia, relatando o sucedido durante os longos meses passados desde seu último encontro. Algumas ocorrências eram tristes. A morte de Ned. De Edward Carey-Lewis. E o sobrinho da sra. Mudge, dado como desaparecido e considerado morto, perdera a vida nas praias de Dunquerque. Charlie Lanyon, entretanto, tivera mais sorte; sobrevivendo ao bombardeio, era agora prisioneiro de guerra na Alemanha.
—Você escreve para ele, Heather?
— Escrevo. Todas as semanas. Não sei se ele recebe minhas cartas ou não, porém isso não é razão para eu deixar de escrever.
— Tem notícias dele?
— Charlie só tem permissão para escrever aos pais. Eles me transmitem as notícias. Entretanto, ele parece estar bem. Tem recebido algumas de nossas remessas de alimentos.
— Vai esperar por ele?
Heather franziu o cenho, admirada. —Esperar por ele?
— Exatamente. Esperar por ele. Permanecer constante.
— Não. Não estou esperando por ele. Nunca houve nada disso entre nós dois. Eu apenas gostava dele. De qualquer modo, como lhe disse uma vez, não sou louca de me casar. Isto é, eu me casarei quando quiser casar. Um dia. Entretanto, isso não é todo o meu futuro e todo o final para mim. A vida tem muita coisa a oferecer. Muita coisa para ser feita. Muito para se ver.
— E existem rapazes interessantes onde você trabalha? Heather riu.
— Eles são um bando de esquisitões. Em sua maioria são tão inteligentes, que até parecem um tanto aparvalhados. Quanto a enrabichar-me por algum deles. a gente não conseguiria tocá-los nem com o mastro de uma barcaça. Entretanto, isto não significa que não sejam interessantes. culturalmente. São muito cultos. Apenas esquisitos.
— O que você faz? Qual é o seu trabalho?
Heather deu de ombros e baixou os olhos. Pegou outro cigarro e, quando tornou a erguer o rosto, Judith compreendeu que ela se fechara, que não diria nem mais uma palavra sobre o assunto. Talvez até já receasse ter falado demais.
— Você não quer falar a respeito, não é mesmo?
— Sim, não quero falar.
— Mas você gosta do que faz? Heather soprou uma nuvem de fumaça.
— É fascinante. Agora, fale de você. Qual o seu trabalho?
— Não é muito excitante. Estou na ilha Whale, na Escola de Artilharia. Trabalho para o chefe do Incremento de Instrução Militar-
— E o que ele faz?
— Pesquisa e desenvolve dispositivos que ajudarão a treinar homens no uso de armas de fogo. Cúpulas de simulação. Oerlikons falsos, Coisas assim. Treinadores visuais artificiais. Dispositivos para ensino dos princípios da força centrífuga. A lista é interminável. Novas idéias estão surgindo o tempo todo.
- Arranjou namorado?
judith sorriu.
Montes deles.
Não um em particular.
Não. Outra vez, não.
O que quer dizer com isso?
Edward Carey-Lewis. Não quero passar por tudo aquilo novamente. Vou esperar pelo fim da guerra, e então talvez fique perdidamete apaixonada por algum homem improvável, caso-me com ele, terei fieiras de bebês, tornando-me uma criatura absolutamente massante. Nem vai querer saber de mim.
Você amava Edward?
Sim. Amei-o durante anos.
— Eu nunca soube.
— Porque nunca lhe contei.
— Sinto muito.
— Está tudo acabado, agora.
Assim, elas não falaram mais sobre Edward e passaram para tópicos mais alegres e positivos, como o fato do sr. Warren ser sargento da Guarda Territorial de Porthkerris e de Joe Warren haver sido recomendado para uma patente de oficial.
— Como vai sua mãe?
— Continua a mesma de sempre. Nada a perturba. Ela não escreve muito. Vive ocupada demais, suponho. Entretanto, escreveu para mim sobre o velho farsante Fawcett, contando que ele havia caído morto dentro do banco. Mal podia esperar para pôr o mexerico no papel, lembra-se da confusão que tivemos, naquela noite em que Ellie voltou istérica do cinema porque o bode velho mostrara "tudo" para ela? Enquanto for viva, nunca vou esquecer.
Oh, Heather, você nem mesmo estava lá.
- Não estava, mas ouvi tudo. Convivi com aquilo durante dias. minha mãe não conseguia parar de comentar o caso. “Você devia ter visto”! Judith, ela ficava repetindo para mim. "Parecia uma pequena e verdadeira fúria!
- Parece que ele morreu de apoplexia. Porque o gerente do banco disse que emitira um cheque sem fundos. Foi o sr. Baines quem me contou, e tudo o que pudemos fazer foi dar risadinhas. Absolutamente inconvenientes.
— Que bons ventos levem a carniça, diria eu. E agora, o que diz dos Carey-Lewis? Estão todos bem?
Passaram a falar sobre Nancherrow, e como o pesar de Diana pela morte de Edward tinha sido amenizado, em uma pequena parte pela chegada e constante divertimento de sua neta Clementina. Mais o menos como a companhia desprendida de Phyllis e Anna, de alguma obscura forma, ajudara Biddy Somerville a firmar-se novamente sobre os pés.
— Quer dizer que elas todas estão morando na Dower House?
— Sim, e a coisa funciona. Você não conhece minha casa. Um dia, quando tiver alguma folga ou licença, precisa ir até lá, para que eu a mostre. Você vai gostar dela. Eu sou louca por aquela casa.
—Ainda mal consigo acreditar que você seja dona de uma casa — maravilhou-se Heather. — Coisa de adultos. Não que eu sinta a menor inveja, compreenda, porque a última coisa que desejaria era uma casa me prendendo. Em seu caso, no entanto, deve ser como um sonho tornado realidade. Ainda mais com sua família tão longe. — Ela parou de falar, depois disse: — Sinto muito.
— Por quê?
— Por minha falta de tato. Cingapura. Li o jornal no trem, esta manhã.
— Eu também.
— Tem notícias de sua família?
—Já faz algum tempo que não me escrevem.
— Está preocupada?
— Estou. E muito. Só espero que eles tenham saído de lá. Pelo menos, mamãe e Jess. Todos dizem que Cingapura não cai, que está muito bem defendida, que é muito importante, e que todos os recursos serão utilizados na batalha. Contudo, mesmo que Cingapura não caia, haverá ataques aéreos e todo tipo de horror. Aliás, parece não haver nada, nenhum exército capaz de deter os japoneses. Eu só queria saber o que está acontecendo. — Ela olhou para Heather através da mesa-— Será que você. você não poderia descobrir alguma coisa? Quer dizer, por vias indiretas?
O garçom chegou com o café. Heather amassou o cigarro no cinzeiro e acendeu outro. As duas ficaram caladas, enquanto o café negro e forte era despejado nas pequeninas xícaras. Depois que o homem se foi, já não podendo ouvi-las, Heather balançou a cabeça, dizendo:
—Não. Nós só lidamos com a Europa.
—Eu não devia ter pedido — suspirou Judith. — Gus também está lá. Gus Callender. Com o Segundo Batalhão dos Gordon Highlanders.
— Acho que não entendi bem.
— Ele era amigo de Edward, em Cambridge. Passou alguns dias emNancherrow. Ele e Loveday... como posso dizer? Acertaram-se.
— Loveday? —exclamou Heather, com ar incrédulo. —Loveday, enrabichada por ele? Ela nunca me disse nada.
— Não creio que dissesse. Foi algo extraordinário. Ela só tinha dezessete anos, e aquilo, simplesmente, aconteceu! Foi uma identificação instantânea. Como se há muito e muito eles se conhecessem. Como se sempre formassem um par.
— Se ele for soldado, e em Cingapura, então está no meio disso. Eu não apostaria em suas chances.
— Eu sei. Também tem sido este o meu pensamento.
—É uma guerra infernal, sabia? Pobre Loveday... E pobre de você. Suponho que não nos resta alternativa senão esperar sentadas. Ver o que acontece.
— O pior é a espera. A espera por notícias. Tentando fingir que o pior não vai acontecer. Que não deve acontecer. Quero que meus pais e Jess permaneçam vivos, que estejam em segurança, que um dia voltem para casa, para a Dower House. Também quero que Gus permaneça vivo para Loveday. Depois de Saint Valéry, pensamos que ele estivesse morto, mas conseguiu escapar e voltar para casa. Quando recebeu a notícia, Loveday transformou-se, parecia outra. Seria terrível a pobrezinha viver toda aquela agonia uma segunda vez.
— Haja o que houver, Judith, Loveday sobreviverá.
— Por que diz isso?
— Porque a conheço. Ela é uma coisinha rija.
— Mas...
Judith estava pronta para saltar em defesa de Loveday, mas Heather a interrompeu.
— Ouça, nós ficaríamos conversando a tarde inteira, o dia chegaria ao fim e não teríamos feito nada. Tenho em minha carteira duas entradas para o Albert Hall. Ganhei-as do homem para quem trabalho. Um concerto que deve começar dentro de meia hora. Quer assistir um concerto ou prefere fazer compras?
— O que vão tocar?
— O Concerto para Violino, de William Walton, e o Concerto para Piano, de Rachmaninoff.
— Não quero fazer compras.
Terminaram então seu café e pagaram a conta (com generosas gorjetas a cada membro do grupo), recolheram seus agasalhos no vestiário (mais gorjetas) e mergulharam no frio cortante e em Piccadilly. Quando saíram, um táxi parou junto ao meio-fio, dele saltando um capitão da Marinha e sua singela esposa. As duas esperaram enquanto ele pagava a corrida, e depois entraram rapidamente no táxi, antes que alguém mais o tomasse.
— Para onde, querida?
— Para o Albert Hall, e estamos com uma pressa louca.
O concerto foi maravilhoso — tudo o que Judith imaginara, e ainda mais. A peça de Walton era nova para ela, porém a de Rachmaninoff soava carinhosamente familiar, e ela se deixou perder na música, foi transportada para uma espécie de intemporalidade, para a afirmação de outro mundo constante, isento da ansiedade e da morte, de batalhas e bombas. O restante da compacta platéia estava igualmente presa à música e, terminada a performance, assim que as últimas notas extinguiram-se, todos demonstraram o seu apreço com aplausos para o maestro e a orquestra, aplausos que duraram pelo menos cinco minutos.
Por fim, tudo terminou e era tempo de irem embora. Judith teve a impressão de que havia passado duas horas flutuando beatificamente nas alturas, agora tendo que descer para a terra de novo. Tão absorta ficara que o resfriado fora esquecido, mas agora, ao abrirem caminho pelo corredor acarpetado e apinhado de gente, rumo ao saguão e as portas principais, a dor de cabeça e a garganta dolorida retornaram de maneira vingativa, e ela percebeu que começava a sentir-se mal de fato.
Haviam planejado caminhar de volta ao Mews ou pegar um ônibus, mas quando saíram para a noite escura e sem luzes, juntamente com levas de público, descobriram que começara a chover, um chuvisco fino e gelado, sem que nenhuma delas tivesse guarda-chuva.
Pararam na calçada molhada, sendo empurradas e empurrando, enquanto discutiam suas probabilidades de conseguir um táxi, que eram quase impossíveis.
Não podemos caminhar, ficaremos encharcadas! Oh, por que eu não trouxe um guarda-chuva? — exclamou Heather, sempre tão eficiente, mas agora furiosa consigo mesma.
— Eu não podia ter trazido um, porque estando de uniforme não é permitido.
Então, enquanto hesitavam e tentavam decidir como, afinal, chegariam em casa, a sorte lhes sorriu. Um carro particular parou perto delas com motorista, a fim de apanhar um comandante de ala da RAF e sua acompanhante. Evidentemente, ele tomara a precaução de arranjar seu próprio transporte. Abriu a porta, a mulher mergulhou para dentro do carro o mais depressa que pôde, a fim de abrigar-se da chuva, e o comandante se dispunha a segui-la, quando percebeu as duas jovens, iluminadas pela luz mortiça que brotava do interior do veículo, em pé e desanimadas, a cada momento ficando mais molhadas.
— Para que lado vocês vão? — perguntou ele.
— Para as proximidades de Sloane Square — respondeu Judith.
— Nós vamos para Clapham. Aceitam uma carona?
Era quase bom demais para ser verdade. Agradecidas, elas aceitaram, e Heather acomodou-se no banco traseiro, enquanto Judith sentava-se ao lado do motorista. As portas foram fechadas, e o carro rodou Para diante, na rua escura e molhada, com os limpadores de pára-brisa trabalhando para valer, enquanto o motorista tateava seu rumo com a Juda da fraca luminosidade das lâmpadas nos postes, obscurecidas e encapuzadas.
Atrás de Judith, Heather iniciou uma animada conversa com seus salvadores.
- É realmente muita gentileza dos senhores — disse para eles. – Não sei o que teríamos feito, se não nos trouxessem.
- É sempre um inferno voltar para casa depois de um teatro ou concerto. Particularmente em uma noite como esta.
Judith parou de ouvir. Havia ficado parada em uma poça, tinha os pés molhados e começava a sentir arrepios. Quando chegassem, ela acenderia a lareira a gás e assim ficaria aquecida, mas antes disso acontecer, havia o pequeno problema da comida, porque não tivera tempo de comprar nada.
Estavam agora descendo Sloane Street. No banco traseiro, a conversa ainda não cessara. Já tinham encerrado os comentários sobre o concerto, e agora falavam no horror do Queens Hall destruído nos bombardeios e nos deliciosos recitais à hora do almoço que Myra Hes vinha dando, na igreja de São Martinho, nos Fields.
—Estão sempre superlotados. As pessoas apenas entram para ouvir durante alguns momentos, quando estão indo ou vindo de seus escritórios.
O comandante de ala inclinou-se para diante.
— Para onde deseja ir, exatamente? — perguntou a Judith. Podemos deixá-la em sua porta, se não for muito fora de nosso caminho.
— Cadogan Mews. — Ela se virou no banco, a fim de falar com ele. — Só que. — ela vacilou. — O problema é que preciso comprar comida. Não há nada na casa. Vim de Portsmouth esta manhã, e não houve tempo. mas se o senhor puder deixar-nos em nossa mercearia local.
— Não se preocupe — disse ele.
Então, graças à gentileza dele, tudo correu perfeitamente bem. Judith dirigiu o motorista até a desmantelada mercearia da esquina, que sempre fora a mais próxima e mais conveniente para o Mews. Ali eram vendidos mantimentos, jornais e cigarros. Enquanto os outros esperavam, ela entrou, armada com seu Cartão de Racionamento de Emergência, e comprou pão, ovos, quantidades diminutas de bacon, açúcar e margarina, e um litro de leite, além de um pote de geléia de framboesa, de duvidosa aparência. A velha atrás do balcão arranjou uma amarrotada sacola de papel na qual colocou todas as compras. Judith pagou a conta e voltou para o carro.
— Muito obrigada. Foi perfeito. Pelo menos teremos algo para comer durante o chá.
— Não podíamos permitir que ficassem com fome. Para onde agora?
Elas foram conduzidas até a porta, em grande estilo. No Mews, à débil claridade dos postes de luz preparados para o black-out, a janela do pavimento reluzia, e um gato molhado disparou como flecha através da rua, em busca de abrigo. Judith e Heather desceram do carro, efusivas em seus agradecimentos, inclusive oferecendo-se para pagar sua parte na corrida, mas ambas foram despedidas imediatamente, ouvindo que aquilo era o mínimo que uma pessoa podia fazer, e aconselhadas a entrar logo em casa, antes que se molhassem ainda mais.
Aquilo soava como uma ordem, de maneira que ambas obedeceram. Quando fecharam a porta atrás delas, o carro já manobrava e seguia seu caminho.
As duas ficaram em pé, muito próximas, na tenebrosa escuridão do pequenino vestíbulo.
—Não acenda nenhuma luz — disse Judith a Heather — enquanto eu não tiver terminado o black-out. Fique onde está, ou cairá escada abaixo.
Ela entrou na cozinha às apalpadelas, fez o black-out e deixou a sacola de papel em cima da mesa. Depois, ainda no escuro, tornou a emergir e subiu a escada cuidadosamente, em seguida compondo o black-out e as espessas cortinas da sala de estar. Só então pressionou o interruptor com segurança.
—Já pode subir — disse para Heather.
Juntas, percorreram todos os cômodos, inclusive os que Judith não pretendia usar, certificando-se de que nenhuma réstia de luz escapava para o exterior. Após isto, Heather sentiu-se à vontade para libertar-se das botas e do casacão molhados, acender a lareira a gás e algumas poucas lâmpadas. Quase imediatamente tudo pareceu muito diferente, abrigado e aconchegante.
— Estou louca por uma xícara de chá — disse Heather.
— Eu também, mas primeiro tenho que tomar uma aspirina.
— Sente-se mal, não?
— Sim, bastante.
— Oh, pobrezinha! Está parecendo um pouco abatida. Acha que pegou uma gripe?
—Nem pense nisso!
— Pois então, vá tomar sua aspirina, que eu preparo o chá. — Ela já descia para o andar de baixo novamente. — Não se preocupe. Descobrirei onde está tudo.
— Eu trouxe pão. Podemos fazer torradas na lareira.
— Boa idéia!
Judith tirou o casaco e o deixou em cima da cama. Depois removeu os sapatos, as meias úmidas, e calçou um par de chinelos macios. Tirou também a túnica, substituindo-a por uma suéter de Shetland, que trouxera de Portsmouth. Tomou, então, mais uma aspirina e fez outro gargarejo. Seu reflexo no espelho nada tinha de animador. O rosto estava afilado e abatido, com anéis escuros, parecendo equimoses abaixo dos olhos. Se Biddy estivesse ali, receitaria uma bebida bem quente, mas como Judith não dispunha de uísque, de mel e nem de limão, era inútil saber o que a deixaria em melhor estado.
Quando retornou à sala de estar, Heather já tinha feito o chá e subido com as bandejas. Sentaram-se então diante da lareira e fizeram torradas com um garfo comprido, depois besuntando-as escassamente com margarina e a geléia de framboesa.
— Tem sabor de piquenique — decidiu Heather, com satisfação. Lambeu os dedos pegajosos. — Mamãe sempre punha geléia de framboesa nos sanduíches. — Ela deu uma olhada em torno. — Gosto desta casa. Gosto da maneira como tudo foi feito. Das cortinas pálidas e do resto. Você vem muito aqui?
— Todas as vezes que venho a Londres.
— De qualquer modo, sempre é melhor do que uma hospedaria de Wrens.
— Eu gostaria que você pudesse ficar.
— Não posso.
—Não pode ligar para alguém e dizer que está com um pouco de dor de cabeça?
— Não. Tenho que trabalhar amanhã.
— A que horas sai o trem?
— Sete e meia.
— Qual a estação?
— Euston.
— Como chegará até lá?
— Tomarei o trem subterrâneo na Sloane Square.
— Quer que eu a acompanhe? Que a veja partir?
—Não —respondeu Heather abruptamente. Depois acrescentou — Com esse resfriado, de modo nenhum. Você não deve tornar a sair esta noite. Tem que ir para a cama.
Não obstante, Judith ficou com a sensação de que, mesmo estano plenamente saudável, Heather recusaria sua companhia até Euston, a fim de não deixá-la saber até mesmo em que direção viajaria. Era tudo tão secreto, que chegava a ser alarmante. Judith limitou-se a esperar que sua amiga não estivesse fazendo treinamento para espiã, pois não suportaria a idéia de sabê-la sendo lançada de um avião, noite fechada, num perigoso território inimigo.
Havia ainda mil coisas sobre as quais não tinham falado quando, cedo demais, chegou o momento de Heather ir embora.
-Já?
Não me arrisco a perder aquele trem, porque é o único que tem um carro à espera.
Judith imaginou alguma remota estação no campo, o carro oficial esperando pacientemente, depois o trajeto por quilômetros de estradas serpenteantes. Por fim, a chegada. Portões hermeticamente fechados e operados por eletricidade, muros tendo no topo a proteção de arames farpados, cães de guarda rondando pelo local. Mais além, compridas avenidas levando ao vulto indefinido de alguma grande mansão rural ou castelo vitoriano. Ela quase podia ouvir corujas piando.
Por algum motivo, a imagem provocou-lhe um arrepio, um frisson de náusea, e sentiu-se grata por seu trabalho monótono e em campo aberto, transcrevendo mensagens para o comandante Crombie, atendendo telefonemas e fazendo sua datilografia. Pelo menos, não era forçada a manter sigilo. E, pelo menos, não tinha que trabalhar aos domingos.
Heather preparava-se para deixá-la. Tornando a fechar o zíper de suas botas (tinham ficado mais ou menos secas, colocadas diante da lareira), abotoando -se naquele encantador casaco escarlate, depois atando uma echarpe de seda sobre os cabelos negríssimos.
- Foi ótimo — disse ela. — Um dia maravilhoso.
- Obrigada pelo concerto. Adorei cada momento.
- Precisamos encontrar-nos novamente. E desta vez não vamos esperar tanto tempo. Não desça a escada. Posso ir sozinha.
- Continuo achando que devia ir com você.
- Não seja tola. Tome um banho quente. Vá para a cama. — Ela beijou Judith. Depois disse, subitamente: — Não me agrada deixar você. Não estou gostando de deixá-la sozinha.
-- Eu estou bem.
— Dê notícias. Estou falando de sua mãe, seu pai e Jess. Estarei-pensando em você. Deixe-me saber se receber notícias.
— Farei isso. Prometo.
—Você tem meu endereço? Número da caixa postal e tudo o mais• É um pouco obscuro, mas, eventualmente, as cartas me chegam às mãos.
— Eu escreverei. Contarei tudo a você.
— Adeus, querida.
— Adeus.
Um rápido abraço, um beijo, e ela se foi. Desceu a escada e saiu da casa. Judith ouviu o ruído da porta sendo fechada. Os passos de Heather foram sendo ouvidos cada vez menos, à medida que ela se distanciava ao longo do Mews. Tinha ido embora.
Agora nenhum som era ouvido, além da chuva caindo e do rumor distante do trânsito, descendo a Sloane Street. Judith desejou que não houvesse um ataque aéreo, mas concluiu que provavelmente não haveria, porque o tempo estava tão inconstante. Os bombardeiros preferiam uma noite clara e com lua. O ambiente ficou um pouco tristonho sem a presença de Heather, e ela então teve vontade de ouvir Elgar na radiola. Os primeiros acordes de um concerto de violoncelo encheram o aposento, aqueceram-no e eliminaram sua sensação de estar abandonada. Levando a bandeja de chá para baixo, Judith lavou as poucas peças de porcelana e as colocou para secar no secador. Esquentou água na chaleira, encontrou uma bolsa de borracha para água quente, encheu-a, tornou a subir para o andar de cima, desfez a cama e enfiou a bolsa de água quente entre as cobertas. Em seguida tomou mais duas aspirinas (a essa altura, começava a sentir-se realmente mal), tomou um farto banho de água escaldante e permaneceu durante quase uma hora em meio ao vapor perfumado. Após enxugar-se, vestiu sua camisola e depois a sueter Shetland. O concerto de Elgar já havia terminado, e ela então desligou a radiola, mas deixou aceso o fogo da lareira e aberta a porta do quarto a fim de que o calor a alcançasse. Encontrando um velho número da Vogue, foi com ele para a cama. Recostou-se nos travesseiros Ainda folheou as páginas lustrosas por um ou dois momentos, mas enfim sucumbiu à exaustão e fechou os olhos. Quase imediatamente, ou assim lhe pareceu, tornou a abri-los. n
Um som. Seu coração disparou, alarmado. No andar de baixo,
O clique de uma fechadura. A porta da frente que se abria e depois, rapidamente, era fechada.
Um intruso. Alguém entrara na casa. Petrificada pelo terror, por um instante ela ficou rígida, incapaz de mover-se. Depois saiu da cama e correu pela porta aberta, cruzou a sala de estar e chegou ao topo da escada, concluindo que, se o recém-chegado fosse um inimigo, ao invés de um amigo, deixaria cair-lhe na cabeça qualquer objeto pesado que tivesse ao alcance, assim que ele subisse os degraus.
Ele já tinha subido metade da escada, envolto em um pesado sobretudo, com cintilantes ombreiras em dourado, o quepe polvilhado de gotas de chuva. Em uma das mãos carregava uma pequena mala de viagem e na outra uma pesada mochila de lona com alças de corda.
Jeremy. Ela o viu e suas pernas ficaram bambas de alívio, precisando agarrar-se ao corrimão para não cair. Não era um intruso invadindo a casa, pretendendo roubar, estuprar ou assassinar. Em vez dele, a única pessoa — se ela pudesse escolher — que de fato desejaria que fosse.
—Jeremy...
Ele parou, ergueu os olhos, o rosto sombreado pela viseira do quepe e lúgubre à claridade impiedosa da luz do topo da escada.
— Santo Deus, é Judith!
— Quem pensou que poderia ser?
—Não faço idéia, mas sabia que a casa estava ocupada, assim que abri a porta. Por causa das luzes acesas.
— Pensei que você estivesse no mar. O que faz aqui?
— Eu podia fazer-lhe a mesma pergunta. — Ele chegou ao alto da escada, deixou a bagagem no chão, tirou o quepe molhado e inclinou-se para beijá-la no rosto. — E por que recebe cavalheiros em sua camisola de dormir?
— Eu estava na cama, é claro.
— Sozinha, espero.
—Se quer saber, peguei um resfriado. Estou me sentindo um trapo.
— Então, volte para a cama, imediatamente.
— Não. Eu quero falar com você. Vai passar a noite aqui?
— Era o que eu pretendia.
— E agora, surripiei o quarto.
— Não importa. Posso fazer companhia à tábua de passar e às roupas de Diana. Já dormi lá antes.
— Quanto tempo vai ficar?
— Só até de manhã. — Ele colocou o quepe sobre o pilar corrimão e começou a desabotoar o sobretudo. — Tenho que pegar um trem às sete da manhã.
— Então, de onde foi que veio Agora, quero dizer.
— De Truro. —Jeremy livrou-se do sobretudo e o deixou sobre o corrimão. —Tive dois dias de folga, e fui à Cornualha, passá-los com meus pais.
— Há anos que não o vejo. Séculos.
Ela não conseguia recordar quanto tempo se passara, porém ele não havia esquecido.
— Desde que fui a Dower House despedir-me de você.
— Parece ter sido em outra vida. — De súbito, Judith pensou em algo de fato sério. —Aqui não há nada para comer. Apenas um pedaço de pão e uma fatia de bacon. Está com fome? A mercearia da esquina já deve ter fechado, mas.
Ele riu, achando graça.
— Mas, o quê?
— Você bem que poderia sair para fazer uma refeição. O "Royal Court Hotel", talvez?
—Não seria nem um pouco divertido.
— Se eu soubesse que você viria.
—Sei, teria feito um bolo. Não se preocupe. Usei minha previsão. Minha mãe ajudou-me a embalar uma mochila. — Ele bateu com a ponta do sapato na mochila de lona. —Aí está.
Judith espiou dentro dela e viu o brilho de uma garrafa.
— Pelo menos, você acertou em suas prioridades.—Não havia necessidade de carregar tudo escada acima. A mochila
pesa uma tonelada. Eu a teria deixado na cozinha, mas quando vi as luzes, meu primeiro pensamento foi descobrir quem estava aqui-
— Quem mais poderia ser, além de mim? Talvez Athena. ou Loveday. Rupert está no deserto, e Gus no Extremo Oriente.
— Oh, mas há outros. Nancherrow se tornou um lar-fora-do lar, uma espécie de cantina de passagem para jovens oficiais prestando serviço. Oficiais que vêm de Culdrose e do Campo de Treinamento da Marinha Real, em Bran Tor. Diana dá uma chave de presente a qualquer pessoa especial, alguém com quem simpatize.
- Eu não sabia disso.
ASsim sendo, o clube deixou de ser tão exclusivo. Você vem aqui freqüentemente?
- Não muito. As vezes nos fins de semana.
, E este é um deles?
— Sim, mas tenho de voltar para Portsmouth amanhã.
- Eu gostaria de poder ficar. Então, levaria você para almoçar.
Só que não poderá ficar.
Exato. Não posso. Aceita um drinque?
Não há nada no guarda-louça.
Pois há fartura em minha sacola de pescador. —Jeremy inclinou-se ergueu a mochila, o que ela continha entrechocou-se um pouco, e parecia incrivelmente pesada. — Venha e eu lhe mostrarei.
Ele tornou a descer a escada e os dois foram para a pequena cozinha. Jeremy arriou a mochila sobre a mesa e começou a esvaziá-la. O linóleo castanho estava gélido sob os pés descalços, de modo que Judith se sentou sobre a outra ponta da mesa, e foi mais ou menos como se observasse alguém removendo o conteúdo de uma meia de Natal. O espectador não tinha a mínima idéia do artigo que iria sair de lá em seguida. Uma garrafa de uísque Black and White. Uma garrafa de gim Gordon's. Uma laranja. Três embalagens de batatas fritas e meio quilo de manteiga caseira. Uma fatia de chocolate Terry's e, finalmente, um sinistro pacote manchado de sangue, cujo envoltório externo era de jornal.
— O que tem aí dentro? — perguntou Judith. — Uma cabeça decepada?
— Bifes. — Ele soletrou. — B-I-F-E-S.
Onde foi que os conseguiu? E a manteiga caseira? Sua mãe não está negociando no mercado negro, está?
São pacientes agradecidos. A geladeira está ligada?
— Claro.
Ótimo. Terá gelo?
- Espero que sim.
Ele abriu a geladeira e colocou a manteiga e o pacote sangrento ao lado das escassas rações que Judith havia guardado lá dentro, depois pegando uma caçamba de cubos de gelo.
- O que quer beber? Um uísque seria bom para esse resfriado.
- Uísque e soda?
— Não há soda.
— Quer apostar?
Ele a encontrou, é claro, um sifão guardado em um obscuro armário. De outro armário tirou copos, depois removeu os cubos de gelo da caçamba, despejou o uísque e esguichou a soda. Os drinques borbulharam deliciosamente, e ele estendeu a Judith um dos copos altos.
— À sua saúde! Ele sorriu.
— E eu ergo o meu copo!
Eles beberam. Jeremy relaxou visivelmente, deixando escapar um suspiro satisfeito.
— Eu precisava disso.
— Está muito bom. Eu não costumo beber uísque.
— Há um momento para tudo. Está frio aqui no térreo. Vamos para cima.
Subiram a escada, Judith na frente, e acomodaram-se confortavel-mente junto da lareira. Jeremy sentou-se em uma das poltronas e ela aninhou-se no tapete, mais perto do calor do fogo.
— Heather Warren esteve hoje aqui — disse Judith. — Fizemos torradas para o chá. Por isso vim de Portsmouth. Para vê-la. Almoçamos juntas e depois fomos a um concerto, mas ela precisava tomar um trem e voltar para seu departamento secreto.
— Onde foi o concerto?
—No Albert Hall. William Walton e Rachmaninoff. Heather tinha ganho as entradas. E agora, por favor, fale-me de você. O que tem acontecido?
—Nada mais além da velha rotina.
— Você teve uma folga.
— Não propriamente. Precisei vir a Londres, a fim de falar com as autoridades no Almirantado. Estou para ser promovido. Cirurgião-chefe.
—Oh, Jeremy. — Ela ficou encantada e impressionada. — Muito merecido. Você será importante, de alta patente.
— Ainda não é oficial, portanto não fique telefonando para outros e contando.
— E você contou para sua mãe?
- Naturalmente.
O que mais há de novidade?
- Vou me juntar a um novo navio. Um cruzador, HMS Sutherland.
—Ainda no Atlântico? — Ele deu de ombros. Estava sendo evasivo. Talvez o mandem para o Mediterrâneo. Já era hora de tomar um pouco de sol.
Tem notícias de sua família?.— perguntou Jeremy.
Não, desde o começo do mês. Não sei o motivo, exceto que o noticiário tem sido bastante amedrontador.
Eles continuam em Cingapura?
Acredito que sim.
Muitas mulheres e crianças já foram embora.
— Eu não sabia.
Ele olhou para seu relógio.
— Oito e quinze. Ouviremos o noticiário das nove.
— Não sei se quero ouvi-lo.
— É melhor saber a verdade do que imaginar o pior.
—No momento, uma coisa parece tão ruim quanto a outra. E tudo aconteceu tão depressa! Antes, quando a situação estava de fato ruim, como na época de Dunquerque e em Portsmouth, durante o bombardeio, eu costumava consolar-me sabendo que, pelo menos, eles estavam a salvo. Mamãe, papai e Jess, quero dizer. E quando fazíamos fila para rações e restos horríveis de carne, animava-me pensando que eles estavam bem, com boa comida e servidos por bandos de criados, tendo encontros com amigos no clube. Então, os japoneses bombardearam Pearl Harbour e, subitamente, nada disso é mais verdade, eles agora enfrentam um perigo muito maior do que já enfrentei. Agora, eu desejaria ter ido para Cingapura, quando essa era a minha intenção, ssim, pelo menos estaríamos todos juntos. Entretanto, sendo tão longe e não recebendo notícias...
Para seu horror, sua voz começou a tremer. De nada adiantava querer dizer mais alguma coisa, porque terminaria prorrompendo em lágrimas inúteis. Judith tomou outro gole do uísque e contemplou as quentes chamas azuladas da lareira a gás.
- Suponho que não saber seja o maior tormento de todos — disse ele suavemente.
— Eu estou bem. Geralmente estou bem. Acontece apenas que nesta noite, meu estado não é dos melhores.
— Vá para a cama.
— Sinto muito.
— Por que desculpar-se?
— Nós nunca nos vemos e, quando nos encontramos, estou com um maldito resfriado e com tanto medo de ouvir o noticiário, que não sou uma boa companhia.
— Gosto de você exatamente do jeito como é. Seja lá como estiver se sentindo. Só lamento ter de deixá-la tão cedo pela manhã. Estamos juntos, quase apenas para sermos imediatamente separados de novo. Entretanto, suponho que este seja justamente o significado desta guerra nojenta.
— Não tem importância. Estamos juntos. Fiquei tão contente por ser você, e não algum homem desconhecido. um dos poucos favorecidos por Diana.
— Também fiquei contente por ter sido eu. Agora. — Ele ficou em pé. — Você está de astral baixo, e eu morrendo de fome. O que ambos precisamos é de uma boa refeição quente e, de passagem, talvez de um pouco de música. Volte para a cama, que eu me encarrego da bóia.
Jeremy foi até a radiola e ligou o rádio. Música dançante. A execução personalíssima de Carroll Gibbons, transmitida ao vivo do "Savoy Hotel". Begin the Beguine. Judith imaginou os convivas deixando suas mesas e enchendo a pista de dança.
— O que temos no menu Bifes?
— O que mais poderia ser? Preparados na manteiga. Só lamento que não haja champanha. Quer mais um drinque?
— Ainda não terminei este.
Jeremy estendeu a mão, ela a segurou, e ele a puxou, pondo-a de pé.
— Agora, para a cama — disse, empurrando-a suavemente na direção do quarto.
Judith cruzou a porta e o ouviu descendo para o térreo, rapidamente e com tal perícia, que parecia estar descendo uma escada de navio. Ela não foi logo para a cama. Em vez disso, sentou-se ao toucador e olhou para seu pálido reflexo no espelho, perguntando por que ele não comentara o seu severo corte de cabelo, tão diferentedos dos longos anéis cor de mel de sua juventude. Talvez Jeremy nem mesmo houvesse notado. Alguns homens não reparavam em coisas assim. Ela se sentia um pouco tonta. Provavelmente era o efeito do uísque, após o banho de água escaldante e as aspirinas. Não era uma sensação desagradável. Talvez um alheamento. Penteou o cabelo, passou um pouco de batom, um toque de perfume, e desejou possuir um casaquinho de cama encantadoramente franzido —do tipo que Athena e Diana sempre usavam — enfeitado de rendas e emprestando uma aparência vulnerável, frágil e feminina. A velha suéter Shetland estava longe de ser romântica. Entretanto, em se tratando de Jeremy, por que desejava mostrar-se romântica? A pergunta apanhou-a desprevenida e, parecendo não existir qualquer resposta sensata, ela levantou-se do toucador, afofou os travesseiros, ajeitou-os, e voltou para a cama. Ficou lá, recostada, bebericando o uísque e saboreando os deliciosos cheiros da manteiga quente e dos bifes suculentos, que começavam a emanar do andar térreo.
Begin the Beguine havia terminado. Agora, Carroll Gibbons tocava em seu piano a melodia de um velho número de Irving Berlin. Ali the Things YouAre...
Você é o prometido toque da primavera...
Pouco depois, ela ouviu passos subindo novamente a escada. Logo em seguida Jeremy surgiu diante da porta aberta. Havia tirado a túnica e atado um enorme avental sobre a suéter azul-escura.
— Como prefere o seu bife?
— Nem me lembro mais. Há séculos não provo um.
— Malpassado? Ao ponto?
— Ao ponto está ótimo.
— E como anda esse drinque?
— Já acabei com ele.
— Eu lhe trarei outro.
— Vou terminar caindo de bêbada.
—Não poderá cair, se estiver deitada na cama. — Ele pegou o copo vazio dela. — Trarei outro com o seu jantar, em vez de champanha.
— Jeremy, não quero jantar sozinha!
— Não jantará sozinha.
Ele preparou a refeição em um tempo surpreendentemente curto, levou a pesada bandeja para cima e a colocou na cama, ao lado de Judith. Em geral, quando uma pessoa leva a refeição para outra na cama, como o breakfast, sempre acaba esquecendo alguma coisa, a geléia, a faca da manteiga ou uma colher de chá. Jeremy, entretanto, parecia nada ter esquecido. Os bifes, sobre chapas quentes, ainda chiavam, servidos com batatas fritas e ervilhas enlatadas que ele encontrara no armário de mantimentos. Até improvisara um molho. Havia facas, garfos, sal e pimenta, um pote de mostarda fresca e guardanapos, exceto que não eram os guardanapos de linho apropriados, mas duas toalhinhas limpas para chá, tudo o que ele conseguira encontrar em substituição. Havia também dois renovados drinques nos copos.
— Por que eles deveriam ser renovados? — comentou ela. — A gente nunca diz para alguém: "Quer renovar um drinque para mim?"
— É verdade.
— O que temos de sobremesa?
— Meia laranja ou um sanduíche de presunto.
— A laranja é minha favorita. Está um jantar excelente. Obrigada, Jeremy.
— Coma o bife, antes que esfrie.
Estava tudo simplesmente delicioso e prontamente restaurador. Jeremy tinha razão. Judith não havia percebido que estava faminta e que, por sentir-se com a saúde tão abalada e o ânimo tão baixo, precisava e muito de um sustento sólido. Ele preparara seu bife à perfeição, enegrecido e tostado por fora, mas rosado no interior. Estava tão tenro, que ela mal precisou mastigá-lo, a carne deslizando facilmente por sua garganta dolorida. Foi um bife que também a deixou plenamente saciada. Talvez, após meses consumindo alimento insosso e nada ape-titoso, seu estômago houvesse encolhido.
—Não agüento comer mais nada — disse Judith por fim. — Estou empanzinada. — Largou o garfo e a faca, ele retirou seu prato e ela recostou-se nos travesseiros, em absoluta satisfação. Depois disse -, em cockney: — "Faiz uma baita diferença da carne muída inlatada.” Jeremy riu. — Como não sobrou espaço para a sobremesa, você pode ficar com a laranja inteira. Está sempre me surpreendendo, Jeremy. Eu ignorava que soubesse cozinhar.
— Qualquer homem que já navegou em um pequeno barco sabe cozinhar, nem que seja apenas para fritar uma cavalinha.
Dialeto de um bairro de Londres. (N. da T.)
Se eu descobrir café, você quer uma xícara? Não, talvez seja melhor não. O café a manteria acordada. Quando foi que esse resfriado começou? — perguntou, imediatamente adotando um ar profissional.
— Esta manhã, no trem. Minha garganta começou a doer. Penso que peguei o resfriado da moça com quem divido o quarto. Também sinto a cabeça doendo.
— Tomou alguma coisa?
— Aspirinas. E fiz gargarejo.
— Como se sente agora?
— Estou melhor. Não me sinto mais tão mal.
— Tenho uma pílula mágica em minha maleta. Consegui-as na América e trouxe algumas de volta. Parecem pequeninas bombas, mas geralmente fazem efeito. Vou dar-lhe uma.
— Não quero ser nocauteada.
— Não pretendo nocauteá-la...
Através da porta aberta, o programa de música dançante chegava ao fim, com Carroll Gibbons e sua orquestra tocando a melodia de encerramento. Houve um ou dois segundos de silêncio, e depois soaram os carrilhões do Big Ben, em badaladas lentas, sonoras e, por associação, impregnadas de fatalidade. ”Aqui é Londres.Noticiário das Nove Horas.” Jeremy olhou inquisitivãmente para Judith, que assentiu com a cabeça. Por pior que fossem as notícias, ela devia ouvi-las e seria capaz de enfrentá-las, simplesmente porque Jeremy estava ali, ao seu alcance; um homem ao mesmo tempo compassivo e compreensivo. Também forte e camarada, sua presença criando um extraordinário senso de segurança. Ser corajosa e sensata estando sozinha, é que se tornava tão desgastante. Duas pessoas podiam consolar uma à outra. Podiam proporcionar-se conforto.
Mesmo assim, o noticiário era bastante negativo e tão ruim quanto ela temera. No Extremo Oriente, os japoneses estavam se fechando sobre a auto-estrada de Johore. A cidade de Cingapura sofrera seu segundo dia de bombardeio... Estavam sendo escavadas trincheiras e fortificações... a luta era feroz no rio Muar... a força aérea britânica continuava bombardeando e metralhando as barcaças japonesas de invasão... o território australiano estava sendo atacado... havia cinco mil soldados japoneses nas ilhas de New Britain e New Ireland. A pequena guarnição defensiva fora obrigada a recuar.
Na África do Norte, no Deserto Ocidental, a Primeira Divisão-Blindada havia sido forçada à retirada, em face do avanço do een Rommel. um ataque em pinça sobre Agedabia. toda uma divisão indiana praticamente cercada.
—Já basta — disse Jeremy. Levantando-se, foi até a sala de estar e desligou o rádio. A voz culta e desapaixonada do noticiarista saiu do ar. Jeremy retornou ao quarto pouco depois. — As notícias não parecem nada boas, não é?
— Você acha que Cingapura cairá?
— Será um desastre, se cair. Cingapura caindo, então cairão também as índias Orientais Holandesas.
— Bem, mas se a ilha é tão importante, se foi sempre tão importante, ela poderia defender-se?
— Todos os grandes canhões apontam para o sul, acima do mar. Suponho que ninguém esperava um ataque vindo do norte.
— Gus Callender está lá. Com o Segundo dos Gordons.
— Eu sei.
— Pobre Loveday! Pobre Gus!
— Pobre Judith! — Inclinando-se, ele lhe beijou o rosto, depois pousou a mão em sua testa. — Como se sente?
Ela meneou a cabeça.
— Não sei dizer como me sinto. Jeremy sorriu.
— Vou levar a bandeja para baixo e arrumar a cozinha. Depois eu lhe darei a pílula prometida. Você estará completamente boa de manhã..
Ele saiu e Judith ficou sozinha, deitada de costas na cálida cama de casal, cercada pelo luxo cuidadosamente selecionado de Diana Carey-lewis: cortinas transparentes, chintz estampados de rosas, abajure com luzes suaves. Estava tudo estranhamente quieto. O único som vinha da chuva caindo além das cortinas fechadas ou de uma janela chocalhando à primeira rajada de vento. Ela pensou no vento como se ele possuísse uma entidade, soprando do oeste, cobrindo quilômetros quadrados de terras vazias, antes de alcançar a cidade obscurecida. Permaneceu imóvel, fitando o teto, pensando em Londres e em eSingapura.
Nome que se deu às antigas colônias holandesas da Indonésia. (N. da T.)
no centro da cidade, naquele momento, nessa noite, um mero ser humano em uma metrópole de centenas de milhares mais. Uma Londres bombardeada, incendiada e sofrida, mas mesmo assim pulsando com uma vitalidade que brotava das pessoas que habitavam suas ruas e prédios. O East End e as docas quase haviam sido demolidos pelos bombardeiros alemães, porém ela sabia que ainda existiam pequenas filas de casas em parede-meia, nas quais famílias reuniam-se em diminutas salas da frente para tomar chá e tricotar, ler jornais, conversar, rir e ouvir o rádio. Da mesma forma como outras congregavam-se a cada anoitecer nas plataformas dos trens subterrâneos, onde dormiam enquanto as composições iam e vinham, porque aquilo significava um pouco de companhia, um pouco de congraçamento e, sem dúvida, era mais divertido do que estar sozinho.
Havia ainda aqueles que permaneciam fora de casa, nesta amarga noite de janeiro. Os atiradores das baterias antiaéreas, os vigilantes de incêndio postados no teto das casas, e os vigilantes das Medidas de Precaução Antiaéreas, sentados ao lado de telefones, em locais improvisados e com correntes de ar, fumando pontas de cigarro e lendo Picture Post para passar o tempo, durante suas longas horas de plantão. Também havia os alistados nas forças armadas que gozavam uma licença, caminhando pelas calçadas escuras em duplas e trios à procura de diversão, finalmente internando-se nas portas encortinadas de algum provável pub. Ela pensou nas prostitutas do Soho, em pé à porta das casas, expostas à chuva, dirigindo o facho de lanternas para suas pernas em meias de arrastão e sapatos de saltos muito altos. E, na outra extremidade da escala, os jovens oficiais, chegados à cidade de remotos aeroportos e bases do exército, jantando com as namoradas no ”Savoy” e depois indo dançar pelo resto da noite no ”The Mirabelle”, ”The Bagatelle” ou ”The Coconut Grove”.
Então, de repente, sem volição, sem saber como, ela começou a pensar em sua mãe. Não em como ela estaria agora. Não neste exato momento, a meio mundo de distância, arriscando-se a todo tipo de perigo mortal, em pânico, provavelmente aterrorizada e certamente confusa. Pensou nela da maneira como tinha sido. Como a via em suas derradeiras lembranças, nos tempos de Riverview.
Seis anos. E tanta coisa mudara! Tanta coisa acontecera! Judith evocou tudo o que tinha acontecido, a Dower House, e, antes disso, o escuro inverno passado na companhia de Biddy, em Upper Biclei, quando a guerra havia eclodido, encerrando os dourados anos de Nancherrow que ela sempre imaginara continuando para sempre.
Riverview. Parte integrante do final de sua infância e, por isso mesmo, tão profundamente saudosa. Uma moradia talvez temporariamente alugada, jamais propriedade delas, mas que, durante aqueles quatro anos, havia sido o lar. Judith recordou o jardim adormecido, os anoiteceres do verão, quando as águas azuis da maré chegavam do mar aberto para cobrir os bancos de areia do estuário. Lembrou-se de como o pequeno trem, durante o dia inteiro, chocalhava ao longo da marge daquele mesmo estuário, indo e vindo de Porthkerris. Viu-se descendo desse trem depois da escola, em seguida subindo a trilha íngreme e arborizada que ia para sua casa, irrompendo pela porta da frente e chamando mamãe! E sua mãe sempre estava lá. Em sua sala de estar com chá pronto sobre a mesa, cercada por seus lindos pertences, tudo impregnado com o aroma de ervilhas-de-cheiro. E ela viu a mãe sentada ao toucador, de roupa mudada para o jantar, penteando o cabelo e passando pó-de-arroz perfumado em seu insignificante nariz. Depois ouviu a voz dela, lendo um livro para Jess, antes da hora de dormir.
Anos pacatos, com raramente um homem na casa. Somente tio Bob, aparecendo às vezes com Biddy, e talvez Ned, vindo passar alguns dias no verão. As visitas dos Somerville tinham sido os pontos altos de sua vida tranqüila, juntamente com a pantomima do Natal no Clube de Porthkerris e os piqueniques de Páscoa, no alto da colina Veglos, quando então era tempo de colher prímulas. Fora isso, um dia deslizava para o outro e estação emendava-se a estação, sem que jamais algo de muito excitante acontecesse. Entretanto, tampouco acontecera algo ruim.
Havia, naturalmente, o outro lado da moeda; a outra verdade. Molly Dunbar, meiga e acessível, tinha sido uma mãe ineficiente. Nervosa em se tratando de dirigir seu pequenino carro, sem tendência para sentar-se em praias úmidas ao vento frio do norte, tímida para a fazer novas amizades e incapaz de tomar qualquer decisão. Qualquer perspectiva de mudança sempre a alarmava. (Judith recordou-se de seu histérico comportamento ao saber que voltava, não para Colombo, que lhe era familiar, mas para Cingapura, que não era.) Além disso, sua mãe tinha pouca vitalidade, cansava-se facilmente e ia para a cama ao menor pretexto.
Ela sempre precisara de direção e apoio. Em vez de um marido para dizer-lhe o que fazer e como fazê-lo, Molly Dunbar se voltara para mulheres mais fortes do que ela. Tia Louise, Biddy Somerville e Phyllis. Em Riverview, Phyllis é que dirigia a casa, organizava tudo, lidava com vendedores e levava Jess para onde não fosse ouvida, sempre que a menina se entregava a um de seus acessos de manha e malcriação.
Aquela fraqueza e a natureza débil não eram culpa de Molly, ela simplesmente nascera assim. Saber disso agora, no entanto, em nada melhorava as coisas. De fato, até piorava. A guerra, desastres, sublevações, desconforto, fome ou privação, costumavam extrair o melhor de algumas mulheres — intrepidez, iniciativa e uma firme determinação de sobreviver. Molly Dunbar, no entanto, não dispunha de tais recursos. Ela seria derrotada. Pisoteada. Destruída.
—Não!
Judith ouviu-se exclamando a palavra em voz alta, uma angustiada refutação de seus próprios medos. Como se fosse possível expulsar imagens de desespero, ela se virou e enterrou o rosto no travesseiro, o corpo encurvado na posição fetal da criança por nascer, ainda em segurança no útero materno. Pouco mais tarde, ouvia Jeremy voltando da cozinha, seus passos soando na escada estreita, depois cruzando o piso da sala de estar. E a voz dele.
— Você me chamou?
Ainda com a cabeça enterrada no travesseiro, ela negou com a cabeça.
— Trouxe-lhe a pílula mágica. E um copo com água, para fazê-la descer.
Judith não se moveu.
—Judith...
Jeremy sentou-se na beira da cama, e seu peso estirou as cobertas em torno dos ombros dela.
—Judith!
Em um choro incontido, ela se virou bruscamente para ele e o fitou com os olhos encharcados de lágrimas.
— Não quero pílulas — disse. — Não quero nada. Eu só queria estar com minha mãe!
— Oh, minha querida...
— E você está apenas sendo um médico. Está sendo horrivelmente profissional.
— Não era essa a minha intenção.
— Eu me odeio por não estar com ela!
—Não deve falar assim. Há muitas pessoas mais que a amam. Você está confusa.
Ele se mostrava tão tranqüilo diante do comportamento dela, tão objetivo, que o pequeno acesso de ira de Judith morreu, deixando-a tomada pela contrição.
— Peço que me desculpe — disse.
— Sente-se realmente mal?
— Não sei como me sinto.
Ele não respondeu. Apenas estendeu a pílula, que de fato parecia uma pequenina bomba, e o copo d'água.
— Engula isto e depois conversamos. Judith olhou duvidosa para a pílula.
— Tem certeza de que ela não me derrubará?
— Certeza absoluta. Apenas fará com que se sinta muito melhor e que, mais tarde, pegue no sono. O gosto não é dos melhores, mas se a tomar com um bom gole d'água, não ficará sufocada. Ela demora um pouco a fazer efeito, portanto é melhor que a tome logo.
Ela suspirou.
— Tudo bem — disse.
— Boa garota.
Com esforço, Judith apoiou-se em um cotovelo, pôs a pílula na boca e a empurrou com um gole da água de torneira de Londres, de gosto ferroso. Jeremy sorriu, aprovador.
— Muito bem. Você nem mesmo engasgou. — Tomou-lhe o copo da mão, e ela tornou a afundar gratamente nos travesseiros. — Quer tentar dormir agora?
— Não.
— Quer conversar?
—É tão idiota a gente não ser capaz de parar de pensar! Eu gostaria de tomar uma pílula que me anestesiasse o cérebro.
— Sinto muito — disse ele, e parecia de fato preocupado. — Não tenho nenhuma comigo.
— Tão idiota! Estou com vinte anos e quero minha mãe. Quero abraçá-la, tocá-la, saber que está em segurança.
As lágrimas, que durante toda a noite não tinham ficado muito longe, agora voltavam a encher-lhe os olhos, e ela se sentia demasiado fraca, sem qualquer tipo de orgulho que a levasse a controlá-las.
— Estive pensando em Riverview e em quando morei lá, com ela e Jess... Pensei em como nada de muito importante acontecia... mas era tudo tão sereno e tranqüilo... e éramos felizes, suponho. Sem exigências. Nada fazendo a gente sentir que estava sendo dilacerada... A última vez em que estivemos juntas... já faz seis anos... foi tão agradável... e agora... eu não sei...
Foi impossível ela continuar. Jeremy disse, entristecido:
— Eu sei. Seis anos são muito tempo. Sinto muito.
—Eu não sei... não sei de nada. Só queria uma carta. Alguma coisa. Para saber onde é que eles estão...
— Eu entendo.
- ...tão idiota!...
— Não, não é nada disso. Entretanto, você não deve perder as esperanças. Por vezes, a falta de notícias é sinônimo de boas notícias. Quem sabe? Mesmo agora, eles podem estar longe de Cingapura, talvez em alguma rota para a índia ou qualquer lugar seguro. Em tempos como este, as comunicações são muito falhas. Procure não se deixar abater.
— Você está apenas falando por falar. Sendo agradável.
— Estes não são momentos para querermos ser agradáveis. Para fingirmos alegria. Temos apenas que procurar ser sensatos. Manter um senso de proporção.
— Suponha que fossem seu pai e sua mãe...
—Eu ficaria angustiado, morto de ansiedade. Entretanto, acho que faria o possível para não perder a esperança.
Judith refletiu nisso por um momento. Depois disse:
— Sua mãe não é igual à minha.
— Ora, o que quer dizer com isso?
— Quero dizer que sua mãe é diferente.
— Como é que sabe?
— Porque a conheci no funeral de tia Lavinia. Mais tarde, na reunião para o chá em Nancherrow, nós conversamos um pouco. Ela é forte, é sensata, é prática. Até posso vê-la, acalmando pacientes frenéticos pelo telefone, nunca transmitindo mensagens importantes erradamente.
— Você é muito perceptiva.
— Minha mãe não é assim. Você só a viu uma vez, naquele tr em. então, nem mesmo nos conhecíamos. Ela não é uma pessoa forte. Não tem confiança em si mesma, nunca está segura do que faz. Sempre nervosa, imaginando o que os outros possam pensar, é incapaz de cuidar de si própria. Tia Louise vivia dizendo-lhe que era uma tola e minha mãe jamais a contradisse, nunca fez alguma coisa para provar que ela estava enganada.
— O que está querendo me dizer?
— Que receio por ela.
— Ela não está só. Tem seu pai. Tem Jess.
— Jess é apenas uma garotinha. Não poderia tomar decisões por minha mãe.
—Jess está com dez anos. Não é mais um bebê. Algumas menininhas de dez anos podem ter um formidável caráter. São cheias de idéias e firmemente determinadas a seguir o próprio caminho. O que quer que aconteça, e onde quer que elas acabem chegando, tenho certeza de que Jess se revelará uma fonte infalível de apoio.
— Como vamos saber.
As lágrimas retornaram, escorrendo pelas faces. Judith procurou a ponta do lençol e tentou enxugá-las, de maneira tão pateticamente ineficaz, que Jeremy não conseguiu suportar. Levantou-se da cama, foi ao banheiro, encontrou uma pequena flanela para friccionar o rosto, molhou-a em água fria, torceu-a, pegou uma toalha e voltou para o quarto.
— Vejamos — disse.
Colocou a mão debaixo do queixo de Judith, ergueu-lhe o rosto e o limpou suavemente. Depois entregou-lhe a toalha, na qual ela assoou vigorosamente o nariz.
—Em geral nunca choro desta maneira—explicou ela. — A última vez que chorei foi quando Edward morreu, mas era diferente. Aquilo significava o fim de alguma coisa. De alguma coisa definitiva, totalmente encerrada. Agora, eu sinto que isto é o início de algo infinitamente pior. — Ela tomou uma longa e soluçante respiração.- Da outra vez, eu não sentia medo.
Judith falava tão desesperada, que Jeremy fez o que ansiara fazer durante todo o tempo. Deitou-se ao lado dela, tomou-a nos braços, puxoua para bem Perto de si e a envolveu no conforto da proximidade.
Ela permaneceu passiva, agradecida, porém uma mão subiu e tocou a lã grossa da suéter dele, os dedos crisparam-se nos fios, e ele teve a sensação de um bebê de colo aferrado ao xale da mãe.
Sabe de uma coisa? Quando eu era garotinho e me desesperava por alguma coisa, minha mãe costumava consolar-me, dizendo: "Isto vai passar. Um dia, você olhará para trás e tudo terá terminado."
Isso fazia as coisas ficarem melhores?
Não muito, mas ajudava.
Não consigo imaginar você como um garotinho. Quando o conheci, já era adulto. Quantos anos você tem, Jeremy?
— Trinta e quatro.
— Se não fosse a guerra, acho que já estaria casado, teria uma família. É engraçado pensar nisso, não é?
— Histérico. Entretanto, não acho muito provável.
— Por que não?
— Estou ocupado demais com a medicina. Muito envolvido para perseguir garotas. Em geral, cronicamente curto de dinheiro.
—Você devia especializar-se. Tornar-se cirurgião, ginecologista ou algo assim. Instalaria seu consultório na rua Harley, com uma placa de latão na porta. "Dr. Jeremy Wells, FRCS”. E, rua abaixo, haveria uma fila de senhoras ricas e grávidas, ansiosas por seus cuidados.
— Uma idéia muito interessante.
—Não o seduz?
— Meu estilo é um pouco diferente.
E qual é o seu estilo?
—O de meu pai, imagino. Um clínico geral rural, com um cachorro no carro.
Inteiramente confortador. –
Ela começava a parecer mais dona de si novamente, porém os dedos, com os nós muito brancos, continuavam firmemente crispados à lã da suéter dele.
- Jeremy.
Fellow ofthe Royal College ofSurgeons (Membro do Real Colégio de Cirurgiões). (N. da T.)
— O que é?
— Quando você se aferrava àquela bóia no meio do Atlântico, depois do afundamento de seu navio, em que ficava pensando?
— Em continuar boiando. Em continuar vivo.
—Não recordava coisas? Coisas agradáveis? Lindos lugares? Bons momentos?
— Eu tentava recordar.
— O que, em particular?
— Não sei.
— Você deve saber.
Aquilo parecia muito importante para ela. Assim, procurando ignorar o despertar físico de seu corpo, gerado pela proximidade dela e por sua clara necessidade dele, Jeremy fez um enorme esforço de vontade e recolheu no subconsciente as primeiras e desencontradas lembranças que lhe vieram à mente.
— Os domingos de outono em Truro, e os sinos da catedral tocando as Vésperas. E caminhar pelos penhascos do Nare, vendo o mar azul como um vidro, e todas aquelas flores silvestres que enchiam as valetas. —Agora surgiram outras lembranças tumultuadas, imagens e sons que, em retrospectiva, ainda tinham o condão de enchê-lo de felicidade. — Estar em Nancherrow, suponho. Ir nadar bem cedo de manhã com Edward, depois voltar através do jardim, sabendo que íamos devorar o mais tremendo breakfast. Fazer parte do time da Cornualha pela primeira vez, em Twickenham, com direito a jogar a bola duas vezes em gol. Caçar faisões nos matagais de Roseland em gélidas manhãs de dezembro, esperando as aves, com os cães ansiosos, e as árvores nuas como rendas, contra um céu pálido de inverno. Música. "Jesus, Alegria dos Homens", e saber que você tinha voltado para Nancherrow.
— A música é uma coisa boa, não acha? Constante. Ergue-nos no ar. Leva-nos para longe do mundo.
—Já terminei. Agora é a sua vez.
— Não posso pensar. Estou cansada demais.
— Uma coisa apenas — insistiu ele. Ela suspirou.
— Está bem. Minha casa. Minha própria casa. Meu lar. Continuou sendo de tia Lavinia, porque ela deixou muito de si para trás, porém ela agora é minha. Também penso na sensação que ela produz, no relógio tiquetaqueando no vestíbulo, na vista do mar e nos pinheiros. E gosto de saber que Phyllis está lá. Gosto ainda de saber que posso voltar, sempre que quiser. Ir para casa. E, um dia, nunca mais deixá-la. Ele sorriu.
— Agarre-se a isso — disse a ela. Judith fechou os olhos. Jeremy baixou o rosto e viu os cílios longos, escuros contra as faces pálidas; o formato da boca, a curva perfeita do maxilar e do queixo. Inclinando-se, beijou-a na testa. — Você está cansada e eu preciso partir bem cedo. Acho que o dia chegou ao fim. — Ela imediatamente abriu os olhos, alarmada, e o aperto na suéter intensificou-se. Dizendo a si mesmo para ser resoluto, Jeremy começou a libertar-se. —Agora, vou deixá-la para que durma.
Judith, no entanto, imediatamente ficou agitada.
— Você não pode ir. Por favor. Não me deixe! Quero que fique comigo!
—Judith...
— Não, não vá... — E ela acrescentou, como se ele precisasse de algum encorajamento: — É uma cama de casal. Há espaço de sobra. Estarei perfeitamente bem, se você ficar. Por favor.
Dividido entre o desejo e seu natural bom senso, Jeremy hesitou.
— Acha que é uma boa idéia? — perguntou pouco depois.
— Por que não seria?
— Porque se passar a noite ao seu lado, com toda probabilidade farei amor com você.
Ela não ficou chocada e nem pareceu muito surpresa.
— Isso não importa.
— O que quer dizer com isso de não importa?
— Quero dizer que, se você quiser, eu gostaria que fizesse amor comigo.
— Sabe o que está dizendo?
— Acho que eu gostaria muito. — De repente, ela sorriu. Ele mal a vira sorrir no decorrer de toda aquela noite. O coração deu um salto em seu peito e, ao mesmo tempo, desapareceu o natural bom senso, como a água do banho sumindo pelo ralo. — Está tudo bem, Jeremy. Não seria a primeira vez.
— Edward — disse ele.
— Edward, naturalmente.
— Se eu fizer amor com você, estará pensando em Edward?
— Não. — A voz dela era firme. — Não. Eu não pensarei Edward. Pensarei em você. Aqui. Em Londres. Aqui, quando realmente precisei de você. E ainda preciso. Não quero que me deixe. Quero que me abrace, que faça com que me sinta em segurança.
— Não posso fazer amor com você inteiramente vestido.
— Então, vá e tire suas roupas.
— Não posso ir. Você está agarrada à minha suéter.
Ela tornou a sorrir. Afrouxou os dedos que se crispavam na suéter mas mesmo assim ele não se moveu. —Já o libertei — disse ela.
— Estou com medo de deixá-la e você desaparecer.
— Não precisa ter medo.
— Não demorarei dois minutos.
— Tente diminuir para um.
—Judith.
A voz vinha de muito longe, brotando da escuridão.
—Judith!
Ela espreguiçou-se. Esticou a mão para tocá-lo, porém a cama estava vazia. Com esforço, conseguiu abrir os olhos. Nada mudara. O quarto estava iluminado pela luz do abajur, as cortinas fechadas, tudo como no momento em que havia adormecido. Jeremy estava sentado ao seu lado, na beira da cama. Já vestira o uniforme e fizera a barba. Ela podia sentir o cheiro agradável de sabonete.
— Trouxe uma xícara de chá para você. Uma xícara de chá.
— Que horas são?
— Seis da manhã. Preciso ir andando.
Seis horas. Ela estirou-se na cama, bocejou e depois se sentou. Ele lhe estendeu a xícara de chá fumegante, quase quente demais para ser bebida. Judith piscou, procurando afastar o sono, pois ainda não acordara de todo.
—A que horas você se levantou?
- Cinco e meia.
,Nãoo ouvi.
-Eu sei.
- Já comeu alguma coisa?
Sim. Um ovo e uma das fatias de bacon. peve levar todos os seus mantimentos. Não adianta deixá-los
- Não se preocupe. Já empacotei tudo. Eu só queria despedir-me.
Queria agradecer-lhe.
Oh, Jeremy! Eu é que devia ser grata.
— Foi maravilhoso. Perfeito. Uma recordação para sempre.
Sem nenhum motivo, Judith ficou um pouco acanhada. Baixou os olhos e bebericou seu chá escaldante.
— Como se sente esta manhã? — perguntou ele.
— Muito bem. Um pouquinho tonta.
— E a dor de garganta?
— Desapareceu.
— Tomará cuidado, não?
— É claro.
— Quando tem de voltar para Portsmouth?
— Ao anoitecer.
— Talvez encontre uma carta à sua espera, de sua família.
— É, talvez. — Ela pensou nessa possibilidade e, de repente, ganhou esperanças. — Sim, pode ser que encontre.
—Procure não se preocupar demais. E cuide-se. Eu desejaria poder ficar. Esta noite nós conversamos, porém ainda há mil coisas que nunca nos dissemos. E este não é o momento.
—Não deve perder seu trem.
— Escreverei. Assim que conseguir algum tempo livre. Escreverei e tentarei dizer todas as coisas que desejaria ter dito esta noite. No papel, talvez me saia melhor da incumbência.
Não se saiu mal nem um pouco. Entretanto, eu adoraria uma carta a qualquer momento que quiser escrever.
- Agora preciso ir. Adeus, querida Judith.
- Se afastar este chá daqui, eu lhe direi adeus adequadamente. Ele riu, tomou-lhe a xícara com o pires, e então abraçaram-se, acariciaram-se e beijaram-se, como os amigos que sempre haviam sido, mas, agora, também como amantes.
— Não se deixe torpedear novamente, Jeremy.
— Farei o possível para que isso não aconteça.
— E escreva. Como prometeu.
— Escreverei. Mais cedo ou mais tarde.
— Antes de ir, faz uma coisa para mim?
- Sim.
- Abra todas as cortinas, para que eu possa ver o amanhecer.
— Só ficará claro daqui a horas.
— Esperarei.
Assim, Jeremy afastou-se dela e ficou em pé. Inclinou-se para desligar o abajur e então caminhou para a janela. Ela o ouviu puxar as cortinas de seda e lidar com as do black-out. Além da vidraça, a manhã invernal estava escura, porém a chuva tinha parado e o vento diminuíra.
— Está perfeito.
— Tenho que ir.
— Adeus, Jeremy.
— Adeus.
Estava escuro demais para enxergar, porém ela o ouviu mover-se, abrir a porta e fechá-la suavemente ao sair. Tinha ido embora. Judith recostou-se nos travesseiros e, quase imediatamente, tornou a adormecer.
Eram dez da manhã quando acordou de novo, por isso, nunca lhe foi possível testemunhar a claridade que invadia o céu. Ao contrário, era o dia que estava sobre ela, nublado, mas com rasgões de céu azul-pálido. Judith pensou em Jeremy, agora em algum trem que se dirigia ruidosamente para o norte, rumo a Liverpool, a Invergordon ou talvez Rosyth. Pensou nesta última noite e ficou sorrindo para si mesma, recordando a maneira como Jeremy fizera amor — um amor infinitamente terno, mas competente ao mesmo tempo, a fim de que o prazer dela se conjugasse ao ardor dele e que, juntos, prosseguissem para um clímax de paixão física. Um interlúdio de inesperada magia, inclusive de júbilo.
Jeremy Wells. Tudo agora havia mudado. Antes, eles nunca se tinham correspondido, mas ele prometera escrever, mais cedo ou mais tarde. Isto significava algo especial a ser aguardado.
Enquanto isso, ela estava novamente sozinha. Estirada na cama e considerando o seu estado, percebeu que tinha se recuperado. O resfriado, gripe, infecção ou o que quer que fosse, havia desaparecido, levando consigo todos os sintomas de dor de cabeça, lassidão e depressão. Era impossível dizer quanto disso era devido mais a Jeremy Wells do que a suas medicações profissionais e a uma boa noite de sono. De qualquer modo, não fazia diferença. Judith sentia-se ela própria novamente, cheia de sua energia costumeira.
E como gastar essa energia? Só teria que voltar para os Alojamentos ao anoitecer, mas a perspectiva de um dia vazio e solitário em Londres, durante um domingo em tempo de guerra, sem ao menos sinos de igrejas ou alguém para amenizar o seu lazer, não era particularmente tentador. De qualquer modo, no fundo de sua mente, dormitava a possibilidade de uma carta de Cingapura. Quanto mais pensava nisso, mais aumentava a certeza de que uma carta a esperava no Gabinete de Regulamento, dentro da caixa de correspondência rotulada com a letra ”D”. Mentalmente, podia ver a carta esperando-a e, de súbito, tornou-se importante voltar sem demora para Portsmouth. Jogando as cobertas para um lado, ela pulou da cama, foi para o banheiro, abriu as torneiras ao máximo e tomou outro banho escaldante.
De banho tomado, vestida e com a mochila pronta, ela se dedicou a um pequeno e rápido trabalho doméstico. Tirou as arrumações da cama, dobrou as cobertas, foi para o andar de baixo, esvaziou a geladeira e a desligou da tomada. Como bom homem do mar, Jeremy deixara a cozinha cintilando e imaculada. Judith rabiscou uma nota para a sra. Hickson, firmou-a sob o peso de duas moedas de meia coroa, recolheu sua mochila e saiu, batendo a porta da frente às suas costas. Tomou o trem subterrâneo para Waterloo, depois embarcou no primeiro que passou para Portsmouth e, uma vez lá, seguiu de táxi ao longo das ruínas do bombardeado Guildhall. Por volta de duas horas, chegava aos Alojamentos das Wrens. Pagou a corrida do táxi, cruzou a porta principal e entrou no Gabinete de Regulamento, onde a Wren de plantão nesse dia, uma jovem de rosto irritado e pele desastrosa, estava sentada atrás da mesa de trabalho, roendo as unhas de tédio.
— Chegou um pouco cedo, não? — disse ela, ao ver Judith.
— É, eu sei.
— Pensei que sua folga só terminaria ao anoitecer.
— Sim, terminaria ao anoitecer.
— Bem, sei lá. — A Wren plantonista encarou-a com olhos desconfiados, como se Judith pretendesse sair da linha. — Suponho que isso não faça diferença para algumas.
A frase parecia não exigir qualquer tipo de resposta, de modo que Judith ficou calada. Apenas registrou sua entrada, depois caminhou para a grade de madeira em que ficavam as caixas de correspondência. Havia uma pequena pilha de cartas sob a "D". Ela pegou a pilha e examinou-a. Wren Durbridge. Oficial subalterno Joan Daly. Então, por último, o fino envelope azul via aérea, com a caligrafia de sua mãe. Um envelope de cantos amassados e sujos, como se houvesse sofrido vicissitudes sem conta e já tivesse dado volta ao mundo duas vezes. Judith colocou as outras cartas de volta no lugar e ficou parada, olhando a sua. O instinto pedia que a abrisse e lesse ali mesmo, porém o olhar inamistoso da Wren do Regulamento continuava sobre ela e, como não queria ninguém observando, recolheu sua mochila e subiu a escada de cimento que levava ao andar de cima e ao minúsculo e frígido compartimento que dividia com Sue. Sendo domingo, não havia ninguém ali. Sue provavelmente estaria de plantão. Tirando o bibico, Judith sentou-se no beliche de baixo, ainda envolta em seu sobretudo, abriu o envelope e puxou para fora as folhas de papel de correspondência aérea, dobradas em um maço e cobertas pela caligrafia de sua mãe. Desdobrando-as, ela começou a ler.
Orchard Road Cingapura
16 de janeiro
Muito querida Judith
Não tenho muito tempo, de modo que esta será algo breve. Eu e Jess partimos amanhã para a Austrália, no The Rajah of Sarawak. Faz quatro dias que Kuala Lumpur caiu em poder dos japoneses, e agora eles avançam para a ilha de Cingapura como uma maré enchente. Desde o Ano-Novo tem havido comentários de que o governador estava recomendando a evacuação de todas as bouches inutiles. Isto significa mulheres e crianças, e suponho que dizê-lo em francês parece menos insultante do que "bocas inúteis". Contudo, após Kuala Lumpur, seu pai — e aliás quase todo mundo — tem passado a maior parte de seus dias nos escritórios de navegação, tentando conseguir passagem para mim e Jess. Os refugiados têm chegado em levas, e tudo aqui é um torvelinho. Seja como for, neste momento (11 da manhã), ele apareceu dizendo que conseguiu dois beliches para nós (suborno?) e que partiremos amanhã de manhã. Só nos permitem levar uma maleta cada uma, porque o navio está superlotado. Sem qualquer espaço para bagagem. Papai terá de ficar aqui. Não poderá acompanhar-nos, porque é responsável pelo escritório e funcionários da Companhia. Estou temendo pela segurança dele e com medo da separação. Se não fosse por Jess, eu ficaria e enfrentaria os riscos, mas, como sempre, minhas lealdades estão divididas. Abandonar os criados, a casa e o jardim é quase tão ruim como ser arrancada pelas raízes. O que posso fazer?
Jess está muito perturbada com a idéia de deixar Orchard Road, Ah Lin, a Amah e o jardineiro. Todos eles são seus amigos. Entretanto, eu lhe disse que iremos em um navio, que isto será uma aventura, e agora ela e a Amah estão fazendo sua mala. Estou morta de apreensão, mas fico repetindo para mim mesma que temos sorte em ir embora. Quando chegarmos à Austrália, eu lhe passarei um cabograma, comunicando nossa chegada e endereço, a fim de que possa escrever-me. Por favor, diga a Biddy que não tive tempo de escrever para ela.
A carta havia sido iniciada na caligrafia normal de Molly Dunbar, Singela e de colegial. No entanto, à medida que as páginas avançavam, as letras se deterioraram e agora não passavam de garatujas frenéticas, borradas de tinta.
muito estranho, mas a vida inteira, de quando em quando eu me surpreendi fazendo perguntas irrespondíveis. Quem sou eu? O que estou fazendo aqui? Para onde estou indo? Agora, tudo isto parece tornar-se terrivelmente verdadeiro, mais ou menos como um pesadelo que me perseguiu muitas vezes antes. Eu gostaria de poder despedir-me adequadamente de você, mas no momento, uma carta é o único meio disponível. Se alguma coisa acontecera mim e a Papai, você cuidará de Jess, não cuidará? Eu a amo muitíssimo. Penso em você o tempo todo. Prometo escrever, assim que chegar à Austrália. Judith querida.
Da mamãe
Esta foi a última carta que ela recebeu de sua mãe. Três semanas mais tarde, no domingo, 15 de fevereiro, Cingapura se rendia aos japoneses.
Depois disso, não houve mais notícias.
HMS Sutherland Posta-restante Londres
21 de fevereiro de 1942
Querida Judith
Eu disse que escreveria mais cedo ou mais tarde, e parece ser mais tarde, porque faz cerca de um mês que me despedi de você. Poderia ter-lhe escrito uma nota breve, porém isso não seria muito satisfatório, e eu sabia que, havendo um atraso, você compreenderia.
Meu endereço é deliberadamente ilusório. Meu navio não se acha escondido no compartimento de alguma Posta-restante, e sim sofrendo reparos no Estaleiro da Marinha no Brooklyn-(O sonho de todo marujo inglês.) Para a Marinha Real, Nova York é uma casa aberta aos amigos. Jamais experimentei tal hospitalidade, e as festas começaram no momento em que fomos deixados em segurança no dique seco, e os reparos tiveram início. Meu primeiro-tenente (Jock Curtin, um australiano), fomos levados de carro a um coquetel em um pretensioso apartamento no East Side do Central Park, e lá considerados heróis —algo que não somos, porém tendo sido tratados como tais. Nessa particular reunião (e tem havido demais, para o fígado de uma pessoa), conhecemos um simpático casal, Eliza Dave Barmann, que prontamente nos convidou a um fim de semana em sua casa de Long Island. Cortesmente, os dois foram apanhar-nos junto às docas em seu Cadillac e nos trouxeram pela auto-estrada de Long Island até aqui, o seu "lar" dos fins de semana. É uma grande e antiga casa de ripas, situada em um vilarejo chamado Leesport, no litoral sul de Long Island. A viagem para cá levou cerca de duas horas, não se podendo dizer que foi um belo trajeto, pontilhado de out-doors, bares de beira de estrada e lotes para carros usados, mas o vilarejo fica afastado da via principal, e é encantador. Grama verdejante, muros de gradis, árvores frondosas, ruas amplas, um drugstore, um posto de bombeiros e uma igreja de madeira, com a torre bastante alta. Exatamente como imaginei a América, descrita naqueles filmes antigos a que costumávamos assistir, com a mocinha usando um vestidinho de algodão e terminando casada com o rapaz da casa ao lado.
A casa fica à beira-mar, com um gramado que vai até a praia. Não se trata do oceano, porque a Great South Bay é uma espécie de lagoa, circundada pelas dunas de Fire Island. O Atlântico fica no lado mais distante de Fire Island. Há uma pequena marina, com a bandeira de listras e estrelas esvoaçando ao vento e, ancorados, um bom punhado de invejáveis iates e barcos a vela.
Assim, já descrevi o cenário. Ao ar livre faz frio, porém cortante e seco. É uma linda manhã. Dentro da casa, onde agora estou sentado a uma secretária com vista para o deck e a piscina, está maravilhosamente quente, graças ao calor que o aquecimento central faz brotar de grades decorativas. Por causa disso, a casa tem mobiliário de verão, com pisos encerados e sem Carpetes, cortinas de algodão branco e tudo muito claro e fresco, o ambiente cheira a cedro, com subtons de cera de abelhas e óleo de bronzear. No andar de cima, Jock e eu temos um quarto para nós, com banheiro anexo. Assim, como pode deduzir estamos vivendo no auge do luxo.
Conforme já disse, a gentileza e hospitalidade que nos têm sido oferecidas são inacreditáveis, e inclusive constrangedoras porque é bem pouco o que podemos fazer para retribuí-las. Isto parece ser uma parte integrante do caráter americano, e minha teoria é de que este se origina dos velhos tempos, da época dos primeiros pioneiros. Um colono, ao avistar uma distante nuvem de poeira, e sabendo que um forasteiro estava a caminho, dizia à esposa para pôr mais duas batatas no cozido. Ao mesmo tempo, ele estendia o braço para seu rifle, sendo este o reverso da moeda americana.
Agora, não falarei mais sobre mim, mas sobre você. Penso em você todos os dias e gostaria de saber se teve alguma notícia de sua família. A queda de Cingapura foi um desastre, provavelmente a pior derrota já sofrida na história do Império Britânico, e a defesa da cidade parece ter sido inteiramente falha e mal planejada. Aliás, nada disso é consolo para você, se ainda continua sem notícias. Entretanto, lembre-se de que a guerra há de ter um fim e, embora isto possa demorar algum tempo, estou certo de que um dia todos vocês ficarão juntos novamente. O pior é que a Cruz Vermelha não está conseguindo comunicar-se. os prisioneiros na Alemanha pelo menos têm o benefício da organização na Suíça. Seja como for, nunca deixo de ter esperanças por todos vocês. E por Gus Callender. Pobre rapaz! Quando penso em minhas presentes circunstâncias e no que ele talvez esteja passando, sinto-me terrivelmente culpado. A culpa pessoal, contudo, sempre se revelou um exercício absolutamente inútil.
Aqui, Jeremy largou a caneta, sua atenção desviada para uma pequena barca que cruzava as águas quietas e prateadas do Soun encaminhando-se para Fire Island. Ele já preenchera folhas e folhas de papel, mas ainda não chegara ao tema de sua carta a Judith. Ocorre-lhe que, subconscientemente, adiava o que queria dizer a ela, Por ser tão pessoal e tão importante, que receava não ser capaz de encontrar as palavras que formariam as frases. Iniciara a carta cheio de confiança, mas agora, chegado ao momento capital, não-estava mais seguro de si. Ficou olhando a evolução da barca até ela desaparecer de vista, perdida atrás de um maciço de arbustos. Depois, pegando a caneta, recomeçou a escrever.
Encontrar você em Londres, descobri-la na casa de Diana, foi o melhor e mais inesperado dos prêmios. Além disso, fiquei feliz por estar lá quando você não se sentia bem e estava tão preocupada com os seus. Estar com você naquela noite e permitir-me partilhar — além de consolá-la, espero — da maneira mais básica, em retrospectiva se tornou uma espécie de pequeno milagre, e jamais esquecerei sua meiguice.
A verdade é que eu a amo muito. Penso que sempre a amei. Entretanto, só me dei conta disso naquele dia em que você voltou para Nancherrow, e ouvi ”Jesus, Alegria dos homens” vindo do seu quarto, uma indicação de que estava em casa novamente. Creio que você escrevia uma carta para sua mãe. Sei que, naquele momento, compreendi o quanto você era importante para mim.
Como isso da culpa pessoal, ficar apaixonado em tempos de guerra e assumir compromissos é um exercício totalmente inútil, e tenho quase certeza de que pensa como eu. Você amou Edward, e ele foi morto; ninguém desejaria viver tal experiência uma segunda vez. Um dia, entretanto, a guerra terminará e, com um pouco de sorte, todos nós conseguiremos sobreviver a ela. Retornaremos então à Cornualha e, lá, recolheremos novamente os fios de nossas vidas. Quando isso acontecer eu gostaria — mais do que qualquer coisa no mundo — que estivéssemos juntos de novo porque, neste momento, não consigo imaginar um futuro sem você.
Aqui ele tornou a parar, largou a caneta, juntou as folhas escritas e as releu do começo ao fim. Perguntou-se se o último parágrafo não estaria demasiado bombástico. Sabia-se incapaz de colocar no papel seus sentimentos mais profundos. Alguns homens, como Robert Burns ou Browning, conseguiam transmitir paixão em apenas algumas linhas bem elaboradas, mas escrever poesia era um dom com o qual Jeremy Wells não fora agraciado. O que registrara teria de ser suficiente, mas ainda assim sentiu-se assaltado pela dúvida, pela desilusão de seus pensamentos.
Afinal de contas, o que mais queria no mundo era casar com Judith. Porém seria justo para com ela apenas sugerir tal coisa? Tão mais velho do que ela, era forçoso admitir que estava longe de ser um bom partido. Com um futuro não mais emocionante do que a vida de um clínico geral rural, um médico que, além disso, era escasso em bens mundanos. Ao passo que Judith, graças à falecida tia, tornara-se uma jovem de posses e proprietária. E as pessoas não diriam que ela imaginaria qu ele a queria por seu dinheiro? A vida que tinha a oferecer-lhe seria de esposa de um médico rural e, por experiência, Jeremy a sabia necessariamente dirigida por intermináveis chamadas telefônicas, noites interrompidas, feriados cancelados e refeições que não passavam de festas móveis. Talvez ela merecesse mais do que isso. Um homem que pudesse dar-lhe o que nunca conhecera — uma forte e segura vida familiar — além de possuir rendimentos compatíveis com os dela. Judith se tornara tão adorável, tão desejável. apenas pensar nela fazia seu coração dar saltos. que seria óbvio surgirem homens que se apaixonassem por ela, como maçãs caindo de uma árvore. Não seria desmedidamente egoísta, neste particular momento do tempo, pedir-lhe que se casasse com ele?
Ele simplesmente não sabia, porém tinha chegado tão longe, que bem podia terminar sua carta. Dilacerado pela incerteza, ele tornou a pegar a caneta e seguiu em frente.
Estou dizendo tudo isto sem fazer a menor idéia do que você sente a meu respeito. Sempre fomos amigos (ou assim gosto de pensar), e gostaria que tudo continuasse da mesma forma, de modo que não quero escrever nem dizer coisa alguma que possa prejudicar para sempre o nosso bom relacionamento. Portanto, nesse meio tempo esta declaração do meu amor por você terá de bastar. De qualquer modo, responda-me assim que puder e deixe-me saber o que sente, se com o correr do tempo poderia considerar a possibilidade de passarmos juntos o resto de nossas vidas.
Eu a amo profundamente. Espero que isto não a perturbe e nem a entristeça. Lembre-se apenas de que estou dispostoa esperar, até você estar pronta para um compromisso. Entretanto, por favor, escreva tão logo lhe seja possível, para que minha mente fique tranqüila.
Do sempre, minha querida Judith,
Jeremy
Pronto, terminara. Largou a caneta pela última vez, passou os dedos através dos cabelos e depois ficou olhando desamparadamente para as folhas que levara redigindo a manhã inteira. Talvez não devesse ter perdido seu tempo. Talvez devesse rasgá-las, esquecer tudo, escrever outra carta, mas agora nada querendo da destinatária. Por outro lado, se fizesse isso...
—Jeremy?
Sua anfitriã viera procurá-lo, e ele ficou grato pela interrupção.
—Jeremy?
—Estou aqui. —Recolheu rapidamente as folhas da carta, juntou-as e as deslizou para baixo do bloco de papel de cartas. — Na sala de estar!
Jeremy girou na cadeira. Ela apareceu na porta aberta, alta, bronzeada, com os cabelos louro-prateados bufantes e luzindo, como se acabasse de sair das mãos de um experiente cabeleireiro. Usava um costume de lãzinha leve, uma blusa listrada de gola engomada, os punhos presos com pesadas abotoaduras douradas, e sapatos fechados de salto alto, acentuando a elegância de suas compridas pernas americanas. Eliza Barmann, um prazer para os olhos.
Vamos levá-lo para almoçar no clube. Iremos dentro de uns quinze minutos. Estará pronto?
Naturalmente. — Ele reuniu seus pertences e levantou-se. —
- Sinto muito. Não reparei que era tão tarde.
- Terminou sua carta?
Neste instante.
Quer colocá-la no correio?
- Posso querer acrescentar alguma coisa. Mais tarde, eu mesmo a postarei, quando voltar ao navio.
- Bem, sendo assim...
- Vou arrumar-me um pouco.
— Não é nada formal. Basta uma gravata. Dave queria saber se depois do almoço, você gostaria de uma partida de golfe.
— Não tenho tacos. Ela sorriu.
—Não é problema. Podemos consegui-los com os profissionais. Não se apresse. Não há pressa. Exceto que seria agradável saborear um martini, antes de irmos comer.
Em fins de abril, no término de um longo dia, Judith acabou de datilografar a última carta para o capitão-de-corveta Crombie (com cópias para o capitão, HMS Excellent, e o diretor da Artilharia Naval) e puxou as folhas do rolo de sua máquina de escrever.
Eram quase seis horas. As outras duas Wrens que trabalhavam no mesmo gabinete já tinham arrumado suas mesas e retornado aos alojamentos, em suas bicicletas. Entretanto, já bem avançada a tarde, o capitão-de-corveta Crombie surgira com aquela comprida missiva, não apenas Altamente Secreta, mas também Urgente. Assim, com certo ressentimento, Judith permanecera trabalhando na tal carta.
Estava cansada. Fora dali, o tempo estivera maravilhoso, era um adorável dia de primavera, com uma brisa morna e todos os narcisos do jardim do capitão assentindo com seus botões floridos, de maneira muito inquietante. Ao meio-dia, quando ela saiu para o almoço de guisado de carneiro e torta de ameixas, tinha visto as verdes encostas da Portsdown Hill alçando-se para o céu, e ficara um momento parada, contemplando saudosa a crista ondulada da montanha, aspirando o cheiro da relva recém-cortada e sentindo todo o seu corpo vibrar com esta jovem estação de ascendente seiva e renovação. Então, havia pensado, estou com vinte anos e nunca mais terei vinte anos outra vez. Ansiou por escapar e ser livre, poder andar por onde quisesse, escalar a montanha, respirar o ar puro, deitar-se sobre a turfa macia e ouvir vento na relva, o canto dos pássaros. Em vez disso, meia hora para guisado de carneiro e a volta para o abafado barracão que era o quartel-general temporário do Incremento de Instrução Militar.
Agora, ela folheou as páginas do documento, separando a primeira via das duas cópias a carbono. Deixou a última a um lado, destinou-a
Ao arquivo pertinente, depois enquadrou as outras, colocou-as em uma pasta de papelão e as levou para serem assinadas.
Isto requeria sair da sala de datilografia e passar pelo escritório principal, onde o tenente Armstrong e o capitão Burton, dos Fuzileiros da Marinha Real, continuavam em suas mesas de trabalho. Quando ela cruzou o piso, nenhum dos dois se virou ou ergueu a cabeça. A familiaridade havia gerado, se não o desdém, pelo menos uma profissioonal falta de interesse. No extremo oposto havia uma porta, com uma sigla em uma placa: I.I.M.
A paixão por siglas era um dos mais confusos riscos da guerra. O capitão-de-corveta Crombie passava muitas de suas horas de trabalho tentando despertar o interesse de seus superiores no desenvolvimento de um dispositivo conhecido como SAVI, que queria dizer Simulador Artificial Visual, Mark 1. Tendo estado datilografando cartas sobre este desditoso apetrecho durante os últimos seis meses, ela o apelidara privadamente de GIP (G.I.E sendo o jargão militar para Grande e Inútil Porcaria). Logo depois do Ano-novo, o capitão-de-corveta Crombie comemorara um aniversário e, decidindo que podia colocar um pouco de humor na vida dele, Judith havia desenhado e colorido um cartão para seu chefe, tendo ainda escrito um poema.
O SAVI é sua última invenção,
Por especial requisição
E ao preço de um canhão.
Com modificações
E leves alterações,
A Cantina pode usá-lo para cozer macarrão.
A brincadeira não agradou. O capitão-de-corveta Crombie não estava com ânimo para risos, mas preocupado com o avançar da idade, as Possibilidades de promoção e a quota trimestral de matrícula no colégio do filho. Em vista disso, o cartão de aniversário foi uma espécie de fiasco e, dois dias mais tarde, Judith o encontrou na cesta de papéis do chefe.
— Entre.
Ele estava sentado atrás de sua mesa, usando perneiras, com ar sério. Às vezes, o capitão-de-corveta Crombie mostrava a expressão de homem sofrendo de uma dolorosa úlcera estomacal.
— Aqui tem a sua carta, senhor. Já datilografei os envelopes. Se quiser lê-la por inteiro e depois ligar me chamando, farei com que seja despachada ainda esta noite.
Ele olhou para seu relógio.
— Céus! É tão tarde assim? Já não devia ter ido embora?
— Bem, se eu não estiver nos alojamentos às sete, não terei o que comer.
— Não vamos permitir que isto aconteça. Se me trouxer envelopes, providenciarei o envio. Assim, você não ficará sem comer
Ele era um homem cujo latido era pior do que a mordida. Judith descobrira este particular havia muito e, desde então, nunca sentira qualquer temor dele. Após a queda de Cingapura e o eclipse de notícias de sua família, Crombie se mostrara enormemente preocupado com o bem-estar de sua subordinada e, sem constrangimento, agia como uma espécie de avô. Estava sempre pedindo notícias e depois, como as semanas passavam e nada acontecia, diplomaticamente deixando de pedi-las.
