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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O REI BÁRBARO / Jennie Lucas
O REI BÁRBARO / Jennie Lucas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

A Casa Real dos Karedes

O REI BÁRBARO

 

Kareef era tão indômito como o deserto, um príncipe bárbaro, um líder reverenciado. Em outro tempo tinha amado a uma jovem, mas a força de seus sentimentos quase conseguiu destruir a ambos. A única mulher que poderia amar lhe estava proibida!

Incapacitada de lhe dar filhos, não era adequada para ser sua rainha; entretanto, Jasmine era a única que podia acalmar a tormenta que açoitava seu coração da última vez que a tinha feito sua.

O xeque Kareef Al’Ramiz devia escolher entre convertê-la em sua amante ou aceitar seu destino como rei…

 

Casar-se com um homem que não amava ia ser surpreendentemente simples, pensou Jasmine Kouri enquanto entregava a taça vazia ao garçom. Por que insistiu em ficar tanto tempo sozinha? Devia ter acordado há um ano.

A festa de compromisso havia alcançado seu pleno apogeu. A alta sociedade de Qusay completa, a mesma que antes a depreciava, havia se congregado no branco pavilhão junto ao Mediterrâneo e bebia champanha em taças de ouro maciço enquanto brindava por seu compromisso com o segundo homem mais rico de Qusay.

Seu prometido não tinha poupado em gastos. O anel de compromisso, de diamantes de quinze quilates, que luzia em sua mão esquerda emitia brilhos arco íris cada vez que a movia, e pesava muito. O vestido de gaze de cor verde claro que tinha comprado em Paris, e cuja saia se agitava com o vento do deserto, dava-lhe calor. No outro extremo da esplanada de grama, as torres da enorme mansão de estilo italiano luziam os vermelhos brasões com o escudo da casa.

Com efeito, Umar Haijar não reparava em gastos. Tudo o que possuía, dos mundialmente famosos cavalos de corrida até suas residências espalhadas por todo mundo, proclamava sua riqueza e seu prestígio. Tinha perseguido Jasmine durante um ano em Nova Iorque e no dia anterior, de repente, ela tinha decidido aceitar sua proposta. Aquela recepção era o primeiro passo que dava Umar para conseguir que a sociedade do Qusay esquecesse o velho escândalo. Moldaria Jasmine até convertê-la na esposa perfeita, do mesmo modo que treinava ao potro mais promissor até convertê-lo em um ganhador: a qualquer preço.

Mas esse não era o motivo pelo qual o coração de Jasmine pulsava loucamente enquanto olhava ansiosa a seu redor. O dinheiro lhe trazia sem cuidado. O que procurava era algo muito mais apreciado.

Os convidados, todos muito cheios de joias, amontoavam-se para felicitá-la, incluindo alguns cujas fofocas venenosas lhe tinham arruinado a vida quando era jovem e necessitada. Entretanto, seria de mau gosto recordá-lo nesses momentos, de modo que se limitou a lhes agradecer e a sorrir até que lhe doeram as bochechas.

De repente ficou sem fôlego ao ver as pessoas que tinha estado esperando.

Sua família.

A última vez que os tinha visto era uma aterrorizada menina de dezesseis anos, enviada ao desterro e à pobreza por um estrito pai com o coração quebrado e uma mãe que chorava em silêncio. Entretanto, graças às iminentes bodas, ninguém voltaria a lhes fazer dano nem a ela nem a sua família.

Com um grito de júbilo, abriu os braços para que suas irmãs corressem a abraçá-la.

—Estou muito orgulhoso de ti, minha filha — disse seu pai com secura enquanto lhe dava uma palmada no ombro—. Finalmente vai bem.

—Minha formosa menina! —sua mãe a abraçou e, com olhos chorosos, beijou-lhe a bochecha—. Esteve fora muito tempo!

Seus pais tinham envelhecido. Seu orgulhoso pai caminhava curvado e sua mãe tinha o cabelo grisalho. As irmãs que ela recordava como umas meninas magrelas se converteram em roliças mulheres com filhos próprios. A saia do vestido flutuava ao vento enquanto era abraçada por sua família, envolvendo-a em muita gaze.

«Vale a pena», pensou profundamente comovida. Reunir-se com sua família, retornar a seu lar e ocupar um lugar no mundo mereciam cem carreiras em Nova Iorque. Teria se casado mil vezes com Umar.

—Joguei-lhe muitíssimo de menos — sussurrou Jasmine.

Entretanto, em seguida se viu separada de sua família, obrigada a saudar todos os assistentes. A mão de Umar posou sobre seu braço.

—É feliz, carinho? —sorriu ele.

—Sim — respondeu ela enquanto secava as lágrimas porque sabia que Umar odiava vê-la abatida —, mas alguns dos convidados começam a impacientar-se pelo jantar. Quem é esse convidado especial e por que demora tanto a chegar?

—Já o verá — respondeu o noivo antes de lhe beijar a bochecha.

Alto e magro, cumpridos os quarenta. Umar Haijar era a classe de homem que visitava as quadras vestido com traje de alfaiate. Tinha o rosto pálido e livre de rugas, graças à metódica aplicação de cremes solares. Seus cabelos grisalhos estavam penteados para trás com gel. Inclinou a cabeça.

—Escuta.

Jasmine escutou com o cenho franzido. Aos poucos reconheceu um som parecido a um trovão. Olhou ao céu, mas, como era habitual nesse reino do deserto, não havia nenhuma nuvem.

—O que é isso?

—É nosso convidado — o sorriso do Umar se fez mais amplo—. O rei.

—O… rei? —lhe faltou o fôlego enquanto uma sensação de pânico se apropriava de seu coração—. Que rei?

—Só há um rei, carinho — ele riu.

Como se tudo transcorresse em câmera lenta, Jasmine olhou para a vasta esplanada de capim.

Três homens a cavalo acabavam de cruzar a enorme porta principal de ferro. Os guardas de segurança do Haijar faziam tais reverências que seus narizes virtualmente tocavam o chão enquanto o líder dos cavaleiros passava diante seguido de dois homens vestidos de negro.

Todos iam armados com rifles e seus rostos tinham uma expressão dura e altiva, embora o líder fosse muito mais alto e de ombros imensamente mais largos que os outros dois. A adaga cerimonial que luzia, com jóias incrustadas, proclamava sua posição, enquanto que a dureza de seus olhos azuis delatava sua falta de compaixão. Sob o ardente sol do Qusay, sua túnica refulgia, deslumbrantemente branca, em contraste com a tez curtida enquanto saltava com agilidade de seu cavalo negro.

Dominada por um repentino pânico, Jasmine o olhou ao mesmo tempo em que rezava para estar equivocada. Não podia ser ele. Não podia ser!

Mas um olhar ao formoso e desumano rosto lhe deixou clara sua identidade. Durante treze anos tinha visto esse rosto em seus sonhos.

Kareef Al’Ramiz, o bárbaro príncipe do deserto.

Os convidados o reconheceram imediatamente e emitiram uma exclamação.

Kareef, o homem que a tinha seduzido e logo a tinha abandonado à vergonha e ao desterro. O homem causador da solidão e da dor que tinha sofrido durante metade da vida. O homem que lhe tinha feito pagar um preço muito alto pelo crime de amá-lo.

E uns poucos dias mais tarde, Kareef Al’Ramiz seria coroado rei de Qusay.

—O que está fazendo aqui? —um feroz ódio a transpassou, um ódio tão intenso que quase a fez cambalear e a obrigou a aferrar-se ao braço de Umar.

—O rei é um amigo meu — este sorriu com seus finos lábios—. Impressionei-te? Forma parte de meu plano. Vem.

Umar a arrastou pela esplanada para saudar o régio convidado. Ela tentou resistir, mas ele não a soltou. O pavilhão branco, a grama verde e o mar azul pareceram fundir-se dando voltas a seu redor. Em um intento de recuperar o controle, e o fôlego, Jasmine fez girar em seu dedo o anel de compromisso que tinha posto. O enorme diamante pesava, frio, contra sua pele.

—Senhor! —exclamou Haijar—. Honra-me com sua presença!

—Tomara que seja algo importante, Umar—rugiu o recém-chegado—. É o único pelo qual interromperia uma expedição para voltar para a cidade. Ante o som da voz, profunda e grave, que uma vez lhe tinha parecido música aos ouvidos, tudo começou a girar com maior rapidez ao redor de Jasmine. Inclusive temia desmaiar ali mesmo. Como reagiria Umar se acontecesse isso?