Ele tinha uma casa em Fareham, onde morava com a esposa e o filho. Logo após a notícia da capitulação de Cingapura tornar-se conhecida em um mundo horrível, convidara Judith para um almoço de domingo com sua família. Não sentindo a menor vontade de ir, mas muito sensibilizada pelo convite, ela aceitou prontamente, exibindo sorrisos de gratidão, como se a perspectiva lhe causasse nada mais senão prazer.
Nos domingos não havia ônibus para Fareham, de maneira que Judith teve de pedalar oito quilômetros em sua bicicleta para chegar indistinta casa do capitão-de-corveta. A visita foi um fiasco ainda mais do que o cartão de aniversário, pois era claramente visível que a sra. Crombie suspeitava de envolvimentos sexuais, e seu marido não era o homem mais adequado para o leve toque da conversação casual. A fim de afastar dúvidas, Judith o tratou insistentemente de "senhor",tendo passado a maior parte da tarde no chão da sala de estar, ajudando o filho menor dos Crombies a construir um moinho de vento com conjunto Mecano. Foi realmente um alívio, quando chegou a hora de montar em sua bicicleta e pedalar os longos quilômetros de volta aos alojamentos.
De qualquer modo, o convite fora bem-intencionado. Deixando-o sozinho para ler a carta, ela voltou à sua sala, cobriu a máquina de escrever, pegou os envelopes, seu casaco e o gorro. O tenente Armstrong e o capitão Burton também tinham decidido limpar suas mesas e dar o expediente por encerrado. O tenente Armstrong acendia um cigarro quando ela passou junto dele, e perguntou:
— Nós vamos tomar um drinque no ”Coroa de Âncora”. Quer ir também?
Ela sorriu. Evidentemente, os dois tinham concluído que era hora de desligarem, relaxarem e começarem a divertir-se.
— Obrigada, mas acho que não terei tempo.
— É uma pena. Encare como um rain-check.
Esta era uma nova expressão que o tenente Armstrong aprendera com as forças americanas, chegadas ultimamente. Ainda não tendo descoberto seu significado, ela apenas respondeu:
— Obrigada. Farei isso.
De volta ao gabinete do chefe, Judith dobrou as cartas com imaculada precisão, colocou-as em seus envelopes, fechou-os e os deixou cair na bandeja ”Saída” sobre a mesa dele.
— Se isso é tudo, estou indo embora.
— Obrigado, Judith.
Erguendo os olhos, ele exibiu um de seus raros sorrisos. Ela desejou vê-lo sorrir mais vezes. Chamá-la por seu primeiro nome também não era costumeiro. Judith perguntou-se quantos de seus problemas não seriam provocados pela fria e visivelmente ciumenta esposa, e sentiu pena dele.
—Não foi nada. —Ela vestiu o casaco, abotoou-o, e ele se recostou na cadeira, a fim de fitá-la. — Há quanto tempo — perguntou abruptamente — você não tem uma licença?
Ela mal conseguia lembrar.
— Desde o Natal?
— Então, já está em atraso.
— Quer livrar-se de mim?
Gíria americana, significando a promessa de aceitar um convite em data posterior. (N. da T.)
— Muito pelo contrário. Apenas me parece um pouco cansada.
— Tem sido um longo inverno.
— Pense a respeito. Poderia ir em casa, à Cornualha. Voltar à sua casa. Uma licença de primavera.
— Vou pensar.
— Se quiser, falarei com sua primeiro-oficial. Algo alarmada, Judith sacudiu a cabeça.
— Não. Não será preciso. Sei que tenho uma folga de fim de semana completo em atraso. Talvez a requisite.
— Acho que deveria requisitá-la. — Ele tornou a endireitar-se na cadeira e, novamente, voltou a ser o homem brusco de sempre.
Agora pode ir.
Judith sorriu para ele, com grande afeição.
— Boa noite, senhor.
— Boa noite, Dunbar. Em meio ao dourado anoitecer de primavera, ela pedalou de volta aos alojamentos. Passou pela ponte de pedestres, subiu a Stanley Road e chegou à rua principal que corria para o lado norte da cidade. Enquanto pedalava, pensou na licença, em voltar à Cornualha. apenas por alguns dias. Estar com Phyllis, Biddy e Anna, fazer jardinagem em volta da casa, de joelhos e com o sol batendo nos ombros, arrancar ervas daninhas dos canteiros de rosas. Era tempo da cabana da horta ser desinfetada para a nova estação, e talvez também fosse hora de começar a procurar um novo jardineiro. Precisava de apenas alguns dias, e um fim de semana completo daria para tudo.
Era ridículo, mas quase o pior vazio deixado pela perda de contato com sua família, havia sido a certeza de que não haveria mais cartas. Vivera durante tanto tempo — quase sete anos — com a pequena e prazerosa antecipação da chegada de um envelope regular, cheio de notícias triviais e preciosas de Cingapura, que se tornara condicionada, e a cada vez que retornava aos alojamentos, precisava recordar-se de que nada havia a procurar no compartimento rotulado com a letra "D".
Nem mesmo a prometida carta de Jeremy Wells. Mais de dois meses haviam passado desde que se tinham despedido em Londres, e ele a deixara dormindo na cama de Diana. Escreverei, ele prometera. Há tanta coisa a dizer. Mais cedo ou mais tarde. Ela acreditara, porém nada havia chegado. Nada tinha acontecido. Isso era terrivelmente desanimador e, enquanto as semanas passavam e não surgia nenhuma carta, ela ia ficando consumida pelas dúvidas, não apenas em relação a ele, mas também sobre si mesma. Era inevitável emergir a desconfortável suspeita de que Jeremy lhe tinha feito amor exatamente pelo mesmo motivo de Edward. Afinal de contas, ela é que, sentindo-se mal e muitíssimo preocupada, pedira a ele que ficasse, que dormissem juntos, que não a deixasse. Querida Judith, ele a tinha chamado, mas quanto de seu ato amoroso fora produto da compaixão? Escreverei, havia prometido, mas não escrevera, e agora ela já deixara de ansiar pela carta dele.
De vez em quando havia pensado em escrever para Jeremy. Em dizer-lhe, como que por brincadeira, Seu malvado, aqui estou eu, ansiosa por notícias, e você disse que me enviaria uma carta. Nunca mais acreditarei em suas palavras. Ou algo parecido. Entretanto, receara ser precipitada, falar além do que devia. Talvez o assustasse com seu entusiasmo, da mesma forma como assustara Edward, com sua inoportuna declaração de amor eterno.
Afinal de contas, havia uma guerra devastando o mundo inteiro. Não era o momento de alguém assumir compromissos. (Palavras de Edward.) Não era oportuno fazer promessas.
Por outro lado, no entanto, agora não se tratava de Edward. Agora era Jeremy Wells, o epítome da lealdade e honestidade. Judith podia apenas imaginar que ele refletira melhor. Longe dela, prevalecera o bom senso. O amor de ambos, em Londres, havia sido simplesmente um interlúdio, extasiante, mas demasiado leve e efêmero para ser perseguido, à possível custa de uma preciosa amizade.
De cabeça deliberadamente fria, disse para si mesma que compreendia. Entretanto, não era verdade, porque não compreendia, em absoluto. O fato é que se sentia, não apenas decepcionada com ele, mas dolorosamente ferida.
Tais reflexões não muito alegres duraram por todo o trajeto até os alojamentos. Judith pedalou sua bicicleta até os fundos do feioso prédio, firmou-a no bicicletário e entrou, passando pelo Gabinete de Regulamento. A oficial de plantão nos alojamentos era uma mulher rechonchuda, de trinta e tantos anos, que em tempo de paz havia sido inspetora em uma escola preparatória para meninos.
— Olá, Dunbar, trabalhando até tarde?
— Havia cartas de última hora para enviar.
— Pobre garota. Não é justo. Telefonaram para você. Deixei nota em sua caixa de correspondência.
— Oh, obrigada.
— É melhor apressar-se, ou perderá a bóia.
— Eu sei.
Ela registrou sua entrada e depois dirigiu-se à prateleira de caixas de correspondência. Encontrou uma carta (de Biddy) e o recado em um pedaço de folha de bloco, onde a oficial dos alojamentos rabiscara "Wren Dunbar. 16:30. Chamada de Loveday Carey-Lewis. Ela pede que ligue de volta."
Loveday. O que Loveday desejaria?
Não havendo tempo para ligar antes do jantar, Judith foi diretamente para o refeitório, onde comeu uma fatia de carne assada, uma batata frita e uma porção de repolho cozido além do ponto. A sobremesa era um quadrado de bolo-esponja com um bocado de geléia de ameixa no topo. Parecia tão insosso, que ela o recusou. Subiu para seu quarto, onde mantinha escondidas algumas maçãs para serem consumidas quando tivesse fome. Mastigando a maçã, ela tornou a descer para o térreo, em busca de um telefone livre. Havia três, em pontos estratégicos, situados nas imediações dos apartamentos e, quando anoitecia, em geral havia uma fila de garotas, sentadas nos degraus, ouvindo cada palavra dita por quem usava o telefone, e aguardando a sua vez. Agora, contudo, Judith teve sorte. Talvez devido ao tempo quente, a maioria das Wrens tinha saído, e havia um telefone vago.
Ela discou o número de Nancherrow, depositou as moedas no aparelho e esperou.
—Nancherrow.
Judith apertou o botão e as moedas caíram tilintando, dentro da caixa.
— Quem fala?
— Athena.
— Athena, é Judith! Recebi uma nota, pedindo que ligasse para Loveday.
— Um momento, vou chamá-la. — O que Athena fez, gritando o nome de Loveday e quase deixando Judith surda. — Ela está vindo.
- Como vai Clementina?
Muitíssimo bem. Está falando de um telefone público?
Estou.
Então fique calada, meu bem, ou seus xelins acabam. Até qualquer hora. Aqui está Loveday.
- Oh!, Judith Que bom ligar de volta! Tentei alcançá-la, mas disseram que você estava trabalhando. Ouça, vou ser bem rápida. Eu e mamãe iremos a Londres este fim de semana e ficaremos no Mews. Por favor, apareça lá e fique conosco. Vai poder? Faça o possível.
Londres? O que vem fazer em Londres? Você detesta Londres!
Explicarei quando chegar. Vamos estar juntas. Aliás, quero muito ver você. — Loveday parecia um tanto frenética. — Tenho um mundo de coisas para contar. Acha que poderá ir? Poderá conseguir uma folga?
— Bem, posso tentar um meio fim de semana.
— Oh, faça isso! Diga que é terrivelmente importante. Um caso de vida ou morte. Eu e mamãe vamos amanhã, de trem. Nada de gasolina para o pobre e velho Bentley. Amanhã é quinta-feira. Quando poderá encontrar-nos?
— Não sei. Ainda preciso ver. No sábado, o mais tardar.
— Perfeito. Eu estarei lá, mesmo que mamãe não esteja. Estarei à sua espera, a menos que você...
— Talvez eu não possa ir.
— Oh, é claro que vai poder! Dê aquela velha desculpa. Morte de parente. Qualquer coisa. É muitíssimo importante.
—Vou tentar.
— Formidável. Estou ansiosa para vê-la. — Pip-pip-pip, fez o telefone.—Até lá!
Houve um clique. A ligação terminara. Um tanto perplexa, Judith colocou o fone no gancho. O que, afinal, estaria Loveday pretendendo?
- E por que vinha a Londres, um lugar que sempre jurara detestar?
Evidentemente, não havia resposta para tais perguntas. O único ponto perfeitamente claro era que, no dia seguinte pela manhã, sua primeira providência seria comparecer à toca da primeiro-oficial e, de algum modo, persuadir a atemorizante mulher a assinar um passe de fim de semana, já para o dia seguinte. Se ela recusasse, Judith seguiria atalhos, apelando diretamente para a cooperação do capitão-de-corveta Crombie.
A imagem dele, entrando em batalha ao seu lado, era bastante tranqüilizadora.
A primeiro-oficial do Serviço Feminino da Marinha Real foi pouco prestativa como Judith receara, isto a forçando a uma desagradável dose de exposição de motivos e pedidos, antes que a mulher, com relutância e nenhuma disposição, finalmente assinasse o passe para o fim de semana. A humilhação deu resultado. Judith agradeceu profusamente e depois escapou o mais depressa que pôde, antes que a irascível e velhota solteirona mudasse de idéia.
Na sala externa, a Wren de plantão ergueu os olhos de sua máquina de escrever, em uma pergunta silenciosa. Judith fez uma careta e respondeu erguendo um polegar.
— Que sorte a sua — murmurou a outra jovem. — Ela está com um gênio terrível esta manhã. Pensei que você já estava condenada antes mesmo de abrir a boca.
Deixando-a entregue à sua datilografia, Judith voltou de coração leve para o setor do Incremento de Instrução Militar e, sem que lhe fosse pedido, preparou uma xícara de café para o caro capitão-de-corveta Crombie, apenas por sentir-se muito feliz em trabalhar para ele e não para uma mulher ríspida, com mania de poder.
O sábado revelou-se uma bela manhã de abril, sem uma nuvem no céu. Emergindo da cavernosa penumbra da estação de Waterloo, Judith decidiu entregar-se ao luxo de um táxi, e seguiu com toda pompa para Cadogan Mews. Londres se mostrava surpreendentemente encantadora, ao cálido sol de primavera. As árvores ostentavam folhas verdes recentes, os pontos bombardeados surgiam cobertos de relva rasteira e um pato-selvagem nadava na superfície imóvel de um tanque com água para emergências. No parque, crocos purpúreos espalhavam tapetes no gramado e narcisos oscilavam seus botões amarelos à brisa suave. Bem no alto, os balões de barragem cintilavam prateados aos raios do sol, bandeiras desfraldavam-se nas fachadas de prédios importantes, e as fisionomias dos transeuntes, caminhando pelas calçadas movimentadas, mostravam-se expectantes e sorridentes, ante um dia tão agradável.
O táxi parou na rua, perto do arco de pedra que dava entrada ao Mews.
- Aqui está bom para você, minha cara?
, Está ótimo.
Carregando a mochila com seus pertences, Judith caminhou pela extensão lajeada do Mews, onde as pequeninas casas ficavam frente a frente, com cortinas e jardineiras nas janelas ostentando uma profusão de flores.
Um gato aquecia-se ao sol, enquanto alisava os pelos com a língua, e alguém improvisara um varal cheio de roupa lavada, dando tudo aquilo uma certa aparência de Porthkerris. Ela olhou para cima. As janelas da casa de Diana estavam escancaradas, uma cortina agitava-se ao vento e a tina de madeira na porta amarela da frente transbordava de aveludados poliantos.
— Loveday! — ela chamou.
— Olá! —A cabeça de Loveday apareceu na janela aberta. — Você veio! Você é formidável! Vou descer e abrir a porta.
— Não se preocupe. Eu trouxe minha chave.
Ela abriu a porta, e Loveday estava em pé no alto da escada.
— Tive medo de que você não pudesse vir. Precisou inventar mentiras horrendas para que a deixassem sair?
— Não. Apenas fazer mesuras e rebaixar-me um pouco. — Ela subiu os degraus. — E ouvir um monte de conversa fiada sobre desejar uma folga de um momento para outro, dar um trabalho extra à sua equipe, ser tão sem consideração, comprovantes de viagem, etc, etc, etc Tudo demasiado maçante. — Largando a mochila no chão, ela tirou o bibico e as duas abraçaram-se. — Onde está Diana?
— Fazendo compras, nem é preciso dizer. Vamos encontrar-nos às quinze para uma, no "Ritz". Tommy Mortimer oferece um almoço para todas nós.
- Nossa, que luxo! E eu nem tenho o que vestir.
- Você está espetacular assim mesmo, uniformizada.
- Não sei o que fazer. Bem, e daí? Com um pouco de sorte, não me expulsarão do restaurante, por eu não ser oficial.
Judith olhou em torno. Da última vez que estivera ali, o inverno estava em meio, escuro e frio. Agora, tudo tinha um aspecto diferente, A encantadora sala brilhava com a claridade do sol, estava refrescada pela brisa e cheia de flores. Flores de Nancherrow, trazidas da Cornoalha, e a marca registrada de Diana.
Ela se deixou cair em um dos enormes e amplos sofás com um suspiro de prazer.
— Isto é o paraíso. É como estar em casa novamente. Diante dela, Loveday enovelou-se em uma das grandes poltronas.
— Devo admitir, embora não sendo louca por Londres, que esta é uma casinha muito agradável.
— Onde dormiremos todas?
—Nós duas ficamos com a cama de casal e mamãe fará companhia à tábua de passar.
— Não é muito justo.
— Ela não se importa. Diz que prefere a privacidade ao luxo. De qualquer modo, aquela cama é bastante confortável.
— Quando foi que chegaram?
— Na quinta-feira. Viemos de trem. Não foi tão ruim assim. E em Paddington, Tommy foi apanhar-nos de carro, o que é sempre mais confortável. — Loveday deu uma risadinha contida. — Sabia que ele ganhou uma medalha, por ser terrivelmente corajoso durante a blitzi E é tão modesto, que só contou para nós.
— Uma medalha?. E o que fez ele para ganhar uma medalha?
— Salvou uma mulher idosa de sua casa pegando fogo. Irrompeu no meio da fumaça e do fogo, e a puxou para fora, pelas pernas, de baixo da mesa da sala de refeições.
Judith ficou boquiaberta de admiração e espanto. Não era fácil visualizar o elegante Tommy Mortimer, de terno e camisa de seda, entregando-se a tais atos de heroísmo.
— Que bom para ele! Espero que ela tenha ficado agradecida.
— Não ficou nem um pouco. Estava lívida, porque ele não salvou também o seu canário. Uma velha ingrata!
Loveday dava risadas. Judith achou-a mais bonita do que nunca, deliciosamente sofisticada em um vestido de lã fina azul-jacinto, com mangas curtas e gola de pique branco. As pernas esguias estavam envoltas em meias de seda, ela calçava sapatos fechados, de couro pretos, e saltos altos, tinha os lábios pintados de batom vivo, os cílios estavam escurecidos e os olhos cor de violeta brilhavam. Entretanto, havia algo diferente.
Você cortou o cabelo, Loveday.
- É, cortei. Mamãe disse que eu parecia um espantalho. Levou-me ontem ao Antoine's. Demorou horas.
Ficou muito bem.
Loveday sacudiu a cabeça.
- Está um pouco curto, mas vai crescer. Lá em casa nunca tive tempo para mandar cortá-lo. Todos mandam lembranças para você. Papai, Athena, Mary, todo mundo. Incluindo os Nettlebed. Clementina está um doce. Tem um horroroso carrinho de bonecas, que empurra para todo lado.
Têm notícias de Rupert?
Continua lutando no deserto ocidental, mas escreve longas cartas para Athena e parece bem satisfeito. — Ela parou então, e ficou calada. As duas encararam-se, e um pouco da hilaridade morreu no rosto de Loveday. — Pelo menos — acrescentou pouco depois — ela tem notícias. Recebe cartas. — Suspirou. — E de sua família, suponho, nada?
Judith meneou a cabeça.
— Nem uma palavra.
— Eu sinto muito.
— É como se tivesse sido baixada uma persiana. Entretanto, o navio em que mamãe e Jess viajavam nunca chegou à Austrália. É tudo o que sei.
— Se foram salvas, imagino que tenham sido aprisionadas.
— Também acho.
— E seu pai?
Ela tornou a menear a cabeça.
Nada. — Então, porque a pergunta tinha que ser feita: — Imagino que não tenha recebido notícias dele, porque do contrário já me teria dito.
Por um momento Loveday ficou imóvel, de olhos baixos, os dedos beliscando a trança que ornava a poltrona. Então, levantando-se de súbito, caminhou para a janela e ficou contemplando o Mews, as costas voltadas para Judith, com a luz do sol transformando em auréola seu anelado cabelo escuro. Judith esperou.
— Gus está morto — disse Loveday, após um momento.
Judith sentiu-se gelar com o choque e, por um momento incapaz de pensar no que dizer.
— Então, você soube. Recebeu notícias.
— Não. Mas eu sei.
— Como pode saber que ele está morto?
Enquanto espiava, abismada, viu Loveday encolher os ombros ossudos.
— Eu apenas sei. — Ela então se virou para Judith, recostando seu peso contra o peitoril pintado de branco da janela. — Eu saberia se ele estivesse vivo. Como soube, depois de Saint Valéry. Daquela vez foi como um telefonema, só que sem palavras. Eu lhe contei como aconteceu, e tinha razão. Gus estava salvo. Agora, no entanto, está morto. Depois da queda de Cingapura, todos os dias eu me sentava no portão perto da propriedade dos Lidgey, fechava os olhos e ficava pensando e pensando nele, tentando enviar uma mensagem para Gus e querendo que ele me enviasse outra de volta. Entretanto, nada aconteceu, era sempre a escuridão e o silêncio. Ele morreu.
Judith estava horrorizada.
— Oh, Loveday, isso é o mesmo que você própria matá-lo! Não deve perder as esperanças. Gus precisa que você continue tendo esperanças e fique pensando nele, o tempo todo.
— É isso o que você faz?
— Não fale dessa maneira horrível, condescendente. Claro que é o que eu faço. Tenho de fazer!
— Acredita que sua mãe, seu pai e Jess ainda estejam vivos?
— Eu disse que tenho de acreditar. Por eles. Não vê o quanto isto é importante?
— Não é mais importante, se eu já sei que Gus está morto.
— Pare de ficar repetindo isso! Não pode ter tanta certeza. Não é porque essa coisa de telepatia aconteceu uma vez, não significa que va acontecer novamente. Naquela época, Gus estava na França, bem mais perto. Agora, está no outro lado do mundo.
—A distância não faz diferença. — Loveday mostrava-se obstinada, teimosa como sempre, uma vez convencida de alguma coisa recusando-se a ser demovida de sua idéia. — A transmissão de pensamento cobre milhares de quilômetros em um milionésimo de segundo. Se ele estivesse vivo, eu saberia. No entanto, sei que foi morto.
- Oh Loveday, por favor, não seja tão radical!
O que posso fazer? Eu sou assim!
Parecia nada mais haver a ser dito. Judith suspirou.
Era o que tinha para me contar? — perguntou, afinal. — Por causa disso queria que eu viesse a Londres?
Eu queria contar-lhe isso. e mais outras coisas. —Judith esperou, com certa apreensão. Então, Loveday deixou sua bomba cair. Vou me casar.
Falou em tom casual, como se fornecesse alguma informação inconseqüente e, por um momento, Judith pensou não ter ouvido direito.
— O quê?
— Vou me casar.
— Casar? — Agora não havia nenhum engano. — Com quem?
— ComWalter.
— Walter. Walter Mudge?
— Você conhece algum outro Walter?
Toda a idéia era tão inconcebível, que Judith ficou estonteada, como se alguém lhe houvesse desferido um golpe no plexo solar e a deixasse sem respiração para poder falar.
— Mas. — gaguejou finalmente — mas o que deu em você, para querer casar com Walter?
Loveday deu de ombros.
— Eu gosto dele. Sempre gostei.
— Eu também, mas isso não é motivo para que passe o resto de minha vida com ele.
— Não me venha dizer que Walter é de classe inferior, que não serve para mim, porque acabarei gritando com você.
—Eu nem sonharia dizer tais coisas, e você sabe perfeitamente que Jamais diria.
Seja como for, vou casar com ele. Quero casar. Sem mesmo pensar, Judith disse:
- Oh, Loveday, mas você ama Gus. Loveday deu meia-volta e encarou-a.
Gus está morto! — gritou. — Eu já lhe disse! Portanto, nunca irei casar com ele. E não me diga para esperá-lo, porque de que adianta esperar um homem que nunca vai voltar para mim?
Prudentemente, Judith absteve-se de responder. Decidiu que precisava ser muito prática e muito calma, porque do contrário iam acabar envolvidas em absurda discussão, dizendo coisas terríveis que nunca poderiam ser apagadas, além de criarem uma situação que em nada ajudaria. Assim, mudou de tática.
— Ouça, você só tem dezenove anos. Mesmo tendo razão sobre a morte de Gus, há milhares de outros homens no mundo, também adequados para você, esperando apenas para entrar em sua vida. Compreendo sobre você e Walter. Os dois sempre foram amigos. Trabalharam juntos, e você o vê o tempo todo. Entretanto, isto não significa que tenha de casar com ele.
— Sei que trabalho com ele. Entretanto, é possível que não possa continuar trabalhando. Estão convocando garotas da minha idade e oficialmente, não sou uma jovem que trabalha a terra. Não sou coisa nenhuma. Não visto uniforme, como você.
— Certo, mas está fazendo um trabalho de guerra essencial.
— Não quero arriscar-me a ser convocada. E depois ser enviada para fabricar munições em algum lugar horrível. Jamais vou deixar Nancherrow.
— Está querendo dizer que vai casar com Walter porque tem medo de ser convocada? —Judith não conseguia ocultar a incredulidade de sua voz.
— É como lhe disse. Você sabe o que sinto, quanto a ser mandada para longe. Eu ficaria doente. Morreria. Você, mais do que ninguém, devia compreender o que digo.
Era como argumentar com uma parede de tijolos.
— Certo, mas, Walter. Loveday, o que você tem em comum com Walter Mudge?
Loveday ergueu os olhos cor de violeta para o céu.
— Oh, Deus, voltamos ao mesmo assunto! Você pode não falar, mas sei o que está pensando. Classe inferior, falta de instrução, trabalhador braçal. Um casamento abaixo da minha condição social. Um rebaixamento de meus padrões.
— Nada disso me passou pela cabeça.
—Já ouvi tudo isso, principalmente de Mary Millyway, que mal me dirige a palavra. Entretanto,
Entretanto, nunca senti nenhuma falta dessas coisas em relação a Walter, muito menos em relação à mãe dele.
Como você também não sente, em se tratando de Joe Warren ou mesmo de Phyllis Eddy. Walter é meu amigo, Judith. Sinto-me bem na companhia dele, gosto de trabalhar com ele, nós dois adoramos cavalos, adoramos montar e trabalhar nos campos. Não percebe que somos o mesmo tipo de pessoa? Por outro lado, ele é atraente. Másculo e atraente. Sempre achei aqueles amigos de Edward, sem queixo e bem-nascidos, simplesmente repugnantes e de maneira alguma atraentes. Por que eu deveria ficar à espera de algum estudante de boa escola, mas sem miolos na cabeça, que viesse me deixar perdidamente apaixonada?
Judith balançou a cabeça.
— Não posso compreender como uma garota chegou a acumular tantos preconceitos fúteis, em tão pouco tempo.
—Eu pensei que você compreenderia. Que seria solidária. Que me apoiasse.
— Você sabe que eu a apoiaria até os confins da Terra. Acontece apenas que não posso ficar sentada e olhando, enquanto você transforma sua vida em semelhante confusão. Afinal de contas, não tem que casar com ele!
— Pois tenho. Eu vou ter um bebê!
Loveday falou gritando, como se Judith houvesse de repente ensur-decido. Depois disso, claro está, não houve mais nenhuma dúvida.
— Oh, Loveday.
—Não fique tão espantada. Isto acontece todos os dias. Mulheres engravidam. Têm bebês. Não é nenhuma coisa do outro mundo.
— Para quando é?
—Novembro.
— O pai é Walter?
—Naturalmente.
— Sei, mas. mas. quando. quero dizer.
Não há necessidade de tanto rodeio e tanta delicadeza. Se quer saber quando o bebê foi concebido, será um prazer contar-lhe. Foi em fins de fevereiro, no jirau do feno, acima dos currais. Sei que é um pouco banal. Muito Lady Chatterley, muito Mary Webb ou até de folhetim vulgar. Algo indecente, no galpão de guardar lenha. Enfim, foi como aconteceu, e não me sinto nem um pouco envergonhada.
— Você pensou que Gus estivesse morto?
— Eu sabia que estava. Sentia-me infinitamente solitária e infeliz, sem que ninguém pudesse fazer algo para ajudar-me. Eu e Walter estávamos cuidando dos cavalos quando, de repente, comecei a chorar e lhe contei sobre Gus. Ele me tomou nos braços, beijou meus olhos para enxugar as lágrimas, e eu nunca poderia imaginar que fosse ser tão gentil, tão meigo e tão doce. e no jirau havia feno recém-cortado, macio e cheiroso. Os cavalos estavam mais abaixo, eu podia ouvi-los movendo-se por ali, e foi a coisa mais confortadora que já me tinh acontecido. Não parecia errado, em absoluto. — Ela se calou por um instante, e depois disse: — E continua não parecendo. Não pretendo sentir-me culpada.
— Sua mãe sabe?
— Naturalmente. Contei para ela, assim que tive certeza. Papai também sabe.
— E o que eles disseram?
— Ficaram um pouco espantados, mas foram bondosos. Disseram que, se não quiser, não tenho de casar com ele. Mais um bebê em Nancherrow não faria a menor diferença, e seria uma excelente companhia para Clementina. Então, quando falei que queria casar com Walter, e não apenas por causa do bebê, eles ficaram um pouco vacilantes, mas disseram que a decisão era minha, era a minha vida, enfim. Por outro lado, eles sempre apreciaram a família Mudge e agora, sem Edward, pelo menos sabem que não vou deixá-los, que sempre estarei por perto. Creio que isto é mais importante para eles do que quaisquer coisas tolas como o passado e a criação de Walter.
Para quem conhecesse os Carey-Lewis, tudo isto era perfeitamente compreensível. Em seu estilo fascinante e de classe superior, eles sempre tinham vivido segundo suas próprias leis. A felicidade dos filhos estava acima de qualquer outra coisa, e sua lealdade para com esses filhos sempre seria da máxima importância, ignorando tradições sociais ou problemas sobre o que diriam os outros. Ombro a ombro, Diana e o coronel estavam claramente tirando o melhor proveito da situação: continuariam agindo exatamente como antes e, chegado momento, ficariam encantados com o novo neto. E Judith sabia que, em vista de tal solidariedade, as opiniões e atitudes do resto do mundo — incluindo ela própria — simplesmente não interessavam.
Significava, então, a inutilidade do prolongamento de uma discussão. Diana e o coronel já tinham dado sua bênção, e o mais sensato que podia fazer era juntar-se a eles e, graciosamente, aceitar o inevitável, fossem quais fossem as conseqüências. De qualquer modo, era um imenso alívio, porque ela agora podia parar de mostrar-se indignada e furiosa, para começar a ficar satisfeita e interessada.
— Eles têm que ser o máximo. Como pais, quero dizer. Aliás, eu sempre soube que eram. — De repente ela estava sorrindo, a despeito do ardor de lágrimas ridículas por trás dos olhos. Levantou-se do sofá.
— Oh, Loveday, eu sinto muito, não tinha o direito de intrometer-me. — Loveday caminhou para ela, as duas encontraram-se no meio da sala e estavam ambas rindo e trocando beijos. — Apenas fiquei um pouco confusa. Surpresa. Esqueça tudo o que eu disse. Você e Walter serão felizes.
— Eu mesma queria contar para você. Explicar. Não desejava que soubesse por mais alguém.
— Quando será o casamento?
— No mês que vem. Em qualquer dia.
— Rosemullion?
— É claro. E depois um almoço festivo, em Nancherrow.
— O que vai usar? Um vestido rodado de cetim branco e rendas de família?
— Deus me livre! Provavelmente o vestido de crisma de Athena ou coisa parecida. Com franqueza, eu não gostaria de ser casada em branco virginal, mas temos que manter as aparências.
— E quanto à recepção? — perguntou Judith, de repente começando a achar tudo aquilo muitíssimo excitante.
— Pensamos em uma cerimônia pela manhã, e depois o almoço... Odeio casamentos à tarde. Estragam o dia. Você irá, não é mesmo?
— Eu não perderia seu casamento por nada. Vou solicitar imediatamente uma semana de licença. Quer que eu seja dama de honra?
— Você gostaria?
— Um vestido de tafetá abricó, com anáguas rendadas?
— Túnica pregueada e uma touquinha tipo Julieta?
— Buquê de cravos e avencas?
Estava tudo bem. E elas unidas novamente. Uma não havia perdido a outra.
— E enormes sapatos de cerimônia da corte, em cetim, com saltos parecidos com privadas.
— Não quero ser dama de honra.
— Ora essa, por que não?
— Porque poderia ofuscar a noiva.
— Oh, ha-ha-ha!
— Onde vão morar, você e Walter?
— Há um velho chalé em Lidget, um pouquinho arruinado, mas papai vai dar um jeito nele para nós e acrescentar um banheiro adequado. Tem apenas dois cômodos, mas servirá por enquanto, e Walter vai limpar o terreno em volta, dando fim a todas as urtigas e velhas cabeceiras de cama que há por lá.
— Um verdadeiro ninhozinho de amor. E sobre a lua-de-mel?
— Em realidade, ainda não pensamos a respeito.
— Vocês devem ter uma lua-de-mel!
— Athena não teve.
— Que tal todo um fim de semana na rua Gwithian?
— Ou duas noites na rua Camborne? Seria ótimo. Ouça. — Loveday olhou para seu relógio. — É meio-dia. Temos que sair para o "Ritz" em um momento. Vamos tomar um drinque. Trouxemos de Nancherrow um pouco de gim e uma garrafa de laranjada. Estão na geladeira.
— Acha que deveríamos? Conhecendo Tommy Mortimer, nosso almoço promete ser razoavelmente regado.
— Será um drinque apenas para nós duas. De qualquer modo, eu preciso de um. Estive apavorada enquanto contava tudo a você, imaginando que ficasse indignada e dissesse que nunca mais falaria comigo.
— É assim que Mary Millyway está?
— Oh. — Loveday não se preocupou com Mary. — Ela acabará voltando às boas. Terá de voltar. Afinal de contas, é a única que poderá fazer o vestido de crisma de Athena parecer remotamente nupcial. Agora, vá enfeitar-se para o "Ritz", enquanto preparo nossos coquetéis.
Loveday caminhou para a escada e então, antes de começar a descer, fez uma pausa e girou, sorrindo como a garota sapeca que Judith recordava dos dias de colégio.
— O que me diz de Santa Úrsula agora?
Deirdre Leadingham ficaria seriamente chocada. Provavelmente tiraria pontos no comportamento. Graças a Deus estamos adultas. Nunca pensei que isso fosse divertido, mas é divertido, concorda?
Divertido. A jovialidade de Loveday era contagiosa, e Judith sentiu súbita animação. As sombrias marés da guerra recuaram, com as suas ansiedades e angústias, e logo ela se viu invadida pela vivacidade irracional da infância, algo que há muito tempo não experimentava. Afinal de contas, ambas eram jovens e bonitas, o sol estava brilhando, o ar tomado pelo perfume das flores da primavera. Loveday iria casar, e Tommy Mortimer oferecia-lhes um almoço de primeira ordem no "Ritz". E, mais importante do que tudo, elas continuavam amigas.
Sorriu. Depois disse:
— Sim. Sim, é divertido.
O convite de Tommy Mortimer era tudo quanto alguém poderia desejar. Uma mesa junto a uma janela do belo restaurante, com vista para o parque, e seu anfitrião exibindo o máximo de fascínio. Ele e Diana já haviam chegado e estavam sentados no saguão, esperando, até as duas jovens serem catapultadas para o interior do magnífico hotel, através de suas portas giratórias. Seguiram-se então vários momentos de ruidosos cumprimentos, todos parecendo extremamente satisfeitos em se verem. Fazendo jus à sua fama e galanteria, Tommy Mortimer mostrava-se como sempre, e Diana, trajada para Londres, era um prazer para olhos doloridos, em um liso e macio conjuntinho Preto, com um atrevido e maroto chapéu preto inclinado para um olho.
Não fizeram pausa para um aperitivo, indo diretamente para o restaurante, onde uma garrafa de champanha aguardava no gelo de um balde de Prata, no centro de sua invejável mesa. Foi uma refeição esplêndida. O sol penetrava pela janela, a comida estava deliciosa, e o vinho fluiu. Diana estava em maravilhosa forma.
Esta era sua primeira visita a Londres desde o começo da guerra, mas parecia nunca ter-se ausentado dali. Outros convivas, velhos amigos vistos durante anos, quando a viam faziam uma pausa para uma ligeira conversa, a caminho de suas mesas. Outros, descobrindo-a através do salão, acenavam e jogavam beijos, do lugar que ocupavam.
E ela falava excitadamente sobre o próximo casamento de Loveday como se fosse a coisa mais maravilhosa que já acontecera, e exatamente o que teria planejado para sua filha mais nova.
— Foi isso que nos trouxe à cidade. Viemos encomendar convites e tentar comprar uma espécie de enxoval. Ontem passamos o dia inteiro examinando artigos, não foi, queridinha?
— E quanto a cupons para roupas? — perguntou Judith, sempre prática.
— Oh, não há problema, meu bem. Fiz um pequeno negócio com Hetty. Dei-lhe uma boa pilha de roupas que Athena não usa mais e, em troca, ela me deu cupons cobrindo seis meses. Hetty achou que levou a melhor na troca. Aliás, levou, de fato.
— Pobre Hetty —Judith teve que dizer.
— De modo nenhum! Ela ficou deliciada. Nunca teve um guarda-roupa igual. Além disso, será convidada para o casamento. Naturalmente, convidaremos também Phyllis, Biddy e Bob.
Bob. Judith franziu o cenho. Ausente de Nancherrow e da Dower House, ela se sentia um tanto desnorteada, e a menção do nome de Bob (Bob nunca havia sido parte da Cornualha) a pegou desprevenida.
— Está falando de tio Bob? Bob Somerville?
— Ora, naturalmente! Ele teve uma licença na primavera, apenas alguns dias, e Biddy o levou para jantar em Nancherrow. Ele e Edgar entenderam-se às mil maravilhas. Que homem agradável!
— Biddy deve ter-me escrito e contado, mas esqueci. Eu me pergunto se ele conseguiria vir.
— Espero que consiga. Estaremos com uma certa escassez de homens atraentes. Teremos apenas bancos de igreja cheios de velhos amigos e conhecidos, de bengala na mão.
— Fale-me sobre o casamento. Conte-me todos os seus planos.
— Bem. — Diana estava em seu elemento. — Pensamos em uma espécie de fête champêtre no pátio. ficaria muito mais original do que um almoço abafado, dentro de casa. Sabe como é, medas de cen barricas de cerveja e mesas montadas em cavaletes.
— E se chover?
- Oh, não choverá. Pelo menos, não creio que chova. Por minha causa. A chuva não ousaria cair.
Tommy riu, achando graça em sua complacência.
- Quantos convidados comparecerão a essa festança? — perguntou.
Estivemos fazendo a conta no trem, não foi, Loveday querida?
- A igreja de Rosemullion só comporta oitenta pessoas, bem comprimidas, portanto, não mais do que isso. Para a igreja, imaginamos cântaros de flores silvestres e molhos de cerefólios. E feixes de espigas de trigo com laços de fita branca na extremidade de cada banco. Algo realmente campestre. Tommy, por que essa cara?
Estou me lembrando de Bem Longe da Multidão Inconsciente.
—O que planejamos nada tem de melancólico. É muito mais alegre do que isso.
— Que hinos iremos cantar? "Nós Aramos os Campos e os Semeamos"? Ou "Louras Ondas de Dourado Trigal"?
— Não acho a menor graça, Tommy. Não seja exagerado!
— Devo usar meu fraque ou esperam que vista tweeds com um anzol espetado no chapéu?
—Use o que você quiser. Veludo cotelê com barbante entrançado, se isso o deixa feliz.
— O que quer que a deixe feliz, também me faz feliz — disse Tommy.
Ela lhe jogou um beijo formado com a boca, e disse que talvez fosse hora de pedir o café.
O ânimo ebuliente e alegre de Diana durou o resto do dia, e ela conseguiu transmitir às duas jovens sua energia e efervescência. Terminado o almoço, o pequeno grupo dispersou-se —Tommy para retornar a Regent Street, Diana e Loveday de volta à casa Harrods, e Judith saindo sozinha em busca de um presente apropriado de casamento para Loveday e Walter. Tomou um ônibus para Sloane Square e Peter Jones, Por onde perambulou, deliberando a respeito de coisas como panelas, colheres de pau, capachos e abajures com cúpulas. Entretanto, nada disso a deixou particularmente interessada, de maneira que se embrenhou na rede de ruelas ao norte da King's Road. Após algum tempo, no meio de pequenos pubs, ela deu com uma minúscula loja de quinquilharias, exibindo na calçada móveis antigos de duvidosa aparência. Além de sua vitrine poeirenta, havia caixas forradas de veludo contendo talheres de mesa, xícaras e pires desaparelhados, soldados de chumbo, peças de xadrez em marfim, urinóis antigos, estatuetas de bronze e fardos de desbotadas cortinas de pelúcia. Esperançosa, aventurou-se a entrar e, quando empurrou a porta, uma sineta tilintou. À suas narinas chegou o cheiro de mofo e poeira; ali dentro estava escuro e empoeirado, em uma confusão de móveis mal entrevistos na penumbra, caixas metálicas para carvão e gongos de latão, mas du aposento dos fundos emergiu uma senhora idosa, usando avental e um enorme chapéu. Após ligar uma ou duas lâmpadas mortiças, ela perguntou à visitante se queria alguma coisa. Judith explicou que procurava um presente de casamento.
— Esteja à vontade — disse a velha senhora. Sentando-se majestaticamente em uma desconjuntada cadeira de braços, ela acendeu a ponta de um cigarro. Judith passou uns felizes quinze minutos abrindo caminho pela lojinha enquanto inspecionava vários objetos improváveis, mas finalmente encontrou o que estivera procurando. Uma dúzia de pratos de jantar da marca "Mason", e resistente louça branca, sem lascados e em perfeitas condições, com seus fortes azuis intensos como o mar, os cálidos vermelhos no matiz original, inalterados. Eram úteis e decorativos ao mesmo tempo e, se Loveday não quisesse comer neles, sempre poderia expô-los em alguma prateleira.
— Vou levar estes, por favor.
— Perfeitamente.
A velha senhora deixou cair a ponta do cigarro no chão, pisoteou-a com o salto de seu chinelo de quarto e içou-se da cadeira de braços. Levou algum tempo embalando os pratos, enrolando cada um em folhas de jornal e depois colocando-os dentro de uma velha caixa de mercearia que, em conseqüência, ficou pesando uma tonelada. Juditn pagou, ergueu nos braços o pesado volume e retornou à King's Road, onde, após alguma espera, conseguiu encontrar um táxi que a conduziu ao Mews.
A essa altura já eram quase quatro e meia, porém Diana e Loveday só chegaram uma hora mais tarde, carregadas de embrulhos e sacolas? ambas queixando-se vociferantemente dos pés doloridos, mas ainda miraculosamente em condições de conversar. Haviam passado momentos deliciosos, a expedição tinha sido um sucesso absoluto, mas agora estavam morrendo por uma xícara de chá. Assim, Judith colocou a chaleira no fogo, preparou uma bandeja e fez torradas quentes amanteigadas. Uma feliz meia hora foi passada na exibição e apreciação de todas as adoráveis roupas novas que haviam sido adquiridas. Quando finalmente Loveday terminou, com a sala entulhada de roupas e papel de seda, Judith apanhou a caixa de mercearia atrás do sofá, onde a tinha escondido, e a depositou aos pés da amiga.
— Aí tem o seu presente de casamento — disse.
O primeiro prato foi desembrulhado entre exclamações de agradecida delícia e admiração de mãe e filha.
— Oh, mas eles são um encanto!
— Não precisa desembrulhar o resto. São todos iguais e há uma dúzia deles.
— Maravilhoso. Você não poderia me dar nada mais bonito. Estivemos olhando os pratos, porém eles eram todos para uso diário e vulgarmente brancos. Estes aqui são lindos. Lindos! Onde foi que os achou?
Judith contou. Depois acrescentou:
— Infelizmente, terão de levá-los no trem, com vocês. São terrivelmente pesados. Será que não haverá problemas?
— De modo algum. Encontraremos um carregador ou um trólei, qualquer coisa para transportá-los até o trem, e papai irá apanhar-nos em Penzance.
— Eles são quase bonitos demais para usar — comentou Diana.
—Vou expô-los — decidiu Loveday. —Acharei alguém que me dê um aparador e poderei exibi-los. Eles encherão minha casinha de alegria. Obrigada, Judith querida. Muito, muito obrigada!
Assim, tudo transcorreu da maneira mais satisfatória possível. Elas acomodaram-se, tomaram o chá e comeram torradas. Diana consultou seu pequeno relógio de pulso e anunciou ser hora de todas começarem a aprontar-se para o divertimento noturno, porque Tommy conseguira entradas para a revista Strike It Again e ia levá-las ao teatro.
Devido a todas essas agradáveis atividades, foi somente na manhã seguinte que Judith se viu a sós com Diana. Loveday ainda não acordara, de modo que as duas fizeram o breakfast juntas, na mesa da cozinha... um breakfast adequado — ovos cozidos de Nancherrow e copiosas xícaras de café recém-coado. Foi só então que puderam discutir tópicos mais graves e sérios do que o casamento de Loveday, ou seja, o destino da família Dunbar, surpreendida no Extremo Oriente pela guerra japonesa.
Diana quis saber cada detalhe de tudo quanto ocorrera e quando tinha ocorrido. Mostrou-se tão solidária e compreensiva, que não foi muito difícil para Judith falar sobre o triste desenrolar dos acontecimentos, culminando na última notícia que havia transpirado, isto é, que o navio The Rajab ofSarawak jamais chegara à Austrália.
— Você acha que o navio delas foi torpedeado?
— É possível, embora não haja nenhuma confirmação oficial
— Que coisa terrível! Coitada de sua mãe! Obrigada por contar-me. Às vezes, falar faz bem. Evitei propositadamente dizer qualquer coisa ontem, quando estávamos todos juntos, por achar que o momento não era oportuno. E eu queria que o dia de ontem fosse de Loveday. Espero que não me tenha achado demasiadamente despreocupada e sem interesse. O que quer que aconteça, sabe que nós sempre estamos lá. Edgar e eu. Pensamos em você como uma outra filha. Se um dia precisar de um ombro para chorar, é só pegar o telefone.
— Eu sei disso. Você é maravilhosa, Diana.
Diana suspirou, largou a xícara de café e pegou um cigarro.
— Penso que só nos resta ficar esperando o melhor.
Sentada ali, em seu robe de cetim pêssego, com o rosto adorável sem sombra de maquiagem, de repente ela pareceu imensuravelmente triste. Judith esperou ouvi-la dizer alguma coisa sobre Gus, porque o nome dele, ainda não pronunciado, pairava no ar entre elas. Entretanto, Diana permaneceu calada, e Judith percebeu que, se fossem falar a respeito, então ela deveria ser a primeira a tocar no nome dele. Foi preciso certa dose de coragem, porque sempre havia a possibilidade de que Diana lhe abrisse o coração, confidenciasse as próprias dúvida sobre as intenções de Loveday e, sendo tão íntimas como eram, Judth receava tais confidências, que a deixariam presa no terrível laço das lealdades divididas.
—Sempre achei que a esperança era como uma faca de dois gumes. Loveday cessou de ter esperanças, não foi? Está certa de que Gus está morto.
Diana assentiu. e
— Eu sei. Absolutamente convencida. Trágico demais. O que se pode dizer? Imagino que, se Loveday sente isso com tanta força, então ele deve mesmo estar morto. Os dois tinham muitas afinidades, compreenda. A identificação entre eles foi instantânea. Era bonito vê-los. Extraordinário. Ele apareceu em Nancherrow, de repente, e foi como se sempre estivesse presente. Um homem tão tranqüilo, tão simpático, tão talentoso e artista... Além de apaixonado. Eles nunca tentaram esconder que se amavam.
Diana calou-se. Judith esperou que ela continuasse, mas parecia que nada mais tinha a dizer. Gus se fora, como água fluindo sob uma ponte, e agora Loveday esperava um filho de Walter, ia casar com ele. Tarde demais para reflexões, não havia mais tempo para dúvidas. Diana e Edgar não voltariam atrás na decisão tomada e ninguém, nem mesmo Judith, ficaria sabendo como eles de fato se sentiam.
Após um instante, Judith falou:
—Talvez Loveday esteja certa. A esperança não é um terreno sólido o bastante para construir-se uma vida sobre ela. Entretanto, a alternativa é tão improvável... e se for tudo que se tem... — Então, sem pensar, acrescentou: —Jeremy disse que era importante manter-se a esperança... — e imediatamente mordeu a língua, porque Diana logo ficou alerta.
—Jeremy? Quando foi que esteve com ele?
—Oh, um dia qualquer. —Desconcertada, furiosa consigo mesma, Judith esforçou-se ao máximo para manter o controle. — Creio que em janeiro. Não me lembro direito. Foi pouco antes da queda de Cingapura. Ele estava de passagem por Londres.
— Há séculos não o vemos. Ele estava bem?
— Pelo menos, parecia estar. Esperava uma promoção. Creio que para cirurgião-chefe ou coisa assim.
— Agora que você falou nisso, creio que o pai dele contou para Edgar. Um rapaz muito inteligente. Preciso mandar-lhe um convite para o casamento. Onde está ele?
—Não faço a menor idéia.
— Ele não deixou um endereço?
— HMS Sutherland, Posta-restante.
—Demasiado vago. Não quer dizer nada. Oh, esta maldita guerra! Todos espalhados por aí. Dispersos. Como estilhaços de granada.
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— Eu sei — disse Judith, compreensiva — mas não há nada que a gente possa fazer a respeito.
De repente, Diana sorriu.
— Judith querida, como você é sensata! Está com toda a razão. Agora, ponha-me mais uma xícara de café e vamos decidir como passaremos esta linda manhã. Tommy quer levar-nos para almoçar mas, se conseguirmos arrancar Loveday da cama, haverá tempo para um passeio no parque. Não percamos nem mais um minuto.
Bem, de volta à rotina outra vez. Naquele anoitecer, entretanto voltando de trem para Portsmouth, Judith ficou olhando pela janela e refletindo nos espantosos acontecimentos daqueles dois últimos dias. Loveday e Walter. Casados. Um casal. Sozinha, sem o estímulo dos lautos almoços e da agradável companhia, ela sentia diluir-se a euforia do fim de semana, substituída por suas reservas íntimas, que agora lhe enchiam a mente. Loveday era e sempre tinha sido uma amiga muito especial, porém Judith conhecia bem demais seu temperamento caprichoso e sua obstinada determinação. O maior receio de Loveday sempre havia sido o de que a guerra, de algum modo, fosse capaz de arrancá-la de Nancherrow. A ameaça de uma convocação oficial era suficiente para deixá-la em pânico. Com Gus morto e perdido para sempre (conforme ela acreditava), nada a impedia de voltar-se para Walter. Casada com Walter estaria segura em Nancherrow para sempre. Não era difícil entender o funcionamento da mente de Loveday, mas Judith esperava que fosse verdade o que ela lhe contara: que Walter é que a seduzira no jirau do feno, e não a própria Loveday, após avaliar as vantagens que tal ato lhe traria.
Mais tarde, faltando um dia para completar duas semanas, Judith recebeu o convite oficial para o casamento de Loveday. Descobriu ao voltar de Whale Island para os alojamentos, pomposamente grampeado e depositado na caixa apropriada, em meio a toda a correspondência restante. Segundo parecia, Diana não tinha perdido tempo. Um grosso envelope em papel de linho e uma folha dupla daquele luxuoso papel com linha d’água, de cuja existência Judith chegara a esquecer. Imaginou Diana vasculhando seus apetrechos de correspondência para desencavar algum precioso estoque de antes da guerra, e depois persuadindo o impressor a executar sua encomenda com urgência. O resultado era uma maravilha de luxuosa impressão em relevo, quase régia, em seu esplendor. Semelhante convite deixava claramente avista que nada havia de censurável a respeito deste acontecimento.
O CORONEL E A SRA. EDGAR CAREY-LEWIS
TÊM O PRAZER DE CONVIDÁ-LA PARA O CASAMENTO DE SUA FILHA
LOVEDAY
COM O
NA IGREJA PAROQUIAL DE ROSEMULLION
NO SÁBADO, 30 DE MAIO DE 1942
E, APÓS A CERIMÔNIA, PARA
NANCHERROW
NANCHERROW ROSEMULLION CORNUALHA
Dentro do convite fora enfiada uma comprida carta de Loveday. Judith levou o envelope para seu quarto, prendeu-o na moldura do espelho sobre a cômoda e sentou-se em seu beliche, a fim de ler a carta.
14 de maio, Nancherrow
Querida Judith. Foi tão delicado de sua parte ir a Londres e ser tão gentil, e nós adoramos estar com você. Continuo trabalhando com Walter, pois mamãe, Mary e a sra. Nettlebed são muito mais eficientes do que eu e, além de ter de ficar imóvel, enquanto Mary espeta alfinetes em mim (francamente, o vestido de crisma ficou bastante bom), parece não haver muito mais que eu possa fazer, senão atrapalhar. Walter e eu, quando não estamos na fazenda, tentamos limpar o jardim do chalé. Com o trator, ele retirou uma enorme quantidade de velhas cabeceiras de cama, carrinhos de bebê inaproveitáveis, baldes sem fundo e uma variedade de objetos indesejáveis, depois removeu a terra com o arado e fez uma plantação de batatas. Ele diz que isso é para limpar o solo. Felizmente, quando as batatas forem colhidas, ele plantará relva ou coisa assim, de modo que teremos um GRAMADO. Os operários estão praticamente destruindo o chalé. (Acho que papai moveu algum cordão no Conselho do Condado ou seja o que for — algo inteiramente contra os seus princípios, mas as restrições sobre construções são muito severas e, se ele não puxar algum cordão, nunca chegaremos a lugar nenhum.) Seja como for, está tudo estripado, para depois ser levantado novamente e, além dos dois aposentos, haverá um banheiro em um lado e uma espécie de "quarto de sujeira" nos fundos, com piso de pedra, onde Walter poderá tirar as botas e pendurar seu macacão em um cabide. Teremos um fogão novo e assoalhos também novos. Acho que a casa vai ficar muitíssimo aconchegante.
Mamãe e papai passam noites agonizantes tentando compor uma lista de convidados, porque estamos muito limitados em números. Papai está sendo incrivelmente justo: quarenta amigos nossos e quarenta dos Mudge. De qualquer modo, estão sendo convidadas todas as pessoas certas, incluindo o governador do condado, Biddy e Phyllis, o caro sr. Baines, o doutor Wells e esposa, além de vários outros amigos íntimos. Do lado dos Mudge é um pouco mais difícil, uma vez que eles têm muitos parentes e, que me conste, todos casados com primos etc. Entretanto, você ficará satisfeita em saber que os Warren (parentes distantes pelo casamento) foram convidados. Escrevi para Heather e também a convidei, mas ela disse que não pode ausentar-se; fico contente por não trabalhar em seu horrível Departamento Secreto — a coitada parece não ter nenhuma espécie de vida, afinal. Você gostará também de saber que a sra. Mudge comprou dentaduras novas para a ocasião, assim como um vestido de crepe azul e um chapéu "para combinar". O vestido e o chapéu combinam bem, mas não com as dentaduras novas. Aliás, ela pretende também fazer um permanente nos cabelos.
Mamãe está absolutamente otimista sobre o tempo e planejando seu almoço ao ar livre, no pátio. Papai não parece tão otimista e insiste em fazer o que chama de "planos de contingência", isto significando transferir todo mundo para a sala de refeições, caso os céus se abram. A sra. Nettlebed queria fazer tudo, mas, com o racionamento, é impossível, de modo que foi contratado um fornecedor de Truro. Mamãe lhe disse que não é para fazer daqueles bolos cheios de creme e mil coisas mais. E o governador do condado prometeu dois salmões, de modo que, com um pouco de sorte, o almoço não será tão ruim.
Não teremos champanha, porque não conseguimos nenhuma, e papai disse que está reservando sua última caixa para o dia em que Rupert voltar para casa e a guerra terminar. De qualquer modo, haverá uma espécie de agradável vinho borbulhante (África do Sul?) e um tonei de cerveja.
O sr. Mudge contou sigilosamente para papai que tem enterrado em sua horta um barril de pura aguardente, e o ofereceu como outra forma de bebida alcoólica. Aparentemente, ele o recolheu junto aos penhascos, depois de um naufrágio há dois anos, e o escondeu dos agentes alfandegários e dos coletores de impostos. Muito excitante. Puro Daphne du Maurier, Quem pensaria isto dele? De qualquer modo, papai considerou que podia ser um pouco perigoso dar aguardente pura aos nossos convidados, e disse ao sr. Mudge que era melhor o barril continuar onde estava.
Afinal, foi incrivelmente generoso.
O sr. Nettlebed é um homem curioso. A gente imaginaria que ele se sentiria em seu elemento com todos estes arranjos sociais sendo feitos, mas na verdade, sua maior preocupação tão logo anunciamos nosso noivado, foi com o que Walter irá vestir. Dá para acreditar? O fato é que Walter simplesmente ia usar seu único terno, o mesmo que às vezes usa nos funerais embora eu deva dizer que fica com uma aparência algo estranha porque o terno pertenceu a um tio de pernas mais compridas que as dele, e a sra. Mudge nunca se deu ao trabalho de levantar a bainha das calças. Afinal, Nettlebed o encurralou no pub de Rosemullion, pagou duas cervejas e o convenceu a deixá-lo cuidar do assunto. Assim, sábado passado eles foram a Penzance e Nettlebed o levou ao Medways, onde o fez escolher um terno de flanela cinza, e incumbiu o alfaiate de ajeitá-lo, para que fique um terno realmente elegante. Os dois compraram também uma camisa creme nova e uma gravata de seda. Walter tinha os cupons, mas Nettlebed pagou por todas as roupas novas, e disse que era um presente de casamento. Que gentileza! Agora, encerrado este aspecto, Nettlebed parece muito mais satisfeito e podendo concentrar-se na contagem das colheres e garfos e no polimento dos copos de vinho.
Escrevi tanto, e ainda não lhe agradeci devidamente pelos pratos. Conseguimos trazê-los para casa sãos e salvos, e acho que a sra. Mudge irá dar-nos um aparador que foi de sua mãe, a fim de que eu possa arrumar os pratos nele, ficando assim ainda mais bonitos. Foi uma grande gentileza sua, e Walter também os achou lindos. Ganhamos também outros presentes de casamento. Um par de lençóis (ainda com a fita azul em torno deles e, portanto, sem uso, mas terrivelmente encardidos, por terem levado anos guardados no armário de roupas de cama de alguém), uma almofada coberta de quadrados tricotados, um capacho para limpar botas e um adorável bulezinho de cha georgiano de prata.
Espero que, a esta altura, você tenha mesmo conseguido a licença prometida, porque precisamos de sua ajuda e da de Biddy na ornamentação de flores na igreja. Terão de ser arranjadas na noite de sexta-feira, porque são todas flores silvestres e murcham muito depressa. Biddy já disse que vem. Quando é que você chega?
Clementina vai ser dama de honra. Ainda é muito pequenina, mas Athena insiste. De fato, ela encontrou um velho vestido meu, de musselina branca com peitilho rosa, e mal pode esperar para ver a filha dentro dele. Eu gostaria que você estivesse aqui agora, para ser parte do divertimento. Montes de beijos,
Loveday
pmS. —Jeremy Wells enviou um cabograma de felicitações pelo casamento, mas não poderá vir.
Na manhã seguinte, depois que o capitão-de-corveta Crombie vistoriou as ordens do dia e assinou uma ou duas cartas, Judith fez a sua solicitação.
— O senhor acha que estaria bem, se eu pedisse uma licença? Ele ergueu a cabeça abruptamente, os vivos olhos azuis arregalados.
— Licença? Você está realmente querendo uma licença?
Ela não poderia afirmar, com certeza, se ele estava sendo sarcástico ou ofendido.
Quero ir a um casamento. Tenho que ir a um casamento — emendou ela, corajosamente. — É no dia treze de maio.
Ele recostou-se na cadeira e entrelaçou as mãos atrás da cabeça. Judith quase esperou que também pousasse as botas sobre a mesa de trabalho, como um repórter de filme americano.
- Casamento de quem?
De uma amiga. Chama-se Loveday Carey-Lewis — acrescentou, como se fizesse alguma diferença.
- Na Cornualha?
- Exatamente.
- Quanto tempo quer?
- Duas semanas.?
Ele então sorriu, encerrou sua seca zombaria, e Judith sentiu o solo mais firme sob os pés.
—No que me diz respeito, não há problema. Você terá apenas que ajeitar as coisas com a primeiro-oficial das Wrens.
— O senhor tem certeza?
— Claro que tenho. Uma das outras moças pode cuidar de mim. Sentirei falta dos seus gentis cuidados, mas sobreviverei. Caso se lembre, há meses venho tentando persuadi-la a tirar uma licença.
— Antes não parecia haver muita razão para isso.
— E agora é importante?
— Sim. Muito importante.
— Pois então vá, e enfrente a primeiro-oficial em seu covil. Diga-lhe que tem a minha aprovação.
— Obrigada — ela sorriu. — É realmente muita gentileza. A chefe das Wrens, contudo, não se mostrou tão prestimosa.
— Wren Dunbar! Você novamente? Parece que não sai de meu gabinete. O que é desta vez?
Não era um começo encorajador. Procurando não gaguejar nem falar aos tropeções, Judith explicou sua solicitação.
— Ora, mas você acabou de ter uma licença. foi a Londres.
— Foi meio fim-de-semana, senhora.
— E agora quer duas semanas?
— Sim, senhora.
A outra mulher deu-lhe a entender que, muito injustamente, ela estava querendo a lua. Afinal de contas, apontou, em seu tom mais autoritário, como Dunbar sabia muito bem, justamente agora cada membro da tripulação do HMS Excelent vinha trabalhando com o máximo empenho. Inclusive as duas outras Wrens, escrituradas no setor de Incremento de Instrução Militar. Mal se poderia esperar que elas se incumbissem de uma carga extra de trabalho, além das longas horas que já vinham enfrentando. Dunbar estava mesmo certa de que, neste momento, duas semanas de licença eram absolutamente essenciais?
Começando a sentir-se como uma traidora ou um rato abandonando um navio, Judith murmurou algo sobre um casamento.
— Um casamento? Isso nada tem a ver com licença concedida por morte de familiar!
- Não estou pedindo essa licença por morte de familiar — a Primeiro-oficial dirigiu-lhe um olhar frígido — senhora.
Casamento de parente?
— Não, não é de parente, mas de minha melhor amiga. — Ela recordou os dias de escola em Porthkerris, quando era preciso enfrentar os tiranetes. — Os pais dela cuidaram de mim, quando os meus foram para o estrangeiro. — A expressão de incredulidade da primeiro-oficial indicava sua impressão de que a Wren Dunbar estava querendo enganá-la. — Bem, eu só tenho uma tia, quero ir e ficar com ela. Por outro lado — concluiu — tenho direito a uma licença. Não tirei nenhuma, desde antes do Natal, senhora.
A primeiro-oficial baixou os olhos, a fim de examinar a ficha de licenças de Judith.
—Já falou com o capitão-de-corveta Crombie?
— Falei. Ele disse que está tudo bem, se a senhora concordar.
A primeiro-oficial mordeu o lábio, ponderando majestaticamente. De pé no outro lado da mesa, em postura subserviente, Judith pensou em como seria prazeroso pegar a bandeja de entrada de documentos, pesada como eram os artigos de escritório da Marinha, para descarregá-la no alto da orgulhosa cabeça da outra mulher. Por fim, a primeiro-oficial suspirou.
— Oh, muito bem. Contudo, sete dias. Isso lhe dará tempo de sobra.
Velha cretina.
— Muito obrigada, senhora.
Judith encaminhou-se para a porta, mas, antes de poder abri-la, a Primeiro-oficial tornou a falar.
— Dunbar!
— Sim, senhora?
—Creio que está precisando cortar o cabelo. Não parece adequa-ado. Está tocando sua gola.
— Sim, senhora.
—Tudo bem. Agora pode ir.
Uma semana? — exclamou o capitão-de-corveta Crombie, quando Judith lhe falou sobre a insatisfatória entrevista. — Diabos, o que aquela velha. — Ele se conteve no momento exato. — O que a primeiro-oficial está pensando? Não há motivo por que você não devesse ter uma quinzena de licença. Vou falar com ela.
— Oh, não, não é preciso! — implorou Judith, imaginando um constrangedor espetáculo no meio da sala dos oficiais. — Se fizer isso ela nunca me perdoará. Pensará que eu lhe pedi alguma coisa!
— Uma semana. mal lhe dará tempo para chegar lá e tornar a voltar.
— Vai dar. É o tempo exato. Irei na quinta-feira e voltarei na quinta-feira seguinte. Por favor, não diga nada, do contrário ela alegará alguma crise e suspenderá todas as licenças.
— Ela não poderia fazer isso.
— Eu não teria tanta certeza. Ela chegou a me mandar cortar o cabelo.
— Acho que seu cabelo está perfeito como se encontra agora — disse o capitão-de-corveta Crombie. A observação dele os pegou des-prevenidos. Judith encarou-o com certa perplexidade, e ele ficou visivelmente confuso por seu impulsivo comentário, já que logo começou a ocupar-se, tornando a ajeitar, desnecessariamente, os papéis sobre sua mesa. — Bem — acrescentou, pigarreando — nesse caso. é melhor deixarmos as coisas como estão. Você terá de tirar o melhor proveito de cada dia.
—Não se preocupe —respondeu Judith, com um cálido e afetuoso sorriso. — Farei isso.
Ela saiu, fechando a porta atrás de si, e ele ficou sozinho, precisando de um momento para compor-se e lamentando profundamente seu impensado comentário. Aquelas palavras, no entanto, tinham escapulido contra a sua vontade e, por outro lado, ela era uma jovem tão bonita, tão atraente. Cornualha. Era onde ela possuía sua própria casinha. Ele sabia, porque Judith já falara a respeito, descrevera-lhe a casa. Por um momento, o capitão-de-corveta entregou-se ao raro luxo da própria imaginação, permitindo-se uma fantasia de rapaz, na qual ela o convidaria a acompanhá-la, nada o impedindo de aceitar o convite. As responsabilidades da Marinha Real, seu emprego, sua esposa e filho, tudo abandonado. Uma terra de verão além dos mares. Os 3 caminhariam juntos por penhascos batidos pelos ventos, nadariam no azul oceano Atlântico, comeriam em encantadoras estalagens à luz dei Velas. À noite, dormiriam com o som das ondas batendo na praia, sussurrando através das janelas abertas.
Seu telefone tilintou, fazendo-o sobressaltar-se e voltar à cruel realidade. Estendeu a mão e ergueu o fone.
Gabinete do I.I.M.! — latiu.
Seu capitão estava no outro extremo da linha. O sonho esbateu-se desapareceu, o que, afinal de contas, talvez fosse bem melhor.
Dower Rose Rosemullion, Cornualha. Domingo, 31 de maio
Meu querido Bob
Bem, o casamento terminou, e o feliz casal se encontra em uma lua-de-mel de três dias no "Castle Hotel", em Porthkerris.
Céus, senti muito a sua falta e desejei que você estivesse lá, não apenas pela ocasião, mas por minha causa. Nunca estive antes em um casamento sem você, de modo que foi bastante estranho. Devo acrescentar que todos sentiram sua falta, mas fiz uma pequena prece por você, que continua preso aí em Scapa Flow. Agora estou sozinha. Judith, Phyllis e Anna foram fazer um piquenique na enseada de Nancherrow, e assim posso sentar-me, escrever para você e contar-lhe tudo a respeito do casamento, enquanto ainda fresco em minha mente.
Começarei pela quinta-feira, quando Judith chegou. Era um dia fechado e chuvoso, mas fui de carro a Penzance e a apanhei, quando chegou pelo Riviera. Ela havia feito uma tediosa viagem, tendo sido forçada a baldear em Bristol e esperar duas horas pelo trem de Londres. Parada na plataforma, tive um certo receio. Fazia meses que não a via e, após nosso último encontro, acontecera tanta coisa lamentável. Temi que Judith houvesse Mudado de alguma forma, que estivesse fechada em si mesma, Podendo surgir uma barreira entre nós. Sempre fomos muito apegadas, e jamais desejei que fosse de outro modo. Entretanto, estava tudo bem, embora eu me chocasse ao vê-la tão magra e pálida. Creio que não é de admirar, uma vez que ela atravessou (e ainda atravessa) momentos tão acabrunhadores.
De qualquer modo, fomos para a Dower House e ela se portou exatamente como uma garotinha que viesse passar em casa os feriados escolares, isto é, tirou o uniforme, vestiu roupas velhas e confortáveis, para então vistoriar aposento por aposento, olhando pelas janelas, tocando os móveis, examinando cada detalhe de seu pequeno reino. Devo dizer que tudo estava em excelente estado. Phyllis trabalhou como escrava, polindo assoalhos, lavando cortinas e semeando canteiros. O quarto de Judith reluzia à espera da dona, cheio de flores frescas e cheirando a roupas limpas de cama.
Nessa noite, quando ela já estava na cama, fui dizer-lhe boa-noite e terminamos conversando durante horas. Principalmente sobre Molly, Bruce e Jess. Por causa deles, Judith está decidida a continuar firmemente esperançosa, porém creio que só receberemos notícias dos três quando as hostilidades terminarem. Depois falamos sobre Ned e Edward Carey-Lewis, e a interroguei sobre sua vida amorosa, mas ela parece não ter nenhuma e, por enquanto, nem mesmo quer saber disso. Desconfiada, diria eu. Uma vez mordida, duas vezes arredia. Enfim, bastante compreensível. Em vista disso, ficamos falando a respeito de Loveday e Walter. Nenhuma de nós está muito alegre com este casamento, mas eu nunca admitirei isto a quem quer que seja, até mesmo a Phyllis. Diana e Edgar Carey-Lewis tampouco devem estar satisfeitos, embora ajam como se a filha estivesse casando com o único homem que ambos escolheriam para ela. Merecem todo o crédito por sua atitude. Seja como for, isso nada tem a ver conosco, embora eu pense que ficaríamos ambas mais felizes a respeito, se Loveday não estivesse esperando um bebê. Era meia-noite e meia, quando finalmente deixei Judith com um copo de leite quente e uma pílula para dormir. Na manhã seguinte ela parecia outra, com o rosto livre de parte da tensão e um pouco de cor nas faces. Que lugar revigorante é este!
Assim, na sexta-feira ela foi em sua bicicleta ver todos em Nancherrow e visitar a nova casa de Loveday, a qual ainda não está terminada. Durante a ausência dela, chegou a mãe de Phyllis, que veio de carona desde Saint Just no furgão das verduras, e levou a neta consigo pelo fim de semana, pois a menina não havia sido convidada para o casamento e, afinal, Phyllis se divertiria muito mais sem a pequenina agarrada à barra de sua saia, por assim dizer. A tarde de sexta-feira foi passada na colheita de flores silvestres para decorar a igreja, sendo a decoração feita ao anoitecer. Athena, Diana e Mary Ulillyway também estavam lá, e ficamos todas ocupadas na decoração até escurecer, e não enxergarmos mais o que fazíamos. Assim, arrumamos toda a bagunça e fomos para casa.
Sábado. Dia do casamento e, acredite, todas as nuvens tinham sido sopradas para longe, havendo o dia mais perfeito. Eu podia imaginar Diana exultante de alegria. Somente ela seria capaz disso. Fizemos um breakfast atrasado, para depois vestirmos nossos surrados melhores trajes, os quais não descreverei para você, certa de que não estará nem um pouco interessado. Exceto para contar que, como não tinha chapéu, Judith usou o velho chapéu de palha com que Lavinia Boscawen fazia jardinagem. Phyllis o enfeitou com uma fita rosa-vivo, e Judith ficou simplesmente encantadora.
Agora, ao casamento. Descemos a colina, e tudo o que faltava era o bimbalhar dos sinos. Devo admitir que a aparência da igreja não podia ser melhor, com entremeios de cerefólio e guirlandas de madressilvas, assim como jarros de margaridas brancas. Os bancos foram sendo ocupados aos poucos, até o lugar ficar apinhado. Um lado, bastante elegante, cheio de casacos para a manhã; o outro, não tão formal, porém duplamente mais enfeitado, com muitos cravos e avencas espetados em bustos amplos. Diana parecia um sonho, vestindo um traje de seda azul-turquesa claro. O coronel estava muito distinto, em uma sobrecasaca cinza. Athena Rycroft usava um conjunto creme, e a pequena Clementina não se portou à altura de sua condição de dama de honra, tirando sapatos e meias à entrada e coçando o traseiro enquanto caminhava pelo corredor central da igreja, para terminar no colo de Mary Millyway, chupando jujubas.
Quanto aos noivos, formavam um casal extraordinariamente atraente. Walter é de fato um belo rapaz, com seu tipo moreno de cigano. Tinha cortado o cabelo e feito a barba. Seu padrinho não era o máximo em elegância, porém não perdeu a pose. Loveday estava encantadora, vestindo voal branco, com meias e sapatilhas também brancas. Nada de véu ou jóias. Apenas uma coroa de margaridas em seus brilhantes cabelos escuros.
Depois, terminada a cerimônia, batidas fotos ao lado da igreja e jogados alguns confetes, o feliz casal foi levado no Bentley aberto de Diana (com Nettlebed ao volante). Nós, os restantes, empilhamo-nos em dois veículos que Edgar Carey-Lewis arranjara, desses com bancos transversais para turistas. Os que sobraram conseguiram caronas nos carros. (A copeira de Nancherrow, Hetty, que é um tanto simplória, foi de carona no carro do governador do condado. Talvez não seja tão simplória quanto aparenta.)
Nancherrow estava adequadamente festiva, com uma Union Jack desfraldada no topo do mastro, e flores por toda a parte, dentro e fora da casa. O pátio, ensolarado e abrigado do vento, havia sofrido uma transformação. Molhos de feno contornavam todas as paredes e muros, pombos esvoaçavam por todos os lados, e o pombal foi tornado um mastro enfeitado com esvoaçantes metros de fitas coloridas. Mesas compridas, toalhas de damasco branco, tudo pronto para o almoço, com a melhor prataria, os melhores cristais. Da maior importância, o bar, carregado de garrafas e copos, havendo ainda dois barris de cerveja. Os garçons do fornecedor eram como diligentes abelhas, e logo todos estavam com um copo na mão, assim tendo início a diversão.
Eram duas e meia quando nos sentamos para almoçar e, apesar do racionamento, consideradas todas as coisas, foi realmente um festim. Todos haviam contribuído do modo como podiam, de maneira que havia salmão frio, porco assado e deliciosos pudins cobertos de creme. Fiquei sentada entre o sr. Baines, o advogado de Judith, e o sr. Warren de Porthkerris, nós três tendo muito o que conversar. O almoço demorou bastante tempo, mas finalmente o governador do condado levantou-se, a fim de propor o brinde. A esta altura, um bom número dos homens presentes (não se falando nas mulheres) encontrava-se hem distanciado, e ele teve uma grande recepção, sendo muitos os aplausos e também alguns assobios, que foram prontamente silenciados. Walter disse algumas palavras (adequadas), e depois falou seu padrinho (de modo incoerente). A seguir, continuamos todos a divertir-nos. Por fim, quase às cinco horas, de repente percebemos que os noivos haviam desaparecido. Corremos todos para a porta da frente e lá ficamos, esperando que os dois aparecessem. Por fim eles surgiram à vista, e Loveday jogou seu buquê para Judith, que o apanhou certeiramente. Depois os noivos tornaram a entrar no Bentley, e Nettlebed os levou pomposamente até o final da alameda para carros, onde eles passaram para o velho carro do sr. Mudge e seguiram, agora chocalhantes, para Porthkerris.
(Fiquei contente por Nettlebed não os ter levado por todo o trajeto até Porthkerris porque, pela primeira vez na vida, ele havia passado dos limites e tinha bebido demais. Um tanto ébrio, Nettlebed de fato merece ser visto, em sua postura digna de sempre, apesar de certa instabilidade nas pernas. A certa altura, foi visto valsando com Hetty. Resta-nos apenas esperar que, com o correr do tempo, a sra. Nettlebed acabe perdoan-do-o por seu lapso.)
Bem, isso foi tudo. Despedimo-nos e retornamos a Rose-mullion. Eu e Judith levamos Morag para uma longa e saltitante caminhada, porque a pobrezinha havia ficado trancada o dia inteiro. Depois disso, nós duas voltamos a Nancherrow, para uma ceia de família com os Carey-Lewis. Terminada a refeição, fomos para a cozinha lavar os pratos, porque os Nettlebed já tinham ido dormir.
Lamento uma carta tão longa para contar-lhe como tudo aconteceu, mas esta foi uma ocasião muito especial. Um pouco semelhante ao solstício de inverno, com alegres celebrações (o casamento), no meio de um longo, frio e tenebroso inverno (a tremenda guerra em curso). Penso que fez bem a todos nós afugentarmos da mente as notícias depressivas, o tédio, a solidão e a ansiedade, ainda que somente por pouco tempo, e simplesmente divertir-nos.
Aliás, isto me deu motivo para pensar no futuro e considerar nossas próprias circunstâncias familiares. Se o pior acontecer se Molly, Bruce e Jess nunca mais voltarem para nós — então acho que eu, você ejudith devemos empenhar-nos ao máximo para ficarmos juntos. (Na igreja, pensei no dia em que ela se casará, e imaginei você levando-a ao altar, e eu providenciando tudo. De repente, tudo me pareceu imensamente importante.) Ela adquiriu esta casa encantadora, que é a única coisa certa em sua vida, portanto, não acredito que um dia queira deixá-la ou vendê-la. Em vista disso, quando a guerra terminar e você finalmente for reformado, talvez fosse uma boa idéia tentarmos encontrar algum lugar não muito longe de Rosemullion. Talvez em Helford Passage ou Roseland, o que acha? Um lugar onde você pudesse conservar um pequeno barco, onde tivéssemos um jardim com uma palmeira. Em verdade, não me acho desejando retornar a Devon e Upper Bickley. A casa está demasiado cheia de lembranças de Ned, e aqui fiz amigos, estou tendo uma nova vida e terminarei conformando-me — mais ou menos — com o fato de que Ned nunca mais voltará para nós. Aqui é um lugar onde eu gostaria de ficar e, após dois anos e meio, creio que jamais quererei partir. Você se interessaria, meu querido Bob? Pensaria a respeito?
Envio-lhe o meu amor. Cuide-se bem.
Biddy
1945
Trincomalee, Ceilão. O HMS Adelaide era o navio abastecedor da Quarta Flotilha de Submarinos, um cruzador mercante adaptado, de grande largura, com a casa do leme na popa. Seu ancoradouro permanente era Smeaton's Cove, uma profunda angra circundada por dois promontórios cobertos de selva. Como que agachada nas águas fundas, com seus conveses de aço fervendo ao calor e uma fieira de submarinos atada ao longo do casco, essa embarcação oferecia toda a semelhança com uma enorme e exausta porca que parira recentemente uma ninhada de bacorinhos.
O oficial comandante era o capitão Spiros, da Reserva da Marinha Real Sul-africana, e como seu navio servia em uma capacidade puramente administrativa, duas escriturárias Wren, baseadas em terra, eram diariamente conduzidas a bordo por uma lancha, a fim de trabalharem no gabinete do capitão, datilografando Ordens de Patrulha Submarina e Relatórios de Patrulha, cuidando das Ordens da Esquadra do Almirantado e corrigindo os Livros confidenciais. Uma delas era uma lânguida jovem chamada Penny Wailles que, antes de vir para o Extremo oriente, passara dois anos em Liverpool, no Quartel-general do Almirante, setor de Aproches com o Ocidente. Quando não se achava trabalhando a bordo do HMS Adelaide, ela passava muito do seu tempo de folga na companhia de um jovem capitão da Marinha Real, baseado no Acampamento 39, alguns quilômetros ao norte de Trinco-alee. Um dos atrativos dele era a posse, não somente de transporte de um jipe da Marinha Real), mas também de um pequeno barco a vela. Ele e Penny passavam a maioria dos fins-de-semana nessa pequena embarcação, deslizando a favor do vento, navegando à bolina através das amplas águas azuis do porto e descobrindo inacessíveis enseadas e faziam piqueniques e nadavam.
A outra Wren era Judith Dunbar.
Devido ao aparente fascínio de sua ocupação, elas eram muito invejadas por suas colegas Wrens, que todas as manhãs deviam rumar para os enfadonhos postos de trabalho em terra — o Quartel-general Naval, os Departamentos do Capitão, o HMS Highflyer, a Pagadori e o Departamento de Suprimento da Base. Judith e Penny, no entanto consideravam o seu serviço bastante exigente, tanto física, como psicologicamente.
Fisicamente, porque seu expediente diário era muito longo. Os homens do mar trabalhavam por quartos, em rotina tropical, isto significando que o quarto de vigília era encerrado por volta das quatorze horas, quando então eles faziam a sesta durante o calor sufocante da tarde, nos seus beliches, em redes ou em algum lugar à sombra, no convés. Às quatro, quando o calor amenizava um pouco iam nadar. As duas jovens, no entanto, chegavam a bordo às sete e meia da manhã, já tendo feito seu breakfast e cruzado o porto na lancha, só retornando a seus alojamentos na lancha Liberty, dos oficiais, às cinco e meia da tarde.
As longas horas de trabalho não seriam tão ruins se elas tivessem acesso a um chuveiro e pudessem refrescar-se no correr do dia, mas, por razões de espaço, de proximidade de contato e pelo fato do navio enxamear de homens, isto não era possível. Quando finalmente elas terminavam seus trabalhos de datilografia, cobriam a máquina duplicadora e encerravam as tediosas correções nas Ordens Secretas, estavam molhadas de suor e exaustas, os uniformes brancos — imaculados a cada manhã — agora amarrotados e pegajosos.
Os problemas psicológicos originavam-se do fato de serem as duas únicas mulheres a bordo e, além disso, graduadas. Isto não as classificava de maneira alguma, não eram uma coisa nem outra. Não se esperava delas — e, de fato, ambas não sentiam a menor disposição para tanto — que mantivessem relacionamentos íntimos ou mesmo informais com o Convés Superior. Quanto ao Convés Inferior, com posto de homens famintos por companhia feminina e ressentidos com a intrusão das duas Wrens, já as apelidara de “petiscos dos Oficiais”, seus membros mantinham uma desconfiada vigilância, em busca de sinais de favoritismo.
Judith e Penny não os censuravam. O pequeno destacamento Wrens em Trincomalee sempre fora desalentadoramente superado por número de homens, e agora, terminada a guerra na Europa, os navios da Marinha Real estavam partindo do Reino Unido para juntar-se à frota das índias Orientais. Raro era o dia sem outro cruzador ou destróier deslizando através dos marcos de canal na boca do porto, para lançar âncora e enviar à terra a primeira lancha Liberty, apinhada de saudáveis marinheiros.
Uma vez em terra, não havia muito que eles pudessem fazer, além de jogar futebol e tomar um drinque na Cantina da Frota ou ver algum filme antigo no Cinema das Forças Armadas, um enorme hangar com teto de zinco. Ali, não eram encontradas ruas familiares, nenhum pub, nenhum cinema aconchegante e muito menos garotas. Havia poucos civis europeus, e a única aldeia nativa local não passava de um amontoado de cabanas cobertas de folhas de palmeira, com caminhos lamacentos sulcados pelas rodas de carroças puxadas por bois. E mesmo essa aldeia, por motivos óbvios, ficava fora dos limites. Bem recuada no interior, distante das praias alvas orladas de coqueiros, o terreno era inamistoso, infestado de serpentes, mosquitos e formigas, todos eles capazes de picar.
Na época das monções, a situação agravava-se ainda mais, porque o campo de futebol ficava alagado, as estradas transformavam-se em rios de lama, e uma ida ao cinema, com a chuva castigando seu teto de zinco, significava tanto prazer quanto sentar-se no interior de um tambor. Em conseqüência, o marinheiro comum, uma vez passada a novidade de sua nova guarnição, não nutria o melhor conceito sobre Trincomalee. O lugar era conhecido como Scapa Flow em Technicolor, e isto longe estava de significar um cumprimento. Nada de pubs, de cinemas ou de garotas.
Claro está que o pior era a inexistência de garotas. Se algum jovem graduado, atraente e decidido, conseguisse prender a atenção de uma das Wrens e persuadi-la a sair com ele, em realidade não havia nenhum lugar aonde levá-la, a menos que ela apreciasse uma xícra de chá em um Penumbroso estabelecimento na Rua do Porto, chamado "Casa do elefante". O lugar era dirigido por uma família cenegalesa, cuja idéia de diversão realmente sofisticada era tocar, incessantemente, um horrível disco de vitrola intitulado "Velhas Lembranças Inglesas".
índias Orientais é o nome que foi dado às antigas colônias holandesas da Indonésia. (N. da T.).
Assim, eles não podiam ser censurados. Entretanto, isso não tornava a vida fácil e, tão sensível era a situação, que quando o comandante-chefe das forças aliadas no sudeste da Ásia, Lorde Mountbatte desceu em Trincomalee, vindo de seu ninho de águia em Kandy, e fez uma visita oficial ao HMS Adelaide, Penny e Judith preferiram ficar abaixo, no gabinete do capitão, em vez de alinhadas no convés com o resto da tripulação do navio. Elas sabiam perfeitamente que, ao vê-las, o grande homem faria uma pausa para falar, e que tal ocorrência somente despertaria ressentimentos desnecessários.
Relutante em permitir que suas duas Wrens agissem desta maneira o capitão Spiros finalmente compreendeu o ponto de vista de ambas e concordou. Após encerrada a importante visita e depois da partida do comandante-chefe, ele desceu para agradecer-lhes por seu tato. Tal atitude foi apreciada, mas não surpreendente, porque ele era um capitão popular, além de oficial possuidor de bom senso e simpatia
Agora era o início de agosto e o bem-vindo final de outro dia causticante. Judith e Penny encontravam-se no convés, esperando que a lancha Liberty dos oficiais as levasse para terra. Havia também, a caminho de um pouco de vida noturna, dois comandantes de submarino, um primeiro-tenente e três jovens subtenentes, todos eles parecendo forçadamente limpos e imaculados em seus uniformes.
No abrigo que era a angra de Smeaton, o HMS Adelaide ainda fervia por causa do calor. A meio caminho da popa e da proa do navio, escadas de cordas prendiam-se a balizas flutuantes, e as águas fundas fervilhavam de atividade, com duas equipes de marujos envolvidas em uma disputa de pólo aquático, saltando e mergulhando no mar, com outros tantos golfinhos.
Judith os contemplava e pensava em voltar para os Alojamentos, livrar-se do uniforme já seco do suor e disparar correndo pelo caminnho para a enseada privada das Wrens, a fim de saltar do píer e mergulhar nas águas frescas e limpas do mar.
Ao seu lado, Penny bocejou.
— O que vai fazer esta noite? — perguntou ela.
- Nada, graças a Deus. Não vou sair. Talvez escrever cartas. E você?
—Não muita coisa. Provavelmente vá até o Clube dos Oficiais com Martin. — Martin era o capitão da Marinha Real com o jipe. — Ou, talvez, empanturrar-me de peixe no restaurante chinês. Tudo depende do estado de ânimo dele.
A lancha do navio aproximou-se e foi mantida firme a poder de croques. Na Marinha Real, um navio era conhecido por suas lanchas, e as do HMS Adelaide eram reluzentes exemplos de pintura branca, conveses esfregados e cordas imaculadamente colhidas. Sua própria tripulação, de um timoneiro e dois taifeiros, sem dúvida havia sido selecionada pela boa aparência, porque todos eram bronzeados, musculosos e atraentes, de pés descalços, com gorros alvos bem puxados para a testa. O oficial de vigia deu o sinal, e Judith e Penny, ambas de graduação mais baixa, apressaram-se em descer pela passarela, sendo as primeiras a embarcar. Os outros desceram em seguida: o capitãode-corveta Fleming, e depois o capitão do submarino HMS Foxfire. O taifeiro impeliu a lancha, o timoneiro manejou a válvula reguladora, e a embarcação afastou-se, descrevendo uma grande curva, com a proa erguida e uma brilhante esteira branca, parecida a uma flecha, arrastando-se atrás da popa.
Por sorte, imediatamente ficou mais fresco, e Judith se sentou em um canto perto da cabine, sobre o limpo coxim de lona branca, e virou o rosto para a brisa. Pela entrada do porto soprava o vento fresco do oceano, e a proa da lancha produzia cortinas de borrifos, formando arco-íris ao sol do fim de tarde, e ela pôde sentir o gosto de sal nos lábios.
Pouco depois contornavam o comprido promontório selvático que guardava a angra Smeaton, e agora as árvores foram sendo substituídas por rochas, palmeiras frondosas e faixas de areia branca. A linha da costa recuou, e o porto —um maravilhoso fenômeno natural e um dos maiores ancoradouros do mundo — espraiou-se diante deles. Em seu abrigado seio jazia a maior parte da frota das índias Orientais. BeVonaves, cruzadores, destróieres e fragatas; um poderio suficiente para infundir terror nos mais agressivos e intrépidos inimigos. Um cruzador, o HMS Antigua, era o mais novo recém-chegado do Reino Unido, seu tombadilho superior sombreado por formidáveis toldos brancos White Ensign esvoaçando na popa.
Uns cinco minutos mais tarde, eles aproximavam-se de seu destino: o cais do quartel-general da Marinha. A velocidade diminuiu, o barulho da lancha baixou, e o timoneiro preparou-se para atracar. O cabo comprido, internando-se em águas fundas, construído de cone em forma de T, sempre movimentado com a ida e vinda do embarque e o desembarque de pessoal e provisões. Em terra, capturado na curvatura da praia, jazia o complexo do quartel-general da Marinha, o setor de Comunicações, o prédio da Administração e o gabinete da Wren chefe. Todas as edificações eram quadradas e brancas como cubos de açúcar, encimadas por graciosas palmeiras e um alto mastro no qual tremulava a White Ensign, à brisa do anoitecer. Mais atrás, como um pano de fundo, alçavam-se as selváticas encostas de Elephant Hill, uma crista de terra com cerca de quilômetro e meio de comprimento, apontando para o mar aberto como um dedo.
No topo desta crista, com os telhados apenas visíveis através das árvores, erguiam-se três importantes construções. No extremo oposto, com uma visão do porto que qualquer ser humano normal morreria para conseguir, ficava a residência do capitão Curtice, comandante do HMS Highflyer. Um pouco mais abaixo na encosta, morava seu capitão-de-fragata. O terceiro arejado e espaçoso bangalô era a enfermaria das Wrens. Todas as construções eram circundadas por enormes varandas, terrenos verdejantes e altas palmeiras. De cada jardim par-tiam trilhas que serpenteavam através da floresta até a praia e a água. Penny Wailes, tendo sofrido certa vez um acesso de dengue, passara uma semana na enfermaria, e com alguma relutância é que voltara para a primitiva simplicidade da vida nos alojamentos, onde sentia falta das frescas brisas marinhas, das esquecidas alegrias de banheiros ladrilhados e das agradáveis horas de absoluta indolência, cuidada por enfernmeiras e rapazinhos serventes.
A lancha foi atracada com perícia, mal tocando as defensas acolchoadas. Dois taifeiros já tinham saltado para o cais, onde atavam turcos as cordas da proa e da frente. Os oficiais passaram para fora formalmente, em ordem de categoria. Judith e Penny saíram por último.
Bandeira distintiva da Marinha Real Britânica, desde 1864. (N. da T.)
Judith virou-se e sorriu para o timoneiro, sabendo que ele era um dos mais amistosos membros da tripulação.
- Muito obrigada — disse.