«Se case comigo, Jasmine», as palavras pronunciadas por Kareef anos atrás ressoaram em sua mente. Tinha lhe acariciado a bochecha enquanto a olhava com expressão de profundo desejo. «se case comigo».

Não! Não podia enfrentar a Kareef depois de tantos anos. Jamais poderia.

——Tenho que ir — o coração golpeava com força contra seu peito enquanto tentava desesperadamente soltar-se de Umar—. Se me desculpar…

Surpreso por sua força, Umar a soltou bruscamente. Tanto que ela perdeu o equilíbrio e caiu de bruços contra a grama.

Ouviu uma surda exclamação e, um instante depois, duas mãos fortes a sujeitavam e a ajudavam a ficar em pé.

Sentiu o tato rugoso daquelas mãos, masculinas e fortes, muito diferente das frias e suaves do Umar. Levantou a vista.

O atrativo e implacável rosto de Kareef ficava recortado contra o sol enquanto a levantava do chão. Os desumanos olhos estavam cheios de sombras. A cegante luz desenhava um halo ao redor de seus cabelos negros contra o céu azul.

Os olhares de ambos se fundiram. As pupilas do rei se dilataram.

Kareef contemplou estupefato o formoso rosto.

Não tinha contado voltar a ver Jasmine Kouri. Encontrar-se com ela de maneira tão inesperada, tocá-la, tinha lhe provocado uma descarga de gelo e fogo em seu interior, dos pés a cabeça.

Muito contra sua vontade, devorou com o olhar cada detalhe de seu rosto: as largas e negras pestanas tremiam contra a aveludada pele; com a ponta da língua ela umedecia os lábios, vermelhos e carnudos.

Os escuros cabelos de Jasmine, antigamente longos e lisos, formavam uma espessa cabeleira sobre os ombros e desciam em cascata sobre um diáfano e vaporoso vestido que parecia tirado de um filme de Hollywood dos anos 1930. O vestido se ajustava aos protuberantes seios e a fina cintura e caia ao redor dos quadris. Os elegantes e finos braços se vislumbravam através das largas mangas.

Ia coberta virtualmente de pés a cabeça, mostrando unicamente as mãos e o pescoço, mas o efeito era devastador. Tinha um aspecto glamouroso. Intocável. Ardia em desejos de sujeitá-la pelos ombros, de senti-la e saboreá-la para confirmar que era real. O simples contato dos dedos contra sua pele lhe queimava.

De repente, foi consciente das palavras de Umar Haijar.

Noiva de Haijar?

Como se acabasse de alcançá-lo um raio. Kareef a soltou bruscamente. Jogou uma olhada a suas mãos, surpreso de que seus dedos não tivessem ardido. Depois da descarga elétrica que tinha sentido ao tocá-la, tinha esperado que seus dedos entrassem em combustão.

—Casaste-te? —respirou fundo e a olhou fixamente.

Os escuros olhos de Jasmine se fundiram com os seus, apunhalando-o na alma. Umedeceu os lábios nervosamente, mas não respondeu.

—Ainda não — interveio Umar—. Mas o faremos depois da taça Qais.

Kareef não tirava os olhos de Jasmine, mas esta não dizia nenhuma palavra.

Anos atrás, estava acostumada a conversar animadamente, tirava-lhe o mau humor e o fazia rir. Sempre lhe havia resultado relaxante sua conversação. Encantadora. Possivelmente porque resultava tão natural, tão sincera… Ao princípio se mostrou tímida, um rato de biblioteca, mais cômoda lendo que falando com o filho de um xeque. Entretanto, uma vez conseguida sua confiança, contava-lhe alegremente tudo o que acontecia em sua mente.

Ambos eram muito jovens. Muito inocentes.

O fogo ardeu em seu interior ao contemplá-la. Jasmine. O nome era como um feitiço e mal podia evitar sussurrá-lo em voz alta. Teve que fingir uma expressão de indiferença no rosto, mas seu corpo permanecia tenso e alerta. Preparado para a batalha.

Para atacar a quem? Para defender o que?

—Estou encantado de que tenha podido vir à festa, apesar de te haver avisado com tão pouca antecipação — continuava Umar com as mãos apoiadas sobre os ombros de sua noiva—. Esperamos sua permissão para servir o jantar.

Kareef não podia tirar os olhos das possessivas mãos de seu amigo. Sentiu um repentino impulso de apartá-las de um tapa, de iniciar uma briga com o homem que lhe tinha salvado a vida anos atrás.

Aquela não era uma mulher qualquer. Era Jasmine. A garota que uma vez lhe tinha pedido que se convertesse em sua esposa.

—Senhor?

—Sim. O jantar… — sem relaxar a mandíbula, Kareef fez um gesto a seu dois guarda-costas para que se ocupassem dos cavalos.

Olhou para o pavilhão branco e os ansiosos rostos que o contemplavam. Alguns dos convidados mais ousados se aproximaram dele para tentar vê-lo melhor e com a esperança de unir-se à conversa. Depois de tantos anos de solidão no deserto do Qais, não era precisamente famoso por seu caráter sociável. E, entretanto, ser pouco acessível e frio lhe tinha feito mais desejável para a elite do Qusay. Todo mundo dessa maldita cidade do Shafar parecia desesperado por receber a atenção do rei bárbaro, ou seus favores, ou seu corpo, ou sua alma.

Ainda não lhe tinham coroado, mas, seguindo a tradição do Qusay, já lhe chamavam rei e lhe tratavam como a uma deidade. O povo do Qusay tinha visto o que tinha feito pelo povo do deserto do Qais, e desejava a mesma prosperidade. De modo que o idolatravam.

Kareef o odiava. Jamais teria retornado ao Qusay. Mas umas semanas atrás, pouco depois da morte do velho rei em um acidente de avião, seu primo, o rei Xavian tinha renunciado inesperadamente ao trono. Xavian não, Zafir, corrigiu-se, ainda pouco habituado a chamar assim ao homem que tinha acreditado ser seu primo. Este tinha descoberto que por suas veias não corria nenhuma só gota do sangue dos Al’Ramiz, de modo que tinha abdicado e partiu ao Haydar para reger os destinos daquele país junto a sua esposa, a rainha Layla.

A decisão de Zafir tinha sido correta e honorável, e Kareef a teria apoiado plenamente de não lhe haver suposto a obrigação de aceitar o trono em seu lugar.

E ainda por cima tinha que suportar ver Jasmine casada com outro homem.

Ou não? Legalmente, moralmente… podia permiti-lo?

Soltou um juramento em voz baixa.

—Nos honras senhor — Umar Haijar fez uma reverência—. Se me permite te pedir outro favor…

Kareef soltou um grunhido a modo de resposta.

—Faria a minha futura esposa a imensa honra de escoltá-la até o pavilhão?

Queria que a tocasse, queria que tomasse a sua mão? O mero feito de olhar Jasmine já supunha uma tortura. Anos atrás era uma menina encantadora, de olhos grandes e escuros e corpo fraco, mas se tinha convertido em uma mulher cheia de curvas. Uma mulher amadurecida. A expressão de seus olhos denotava mistério e pesares ocultos. Um homem poderia contemplar esse rosto durante anos sem chegar a descobrir todos seus segredos.

Jasmine Kouri era, simplesmente, a criatura mais formosa que tinha visto em sua vida.

Uma criatura que não deixava de olhá-lo em silêncio, acusando-o com o olhar de tudo o que seus lábios se negavam a pronunciar. Recordando-lhe tudo aquilo pelo que quase se matou em um intento de esquecer.

Kareef fechou os olhos, eliminando-a brevemente de sua vista. Obrigou a seu corpo a relaxar e a sua respiração a estabilizar-se. Rechaçou toda emoção do corpo, varrendo-a de sua alma como se fosse sujeira sobre a pele. Depois de tantos anos de prática, sabia exatamente o que fazer.

Mas ao abrir os olhos novamente, descobriu que não tinha aprendido nada.

Ao olhar Jasmine, os anos de desejos reprimidos se desintegraram. Sentiu como o calor o invadia, golpeando sua pele qual tormenta de areia.

Desejava-a. Sempre a tinha desejado. Como não tinha desejado a nenhuma outra mulher.

—Senhor?

Com relutância, o rei ofereceu seu braço, o sinal inequívoco do máximo respeito para a esposa de outro homem. Ao falar, sua voz soou fria e controlada.

—Dirigimo-nos ao banquete, senhorita Kouri?

—Honra-me, senhor — disse ela ao fim, depois de duvidar um instante antes de apoiar a mão sobre seu braço, ao tempo que elevava a cabeça para olhá-lo com seus formosos e resplandecentes olhos marrons.