— Certo, meu bem. — Ele ergueu uma das mãos. — Até amanhã. De válvula reguladora aberta e a toda velocidade para diante, a lancha do Adelaide afastou-se celeremente. As duas jovens contemplaram a embarcação que se distanciava arrastando uma curva majestática de esteira espumante e depois, lado a lado, começaram a caminhar cansadamente pelo último trecho de sua jornada de volta aos alojamentos.
O cais era comprido. Tinham apenas chegado à metade, quando ouviram passadas ressoando no concreto atrás delas, e depois uma voz:
— Eu diria que...
As duas pararam e viraram-se. Uma lancha encostara e desembarcava sua carga de oficiais vindo em terra. O homem não era identificável de maneira alguma, e Judith franziu a testa com perplexidade e também com certa irritação.
— Desculpem-me... — disse ele, quando as alcançou. Era um capitão-de-corveta da Marinha Real, o uniforme engomado e com aparência de novo, o quepe bem puxado para diante. — Eu... eu não queria gritar daquele jeito, mas vi você e... Bem, você não é Judith Dunbar?
Ainda sem identificá-lo, ela respondeu:
— Sim, ela mesma.
— Foi o que pensei. Imaginei tê-la reconhecido. Sou Toby Whitaker. O nome em nada ajudou. Judith jamais conhecera alguém chamado Toby. Meneou a cabeça, um tanto confusa.
A essa altura, começando a ficar um pouco embaraçado, ele insistiu:
— Eu era o oficial de comunicações de seu tio, em Devonport. Capitão Somerville. Fui à casa de sua tia, em Devon, pouco antes da guerra começar. O capitão Somerville tinha que ir a Scapa Flow...
A bruma dispersou-se. Oh, mas claro! A recordação surgiu. Tenente Whitaker. Tinham ficado juntos no jardim de Upper Bickley, enquanto ele fumava um cigarro. Era o dia que, em retrospectiva, ela sempre considerara como sendo o próprio início da guerra.
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— É claro que me lembro. Peço que me desculpe. Entretanto, aconteceu há muito, muito tempo atrás.
— Eu tinha que falar com você.
— Naturalmente. — De súbito, ela se lembrou de Penny. — Penny Wailes. Nós trabalhamos juntas. Estamos voltando para nossos alojamentos.
— Olá, Penny.
— Olá. — Penny, entretanto, tinha em mente outras coisas além de apresentações casuais. — Ouçam, não pensem que estou sendo rud mas é que preciso ir andando. Quero tirar o uniforme, porque pretendo sair. Vou deixá-los, para que possam conversar melhor. — Ela já começava a afastar-se. — Foi um prazer conhecê-lo. Até amanhã, Jude
Penny acenou casualmente em despedida e seguiu seu caminho movendo as compridas pernas bronzeadas e os sapatos brancos em passos lépidos.
— Vocês trabalham juntas? — perguntou Toby Whitaker.
— Trabalhamos. A bordo do HMS Adelaide. É o navio aprovisionador de submarinos. Está ancorado na angra de Smeaton. Trabalhamos no gabinete do capitão.
— Quem é ele?
— O capitão Spiros.
— O nome parece grego.
— Em realidade, ele é sul-africano.
— Então, por isso é que vieram para terra em uma lancha Liberty de oficiais. Eu não conseguia entender isso.
— Este é também o motivo de eu estar tão pegajosa. Passamos o dia inteiro a bordo e nem mesmo pudemos tomar uma ducha.
— Você me parece perfeitamente bem.
— Sinto muito por não o ter reconhecido. A questão é que estive em Whale Island por dois anos antes de vir para cá e, como todos subtenentes têm êxito em seus cursos, conheço o rosto de praticamente cada oficial da Marinha. Entretanto, nunca consigo recordar seus nomes. Estou sempre vendo gente e sei que devia conhecer as pessoas, mas é claro que não conheço todas. Há quanto tempo está aqui?
— Somente dois dias.
— HMS Antigua?
— Oficial de comunicações.
- Entendo.
E você?
Lado a lado, eles caminharam lentamente.
Estou aqui há cerca de um ano. Cheguei em setembro de 1944.
- Depois do Dia D, ofereci-me como voluntária para o estrangeiro. Pensei na França. A coisa seguinte que chegou ao meu conhecimento foi que um navio de tropas viajaria pelo oceano Índico.
— E como foi tudo?
— Muito bem. Houve alerta sobre alguns submarinos, assim que cruzamos o canal de Suez, porém nada mais, graças a Deus. O navio era o Queen of the Pacific. Em tempos de paz foi um transatlântico de alto luxo. Aliás, depois dos Alojamentos de Portsmouth, continuava parecendo luxuoso. Quatro Wrens em um camarote de primeira classe, e pão branco. Comi tanto pão, que devo ter ganho quilos de peso.
— Não parece.
—Aqui faz calor demais para ter-se apetite. Vivo à base de suco de limão fresco e sal. O sal é para evitar a exaustão deixada pelo calor. Antigamente davam a isso o nome de insolação, e ninguém sonharia em sair de casa sem seu capacete contra o sol. Agora, no entanto, nenhum de nós usa chapéu, nem mesmo na praia ou velejando. Sabia que Bob Somerville agora é contra-almirante? E que está em Colombo, aqui no Ceilão?
— Sim, eu já sabia. Aliás, havia planejado visitá-lo, quando o Antigua ancorasse em Colombo para pegar água fresca. Entretanto, não tivemos licença para ir a terra, de modo que os planos deram em nada.
— Uma pena.
—Já esteve com ele?
—Ainda não. Faz somente um mês que ele veio para cá. Entretanto, já me escreveu uma carta. O sistema telefônico é uma lástima. Há cerca de quatro estações diferentes e, invariavelmente, uma invade a outra. Parecia muito animado; disse que conseguiu uma agradável residência para morar e que, se quiser, posso ir até lá e ficar com ele. Assim, da próxima vez que tiver uma licença, eu talvez faça isso. Na minha última, fui para o campo ficar com alguns amigos chamados Campbell, donos de uma plantação de chá perto de Nuwara Eliya. Compreenda, meus pais moravam em Colombo. Também morei lá, até minha mãe levar-me de volta à Inglaterra. Os Campbell eram amigos deles
— E onde estão seus pais neste momento?
— Não sei. — Os dois caminhavam agora com passo firme. - Foram apanhados em Cingapura, quando da invasão japonesa.
— Oh, céus! Que terrível. Sinto muito.
— Sim. Já faz muito tempo agora. Quase três anos e meio.
— Sem nenhuma notícia? Judith meneou a cabeça.
— Nenhuma.
— Você é aparentada com os Somerville, não?
— Sou. Biddy é irmã de minha mãe. Daí por que eu morava com eles em Devon. — Um pensamento ocorreu a ela. — Sabia que Ned Somerville foi morto? Quando afundaram o Royal Oak, em Scapa Flow?
— Sim, fiquei sabendo.
— Logo no começo da guerra. Há tanto tempo!
— Cinco anos são um bocado de tempo. O que faz a sra. Somerville? Ainda mora em Devon?
—Não, está na Cornualha. Tenho uma casa lá. Ela foi ficar comigo logo depois da morte de Ned e, quando me alistei, Biddy simplesmente continuou lá. Chego a duvidar de que ela um dia queira voltar para Devon.
— Nós temos uma casa perto de Chudleig — disse ele.
— Nós?
— Eu e minha esposa. Estou casado. Tenho dois garotinhos.
— Que bom para você! Há quanto tempo não vê sua família?
— Apenas semanas. Tive alguns dias de folga por embarque.
A conversa os levara ao fim do cais, e eles tornaram a parar, ficando frente a frente.
— Para onde você vai? — perguntou Judith.
— Em realidade, estou indo para a casa do capitão Curtice. Um velho camarada de meu pai. Os dois estiveram juntos em Dartmou. Ele me enviou um comunicado, dizendo-me para fazer-lhe uma visita de cortesia.
— A que horas deve estar lá?
— Às oito e meia.
Sendo assim, tem duas alternativas. Pode ir por ali — e Judith apontou para a trilha estreita que seguia pela praia — depois subindo degraus até o jardim dele ou escolher a rota menos difícil, que é caminhar estrada acima.
—Por onde você vai?
Pela estrada.
Então, eu a acompanho.
Desta maneira, eles prosseguiram caminhando animadamente empoeirada estrada branca — marcada pelos sulcos das rodas de incontáveis caminhões — que cortava os terrenos do QG da Marinha. Chegaram à alta vedação de arame farpado e ao portão. Estava aberto, porque ainda era dia, porém guardado por dois jovens marinheiros-sentinelas, que se perfilaram e fizeram continência para Toby Whitaker, quando ele entrou. Além dos portões, a estrada principal formava uma curva abaixo das palmeiras e afastava-se, porém a caminhada era curta e, pouco depois, chegavam a mais dois portões guardados, a entrada para os alojamentos das Wrens. Judith se virou para encará-lo.
— Vou ficar aqui, portanto, aqui nos despedimos.
Ele fitou com algum interesse o panorama além dos portões e a trilha que subia até a comprida construção de teto de palha que era o refeitório das Wrens e seu espaço de recreação. As varandas eram suavizadas por buganvílias, e havia uma árvore chama-da-floresta, além de canteiros apinhados de flores.
— Daqui, parece muito atrativo — comentou ele.
— Também acho. Aliás, não é ruim. Assemelha-se a uma pequena aldeia ou acampamento de férias. As bandas, que são onde dormimos, ficam no extremo oposto, dando para a angra. Além disso, temos o nosso cais privativo para natação.
Imagino que nenhum homem tenha permissão de entrar aí.
- Se for convidado, claro que poderá entrar, ir até a cantina para um chá ou um drinque. Entretanto, as bandas e a enseada são estrita-mente proibidas.
„ Acho justo. — Ele vacilou por um momento, e depois disse: — Se eu a convidasse, você sairia comigo uma noite? Para jantar ou coisa sim? O único porém é que ainda sou forasteiro por aqui. Não saberia onde levá-la.
— Há o Clube dos Oficiais. Ou o Restaurante Chinês. Na realidade, nada mais.
— Você aceitaria meu convite?
Foi a vez de Judith vacilar. Ela possuía alguns amigos homens, com os quais saía regularmente para jantar, dançar, velejar, nadar e fazer piqueniques. Entretanto, eram todos velhos conhecidos da época de Portsmouth, apenas amigos, em uma condição estritamente platônica. Desde a morte de Edward e a perfídia de Jeremy, ela se decidira firmemente contra qualquer espécie de envolvimento emocional. Em Trin-comalee, entretanto, tal decisão se tornara um negócio complicado simplesmente pelo espantoso número de rapazes de todo apresentáveis, ansiosos por companhia feminina.
Por outro lado, Toby Whitaker era alguém do passado, conhecia os Somerville, tinha uma casa em Devon, e seria agradável falar dos velhos tempos, de tio Bob, de Biddy e Ned. Além disso, era casado. Claro está que o fato do acompanhante de uma jovem ser casado não contava grande coisa naquele ambiente fora do normal, conforme Judith já aprendera, por amarga experiência. Era impossível reprimir as paixões sexuais geradas por luas tropicais, palmeiras sussurrantes e meses de forçado celibato; a imagem da esposa distante e da penca de filhos desaparecia facilmente da mente, no calor do momento. Por mais de uma vez ela precisara lutar com firmeza para livrar-se de tão constrangedora situação, e tinha intenção de que isso não tornasse a acontecer.
O silêncio prolongou-se, enquanto ele aguardava uma resposta. Precavida, ela considerou a sugestão de Toby Whitaker. Não o achava particularmente atraente, mas ele tampouco parecia abusado. O mais provável é que passaria o tempo falando sobre os filhos e — temida perspectiva — mostrando fotografias.
Inofensivo o bastante. E talvez o ofendesse com uma descortês e tão pronta recusa em saírem juntos.
— É claro que aceitaria.
— Ótimo.
— Eu gostaria de sair com você, mas não para jantar. Seria mais divertido irmos a algum lugar e nadar. No sábado, talvez. Tenho folga no sábado.
— Perfeito. Entretanto, sou novo nestas bandas. Onde iríamos?
- O melhor é a ACM — a Associação Cristã de Moças.
Ele sobressaltou-se visivelmente.
— Associação Cristã de Moças?
— Não há problema. É chamada de pensionato, porém tem mais semelhança com um pequeno hotel. Sem isso de folhetos religiosos e mesas de pingue-pongue. De fato, é exatamente o oposto. Pode-se até mesmo tomar um drinque.
— E onde fica a ACM?
—No outro lado de Fort Frederick. Dando para uma praia, excelente para natação. Os homens só podem entrar se convidados por alguma mulher, de maneira que o lugar nunca fica apinhado de gente. E é dirigido por uma excelente senhora, a sra. Todd-Harper. Nós a chamamos de Toddy. É uma grande figura.
— Conte-me mais.
— Agora não há tempo. É uma comprida história. Explicarei no sábado. (Se a conversa murchasse, o que poderia acontecer, Toddy forneceria um bom assunto.)
— Como chegaremos lá?
—Podemos ir em algum furgão ou caminhão da Marinha. Eles vão e voltam o tempo todo, como ônibus.
— E onde a encontrarei?
— Aqui mesmo. No portão, por volta de onze e meia.
Judith ficou espiando-o afastar-se em passo vivo ladeira acima, os sapatos brancos já castanhos pela poeira. Longe dele, ela suspirou, perguntando-se por que havia concordado em sair, e então deu meia-volta, cruzou o portão, foi à Sala de Regulamento (não havia cartas em sua pequena caixa), e depois começou a subir a alameda para carros. No refeitório da cantina, os empregados cenegaleses já serviam um jantar adiantado para os marinheiros de vigia. Judith parou para servir-se de um copo de limonada, bebeu-o e foi para o terraço, onde duas jovens entretinham os namorados que, em desacostumado conforto, deleitavam-se em enormes poltronas de vime. Do terraço, um caminho de concreto levava ao lado oposto do acampamento, onde as bandas de dormir e os blocos de ablução agrupavam-se ao acaso, mas de forma agradável, sob árvores que haviam sido poupadas para dar sombra, quando aquela particular área da selva fora terraplenada pelos sapadores e erguido o acampamento.
Aquela hora do dia sempre havia um bom número de garotas ali, indo e vindo. As Wrens que trabalhavam em terra encerravam expediente às quatro da tarde, isto permitindo bastante tempo para uma partida de tênis ou nadar. Figuras seminuas emergiam casualmmente dos prédios de ablução, usando sandálias de tiras de couro, uma pequena toalha de banho, e nada mais. Outras perambulavam em maiô. prendiam roupas íntimas em varais ou já tinham trocado os uniformes pelas calças caqui e blusas de mangas compridas que eram o traje regulamentar da noite, naquela área de mosquitos transmissores de malária.
A malária não era o único problema. Não muito tempo atrás houvera um alarme de febre tifóide, que havia levado todo mundo a fazer fila para dolorosas injeções e a sofrer os incômodos subseqüentes. Havia ainda uma legião de indisposições secundárias que, de uma hora para outra, deixavam uma pessoa inativa. Queimaduras de sol e problemas intestinais atacavam inevitavelmente qualquer garota recém-chegada da Inglaterra e ainda não acostumada com o sol e o calor. A dengue era como a pior gripe do mundo. O estado de permanente suor provocava comichões e impetigo tropical. Além disso, a mais trivial picada de mosquito ou formiga provavelmente inflamaria, se não tratada imediatamente com uma solução de Dettol. Um frasco de Dettol, aliás, era parte integrante do equipamento de toda garota, e os prédios de ablução estavam sempre impregnados do cheiro dessa medicação, misturado ao do fluido carbólico que os faxineiros da noite usavam, quando esvaziavam e escovavam seus baldes chocalhantes.
Em cada lado da comprida banda alinhavam-se doze camas, bem semelhantes a um dormitório colegial, porém muito mais primitivo. Cada cama tinha ao lado uma cômoda e uma cadeira. Cavilhas de madeira faziam as vezes de guarda-roupas. O piso era de concreto, ventiladores de madeira, instalados alto e abaixo do teto de pa movimentavam o ar em alguma semelhança de frescura. Acima de cada cama, como um sino monstruoso, pendia um branco mosquiteiro de filó.
Como sempre acontecia nesta hora do dia, várias atividades separadas achavam-se em andamento. No extremo oposto da banda, uma garota enrolada em sua toalha de banho estava sentada na cama com uma máquina de escrever portátil sobre os joelhos nus, teclando uma carta para casa. Outras liam livros, folheavam sua correspondência, alvejavam os sapatos ou cuidavam das unhas. Duas sentavam-se juntas e cochichavam, examinando um maço de fotos. Outra havia posto um disco de Bing Crosby em sua vitrola portátil e ouvia a música, enquanto enrolava o cabelo molhado em bobs. O disco era muito antigo e excessivamente tocado, de modo que arranhava e fazia ruídos sob a agulha de aço.
Quando o rubro intenso cai Sobre muros sonolentos de jardim.
Sua cama; a coisa mais aproximada de lar que Judith conhecera durante cerca de um ano. Ela deixou cair sua sacola, livrou-se das roupas suadas, enrolou uma toalha de banho em torno da cintura e tombou pesadamente na cama, com os dedos entrelaçados sob a cabeça, para ficar deitada, contemplando as pás giratórias do ventilador de teto.
Era estranho como as coisas aconteciam, uma sucessão de eventos.
Durante dias e dias ela nem mesmo pensava na Cornualha e em Devon. Na Dower House e em Nancherrow. Isto ocorria, em parte por haver pouca oportunidade de ficar divagando, e em parte porque tinha aprendido que a saudade era um exercício totalmente inútil. Os velhos tempos, velhos amigos, a velha vida, tudo estava a séculos de distância, era um mundo perdido. O trabalho estafante ocupava muito de sua mente, e tranqüilos interlúdios de introspecção haviam sido tornados possíveis pelo fato dela nunca estar sozinha, mas constantemente Presença de outras pessoas, nem sempre simpáticas ou compreensivas.
De repente então, em um momento, um encontro ao acaso. Toby Whitaker, emergindo de nenhures, apanhando-a desprevenida. Falando sobre Upper Bickley, sobre Biddy e Bob, precipitando uma onda de recordações que tinham estado adormecidas durante meses. Ela podia recordar com exatidão o dia em que ele aparecera para levar Bob Somerville. Ela e Bob haviam saído para uma caminhada pelas charnecas com Morag, e Bob ainda estava com suas velhas roupas de tweed que usava no campo, suas botas de caminhar...
E agora, Deep Purple, de Bing Crosby. Uma música emaranhada-mente entrelaçada naqueles últimos dias do verão de 1939, porque Athena trouxera o disco de Londres e o tocava constantemente na radiola da sala de estar, em Nancherrow.
Na quietude da noite,
Torno a apertá-la contra mim.
Judith pensou no grupo. A tela que nunca havia sido pintada, mas que permanecia em sua imaginação como uma obra terminada, emoldurada e pendurada em alguma parede. Antes do Almoço. Nancherrow. 1939. Os gramados verdes, o céu azul, a brisa agitando as franjas do guarda-sol de Diana, que lançava sua sombra sobre a grama. E as figuras sentadas em torno, nas espreguiçadeiras, ou de pernas cruzadas sobre mantas axadrezadas. Então, estavam todos juntos, aparentemente ociosos e privilegiados, mas cada qual com suas reservas e medos privados; dolorosamente cônscios da guerra iminente. Entretanto, teria algum deles qualquer idéia de como essa guerra destroçaria suas vidas, separan-do-os e dispersando-os pelos confins da terra? Seu olho mental viajou em torno do pequeno grupo, contando as pessoas, uma a uma.
Primeiro Edward, naturalmente. O dourado feiticeiro, amado por todos. Morto. Abatido no céu, durante a Batalha da Inglaterra. Edward jamais voltaria a Nancherrow, nunca mais desfrutaria do lazer no gramado, em um domingo de sol.
Athena, tecendo diligentemente uma coroa de margaridas. Uma cabeça loura e cintilante, os braços nus, cor de mel escuro. Na época, nem mesmo comprometida com Rupert Rycroft. Agora estava com vinte e oito anos, Clementina já fizera cinco, e mal vira o pai.
Rupert, reclinado em uma cadeira de braços de madeira, os joelhos ossudos projetando-se para diante. O arquétipo do oficial da Guarda, alto, coriáceo, de pronúncia lenta e arrastada; maravilhosamente seguro de si e absolutamente sincero. Como tinha sobrevivido à campanha na África do Norte e conseguira chegar à Sicília, qualquer um pensaria que ele fora abençoado com uma vida encantada,
Mas até ouvir a tremenda notícia de que tinha recebido um ferimento quase mortal na Alemanha, logo depois que as Forças Aliadas cruzaram o Reno, e terminara em um hospital militar, em algum lugar da Inglaterra, onde os médicos lhe haviam amputado a perna direita. Tal notícia chegara a Judith em uma carta de Diana que, embora bastante abalada, mal podia esconder seu alívio em saber que o genro não perdera a vida.
Gus Callender. O jovem escocês, moreno e reservado, amigo de Edward. Um estudante de engenharia, artista e soldado, que passara tão brevemente pela vida de todos eles apenas para desaparecer, engolfado na confusão da luta durante a defesa de Cingapura. Ele está morto, insistira Loveday e, como estava grávida do filho de Walter Mudge, a família a acompanhara em sua convicção, porque se alguém sabia que Gus havia sobrevivido, essa pessoa seria Loveday. Além disso, a felicidade e o bem-estar dela eram primordiais, e Diana e Edgar queriam mantê-la com eles para sempre. Portanto, Gus estava morto. Somente Judith — assim parecia — não se deixara convencer. E ela continuou duvidando da morte de Gus até o casamento de Loveday, após o que de nada adiantaria manter ardendo a chama da esperança. A sorte tinha sido lançada. Loveday estava casada. Agora era a esposa de um fazendeiro da Cornualha e mãe de Nathaniel, o bebê maior, mais robusto e vociferante que Judith já vira. O nome de Gus deixara de ser mencionado. Ele morrera.
E finalmente, o último. Jeremy Wells.
Notícias dele também tinham viajado até Judith, via cartas de casa. Ele sobrevivera à Batalha do Atlântico e fora designado para o Mediterrâneo, porém isso era tudo que ela sabia. Desde a noite passada com ele na casa de Diana, em Londres, não recebera uma só palavra — nenhuma mensagem, nenhuma carta. Disse para si mesma que Jeremy excluíra-se de sua vida, mas, algumas vezes, como agora, ela ansiava ver novamente o rosto singelo dele, estar em sua presença tranqüilizadora, conversar. Talvez um dia ele surgisse em Trincomalee, brotando de nenhures, capitão-de-fragata médico de algum cruzador ou couraçado. No entanto, se isso acontecesse e ele a procurasse, o que um teria para dizer ao outro, após todos aqueles anos sem comunicação? Só poderia haver reserva e constrangimento. O tempo curara a dor que ele infligira, porém o ferimento a deixara cautelosa. Uma vez mordida, duas vezes precavida. E de que adiantava a recriminação, a avbertura de antigas feridas?
—Judith Dunbar está aqui?
A voz alta dispersou seus pensamentos. Judith caiu em si e percebeu que agora escurecia, que surgira um abrupto pôr-do-sol além das abertas persianas de palha das janelas, a noite ia adquirindo um tom azul-escuro, como que de uma pedra preciosa. Uma Wren vinha descendo pelo dormitório, em direção à cama de Judith. Tinha cabelos escuros e curtos, óculos com aros de tartaruga, e vestia um conjunto de calças e blusa de mangas compridas. Judith a reconheceu. Era uma Wren graduada, chamada Anne Dawkins, que trabalhava na Pagadoria e vangloriava-se de seu animado sotaque cockney tão consistente que, alegava, poderia ser cortado com uma faca.
— Sim, estou aqui. — e Judith sentou-se na cama, não se preocupando em puxar a toalha de banho para os seios nus.
—Lamento estar invadindo, mas fui pegar minha correspondência e achei uma de suas cartas, por engano. Veio junto com as minhas. Achei que seria melhor trazê-la diretamente para você.
Ela estendeu o envelope, grande e volumoso. Judith olhou para o sobrescrito e reconheceu a caligrafia de Loveday, o que a fez pensar em um fantasmagórico toque de coincidência. Toby Whitaker, depois Deep Purple, e agora uma carta de Loveday. Muito estranho. Loveday mal escrevia cartas, e fazia meses que Judith não recebia nenhuma dela. Esperou que nada estivesse errado.
Anne Dawkins continuava ali, ainda justificando-se:
— tolice minha. nem sei o que estava pensando.
— Não tem importância. Sinceramente. Obrigada por trazê-la. A Wren foi embora. Judith a olhou afastar-se, depois afofou os travesseiros, tornou a recostar-se neles e abriu o envelope, com a unha do polegar. Do interior, retirou o maço de folhas dobradas de papel para correspondência aérea. Mosquitos esvoaçavam em torno de seu rosto. Ela sacudiu o nó de seu mosquiteiro para afugentá-los, abriu a carta e começou a ler.
Dialeto de um bairro do extremo leste de Londres. (N. da T.)
Lidgey, Rosemulhon
22 de julho de 1945
Querida Judith, não leve um susto, por receber uma carta minha. Sem dúvida, deve estar pensando que aconteceu alguma coisa terrivelmente errada, mas não se preocupe, está tudo bem. Acontece que eu e Nat acabamos de tomar chá com todos da Dower House, e lá estava tão esquisito sem você, que pensei em escrever-lhe uma carta. Nat, graças a Deus está dormindo, e Walter foi ao pub tomar uma cerveja com os amigos. Nat não está em sua cama, mas no sofá, aqui na cozinha. Se a gente o bota na cama, ele começa a chorar e acaba saindo de lá, por isso prefiro deixá-lo pegar no sono aqui no sofá, depois o levando para o berço. Ele está pesando uma tonelada. Tem dois anos e meio agora, éa criança mais robusta que já se viu, com cabelos negros e olhos quase da mesma cor. Além disso, sua energia é inesgotável e o gênio, terrível. Ele nunca quer ficar dentro de casa, mesmo se estiver chovendo, e adora ir para as lavouras, preferentemente na direção do trator com o pai. Ele se senta nos joelhos de Walter, e muitas vezes acaba dormindo, mas Walter nem liga, continuando a fazer o seu serviço. Nat só se comporta bem quando está em Nancherrow, porque tem um certo medo de papai e, sem a menor dúvida, também de Mary Millyway, que não o deixa fazer tudo o que bem entende.
Tomando chá com Biddy, ela me contou que seu tio Bob foi transferido para Colombo, onde já está. Não é curioso o fato de vocês dois terminarem juntos, aí tão longe? Possivelmente nada tenha de curioso, pois como a guerra na Europa já terminou, suponho que quase toda a Marinha Real esteja indo para o leste. Eu gostaria de saber se você já o viu, seu tio Bob, quero dizer; olhei no mapa, e o lugar fica bem no outro lado da ilha, em oposição a Trincomalee. Então, é provável que você ainda não tenha estado com ele.
Será que Jeremy Wells também acabará indo para onde você está agora? Nossa última notícia dele é de que estava com a Sétima Frota, em Gibraltar. Ele ficou tanto tempo lutando de um lado para outro do Atlântico, que estar no Mediterrâneo deve ser o paraíso. De qualquer modo, com sol à vontade.
Notícias de Nancherrow. O lugar ficou muito vazio e triste porque, há cerca de dois meses, Athena e Clementina fizeram as malas e partiram, foram morar em Gloucestershire, com Rupert. Mamãe, Biddy ou alguma pessoa devem ter-lhe dito que ele ficou muito ferido na Alemanha, logo depois de cruzar o Reno, tendo tido que amputar a perna direita. (Um fato terrivelmente cruel, se pensarmos que Rupert fez toda a trajetória do Deserto Ocidental, deAlamein a Trípoli, tendo depois tomado parte em todos aqueles combates na Sicília, sem levar um só arranhão, apenas para ser gravemente ferido já perto do fim da guerra.) De qualquer modo, foi trazido para casa, ficou muito tempo em um hospital e depois em uma espécie de casa de reabilitação, aprendendo a caminhar com uma perna de metal. Athena deixou Clementina com Mary e mamãe, tendo ficado ausente por um longo período, residindo perto do hospital para poder estar com ele. É claro que Rupert não poderia continuar no regimento com uma perna metálica, e então foi declarado inválido. Ele e Athena estão morando em uma casinha de fazenda na propriedade do pai, e Rupert vai aprender tudo sobre como dirigir o lugar, no momento em que o pai idoso for desta para melhor. Foi horrível despedir-me de Athena e Clementina, mas ela não parecia muito relutante em ir e, acho eu, simplesmente estava grata porque seu marido não foi morto. Ela já telefonou uma ou duas vezes, para dizer que Gloucestershire é muito bonito, e que a casa também ficará bonita, assim que tiver tempo para meter mãos à obra. Será uma tarefa bem difícil, com tudo ainda racionado. Nem mesmo conseguimos cortinas, cobertores ou lençóis, sem cupons para roupa!
Nat sente muita falta de Clementina, mas, por outro lado, gosta de ter só para ele todos os brinquedos de Nancherrow que estão no quarto de brinquedos, sem ela por perto fazendo objeções o tempo todo e batendo na cabeça dele com uma boneca ou caminhãozinho.
É um alívio imenso a guerra ter chegado ao fim, porém nada mudou muito na vida rotineira, todos ainda dispondo somente de um tiquinho de gasolina, sem nada nas lojas e os alimentos tão escassos como sempre. Temos a sorte de viver em uma fazenda, porque sempre podemos matar uma galinha e, nos bosques, ainda há faisões e pombos, não se falando em um peixe ganho de vez em quando. O mesmo digo sobre ovos. Vivemos à custa de ovos, e comprei mais duas dúzias de galinhas Leghorns brancas, para aumentar nossas rendas. Cuidar da horta de Nancherrow vinha exigindo muito do pobre Nettlebed, e então transformamos em horta comunal um dos campos nos fins de Lidgey. O pai de Walter arou o terreno, que agora é cuidado juntamente por ele e Nettlebed. Temos batatas, repolhos, cenouras etc. Muito feijão e ervilhas. Ultimamente, o pai de Walter não tem andado muito bem de saúde, com dores no peito e uma forte tosse. O médico lhe disse que levasse a vida com calma, porém ele riu loucamente (existe esta palavra?) e continua como antes. A sra. Mudge ainda trabalha como escrava na leiteria etc.
Ela adora Nat e insiste em mimá-lo de todo o jeito, sendo este um dos motivos dele comportar-se tão mal. Quando tiver cinco anos poderá ir para a escola. Mal posso esperar!
Agora chegou o momento de lavar as coisas do jantar, que estão espalhadas por todo canto, de ir trancar as galinhas no galinheiro e levar Nat para a cama. Há uma pilha de roupa por passar, mas acho que não farei isso hoje. Afinal, é um exercício absolutamente inútil.
É um prazer falar com você. Responda. Às vezes levo dias sem pensar em você, mas em outras penso o tempo todo, a tal Ponto, que parece esquisito ir até Nancherrow e ter de dizer a mim mesma que você não está lá.
Saudades, saudades.
Loveday
No exótico ambiente dos trópicos, onde a única mudança de estação era o ataque violento das monções, com os perpétuos dias de sol ameaçando tornar-se monótonos, os dias, semanas e meses deslizavam com alarmante rapidez, sendo fácil perder-se inteiramente a noção do tempo. Essa impressão de viver-se em uma espécie de limbo era devida à falta de jornais diários ou mesmo de tempo para ouvir-se os boletins de notícias das Forças Armadas. Somente as jovens mais compenetradas se davam ao esforço de seguir de perto os eventos que ocorriam no mundo. A última coisa de fato significativa que parecia ter acontecido, fora a comemoração do VE Day, mas isso havia sido três meses atrás.
Em vista de tudo isso, o ritmo da semana de trabalho normal — interrompida em nítidos segmentos pelos sumamente especiais fins de semana — ganhava ainda maior importância do que na Inglaterra, ajudando a instilar um senso de normalidade em uma existência essencialmente anormal. Os sábados e domingos adquiriam um sentido especial, eram dias muito ansiados de plena liberdade, nos quais cada um tinha tempo para si mesmo, podendo escolher entre não fazer nada ou fazer tudo.
Para Judith, a melhor parte era não ter que levantar às cinco e meia da manhã, a fim de estar no final do cais a tempo de embarcar na primeira lancha do HMS Adelaide que partia no dia. Ela continuava acordando às cinco e meia, com seu relógio de tempo humano sendo incomodamente confiável, porém em geral se virava na cama e tornava a dormir, até ficar quente demais para permanecer encarcerada sob seu mosquiteiro e ser a hora certa para uma ducha e o breakfast.
Nesta particular manhã de sábado, o breakfast constara de ovos mexidos e, em vez de comer apressadamente a fatia de pão com geléia de pêssego como nos outros dias da semana, Judith pôde saboreá-la vagarosamente, demorando-se nas xícaras de chá. Pouco depois, juntava-se a ela uma excêntrica jovem irlandesa chamada Helen O'Connor, originária do Condado de Kerry, a qual costumava exibir um inocente ar de total amoralidade. Era alta e magra como um cabo de vassoura, dona de compridos cabelos escuros, e da reputação de colecionar homens como outras colecionavam selos. Usava uma pulseira de ouro pesada de berloques, os quais chamava de seus escalpos, e se alguém fosse ao Clube dos Oficiais, ela sempre estava lá, tisnando-se sob as estrelas e sempre com um novo e apaixonadamente fascinado acompanhante.
Dia da Vitória na Europa (8 de março de 1945). (N. da T.)
— O que pretende fazer hoje? — ela perguntou a Judith, acendendo o primeiro cigarro do dia e exalando uma longa e agradecida baforada.
Judith contou a ela sobre Toby Whitaker.
— Ele é atraente?
— Mais ou menos. Casado, com dois filhos.
— É melhor tomar cuidado. Eles são os piores. Eu ia convidá-la a velejar comigo hoje. Deixei-me seduzir por um dia passado na água, e tenho a curiosa impressão de que seria bom levar uma acompanhante comigo.
Judith deu uma risada.
— Muitíssimo obrigada, mas acho que terá de encontrar outra pessoa para pau-de-cabeleira.
— Bem poucas se prestam a isso por aqui. Oh, bem... — Ela bocejou e espreguiçou-se. —Talvez eu corra o risco. Lutarei por minha honra virginal.
Seus olhos azuis cintilaram de hilaridade e, recordando Loveday, Judith subitamente simpatizou muito com ela.
Depois do breakfast, Judith desceu até a enseada e nadou, mas então já era hora de aprontar-se para sair com Toby Whitaker. Vestiu short, uma blusa sem mangas, calçou um velho par de tênis e encheu uma cesta que a acompanharia através do dia. Colocou nela um esfiapado chapéu de palha, um maiô e uma toalha. Acrescentou um livro, para o caso de haver uma pausa na conversa ou de Toby decidir-se por uma sesta ao entardecer. Pensando melhor, colocou também calças compridas caqui, uma blusa e um par de sandálias de couro, prevendo a hipótese de o dia de ambos prolongar-se, chegando ao jantar e às horas além.
Com a cesta pendurada ao ombro, ela saiu dos alojamentos, passou pela Sala de Regulamento e caminhou até o portão. Estava um pouco adiantada, mas Toby Whitaker já havia chegado e a esperava. A brilhante surpresa era que, de um modo ou de outro, ele conseguira apoderar-se de um jipe, agora estacionado em um trecho de sombra, no outro lado da estrada. Toby estava sentado ao volante e fumava tranqüilamente um cigarro, mas quando a viu chegar, desceu, livrou-se do cigarro e cruzou a estrada para encontrá-la. Ele estava vestido de maneira casual — short azul e uma camisa desbotada, mas era desses homens que, sem a farda, ficam um pouco diminuídos, indistintos. Ao vê-lo convenientemente trajado para o dia em Sua companhia, Judith decidiu que ele tinha toda a aparência de consciencioso chefe de família, a caminho da praia. (Pelo menos - usava meias com as sandálias e ela esperava que tampouco desse nos cantos do lenço, a fim de usá-lo à maneira de chapéu, com proteção contra o sol.)
— Olá!
— Cheguei cedo. Não imaginava que você já estivesse aqui. Onde conseguiu o jipe?
— O capitão Curtice o emprestou para o dia — explicou ele parecendo muito satisfeito consigo mesmo.
— Formidável. Por aqui, os jipes valem ouro em pó.
— Ele disse que não pretendia usá-lo hoje. Eu lhe falei sobre você e ele comentou que subir em um furgão não era o meio mais apropriado para sair com uma garota. Terei de devolvê-lo esta noite.
Parecendo desmedidamente satisfeito consigo mesmo, ele lhe tomou a cesta.
— Vamos — disse.
Os dois entraram no jipe e partiram em meio à costumeira nuvem de poeira, rumo ao porto e à estrada que o contornava, seguindo a ampla curva do litoral. Não podiam ir muito depressa, porque havia um intenso e variado trânsito de caminhões e furgões da Marinha, bicicletas, rickshatus e carros-de-boi. Havia bandos de homens trabalhando no paredão, o molhe de defesa da costa, enquanto mulheres descalças, envoltas em saris de algodão, seguiam a caminho do mercado, carregando bebês de colo, liderando fieiras de crianças de traseiro nus e carregando cestas de frutas na cabeça. Além do molhe, o porto estava repleto de esguias e cinzentas belonaves da Frota. Bandeiras flutuavam nos mastros principais, toldos brancos sacudiam-se ao vento quente, e os toques de cornetas transmitindo ordens, flutuavam solenemente através das águas cintilantes.
Entretanto, tudo aquilo era território novo para Toby.
—Você terá de ser o navegador—disse a ela. — Dê as coordenadas
Judith assim fez, guiando-o para longe do porto, descendo pelas estradas acidentadas que atravessavam a aldeia, passando pelo Mercado de Frutas e através do Pettah. Deixaram para trás o Forte Frederick e Swami Rock, depois ganharam a estrada do litoral que seguia para o norte até Nilaveli.
Agora não havia mais trânsito, tinham a estrada inteira para eles, porém era impossível aumentar muito a velocidade, devido aos sulcos deixados pelos carros, valetas e pedras. Assim, foram em frente sem pressa.
Erguendo a voz, a fim de ser ouvido acima do ronco do motor do jipe e da confusão geral de vento e poeira, Toby disse:
— Você prometeu me falar sobre a senhora que dirige a ACM.
— Certo, prometi. — Seria mais fácil não conversar, mas talvez fosse um pouco descortês dizer isso para ele. — Conforme falei, ela é uma grande pessoa.
— Como é mesmo que se chama?
— Toddy. Sra. Todd-Harper. É viúva de um plantador de chá. Eles possuíam uma propriedade em Banderewela. Deviam ir para casa em 1939, mas então estourou a guerra, os mares ficaram cheios de submarinos e, não havendo navios, os dois permaneceram no Ceilão. Então, faz uns dois anos, o sr. Todd-Harper morreu de um ataque cardíaco, deixando-a sozinha. Ela entregou a plantação de chá a um e outro administrador, juntando-se então ao equivalente local do Serviço Feminino Voluntário. Toddy pretendia entrar para as Wrens, porém era demasiado idosa. Seja como for, acabou sendo indicada para Trincomalee, onde foi incumbida de dirigir a nova ACM. Fim da história.
— Como ficou sabendo tanto sobre ela?
— Eu morei em Colombo até os dez anos. Os Todd-Harper costumavam descer das montanhas de quando em quando, hospedavam-se no ”Galle Face Hotel” e recebiam todos os amigos.
— Eles conheciam seus pais?
— Sim, mas minha mãe e Toddy não tinham muito em comum. Não creio que minha mãe a aprovasse. Costumava dizer que ela era muito espalhafatosa, muito ”picante”, Uma total condenação.
Toby riu.
— E então, depois de todos estes anos, vocês duas voltam a encontrar-se.
—Exatamente. Ela já estava aqui quando cheguei, há um ano at rás. Foi um excelente reencontro. Tê-la por perto faz toda a diferença. Às vezes, quando uma festa acaba muito tarde e tenho um passe para dormir fora, passo a noite na ACM e, se ela estiver em falta de quarto manda um empregado colocar uma cama e um mosquiteiro na varanda,para mim. É o paraíso, acordar no frescor da manhã e ficar vendo os catamarãs chegando, com a pescaria da noite.
Agora estavam em campo aberto. A frente deles avistavam a linha do litoral, orlada de palmeiras e toldada pelo calor do meio-dia. À direita jazia o mar, cor de jade, claro e imóvel como uma lâmina de vidro. Após um momento, o prédio da ACM surgiu à vista, uma construção baixa e comprida, agradavelmente situada entre a estrada e o oceano: teto de palha e ampla varanda, mergulhada na sombra de um oásis de palmeiras. A única outra construção visível era um grupo de cabanas nativas, quase um quilômetro mais acima, dando para a praia. Aqui, a fumaça elevava-se de fogueiras para cozinhar, e os catamarãs dos pescadores tinham sido puxados para a areia.
— É para lá que vamos? — perguntou Toby.
— É.
— Que lugar idílico!
— Foi construído há apenas dois anos.
— Nunca pensei que as Moças Cristãs fossem tão imaginativas. Rodaram por mais uns cinco minutos e chegaram. O calor era sufocante, porém eles podiam ouvir o mar. Cruzaram a areia escaldante, subiram os degraus de madeira para a varanda, depois entraram. Um aposento comprido, aberto em todos os lados para captar cada fiapo de brisa, tinha como mobiliário as mais simples mesas e cadeiras para refeições. Um empregadinho cenegalês, de camisa branca e sarongue de xadrez vermelho, arrumava lentamente a mesa para o almoço. Junto ao teto, os ventiladores de madeira giravam e, no lado do mar, via-se o panorama emoldurado de céu, horizonte, mar e da praia de quente areia branca.
Enquanto eles permaneciam ali, uma porta foi aberta no extremo oposto do refeitório, e dela emergiu uma mulher, trazendo uma pilha de guardanapos brancos, recém-passados a ferro. Ela viu Judith e Toby parados junto à entrada, fez uma ligeira pausa, identificou a jovem e cruzou todo o comprimento do aposento a fim de recebê-los.
—- Queridinha! — Os braços se abriram amplamente. — Que surpresa celestial! Não podia imaginar que você viria hoje. Por que não me avisou? — Chegando ao lado de Judith, os braços a envolveram em um asfixiante abraço e beijos foram depositados em suas faces, deixando enormes marcas de batom. —Não esteve doente, esteve? Há anos que não vem me ver...
- Faz cerca de um mês, e não estive doente. — Liberada, Judith tentou limpar furtivamente o batom de seu rosto. —Toddy, este é Toby Whitaker.
— Toby Whitaker — repetiu Toddy. Sua voz era tremendamente rouca, o que não surpreendia ninguém, porque ela fumava sem cessar. — Eu já o conheço? — perguntou, examinando-o de perto.
Um tanto surpreso, Toby respondeu:
—Não, não creio que conheça. Foi somente ontem que cheguei a Trincomalee.
—Achei mesmo que não o identificava. Eu conheço a maioria dos amigos de Judith.
Ela era uma mulher alta, magra, de ancas esguias e o busto achatado de um homem. Usava calças compridas e uma blusa comum. Tinha a pele marrom e coriácea como couro bem curtido, além de franzida como uma ameixa seca, mas a maquiagem passava por cima de tudo isso: sobrancelhas fortemente acentuadas a lápis, cintilante sombra azul nos olhos e uma boa dose de batom, vermelho bem escuro. Seus cabelos, que somente poderiam ser descritos como um choque, em circunstâncias normais teriam sido brancos como a neve (cabelos inteiramente brancos fazem a gente parecer velha demais, queridinha), mas estavam tingidos de um alegre e pretensioso amarelo.
— Vieram para almoçar? Que maravilha! Almoçaremos juntos. Contarei para vocês as últimas e mais saborosas novidades. Felizmente, o dia hoje não está muito movimentado. Ah, e temos peixe. Comprei-o em um dos barcos, esta manhã. Querem um drinque? Devem estar morrendo de sede. Gim e tônica? Gim e limão? — Enquanto falava, ela já apalpava o bolso do peito da camisa em busca dos cigarros e do isqueiro, depois sacudia habilmente o cigarro para fora do maço. — Judith, mal posso esperar para contar, mas outra noite esteve aqui a mulher mais pavorosa. Creio que era uma terceiro-oficial. Demasiado vulgar para ser graduada. Entretanto, absolutamente da alta. Falava em seu mais alto tom de voz, durante todo o jantar. Aliás, não falava, buzinava. Como se estivesse tomando parte em uma caçada, em campo aberto. Muito embaraçoso. Você a conhece, não é mesmo? Judith riu e sacudiu a cabeça.
— Não intimamente.
— Bem, mas sabe de quem estou falando, não? Esqueça, não tem importância. — Ela acionou o isqueiro e acendeu o cigarro. Com 1 seguramente pinçado entre os lábios pintados, Toddy voltou à carga. — Só espero que ela não torne a aparecer por aqui. Muito bem, vamos aos drinques. Gim e tônica para os dois? Judith, quer levar seu amigo... já havia esquecido o nome dele.
— Toby — respondeu o Tenente.
— Quer levar Toby até a varanda? Fiquem à vontade, e logo estarei chegando com drinques para todos nós.
A porta de vaivém se fechou atrás dela, porém sua voz ainda era ouvida distintamente, tomando providências e dando ordens. Judidth olhou para Toby.
— Sua expressão é de choque total — comentou. Ele rapidamente compôs o rosto.
— Entendo exatamente o que você queria dizer.
— Espalhafatosa?
— Espalhafatosa, claro. Talvez depravada. — Então, como se pensasse ter falado além da conta: — Entretanto, uma esplêndida companhia, tenho certeza.
Os dois pegaram seus pertences e foram para a varanda. Era mobilada com compridas cadeiras e mesas de vime, sendo claramente a área de estar do estabelecimento. Pequenos grupos de moças e alguns homens já estavam ali, escassamente vestidos para nadar, aproveitando a aragem fresca e saboreando um drinque de antes do almoço. Na praia, outros tomavam sol, corpos bronzeados espichados na areia, como outros tantos arenques defumados. Uns poucos nadavam boiavam preguiçosamente nas ondas suaves.
Judith e Toby inclinaram-se sobre os cotovelos no corrimão de madeira e ficaram observando a cena.
A areia era ofuscantemente branca. No limite da água, marginando-a de rosa-pálido, estavam os detritos de fragmentos de conchas lavadas pelas ondas. Conchas exóticas, a um mundo de distância, despretensiosos mexilhões e bivalves listradas de Penmarron. Aqui jaziam montes de conchas e náutilos, de conchas de aranhas-do-mar e lumaches. Caramujos com sua forração de madrepérola, e as cascas letais dos ouriços-marinhos.
— Não sei bem quanto tempo posso esperar antes de entrar nesse mar — disse Toby. — Podemos nadar até aquelas rochas?
— Você pode ir, se quiser, mas eu nunca vou lá, porque elas são cobertas de ouriços-marinhos, e a última coisa que se pode desejar é um espinho deles enterrado no pé. Por outro lado, não gosto de ir tão longe. Não tem havido ataques de tubarões, por causa dos barcos de pesca indo e vindo.
— Você já viu tubarões?
— Aqui, não. Entretanto, certa vez eu velejava fora do porto e fomos seguidos o tempo todo de volta por um tubarão, espreitando sob nossa quilha. Se ele quisesse, poderia ter virado o barco na água em um segundo, e seríamos o seu almoço. Foi aterrorizante.
Uma jovem vinha saindo do mar. Usava um maiô branco, era esbelta, de pernas compridas e, enquanto eles espiavam, ela ergueu as mãos para torcer a água dos cabelos molhados. Depois, inclinando-se a fim de recolher sua toalha, caminhou pela praia ao encontro do homem que a esperava.
Toby a ficou contemplando. Após um momento, falou:
— Diga-me, é mesmo verdade que todas as garotas parecem muito mais atraentes aqui do que na Inglaterra? Ou será que já estou sucumbindo ao fascínio da raridade?
— Não, eu acho que é verdade.
— Por quê?
— Suponho que devido às circunstâncias. Vida ao ar livre, com bastante sol, tênis e natação. É muito interessante. Chega uma nova leva de Wrens da Inglaterra, e a aparência delas é de fato terrível. Com excesso de peso, atarracadas e brancas. De permanente nos cabelos e rostos cobertos de maquiagem. Então, começam a nadar, o permanente fica todo queimado, e elas acabam cortando os cabelos. Logo percebem que o calor é demasiado e que o suor prejudica a maquiagem. Resultado: seus cosméticos vão para o lixo. Uma vez que o calor constante liquida com o apetite de todo mundo, elas terminam perdendo peso.
Por fim, sentam-se ao sol, ficam lindas e bronzeadas. Uma progressão natural.
— Não acredito que você tenha sido atarracada e branca.
— Eu não era atarracada, mas certamente era pálida. Ele riu, depois disse:
— Gostei de você ter-me trazido aqui. É um bom lugar. Jamais teria encontrado, estando sozinho.
Toddy voltou com os drinques para eles, muito gelados e bastante alcoólicos. Após beberem, Toby e Judith nadaram um pouco. Em seguida almoçaram na sala de refeições, em companhia de sua anfitriã. Peixe grelhado, tão fresco que a macia carne branca se desprendia dos ossos e, como sobremesa, uma salada de frutas — mangas, laranjas e abacaxi. Toddy falou durante toda a refeição, regalando-os com breves e suculentos mexericos, alguns deles com boa chance de serem verdadeiros, porque ela passara a vida toda no Ceilão e tratava todos pelo primeiro nome, do vice-almirante em Colombo ao ex-plantador de chá que agora dirigia o Campo de Trabalho em Trincomalee.
Ouvindo com polidez, Toby Whitaker sorria corajosamente, mas, para Judith, era claro que ele estava um tanto mortificado por tão candentes escândalos e, desta maneira, talvez desaprovasse. Isto provocou nela uma certa irritação. Ele não tinha motivos para ser moralista, o que a fez querer provocá-lo. Assim, insistia com Toddy para ir ainda mais fundo em suas ultrajantes indiscrições.
Devido a toda esta conversa, alimentada por mais um gim-tônica (queridinha, não podemos perder a outra metade), o almoço demorou bastante tempo, sendo finalmente dado por encerrado quando Toddy pegou seu cigarro, levantou-se e anunciou que ia para seu quarto, deitar a cabeça e fazer a sesta.
—Gostam de café? Direi a Peter que o leve para vocês, na varanda.Devo aparecer lá pelas quatro e meia. Então, tomaremos chá juntos. Nesse meio tempo, divirtam-se!
Assim, eles passaram a meia hora seguinte recostados nas compridas poltronas, de maneira sibarítica, bebericando café gelado e esperando o sol poente lançar sombras na areia, para então voltarem a nadar. Judith saiu para vestir o maiô e, ao voltar, viu que Toby já estava na água. Correu pela praia ao encontro dele, mergulhou nas claras ondas verdes, e a frescura do mar era como seda contra a pele queimada, a água acumulando-se nos cílios e transformando a claridade em arco-íris.
As condições eram tão perfeitas, que uma hora transcorreu antes de eles finalmente se decidirem a voltar para a praia. Até então, ambos tinham nadado lânguida e preguiçosamente, mas Toby foi de súbito tomado por violento afluxo de energia ou talvez algum básico impulso masculino de exibir-se.
— Vejamos quem chega primeiro! —anunciou.
Sem maiores preâmbulos ou dar a Judith uma chance de aceitar a proposta, ele disparou à frente, deslizando pelas águas e afastando-se dela em um invejável crawl australiano. Deixada para trás, Judith ficou um tanto sem graça, mas decidiu não fazer qualquer esforço para competir, pois qual a finalidade de aventurar-se em semelhante disputa? E quem poderia imaginar que um homem adulto pudesse ser tão infantil? Ela o viu alcançar um ponto em que dava pé, sair do meio das ondas em largas passadas e postar-se triunfalmente na praia, de mãos na cintura, contemplando o deliberadamente lento progresso dela. Havia um sorriso altaneiro em seu rosto.
— Molenga! — espicaçou ele.
Judith recusou-se a nadar mais depressa. As ondas suaves a impeliam para diante.
— Você teve uma vantagem totalmente injusta — replicou severamente.
Mais uma onda, e seus joelhos roçaram a areia. Cobriria os últimos metros andando até a praia. Firmou-se nos pés e levantou-se.
A pontada de dor mergulhou fundo em seu pé esquerdo, dilacerante, tão lancinante, que ela abriu a boca para gritar, sem que nenhum som saísse. A subitaneidade, o espasmo de choque, fizeram-na perder o equilíbrio, ela cambaleou e caiu para diante, a boca enchendo-se de água salgada. Sufocando, à beira do pânico, sentiu a areia sob os dedos, conseguiu erguer o rosto acima da água e então, pouco ligando para a dignidade, começou a rastejar, apoiando-se nas mãos e joelhos.
Tudo aconteceu em pouquíssimo tempo, mas Toby já estava lá, junto dela.
— Diabo, o que aconteceu?
— Meu pé. Tropecei em alguma coisa. Não consigo levantar-me. Não tente pôr-me de pé!
Assim, ele passou as mãos por baixo dos ombros dela e a sustentou até a areia, onde Judith se deixou cair, ficando apoiada nos cotovelos. Os cabelos lhe cobriam todo o rosto e a água salgada escorria de Seu nariz. Erguendo a mão, ela procurou afastar os cabelos.
— Tudo bem?
Era uma pergunta ridícula.
— Não, não estou nada bem! — bufou ela. Arrependeu-se imediatamente de sua irritação, porque ele estava de joelhos ao seu lado, agora não mais sorridente, o rosto mostrando uma expressão de aguda ansiedade e preocupação.
— Qual foi o pé?
— O esquerdo.
Lágrimas ridículas ameaçavam aflorar aos olhos, e ela se viu premindo a mandíbula para não sentir a dor e aliviar o medo, a pura apreensão sobre o que fizera a si mesma.
— Fique quieta — disse Toby. Ele lhe tomou o tornozelo esquerdo na mão, segurou-o com firmeza, depois ergueu o pé para inspecionar o dano. Judith fechou os olhos, não querendo espiar. Ouviu-o dizer: — Oh, céus, é vidro! Vidro quebrado. Ainda enterrado na carne. Vou removê-lo. Aperte os dentes.
— Toby, não.
Antes que terminasse de falar, já estava feito. Outro espasmo de lancinante tortura saltou como fogo no interior de cada filamento nervoso de seu corpo. Judith pensou que fosse desmaiar, mas continuou firme. Depois, aos poucos, a agonia foi diminuindo, relutantemente, e ela ficou cônscia do lento e pegajoso fluxo de sangue, escorrendo da sola de seu pé.
— Pronto. Assunto encerrado. — Ela abriu os olhos. — Grande garota. Veja!
Ele ergueu um triângulo de vidro de horrível aparência, transror-mado em faca pela ação do mar. O caco de alguma garrafa atirada ao mar e estilhaçada nas pedras, que as ondas impeliam para a praia.
— Isso é tudo? Retirou tudo?
— Creio que sim. Só havia este estilhaço.
— Meu pé está sangrando.
- Esta foi a declaração do ano — disse Toby. Depositou cuidadosamente o pedaço de vidro no bolso do short. — Agora, passe o braço Sobre o meu pescoço e pendure-se.
Ergueu-a, e ela se sentiu estranhamente leve, enquanto era carregada praia acima, até o fresco santuário da varanda, onde ele a depositou sobre uma das compridas poltronas acolchoadas.
Não posso. Quero dizer — murmurou ela — estou sangrando muito, vou sujar as almofadas de Toddy.
Toby, no entanto, já entrara no refeitório, para reaparecer quase imediatamente com uma toalha de mesa branca, arrancada de alguma mesa. Dobrando a toalha várias vezes, ele a colocou delicadamente sob o pé dela, como um tampão. Em poucos segundos, o pano branco ficou pavorosamente manchado de vermelho.
Judith o ouviu dizer, um tanto nervoso:
— Temos que fazer alguma coisa!
— O que está acontecendo? — perguntou alguém.
Era uma das jovens que tinham estado tomando sol na praia e viera investigar. De rosto bronzeado e cabelos descorados pelo sol, usava a parte de cima de um maio dô duas peças e amarrara na cintura uma echarpe de algodão, à maneira de sarongue.
— Um contratempo — respondeu Toby, lacônico.
— Ouça, eu sou enfermeira.
O ânimo dele modificou-se instantaneamente.
— Oh, graças a Deus por isso! — exclamou.
—Do hospital naval. —Ela agachou-se para examinar o ferimento. - Hum. Foi realmente um corte feio. O que o provocou? Parece Profundo demais para uma concha apenas.
— Vidro quebrado — explicou Toby, tirando do bolso o estilhaço fatal e exibindo sua denteada ameaça.
Céus, que coisa horrível para estar na areia! E de que tamanho! Deve ter entrado fundo no pé. — A enfermeira se tornou prática. —
Ouça, ela está sangrando demais. Precisamos de compressas, bandagens e ataduras. Deve haver uma caixa de primeiros-socorros em algumm lugar. Onde está a sra. Todd-Harper?
— Fazendo a sesta.
—- Vou chamá-la. Você fique aqui, e tente estancar esse sangramento.
Ela saiu. Com alguém tão competente assumindo o controle e fornecendo-lhe instruções diretas, Tobby recobrou o sangue-frio, sentou-se na extremidade da comprida poltrona e esforçou-se ao máximo em fazer o que lhe tinha sido dito.
— Sinto muito — repetia a todo instante.
Judith desejou que Toby parasse de falar assim. De qualquer modo foi um grande alívio quando a enfermeira voltou, trazendo consigo a caixa da Cruz Vermelha, e com Toddy firmemente grudada em seus calcanhares.
— Queridinha! — Arrancada de sua sesta, Toddy se vestira tão rapidamente, que sua blusa pendia para fora das calças compridas e todos os botões tinham sido colocados nas casas erradas. — Meu Deus que coisa medonha foi acontecer! Sente-se bem? Está pálida como a morte, mas não é de admirar. —Ela se virou para a jovem enfermeira ansiosa. — O ferimento é muito sério?
—Sim, é bem sério —respondeu a jovem. —E bastante profundo. Em minha opinião, precisará ser suturado.
Por sorte, ela era gentil, além de competente. Num piscar de olhos o ferimento de Judith havia sido limpo, recebera um tampão, depois uma proteção de algodão e finalmente ataduras.
A enfermeira prendeu a extremidade da atadura com um alfinete de segurança. Depois olhou para Toby.
— Acho que devia levá-la para a enfermaria das Wrens ou o hospital. Eles providenciarão as suturas. Você tem transporte?
— Sim. Um jipe.
— Está ótimo.
A essa altura, Toddy arriara em uma cadeira.
— Estou abalada — anunciou, dirigindo-se a todos em geral. — E também horrorizada. Tivemos toda espécie de crises secundárias por aqui: picadas de águas-vivas e espinhos de ouriços-marinhos, até mesmo um alarme de tubarões, mas nunca pedaços de vidro quebrado. Como as pessoas podem ser tão descuidadas? E que sorte tivemos por você estar aqui... — Ela sorriu agradecidamente para a enfermeira, que agora guardava peritamente todo o equipamento no interior da caixa de primeiros-socorros. — Garota inteligente. Não sei como agradecer.
- Não foi nada. Se puder usar seu telefone, verei se consigo falar com a enfermaria das Wrens. Direi à enfermeira-chefe que espera uma paciente...
Depois que ela se foi, Toby disse:
Se me dão licença, creio ser melhor vestir algumas roupas. Não seria correto voltar a Trincomalee, vestindo calções de banho molhados.
Assim, ele também se foi, deixando Judith e Toddy sozinhas. As duas entreolharam-se, desconsoladas.
.Que coisa terrível foi acontecer! —Toddy remexeu no bolso da blusa em busca do indispensável cigarro, sacudiu um do maço e o cendeu. — Lamento o que houve, acredite. Sinto-me inteiramente responsável. Está doendo muito?
— Não posso dizer que esteja agradável.
— E pensar que você se divertia à grande! — suspirou Toddy. — Não importa, sempre haverá outras vezes. Outros bons dias. Talvez eu vá visitá-la na enfermaria, levando uvas que eu mesma comerei. Anime-se! Devemos pensar de maneira positiva. Dentro de uma semana, não mais do que isso, você estará em pé e bem novamente. Agora, pense que poderá ter um excelente descanso. Ficar na cama, sem nada para fazer.
Judith, entretanto, não se consolou.
— Detesto não ter o que fazer.
Não obstante, e surpreendentemente, ela não achou o descanso aborrecido, em absoluto. Foi levada para uma enfermaria de quatro pacientes e sua cama ficava perto da porta aberta que dava para um amplo terraço, sombreado por um teto de palha. Os postes que o suportavam estavam entrelaçados de buganvílias, de modo que o piso do terraço era salpicado de flores caídas, o que exigia varreduras constantes do empregadinho mais novo. Além do terraço, fervendo ao calor, estendia-se o jardim, descendo em plano muito inclinado até a praia. Mais além tinha-se a vista maravilhosamente elevada do porto inteiro. A despeito de sua finalidade e da inevitável agitação da vida hospitalar, a enfermaria era um lugar essencialmente tranqüilo, arejado, com paredes brancas e imaculadamente limpas, havendo até mesmo luxo, com encanamentos adequados, quadros nas paredes (reproduções coloridas dos Downs de Sussex e do Distrito dos Lagos) e cortinas de algodão, que oscilavam e enfunavam-se à brisa constante.
As três companheiras de Judith encontravam-se em estágios variados de recuperação. Uma fora atacada de dengue, outra fraturara o tornozelo ao pular de mau jeito em uma rocha, durante um animado piquenique. Somente a terceira estava de fato doente, sofrendo de recorrente ataque de disenteria amebiana, um persistente incômodo que todos temiam. Ela jazia na cama deprimida, pálida e enfraquecida correndo entre as enfermeiras um rumor de que, quando fortalecida o suficiente, com toda certeza seria mandada para casa.
O verdadeiro prêmio era que, entre aquelas pacientes, nenhuma era ávida por conversar. Mostravam-se perfeitamente simpáticas e amistosas, mas após terem visto Judith instalada, saberem os detalhes de seu contratempo, trocarem nomes e darem-lhe boas-vindas em geral, nada mais aconteceu. A jovem com dengue já se recuperara o suficiente para concentrar-se diligentemente em sua tapeçaria. A de tornozelo quebrado estava mergulhada em uma gorda novela intitulada Forever Amber. De quando em quando, a jovem com disenteria animava-se o bastante para virar as páginas de uma revista, mas era evidente que tinha energia para pouco mais do que isso.
A princípio, Judith levou algum tempo para acostumar-se com esta tácita não-comunicação, diametralmente oposta à agitação e tagarelice da banda nos alojamentos. Entretanto, aos poucos foi ficando tão absorta como as companheiras, devaneando em meio a seus pensamentos, distanciando-se, como que em uma espécie de passeio solitário. Era algo não experimentado há tanto tempo, que ela não conseguia recordar quando acontecera pela última vez.
Em intervalos, enfermeiras tagarelas iam e vinham, tomando temperaturas, administrando pílulas ou servindo o almoço, porém na maioria do tempo o único som ouvido era o do rádio que borbulhava suavemente para si mesmo o dia inteiro, ligado na Rede das Forças Armadas, a qual transmitia música contínua, entremeada por curtos boletins noticiosos. A música era toda proveniente de discos e pareci escolhida ao acaso, em uma espécie de "barrica da sorte", de modo que as Andrews Sisters ("Rum e Coca-Cola") espremiam-se entre uma ária de Verdi e a valsa de Copélia. Judith achou certo divertimento em tentar adivinhar a música que seria irradiada a seguir.
Até aí chegava o limite de suas aptidões. A enfermeira-chefe (de busto amplo, engomada e bondosa como uma babá dos velhos tempos), oferecera livros da biblioteca da enfermaria, e quando estes foram rejeitados, apareceu com dois velhos exemplares da revista Life. Por algum motivo, contudo, Judith não sentiu desejo nem concentração para ler. Era mais fácil e bem mais agradável girar a cabeça no travesseiro e contemplar, através do terraço e do jardim, o admirável panorama de água e navios, as incessantes idas e vindas das lanchas e barcos, a mutação dos sutis azuis do céu. Tudo aquilo parecia muito animado, alegre e movimentado, mas também tranqüilo, o que até era estranho, levando-se em conta que a Frota estava ali, antes de mais nada, por razões estritamente bélicas. Ela recordou a ocasião, alguns meses atrás, em que um ”objeto não-identificado” havia transposto as defesas e entrado no porto. Então houvera um terrível pânico, pois imaginava-se que podia ser um submarino japonês em miniatura, com intenção de torpedear e mandar toda a Frota das índias Ocidentais para o outro mundo. Não obstante, descobriram que o intruso era uma baleia, procurando um refúgio sossegado para pôr no mundo um bebê-baleia. Quando aconteceu seu gigantesco parto, e mãe e filho ficaram aptos para viajar, uma fragata os escoltou de volta ao mar alto. Foi um agradável evento doméstico, que deixara todos interessados e divertidos durante dias.
Havia algo mais sobre a paisagem vista dali que era vagamente familiar, porém Judith precisou pensar bastante, antes de afinal descobrir o que seria. Não se tratava apenas da maneira como o panorama parecia, mas da impressão causada por tudo. Judith ruminou a idéia por algum tempo, tentando descobrir exatamente onde e quando já vira antes aquela paisagem. Então percebeu que o senso de déjà vu era parte das recordações de sua primeira visita à Dower House quando, com os Carey-Lewis, fora almoçar em um domingo com tia Lavinia Boscawen. Era isso. Ela havia espiado pela janela da sala de estar e vira o jardim, estendendo-se colina abaixo, depois o horizonte azul da Cornualha, como que desenhado, uma reta feita a régua, acima dos galhos mais altos dos pinheiros Monterey. Não era realmente a mesma coisa, claro, porém muito semelhante: encontrar-se bem alto em uma colina, com o sol brilhando, o céu e a água visíveis acima dos topos de árvores da selva.
A Dower House. Ela recordou aquele dia especial, assim como os dias que se seguiram, para culminar naquele em que ela e Bidd mudaram para lá e tomaram posse da propriedade. Judith não tinha dificuldade em imaginar que estava realmente lá. E sozinha. Sem Bid sem Phyllis e sem Anna. Indo de um para outro preciosamente familiar aposento, tocando móveis, ajeitando cortinas, endireitando a cúpula de um abajur. Podia ouvir seus passos no piso lajeado do corredor da cozinha, sentir o cheiro abafado e úmido da roupa lavada acabada de passar, o perfume dos narcisos. Agora ela subia a escada, a mão deslizando pelo corrimão polido, cruzava o patamar e ia abrir a porta que levava ao seu quarto. Ela viu a cama de casal com cabeceira de latão, aquela mesma cama onde um dia tia Lavinia havia dormido. Via as fotografias em molduras de prata; seus próprios livros; sua caixa chinesa. Cruzou o assoalho para escancarar as janelas, e sentiu nas faces o toque do ar úmido e fresco.
Como um benevolente sortilégio, as imagens a encheram de contentamento e satisfação. Durante cinco anos, aquela tinha sido a sua casa, o seu lar. Agora, dezoito meses haviam passado desde a última vez que a vira, durante a licença de embarque, apenas uns poucos dias para despedir-se de Biddy e Phyllis. Na ocasião, a casa lhe parecera querida como sempre, mas terrivelmente deteriorada, maltratada e precisando de muita atenção, porém nada podia ser feito, em decorrência da escassez e restrições resultantes da guerra. E neste momento, decidiu com desalento, ela bem podia estar quase caindo aos pedaços.
Quando. dentro de um ano? Dois? Talvez mais tempo. a guerra terminaria e ela poderia voltar para casa, comemoraria a ocasião entregando-se a uma verdadeira orgia de reparos e reformas. A prioridade máxima seria o aquecimento central, a fim de ser afugentada persistente umidade de incontáveis invernos chuvosos da Cornualha. E também um novo boiler, novos encanamentos, radiadores por todo canto. Com isto seguramente executado, tudo seco e aquecido como uma torrada, seus pensamentos passaram para outros deliciosos projetos. Nova pintura branca. Talvez novos papéis de parede. Cobertasr de cama folgadas. Cortinas. As cortinas da sala de estar achavam desbotadas e em frangalhos por causa do sol, tinham levado muitos Anos penduradas, e quando ela se mudara para lá com Biddy, já estavam em petição de miséria. Entretanto, escolher um chintz para substituí-las não seria tarefa fácil, pois desejava que as novas cortinas se parecessem exatamente com as velhas. Quem a ajudaria? Então, surgiu a inspiração. Diana. Diana Carey-Lewis. Escolher chintz era a atividade exata para ela. Portanto, Diana seria convocada.
Se quer saber, meu bem, tenho certeza de que a Liberty’s tem exatamente a coisa certa. Por que não damos uma fugida até Londres e passamos uma manhã divina na Liberty’s?
Judith cochilou. Pensamentos do estado de vigília deslizaram para sonhos. Ainda a Dower House. A sala de estar, cheia de sol. Agora, contudo, lá havia outros. Lavinia Boscawen, sentada em sua poltrona junto da janela, e Jeremy Wells, que tinha ido lá porque Lavinia perdera uma carta. Assim, ele esvaziava a secretária dela, a fim de encontrar a carta perdida.
A senhora a jogou fora, repetia Jeremy, porém ela insistia que não, que a enviara ao pessoal da limpeza.
Então, Judith saiu ao jardim, mas começou a chover, uma chuva que caía de um céu cor de granito. Quando ela tentou entrar, todas as portas estavam trancadas, não se abriram. Bateu na vidraça, mas tia Lavinia se fora, e Jeremy, parecendo demoníaco e com uma profusão de dentes, estava rindo dela.
As horas de visita na enfermaria das Wrens eram algo semelhante a uma festa móvel, começando no início da tarde e freqüentemente chegando às dez da noite, quando o último visitante ia embora. O relaxante enfoque da enfermeira-chefe a respeito de regras hospitalares e regulamentos era uma política deliberada da parte dela por saber que, em sua maioria, as jovens aos seus cuidados encontravam-se vulneráveis, deprimidas e exaustas. O que não era de admirar. De um modo ou de outro, todas elas estavam executando tarefas vitais e exigentes, além de trabalharem longas horas sob condições de um debilitante calor tropical. E, sendo em tão pouco número e socialmente tão solicitadas, suas preciosas horas de lazer nada tinham de repousantes. Mal chegavam do trabalho aos alojamentos, já estavam saindo outra vez para jogar tênis, nadar ou ir a alguma festa a bordo de um dos navios de Sua Majestade, quando não dançavam a noite inteira no Cluhbe dos Oficiais.
Desta maneira, quando alguma nova paciente era admitida, por qualquer que fosse o motivo — na enfermaria, a prescrição da enfermeira-chefe para o restabelecimento incluía, não apenas medicamentos e pílulas, mas sono, um horário flexível, alguns confortos do lar e uma boa dose de mimos. Nos velhos tempos, isto seria chamado "cura-repouso". Na firme opinião da enfermeira-chefe, tal regime era apenas um caso de mero senso comum.
Em vista disso, ali reinava o mínimo de regulamentação. Quando iam para o trabalho ou voltavam dele, amigas passavam para ver uma paciente, levavam correspondência chegada de casa, roupa lavada, um livro ou uma sacola de frutas frescas. Os rapazes, de folga de seus navios ou de trabalhos em terra, iam e vinham, levando flores, revistas e chocolates americanos, enchendo a enfermaria com sua presença masculina. Se uma jovem era bonita e atraente, provavelmente contaria com três rapazes à volta de sua cama ao mesmo tempo, e se o timbre das vozes chegava a um nível inaceitável, a enfermeira-chefe surgia em cena a fim de afugentar a paciente e sua entourage para o terraço. Lá, eles dispunham de espreguiçadeiras, viam diminuir a claridade do céu crepuscular e entregavam-se a longos flertes e conversas.
Sendo aquele domingo o primeiro dia de Judith na enfermaria, e ainda não tendo corrido a notícia de que estava não só incapacitada como encarcerada, sua única visitante foi Penny Wailes, que apareceu às cinco da tarde, após ter passado o dia velejando com seu jovem fuzileiro naval. Ela chegou usando uma blusa e short sobre o maiô, e tinha o cabelo salitrado e despenteado pelo vento.
— Oh, coitadinha, eu sinto muito! Que triste sorte! A chefe dos alojamentos me falou sobre você. Trouxe-lhe um abacaxi, que conseguimos no Mercado das Frutas. Precisa de mais alguma coisa? Não posso demorar, porque esta noite há uma festa a bordo daquele novo cruzador, e tenho de voltar para tomar uma ducha e produzir-me. Amanhã direi ao capitão Spiros que ficaremos algum tempo com falta de pessoal no escritório. Quantos dias acha que vai ficar aqui? Uma boa semana, com certeza. E não se preocupe com aquela datilografia maçante. Eu e o chefinho podemos dar um jeito e, se não pudermos, deixaremos uma grande pilha de trabalho para você, quando voltar ao batente...
Ela continuou tagarelando por cerca de um quarto de hora, depois tomou noção do tempo, levantou-se rapidamente, prometeu voltar e se foi. Judith admitiu que aquela era a sua cota. Mais nenhum visitante. Contudo, pouco depois do por do sol, com o céu já escuro e as luzes acesas, ela ouviu alguém dizer seu nome e, erguendo os olhos, avistou a sra. Todd-Harper, aproximando-se em largas passadas ao longo da enfermaria. Era uma deliciosa surpresa.
— Queridinha!
Ela usava o uniforme costumeiro de camisa e calças compridas recém-passadas a ferro, mas era evidente que estava a caminho de alguma festiva noitada: a cabeça amarela reluzia como latão, ela estava de maquiagem completa, exalava uma onda de perfume e exibia uma profusão de jóias antigas, correntes, brincos e dois anéis que chegavam aos nós dos dedos. Tinha uma volumosa cesta pendendo de um ombro, e sua voz tilintante, além da aparência bizarra, provocaram uma certa comoção, fazendo com que a conversa cessasse momentaneamente e as cabeças se virassem na direção dela.
Toddy ignorou a atenção que despertava ou estava, felizmente, inconsciente dela.
— Oh, aí está você! Eu tinha que vir e certificar-me de que estava bem.
Judith ficou comovida.
— Toddy, não me diga que fez toda uma viagem só para me ver! E no escuro? Com você mesma dirigindo?
Ela achou que Toddy era muito corajosa. Logo depois do hotel a estrada cobria um trecho totalmente solitário, não sendo difícil imaginar um bando de ladrões ou salteadores surgindo do matagal baixo, com intenção de roubar ou até mesmo matar. Enfim, Toddy era experiente, velha conhecedora dos hábitos locais, não tinha medo de nada nem de ninguém. Qualquer salteador nativo tolo o bastante para forçar um confronto, sem dúvida levaria a pior, ouvindo as invectivas da língua ferina da mulher ou recebendo uma pancada na cabeça com o pesado porrete que, quando dirigia, Toddy sempre mantinha ao alcance da mão.
—Não há problema. —Ela puxou uma cadeira. —Eu tinha mesmo de vir abastecer-me no IMEA. Deixei de fora algumas coisinhas para você. — Ela desentranhou o conteúdo da cesta, depositando oferendas sobre a cama. — Pêssegos enlatados. Geléia de uva. E um frasco de duvidoso óleo para banho. Só Deus sabe que cheiro tem. Talvez, Dissertações de Cãezinhos Falecidos. O que é essa coisa enorme aos pés da cama?
— É uma armação, para impedir que o lençol toque meu pé.
— Está doendo muito?
— Um pouco.
Uma cascata de risada masculina chegou pela porta aberta, vindo da escuridão do terraço. Toddy ergueu as sobrancelhas acentuadas a lápis.
—Está parecendo uma boa festinha. Aposto como um dos rapazes contrabandeou um frasco de bolso com gim. Pensei em trazer um escondido para você, mas tive medo de que a enfermeira-chefe encontrasse e houvesse problemas para nós duas. Agora, fale-me sobre seu pobre pezinho. O que foi que eles fizeram?
— Deram-me uma anestesia local e suturaram.
— Ughh! — Toddy esfregou o rosto, com a expressão de quem acabou de morder um limão. — Espero que você não tenha sentido a agulha indo e vindo. Quanto tempo vai ficar aqui?
— Talvez uns dez dias.
— E seu trabalho?
— Com toda certeza saberão arrumar-se sem mim.
— E Toby Whitaker? Fez o que devia fazer? Veio visitá-la?
— Ele hoje está de plantão.
— Um homem muito interessante, queridinha, mas um pouco maçante. Nem por sombras tão divertido como os outros que levou para me verem.
— Ele é casado, Toddy.
— Ora, isso não significa que tenha de ser maçante. Não consigo imaginar por que motivo saiu com ele.
—Foi por conta dos velhos tempos. Há séculos atrás, ele foi oficial de comunicações de tio Bob.
Instituto da Marinha, Exército e Aeronáutica. (N.da T.)
— Tio Bob —repetiu Toddy, pensativamente. Ela estava a par dos Somerville naturalmente, e também da Dower House, de Nancherrow e dos Carey-Lewis porque, no correr dos meses, de quando em quando as duas tinham oportunidade de conversar. Além disso, Toddy era uma mulher sempre avidamente interessada nos detalhes da vida de outras pessoas, também gostando de saber seus nomes corretos e onde situá-las. — Está falando do contra-almirante Somerville, do estado-maior do comandante-em-chefe, em Colombo?
Judith não pôde conter o riso.
— Toddy, faz apenas um mês que ele está em Colombo. Nem eu estive com tio Bob ainda! Não me venha dizer que já o conhece!
— Não, mas Johnny Harrington telefonou outra noite, e disse que eles tinham se encontrado em um jantar de gala. E você se lembra dos Finch-Payton? Atualmente estão mais velhos do que Deus, mas costumavam jogar bridge com seus pais. Pois bem, aparentemente, a pobre velha Mavis Finch-Payton passou da conta na bebida. Aliás, ela nunca soube quando parar, mas agora a coisa está ficando por demais evidente.
— Se quer saber, acho que você devia dirigir uma coluna de mexericos no Fleet Newspaper.
— Nem mesmo sugira semelhante coisa! Eu seria processada por todo mundo... Muito bem, vejamos que horas são. — Ela consultou o maciço relógio preso ao pulso. — Oh, ainda posso ficar mais um pouco.
— Qual é o programa?
—Nada demais. Apenas um drinque no clube, com o novo capitão de grupo.
— Novo capitão de grupo... Novo em Trincomalee ou novo para você?
Toddy fez uma careta.
— Em realidade, as duas coisas. E agora diga-me o que quer que lhe traga, quando eu voltar aqui. O que acha de um romance apimentado para passar o tempo?
— Seria ótimo. No momento não me sinto muito inclinada à leitura, mas tenho certeza de que logo desejarei ler.
— Então, o que ficou fazendo hoje?
— Nada.
— Nada? Não aprovo isso.
— Você disse que eu ia adorar não fazer nada.
— Eu me referi a descansar. Não a ficar aqui matutando.
— Quem disse que fiquei matutando? Em verdade, fui absolutamente construtiva, redecorando mentalmente minha casa na Cornualha.
— Isso é mesmo verdade?
— Por que está tão preocupada?
— Bem. é natural, não.? — Coisa rara, Toddy pareceu pouco falha de palavras. — Sabe como é, quando a atividade da vida baixa por um momento, todos tendem a ficar um pouco cismados. Sei que fiquei, quando meu marido morreu. Esse foi um dos motivos de eu estar fazendo este trabalho. — Ela gaguejou um pouco. - Queridinha, sabe o que quero dizer.
Judith sabia, porém lhe cabia expressá-lo em palavras.
— Você acha que eu talvez esteja aqui morrendo de preocupação a respeito de mamãe, papai e Jess.
— Acontece que essas terríveis preocupações, que estão sempre lá no fundo, costumam voltar, emergir, quando há tempo para a gente pensar nelas. É como uma pausa na conversa.
— Eu não deixo que emerjam. É a única maneira de poder lidar com elas.
Toddy inclinou-se para diante e pegou a mão de Judith na sua, grande, marrom, de unhas vermelhas. Disse:
— Eu seria uma perigosa colunista de mexericos, mas esplêndida com uma coluna de anúncios pessoais, pessoas desaparecidas, coisas assim. Nem sempre é uma boa idéia deixar as coisas presas dentro da gente. Nunca falei sobre sua família com você porque não quero intrometer-me, mas fique certa de que sempre poderá falar comigo-
— De que adianta falar? Que bem isso faria a eles? Por outro lado, não tenho jeito para falar desse assunto. A única pessoa com quem falaria seria Biddy, porque ela os conheceu bem. Além de tia Louise nunca houve mais ninguém, porém ela morreu naquele pavoroso acidente, quando eu tinha quatorze anos. Os próprios Carey-Lewis não conheceram mamãe e Jess, porque só depois delas partirem Para Colombo e de tia Louise morrer é que comecei a passar os tempos com eles, em Nancherrow. Já lhe falei sobre isso, não? Falei sobre os Carey-Lewis? Eles foram uma bênção para mim e infinitamente amorosos, além de terem sido a coisa mais próxima de uma família minha. De fato, porém nunca chegaram a conhecer mamãe e Jess.
— Não é preciso conhecer uma pessoa antes para podermos mostrar solidariedade.
— Eu sei, mas não conhecer significa que não se pode recordar devidamente. É impossível recordar juntos. Não podemos dizer: ”Isso aconteceu naquele dia em que fizemos um piquenique e choveu muito, e então um pneu do carro estourou.” Ou: ”Foi nesse dia que fomos a Plymouth de trem, um dia tão frio, que a charneca Bodmin estava embranquecida pela neve.” Há mais uma coisa. É como quando a gente está doente, chorando um morto ou terrivelmente infeliz. Os amigos são maravilhosos e compreensivos, mas não ficam assim por muito tempo. Mais tarde, se continuarmos com as lamentações, lágrimas e sentindo pena de nós mesmos, eles ficam entediados e cessam de procurar-nos. Então, temos que fazer alguma espécie de acordo conosco mesmos. Um compromisso. Se não podemos dizer nada alegre, então é melhor ficarmos calados. De qualquer modo, agora já aprendi a conviver com isso. Estou falando da incerteza. Do não-saber. É algo mais ou menos como a guerra, que nenhum de nós sabe quando terminará. Sabemos apenas que estamos todos juntos nesse barco. O pior são os aniversários e o Natal. Não escrever cartões para todos eles, não escolher presentes, embrulhá-los e remetê-los pelo correio. E pensar neles o dia inteiro, imaginando o que estarão fazendo.
Toddy disse, em voz fraca:
— Oh, céus...
— Há outro motivo que as vezes me faz sentir falta de Biddy. É somente falando em avós e velhas tias que mantemos vivas as lembranças deles, muito depois de mortos. O contrário também é verdade. Se não ficarmos recordando as pessoas vivas, elas simplesmente tendem a desaparecer na obscuridade, tornam-se sombras. Deixam de existir. Às vezes é difícil até mesmo recordar como mamãe, papai e Jess pareciam. Jess está agora com quatorze anos. Acho que eu nem a reconheceria, caso a visse. E há quatorze anos vi meu pai pela última vez, dez anos desde que mamãe me deixou no internato e disse adeus. Por mais que se pense, é algo como aquelas antigas fotografias em sépia, que encontramos nos álbuns dos outros. Quem é essa?, você pergunta e talvez depois talvez até ria. Será realmente Molly Dunbar. Não pode ser.
Toddy silenciara. Judith olhou para ela, viu a tristeza em seu rosto rude e coriáceo, o brilho de lágrimas não derramadas. Imediatamente arrependeu-se.
— Que discurso mais comprido e amargo! Sinto muito. Não-pretendia falar tanto. — Ela tentou pensar em algo mais alegre para dizer. — Pelo menos, haja o que houver, não ficarei sem recurso porque quando tia Louise morreu, deixou tudo para mim em seu testamento. — Isto, no entanto, mal foi dito, não pareceu alegre em absoluto, mas materialista e ambicioso. — Talvez este não seja o momento apropriado para começar a falar em tais coisas.
Toddy discordou com veemência.
— De modo nenhum! Temos que ser práticos. Todos sabemos que o dinheiro não compra a felicidade, mas, pelo menos, podemos ser infelizes com conforto.
— Ter independência de espírito. Era o que minha antiga diretora costumava repetir para nós. Entretanto, a independência corriqueira, do dia-a-dia, também é terrivelmente importante, e isso eu descobri por mim mesma. Também fui capaz de comprar a Dower House, para assim ter um lar. Não preciso ter de viver com mais ninguém. Possuo raízes próprias. Mesmo quando muito pequena, sempre achei que isso era a coisa mais importante do mundo.
— E é mesmo.
— Neste exato momento, a sensação é um pouco de marcar tempo. Porque não é possível eu seguir em frente e fazer planos, enquanto não souber com certeza o que foi feito de mamãe, papai e Jess. Minha única certeza é a de que, um dia, alguém irá me contar. Se tiver acontecido o pior, se nenhum dos três voltar mais, pelo menos já terei passado dez anos aprendendo a viver sem eles. De qualquer modo, este é também um pensamento egoísta, porque não melhora nada para eles.
— Na minha opinião, o que lhe compete fazer — disse Toddy - é pensar em seu futuro, no que irá fazer quando a guerra terminar. Entretanto, sei que isso é difícil, quando se é jovem. Para mim fíca fácil falar, porque já vivi muitos e muitos anos. Tenho idade bastante para ser sua mãe. Posso olhar para trás e medir a forma, o propósito de tudo que aconteceu em minha vida. E, embora uma parte tenha sido infeliz, toda ela faz sentido. Aliás, se não me engano, há bem pouca chance de você ficar sozinha por muito tempo. Logo estará casada com algum bom homem, terá filhos e os verá crescerem naquela sua casa.
— É demasiado remoto, Toddy. Está a anos-luz de distância. Um sonho impossível. Neste momento, escolher hipotéticas cortinas no Liberty’s é o máximo a que minha imaginação pode chegar.
— Pelo menos, acho um esperançoso passatempo. A esperança é muitíssimo importante. É como ser constante, continuar mantendo a fé. E esta guerra odiosa não pode durar para sempre. Não sei como nem quando, mas ela terminará. Um dia. Talvez mais cedo do que qualquer um de nós possa imaginar.
— É, suponho que sim. — Judith olhou em torno. A enfermaria estava ficando vazia, os visitantes despediam-se e iam embora. —Perdi toda a noção do tempo. — Ela recordou o compromisso de Toddy, no Clube dos Oficiais, e foi invadida pela culpa. — Você vai chegar atrasadíssima ao encontro com o seu capitão de grupo. Ele acabará pensando que foi esquecido.
— Oh, ele pode esperar. Enfim, talvez seja melhor eu ir andando. Sente-se bem agora?
— Sim, estou ótima. Você foi um anjo em ouvir-me.
—Nesse caso... — Toddy recolheu sua cesta e ficou em pé, depois inclinando-se para dar um beijo na face de Judith. — Cuide-se bem. Se quiser, voltaremos a conversar. Nesse meio tempo, voltarei com algum romance apimentado ou outra coisa qualquer que a ajude a passar o tempo.
— Obrigada por ter vindo.
Toddy se foi. Cruzou a enfermaria e desapareceu na porta do extremo oposto. Judith virou a cabeça no travesseiro e olhou para o céu estrelado, viu o Cruzeiro do Sul, muito alto, no firmamento azul-safira. Sentiu-se imensa e curiosamente cansada. Desligada. Ocorreu-lhe que talvez os católicos romanos sentissem o mesmo, após se terem confessado.
Ela terminará. Era a voz de Toddy. Um dia. Talvez mais cedo do que qualquer um de nós possa imaginar.
Enfermaria Trincomalee
16 de agosto de 1945
Querida Biddy,
Não sei por que motivo fiquei tanto tempo sem escrever pois há quase duas semanas não tenho feito nada. Estou na enfermaria, porque fui nadar com Toby Whitaker (oficial de comunicações de tio Bob em Plymouth, antes da guerra) e acabei cortando o pé em um horrível caco de vidro, isso me fazendo vir parar aqui. Levei pontos, o oficial médico-chefe ficou preocupado com uma possibilidade de septicemia, em seguida tirei os pontos, passei a caminhar com muletas, mas agora está tudo bem e volto esta tarde para os alojamentos. Recomeçarei a trabalhar amanhã.
Esta carta, contudo, não é sobre mim. O motivo de você não ter recebido uma antes, foi porque passei praticamente todos os momentos atenta ao rádio em nossa enfermaria, ouvindo os boletins noticiosos. Ficamos sabendo da bomba lançada em Hiroshima, no noticiário do começo da tarde daquele mesmo dia. Estávamos todas ouvindo Glenn Miller e ocupadas com nossos vários passatempos (em geral, não nos preocupamos em ligar o rádio para os noticiários) quando a enfermeira-chefe irrompeu subitamente e o ligou a todo volume, a fim de podermos ouvi-lo. De início, pensamos tratar-se apenas de mais um dos ataques regulares de bombardeio pelas forças americanas, mas logo foi ficando evidente que era algo muito mais importante e horrendo do que isso. Segundo informavam, cem mil pessoas perderam a vida instantaneamente —e isso não foi tudo naquela grande cidade, pois a própria cidade desapareceu; foi eliminada. Você deve ter visto as pavorosas fotos nos jornais e a nuvem em forma de cogumelo, além dos pobres sobreviventes, inteiramente queimados. De certo modo, nem vale a pena pensar-se nisso, concorda? O terrível é que nós fizemos isso, algo ainda pior do que o bombardeio de Dresden. O fato é que agora estamos um tanto aterradas, pois só consigo imaginar que doravante este poder terrível ficará conosco, e que teremos de conviver com ele pelo resto de nossas vidas.
Seja como for, sinto vergonha em confessar que todas ficamos muitíssimo excitadas e bastante frustradas por estarmos presas na enfermaria, em vez de livres lá fora, andando de um lado para o outro, recolhendo todas as notícias e sendo parte de tudo, enfim. Por sorte, muita gente veio visitar-nos, trazendo jornais e coisas até que, pouco a pouco, a notícia do ocorrido, e a escala da destruição de Hiroshima foi perdendo a novidade. Então, na quinta-feira, ouvimos a notícia de que Nagasaki também havia sido bombardeada, após o que, pareceu bastante óbvio que os japoneses não continuariam por muito tempo mais. Contudo, foi preciso esperar mais alguns tensos dias, antes de ser noticiado que eles finalmente se renderam.
Pela manhã, em todos os navios da Frota houve serviços de Ação de Graças e, através da água, podíamos ouvir o hino "Eterno Pai, Forte na Salvação" cantado pela tripulação de todos os barcos, e os Corneteiros da Marinha Real tocaram o "Último Toque de Recolher", em memória de todos os homens que haviam sido mortos.
Foi um dia tremendamente excitante e um tanto ébrio, já que foram infringidos todos os regulamentos. Houve comemoração no refeitório do Destacamento Voluntário de Socorro, as pessoas iam e vinham o dia inteiro, e ninguém, em absoluto, parecia estar executando qualquer trabalho. A noite houve grandes comemorações, toda a Frota das índias Ocidentais acendeu foguetes luminosos e holofotes, mangueiras de incêndio esguichavam água formando chafarizes, explodiam fogos e apitos soavam. No tombadilho de popa do navio-capitânea, a banda da Marinha Real executou — não as marchas cerimoniais, mas melodias como Little Brown Jug, In the Mood e I'm Going to Get Lit Up When the Lights Go On in London.
Ficamos amontoados no terraço e assistindo ao espetáculo
o oficial médico-chefe e mais dois médicos, a enfermeira-chefe, todas as pacientes (algumas em cadeiras de rodas) e vários agregados, e todos que chegavam pareciam trazer uma garrafa de gim, de modo que o ambiente ficou realmente turbulento, e sempre que subia um foguete, todos nós gritávamos, vociferávamos e aplaudíamos.
Também eu fiz tudo isso e foi maravilhoso, mas, ao mesmo tempo, sentia-me um tanto assustada. Porque sei que agora cedo ou tarde, surgirá alguém para me dizer o que foi feito de mamãe, papai e Jess, e se eles sobreviveram a estes terríveis três anos e meio. Se sobrevivi, foi porque deliberadamente evitei pensar demais neles, mas agora terei de arrancar a cabeça da areia e enfrentar a verdade, seja ela qual for. Assim que souber de alguma coisa, passarei um cabograma para você e telefonarei para tio Bob, caso consiga uma linha para o gabinete do comandante-em-chefe em Colombo. Com tanta movimentação por aqui, a situação certamente ficará um pouco desorganizada. Toby Whitaker veio ver-me há uns dois dias, e dizem que a Frota começará a mover-se para Cingapura. Já. Talvez o HMS Adelaide também vá. Não sei com certeza. Resta apenas esperar para ver.
Toddy foi outra pessoa que veio ver-me duas ou três vezes. Já lhe falei sobre ela em outras cartas, mas caso tenha esquecido, ela mora no Ceilão desde que se casou (agora está viúva), tendo conhecido mamãe e papai em Colombo, na década de 30. Ela é a única pessoa daqui que os conheceu, e por isso ficamos muito tempo falando neles em minha primeira noite na enfermaria. De fato, foi na véspera da bomba cair sobre Hiroshima, porém é claro que ignorávamos o que estava para acontecer, meu pé doía muito e eu me sentia algo deprimida. Então, para alegrar-me, ela disse, "A guerra terminará um dia. Talvez mais cedo do que qualquer um de nós possa imaginar." Pois justamente no dia seguinte foi lançada a bomba, e esse dia foi o começo do fim. Não acha extraordinário?
Minhas saudades para você, Phyllis, Anna e os Carey-Lewis, quando estiver com eles. E também para Loveday e Nat, da Judith
Cedo ou tarde alguém me dirá o que foi feito de mamãe, papai e Jess.
Ela esperou. A vida continuou. Um dia se seguiu ao outro; a rotina era a costumeira. Seguir de lancha todas as manhãs para a angra de Smeaton e o HMS Adelaide. Longas e sufocantes horas passadas datilografando, arquivando, corrigindo livros confidenciais. Depois, voltar aos alojamentos a cada anoitecer.
Talvez agora, ela dizia para si mesma. Talvez hoje.
Nada.
Suas ansiedades eram compostas pelos fiapos de informação que se filtravam dos primeiros campos de concentração japoneses. Uma saga de atrocidades, trabalho escravo, fome e doenças. Outras pessoas comentavam tais fatos, mas não Judith.
No gabinete do capitão, todos que ali trabalhavam eram particularmente compreensivos e gentis, quase protetores, incluindo-se o suboficial escriturário chefe, conhecido por seu temperamento ácido e linguagem rude. Judith achava que o capitão Spiros fizera correr a notícia, mas não podia imaginar como ele ficara a par de suas circunstâncias familiares. Talvez houvesse sido informado pela primeiro-oficial, ficando então impressionado por haver tanta preocupação em um nível superior.
Penny Wailes era um consolo especial. Elas sempre haviam sido boas amigas e trabalhavam bem juntas, mas de repente surgira uma verdadeira identificação entre ambas, uma tácita compreensão, sem que muita coisa precisasse ser dita. Era mais ou menos como estar na escola e ter uma solidária e protetora irmã mais velha. Todo entardecer as duas faziam juntas a viagem de volta, e Penny nunca deixava Judith enquanto não passavam pela Sala do Regulamento e se certificavam de que ainda não havia nenhuma mensagem. Nenhuma convocação. Nenhuma notícia.
Então, aconteceu. Às seis horas de uma tarde de quinta-feira, Judith estava em sua banda. Tinha ido nadar na enseada e depois tomara uma ducha. Enrolada em uma toalha, penteava os cabelos molhados, quando uma das Wens graduadas que trabalhavam na Sala do Regulamento veio à sua procura.
— Dunbar?
Ela se virou do espelho, com o pente na mão.
— Sim?
— Mensagem para você. Deverá apresentar-se à primeiro-Oficial amanhã de manhã.
Judith ouviu-se responder, com absoluta calma:
— Eu tenho que ir trabalhar.
— A mensagem diz que ela já falou com o capitão Spiros Você poderá ir para bordo em uma das lanchas seguintes.
— A que horas ela quer me ver?
— Dez e meia. — A Wren esperou uma resposta. — Tudo bem? - perguntou.
— Sim, tudo bem. Obrigada.
Judith tornou a encarar seu espelho e continuou penteando os cabelos.
Na manhã seguinte, alvejou os sapatos e o gorro, depois os deixou no sol para secarem. Vestiu um fardamento limpo, saia e camisa de algodão branco, ainda com os vincos do ferro de passar do empregado nativo. Era mais ou menos como o marinheiro preparando-se para a batalha. Se um navio entrava em batalha, toda a sua tripulação vestia roupas limpas, a fim de ser reduzida a chance de infecção se o indivíduo fosse ferido. Os sapatos estavam secos. Ela enfiou os cordões, amarrou-os, colocou o bibico na cabeça e saiu da banda para o sol ofuscante. Cruzou os alojamentos, passou pelo portão e desceu a familiar estrada que levava ao Quartel-General da Marinha.
A Wren de categoria mais elevada em Trincomalee era a primeiro-oficial Beresford. Ela e seu estado-maior, uma suboficial e duas wrens graduadas, ocupavam três salas no andar de cima de um dos prédios do QG da Marinha, com janelas dando para o comprido cais e o porto mais além. O panorama, sempre mutante e sempre movimentado, assemelhava-se a uma maravilhosa tela pendurada na parede, e os que visitavam seu gabinete invariavelmente faziam um comentário a respeito, paravam para olhar e perguntavam como ela conseguia concentrar-se em seu trabalho, tendo diante de si um quadro tão absorvente.
Entretanto, após quase um ano lidando com os muitos aspectos de seu posto de responsabilidade, o panorama além da janela perdera um pouco de sua magia e se tornara bastante vulgar, uma parte de sua vida.
Sua mesa de trabalho era colocada em ângulo reto com a paisagem e, se se erguesse os olhos de sua papelada ou parasse para um telefonema, ela tinha à frente uma parede vazia, dois arquivos e o horroroso lagarto pregado ao reboco branco, como um ornamento decorativo.
Havia ainda três pequenas fotografias, emolduradas e colocadas corretamente sobre sua mesa, sem que perturbassem a concentração profissional. O marido, um tenente-coronel da Artilharia, e seus dois filhos. Ela não via estes filhos desde princípios do verão de 1940 quando, persuadida pelo marido, enviara os dois para o Canadá, a fim de lá permanecerem com parentes de Toronto, enquanto durasse a guerra. A recordação de colocá-los no trem em Euston e despedir-se deles, talvez para sempre, era tão terrível e traumática que, na maioria do tempo, ela a bloqueava em sua mente.
Agora, contudo, aquela guerra, tão pavorosa e impensada, terminara. Acabara. Eles tinham sobrevivido. Um dia, a família Beresford voltaria a reunir-se. Ficariam juntos novamente. Seus filhos contavam oito e seis anos, quando tinham partido para o Canadá. Agora estavam com treze e onze. Cada dia de separação havia sido doloroso. Nem um só se passara sem que deixasse de pensar neles.
Era o bastante. Com um estremecimento, ela reassumiu o controle. Este não era o momento de ficar cismando sobre seus filhos. Aliás, esta era a ocasião menos apropriada para isso. Hoje eram vinte e dois de agosto, uma quarta-feira, faltando quinze para as dez de uma manhã quase insuportavelmente quente, a temperatura aumentando na medida em que o sol se movia para o equinócio de setembro. A própria brisa que vinha do mar e os inevitáveis ventiladores de teto girando suas pás em pouco contribuíam para refrescar o ar, e a camisa de algodão da primeiro-oficial já estava úmida, colando-se a seu pescoço.
Os relevantes papéis jaziam sobre sua mesa. Ela os puxou para si e começou a ler, embora já os soubesse de cor.
Uma batida à porta. Exteriormente composta, ela ergueu a cabeça.
— Sim?
A Wren suboficial assomou com a cabeça.
— A Wren Dunbar, senhora.
- Obrigada, Richardson. Faça-a entrar.
Judith cruzou a porta aberta. Viu o gabinete espaçoso e com ar feminino, os ventiladores funcionando, a janela aberta na parede mais distante, emoldurando a vista familiar do porto. A primeiro-oficial ficou em pé atrás de sua mesa, como se acolhesse polidamente um visitante convidado. Era uma mulher alta e de feições agradáveis aproximando-se dos quarenta, com cabelos castanhos e macios presos em um coque bem-feito, atrás da cabeça. Por algum motivo, ela nunca parecia totalmente correta em uniforme. Não que o fardamento assentasse mal, apenas era muito mais fácil imaginá-la usando um conjunto de pérolas, sendo a espinha dorsal do Instituto Feminino e organizando o trajeto floral para a igreja.
— Dunbar. Obrigada por vir. Bem, puxe uma cadeira e fique à vontade. Gostaria de uma xícara de chá?
— Não, obrigada, senhora.
A cadeira era comum e de madeira, incapaz de deixar alguém à vontade. Ela se sentou, de frente para a primeiro-oficial no outro lado da mesa, com as mãos juntas no colo. Os olhos de ambas encontraram-se. Então, a primeiro-oficial desviou os seus, ocupando-se desnecessariamente em ajeitar papéis e procurar a caneta.
— Recebeu a minha mensagem? Oh, é claro que recebeu, pois do contrário não estaria aqui. Falei ao telefone com o capitão Spiros ontem à tarde, e ele disse que não haveria impedimento para você tirar a manhã de folga.
— Obrigada, senhora. Outra pausa.
— Como está o seu pé?
— Perdão, o que disse?
— Perguntei como está o seu pé. Você sofreu um acidente com um pedaço de vidro. Já se recuperou?
— Sim. Sim, claro. Não foi muito sério.
— Ainda assim, bastante incômodo.
Estavam encerrados as preliminares. Judith esperou que a primeiro-oficial abordasse o assunto. Foi o que ela fez, após outra vacilação.
— Receio não ter notícias muito boas para você, Dunbar. Sinto muito.
— É sobre a minha família, não?
— Sim.
.O que aconteceu?
Fomos informados pela Cruz Vermelha e pela Assistência Social Naval. As duas organizações trabalham em íntima colaboração. Eu... Eu devo dizer-lhe que seu pai está morto. Faleceu na prisão de Changi, je cüsenteria, um ano depois da queda de Cingapura. Ele não estava sozinho. Outros em sua companhia ocuparam-se e cuidaram dele, mas, evidentemente, as condições eram desesperantes. Não havia medicamentos e o alimento era escasso. Muito pouco eles podiam fazer. Entretanto, seu pai estava entre amigos. Procure não pensar nele morrendo sozinho.
—Eu compreendo. —Judith sentiu a boca subitamente seca e mal conseguia pronunciar as palavras, que foram ditas em uma espécie de sussurro. Ela tentou novamente. Um pouco melhor agora. — E minha mãe e Jess?
— Até o momento não dispomos de qualquer informação definitiva. Sabemos apenas que o navio delas, o Rajah of Sarawak, foi torpedeado no mar de Java, seis dias após ter zarpado de Cingapura. Antes de mais nada, o navio estava superlotado, tendo afundado rapidamente. Sobraram apenas momentos para que se pudesse escapar, e o veredito oficial parece ser de que, caso houvesse sobreviventes, seriam apenas uns poucos.
— Encontraram algum sobrevivente? A primeiro-oficial meneou a cabeça.
—Não. Ainda não. São muitos os campos de prisioneiros em Java, Sumatra e na Malaia — inclusive, no próprio Japão há alguns campos de civis. Levará algum tempo até serem todos investigados.
— Talvez...
— Eu acho, minha querida, que você não deveria nutrir qualquer esperança.
— Foi o que lhe falaram para dizer-me?
— Sim. Lamento, mas foi.
As pás dos ventiladores giravam mais acima. Pela janela aberta Chegou o som do motor de uma lancha, aproximando-se do cais. Em algum lugar, um homem martelava alguma coisa. Desaparecidos, estavam todos mortos. Três anos e meio de espera e esperanças, para agora, isto. Nunca, nunca mais ver nenhum deles.
Por entre o prolongado silêncio que pairou entre elas, Judith ouviu a voz da primeiro-oficial.
— Dunbar? Você está bem?
— Sim. — Talvez não estivesse se portando devidamente. Talvez devesse estar chorando e soluçando. As lágrimas, no entanto, pareciam de todo improváveis, de todo impossíveis. Ela assentiu. — Sim, estou bem.
— Talvez. agora. uma xícara de chá ou alguma coisa?
— Não.
— Eu. eu realmente lamento muitíssimo.
Houve uma interrupção na voz da mulher, e Judith teve pena dela por parecer tão abalada, tão maternal, e porque devia ter sido uma terrível provação precisar transmitir aquelas devastadoras notícias.
Então falou, e ficou admirada por sua voz soar absolutamente inexpressiva e calma:
— Eu sabia do afundamento do The Rajah of Sarowak. Quero dizer, achava que devia ter sido afundado, que algo teria acontecido, porque ela nunca chegou à Austrália. Minha mãe disse que escreveria, assim que ela e Jess chegassem à Austrália, mas nunca recebi quaisquer cartas, depois da última enviada de Cingapura.
Ela recordou a carta, lera-a tantas vezes, que sabia de cor aquele último e doloroso parágrafo.
É muito estranho, mas a vida inteira, de quando em quando eu me surpreendi fazendo perguntas irrespondíveis. Quem sou eu? O que estou fazendo aqui? Para onde estou indo? Agora, tudo isto parece tornar-se terrivelmente verdadeiro, mais ou menos como um pesadelo que me perseguiu muitas vezes antes.
Uma premonição, talvez? Agora, contudo, ninguém jamais saberia-
— Percebi que devia ter acontecido alguma coisa ao navio, mas mesmo assim dizia para mim mesma que elas teriam sobrevivido, que tinham escapado em um barco salva-vidas ou sobre uma balsa. Haviam sido recolhidas. ou. — O mar de Java. Tubarões. O pesadelo pessoal de Judith. Apagar este detalhe. —. porém acho que elas não tiveram nenhuma chance. Jess era muito pequenina. E minha mãe nunca foi grande coisa como nadadora.
- Você tem mais irmãos?
— Não.
De novo a primeiro-oficial baixou os olhos para os papéis em sua mesa os quais eram os seus próprios — Judith percebia agora — o registro completo de sua carreira no Serviço, desde aquele dia após a morte de Edward, quando viajara de Penzance a Devonport a fim de alistar-se no Serviço Feminino da Marinha Real.
Aqui diz que o capitão e a sra. Somerville são seus parentes mais próximos.
— Exato. Eu não poderia colocar meus pais, porque ambos estavam no estrangeiro. E ele agora é o contra-almirante Somerville, está servindo em Colombo, como chefe do Estaleiro Naval. Biddy Somerville é irmã de minha mãe. — Isto a fez recordar. — Prometi a ela que passaria um cabograma, assim que tivesse quaisquer notícias. Preciso fazer isso. Biddy está esperando.
— Podemos cuidar disso. Escreva o que quer dizer a ela e uma das wrens providenciará o envio do cabograma.
— Obrigada.
— Entretanto, você tem outros amigos no Ceilão, não é mesmo? Estou falando dos Campbell. Não passou sua última folga com eles, no interior?
— Sim, passei. Eles conheciam meu pai e minha mãe.
— Só os mencionei, por achar que você deveria ter alguns dias de licença. Para afastar-se de Trincomalee. Não gostaria de ficar com eles novamente?
Apanhada de surpresa, Judith considerou penosamente tal sugestão. Nuwara Eliya. As montanhas, o ar fresco e a chuva. As encostas das plantações de chá, parecendo acolchoadas de verdura, e a fragrância dos eucaliptos recendendo a limão. O bangalô casualmente confortável, lareiras acesas ao anoitecer. Entretanto, hesitou, e por fim meneou a cabeça.
— Não se sente tentada?
— Realmente, não. — Naquela sua última folga, os Campbell haviam-lhe proporcionado dias maravilhosos, porém não seria a mesma coisa. Não agora. Agora, ela achava que não conseguiria enfrentar uma sucessão de festas no Colina Clube, e tampouco legiões de caras novas. Ansiava por algum lugar tranqüilo. Um lugar para lamber as feridas.
— Os Campbell são incansavelmente gentis, mas. — Judith tentou explicar. —Acontece apenas que...
Ela não precisou dizer mais. A primeiro-oficial sorriu.
— Compreendo perfeitamente. Os amigos, mesmo os mais íntimos, podem ser cansativos. Portanto, aqui vai outra sugestão. Por que não ir a Colombo e ficar algum tempo com o contra-almirante Somerville? Sua residência oficial fica na Gale Road, ele certamente dispõe de bastante espaço e haverá criados para cuidar de você. O mais importante de tudo é que estará em família. Neste exato momento acho ser isto o que realmente necessita. Tempo para chegar a um acordo com o que acabei de dizer-lhe. Oportunidade para analisar o sucedido. talvez até mesmo fazer alguns planos para seu futuro.
Tio Bob. Neste ermo divisor de águas em sua vida, Judith não conhecia outro homem no mundo com quem preferiria estar. Entretanto...
— Ele passa o dia inteiro trabalhando — disse. — Não quero ser um estorvo.
— Não acredito que chegue a sê-lo.
— Ele falou que eu poderia ir e ficar lá. Escreveu para mim, assim que chegou em Colombo. Então, disse que tudo estaria bem.
—Neste caso, o que estamos esperando? Por que não telefona para ele e se entendem pessoalmente?
— Bem, mas. e quanto ao meu trabalho? O capitão Spiros, o Adelaide
— Conseguiremos uma escriturária temporária para ajudar a Wren Wailes.
— Quando eu poderia ir?
— Creio que imediatamente. Portanto, não percamos tempo.
— Até quando eu poderia ficar em Colombo?
—Vejamos. Você tem direito a duas semanas de folga, mas penso que poderíamos acrescentar a licença por morte de familiar. Isso lhe daria um mês.
— Um mês
— Por favor, sem objeções, porque lhe estou dando apenas o que merece.
Um mês. Um mês inteiro com tio Bob. Novamente em Colombo. Judith recordou a casa onde tinha morado durante seus primeiros
Os primeiros anos de vida. Recordou sua mãe, costurando na varanda, o frescor do vento marinho vindo do oceano Índico.
A primeiro-oficial esperava pacientemente. Judith ergueu o rosto e fitou-a dentro dos olhos. A mulher sorriu encorajadoramente.
E então?
A senhora está sendo tão gentil comigo. — foi tudo o que judith conseguiu dizer.
É o meu trabalho. Está combinado, então? —Após um instante, Judith assentiu. — Excelente. Neste caso, passemos aos arranjos necessários.
De: Gabinete da primeiro-oficial SFMR, Trincomalee Para: Sra. Somerville, Dower House, Rosemullion, Cornualha, Inglaterra
22 de agosto de 1945
QUERIDA BIDDY INFELIZMENTE MÁS NOTÍCIAS PT BRUCE DUNBAR FALECEU DISENTERIA PRISÃO CHANGI1943 PT MOLLY E JESS PERECERAM QUANDO RAJAH OF SARAWAK TORPEDEADO MAR DE JAVA PT TELEFONEI BOB EM COLOMBO PT AMANHÃ PARTINDO UM MÊS LICENÇA FICAR COM ELE PT ESCREVEREI DE LÁ PT NÃO FIQUE TRISTE POR MIM PT ABRAÇOS VOCÊ E PHYLLIS PT JUDITH.
De: Somerville, Rosemullion, Cornualha, Inglaterra Para: Judith Dunbar ac contra-almirante Somerville, Galle Road, 326. Colombo, Ceilão
23 de agosto de 1945
TELEGRAMA RECEBIDO PT ABALADA POR NOTÍCIAS PT GRATA VOCÊ ESTAR COM BOB PT RECEBA NOSSOS PENSAMENTOS AMOROSOS PT EU E PHYLLIS ESTAMOS AQUI SUA ESPERA VOLTA AO LAR PT BIDDY
Residência do Contra-Almirante
Galle Road, 326
Colombo
Quinta-feira, 28 de agosto de 1945
Querida Biddy
Demorei algum tempo para escrever-lhe esta. Peço que me desculpe. Obrigada pelo cabograma. Fez com que me sentisse melhor, apenas por ter notícias suas e saber que, embora estejamos a mundos de distância, temos os mesmos pensamentos tristes e talvez possamos consolar uma à outra. Entretanto, eu gostaria que estivéssemos juntas. O pior é saber que eles morreram há tanto tempo, sem jamais sabermos e nunca termos recebido uma só notícia. As condições em Changi eram indizíveis, sendo um milagre algum homem conseguir sobreviver a elas. Excesso de doenças, pouca alimentação e nenhum cuidado adequado. Pobre papai! Entretanto, estou certa de que havia amigos à sua volta, de modo que não ficou inteiramente só no fim. Quanto a Molly e Jess, eu apenas rezo para que tenham tido uma morte instantânea, quando The Rajah ofSarawakfoi torpedeado. Para começar, quase o pior foi saber que nada me restou deles, nenhum objeto pessoal, nem uma só recordação. Foi como se tudo houvesse sido engolido por um grande abismo negro. Então, lembrei-me dos caixotes de mudança, de tudo o que embalamos, quando ainda morávamos em Riverside, antes de mamãe e Jess partirem para Colombo. Devem estar armazenados em algum lugar. Quando eu finalmente voltar para casa, talvez possamos procurá-los juntas.
Penso também em Phyllis, porque gostava muito de mamãe, e fico satisfeita por vocês duas estarem juntas.
Quanto a mim, estou sã e salva aqui com Bob. (Nada de tio mais, ele disse que estou muito velha para isso.) Estou levando uma vida de inaudito luxo.
Bem, é melhor eu começar pelo começo.
A primeiro-oficial que me deu a notícia foi extremamente bondosa e compreensiva. Creio que esperava ver-me prorromper em lágrimas histéricas, porém só mais tarde é que fiz isso. Ela obteve notícias de mamãe, papai e Jess através da Cruz Vermelha, que gradualmente vai descobrindo o destino de todos, seguindo a pista de pessoas desaparecidas e investigando os campos de prisioneiros, de modo que a notícia é absolutamente oficial. Ela então me disse que eu devia tirar uma licença, e de seu próprio gabinete telefonamos para Bob. E a resposta dele foi: "Ela pode vir imediatamente."
A primeiro-oficial providenciou tudo. Em vez de tomar um trem de Trincomalee para Colombo (terrivelmente quente, sujo e fuliginoso), fui levada atéKandirem um carro do estado-maior, partindo de Trincomalee às seis da manhã. O capitão Curtice (HMS Highflyer) e sua secretária iam para lá, a fim de participarem de uma reunião de estado-maior no QG Aliado. Eles ocuparam o assento traseiro do carro e eu segui na frente com o motorista, o que foi ótimo, já que assim ficava dispensada de conversar. A viagem é muito bonita, embora de carro demore bastante, porque a estrada é cheia de curvas e atravessa aldeias, com criancinhas acenando para nós, e macacos por todos os cantos. Mulheres sentadas ao lado de suas casas teciam folhas de palmeira que logo se tornariam tetos, e homens trabalhavam com elefantes. Paramos para almoçar em uma casa de descanso perto de Sigiriya (muito gentilmente, o capitão Curtice convidou-me para almoçar). Em Kandir, passei a noite em outra casa de descanso, depois disso pegando carona em outro carro do estado-maior até Colombo. Cheguei lá por volta de cinco da tarde, entregue a domicílio.
Bob não estava trabalhando, mas em casa, à minha espera. Quando o carro parou, ele saiu da porta principal, desceu a escada e, enquanto eu me esgueirava do carro, em meu uniforme já um tanto sujo, Bob simplesmente me tomou nos braços e me abraçou, sem dizer palavra.
Melhor do que ninguém, Biddy, você sabe como são amplos e confortáveis os abraços dele, todos exalando o cheiro de camisas limpas e loção para cabelos Royal Yacht. E foi nesse momento que me fiz em pedaços e chorei como uma criancinha não tanto por mamãe, papai e Jess, mas porque me sentia extremamente cansada, e por ser tão bom apenas estar com ele sabendo-me em total segurança, sem ter mais que pensar, planejar ou ser corajosa sozinha.
Bob está com excelente aparência. Talvez mais alguns cabelos brancos e linhas no rosto, mas, fora isso, continua como antes. Nem mais gordo, nem mais magro.
A casa dele é encantadora, um bangalô, porém enorme. Tem sentinelas nos portões e bandos de criados. Não fica no lado da Galle Road dando para o mar, mas no oposto, possuindo um amplo jardim sombreado, cheio de árvores e arbustos, belos e floridos. Os alojamentos do Serviço Feminino da Marinha Real ficam seis casas abaixo, na mesma rua, e quase em frente está aquela em que moramos, antes de papai ir para Cingapura. Não é a mais espantosa coincidência? Não sei quem agora mora lá. Talvez seja alguma família do Exército Indiano.
A casa de Bob. A gente sobe a escada e entra em um enorme vestíbulo, depois há portas duplas dando para uma ampla sala de estar. Esta tem portas que se abrem para a varanda e, um pouco além, vê-se um outro belo e vastíssimo jardim. Em ambos os lados há quartos e banheiros. (Tenho um quarto fresco e adorável, com piso de mármore, chuveiro e banheiro só para mim.) Como você provavelmente já sabe, Bob divide a casa com um homem chamado David Beatty, um civil que trabalha para o Governo. Ele mais parece um professor, sendo sumamente inteligente e erudito, além de falar pelo menos seis idiomas, o hindu e o chinês entre estes. Ele tem seu próprio estúdio e passa muito tempo trabalhando lá, mas sempre se junta a nós para jantar ao anoitecer, mostrando-se muito simpático e divertido, de uma forma um tanto seca e escolástica.
Conforme disse, há criados por toda parte. O mordomo é um homem encantador, um tamil chamado Thomas. E alto, tem a pele escura como uma uva-passa, e sempre usa uma flor atrás de uma orelha. Possui uma enormidade de dentes de ouro. Prepara drinques e serve as refeições, porém não creio que deva fazer muita coisa mais, havendo tantos outros criados de categoria inferior. De qualquer modo, se ele não estivesse aqui, tenho certeza absoluta de que toda a administração desta casa iria por água abaixo.
Para cúmulo, Thomas é conhecido por preparar uma secreta oção mágica, que dizem ser infalível para curar ressacas. Como vê, uma utilíssima especialidade. Inicialmente, fiquei três dias sem fazer nada, limitando-me a dormir, descansar na varanda, ler livros e ouvir maravilhosas músicas na vitrola de Bob (recordações de muito tempo atrás, em Keyham Terrace). Ele e David Beatty saem para trabalhar todas as manhãs, é claro, portanto fico sozinha, mas sem o menor problema e em absoluta tranqüilidade, com Thomas por perto, volta e meia me trazendo algo fresco para beber.
Eu não tenho de ficar aqui sem fazer nada, porque Bob tem dois carros e dois motoristas à sua disposição. Um carro do estado-maior da Marinha, com um motorista marinheiro, vem apanhá-lo todas as manhãs a fim de levá-lo para trabalhar, e o traz de volta ao anoitecer. Entretanto, ele tem também seu próprio carro, com um motorista chamado Azid, e já disse que poderei usá-lo sempre que quiser, para fazer compras ou outra coisa qualquer. Entretanto, ainda não me sinto com disposição para fazer algo que exija planejamento ou energia.
A noite, depois do jantar, com David Beatty de volta ao seu estúdio, nós temos conversado muito. Fazemos todo o percurso de volta ao passado e recordamos cada coisa, cada pessoa. Falamos sobre Ned e até mesmo sobre Edward Carey-Lewis. Bob me disse que está pretendendo deixar a Marinha. Acha que tendo lutado em duas guerras mundiais, isso é o bastante para qualquer homem. Ele quer ter algum tempo para ficar com você. Por outro lado, a bomba atômica alterou a face do futuro, o poder marítimo nunca mais será tão vitalmente importante, e a Marinha Real que ele conheceu a vida inteira agora está fadada a ser reformulada, modernizada e modificada por completo. Bob me contou que já faz algum tempo vocês vêm pensando em vender a casa de Devon e mudar-se para a Cornualha. Não gostaria que fizessem isso por minha causa, mas não posso imaginar nada que achasse mais maravilhoso. Entretanto, por favor, não deixe a Dower House enquanto eu não voltar para casa!
Esta carta parece eternizar-se!
Em minha terceira noite, quando Bob chegou em casa disse que eu já ficara tempo demais sozinha e que ia levar-me a um coquetel a bordo de um cruzador visitante. Assim, tomei uma ducha, enfiei um vestido adequado, e lá fomos nós. Foi muito divertido. O coquetel teve lugar no tombadilho superior, e cruzamos o porto em um veloz barco a motor do navio. Havia uma enormidade de caras novas, pessoas que jamais tinha visto antes — civis e do Exército — uma verdadeira mistura.
Em meio a toda essa socialização, Bob apresentou-me a um homem chamado Hugo Halley, capitão-de-corveta também servindo nos escritórios da Chefia do Comando. Findo o coquetel, oito de nós (incluindo Hugo) voltamos para terra e jantamos no "Galle Face Hotel". Tudo continuava exatamente como eu me lembrava, só que com muito mais gente. Hugo veio almoçar no domingo passado, e depois fomos de carro até Mount Lavinia; pretendíamos nadar, porém as ondas eram enormes e havia muita correnteza, de modo que ficamos sentados na praia por algum tempo e depois retornamos a Colombo, indo nadar na piscina do Clube dos Oficiais. Lá também há quadras de tênis, e pode ser que joguemos qualquer dia destes. Sei perfeitamente que se estivéssemos juntas, seus ouvidos estariam ardendo, e você ansiosa por detalhes, portanto, aqui vão eles. Hugo é muito simpático, extremamente apresentável, agraciado com um idiota senso de ridículo, e é solteiro. Não que, no momento, isto tenha a menor importância ou faça alguma diferença. Eu apenas o acho uma pessoa agradável como acompanhante. Assim, por favor, não comece a tecer fantasias e sonhar com um vestido branco, desenhado para ficar bem no lado das costas! De qualquer modo, ele me convidou para outra festa, em um outro navio, de maneira que precisarei tomar alguma providência quanto ao meu guarda-roupa. As mulheres de Colombo são muito elegantes, e meus desbotados trajes de Trincomalee fazem-me parecer uma parenta pobre.
Agora estou chegando ao fim. É curioso, mas começo a perceber como era pesada aquela enorme carga de incerteza, sem nunca saber ao certo o que tinha acontecido a Bruce, Molly e Jess. Agora, pelo menos, não tenho que ficar mais pensando nisso. O vácuo que eles deixaram é impreenchível, mas pouco a pouco está começando a ser novamente possível alguma espécie de futuro. Assim sendo, estou bem. Não precisa preocupar-se comigo.
A questão é que estou agora com vinte e quatro anos, sendo algo depressivo perceber que, em todos estes anos, pareço não ter realizado coisa nenhuma. Nem mesmo tive uma instrução adequada, por nunca ter ido para a Universidade. Retornar à Inglaterra e recolher os fios soltos será como começar tudo novamente, desde o início. Entretanto, ainda preciso descobrir o início de quê. Seja como for, creio que acabarei descobrindo.
Muitas saudades, querida Biddy, para você e todos daí.
Judith
Sete da manhã; uma hora perolada e quieta, a mais fresca do dia. Descalça, envolta em um robe fino, Judith saiu de seu quarto, desceu o corredor de mármore, cruzou a casa e chegou à varanda. O mali regava o gramado com uma mangueira e era possível ouvir muito trinar de pássaros, acima do distante rumor do trânsito na Galle Road.
Ela viu que Bob já estava lá, fazendo o breakfast em tranqüila solidão, tendo comido uma fatia de mamão-papaia e agora bebendo a terceira xícara de café puro. Ele passava os olhos pela edição matutina do The Ceylon Times, não a ouvindo chegar.
— Bob.
— Santo Deus! — Apanhado de surpresa, ele deixou rapidamente o jornal de lado. — O que está fazendo em pé tão cedo?
Judith inclinou-se para beijá-lo e depois sentou-se à mesa, diante dele.
— Eu queria fazer-lhe um pedido.
— Coma alguma coisa, enquanto pede.
Ouvindo vozes, Thomas já estava a caminho, trazendo uma bandeja com outro prato de mamão, torradas feitas na hora e o bule China para Judith. Nesta manhã, ele pusera um jasmim atrás da o urelha.
— Obrigada, Thomas. - Os dentes de ouro cintilaram um sorriso.
— Um ovo cozido?
— Não, apenas mamão.
Thomas arranjou a mesa até dar-se por satisfeito, e depois recuou.
— O que você quer pedir?
De cabelos grisalhos, muito queimado de sol, barbeado e de camisa branca limpa, com suas ombreiras de contra-almirante pesadas de alamares dourados, Bob tinha uma aparência e um cheiro sumamente agradáveis.
— Preciso fazer algumas compras. Você poderia emprestar-me o carro e Azid para levar-me?
—Naturalmente. Não precisava levantar tão cedo para perguntar.
— Achei que seria melhor assim. De qualquer modo, já estava acordada. — Ela bocejou. — Onde está David Beatty?
— Já saiu. Tinha uma reunião hoje bem cedo. O que pretende comprar?
— Algumas roupas. Não tenho nada para vestir.
— Já ouvi isso antes.
— É verdade. Hugo tornou a convidar-me para sair e estou sem vestidos. Um problema e tanto.
— Qual é o problema? Falta de dinheiro?
— Estou bem provida. Acontece que nunca fiz muitas compras antes e não sei se sou boa nisso.
— Pensei que todas as mulheres fossem ótimas em suas compras.
— Isso é uma generalização. Tudo exige prática, inclusive fazer compras. Mamãe sempre era um pouco tímida quando precisava sair para comprar coisas; por outro lado, nunca tinha muito para gastar, na maioria das vezes. E depois que eu e Biddy ficamos morando juntas, a guerra estava em andamento e tudo se resumia a cupons para roupa e horrendos trajes funcionais. Era bem mais fácil não ter de escolher e reformar as roupas velhas. — Ela estendeu a mão para o bule e encheu uma xícara de chá escaldante. — A única pessoa que eu sempre soube ser experiente e perita no assunto foi Diana Carey-Lewis. Ela dispara através das casas Harvey Nichols, Debenham e Freebodys como uma faca quente cortando manteiga, e os balconistas nunca ficavam irritados ou entediados com ela. Bob começou a rir.
— Acha que eles vão ficar irritados e entediados com você?
—Não, mas seria ótimo ter uma amiga realmente decidida para ir comigo.
— Receio que isso esteja fora do meu alcance, porém, a despeito de sua falta de experiência, tenho certeza de que se sairá muito bem. A que horas pretende sair?
— Antes que fique muito quente. Que tal nove horas?
— Direi a Thomas para falar com Azid. Bem, meu carro deve estar esperando e eu preciso ir. Tenha um bom dia.
As lembranças que Judith tinha das ruas e lojas de Colombo eram vagas, sendo ainda mais vagas a exata localização das mesmas. Entretanto, disse a Azid para levá-la a Whiteaway & Laidlaw, a loja preferida de Molly e em cuja direção ela gravitava, da mesma forma como, em Londres, as mulheres gravitavam para a Harrods. Uma vez lá, Azid a deixou na calçada quente e movimentada, depois perguntou quando deveria voltar para apanhá-la.
Parada ao sol ofuscante, recebendo cotoveladas e empurrões dos transeuntes, Judith considerou a pergunta. — Às onze? Sim, onze horas.
—Estarei esperando. — Ele apontou para os próprios pés. —Aqui. Ela subiu os degraus à sombra do enorme toldo e cruzou a entrada. A princípio, apenas confusão. Em seguida conseguiu orientar-se, e, subindo a escada interna, encontrou o rumo do departamento de vestidos, uma caverna de Aladim tomada por espelhos e modelos, prateleiras, trilhos e uma impressionante profusão de roupas. Não sabia por onde começar e estava titubeante, parada no meio do recinto, quando foi salva pela aproximação de uma vendedora, trajando saia preta e uma blusinha branca. Uma eurasiana magra e ossuda, com enormes olhos escuros e cabelos negros presos por uma fita.
— Gostaria que a auxiliasse? — perguntou a jovem timidamente.
Depois disso, as coisas ficaram bem mais fáceis. O que devo comprar? e Judith tentou pensar. Vestidos para ir a coquetéis e um longo para dançar. Vestidos de algodão para usar durante o dia.
— Nós temos de tudo. A senhorita é muito esbelta. Venha e veremos.
Peças e mais peças foram tiradas ao acaso de cabides de armar empilhando-se no braço da vendedora.
— Deverá experimentar todos eles, senhorita.
Em um compartimento de provas encortinado, Judith despiu sua blusa e a saia de algodão. Em seguida, vestido após vestido foram deslizados por cima de sua cabeça, admirados, considerados e depois removidos, porquanto um outro seria experimentado. Sedas, algodões e finos voais; brilhantes matizes azul-pavão, tons pastéis e a pura simplicidade do preto e do branco. Um traje de baile de seda indiana rosa para sari, com estrelas douradas bordadas à volta da bainha. Um vestido para coquetel em crepe da china azul-forte, salpicado de enormes flores brancas. Um envoltório de shantung cor de trigo, muito simples e sofisticado, e por fim um vestido negro em musseline de seda, suas saias vaporosas forradas de anáguas, com uma imensa gola de organza branca contornando o fundo decote.
Era angustiante ter de escolher, mas finalmente ela comprou o vestido de baile e três para coquetel (incluindo o irresistível negro de gola branca). Além destes, mais três vestidos de uso durante o dia e um vestidinho para tomar sol, com alças nos ombros.
A essa altura, dissolvidas todas as reservas, Judith via-se dona da situação. Vestidos novos precisavam de acessórios novos. Partiu deli-beradamente em busca do departamento de calçados, e lá comprou sandálias, sapatos fechados de salto em cores vivas e uma audaciosa sandália com saltos altíssimos, de correias pretas cruzadas atrás do calcanhar, que seria usada com o vestido negro. Em seguida, adquiriu bolsas de mão, uma dourada e uma preta para noite, e uma linda para usar a tiracolo, em macio couro vermelho. Depois chegou a vez de echarpes e braceletes, um xale de caxemira, óculos escuros e um cinto de couro marrom, com fivela de prata gravada.
De volta ao andar térreo, dirigiu-se ao departamento de cosméticos, perfumado e cintilando sedutoramente, os balcões cheios de caixas em tons pastel e frascos, vidros trabalhados de perfume, batons de envólocros dourado, compactos incrustados de pedras, e pufes para pó em penugem de cisne, dentro de envoltórios de chifon. De dar água na boca. Havia muito que ela usara o último dos seus produtos Elizabeth Arden, e Trincomalee não sobressaía nem um pouco no setor de lojas adequadas de beleza. Assim, Judith comprou batons e perfumes, talcos e sabonetes, lápis para sobrancelhas, sombra de olhos e rimel, óleo para banho, xampus, esmalte de unhas e creme para as mãos.
Já passava da hora marcada para encontrar Azid, porém ele estava lá, quando ela cambaleou para a rua carregada de caixas, sacolas e embrulhos. Ao vê-la, o motorista adiantou-se rapidamente para aliviála da carga, deixou tudo no banco traseiro do carro e manteve a porta aberta para que ela entrasse e sentasse exausta, no couro fervente do assento.
Azid sentou-se ao volante e bateu a porta. Olhou para Judith pelo retrovisor e sorriu.
— A senhorita divertiu-se?
— Sim, Azid. Obrigada. Lamento ter feito você esperar.
— Não tem importância.
Rodando de volta à Galle Road, cercada por suas compras embrulhadas em papel branco, as vidraças do carro arriadas e a brisa refrescando seu rosto suado, Judith percebeu duas coisas. Uma delas, que pelo menos durante duas horas não havia pensado em Molly, em seu pai ou em Jess. A outra era que, embora acalorada e exausta, sentia-se ao mesmo tempo estimulada e... futil. Não havia outra palavra. Refletiu nisso por um instante, depois concluiu que, pela primeira vez na vida, entendia a compulsão que impelia as mulheres a adquirir coisas; a comprar e gastar dinhiro, a acumular à sua volta uma imensidão de bens materiais, luxuosos, e inclusive desnecessários.
Parecia-lhe que ir às compras fornecia consolo quando uma mulher se sentia infeliz, um burburinho de excitamento quando entediada, e de auto-indulgência, se houvesse sido rejeitada. Talvez fosse frívolo e extravagante, mas seguramente era melhor do que a autopiedade, a busca de consolo em amores casuais ou na bebida.
Ela percebeu que sorria. Aquele vestido negro era delicioso. Devia fazer compras outra vez.
Então recordou todo o dinheiro que tinha gasto, e acrescentou uma prudente objeção: mas não com muita freqüência.
Caía a noite. Além das janelas abertas, uma palmeira silhuetava-contra um aveludado céu azul, pontilhado pelas primeiras estrelas. Judith estava sentada diante de seu toucador e fixava um brinco na orelha. Da varanda, onde Bob Somerville tinha a companhia de um uísque com soda e seu cachimbo, vinha o som de um piano, amortecido pela distância e pela porta fechada, as notas abafadas espalhando-se pela casa como gotas d'água. Ele colocara um disco na vitrola, a música continuando a ser seu consolo e prazer constantes. Ela parou para ouvir. O Tema de Rachmaninoff sobre Paganini. Estendeu a mão para o outro brinco. Após colocá-lo, escolheu um dos novos batons, desenroscou a tampa dourada e concentrou-se em pintar cuidadosamente os lábios. No espelho, o reflexo de sua imagem a contemplava sob a luz suave; olhos cinzentos orlados de cílios escurecidos, sombras esfumadas abaixo dos malares, a curva dos lábios avermelhados. Havia lavado os cabelos, que jaziam macios e curtos sobre sua cabeça, louros e queimados pelo sol.
Perfume. O novo frasco. "UHeure Bleu". Com o aplicador, Judith tocou a base do pescoço e o interior dos pulsos. O perfume encheu suas narinas e induziu uma sensação de luxo quase sibarítico, fazendo-a pensar imediatamente em Diana Carey-Lewis, em como ela apreciaria e aprovaria esta nova e sofisticada Judith.
Em pé, ela afastou o vestido dos ombros e o deixou cair ao chão. Enfiou os pés nas sandálias de salto alto e tiras cruzadas nos calcanhares, depois foi apanhar o vestido que havia estendido sobre a cama. Vestiu-o, deixando-o escorregar por sobre a cabeça, ajeitou as saias que se enfunavam transparentes como nuvens negras, e então, com a maior inocência, procurou fechar o zíper.
Era um problema e tanto. O zíper percorria as costas do corpete de alto a baixo, mas era de manejo impossível pela pessoa que estivesse usando o vestido. Pela manhã, quando o experimentara, a vendedora é que o tinha aberto e fechado, de modo que a dificuldade lhe passara despercebida. Entretanto, era evidente que semelhante traje requer a ajuda de outra pessoa. De uma camareira, talvez, um marido ou mesmo um amante residente. Judith, contudo, não possuía nenhum destes úteis apêndices, logo, Bob é que teria de ser convocado. Pegando a bolsa de noite preta, ela saiu do quarto e desceu o corredor à procura dele, os saltos altos repicando no piso de mármore e o vestido, quase imaterial, escorregando de seus ombros.
Ele jazia reclinado em uma comprida poltrona, com uma só lâmpada por iluminação, seu uísque ao alcance, o cachimbo por companhia, e Rachmaninoff. Parecia em tal estado de beatitude, que chegava a ser vergonhoso perturbá-lo.
— Bob?
— Olá.
— Você vai ter de fechar meu zíper.
Bob riu, endireitou o corpo para uma posição sentada e ela ficou de joelhos, as costas viradas para ele, que executou a tarefa solicitada com a perícia de um homem casado há muito. Judith levantou-se em seguida e virou-se de frente. De súbito, sentia-se um pouco cônscia de si mesma.
— Gosta dele?
— É sensacional. Comprou-o esta manhã?
— Sim. Foi terrivelmente caro, mas não pude resistir. Também comprei sapatos. E uma bolsa.
— Está com uma aparência de um milhão de dólares. E disse que não sabia fazer compras!
— Não foi difícil. Eu aprendi. —Ela se sentou na extremidade da comprida cadeira, de frente para ele. — Divino Rachmaninoff! Eu gostaria que você fosse também.
— Para onde vocês vão?
— Para um navio. Acho que é um destróier australiano.
—Oh, essa festa... Aqui entre nós, também recebi um convite, mas declinei. Aleguei já ter um compromisso anterior. Portanto, não me deixe em situação delicada.
— Não deixarei. Prometo.
—Já tenho uma certa idade para ir dormir tarde todas essas noites. De vez em quando preciso de uma delas só para mim. De ir cedo para a cama.
— Se você for dormir cedo, como vou sair do meu vestido?
— Pode pedir a Thomas que puxe o zíper. Ele certamente ficará esperando até você voltar para casa.
— Thomas não ficaria embaraçado?
— Nada o deixa embaraçado.
A sineta da porta soou. Eles aguardaram. Ouviram Thomas no vestíbulo, a fim de abrir a porta da frente.
— Boa noite, sahib.
— Boa noite, Thomas.
— O almirante está na varanda.
— Obrigado. Conheço o caminho.
Um instante mais tarde ele estava lá, saindo da penumbra para as luzes acesas na casa, com emfardamento de gala e com uma aparência imensamente distinta. Tinha o quepe seguro sob o braço.
Judith sorriu para ele.
— Olá, Hugo.
Foi-lhe oferecido um drinque, que ele recusou polidamente. Já estavam um pouco atrasados e seriam bombardeados com coquetéis assim que estivessem a bordo.
— A caminho, então! — exclamou Bob, levantando-se. — Eu os acompanho até a porta.
Era evidente que mal podia esperar para ficar livre dos dois e ser deixado em paz com seu cachimbo e sua vitrola. Caminhou com eles até a porta da frente. Judith deu-lhe um beijo de boa-noite e assegurou que se divertiria. Depois entrou no carro de Hugo e eles partiram para sua noitada. Assim que cruzaram o portão, Bob fechou a porta da casa.
Era uma noite de lua-cheia, redonda e polida como prata, erguendo-se no leste, acima dos tetos da cidade. Seguiram pela Galle Road e depois cruzaram o Forte até o porto, no extremo oposto.
Um destróier australiano estava ancorado junto ao cais. Seu tombadilho superior cintilava com fieiras de luzes e o coquetel já se encontrava em pleno andamento. Judith subiu pela passarela atrás de Hugo, em direção ao rumor de vozes e entrechocar de copos. A reunião era semelhante à outra em que estivera com Bob, e percebeu alguns dos rostos lá vistos, reconhecíveis, mas sem que conseguisse ligá-los nomes. Com a mão em seu cotovelo, Hugo a guiou para onde se achava o comandante do barco, ao qual apresentaram-se e fizeram os corretos cumprimentos de apreço. Receberam drinques, e atenciosos cartiarros ofereceram-lhes canapés. Depois disso, tudo se resumiu à velha rotina das trocas de frases sociais, mais ou menos sem sentido, porém mesmo assim divertidas.
Pouco depois, separada de Hugo, mas conversando animadamente com dois jovens tenentes australianos, Judith sentiu uma mão que se fechava como garra em torno de seu pulso. Ao virar-se, viu à sua frente uma dama castigada pelo tempo, em um apertado vestido azul-pavão.
— Minha querida... já nos conhecemos. Bob Somerville apresentou-nos na outra noite. Moira Burridge. E você é Judith Dunbar. (Que vestido maravilhoso, adorei-o.) Onde está aquele homem divino?
A pressão da mulher afrouxou-se ligeiramente, e Judith pôde libertar o pulso. Um dos rapazes australianos afastou-se, expressando polidas escusas. O outro permaneceu estoicamente ao lado dela, com um sorriso fixo nos lábios, como se estivesse satisfeito.
— Preciso encontrá-lo. — Moira Burridge ficou na ponta dos pés (ela não era alta) e espiou em torno, acima da cabeça das outras pessoas. Tinha olhos enormes, pálidos como uvas verdes, e sua máscara começava a derreter e manchar. — Não vejo o malvado em lugar nenhum!
— Ele... ele não pôde vir. Tinha um compromisso anterior.
— Oh, que lamentável! Sem Bob, metade da animação destas reuniões desaparece. — Desapontada, ela voltou a atenção para Judith. — Então, quem trouxe você?
— Hugo Halley.
— Hugo? — Ela era o tipo de pessoa que, ao falar, chegava o rosto bem perto do de seu interlocutor. Judith procurou recuar, o mais discretamente possível, porém Moira Burridge apenas aproximou-se mais. — Quando foi que conheceu Hugo? Não faz mais de dois minutos que chegou aqui! Agora está hospedada com Bob, não é mesmo? Quanto tempo vai ficar em Colombo? Precisam ir ver-nos. Pretendemos dar uma festa. Bem, eu me pergunto qual seria o dia mais conveniente...
Judith murmurou algo sobre não ter certeza do que Bob estava fazendo.
— Vou ligar para Bob. Temos um apartamento no Forte. Rodney faz parte do estado-maior... — Um pensamento ocorreu-lhe. — Conhece Rodney, não? —Judith sentiu um pingo da saliva de Moira Burridge em sua face, mas era educada demais para limpá-la. — Não sabe quem é? Eu lhe mostrarei...
Um camareiro passou com uma bandeja de bebidas e, rápida como o raio, Moira Burridge deixou nela seu copo vazio, trocando-o por outro cheio.
—. lá está ele! Conversando com aquele homem de dois galões e meio, da Marinha Indiana.
Com certa dificuldade, Judith localizou o capitão Burridge. Era um homem incrivelmente alto e calvo, com o rosto em forma de pêra, mas antes que pudesse fazer algum comentário conveniente, Moira Burridge já mudava de assunto.
— Agora, diga-me uma coisa. Ainda não entendi bem quem você é. Sei que se trata de uma espécie de parente. Chegada da Inglaterra, ou estou totalmente enganada?
Judith disse qualquer coisa sobre Trincomalee.
— Oh, não me diga que está servindo lá! Pobrezinha! Que lugar pavoroso! Cheio de mosquitos... Não sei por que achei que você tinha vindo da Inglaterra. Temos filhos lá, ambos estudando. Passam os feriados com minha mãe. Há dois anos que não vemos os coitadinhos...
A única coisa boa em falar com Moira Burridge era que ela não esperava qualquer espécie de resposta. Judith assentia de quando em quando, meneava a cabeça ou sorria fugazmente, mas a sra. Burridge, bem azeitada pelo álcool, limitava-se a matraquear incessantemente, a torto e a direito. Era mais ou menos como ser atropelada por um trem. Encurralada, Judith começou a desesperar-se.
Hugo, onde está você? Volte logo e salve-me!
—... mas, para ser franca, na realidade, não sinto grande ansiedade em voltar para a Inglaterra. Temos uma casa em Petersfield, mas tudo está racionado, não há gasolina, e chove. O pior de tudo, não há criados. Ficamos terrivelmente mal acostumados, quando nos mandam para cá. Onde vão jantar quando isto aqui terminar? Por que não nos juntamos todos e comemos alguma coisa no "Grand Oriental”?
Que horror!
—Judith.
Ele voltara, e já não era sem tempo. Ela quase desfaleceu de alívio. O sorriso sedutor de Hugo pousou em Moira Burridge.
— Boa noite, sra. Burridge, como tem passado? Eu acabei de ter uma palavrinha com seu marido...
— Hugo, seu demônio! É só deixá-lo livre e já está escoltando moça mais bonita a bordo. Acabei de sugerir, que tal irmos todos) juntos? Nós vamos ao "GOH”....
— É muita gentileza sua — a expressão de Hugo se tornou de profundo pesar — mas receio não podermos. Fomos convidados antes para jantar, e já estamos atrasados. Ouça, Judith, creio que devíamos ir andando...
— Oh, mas que lamentável! Vocês têm mesmo que ir? Estávamos nos divertindo tanto, não é, meu bem? Com um mundo de coisas para falarmos e nem chegamos à metade! —A essa altura, ela já adernava ligeiramente em seus incertos saltos altos. — Não faz mal, sempre haverá outras vezes. Então, conversaremos...
Por fim, Judith e Hugo conseguiram afastar-se. No alto da passarela, Judith olhou para trás e viu que a sra. Burridge estava novamente com um copo cheio, encurralara uma outra relutante jovem e prosseguia a todo vapor com sua conversa vazia.
A salvo no cais e fora do alcance dos ouvidos do oficial de vigia, ela comentou para Hugo:
—Jamais conheci uma mulher tão terrível, em toda a minha vida.
— Sinto muito. Eu devia ter zelado melhor por você. — Ele a tomou pelo braço e começaram a caminhar pelo cais, contornando guindastes e caixas de mercadorias, passando sobre cabos e correntes. — Ela é uma famosa ameaça. Tenho pena do pobre Rodney, mas é um sujeito tão maçante, que certamente a merece.
— Pensei que fosse passar o resto da noite com ela.
— Eu não permitiria que isso acontecesse.
— Cheguei a pensar em alegar uma horrível dor de cabeça. Uma enxaqueca. Bem, Hugo, eu não sabia que tínhamos sido convidados Para jantar.
— Não fomos. Entretanto, reservei uma mesa no "Salamander" e não queria que Moira Burridge soubesse, porque então ela tentaria vir também.
— Nunca ouvi falar no "Salamander".
É um clube privado. Sou membro dele. Podemos jantar e dançar, a menos, naturalmente, que você prefira o "GOH" com os Burridges. Sempre posso voltar e dizer a eles que mudamos de idéia.
- Faça isso e dou-lhe um tiro!
— Neste caso, que seja o "Salamander"!
Eles haviam estacionado o carro perto dos portões do estaleiro naval. Acomodaram-se nele e partiram, deixando o Forte e rodando para o sul, até um distrito de ruas amplas e antigas casas holandesas, desconhecido para Judith. Chegaram em mais dez minutos. Um impressionante edifício de espigões, recuado da rua, com um portão alto e uma via circular para carros, que levava à entrada principal. Muito discreto sem letreiros ou luzes chamativas. Havia um porteiro de uniforme verde e magnífico turbante, além de outro indivíduo para estacionar o carro. Judith e Hugo subiram a ampla escadaria e cruzaram a porta esculpida que dava para um saguão de mármore, com pilares e um maravilhoso teto decorado. Cruzaram outra porta dupla e chegaram a um enorme pátio fechado, aberto para o céu e circundado por largos terraços, onde as pessoas jantavam. No centro ficava a pista de dança. A maioria das mesas já fora ocupada, cada uma iluminada por um abajur de cúpula vermelha, porém a única iluminação da pista de dança vinha da enorme lua subindo no céu. Uma orquestra tocava. Música sul-americana. Um samba, rumba ou algo assim. Vários casais rodopiavam pelo piso, alguns excelentes dançarinos, outros bem menos, mas fazendo o possível para seguir o compasso e o ritmo da astuciosa música.
— Capitão-de-corveta Halley.
O chefe dos garçons, em engomado jaleco e um sarongue branco, aproximou-se para recebê-los. Foram conduzidos à sua mesa, instalados em cadeiras e amplos guardanapos foram desdobrados e dispostos sobre seus joelhos. Os cardápios lhes passaram às mãos. Em passos silenciosos, o chefe dos garçons afastou-se.
Por cima da mesa, os olhos de ambos encontraram-se.
— Está tudo bem para você? — perguntou ele.
— Admirável. Não imaginei que tal lugar existisse.
— Foi inaugurado há apenas seis meses. Tem um número muito limitado de membros. Tive sorte bastante para ter uma localização no térreo. Agora há a lista de espera.
— Quem o dirige?
— Oh, um certo indivíduo. Meio-português, suponho.
— Aqui é como uma parte extraída de um filme imensamente romântico.
Ele deu uma risada.
- Não foi por isso que a trouxe.
por que me trouxe então?
por causa da comida, sua tolinha.
pouco depois o chefe dos garçons retornava com o garçom de vinhos escoltado, trazendo um balde de gelo que continha uma grande gelada garrafa verde. Judith estava pasma.
Quando foi que pediu isso?
Quando reservei a mesa.
Não é champanha, é? Não poderia ser!
Tem razão, não é, porém foi o melhor que pude conseguir.
Sabtheffrican.
— O que disse?
— Sul-africano. Do Cabo. Um humilde vinho branco borbulhante, sem histórico e quaisquer pretensões. Um verdadeiro conhecedor de vinho torceria o nariz. Eu, no entanto, acho-o delicioso.
A rolha foi removida, o vinho despejado, o balde deixado sobre a mesa deles. Judith ergueu sua comprida taça.
— A sua saúde — disse Hugo.
Ela sorveu um pequeno gole e, se aquilo não era champanha, então era a melhor coisa seguinte. Fria, cintilante de borbulhas, deliciosamente refrigerante. Ele pousou sua taça e disse:
—Muito bem. Tenho duas coisas a dizer-lhe, antes que passe outro momento.
— E o que tem a dizer?
— Primeiro. é algo que eu talvez já devesse ter dito. Em poucas palavras, você está simplesmente estonteante.
Ela ficou emocionada com o elogio. E também algo embaraçada e confusa.
— Oh,Hugo!
— Ora, não fique tão desconcertada. As mulheres inglesas são reputadamente ruins para lidar com elogios. As americanas, ao contrário são particularmente boas nisso. Aceitam palavras gentis e cumprimentos como algo que lhes é devido.
- Bem, foi muita gentileza sua. O vestido é novo.
- É um vestido encantador.
- E qual é a segunda coisa? Você disse que eram duas.
— Esta agora é um pouco diferente.
— Pois diga.
Pousando o copo na mesa, ele inclinou-se para frente.
— Estou a par do sucedido com sua família — disse. — Sei que acabou de ser informada de que nenhum deles sobreviveu. depois de Cingapura. Sei também que você ficou esperando notícias por três anos e meio, apenas para ser avisada de que não há mais esperanças. Entretanto, não quero começar a noite sem você saber que eu sei. Não desejo que palavras não ditas pairem entre nós, como algo que tivéssemos de contornar. uma espécie de área proibida.
Após um momento, Judith falou:
— Sim. Sim, você tem toda razão. Talvez eu devesse ter sido a primeira a dizer alguma coisa. Acontece apenas que não é muito fácil para mim.
Ele esperou e, então, como ela não terminasse a frase, disse:
— Não me incomodo se você falar a respeito, caso tenha vontade.
— De um modo geral, não tenho.
— Tudo bem.
Um pensamento ocorreu a ela.
— Quem lhe contou? — perguntou.
— O almirante Somerville.
— Ele lhe contou antes de nos conhecermos? Quero dizer, você sabia o tempo todo?
— Não. Foi somente no domingo passado, quando a levei de volta à Galle Road, depois que estivemos nadando. Você desapareceu por uns dez minutos, para trocar de roupa. Então, eu e ele aproveitamos este tempo e foi quando o almirante me contou.
— Você não me disse nada.
—Aguardei o momento mais apropriado.
— Fico satisfeita por você não ter sabido antes. Caso contrario, desconfiaria que estava apenas querendo ser gentil comigo.
— Não entendi.
— Oh, sabe como são essas coisas. Estou levando minha sobrinha um pouco tristonha a uma festa. Quero que você a distraia.
Hugo riu.
— Fique certa de que não tenho muito jeito com sobrinhas tristonhas. Vendo alguma à minha frente, sou capaz de correr mais de um quilômetro.
Houve uma breve pausa. Então, ele disse:
Muito bem, assunto encerrado. Agora e para sempre?
— Acho melhor assim.
Falemos de outras coisas. Quando volta para Trincomalee?
Somente daqui a três semanas. Devo apresentar-me para trabalhar na manhã de segunda-feira. Bob vai ver se me consegue uma carona até Kandy, e de lá sigo para Trincomalee.
— Por que não vai de avião?
— Teria de ser um avião da RAF, e não é fácil conseguir caronas.
— Está querendo voltar?
— Não particularmente. Agora, toda a urgência perdeu o sentido. Terminada a guerra, suponho que seja apenas um caso de encerramento de atividades, com as pessoas sendo enviadas para casa pouco a pouco. Creio que o Adelaide, o navio aprovisionador de submarinos em que trabalho, e a Quarta Frota provavelmente serão despachados para a Austrália. Assim, terei que fazer algum trabalho com base em terra. — Judith estendeu a mão para sua taça, tomou outro gole do delicioso vinho e a deixou novamente sobre a mesa. — Em realidade, acho que já tive o suficiente disso tudo — admitiu. — O que de fato gostaria de fazer era embarcar em um navio de tropas e retornar à Inglaterra agora. Entretanto, não é provável que isso aconteça.
— E quando acontecer? O que fará então?
— Será o meu regresso ao lar. — Ela já lhe tinha falado sobre a Cornualha, a Dower House, Biddy Somerville e Phyllis, no dia em que haviam estado na praia em Mount Lavinia e ficaram olhando as ondas encapeladas vindo quebrar-se na areia. —Lá, não vou ter que procurar Um emprego e nem fazer algo que não tenha vontade. Deixarei meu cabelo crescer até a cintura, irei para a cama quando me aprouver e dela sairei quando me der na veneta, podendo ficar na farra até alta Madrugada. Levei uma vida inteira seguindo normas e regulamentos, o colégio, na guerra, com as Wrens. Já estou com vinte e quatro anos, ugo. Não acha que é hora de pagar um ou dois tributos à minha Juventude?
— Sem a menor dúvida. Entretanto, todos com a sua idade foram atingidos pela guerra. Uma geração inteira. Compreenda que em certas pessoas, isso teve um efeito exatamente contrário. Foi uma espécie de liberação. De backgrounds convencionais, empregos sem perspectiva, horizontes limitados. — Judith pensou em Cyril EdH aferrando-se à oportunidade de deixar a mina de estanho e, finalmente realizar a ambição de sua vida, que era ir para o mar. — Eu conheço pelo menos duas mulheres, bem-nascidas e casadas aos vinte e poucos anos, simplesmente porque não encontravam nada mais para fazer. Então veio a guerra e, aliviadas de maridos cansativos e com acesso aos franceses livres, poloneses livres e noruegueses livres, isso não se falando no exército dos Estados Unidos, elas começaram a divertir-se como nunca na vida.
— Será que voltarão para seus maridos?
—Espero que voltem. Como mulheres mais velhas e mais sensatas.
Judith riu.
— Oh, mas é claro. Ninguém tornará a ser o mesmo.
— Sim, este seria um mundo enfadonho, se isso acontecesse. Judith achou que ele estava sendo muito sensato.
— Quantos anos você tem? —perguntou.
— Trinta e quatro.
— Nunca quis casar-se?
— Dúzias de vezes, mas não em tempos de guerra. Nunca me agradou a perspectiva de ser morto, porém odiaria morrer sabendo que deixava para trás uma viúva e uma fieira de crianças sem pai.
— Certo, mas agora a guerra terminou.
— É verdade, porém meu futuro continua com a Marinha. A menos que eu fique marcando passo, seja considerado supérfluo ou transferido para a reserva e executando um trabalho enfadonho em terra.
O chefe dos garçons aproximou-se para recolher o pedido de ambos, o que demorou algum tempo, porque eles ainda nem tinham examinado o cardápio. Por fim, os dois escolheram as mesmas coisas, frutos-do-mar e frango. O homem renovou a bebida em seus copos e tornou a retirar-se, tão silenciosamente como antes.
Por um instante, ficaram em silêncio. Então, Judith suspirou.
— Por que o suspiro? — quis saber Hugo.
- Não sei. Suponho que seja a idéia de voltar para Trincomalee. É mais ou mienos como voltar para o internato.
Não pense a respeito.
Ela animou-se.
Sim, não vou pensar. Aliás, nem sei como chegamos a esta conversa tão séria.
.Talvez a culpa seja minha. Assim, ponhamos um ponto final nisso e comecemos a agir frivolamente.
Não sei bem como começar.
Pode contar-me uma piada ou sugerir um quebra-cabeça.
— Pena que não tenhamos chapéus de papel. Eles nos deixariam em evidência. Se começarmos a expor-nos, posso perder todos os meus privilégios aqui dentro e ser convidado a retirar-me. Pense no escândalo. Expulso do "Salamander". Moira Burridge adoraria, porque teria assunto para falar durante meses.
— Ela diria que foi merecido, por você contar mentiras e ser inamistoso.
— Acho que devemos fazer planos para as próximas três semanas e não perder um só momento. Assim, você voltará para Trincomalee com um brilho nos olhos e um lote de recordações agradáveis. Vou levá-la a Negombo, para mostrar-lhe o antigo forte português. É particularmente belo. Também nadaremos em Panadura, que é uma praia saída diretamente do Lagoa Azul. Talvez possamos ir de carro até Ratanapura. Na casa de descanso que existe lá, há velhos pratos de sopa colocados sobre mesas e cheios de safiras. Comprarei uma para você, a fim de que a incruste em sua narina. O que mais gostaria de fazer? Atividades esportivas? Podíamos jogar tênis.
— Não tenho raquete.
— Empresto-lhe uma.
— Depende. Que tal é como jogador?
— Brilhante. Sou o retrato da graça máscula, quando salto até a rede para felicitar o vencedor.
A orquestra tocava novamente. Nada de ritmo sul-americano agora, mas uma antiga e dolente melodia, solada pelo sax tenor.
- Só tenho amor para dar-lhe, benzinho, é o único que tenho de sobra, benzinho.
De repente, Hugo levantou-se.
— Vamos dançar — disse.
Os dois saíram para a pista de dança e Judith foi enlaçada nos braços dele. Como já imaginara, Hugo dançava com tranqüila agilidade, não arrastando um pé após outro e nem a girando pelapista como um aspirador de pó, dois imprevistos que o correr dos anos a tinham ensinado a manobrar. Ele a manteve bem junto do corpo, a cabeça inclinada, de modo a que seus rostos se tocassem. E não falava. Ali não havia necessidade de falar coisa alguma.
Poxa, eu queria ver você espetacular, benzinho. Não posso comprar diamantes da Woolworth's, benzinho. Até chegar meu dia de sorte, bem sabe disso, benzinho, Nada mais eu posso dar-lhe além de amor.
Por cima do ombro dele, Judith ergueu os olhos e contemplou a face da lua. Então, por um momento, sentiu-se tocada pela própria orla da felicidade.
Eram duas e meia da madrugada, quando ele a levou de volta à Galle Road. A sentinela abriu os portões para o carro, que rodou pela alameda até parar em frente ao pórtico da entrada principal. Eles saíram. O ar estava perfumado de flores do templo, e a lua brilhava tanto, que as sombras do jardim permaneciam negras como tinta nanquim. Judith parou ao pé dos degraus e se virou para ele.
— Obrigada, Hugo — disse. — Foi uma noite adorável. Toda ela-
— Incluindo a sra. Burridge?
— Pelo menos, ela nos fez rir. —Judith vacilou um instante, depois disse: — Boa noite.
Hugo pousou as mãos em seus braços e inclinou-se para beijá-la. Havia muito tempo que Judith não era tão intensamente beijada. Fazia ainda mais tempo desde que saboreara um beijo tão completamente. Passou os braços em torno dele e respondeu com uma espécie de agradecida paixão.
A porta da frente se abriu e eles foram apanhados em uma cunha de luz elétrica. Soltaram-se, divertidos, mas de maneira alguma embaraçados, e viram Thomas parado no alto dos degraus, suas feições escuras não mostrando desaprovação e nem satisfação. Hugo então desculpou-se por mantê-lo acordado até tão tarde, e Thomas sorriu, o luar refletindo-se em seus dentes de ouro.
Boa noite — repetiu Judith, e subiu a escada, cruzando a porta aberta.
Thomas a seguiu, fechando e aferrolhando as pesadas trancas atrás de si.
Depois disso, os dias sucederam-se rapidamente, fluindo cada vez mais depressa, de modo que, como acontece em todas as férias agradáveis, antes mesmo de haver tempo para perceber os dias tinham formado uma semana, depois outra e mais outra. A data agora era dezoito de setembro. Dentro de mais três dias, Judith deveria iniciar a longa viagem de volta a Trincomalee. Recomeçaria a datilografar relatórios infindáveis, tendo que chegar dentro do horário nos alojamentos; nada de lojas e nada da agitação de uma cidade sofisticada. Nada de uma casa encantadora e organizada para onde voltar. Nada de Thomas. Nada de Bob. E nada de Hugo.
Ele mantivera a palavra. Não devemos perder um só momento, havia dito. Ainda melhor era o fato de não parecer arrependido de sua promessa. Nunca entediado e nunca entediando. Embora visivelmente encantado com a companhia dela e apreciando o tempo que Judith Passava ao seu lado, Hugo se mantivera ternamente sem exigências, Permitindo que ela se sentisse segura e protegida, nem por um momento assediada.
A essa altura, eles se tinham tornado tão íntimos e à vontade um com o outro, que podiam até mesmo discutir o assunto, enquanto curtiam as areias desertas e escaldantes de Panadura, secando-se ao sol aPós nadarem.
-—.,. não é que não a considere encantadoramente atraente ou que não queira fazer amor com você. Aliás, se fizesse, poderia ser intensamente agradável para nós dois. Entretanto, este não é o momento apropriado. Você se encontra demasiado vulnerável. É como uma convalescente, precisa de um pouco de paz. De tempo para cicatrizar suas feridas, colocar-se outra vez no rumo certo. A última coisa de que precisa é do trauma de um envolvimento físico. E de um caso sentimental imprudente.
— Não seria imprudente, Hugo.
— Bem, talvez tolo. Você decide.
Ele tinha razão. A idéia de precisar tomar qualquer espécie de decisão era um pouco aterradora. Ela desejava apenas deixar-se levar pela correnteza, tranqüilamente, seguir ao sabor da maré.
— Não pense que sou virgem, Hugo.
— Minha querida garota, nem por um momento imaginei que você fosse.
—Já dormi com dois homens. E amei muito os dois, mas também os perdi. Desde então, tenho evitado amar novamente. É doloroso demais. Leva muito tempo para cicatrizar.
— Eu me esforçaria ao máximo para não feri-la. Entretanto, não desejo confundir-me com suas emoções. Não agora. Fiquei gostando demais de você.
— Se eu pudesse ficar em Colombo... se não precisasse voltar para Trincomalee... se nós tivéssemos mais tempo...
— Que punhado de "se"! Isso tornaria as coisas muito diferentes?
— Oh, Hugo, eu não sei!
Ele lhe ergueu a mão e pressionou um beijo na palma.
— Eu também não sei. Portanto, vamos nadar outra vez.
Ao volante, Azid cruzou os portões abertos, passou junto à sentinela e rodou pela alameda em curva, até parar diante da porta principal. Então desligou o motor e, antes que Judith saísse, ele foi mais rápido e manteve aberta a porta do carro para ela.
As atenções dele sempre a faziam sentir-se um pouco como parte da Realeza.
— Obrigada, Azid.
Eram cinco e meia da tarde. Ela subiu os degraus, passou pela porta principal e cruzou o vestíbulo fresco, de onde chegou à sala de estar vazia e dali à varanda florida. Como imaginava, lá já encontrou Bob Somerville e David Beatty, relaxados nas compridas cadeiras após um dia de trabalho e saboreando seu momento de tranqüila camaradagem. Havia uma mesinha baixa entre as cadeiras de ambos, sustentando toda a tradicional parafernália de um chá da tarde.
David Beatty estava concentrado em um dos seus enormes e eruditos volumes, enquanto Bob lia o Times londrino, enviado a cada semana por via aérea. Ele ainda estava fardado. Short e camisa brancos, compridas meias da mesma cor e sapatos também brancos. Depois de ler o jornal, ele costumava tomar uma ducha, fazer a barba e mudar de roupa. Primeiro, no entanto, apreciava uma pausa para o chá da tarde, um ritual diário a seu gosto, porque era uma confortadora recordação dos simples prazeres domésticos do lar, da Inglaterra e de uma esposa distante.
Ele ergueu os olhos e largou o jornal.
— Oh, aí está você! Já me perguntava o que lhe teria acontecido. Puxe uma cadeira. Tome uma xícara de chá. Thomas preparou sanduíches de pepino.
— Oh, que civilizado! Boa tarde, David.
David Beatty sobressaltou-se e pestanejou, viu Judith e então baixou o livro, tirou os óculos e fez menção de recolher sua comprida estrutura, a fim de levantar-se da cadeira. Era uma cortês pantomima que acontecia sempre que ela o apanhava desprevenido, e costumava dizer "Não se levante", pouco antes dos sapatos dele tocarem o chão.
— Perdão. Estava lendo... não ouvi...
Ele sorriu, apenas para demonstrar que não havia aborrecimento, recolocou os óculos e dissolveu-se novamente sobre as almofadas, voltando ao seu livro. Perdido para o mundo. Conversa ociosa nunca fora o seu fraco.
Bob despejou chá na fina xícara branca, deixou cair uma fatia de limão e a estendeu para Judith.
— Esteve jogando tênis — observou.
— Como é que sabe?
— Graças aos meus poderes de observação e dedução, aliados ao um traje branco e à raquete.
— Brilhante!
— Onde foi que jogou?
— No clube. Com Hugo e outro casal. Uma partida pra valer
— Quem ganhou?
— Nós, naturalmente.
— Vai sair esta noite?
— Não. Hugo tem que ir a uma Noite do Convidado, no qUart Só para homens.
— O que significa muita bebida e brincadeiras rudes e perigo depois do jantar. Quando o vir novamente, é provável que ele esteja com uma perna quebrada. Antes que me esqueça, já providenciei aquela carona até Kandy, para você. De carro, na manhã do próximo sábado. Virão apanhá-la aqui, às oito horas.
Judith recebeu a informação com misturadas emoções. Contraiu o rosto, como uma criança.
— Eu não quero ir!
— Eu também não gostaria que fosse embora. Sentirei uma falta enorme de você, mas... o que se pode fazer? Mantenha-se firme, sem queixas. O dever chama. E, por falar em dever, tenho outra mensagem. Nada mais, nada menos, do que de parte da chefe das Wrens. Ela ligou para mim esta tarde. Perguntou se você estaria disponível amanhã de manhã e, em caso afirmativo, se podia contar com sua ajuda.
—Ajuda para quê? —perguntou Judith cautelosamente.
Já estivera no serviço por tempo suficiente para saber que jamais alguém se prestava voluntariamente a fazer o que fosse, sem antes tomar conhecimento de todos os detalhes. Pegando um sanduíche de pepino, começou a mastigar um pedaço de seu crocante adocicado.
—Para oferecer boas-vindas a um bando de rapazes que as merecem.
— Não entendi.
— Há um navio no porto, em rota para a Inglaterra. O Orion. Um navio-hospital. A primeira leva de prisioneiros de guerra da Ferrovia Bangcoc-Burma. Estiveram hospitalizados em Rangum. Receberam permissão de vir a terra durante algumas horas, seu primeiro passo de volta à civilização. Haverá uma espécie de recepção para eles, no Forte. Chá e bolinhos, suponho. A oficial-chefe está solicitando a algumas Wrens que funcionem como anfitriãs, conversem com os rapazes e os façam sentir-se em casa.
— O que você respondeu?
- Que ia discutir o assunto com você. Expliquei que acabou de ser nformada da morte de seu pai em Changi e que talvez o encontro com um bando de prisioneiros emaciados pudesse fazê-la sofrer mais.
judith assentiu. Terminara o sanduíche e, alheadamente, pegou outro. Prisioneiros de guerra da Ferrovia de Burma. No fim da guerra, quando o Exército entrara em movimento com os serviços médicos, tendo a Cruz Vermelha (e Lady Mountbatten) insistentes em seus calcanhares, os campos de ferrovias haviam sido abertos e expostos os seus horrores. Reportagens e fotos nos jornais tinham despertado ondas de incredulidade e repulsa, somente comparáveis à reação do mundo ocidental, uma humilhação universal para o espírito humano, quando os Exércitos Aliados, movendo-se para leste, descobriram os campos de Auschwitz, Dachau e Ravensbrück.
Milhares de homens haviam morrido na ferrovia, enquanto os sobreviventes trabalhavam como escravos até dezoito horas por dia, em meio à selva sufocante. Guardas brutais haviam mantido os doentes trabalhando, a despeito da fraqueza resultante da fome, exaustão, malária e da disenteria provocada pelas condições imundas em que os prisioneiros eram alojados.
Agora, no entanto, eles voltavam para casa. Retornavam. Ela suspirou.
— Vou ter que ir. Se não for, nunca mais poderei olhar-me nos olhos, pelo resto da vida. Seria uma terrível fraqueza de minha parte.
—Nunca se sabe. Talvez isso a faça sentir-se melhor sobre as coisas.
— Depois do que suportaram, é de admirar que algum deles esteja apto o suficiente até mesmo para vir em terra...
— Eles passaram um pouco de tempo no hospital, sendo cuidados e alimentados adequadamente. Suas famílias já foram alertadas de que estão vivos e retornando.
— O que terei de fazer?
— Vestir seu uniforme e reunir-se, às nove horas.
— Onde?
— Nos alojamentos das Wrens da Galle Road. Receberá lá suas instruções.
— Certo.
—Você é uma boa garota. Tome outra xícara de chá. E que tal jantar esta noite comigo e com David? Direi a Thomas que seremos três.
Nessa manhã, após tomar uma ducha e envolvida em seu robe fino, Judith fez o breakfast sozinha, uma vez que Bob e David Beatty já tinham ido trabalhar. O breakfast consistia de grapefruit e chá da China. Nada mais. Por algum motivo, ela não se sentia particularmente com fome. Depois de comer voltou a seu quarto, e viu que Thomas já estendera seu uniforme limpo sobre a cama recém-arrumada, com o bibico e os sapatos alvejados até mostrarem uma ofuscante brancura.
Judith vestiu o fardamento, sentindo-se um pouco como naquele último dia em Trincomalee quando, tomada de apreensão, envergara um uniforme limpo e descera a estrada empoeirada para sua entrevista com a primeiro-oficial. Agora, estava preparada novamente para a batalha. Abotoou os botões, amarrou os cordões dos sapatos, penteou os cabelos, colocou o gorro, passou batom e perfume. Pensou em levar uma mochila, mas depois desistiu. Não seria preciso. Por volta de meio-dia já estaria novamente em casa. Entretanto, apenas para uma emergência, tirou da bolsa um maço de notas de rúpias, que enfiou no bolso da saia.
No saguão encontrou Thomas à sua espera, ao lado da porta aberta.
— Gostaria que Azid a levasse de carro?
— Não, Thomas, obrigada, irei andando. São apenas algumas centenas de metros, descendo a rua.
— É muito bonito o que vai fazer. Homens corajosos. Aqueles japoneses, por Deus! Eu gostaria que dissesse a eles que foram muito valentes.
O rosto escuro de Thomas estava tomado pela angústia, e Judith ficou comovida por sua pequena explosão de sentimentos.
— Sim. Você tem toda razão. Eu direi a eles.
Ela saiu para a intensa claridade e para o calor, cruzou os portões e começou a descer a rua movimentada. Pouco depois os alojamentos das Wrens surgiam à frente, um amplo prédio eduardiano, branco e enfeitado como um bolo de noiva, com dois pavimentos e teto achatado, coroado por uma balaustrada ornamental. Um dia tinha sido a residência de um opulento mercador, mas agora perdera parte do seü brilho, e os jardins que circundavam a edificação—um enorme terreno com alamedas e gramados — mostravam construções de bandas com tetos de palha e blocos de ablução.
Judith cruzou o portão de entrada, recebendo do jovem sentinela um sorriso apreciativo e um assentimento de cabeça. Ela viu a camioneta estacionada sobre a alameda de cascalho, com um marinheiro atrás do volante absorvido na leitura de um antigo exemplar de Tidbits. nepois subiu degraus de baixa altura, sob o toldo de um pórtico opressivo, e passou para o grandioso saguão, agora funcionando como Sala de Regulamento. Havia mesas de trabalho e pequenas divisórias para correspondência. Já se achavam presentes várias Wrens, em pé e dispersas, aguardando que lhes dissessem o que fazer. Uma jovem terceiro-oficial parecia estar incumbida de tudo, tendo ao lado uma Wren graduada, para apoio moral. No momento enfrentava certa dificuldade com nomes e números.
— Estamos esperando quatorze Wrens. Quantas conseguimos...?— Com um lápis na mão, ela começou a contar as presentes. — Uma, duas...
— Doze, senhora.
Evidentemente, a Wren graduada era a mais eficiente das duas. —Então, ainda faltam duas. —Ela avistou Judith, chegando à orla do pequeno grupo. — Quem é você?
— Dunbar, senhora.
— De onde?
— Do HMC Adelaide. Estou de licença.
— Dunbar. — A terceiro-oficial examinou sua lista. — Oh, sim, aqui está você. Vou riscar seu nome. Entretanto, ainda falta uma. — Ela olhou ansiosamente para seu relógio. Tamanha responsabilidade a estava deixando nervosa. — A última Wren está atrasada.
— Não, não estou! — A última voluntária irrompeu pela porta aberta, apresentando-se à chamada. — Ainda são cinco para as nove.
Era uma jovem baixa e atarracada, queimada como um bago de Uva madura, de vivos e divertidos olhos azuis, e escuros cabelos curtos que se anelavam em torno da borda de seu gorro.
— Oh, que ótimo. Muito bem. — O jeito confiante da jovem fixara a terceiro-oficial um pouco desnorteada. — Hum... você é Sudlow?
— Exatamente. Do HMS Lanka. Consegui a manhã de folga.
Por fim, ficou decidido que estavam todas presentes e prontas para partir. Foram dadas instruções. A camioneta as levaria ao Forte, onde os ex-prisioneiros desembarcariam de lanchas-auxiliares.
Por que não no cais?, perguntou uma jovem.
— Teríamos que conseguir ônibus para levá-los até o Forte. Desta maneira, eles podem ir andando até Gordon's Green, que fica a pouca distância. Lá existem uma rampa de desembarque e um quebra-mar. Então, quando eles estiverem em terra, vocês os encontrarão, conversarão e os escoltarão para onde foram montadas as tendas. Serão servidos refrescos.
— E cerveja? — perguntou a Wren Sudlow, esperançosa.
— Não — foi a pronta resposta. — Haverá chá, bolinhos, sanduíches, coisas assim. Mais alguma pergunta?
— Quanto tempo teremos de ficar lá?
— Enquanto decidirem que estão sendo úteis. Deverão fazer com que eles se divirtam, sejam conduzidos. Deixados à vontade.
— Seremos apenas nós, senhora? — perguntou outra jovem, parecendo algo desanimada.
— Não, claro que não. Haverá enfermeiras do hospital e um contingente da Guarnição. Parece-me também que uma banda estará tocando. E então, quando da recepção na tenda, haverá oficiais de categoria superior de todas as três forças, e um ou dois ministros locais, além de dignitários. Assim, vocês não estarão sozinhas. — Ela passou os olhos em torno. — Todas compreenderam? Muito bem. Agora podem ir.
— E muita sorte britânica para todas — completou a Wren Sudlow por ela.
Suas palavras provocaram o riso geral, exceto o da terceiro-oficial, que fingiu nada ter ouvido.
As quatorze jovens saíram obedientemente para o sol quente e, a ouvir a tagarelice do grupo, o marinheiro saltou de seu assento, caminhou até a traseira da camioneta, a fim de baixar a parte móvel e ajudar a subir quem quer que estivesse precisando de auxílio. Embarcadas, elas instalaram-se nos bancos de madeira que corriam ao longo de cada lado da camioneta. Após estarem acomodadas, à semelhança de um rebanho, a traseira da camioneta foi fechada e aferrolhada.
Um momento depois, o motor era ligado e partiram, saltitando e aos solavancos, através do portão e subindo a Galle Road.
Soprava uma ligeira brisa, porque as laterais da cobertura de lona tinham sido enroladas para cima, e a camioneta ficara aberta por todos os lados. Judith e a Wren Sudlow, sendo as últimas a embarcar, ficaram sentadas lado a lado, no final da carroceria.
Que alvoroço! — exclamou a Sudlow. — Pensei que não conseguiria chegar. Tentei arranjar uma carona, mas não foi possível, então tive que tomar um rickshaw. Daí porque quase cheguei atrasada. Ela olhou para Judith. — Já nos conhecemos? Você serve em Colombo?
— Não, em Trincomalee. Estou de licença.
— Eu já imaginava que não a conhecesse. Como se chama?
— Judith Dunbar.
— Eu sou Sarah Ludlow.
— Olá.
— Aquela terceiro-oficial não foi patética? Molhada como um esfregão. Não estou muito ansiosa por isso, e você? Chá com bolinhos em uma tenda do exército não me parece grande coisa como recepção, depois do que aqueles pobres coitados passaram.
—Não creio que eles tampouco fiquem muito excitados pela idéia.
Atrás delas, a Galle Road, ampla e de intenso trânsito, estirava-se poeirentamente na distância, entre as avenidas de altas palmeiras. Judith ficou espiando a rua ir-se alongando, e pensou em seu pai, morando em Colombo e passando de carro por aquele mesmo lugar, dia após dia, indo e vindo dos escritórios da Wilson-McKinnon. Pensou nele morrendo na sujeira e na impiedosa miséria que havia sido Changi, e tentou recordar como era exatamente a aparência dele, o som de sua voz, porém não foi possível. Tudo tinha ficado no passado, muito e muito tempo atrás. O que era uma vergonha, porque neste momento, nesta manhã, ela teria assumido uma postura sobranceira, orgulhosa, se Pudesse contar com um pouco de apoio paterno. Papai, se você está aí... De certo modo, estou fazendo isto por você. Não me deixe ser totalmente inútil.
Ao seu lado, Sarah Sudlow remexeu-se no banco duro.
— Céus, o que eu não daria por um cigarro! — Sem dúvida, sentia-se tão apreensiva como Judith. — Chega a ser um problema, não? Quero dizer, imaginar coisas para falar. O que conversamos nos coquetéis dificilmente seria apropriado, e eu detesto pausas de silêncio — Ela considerou a questão e teve uma brilhante idéia. — Ouça, tudo ficaria mais fácil, se agirmos em dupla. Então, se uma de nós não encontrar o que dizer, a outra entra em cena. O que acha? Devemos ficar juntas?
— Acho uma excelente idéia — respondeu Judith, imediatamente começando a sentir-se muito melhor.
Sarah Sudlow. Ela não poderia imaginar uma parceira mais firme em um momento de tensão.
Pontos de referência familiares foram ficando para trás. O "Galle Face Hotel", o campo de golfe "Galle Face"... A camioneta chocalhou através de uma ponte e depois ao longo da estrada que seguia pela margem leste do Forte. O mar era um clamor em azul, estirando-se até o horizonte. O vento vinha de sudoeste, empurrando uma firme procissão de ondas que vinham rebentar nas rochas. Eles chegaram ao promontório, com o farol em sua extremidade, formando um porto natural e abrigado do tempo, onde a água permanecia calma. Ali havia um quebra-mar e uma rampa de desembarque e, nas proximidades, em perfeitas fileiras e posição de sentido, Judith viu o pomposo espetáculo de uma banda de gaiteiros de fole siques, em esmerado traje cerimonial: bermudas e túnicas caqui e magníficos turbantes. Seu tambor-mor era um homem de majestática altura e postura, com uma enorme maça de prata e uma faixa de seda escarlate, profusamente franjada, usada sobre um ombro e através do peito.
— Eu não sabia que os siques tocavam gaitas de fole — disse Sarah. —Pensei que tocassem cítaras e estranhas flautas de encantar serpentes.
— Seja como for, parecem ser bons, não acha?
—Darei minha opinião depois de ouvir que tipo de ruído eles fazem.
A camioneta finalmente parou, a parte móvel traseira foi aberta e todas as jovens desembarcaram. Outros já haviam chegado antes delas: o comitê oficial de recepção, oficiais da Guarnição e do QG da Marinha, duas ambulâncias e algumas enfermeiras navais, com véus e aventais brancos agitando-se à brisa.
Em terra firme, mais atrás, ficavam a Torre do Relógio, os prédios governamentais, a Casa da Rainha, vários bancos e ministérios. Na relvada expansão de Gordon's Green (ponto de encontro em ocasiões cerimoniais como Arriar a Bandeira ou garden parties para cabeças coroadas visitantes), podiam ser vistas as tendas caqui erguidas pelo Exército. Estavam todas embandeiradas e, acima delas, na ponta de um alto mastro, esvoaçava o pavilhão do Reino Unido.
O Orion jazia ancorado ao largo, a cerca de dois quilômetros de terra.
— Mais parece um transatlântico de antes da guerra, em cruzeiro de recreio, não acha? — observou Sarah. — Chega a ser irônico saber-se que, em realidade, é um navio-hospital, com a maioria dos doentes talvez demasiado enfermos ou enfraquecidos até mesmo para virem a terra. Oh, céus, eles já vêm vindo...
Judith espiou e viu, descrevendo a volta ao redor do promontório do farol, três lanchas enfileiradas que se aproximavam, rumando para o quebra-mar. Cada uma estava apinhada de homens, que a distância e a ofuscante claridade do sol reduziam a uma mancha de caqui e rostos pálidos.
— Parece haver um bando e tanto deles, não é mesmo? — A tagarelice de Sarah, Judith podia imaginar, sem dúvida era nervosa, e praticamente incontido o fluxo de palavras. —Se quer saber, acho tudo isto um pouco bizarro. Quero dizer, tentarem relacionar os fatos pavorosos a todo este negócio en fête. Isto é, bandeiras, bandas de música e tudo isso. Só espero que eles não estejam... Meu Deus!
Ela foi silenciada no momento apropriado pela voz do tambor-mor, gritando sua primeira ordem, o que quase a matou de susto. Era evidente que ele fora bem treinado na cronometragem. O sol arrancou reflexos de sua maça, os tambores rufaram e, como um só homem, os gaiteiros içaram seus instrumentos à altura do ombro. Após isto, ouviu-se um canto fúnebre fantasmal, de arrepiar a espinha, enquanto os músicos enchiam os odres de suas gaitas, bombeando ar para as palhetas. Então, começaram a tocar. Não hinos marciais, mas uma antiga área escocesa.
Veloz segue o galante barco como ave a voar, Avante, gritam os marinheiros...
— Oh, céus — disse Sarah — só espero não chorar...
As lanchas chegaram mais perto, seus passageiros apertaram-se ombro a ombro. Agora já era possível divisar-se a fisionomia dos homens a bordo.
Levando o jovem que nasceu para Rei, Pelo mar, rumo a Sky.