Só Kareef captou a amarga ironia depois da frase. Sentia o calor da delicada mão de Jasmine através da manga.

Os convidados se fizeram a um lado e lhes dedicaram respeitosas reverências enquanto conduzia Jasmine até o estrado, seguidos por Umar. Uma vez no estrado, o rei deixou cair sua mão e tomou uma taça dourada da mesa.

Imediatamente se fez silêncio entre os duzentos convidados que esperavam espectadores as palavras de seu novo rei.

—Desejo agradecer a meu honorável anfitrião e amigo, Umar Haijar, seu generoso convite — olhou a seu amigo, o qual lhe fez uma elegante reverencia a modo de resposta —. E quero dar a bem-vinda a sua noiva, Jasmine Kouri, que retornou a seu lar. Ilumina nossas costas com sua beleza, senhorita Kouri — elevou a taça enquanto olhava com severidade aos convidados e elevava a voz—. Pelo feliz casal.

—Pelo feliz casal — fizeram coro todos.

Jasmine permaneceu em silêncio. Mas, ao sentar-se, Kareef percebeu seu ódio em umas quebras de onda de evidente energia que se entrelaçavam contra ele.

O jantar, que consistia em uma interminável sucessão de pratos de cordeiro e pescado, arroz com azeitonas e berinjelas cheias de carne, começou a servir-se. Cada prato era mais elaborado que o anterior. Kareef sentia a presença de Jasmine a seu lado. Esta mal provou algo, nem sequer quando seu prometido tentava animá-la a comer. Limitava-se a segurar o garfo e a faca com firmeza, como se se tratasse de armas defensivas.

—Deveria comer algo — a animou Umar—. Resultaria pouco atrativa se emagrecesse em excesso.

Pouco atrativa? Jasmine?

Kareef franziu o cenho. Magra ou gorda, nua ou vestida com um saco de estopa, qualquer homem a desejaria. Apertou os punhos com força. Ele, certamente, desejava-a. Nesse instante, sobre aquela mesa.

«Não», disse a si com raiva. Não a tocaria. Treze anos atrás tinha jurado deixá-la em paz. E, além disso, estava noiva de outro homem, seu amigo.

—Não tinha nem idéia de que se conhecessem —o rei se voltou para Umar e se obrigou a falar com normalidade.

—Conhecemo-nos em Nova Iorque o ano passado — Umar apertou o braço de sua noiva—. Depois da morte de minha pobre esposa, pedi a Jasmine em numerosas ocasiões que se casasse comigo. E ao final, ontem aceitou.

—Ontem? E tem idéia de se casar dentro de uns dias? —disse Kareef—. Um noivado muito breve. Não existe nenhum… impedimento?

Jasmine olhou furiosa a Kareef enquanto continha a respiração. Ele não a olhou nos olhos.

—Uma boda pode organizar-se em instantes —Umar se encolheu de ombros—, sempre que não se importe com o preço — olhou Jasmine com ar divertido—. As mulheres formosas podem ser caprichosas. Não vou lhe dar a menor oportunidade de trocar de opinião.

Jasmine baixou o olhar ao prato com as bochechas em brasas enquanto desenhava sulcos sobre o arroz com o garfo.

—Por mim, teria me casado imediatamente com ela em Nova Iorque — continuou Umar—, mas Jasmine desejava reconciliar-se com sua família. Assim que meu cavalo ganhe a taça Qais, instalaremo-nos nos Estados Unidos durante seis meses para preparar o seguinte objetivo: a tripla coroa. E, é obvio, far-me-ei cargo do negócio de Jasmine em Nova Iorque. Seu único trabalho será o de exercer de mãe de meus quatro filhos. Mas seus contatos nos Estados Unidos me serão de utilidade, dado que…

Fez uma pausa quando um dos serventes se aproximou para lhe sussurrar algo ao ouvido. Bruscamente, Umar ficou em pé.

—Me desculpem, devo atender uma chamada. Com sua permissão. Senhor…

Kareef assentiu. Quando o noivo partiu e os convidados retomaram suas conversações, agachou a cabeça para falar com Jasmine em voz baixa.

—Sabe?

—Nem se atreva a pensar nisso — o corpo de Jasmine estava completamente imóvel—. Não conte. Não significou nada.

—Sabe que não pode se casar com ele.

—Não seja ridículo.

—Jasmine.

—Não! Não me importa que seja o rei. Não permitirei que arruíne minha vida… outra vez — ela o olhou furiosa—. Não permitirei que arruíne as esperanças que minha família tem depositado nestas bodas…

—Sua família necessita dessas bodas? —interrompeu ele.

—Não permitirei que meu velho escândalo lhes esmague de novo — ela apertou a mandíbula com raiva e negou com a cabeça— não quando todo mundo segue emocionado pelo de minha irmã.

—Que irmã?

—Não te inteiraste? —ela o mirou e suspirou—. Acreditava que no Qusay todo mundo sabia. Minha irmã caçula, Nima, estava em um internato em Calista. Teve uma aventura de uma noite com um marinheiro cujo nome nem sequer recorda. Agora está grávida, grávida com dezesseis anos.

A palavra «grávida» flutuou entre eles como ar envenenado.

Apartando seu olhar de Jasmine, Kareef olhou à família que estava acomodada em uma mesa mais baixa. Logo olhou ao Umar, que atravessava a esplanada de volta. E por último a quão convidados olhavam de esguelha a seu rei. Depois seu olhar voltou para Jasmine e todo o resto desapareceu. Não via nada salvo a formosura de seu rosto, a infinita escuridão de seus olhos.

—Nima está em Nova Iorque, em meu apartamento, enquanto tenta fazer-se à idéia de que logo será mãe — se esforçou por não chorar—. Minha irmãzinha. Quando apareceu ante minha porta faz dois dias, de repente me dava conta do tempo que tinha perdido. Treze anos sem minha família — sua voz se quebrou—, não há dinheiro que possa compensar isso.

—E por isso noivou com Umar Haijar? —disse ele com calma enquanto entreabria os olhos—. O ama?

—Quando meu pai me colocou para fora faz treze anos — ela suspirou enquanto esfregava a nuca—, disse-me que não me incomodasse em voltar para casa. Não até que fosse uma mulher respeitavelmente casada.

—Por isso te vais casar? —Kareef a olhou furioso com a mandíbula encaixada—. Para agradar a seu pai?

Dedicou-lhe um olhar cheia de ódio.

—E a ti o que te importa? Lavou-te as mãos faz muito tempo. Dentro de uns dias estarei casada e fora de sua vida para sempre — Jasmine elevou o queixo desafiante—. Assim é que desejo que me deixe em paz. Desfruta de sua coroa. Senhor.

Kareef pensou que jamais a tinha ouvido falar com tanta amargura. Mas acaso podia culpá-la? O que ela tinha suportado aniquilaria a alma de qualquer mulher. Quando jovem, possuía um espírito alegre e brilhante, mas ele em pessoa se encarregou de esmagá-lo anos atrás. Fechou os punhos com força enquanto se inclinava sobre a mesa.

—Jasmine — sussurrou—, deve saber que eu…

—Me perdoem — interrompeu Umar Haijar com voz aguda e tensa. Estava de pé, detrás deles—. Era a babá de meus filhos. Ocorreu uma emergência. Devo partir.

—OH não! —Jasmine ficou ansiosamente em pé—. Irei contigo.

—Devo ir sozinho — Umar elevou uma mão no ar.

—O que? por que? Por favor, Umar! —suplicou ela —. Deixe-me te acompanhar. Pode ser que necessite minha ajuda.

—Não — respondeu ele com brutalidade enquanto posava seu olhar no Kareef—. Senhor, peço-te que tome a Jasmine sob seu amparo.

—Não! Certamente que não! —gritou ela em um tom muito alto, atraindo sobre eles os olhares dos convidados.

—Jasmine — Umar lhe advertiu em voz baixa, embora dura —, não faça uma cena.

—Não a farei — ela tragou com dificuldade. Seus olhos emitiam brilhos carregados de suplica enquanto se afastavam dos convidados—, mas não me deixe sozinha com o rei.

—Por que não? —perguntou seu noivo.

—Por mais rei que ela seja, umedeceu os lábios e olhou ao aludido sob suas trementes pestanas—, não deixa de ser um homem.

—Não diga tolices, Jasmine. É o rei! —disse Umar—. Sua palavra é inquebrável e respeitada em todo mundo. O…

—Não, ela tem razão — interrompeu Kareef enquanto olhava Jasmine com os olhos brilhantes—. Por mais rei que seja — acrescentou em voz baixa carregada de perigo—, também sou um homem.

As largas pestanas de Jasmine bateram asas sobre suas pálidas bochechas; tremia visivelmente sob o escrutinador olhar do rei.

—E eu responderia por ti com minha vida — insistiu Umar com teimosia—. Por favor. Deve tomá-la sob seu amparo. Senhor.

O olhar de Kareef se voltou lentamente para seu velho amigo. Levar Jasmine outra vez ao palácio real, sob seu mesmo teto? O esplendoroso palácio lhe recordava uma prisão com seus grossos muros, enquanto que ele suspirava pela liberdade do deserto. Não podia nem imaginar-se apanhado nessa jaula de ouro com a tortura acrescentada da companhia de Jasmine… sob seu amparo enquanto esperava para casar-se com outro homem.

—Não — respondeu com frieza—. Ela não pode alojar-se no palácio. É impossível.

Apesar do suspiro de alívio de sua noiva, Umar apertou os lábios com determinação.

—Tampouco pode ficar aqui, sem proteção, até que estejamos casados. Não seria correto. Tenho que pensar em meus filhos.

—Envia-a de volta com sua família.

—Seria muito melhor se ficasse no palácio.

De modo que se tratava de o que dirão». Os lábios de Kareef desenharam um cínico sorriso.

—Pelo bem de Jasmine — continuou em voz baixa Umar—. Ajudará a apagar seu velho escândalo, o povo esquecerá as fofocas sob o peso de sua figura.

O rei, repentinamente indeciso, franziu o cenho enquanto olhava a seu amigo.

—Senhor — Umar inclinou a cabeça—, se alguma vez fui merecedor de sua estima, suplico-te que me faça este favor. Toma a minha noiva oficialmente sob seu amparo até o dia da taça Qais, dia no que voltarei para me casar com ela.

«Se alguma vez tinha sido merecedor de sua estima»?

Tinha ajudado Kareef a levar a prosperidade ao país, tinha-lhe feito padrinho de dois de seus quatro filhos e, sobretudo, tinha-o resgatado do deserto, meio enlouquecido e a ponto de morrer de sede, treze anos atrás. O tinha levado a sua casa e lhe havia devolvido a saúde. Tinha-lhe salvado a vida.

—Poderia ser… — assentiu Kareef a contra gosto enquanto Umar redobrava seus esforços.

—Sua mãe está no palácio. Será uma boa companhia em caso de perigo.

—Não — choramingou Jasmine—. Não o farei.

Umar não fez conta. Olhava a seu amigo com espera, quase com desespero.

Se a noiva tivesse sido qualquer outra mulher, Kareef teria acessado imediatamente. Mas com aquela mulher não. Soltou um juramento para seus adentros. Acaso seu amigo não era consciente do perigo?

É obvio que não o era. Umar não tinha nem idéia de que tinha sido ele quem lhe tinha arrebatado sua virgindade e quem tinha provocado o acidente no deserto treze anos atrás Ninguém estava à par de que tinha sido seu amante, seu par no escândalo. Jasmine se tinha assegurado de que assim fosse.

Ela ainda o odiava, via-o em seus olhos. Mas não tinha escolha.

Lentamente, Kareef ficou em pé. Sua voz ressoou forte e autoritária no branco pavilhão.

—Deste momento até o dia de suas bodas, Jasmine Kouri fica sob meu amparo.

Um murmúrio se elevou entre quão assistentes contemplaram a Jasmine com admiração. Inclusive seu ancião pai sorriu surpreso.

«Se soubessem a verdade», pensou amargamente Kareef.

Umar assentiu aliviado e se dispôs a partir.

—Espera! —Jasmine agarrou a seu prometido do fino pulso—. Ainda não sei o que passou. Estão doentes seus filhos? Trata-se do bebê?

—Os meninos estão bem, não posso dizer nada mais — Umar tinha os olhos entrecerrados—. Te chamarei se puder. Em caso contrário, veremo-nos na corrida; o dia de nossas bodas.

Dito aquilo partiu, deixando Kareef e Jasmine sentados a sós sobre o estrado sob o atento olhar de duzentos pares de olhos.

Com gesto impassível, o rei deixou cair o guardanapo de linho sobre o prato vazio e se fixou no jantar, ainda intacto de Jasmine, e em sua expressão compungida.

—Terminaste?

—Sim — sussurrou ela enquanto parecia lutar contra as lágrimas.

—Então será melhor que partamos, estendeu uma mão.

—Esqueça — ela o olhou aos olhos—. Vivi durante anos sob meu próprio amparo. Não necessito, nem quero, a teu.

—E, entretanto, tem-na — ele continuou com a mão estendida.

—Alojar-me-ei com minha família.

—Seu prometido deseja outra coisa.

—Ele não manda em mim.

—De verdade?

—Ficarei no hotel — ela sacudiu a cabeça com determinação.

Fazia verdadeiros esforços por mostrar-se insolente, deixando claro que não o respeitava. Ele deveria haver se sentido insultado, mas ao ver como umedecia os lábios com a ponta da língua, não pôde apartar seu olhar daquela boca sensual que tinha beijado anos atrás. Sentiu um comichão nos lábios ao recordar os dela.

Com um profundo suspiro, obrigou-se a levantar a vista.

—Não encontrará uma só habitação livre em toda a ilha. Todo mundo veio para assistir a minha coroação —apertou a mandíbula com força—. Mas essa não é a questão.

—E qual é?

—Dei minha palavra ao Haijar —rugiu—. E eu mantenho minhas promessas.

—Sério? —ela o olhou com expressão irônica—. Isso seria novo em ti.

A ira o invadiu, mas se conteve. Ele tinha merecido. A única pessoa viva sobre a face da terra a que o consentiria era Jasmine.

Mesmo assim insistiu.

—Acaso tem medo de estar perto de mim?

—Medo de ti? —a voz dela estava carregada de ódio—. Por que deveria o ter?

—Então vem comigo — insistiu enquanto lhe oferecia uma mão.

Com os olhos entreabertos e carregados de fúria, lhe deu a mão. Nunca tinha podido resistir a uma provocação. Mas no preciso instante em que soube que tinha ganhado, Kareef sentiu a sacudida do contato com sua pele. E foi plenamente consciente de que era ele quem deveria ter medo.

Ele, Kareef Al’Ramiz, príncipe do deserto, logo soberano absoluto do reino do Qusay, deveria ter medo do que faria quando estivesse a sós com a mulher a que desejava. A mulher a que não podia ter, noiva de seu amigo. Porque, para ele, Jasmine não era simplesmente uma mulher.

Era a única mulher.

 

O sol se punha sobre as brilhantes torres e agulhas do palácio real, que dominava a cidade. Construído sobre as ruínas de uma cidadela bizantina, tinha sido modernizado durante o século anterior e resultava visível brilhante como uma jóia, desde o mar, a quilômetros de distância.

A Jasmine resultava muito estranho estar de volta ao lugar no que tinha crescido, quando seu pai era o conselheiro favorito do antigo rei. Entretanto, jamais tinha estado nessa ala em particular. A criada a tinha acompanhado até uma desmantelada água-furtada em uma das zonas mais antigas do palácio, onde se alojava o serviço.

Da imunda janela contemplou o jardim. Aquela habitação era menor que o closet de seu apartamento de cobertura de Park Avenue, mas ao menos se sentia aliviada por estar sozinha.

Ainda lhe tremiam os joelhos quando colocou a pequena mala de rodas sobre a cama. Ao ser conduzida pelo Kareef do pavilhão branco até a limusine que os aguardava, por um momento tinha sentido pânico ante a idéia de que pretendesse levá-la diretamente a seu dormitório no palácio. Teria sido capaz de resistir, apesar do ódio que sentia por ele?

Depois de todos os anos transcorridos, havia tornado a ver Kareef. Tinha ouvido sua voz. Havia sentido sua pele.

O ar da habitação se voltou subitamente sufocante. Sem êxito, tentou pôr em funcionamento o aparelho de ar condicionado antes de render-se e dirigir-se à janela, que se negava a abrir-se.

Soltando um juramento em voz alta, cobriu o rosto com as mãos. Por que tinha consentido voltar para o palácio? Só porque obedecia as ordens do Umar? Tinha sobrevivido durante treze anos sozinha em Nova Iorque. Não necessitava, nem queria o amparo de Kareef.

Ou sim?