Não havia por ali barcos galantes em particular e, certamente quaisquer Reis vindo para terra, mas apenas homens comuns que tinham sobrevivido ao inferno e agora retornavam ao mundo real e familiar. Entretanto, que maneira de desembarcarem, acolhidos pelo som das gaitas! Certas pessoas eram inspiradas, decidiu Judith. Claro que ela já ouvira bandas de gaitas de fole, mas através do rádio ou em noticiosos no cinema, nunca tendo feito parte real de tudo aquilo, jamais vendo ou ouvindo a impetuosa torrente musical viajar no vento e no céu aberto. Agora a música, mesclada às circunstâncias da ocasião, provocava arrepios em suas costas e, como Sarah, ela sentia lágrimas ardendo atrás dos olhos.
Esforçou-se para contê-las, e perguntou em uma voz tão normal e firme como lhe foi possível:
— Por que eles estão tocando músicas escocesas?
— Provavelmente são as únicas que sabem. Aliás, a maioria dos prisioneiros é da Infantaria Ligeira de Durham, mas creio que também há alguns Gordons Highlanders. Das Terras Altas da Escócia.
Todos os sentidos de Judith ficaram tensos.
— Gordons? — repetiu.
— Foi o que disse minha segundo-oficial.
— Certa vez conheci um Gordon Highlander. Ele foi morto em Cingapura.
— Talvez você encontre alguns colegas dele.
— Não conheci nenhum de seus amigos.
A primeira lancha já atracava e estavam firmando as amarras, de maneira ordenada, seus passageiros iam subindo para o quebra-mar. Sarah empinou os ombros.
Nome de uma ilha no arquipélago das Hébridas. (N. da T.)
— Vamos. Não percamos mais tempo. É agora que entramos em cena. Sorrisos simpáticos e modos joviais.
Após toda a apreensão que tinham sentido, a tarefa não foi difícil em absoluto. Não se tratava de alienígenas de outro planeta, mas de rapazes comuns, e assim que os ouviu falar, nos tranqüilizadores sotaques regionais de Northumberland, Cumberland e Tyneside, Judith esqueceu todas as reservas. Magérrimos, de cabeças descobertas e com feições ainda mostrando a lividez da doença e da desnutrição, mesmo assim estavam todos arrumados e limpos, decentemente vestidos (graças à Cruz Vermelha de Rangum) em uniformes de combate na selva em algodão verde e tênis de lona amarrados com cordões. Sem distintivos de posto ou precedência, sem emblemas regimentais. Caminharam ao longo do quebra-mar aos pares ou de três em três, aproximando-se lentamente, como se não estivessem bem certos de como deveriam agir. Entretanto, quando as Wrens e enfermeiras, inteiramente vestidas de branco, misturaram-se a eles falando e apertando mãos, seu acanhamento desapareceu.
Olá, eu sou Judith. É um prazer vê-lo. Eu sou Sarah. Bem-vindo a Colombo.
Nós até providenciamos uma banda, a fim de tocar para vocês.
Estamos imensamente satisfeitas em vê-los.
Em pouco tempo e com absoluta naturalidade, cada jovem tinha vários rapazes reunidos à sua volta, todos eles claramente aliviados ao serem informados do que lhes competia fazer.
—Vamos levá-los até Gordon's Green. É um campo de golfe, onde as tendas foram montadas.
— Formidável.
Uma das enfermeiras mais antigas bateu palmas, como uma professora querendo chamar a atenção.
- Ninguém precisa ir andando, se não estiver disposto. Temos condução de sobra, se alguém quiser uma carona. O grupo de Judith, no entanto, agora aumentado para uns vinte homens, preferiu ir caminhando. Tudo bem. Então, vamos.
Eles começaram a andar sem pressa, subindo a suave ladeira que se erguia da beira-mar. A banda de gaitas de fole agora tocava outra melodia.
Venha até o mar, Charlie, orgulhoso Charlie, bravo Charlie Venha até o mar, Charlie, e dê boas-vindas a McLean. Porque se estiver abatido, alegraremos seu coração...
O rapaz ao lado de Judith comentou:
— Aquela enfermeira. A que bateu palmas. Tivemos uma professora igual a ela, em minha terra, quando eu era garoto.
— Onde fica a sua terra?
— Em Alnwick.
—Já esteve antes em Colombo?
—Não. Fizemos uma parada aqui, a caminho de Cingapura, porém não descemos em terra. Os oficiais vieram, mas só eles. Talvez pensassem que poderíamos saquear...
Outro rapaz intrometeu-se na conversa.
— Não seria nada demais fazermos isso.
Em seu pescoço ele apresentava cicatrizes do que pareciam bolhas, e caminhava mancando penosamente.
— Está bem para você, ir caminhando? Não seria melhor uma carona?
— Não me fará mal exercitar a perna um pouco.
— De onde você é?
— Dos arredores de Walsingham. Dos fells. Meu pai é criador de ovelhas.
— Todos vocês são da Infantaria Ligeira de Durham?
— Exatamente.
— E existem alguns Gordon Highlanders a bordo?
— Sim, mas eles estão na outra lancha. A que nos seguia.
— Não achei muito amistoso a banda tocar música escocesa para recebê-los. Os gaiteiros deviam ter tocado canções folclóricas Northumberland, especialmente para vocês.
— Que canção?
— Não sei. Não conheço nenhuma.
Vasta extensão de terras vazias ao norte da Inglaterra. (N. da T.)
Outro homem moveu-se para diante.
— Você não conhece "Quando o barco chega"?
— Não. Sinto muito. Sou totalmente ignorante nesse sentido.
— Como disse que era seu nome?
—Judith.
— Você trabalha em Colombo?
— Não. No momento estou de licença.
— Então, por que não está em outro lugar, divertindo-se?
— Oh, mas estou me divertindo!
Muito tempo mais tarde, quando tudo terminou, Judith recordava a recepção oficial para o retorno dos prisioneiros de guerra, da mesma forma como recordava os dias escolares da Entrega de Prêmios ou as festas ao ar livre na Inglaterra. Todos os elementos que levantavam fundos para igrejas estavam presentes. O cheiro da grama pisada, de lona e de abafada humanidade. A banda da Marinha Real, agrupada lá fora, tocando seleções ligeiras de Gilbert e Sullivan. As sufocantes tendas fervilhando de homens de caqui e dignitários visitantes que tinham vindo apresentar cumprimentos. (O vigário, o governador do condado e o Coronel Carey-Lewis não teriam ficado nem um pouco deslocados.) Em seguida, os refrescos. Acompanhando os lados da tenda, mesas montadas sobre cavaletes estavam carregadas de petiscos. Bolos, sanduíches e bolinhos, todos foram devorados em tempo recorde, para serem prontamente substituídos por outros, vindos de alguma fonte infindável. Para beber havia limonada e café gelados, assim como chá quente. (De novo, era quase possível ver-se a sra. Nettlebed ou Mary Millyway incumbidas de servir o chá, com a sra. Mudge por conta dos jarros de leite e do açúcar.)
Tão cheia ficou a tenda, que o acesso às mesas improvisadas se tornou limitado e, em vista disso, após terem entregue seus "pupilos" sãos e salvos, Judith e Sarah viram-se forçadas a agir como garçonetes, atando bandejas com xícaras, pratos e copos cheios, a fim de que cada um dos rapazes tivesse a sua parte no festim.
A essa altura, todos falavam ao mesmo tempo, o ambiente ficou muito quente e barulhento. Então, chegou o momento em que os reunidos finalmente se deram por satisfeitos, cessaram de comer e saíram para o gramado, onde ficaram espichados sobre a relva, fumando cigarros e ouvindo a banda.
Judith olhou para seu relógio e viu que já eram onze e meia. Sarah Sudlow não era vista em lugar algum, e os garçons agora limpavam os detritos da festa. Ela sentia a blusa colando-se às costas e, como parecia não haver muito mais a fazer, deixou a tenda, mergulhando sob as abas de lona e saltando sobre duas cordas de fixação. Estava de frente para o mar, e a brisa era misericordiosamente refrescante.
Ficou um momento sorvendo haustos de ar fresco, enquanto observava o pacato cenário. Os gramados de Gordon's Green, a Banda da Marinha Real (convenientemente cerimonial, com capacetes brancos), agora executando melodias do H.M.S. Pinafore, os grupos dispersos de homens relaxados. Então, seus olhos foram atraídos por um homem solitário que não se estirara na grama apoiado em um cotovelo, mas permanecia em pé, de costas para ela, aparentemente concentrado na música. Judith o notou, porque ele era diferente. Macilento e descarnado como os outros, mas sem usar o anônimo uniforme verde para a selva e os tênis de ginástica. Em vez disso, tinha nos pés um surrado par de botas para o deserto, do tipo sempre mencionado pelos oficiais da Marinha Real como "crepe-sola de bordel". Em sua cabeça de cabelos escuros havia um gorro escocês Gordon, com as fitas esvoaçando à brisa. Uma surrada camisa caqui, de mangas enroladas até os cotovelos. E um saiote escocês. Um saiote Gordon. Puído e desbotado, as pregas costuradas até a bainha, de modo amadorístico. Ainda assim, no entanto, um saiote.
Gus.
Por um instante Judith pensou que poderia ser ele, mas logo viu que era impossível, porque Gus estava morto. Desaparecido, morto em Cingapura. Só que, talvez, aquele homem o houvesse conhecido.
...eu limpei as janelas e varri o chão, Poli a maçaneta da grande porta da frente, Poli com tanto cuidado aquela maçaneta, Que agora eu comando a Frota da Rainha. Judith caminhou pela relva em direção a ele. O homem não a ouviu chegar.
— Olá — disse ela.
Sobressaltado, ele girou a cabeça, e Judith ficou olhando para seu rosto. Olhos escuros, sobrancelhas espessas, faces cadavéricas, pele riscada por linhas finas que antes não existiam. Ela experimentou uma extraordinária sensação física, como se seu coração houvesse deixado de bater e, por um instante, ficasse congelada no tempo. Foi ele quem rompeu o silêncio.
— Santo Deus... Judith!
Oh, Loveday, você estava enganada. Estava enganada o tempo todo.
—Gus!
— De onde foi que brotou?
— Daqui mesmo. De Colombo.
Ele não tinha sido morto em Cingapura. Não está morto. Está aqui. Comigo. Vivo.
— Você está vivo — disse ela.
— Pensou que eu não estivesse?
— Pensei. Durante anos, pensei que estivesse morto. Desde Cingapura. Todos pensamos. Quando o vi aí em pé, compreendi que não era você, porque não podia ser.
— Pareço um cadáver?
—Não. Você parece maravilhoso. —Ela era sincera ao dizer isso. — As botas, o saiote e o gorro... Como é que conseguiu permanecer com eles?
—Apenas o saiote e o gorro. Roubei as botas.
— Oh, Gus...
— Não chore.
Entretanto, ela deu um passo à frente, passou os braços pela cintura dele e apertou o rosto no algodão surrado da velha camisa caqui. Podia sentir as costelas e os ossos de Gus, podia ouvir-lhe as batidas do coração. Os braços dele a envolveram, e os dois simplesmente permaneceram assim, muito abraçados, expostos à vista ou aos comentários dos outros. Ela tornou a pensar em Loveday, mas então não pensou mais. No momento, o único importante era que tinha encontrado Gus novamente.
Após um instante, os dois se separaram. Se alguém testemunhar aquela demonstração de íntima afeição, não estava mais olhando. Judith não tinha chorado, e Gus não a havia beijado. O momento cessara
Agora, voltavam ao básico.
— Não vi você na tenda — disse para ele.
— Só estive lá um momento.
— Precisa ficar aqui?
— Não necessariamente. E você?
— Não necessariamente. Quando terá de voltar para bordo?
— As lanchas partem às três horas.
— Podíamos voltar à Galle Road. É onde me hospedo. Para um drinque ou almoçar alguma coisa. Há tempo.
— O que eu realmente gostaria de fazer — respondeu Gus — seria ir ao "Galle Face Hotel". Tenho uma espécie de encontro lá. Entretanto não posso ir por conta própria, já que não disponho de nenhuma espécie de dinheiro. Não tenho rúpias. Apenas notas japonesas.
— Eu tenho dinheiro. Vou levá-lo até lá. Irei com você.
— Como?
— Tomaremos um táxi. Há um ponto de estacionamento na rua ao lado da Torre do Relógio. Podemos ir andando até lá.
— Tem certeza?
— Claro que tenho.
— Não haverá problemas para o seu lado?
— Estou de licença. Sou um agente livre.
Assim, os dois esgueiraram-se para fora do campo. De novo, ninguém percebeu, mas, se percebeu, nada disse. Passaram pela tenda agora quase vazia, cruzaram o relvado, saíram na Queen Street e depois subiram por ela até o cruzamento junto da Torre do Relógio. Lá, alguns táxis antigos faziam ponto. Assim que os viram, os motoristas imediatamente começaram a discutir entre si sobre o preço da corrida. Judith e Gus entraram no primeiro táxi da fila, o que poupou bastante discussão.
— Sabe de uma coisa? — disse ela. — Somente agora percebi que deve ser difícil alguém atuar como testemunha. No tribunal no julgamento de um assassinato ou coisa assim. A gente pode jurar cegamente sobre a Bíblia que viu ou não viu uma pessoa, em um determinado momento vital. Entretanto, agora sei que aquilo que realmente vemos é governado por aquilo em que acreditamos ou julgamos ser verdade.
— Refere-se a mim?
— Não era você, até eu ver seu rosto.
—O melhor que já me aconteceu foi ver o seu. Fale-me sobre você. Disse que está de licença. Não trabalha aqui?
— Não. Meu posto é em Trincomalee. Imagino que você não se lembre de meu tio Bob Somerville. Creio que não chegou a conhecê-lo. Ele é contra-almirante no estado-maior do comandante-em-chefe. Estou hospedada em sua casa.
— Compreendo.
— Biddy, a esposa dele, era irmã de minha mãe.
— Era. Tempo passado.
— Isso mesmo. Meus pais estavam em Cingapura, mais ou menos na mesma época em que você...
— Eu sei. Encontrei-os uma vez, em uma festa do regimento no quartel de Selaring. Foi pouco antes de Pearl Harbor, quando ainda tínhamos festas. O que aconteceu com eles? Foram embora?
Judith meneou a cabeça.
— Não. Meu pai morreu em Changi.
— Eu sinto muito.
—Quanto a minha mãe e minha irmã menor, elas tentaram ir para a Austrália, porém o navio em que viajavam foi torpedeado no mar de Java. Não sobreviveram.
— Oh, Deus... Sinto muitíssimo.
— Daí o motivo de minha licença. Um mês. Para ficar com Bob. Terei de voltar para Trincomalee no fim desta semana.
— Mais alguns dias, e eu não a teria encontrado.
— Tem razão.
O táxi rodava ao longo do "Galle Face Green". Um bando de Meninos jogava futebol, driblando e chutando uma bola, apesar dos Pés descalços. Gus virou a cabeça para observá-los. Depois disse:
—As circunstâncias foram bem diferentes, mas meus pais também morreram. Não de fome ou torpedeados, mas quietamente, em suas camas, talvez em um hospital ou uma clínica de idosos. —Ele se virou para encará-la. Acrescentou: — Os dois eram muito velhos. Já eram antes de meu nascimento. Fui seu único filho. Talvez eles também achassem que eu estava morto.
— Quem lhe contou isso?
— Uma gentil senhora, espécie de assistente-social, no hospital em Rangum.
— E, estando em Cingapura, você não podia mandar notícias para ninguém Nem mesmo para seu pai ou sua mãe?
—Tentei contrabandear uma carta para fora de Changi, porém acho que nunca chegou às mãos deles. Nunca mais tive outra oportunidade
O táxi agora manobrava para a fronteira do hotel, depois parando à sombra do enorme toldo. Eles desceram, entraram no prédio e passaram para o comprido saguão marginado por plantas floridas em vasos e vitrines exibindo maravilhosas jóias de alto preço: cordões e pulseiras de ouro, broches e brincos de safiras e diamantes, anéis de rubis e esmeraldas.
— Gus, você disse que tinha um encontro.
— E tenho.
— Com quem?
— Espere e verá. — Atrás do balcão de recepção havia um funcionário cenegalês. — Kuttan ainda trabalha aqui?
— Naturalmente, senhor. É o encarregado do restaurante. —Eu poderia falar com ele? Não levarei mais do que um momento.
— Posso dizer quem deseja vê-lo?
— O capitão Callender. Um amigo do coronel Cameron. Do Gordon Highlanders.
— Perfeitamente. Poderia aguardar no terraço? — Ele indicou a direção, com uma frágil mão castanha. — Gostaria de algum refresco. Café gelado ou um drinque do bar?
Gus virou-se para Judith.
— O que você pediria?
— Talvez uma limonada.
— Limonada para a senhora e uma cerveja para mim.
— Perfeitamente, senhor.
Eles caminharam pelo polido piso de mármore do saguão e e chegaram ao terraço, Gus à frente, escolhendo a mesa, ajeitando as cadeiras de vime. Seguindo-o, Judith surpreendeu-se com a tranqüilidade o desligamento, seu natural ar de autoridade, algo que jamais poderia ser destruído. Ele não apenas sobrevivera à construção da Ferrovia de Burma, mas parecia ter sobrevivido com um certo estilo. Nele, o niforme gasto não parecia cômico nem estranho, simplesmente porque Gus o envergava com todo orgulho. No entanto, havia qualquer coisa mais. Uma força interior que chegava a ser palpável, mas também formidável. Ela achou isso um pouco intimidante. Cedo ou tarde teria que contar a ele sobre Loveday. Nos tempos antigos, os portadores de más notícias freqüentemente eram decapitados. Ela decidiu não oferecer qualquer informação, a menos que o próprio Gus quisesse saber. Sentados no terraço, pouco depois recebiam seus drinques. Algumas crianças, acompanhadas de amas vigilantes, nadavam na piscina. A brisa fustigava as folhas das palmeiras e, no final do jardim, além da balaustrada ornamental, estendia-se o mar.
— Está o mesmo de antes — disse Gus. — Nada mudou.
— Você esteve aqui?
— Sim, em nossa ida para Cingapura. Cheguei em um navio de tropas, via Cidade do Cabo, com mais alguns colegas do regimento. Ficamos aqui durante quatro dias, depois embarcamos em outro navio e zarpamos. Foi uma época bastante turbulenta. Festas e lindas garotas. — Acrescentou: — Bons momentos...
— Capitão Callender?
Não o tinham ouvido chegar, mas ele estava ali. Gus levantou-se.
— Kuttan...
O homem permanecia imóvel e sorridente, a túnica branca acentuada pelas ombreiras de seda vermelha que eram seu distintivo da Profissão. Tinha cabelos bem penteados e oleados, o soberbo bigode no estilo das normas britânicas imaculadamente aparado. Tinha na mão esquerda uma bandeja de prata, sustentando uma garrafa de uísque Black & White.
— Por Deus, não pude acreditar em meus ouvidos, ao me dizerem que o senhor estava aqui. Que estava são e salvo.
— É bom ver você, Kuttan.
— Digo-lhe o mesmo. Deus é muito bom. Chegou no navio de angum?
— Cheguei. Partiremos esta tarde.
— Ficarei vendo seu navio cruzar o mar. Ao escurecer, com todas as luzes acesas. Muito bonito. Ficarei vendo o senhor regressar ao lar
— E eu estarei pensando em você, Kuttan.
— E aqui está a garrafa de Black & White, que o coronel Cameron me pediu que guardasse para ele. Eu a mantive muito bem guardada todo este tempo. — Ele olhou em torno. — O coronel Cameron não está com o senhor?
— Ele morreu, Kuttan.
O velho empregado do hotel ficou encarando Gus, com tristonhos olhos escuros.
— Oh, capitão Callender... Esta é de fato uma má notícia!
— Eu não queria ir embora de Colombo sem que você soubesse.
— Jamais esquecerei os dias em que ficaram aqui. O coronel Cameron era um fino cavalheiro. — Kuttan olhou para a garrafa de uísque. — Eu tinha tanta certeza de que ele voltaria para buscá-la, como prometeu. O coronel pagou por ela, naquela última noite. Ele disse, "Kuttan, quero que a guarde para mim. No gelo. Vamos comemorar novamente, em nosso regresso para casa." E agora, ele não vai mais voltar... — Pegando a garrafa na bandeja, Kuttan a depositou sobre a mesa. — Então, é o senhor que fica com ela.
— Eu não vim por causa do uísque, Kuttan. Vim para ver você.
— Fico muito agradecido. Vai passar no restaurante para almoçar?
— Acho que não. O tempo é pouco para apreciar sua deliciosa comida e, no momento, receio não ter estômago para ela.
— O senhor esteve doente?
— Agora estou bem. Você é um homem ocupado, Kuttan. Não devo afastá-lo de suas obrigações. — Gus estendeu a mão. — Adeus, velho amigo.
Os dois trocaram um aperto de mão. Kuttan então recuou, uniu as duas palmas e fez uma mesura, com muita afeição e respeito.
— Que Deus o acompanhe, capitão Callender.
Depois que ele se foi, Gus tornou a sentar-se e olhou para a garrafa de uísque.
— Preciso encontrar alguma espécie de saco ou cesta para colocá-la. Ninguém deverá percebê-la sendo levada para bordo do Orion. Não ajudaria em nada.
— Encontraremos alguma coisa — prometeu Judith. —Vai levá-la para a Escócia?
Seria uma perda de tempo.
O que acontecerá, em seu regresso?
Ainda não tenho certeza. Suponho que deverei apresentar-me
- No QG. em Aberdeen. Farei check-ups médicos. Terei uma licença...
— Você esteve muito doente?
— Não mais do que todos os outros. Beribéri. Disenteria. Úlceras e bolhas. Pleurisia, malária, cólera... Eles admitem que cerca de dezesseis mil britânicos morreram. Os homens que hoje desembarcaram, são apenas a terça parte dos que tiveram de ser deixados a bordo.
— Você não gostaria de falar?
— Sobre quê?
— Sobre Cingapura e como tudo começou. Recebi uma última carta de minha mãe... mas não dizia realmente nada, exceto que havia confusão e caos.
— Pois foi praticamente assim. Um dia após Pearl Harbor, os japoneses invadiram a Malaia. Os Gordons guarneciam as defesas costeiras, mas no início de janeiro fomos removidos para o interior, para a Malaia, onde nos juntamos a uma brigada australiana. Entretanto, não havia a mais remota esperança para nós e, pelo fim de janeiro, recuamos para a ilha de Cingapura usando uma via elevada que cruzava os pântanos. De qualquer modo, era uma campanha condenada, indefensável e sem poder aéreo; dispúnhamos apenas de uns cento e cinqüenta aviões, porque uma grande parte da RAF estava lutando no norte da África. Então, havia os refugiados. O lugar estava apinhado deles. Fomos enviados para uma ação de retaguarda naquela via elevada. Mantivemos nossas posições durante três ou quatro dias, Porém à custa de rifles e baionetas, já que nunca tivemos granadas para a artilharia. Houve alguma conversa esporádica de tentar-se escapar, por fora, para Java ou qualquer lugar, porém não passou de boato. Assim, uma semana após a entrada em Cingapura, os japoneses chegaram aos reservatórios que forneciam toda a água potável. Havia pelo menos um milhão de pessoas na cidade, e os japoneses fecharam as torneiras. Foi o que bastou. Capitulação.
A Malásia, como federação, só foi criada em 16 de setembro de 1963, bem como Próprio nome. Cingapura, que no início fez parte da federação, separou-se em 1965.
— E o que aconteceu com vocês?
— Fomos levados para Changi. Não era tão ruim, com guardas mais ou menos razoáveis. Fui designado para um grupo de trabalho enviado para as ruas, a fim de reparar danos causados pelas bombas. Fiquei logo muito bom para contrabandear suprimentos e rações extras. Cheguei a vender meu relógio por dólares de Cingapura os quais usei para subornar um dos guardas, a fim de que pusesse no correio uma carta para meus pais. Não sei se ele postou a carta ou se meu pai e minha mãe chegaram a recebê-la. Imagino que, agora, jamais ficarei sabendo. Além disso, o guarda me levou lápis e papel, um bloco para desenhos, e consegui enchê-los, escondendo-os durante os três anos e meio seguintes. Uma espécie de registro. Emtretanto, nada desenhei sobre a destruição humana.
— Você ainda tem esses desenhos? Gus assentiu.
—Estão no navio. Com minha nova escova de dentes, minha nova barra de sabão e uma última carta de Fergie Cameron, que devo entregar para sua viúva.
— O que aconteceu em seguida, Gus?
— Bem, ficamos uns seis meses em Changi, depois correu a notícia de que os japoneses tinham construído excelentes acampamentos para nós no Sião. A coisa seguinte que soubemos foi a de sermos colocados em caminhões de aço para transporte de gado e viajarmos para o norte, em direção a Bangcoc, durante cinco dias e cinco noites. Trinta de nós em cada caminhão, de modo que não sobrava espaço para ninguém deitar. Foi pavoroso. Cada um de nós recebia uma xícara de arroz e uma de água por dia. Quando chegamos a Burma, muitos estavam passando mal e alguns tinham morrido. Em Bangcoc, fomos desembarcados dos caminhões, fracos de alívio porque a provação terminara. Apenas não sabíamos que aquilo era só o começo.
As crianças tinham parado de nadar e suas amas a levavam para dentro, a fim de fazerem uma refeição leve. A piscina ficou solitária. Gus pegou seu copo e bebeu o resto da cerveja.
—Isso é tudo—disse. —Não há mais nada. Ponto final. —Através da mesa, enviou para Judith o fantasma de um sorriso. — Obrigado por ouvir.
— E obrigada por contar.
-Não há mais nada a meu respeito. Agora, fale-me de você.
— Oh, Gus, o que posso dizer é muito pálido, em comparação...
— Por favor. Quando se juntou às Wrens
— Um dia depois que Edward foi morto.
— Aquilo foi terrível. Escrevi para os Carey-Lewis. Na época, encontrava-me em Aberdeen, após Saint Valéry. Tinha muita vontade de ir vê-los, mas nunca houve tempo nem oportunidade, antes de minha partida para a Cidade do Cabo. — Ele franziu o cenho, recordando. — Você comprou a casa da sra. Boscawen, não foi?
— Sim. Depois que ela morreu. Uma casa encantadora. Sempre a adorei. Quando a comprei, significava que eu então tinha um lar. Biddy, a esposa de Bob Somerville, foi morar comigo. E também Phyllis, que trabalhava para minha mãe. Levou consigo a filhinha, Anna. Elas continuam lá.
— É para lá que regressará?
— Sim, para lá.
Judith esperou. Ele fez a pergunta:
— E Nancherrow?
— Na mesma. Exceto que Nettlebed parou de ser mordomo e tornou-se hortelão. Ainda executa suas antigas funções, claro, escova os tweeds do coronel, porém sente mais interesse por seus pés de feijão.
— E Diana? E o coronel?
— Não mudaram nem um pouco.
— Athena?
— Rupert foi ferido na Alemanha. Ficou inválido e deixou os Hussardos Reais. Agora moram todos em Gloucestershire.
Judith tornou a esperar.
— E Loveday?
Gus olhava para seu rosto. Ela respondeu:
— Loveday está casada, Gus.
— Casada? — Ele exibiu uma expressão da mais pura incredulidade. — Loveday? Casada? Com quem?
— Com Walter Mudge.
— O rapaz que cuidava dos cavalos?
— O próprio.
— Quando?
— No verão de 1942.
— Ora, mas... por quê?
— Ela pensou que você estivesse morto. Estava absolutament convencida disso. Não havia nenhuma notícia sua, nenhuma carta. Apenas silêncio. Então, ela desistiu.
— Eu não compreendo — balbuciou ele.
—Não sei se consigo explicar. Na verdade, depois de Saint Valéry ela teve uma espécie de premonição, uma revelação de que você estava vivo. E estava mesmo. Você voltou. Não havia sido morto e nem aprisionado. Isto... bem, isto a fez acreditar que houvesse algum tipo de telepatia incrivelmente forte entre vocês dois. Após Cingapura ela tentou um contato novamente, concentrando-se em você, esperando alguma espécie de sinal ou mensagem de sua parte. Algo dizendo que você não estava morto, mas vivo. Só que nada aconteceu.
— Eu mal podia chegar a um telefone.
— Oh, Gus, procure entender! Sabe como é Loveday. Quando enfia uma idéia, uma convicção na cabeça, ninguém consegue demovê-la. De certo modo estranho, ela conseguiu convencer todos nós — qualificou Judith. — Pelo menos, convenceu Diana e o coronel.
— E você, não?
— Eu estava no mesmo barco. Tinha família em Cingapura, mas nenhuma notícia. Entretanto, continuei esperançosa, sabendo que tudo que me restava fazer era ter esperança. Continuei tendo esperança por você, até o dia do casamento dela. Depois disso, não fazia mais sentido.
— Ela é feliz?
— Como disse?
— Perguntei se ela é feliz.
— Creio que sim, embora faça muito tempo que não a vejo• Loveday tem um bebê, Nathaniel. O menino fará três anos em novembro. Ela mora em um chalé, na fazenda Lidgey. Oh, Gus, eu sinto muito. Receava demais contar-lhe isto. Entretanto, aconteceu, fato da vida. Não adianta mentir para você.
— Eu pensei que ela fosse esperar-me — disse ele.
— Não deve ficar zangado com Loveday.
— Não estou zangado.
Entretanto, de súbito ele pareceu desesperadamente abatido e fatigado. Levou uma das mãos ao rosto e esfregou os olhos. Judith pensou nele regressando ao lar, regressando à Escócia, ao nada. Sem pais, sem família. Sem Loveday.
— Precisamos manter-nos em contato, Gus — disse ela. — Aconteça o que acontecer, devemos manter contato. Vou dar-lhe meu endereço e você deve dar-me o seu, para que eu possa escrever-lhe. — Ela pensou nisso e percebeu que ambos estavam singularmente mal equipados. Levantou-se. — Vou arranjar papel e uma caneta em algum lugar. E, ao mesmo tempo, descobrir algo para você esconder sua garrafa de uísque. Espere aqui, não me demoro.
Ela o deixou sentado sozinho. Tornou a entrar, pagou a conta do bar e recebeu um resistente saco de papel castanho, no qual seria escondida a garrafa de Black & White. Depois disso, foi até a sala de bridge, onde roubou de uma escrivaninha duas folhas para correspondência do hotel, além de um lápis. Quando voltou para junto de Gus, viu que ele nem se movera. Permanecia como o tinha deixado, os olhos fixos na linha indistinta, entre dois matizes diferentes de azul, que era o horizonte.
— Aqui tem. — Ela lhe passou uma das folhas de papel e o lápis. — Escreva seu endereço. Onde eu possa alcançá-lo.
Ele escreveu, depois empurrou a folha de volta.
Ardvray
Bancharry
Aberdeenshire.
Judith dobrou o papel e o enfiou no bolso. Depois foi a sua vez.
The Dower House Rosemullion.
— Se eu escrever, você promete responder, Gus?
— Naturalmente.
— Não restou muita coisa para nenhum de nós, não é mesmo? Sim, devemos apoiar um ao outro. É importante.
Agora foi ele quem dobrou o papel e o deixou abotoado dentro do bolso do peito da camisa.
— Sem dúvida. É importante. Judith... creio que agora preciso voltar. Não devo atrasar-me para a lancha. Perderia o transporte para o navio.
— Vou com você.
— Não. Prefiro ir sozinho.
— Encontraremos um táxi. Tome...
— O que é isso?
— Dinheiro para a corrida.
— Estou me sentindo um homem sustentado.
—Nada disso. Apenas muitíssimo especial.
Ele pegou o saco (que ainda parecia uma garrafa, a despeito do envoltório) e juntos deixaram o terraço, cruzaram o saguão e saíram do prédio. O porteiro chamou um táxi e manteve a porta aberta para Gus embarcar.
—Adeus, Judith. — disse ele, em voz um pouco rouca.
— Prometa que escreverá. Escreverei para você, assim que regressar à Inglaterra.
Gus assentiu. Depois disse:
—Só mais uma coisa. Vai contar para todos, em Nancherrow, sobre hoje?
— Claro que sim.
— Então, diga que estou bem. Que estou ótimo.
— Oh,Gus!
Judith ergueu o rosto e o beijou nas duas faces. Ele entrou no táxi e bateu a porta. Depois foi levado embora, o carro manobrou para a rua e foi rodando ao longo do "Galle Face Green". Sorrindo e acenando, Judith o viu afastar-se, mas tão logo o táxi desapareceu de vista, ela pôde sentir o sorriso corajoso abandonando seu rosto.
Virada para o lado em que o táxi se fora, mandou um alerta silencioso para Gus. Mantenha contato. Você não pode desaparecer outra vez.
— Posso chamar um táxi para a senhorita?
Virando-se, ela olhou para o porteiro, atencioso e resplendente emseu uniforme verde-garrafa. Por um momento, não soube o que lhe competia fazer e nem para onde devia ir. Enfim, não adiantava retornar ao Forte. Decidiu voltar para casa, tomar um banho e atirar-se na cama.
— Sim. Outro táxi. Obrigada.
Novamente a Galle Road, mas agora rodando na direção oposta, com certo conforto, em vez de sacolejar na carroceria de uma camioneta de três toneladas.
Vai contar para todos, em Nancherrow, sobre hoje?
Judith pensou em Walter Mudge, em Nathaniel e Loveday. No casamento que jamais deveria ter acontecido. No filho que nunca devia ter sido concebido e nem nascido. Loveday era sua amiga mais íntima, pessoa alguma no mundo podia ser melhor companhia e ninguém seria capaz de infundir mais raiva. Olhando pela janela do táxi para as calçadas poeirentas, os transeuntes e a avenida de palmeiras pela qual passava, Judith mal suportava contemplar o sombrio regresso ao lar que Gus tinha diante de si. Era algo terrivelmente injusto, não o que ele merecia. De coração opresso, irritada por causa dele, ela transferiu seu ressentimento para Loveday, silenciosamente enfurecida.
Por que você sempre tem de ser tão cabeça-dura, tão impetuosa? Por que não me ouviu naquele dia, em Londres?
Eu já estou esperando um bebê! Loveday gritara para ela, como se Judith fosse alguma retardada. Mais franca seria impossível.
Você transtornou tudo. Gus está vivo e regressando para casa, mas não tem família, porque os pais idosos faleceram. Ele devia estar indo para Nancherrow, para encontrar você à sua espera. Tudo podia ter sido absolutamente perfeito. Ele regressando ao lar, para você. Ao invés -, de voltar para a Escócia e para uma casa vazia, sem família e sem amor.
O que o impedirá de ir a Nancherrow? Ele foi amigo de Edward. Mamãe e papai o acharam excelente pessoa. Nada poderá impedi-lo.
Como ele pode ir a Nancherrow, se você está casada com Walter? Gus a amava, Loveday. Estava apaixonado por você. Levou todo este tempo construindo ferrovias idiotas em Burma e dizendo para si mesmo que você o esperava. Como ele iria a Nancherrow? Você não deve ter coração nem imaginação, para sugerir semelhante coisa.
Ele devia ter-me deixado saber que estava vivo. Agora, ela soava rabugenta.
Como poderia? Segundo me contou, mal podia chegar perto de um telefone. Conseguiu escrever apenas uma carta, para os pais, e nem mesmo tem certeza de que eles a receberam. Por que você desistiu de ter esperanças? Por que não o esperou?
Não sei por que você ficou envolvida tão de repente.
Eu não estou envolvida, mas sinto-me responsável. Gus precisa saber que tem amigos. Não devemos deixá-lo desaparecer novamente. Entretanto, não acredito que ele volte a Nancherrow e duvido que Vá visitar-me na Dower House, pois sabe que todos vivemos em íntimo contato e, cedo ou tarde, acabaria encontrando-se com você. Não vê que me deixou em uma posição insuportável?
Nós certamente não somos seus únicos amigos.
É possível, mas você sabe o quanto Gus amava a Cornualha. Era uma espécie de paraíso para ele, que ficaria pintando e teria você. Como pôde ser tão inflexível? Por que você sempre atrapalha tudo?
Você não sabe se atrapalhei tudo. Nós duas mal nos vimos nestes cinco anos. Como sabe que não sou feliz com Walter?
Porque Walter era o homem errado. Você devia ter esperado Gus
Oh, cale-se!
O táxi agora diminuía a marcha, aproximando-se do lado da rua. Ela viu os portões familiares, a sentinela. Estava em casa. Saiu do táxi pagou a corrida e cruzou os portões.
E então, neste dia extraordinário de extraordinários eventos, aconteceu a última coisa extraordinária, aquela que afugentaria da mente de Judith todas as preocupações, todos os pensamentos sobre Gus e Loveday. As portas do bangalô de Bob estavam abertas, e ela ainda caminhava pela alameda que conduzia à entrada, quando o viu surgir no alto da escada, depois descer correndo os largos degraus e prosseguir em longas passadas pelo bem tratado piso de cascalho, ao seu encontro.
— Onde foi que você esteve? — Bob nunca se zangara com ela em toda a sua vida, porém agora parecia furioso. — Estou à sua espera desde o meio-dia! Por que não voltou para casa? O que ficou fazendo-
— Eu... eu... — Inteiramente confusa pela explosão dele, Judith mal conseguia encontrar palavras para explicar, —.. eu encontrei alguém. Estive no "Galle Face Hotel". Sinto muito...
— Não se desculpe. — Ele não estivera zangado, apenas ansioso. Pousou as mãos nos ombros dela e a firmou, como se ela Pudesse despedaçar-se a qualquer momento. — Somente ouça. Esta manhã recebi um telefonema de sua segundo-oficial em Trincomalee... Chegou um comunicado através de Portsmouth, do HMS Excellent... Jess sobreviveu em Java. Jacarta... The Rajah of Sarawak... um barco salva-vidas... uma jovem enfermeira australiana... campo de internamento...
Judith viu o rosto anguloso dele, os olhos transbordando de excitamento, a boca que se abria e fechava, formando palavras que ela mal entendia.
— ...amanhã ou depois... a RAF... um avião, de Jacarta para Ratmalana... ela estará aqui!
Finalmente ela compreendeu. Ele lhe dizia que Jess estava viva. A pequena Jess. Não se afogara. Não fora morta na explosão. Estava salva.
—... a Cruz Vermelha nos comunicará quando ela deverá chegar... iremos recebê-la juntos, quando descer do avião...
—Jess?
Foi preciso um esforço enorme, até mesmo para dizer o nome dela. De repente, Bob a tomou nos braços e a apertou com tanta força, que Judith receou ter as costelas partidas.
— Sim, Jess! — Havia um tremor na voz, que ele nem mesmo tentou esconder. — Ela está voltando para você!
— É um dia muito excitante para você.
— Sim, é.
— Sua irmã, não? Foi o que disse o capitão de grupo.
— Sim.
— Que idade tem ela?
— Quatorze anos.
Eram cinco da tarde. Judith e Bob — conduzidos em certa pompa no carro dele do estado-maior — tinham-se apresentado ao posto da AF em Ratmalana, às quatro e quinze. Lá, o comandante do posto fora recebê-los e os escoltara até a cantina, onde tomaram chá e ficaram esperando, até a Torre de Controle comunicar que o avião de Jacarta estaria pousando dentro de poucos minutos.
—Acha que poderá reconhecê-la?
— Sim, creio que sim.
Eles saíram da cantina e caminharam pela pista empoeirada em direção da Torre de Controle. Bob Somerville e o capitão de grun seguiam na frente, ambos fardados, falando de assuntos militares. O oficial mais novo —um tenente-aviador, prestando alguma espécie de serviço de recepcionista (secretário? primeiro-tenente? ajudante-de-campo? escudeiro?) —caminhava ao lado de Judith e conversava com ela. O rapaz ostentava um enorme bigode de piloto de combate e usava o quepe surrado em ligeiro ângulo. Ela adivinhou que seu acompanhante desfrutava de certa reputação como galanteador. De qualquer modo, ele claramente aproveitava a bênção de estar ao lado de uma jovem que nada tinha de hedionda e que, além disso, usava um atraente vestido — uma gritante diferença do onipresente uniforme caqui da Força Aérea Auxiliar Feminina.
— Pretende ficar muito tempo em Colombo?
— Na realidade, ainda não sei.
Por fora ela estava calma, por dentro, uma pilha de nervos. E se o avião nunca chegasse? E se, quando aterrasse, Jess não estivesse a bordo? E se alguma coisa terrível houvesse acontecido, algum impedimento? E se uma explosão qualquer derrubasse o avião do céu, matando todos os passageiros?
— Você trabalha para o almirante?
— Não, apenas estou hospedada em sua casa.
— Uma excelente oportunidade.
Ele se esforçava ao máximo, porém ela não queria conversar. Diante da Torre de Controle, eles se juntaram a outros e também aos membros de uma equipagem de terra, todos usando macacões sujos, encarregados dos veículos de manutenção e dos carros-tanque. No extremo oposto da pista havia hangares e grupos de aviões estacionados ordenadamente, Tornados e Hurricanes. A pista estava limpa. O vento inflava as birutas.
Por um instante, ninguém falou. Era um momento de ansiosa expectativa. Então, o tenente-aviador rompeu o silêncio:
— Ele está chegando!
Judith sentiu o coração dar um salto. Os grupos da equipagem em terra, dispersos ao acaso, reuniram-se e correram para seus veículos•
Um ordenança de oficial surgiu no final da pista, em um traje escarlate. Com a mão em pala sobre os olhos, Judith ficou perscrutando O céu, mas nada conseguia enxergar, por causa do clarão do sol que se punha. Aguçando os ouvidos, captou apenas silêncio. Perguntou-se se o tenente-aviador teria sido agraciado com poderes extra-sensoriais. Talvez seu bigode fosse tão sensível como os de um gato, e portanto ele seria bem capaz de...
Então, ela avistou o avião, um brinquedo prateado, suspenso em luz. Ouviu o zumbido dos motores, enquanto ele vinha baixando do sudoeste, perdendo altura, orientado para a pista, o trem de aterrissagem descido, vindo para terra. Tocou o solo com um ruído trovejante, as rodas beijaram a pista, e Judith instintivamente ergueu a mão, querendo proteger o rosto do torvelinho resultante das lufadas de sufocante poeira que seriam arrojadas sobre eles.
Depois disso, tão logo a poeira baixou, houve mais cinco minutos de ansiedade, enquanto esperavam que o Dakota taxiasse lentamente, retornando do final da pista, e viesse parar junto à Torre de Controle. As hélices imobilizaram-se. As pesadas portas divisórias abriram-se pelo interior, e foi encostada ao avião uma improvisada escada com rodas. Os passageiros foram descendo aos poucos e começaram a caminhar pela faixa de concreto. Um líder de esquadrão da RAF, um grupo de pilotos americanos, três tamiles vestidos com decoro, carregando pastas. Dois soldados, um deles de muletas...
Por fim, quando Judith já começava a perder as esperanças, lá estava ela, descendo os degraus com dificuldade. Esquelética e bronzeada como um garoto, usando short e uma desbotada camisa verde, com os cabelos queimados de sol cortados bem rentes. Calçava desajeitadas sandálias de couro que pareciam ser dois números maiores. Pendurada a um ombro ossudo, uma pequena mochila de lona.
Ela parou por um instante, orientando-se, evidentemente um tanto Perdida, ansiosa e apreensiva. Então, corajosamente, começou a caminhar atrás dos outros, mergulhando por baixo da asa do avião. Vindo.
Jess. Naquele momento, as duas podiam ter sido as únicas pessoas no mundo. Judith foi ao encontro dela, procurando naquele rostinho Pétreo e ossudo algum traço da criança rechonchuda, da doce garotinha manhosa de quatro anos de idade, à qual dissera adeus por todos aqueles anos. Jess também a viu e estacou imóvel, mas Judith continuou andando, e foi maravilhoso, porque os olhos de Jess estavam fixos nela, olhos que continuavam tão azuis e tão límpidos como sempre haviam sido.
—Jess...
—Judith? — perguntou ela, porque não podia ter certeza.
— Sim. Judith.
— Pensei que não a reconheceria.
— Eu sabia que reconheceria você.
Judith estendeu os braços. Jess hesitou um momento mais, depois atirou-se para ela, para o abraço à sua espera. Agora estava tão alta que o topo de sua cabeça chegava ao queixo de Judith. E abraçá-la era como envolver algo muito frágil, como um passarinho desnutrido ou um graveto. Ela enterrou o rosto nos cabelos ásperos de Jess e percebeu que cheirava a desinfetante; depois sentiu os braços magros da irmã apertarem-se com força em torno de sua cintura, e estavam beijando-se só que desta vez não houve lágrimas.
Foram-lhes permitidos aqueles poucos momentos juntas, e quando caminharam ao encontro dos três pacientes homens que esperavam, eles as receberam com imensa gentileza e tato. Jess foi cumprimentada no mais casual dos tons, como se diariamente fizesse a longa viagem de Jacarta até ali. Bob nem mesmo tentou beijá-la, apenas amarfanhou-lhe os cabelos curtos com mão suave. Ela não falou muito e também não sorriu. Entretanto, estava bem.
O capitão de grupo acompanhou-os até onde o carro ficara esperando, à sombra de uma cobertura de palha. Ali, Bob se virou para ele.
—Não sei como agradecer-lhe.
— Foi um prazer, senhor. Um dia que não esquecerei.
E ele não se foi imediatamente, mas esperou, viu-os partir, perfilado em elegante continência enquanto o carro se afastava, depois ficou acenando até passarem pelos portões com guardas, saírem para a estrada e desaparecerem de seu campo visual.
— E agora — Bob ajeitou-se confortavelmente no assento e sorriu para sua sobrinha mais nova —Jess. Você está realmente seguindo o seu caminho.
Ela se sentara entre eles, no banco traseiro do enorme carro. Judith não conseguia parar de olhar para Jess, queria tocá-la, alisar-lhe os cabelos. Ela parecia bem. Havia três feias cicatrizes purpúreas em sua perna direita, cada uma do tamanho de uma moeda de meia coroa.
Era possível perceber-se o relevo das costelas por baixo do fino algodão da camisa surrada. Entretanto, ela estava bem. Os dentes eram grandes demais para seu rosto e os cabelos davam a impressão de terem sido cortados com uma faca de trinchar. Entretanto, ela estava bem. Ela era bonita.
Quando viu tio Bob, você o reconheceu? — perguntou Judith.
Jess meneou a cabeça.
— Não — respondeu. Bob deu uma risada.
.— Como poderia? Como você poderia reconhecer-me, Jess? Tinha apenas quatro anos. E ficamos juntos durante muito pouco tempo. Em plymouth. E era Natal.
— Eu me lembro do Natal, mas não me lembro de você. Lembro-me da árvore prateada e de alguém chamado Hobs. Ele fazia torradas amanteigadas para mim.
— Sabe de uma coisa, Jess? Você fala como uma pequena australiana. Gosto disso. Faz com que me lembre de alguns bons colegas meus, camaradas de navio nos velhos tempos.
— Ruth era australiana. — Ela pronunciou a palavra como "austrílian".
—Está falando da moça que cuidou de você? — perguntou Judith.
— Sim. Ela era ótima. Na minha mochila tenho uma carta dela para você. Ela a escreveu ontem. Quer a carta agora?
— Não. Espere até chegarmos. Então eu a lerei.
A essa altura já haviam deixado Ratmalana para trás e seguiam para o norte, pela ampla estrada que levava à cidade. Jess olhava pelas janelas, com certo interesse.
— Aqui é um pouco como era Cingapura.
— Não posso opinar. Nunca estive lá.
— Para onde exatamente estamos indo?
— Para minha casa — respondeu Bob. —Judith também está lá.
— É uma casa grande?
— Bastante.
— Nós vamos ficar lá?
— Naturalmente.
— Eu terei um quarto só para mim?
— Se for o que você quiser.
Jess não respondeu a isso. Judith disse:
— Há duascamas em meu quarto. Você poderá dormir comigo se quiser.
Jess, entretanto, não quis comprometer-se.
— Vou pensar nisso — respondeu. E então: — Posso trocar de lugar com você, para poder espiar pela janela?
Depois disso ela não falou mais, simplesmente sentou-se de costas para Bob e Judith, interessada em tudo pelo qual passavam. Primeiro a zona rural, com pequenas propriedades agrícolas, carros-de-boi e poços, depois as primeiras casas, seguidas por lojas de beira de estrada e desmantelados postos de gasolina. Por fim entraram na comprida Galle Road, e foi somente quando o carro diminuiu a marcha e manobrou para passar pelos portões, que ela tornou a falar.
— Há um guarda no portão — disse, parecendo algo alarmada.
— Sim. É uma sentinela — disse-lhe Bob. — Ele não está lá para impedir que saiamos, mas para garantir que ninguém indesejável entre na casa.
— Ele é sua própria sentinela?
— Exatamente. Também tenho um jardineiro, um cozinheiro e um mordomo. Todos eles são meus. O jardineiro encheu a casa de flores para você, o cozinheiro preparou um pudim de limão especial para o seu jantar, e o mordomo, que se chama Thomas, mal pode esperar para conhecê-la... — O carro chegou à porta e parou. — Aliás, ele já esta lá, veio recebê-la.
Foi uma excelente acolhida. Thomas já descia os degraus e abria a porta do carro, os cabelos recém-oleados, um hibisco enfiado atrás da orelha, irradiando alegria e prazer, os dentes de ouro cintilando, e ajudava Jess a descer, afagando-lhe a cabeça com sua enorme mão escura. Recolheu a mochila dela e a conduziu para dentro da casa, com um braço passado em seus ombros escanifrados, de um modo geral portando-se como se ela fosse sua própria filha perdida, e ele o pai amoroso.
—... você fez uma boa viagem? De avião? Está com fome, está com sede? O que acha de um refresco...?
Jess, entretanto, parecendo um pouco confusa, disse que o que queria mesmo era ir ao banheiro. Assim, Judith entrou em cena, recuperando sua a mochila e a conduziu pelo corredor até o quieto santuário de seu arejado dormitório.
Não ligue para Thomas.
Eu não liguei.
Ele tem andado muito ansioso, desde que soubemos de sua vinda. O banheiro é aqui...
Jess ficou parada na porta aberta, espiando para o mármore cintilante, as torneiras polidas, a reluzente porcelana branca.
— Isto é tudo para você? — perguntou.
— Para nós duas.
.— No acampamento em Asulu havia apenas dois banheiros. Eles fediam. Ruth costumava limpá-los.
—Não deve ter sido muito agradável — disse Judith, sabendo que o comentário era dolorosamente inadequado, mas o único que pôde imaginar.
— Sim, não era mesmo.
—Por que não entra e se põe bonita? Garanto que depois se sentirá melhor.
Jess assim fez, não se preocupando em fechar a porta. Pouco depois, Judith ouviu a torneira correndo e o som de água lavando mãos e rosto.
— Não sei que toalha usar.
— Use qualquer uma. Não faz diferença.
Ela se sentou ao toucador e, na falta do que fazer, começou a pentear os cabelos. Então Jess voltou e encarapitou-se na extremidade de uma das camas. Os olhos das duas encontraram-se através do espelho.
— Está melhor agora?
— Sim. Eu estava mesmo querendo ir ao banheiro.
— É agoniante, não? Já se decidiu? Quer dormir aqui comigo?
— Tudo bem.
— Vou dizer a Thomas.
— Pensei que você fosse parecida com mamãe, mas não é.
— Que pena...
—Não. Você só é diferente. É mais bonita. Ela nunca usava batom. Quando desci do avião, pensei que você talvez não estivesse lá para me receber. Ruth me disse que, se você não estivesse, eu devia ficar no posto da RAF até a sua chegada.
Judith largou o pente e se virou para encarar Jess.
— Sabe de uma coisa? Eu estava pensando o mesmo. Ficava me repetindo que você não vinha naquele avião. E então, quando a vi foi um alívio e tanto.
— É. —Jess bocejou. —Você mora aqui com tio Bob?
— Não. Estou apenas passando uns tempos. Meu trabalho é em Trincomalee. Lá é o grande porto da Marinha Real, no lado leste do Ceilão.
— Os oficiais de reabilitação em Asulu não conseguiam encontrar ninguém para mim. Tivemos que ficar no campo, até descobrirem onde você estava.
— Nem posso imaginar como eles chegaram a lidar com tais problemas. Seria parecido a procurar uma agulha no palheiro. O que aconteceu foi que, finalmente, fiquei sabendo que mamãe e papai tinham morrido. E você também, por falar nisso. Então, resolveram dar-me uma espécie de férias, cujo nome é licença por morte de familiar, e Bob me chamou para ficar aqui.
— Eu sempre soube que mamãe estava morta. Desde que o navio afundou. Entretanto, só me falaram sobre papai. Eles receberam uma mensagem da Cruz Vermelha, em Cingapura. Papai morreu na prisão. Morreu em Changi.
— Sim, eu sei. Aliás, ainda não me conscientizei disso o suficiente. Procuro não pensar muito a respeito.
—As mulheres morriam em Asulu, mas elas sempre tinham amigas.
— Eu acho que papai também teve amigos.
—É. — Ela olhou para Judith. — Nós duas vamos ficar juntas? Eu e você?
— Claro que ficaremos juntas. Nunca mais separadas.
— Para onde iremos? Onde vamos morar?
— Na Cornualha. Em minha casa.
— Quando?
— Não sei, Jess. Ainda não sei. Entretanto, planejaremos alguma coisa. Tio Bob ajudará. Bem — ela olhou para seu relógio. — São seis e meia. Em geral, nesta hora costumamos tomar uma ducha e trocar de roupa, depois ficamos algum tempo na varanda. Bebendo qualquer coisa. Em seguida, jantamos. Hoje o jantar será mais cedo, por sua causa. Achamos que você estaria um pouco cansada, que precisaria dormir.
— Só nós três é que vamos jantar? Você, tio Bob e eu?
— Não. David Beatty também estará presente. Ele mora na casa com Bob. É um homem muito simpático.
— Em Cingapura, mamãe sempre punha um vestido especial para jantar.
—Nós também costumamos mudar de roupa. Não para ficarmos elegantes, mas para estarmos refrescados e confortáveis.
— Eu só tenho estas roupas.
— Vou emprestar-lhe alguma coisa minha. Deve servir, porque você é quase da minha altura. Outro short, talvez uma blusa bonita. Também tenho um par de sandálias de couro vermelho e dourado, que poderão ficar para você.
Jess esticou as pernas e contemplou os pés com desgosto.
— Estas são horríveis. Há muito tempo que eu não usava sapatos. Elas foram tudo que conseguiram encontrar para mim.
— Amanhã pediremos o carro de Bob emprestado e faremos compras. Vamos comprar todo um enxoval novo para você, e também roupas quentes, para quando voltarmos à Inglaterra. Um blusão grosso de lã. E uma capa de chuva. Não esquecendo de sapatos apropriados e soquetes que aqueçam os pés.
— A gente consegue comprar esse tipo de roupas em Colombo? Em Cingapura ninguém usava nada que aquecesse.
— No alto das montanhas é bastante úmido e frio. É lá que ficam as plantações de chá. Bem, o que quer fazer agora? Que tal tomar uma ducha?
— Eu gostaria de ir ver o jardim.
— Por que não toma a ducha primeiro, troca de roupa e fica se sentindo uma nova garota? No banheiro há tudo de que precisa e, quando terminar, escolherá alguma coisa para vestir. Depois poderá ir e encontrar Bob ou explorar o jardim, antes que ele fique escuro.
— Eu tenho uma escova de dentes.
Jess pegou sua mochila. Desafivelou as correias e, lá do fundo, trouxe a escova de dentes, uma pequena barra de sabão e um pente. Depois surgiu algo embrulhado em um farrapo desbotado que, ao ser cuidadosamente desembrulhado, revelou-se um pequeno tubo como uma flauta, feito de um pedaço de bambu.
— O que é isso?
— Ganhei de um dos garotos do campo. Ele mesmo que fez. Serve para tocar músicas perfeitamente. Certa vez tivemos um concerto Organizado por Ruth e uma das senhoras holandesas.
Jess deixou a flauta em cima da cama, a seu lado, e começou a remexer novamente no interior da mochila.
— O que aconteceu àquele seu boneco de pano?
— Explodiu com o navio — respondeu Jess, em voz desapaixonada. Tirou da mochila um maço dobrado de papel, folhas pautadas e arrancadas de um bloco de rascunho amarelo. Estendeu-as a Judith. — Isto é para você. De Ruth.
Judith apanhou as folhas.
— Parece uma carta bem comprida. Vou deixar para ler mais tarde. Enquanto falava, colocou as folhas sobre o toucador, firmando-as com o pesado frasco de "UHeure Bleu", de cristal lapidado. Depois, mostrou a Jess como fazer o chuveiro funcionar, e a deixou sozinha. Quando ela tornou a aparecer, algum tempo mais tarde, estava nua, exceto pela diminuta toalha de rosto que enrolara em torno da cintura. Os cabelos molhados espetavam o ar, e estava tão magra, que era possível contar-se cada costela. Entretanto, os seios juvenis já tinham começado a inchar, como pequenos botões de flor, e ela agora não cheirava mais a desinfetante, mas a sabonete Rosa Gerânio.
As duas levaram algum tempo escolhendo roupas e finalmente decidiram-se por short branco para tênis e uma blusa chinesa de seda azul. Após vestir a blusa e enrolar as mangas acima dos cotovelos pontudos, Jess pegou seu pente e penteou os cabelos úmidos, colan-do-os à cabeça.
—Você está muito bem. Sente-se melhor agora?
— Hum-hum. Eu tinha esquecido como era seda. Mamãe costumava usar vestidos de seda. Onde estará tio Bob?
— Na varanda, imagino.
— Vou até lá.
— Certo. Faça isso.
Foi bom, por um momento apenas ficar sozinha, exaurida pela emoção e tomada de gratidão, mas ainda assim, calma. Era importante Manter a calma, porque desta maneira conseguiria reconstruir o relacionamento com Jess, começando do começo, por assim dizer. Da parte de Jess, quando do encontro em Ratmalana, a espontânea demonstração de afeição física havia sido resultante, não de um amor recordado, mas gerada pelo puro alívio em saber que não fora esquecida nem abandonada. Dez anos eram demasiado tempo para um amor sobreviver e, nesse período, muita coisa tinha acontecido a Jess. Entretanto, tudo terminaria bem, se Judith fosse paciente, não se desse pressa, não se intrometesse e procurasse tratar a irmã como se já fosse uma adulta. Uma contemporânea sua. Jess voltara. Era um começo. Aparentemente normal, composta e sem traumatismos. Este seria o ponto de partida.
Após um momento, Judith levantou-se, escolheu suas roupas, tomou uma ducha e tornou a vestir-se — calças compridas de tecido fino e uma blusa sem mangas. Passou uma sombra de batom, ergueu o frasco de "DHeure Bleu" e tocou o aplicador na base do pescoço e atrás das orelhas. Depois deixou o frasco no toucador e pegou as páginas amarelas da carta da moça australiana.
Jacarta, 19 de setembro de 1945
Prezada Judith
Meu nome é Ruth Mulaney, Tenho vinte e cinco anos. Sou australiana.
Em 1941 terminei meus estudos de enfermagem em Sidney e fui para Cingapura, ficar com amigos de meus pais.
Quando os japoneses invadiram a Malaia, meu pai passou um cabograma dizendo-me que voltasse para casa, e consegui uma passagem no The Rajah ofSarawak. O navio era uma velha banheira flutuante, superlotada de refugiados.
Fomos torpedeados seis dias mais tarde, no mar de Java, por volta das cinco da tarde. A mãe de Jess havia descido por um momento e me pediu para ficar de olho na garota.
O navio afundou rapidamente. Houve muitos gritos, muita confusão. Agarrei Jess e um só colete salva-vidas, depois saltamos no mar. Consegui mantê-la segura até aparecer um barco salva-vidas, que nos recolheu. Nós fomos as últimas a entrar porque o barco já estava muito cheio, e quando outros queriam entrar também, tínhamos de empurrá-los para fora ou bater neles com os remos.
Não havia barcos, coletes ou balsas suficientes. Tampouco havia água nem rações de emergência no barco, mas eu e outra mulher tínhamos uma garrafa de água. Em nosso barco também iam chineses, malaios e uma tripulação lascar.
Ficamos à deriva naquela noite, e também no dia e noite seguintes. Pela manhã, fomos avistados por um barco pesqueiro indonésio, que nos recolheu. Eles nos levaram para Java, onde tinham sua aldeia junto ao mar. Eu queria ir a Jacarta, ver se conseguia outro navio que nos levasse para a Austrália, porém Jess estava doente.
Ela havia cortado a perna, não sei como, o ferimento ficara inflamado e provocara febre. Além disso, estava seriamente desidratada.
Os outros sobreviventes foram embora, mas nós duas ficamos com os pescadores, em sua aldeia. Pensei que Jess fosse morrer, porém era uma menina durona e levou a melhor.
Quando ela ficou em condições de ser removida, os aviões japoneses estavam aparecendo no céu. Por fim, na estrada de Jacarta conseguimos uma carona em um carro-de-boi, mas tivemos que caminhar pelos últimos vinte e cinco quilômetros. Os japoneses, contudo, já estavam lá, de modo que fomos detidas e colocadas em um campo em Bandung, com um punhado de holandesas e crianças.
Bandung foi o primeiro de quatro acampamentos. O último, em Asulu, foi o pior de todos. Era um campo de trabalho, e todas nós tivemos que labutar nas plantações de arroz, limpar ralos e latrinas. Sendo Jess tão criança, não a fizeram trabalhar. Estávamos sempre famintas, e às vezes passávamos fome porque um dos castigos era todos ficarem sem alimento durante dois dias.
Marinheiro da costa oriental da índia. (N. da T.)
Comíamos arroz, mingau de sagu e sopa feita de restos de vegetais. Os indonésios às vezes jogavam algumas frutas por cima da cerca de arame ou eu conseguia trocar qualquer coisa por um ovo ou um pouco de sal. No campo havia mais duas australianas, enfermeiras. Uma delas morreu, e a outra foi fuzilada.
Jess nunca mais tornou a ficar realmente doente, mas teve úlceras e bolhas, que deixaram algumas cicatrizes.
Tentamos dar um pouco de instrução às crianças, porém os guardas tomaram todos os nossos livros.
Sabíamos que a guerra estava terminando, porque algumas mulheres tinham surripiado partes de um rádio, que depois montaram e esconderam.
Então, em finais de agosto, ficamos sabendo que os americanos tinham bombardeado o Japão e que as Forças Aliadas seriam desembarcadas emjava. Depois disso, o comandante do campo e todos os guardas desapareceram, mas nós continuamos lá, porque não havia lugar nenhum para onde irmos.
Um avião americano sobrevoou o campo, deixando cair caixotes em pára-quedas, contendo alimentos enlatados e cigarros. Aquele foi um ótimo dia.
Depois foi a vez dos ingleses, e vieram também os maridos holandeses que haviam sobrevivido em seus campos. Imagino que tenham ficado bastante chocados, quando viram o estado em que nos encontrávamos.
Dois motivos foram a causa de você demorar tanto a saber que Jess estava viva.
Um deles, é que há turbulências fermentando na Indonésia. Acontece que os indonésios não aceitam mais os holandeses como colonizadores. Isto fez com que tudo marchasse lentamente.
O outro motivo é que Jess foi inscrita com o meu sobrenome, como Jess Mulaney, e dissemos para todos que éramos irmãs. Eu não queria que ela se separasse de mim. Nem mesmo às holandesas contamos que não éramos irmãs.
Eu receava ser repatriada antes dela e por causa disso ter que deixá-la para trás, de modo que contei a verdade apenas quando chegou o momento de partirmos. Somente então o exército ficou sabendo que ela era realmente Jess Dunbar.
No decorrer destes três anos e meio, ela foi testemunha de alguns eventos terríveis, atrocidades e mortes. Jess pareceu aceitar tudo isso e a manter a cabeça baixa. Crianças parecem capazes de desligar-se. Ela é uma grande pessoinha e muito corajosa.
Durante o tempo em que ficamos juntas, nós nos tornamos muito íntimas e importantes uma para a outra. Ela parte amanhã de avião, e está bastante infeliz por termos de separar-nos. Ao mesmo tempo, aceita a circunstância de que não podemos mais continuar juntas.
Para facilitar as coisas, eu lhe disse que não será uma despedida para sempre, que um dia ela poderá vir à Austrália, ficar comigo e minha família. Somos pessoas tipicamente da classe média. Meu pai é um empreiteiro de obras e moramos em uma casinha em Turramurra, subúrbio de Sidney. Eu ficaria muito grata se, quando ela for um pouco mais velha, você a deixar fazer a viagem.
Irei para casa logo depois de Jess, assim que encontrar passagem em um navio ou um vôo em um avião.
Cuide bem de nossa irmãzinha.
Com afeto,
Ruth Mulaney
Judith leu a carta duas vezes, do começo ao fim, depois leu-a novamente e a dobrou, guardando-a na primeira gaveta de seu toucador. Cuide bem de nossa irmãzinha. Durante três anos e meio, Ruth havia sido a segurança de Jess, apesar de tênue. Era aí que residiam amor e a lealdade de sua irmã menor. E tivera de dizer adeus, de deixar tudo isso para trás.
Agora já escurecera. Levantando-se, Judith saiu do quarto e foi à procura de Jess. Encontrou-a sozinha, na varanda iluminada pela lámpada, folheando um dos maciços álbuns de fotografia de Bob. Quando Judith apareceu, ela ergueu os olhos.
Venha ver estes retratos comigo. São tão engraçados! Mamãe e papai. Há séculos. Parecendo tão novos...
Judith instalou-se no almofadado sofá de vime e passou um braço pelos ombros da irmã.
— Onde está tio Bob?
— Foi trocar de roupa. Deu-me este álbum para olhar. Este é de quando eles moravam bem aqui, em Colombo. E aqui está um seu, com um chapéu horroroso... — Ela virou outra folha. — Quem são estas pessoas?
— Nossos avós. O pai e a mãe de mamãe.
— Parecem muito velhos.
—E eram. Além de incrivelmente enfadonhos. Eu odiava ficar com eles. Acho que você também não gostava muito, embora fosse tão pequenina. E esta aqui é Biddy, esposa do tio Bob. Irmã de mamãe. Você vai adorá-la. Ela é divertida, faz a gente rir o tempo todo.
— Eeste?
— É Ned, quando tinha uns doze anos. Filho deles. Nosso primo. Foi morto logo no começo da guerra, quando afundaram seu navio.
Jess não fez comentários. Simplesmente virou mais uma folha.
—Já li a carta — disse Judith. — Ruth parece ter sido uma pessoa especial, não?
— E foi mesmo. Também foi corajosa. Nunca tinha medo, fosse do que fosse.
— Ela disse que você também foi muito corajosa. — Jess deu de ombros, elaboradamente. — Ela disse que, nos campos, para todos os efeitos vocês duas eram irmãs.
—Nós fingíamos. No começo. Só que depois ficou parecendo de verdade.
—Deve ter sido muito difícil... dizer adeus para ela.
— Foi.
—Ruth disse que, quando você for um pouco mais velha, quer que vá à Austrália e fique hospedada em casa dela.
— Nós falamos sobre isso.
— Eu acho uma excelente idéia.
Jess ergueu a cabeça bruscamente e, pela primeira vez, fitou Judith nu rosto.
— Eu poderia? Poderia ir?
—Naturalmente. É claro que poderia. O que acha de quando fizer dezessete anos? Faltam apenas três anos.
— Três anos
— Você terá de freqüentar uma escola, Jess. Quando voltarmos Terá muito que aprender. Entretanto, não precisará ficar longe. Poderá estudar no Santa Ursula, onde estive. Como aluna externa.
Jess, entretanto, não estava interessada em conversas sobre escolas
— Achei que você ia dizer que eu não poderia ir. — Ela estava claramente decidida a esticar o assunto. — Achei que ficaria muito caro. A Austrália é tão longe da Inglaterra...
— Não será tão caro como imagina, fique certa. E depois, quando voltar da Austrália, talvez possa trazer Ruth com você. Ela ficaria hospedada conosco.
— Está falando sério?
— Muito sério.
— Oh!... Eu gostaria disso mais do que qualquer coisa no mundo! Se pudesse ter um único desejo, seria esse. Foi a pior coisa do mundo despedir-me dela esta manhã. Eu ficava pensando que nunca, nunca mais tornaria a vê-la. Posso escrever para Ruth e contar o que você disse? Sei o endereço dela na Austrália. Eu o decorei, para o caso de perder o pedacinho de papel.
—Acho que devia escrever para ela amanhã mesmo. Sem perda de tempo. Depois, as duas podem começar a ficar pensando no reencontro. É importante que a gente sempre tenha alguma coisa pela qual ansiar. Entretanto... —Judith vacilou. —Nesse meio tempo, talvez nós duas devamos começar a fazer planos mais imediatos.
Jess franziu a testa.
— Como assim? — perguntou.
—Acho que é hora de irmos para casa.
Judith arrumava as malas. Era uma ocupação que sempre considerara borrecida, agora tornada mais complicada pelo fato de ser uma bagagem para duas pessoas, além de ter de preparar quatro volumes, ndois para Necessários em Viagem e mais dois para Não Necessários em Viagem.
Para os Não Necessários em Viagem, ela comprara duas grandes e fortes malas de couro, presas por correias com fivelas. Esperava-se que fossem fortes o bastante para sobreviverem a manipulações dos trabalhadores do cais, tanto em Colombo como em Liverpool, além de não se desmantelarem, caso despencassem de grande altura. Para os Não Necessários em Viagem, ela estava usando sua própria mala, que trouxera de Trincomalee, mas para Jess havia comprado um espaçoso saco de couro para viagem.
A loja "Whiteaway e Laidlaw", aquela "Harrods" do Oriente, não as decepcionara.
Quanto a roupas, a grande expedição para compras consumira a maior parte de um dia, e Judith gastou à vontade, deixando a prudência de lado. Sabia que o racionamento de roupas estava mais severo do que nunca na Inglaterra e que, após chegarem em casa, não haveria esperanças de comprar muita coisa mais. Por outro lado, era bem provável que todas as formalidades burocráticas demorassem algum tempo caminhando por seus variados canais competentes e, até lá, nem ela e nem Jess teriam acesso a cupons para roupas, não se falando em cupons para alimentos racionados, cupons para gasolina, cartões de identidade e todas as restrições dos tempos de guerra, que ainda perseguiam uma nação sitiada e tão longamente sofredora.
Assim, para Jess foi comprado um guarda-roupa completo, a começar pelas roupas íntimas. Blusas, suéteres, saias, meias de lã até os joelhos, pijamas, quatro pares de sapatos, um grosso robe e uma Capa de chuva, quente e sensata. Tudo isto jazia sobre a cama de Jess, em pilhas perfeitamente dobradas e destinadas a uma viagem no porão de um navio de transporte de tropas. Para a viagem de volta ao lar, ela deixara de fora apenas o básico mais essencial. Segundo fora informada, o navio estava lotado até as bordas de soldados que regressavam, e espaço pessoal era altamente cotado. Portanto, shorts e macacões de algodão, um cardigan, uma camisola de dormir leve, tênis de lona de ginástica. Para o dia do desembarque, um par de calças compridas e um casaco castanho...
Agora, às quatro da tarde, o calor era tal que se tornava impossível imaginar que, dentro de mais três semanas, ela e Jess estariam realmente contentes com todas aquelas peças grossas, pesadas e ásperas. O próprio esforço de dobrar uma suéter Shetland era mais ou menos como tricotar em uma enorme onda de calor, e ela podia sentir o suor escorrendo pela nuca, a umidade dos cabelos colados à testa.
— Senhorita Judith.
A voz suave de Thomas. Ela endireitou o corpo e se virou, puxando os cabelos para fora do rosto. Tinha deixado a porta aberta, a fim de criar uma corrente de ar, e agora via Thomas parado na soleira. acanhado pela interrupção.
— O que é, Thomas?
— Um visitante. Ele espera a senhorita. Na varanda.
— Quem é?
— O capitão-de-fragata Halley.
—Oh! —Judith levou instintivamente a mão à boca. Hugo. Estava em enorme falta com Hugo porque, desde a volta de Jess, uma semana atrás, não tornara a vê-lo, não mantivera contato e — verdade seja dita —mal se lembrara dele. Além disso, naqueles últimos dias houvera tanta coisa a providenciar, tantos preparativos a fazer, que nunca surgira um momento apropriado para que ela chegasse ao telefone e discasse o número dele. À medida que os dias corriam, o senso de culpa avolumava-se e, ainda nesta manhã, ela escrevera um lembrete para si mesma — LIGAR PARA HUGO — e enfiara o pedacinho de papel na moldura de seu espelho. E agora, ele estava ali. Ele é que tomara a iniciativa, fazendo-a sentir-se envergonhada por sua falta de boas maneiras. — Eu... eu irei ao encontro dele em um momento, Thomas. Quer dizer-lhe isto?
— Levarei o chá da tarde para ambos.
Thomas fez uma mesura e retirou-se silenciosamente. Sentindo-se em franca desvantagem, Judith suspendeu a arrumação de bagagens, lavou o rosto e as mãos suadas, depois tentou dar um jeito nos cabelos flácidos. O vestido de algodão sem mangas não estava limpo nem com poucos momentos de uso, mas teria de ser o suficiente. Enfiando os pés em sandálias de couro, ela deixou o quarto e foi ao seu encontro encontrou Hugo em pé, um ombro recostado ao poste da varanda, de costas para ela, contemplando o jardim. Estava de uniforme, porém deixara o quepe no assento de uma cadeira.
- Hugo.
Ele se virou.
- Judith...
A expressão dele não era de aborrecimento ou censura, o que constituía um grande alívio. Pelo contrário, parecia deliciado em vê-la, como sempre.
— Oh, Hugo, estou morrendo de vergonha.
— Porquê?
.Porque há muito eu devia ter telefonado para você, a fim de dar-lhe alguma idéia do que estava acontecendo. Entretanto, tenho tido um mundo de coisas para fazer e, simplesmente, parecia não encontrar tempo. Fui muito descortês. Peço que me perdoe.
— Pare de censurar-se. Eu nem tinha pensado nisso.
—Minha aparência é de pura sujeira, porém tudo que estava limpo já foi posto na bagagem.
— Você está ótima. E, sem dúvida, mais limpa do que eu. Passei o dia todo em Katakarunda; pensei em dar uma passada por aqui, a caminho do Forte.
— Foi bom ter vindo. Porque viajamos amanhã.
— Já tão cedo?
— Deixei um lembrete em meu toucador, a fim de ligar para você no fim da tarde.
— Talvez eu é que devesse ter ficado em contato com você. entretanto, sabendo da situação, não quis impor-me.
— Eu nunca iria embora sem me despedir de você, Hugo. Ele ergueu as mãos, em um gesto de capitulação.
— Vamos esquecer isso. Você parece esgotada e eu me sinto esgotado. Por que não nos sentamos por um momento e simplesmente não relaxamos?
Foi esta a melhor idéia que qualquer pessoa já tivera em todo aquele ano. Judith arriou na espreguiçadeira de Bob, com os pés sobre o descanso para pernas, e se recostou nas almofadas, com um suspiro de alívio.
Hugo puxou uma banqueta e se sentou à frente dela, inclinado para diante, os cotovelos suportados pelos joelhos nus, queimados de sol.
— Muito bem, agora vamos começar do começo. Você parte amanhã?
— Levei a tarde inteira arrumando a bagagem.
— E quanto às Wrens? Seu trabalho?
— Oh, estou em licença por morte de familiar, mas de período indeterminado. Quando voltar para casa, conseguirei uma dispensa também por morte de familiar. Está tudo acertado. A oficial-chefe de Wrens em Colombo tomou todas as providências.
— Como vai voltar?
— Em um navio para transporte de tropas. No último momento Bob conseguiu dois beliches para nós.
— No Queen of the Pacific?
— No próprio. Curiosamente, o mesmo velho barco em que vim. Esta viagem de agora, no entanto, vai ser realmente apertada. Há famílias do Ceilão regressando à Inglaterra e um destacamento da Real Força Aérea partindo da índia. Enfim, não importa. O importante é que estaremos a bordo. — Ela sorriu, sentindo-se novamente culpada. — É uma coisa terrível de dizer, mas ajuda muito ter-se um contra-almirante como parente. Bob não esteve apenas puxando cordões, mas girando manivelas em cabos de aço. Gritando ao telefone, fazendo valer sua influência. Ele é que fez tudo.
— E Trincomalee?
— Não cheguei a voltar. E nunca mais voltarei lá.
— E seus pertences? O que deixou para trás?
— Tudo que era especial eu trouxe comigo para Colombo. La deixei apenas uns poucos livros, algumas roupas desbotadas e me uniforme de inverno. Não me preocupa o que possa acontecer com qualquer dessas coisas. Não tem importância. Aliás, na semana passada eu e Jess fomos à "Whiteaway e Laidlaw" e passamos o dia inteiro fazendo compras. Assim, estamos ambas equipadas para qualquer eventualidade.
Ele sorriu.
— Gostei da maneira como disse isso.
— Disse o quê?
— Eu e Jess. Como se vocês duas nunca se tivessem separado.
- Não foi um milagre, Hugo? Não parece um sonho? Eu talvez dê a impressão de que nunca ficamos separadas, mas ainda acordo à noite e me pergunto se tudo não é imaginação minha. Então, tenho que acender a luz, a fim de olhar para Jess, deitada na cama ao lado, e certificar-me de que é tudo verdade.
Como está ela?
Muitíssimo bem. Com capacidade para uma rápida recuperação. Talvez surjam problemas mais tarde. Físicos ou psicológicos. Até agora, no entanto, ela parece ter reagido com pleno sucesso.
- Onde Jess está agora?
- Bob a levou ao zoológico. Ela queria ver os crocodilos.
— Lamento não a ter encontrado.
— Logo estarão de volta. Fique até eles chegarem.
—Não posso. Fui convocado para uns drinques com o comandan-te-em-chefe, e, se chegar atrasado, posso pegar uma corte marcial.
Nesta altura, os dois foram interrompidos por Thomas, caminhando ao longo da varanda com a bandeja do chá. Hugo esticou-se para diante, puxou uma mesa, e Thomas, com sua costumeira formalidade, depositou a bandeja, fez uma mesura e retirou-se.
Depois que ele se foi, Judith disse:
— Sei que Bob contou a você tudo sobre Jess, sobre o campo em Java etc, mas não lhe contou sobre Gus Callender.
— Quem é Gus Callender? Quer que eu seja bonzinho e lhe sirva o chá?
— Por favor. Obviamente, ele não lhe contou. Foi, simplesmente, a coisa mais extraordinária, Hugo. Tudo acontecendo no mesmo dia. Na manhã do mesmo dia quando fomos informados de que Jess estava Viva. Está a par daquele navio-hospital, o Orion Com os homens que tinham estado construindo a estrada de ferro de Burma?
— Claro que estou. O navio ficou aqui por um dia, tendo partido no fim dessa mesma tarde.
— Bem, fui dar as boas-vindas aos rapazes que vinham em terra...
Hugo estendeu-lhe a xícara e o pires, ela aspirou o perfume do chá da China e o odor picante do limão, mas estava quente demais para ser bebido, e então deixou que repousasse em seu colo. —...
- ...E lá estava aquele homem, capitão nos Gordon Highlanders...
Judith relatou o bizarro encontro. Sua crença de que Gus estava morto e a súbita descoberta dele vivo. A ida de ambos ao "Galle Face Hotel"; o comovente encontro com o velho garçom; a garrafa de uísque Black & White. Ela lhe falou sobre a aparência de Gus e como estava vestido e como, por fim, o colocara em outro táxi, para o Forte e ao navio-hospital; a despedida dos dois.
—... e então vim para cá, mas mesmo antes de entrar em casa tio Bob já surgia na porta e me dizia que Jess estava viva. Duas pessoas que julguei desaparecidas para sempre! Tudo no mesmo dia! Não é uma coisa estranha, Hugo?
—Absolutamente espantosa — disse ele, e era sincero.
— O único porém é que não fico tão feliz a respeito de Gus como estou sobre Jess. Os pais dele já eram idosos, e morreram enquanto ele estava aprisionado e trabalhando na construção da estrada de ferro. Em Rangum, contaram a Gus que seus pais haviam falecido. Ele não tem mais nenhum parente no mundo. Era filho único. Acredito que seu regresso seja desolador, quando voltar à Escócia.
— Onde ele mora?
— Em algum lugar de Aberdeenshire. Não sei ao certo. Nunca o conheci muito bem. Ele era amigo de amigos meus, na Cornualha. Passou com eles o verão de antes da guerra. Foi onde o conheci e, desde então, nunca mais pus os olhos em cima dele. Até tornar a vê-lo, em pé, lá no "Gordon's Green".
— Ele tem um lar para onde voltar?
— Tem. Creio que é algo como uma imensa propriedade. E lá, certamente, parecia haver muito dinheiro. Ele estudou em Cambridge, e antes disso, em Rugby. Além do mais, dirigia um Lagonda muito elegante, de alta potência.
— Dá a impressão de que ele ficará bem.
—Sim, mas as pessoas importam, não é mesmo? Parentes, amigos...
— Se ele serviu em um regimento escocês, estará cercado de amigos.
— Espero que sim, Hugo. Sinceramente, é o que mais desejo. O chá de Judith havia esfriado. Ela ergueu a xícara e tomou alguns goles, sentindo-se aquecida, mas também refrescada, tudo ao mesmo tempo. Ainda pensando em Gus, falou:
— Mesmo assim, eu devo manter contato com ele.
— E para quem — perguntou Hugo — você está regressando? Ela deu uma risada.
— Para uma casa adorável, cheia de mulheres.
— E Jess?
Mais cedo ou mais tarde, terá de ir para a escola. Talvez mais tarde. Ela merece algum tempo para instalar-se, adaptar-se, divertir-se um pouco.
Amigos e família?
— Naturalmente.
Nenhum pretendente apaixonado, esperando para reclamar você? Esperando para enfiar uma aliança em seu dedo?
Às vezes era difícil saber se Hugo estava ou não brincando. Judith olhou para o rosto dele, e viu que falava sério.
— Por que pergunta?
— Porque se houvesse, eu diria que ele era um felizardo.
Ela pegou sua xícara com o pires, depois inclinou-se e colocou tudo sobre a mesa.
— Hugo, eu seria capaz de odiá-lo, se por acaso pensasse que o usei, simplesmente.
— Eu jamais pensaria tal coisa. Aconteceu apenas que estava por perto, quando você enfrentava um dia ruim. Só desejava que houvéssemos tido mais tempo juntos.
—Já falamos sobre tudo isso antes. Não creio que fizesse qualquer diferença.
— É. Provavelmente não faria.
— Entretanto, isto não significa que não tenha sido o máximo. Conhecer você, e todas as coisas que fizemos juntos. E, com a guerra terminada, saber que ela não exterminou todas as coisas frívolas, triviais e divertidas que as pessoas costumavam fazer antes de tudo começar. Como "Só tenho amor para dar-lhe, meu bem", dançar ao luar, usar um vestido novo e quase morrer de rir da terrível Moira urridge. Sou muito grata, sinceramente. Não posso imaginar mais ninguém que trouxesse tudo isso de volta, que tornasse tais coisas novamente reais, tão agradavelmente.
Hugo esticou o braço e segurou a mão dela.
— Quando eu voltar para a Inglaterra — seja lá quando for — Poderemos encontrar-nos?
— Naturalmente. Você deve ir visitar-me na Cornualha. Tenho uma casa bem perto do mar. Poderá passar o verão lá. Sozinho ou com alguma estonteante companheira. No correr do tempo, levará sua esposa e filhos, e todos iremos encher baldes de areia na praia.
— Gosto disso.
— De que você gosta?
— De claras intenções.
— Não desejo ficar grudada a você, Hugo. Nosso relacionamento nunca foi desse tipo. Entretanto, também não quero perdê-lo.
— Como poderei encontrá-la?
—Através da lista telefônica. Dunbar, Dower House, Rosemullion
— Se eu telefonar para você, promete não dizer, "Quem, raios é você?"
— Prometo. Afinal, creio que eu jamais diria tal coisa.
Ele ficou lá por mais algum tempo e eles continuaram conversando sobre nada em particular. Por fim, Hugo olhou para seu relógio e disse que era tempo de ir andando.
— Preciso dar alguns telefonemas, escrever uma carta e apresentar-me ao comandante-em-chefe pronto para funcionar a contento, e cinco minutos antes da hora marcada.
— Quando será isso?
— Às seis e meia. Coquetéis. Ocasião de pompa e circunstância. Nada menos do que lorde e lady Mountbatten.
— Moira Burridge estará lá?
— Que os céus não permitam!
— Dê-lhe lembranças minhas.
— Se você não tomar cuidado, darei a ela seu endereço na Cornualha, acrescentando que mal pode esperar para tê-la como hóspede.
— Faça isso, e eu o mato!
Judith acompanhou-o até a porta, depois desceu a escada até onde o carro dele ficara estacionado, no caminho forrado de cascalho. Hugo virou-se para ela.
— Adeus.
— Adeus, Hugo. Beijaram-se. Em ambas as faces.
— Foi maravilhoso.
— Sim. Maravilhoso. E muito obrigada.
-Estou satisfeito, tão satisfeito por tudo ter dado certo para você!
Ainda não deu certo, Hugo — disse ela — mas é um começo.
"The Queen of the Pacific" Mediterrâneo
Sexta-feira, 12 de outubro de 1945
Prezado Gus
Estou sentada em um convés de recreio, cercada por bandos de crianças aos gritos e mães perturbadas, além de um grande número de aviadores absolutamente entediados. Não há onde sentar-nos, de modo que estamos todos agachados no convés, como um punhado de refugiados, ficando mais sujos a cada dia que passa, porque há escassez de instalações sanitárias!
Entretanto, devo explicar. É mais fácil começar pelo momento em que me despedi de você, diante do "Galle Face". Ao chegar em casa nesse dia, Bob (meu tio, o contra-almirante Somerville) me disse que minha irmã mais nova, Jess, havia sido encontrada em um campo de internação, em Java. Primeiro você, e depois ela! Um dia de milagres. Pensando em uma caça aos faisões, Bob disse que fora um tiro com espingarda de dois canos.
Ela agora está com quatorze anos. Veio de Jacarta a Colombo em um Dakota da Força Aérea americana. Eu e Bob fomos esperá-la no posto aéreo de Ratmalana. Ela está muito magra e queimada de sol. Em breve chegará à minha altura. O principal é que se encontra bem.
Em vista disso, tivemos uma semana de tremendos preparativos, cujo desfecho é que agora estamos ambas a caminho de casa. Consegui uma dispensa por morte de familiar e voltaremos juntas para Dower House.
Tenho pensado tanto em você... A esta altura, talvez já esteja de volta à Escócia. Estou enviando esta para o endereço que me deu e porei a carta no correio quando chegarmos a Gibraltar.
Foi a coisa mais maravilhosa tornar a encontrá-lo e podemos passar algum tempo juntos. Lamentei muitíssimo ter de contar-lhe que Loveday estava casada. Compreendo perfeit mente que, por causa dela, durante algum tempo você talvez não queira voltar à Cornualha. Entretanto, quando estiver de novo instalado em Ardvray e após recolher outra vez os fios de sua vida, é possível que pense diferente. Quando isto acontecer, saiba que a mais calorosa acolhida estará à sua espera. Não falo apenas de mim, mas também de Nancherrow. Apenas, venha E não esqueça seu caderno de desenhos!
Por favor, escreva para mim, conte-me como estão indo as coisas e quais são os seus planos.
Com todo o meu afeto,
Judith
Dower House, Rosemullion
Domingo, 21 de outubro
DIA DA BATALHA DE TRAFALGAR
Meu querido Bob
Elas estão em casa. Sãs e salvas. Aluguei um enorme táxi e, na sexta-feira, fui apanhá-las quando desembarcassem do Riviera, em Penzance. O trem chegou à estação, e lá estavam elas na plataforma, cercadas por pilhas de bagagens. Penso que nunca fiquei tão feliz em toda a minha vida.
Ambas estavam com boa aparência, embora cansadas e algo emaciadas. Jess em nada faz lembrar a garotinha gorducha mimada que esteve conosco em Keyham, naquele Natal. A exceção são aqueles olhos azuis, tão brilhantes como sempre. Ela tem falado muito sobre você e sobre o pouco tempo passado em Colombo, na sua companhia.
O mais comovente foi quando ela tornou a ver Phyllis. No momento em que o táxi chegou à DowerHouse. Phyllis e Anna, com Morag em seus calcanhares, saíram da porta para receber-nos. Ninguém havia dito nada a Jess, porém mal ela pousou os olhos em Phyllis, desceu do táxi antes mesmo que ele parasse, e atirou-se nos braços dela. Penso que Anna ficou um pouco enciumada, porém Jess tem-se mostrado particularmente simpática com ela; segundo nos contou, passava muito do seu tempo nos campos de prisioneiros ajudando a cuidar das crianças menores.
Judith mostrou-me a carta daquela bondosa jovem australiana que cuidou de Jess, quando ambas foram internadas nos campos. As duas devem ter passado o diabo juntas, e estou certa de que, cedo ou tarde, Jess começará a falar de suas pavorosas experiências. Também tenho certeza de que, quando tocar neste assunto, será com Phyllis.
Esta manhã fui à igreja e disse OBRIGADA, MEU DEUS.
Agora é domingo à tarde, um friorento dia de outubro, as árvores estão sem folhas, chove de vez em quando e sopra um vento cortante. Judith levou Jess a Nancherrow para um chá no quarto de brinquedos com todos eles, além de Loveday e Nat. Há cerca de uma hora, as duas se foram andando, embrulhadas em capas de chuva e com botas de borracha. Devemos comprar uma bicicleta para Jess, na primeira oportunidade. Trata-se de algo realmente essencial, porque só recebemos uma colher de chá de gasolina por semana, e o carro de Judith continua sobre calços na garagem e totalmente fora de uso, até ela conseguir sua própria ração de combustível.
Estamos um pouco espremidas na casa, porém sem perda de conforto. Anna agora dorme no quarto da mãe, e seu quarto ficou parajess. Entretanto, creio ser chegado o momento de eu voar deste ninho e começar a construir outro só para nós dois. Vi uma casa encantadora em Portscatho a semana passada: três quartos e dois banheiros, não na aldeia, mas sobre a colina, com vista para o mar. Fica a menos de um quilômetro do mercado da aldeia, e a uns três de SaintMawes. (Com ancoradouro para seu barco. Está em excelente estado e, se quiséssemos, poderíamos mudar-nos para lá amanhã mesmo. Assim, estou pensando em fazer uma oferta e comprá-la. Outro dia falei com Hester Lang por telefone, e ela prometeu vir ficar comigo e ajudar na mudança. Quero estar com tudo instalado e pronto para o seu regresso, quando então ficaremos juntos novamente.
Quanto a Phyllis, a grande novidade é que Cyril resolveu continuar na Marinha, em uma base regular. Ele se deu realment bem, agora é suboficial, com uma folha de serviço excelente em tempo de guerra e uma Medalha de Bons Serviços, por intrepidez. Acho muito importante que tenhamos Phyllis instalada. Com o desaparecimento de Molly, sinto-me um pouco responsável por ela, após todos estes anos em que moramos juntas e plenamente felizes. Isso dependerá de quanto Cyril conseguir poupar de seu soldo, mas os dois devem ter sua própria casa, um lugar onde ele possa ficar, quando estiver de férias. Talvez uma casinha em Penzance, de parede e meia com outra. Se for cara demais para os recursos deles, será que não poderíamos ajudar um pouco? Estou certa de que Judith ajudaria, mas ela agora tem de pensar em Jess, nos estudos da irmã etc. Só conversarei com ela a respeito depois que parte do excitamento extinguir-se.