Recordou a sensação da mão do rei sobre a sua e se sentiu ferver. Suando, tirou o vestido de gaze, as meias e as sandálias. Vestida só com a roupa interior, sentiu-se aliviada.

Até que alguém bateu na porta e a abriu de repente.

—Jasmine…

Kareef a olhava sem fôlego da soleira.

—O que faz aqui? —ela afogou um grito e se tampou com o vestido que tinha jogado ao chão.

Ele a olhou com os punhos fechados e os braços pendurado a ambos os lados do corpo. Trocou de roupa e vestia-se de maneira informal: camisa branca de manga larga e calças negras. Seu corpo estava visivelmente tenso e resultava muito atrativo.

—Quero… quero que me acompanhe para um jantar tardio.

—Pois me peça isso por telefone! —gritou ela enquanto um servente que entrava a habitação tentava dissimular sua estupefação.

Kareef entrou no dormitório com gesto contrariado e fechou a porta.

—Não pode entrar aqui! —gritou ela escandalizada.

—Não posso permitir que ninguém mais te veja assim.

—«Ninguém mais»? E o que passa contigo?

—Vi muito mais de ti que isso — ele arqueou uma sobrancelha e a contemplou atentamente.

—Não podemos estar a sós em um dormitório com a porta fechada! —Jasmine tinha as bochechas de cor púrpura—. Em algumas partes deste país, obrigar-lhe-iam a te casar comigo.

—Pois menos mal que estamos na grande cidade — ele riu.

—Nem te atreva! Não te dá conta de como se podem estender os rumores?

—Meus serventes são de confiança.

—Como sabe? —ela sacudiu a cabeça.

—Fomos traídos por um servente, Jasmine. Por um só — seus olhos emitiram um brilho—. E lhe fiz pagar por isso. Marwan…

—Não vou discutir contigo — ela virtualmente chiava enquanto segurava um travesseiro por cima da cabeça. O vestido caiu a seus pés, mas mal se deu conta. O recato não era compatível com a ira que sentia—. Parte daqui!

Kareef voltou a estudar seu corpo, vestido unicamente com roupa interior de algodão branco. O olhar lhe queimava a pele do pescoço até a curvatura dos seios, do abdômen plano até as coxas nuas. Sentiu a boca seca.

—Está me ameaçando com um travesseiro, Jasmine? —levantou a vista lentamente e a olhou aos olhos.

Media trinta centímetros mais que ela, e certamente pesaria uns trinta e cinco quilogramas mais. Jasmine era consciente do ridículo que devia parecer a cena, o qual só servia para enfurecê-la ainda mais.

—Acaso necessita uma solicitude por escrito? Saia daqui!

—Quando aceitar me acompanhar ao jantar.

Ela o olhou com crescente nervosismo. A última vez que tinha visto Kareef, o futuro rei contava dezoito anos. Era o sobrinho mais velho do rei Saqr. Ela não era mais que a estudiosa filha mais velha do conselheiro do rei. Ele era um cavaleiro farrista, de coração vulnerável e risada alegre.

Mas tinha mudado. Já não era um menino, converteu-se em um homem. Em um homem perigoso.

Seus olhos azuis, antigamente amáveis, tornaram-se desumanos. A expressão de seu atrativo e robusto rosto tinha adquirido um tenso controle. O desajeitado corpo tinha ganhado em musculatura. Cada um de seus músculos proclamava que se tratava de um rei. Certamente seria capaz de levantar pelos ares a alguém como Umar e lançá-lo como uma fêmea de javali. Jamais tinha visto um homem com os ombros tão largos como os de Kareef.

Mas a maior mudança era a amarga escuridão que se via em seus olhos. Percebia-se claramente ao frio guerreiro oculto abaixo da bronzeada pele. Só ficava uma ligeira pátina de civilização. O perigo a atraía… e de uma vez a assustava.

«Dá igual», disse-se desesperada a si mesma. Ao cabo de poucos dias se converteria na esposa do Umar e não teria que voltar a ver Kareef nunca mais. Só tinha que aguentar até as bodas…

—Acompanhar-me-á?

—Não tenho fome.

—De todos os modos deve vir. Temos que falar…

—Não — respondeu ela desesperadamente—. Não temos que falar.

—De verdade quer me ouvir dizê-lo? —ele franziu o cenho.

Ela tragou com dificuldade. Não. Sabia exatamente do que falava. Repetiu-se inumeráveis vezes a si mesmo que não significava nada, que não contava, que não tinham sido mais que umas quantas palavras sussurradas entre beijos.

O travesseiro caiu de suas mãos e abraçou a si mesma enquanto contemplava o jardim cada vez mais escuro.

—Pertence ao passado — sussurrou ao fim enquanto, pela extremidade do olho, via-o aproximar-se.

—O passado nunca nos abandona. Sabe que não pode te casar com ele.

Céu santo, Kareef ia tocá-la! Se o fazia, se alargava uma mão e tomava a sua… Jasmine tinha medo da reação de seu corpo. Quão único mantinha suas próprias mãos afastadas dele era a ira que sentia. Uma parte dela morria por acariciar os negros cachos, a forte mandíbula, tocar seus músculos e descobrir como era o homem em que se converteu.

Respirando fundo, elevou uma mão para mantê-lo afastado.

—De acordo! —rugiu—. Te acompanharei em seu elegante jantar desde que te parta.

—Não será elegante — os olhos azuis lhe sustentaram o olhar—. Singelo e tranquilo.

— O que você diga - ela não acreditava em nenhuma palavra. Jamais tinha visto um Al’Ramiz jantar com menos de cinquenta pessoas e dez pratos de carne, pescado e fruta.

—No Salão Azul — ele a olhou intensamente fazendo que se ruborizasse—, dentro de dez minutos.

O Salão Azul? Estava claro que tinha mentido. O Salão Azul se utilizava para tratar com atenção os chefes de estado. Mas já se preocuparia disso mais tarde, quando não estivesse nua e encerrada com ele em um espaço tão reduzido. Seus olhos se posaram involuntariamente na diminuta cama que os separava.

Seguiu-lhe o olhar.

De repente, o coração de Jasmine pulsava com tal força que quase podia ouvi-lo.

—Ver-te-ei no jantar — Kareef se voltou para a porta.

—Sim — ao fim ela pôde respirar de novo.

—Me alegro de ver-te, Jasmine —ele se deteve um instante antes de fechar a porta.

«Alegra-se de ver-me?».

Jasmine respirou fundo. Compartilhariam o jantar. Ele falaria com mesura e tudo teria acabado. Ambos continuariam com suas vidas respectivas.

Escolheu um vestido branco do verão, fresco e bonito, com um discreto decote. Não era o bastante elegante para um jantar de cinquenta convidados no Salão Azul e com o rei, mas teria que bastar. Acrescentou umas sandálias e um colar de pérolas. Tudo bonito e singelo. E dele. Não tinha sido eleito para ela em alguma boutique pelo Umar. Antes de contemplar o resultado no espelho, escovou os longos cabelos.

Uns assombrados olhos marrons lhe devolveram o olhar. Parecia jovem e insegura, nada que ver com a poderosa mulher em que se converteu em Nova Iorque. Kareef a fazia novamente vulnerável. Como se tivesse dezesseis anos.

Se escapou pelo corredor desde sua habitação até esta ala. De caminho ao Salão Azul, os corredores estavam estranhamente silenciosos, embora se cruzasse com duas mulheres, a mãe do futuro rei e sua acompanhante, muito mais jovem, vestida com uma abaya negra. A anciã sorriu ligeiramente a Jasmine. Tinha um rosto amável infestado de rugas e certamente não recordava quem era a jovem que lhe fazia uma reverência a modo de saudação.

Ao levantar a vista, reconheceu a sorridente mulher da abaya negra. Era Sera, sua amiga da infância!

—Alegra-me que haja retornado — Sera só pôde sussurrar umas palavras, já que a anciã, era óbvio, tinha pressa.

Um sorriso de surpresa se formou no rosto de Jasmine. Sera ainda a recordava depois de tantos anos? Uma quebra de onda de felicidade a atravessou enquanto reatava sua marcha apressada pelo corredor. O palácio parecia estranhamente silencioso. Cancelou-se a elegante janta? Chegara tarde? Respirou fundo e empurrou as pesadas portas do salão.

 

A enorme mesa, capaz de acomodar a quarenta e oito comensais estava iluminada por largas e compridas velas. Só havia uma pessoa sentada.

—Jasmine — Kareef se levantou e fez uma breve e formal reverencia. Logo se colocou depois da cadeira da jovem—. Por favor.

—Onde estão os outros? —ela olhou espantada a um lado e ao outro.

—Não há ninguém mais.

—Ah.

—Já o disse isso. Singela e tranquila.

Ia jantar com o Kareef… sozinha? Aproximou-se da mesa sentindo-se imersa em um sonho surrealista. As velas emitiam brilhos de luz e sombra sobre os painéis de madeira branca e as paredes de cor azul celeste da estadia. Tragou com dificuldade e se sentou na cadeira. Ele a empurrou a seu lugar. Como se se tratasse de um encontro.

Não! Não podia pensar desse modo. Aquilo era justo o contrário de um encontro.

Kareef se sentou a seu lado e fez um gesto com a cabeça a dois serventes que apareceram dentre as sombras. Ela se sobressaltou ao ver as bandejas de prata que levavam com caminhos e deliciosas saladas frias, pepinos, frutas exóticas, pão e queijo. Abriram uma garrafa de água com gás e, continuando, um vinho francês de preço proibitivo. Depois de lhes servir o jantar, os serventes fizeram uma reverência e desapareceram, fechando as portas do salão atrás deles.

—O que é tudo isto? —estavam sozinhos. Jasmine o sentia claramente e umedeceu os lábios com nervosismo.

—Não provaste nada durante o banquete — Kareef lhe serviu uma taça de vinho—. Deve ter fome — franziu os sensuais lábios—. Não consinto que ninguém sob meu amparo passe fome.

Ela não pôde evitar fixar-se em como a luz das velas projetava sombras sobre a incrível beleza de seu rosto masculino.

—Está-o?

—O que estou? —balbuciou ela.

—Se está faminta — disse ele com deliberada lentidão—, Jasmine.

Os olhos dela se posaram nos sensuais lábios enquanto recordava a última vez que a tinha beijado. Fazia muito tempo. Ou não? Tinha a sensação de que aqueles longos anos não tinham sido mais que um sonho.

—Estou faminta — sussurrou ao fim.

—Uma das poucas coisas boas de ser rei — ele sorriu antes de assinalar o prato—, é que tenho a minha disposição um cozinheiro de primeira classe. Nada que ver com minha vida habitual no Qais.

Jasmine provou o jantar e teve que reconhecer que estava deliciosa e que, em efeito, tinha fome. Entretanto, embora comesse, era incapaz de apartar o olhar do rosto de Kareef.

Aquilo era perigoso. Não podia confiar nele, já a tinha traído uma vez! Tinha-a destroçado. Mas a seu corpo não parecia lhe importar. Cada vez que ele a olhava, tremia por dentro.

—Kareef — disse enquanto deixava a um lado o garfo—. Eu não quero estar aqui contigo mais do que você quer que esteja. De maneira que se tivesse a bem…

—Mais tarde — a interrompeu ele enquanto empurrava a taça de vinho tinto para ela—. Temos toda a noite.

«Toda a noite». Jasmine tremeu enquanto tomava um gole de vinho.

—Mas sua coroação é dentro de uns dias — balbuciou—, deve estar muito atarefado. Ouvi algo sobre uns fogos esta noite em sua honra…

—Nada é tão importante… — lhe encheu a taça de novo— como isto.

Por que ele se empenhava em prolongar a situação? Por que? Qual poderia ser sua intenção?

Desesperada, tomou outro gole de vinho. O jantar terminou em meio de um absoluto silêncio.

—Uma bagatela muito cara — ele rompeu esse silencio com o olhar fixo no enorme anel de diamantes cujo peso parecia esmagar a mão de Jasmine—, inclusive para um multimilionário. Nota-se que Haijar te valoriza muito.

—Não me caso com ele por seu dinheiro — ela se ruborizou envergonhada—, se for isso o que pensa.

—Não — disse ele com uma ameaça de sorriso—. Sei que não é por isso.

Por que sorria? Alguma piada?

Houve um tempo em que o conhecia a perfeição. O menino ao que tinha amado não lhe tinha ocultado nada, mas o homem que tinha diante era um completo desconhecido.

Observou-o enquanto provava o vinho. Havia algo sensual nesses masculinos lábios apoiados sobre a taça, nessa língua que saboreava o vermelho Bordeaux. Quase podia imaginar esses lábios, essa língua, sobre seu corpo.

«Não!», ordenou-se desesperadamente para seus adentros. «Pára!».

Entretanto, cada centímetro de sua pele tremia de excitação por estar sentada junto ao único homem ao que tinha amado em sua vida.

O único homem ao que tinha odiado.

—Você gosta de Nova Iorque? —perguntou ele depois de provar a fruta.

—Sim — respondeu ela enquanto observava como os afiados dentes atravessavam a rangente maçã—. Eu gostava.

—E, entretanto, está ansiosa por partir dali.

—Sentia falta de Qusay — ela desviou o olhar—. Sentia falta da minha família.

—Mas seguro que terá feito muitas amizades em Nova Iorque.

—É obvio — havia algo estranho no tom de voz de Kareef e ela o olhou com receio.

—Uma cidade muito excitante — insistiu ele com voz neutra, embora sua mão se fechasse com torça em torno da taça de vinho—. Deve desfrutar frequentemente da vida noturna com muitos amigos… apaixonados.

Tratava-se de alguma retorcida maneira de lhe perguntar se tinha tido amantes? Jasmine respirou fundo e tomou outro gole de vinho. Não ia confessar que ele tinha sido seu único amante. Resultaria muito patético admitir que tinha desperdiçado os melhores anos de sua vida vivendo sozinha e sonhando com ele contra sua vontade. Sobretudo imaginando-se que teria sido substituída pouco depois de sua marcha. Não daria a esse homem a satisfação de saber que não só tinha sido seu primeiro amante, mas também o único.

—Como é seu lar? —Jasmine provou a deliciosa salada, uma mescla perfeita de ervas e tomates multicolorida, e decidiu trocar de tema.

—O palácio? —ele bufou—. Não trocou. Uma luxuosa prisão.

—Referia a sua casa no deserto. No Qais.

—Cômoda — disse ele depois de provar outro gole de vinho e encolher-se de ombros—. Tenho poucos serventes, e a maioria está para ocupar-se dos cavalos. Eu gosto de cuidar de mim mesmo. Não necessito de ninguém revoando ao redor meu redor.

—Pois te vai encantar ser rei — ela quase soltou uma gargalhada.

—Não — respondeu ele secamente—. Mas é meu dever.

«Dever», pensou ela sentindo um repentino estalo de ira. Onde estava esse sentido do dever treze anos atrás, quando ela o necessitava tão desesperadamente e ele a tinha abandonado?

A fúria a dominou, fazendo que as mãos que sustentavam a faca e o garfo tremessem. Mas não se tratava simplesmente de ira. Também havia perplexidade e dor. Como podia lhe haver feito algo assim? Como?

Com as mãos apoiadas no regaço, desviou o olhar e se esforçou por não chorar.

—Jasmine, o que tem?

—Nada — respondeu ela com voz rouca. Antes morreria que permitir que Kareef Al’Ramiz a visse chorar. Tinha aprendido a ser forte. Não tinha tido escolha—. Recordava a época em que sonhava com uma casa no deserto. E já a tem.

—Sim — disse ele com repentina dureza—. E vamos ser vizinhos. Meu lar está a tão somente trinta quilômetros da propriedade de Umar Haijar.

Ante a menção de seu prometido, ela se voltou sobressaltada. Como podia havê-lo esquecido tão logo? Era uma mulher comprometida! Não podia contemplar os lábios de outro homem!

Entretanto, não podia evitá-lo. Não se esse homem era Kareef, o único ao que tinha amado. O único ao que tinha admitido em sua cama. E até fazia só um dia, o único ao que tinha beijado.

Ao Umar o tinha beijado pela primeira vez depois de que ela aceitou sua proposição de matrimônio. O beijo tinha sido oficial e formal, um gesto para selar um trato para o que não serviria um aperto de mãos. Não tinha mostrado muita pressa por deitar-se com ela, o qual não parecia nada mal a Jasmine. Seu matrimônio estaria apoiado em algo muito mais importante, a família. Não só ia recuperar a seus pais e irmãs, também obteria, ao fim, ser mãe. Ia ajudar a seu marido a criar a seus filhos, de idades compreendidas entre os dois e os quatorze anos.

—Conhece seus filhos? —perguntou ela.

—Sou o padrinho dos dois maiores — Kareef assentiu—, Fadi e Bishr. São bons meninos. Respeitosos.