Bem, creio que já disse tudo. Se não parar agora, acabarei perdendo o correio de hoje. Procure imaginar-me, chapinhando na chuva colina abaixo, para colocar esta carta na caixa de correspondência. Levarei Morag comigo, para fazer um pouco de exercício. Ela agora está envelhecendo, mas fica num assanhamento incrível, caso a gente sussurre a palavra "passear”
Bob querido, como nós temos sorte! Agora, mal posso esperar pelo seu regresso ao lar. Não demore muito.
Todo o meu amor, como sempre,
Biddy
Eu tinha esquecido o quanto esta estrada é comprida. — Parece que estamos nela há séculos.
- É porque estamos caminhando. De bicicleta, nem se percebe a distância.
A alameda de carros que levava a Nancherrow parecia um pouco descuidada, cheia de depressões e poças, com as margens relvadas começando a ficar invadidas por ervas daninhas. As hidrângeas há muito estavam abandonadas, suas flores acastanhadas e secas, murchas pela umidade dos aguaceiros que o mar soprava e continuara soprando du rante a tarde. Bem no alto, os galhos das árvores estavam pelados, agitando-se ao vento, e além deles ficava o céu pálido, manchado de
nuvens cinzentas e pejadas de chuva.
Na primeira vez que vim a Nancherrow, a alameda era tão comprida e sinuosa que, na minha imaginação, a casa seria absolutamente fantasmal, quando finalmente chegássemos a ela. Entretanto, não foi nada disso. É uma casa nova. Você verá. Mais tarde, quando li Rebecca, lembrei-me de Nancherrow, de quando vi tudo aquilo pela primeira vez.
— Eu nunca li Rebecca.
— Você não teve muita oportunidade, mas que prêmios lhe foram reservados! Montes de prêmios. Vou alimentá-la de livros, como alimentamos Morag com ração para cães.
— Quando era pequena, tive um livro de que sempre me lembro. Foi um presente de Natal. Era enorme, colorido, cheio de retratos e histórias. Gostaria de saber o que foi feito dele...
— Deve ter ficado embalado, suponho. Com todos os nossos outros pertences. Caixotes deles. Precisaremos retirá-los do depósito onde se encontram. São coisas que pertenceram a mamãe. Enfeites e Porcelanas. Será como abrir uma caixa de Pandora...
As árvores rareavam. Estavam quase chegando. Fizeram a última curva da alameda e a casa surgiu diante delas, mas aproximava-se uma Pancada de chuva que, como uma cortina cinzenta, escondia a vista do mar. Elas pararam e ficaram olhando, por um momento, os impermeáveis escorrendo, os cachecóis que tinham enrolado no pescoço sacudindo as pontas ao vento. Jess disse então:
- Ela é mesmo grande!
Eles precisavam de uma casa grande. Tinham três filhos, muitos empregados e bandos de amigos, sempre vindo hospedar-se aqui. Eu tive um quarto só para mim. O quarto rosa. Mostrarei a você depois do chá. Vamos, ou ficamos encharcadas novamente.
Elas correram pela alameda de cascalho e alcançaram a porta da frente no momento exato em que a chuvarada caiu. Ali deixaram as capas de chuva e tiraram as botas de borracha. Em seguida, Judith abriu a porta interna e, com pés calçados em meias curtas, ela e Jess entraram no saguão.
Sem mudanças. Exatamente como antes. O mesmo cheiro. Estava algo friorento, talvez, a despeito dos troncos que queimavam na enorme lareira, mas um arranjo de crisântemos e folhagens de outono, vívido como as chamas, erguia-se no centro da mesa redonda, onde ainda jazia as coleiras dos cachorros, o Livro de Visitantes e a pequena pilha de correspondência, esperando ser recolhida pelo carteiro.
Nenhum som. Apenas o tique-taque do velho relógio.
— Onde está todo mundo? — cochichou Jess, parecendo um tanto temerosa.
— Não sei. Vamos ver. Primeiro no andar de cima.
No patamar do meio, ouviram os rumores indistintos do rádio do quarto de brinquedos, flutuando ao longo do corredor. A porta para lá estava entreaberta. Judith empurrou-a suavemente e viu Mary, ocupada com uma pilha de roupa para passar. Chamou-a pelo nome.
— Oh, Judith — O ferro de passar foi solto com um baque, e os braços robustos de Mary se abriram para ela. — Não posso acreditar que você voltou para nós! E que realmente estáaqui! Ficou longe tanto tempo. E esta é Jess? Olá, Jess, é maravilhoso conhecer você. Oh, mas vejam suas cabeças, estão ensopadas. Vieram andando, não foi?
— Viemos. Fizemos todo o trajeto a pé. Só temos uma bicicleta. Onde está Loveday?
— Logo estará aqui. Virá caminhando de Lidgey, com Nat. Precisou ajudar Walter a prender dois bezerros no estábulo.
— Como está Nat?
— Mais travesso do que nunca. Mary tinha um pouco mais de grisalho nos cabelos e mais algumas linhas no rosto. Também emagrecera, mas, de um modo curioso, lhe ficava bem. Havia cerzidos em seu cardigan azul e a gola da blusa mostrava sinais de muito uso, mas ela continuava cheirando a sabonete Johnson para bebê e a roupa recém-passada.
-Já esteve com a sra. Carey-Lewis?
Não. Viemos diretamente ao andar de cima, para ver você.
Então, agora vamos descer e comunicar a ela que estão aqui.
Parando apenas para desligar o ferro de passar, depois o rádio, e colocar mais uma acha em seu pequeno fogo da lareira (É uma bênção termos muitas árvores neste lugar, pois do contrário estaríamos todos morrendo de frio), Mary saiu com elas do quarto de brinquedos, desceu a escada e seguiu pelo corredor até a porta da pequena sala de estar. Bateu de leve na porta, abriu uma fresta, e assomou com a cabeça.
Alguém deseja vê-los —exclamou e, dramaticamente, escancarou a porta.
E lá estavam eles, sentados a cada lado da lareira, Diana com sua tapeçaria, e o coronel com o Sunday Times. Aos pés dele, o velho Tiger dormia, mas Pekoe, que estivera cochilando no sofá e agora suspeitava de ladrões, ficou imediatamente atento e soltou uma cacofonia de latidos. Diana ergueu os olhos, tirou os óculos, deixou o bordado a um lado e ficou em pé.
— Quieto, Pekoe! É apenas Judith. É Judith! — Privado de seu prazer, Pekoe afundou novamente nas almofadas, com expressão contristada. — Judith! Oh, meu bem! Parece que foram mil anos! Venha cá e deixe-me abraçá-la. — Diana continuava esbelta, alta e encantadora como sempre, a despeito de seu cabelo cor de trigo maduro ter esmaecido para prateado. — Você voltou, minha preciosa terceira filha! E está com uma aparência simplesmente fascinante! E trouxe Jess. Jess. Eu sou Diana Carey-Lewis. Ouvimos tanta coisa sobre você, e esta é a primeira vez que nos vemos...
Liberada do abraço de Diana, Judith virou-se para o coronel, que agora estava de pé, esperando pacientemente a sua vez. Ele sempre aParentara ser mais velho do que o era em realidade, mas agora o tempo parecia tê-lo agarrado. E também as roupas, que pendiam frouxas e surradas em seu corpo magro — um velhíssimo paletó de tweed e desbotadas calças de veludo cotelê que, nos velhos tempos, ele não usaria nem para ser visto morto.
Minha querida. — Formal e, como sempre, um pouco acanhado. Tomou as mãos de Judith nas suas e beijaram-se. —Como estamos felizes por tê-la em casa novamente!
— Não tanto como eu, por estar aqui. — Tiger agora, sempre cortês, conseguira adotar uma postura sentada, e Judith inclinou-se para acariciar-lhe a cabeça. Depois disse, com tristeza:
— Ele está ficando velho...
Também Tiger envelhecera. Não estava gordo, mas pesado e artrítico, com o focinho inteiramente grisalho.
— Nenhum de nós parece mais jovem, em absoluto. Eu devo começar a procurar outro filhote de Labrador, mas de certo modo fico sem coragem...
— Edgar. Querido, precisa dizer "olá" para Jess. Ele estendeu a mão.
— Como vai, Jess? Devo apresentar-lhe meu cão, Tiger. Esta é Jess Tiger. — Ele sorriu, era aquele sorriso gentil e sedutor a que criança nenhuma resistia. — Você veio de bem longe, hein? O que acha da Cornualha? Chove sempre assim o tempo todo?
— Na verdade — disse Jess — eu me lembro da Cornualha.
— Por Deus, é mesmo? Faz um bocado de tempo, não é verdade? Por que não nos sentamos e você me fala sobre isso... aqui, nesta banqueta junto do fogo... — Ele empurrou algumas revistas e jornais para um lado. — Que idade você tinha quando partiu?
— Quatro anos.
— Oh, eu não sabia que já tivesse essa idade. Bem, claro que deve ter lembranças daqui. Eu me lembro de coisas acontecidas quando tinha dois anos. Sentado em minha cadeirinha, com uma outra criança enfiando-me um pedaço de biscoito amanteigado na boca...
Neste momento, Mary ergueu a voz ligeiramente para anunciar que ia colocar a chaleira no fogo para o chá, e todos concordaram ser uma excelente idéia. Depois que ela se foi, Diana afundou em sua poltrona, e Judith sentou-se na ponta do sofá não ocupada por Pekoe.
— Meu bem, que contratempos enfrentou... Parece mais magra E terrivelmente elegante. Está tudo bem com você?
— Claro, está tudo bem.
— Loveday anda ansiosa para vê-la e mostrar-lhe seu menino levado. Ela e Nat estarão aqui dentro em pouco. E a pequena Jess? Garota corajosa! Viver tais experiências... Biddy telefonou para mim assim que recebeu o cabograma de Bob. Já nos tinha contado Que — Percebendo a tempo o que ia dizer e que Jess podia ouvir, interrompeu a frase. Olhou de relance para Jess, sentada de costas para elas e conversando com o coronel. Falou, muito baixinho, mal movendo a boca. Jess estava morta. Judith assentiu. —.. e, depois, ouvir a notícia. Ficar sabendo que não era verdade. Você deve ter quase morrido de alegria.
Sim, foi muitíssimo excitante.
— E, meu bem, ficamos tão tristes sobre seus pais!.. Inacreditável. Eu ia escrever, mas você não me deu tempo. Biddy me contou todas as coisas terríveis, mas antes que eu pudesse pousar a pena no napel, soubemos que você estava voltando para casa. Que espécie de viagem fez?
— Aquilo mal podia ser considerado uma viagem. Seria melhor dizer uma prova de resistência. O navio estava superlotado. O refeitório era servido em três turnos, para que todos pudessem comer. Você bem pode imaginar...
— Uma coisa pavorosa... Por falar em refeições, os Nettlebed deixaram lembranças e disseram que logo virão vê-la. Eles agora têm o domingo inteiro de folga e foram a Camborne visitar um parente idoso, em uma casa de repouso. Não foi um paraíso, voltar para a Dower House? O jardim não está lindo? Dei algumas mudas de plantas aPhyllis...
Cheia de excitamento, Diana continuou tagarelando. Judith tentou dar a impressão de que ouvia, mas-sua mente estava longe. Ela pensava em Gus Callender. Seria aquele o momento de contar a Diana e ao coronel que ele estava vivo? Não, decidiu, não era. Loveday é que devia ser a primeira pessoa a saber, e em particular. Mais tarde, ainda nesse dia, em algum lugar, haveria de contar para ela.
—.. onde Jess está dormindo?
—No quarto de Anna. Há espaço de sobra. Anna foi para o quarto de Phyllis. Apenas por enquanto.
— E que planos fez para Jess?
— Penso que terei de visitar a srta. Catto, a fim de saber se ela a aceita no Santa Úrsula.
— Oh, meu bem, é claro que ela vai aceitar! Não é extraordinário como a vida completa um círculo? Oh, onde está minha cabeça? Não lhe contei sobre Athena. Ela vai ter outro bebê. Creio que nascerá na primavera.
Que excitante! Sinto uma falta deles terrível, quando partem de volta. A casa fica inteiramente vazia sem uma criança
Mal ela havia dito a última frase, e foi como uma deixa para ouvir os tons agudos de Nathaniel Mudge, aproximando-se pela cozinha e irada discussão com a mãe.
— Eu não quero tirar minhas botas!
— Vai ter que tirar. Estão cobertas de lama.
— Elas não estão cobertas de lama!
— Estão. Você espalhou lama por todo o chão da cozinha. Agora venha cá...
— Não...!
— Nat...!
Um uivo. Evidentemente, Loveday o agarrara e lhe tirava as botas à força.
— Oh, céus! — disse Diana, em voz fraca.
Um momento mais tarde, a porta foi bruscamente escancarada, e seu neto irrompeu na sala, privado das botas, as bochechas rubras de indignação e o lábio inferior espichado para diante como uma prateleira.
— O que significa tudo isso? — perguntou Diana. Nat replicou prontamente, com objetividade.
— Mamãe me tirou as botas. São botas novas. Elas são vermelhas. Eu queria mostrar elas pra vocês.
Diana tentou aplacá-lo, dizendo carinhosamente:
— Nós veremos suas botas qualquer outra hora.
— Eu quero que vocês vejam elas agora).
Judith levantou-se do sofá. Ao erguer-se, Loveday surgiu na porta aberta. Sua aparência continuava a mesma de sempre, uma adolescente mal ajambrada, de maneira alguma parecendo a mãe daquela impetuosa criança de três anos. Usava calças compridas, um velho pulôver e soquetes vermelhas. Os cabelos ainda lhe pendiam da cabeça em cachos escuros e lustrosos.
Houve uma pausa, enquanto elas simplesmente ficavam paradas, uma sorrindo para a outra. Então:
— Ora vejam só quem está aqui! — exclamou Loveday. — (-e como é bom ver você! — As duas encontraram-se, abraçaram-s beijaram-se superficialmente, do jeito como sempre tinham feito-
- Lamento estar um pouco atrasada, mas... Nat, não ponha seus dedos perto do olho de Pekoe! Sabe que não pode fazer isso.
Nat encarou a mãe com desafiantes olhos castanhos, e Judith, apesar de todas as suas boas intenções, dissolveu-se em gargalhadas.
— Você parece ter encontrado sua forma!
.— Oh, ele é um terror. Não é, Nat? Você é um docinho, mas também um terror.
— Meu pai diz que eu sou um pestinha — informou Nat, a todos em geral.
Então, dando pela presença de Jess, mais uma estranha ali dentro, ficou olhando para ela fixamente, sem piscar. Claramente divertida, ela disse:
— Olá.
— Quem é você?
— Eu sou Jess.
— O que está fazendo aqui?
— Vim para o chá.
— Nós trouxemos biscoitos de chocolate na minha sacola, mamãe eeu.
— Você vai me dar um?
Nat considerou a sugestão. Depois disse:
— Não. Vou comer eles todos sozinho.
Ele então trepou no sofá e começou a dar saltos no assento. Por um momento, a impressão foi dcque a tarde inteira se tornaria uma total confusão, mas Mary retornou prontamente, a fim de salvar o dia. Comunicou que o chá estava na mesa, e agarrou Nathaniel com seus braços fortes, em pleno ar e no meio de um dos saltos do menino, em seguida carregando-o dali entre guinchos—que se esperava fossem de contentamento — em direção à sala de refeições.
— Ela é a única pessoa — disse Loveday, com uma espécie de desesperançado orgulho — que consegue fazer alguma coisa com ele.
— E quanto a Walter?
— Oh, Walter é pior do que o filho. Venha, mamãe, vamos comer. Assim, foram todos para a sala de refeições, o coronel parando para colocar a grade de proteção diante da lareira, depois seguindo Por último. A mesa para o chá estava posta, ostentando todos os recordados petiscos do quarto de brinquedos, de sanduíches de geléia, de queijo a um bolo de frutas em forma de anel e aos biscoitos de chocolate, fornecidos por Loveday.
Era uma mesa muito menor do que a recordada por Judith dos velhos tempos. Todas as tábuas extensíveis tinham sido removidas e o que permanecia tinha uma aparência estranhamente diminuta e inadequada no meio da enorme sala formal. Não havia mais as pesadas toalhas brancas adamascadas e, em seu lugar, achavam-se as humildes mas práticas toalhas de linho, axadrezadas em branco e azul. Sendo um chá de quarto de brinquedos, Mary sentou-se em uma extremidade da mesa, incumbida do enorme bule de chá castanho (Judith recordou que toda a prataria tradicional havia sido encaixotada, no início da guerra), e tendo Nat ao seu lado, sentado em uma cadeirinha alta. A princípio, ele não queria sentar-se na cadeirinha. A cada vez que era posto nela, escorregava para fora, até finalmente Mary o fazer sentar-se com tal baque no traseiro, que ele entendeu o aviso e ficou onde estava.
O coronel ocupava a outra extremidade da mesa, de frente para Mary, com Jess à sua esquerda.
— Gostaria de um sanduíche de geléia ou de queijo? — perguntou polidamente a Jess.
Ela respondeu que preferia de geléia, enquanto Nat batia com uma colher na mesa, anunciando para todos os reunidos que o que ele queria, e queria já, era um biscoito de chocolate.
Por fim ele foi silenciado, alimentado com um sanduíche de queijo, o pandemônio aquietou-se e a conversa normal pôde prosseguir. Mary serviu o chá. As xícaras foram passadas em torno. Cordial e fascinante, sempre a perfeita anfitriã, Diana virou-se para Jess.
— Bem, Jess, precisa contar-nos todas as coisas formidáveis que você e Judith planejam fazer, agora que estão novamente em casa. Qual vai ser a primeira?
Com todos os olhos voltados em sua direção, Jess ficou um pouco embaraçada. Engoliu apressadamente o pedaço de sanduíche de geléia que tinha na boca, e disse:
— Na verdade, ainda não sei.
Através da mesa, seus olhos encontraram os de Judith, em um claro pedido de ajuda.
— Que tal a bicicleta? — sugeriu Judith.
— Oh, sim! Vamos comprar uma bicicleta para mim.
— Talvez só encontrem de segunda mão — avisou Diana. — Tem sido muito difícil consegui-las novas. Como os carros. Não se pode comprar um carro novo hoje em dia, e os usados custam mais caro do que os novos. Bem, e o que mais? Não pretendem ir dar uma espiada na sua antiga casa em Penmarron? Aquela onde moravam?
— Nós pensamos em tomar o trem qualquer dia. E também em ir a porthkerris.
— É uma boa idéia.
— Não vamos poder entrar na casa. Em Riverside, quero dizer, porque outras pessoas moram lá agora. —Sem ser interrompida, e com todos eles ouvindo gentilmente interessados, o súbito ataque de timidez de Jess morreu de morte natural. — Mesmo assim, achamos que podíamos olhar a casa. E também ir e ver...
Jess havia esquecido o nome. Tornou a virar-se para Judith.
— A sra. Berry — recordou-lhe Judith. — Na loja da aldeia. Ela costumava dar jujubas de fruta para você. E talvez façamos uma visita ao sr. Willis, perto das balsas. Entretanto, ele era amigo meu. Acho que nem conhecia Jess.
—Você vai gostar de Porthkerris, Jess — disse o coronel. —É um lugar cheio de barcos, de artistas e de ruelas engraçadas.
— E dos Warren — cantarolou Loveday. — Deve levar Jess à casa deles, Judith. A sra. Warren ficaria ofendidíssima, se vocês fossem a Porthkerris e não aparecessem para um lauto chá centela.
— O que foi feito de Heather? Há anos que não tenho notícias dela. Continua trabalhando naquele horrível lugar de espionagem?
— Não, ela foi para a América, em alguma missão com seu chefe do Ministério das Relações Exteriores. Minha última notícia dela é de que estava em Washington.
— Valha-me Deus! Ela bem podia ter-me contado... Loveday estava partindo o bolo.
— Quem quer um pedaço de bolo de frutas?
Já tendo terminado o seu sanduíche, Jess foi presenteada com uma enorme fatia.
— Não sei quem é Heather — disse ela.
—Era amiga nossa, nos velhos tempos—explicou Loveday. — Eu e Judith costumávamos ficar com ela e sua família. No verão antes da guerra, com o sol sem parar de brilhar, fomos para lá e ficávamos o tempo todo na praia. Judith tinha acabado de comprar seu carro, e nós duas nos sentíamos terrivelmente adultas.
— Ela esteve na escola com vocês? — perguntou Jess.
— Não. Ela freqüentou outra escola. Nós fomos para o Santa Ursula.
—Judith acha que eu devo ir para lá — falou Jess.
— Outra pequena noviça para o convento.
— Oh, Loveday! — Sentada à extremidade da mesa, atrás de seu enorme bule de chá, Mary parecia bastante irritada. — Você me deixa francamente envergonhada, quando fica dizendo essas tolices! E na frente de Jess! O Santa Ursula é um excelente colégio. Vocês duas foram muito felizes lá. Faziam um rebuliço e tanto, mas permitiam que continuassem lá, sem dúvida.
— Ora, Mary, os uniformes! E aqueles regulamentos amalucados! Jess começava a ficar um pouco preocupada. Percebendo isso, o coronel pousou a mão sobre a dela.
— Não dê muita importância ao que diz essa minha filha tola. O colégio é excelente, e a srta. Catto uma dama esplêndida. Precisava ser, para aturar Loveday.
— Obrigada, papai, muito obrigada!
— De qualquer modo — Diana estendeu a xícara para que Mary tornasse a enchê-la — as alunas não usam mais uniformes. A guerra pôs um fim nisso. Além do que, uma outra escola de meninas, de Kent, foi evacuada para o Santa Ursula, e, em resultado, os uniformes acabaram mesmo ficando diferentes, é claro. Foi preciso montarem abrigos pré-fabricados por todo o jardim, porque não havia salas de aulas suficientes para todas as alunas.
— Elas agora não usam mais nenhuma espécie de uniforme? perguntou Judith.
—Apenas as gravatas colegiais,
— Que alívio! Nunca esqueci aquela interminável lista de roupa que a coitada da mamãe teve de ir comprar.
— Na casa "Medways", meu bem. Foi a primeira vez que vi você. Todas nós, comprando aqueles horríveis uniformes escolares. Não parece que foi há um século?
- Foi há um século — disse Loveday abruptamente. E acrescentou: — Tudo bem, Nat. Tudo bem. Agora, pode comer seu biscoito de chocolate.
Quando por fim o chá terminou, a molhada tarde de outubro mergulhara em escuridão. O céu estava pejado de nuvens e a chuva caía com insistência, mas ninguém se levantou para ir fechar as pesadas cortinas.
— Que bênção! — suspirou Diana. —Acabou o black-out. Ainda não me acostumei com a idéia de estar livre dele. De poder ficar dentro de casa e contemplar o crepúsculo, sem precisar trancar tudo. Levamos tanto tempo fazendo as cortinas de black-out e pendurando-as, mas precisamos apenas de três dias para arrancá-las novamente. Mary, não comece a preocupar-se com as xícaras do chá, nós as lavaremos. Leve Nat para o quarto de brinquedos, e dê a Loveday alguns momentos para ela mesma. — Ela se virou para Jess. — Talvez gostasse de subir também, Jess. Não pense que estamos querendo ficar livres de você, meu bem, mas é porque lá há um mundo de coisas que, tenho certeza, adoraria ver. Livros e coisas assim, quebra-cabeças e lindos móveis para casa de bonecas. Bem, mas não deixe Nat pôr as mãos nisso. — Jess vacilou. Diana sorriu. — É só se você quiser — disse.
— Sim, eu gostaria de ir. Mary limpou o rosto de Nat com um guardanapo.
—Nat não gosta de móveis de casa de bonecas. Ele gosta de blocos e dos pequenos tratores, não é, docinho? — Levantando-se, ela o tomou nos braços. — Vamos, Jess. Veremos o que podemos encontrar para você.
Depois que elas se foram, a paz foi absoluta. Diana esvaziou o último resto do bule em sua xícara, depois acendeu um cigarro.
— Que menina meiga, Judith. Deve estar orgulhosa dela.
— E estou.
— Parece bem segura de si.
— Puro engano. Ela ainda está tateando seu caminho.
O coronel levantou-se e apanhou no aparador um cinzeiro para sua esposa. Deixou-o sobre a mesa, ao lado dela; Diana ergueu o rosto Para ele e agradeceu com um sorriso.
— Sem lágrimas? — perguntou a Judith. — Sem pesadelos? Sem traumas?
— Não sei dizer.
— Talvez um ligeiro exame médico fosse uma boa idéia. Contudo devo dizer que, para mim, ela parece suficientemente saudável. Por falar nisso, o velho dr. Wells apareceu outro dia para uma espiada em Nat, que tossia e estava encatarrado. Mary e Loveday ficaram pouco preocupadas com o menino. (Nada errado, apenas um resfriado de peito.) Entretanto, ele disse que Jeremy espera ter breve uma licença, a fim de vir um pouco em casa. Há dois anos que ele não tem qualquer licença. Ficou enfurnado no Mediterrâneo todo esse tempo. Vejamos, onde mesmo...?
— Em Malta — disse o coronel.
— Eu não conseguia lembrar se era em Malta ou Gibraltar. Sabia apenas que era em algum lugar.
—Suponho que ele logo seja desmobilizado — disse Judith, e ficou encantada pela naturalidade de sua voz. —Levando-se em conta o fato de ter sido um dos que primeiro se alistaram.
Alheadamente, Loveday serviu-se de mais um pedaço de bolo.
— Não consigo imaginá-lo instalado em Truro, depois de todas essas alegres andanças pelos altos mares.
— Pois eu consigo — replicou Diana. — Ele faz o retrato perfeito do clínico-geral do campo, com um cão no assento traseiro do carro. Nunca chegou a encontrá-lo, Judith?
— Nunca. Sempre achei que ele poderia ir para o Leste com a esquadra. Todos os conhecidos acabavam aparecendo em Trincomalee, cedo ou tarde. Entretanto, Jeremy nunca esteve lá.
— Sempre pensei que ele terminaria casando-se. Talvez Malta não tenha muitas belezas locais. — Diana bocejou, recostou-se na cadeira e passou os olhos pelas migalhas espalhadas na mesa do chá. —Acho melhor livrar-nos disso e lavarmos a louça.
— Não se preocupe, mamãe — disse Loveday, ainda mastigandu o bolo. — Eu e Judith faremos isso. Somos duas coleguinhas de colégio querendo melhorar nossas notas.
— O que foi feito de Hetty? — perguntou Judith.
— Oh, ela finalmente escapou das garras da sra. Nettlebed e foi fazer seu serviço de guerra. Servente de enfermaria, em um hospital em Plymouth. Pobre Hetty... A emenda saiu pior do que o soneto, 970
- Limparão mesmo tudo isso, queridinhas? Já passa das seis horas e semppre ligamos para Athena, nos fins de tarde do domingo...
— Dê lembranças minhas.
— Farei isso.
Enorme e antiquada como sempre, além de um pouco mais quente do que o resto da casa, a cozinha parecia estranhamente vazia sem os Nettlebed e Hetty fazendo o barulho costumeiro na copa.
— Quem agora areia as panelas? — perguntou Judith, amarrando um avental em torno da cintura e enchendo a velha pia de argila com a água escaldante da torneira de latão.
—A sra. Nettlebed, suponho. Ou, então, Mary. Mamãe é que não faria isso, tenho certeza.
— O sr. Nettlebed ainda cuida da horta?
— Sim, ele e o sr. Mudge. Comemos montanhas de verduras, porque não há muita coisa mais. E, embora a casa esteja vazia este fim de semana, parece contar com os mesmos convidados de sempre. Mamãe adotou os intermináveis militares baseados na região, de modo que, de vez em quando, eles ainda pingam por aqui. Receio que quando encerrarem seus afazeres locais, ela irá sentir falta de toda a movimentação e dos visitantes.
— E quanto a Tommy Mortimer?
— Oh, ele ainda vem de Londres, uma vez ou outra. Com vários outros velhos colegas. Isso é uma distração para mamãe. Quando Athena e Clementina foram embora, foi terrível para ela.
Judith esguichou um líquido de limpeza na água, agitou-o até formar borbulhas e depois colocou a primeira pilha de pratos dentro da pia.
— E Walter, como está? — perguntou.
— Ele está bem.
— E a propriedade?
— Excelente.
— E o sr. Mudge?
—Continua trabalhando, mas agora o serviço está ficando pesado demais para ele.
— O que acontecerá quando ele se aposentar?
— Não sei. Suponho que eu e Walter nos mudaremos para a casa da fazenda. Trocaremos de casa ou coisa assim. Não sei.
Suas respostas eram tão lacônicas e desinteressadas, que o coração de Judith gelou.
— O que vocês fazem quando ele não está trabalhando? Quer dizer, costumam ir ao cinema, fazem piqueniques ou vão ao pub
— Eu às vezes ia ao pub, porém deixei de ir depois que tive Nat. Sempre posso deixá-lo com a sra. Mudge, mas, para ser sincera, não sinto muita atração por freqüentar pubs. Assim, Walter vai sozinho.
— Oh, Loveday...
— Por que esse tom de voz tão lúgubre?
— A situação não me parece muito divertida.
—Está tudo bem. Às vezes temos amigos para jantar ou coisa assim. Só que não sou grande coisa como cozinheira.
— E quanto aos cavalos? Vocês ainda montam juntos?
— Não muito. Eu vendi Fleet, e nunca me dei ao trabalho de procurar outro cavalo. Por outro lado, agora nem temos mais caçadas de verdade, porque todos os cães de caça foram suprimidos no começo da guerra.
— Bem, mas já que a guerra terminou, talvez as caçadas recomecem.
— É. Talvez.
Loveday havia encontrado uma toalha de chá e estava enxugando pratos e xícaras com a maior lentidão, uma peça de cada vez, que depois ia depositando em pilhas, na mesa da copa.
— Você é feliz, Loveday?
Loveday pegou mais um prato para enxugar.
— Quem foi que disse que o casamento era uma gaiola de pássaros no verão, instalada em um jardim? E que todos os pássaros do ar queriam entrar nela, enquanto que as aves engaioladas queriam sair.
— Não sei.
— Você é um pássaro do ar. Livre. Pode voar para qualquer lugar-
— Não, não posso. Agora tenho Jess.
— Está querendo entrar na gaiola do verão?
— Não.
—Nenhum marinheiro apaixonado? Não posso acreditar. Não me diga que continua amando Edward!
— Edward está morto há anos.
— Sinto muito. Eu não devia ter dito isso.
.— Não me incomodo por você ter dito. Ele era seu irmão. Loveday enxugou mais dois pratos.
— Sempre achei que Jeremy gostava de você.
Judith raspou uma teimosa migalha pegajosa do bolo de frutas, aderida a um prato.
— Acho que você deve estar enganada.
—Vocês mantêm contato? Os dois se correspondem?
—Não. A última vez que estive com ele foi em Londres, no começo de 1942. Pouco antes de Cingapura. Depois disso, nunca mais o vi nem tive notícias.
— Vocês brigaram?
—Não. Não brigamos. Penso que, simplesmente, decidimos seguir caminhos separados.
—Eu gostaria de saber por que ele nunca se casou. Deve estar com bastante idade agora. Uns trinta e sete anos. Suponho que, quando ele voltar, seu pai irá aposentar-se. Então, Jeremy ficará responsável por todos os calos e bolhas destas redondezas.
— Exatamente o que ele sempre quis.
O último prato, depois o bule. Judith puxou o tampão do ralo e espiou a água espumada ir desaparecendo pelo cano.
—Tarefa encerrada — disse.
Desatando o avental, pendurou-o de volta em seu cabide, depois virou-se e ficou encostada contra a borda da pia.
— Eu sinto muito.
Loveday pegou o último prato e o enxugou. Judith franziu a testa.
— Sente muito? Por quê? — perguntou.
— Por falar aquilo sobre Edward. Tenho dito coisas horríveis aos outros estes dias, mas sem ter tal intenção. — Loveday colocou o prato no alto da pilha. — Você vai visitar-me, não vai? Em Lidgey. Nunca viu minha curiosa casinha, depois de terminada. E eu adoro a propriedade, adoro os animais. Também adoro Nat, embora ele seja tão voluntarioso. —Ela ergueu o punho surrado da suéter e olhou para o relógio. — Santo Deus, preciso ir andando! Minha cozinha está uma verdadeira bagunça! Tenho de preparar o chá de Walter, botar Nat na cama...
— Não vá ainda — disse Judith.
Loveday pareceu um tanto surpresa.
— Eu tenho que ir.
— Só mais cinco minutos. Tenho uma coisa para dizer a você
— O que é?
— Promete ouvir, sem me interromper?
— Tudo bem. — Loveday içou-se para a mesa e ficou lá sentada com os ombros caídos e as pernas penduradas, envoltas nas calças compridas. —Dispare.
— É sobre Gus.
Loveday gelou. Na copa de piso lajeado, resfriada pelo vento, o único som era o zumbido da geladeira e o lento gotejar de uma das torneiras de latão, cujas gotas d'água caíam dentro da pia de argila.
— O que há sobre Gus? Judith contou-lhe.
—... e, então, Gus falou que era hora de voltar ao navio-hospital, nós lhe encontramos um táxi e nos despedimos. Ele foi embora. Fim da história.
Loveday mantivera a palavra. Não fizera qualquer comentário e nenhuma pergunta. Apenas ficou ali sentada, imóvel como uma estátua, ouvindo o relato de Judith. Agora, ainda estava calada.
— Eu... eu escrevi para ele, no navio de tropas em que vim para cá. Postei a carta em Gibraltar, mas Gus não respondeu.
— Ele está bem? — perguntou Loveday.
— Não sei. Seu estado era bom, levando-se em conta tudo o que passou. Magro, mas, afinal, Gus nunca foi muito gordo. E um pouco abatido.
— Por que ele não nos contou...
— Já expliquei. Ele não podia. Houve apenas uma carta, e foi dirigida aos pais dele, que nada sabiam sobre você, Diana ou o coronel. Mesmo que a tivessem recebido, não saberiam a quem transmitir a notícia.
— Eu tinha tanta certeza de que ele estava morto!
— Eu sei, Loveday.
— Foi como ter a convicção em cada célula do corpo. Uma espécie de vazio. Um vácuo.
— Não deve censurar-se.
.— O que acontecerá a ele?
— Gus estará bem. Os regimentos escoceses são notoriamente tribais. Como uma família. Todos os amigos dele estarão por perto.
.— Não quero que ele venha aqui — disse Loveday.
-—Posso compreender isso. Para ser sincera, não creio que também Gus faça muita questão de vir.
— Ele acreditou que eu o esperava?
— Acreditou — disse Judith, e não havia outra resposta.
— Oh, Deus! Eu devia estar eufórica, não sentada aqui parecendo um fim de semana chuvoso.
—Também não gostei muito de contar para Gus... que você estava casada.
— Isso é diferente. Foi o fim de uma coisa. Para Gus, é o começo do resto de sua vida. Pelo menos, não está arruinado, sem posses. Existe algo para o que regressar.
— E você?
—Oh, eu tive tudo. Marido, filho, a fazenda. Nancherrow. Mamãe e papai. Mary. Tudo imutável. Tudo como sempre desejei. —Ela ficou em silêncio por um momento, e então perguntou: — Mamãe e papai sabem sobre Gus?
— Não. Eu queria que você fosse a primeira a saber. Se quiser, posso contar para eles agora.
— Não. Eu mesma conto. Depois que você e Jess forem embora. Antes que eu volte para Lidgey. Será melhor assim. — Loveday tornou a olhar para seu relógio. — Bem, parece que tenho mesmo de ir para casa. — Ela deslizou para fora da mesa. — Walter estará impaciente por seu chá.
—Você está bem?
— Estou. — Loveday pensou nisso, depois sorriu e, de repente, lá estava novamente a garota levada, mimada e teimosa de anos atrás. — Sim, estou ótima.
Na manhã seguinte, Diana foi à Dower House.
Era segunda-feira. Depois do breakfast, os poucos moradores da casa tinham se dispersado. Primeiro Anna, descendo a colina para-Escola Primária de Rosemullion, de mochila às costas e, no bolso biscoito para comer no recreio. Depois Biddy, porque era o seu dia de Cruz Vermelha em Penzance. Jess, que havia descoberto a Cabana no decorrer de algumas explorações solitárias, apaixonara-se por seu encanto, sua privacidade e sua pequenez; então, provida de vassouras e espanadores, descera o jardim correndo, disposta a uma pequena faxina.
Eram onze horas, e ela ainda não voltara. Phyllis pendurava no varal a roupa lavada da semana e, na cozinha, Judith preparava a sopa. A carcaça da galinha da véspera fervia na panela para fazer o caldo e, em pé diante da pia, ela limpava verduras, cortava alho-poró e cebola. Sempre considerara extremamente terapêutico preparar uma sopa (era um pouco parecido a montar uma pilha de coisas variadas), e a fragrância exalada durante o cozimento, condimentada com ervas da horta, era tão confortadora como o cheiro de pão acabado de assar ou o cálido odor de biscoitos de gengibre recém-saídos do forno.
Judith cortava cenouras, quando ouviu o carro subindo a colina, passar pelo portão aberto e parar diante da fachada da casa. Não esperando ninguém em particular, ela espiou pela janela e viu Diana descer do combalido furgão da peixaria, comprado no início da guerra para economizar gasolina e, desde então, utilizado para todo serviço.
Cruzando a copa, Judith saiu pela porta dos fundos. Diana falava com Phyllis sobre a sebe de escalônias que fazia a divisória entre o jardim e o relvado reservado aos varais de roupa lavada. Ela usava uma saia justa de tweed e um casaco frouxo, tendo no braço uma grande e antiquada cesta para compras no mercado.
— Diana! Diana virou-se.
— Oh, meu bem, não estou incomodando, estou? Trouxe para vocês alguns legumes e ovos frescos de Nancherrow. — Ela avançou pelo caminho de cascalho, com seus elegantes e polidos sapatos. — Pensei que poderiam aproveitá-los e, ao mesmo tempo, vim conversar com você.
— Estou na cozinha. Entre e eu lhe preparo uma xícara de café — convidou Judith.
Seguiu em frente, na direção da porta dos fundos. Na cozinha, Diana deixou a cesta em cima da mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. Judith pegou a chaleira, encheu-a e depois a colocou no fogo.
— Que cheiro divino, meu bem!
— É uma sopa. Você se incomoda, se continuo picando legumes?
— Nem um pouco. — Diana ergueu as mãos e afrouxou o nó da echarpe de seda que envolvia elegantemente seu pescoço esguio. — Loveday nos contou sobre Gus.
— Sim. Ela disse que ia contar.
— Notou se ficou perturbada, quando você lhe disse?
— Acho que ficou bastante abalada, mas sem lágrimas.
— Meu bem, lágrimas são pelos mortos, não pelos vivos.
— Loveday disse mais ou menos isso.
— É uma terrível confusão, não acha?
—Não, não acho que seja. É triste que ela fosse tão obstinada sobre Gus haver morrido, como é triste que Loveday não tivesse a confiança de esperá-lo voltar para casa. Entretanto, não é uma confusão. Apenas, eles não estão juntos. Nunca ficarão juntos. Loveday construiu a sua vida, e Gus terá de também construir uma para ele.
—Pelo que Loveday me contou, parece que ele vai precisar de uma pequena ajuda.
— Acho que será difícil ajudá-lo, se ele não responde às cartas e nem mantém contato conosco.
— Oh, mas Gus foi tão amigo de Edward! Somente por esse motivo, acho que devíamos todos ajudá-lo. Ele escreveu uma linda carta, quando Edward foi morto, além de enviar-nos o desenho que tinha feito dele. É o bem mais precioso de Edgar. Um retrato que diz muito mais do que qualquer fotografia. Está na mesa de Edgar, a fim de que possa contem-plá-lo em cada dia de sua vida.
— Eu sei, mas não será fácil nos unirmos para ajudá-lo, se ele mora no outro extremo do país.
— Gus poderia vir e ficar conosco. Acha que eu devo escrever-lhe e pedir que venha ficar em Nancherrow?
—Não. Não creio que seja uma boa idéia. Mais tarde, talvez, mas não agora.
— Por causa de Loveday?
— Ela não o quer aqui. E mesmo que você o convide, duvido que ele venha. Pelo mesmo motivo.
— Então, o que faremos?
— Em breve escreverei de novo para ele, nem que seja com o fim de obter alguma espécie de resposta. Se conseguir uma reação qualquer pelo menos saberemos em que terreno pisamos. Como ele está se saindo, como enfrenta a vida novamente, essas coisas...
— Eu e Edgar ficamos encantados com ele. Gus esteve conosco muito pouco tempo, mas simpatizamos tanto com ele...
A voz de Diana extinguiu-se. Ela suspirou.
— Oh, Diana, não adianta pensar no que poderia-ter-sido. Não faz nenhum bem ficar evocando o passado e dizendo se apenas...
— Você me censura?
— Eu, censurar você?
— Por deixá-la casar com Walter.
— Você dificilmente a impediria. Ela esperava Nathaniel.
— Nathaniel não vem ao caso. Ele poderia ter nascido e depois viver muito feliz conosco, em Nancherrow. E se as pessoas comentassem, que diferença faria? Nunca nos preocupamos com o que os outros pudessem dizer.
A água da chaleira fervia. Judith despejou pó de café no jarro, encheu-o e o deixou por um momento na parte de trás do fogão.
— Sim, mas ela queria casar com Walter.
— É verdade. E nós não apenas a deixamos casar com ele; de certo modo, até a encorajamos. A nossa menininha. Edward se fora, e eu não podia suportar a perda também de Loveday. Casar com Walter significava que ela continuaria perto de nós. Aliás, sempre gostamos dele, apesar de sua falta de polimento e de maneiras rudes. Edgar gostava dele porque era bom com os cavalos e por ser sempre tão solícito com Loveday, vigiando-a nos dias de caçada e ajudando-a quando ela começou a trabalhar na fazenda. Ele foi seu amigo. Sempre achei que o mais importante, em se tratando de casamento, é casar com um amigo. A paixão esfria com o tempo, mas a amizade dura para sempre. Eu realmente acreditei que eles eram o certo um para o outro.
— Existe algum motivo para supor que não sejam? Diana suspirou.
— Não. Acho que não. Entretanto, ela só tinha dezenove anos. Talvez, se tivéssemos sido um pouco mais firmes, se lhe disséssemos para esperar...
— Diana, se você discutisse, ela apenas se mostraria mais e mais decidida a fazer prevalecer a própria vontade... porque Loveday é assim. Naquele dia em Londres, tentei argumentar com ela, quando me disse que estava noiva, somente para me arrepender de ter dito alguma coisa a respeito de seu casamento.
O café estava pronto. Judith encheu duas canecas e colocou uma diante de Diana. Do andar de cima chegou até elas um ruído trovejante, mais ou menos como um avião querendo pousar. Após ter lidado com sua roupa lavada, Phyllis agora estava ocupada em passar o aspirador de pó no patamar.
—Eu de fato pensei que funcionasse. Funcionou para mim—disse Diana.
—Não entendi.
— Edgar nunca foi a minha paixão, mas sempre foi meu amigo. Eu sempre o conheci, desde garotinha. Ele era amigo de meus pais. Eu o achava de meia-idade. Velho. Costumava levar-me ao parque e dávamos comida aos patos. E então, quando a guerra começou... A Primeira Guerra. Eu tinha dezesseis anos e estava perdidamente apaixonada por um rapaz que tinha conhecido em Eton, no Quatro de Julho. Ele fazia parte dos Coldstream Guards e partiu para a França. Depois voltou, de licença, mas é claro que teve de voltar para a França. Foi morto nas trincheiras. Eu já fizera dezessete anos. E estava grávida.
A voz de Diana não se alterou uma só vez. Ela dizia todas aquelas coisas, evocando só Deus sabia que recordações, para prosseguir de maneira tão inconseqüente, como se estivesse descrevendo um novo e fascinante chapéu.
— Grávida?
—Exatamente. Fui descuidada, meu bem, mas naquele tempo não éramos muito sabidas.
— O que aconteceu?
— Aconteceu Edgar. Não podendo contar a meus pais, contei a ele. Então, Edgar disse que ia casar comigo, que seria o pai do meu filhinho e que nunca, jamais, eu me preocuparia ou seria incomodada pelo resto de minha vida. — Diana riu. — Foi isso que aconteceu.
— E o bebê?
— Athena.
— Ora, mas...
Era claro que nada havia a dizer.
— Oh, meu bem, não ficou chocada, ficou? Aquele foi apenas outro tipo de amor. Jamais achei que estava usando Edgar. E depois de todo o torvelinho, toda a paixão, a tragédia e o desespero, estar com ele era como deslizar para um porto seguro, sabendo que nada voltaria a ferir-me novamente. E assim tem sido. É como sempre foi.
— Athena... Jamais suspeitei, nem por um segundo.
— E por que suspeitaria? Por que alguém suspeitaria? Edward foi o primeiro filho de Edgar, mas nenhuma filha foi mais amada do que Athena. Ela parece comigo, eu sei. Entretanto, possui algo do pai, que somente eu e Edgar conseguimos ver. Ele era um lindo rapaz. Alto, de olhos azuis e louro. Minha mãe costumava chamá-lo de Adônis. "Esse rapaz", ela dizia, "é um verdadeiro Adônis."
— Athena sabe?
— Não, claro que não sabe. Por que lhe contaríamos? Edgar é o seu pai. Ele sempre foi. Que curioso... Há anos que nem mesmo penso nisso. Aliás, nem sei bem por que lhe conto isso agora.
— Por causa de Loveday.
— Claro. Justificando meus atos. A história que se repete. Outra guerra odiosa, um bebê a caminho e o homem constante que surge. Um amigo. — Diana tomou um gole do café. —Nunca contei isso para alguém.
— E eu jamais direi uma palavra a quem quer que seja.
— Eu sei que não diria, meu bem. O que estou tentando dizer é que Edgar é a minha vida.
— Eu sei.
Elas ficaram em silêncio. Judith pensou em Tommy Mortimer e no enigma do íntimo relacionamento dele com Diana, algo que nunca chegara a entender direito. Agora, no entanto, a par da verdade, entendia completamente. Edgar é a minha vida. Entretanto, ele era mais velho, com seu modo de vida já assentado, um provinciano, de ponta a ponta. Diana perdera o seu amado, mas nunca a juventude. Ela sempre necessitara dessa dimensão extra, de Londres, concertos, festas, compras e roupas. De almoçar no Ritz. Tommy Mortimer havia sido a chave para esse outro mundo.
— Por que está tão pensativa, meu bem?
— Eu pensava em Tommy Mortimer.
— Ele nunca foi meu amante.
— Não era nisso que pensava.
—Tommy não é esse tipo de homem. Não quero dizer que ele seja efeminado, mas apenas e confortavelmente assexuado.
— Quando fui a Nancherrow pela primeira vez, ele estava lá... e eu não conseguia entender a situação.
— Oh, meu bem, você pensou que Edgar devia expulsá-lo pela porta da frente?
— Não exatamente.
— Tommy nunca foi uma ameaça. Edgar sabia disso. Ele era apenas uma pessoa de quem eu precisava. Então, Edgar permitia que o tivesse, porque ele é o mais doce, o mais generoso homem do mundo. Um homem que me fez muito, muito feliz! Como vê, isso realmente funcionou para mim. Deu certo. Daí por que pensei que também fosse dar certo para Loveday.
— Diana, a decisão foi de Loveday. Não sua.
Neste momento, foram interrompidas, talvez fortuitamente. Uma porta bateu na frente da casa, e alguém chamou:
—Judith!
— Estou aqui, na cozinha! — respondeu Judith, levantando a voz.
—Jess —disse Diana. —É incrível, mas esqueci inteiramente que ela estava aqui!
As duas começaram a rir por causa disso, quando a porta foi aberta bruscamente e Jess apareceu, um tanto descabelada e suja de teias de aranha, mas cheia de satisfação.
— Consegui dar um jeito, mas preciso de alguma coisa para limpar as vidraças. — Ela percebeu Diana, e vacilou. — Eu... eu sinto muito. Não sabia que estava aqui.
— Oh, Jess querida, não se desculpe. Passei apenas para trazer alguns ovos e legumes. O que você andou fazendo
— Limpando a Cabana. Estava cheia de teias de aranha, de besouros e coisas mortas, mas limpei tudo. Também havia dois camundongos mortos no chão. Acho que estamos precisando de um gato. Temos algum produto para limpar vidraças?
— Não sei. Vou dar uma espiada. Diana sorriu.
— Aquela casinha não é um encanto? Foi construída para meus filhos, Athena e Edward. Eles passavam horas, dias e semanas la Acampando e cozinhando salsichas que tinham um cheiro horrível depois de prontas.
— Quando o verão chegar, vou dormir lá. O tempo todo.
— Não se sentirá solitária?
— Levarei Morag para me fazer companhia.
— Quer café? — perguntou Judith. Jess franziu o nariz.
— Só um pouquinho.
— Então, beba uma caneca de leite. E coma um biscoito ou qualquer coisa.
— Eu quero limpar as vidraças.
— Cinco minutos para um lanche revigorante, e depois poderá continuar com sua faxina.
— Oh, está bem.
—O leite está na geladeira e os biscoitos na lata. Sirva-se à vontade. Jess foi à geladeira e tirou a garrafa do leite. Perguntou:
— Você ligou para o Santa Ursula?
— Liguei. Temos uma entrevista com a srta. Catto amanhã à tarde.
— Você falou com ela?
— Naturalmente.
— Não vou precisar começar imediatamente, não é mesmo?
—Não, mas talvez seja matriculada em meados do período letivo.
— Quando será isso?
— Por volta de cinco de novembro.
— O Dia de Guy Fawkes — disse Diana. Jess franziu o cenho.
— O que é Dia de Guy Fawkes? — perguntou.
— Oh, é a mais idiota comemoração de um pavoroso evento, quando então queimamos na fogueira uma efígie do pobre Guy Fawkes. Também soltamos fogos de artifício e, de um modo geral, comportamo-nos como um bando de pagãos.
— Parece bastante divertido.
— Você vai ficar como aluna interna ou externa?
Jess deu um de seus elaborados encolhimentos de ombros.
— Não faço a menor idéia.
Ela pegou uma caneca no aparador e a encheu de leite.
— Externa seria o melhor, talvez — disse Judith — porém há o problema do transporte e da gasolina. Os ônibus estão fora de cogitação. Talvez ela fique como interna semanal. Seja lá o que for. Ainda veremos.
Jess conseguira abrir a lata de biscoitos com certa dificuldade, nela encontrando dois exemplares. Enquanto comia o primeiro, aproximou-se e ficou recostada ao ombro de Judith. Então, disse:
—Judith, eu gostaria que você visse se encontra algo com que eu possa limpar as vidraças...
—... e tudo vai depender — disse a srta. Catto — de como Jess estava classificada em sua escola, em Cingapura. Que idade tinha ela, quando deixou a escola?
— Onze anos.
— E não freqüentou qualquer tipo de escola desde então?
— Não houve nenhum ensino formal. Entretanto, as holandesas do campo de prisioneiros eram, em sua maioria, esposas de plantadores de chá, portanto, instruídas e cultas. Montaram classes iniciais para as crianças, porém os japoneses lhes tomaram todos os livros. Assim, suas "alunas" apenas as ouviam contar histórias, além de receberem noções de conhecimento geral e cantarem canções de aprendizado. Elas até chegaram a improvisar um ou dois concertos. Um dos garotos fez para Jess uma flauta, de um pedaço de bambu.
A srta. Catto meneou a cabeça. Disse, tristemente:
— É quase impossível imaginar-se.
Elas estavam no estúdio da srta. Catto, reservado a ocasiões tão importantes e vitais. Ali é que a diretora dera a Judith a notícia do acidente automobilístico fatal de tia Louise. Também naquele aposento é que o sr. Baines lhe tinha falado sobre o legado de tia Louise — e a vida de Judith ficara modificada e enriquecida desde então.
Eram quatro da tarde. O Santa Úrsula estava singularmente silencioso. As aulas haviam terminado às três, e todas as garotas tinham deixado o prédio em tropel, diretamente para o campo de jogos, ond corriam na lama arremessando bolas de hóquei, ou jogavam basquete. Somente uma ou duas alunas mais velhas haviam ficado para trás estudando na biblioteca, praticando ao piano ou no violino. De muito longe, Judith e Jess podiam ouvir os sons vagos de escalas repetidas interminavelmente.
No relacionado às aparências externas, o Santa Úrsula havia mudado, e não para melhor. Os anos de guerra tinham deixado sua marca.Durante todo esse tempo a srta. Catto batalhara, encarregada não de apenas um colégio, mas de dois, às voltas com os pressionantes e infindáveis problemas de espaço insuficiente, alimentos severamente racionados, black-outs, alertas antiaéreos, funcionários semiqualificados ou idosos e um mínimo absoluto de auxiliares para as tarefas dentro e fora do colégio.
Em resultado, tudo exibia cicatrizes bem visíveis. Os terrenos, embora não exatamente tomados pelas ervas, nenhuma semelhança tinham com os imaculadamente ordenados jardins de antes da guerra e, da janela do estúdio da srta. Catto, era possível ver-se os seis hediondos abrigos pré-fabricados que tinham sido construídos na quadra de tênis e no campo de críquete de antigamente.
Até mesmo o pequeno estúdio da srta. Catto, sempre tão arrumado, parecia algo dilapidado, com papéis empilhados sobre sua mesa de trabalho e uma velha chaleira elétrica pousada na trempe vazia. As cortinas (que Judith reconheceu) estavam obviamente nas últimas, os estofamentos frouxos e com buracos, o tapete surrado e no fio.
A srta. Catto também não se saíra muito bem. Ainda na casa dos quarenta, ela aparentava bastante mais idade. Os cabelos agora estavam totalmente grisalhos, havia linhas em sua testa e em redor da boca. Entretanto, continuava exalando a antiga aura de total competência, e seus olhos eram os mesmos de outrora — sábios e gentis, com um brilho de inteligência e de humor. Após uma hora em companhia dela, Judith não tinha uma única objeção quanto a entregar Jess aos seus cuidados.
— Creio que talvez fosse melhor ela começar pelo quarto grau iniciante. As colegas seriam um ano mais novas, porém todas formam uma turma particularmente simpática, e eu não desejaria vê-la lutando com as lições, o que poderia fazê-la perder a confiança.
—Eu a acho inteligente. Se for estimulada, não levará muito tempo para acompanhar as mais adiantadas.
Evidentemente, Jess tinha conquistado a srta. Catto. A princípio um tanto amedrontada e nervosa, ela respondera com apenas monossílabos às perguntas da diretora, mas logo relaxara e perdera o acanhamento. Em seguida, a entrevista formal transformara-se em agradável conversa, entremeada com muitos risos. Pouco mais tarde, soou uma batida à porta e uma das alunas mais velhas apareceu, dizendo que levaria Jess para mostrar-lhe o colégio. Esta aluna usava uma saia de flanela cinza e um pulôver azul-vivo, grossas soquetes brancas e sapatos de couro cru bastante confortáveis. Judith a considerou muito mais atraente do que ela e Loveday na mesma idade, quando então pareciam embrulhadas em informe tweed verde e meias de algodão marrons.
— Obrigada, Elizabeth, é muito gentil de sua parte. O que acha de meia hora? Assim, teriam tempo suficiente. Lembre-se de mostrar a Jess os dormitórios, o ginásio e as salas de música.
—Eu me lembrarei, srta. Catto. —A jovem sorrira. —Vamos, Jess. As duas ainda não tinham voltado.
—.. ela tem conhecimento de algum idioma?
— Creio que um pouco de francês básico. Enfim, a esta altura é provável que já o tenha esquecido.
—Talvez precise de aulas extras. Entretanto, não queremos sobrecarregar a menina e, portanto, fiquemos no básico. Quando quer que ela comece?
— Eu gostaria de saber sua opinião.
— Eu sugeriria o mais breve possível. Depois do meio-período, possivelmente. Será a seis de novembro.
A data parecia terrivelmente próxima.
— Poderíamos discutir este ponto com Jess? Quero que ela tome parte ativa em tudo. Que se sinta tomando suas próprias decisões.
—Você tem toda razão. Assim que ela voltar, nós três formaremos um pequeno comitê. Sua irmã ficará como externa ou interna? Se ela quiser, poderá ser uma interna semanal, embora não seja um arranjo que eu recomende com freqüência. Pode ser um tanto perturbador, em particular se as circunstâncias da menina são um pouco incomuns. Enfim, esta é uma decisão que cabe a você e a Jess.
— Não creio que ela possa ficar como externa. Acho muito difícil com tão pouca gasolina e tão poucos ônibus.
—Uma interna, então? Bem, depois falaremos a respeito. Quando ela terminar sua pequena excursão pelo colégio, tenho certeza de que já estará tranqüilizada, convencida de que não irá ficar encarcerada em outro terrível campo de prisioneiros.
— Vamos receber uma lista do enxoval necessário, não? A srta. Catto sorriu.
— Ficará muito feliz em saber que essa lista foi consideravelmente reduzida. Hoje em dia mal enche uma página. Normas e regulamentos tiveram que ser abolidos. Às vezes penso que éramos terrivelmente antiquados, inclusive vitorianos, antes da guerra. A verdade é que gosto de ver as garotas usando suas próprias roupas de cores alegres. Crianças jamais deveriam ser homogeneizadas. Agora, cada uma tem sua própria identidade, sendo prontamente reconhecível. — As duas entreolharam-se, acima da mesa. — Eu lhe prometo, minha querida, que farei o possível para Jess ser feliz.
— Eu sei disso.
— E você, Judith? Como está?
— Estou bem.
— E sua vida?
— Nunca cheguei a ir para a Universidade.
— Eu sei. Aliás, sei tudo a seu respeito, porque vejo o sr. Baines de tempos em tempos, e ele me dá notícias suas. Fiquei muito abalada pelo ocorrido com sua mãe e seu pai, mas, pelo menos, você ainda tem Jess. E, muito importante, está capacitada a dar-lhe um lar. — A srta. Catto sorriu. — De qualquer modo, não se deixe afogar pela vida doméstica, Judith. Você tem um cérebro bom demais para isso, pode ter um brilhante futuro.
— Eu não poderia ir para a Universidade agora. A srta. Catto suspirou.
— É verdade. Não supus que pudesse. Seria uma espécie de regressão. Não importa. De qualquer modo, nossa intenção era boa... Tem visto Loveday Carey-Lewis?
— Tenho.
— Ela é feliz?
— Pelo menos parece ser.
— Nunca pude imaginar, ao certo, o que seria feito de Loveday. Em geral consigo captar o padrão, a direção da vida de uma criança; ter alguma idéia de como ela se sairá, após deixar para trás os dias escolares. Com Loveday não foi possível. Era a euforia ou o desastre, sem que eu jamais pudesse decidir o que prevaleceria.
Judith refletiu nisso.
— Um meio-termo, talvez? A srta. Catto riu.
— Pode ser. Bem, o que me diz de uma xícara de chá? Jess logo estará de volta e tenho alguns biscoitos de chocolate para ela. — A srta. Catto levantou-se, jogando sobre o ombro sua puída beca negra. —Os dias de serviçais e bandejas de chá há muito terminaram. Assim, eu mesma fervo a minha chaleira e preparo um ótimo chá para mim.
—Jamais a imaginei dedicada a tarefas domésticas.
— E não sou mesmo.
Dower House, Rosemullion
Sábado, 3 de novembro
Querido tio Bob
Peço que me perdoe por não lhe ter escrito antes, mas acontece que tenho estado ocupada visitando pessoas com Judith e limpando a cabana do jardim, que é onde eu vou dormir, assim que o tempo esquentar o suficiente.
Muito obrigada por me deixar ficar em Colombo. Eu adorei tudo, especialmente os crocodilos.
Vou para o colégio na terça-feira. Acho que eu não tinha vontade de ficar interna, mas agora resolvi ficar, porque a srta. Catto disse que elas fazem montes de coisas especiais nos fins de semana, como representar, ler em voz alta e sair em expedições. Além disso, vou poder telefonar para Judith sempre que quiser. Só que quando anoitecer, não durante o dia.
A srta. Catto é muito simpática e absolutamente divertida.
Morag está passando muito bem.
Espero que você também esteja bem.
Por favor, dê lembranças minhas ao sr. Beatty e a Thomas.
Um beijo da Jess RS. Biddy manda mil lembranças.
— Não quero que você entre, Judith. Prefiro despedir-me na escada da frente do colégio. Se você entrar, vou ficar com a impressão de que tudo isso vai demorar demais.
— É o que você realmente quer?
— É. Aquela garota simpática, Elizabeth, disse que virá encontrar-nos, que me mostrará meu dormitório e tudo o mais. Ela disse que estará esperando na porta.
— Foi muita gentileza dela.
— Ela também disse que pelo resto do período será a minha chefe de turma especial, e que, se me sentir perdida ou qualquer coisa, é só procurá-la, que me ajudará.
— Está me parecendo um bom arranjo.
Elas estavam quase chegando. Judith manobrou o carro para fora da estrada principal e ganhou a ladeira da colina, através da propriedade de pequeninas casas, até onde ficavam os portões do colégio. Eram duas e meia da tarde, e chovia, um chuvisco fino misturado a nevoeiro marinho, que encharcava suavemente os jardins invernais e as árvores peladas. Os limpadores de pára-brisa não haviam parado, desde que tinham deixado Rosemullion.
— Que curioso — disse Judith.
— O que é curioso?
— A história que se repete. Quando mamãe me trouxe ao Santa Úrsula pela primeira vez, eu disse a ela exatamente a mesma coisa. "Não entre. Diga adeus na escada." E foi o que ela fez.
— Bem, mas agora é diferente, não é?
— Sim. Graças a Deus é diferente. Eu me despedi dela e pensava que seria por quatro anos. Pareceu-me uma eternidade. Era a eternidade, embora felizmente eu não soubesse naquele momento. Nós duas não teremos uma despedida de verdade. Será apenas um até logo. Porque eu, Biddy e Phyllis nunca estaremos muito distantes. Mesmo quando Biddy se mudar, quando tiver uma nova casa, todos iremos ficar bem perto uns dos outros. E nosso próximo encontro será no Natal.
— Vai ser um Natal completo?
— O melhor de todos.
— Vamos ter uma árvore de Natal, como Biddy fez em Keyham?
— Branca e prateada. Chegando até metade da escada.
Jess disse:
— Vai ser esquisito, sem você.
— Também vou sentir sua falta.
— Bem, não vou ficar morrendo de saudades de casa.
— Claro que não, Jess. Eu a conheço, sei que não ficará.
A despedida das duas não demorou muito. Conforme havia prometido, a aluna mais velha — Elizabeth — estava lá, na enorme porta principal, esperando por elas. Ao ver o carro aproximar-se, apertou a capa de chuva contra o corpo e saiu para recebê-las.
— Olá! Aí estão vocês! Que dia horrível, não? Havia muito nevoeiro na estrada...?
Sua segurança e maneiras amistosas fizeram desaparecer inteiramente qualquer possível embaraço ou tensão.
— Eu levarei sua mala e seu bastão de hóquei. Consegue trazer o resto? Daqui, iremos diretamente ao andar de cima e eu lhe mostrarei onde irá dormir...
Tudo foi devidamente conduzido para dentro do prédio. Diplomaticamente, Elizabeth ficou a uma distância que não a deixaria ouvir as palavras das duas irmãs. Nos degraus da escada principal, em meio ao chuvisco impertinente, Judith e Jess entreolharam-se.
— Muito bem — disse Judith, com um sorriso. — É aqui que a deixo.
— Sim. — Jess estava controlada, mas firme em sua decisão.
Aqui mesmo. Tudo estará bem agora. — Ela se mostrava tão tranqüila e dona da situação, que Judith sentiu vergonha de seus temores e de que, ao menor encorajamento, poderia comportar-se como a mais sentimental das mães, com lágrimas ardendo por trás dos olhos. — Obrigada por me ter trazido.
—Até outro dia, Jess.
—Até.
— Eu amo você. As duas beijaram-se. Jess ofereceu-lhe um leve e curioso sorriso, deu meia-volta e se foi.
Judith chorou um pouco no carro, quando voltava para casa, mas só porque Jess se mostrara tão magnífica, porque a Dower House ia ficar vazia sem ela e porque haviam passado tão pouco tempo juntas. Então, encontrou um lenço, assoou o nariz e parou de chorar, dizendo seriamente a si mesma que deixasse de ser tola. No Santa Ursula, Jess iria florescer como uma plantinha: mentalmente estimulada, perpetuamente ocupada e na saudável companhia de garotas de sua idade. Ela já vivera tempo demais entre adultos. Vivera tempo demais sentindo fome, privações e a perda de entes queridos, todos os horrores de um mundo cruel e adulto. Agora, finalmente, teria tempo e espaço para redescobrir as alegrias e os desafios de uma infância normal. Era do que precisava. Afinal de contas, esta fora a única coisa sensata a fazer.
Assim, tudo em intenção do melhor. De qualquer modo, ia ser difícil não sentir um certo vazio e a falta da irmã. Rodando de volta através da charneca tomada pelo nevoeiro, Judith decidiu que estava precisando de um pouco de companhia de gente da sua idade, portanto, iria visitar Loveday. Ainda não tinha ido a Lidgey, simplesmente porque todo o seu tempo dos últimos dias fora ocupado com Jess. Haviam feito o prometido passeio a Penmarron; tomaram o trem para Porthkerris, exploraram a encantadora cidadezinha, visitaram os Warren e foram recebidas com um dos clássicos chás da sra. Warren. Além disso, Jess teria de ser equipada para o Santa Ursula. A lista de roupas não era tão longa nem complexa como na época de Judith e, graças à casa "Whiteaway e Laidlaw", em Colombo, Jess estava provida de todas as vestimentas necessárias. Entretanto, havia muitos outros itens variados que ela não possuía, os quais precisaram ser procurados nas desnudas lojas de Penzance. Um bastão de hóquei, botas para hóquei, papel de correspondência, uma caixa de tintas para pintura. Um avental grande para usar nas aulas de ciências, uma caneta-tinteiro, tesouras para costura e um conjunto de geometria. E por fim, mas não menos importante, uma Bíblia e um "Livro de Orações com Hinos Antigos e Modernos", ambos de uso obrigatório em qualquer entidade anglicana ritualista digna do nome.
Em seguida, tudo devia ser embalado.
Assim, de certo modo Loveday tinha sido negligenciada. Agora, no entanto, nesta mesma tarde surgia a oportunidade; manteria sua promessa, faria a visita, ficaria uma ou duas horas com Loveday e Nat. Judith desejou ter pensado nisso antes, porque então compraria flores em Penzance para sua amiga e talvez um brinquedo ou alguns doces para Nat. Enfim, agora era tarde. Os presentes teriam que esperar.
Após cruzar Rosemullion em seu carro, ela subiu a colina, atravessou os portões de Nancherrow e dirigiu por quase dois quilômetros mais, até chegar à curva que descia para a fazenda. A estradinha afundava, estreita e sulcada como um leito de rio, apertada entre muros de granito e maciços de giestas. Naquela curva, um poste de sinalização exibia a palavra LIDGEY, e havia também a plataforma de pedra onde Walter deixava diariamente os latões de leite, que mais tarde seriam recolhidos na camioneta do mercado de leite.
Era cerca de quilômetro e meio de estradinha acidentada e sinuosa até a casa da fazenda, porém a meio caminho mais abaixo erguia-se o chalé de pedra que o coronel mandara reformar, por ocasião do casamento de Loveday e Walter. A construção se cingia à curvatura da ladeira, seu teto de ardósia reluzindo à chuva, sendo prontamente identificado pelo varal com roupa lavada sacudindo-se e enfunando-se ao vento molhado. Ela chegou ao portão, que permanecia aberto e escorado por um grande bloco de pedra arredondada, além do qual uma trilha relvada se fundia ao que devia ter sido um jardim, mas deixara de sê-lo. Ali havia apenas o varal, alguns maciços mais de giesta e uns poucos brinquedos largados em torno. Um triciclo enferrujado, uma pá e um balde de leite. Judith freou o carro, desligou o motor e ouviu o vento. Um cão latiu em algum lugar. Ela desceu do carro, caminhou pelo caminho de laje de granito e abriu uma porta cuja tinta descascava, cheia de cicatrizes
— Loveday!
Viu-se em um pequeno vestíbulo onde estavam pendurados velhos casacos e capas de chuva. No chão, botas incrustadas de lama, jogadas ao acaso.
— Loveday!
Ela abriu uma segunda porta.
— Sou eu!
Cozinha e sala de estar, tudo em uma só peça. Quase uma réplica da casa da sra. Mudge. Um fogão da Cornualha em fogo lento, roupas penduradas em um varal alto, movido a polia, pisos lajeados, alguns tapetes; a mesa, a pia de argila, as vasilhas de comida dos cães, o balde para alimentar os porcos, as pilhas de jornais velhos, o aparador vergado ao peso de peças desconexas, o sofá cambaio.
Nat jazia no sofá, o polegar enfiado na boca. Dormia profundamente. Usava um macacão imundo, encharcado no lugar onde urinara dentro dele. O rádio, encarapitado em uma prateleira do aparador, borbulhava para si mesmo. Ainda voltaremos a encontrar-nos, não sei onde, não sei quando. Loveday passava roupa.
Quando a porta se abriu, ela ergueu os olhos. Judith anunciou, sem necessidade:
— Sou eu.
— Bem. — Loveday soltou o ferro com um baque, sobre o descanso. — De onde está vindo?
— Do Santa Úrsula. Acabei de deixar Jess no colégio.
— Oh, Deus, ela está bem?
— Comportou-se de maneira excepcional. Muito segura de si. Sem lágrimas. Eu é que quase me desmanchei.
— Acha que Jess vai gostar de lá?
— Sim, acho que vai. Teve permissão de ligar para mim, sempre que ficar triste. No momento, quem está triste sou eu, de modo que vim em busca de um pouco de alegria.
— Não tenho certeza se veio ao lugar certo.
- Para mim parece ótimo. Eu adoraria uma xícara de chá.
Vou pôr a chaleira no fogo. Tire sua capa. Pendure-a por aí, em qualquer lugar.
Judith tirou a capa, mas não encontrou lugar algum onde deixá-la, porque havia uma pilha de roupa lavada em uma cadeira, um volumoso gato dormindo em outra, e Nat, em sono profundo, ocupando o sofá.
Assim, ela retornou ao pequeno vestíbulo e pendurou sua capa em uma cavilha de madeira, sobre um par de calças pretas de lona, sujas de lama.
— Lamento sinceramente não ter vindo antes, Loveday, mas não tive um momento de folga, havia tanta coisa a fazer por Jess... —Judith caminhou até o sofá e baixou os olhos para o garotinho adormecido. As bochechas de Nat estavam muito coradas, uma mais do que a outra, e seu punho gorducho aferrava um velho pedaço de manta, com os remanescentes de uma orla de cetim. — Ele sempre dorme à tarde?
— Nem sempre, mas esta noite só pegou no sono às duas da madrugada. Passei momentos terríveis com ele. Acho que deve ser a dentição. — Loveday encheu a chaleira na pia e foi colocá-la no fogão. —Para ser sincera, nunca sei quando ele vai dormir ou ficar acordado. Sempre foi um terror na hora de dormir. E se pega no sono, eu o deixo onde estiver, porque são meus únicos momentos de paz. Por isso eu agora tentava terminar de passar a roupa.
—Se o acordarmos agora, o mais provável é que ele durma durante a noite.
—Sim, talvez. —Entretanto, Loveday não pareceu muito seduzida pela idéia. — Assim que ele acorda, começam as estripulias, e ponto final. De qualquer modo, está molhado demais para deixá-lo brincando lá fora.
Mas eu sei que voltaremos a encontrar-nos em um dia ensolarado, gemeu o rádio. Ela foi até o aparador e desligou o aparelho.
— Música xaroposa. Fico ouvindo porque me faz companhia. Vou dar um jeito nisso e arranjar um pouco de espaço para você...
Ela começou a amontoar a roupa ainda por passar, mas Judith a impediu.
— Eu faço isso. Deixe-me terminar, enquanto você prepara o chá. Gosto de passar roupa. Depois, acorde Nat e tomaremos nosso chá juntos...
— Tem certeza? Passar roupa dá trabalho.
— E para que são os amigos, meu bem? — perguntou Judith com tom de voz de Mary Millyway, enquanto pegava uma amarfanhada camisa no alto da pilha e a estendia na tábua de passar. — Isto precisa parecer imaculado, depois de passado a ferro? Porque, então vou precisar umedecer o pano um pouquinho.
— Não. Não há necessidade. Depois é só dobrar, e eu guardo na gaveta de camisas de Walter. — Loveday deixou-se cair no sofá ao lado do filho adormecido. — Ele já se molhou, o grande safadinho disse, mas sua voz era indulgente. — Ei, Nat! Acorde! Vamos tomar chá.
Ela pousou uma das mãos no estômago rechonchudo do menino depois inclinou-se para beijá-lo. Ocupada em passar a roupa para Loveday, Judith concluiu que a aparência dela era péssima; dava a impressão de cansada, com olheiras escuras sob os olhos. Pensou então se chegaria o dia em que a casinha estaria arrumada, ou mesmo moderadamente limpa e em ordem, mas decidiu que isso talvez jamais acontecesse.
Os olhos de Nat abriram-se. Loveday o ergueu do sofá e colocou-o sobre os joelhos, embalando-o por um momento, falando com ele, até vê-lo bem desperto. Olhando à sua volta, ele viu Judith.
— Quem é ela?
—Judith. Você a conheceu no outro dia. Na casa da vovó. Os olhos de Nat eram escuros como duas uvas suculentas.
— Eu não lembro dela.
— Pois ela se lembra de você, e veio aqui visitar você. — Loveday levantou-se, com o filho no colo. — Vamos trocar suas calças.
— Posso ir também e conhecer o resto da casa? — perguntou Judith.
— Não, não pode — respondeu Loveday com firmeza. — Está muito desarrumado. Se me dissesse que vinha, eu chutaria tudo para debaixo da cama. Preciso ser avisada com antecedência, antes de permitir excursões turísticas pela casa. Algo mais ou menos como nas Mansões Senhoriais. Da próxima vez, terei prazer em mostrar-lhe.
Havia uma porta na outra extremidade da cozinha, e Loveday desapareceu atrás dela deixando-a entreaberta, de modo que Judith viu de relance a grande cama com cabeceira de latão. Esforçando-se
Ouviu-a também abrindo e fechando gavetas, depois o ruído de torneiras escorrendo e de descarga do vaso sanitário. Pouco mais tarde, mãe e filho voltavam. Nat, envergando um macacão limpo e de cabelos escovados, parecia um anjinho comportado. Loveday o deixou sentado no chão, encontrou um pequeno caminhão para ele brincar e o entregou à própria sorte. A água fervia na chaleira. Ela pegou o bule.
— Passei uma camisa.
— Oh, esqueça isso! Desligue o ferro. Se quiser ajudar, pode preparar a mesa... As xícaras estão naquele guarda-louça. Os pratos também. Há um pedaço de bolo de açafrão na lata de guardar o pão, e manteiga naquela travessa em cima da geladeira...
Juntas, as duas improvisaram a mesa do chá, empurrando para o lado alguns jornais e exemplares do The Farmer's Weekly, a fim de fazer espaço. Nat foi convidado a juntar-se a elas, mas recusou-se, preferindo continuar no chão com seu caminhão, que empurrava de um lado para o outro fazendo ruídos de vrum-vrum-vrun, para torná-lo real. Loveday não insistiu.
— Desculpe pela bagunça — disse — e por não deixar você ver a casa.
—Não seja tola.
— Vou fazer uma faxina geral, e depois envio-lhe um convite formal. Na verdade, a casinha é um doce, e o banheiro novo um encanto. Ladrilhado, com canos aquecidos para pendurar as toalhas, e tudo. Meu querido papai foi mesmo generoso. O problema é que só temos um quarto. Sei que Nat dormiria melhor se tivesse seu próprio quarto, porém não há muito que possamos fazer. — Ela serviu o chá de Judith. — Sua casa está sempre tão arrumada, não se vê nada fora do lugar...
— Graças a Phyllis, mas também não temos um esperto garotinho de três anos andando por lá.
— Ele nunca é muito levado se o dia estiver bom, porque brinca lá fora quase o tempo todo. Quando chove, no entanto, fica impossível, sujando tudo de lama em suas idas e vindas.
— Onde está Walter?
— Oh, em algum lugar. Acho que nas plantações do alto da colina. Ele logo estará de volta, a fim de ordenhar as vacas.
—Você ainda ajuda na ordenha?
—Às vezes. Se a sra. Mudge estiver ausente.
— Fez a ordenha hoje?
— Não, hoje não, graças a Deus.
— Está parecendo cansada, Loveday.
— Você também ficaria, se só conseguisse dormir às três da madrugada.
Loveday ficou calada, muito quieta, com os cotovelos ossudos fincados na mesa, as mãos envolvendo a xícara de chá quente, de olhos baixos. Os compridos cílios escuros jaziam sobre as faces pálidas. Quando Judith olhou para sua tristeza, percebeu que brilhavam com lágrimas não derramadas.
— Oh, Loveday...
Em uma espécie de zangada negativa, Loveday balançou a cabeça.
— Estou apenas cansada.
— Se houver alguma coisa errada, sabe que pode me dizer. Loveday tornou a negar com a cabeça. Uma lágrima escapou, deslizou por seu rosto. Ela ergueu a mão e a limpou bruscamente.
—Não deve ficar guardando as coisas para si mesma. Isso não faz nenhum bem.
Loveday nada disse.
— É alguma coisa entre você e Walter? —Judith precisou ganhar coragem para fazer semelhante pergunta, sabendo que se arriscava a uma resposta furiosa de Loveday, mas mesmo assim a fez. Loveday não investiu contra ela. — Há algo errado entre vocês?
Loveday murmurou alguma coisa.
— O que disse?
— Eu disse que há outra mulher. Ele arranjou outra mulher. Judith sentiu-se desfalecer. Depositou cuidadosamente sua xícara em cima da mesa. Perguntou:
— Você tem certeza disso? Loveday assentiu.
— Como é que sabe?
—Eu sei. Ele a tem procurado. Quando anoitece, no pub. As vezes só volta para casa altas horas da noite.
- Bem, mas como é que você sabe
A sra. Mudge me contou
A sra. Mudge?
— Sim. Ela ficou sabendo na aldeia. Então me contou, dizendo que precisava saber. Que devia discutir o assunto com Walter. Dizer a ele que encerrasse o caso.
Ela está do seu lado ou do lado dele?
Do meu. Até certo ponto. Na opinião da sra. Mudge, quando um homem começa a andar atrás de uma mulher, é porque há algo errado com sua esposa.
— Por que a sra. Mudge não o chama às falas? Afinal, é filho dela!
— Ela diz que não é da sua conta, que não lhe compete interferir. Aliás, devo dizer que nunca interferiu. Reconheço que tem essa qualidade.
— Quem é a tal mulher?
—Uma qualquer. Veio para Porthkerris durante o verão. Apareceu com um sujeito metido a pintor ou coisa assim. De Londres. Morou algum tempo com ele, depois os dois brigaram, ou ela encontrou mais alguém, ou então o deixou.
— E onde ela mora agora?
— Em um carroção, lá no áto de Veglos Hill.
— Onde Walter a conheceu?
— Em um pub qualquer.
— Como é o nome dela? —Você não vai acreditar.
— Diga.
— Arabella Lumb.
— Não acredito!
E de repente, incrivelmente, as duas estavam rindo, apenas por um instante, e Loveday ainda trazia as lágrimas nas faces.
— Arabella Lumb! — Repetido, o nome soava ainda mais improvável. — Você já a viu?
—Sim, uma vez. Ela estava em Rosemullion, certo anoitecer, quando fui tomar uma cerveja com Walter. Ficou o tempo todo sentada em Um canto, perto do bar, olhando para ele, mas os dois não se falaram, Porque eu estava lá. Uma intrusa. Atrapalhando o romance. Ela tem uma aparência de cigana com peitos enormes... sabe como é, a velha
Mãe Terra. Com pulseiras e colares, sandálias e esmalte verde nas unhas. Bastante sujas as dos pés.
— Nossa! Deve ser pavorosa.
— No entanto, é sexy. A mulherzinha transpira sexualidade. Exuberância. Como uma enorme fruta pra lá de madura. Uma espécie de excitamento. Acho que a palavra seria "palpável". Talvez devessem ver no dicionário.
— Não. Você escolheu a palavra certa.
— Tenho uma horrível sensação de que Walter está fascinado
Loveday recostou-se na cadeira e tateou no bolso das calças compridas até encontrar um amassado maço de cigarros e um isqueiro barato. Tirou um dos cigarros e o acendeu. Após um momento, acrescentou:
— E eu não sei como agir.
— Aceite o conselho da sra. Mudge. Discuta o assunto com ele. Loveday fungou com força. Então ergueu o rosto e, através da mesa, seus olhos adoráveis encontraram os de Judith.
— Eu tentei, ontem à noite. — Sua voz era desanimada. — Estava zangada, farta dessa situação. Walter chegou em casa às onze horas, e estivera bebendo uísque, eu pude sentir o cheiro. Quando está bêbado, ele fica agressivo, de modo que tivemos uma discussão terrível e acabamos acordando Nat, porque gritávamos um com o outro. Ele disse que faria a droga que lhe agradasse, que procuraria a droga de quem bem quisesse. Disse também que, afinal de contas, a culpa era minha, porque eu não passava de uma droga inútil de esposa e de mãe, que a casa vive de pernas para o ar, e que nem ao menos sei cozinhar direito...
— Isso foi rude e injusto.
— Sei que não sou muito boa na cozinha, mas é horrível alguém nos lançar isso na cara. Há mais uma coisa. Walter não gosta que eu leve Nat a Nancherrow. Acho que fica ressentido. Como se, de certo modo, ele fosse humilhado...
— Walter, mais do que qualquer outro homem, não tem o direito de ficar irritado.
— Ele diz que estou querendo transformar Nat em um pequeno maricás. Quer que ele seja um Mudge, não um Carey-Lewis.
Tudo aquilo era compreensível, mas também desconcertante.
— Ele gosta de Nat?
— Gosta, quando Nat está comportado, divertido ou engraçado. Não, quando o menino está cansado, exigente ou precisando de atenção. Às vezes, passam dias sem que dê uma palavrinha a Nat. Aliás, Walter tem um gênio danado e, nestes últimos tempos, vem se portando de um modo francamente impossível.
— Quer dizer, desde que Arabella Lumb entrou em cena? Loveday assentiu.
— Oh, isso não pode ser sério, Loveday. Todos os homens atravessam fases de tolices, quando então saem dos trilhos e perdem o juízo por completo. Por outro lado, se ela apontou suas grandes e bem treinadas armas para ele, penso que Walter não tem muitas chances.
— Ela não irá embora, Judith.
—Talvez vá. —Entretanto, mesmo quando falava, Judith não se sentia muito esperançosa. — Você tem sido feliz com Walter. Creio que agora deve limitar-se a sorrir e suportar a tensão, esperando que ele caia em si. Não vale a pena discutir e brigar. Isso apenas torna as coisas piores.
— Agora é tarde demais para dizer isso.
— Não estou sendo de muita ajuda, não é mesmo?
— Sim, está. Apenas poder falar a respeito, ajuda e muito. O pior é não ter ninguém com quem falar. Mamãe e papai — ela procurou a palavra adequada — explodiriam, se soubessem.
— É de surpreender que ainda não saibam.
— A única pessoa que poderia estar a par dos boatos é Nettlebed. E nós duas sabemos que ele jamais soltaria uma palavra para qualquer dos dois.
— É verdade. Ele nunca faria isso.
Durante todo este tempo, Nat estivera deitado sobre a barriga, concentrado em seu brinquedo. De repente, decidiu que tinha fome. Levantou-se com certa dificuldade e caminhou até a mesa, ficando na ponta dos pés para ver o que havia em cima dela.
— Eu tô com fome.
Loveday amassou o cigarro em um pires ao lado, inclinou-se e colocou o filho sobre o joelho. Estampou um beijo no alto da cabecinha coberta de bastos cabelos escuros e, com os braços em torno dele, passou manteiga em uma fatia de bolo de açafrão. Depois a entregou a Nat.
Ele mastigou ruidosamente, enquanto encarava Judith sem pestanejar. Ela lhe sorriu.
—Eu queria trazer um presente para você, Nat, mas não encontrei uma loja. Da outra vez que vier aqui, trarei uma coisa. O que você vai querer?
— Eu quero um carro.
— Como, um carrinho?
—Não. Um carro grande, que eu entre dentro. Loveday riu.
— Você é um garotão que não perde uma oportunidade, hein? Judith não pode comprar um carro para você.
Judith afagou a cabeça de Nat.
—Não ligue para sua mãe —disse ao menino. —Posso fazer tudo o que eu quiser.
Quando o chá terminou, já passava bastante das cinco horas. Judith disse:
— Eu realmente preciso ir. Biddy e Phyllis devem estar se perguntando o que aconteceu comigo, na certa imaginando terríveis dramas com Jess.
— Foi ótimo ver você. Obrigada por ter vindo.
— Estou contente por vir aqui. Da próxima vez, passarei toda a roupa lavada. — Ela foi apanhar sua capa de chuva. — E você deve levar Nat à Dower House qualquer dia. Para almoçar ou qualquer coisa.
—Nós gostaremos de ir. Não é mesmo, Nat? Escute, Judith, você não dirá uma palavra, está bem? Daquilo que lhe contei?
— Nem uma palavra. Entretanto, continue a me contar o que for acontecendo.
— Eu contarei.
Loveday ficou em pé com Nat nos braços, e foram até a porta aberta, ver Judith ir embora. No exterior, o nevoeiro ficara mais espesso e tudo estava cinzento, úmido e gotejante. Judith ergueu a gola da capa e preparou-se para uma corrida molhada até o carro, mas Loveday a chamou, e ela se virou.
—Ainda não teve notícias de Gus?
Judith balançou a cabeça.
— Nem uma linha.
— Foi apenas curiosidade.
Judith voltou para casa dirigindo através do crepúsculo escuro e melancólico, atravessou Rosemullion, subiu a colina e cruzou os portões da Dower House. A janela da cozinha brilhava cálida e amarela através do anoitecer sombrio, e alguém deixara acesa a luz acima da porta principal. Guardou o carro de Biddy na garagem, onde o seu pequeno Morris ainda se aninhava, sem rodas, em cima de blocos de madeira e protegido da poeira por uma suja e pegajosa manta. Os necessários cupons para gasolina ainda não tinham sido enviados pela autoridade competente e, enquanto não chegassem, de nada adiantaria chamar alguém para recolocar os pneus, carregar a bateria e descobrir se o negligenciado carrinho ficara avariado após anos de desuso.
Seguiu pelo caminho de cascalhos, e usou a porta dos fundos para entrar em casa. Na cozinha, encontrou Phyllis abrindo massa, e Anna sentada no outro lado da mesa, tentando fazer seu dever de casa.
— Tenho que escrever uma frase com a palavra "falei".
— Bem, isso não deve ser muito difícil... Judith! Onde foi (que esteve? Pensávamos que ia chegar horas atrás.
— Fui ver Loveday e Nat.
— Já estávamos achando que acontecera algo errado com Jess e você ficara retida.
— Eu sei. Devia ter telefonado. Não houve nada de anormal. Ela se mostrou à altura da situação. Nem quis que eu entrasse no colégio em sua companhia. Precisei despedir-me na porta.
— Oh, ainda bem! A casa fica esquisita sem ela, não é mesmo? Como se sempre tivesse morado aqui... Anna vai sentir falta de Jess, não vai? E agora, vamos com isso, termine seu dever de casa.
Anna suspirou elaboradamente.
—Não consigo pensar numa frase. Judith foi em seu socorro.
— Que tal "Eu telefonei para Jess e falei com ela"? Anna considerou a sugestão.
— Não sei escrever "telefonei".
— Então, escreva "vi". "Eu vi Jess e falei com ela."
— Está bem.
Com os dedos enroscados ao redor do lápis, a ponta da língua surgindo entre os dentes, Anna começou a escrever, firmemente concentrada.
— Quer uma xícara de chá, Judith?
— Não, obrigada, já tomei. Onde está a sra. Somerville?
— Na sala de estar. Esperando sua chegada. Está impaciente porque tem algo para contar a você.
— O quê?
— Não me compete dizer.
— Espero que seja alguma notícia boa.
— Pois então, vá lá e descubra.
Judith foi, livrando-se da capa de chuva enquanto andava. Abriu a porta da sala de estar e viu-se diante de um quadro aconchegante. As lâmpadas tinham sido acesas e o fogo crepitava na lareira. Em frente desta, sobre o tapete, jazia Morag. Biddy ocupava sua cadeira de braços, perto das chamas, ocupada em tricotar um quadrado. Tricotar quadrados era mais ou menos o limite de suas habilidades. Ela os tricotava com restos de lã em cores variadas e, após ter cerca de uma dúzia prontos, levava-os para a Cruz Vermelha, onde alguma outra senhora, ligeiramente mais habilidosa, unia todos os quadrados com pontos de crochê, que depois se tornavam alegres cobertores de retalhos. Em seguida, os cobertores eram enviados para a Cruz Vermelha, na Alemanha, e distribuídos aos campos que ainda estavam cheios de pessoas melancólicas, deslocadas e sem lar. Biddy dizia que este era seu trabalho-para-a-paz.
—Judith! — Ela largou o tricô e tirou os óculos. — Está tudo bem? Nenhum problema com Jess?
—Nem um só.
— Que bom para ela. Jess é uma mistura singular. Uma garotinha em um momento, e muito amadurecida em outro. Tenho certeza que se sairá esplendidamente, mas isto aqui fica um pouco vazio sem ela. Onde foi que esteve?
- Visitei Loveday. —Judith fechou as cortinas contra o crepúsculo úmido do penumbroso dia de novembro. — Phyllis disse que você tinha algo para me contar.
— E tenho mesmo. Muito excitante. Que horas são?
- Quinze para as seis.
Vamos tomar um drinque. Uísque com soda. O que acha?
Acho ótimo. Estou morta de cansaço.
— Emocionalmente exaurida, meu bem. Sente-se comodamente e eu lhe trarei um.
Levantando-se, Biddy saiu da sala porque, tradicionalmente, os copos e garrafas eram sempre guardados na sala de refeições. Sozinha, Judith colocou mais uma tora no fogo e afundou na outra cadeira de braços. Emocionalmente exaurida, havia dito Biddy, e era verdade. Entretanto, Biddy ignorava que ela ficara mais exaurida por sua conversa com Loveday do que por separar-se de Jess. E isso, claro está, era algo que continuaria sendo ignorado.
Após um momento, Biddy retornou com os dois drinques. Deu um para Judith e tornou a sentar-se, colocando o copo, com algum cuidado, na mesa ao seu lado. Depois acendeu um cigarro. Por fim, com tudo perfeitamente ao alcance, disse:
— Muito bem...
— Fale — pediu Judith-
— Consegui a casa. A casa em Portscatho. O corretor de imóveis deu-me a notícia esta tarde.
— Oh, Biddy, é maravilhoso!