Respeitosos? Não lhe tinham parecido muito respeitosos quando os tinha conhecido em Nova Iorque, ao menos não para ela. Os quatro meninos a tinham mirado com ódio, aferrados a seu pai e à babá francesa, Leoa. Suspirou. Tampouco podia culpá-los por estar desgostosos quando sua mãe acabava de falecer.

—Espero que estejam bem — sussurrou—. Só os vi uma vez. Pobres meninos, estão muito mal. Sobretudo o bebê — acrescentou enquanto desviava o olhar.

—Necessitam de uma mãe — disse Kareef com doçura—. Será boa com eles.

Ela o olhou sobressaltada enquanto ele se inclinava para frente; suas feições ficavam intensificadas pela luz das velas. Estava muito perto. Seu joelho a apenas uns centímetros da dela.

—Obrigada — respondeu ela. Uma súbita tristeza lhe invadiu enquanto as silenciosas lembranças flutuaram entre eles.

«Não sabia que estava grávida?». A voz do médico ainda ressoava nos ouvidos do Kareef, como se proviesse de uma escura e longínqua cova. «Viverá, mas não poderá ter mais filhos…».

Jasmine deixou cair o garfo sobre o prato com grande estrondo. Apertou as mãos com força sobre o regaço e tentou desfazer-se dessas lembranças.

—Sempre quis ter filhos — disse Kareef com certa amargura—. E agora vais casar-te com Umar Haijar. Uma boa partida em muitos sentidos. Seu pai deve estar orgulhoso.

—Sim. Agora sim — sussurrou ela antes de sacudir a cabeça—. Nunca lhe interessou meu êxito em Nova Iorque. Inclusive rechaçou o dinheiro que tentei enviar à família, embora sua fortuna minguasse na mesma medida que a minha cresceu — levantou a vista para o Kareef—. Entretanto, sempre soube que, em algum recanto de seu coração, desejava me perdoar. Meu êxito, além disso, deveu-se em grande parte para ele.

Kareef se moveu nervoso na cadeira.

—Quando cheguei a Nova Iorque com dezesseis anos — continuou Jasmine—, não tinha nada. Não tinha dinheiro. Minha única amiga era uma velha tia avó doente, moribunda, que vivia em um miserável apartamento infestado de ratos.

—Isso me contaram… —disse ele com voz suave—, algum tempo depois.

—Eu tinha três trabalhos para poder nos manter às duas —ela entreabriu os olhos com amargura—. E, de repente, um mês antes de sua morte, recebi um cheque de cinquenta mil dólares de meu pai. Isso nos salvou. Investi o dinheiro e, pouco a pouco, recuperei-o com acréscimo. Se não tivesse sido por ele — acrescentou com doçura—, seguiria limpando escritórios dezesseis horas ao dia.

Kareef bebeu outro gole de vinho.

—Entretanto, quando tentei lhe agradecer hoje — Jasmine franziu o cenho—, jurou-me que não tinha nem idéia do que lhe estava falando.

Kareef contemplava em silêncio a líquida cor rubi de sua taça.

—Meu pai não enviou esse dinheiro, verdade? —de repente Jasmine compreendeu tudo.

Ele não respondeu.

—Foi você — Jasmine conteve o fôlego—. Você me enviou esse dinheiro faz dez anos, não meu pai. Foi você.

Ele soltou a taça e se limitou a assentir com os lábios apertados.

—A carta dizia que era de meu pai.

—Pensei que não o aceitaria se soubesse que era meu.

—E tinha razão!

—Por isso te menti.

—Mentiu-me, assim sem mais?

—Tinha a intenção de te enviar dinheiro todos os anos, mas não fez falta — a voz de Kareef refletia certo orgulho—. Converteu essa pequena quantidade em uma fortuna.

—Por que o fez, Kareef?

—Não sabe? —ele a olhou.

Ela negou com a cabeça.

O rei se inclinou sobre a mesa e tomou uma mão. Dando-lhe a volta, beijou-lhe a palma.

Um calafrio percorreu o corpo de Jasmine como se se tratasse de uma corrente elétrica impulsionada pela carícia dos sedutores lábios sobre sua pele.

—Porque é minha esposa — ele a olhou com seus infinitos olhos azuis, que brilhavam como o mar sob o sol.

O silêncio encheu a estadia, quebrado unicamente pelo estalo dos fogos.

—Não, não o sou! —ela apartou bruscamente a mão.

—Pronunciou as palavras —disse ele com calma—. E eu também.

—Aquilo não era legal. Não houve testemunhas.

—Não importa, não segundo as leis do Qais.

—Jamais se sustentaria ante os tribunais do Qusay.

—Estamos casados.

Através das grandes janelas com forma de arco se distinguiam os fogos que iluminavam o escuro céu.

—O abandono poderia considerar-se motivo de divorcio… — ela sacudiu a cabeça enquanto se esforçava por centrar seus pensamentos.

—Seu abandono? —perguntou ele com calma—, ou o meu?

—Vi-me obrigada a abandonar Qusay! —ela respirou agitadamente—. Não foi por minha vontade!

—Tampouco me faltavam motivos para te abandonar — Kareef a olhou.

—Logo que éramos uns pirralhos —os olhos de Jasmine refulgiam—. Não sabíamos o que fazíamos.

As explosões continuaram sulcando o céu da noite, troando no silêncio. Ele se inclinou para diante e lhe acariciou a bochecha.

—Eu sabia — sussurrou—. E você também.

Entre ambos surgiu uma ardente tensão.

A bochecha de Jasmine ardia ali onde ele a tinha acariciado. O olhar azul se posou em seus lábios e ela sentiu esticar todo o corpo. Seus seios subitamente começaram a lhe doer, tinha os mamilos endurecidos de puro desejo.

«Não!».

—Se acaso estivemos casados uma vez — disse ela com voz afogada—, pronuncia as palavras para desfazê-lo. O único que me importa é minha família.

—E o que passa contigo? —disse ele enquanto cavava as fortes mãos ao redor do rosto de Jasmine—. O que é o que você deseja?

O que ela desejava era que a beijasse. Desejava-o até a última gota de seu sangue e cada pulsação de seu coração.

Mas não permitiria que esse desejo doentio destruísse a vida que ao fim tinha a seu alcance, a vida familiar que tanto ansiava desfrutar. Levantou os olhos e o olhou fixamente.

—Quero um lar — sussurrou—. Uma família. Quero um marido e filhos.

Um forte estalo no céu sacudiu o palácio.

—Umar Haijar ama a seus filhos — Kareef a olhou aos olhos. O brilho azul se tornou quase negro—, a seus cavalos e a seu dinheiro… por essa ordem. Como esposa, ocupará um discreto quarto posto em sua lista de preferências.

—Também valoriza meus contatos nos Estados Unidos. Acredita que serei a esposa perfeita, a anfitriã perfeita. Com isso me basta.

—Mas a ele não.

—Que mais poderia querer de mim?

—É uma mulher formosa — disse ele com emoção—. Nenhum homem poderia resistir a ti.

—Não é verdade — ela conteve o fôlego durante uns segundos antes de desviar o olhar—. Há um homem ao que não lhe custou resistir a mim, Kareef — o olhou aos olhos—. Você.

—Acaso crê que não te desejo? —lhe sujeitou os pulsos com força sobre a mesa.

Falava em um sussurro, com uma voz que refletia perigo. Ela sentia a tensão a ponto de saltar entre eles, atravessando seu corpo, golpeando cada terminação nervosa.

O coração começou a palpitar desenfreadamente em seu peito à medida que Kareef se inclinava para ela e podia perceber seu aroma masculino, misturado com o vinho e as especiarias. O fornido e poderoso corpo estava muito perto do dele. Desejava inclinar-se sobre a mesa, perder tudo em um instante de doce loucura e aproximar sua boca a dele…

Um novo estalo de fogos rompeu o feitiço e lhe fez tomar consciência do perigosamente perto que estava de fazer algo imperdoável.

Ficou em pé, embora cambaleando contra a mesa.

—Te divorcie de mim — ofegou—. Se alguma vez te importei. Kareef, se alguma vez fui algo mais que um quente corpo na noite para ti... Te divorcie de mim. Esta noite.

O rei a olhou com a mandíbula encaixada antes de negar com a cabeça.

—É um canalha, um desalmado — as lágrimas ameaçavam transbordando-se de seus olhos e ela lutava por impedi-lo—. Durante anos soube que não tinha coração, mas jamais pensei que poderia… jamais pensei que serias capaz de te valer de…

As lágrimas conseguissem abrir-se passo e Jasmine lhe deu as costas para não lhe permitir as ver. Abriu as portas do salão com tal força que golpearam ruidosamente as paredes enquanto corria corredor abaixo.