— Posso mudar-me a qualquer momento, depois de meados de janeiro.
— Tão depressa?
— Bem, há um mundo de coisas por fazer. Estive pensando, organizando listas. Terei de ir a Devon, e finalmente vender Upper Bickley.
— Para quem vai vendê-la?
— Para a família da Marinha que morou lá durante toda a guerra, Pagando aluguel. Há dois anos estão querendo comprar, mas se vendesse, eu então teria que colocar todos os meus pertences em um guarda-móveis. Do jeito como está, eles tomam conta de tudo para mim.
— E ainda querem comprar a casa?
— Mal podem esperar por isso. Assim, o que tenho a fazer é ir até Bovey Tracey, selecionar tudo aquilo, fazer um inventário do restante para então providenciar embaladores e transportadores, todo esse tipo de coisa. Vou ligar para Hester Lang esta noite e perguntar se posso ficar com ela. Será mais fácil resolver tudo, comigo estando lá.
— Ela estendeu o braço para seu drinque e ergueu o copo.
brinde, meu bem.
— APortscatho!
As duas brindaram à nova casa. Judith perguntou:
— Quando é que pretende ir?
—Pensei em algum dia da semana que vem. E ficarei lá com Hester durante algum tempo. Judith alarmou-se.
— Oh! E estará de volta para o Natal?
— Somente se você quiser.
— Oh, Biddy, você precisa estar aqui no Natal. Prometi a Jess um Natal de verdade e, como nunca organizei um, vou necessitar de muita orientação e ajuda. Além disso, temos que arranjar uma árvore e preparar um jantar de Natal adequado, com todos os enfeites. Você precisa voltar.
— Muito bem, então, voltarei. Só até meados de janeiro. Depois disso, farei a minha grande mudança. Quero estar com tudo pronto antes de Bob voltar para casa.
— É terrivelmente excitante, mas só Deus sabe como sentiremos sua falta.
— Também sentirei falta de todas vocês. E, sem Phyllis, terei de começar a aprender como cuidar de uma casa novamente. Enfim, a gente sempre anda para diante, até mesmo velhotas como eu. Há mais uma coisa em que pensei. Quando for para a casa de Hester, tomarei o trem e deixarei meu carro aqui. Você precisa ter condução própria, o que não é o meu caso porque, se ficar muito necessitada, Hester me emprestará o carro dela.
— Biddy, é sacrifício demais de sua parte!
—Não, não é. E ainda tenho alguns cupons vencidos de gasolina. Estritamente falando, são ilegais, mas no posto de gasolina, acima na estrada, eles são muito bons para fechar os olhos. Portanto,
Tudo dará certo com você. — Ela tornou a pegar seu tricô. — É mesmo muito excitante, não? Nem acredito que de fato consegui a casa! Ela é precisamente o que eu tinha em mente. E o melhor de tudo, é que não fica muito longe de você. Apenas uma hora de carro. E com vista para o mar; a gente pode descer a alameda até as rochas, e nadar. Além disso, o jardim é do tamanho exato, nem grande, nem pequeno.
— Mal posso esperar para vê-la.
— E eu mal posso esperar para mostrá-la a você. Entretanto, quero que só a veja quando estiver tudo em ordem, comigo perfeitamente instalada.
— Você é tão malvada quanto Loveday. Ela não me deixou ver seu chalé, porque disse que estava tudo em desordem.
— Oh, pobre Loveday... Você certamente a pegou desprevenida. Como está ela? E Nat, fez muita traquinagem?
— Pelo contrário, estava até muito dócil. Quer que eu lhe dê um carro que ele possa dirigir por aí.
— Céus, que criança ambiciosa!
— De maneira nenhuma. Por que ele não teria um? — Judith espreguiçou-se. O calor da lareira, juntamente com o uísque, a tinham deixado sonolenta. Ela bocejou. —Se encontrar forças, vou tomar um banho.
— Faça isso. Está me parecendo um pouco abatida.
— Este foi um daqueles dias em que tudo acontece. Tudo muda. Pessoas indo embora. Primeiro Jess, agora você. Não fico infeliz por Jess, apenas não a tive comigo por muito tempo. Foi muito bom ficarmos juntas, mas não durou tanto como eu queria...
— Você fez o que era o melhor para ela.
— Sim, eu sei. Apenas... —Judith deu de ombros. —É tudo isso, sei lá!
Tudo isso. Judith pensou em horóscopos. Ela não os lia com freqüência, mas, quando fazia isso, eles sempre mencionavam choques de planetas —Mercúrio mal aspectado com o Sol, ou Marte em Posição desfavorável em algum lugar, desta maneira ficando desarmonioso com o signo de nascimento da pessoa que, no caso dela, era Câncer. Talvez a fase atual fosse particularmente tempestuosa e ativa, e os céus infindáveis a tivessem reservado para ela. Judith sabia apenas que, desde quando fora informada da morte de Bruce e Molly, sua vida havia sido bombardeada por eventos inesperados. Hugo Halley fora um deles, assim como descobrir Gus com vida, e encontrar Jess, miraculosamente, regressando sã e salva de Java. Só que Jess já partira, tinha ido ao encontro de sua nova vida. E agora também Biddy estava no mesmo caminho. Cedo ou tarde, Phyllis e Anna partiriam também, construiriam um novo lar para elas e o suboficial Cyril Eddy.
Entretanto, o mais debilitante de tudo talvez fossem as preocupações particulares. Sua crescente preocupação com Gus, alarmante e frustrante ao mesmo tempo. Além disso, ser repositório de confidências que jamais desejaria ouvir: Athena não sendo filha de Edgar — e aquele desprezível Walter, tendo um caso com Arabella Lumb, o que deixava Loveday tão miseravelmente infeliz.
— Tudo acontece tão depressa — disse, em voz um tanto fraca.
— A guerra agora terminou e estamos todos ganhando velocidade, trocando de marcha, fazendo o máximo para retornarmos a alguma espécie de normalidade. A vida das pessoas não pode permanecer imóvel, pois do contrário jamais sairemos do lugar, ficaremos estagnados.
— Eu sei disso.
— Você está cansada. Vá e tome seu banho. E pode perfumar-se com a última gota de meu Floris Stephanotis — como um prêmio e tanto. Phyllis está preparando para o jantar a Torta Econômica Especial de Vegetais, do sr. Woolton. Acho que devemos comemorar a ocasião. Abrirei uma garrafa de vinho.
Ela parecia tão esfuziante e satisfeita com sua feliz sugestão, que Judith teve de rir, a despeito de si mesma.
— Sabe de uma coisa, Biddy? Às vezes você tem as idéias mais inteligentes do mundo. O que farei sem você?
Biddy trocou de agulhas e iniciou outra carreira do tricô.
— Um bocado de coisas.
Dower House, Rosemullion
14 de novembro de 1945
Prezado Gus
Será que recebeu minha carta, escrita no navio de transporte de tropas e postada no correio em Gibraltar? Enviei-a para Ardvray, mas talvez você ainda não tenha ido para casa. Seja como for, enviarei esta para o QG dos Gordons, em Aberdeen, e então você a receberá, sem a menor dúvida.
Nós viemos para cá por volta de 19 de outubro, e foi maravilhoso o regresso ao lar. Tenho estado muito ocupada com Jess. Ela foi matriculada em meu antigo colégio, como aluna interna. A diretora — srta. Catto — que também foi a minha diretora, mostrou-se particularmente gentil e compreensiva. Ainda não tornei a ver Jess desde que nos separamos, porém ela nos tem escrito cartas satisfeitas e parece estar se adaptando à nova vida.
Estive com todos em Nancherrow. Também com Loveday. Seu filho Nat é robusto e esperto, e ela o adora. Consegui comprar para ele um carro movido a pedais, de segunda mão, e o menino gostou tanto, que quer levá-lo consigo para a cama.
Gostaria de saber quais os seus planos para o Natal. Sem dúvida haverá inúmeros amigos na Escócia, fazendo fila para estarem em sua companhia.
Por favor, escreva-me contando o que tem acontecido e se você está inteiramente bem.
Receba o meu abraço amigo, Judith
DowerHouse, Rosemullion
5 de dezembro de 1945
Prezado Gus
Continuo sem notícias suas. Eu gostaria que você não morasse tão longe, porque então poderia procurá-lo. Peço-lhe que me envie qualquer coisa, nem que seja apenas um cartão-postal dos canteiros floridos municipais de Aberdeen. Você prometeu manter contato e tranqüilizar-me, porém se preferir ser deixado em paz e não desejar mais cartas, basta dizer, e eu compreenderei.
Aqui, estamos com moradores a menos em casa, porque Biddy Somerville viajou para vender sua casa em Devon. Ela adquiriu outra em um lugar chamado Portscatho, perto de Saint Mawes. Creio que pretende mudar-se para lá em meados de janeiro. Levará consigo sua cadela Morag. Como Jess adorava o animal, estou pensando em dar-lhe um cachorro que ficará no lugar de Morag, quando Biddy nos deixar para sempre.
Judith aqui fez uma pausa, enquanto pensava no que escrever em seguida e na maneira de escrevê-lo. Não quero que Gus venha aqui, insistira Loveday. Entretanto, talvez pela primeira vez na vida, Loveday devesse ficar em segundo lugar, numa lista de prioridades. Os problemas dela, embora difíceis, não estavam na mesma categoria dos de Gus Callender. O que quer que sucedesse a ela, estaria cercada de familiares amorosos e compreensivos, ao passo que Gus não tinnha um só parente próximo para apoiá-lo durante sua reabilitação, após os horrores sofridos na Estrada de Ferro de Burma. Além disso, de um modo obscuro, enquanto os dias passavam sem qualquer carta ou mensagem dele, a ansiedade de Judith por Gus ia aumentando. “Sem notícias quer dizer boas notícias", assim dizia o velho ditado, mas os instintos gritavam alto e claro para ela que nem tudo ia bem com ele.
Respirando fundo, Judith finalmente tomou sua decisão e tornou a pegar a caneta.
Biddy virá para o Natal. Esta é uma casa onde vivem cinco mulheres, mas se você quiser, por favor, venha e passe o Natal conosco. Talvez não esteja sozinho, porém ignoro este detalhe, porque ainda não tive notícias suas. Se vier, não o forçarei a ir a Nancherrow, a estar com Loveday ou seja o que for, prometo. Terá plena liberdade para passar seu tempo exatamente como desejar.
Se estou interferindo e me tornando incômoda, por favor, diga. Não voltarei mais a escrever, enquanto não tiver notícias suas.
Um abraço amigo da
Judith
À medida que o Natal ia chegando, o tempo se deteriorava, e a Cornualha exibiu sua face mais ingrata: céus cor de granito, chuva e um cortante vento leste. As velhas e mal ajustadas janelas da Dower House en nada contribuíam para manter o mau tempo no lado de fora, os dormitórios estavam gelados e, como um fogo era aceso na sala de estar às nove horas de cada manhã, a pilha de toras diminuía visivelmente, tornando necessário um telefonema de emergência para o fornecedor, ou seja, as Propriedades Nancherrow. O coronel não as deixou desprovidas e foi pessoalmente entregar a nova carga, dirigindo o trator colina acima, com o truque carregado rodando a reboque. O dia anterior havia sido um domingo, e Phyllis, Judith e Anna tinham passado quase todo ele empilhando as toras ordenadamente contra a Parede da garagem, onde o prolongamento do teto as manteria protegidas do pior da chuva.
Estavam agora na segunda-feira, e continuava chovendo. Metódica e tradicionalista, Phyllis lavara a roupa da semana, mas como era impossível pendurá-la fora de casa, todas as peças tinham sido colocadas no varal suspenso da cozinha, onde fumegavam umidamente, graças ao calor do fogão.
Batalhando com uma receita de pudim de Natal para os tempos de guerra (cenouras raladas e uma colherada de geléia de laranja), Judith quebrou um ovo dentro da mistura e começou a mexê-la com a colher. O telefone tocou no vestíbulo. Esperançosa, aguardou que Phyllis atendesse, mas ela limpava os quartos do sótão e certament-não ouvira a chamada. Assim, Judith procurou um saco de pano, enfiou nele a mão suja de trigo, como uma luva, e foi atender.
— Dower House.
—Judith, é Diana.
— Bom-dia. Aliás, que dia horrível!
— Dos piores. Entretanto, você conseguiu as toras que queria.
— Sim. Seu maravilhoso marido veio trazê-las, e estamos todas aconchegadas novamente.
— Meu bem, tenho notícias excitantes. Jeremy Wells está em casa. De licença. E o melhor de tudo é que não se trata de uma licença apenas, mas de licença para desmobilização. Ele será desmobilizado e voltará em definitivo. Não é incrível? Aparentemente, o próprio Jeremy solicitou o desligamento, em vista de ter ficado um longo período como Voluntário da Reserva da Marinha Real, e também porque o velho dr. Wells está de fato muito idoso e cansado para ficar clinicando sozinho por mais tempo. E eles o estão deixando sair... Judith? Ainda está ouvindo?
— Sim. Estou ouvindo.
— Como não disse uma palavra, pensei que a ligação tivesse caído.
— Não. Não caiu.
— Não é formidável?
— Sim, é maravilhoso. Fico realmente satisfeita. Quando... quando é que você soube?
— Ele chegou em casa no sábado. Ligou para mim esta manhã. Virá a Nancherrow na quarta-feira, para passar alguns dias. Assim pensamos em fazer uma boa reunião para comemorar o seu regresso. Quarta-feira à noite. Loveday e Walter, Jeremy e você. Venha, Por favor. Edgar vai abrir seu último champanha. Ele o guardou por esse tempo, e eu simplesmente rezo para que não tenha ficado com gosto esquisito. Enfim, se ficar, ele terá de encontrar alguma outra coisa. Você virá, não é mesmo?
— Claro que sim. Vou adorar ir.
— O que acha de quinze para as oito? Que prazer, ter todos vocês comigo novamente. Tem boas notícias de Jess?
— Sim, excelentes notícias. Ela está se destacando no hóquei e já faz parte da equipe principal.
— Garota esperta! E Biddy?
— Telefonou no sábado. Vendeu a casa, de modo que agora pode pagar o preço da nova.
— Quando ela tornar a telefonar, dê lembranças minhas.
— Darei...
— Então, até quarta-feira, meu bem.
— Até lá. Estou ansiosa para ir.
Judith desligou o telefone, mas não voltou logo para a cozinha. Jeremy. De volta. Desmobilizado. Não mais na segurança do distante Mediterrâneo, mas em casa para sempre. Ela disse para si mesma que não lamentava nem se alegrava. Sabia apenas que antes deles poderem reiniciar qualquer tipo de relacionamento despreocupado, tudo devia ser abordado, e devia estar preparada para encará-lo com a mágoa, desapontamento e mesmo ressentimento que ele lhe causara. Não importava o fato de tudo aquilo ter acontecido três anos e meio atrás. Jeremy lhe fizera uma promessa e não a cumprira, por isso não esboçando qualquer tentativa de explicar sua perfídia ou desculpar-se. Portanto, haveria um confronto entre eles...
— O que faz aí, parada junto ao telefone e olhando para o vazio? Era Phyllis, descendo a escada com sua pá de lixo e espanadores.
Vendo Judith, tinha feito alto a meio caminho, um tanto perplexa, com a mão na cintura do avental.
— O que disse?
— Você está com uma cara de buldogue. Eu não desejaria encontrá-la em uma noite escura. — Phyllis terminou de descer a escada. — Alguém telefonou?
— Sim. A sra. Carey-Lewis.
— E o que ela disse, para você ficar assim?
— Oh, nada de especial. — A fim de acrescentar algum peso às suas palavras, Judith mostrou um sorriso alegre. — Convidou-me para jantar na quarta-feira. — Phyllis continuou parada, esperando informações. — Jeremy Wells está de volta.
— Jeremy! — O queixo de Phyllis caiu, em evidente prazer. - Jeremy Wells? Bem, isso é formidável. Ele está de licença?
—Não. Sim. Licença para desmobilização. Vai voltar para semnpre.
— Quem diria! Pense só nisso! Foi a melhor notícia que já ouvi. Então, por que essa cara? Eu podia jurar que você ficaria nas nuvens!
— Oh, Phyllis!
— Ora, por que não? Ele é um homem encantador. Foi um bom amigo seu desde aquele dia em que o conheceu no trem de Plymouth-também se mostrou firme como uma rocha, quando Edward Carey-Lewis foi morto.
— Eu sei, Phyllis.
— Ele sempre teve uma queda por você, Jeremy teve. Qualquer tolo podia ver isso. E já é hora de você ter um homem em casa. Será muito mais divertido. Enfiada aqui com um bando de mulheres! Isso não é vida para você, Judith.
De certo modo, isto foi a última gota. Judith perdeu a paciência.
— Você não sabe nada de nada sobre isto!
— O que quer dizer com eu não sei nada de nada sobre isto?
— Apenas o que eu disse. E tenho um pudim de Natal para preparar.
Ao dizer sua fala de saída, ela começou a andar, cruzou o corredor lajeado e chegou à cozinha. Phyllis, no entanto, não pretendia ser posta de lado com tanta facilidade, e a seguiu, rente aos seus calcanhares.
— Não vamos encerrar o assunto por aqui...
— Phyllis, francamente, não é da sua conta!
— É melhor que seja. Quem mais há por aqui agora, além de mim. Alguém precisa dizer-lhe certas coisas, se você vai começar a ficar agitada, apenas ao ouvir o nome de Jeremy. — Ela guardou a pa de lixo e os espanadores no armário, depois retornando ao ataque. Você brigou com ele ou coisa assim?
— Todos me perguntam isso. Não. Não brigamos.
— Pois então...?
Era impossível argumentar com Phyllis.
— O que houve foi falta de comunicação. Desencontro. Sei lá. apenas que há três anos e meio não o vejo.
— Por causa da guerra; mas agora a guerra terminou. — Judith nada disse. — Ouça, você vai acabar fazendo desse pudim uma boa comida para cachorro. Dê-me lugar e eu verei o que se pode fazer... Não contra a vontade, Judith entregou-lhe a colher de pau. — parece um pouco seco, não? Acho que vou colocar mais um ovo na massa. — Phyllis mexeu o pudim, experimentalmente, e Judith sentou-se na borda da mesa, observando-a. — O que vai usar?
— Ainda não pensei.
— Bem, pense agora. Alguma coisa sedutora. Você ficou muito bonita, parece uma artista de cinema, quando põe toda aquela maquiagem. O que quer fazer é deixá-lo de queixo caído.
— Não, Phyllis. Acho que não é exatamente o que quero.
— Tudo bem, então. Seja cabeçuda, se preferir. Guarde tudo consigo mesma. No entanto, quero dizer-lhe uma coisa. O que passou, passou. É melhor assim. Não adianta ficar guardando ressentimentos. — Ela quebrou um segundo ovo dentro da tigela e começou a mexer a mistura, como se tivesse culpa por toda a situação. — Não deve prejudicar seus interesses por um momento de mau humor.
Parecia não haver nenhum comentário em resposta a tal observação. Entretanto, Judith ficou com a incômoda sensação de que talvez Phyllis estivesse certa.
Rupert Rycroft, ex-major dos Dragões da Guarda Real, desceu mancando os portais da casa Harrods, chegou à borda da calçada e ali parou, decidindo qual o seu próximo movimento. Era meio-dia e meia, hora do almoço, e o dia de dezembro estava gelidamente frio, com um vento brusco e cortante, mas misericordiosamente não chovia. Sua reunião em Westminster ocupara a maior parte da manhã e sua ida à Harrods o remanescente dela. Podia considerar seu o restante do dia. Pensou em chamar um táxi, seguir para a estação de Paddington e lá tomar um trem de volta a Cheltenham, onde deixara seu carro no pátio de estacionamento. Também poderia ir almoçar em seu clube, em seguida rumando para Paddington. Sentindo fome, optou pelo clube.
Entretanto, embora — ou talvez porque — parecesse haver tanta gente em movimento, empregados de escritório, pessoas fazendo compras de Natal, rapazes de uniforme e homens mais velhos carregando pastas, todos emergindo das estações do metrô ou descendo de ônibus lotados, percebia-se uma nítida escassez de táxis. Quando um surgiavista, invariavelmente já estava ocupado. Se fosse ágil e capaz, Rupert ficaria feliz embarcando em um ônibus 22 que o levasse até Piccadille. Jamais fora perturbado por falsas ilusões de sua própria importância. Entretanto, sua perna tornava impossível o esforço físico para subir em um ônibus; e pior ainda era desembarcar da maldita coisa quando chegasse a hora. Assim, teria que ser um táxi.
Ele esperou, um homem alto e apresentável, com sua apropriada indumentária de grosso sobretudo azul-marinho, gravata do regimento e chapéu-coco. Não levava o indispensável guarda-chuva fechado, mas uma bengala que fazia as vezes de uma terceira perna e sem a qual teria dificuldade em movimentar-se de um lado para o outro. Escadas e degraus constituíam um sério problema. Além disso, com sua outra mão enluvada ele segurava uma sacola de compras verde-escura, da Harrods. Nela havia uma garrafa de sherry Tio Pepe, uma caixa de charutos e uma echarpe de seda Jacqumar, um presente para sua esposa. Na agenda de Rupert, fazer compras na Harrods não significava comprar. Em outras lojas, ele tendia a sentir-se um pouco perdido, indeciso ou embaraçado, mas comprar coisas na Harrods era como gastar dinheiro em um clube para cavalheiros esplendidamente exclusivo e tranqüilizadoramente familiar, desta maneira tornando-se algo aprazível.
Estava a ponto de perder todas as esperanças, quando finalmente apareceu um táxi, rodando no lado contrário da rua. Rupert fez sinal para ele, erguendo sua sacola de compras como uma bandeira porque, se levantasse a bengala, provavelmente cairia. O motorista avistou-o, fez uma perfeita curva em “U” e parou junto dele.
— Para onde, senhor?
— Para o Clube de Cavalaria, por favor.
— Perfeitamente.
Rupert inclinou-se para entrar no táxi. Ao fazer isso, viu uma corrente incessante de pedestres e, nesse instante, esqueceu de entrar no táxi, porque seus olhos e toda a sua atenção foram atraídos por Um rapaz que caminhava na sua direção. Alto — quase tão alto quanto o próprio Rupert — vagamente familiar e miseravelmente trajado, com a barba por fazer e rosto encovado. Dolorosamente magro. Uma boa camada de cabelos negros roçando a gola erguida do surrado paletó de couro, velhas calças de flanela cinza, sapatos gastos e sem graxa. O rapaz carregava uma caixa de mantimentos, da qual assomava uma cabeça de aipo e o gargalo de uma garrafa. Os olhos escuros e fundos não se desviavam para a esquerda ou a direita, mantendo-se fixos à frente, como se tudo quanto importasse fosse o rumo a seguir.
Dentro de cinco segundos, não mais do que isso, ele passava ao lado de Rupert e continuava seu caminho. Outros transeuntes logo entrariam em cena, formando uma barreira atrás dele. Se hesitasse, o rapaz desapareceria de vista. Pouco antes disso acontecer, Rupert ergueu a voz e gritou, atrás dele:
— Gus!
O rapaz estacou em seco, imobilizou-se, como um homem baleado. Fez uma pausa e virou-se. Viu Rupert em pé ao lado do táxi, e os olhos de ambos encontraram-se. Por um longo momento, nada aconteceu. Então, lentamente, Gus voltou atrás.
— Gus. Rupert Rycroft.
— Eu sei. Lembro-me de você. —Tudo quanto Rupert sabia sobre Gus é que ele havia sido prisioneiro de guerra dos japoneses. Considerado morto, em vez disso tinha sobrevivido. Entretanto, nada mais sabia. — Pensou que eu estivesse morto?
— Não. Eu sabia que você conseguira escapar. Casei-me com Athena Carey-Lewis, de modo que a notícia chegou até nós, através de Nancherrow. É formidável vê-lo novamente. O que está fazendo em Londres?
—Apenas passando algum tempo.
Nesse momento, saturado com todo aquele palavrório, o motorista do táxi irritou-se.
— E então, senhor, vai querer este táxi ou não?
— Sim, vou querer — replicou Rupert friamente. — Espere um momento. — Ele se virou para Gus. — Para onde está indo agora?
— Para Fulham Road.
— É lá que mora?
— Por enquanto. Aluguei um apartamento. -
— O que me diz de almoçar?
— Com você?
— Com quem mais poderia ser?
— Obrigado, mas não posso. Eu o envergonharia. Nem mesmo fiz a barba...
Era uma recusa, mas Rupert percebeu subitamente que, se deixasse Gus sumir de vista, nunca mais tornaria a encontrá-lo. Assim insistiu:
—Tenho o dia inteiro livre. Sem compromissos. Por que não vamos até seu apartamento, você se apronta e depois procuramos um pub ou coisa assim? Podemos conversar. Atualizar coisas. Há muito não nos vemos.
Gus, contudo, ainda vacilava.
— É um apartamento miserável...
—Não importa. Não aceito justificativas. — Chegara o momento de agir. Rupert abriu a porta do táxi e ficou de lado. — Vamos, meu velho, entre.
Gus entrou, deslizando para a outra extremidade do assento e colocando sua caixa de mantimentos no piso, entre os pés. Rupert o seguiu em ritmo ligeiramente menos ágil, ajeitou a perna na posição correta e depois trancou a porta com barulho.
— Ainda para o Clube de Cavalaria, senhor?
— Não. — Rupert virou-se para Gus. — É melhor dizer a ele. Gus forneceu seu endereço de Fulham ao motorista, e o táxi moveu-se para dentro da rala corrente do trânsito. Depois disse:
— Você foi ferido.
Não era uma pergunta, pelo contrário.
— Fui. Na Alemanha, faltando poucos meses para o fim das hostilidades. Perdi a perna. Como é que soube?
—Judith me contou. Em Colombo. Quando eu vinha para casa.
—Judith. Sim, claro.
— Está fora do exército?
—Sim. Moramos em Gloucestershire, em uma casa na propriedade de meu pai.
— Como vai Athena?
— É a mesma de sempre.
— Ainda sedutoramente linda?
— É o que eu acho.
— E vocês têm uma garotinha, não é mesmo?
— Temos. Chama-se Clementina, e agora está com cinco anos. Athena vai ter outro bebê na primavera.
— Loveday costumava escrever para mim e dar-me todas as notícias da família. Foi como fiquei sabendo. E o que faz em Gloucesters-hire?
— Aprendo todas as coisas que há anos devia saber... como dirigir a propriedade, as lavouras, a administração florestal e as caçadas. Já decidi que o exército não prepara um homem para a vida civil, em absoluto. Durante algum tempo, acalentei a idéia de ir para o Colégio de Agricultura em Cirencester, mas acho que, em vez disso, talvez seja melhor encaminhar meus escassos talentos em outra direção.
— Que direção?
— A política.
— Santo Deus, que idéia! — Gus tateava o bolso do paletó, a fim de pegar um maço de cigarros e um cinzeiro. Acendeu um cigarro, e Rupert percebeu o instável tremor em sua mão, os dedos longos e espatulados manchados de marrom, com nicotina. — O que pôs isso em sua cabeça?
— Não sei. Ou melhor, sei. Depois que saí do hospital, fui visitar as famílias de alguns homens do regimento, que haviam sido mortos quando fui ferido. Guarnições de tanques, coisa assim. Homens a cujo lado lutei durante toda a penosa travessia do deserto ocidental, e também na Sicília. Homens decentes. Com famílias vivendo em ambientes insignificantes e esquálidos. Cidades industriais, com casas pegadas umas às outras na parte dos fundos, chaminés enfumaçadas, tudo imundo e pavoroso. Foi a primeira vez que vi pessoalmente como vivia a outra metade das pessoas. Francamente, achei aquilo doentio, e então pensei que devia fazer alguma coisa para melhorar tal situação. Para tornar este país um lugar onde seus habitantes possam viver com orgulho. Soa um tanto ingênuo e idealista, mas tenho a firme certeza de que devo dar minha contribuição.
— Que bom para você, se achar que isto fará alguma diferença.
— Esta manhã tive uma entrevista com o presidente do Partido Conservador, na Câmara dos Comuns. Eu teria de ser aceito como candidato em perspectiva para algum distrito eleitoral... provavelmente um reduto trabalhista onde jamais venceria, nem em mil anos seria uma boa experiência. Então, com o correr do tempo e um pouco de sorte, ser membro do Parlamento, em Westminster.
— O que Athena pensa a respeito?
— Ela me apoia.
— Até posso vê-la, sentada em um palanque de Conservadores com um chapéu enfeitado de flores.
— Falta ainda muito tempo para que isso aconteça...
Gus amassou a ponta do cigarro e inclinou-se, a fim de falar ao motorista.
— É no lado direito da rua, logo depois do hospital...
— Certo, senhor.
Parecia que tinham chegado. Rupert espiou pela janela do táxi com algum interesse, não estando familiarizado com aquela parte de Londres. Seu território, que incluía o "Ritz", o "Berkeley", seu clube e os grandes estabelecimentos na cidade dos amigos de sua mãe, ficava delimitado por fronteiras claramente dispostas, nos quatro pontos cardeais: o rio, avenida Shaftesbury, Regent Park e a Harrods. Além de tais fronteiras, era como pisar em terreno desconhecido. Agora, ele podia ver a evidência de muitos danos causados pelos bombardeios, crateras temporariamente fechadas com tábuas e paredes vazias, onde, um dia, erguera-se uma pequena casa colada às casas vizinhas e igual a elas. Tudo parecia um tanto desmantelado e descuidado. Pequenos estabelecimentos comerciais espalhavam suas mercadorias pelas calçadas: uma quitanda, um jornaleiro, uma loja de móveis usados, e o Café "Enguia-e-Torta", de janelas empanadas pelo vapor.
O táxi parou e Gus desceu, inclinando-se para recolher sua caixa de mantimentos. Rupert desceu em seguida. No meio-fio, começou a remexer no bolso da calça em busca de trocados, porém Gus foi mais rápido.
— Fique com o troco.
— Muito obrigado.
— Vamos — disse Gus.
Ele cruzou a calçada, com Rupert seguindo-o. Entre o café e uma pequena mercearia havia uma porta estreita, com a tinta marrom-escura descascando. Gus tirou do bolso um molho de chaves e a abriu, caminhando na frente por um corredor úmido e abafado, com degraus que subiam para a penumbra do alto. Havia linóleo no piso e na escada. Um cheiro repugnante, composto de repolho estragado, gatos vadios e banheiros por lavar, impregnava o ambiente. Quando a porta se fechou atrás deles, ficou quase totalmente escuro.
—Eu lhe disse que era um lugar miserável—disse Gus, começando a subir a escada.
Rupert transferiu a bengala para a mão com a sacola de compras e o seguiu desajeitadamente, içando-se nos degraus com ajuda do corrimão. Quando a escada fez a volta, uma porta aberta revelou um banheiro desagradavelmente úmido e frio, o linóleo enrolando-se, e a fonte do mau cheiro. Continuaram subindo para o patamar do primeiro pavimento. A escada prosseguia, elevando-se na penumbra parcamente iluminada, porém eles estavam diante de outra porta, que Gus abriu com sua chave. Entraram para um aposento de frente, com teto alto e duas compridas janelas dando paraa rua.
A primeira coisa de que Rupert teve conhecimento foi o frio intenso. Havia uma lareira, mas nenhum fogo, sua abertura exibindo-se como um cemitério de fósforos apagados e pontas de cigarro. Junto ao guarda-fogo ele viu um pequeno aquecedor elétrico, porém não estava ligado e, mesmo que estivesse, seria difícil imaginar o que suas duas pequenas barras poderiam fazer para combater a frialdade existente. As paredes achavam-se cobertas por um papel pateticamente florido, da espécie que Athena sempre dizia ser como um pesadelo de abelha, mas agora desbotado, sujo e começando a descascar nas quinas. As cortinas, estreitas e curtas demais, haviam sido visivelmente confeccionadas para outro aposento e, sobre o mármore negro da platibanda da lareira, jazia um vaso verde com empoeirada folhagem artificial. Sofás cambaios e poltronas, estofados em um desbotado tecido aveludado marrom, tinham algumas almofadas tortas, e uma mesa, talvez destinada às refeições, estava tomada por jornais e revistas velhas, uma xícara e pires sujos, e uma surrada pasta de executivo, deixando entrever o que pareciam cartas e contas antigas.
- Sem dúvida, decidiu Rupert, aquele não era um lugar agradável. Gus pousou sua caixa de mantimentos em cima da mesa. Depois virando-se, encarou Rupert.
— Sinto muito, mas eu avisei. Não adiantava encobrir os fatos.
— Jamais vi algo tão deprimente, em toda a minha vida
— Você mesmo havia dito. Como vive a outra metade das pessoas. Isto nem chega a ser um apartamento. Aqui só há salas. Eu uso o banheiro no alto da escada, e o quarto fica no outro lado do patamar.
— Que diabo você faz aqui?
— Emprestaram-me estas acomodações. Eu não queria ir para um hotel. Preferia ficar sozinho. Alguma outra pessoa morou aqui e deixou tudo imundo. Não me dei ao trabalho de limpar nada. Em realidade, estive com uma forte gripe, que me prendeu na cama por três dias. Por causa disso nem fiz a barba. E precisava sair esta manhã, porque minha comida tinha acabado. Era forçoso comprar alguma coisa para comer. Uma empreitada um tanto difícil, uma vez que não tenho cartão de racionamento.
— Se o que vou dizer não o ofende, acho que podia ter-se organizado melhor.
— É possível. Quer um drinque? Tenho uma garrafa de uísque duvidoso, mas terá de ser com água da torneira. Ou talvez prefira uma xícara de chá. Lamento não ter muito mais para oferecer.
— Obrigado, mas não quero nada.
— Bem, sente-se e fique à vontade. Vou trocar de roupa. Dê-me cinco minutos. Tome... —Ele remexeu na caixa de mantimentos e dela tirou um exemplar do Daily Mail. — Fique lendo enquanto me espera.
Rupert pegou o jornal, mas não o leu. Assim que Gus saiu, ele o deixou em cima da mesa e depois colocou sua sacola da Harrods ao lado das compras de Gus. Cruzando o aposento, chegou à janela e ficou olhando para baixo, contemplando o trânsito da Fulham Road através do embaciado das vidraças sujas.
Sua mente era uma espécie de torvelinho, e ele se viu recuando com o pensamento, tentando captar os fatos que podia recordar sobre Gus Callender e aquele dourado verão de 1939, quando todos haviam estado juntos em Nancherrow. Dirigindo um espetacular Lagonda, ele surgira inesperadamente, vindo da Escócia, como amigo de Edward em Cambridge. Era um rapaz reservado, introvertido, moreno e simpático, com uma indiscutível aura de opulência. O que havia dito sobre si mesmo? Que estivera estudando em Rugby, que a casa de seu pai ficava em Deeside, uma região conhecida como rica, devido às extensas propriedades da fidalguia rural, da velha nobreza e, inclusive, realeza. Em algum lugar houvera montes de dinheiro. Entretanto, o que acontecera?
Ele recordou outros aspectos de Gus, menos materialistas. A maneira como se adaptara ao estilo de vida de uma família que só então conhecia e, obscuramente, se tornara um deles. Seu talento para desenhar, pintar e retratar. O croqui de Edward, que ocupava um lugar de orgulho na mesa de trabalho de Edgar Carey-Lewis, mostrava a mais reveladora e perceptível semelhança que Rupert já vira. E então, a pequena Loveday. Ela só tinha dezessete anos, porém seu amor por Gus e as atenções dele por ela haviam tocado o coração de todos eles.
Após a queda de Cingapura, Loveday se mostrara tão segura, tão convencida de Gus estar morto, que conseguiu persuadir a família de que ele nunca mais regressaria. Nessa época, Rupert estava no norte da África, com a Divisão Blindada, mas chegavam cartas de Athena contando-lhe cada detalhe do que tinha acontecido ou estava para acontecer.
E então, por fim, Loveday casara com Walter Mudge.
Rupert suspirou profundamente. Percebeu que sentia um frio cada vez maior e que seu coto da perna começava a latejar, indício seguro de que permanecera tempo demais em pé. Virou-se da janela e, ao fazê-lo, Gus entrou, parecendo ligeiramente melhorado, após ter feito a barba, penteado os longos e bastos cabelos e trocado as roupas por uma camisa pólo azul-marinho e um venerável paletó de tweed.
— Lamento deixá-lo esperando. Você devia ficar sentado. Tem certeza de que não quer aquele drinque?
— Não, não quero — respondeu Rupert, negando com a cabeça. Mal podia esperar para se ver fora dali. — Vamos encontrar um pub.
— Há um logo mais abaixo, nesta rua. Pode caminhar até lá?
— Desde que não tenha de andar depressa...
— Iremos devagar — disse Gus.
Aquele era um dos pubs antigos que de algum modo tinham escapado aos bombardeios, embora os prédios a cada lado tivessem sido destruídos até os alicerces e deixado o "Coroa e Ancora" isolado, apontando da calçada como um dente velho. O interior era em penumbra e confortável, com muito mogno e guarnições de latão, aspidistras em vasos e uma lareira onde crepitava um fogo alimentado a coque, o que impregnava o recinto de um cheiro semelhante ao das salas de espera de antigas estações ferroviárias.
No bar, eles pediram duas cervejas, e a garçonete disse que lhes prepararia sanduíches, mas que só dispunha de presunto enlatado e picles. Assim, eles concordaram com o presunto enlatado e o picles, em seguida levando suas cervejas para junto da lareira. Ali encontraram uma mesa vazia e, tão logo Rupert tirou o sobretudo e o chapéu-coco, ambos ficaram à vontade.
— Há quanto tempo está em Londres, Gus?
— Creio que perdi a noção do tempo. — Gus acendia outro cigarro. — Que dia é hoje?
— Terça-feira.
— Foi na quinta-feira que cheguei? Sim, foi. E logo depois, caí de cama com a gripe. Pelo menos, acho que foi assim. Não procurei um médico nem nada. Apenas fiquei na cama e dormi.
— E está bem agora?
— Sinto-me um pouco fraco. Sabe como é.
— Quanto tempo pretende ficar por aqui? Gus encolheu os ombros.
— Não fiz planos.
Rupert percebeu que não chegava a lugar algum, que já era hora de deixar de rodeios, indo direto ao ponto. Disse:
— Ouça, Gus, permite que eu lhe faça algumas perguntas? Porque se não permitir, ficarei calado. Entretanto, deve compreender que estou naturalmente ansioso por saber como, raios, você chegou a essa situação.
— Não é tão ruim como parece.
— A questão não é essa.
— Por onde quer começar?
—Por Colombo, talvez? Não foi onde teve o encontro com Judith?
— Sim, Judith. Aquela foi uma das melhores coisas, tornar a encontrá-la. É uma pessoa tão meiga, foi tão gentil comigo... Não dispúnhamos de muito tempo, apenas umas duas horas, antes de eu voltar novamente para o navio. Eu tinha uma garrafa de uísque comigo. "Black and White". O velho garçom do "Galle Face Hotel" guardara-a para quando Fergie Cameron voltasse, mas Fergie havia morrido, e então ele quis que eu ficasse com ela.
— Quando foi que você voltou à Inglaterra?
— Oh, não sei. Suponho que em meados de outubro. Chegamos em Londres, depois fomos todos despachados para Aberdeen. Sabia que meus pais morreram?
— Não, não sabia. Sinto muito.
— Disseram-me que eles haviam morrido quando fui para o hospital, em Rangum. Os dois eram bastante idosos. Já tinham muita idade, quando eu era pequeno. Entretanto, gostaria de tê-los visto novamente. Escrevi para eles de Cingapura, quando estava preso em Changi, mas nunca receberam a carta. Pensavam que eu tivesse morrido, e minha mãe teve um ataque fulminante do coração; ficou três anos internada em uma clínica particular, e depois morreu. Durante esse tempo, meu pai continuou morando em Ardvray, com governantas e criados cuidando dele. Não voltou mais para Aberdeen. Talvez pensasse que perderia a reputação. Era um velho muito teimoso e também muito orgulhoso.
Rupert franziu a testa.
— O que quer dizer? Não voltar mais para Aberdeen... Pensei que sempre tivessem vivido em Ardvray.
— Todos pensavam isso. Era o que deviam presumir, imaginando vastas propriedades, charnecas com gaios silvestres, fidalgos rurais estabelecidos. E eu nunca procurei esclarecer o assunto, por me ser mais fácil continuar com todos supondo coisas. A verdade é que minha família jamais possuiu grandes extensões de terras e nada tinha de fidalguia rural. Meu pai era um humilde nativo de Aberdeen, que ganhou dinheiro e subiu na vida por si mesmo. Quando eu era criança, morávamos em uma casa em Aberdeen, com os trens passando ao lado do jardim. Entretanto, ele queria o melhor para mim. Sendo eu o seu único filho, desejava tornar-me um cavalheiro. Assim, mudamo-nos de Aberdeen e fomos morar em Deeside, numa hedionda casa vitoriana onde minha mãe nunca foi feliz. Quanto a mim, fui mandado para uma escola preparatória particular, saindo de lá para Rugby e depois para Cambridge. Um cavalheiro, com antecedentes e fina educação. Por algum motivo, antecedentes e fina educação eram importantes naquela época, antes da guerra. Eu não me envergonhava de meus pais. Aliás dedicava bastante do meu tempo aos dois. Admirava-os. Inclusive sabendo que eles eram socialmente inaceitáveis. Fico revoltado, só em falar nisso.
— O que aconteceu com seu pai?
— Ele morreu, também com um ataque do coração, logo depois de minha mãe. Quando voltei a Aberdeen, pensei que pelo menos me veria razoavelmente bem de vida, com dinheiro suficiente para recomeçar a vida. Então, tudo evidenciou-se. O dinheiro se escoara pouco a pouco. A propriedade perdendo o valor no mercado, os custos hospitalares para minha mãe, a manutenção de Ardvray como moradia de um velho, pagamentos aos criados, à cozinheira, aos jardineiros. Ele jamais pensou em reduzir seu estilo de vida, em nenhum sentido. Depois, foi a vez de seu capital. Títulos e ações. Eu nunca percebera que ele investira tanto na Malaia, em borracha e estanho. E, claro está, tudo terminara.
Rupert decidiu que não era hora de enfeitar frases.
— Você está arruinado? —perguntou bruscamente.
—Não, não estou arruinado, mas vou ter que arranjar um trabalho de alguma espécie. Coloquei Ardvray no mercado...
— E quanto a seu carro? Aquele invejável Lagonda?
— É curioso você lembrar-se disso! O carro está numa garagem em Aberdeen, em algum lugar. Nem mesmo passei por lá para reclamá-lo-
—Sinto muito, Gus. Isto não parece exatamente como um regresso ao lar.
— Jamais pensei que parecesse. —Depois, em voz baixa: pelo menos estou em casa.
Eles foram interrompidos pela garçonete, trazendo os sanduíches.
— Lamento não ser grande coisa, mas é tudo que temos aqui. Botei um pouco de mostarda dentro, botei mesmo, e assim podem fingir que é um presunto de primeira.
Os dois agradeceram, Rupert pediu mais duas cervejas, e ela levou os copos vazios. Gus acendeu outro cigarro.
— E quanto a Cambridge? — perguntou Rupert.
— O que tem Cambridge?
—Não recordo que estudos fazia...
— Engenharia.
— Não poderia voltar à Universidade e terminar seu curso?
—Não. Eu não faria isso. Não poderia voltar para lá.
— E o que me diz da pintura?
— Não fiz coisa alguma, desde que fui libertado pelo exército e levado para o hospital em Rangum. A vontade de desenhar parece ter-me abandonado.
— Você tem um talento notável, estou certo de que poderia viver da pintura.
— Obrigado.
— Aquele desenho que fez de Edward... É sensacional!
— Aquilo foi há muito tempo atrás.
— Um talento como o seu nunca morre.
— Não tenho tanta certeza. Aliás, não tenho certeza de nada. No hospital, eles ficavam insistindo para que eu voltasse a desenhar. Deram-me papéis, lápis, tintas...
— Está falando do hospital em Rangum?
—Não, não em Rangum. Estive em outro hospital nas últimas sete semanas. Um hospital psiquiátrico em Dumfries. Os médicos me levaram para lá, porque eu estava caindo aos pedaços. Não conseguia dormir. Tinha pesadelos. Tremores. Dilúvios de lágrimas. Imagino que fosse uma espécie de colapso...
Rupert estava pasmo.
— Meu caro rapaz, por que não me contou isso antes?
— Seria muito tedioso. Vergonhoso. Nada para orgulhar-me...
— Eles o ajudaram?
— Sim. Foram admiráveis. Sábios e pacientes. Entretanto, ficavam insistindo comigo para que voltasse a desenhar, mas eu tinha um bloqueio mental a respeito. Assim, recusei-me, e então me deram cesta para tecer, em vez disso. Lá havia jardins magníficos, e uma enfermeirinha voluntária costumava levar-me para dar voltas. O céu, arvoredos e relva, porém nunca pareciam reais. Era como se estivesse espiando o mundo de outra pessoa através de um vidro grosso, ao mesmo tempo sabendo que nada daquilo tinha algo a ver comigo.
— Ainda tem essa mesma sensação?
— Tenho. Por isso é que vim a Londres. Pensei que se viesse para um lugar mais anônimo, mais povoado e desgastamte, seria capaz de raciocinar, sobreviver à minha provação e depois voltar à Escócia, para recomeçar tudo outra vez. Um dos rapazes que esteve comigo no hospital disse que eu podia usar seu apartamento. Na hora, pareceu-me uma boa idéia. Entretanto, quando cheguei aqui e peguei a gripe a coisa deixou de ser aquela tão boa idéia de antes. — Gus acrescentou apressadamente: —Agora, no entanto, estou bem de novo.
— Você quer voltar à Escócia?
— Ainda não decidi.
— Poderia ir à Cornualha.
— Não, não poderia.
— Por causa de Loveday?
Gus não respondeu. A garçonete voltou com as cervejas, Rupert pagou por elas e deixou uma boa gorjeta na bandeja da moça.
— Oh, obrigada, senhor. E nem ainda comeram seus sanduíches! Eles acabarão ficando secos.
— Logo os comeremos. Muito obrigado.
O fogo morria na lareira. Ela percebeu e parou para jogar mais uma carga de carvão sobre as brasas. Por um momento tudo ficou negro e enfumaçado, mas depois as chamas começaram novamente a crepitar-
— O pior foi Loveday — disse Gus.
— O que disse?
— Eu guardei a imagem dela, como uma foto particular. A outra coisa era água. Pensar em água. Regatos escoceses cor de turfa, despencando sobre rochedos como cerveja. Água para olhar, fluindo e rolando sobre alguma praia vazia. Água para ouvir, beber, nadar... Água fria corrente. Limpando, curando, purificando. A enseada de Nancherrow e o mar na maré alta, fundo, límpido e azul como cristal de Bristol. A enseada; Nancherrow. E Loveday. Após um momento, Rupert disse:
— Acho que você deveria voltar à Cornualha.
— Judith convidou-me. Ela escreveu para mim. Três cartas. E nunca respondi a nenhuma. Tentei uma ou duas vezes, mas não adiantou. Eu não conseguia pensar em algo para dizer. Entretanto, sinto-me mal por isso. Prometi a ela que manteria contato, e faltei com a palavra. A essa altura, Judith provavelmente já nem pensa mais em mim. — O fantasma de um sorriso cruzou suas feições sombrias. — Jogou-me a um lado, como uma luva usada ou um bagaço de laranja. E não a censuro.
— Creio que não devia ficar aqui em Londres, Gus.
Gus pegou seu sanduíche e deu uma mordida experimental.
— Não está nada ruim.
Rupert, contudo, ficou sem saber se ele falava do sanduíche ou de Londres.
— Ouça — disse, inclinando-se para frente — se você não quer ir à Cornualha — e compreendo inteiramente seus setimentos — então venha a Gloucestershire comigo. Agora. Hoje. Tomaremos um táxi para Paddington e depois um trem para Cheltenham. Meu carro está lá. Iremos de carro para casa. Você pode ficar conosco. Embora não sendo a Cornualha, nosso campo também é encantador. Sei que Athena o receberá de braços abertos. Poderá ficar conosco pelo tempo que quiser. Apenas, por favor, em atenção a mim, não volte para aquele apartamento pavoroso.
— Isto teria um sentido de fim da linha. Não posso continuar fugindo.
— Por favor, venha comigo!
—É muita gentileza sua, mas não posso aceitar. Procure compreender. Eu mesmo é que devo resolver a situação. Uma vez feito isso, poderei começar a sair do abismo novamente.
—Não posso deixá-lo.
— Pode. Estou muito bem. Já deixei o pior para trás.
— Promete não cometer nenhuma loucura?
—Como acabar comigo? Não, eu jamais faria isso. Entretanto, não pense que não me sinto grato. —Rupert levou a mão ao bolso do peito e tirou sua carteira. Por um instante, Gus pareceu levemente divertido — E estou bem provido de dinheiro. Não preciso de ajuda financeira.
— Você me insulta. Quero dar-lhe o meu cartão. Com endereço e número de telefone. — Ele estendeu o cartão, e Gus o pegou - Prometa que ligará para mim, se as coisas ficarem difíceis ou você precisar de algo.
— É muita generosidade
— E continua de pé o convite para ficar em minha casa.
— Estou muito bem, Rupert.
Depois disso, parecia não haver muito mais a dizerem. Terminaram seus sanduíches e a cerveja, Rupert pegou seu sobretudo e o chapéu-coco. Em uma das mãos, segurou a bengala e a sacola da Harrods. Os dois deixaram o pub e saíram para a tarde cinzenta e frígida, caminhando por algum tempo, até surgir um táxi, rodando pela rua. Gus fez sinal e, quando o carro parou junto ao meio-fio, os dois homens viraram-se um para o outro.
— Adeus.
— Adeus, Rupert.
— Boa sorte.
— Dê lembranças minhas a Athena.
— Darei.
Rupert entrou no táxi, e Gus bateu a porta atrás dele.
— Para onde, senhor?
— Estação de Paddington, por favor.
Quando o táxi começou a rodar, Rupert virou-se no banco e espiou pelo vidro traseiro. Gus, entretanto, já dera meia-volta e caminhava, afastando-se dele. Um momento depois, desaparecia de vista.
Nessa noite, pouco antes das nove horas tendo relatado tudo a Athena, Rupert Rycroft fez uma chamada interurbana para a Dower House. Lá, Judith e Phyllis passavam juntas um serão tranqüilo ao pé da lareira, tricotando e ouvindo uma opereta leve, Sangue Vienense, que o radio transmitia. A música por fim terminou e elas aguardaram o noticiário. Então, além da porta fechada, o telefone começou a tocar.
— Que droga! — exclamou Judith.
Não que ela estivesse ansiosa pelo noticiário, mas porque o telefone continuava no vestíbulo e, naquela fria noite de dezembro, lá estava gelado. Largando o tricô, jogou um cardigan nos ombros e enfrentou corajosamente os frígidos ventos encanados.
— Dower House.
— Judith, aqui é Rupert. Rupert Rycroft. Estou falando de Glou-cestershire.
— Céus, que bom ouvir você! — Ela intuiu que a conversa ia ser longa, de modo que puxou uma cadeira e sentou-se. — Como vão todos aí? E Athena, como está?
— Todos estamos bem, mas não foi por isso que liguei. Pode me ouvir por um momento?
— É claro.
-— O assunto é um pouco complicado, portanto, não me interrompa...
Judith não o interrompeu. Rupert falava e ela ouvia. Ele estivera em Londres nesse dia. Vira Gus Callender. Gus, vivendo em aposentos miseráveis, na Fulham Road. Os dois tinham ido a um pub almoçar juntos, e lá Gus lhe contara tudo que estivera acontecendo, desde sua volta para casa. A morte dos pais, o desaparecimento da fortuna paterna, a longa permanência no hospital psiquiátrico.
— Hospital? — A notícia era alarmante. — Por que ele não nos comunicou? Ele devia ter-nos dito! Escrevi para ele, mas nunca me respondeu!
— Ele me disse. Foram três cartas suas. Entretanto, não creio que se encontrasse em condições de respondê-las.
— E agora, ele está bem?
— Não sei dizer. Está com uma aparência terrível. E fuma como uma chaminé.
— Afinal, por que Gus está em Londres?
- Acho que ele apenas queria estar em algum lugar absolutamente sozinho.
—Não tinha condições de pagar um hotel?
— Acredito que sua situação financeira não tenha chegado a tal ponto. Enfim, ele não quis ir para um hotel. Conforme falei, preferia ficar só consigo mesmo. Chegar a um entendimento. Provar a si mesmo de que podia seguir em frente. Um amigo emprestou-lhe a chave daquele lugar horrível, mas assim que chegou a Londres, ele caiu de cama com uma forte gripe. Deve ser por isso que tinha uma aparência tão doentia e o apartamento estava tão sujo.
— Ele lhe falou sobre Loveday?
— Falou.
— E...? Rupert vacilou.
— Gus não disse muita coisa, mas acho que o abandono dela teve muito a ver com o seu colapso.
—Oh, Rupert, é demais ouvir isso sobre ele! O que podemos fazer?
— Esse é o motivo de meu telefonema. Convidei-o a vir junto comigo para Gloucestershire. A ficar aqui comigo e Athena por algum tempo. Entretanto, ele não quis vir. Foi absolutamente cortês a respeito, mas também absolutamente firme.
— Então, por que ligou para mim?
— Ele tem mais intimidade com você do que comigo. Foi quem o reencontrou, em Colombo. Além disso, não é parte da família. Eu e Athena somos um pouco mais ligados a Nancherrow. Nós dois achamos que você talvez pudesse ajudar.
— De que maneira?
— Talvez indo a Londres. Tenho o endereço dele. Você poderia ir vê-lo, tentar tirá-lo de lá. Acho que Gus iria à Cornualha se fosse em sua companhia.
— Eu o convidei a vir para cá, Rupert. Em minhas cartas. Na última, inclusive, convidei-o a vir para o Natal. Não creio que ele aceite a minha interferência...
— Penso ser algo que precisa arriscar. Você poderia ir?
— Sim, poderia. Rupert hesitou.
—A questão é que não quero forçá-la, mas acho que não há tempo a perder.
— Está preocupado, não está?
— Sim, de fato estou.
—Nesse caso, irei imediatamente. Amanhã mesmo, se você preferir. Biddy não está aqui, mas Phyllis e Anna estão. Posso deixar a casa. — Ela pensou rapidamente, já fazendo planos. — Eu até poderia ir à Londres de carro. Seria melhor do que ir de trem, porque contar com um carro lá me daria mais influência com ele.
— E quanto à gasolina?
— Biddy me deixou um monte de cupons ilegais. Conseguirei passá-los na garagem daqui.
— Será um longo trajeto, nesta época do ano.
—Não tem importância. Já o fiz antes. E não há muito tráfego nas estradas. Se for amanhã, posso passar a noite na casinha da Mews e depois ir para a Fulham, bem cedo no dia seguinte.
— Quando você o vir, talvez ache que estou fazendo uma tempestade em copo d'água, mas não é nada disso. Acredito que, acima de tudo o mais, Gus está precisando de velhos amigos. E comNancherrow fora de cogitação, só resta você.
—É melhor que me dê o endereço dele. —Ela encontrou um lápis e, enquanto Rupert falava, ia anotando na capa da lista telefônica.
— ... mais ou menos na metade da Fulham Road, depois do Brompton Hospital, do lado direito da rua.
— Não se preocupe, eu o encontrarei.
—Judith, você é um encanto de pessoa. Tirou uma carga da minha consciência.
— Talvez eu não consiga nenhum resultado positivo.
— De qualquer modo, pode tentar.
— Sim. Vou tentar. E obrigada por ligar. Tenho andado muito preocupada com ele. Odiei despedir-me de Gus em Colombo; parecia tão vulnerável, tão terrivelmente só...
— Em minha opinião, é precisamente assim que ele está. Depois, conte-nos como se saiu.
— Contarei, prometo.
Falaram mais um pouco e depois se despediram. Judith desfez a ligação. Percebeu que tiritava, gelada até os ossos, não somente pela temperatura do vestíbulo, mas por saber que estavam confirmados todos os seus temores a respeito de Gus. Após um momento, levantou-se e foi para a sala de estar, onde colocou outra tora no fogo, em seguida agachando-se perto de seu reconfortante calor.
O noticiário radiofônico acabara de ser encerrado. Phyllis estendeu o braço e desligou o aparelho.
— Foi um longo telefonema — observou.
— Sim. Era Rupert Rycroft. Sobre Gus Callender.
Phyllis sabia tudo sobre Gus, porque no decorrer das semanas após ter regressado ao lar, Judith lhe relatara o encontro deles em Colombo e como tivera de contar a ele que Loveday estava casada com Walter Mudge.
— O que houve com ele? — perguntou Phyllis.
Judith explicou. Phyllis largou seu tricô e ficou ouvindo, a fisionomia aos poucos ficando muito angustiada.
— Oh, pobre homem! A vida não foi nada justa com ele, hein! Rupert não podia fazer alguma coisa para ajudá-lo?
— Ele o convidou para ficar em Gloucestershire, mas Gus recusou. Phyllis pareceu um pouco alarmada.
— Então, o que ele quer que você faça?
— Que eu vá a Londres e tente convencer Gus a vir para cá, suponho.
— Ele não é violento, é?
— Oh, Phyllis, pobre rapaz, claro que não é!
— A gente nunca sabe, quando lida com pessoas tendo problemas mentais. Já li coisas horríveis nos jornais...
— Não se trata disso. — Judith evocou Gus. — Ele jamais seria assim.
— Então, quer dizer que você vai?
— Sim, acho que devo ir.
— Quando?
— Amanhã mesmo. Sem perda de tempo. Irei de carro. Voltarei para casa na quinta-feira.
Houve uma longa pausa. Então, Phyllis disse:
— Você não pode ir amanhã. Amanhã é quarta-feira. O jantar comemorativo em Nancherrow. O jantar para Jeremy Wells. Você não pode deixar de ir.
— Eu tinha esquecido.
— Esquecido? — exclamou Phyllis, começando a indignar-se. Como poderia ter esquecido? Como pode sair correndo atrás do problema de outra pessoa, quando tem de pensar em sua própria vida? No seu próprio futuro? Adie a viagem para Londres por um dia, quero dizer•.. Vá na quinta-feira. Deixar passar um dia não irá matar ninguém.
— Não posso, Phillis.
— Bem, eu penso que isso é muito rude. O que irá pensar a sra. Carey-Lewis? O que pensará Jeremy, acreditando que irá revê-la depois de todos estes anos, mas descobrir que você partiu para Londres, a fim de ver um outro homem?
— Gus não é apenas um outro homem.
—A mim, parece que é. Mesmo tendo sido amigo de Edward, isso não é motivo para que tudo recaia sobre você.
—Se eu não for, Phyllis, nunca mais serei capaz de olhar-me dentro dos olhos pelo resto da vida. Não compreende o que ele tem passado? Foram três anos e meio de puro inferno, construindo aquela estrada de ferro no meio da selva sufocante; enfraquecido e doente, quase morrendo de disenteria; surrado e humilhado pelos guardas mais sádicos e cruéis. Ver seus amigos morrendo ou serem mortos. Ou coisa pior. Ainda é de admirar que ele tenha tido um colapso? Em tais circunstâncias, como posso pensar em mim mesma ou em Jeremy?
Esta explosão silenciou Phyllis. Ela ficou sentada, contemplando o fogo, ainda parecendo contrariada, mas, pelo menos, não discutindo mais. Então disse:
— É como os alemães e os judeus. Não sei como os seres humanos podem ser tão desumanos uns com os outros. Jess me disse coisas. Ela me contou coisas. Às vezes, quando nós duas estávamos sozinhas lidando na cozinha ou quando eu lhe dizia boa-noite, depois dela ir para a cama. Talvez a situação não tenha sido tão ruim para ela e aquela moça australiana. Pelo menos, as duas não tinham que construir estradas de ferro. No último campo onde estiveram, em Asulu, as condições eram tão ruins, havia tão pouca comida, que dez das mulheres, lideradas pelo médico, foram queixar-se ao comandante. Ele então mandou surrá-las, raspar o cabelo delas e trancá-las em uma jaula de bambu durante cinco dias. Fiquei muito impressionada com isso, Judith. Se eles podiam fazer uma coisa dessas com mulheres e crianças...
— Eu imagino — disse Judith. Jess nunca lhe tinha contado, mas conversara com Phyllis, e isso a deixou grata, pois significava que todos os horrores dos campos de prisioneiros não estavam sendo sufocados, trancados no peito de sua irmã. Repetiu: — Eu imagino.
Phyllis soltou um suspiro.
— Pois bem, você sabe o que faz. Quando viaja?
— Amanhã bem cedo. Levarei o carro da sra. Somerville.
—Acha que ele virá com você?
— Não sei.
— E se ele vier, onde irá dormir?
— Terá de ficar no quarto da sra. Somerville.
— Vou deixá-lo pronto. Trocar a roupa de cama. É melhor telefonar para a sra. Carey-Lewis.
— Está bem. Daqui a pouco.
— Está parecendo abatida, depois de tudo isto. O que me diz de uma boa xícara de chocolate quente?
— Eu adoraria.
— Então, vou prepará-la. — Phyllis enrolou seu tricô e enfiou as agulhas no novelo de lã. —Isso nos animará um pouco, antes de irmos para a cama.
De volta ao vestíbulo, Judith discou o número de Nancherrow.
— Alô?
— Diana, é Judith.
— Oh, meu bem!
— Desculpe por ligar tão tarde.
— De que se trata?
Mais uma vez, explicações. De quando em quando, Diana soltava leves exclamações de horror, mas, fora isso, ficou muito atenta, não fazendo perguntas ou interrompendo.
—... portanto, viajo para Londres amanhã. Se você não se incomodar, ficarei na Mews, e espero trazer Gus comigo na quinta-feira.
— Meu jantar comemorativo! Minha festinha de regresso ao lar!
— Eu sei, e sinto muito, mas não tenho alternativa.
— Meu bem, não vou suportar! Tínhamos planejado um jantar tão festivo!
— Lamento muitíssimo, Diana.
— Oh, céus! Por que estas coisas sempre têm de acontecer no momento errado?
Como não havia resposta para isto, Judith então perguntou:
— E quanto a Loveday?
Houve um longo silêncio, e Diana suspirou audivelmente.
— É no que estou pensando.
— Loveday não quer que Gus venha à Cornualha — disse Judith. Ela não quer vê-lo. Pelo menos, foi o que me falou.
— Oh, céus, é tudo tão difícil...
—Acho que você não devia contar a ela sobre Gus. Se ele vier ficar aqui, na Dower House, creio que seria melhor Loveday ignorar. Não há motivo para que fique sabendo.
— Sim, mas ela pode descobrir, cedo ou tarde.
— Concordo, mas não imediatamente. Pelo que Rupert disse, fiquei com a impressão de que Gus não se encontra em condições de lidar com confrontos emocionais.
— Eu odeio segredos.
— Eu também, mas será apenas por um ou dois dias, até vermos como fica a situação. Faça o seu jantar de comemoração e diga a Loveday que precisei ausentar-me. Aliás, diga ao coronel e a Jeremy Wells para também ficarem calados. Se Gus voltar comigo e ficar aqui em casa algum tempo, é claro que Loveday terá de saber. Entretanto, no momento acho que seria mais prudente todos nós ficarmos de boca fechada.
Diana permaneceu calada por bastante tempo. Judith conteve o fôlego. Entretanto, quando Diana tornou a falar, tudo quanto ela disse, foi:
— Sim, claro. Você está certa, naturalmente.
— Sinto muito ter prejudicado sua festa.
— Acho que o caro Jeremy também sentirá.
Tinham-lhe destinado o seu antigo e familiar quarto e, sozinho, ele subiu para o andar de cima, carregando a surrada maleta verde da Marinha. Havia muito que não vinha a Nancherrow, e por isso não desfez a maleta imediatamente, deixando-a na prateleira aos pés da cama, para ir abrir a janela e olhar para fora, com alguma satisfação, a fim de contemplar a vista que recordava desde tanto tempo atrás. Era quase meio-dia. De quando em quando, o sol tímido cintilava, saindo de trás das nuvens. Havia uma fieira de roupa lavada estendida no varal, e os pombos caminhavam pelo piso lajeado ou amontoavam-se na plataforma de seu pombal, arrulhando entre si e, presumivelmente, queixando-se do frio. Era um momento para sentir-se aliviado. Volta e meia ele precisava recordar a si mesmo que a guerra terminara, que estava realmente de volta à Cornualha, agora para sempre. Este era um deles, e ele sabia que com um pouco de sorte, nunca mais tornaria a ficar longamente afastado deste lugar mágico, que sempre considerara seu segundo lar. Então sentiu-se imensamente grato por lhe ser permitido viver, por não ter sido morto e, desta maneira, poder regressar.
Pouco depois, fechou a janela e se virou para lidar com sua maleta, mas então ouviu passos rápidos no corredor, assim como a voz de sua anfitriã:
— Jeremy! — A porta foi escancarada e lá estava ela, usando sensatas calças compridas de flanela cinza e uma enorme suéter de mohair azul-pálido, mas ainda assim conseguindo parecer frágil e intensamente feminina. — Querido! Perdoe-me por não estar lá para recebê-lo; é que eu falava ao telefone, como sempre. Como vai? —Ela o beijou amorosamente, e depois acomodou-se sobre a cama dele, sem dúvida tendo em mente demoradas conversas. —Fez uma boa viagem? — como se ele houvesse dirigido um carro por cem quilômetros, em vez de ter vindo apenas de Truro. — Céus, como é formidável tornar a vê-lo! E você está com uma aparência maravilhosa. Bronzeado do Mediterrâneo. Querido, terei visto um fio grisalho em sua têmpora?
Um pouco embaraçado, Jeremy ergueu a mão, a fim de tocar esta decadente evidência da idade avançada.
— Sim, deve ter visto.
—Não se preocupe. Acho que fica muito distinto. Agora, olhe para mim. Cabeça tão prateada como uma moeda de seis pence. Muito bem, ouça, porque tenho tanta coisa a dizer-lhe, que nem sei por onde começar. O mais importante de tudo, sabe que Judith está em casa?
— Sim, sei. Meu pai me contou. Ele também contou que os pais dela morreram e que Jess voltou para casa.
— Pobre Judith, viveu fases terríveis, mas com imensa coragem. Odeio chamá-la de sensata, porque acho a palavra francamente abominável, mas nunca vi ninguém com tanto bom senso. Além de ser incrivelmente bonita. E com um corpo espetacular. Entretanto, Judith não é o meu assunto principal deste momento... Jeremy, você se lembra de Gus Callender? Ele ficou aqui, naquele último verão.
— Claro que me lembro. O amor de Loveday. O rapaz que foi morto em Cingapura.
— Meu querido, ele não foi morto. Sobreviveu. Prisioneiro de guerra. Estrada de ferro de Burma. Algo pavoroso demais. Judith o encontrou em Colombo, quando ele voltava para casa. Ela lhe contou que Loveday estava casada e, naturalmente, o coitado ficou abaladíssimo. Então, assim que voltou para cá, ela disse para Loveday que Gus estava vivo, e Loveday contou para nós — para mim e Edgar.
Tudo quanto Jeremy encontrou para dizer foi:
— Santo Deus!
— Sim... Tudo muito singular, não? Seja como for, ele retornou à Escócia, e simplesmente desapareceu. Judith escreveu-lhe; creio que estava um pouco preocupada com ele e sentia-se responsável, mas Gus nunca respondeu. Pois então, ontem, Rupert, o marido de Athena, estava em Londres e foi onde encontrou Gus, inesperadamente. Perambulando pelas ruas e parecendo um fantasma. Um quadro por demais depressivo. Entretanto, Rupert o convenceu a almoçarem juntos e, durante esse almoço, ficou sabendo que ele sofrera um terrível colapso nervoso, a ponto de precisar ser internado em uma espécie de asilo. Seus pais morreram enquanto esteve prisioneiro, e todo o dinheiro da família evaporou-se... uma história de absoluta desgraça. Rupert ficou muitíssimo perturbado. Tentou levá-lo para sua casa em Gloucestershire, mas Gus não quis ir.
— Onde ele está morando?
— Em uma espécie de apartamento sórdido, um lugar medonho, para onde ninguém desejaria ir.
— E o que aconteceu?
— Oh, meu querido, isto está nos tomando tempo demais, porém é muito importante. Acontece que Judith foi hoje para Londres, ver se consegue fazer algo para ajudar. Talvez trazê-lo para a Dower House.
— E quanto a Loveday?
— Loveday disse para todos nós que não quer ver Gus. Acho que ela se sente um pouco envergonhada. Não que tenha algo do que envergonhar-se, mas a gente entende... — A voz dela extinguiu-se. Depois fitou Jeremy, esperançosa. — Você entende, não é, Jeremy querido?
Ele suspirou.
— Sim, acho que entendo.
—Tudo ficou um tanto depressivo, porque esta noite eu planejava uma reunião festiva em sua homenagem, por voltar para casa. Nettlebed havia depenado faisões, a sra. Nettlebed ia fazer um pudim de frutas com creme, e Edgar estava feliz da vida, escolhendo um vinho na adega. Foi então que Judith telefonou, já bem tarde ontem à noite comunicando que estava de partida para Londres. Loveday também telefonou, dizendo que Walter tampouco poderia vir, de maneira que resolvemos esquecer tudo por enquanto. É decepcionante demais.
— Oh, não se preocupe com isso —Jeremy procurou tranqüilizá-la. — Foi muita gentileza de vocês, apenas pensarem em uma reunião.
— Bem, acho que... em outra ocasião... — Ela ficou calada um instante, e depois olhou para seu pequeno relógio de ouro. — Preciso ir agora. Prometi a Edgar que telefonaria para o fornecedor de grãos, sobre o alimento das galinhas. As coitadas estão famintas, porque nada chegou até agora. — Diana ficou em pé. — Almoço à uma hora, está bem?
— Para mim, está ótimo.
Ela caminhou para a porta e lá, com a mão na maçaneta, virou-se para ele.
— Jeremy, se Gus vier com Judith, não diremos nada a Loveday. Apenas no começo. Até vermos como ele está.
Jeremy compreendeu.
— Tudo bem.
Ela meneou a cabeça, a expressão muito abatida.
— Odeio conspirações, e você? — disse, mas antes que Jeremy pudesse responder, já desaparecera de vista.
Ela o deixou só, com a mala ainda por desfazer e a mente em uma espécie de torvelinho, porque esta nova vida em tempos de paz parecia repleta de problemas, decisões a tomar e assuntos — que tinham esperado tempo demais — a serem finalmente esclarecidos.
Faltavam apenas algumas formalidades, antes que ele deixasse o VRMR para sempre, com uma excelente recomendação do capitão-me-dico, seu superior, e uma pequena recompensa monetária quando da desmobilização, vinda de uma pátria agradecida. Entretanto, ao voltar para casa, Jeremy encontrara o pai idoso tomado de melancolia. Agora havia um governo trabalhista no poder e comentários gerais sobre um projetado Serviço Nacional de Saúde, o qual pretendia modificar toda a face da profissão médica, tornando obsoleta a velha tradição do médico de família. Na opinião de Jeremy, isto só podia ser uma boa coisa, mas ele pôde perceber que seu pai já tinha idade demais para manejar a convulsão que isso significaria.
Assim sendo, ao invés de voltar a clinicar em Truro, não seria este o momento de mudar? Uma nova locação e uma nova parceria; homens jovens e métodos modernos. Um colega da Marinha já lhe falara a respeito, expondo uma idéia que a Jeremy parecera muitíssimo atraente. De qualquer modo, ele não queria comprometer-se enquanto não conversasse com Judith.
Ela constituía o seu último e mais pressionante dilema. Acima de tudo, Jeremy ansiava tornar a vê-la, ao mesmo tempo temendo um confronto que poderia encerrar para sempre seus longamente acalentados sonhos. No correr dos anos, desde aquela noite passada juntos em Londres, tinha pensado nela constantemente. No meio do Atlântico, em Liverpool, Gibraltar e Malta, iniciara cartas que nunca eram terminadas. Uma vez após outra ficara sem palavras, perdera a coragem, e então amassava as folhas escritas pela metade, jogando-as na cesta de papéis usados. Dizia para si mesmo: de que adianta? Sim, porque àquela altura já teria sido esquecido, certamente ela encontrara outro alguém.
Judith não estava casada. Jeremy sabia. Entretanto, as revelações de Diana sobre Gus Callender o encheram de inquietação. Para Loveday, as implicações do retorno de Gus eram perfeitamente compreensíveis, mas, segundo parecia, agora também Judith estava profundamente envolvida. O fato dela preferir não comparecer ao jantar-reunião de Diana e partir precipitadamente para Londres a fim de estar com Gus, nada predizia de bom para Jeremy Wells. Enfim, Gus tinha sido amigo de Edward, e este fora o grande amor da vida de Judith. Talvez isto tivesse algo a ver com o que ocorria. Ou, então, a compaixão transformara-se em uma emoção mais profunda. Amor. Ele não sabia dizer. Havia passado um tempo demasiado longo sem saber o que quer que fosse.
De repente, sentiu vontade de um drinque, mais do que tudo no mundo. Um gim com angostura. Desfazer a mala ficaria para mais tarde. Jeremy foi ao banheiro, lavou as mãos, penteou os cabelos e depois saiu do quarto, descendo para o andar de baixo em busca da bebida confortadora.
Judith deu uma última olhada em torno, para certificar-se de que não havia esquecido nada. O colchão sem as roupas de cama, a xícara e pires do breakfast lavados e deixados no secador de louças. A geladeira desligada, as janelas fechadas e trancadas. Pegou sua pequena sacola de viagem, desceu os degraus estreitos, cruzou a porta da frente e a bateu com firmeza, trancando-a após sair.
Eram nove horas da manhã, mas apenas com meia claridade. O céu estava escuro, carregado, e durante a noite geara bastante. Na Mews, as luzes ainda estavam acesas dentro das pequeninas casas despejando quadrados amarelos sobre as lajes geladas. Não havia flores nos vasos nem nas jardineiras das janelas, mas alguém comprara uma árvore de Natal e a deixara encostada à parede, ao lado da porta principal. Talvez ainda neste dia ela fosse levada para dentro, a fim de ser decorada e receber sua fiação com luzes feéricas.
Ela deixou sua sacola no banco traseiro do carro de Biddy e sentou-se atrás do volante. O carro não gostou de ter passado a noite no frio, e foram necessárias duas ou três tentativas antes do motor pegar, mas finalmente ele ganhou vida, espirrando nuvens de fumaça. Judith ligou os faroletes laterais e rodou por todo o comprimento da Mews, depois passando por baixo da arcada, na extremidade mais distante.
Parecia estranho encontrar-se em Londres sem os balões de barragem que flutuavam alto no céu, e com as lâmpadas ainda acesas na rua. Entretanto, persistiam por toda parte as evidências de danos causados pelas bombas e privações da guerra e, ao dirigir pela Sloane Street acima, ela viu que embora as vitrines ostentassem vidraças, em vez das tábuas outrora pregadas para protegê-las, as mostras de Natal no interior das fascinantes lojas não tinham qualquer semelhança com o suntuoso fausto de antes da guerra.
Àquela hora ainda havia muita gente circulando. Eram mães apressando os filhos para a escola, empregados de escritório sendo sugados aos bandos para as instalações dos trens subterrâneos ou fazendo fila pacientemente nas paradas de ônibus. Todos pareciam um tanto abatidos e vexados, assim como seus trajes, e algumas mulheres estavam mal vestidas como camponesas, envoltas em sobretudos, botas e lenços grossos na cabeça.
No topo da Sloane Street ela dobrou para a esquerda, no sinal de trânsito, desceu a Brompton Road e entrou na Fulham. Dirigindo, disse para si mesma, uma coisa de cada vez. Estivera dizendo-se isso desde que deixara Rosemullion, bem cedo na manhã anterior. Encha o tanque do carro e as latas de gasolina sobressalentes. (Outras garagens, durante o trajeto, talvez não fossem muito solícitas no recebimento de cupons ilegais de gasolina.) “Vá para Londres. Vá para a Mews. Passe a noite lá. Agora, as sugestões eram "Descubra o apartamento de Gus". "Toque a campainha." "Espere que ele chegue à porta." Se ele não aparecesse, então o que ela deveria fazer? Arrombar a porta? Ligar para a polícia ou a brigada de incêndio? E no caso dele abrir, o que lhe diria? Judith pensou em Diana. Diana nunca vacilava quanto ao que fazer. Gus querido! Olá! Sou eu. Que linda manhã!
Ela passou pelo Brompton Hospital e, lentamente, começou a examinar os números da rua, pregados na fachada das lojas ou sobre as portas. Estava quase lá. Entre duas ruas laterais, uma fila de pequenos estabelecimentos comerciais, cujos donos emergiam para empilhar caixotes de couve-de-bruxelas na calçada ou montar seus estandes de jornais. Viu o Café "Enguia e Torta", um dos pontos de referência de Rupert, e parou junto ao meio-fio. Desceu do carro e o trancou. A porta estreita espremia-se entre o café e uma pequena mercearia. Havia duas cigarras sobre o batente da porta, etiquetadas com nomes escritos em pedaços de cartolina. Uma das etiquetas dizia NOLAN, a outra PELOVSKY. Não era muita ajuda. Após vacilar por um momento, Judith apertou a de nome PELOVSKY. Esperou.
Como nada acontecesse, tornou a pressionar. Se nada continuasse a acontecer, então tentaria Nolan. Seus pés, calçados em botas forradas de pele, começaram a ficar gelados, a friagem da calçada introduzin-do-se pelos solados de borracha. Talvez Gus ainda estivesse na cama, dormindo. Talvez a campainha não funcionasse. Talvez ela devesse procurar abrigo no "Enguia e Torta", tomar uma xícara de chá...
Então, ouviu passos. Alguém aproximava-se descendo um lance de escada. Ficou atenta à porta. Escutou o clique de uma lingüeta, a porta se abriu para dentro e, na soleira, por fim e inacreditavelmente, estav Gus.
Por um momento sem palavras, eles simplesmente ficaram se olhando. Judith silenciara por um instante, apenas por sentir-se tão aliviada de vê-lo ali, e Gus, claramente atônito por encontrá-la em sua porta.
Ela precisava dizer qualquer coisa
— Não sabia que você fosse Pelovsky — disse.
— Não, não sou. O nome é de outra pessoa.
A aparência dele não era tão ruim. Não tão decadente como ela havia temido. Terrivelmente magro e pálido, é claro, mas barbeado e vestindo casualmente uma grossa suéter pólo e calças de veludo cotelê.
— Devia trocar a etiqueta.
—Judith, que diabo você está fazendo aqui?
— Vim ver você. E estou congelando. Posso entrar?
— Claro. Sinto muito... —Ele recuou, fazendo espaço para que ela passasse. — Venha...
Judith cruzou a porta, que Gus fechou atrás deles. O recinto ficou muito escuro, e havia um cheiro mofado, desagradável, pairando no ambiente abafado.
— Como entrada, isto não é lá grande coisa — desculpou-se ele. — Vamos subir.
Gus tomou a frente e Judith o seguiu na escada escura. Chegando ao patamar, ela viu a porta entreaberta, na parede contrária. Os dois entraram para o aposento que ficava além, com seu papel de parede que fazia mal aos olhos e suas cortinas esfiapadas. Na lareira, um pequeno fogareiro elétrico ardia com visor, emanando um débil calor de suas duas barras, mas as janelas sujas continuavam embaçadas pela geada, e o frio ali dentro era terrível.
—É melhor não tirar o casaco — avisou ele. — Lamento, mas tudo aqui é um pouco sórdido. Passei a manhã de ontem tentando fazer uma pequena limpeza, porém a melhora não chegou a ser visível.
Havia uma mesa. Judith viu que Gus empurrara para uma extremidade papéis, anotações e os restos do jornal da véspera, havendo na outra as evidências do breakfast, uma xícara de chá e um pedaço de pão em um prato.
— Eu o interrompi — disse ela.
— Nem um pouco. Já terminei. Esteja à vontade... Ele caminhou até a lareira e, da platibanda, apanhou um maço de cigarros e um isqueiro. Depois que acendeu o cigarro, virou-se e recostou os ombros contra a platibanda. Os dois encararam-se, acima do tapete gasto diante da lareira. Judith sentou-se no braço de um dos sofás cambaios, mas Gus permaneceu onde estava, em pé. Não adiantava ficar com rodeios. Ela disse:
— Rupert telefonou para mim.
— Ah! — fez ele, como se tudo ficasse imediatamente claro. — Entendo. Pensei que devia ser algo assim.
— Não fique aborrecido com ele. Rupert estava sinceramente preocupado.
— Ele é um sujeito simpático. Entretanto, receio que me tenha surpreendido em um dia ruim. Gripado e coisas assim. Agora já estou melhor.
— Rupert me disse que você esteve doente. Que foi hospitalizado.
— Exato.
— Você recebeu minhas cartas? — Gus assentiu. — Por que não respondeu a nenhuma delas?
Ele meneou a cabeça.
—Eu não me sentia em condições de comunicar-me com ninguém, quanto mais de rabiscar palavras em um papel. Sinto muito. Foi ingratidão minha. Mesmo com você tendo sido tão gentil.
— Quando vi que não tinha notícias suas, comecei a ficar preocupada de fato.
— Não deveria. Já tem problemas pessoais suficientes. Como vai Jess?
— Muito bem. Já instalada no colégio.
— Que milagre para você, encontrá-la novamente!
— Sim, foi um milagre. Bem, Gus, acontece que não vim aqui para falar sobre Jess...
— Quando foi que chegou a Londres?
— Ontem. Vim dirigindo. Estou com o carro lá fora, estacionado na rua. Passei a noite na casa de Diana, e depois vim até aqui. Rupert me deu seu endereço. Não foi difícil encontrá-lo.
— Veio fazer compras de Natal?
— Não, não vim fazer compras. Vim encontrar você. Foi o único motivo.
— Que gratificante! Foi muita bondade sua.
— Quero que venha para a Cornualha comigo.
Ele respondeu prontamente, sem qualquer hesitação:
— Não posso. Obrigado, mas não vou.
— Por que tem de ficar em Londres?
— É um lugar tão bom quanto qualquer outro.
— Para quê?
— Para ficar sozinho. Aprumar-me sobre os pés. Acostumar-me a viver por conta própria. Um hospital psiquiátrico é uma experiência emasculadora. Enfim, algum dia terei que começar a procurar um trabalho. Tenho contatos aqui. Antigos colegas de colégio, rapazes que estiveram no exército. Uma espécie de rede de comunicação.
—Já esteve com algum deles?
— Ainda não...
Judith não acreditava inteiramente em toda aquela conversa; podia adivinhar que Gus procurava tranqüilizá-la e, desta maneira, ficar livre dela.
— É assim tão importante? Ter um trabalho?
— É importante. Não urgente, mas necessário. Rupert provavelmente a deixou a par dos detalhes do falecimento de meu pai. Quando ele morreu, de um modo ou de outro seu capital se derretera para meros trocados, por assim dizer. Não posso mais levar a vida aprazível de um cavalheiro endinheirado.
— Conhecendo-o, sei que isso não seria problema.
— Claro, mas cria uma certa necessidade por ação positiva.
— Só que não imediatamente. Tem que dar a si mesmo uma oportunidade. Você esteve doente. Passou momentos terríveis. Estamos em meados do inverno, o tempo fica inclemente e o Natal esta quase em cima. Você não pode passar o Natal sozinho. Venha comigo-Agora. — Ela se ouviu suplicando. — Ponha alguma roupa em uma mochila, tranque a porta e vamos juntos para casa!
— Lamento. Lamento sinceramente, mas não farei isso.
— Por causa de Loveday? — ela quis saber, porém mal ousando perguntar.
Pensou que Gus fosse negar, mas ele não o fez. Assentiu.
— Sim.
— Você não terá que ver Loveday...
— Ora, vamos, Judith, não diga tolices! Como deixaríamos de nos ver? É irreal imaginar que não nos encontraríamos.
— Não teremos que dizer nada... que contar para quem quer que seja...
— E o que espera que eu faça? Que me disfarce com uma barba postiça, óculos escuros e falando nos tons guturais de um deslocado centro-europeu?
— Poderíamos chamá-lo de sr. Pelovsky.
A frase não valeu como piada, e tampouco ele achou graça.
— Não quero estragar a vida dela.
Não vai ser preciso, Gus. Walter Mudge e Arabella Lumb já estão cuidando disso, e com a máxima eficiência. Ela engoliu as palavras, já na ponta de sua língua, e foi uma boa coisa. Aquele era um detalhe que jamais deveria ser contado. Em vez disso, falou:
— Loveday não é tão importante quanto você, Gus. A pessoa com quem devemos preocupar-nos é você.
Ele não respondeu a isto.
— Ouça — insistiu ela — se não quer ir para Rosemullion, então deixe-me levá-lo a Gloucestershire, e o deixarei lá, com Rupert e Athena. Sei que eles adorariam recebê-lo.
O rosto de Gus era inexpressivo, os olhos escuros fundos e sombrios. Judith nada estava conseguindo da parte dele e, tendo que apelar para sua paciência o tempo todo, começava a aborrecer-se. Nada havia mais irritante neste mundo do que um homem teimoso e inflexível.
— Oh, Gus, por que tem que ser tão obstinado e cabeça-dura? Por que não quer a ajuda de nenhum de nós?
— Eu não preciso de ajuda.
— Isso é ridículo! Egoísta e horrível. Não está pensando em mais ninguém, além de em si mesmo. Como imagina que todos nós nos sentimos, sabendo que está sozinho, sem família, sem lar e sem... nada? Não podemos fazer coisa alguma em seu benefício, se você não ajudar a si mesmo. Sei que viveu provações infernais, como sei que esteve doente, mas tem que dar uma chance a si próprio. Nada de ficar trancado neste apartamento horrível, ruminando seu sofrimento, pensando em Loveday...
— Oh, cale-se!
Por um tenso momento, Judith pensou que fosse prorromper em lágrimas. Levantando-se do sofá, foi até a janela e contemplou o tráfego na rua, até sentir diminuir a quente ardência por trás de seus olhos e ter certeza de que não iria chorar.
— Eu sinto muito — disse Gus, às suas costas. Ela não respondeu.
— Eu adoraria ir com você. Uma parte de mim anseia acompanhá-la, Judith, mas tenho medo de mim mesmo. Do que poderia acontecer. De fazer-me em pedaços novamente.
— Nada poderia ser pior do que este lugar — murmurou ela.
— O que disse?
— Eu disse que nada poderia ser pior do que isto aqui. Houve um silêncio. Após um momento, Judith ouviu-o dizer:
— Ouça, meus cigarros acabaram. Vou dar uma descida rápida e comprar outros no jornaleiro. Fique aqui. Não vá embora. Logo estarei de volta. Então, farei uma xícara de chá para você ou qualquer outra coisa.
Judith permaneceu imóvel. Ouviu-o sair do aposento, depois os passos descendo apressadamente a escada escura. A porta da rua se abriu e fechou com ruído.
Com frio, cansada e desanimada, ela deixou escapar um longo e trêmulo suspiro. O que fazer em seguida? O que dizer? Virando-se, olhou em torno, examinando aquela salinha deprimente. Chegou até a mesa e pegou o jornal da véspera, que parecia representar o único divertimento ali dentro. Suas páginas mal dobradas haviam escondido outras posses, agora reveladas: uma surrada pasta de executivo, aberta e cheia de papéis, cartas e contas antigas; uma pasta de cartolina; um bloco de desenhos e um livro encadernado em lona — ou um álbum — ambos presos com uma grossa tira de borracha. Intrigada, largou o jornal e puxou o livro para mais perto. Reparou na capa suja, manchada e gordurosa, nos cantos dobrados das páginas muito manuseadas. Lembrou-se da voz de Gus, quando se tinham sentado no terraço do "Galle Face Hotel", e ele lhe falara dos últimos dias de Cingapura. De como vendera seu relógio por dólares de Cingapura e subornara um guarda da prisão para arranjar-lhe papel, lápis e um bloco para desenho.
Seu bloco de croquis. Uma espécie de registro. Só que não para consumo humano.
Judith sabia que não devia espionar. Ela não queria espionar. Suas mãos, no entanto, pareciam possuir alguma compulsão independente e toda própria. Afastando a tira de borracha, abriu o livro ao acaso, o bloco de desenho. Croquis feitos a lápis. Muito detalhados. Página após página. Uma longa fileira de homens emaciados, seminus, as costas vergadas ao peso de dormentes de madeira para a estrada de ferro, caminhando em fila única através da selva. Uma figura encurvada, amarrada a um poste, deixada ali para desidratar-se e morrer sob o sol inclemente. Um guarda japonês, com a coronha do rifle erguida acima de um prisioneiro esquelético, caído e jazendo na lama. Depois, outra página. Uma execução, o sangue esguichando de um pescoço cortado, como dois gravetos vermelhos...
Uma náusea crescente deixou um gosto ácido em sua boca.
Ela ouviu a porta da rua ser fechada com um baque, em seguida os pés de Gus subindo a escada. Fechou rapidamente o bloco de desenho e ficou apertando a capa entre as mãos, como se fechasse a tampa sobre uma caixa de horrores, vivos, letais e contorcidos.
Aquilo bastava. Repetiu, em voz alta:
— Isto basta!
Ele havia chegado à porta.
— Você disse alguma coisa? Judith se virou para ele.
— Sim, eu disse. E não vou deixar você aqui, Gus. Não estou pedindo que venha comigo, estou dizendo que você vai comigo! E se não for, então vou ficar aqui e apoquentá-lo até que faça o que eu digo!
Surpreso diante da explosão dela, Gus desviou os olhos do rosto de Judith para o topo da mesa, e ali viu seu bloco, tendo ao lado a tira de borracha que o mantinha fechado. Então disse, em voz muito pausada:
— Não devia tê-lo aberto, Judith.
— Pois bem, eu o abri. E vi os desenhos. Não devia andar com ele por aí, como se essas fossem as únicas recordações que já teve. Elas sempre estarão gravadas em seu bloco. Jamais desaparecerão. Um dia, entretanto, se você permitir, acabarão desbotando. Só que não conseguirá fazer isso sozinho. Terá de partilhar esse conhecimento. Foi tudo perdido, se não quiser vir comigo. Terá sido tudo em vão. Estive dirigindo por todo este estirão, e o carro de Biddy não faz mais do que setenta e poucos quilômetros por hora, e eu tive que perder o jantar comemorativo de Diana pela volta de Jeremy Wells para casa, e agora terei de refazer todo o trajeto para casa, enquanto você fica aí, como um zumbi mumificado...
— Judith...
—Não quero mais falar sobre isto, mas, pela última vez, por favor! Se eu não partir agora, jamais chegarei em casa. A distância é muito grande, e às quatro já estará escuro...
De repente, tudo aquilo foi mais do que ela poderia suportar: seu desapontamento, a recusa dele em ouvi-la, o terrível conteúdo do bloco de desenhos. Sua voz interrompeu-se e ela sentiu o rosto cris-par-se. Por fim, prorrompeu em emocionadas e cansadas lágrimas.
— Oh, Gus...
— Não chore —disse ele e, aproximando-se, passou os braços em torno dela, assim ficando até o pior do choro terminar. — Você realmente desistiu de uma reunião com Diana, Jeremy e todos eles... por minha causa?
Procurando um lenço, ela assentiu.
— Isso não importa. Pode acontecer outra vez. Judith assoou o nariz. Gus falou então:
— Eu não gostaria de imaginá-la dirigindo sozinha, por todo o trajeto até a Cornualha. A setenta e poucos quilômetros por hora.
Com os dedos, ela enxugou as lágrimas nas faces.
— Não há muito que você possa fazer a respeito.
— Claro que posso. — Ele sorriu pela primeira vez. — Dê-me apenas cinco minutos.
Tomaram a direção oeste, através de Hammersmith e Staines, para entrar na A30. Judith dirigia, pensando que Gus talvez quisesse dormir e, por outro lado, já estava acostumada às peculiaridades do velho carro de Biddy. Sentado ao seu lado, Gus chupava balas enquanto acompanhava o trajeto em um surrado mapa rodoviário, pois disse que era educado o suficiente para não fumar seus cigarros no carro de outra pessoa. Em Hartley Wintney, deixaram para trás o último subúrbio. Depois disso, as cidades que atravessaram eram vilarejos rurais, com mercados, casas agachadas de tijolos vermelhos marginando as ruas principais, e pubs intitulados "O Leão Vermelho" e "A Cabeça do Rei". Sa'sbury, Crewkerne, Chard e Honiton. Fizeram alto em Honiton. Gus ficou enchendo o tanque com a gasolina do último latão sobressalente e Judith saiu em busca de comida, voltando depois com dois pastéis de carne de caça e um par de garrafas de refrigerante à base de gengibre. Os dois fizeram este modesto piquenique dentro do carro.
— Pastéis! —exclamou Gus satisfeito, mordendo o seu. Mastigou por um momento, depois olhou para Judith com expressão desapontada. — Isto não tem nenhum gosto de pastel.
— Então, tem gosto de quê?
Ele deu outra dentada e tornou a mastigar.
— De camundongo e lama, dentro de um esfregão.
— Não se pode esperar um pastel feito pela sra. Nettlebed. Não depois de seis anos de guerra. A gente precisa da melhor carne para um recheio adequado, porém a maioria das pessoas já esqueceu até mesmo que aparência tem a carne. De qualquer modo, aqui é Devon, e em Devon eles não são chamados de pastéis. São mais conhecidos como "mata-fome" ou coisa assim.
— Onde foi que conseguiu tão inútil informação?
— Qualquer um que tenha estado na Marinha sabe o que é um "mata-fome".
Gus replicou:
— Fico arrepiado só de pensar.
Continuaram rodando. As nuvens de Londres haviam desaparecido, o fim de tarde era claro e frio. O sol de inverno, redondo e vermelho como uma laranja, jazia baixo sobre as montanhas de Dart-moor. Exeter. Okehampton. Launceston. Estava escuro agora, os faróis tinham sido acesos e, aos lados da estrada estreita, via-se apenas o vazio da charneca.
Cornualha.
Gus ficou silencioso. Por muito tempo ele nada disse, mas por fim perguntou:
— Você já teve fantasias, Judith?
— Que tipo de fantasias?
— Oh, sabe como é. Quando se é criança e estamos crescendo. Galopar no deserto, na garupa de um atraente xeque. Ou salvar a vida de um iatista afogando-se, para então descobrir que era seu astro de cinema favorito.
— Fantasias desse tipo, não. Não especificamente. Entretanto costumava fingir que o Riviera da Cornualha era o Expresso do Oriente, e eu estava seguindo para Istambul, onde entregaria documentos secretos, mas sendo seguida de perto por vários e sinistros espiões. Coisas de Agatha Christie, amedrontadoramente excitantes. E quanto a você?
—Minhas fantasias nem de longe eram tão aventureiras. Não creio que tenha sido um jovem particularmente aventureiro, mas as fantasias que tive pareciam-me reais. Havia três, muito distintas entre si. Uma era que eu iria à Cornualha, onde nunca tinha estado antes, e abraçaria uma vida de pintor boêmio. Moraria no chalé de um pescador, caiado de branco e com lajes na entrada, deixaria meu cabelo crescer, usaria um chapéu como Augustus John, sapatilhas e os macacões azuis dos operários franceses. Também fumaria cigarros "Gitane", teria um estúdio e caminharia sem pressa até algum prazeiroso pub, onde seria tão famoso e reverenciado, que as pessoas disputariam a honra de pagar-me uma bebida.
— Uma fantasia totalmente inofensiva. Entretanto, por que a Cornualha, se nunca estivera aqui antes?
— Eu a conhecia de fotos, telas, obras de arte. De artigos em "The Studio". Do colégio em Newlyn. Do colégio em Porthkerris. Sabia como era a cor do mar e das falésias, a extraordinária qualidade da luz.
— Como pintor, você teria sido um sucesso, tenho plena certeza.
— Talvez. Entretanto, pintar era o meu "pequeno passatempo", como meu pai o chamava. Chegou então o momento de ir para Cambridge, estudar engenharia. Um rumo totalmente diverso. — Ele fez uma pausa, parecendo ponderar alguma coisa. — Nossa geração talvez seja a última a fazer o que lhe mandarem.
— Quais eram as outras duas fantasias?
— As telas, novamente. Uma obra de Laura Knight, uma gravura que rasguei de uma revista e emoldurei, depois levando-a comigo para a escola, para casa e a Universidade. Uma jovem sobre um rochedo.
Usando uma velha suéter e tênis. Morena como uma cigana, com uma trança castanho-avermelhada caindo sobre um ombro. Linda.
— Você ainda a tem?
— Não. Outra baixa de Cingapura.
— E o terceiro devaneio?
— Esse era menos específico. Difícil de explicar. Seria encontrar um lugar, uma casa, um local ao qual eu pertencesse. Inclusive meu nome. Antes de conhecer Edward, eu era Angus. Depois que o conheci, fiquei sendo Gus. Fomos juntos para a França, em férias. Então, ele me convidou para Nancherrow. Eu nunca estivera na Cornualha, mas dirigi sozinho por todo o trajeto, desde Aberdeenshire. E ao cruzar os limites do condado, fui tomado pela extraordinária sensação de estar regressando. Era o meu regresso ao lar. Como se já tivesse visto tudo aquilo antes. As paisagens eram inteiramente reconhecíveis e muito queridas. E quando cheguei a Nancherrow, tudo se ajustou, como se houvesse sido orquestrado. Forjado. Pretendido. Em Nancherrow, encontrei Loveday; e quando Edward apresentou-me a seu pai, o coronel disse, Gus, meu caro rapaz, como foi bom ter vindo, e que prazer sentimos em recebê-lo, ou coisa assim. Então, todos eles deixaram de ser fantasias, tornaram-se reais. Todos os sonhos, apenas por um breve período, foram verdadeiros.
Judith suspirou.
— Oh, Gus... Não sei se é a casa ou as pessoas que vivem nela. Entretanto, você não foi o único a sentir-se assim sobre Nancherrow. E nem tudo ficou no passado. Edward se foi, bem sei. E suponho que, para você, Loveday também. Só que ainda existe o futuro. E o que existe no futuro capaz de impedi-lo de ser pintor? De viver aqui, ter um estúdio, trabalhar em algo que ama e que talvez deva explorar... Agora não há nada que o impeça.
— Não. Nada. Exceto minha própria e inexistente confiança. Minha falta de vontade. O medo de fracassar.
— Isso é apenas agora. Você esteve doente. O agora não vai durar para sempre. Você ficará melhor, mais forte. As coisas mudarão.
— Talvez. Ainda veremos. — Ele espreguiçou-se no assento, movendo as pernas entorpecidas. — Você deve estar cansada, pobre garota.
— Agora não está longe.
Ele baixou o vidro de sua janela e ambos foram momentaneamente assaltados por uma rajada de ar frio e fresco. Gus virou o rosto e aspirou uma boa porção daquele ar.
— Sabe de uma coisa? — disse. — Posso sentir o cheiro do mar.
— Eu também. Ele subiu o vidro. —Judith....
— Diga.
— Obrigado.
Segurando uma caneca de porcelana Wedgwood, cheia de chá forte e escaldante, Judith bateu à porta do quarto de Biddy.
— Gus?
Ela abriu a porta, para um jato de ar gelado. As janelas estavam inteiramente abertas, as cortinas sacudindo-se ao vento, e o peso da porta quase lhe era arrancado da mão. Fechou-a apressadamente atrás de si, e as cortinas agitaram-se com menos força.
— Você deve estar congelando — disse.
— Nada disso.
Ele estava deitado na cama, recostado em travesseiros, as mãos entrelaçadas atrás da cabeça. O paletó do pijama era azul, e um início de barba, crescida durante a noite, formava uma mancha escura em seu queixo.
— Trouxe-lhe uma caneca de chá — disse Judith, colocando a caneca na mesinha ao lado da cama.
— Você é um encanto. Que horas são?
— Dez e meia. Importa-se se eu fechar a janela? O vento encanado percorre a casa inteira, e estamos tentando mantê-la aquecida.
— Sinto muito. Eu devia ter pensado nisso. Apenas achei tão bom sentir o ar puro em meu rosto... O hospital era superaquecido, e a atmosfera de Londres é sempre pesada e malcheirosa, para não se falar no barulho do trânsito.
— Entendo o que quer dizer.
Ela fechou os velhos caixilhos da janela e ficou por um momento espiando para o dia, através da vidraça. O céu estava aquoso e coberto de nuvens. Houvera tido uma pancada de chuva e logo haveria outra. Poças cintilavam nos caminhos, e os galhos pelados das árvores gotejavam sobre a fanada relva invernal do jardim. O vento gemia, chocava-se contra a casa, sacudia a janela. Judith virou-se e foi reclinar-se sobre o trilho de latão dos pés da cama de casal em que Biddy dormia.
— Como foi seu sono?
— Não muito ruim. — Ele tinha se sentado na cama, os joelhos dobrados para cima sob as cobertas, seus dedos compridos envolvendo o calor da caneca, uma mecha de cabelos negros caindo sobre a testa. — Ainda estava escuro quando acordei. Fiquei vendo o céu encher-se de luz. Devia ter-me levantado bem cedo, para o breakfast?
— Eu lhe disse ontem à noite que não. Só o incomodei agora, porque tenho de ir a Penzance comprar alguns mantimentos e quis saber se você precisava de alguma coisa.
— Como cigarros? — sugeriu ele.
— Naturalmente.
— E sabão de barba...
— Prefere em tubo ou para ensaboar naquelas pequenas bacias?
— Será que conseguiria uma baciazinha?
— Posso tentar.
— Vou precisar de um pincel de barba.
— Isso é tudo?
— Creio que sim. Vou dar-lhe algum dinheiro.
— Não se preocupe. Apresentarei a conta quando voltar. Não pretendo demorar. Estarei em casa à hora do almoço. Phyllis preparou uma torta de coelho-e-pombo. Acha que consegue comer coelho e pombo?
— Se consegui comer um "mata-fome", posso comer qualquer coisa.
Ela riu.
— Levante-se quando tiver vontade. Tome um banho, se quiser. O jornal da manhã está na sala de estar e acendi a lareira. — Ela caminhou para a porta e a abriu. — Até mais tarde.
— Até.
Quando ela voltou, faltando quinze minutos para uma hora, a cozinha estava inundada pelo cheiro agradável da torta de coelho, e Phyllis punha para ferver uma panela de couve-de-bruxelas. Judith pousou suas cestas apinhadas em uma ponta da mesa de madeira, e começou a tirar as compras de dentro delas.
— Consegui uma porção de cavalinha fresca e podemos comê-la no jantar. Trouxe também um osso para a sopa. E nossas rações de açúcar e manteiga. Parecem ficar mais e mais menores a cada semana
— O sr. Callender trouxe cartão de racionamento?
— Terei de perguntar-lhe. Não creio que tenha algum.
— Ele vai precisar ter — avisou Phyllis. — Um homem daquele tamanho come o dobro do que comemos.
— Teremos de enchê-lo de batatas. Ele já se levantou?
— Sim, está por aí. Veio à cozinha dizer olá, e depois passou algum tempo no jardim. Agora está lendo o jornal, na sala de estar. Eu disse a ele para manter o fogo aceso. Botar uma tora de vez em quando.
— O que achou da aparência dele?
—Um pouco magro, não? Pobre alma... Não gosto nem de pensar no que ele passou!
— É duro — disse Judith.
O último pacote foi tirado das cestas, nelas restando apenas os artigos que havia comprado para Gus. Juntou-os e foi à procura dele, encontrando-o inteiramente à vontade nas profundezas da poltrona de Biddy, lendo o jornal. Ao vê-la, deixou o jornal de lado.
— Minha consciência começa a reclamar por eu estar sendo tão preguiçoso.
— É exatamente como precisa ficar. Quer um drinque ou qualquer coisa? Creio que há uma garrafa de cerveja.
— Não, obrigado.
— Aqui estão suas coisas. — Judith sentou-se na banqueta ao pé da lareira e foi entregando os artigos que tirava de um amarrotado usado saco de papel. Sabão para barba Yardley's Lavender, dentro de uma baciazinha de cedro, nada mais, nada menos. Eles as receberam para o Natal, e o farmacêutico tirou esta debaixo do balcão. Aqui tem seu pincel de barba, em pêlo de texugo. E cigarros. E este é um presente meu.
—Judith! O que é?
— Abra e veja.
Era grande e bastante pesado, embrulhado em papel branco e amarrado com barbante. Gus o pousou sobre os joelhos, desatou o barbante e rasgou o papel, deixando à vista um grosso bloco de papel espesso, tamanho ofício, uma caixa de lápis H.B., a caixa de pintura Winsor e Newton em esmalte preto, e três belos pincéis em pêlo de marta.
— Sei que no momento você não pensa em pintar — disse ela rapidamente — mas tenho certeza de que logo sentirá vontade. Espero que esteja tudo certo. Comprei na loja de arte. O papel certamente não é da qualidade que você gostaria, mas era o melhor que tinham...
— Está perfeito, é um presente maravilhoso! — Inclinando-se para diante, ele pousou a mão no ombro dela, puxou-a para perto e beijou-lhe a face. —Você é a pessoa mais doce deste mundo. Obrigado.
— Não vou sugerir coisas nem interferir mais. Prometo.
— Acho que não me incomodaria muito se você interferisse.
Eles três almoçaram na cozinha aquecida e, depois da torta e de cerejas enlatadas com cobertura de creme de leite, Judith e Gus vestiram casacos impermeáveis e saíram para a tarde chuvosa, varrida pelo vento. Caminharam, não descendo até o mar, mas subindo a colina de Rosemullion, pela estrada que levava às charnecas. Depois abandonaram a estrada e seguiram através do terreno ermo onde se via a relva invernal, fetos castanhos e maciços de urze. Dali ganharam as serpenteantes trilhas de ovelhas, que iam até os dólmens no topo. As nuvens pareciam persegui-los, empurradas do mar. Havia gaivotas e maçaricos-reais revoluteando muito bem no alto, e, quando finalmente escalaram a rocha e lá ficaram de pé, enfrentando o vento, o terreno desdobrou-se por completo em torno deles, e ficaram circundados pelo horizonte.
Voltaram para casa por uma rota diferente, isto tornando o passeio uma caminhada realmente longa, de modo que já eram quatro e meia e a escuridão descera, quando finalmente cruzaram o portão da Dower House. Anna já voltara da escola e se sentara diligentemente à mesa da cozinha, lutando com seu dever de casa. Quando eles surgiram à porta exaustos e fustigados pelo vento, ela deixou o lápis de lado e ergueu os olhos, curiosa em saber quem, afinal, era o homem que viera para ficar e sobre o qual sua mãe tanto lhe falara.
Phyllis já tinha a chaleira no fogo, para o chá.
—Vocês demoraram um bocado. Devem estar com os pés doloridos
— É esquisito sair para uma caminhada sem Morag. Vamos ter de arranjar um cachorro para nós. Olá, Anna. Este é Gus Callender. Ainda não o conhecia, não é mesmo?
Gus libertou-se de seu cachecol e sorriu para ela.
— Olá, Anna — disse.
Anna ficou corada de acanhamento.
— Olá — respondeu.
— O que está fazendo?
— Dever de casa. Somas.
Ele puxou uma cadeira e sentou-se ao lado dela.
— Somas de dinheiro. São sempre as mais difíceis...
Phyllis passava margarina em fatias de pão de açafrão. Disse, sem erguer os olhos:
— Jeremy Wells ligou, de Nancherrow.
Judith sentiu o coração dar um salto involuntário, e imediatamente ficou irritada por ser tão tola.
— O que ele queria?
— Oh, não muita coisa. — Outra fatia e mais margarina. —Apenas perguntou se você já tinha voltado. Eu disse que tinha. Disse que você e o sr. Callender tinham saído para andar um pouco.
— Como foi o jantar de comemoração?
— A sra. Carey-Lewis desistiu da idéia. Você não estaria presente, e Walter tinha qualquer coisa mais para fazer.
Judith esperou que Phyllis fornecesse mais detalhes, porém ela ficou calada. Era evidente que ainda estava um pouco sentida por aquela história de Jeremy. A fim de aplacá-la, perguntou:
— Ele quer que eu ligue?
— Não. Ele disse que não se preocupasse. Que não havia necessidade. Não era nada importante.
Eram onze da noite, faltava uma hora para a meia-noite, e ele ainda não voltara.
Enrodilhada em um canto do sofá, Loveday olhava o mostrador do relógio e os lentos minutos que se escoavam. O vento voltar a soprar, vindo do mar, a fim de uivar para as janelas da casinha e sacudir suas portas. Volta e meia ela podia ouvir os cães de Walter latindo nos canis, porém não se aventurava a sair e descobrir o que os perturbava. Talvez fosse uma raposa. Ou um texugo, remexendo os depósitos de lixo.
Ele havia saído às sete. Terminada a ordenha, lavara-se, trocara de roupa e partira em seu carro, nem ao menos provando a torta de batata com carne picada que ela havia preparado para o seu chá. A torta continuava lá, no forno de baixo, a essa altura provavelmente congelada e seca. Não importava. Ela o deixara ir, mantendo um silêncio amuado, pois sabia que se dissesse alguma coisa, fizesse objeções, protestasse ou exigisse explicações, haveria uma explosão — mais uma briga entre ambos, encerrada por um ensurdecedor bater da porta, no momento em que ele saísse. Os dois pareciam nada mais ter a dizer que fosse remotamente construtivo, e tudo que restara eram palavras cruéis e dolorosas a serem trocadas.
O jovial convite de sua mãe para o jantar em homenagem a Jeremy Wells, em Nancherrow, deixara Loveday tomada por algo semelhante a pânico. No presente estado de espírito de Walter, ela não tinha certeza de que ele iria de bom grado e, em caso contrário, seus pais pressentiriam algo errado, começariam a fazer perguntas. Até mesmo transmitir a ele o convite feito exigiu um pouco de coragem de sua parte, e foi quase um alívio ouvi-lo dizer que tinha coisas melhores a fazer do que ir a jantares de luxo e que, além disso, já fizera planos para aquela noite.
— Você gostava de Jeremy.
— Não tenho nada contra ele.
— Não quer vê-lo outra vez?
— Logo o verei por aí. E, se ele quiser ver-me, pode vir, que me encontrará aqui.
Assim, Loveday telefonara para a mãe com escusas para a ausência de Walter, somente para ser informada de que a pequena reunião havia sido temporariamente cancelada, porque Judith também não poderia ir
— O que ela está fazendo? — perguntara Loveday
— Ela foi a Londres.
— A Londres? Para quê?
— Oh, eu não sei. Compras de Natal? Seja lá o que for, queridinha está tudo adiado por ora. Teremos nossa reunião em qualquer outra noite. Como está Nat?
— Muitíssimo bem.
— Beije-o por mim.
Assim, ficava eliminada uma preocupação, porém ainda havia muito mais.
Desde a tarde em que Judith tomara chá com ela e Loveday lhe fizera confidências, seu relacionamento com Walter fora piorando em ritmo alarmante, fazendo-a começar a crer que não somente deixara de ser amada, como o marido de fato a odiava. Ele ficou quatro ou cinco dias sem dirigir a Nat uma palavra gentil e, se por acaso faziam alguma refeição juntos, Walter mergulhava em silêncio, lia um jornal ou folheava as páginas do último Farmer's Weekly. A princípio, ela tentara fazer perguntas sobre a fazenda e os animais — sobre tudo o que agora tinham em comum — porém ele respondia por monossílabos, deixando-a sem notícias. Ultimamente, Loveday nem mesmo tentara romper aquela carrancuda e muito aterradora antipatia. Havia a terrível sensação de que, se o contrariasse além da conta, ele poderia realmente levantar-se da mesa e espancá-la.
Onze e quinze. Inquieta, Loveday resolveu fazer uma caneca de chocolate.
Levantou-se do sofá e colocou no fogão uma panela com leite para aquecer. Em seguida, querendo companhia, ligou o rádio. A Rádio Luxemburgo era sempre boa em programas musicais. Ela ouviu Bing Crosby cantando "Deep Purple", a canção favorita de Athena, naquele último verão antes da guerra. Quando Gus tinha ido a Nancherrow.
Ela pensou em Gus. Em geral não costumava pensar nele, porque as lembranças do que havia feito a deixavam tão angustiada, arrependida e aborrecida consigo mesma que, tinha certeza, devia ser exatamente o que ele pensava a seu respeito. Aos dezenove anos, ela agora percebia que havia sido pateticamente fraca e, ao mesmo tempo, infantilmente teimosa em fazer prevalecer, como de hábito, a própria vontade. Recusando-se a aceitar o fato de que poderia ter-se enganado, em sua inabalável convicção de que Gus tinha morrido em Cingapura; firmemente decidida a continuar para sempre em Nancherrow, a nunca ser arrancada dos braços amorosos de sua família; aferrando-se à primeira tábua de salvação que não a deixaria afogar-se, a qual, no caso, era Walter. Com tardia percepção, sabia agora que Arabella Lumb significava apenas uma espécie de catalisador, precipitando os acontecimentos. Se não fosse Arabella, teria sido qualquer coisa ou qualquer outra pessoa. Nat era realmente o único bem que resultara de todo aquele desastre.
Loveday tinha absoluta certeza de que nunca mais veria Gus. Não quero que ele venha aqui, havia dito a Judith. Entretanto, isso não era porque ela não quisesse vê-lo, mas apenas por sentir tanta vergonha do que fizera a ele. E se ela era capaz de pensar coisas tão deprimentes sobre si mesma, o que ele não pensaria? O amor, sem a força da fé, da confiança, de nada adiantava a ninguém. Se, a esta altura, ele já a tivesse tirado da cabeça, tomando um rumo em direção inteiramente diversa, não lhe cabia o direito de censurá-lo. A única culpada era ela própria.
De qualquer modo, aquela fora uma época maravilhosa.
Esperando o leite ferver, sentiu as lágrimas chegarem aos olhos, mas não saberia dizer se eram por ela própria ou por Gus.
Ouviu a voz de Nat, vinda do quarto. Chorando, chamando por ela. Deixou o leite de lado e parou, na leve esperança de que ele continuasse dormindo. Nada disso aconteceu, e Nat simplesmente chorou mais alto, fazendo-a ir até o quarto e tirá-lo de sua caminha, embrulhado em uma enorme manta. Loveday o trouxe para a cozinha e o acomodou no sofá.
— Por que está chorando?
— Eu quero mamãããe...
— Eu estou aqui. Não precisa chorar mais.
Nat enfiou o polegar na boca e a ficou observando, por sob as pálpebras abaixadas. Ela encontrou uma caneca, preparou o chocolate e depois voltou para junto do menino, com quem ficou falando por um instante, dando-lhe golinhos da bebida doce e quente que ele adorava. Pouco depois, Nat tornava a adormecer. Quando terminou de beber o chocolate, Loveday deixou a caneca no escorredor, desligou o rádio e deitou-se ao lado do filho, com o braço sob o corpinho firme e cálido, a manta enrolando os dois. Os cabelos dele eram macios contra seus lábios. Ele desprendia um cheiro gostoso de sabonete. Após um momento, ela fechou os olhos. Os dois dormiram.
Ela acordou às sete. A luz elétrica ficara acesa a noite inteira, permitindo-lhe ver o mostrador do relógio e saber, imediatamente, que Walter não estivera em casa, que não voltara. Nat dormia profunda e tranqüilamente. Loveday puxou o braço que mantinha sob o peso dele e sentou-se com cuidado. Depois deslizou para fora do sofá e ajeitou as dobras da manta em torno do corpinho rechonchudo do filho.
Loveday espreguiçou-se. Passar a noite em posição tão incômoda a deixara com os membros doendo, entorpecidos, e um mau jeito no pescoço. No exterior, o vento amainara um pouco, porém o tempo continuava razoavelmente tormentoso e, ali em cima, sobre a face da ladeira, havia pouco abrigo. Aguçou os ouvidos para captar latidos, mas os cães não emitiam som algum. Imaginou que Walter, tendo passado a noite na farra, retornara à fazenda para a ordenha da manhã e os soltara dos canis, quando a caminho dos estábulos. De certo modo alheado, perguntou-se se ele estaria enfrentando uma brutal ressaca ou as alfinetadas de uma consciência culpada. Provavelmente, nem uma coisa nem outra. Fosse o que fosse, não fazia a menor diferença. Um dia isso já tivera importância, mas, após essa última noite, o bem-estar de seu marido não lhe causava mais nenhuma preocupação.
Chegando junto do fogão, ela abriu o forno de baixo, recolheu os remanescentes solidificados da torta que lá deixara e os raspou para dentro do balde de comida dos porcos. Em seguida retirou as cinzas e acendeu o fogo. Crepitando suavemente, as chamas deixavam o fogão pronto para mais um dia. Isso era tudo que ia fazer.
No vestíbulo, tirou do cabide sua grossa capa de chuva e a vestiu. Amarrou uma echarpe de lã em volta da cabeça e enfiou os pés calçados em soquetes dentro das botas de borracha. Voltou à cozinha e tomou Nat nos braços, enrolando-o em sua manta espessa como se fosse um bebê. Ele não acordou. Apagando a luz, ela saiu da cozinha escura, cruzou a porta e enfrentou o vento frio da negra manhã de dezembro.
Não precisava de lanterna, porque sabia de cor cada trecho do caminho, cada pedra e cada laje. Seguiu pela trilha que acompanhava as lavouras, e no sopé da colina se juntava à alameda que conduzia a Nancherrow. Carregando Nat, Loveday iniciou a longa caminhada para casa.
Às sete horas da manhã, Nettlebed era sempre o primeiro a descer. Nos velhos tempos, mesmo em hora tão matinal, ele costumava vestir-se de acordo com a formalidade e importância de sua posição. Entretanto, os anos da guerra, durante os quais tinha usado os trajes de hortelão, ao mesmo tempo que os de mordomo, haviam colocado um ponto final em tal imponência e, em vez disso, ele inventara para si mesmo uma espécie de meio-termo. Camisa de flanela listrada, colarinho branco removível, gravata preta e um pulôver azul-marinho de decote em V. Sobre estas peças, quando engajado em trabalho sujo, como cozinhar, depenar faisões ou polir guarnições de latão, vestia um avental de açougueiro de listras azuis e brancas, que a sra. Nettlebed decidira ser aceitavelmente prático, de nenhum modo rebaixando a posição de seu marido.
As tarefas da manhã seguiam uma rotina imutável. Destrancar e abrir as folhas externas da porta principal. Puxar para os lados as cortinas da sala de refeições e salas de estar, abrir uma fresta das janelas para que o ar puro penetrasse e fizesse desaparecer o cheiro de fumaça de charutos. Em seguida, rumo à cozinha. Uma chaleira no fogareiro para o chá matinal do coronel. Destrancar a porta da copa que dava para o pátio. Em seguida, descer o corredor até a sala de armas, onde Tiger ainda dormia. (No correr dos anos, Pekoe insinuara-se no quarto da sra. Carey-Lewis e lá dormia, junto dela. Ele tinha uma cesta de vime no canto do quarto, mas todos sabiam que seu lugar de escolha eram os pés da cama dela.)
Tiger estava rígido nas manhãs, e Nettlebed solidarizava-se com o velho cão, porque também ele sofria de reumatismo, tendo agora sessenta e cinco anos e ficando em pé a maior parte do dia. Quando soprava o vento leste, seus joelhos inchados o castigavam sem piedade.
— Vamos levantar, rapaz — ordenava Nettlebed.
Tiger então se içava sobre as quatro patas e cambaleava através da porta para a escuridão invernal e o vento irritante. Nettlebed o acompanhava, porque do contrário não teria certeza de que Tiger fizera suas necessidades.
Esta manhã o cão demorou séculos, e Nettlebed gelara até os ossos quando ele finalmente tornou a entrar. Era triste ver um bom cão envelhecendo. Nettlebed nunca tivera muito tempo para cães, já que não nascera nem fora criado para cavalheiro de vida ao ar livre, mas gostava de Tiger, pois este tinha acompanhado o coronel através de todos os anos da guerra e de muita tristeza. Não se passava um dia sem que Nettlebed deixasse de pensar em Edward.
Com Tiger cambaleando e ganindo em seus calcanhares, ele voltou para a cozinha. Ali, o velho cão acomodou-se sobre sua manta, ao lado do fogão. A chaleira fervia. Nettlebed aqueceu o pequeno bule de chá branco. O relógio marcava sete e meia. Ele estendeu o braço para pegar a lata de chá e, ao fazer isso, ouviu abrir-se a porta dos fundos da copa, dando passagem a uma rajada de vento através do piso lajeado.
— Quem está aí? — perguntou, assustado, indo olhar.
— Sou eu, Nettlebed!
Loveday chutou a porta para trás, a fim de fechá-la, porque tinha os braços ocupados com algo informe e embrulhado em uma manta, que só podia ser o pequeno Nat. Nettlebed decidiu que a aparência dela, com as botas enlameadas e toda envolta em echarpes, era a de um refugiado.
— Loveday! O que está fazendo aqui, em hora tão imprópria?
— Eu apenas vim caminhando desde Lidgey. Ele ficou horrorizado.
— Carregando Nat?
— Sim. Por todo o trajeto. Estou exausta. Não tinha percebido que ele pesava tanto.
Ela cruzou a copa e entrou na cozinha. Depositou Nat cuidadosamente sobre a enorme mesa de madeira crua, fazendo um travesseiro com uma ponta da manta e acomodando o filho da maneira mais confortável que pôde. Nat nem se moveu. Loveday ergueu o corpo com cuidado, as mãos pressionando o final das costas.
— Ah! — suspirou, de puro alívio.
O espanto de Nettlebed transformou-se em indignação.
— Não devia ter carregado Nat esse tempo todo. Terminará prejudicando-se, e ninguém pode negar isso.
— Estou bem, mas lá fora faz um frio danado. — Ela caminhou até o fogareiro, aproximou as mãos da superfície quente por um momento, depois agachou-se para falar com Tiger: — Olá, meu lindo!
A cauda de Tiger ficou batendo no chão, tump-tump-tump. Eles sempre se adoraram.
Nettlebed contemplava a pequena cena com o coração opresso. Temia e adivinhava justamente o pior. Desde algum tempo, sabia que a situação estava difícil em Lidgey. Era seu costume, duas noites por semana — não mais — ir até o pub de Rosemullion, a fim de conversar com dois velhos amigos, disputar um jogo de dardos e saborear uma cerveja. Tinha reparado em Walter com aquela mulher, a tal Arabella Lumb, como diziam que se chamava, e Nettlebed era dos que sabiam identificar uma notícia ruim quando a via. Já vira os dois juntos por mais de uma vez, sentados a uma mesa de canto, sendo óbvio para qualquer homem com dois olhos no rosto, que eles não se tinham encontrado por acaso.
Walter Mudge estava agindo de maneira absolutamente irresponsável. Outrora, Nettlebed apreciara bastante o jovem Walter, mas isso fora antes dele casar-se com Loveday, quando ficava em seu lugar (os estábulos) e entregava leite e creme na porta dos fundos. Ao ser anunciado que ele e Loveday iam ser marido e mulher, Nettlebed e a sra. Nettlebed haviam desaprovado firmemente, mas, em respeito aos desejos de seus empregadores, guardaram para si mesmos o que pensavam. Tudo quanto Nettlebed pudera fazer, tinha sido presentear Walter com um traje decente para o casamento, a fim de que ele não envergonhasse a família diante do governador do condado e de seus distintos amigos.
Ultimamente, no entanto, Nettlebed começara a pensar que talvez tivesse sido melhor estrangular Walter Mudge com uma gravata, atirá-lo ao mar e assumir as conseqüências.
Tiger cochilava novamente. Loveday levantou-se, ficando de costas contra o fogareiro.
— Onde está a sra. Nettlebed?
— Lá em cima, no apartamento. Vai tirar a manhã de folga. Suas varizes a estão deixando inutilizada. Elas a crucificam, acredite.
— Oh, coitada dela! Talvez devesse ser operada. Eu sinto muito.
— Estou preparando o breakfast esta manhã. Quer uma xícara de chá?
— Talvez. Daqui a pouco. Não se preocupe. Eu mesma posso prepará-la.
Ela desenrolou a echarpe da cabeça e a enfiou no bolso da capa. Nettlebed viu as olheiras escuras de cansaço sob os olhos e notou que apesar da longa caminhada de Lidgey até ali. não havia cor alguma nas faces de Loveday.
— Está tudo bem, Loveday? — perguntou.
— Não, Nettlebed. Nem um pouco. Está tudo errado.
— ÉWalter?
— Ele não voltou para casa esta noite. — Mordendo o lábio, ela encontrou o olhar triste e preocupado do mordomo. — Você sabia sobre ela, não sabia? Arabella Lumb. Tenho certeza de que você sabia.
— Sim — suspirou ele. — Eu imaginei.
— Creio que está tudo acabado. Comigo e Walter, quero dizer. Sei que acabou. Aliás, penso que foi um enorme, terrível erro desde o começo.
— Você voltou para casa?
— Sim. E não volto mais para lá.
— E quanto ao menino? É filho de Walter.
— Não sei sobre Nat. Na realidade, não sei nada de nada. Ainda não tive tempo de analisar bem as coisas. — Ela franziu o cenho. — Preciso ter tudo bem claro na cabeça, antes de enfrentar todos eles. Papai, mamãe e Mary. Acho que, neste momento, o que eu gostaria mesmo era de ficar um pouco sozinha. Dar uma caminhada. Arejar a cabeça.
— Não acha que já caminhou demais?
— Não vou levar Nat. — Ela olhou para a criança profundamente adormecida, em sua cama improvisada. — Se eles virem Nat, saberão que voltei. Não quero que fiquem sabendo ainda. não, enquanto eu não encontrar todas as respostas para todas as perguntas.
Ouvindo-lhe a voz firme e olhando para ela, ocorreu a Nettlebed que jamais vira antes a Loveday de agora. Sem lágrimas, sem pirraças, sem histrionismos. Simplesmente uma estóica aceitação de uma situação infeliz, e nenhuma palavra de ressentimento ou censura. Talvez, disse para si mesmo, Loveday finalmente tivesse amadurecido, e se sentiu tomado por um novo respeito, uma nova admiração por ela.
— Eu podia levar o pequeno Nat para nosso apartamento — disse. — A sra. Nettlebed ficará de olho nele por enquanto. Assim, alguém só saberá que ele está aqui quando você quiser. Até você voltar.
— Bem, mas e quanto às varizes da sra. Nettlebed?
—Ela apenas ficará de olho no menino. Não irá carrégá-lo no colo.
— Oh, Nettlebed, está sendo muito gentil. E não dirá nada, certo? Quero eu mesma falar tudo, explicar a situação.
— O breakfast é às oito e meia. Ficarei de boca fechada até você voltar.
— Obrigada.
Loveday aproximou-se dele, passou os braços por sua cintura e o abraçou de leve, pressionando a face contra a lã do seu pulôver. Nettlebed não se recordava de já tê-la visto agir daquela maneira antes, e por um momento viu-se apanhado de surpresa, não sabendo ao certo o que fazer com as mãos. Entretanto, antes de poder corresponder ao abraço, ela já se afastara, inclinava-se sobre a mesa e, tomando o adormecido Nat nos braços, entregava-o a ele. O menino parecia pesar uma tonelada, e os joelhos reumáticos de Nettlebed encurvaram-se ligeiramente sob a carga. Entretanto, carregou a criança através da cozinha e subiu a estreita escada dos fundos que levava aos seus aposentos particulares, em cima da garagem. Quando voltou, após deixar Nat aos cuidados de sua espantada esposa, Loveday já se fora, e levara Tiger com ela.
Caminhar era mais ou menos como flutuar, emergir para a superfície de uma profunda e escura lagoa. Tudo negro no começo, depois clareando para índigo, em seguida azul, e então irrompendo na luz ofuscante. Ele abriu os olhos e ficou surpreso ao descobrir que ainda estava escuro; o céu além da janela era um céu noturno, pontilhado de estrelas. Do andar de baixo, do poço da escada, chegou até ele o som suave do carrilhão do relógio de pé, marcando docemente as sete horas. Ele não se lembrava de quando já dormira tanto, tão profundamente, tão absolutamente despreocupado. Sem sonhos e sem pesadelos, não acordando pela madrugada com um grito nos lábios. As cobertas estavam lisas e sem amarrotados, um seguro sinal de que mal se movera, de que todo o comprimento de seu corpo estava em paz, relaxado e tranqüilo.
Ele pensou no dia anterior, procurando explicar o motivo daquele desconhecido estado de beatitude, e recordou um dia de ordenada tranqüilidade, de muito exercício e de uma assombrosa dose de ar puro.
Ao anoitecer, depois que ficara escuro, ele e Judith haviam jogado cartas e tinham ouvido um concerto de Brahms pelo rádio. Chegada a hora de dormir, Phyllis lhe preparara uma caneca de leite quente e mel, rematada com uma colher de chá de uísque. Talvez esta poção mágica o tivesse nocauteado, porém ele sabia que bem mais provável seria a extraordinária, intemporal e curativa qualidade da velha casa de Lavinia Boscawen. Um santuário. Ele não conseguia pensar em qualquer outra palavra.
Sentia-se tão repousado, que seus membros estavam cheios de uma ignorada e há muito tempo esquecida energia. Não podia ficar deitado mais tempo. Levantou-se, foi até a janela aberta, debruçou-se para fora com os cotovelos no peitoril, e aspirou o ar frio e o cheiro de maresia, ouviu o sussurro do vento nos pinheiros de Monterey, no início do jardim. Pelas oito horas, o sol estaria subindo. Ele foi assaltado por seus velhos sonhos com água, profunda, fria e límpida, ondas se quebrando em uma praia; o som que produziam, espumando-se sobre rochas.
Pensou no novo dia que tinha pela frente. O sol, esgueirando-se acima da fímbria do horizonte, com os primeiros raios do alvorecer tingindo de rosa os céus crepusculares, e aquela luz refletida no mar movente, cinza-chumbo... De repente, ele foi outra vez obcecado pelo antigo desejo de registrar tudo aquilo, traduzi-lo para sua própria linguagem. Capturar, com lápis, pinceladas e aquarelas, as camadas de escuridão que desbotavam e os prismas de luz. Então, ficou tão grato por este ressurgimento de seu instinto criativo, que se percebeu tremendo, em uma espécie de êxtase.
Talvez fosse por causa do frio. Ele recuou da janela e a fechou. Sobre o toucador estavam empilhados perfeitamente o bloco de desenho, os lápis, tintas e os pincéis de pêlo de marta que Judith lhe comprara. Contemplou-os, e disse para eles, mais tarde. Agora, não. Quando houver luz no céu, sombras e o brilho da chuva na relva, então começaremos a trabalhar. Despiu o pijama e vestiu-se rapidamente. Suas calças de veludo cotelê, a camisa grossa, a pesada suéter pólo, seu paletó de couro. Carregando os sapatos (como qualquer indivíduo esgueirando-se por um corredor, com aspirações românticas), ele abriu a porta do quarto, tornou a fechá-la suavemente atrás de si e desceu a escada. Silenciosamente, o antigo relógio marcava os segundos. Cruzou a cozinha, calçou os sapatos e amarrou os cordões. Em seguida, deslizando os ferrolhos da porta dos fundos, saiu para o frio.
Era longe demais para ir caminhando. Recordou, dos velhos tempos, a grande extensão da alameda para carros em Nancherrow, e ficou impaciente por estar lá. Assim, abriu a pesada porta da garagem, onde se aninhavam, lado a lado, os dois idosos carros. E a bicicleta de Judith. Ele a segurou pelo guidom e a empurrou para fora, para o caminho de cascalhos. Havia um farolete dianteiro, que ele ligou, mas faltava o traseiro. Não importava. Aquelas horas, não haveria muito movimento na estrada rural.
Tendo sido originalmente comprada para uma jovem de quatorze anos de idade, a bicicleta era pequena demais para ele, mas isso tampouco importava. Girando a perna sobre o selim, montou e partiu, descendo velozmente a colina e atravessando Rosemullion com os joelhos ossudos apontados para os lados. Na ponte, foi forçado a desmontar, a fim de empurrar a bicicleta ao subir a empinada ladeira. Nos portões de Nancherrow, tornou a montar e pedalou pela estrada escura e marginada de árvores, ziguezagueando e chocalhando ao longo da alameda acidentada, que um dia havia sido imaculadamente macadamizada. Muito alto acima dele, os galhos vazios dos olmos e faias sacudiam-se ao vento produzindo estranhos rangidos e, de quando em quando, um coelho saltitava através do oscilante facho de luz do pequeno farol dianteiro.
Ao deixar as árvores para trás, a casa surgiu-lhe à vista, um vulto pálido. Acima da porta principal, uma luz brilhava por trás de uma janela encortinada. O banheiro do coronel. Gus imaginou-o em pé diante do espelho, fazendo a barba com sua afiada e antiquada navalha. As rodas da bicicleta matraquearam sobre o cascalho, e ele receou que a cortina do banheiro fosse puxada para um lado e que o coronel espiasse para baixo, descobrindo a sinistra e furtiva figura. Nada disso aconteceu. Deixou a bicicleta perto da porta principal, recostada contra a parede. Apagou a lâmpada acesa no alto, e depois caminhou cautelosamente até a frente da casa, por fim chegando ao terreno gramado.
O céu começava a clarear. Além das árvores desfolhadas e abaixo de uma comprida e enodoada nuvem cor de carvão, o sol anunciava-se acima do mar, vermelho-sangue e perfeitamente redondo, a metade inferior da nuven já tingida de rosa-forte. As estrelas desbotavam. Havia um cheiro de musgo e terra molhada no ar, tudo estava limpo e recém-lavado, cristalino e puro. Ele desceu o ondulado dos gramados e ganhou a trilha que mergulhava por baixo e através do matagal. Ouviu o ruído do regato, o fluir e chapinhar da água. Seguindo o som, cruzou a pequena ponte de madeira e mergulhou a cabeça no túnel de guneras. Quando alcançou a pedreira, já havia claridade suficiente para enxergar os degraus escavados em seu lado e para cruzar o solo rochoso entre os maciços de samambaias e tojos. Pulou o portão, seguiu pela estrada, depois o muro de pedras e a passagem nele existente — ele estava no topo do penhasco.
Ali fez uma pausa, pois por causa disso é que viera. A maré estava baixa, e a praia da enseada, um cinzento semicírculo de areia, estava orlada de algas e detritos deixados pelas águas. O sol surgira de todo agora, e as primeiras sombras alongadas espichavam-se pelo topo turfoso do penhasco. Então recordou o dia, aquela tarde de agosto, no verão antes da guerra, quando vira a irmã de Edward pela primeira vez, e ela o fizera descer até a enseada. Os dois tinham se sentado, abrigados do vento, e a sensação era de estar com uma pessoa a quem conhecera a vida inteira. Chegada a hora de irem embora dali, ela havia ficado em pé e tinha se virado para contemplar o mar, momento em que ele a identificara como sua jovem no penhasco, a gravura de Laura Knight, que era um dos seus mais preciosos bens.
Olhou para aquela rocha em particular, onde um dia havia ficado com Loveday. Foi então que os viu, e esfregou os olhos em descrença, imaginando-se ofuscado pela claridade do novo sol. Ela estava sentada de costas para ele, agachada contra a rocha, o cão bem apertado contra o lado de seu corpo, porque ela tinha passado um braço em torno do pescoço do animal. Por um segundo, julgou ter enlouquecido novamente, que ainda não se recuperara, que estava sofrendo de alguma alucinação auto-induzida. Foi então que, instintivamente, pressentindo sua presença, Tiger levantou a cabeça, farejou o ar, ergueu-se sobre as patas e caminhou com dificuldade pelo topo relvoso do rochedo, a fim de lidar com o intruso. Ele latiu, seu latido de aviso. Quem é você? Fora daqui! Nesse momento, seus olhos cansados viram Gus, e ele não latiu mais. Aproximou-se, a cauda abanando, as orelhas empinadas, o mais depressa que as patas artríticas podiam levá-lo, enquanto deixava escapar ruídos satisfeitos, produzidos no fundo da garganta.
Chegou ao lado de Gus, que se inclinou para afagar-lhe a cabeça, ao mesmo tempo em que via o focinho cinzento e o peso dos anos de Tiger.
— Olá, Tiger! Olá, meu velho!
Quando ele endireitou o corpo e espiou, ela estava lá em pé, com as mãos nos bolsos, de costas para o mar. A echarpe de lã lhe escorregara da cabeça, e ele distinguiu os anéis escuros, iluminados por trás pelo sol, como uma auréola.
Loveday. Nada havia mudado. Nada. Ele sentiu o nó aumentar em sua garganta, simplesmente porque a encontrara de novo, e ela ainda estava lá. A impressão era quase como se ela soubesse que ele viria e estivera à sua espera.
Ele a ouviu chamar seu nome.
— Gus! — E o vento capturou a palavra, enviou-a em vôo terra adentro, acima dos campos invernais. — Oh, Gus!...
E ela começou a correr encosta acima na direção dele, e ele foi ao seu encontro.
Era a manhã de sábado, e Jeremy Wells dormiu além da hora. Isto provavelmente tinha acontecido porque só conseguira dormir a altas horas da madrugada, já que havia bebido três xícaras de café após o jantar e saboreado um excelente brandy com o coronel. Assim, ficara deitado de olhos abertos, o cérebro trabalhando, ouvindo o vento soprar e o chocalhar das persianas. De vez em quando, acendia luz para ver as horas. Por fim, deixara a luz acesa e ficara lendo por uma ou duas horas, porém tudo isso havia sido um pouco insatisfatório.
Assim, acabou dormindo demais. Não exageradamente, mas o breakfast às oito e meia era uma norma de Nancherrow, e ele só chegou ao andar de baixo quando faltavam quinze para as nove. Na sala de refeições encontrou Diana, o coronel e Mary Millyway, a essa altura já comendo torradas com geléia e na segunda xícara, de café ou de chá.
— Sinto muito — desculpou-se. — Custei a acordar.
— Oh, meu querido, não tem a menor importância. Foi Nettlebed quem preparou o breakfast esta manhã, portanto, teremos ovos cozidos. Creio que já consumimos toda a nossa ração de bacon.
Enquanto falava, Diana abria sua correspondência e estava cercada por cartas lidas pela metade e envelopes abertos.
— O que houve com a sra. Nettlebed?
— Teve folga esta manhã. A coitada está com varizes terríveis. Talvez você pudesse dar uma espiada nela. Estamos convencendo-a a fazer uma cirurgia, porém ela tem pavor de operações. Diz que não precisa da faca. Confesso que a entendo muito bem. Céus, eis aqui um convite para um coquetel. Em Falmouth. Como as pessoas podem pensar que alguém irá gastar toda a sua cota de gasolina em troca de um mísero sherry?
Esta era uma pergunta que não exigia resposta. O coronel estava absorto em The Times. Quando passou por ele a caminho do aparador, Jeremy pousou uma mão em seu ombro.
— Bom-dia, senhor.
— Oh, Jeremy. Olá. Bom-dia. Dormiu bem?
— Não muito bem. Uma combinação de café forte e uma ventania uivante.
Mary juntou-se a ele diante do aparador.
— O vento diminuiu um pouco, mas continua soprando. — Ela ergueu o abafador do bule de café e sentiu a temperatura com as mãos. — Estou achando um pouco frio. Vou fazer um café novo para você.
— Não é preciso, Mary. Posso beber chá.
— Você sempre foi um apreciador de café. Eu sei disso. Não demoro mais do que um minuto — disse ela, e saiu da sala.
Jeremy tirou seu ovo cozido de dentro da cesta acolchoada e no formato de uma galinha, encheu uma xícara de chá forte, porque sempre podia mudar para o café mais tarde, e foi sentar-se à mesa. Sem palavras, o coronel estendeu-lhe silenciosamente um exemplar do Western Morning News, dobrado com precisão. Diana estava concentrada em sua correspondência. Em Nancherrow, nunca era encorajada a conversa durante o breakfast. Jeremy pegou a colher e cortou com perfeição o topo de seu ovo.
Faltando vinte para as nove, Nettlebed começou a preocupar-se, porque Loveday ainda não tinha voltado. Não que ele temesse um acidente, algo desastroso, como cair pela borda do penhasco e quebrar o tornozelo. Loveday conhecia aqueles penhascos como a palma da mão e tinha os pés seguros de uma cabrita. Entretanto, a responsabilidade por ela o incomodava. Já lamentava sua cumplicidade e desejava apenas que ela voltasse, agora, antes de ser forçado a tomar uma atitude e contar para o coronel que Loveday não somente deixara o marido como, ao mesmo tempo, havia desaparecido.
Preocupado, ele perambulou pela cozinha — de maneira muito contrária aos seus costumes — indo até a janela, tomando um gole de chá, carregando uma só panela até a copa, limpando alguns respingos de leite derramado e retornando à janela.
Nem sinal da jovem marota. A essa altura, sua preocupação aproximava-se da irritação. Assim que ela chegasse, haveria de dizer-lhe o que pensava, da mesma forma como uma mãe ralharia com um filho que quase tivesse sido atropelado por um ônibus.
Às dez para as nove, cansado de andar de um lado para outro e vigiar o relógio, saiu pela porta da copa e cruzou o pátio, chegando à alameda dos fundos, onde ficou parado ao vento, olhando para ver se a encontrava, através da extensão do jardim e na direção do mar. De seu vantajoso ponto de observação, contudo, podia ver também a grande garagem onde ficavam guardados todos os carros da família, e reparou que uma das suas portas estava aberta. Foi até lá investigar, tendo constatado que o pequeno furgão de pescador desaparecera. As implicações disso eram bastante agourentas — a menos que um assaltante houvesse entrado na garagem durante a noite e tivesse levado o furgão. Entretanto, na hipótese de um assaltante, ele certamente não teria levado o furgão, e sim o Bentley da sra. Carey-Lewis, que continuava ali, só faltando pedir que o roubassem.
A essa altura, bastante agitado, Nettlebed voltou para a casa, mas agora entrando pela porta da sala de armas. Lá encontrou Tiger, cansado e profundamente adormecido em sua cesta.
— Para onde ela foi? — perguntou, mas Tiger apenas piscou e voltou a dormir.
Então aconteceu a terceira coisa, a qual deitou tudo a perder. Quando Nettlebed retornava à cozinha, ouviu o inequívoco berreiro irado de Nathaniel Mudge, vindo do andar de cima, de seu próprio apartamento.
Chegou a hora, ele disse para si mesmo.
Nesse momento, Mary Millyway surgiu à porta do corredor, trazendo nas mãos o bule de café da sala de refeições.
— Eu ia apenas... — começou ela, parando em seguida. — Que barulheira é essa?
Nettlebed sentiu-se como um colegial apanhado em flagrante sur-ripiando maçãs.
— É Nat Mudge. Está lá em cima no apartamento, com a sra. Nettlebed.
— O que ele está fazendo aqui?
— Loveday o deixou. Às sete e meia desta manhã.
— Ela o deixou? E para onde foi, então?
— Eu não sei — admitiu Nettlebed, angustiadamente. — Saiu para dar uma caminhada. Disse que precisava refrescar a cabeça, analisar coisas. Prometeu estar de volta à hora do breakfast, mas não apareceu.
— Analisar coisas? O que isso significa?
— Você sabe. Ela e Walter.
— Oh, danação! — exclamou Mary, isto indicando o seu desespero, porque em todos os anos que haviam trabalhado juntos, Nettlebed nunca a ouvira praguejar.
— Ela levou Tiger, mas Tiger voltou e está na sala das armas — prosseguiu Nettlebed, nos tons de alguém determinado a isentar-se de culpa. — E o furgão pequeno não está na garagem.
— Você acha que ela fugiu?
— Não sei o que pensar.
Os gritos de Nat aumentavam de tom cada vez mais. Mary largou o bule.
— É melhor eu subir e dar um jeito nessa criança. A pobre sra. Nettlebed vai acabar enlouquecendo.
Ela saiu da cozinha e subiu a escada estreita.
— Quem está fazendo todo este escândalo? Vamos, Mary quer saber!
Assim, pelo menos um problema estava sendo resolvido. Sozinho, Nettlebed desatou as tiras de seu avental de açougueiro e o deixou no encosto de uma cadeira. Alisou os cabelos ralos com as mãos e saiu da cozinha, ereto e digno, a fim de encontrar o coronel e comunicar-lhe o que sucedia.
Entrou na sala de refeições e fechou a porta atrás de si. Ninguém lhe deu muita importância. Ele pigarreou.
O coronel ergueu os olhos do jornal.
— O que é, Nettlebed?
— Eu poderia ter uma palavrinha com o senhor?
— Naturalmente.
Agora, tanto a sra. Carey-Lewis como o jovem médico estavam prestando atenção.
— É um assunto... um tanto delicado, senhor. A sra. Carey-Lewis intrometeu-se.
— Delicado, Nettlebed? Como assim?
— Assuntos de família, senhora.
— Bem, todos aqui somos a família, Nettlebed. Exceto se for algo que você não queira que eu e Jeremy ouçamos.
— Não se trata disso, senhora.
— Pois bem, então fale para todos nós.
— É sobre Loveday, senhora.
— O que há com Loveday? — A voz do coronel era severa, pois ele já previa alguma crise.
— Ela apareceu em minha cozinha esta manhã, senhor, às sete e meia. Trazendo o pequeno Nat. Tinha vindo de Lidgey andando. Parece que... —Nettlebed pigarreou e tornou a começar. —Parece que houve algum problema com o jovem casal. Entre Walter e ela.
Uma longa pausa. Então, a sra. Carey-Lewis perguntou, sua voz perdendo o tom insistente:
— Ela o deixou?
— Assim parece, senhora.
— Bem, mas o que aconteceu?
— Segundo creio, senhora, os olhos de Walter foram atraídos por outra pessoa. Uma jovem. Ele a tem encontrado no pub de Rosemullion. E esta noite não voltou para casa.
Os três ficaram olhando fixamente para ele, sem palavras, em um aparente e total espanto. Eles nem por sombras imaginavam, pensou Nettlebed, o que em nada lhe facilitava as coisas.
— E onde está ela agora? — perguntou afinal o coronel.
— É essa a questão, senhor. O problema. Ela saiu para uma caminhada, queria ficar sozinha. Disse que estaria de volta às oito e meia, para o breakfast.
— E já são quase nove horas.
— Sim, senhor. E ela não voltou, senhor. Entretanto, quando saiu levou Tiger, mas Tiger já voltou para casa, está na sala de armas. E o furgão pequeno sumiu da garagem.
— Oh! — exclamou a sra. Carey-Lewis, parecendo aterrada, o que não seria de admirar. — Não me diga que ela fugiu!
— O culpado sou eu, senhora. Deixei que ela saísse, mas não a ouvi voltar. Estava cuidando do breakfast. E com o ruído do vento soprando tão forte, também não ouvi nenhum barulho do motor do furgão...
— Oh, Nettlebed, você não tem culpa de nada! Ela é muito inconveniente e malcriada, para sumir desse jeito. — A sra. Carey-Lewis pensou nisso. — Ora, mas para onde, afinal, ela iria? E onde está Nat?
— A sra. Nettlebed ficou tomando conta dele, em nosso apartamento. O menino dormia, mas agora já acordou. Mary está com ele.
— Oh, o pobre queridinho! —A sra. Carey-Lewis abandonou suas cartas, empurrou a cadeira para trás e ficou em pé. —Tenho que ir ver o coitadinho... — Quando passou pelo coronel, parou para dar-lhe um beijo no alto da cabeça. — Não fique nervoso com tudo isso. Ela estará bem. Nós a encontraremos...
Em seguida deixou a sala. O coronel ergueu o rosto para Nettlebed, que o fitou nos olhos.
— Este chamado "caso" é alguma novidade para você, Nettlebed?
—Não inteiramente, senhor. Já vi Walter e a jovem juntos por mais de uma vez, no pub em Rosemullion.
— Quem é ela?
— Chama-se Arabella Lumb, senhor. Não é um bom tipo, em absoluto. Não é coisa que valha.
— Você nunca nos contou nada.
—Não, senhor. Não me competia. Aliás, tinha a esperança de que isso terminasse.
— Sim. — O coronel deu um suspiro. — Eu entendo. Houve outra pausa, e Jeremy Wells falou pela primeira vez:
— Tem certeza de que ela não desceu até o penhasco?
— Quase absoluta, senhor.
— Acham que eu devia ir dar uma espiada? O coronel considerou sua sugestão.
— Seria conveniente. Apenas para tranqüilizar-nos. Entretanto, creio que o prognóstico de Nettlebed provavelmente esteja certo. Tiger jamais voltaria para casa sem ela.
Jeremy levantou-se.
— Mesmo assim, vou até lá. Farei uma vistoria pelos arredores.
— Seria muita bondade sua. Obrigado. —O coronel também ficou em pé e dobrou o jornal, que deixou arrumado sobre a mesa, ao lado de seu prato. — De qualquer modo, antes que façamos ou digamos outra coisa, preciso ir a Lidgey, descobrir o que diabo está acontecendo.
No espaço de meia hora, Jeremy havia descido até o penhasco em acelerada corrida, feito um reconhecimento minucioso do terreno e voltado, também correndo ladeira acima. Era uma boa coisa estar em plena forma física.
Encontrou todos na cozinha — Diana, Mary, os Nettlebed e o pequeno Nat, ainda de pijama e finalmente acalmado pela comida, um substancial breakfast que estava a ponto de terminar, sentado a uma extremidade da mesa da cozinha. Mary estava ao lado dele e os outros espalhados pelo aposento em várias atitudes, reunidos em busca de companhia, como fazem todos, em momentos de incerteza ou ansiedade. Antes de abrir a porta, ele ouvira o zumbido e murmúrio das vozes, assim como o grito esganiçado de Nat exigindo atenção. Entretanto, quando entrou, todos pararam de falar e olharam em sua direção. Ele sacudiu a cabeça.
— Nem sinal dela. Percorri toda a praia até o outro promontório. Loveday não está lá.
— Eu achei que ela não estaria — disse Nettlebed.
Ainda assim, Diana agradeceu a Jeremy por ter ido checar. Com as pernas envoltas em grossas meias elásticas, a sra. Nettlebed tinha um bule de chá ao alcance, mantendo-se quente na chapa do fogão.
— Aceita uma xícara, dr. Wells? — perguntou.
— Obrigado, mas agora, não.
— Você acha... — começou Diana, para então interromper-se e olhar para Nat, que enfiava no rosto, não na boca, um pedaço de torrada. — Jeremy, não estamos querendo falar demais na frente de você-sabe-quem.
— Canecas pequenas têm asas grandes — disse Mary.
— Quando ele terminar seu breakfast, talvez fosse melhor você levá-lo para a sala de brinquedos, Mary. Encontre alguma coisa que não seja um pijama, para ele vestir. — Ela olhou para Jeremy com ar desolado. —Eu gostaria de saber o que está acontecendo. Gostaria que Edgar voltasse e nos contasse...
Foi o que ele fez, mal as palavras haviam saído da boca de Diana. Tinha ido a Lidgey a pé, porque não valia a pena pegar o carro e fazer o longo trajeto de ida e volta pela estrada. E também a pé tinha voltado. Cruzara o pátio, entrando na casa pela sala de armas. Todos ouviram a estrondosa batida da porta ao ser fechada. No momento seguinte o coronel estava com eles, tirando o boné de tweed e tendo no rosto a expressão mais sombria e furibunda que Jeremy já testemunhara.
— Mary, leve o menino daqui — disse ele.
Assim que Nat foi levado da cozinha e a porta fechada atrás deles, o coronel caminhou até a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se.
Ficaram todos esperando, com certa expectativa, e então ele lhes relatou a lamentável saga. Chegando à grande casa da fazenda, havia entrado e lá encontrado os Mudge, em um estado que só podia ser chamado de choque.
Emudecido pela incredulidade e vergonha, o sr. Mudge mal pronunciara uma palavra, mas a sra. Mudge, que sempre apreciava descrever um desastre, mesmo que envolvendo sua própria gente, vociferante e indignadamente (em meio a incontáveis xícaras de chá), fornecera ao coronel um vívido relato de tudo quanto acontecera.
Walter não voltara a tempo de ordenhar as vacas, um serviço que acabara sendo feito por seus idosos pais. Somente depois que eles terminaram, com as vacas já soltas novamente, o local de ordenha limpo e arrumado, o filho errante apareceu, ainda envergando suas melhores roupas, que então pareciam bem piores pelo uso.
Ele não demonstrara remorso algum. Ao ser interrogado, disse aos pais que não agüentava mais, que estava cheio. Acrescentou que não pretendia mais ficar ali, que estava indo embora. Que estava farto de Nancherrow, de Lidgey, dos Carey-Lewis, de ser escravo. Farto das responsabilidades com esposa e filho, de um casamento ao qual fora forçado e de parentes afins que o fitavam de nariz em pé. Ia embora. Tinham-lhe oferecido emprego em uma garagem, nas proximidades de Nancledra, e ficaria morando no alto da Veglos Hill, na carroça-trailer de Arabella Lumb.
Quando o coronel terminou houve um longo silêncio, durante o qual os únicos sons ouvidos foram o soturno tiquetaquear do relógio da cozinha e o débil zumbido do refrigerador a eletricidade. Estavam todos se portando, pensou Jeremy, como um grupo de subordinados em formatura, aguardando as Ordens do Capitão. Somente Diana abriu a boca, como se fosse fazer algum comentário, mas tornou a fechá-la prudentemente, quando percebeu o olhar acerado e incomum de seu marido.
—Assim, essa é a situação. Fiz o melhor que pude para tranqüilizar os Mudge. De maneira alguma podem ser responsáveis pelo comportamento de seu filho. Também pedi a eles que, por enquanto, fiquem de boca fechada. Para Mudge, não será difícil ficar calado, mas a sra. Mudge é uma mulher naturalmente tagarela. De qualquer modo, eles compreendem que nada bom pode resultar de muitos comentários, embora eu receie que em menos de um dia os mexericos já tenham se espalhado por todo o distrito de West Penwith. Também nós teremos que ser discretos. Por causa de Loveday. A primeira pessoa a tomar conhecimento do assunto e ser instruída a respeito deve ser o sr. Roger Baines, nosso advogado. — Ele enfiou a mão no bolso do peito e tirou seu relógio de ouro de caçador. — Dez horas. A essa altura, o sr. Baines já deve estar em seu escritório. — O coronel levantou-se. — Falarei com ele pelo telefone de meu estúdio. — Então olhou em torno, de um rosto grave para o outro. Todos assentiram, concordando com suas decisões. Depois pousou os olhos no rosto da esposa, sua expressão suavizou-se, e ele sorriu. — Sinto muito, minha querida Diana, você ia dizer alguma coisa.
— Eu apenas ia dizer que... Bem, pensei que Loveday poderia ter ido procurar Judith. Judith seria exatamente a pessoa para quem ela se voltaria.
— Se assim fosse, Judith já não nos teria telefonado?
— Talvez não. Talvez elas ainda estejam conversando.
— É uma idéia. Você quer ligar para a Dower House?
— Não — respondeu Diana. — Acho que não devemos telefonar. Telefonemas podem tornar-se algo remotos e talvez angustiantes. Se Loveday não estiver lá, Judith poderá ficar muito preocupada. Acho que alguém devia ir à Dower House e explicar a situação a Judith. — Ela virou a cabeça e, através da mesa, seus olhos fascinantes encontraram os de Jeremy. Diana sorriu persuasivamente. — Tenho certeza de que Jeremy faria isso para nós.
— É claro.
Ao falar, Jeremy perguntou-se se Diana sabia o que estava fazendo a ele. Ou, talvez, por ele.
— E você ligará para nós, quando chegar lá. Apenas para informar-nos de uma coisa ou de outra.
Jeremy levantou-se.
— Irei agora mesmo — disse.
Judith estava sozinha. Sendo sábado, Anna não tinha aulas, e Phylis aceitara a oferta de carona feita pelo sr. Jennings, cuja esposa dirigia a agência dos correios de Rosemullion. Assim, logo depois do breakfast, às oito horas, o velho Austin do sr. Jennings rodara até a porta dos fundos, ela e a filha tinham embarcado e, com certo estilo, levadas até Saint Just, onde passariam o dia com a mãe de Phyllis.
Agora já passava das dez da manhã, e Gus, o outro ocupante da Dower House, ainda não aparecera. A porta do quarto dele permanecia firmemente fechada, e Judith ficou satisfeita, pois isso indicava que dormia e estava tendo um bom descanso. Quando Gus finalmente aparecesse, ela lhe prepararia um breakfast, mas até lá havia outras coisas ocupando-lhe a mente.
Judith decidira que esta seria uma boa oportunidade para fazer o que há séculos pretendia, isto é, medir as janelas da sala de estar para colocar novas cortinas, pois as antigas estavam tão surradas, que exibiam mais um rasgão, a cada vez que eram corridas. Teria sido perfeitamente possível cuidar disso com Phyllis na casa. Entretanto, Phyllis era tão eficiente e tão diligente, que tão logo alguém começava uma tarefa, ela se fazia presente, observando o que era feito, dando um ou dois palpites curiosos, para terminar cuidando de tudo sozinha. Era uma pequena irritação, mas viável.
Assim, ela encontrara a escada de mão, uma trena, e começara a trabalhar. Seus cupons para roupas haviam finalmente chegado, despachados por um Ministério qualquer, e agora verificaria a quantidade de tecido necessário para as cortinas, desde que usasse como forro as cortinas velhas ou o excesso de lençóis de algodão que possuía. Logo que calculasse as medidas e decidisse quanto precisaria de tecido, escreveria uma carta para a casa Liberty's, de Londres, solicitando amostras de padronagens. Também enviaria uma pequena amostra das cortinas antigas, porque as cores não deviam ser muito fortes nem demasiado berrantes.
Equilibrada no alto da escada de mão, com a língua presa entre os dentes para maior concentração, Judith mediu a sanefa, tendo acabado de decidir que ficaria melhor sendo cinco centímetros màis comprida, quando ouviu a porta da frente ser aberta e fechada. Era um pequeno aborrecimento porque, nesse momento, ela não sentia a menor vontade de ser perturbada. Parou de medir e esperou, desejando que o visitante, fosse quem fosse, nada tendo ouvido, julgasse a casa vazia e resolvesse ir embora.
Entretanto, ele ou ela não se foram. Soaram passos no corredor, depois a porta da sala de estar foi aberta, e Jeremy entrou no aposento.
Usava uma grossa suéter de tweed e tinha amarrado um cachecol escarlate em torno do pescoço. O primeiro pensamento de Judith foi que Jeremy estava tão exatamente o mesmo, tão imutável, que os anos passados desde o último encontro de ambos pareciam nunca ter acontecido. Seu segundo pensamento foi idêntico à reação que tivera àquela noite, quando se sentira tão mal e infeliz em Londres e ele aparecera na casinha da Mews, imprevistamente e sem se ter anunciado — e o vira subir a escada, sabendo que, se pudesse escolher, seria ele a única pessoa que de fato desejaria ver.
Isso era inesperado e algo incômodo, porque a deixava indefesa, quando sua intenção era a de ser bastante firme e fria com ele.
— O que está fazendo? — perguntou ele.
— Tomando as medidas da janela.
— Para quê?
— Vou fazer cortinas novas. Jeremy então sorriu.
— Olá.
— Olá, Jeremy.
— Será que poderia descer daí? Quero falar com você, mas se continuar aí em cima, acabarei com um torcicolo.
Assim, ela desceu cautelosamente e, nos últimos e frouxos degraus, ele lhe deu a mão para ajudá-la. Quando Judith chegou ao chão, Jeremy continuou a segurar-lhe a mão, e então deu-lhe um beijo no rosto, dizendo:
— Há quanto tempo... É formidável tornar a vê-la. Está sozinha em casa?
— Phyllis e Anna foram a Saint Just...
— Eu estou vindo de Nancherrow...
— Elas foram visitar a mãe de Phyllis.
— Loveday não está aqui?
— Loveday? —Judith encarou-o, e percebeu que ele não viera à Dower House simplesmente para vê-la. Havia algo mais. — Por que Loveday estaria aqui?
— Ela desapareceu.
— Desapareceu?
— Ela deixou Walter. Ou melhor, Walter abandonou-a. Ouça, é um tanto complicado. Por que não sentamos, para que eu possa explicar?
Ela não havia acendido a lareira, de modo que a sala estava fria, mas instalaram-se no amplo banco-janela, um lugar não exatamente aquecido, mas pelo menos tocado pelo sol que nascia. Com toda simplicidade, mas lucidamente, Jeremy contou-lhe tudo que estivera acontecendo em Nancherrow no correr daquela manhã, começando com Loveday e Nat vindo de Lidgey, e terminando com as descobertas do coronel e o seu conclusivo pronunciamento.
—.. assim sendo, está tudo acabado. O casamento parece ter-se desfeito em pedaços. E agora, não sabemos onde procurar Loveday.
Judith ouvira a triste história em crescente desalento. Não sabia o que dizer, porque aquilo era ainda mais terrível do que poderia imaginar.
—Oh, céus... — disse por fim, e era bastante inadequado, em vista das circunstâncias. — É sofrimento demais para ela. Pobre e pequena Loveday! Eu sabia que estava atravessando uma fase terrível, com Walter sendo tão mesquinho. Também sabia da história de Arabella Lumb, mas nada podia dizer, porque a própria Loveday me pediu que não contasse.
— Então, ela não veio procurá-la? Judith negou com a cabeça.
— Não.
— Gus está por aqui?
— Sim, claro que sim. Está hospedado aqui em casa.
— E onde está agora?
— No andar de cima. Ainda não acordou. Continua dormindo.
— Tem certeza?
Judith franziu a testa. Jeremy parecia desconfiado, como se ela estivesse dizendo mentiras horríveis.
— Claro que tenho certeza. Por que não teria?
— Foi só uma idéia que tive. Talvez fosse melhor você dar uma espiada. Ou eu mesmo irei, se preferir.
—Não — a voz dela era firme. — Eu irei ver. Não me incomodo.
Ela ainda segurava a trena. Então, fez a fita enrolar-se novamente e a deixou sobre a almofada do banco-janela. Depois, levantando-se, saiu do quarto e subiu a escada.
— Gus? Nenhuma resposta.
Ela abriu a porta do quarto de Biddy, e então se viu diante da cama vazia, das cobertas jogadas a um lado e da mossa no travesseiro, onde ele afundara a cabeça. A janela estava fechada. Sobre o toucador viam-se os poucos pertences dele, escovas de cabelo com dorso de madeira, um frasco de pílulas, o bloco para desenhos e a caixa de pintura que ela lhe dera. O pijama azul fora deixado sobre uma cadeira, mas as roupas dele, seus sapatos e o paletó de couro tinham desaparecido. Como o próprio Gus.
Perplexa, ela fechou a porta e tornou a descer a escada.
— Você tem razão — disse para Jeremy. — Ele não está lá. Deve ter-se levantado bem cedo, antes que qualquer de nós acordasse. Não ouvi ruído nenhum. Imaginei que ele apenas estivesse dormindo.
—Tenho um pressentimento de que Gus está com Loveday — disse Jeremy.
— Loveday e Gus?
— Devemos ligar para Nancherrow...
Entretanto, quando ele falou isto, o telefone começou a tocar. Judith disse:
— Talvez agora seja Diana...
Ela saiu ao corredor para atender, e Jeremy a seguiu, de modo que estava ao seu lado, quando Judith ergueu o fone.
— Dower House.
—Judith?
Não era Diana. Era Gus.
— Gus! Onde você está? O que está fazendo?
— Estou em Porthkerris. Telefonando da casa de seus amigos, os Warren.
— O que está fazendo aí?
— Loveday quer explicar. Ela quer falar com você.
— Ela está com você?
— É claro.
— Ela já falou com os pais?
— Sim. Neste momento. Primeiro falou com eles, agora é com você. Ouça, antes que eu passe o fone para Loveday, há três coisas que preciso dizer-lhe. Uma é que sinto muito, mas roubei sua bicicleta, que ainda está em Nancherrow, onde a estacionei, perto da porta principal. A segunda coisa é que vou seguir seu conselho e ser pintor. Ou tentar ser. Vejamos em que isso dá.
Era quase demasiado para digerir ou mesmo começar a compreender.
— E quando foi que você...?
— Falta uma última coisa a dizer. Já a disse uma vez, mas preciso dizê-la novamente.
— O que é?
— Obrigado.
— Oh, Gus...
— Pronto, Loveday vai falar.
— Mas... Gus...
Ele já passara o fone para Loveday. Ela ouviu a voz de Loveday, esganiçada pelo excitamento, falando precipitadamente como quando eram crianças, jovens e irresponsáveis, sem uma só preocupação no mundo.
— Judith, sou eu.
E Judith ficou tão agradecida, tão aliviada por estar falando com ela, que até esqueceu tudo sobre sua ansiedade ou mesmo mostrar-se um pouco zangada.
— Loveday, você é o fim! O que está pretendendo?
— Oh, Judith, não complique. Primeiro, já falei com mamãe e papai, de modo que não precisa mais ficar preocupada com eles. E estou com Gus. Tinha descido até os penhascos, sozinha, querendo apenas pensar no que ia dizer a todo mundo, e levei o querido Tiger comigo. Fiquei lá, sentada na penumbra e espiando o sol nascer, quando de repente vi Tiger fazendo au-au-au; então me virei, e lá estava Gus. Ele não sabia que me encontraria lá. Apenas foi porque também queria ir aos penhascos. A essa altura, eu já tinha decidido que não voltaria mais para Walter, por isso foi tudo tão especialmente maravilhoso, tão mágico, e lá estávamos nós dois, juntos outra vez... E eu nem ao menos sabia que ele tinha voltado à Cornualha! Nem ao menos sabia que ele era sew hóspede! E de repente, Gus estava lá, exatamente no momento em que mais precisava dele!
— Oh, Loveday... Fico tão feliz por você!
— Não é nem um décimo, uma só migalha do quanto eu mesma estou feliz!
— E então, o que vocês fizeram?
— Ficamos conversando, conversando... Então, pensei que era impossível pararmos de conversar, que precisávamos ficar mais algum tempo juntos. Assim, voltamos até a casa e, na ponta dos pés, coloquei Tiger de volta na sala de armas. Depois Gus deu partida no furgão da peixaria e seguimos pela estrada da charneca até Porthkerris.
— Por que Porthkerris?
— Era a maior distância que poderíamos rodar, sem que faltasse gasolina. Não, este é um motivo tolo. Escolhemos Porthkerris por sabermos que, aqui, encontraríamos um estúdio para o querido Gus. Um estúdio onde ele possa trabalhar e, esperamos, também morar, sem nunca ter de voltar para aquela horrível Escócia. Ele sempre quis pintar. Então, pensei nos Warren. Sabia que, se alguém conhecia Porthkerris, tinha de ser o sr. Warren; ele nos diria a quem procurarmos, talvez soubesse de algum estúdio para alugar ou comprar. Aliás, não poderíamos ir a mais nenhum lugar, porque não tínhamos nenhum dinheiro conosco, nem talões de cheques ou seja o que for. O querido Gus contou os trocados que tinha no bolso da calça: quinze xelins, quatro pence e meio penny. Uma insignificância que não teria nenhuma utilidade para nós. Assim, viemos para cá. E eles foram absolutamente adoráveis, como sempre. A sra. Warren preparou-nos o maior breakfast que já se viu, enquanto o sr. Warren ficava grudado ao telefone o tempo todo. Assim que eu desligar, vamos todos ver um apartamento na North Beach. É apenas um estúdio, mas tem uma espécie de banheiro e o que se conhece como kitchenette. Eu nem mesmo sei o que é uma kitchenette, mas garanto que será perfeitamente adequada...
Loveday ficaria tagarelando para sempre, mas Judith achou que já era hora de interrompê-la.
— Quando é que você volta para casa? — perguntou.
— Oh, este anoitecer. Estaremos de volta ao anoitecer. Nós não fugimos, nem nada assim. Apenas estamos querendo ficar juntos. Planejando coisas. Planejando nossas vidas.
— E quanto a Walter?
— Walter foi embora. Papai me contou. Arabella Lumb ganhou a partida, e boa sorte para ela!
— ENat?
— Papai falou com o sr. Baines. Eles admitem que posso ter Nat comigo. Ainda veremos. E Gus disse que sempre quis um garotinho, então acha uma boa idéia começar a vida de casado já com o prêmio de uma família pronta. — Ela silenciou por um momento, e depois falou, em um tom de voz inteiramente distinto: — Eu sempre o amei, Judith Mesmo quando sabia que ele estava morto, mas era difícil explicar para todos vocês. Gus foi o único homem a quem amei de verdade. Quando você me contou que ele voltara de Burma, isto foi a pior e a melhor coisa que já tinha ouvido. Entretanto, não era fácil falar a respeito. Sei que tenho sido impossível...
— Oh, Loveday, se deixasse de ser impossível, você não seria você! Daí por que todos a amamos tanto.
—Venha esta noite —disse Loveday. —Venha a Nancherrow esta noite. Vamos ficar todos juntos. Exatamente como fazíamos antes. Faltará apenas Edward, mas acho que ele também estará lá, não acha? Creio que ele estará lá, em algum lugar, bebendo à nossa saúde...
Judith disse, através das lágrimas:
— Ele não faltaria, por nada do mundo. Boa sorte, Loveday.
— Eu amo você.
Judith desligou, e estava em prantos.
—Não choro por sentir-me infeliz, mas por ela estar tão feliz. Você tem um lenço?
Claro que Jeremy tinha um lenço. Ele o pescou do bolso, limpíssimo e perfeitamente dobrado. Deu-o ajudith, que assoou o nariz e enxugou as lágrimas, tolas e irracionais.
— Pelo que deduzi — disse Jeremy — tudo vai bem.
— Maravilhosamente bem. Eles estão juntos. Eles se amam. Sempre se amaram. Gus vai continuar pintando e morar em um estúdio em Porthkerris. Um estúdio com uma kitchenette.
—.. e Loveday.
— Provavelmente. Não sei ao certo. Ela nada disse. Enfim, não importa. — O choro terminara — Fico com seu lenço. Vou lavá-lo para você.
Judith enfiou o lenço no punho da suéter, sorriu para Jeremy e, de repente, havia apenas eles dois. Nada mais para desviar-lhes a atenção. Ninguém por perto. Apenas os dois. Então, pela primeira vez, talvez um leve constrangimento, uma certa timidez. Procurando disfarçar, ela perguntou:
— Quer uma xícara de café ou qualquer outra coisa?
— Não. Não quero café, não quero Gus, Loveday ou seja quem for. Quero você e eu. É hora de conversarmos.
E, indubitavelmente, era hora. Eles voltaram para a sala de estar, tornaram a ocupar o banco-janela, e agora o sol baixo brilhava de vez em quando, banhando todos aqueles móveis antiquados e os tapetes desbotados, arrancando cintilações irisadas das gotas do candelabro de cristal de Lavinia Boscawen. Judith perguntou:
— Por onde começamos? O que conversaremos?
— Pelo início. Por que nunca respondeu minha carta? Ela franziu o cenho.
— Oh, mas você nunca me escreveu!
— Escrevi. De Long Island.
— Pois nunca recebi carta nenhuma. Agora, foi ele quem franziu a testa.
— Tem certeza?
— Claro que tenho. Cansei de esperar uma carta sua. Naquela manhã em Londres, você disse que ia escrever. Prometeu escrever, mas nunca escreveu. Jamais recebi uma carta. Então, concluí que você simplesmente mudara de idéia, ficara receoso. Concluí que, afinal de contas, achara melhor não manter contato.
— Oh, Judith! —Ele exalou um suspiro, que soou mais como um gemido, do que um suspiro. — Todos estes anos... — Estendendo a mão, tomou a dela. — Eu escrevi. Estava passando dias em uma casa em Long Island, e quase me fiz em pedaços, tentando encontrar as palavras certas para dizer-lhe. Depois levei a carta comigo para Nova York e a enviei pelo correio militar, postei-a na caixa do correio de bordo do HMS Sutherland.
— Então, o que aconteceu?
— Só posso pensar em um navio que tenha sido afundado. A Batalha do Atlântico estava no auge. E o correio, com minha carta, teria ido parar no fundo do oceano.
Ela meneou a cabeça.
— Nunca havia pensado nessa hipótese. — Depois perguntou: — O que dizia a carta?
-— Dizia um monte de coisas. Dizia que eu jamais esqueceria aquela noite que passamos juntos em Londres, quando você se sentia tão infeliz, e tive que partir muito cedo no dia seguinte, a fim de juntar-me a meu navio. Também dizia o quanto a amava. O quanto sempre a amei, desde o momento em que a vi pela primeira vez, sentada naquele compartimento do trem em Plymouth, olhando pela janela para ver a frota, enquanto chocalhávamos através da Ponte de Saltash. E então tudo se completou, quando voltei a encontrá-la em Nancherrow e ouvi o som de "Jesus, Alegria dos Homens", vindo de seu quarto, quando soube que você estava lá e o quão absolutamente importante e essencial era em minha vida. No fim da carta, eu lhe pedia que se casasse comigo. Porque havia chegado a um ponto em que não podia imaginar um futuro sem você. Pedi-lhe que escrevesse. Que respondesse. Dizendo sim ou não, para sossegar minha mente.
— E você não recebeu uma resposta.
— Não recebi.
— Não achou que era muito estranho?
— Para ser franco, não. Nunca me considerei um grande partido. Além disso, tenho treze anos a mais que você e sempre fui parco em bens materiais. Você, ao contrário, tinha tudo. Juventude, beleza e independência financeira. O mundo era seu. Talvez merecesse algo melhor do que a vida de esposa de um médico rural. Portanto, não estranhei. Quando não recebi qualquer resposta sua, não achei estranho, em absoluto. Decidi apenas que era o fim de tudo.
Judith disse:
— Talvez eu devesse ter-lhe escrito, mas não estava segura a meu respeito. Nós dormimos juntos e fizemos amor, bem sei. Tudo aquilo pareceu perfeito. No entanto, Edward amou-me por sentir pena de mim. Queria dar-me a espécie de felicidade que imaginava me faltar. Assim, eu tinha muito medo de que seus motivos fossem os mesmos. Afinal, eu estava vivendo maus momentos, e você me deu consolo.
— Eu nunca fiz isso, minha querida.
— Agora eu sei, mas naquela época era mais nova. Não me conhecia bem. Era inexperiente. — Judith olhou para ele. — Existe algo sobre o que não falamos. Jess. Eu agora tenho Jess. Ela faz parte de mim. Somos a família uma da outra. O que quer que aconteça comigo, acontecerá também para Jess.
—Ela se incomodaria, se eu acontecesse a você? Porque eu gostaria muito que nós três ficássemos juntos. Sempre a recordo do trem, sendo terrivelmente birrenta e jogando aquele boneco de pano em você. Mal posso esperar para tornar a vê-la.
— Jess agora está com quatorze anos e amadureceu muito. Quanto ao pobre e grotesco boneco, não existe mais. Morreu no mar.
— Sinto-me tomado de vergonha. Nunca lhe disse uma palavra sobre seus pais ou sobre Jess. Apenas comigo mesmo é que falava neles. Entretanto, senti imensamente por você e fiquei gratíssimo, quando meu pai contou que Jess havia voltado. Ela foi para o Santa Úrsula?
— Sim, e está feliz. Entretanto, enquanto não for adulta e capaz de firmar-se nos próprios pés, continua sendo responsabilidade minha.
— Querida Judith, isso não é nenhuma novidade. Você sempre teve responsabilidades, desde o dia em que a conheci. Responsabilidade por si mesma, por Biddy Somerville e Phyllis, por um lar que fosse seu. Então houve a guerra, e você alistou-se nas Wrens. — Ele tornou a suspirar. — É a minha única ressalva.
— Não compreendo.
—Talvez, antes de dedicar-se à vida conjugal, você queira ter algum tempo seu, apenas para divertir-se. Como fazia Athena, antes da guerra. Entenda, ser frívola, comprar chapéus e ir a clubes noturnos. Ser levada por homens sedutores a almoçar no "Ritz". Fazer cruzeiros em iates particulares e bebericar martinis em mansões ensolaradas.
Judith deu uma risada.
—Que lances de imaginação! —exclamou. —Você faz isso parecer um pesadelo.
— Fala sério?
Ele estava sendo muito terno. Ela pensou nisso, e então perguntou:
— Nunca chegou a conhecer, na Marinha, um homem chamado Hugo Halley?
— Não, acho que não conheci.
— Ele foi realmente encantador. Conheci-o em Colombo, quando fiquei hospedada com Bob Somerville. E a guerra havia terminado, de modo que não tínhamos de pensar mais nela. Então, fizemos tudo isso que você acabou de mencionar. E não estávamos apaixonados, não havia compromissos entre nós, mas foi uma época muito divertida, fascinante. Portanto, entendo do assunto. Já o experimentei, ainda que por pouco tempo. Assim, quando formos casados, eu lhe prometo que não levarei o resto da vida sentindo-me frustrada ou lograda, no mínimo sentido.
— Você disse mesmo isso?
— O quê?
— Quando formos casados?
— Creio ter dito.
— Eu agora já tenho cabelos grisalhos.
— Eu sei. Já os notei, mas sou educada demais para comentar.
— Estou com trinta e sete anos. Terrivelmente velho. Entretanto, amo-a tanto, que minha esperança é de que ser velho não tenha importância.
Jeremy esperou que Judith dissesse "Claro que não tem importância", porém ela ficou calada. Sentada ali, seu rosto era um estudo de profunda concentração.
— Por que está tão absorta em seus pensamentos?
— Estou fazendo cálculos. E nunca fui muito rápida em aritmética mental.
— Cálculos?
— Isso mesmo. Sabia que a idade exatamente certa para as pessoas se casarem é quando a esposa tem metade da idade do homem mais sete?
Um enigma. Confuso, Jeremy balançou a cabeça.
— Não. Não sabia.
— Pois bem, você tem trinta e sete anos. E metade de trinta e sete é dezoito e meio. E dezoito e meio mais sete são...
— Vinte e cinco e meio.
— Bem, eu tenho vinte e quatro anos e meio, portanto estou bastante próxima. Quase no ponto. Se não tivéssemos esperado três anos e meio, então tudo teria dado errado entre nós. Eu poderia ter sido um desastre. Agora, no entanto...
De repente, ela estava rindo, ele lhe beijou a boca aberta e risonha, o que levou bastante tempo, e Jeremy sentiu o despertar físico de seu corpo, em sua mente brotando a idéia de que seria maravilhoso tomá-la nos braços, encaminhar-se para o lugar adequado mais próximo, e amá-la, longa e apaixonadamente. Entretanto, o senso comum assomou à borda de sua mente, dizendo-lhe que este não era o momento propício. Os dramas de Nancherrow estavam na primeira linha da agenda, e quando tornasse a fazer amor com ela, ele desejava que fosse sem pressa, sem restrições de tempo e, se necessário, que durasse toda uma noite.
Soltou-a suavemente. Separados, ele ergueu a mão para afastar do rosto dela um anel de cabelos cor de mel.
— De quem foi a declaração — perguntou Jeremy — sobre a balbúrdia da chaise longue e a profunda, profundíssima paz da cama de casal?
— A sra. Patrick Campbell.
— Eu tinha certeza de que você saberia. No momento, acha que devemos controlar-nos e tentar fazer algum plano para o nosso futuro?
— Não estou bem certa se, precisamente agora, conseguirei fazer planos.
—Então, eu os farei. Exceto que ainda nem mesmo decidi qualquer coisa sobre mim mesmo, quanto mais sobre você e Jess.
— Pretende voltar para Truro e ficar com a clínica de seu pai?
— É o que você desejaria? Judith foi sincera. Respondeu:
— Não. Sinto muito, mas a coisa terrível é que jamais quero deixar esta casa. Sei que não devemos permitir que tijolos e argamassa dirijam nossa vida, porém este lugar é muito especial. Não apenas por causa de tia Lavinia, mas por ter sido uma espécie de refúgio para tanta gente. Um lar. Biddy veio para cá, quando sofria desesperadamente pela perda de Ned. Depois Phyllis e Anna. E Jess, regressando ao lar, aqui, depois de tudo por que passou. Inclusive Gus, que parecia em pedaços, achando que nunca mais tornaria a ser feliz. Você compreende?
— Totalmente. Sendo assim, riscarei Truro da lista.
— Seu pai não ficará muito contrariado?
— Acredito que não.
— Nesse caso, o que você fará?
— Tenho um velho colega da Marinha. Um bom amigo. Capitão-cirurgião da VRMR, chamado Bill Whatley. Há cerca de dois meses, quando estávamos em Malta, ele me pôs uma idéia na cabeça. E se nós dois iniciássemos uma nova clínica, bem aqui? Em Penzance?
Mal ousando esperar a resposta, Judith olhou fixamente para Jeremy.
— Você aceitaria?
— Por que não? A guerra terminou. Podemos fazer qualquer coisa. Bill é londrino, mas deseja instalar sua família no campo, de preferência junto ao mar. É um grande velejador. Conversamos bastante a respeito, mas eu não quis comprometer-me, enquanto não soubesse como ficaria a situação com você. Não era minha intenção voltar e perturbar sua vida, caso não desejasse ver-me nos arredores. Seria um tanto embaraçoso, ter um antigo apaixonado em sua soleira.
— Penzance dificilmente seria a minha soleira. E se você for um médico em Penzance, morar lá fica longe demais. Haveria chamadas noturnas e coisas assim.
—Seremos dois clinicando juntos. Faremos turnos. Construiremos um belo e moderno prédio para a clínica, com uma boa residência anexa. Um apartamento útil, para os plantões noturnos.
— Com kitchenette!
Jeremy, entretanto, começou a rir com vontade.
—Sabe de uma coisa, minha querida? Estamos discutindo minúcias sem importância. Atravessando pontes às quais ainda nem mesmo chegamos. Deixemos que o futuro cuide de si mesmo.
— Que clichês! Você até parece um político...
— Bem, eu poderia ser pior. —Jeremy olhou para seu relógio. — Santo Deus, quinze para meio-dia! Acabei esquecendo por completo o motivo que, antes de mais nada, me levou a procurá-la. Creio que devo voltar a Nancherrow, ou Diana começará a pensar que me juntei ao clube e fugi também. Você virá comigo, Judith querida?
— Se e você quiser...
— Eu quero.
— Devemos contar a eles? Sobre nós dois?
— Por que não?
A perspectiva, por qualquer motivo, era um pouco temerosa e intimidante.
— O que eles irão dizer?
— Por que não vamos lá e descobrimos?
Rosamunde Pilcher
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