—Jasmine! Espera!

Ela não obedeceu. Pôs-se a correr.

Os fogos seguiam estalando enquanto dobrava a esquina do corredor no que uma vez tinha chocado, literalmente, com Kareef enquanto patinava pelo chão com suas irmãs. Tinha tomado muito impulso e ele a tinha segurado pelos pulsos para impedir que caísse. Os olhos azuis lhe tinham sorrido com a doçura do primeiro sol da primavera. Desde esse primeiro instante o tinha amado.

Treze anos depois, treze anos tentando esquecer Kareef, o dia que chegava a seu fim havia devolvido as lembranças multiplicadas por dez. Uma só palavra expressa com essa profunda voz, um simples olhar de seu atrativo rosto e tinha ficado apanhada como o peixe na rede do pescador.

Sem deixar de correr pelo corredor, abriu a primeira porta à esquerda e baixou as escadas de madeira até o pátio. Protegida pela escuridão aspirou rápidas e profundas baforadas do quente ar do deserto. Ficou de pé sob as altas palmeiras do jardim, junto à água que brilhava sob a luz da lua, e se abraçou a seu vestido de verão de fino algodão. Não podia permitir o luxo de chorar. Não podia permitir o luxo de desmoronar-se.

Porque se voltava a cair, tinha a sensação de que não apareceria nenhum príncipe para sujeitá-la.

 

Kareef ficou emocionado pela estupefação após a saída de Jasmine. Essa mulher pensava que não a desejava? Acaso não era consciente do poder que exercia sobre ele?

Ao ouvir golpear as portas do salão a suas costas, ficou de pé de um salto. Respirou fundo e correu atrás dela. Viu-a desaparecer depois de uma porta de madeira do corredor. Era a porta que conduzia ao jardim real, proibido para todos salvo para os membros da família do rei. Seguiu-a ao exterior.

Deteve-se aos pés da escada e voltou o rosto para o céu da noite. Ao longe ouviu o ulular de um mocho. Sentiu o quente vento do deserto contra seu rosto e lhe cavando a camisa branca.

Ia a caça. Já não se sentia um rei, constrangido pelos rígidos limites do dever e das aparências. De repente se sentia um animal selvagem. Pela primeira vez desde sua volta ao palácio do Shafar, sentia-se ele mesmo de novo.

Não. Em realidade fazia muito mais tempo que não se sentia ele mesmo. Muito mais…

Onde se tinha metido Jasmine? Olhou a esquerda e direita entre as escuras sombras das árvores e os titilantes lagos de água, como se fosse um falcão em busca de sua presa. Tinha desaparecido na noite? Acaso só existia em seus sonhos?

A luz da lua banhava com seu brilho prateado as palmeiras. Ouvia-se o vento entre as folhas e o borbulhar da água na fonte. Ao longe, o Mediterrâneo golpeava sob os escarpados.

Os fogos se intensificaram. As explosões formavam espirais como pálidas flores de fumaça. Era o obséquio da cidade de Shafar para celebrar sua iminente coroação. Sabia que deveria estar ali, agradecendo ao conselho da cidade pelo espetáculo em lugar de perseguir um fantasma do passado, a essa mulher que se entregou alegremente a outro homem.

Embora ainda não. Ainda era dele. Ainda lhe pertencia.

De repente viu um brilho branco. O miúdo corpo feminino cruzava o jardim entre as sombras. A lua chapeada se enredava em seus cabelos cor ônix e fazia que o vestido curto e ajustado brilhasse na escuridão. Era uma criatura feita para a sedução, uma fada que iluminava a noite como iluminava a fantasia de qualquer homem.

Jasmine. Quanto tempo sentira saudades? Quanto tempo se havia sentido sedento como um homem que atravessasse o deserto?

Ficou quieto, observando-a sob a luz da lua. Temia respirar por medo de que o sonho desaparecesse.

Com expressão endurecida, avançou.

Tinha passado muitos anos de fome. Muitos anos de desejo inconfessado.

Tinha-lhe pedido a liberdade e ia dar. Mas ainda não.

Aquela noite ainda era dele.

Aquela noite podia possuí-la.

Ao alcançá-la viu os compridos e escuros cabelos caindo em cascata sobre os ombros nus sob a luz da lua. Esses ombros se sacudiam com silenciosos soluços.

Um ramo se quebrou sob seu peso e ele ficou imóvel.

Ela nem sequer se deu a volta, embora estivesse seguro de que o tinha ouvido pela repentina rigidez de sua postura.

—Já sei que não deveria estar aqui — a voz de Jasmine era chorosa—. Vieste para me recriminar?

—Este jardim está proibido para todos salvo para a família real — ele a agarrou pelos ombros e lhe deu a volta.

—Sei…

—E é minha esposa.

—Mas não posso sê-lo — ela o olhou sobressaltada. Seus olhos eram grandes e escuros, e as lágrimas brilhavam como infinitos lagos sob a luz da lua—. E devo me casar com…

—Sei — ele procurou seus olhos—. Te concederei o divórcio. Jasmine.

—De verdade?

—Sim — respondeu em voz baixa—. Mas ainda não.

—O que quer de mim? —sussurrou ela.

As mãos de Kareef aferraram seus ombros com mais força. O que queria dela?

O que ele queria era lhe arrancar o vestido e deitá-la sob seu corpo, sobre a úmida e fresca grama. Queria fechar os olhos e senti-la completamente. Queria sentir o batimento de seu coração e a calidez de sua pele.

Queria beijá-la até deixá-la sem sentido, lamber e chupar cada centímetro de seu corpo nu, do fino e delicado pescoço até os redondos seios. Da fina cintura até a ampla curva de seus quadris.

Queria introduzir a língua em cada um de seus espaços, saborear e mordiscar cada uma de suas deliciosas curvas. Saborear a picante doçura de sua pele até não poder suportá-lo por mais tempo, enquanto mergulhava com tanta força e tão profundamente dentro dela que jamais voltaria a sair.

Uma parte dele, a parte civilizada, sabia que aquilo estava mau. Jasmine era a noiva de outro homem. E estava sob seu amparo.

Mas quando a tinha em seus braços, deixava de ser um homem civilizado.

—A ti — respondeu com voz rouca—. Quero a ti.

—Não! — exclamou ela enquanto os olhos marrons refletiam o medo que sentia—. Não podemos!

Kareef aspirou o feminino aroma de especiarias, laranja e algo mais, algo exclusivamente dela, a embriagadora e feminina calidez de sua pele. Cheirou o fragrante jasmim, e nem sequer se incomodou em responder. Simplesmente inclinou a cabeça para beijá-la.

Jasmine deu um salto e voltou o rosto para as árvores.

—Me olhe, Jasmine —ele pôs uma mão sobre a bochecha da jovem.

Ela se negou obstinadamente.

—Me olhe! —Kareef enredou os dedos entre seus sedosos cabelos e a obrigou a elevar o queixo para olhá-lo—. É minha esposa. Não pode negar o que ambos desejamos.

Ela respirou fundo e fechou os olhos. A luz da lua iluminou as lágrimas que rodavam por sua pálida pele.

—Não — sussurrou tremendo em seus braços—. Não posso negar isso que diz.

Kareef sentiu sua rendição. E se regozijou nela. As calosas mãos acariciaram seu braço nu. Sentia a pele suave sob seus dedos. Acariciar seu rosto enquanto aspirava seu delicioso aroma lhe provocou um chiado, como o fogo, que se estendia por suas veias. E a sentiu tremer ante seu contato.

Kareef era senhor e dono dessa terra, mas sempre tinha havido algo que escapava a seu controle. Algo que sempre tinha sido mais forte que sua própria força.

Seu desejo por ela.

Ela fazia que lhe fervesse o sangue. Treze anos de desejos insatisfeitos haviam o tornado meio louco.

E por fim ela estava em seus braços.

Contemplou o formoso rosto de Jasmine e sentiu as sacudidas da excitação. Abraçou-a forte e sujeitou seu queixo no espaço da mão. Agachou a cabeça e beijou ligeiramente as pálpebras fechadas.

Depois, com um desejo que mal era capaz de controlar, aproximou lentamente sua boca a dela. Fez uma pausa a escassos centímetros de seu rosto e, por fim, beijou-a sem piedade, abrasando os femininos lábios com os seus.

Jasmine respirava entrecortadamente.

O escuro e ardente prazer de achar-se entre os braços de Kareef ia além das fantasias de suas intermináveis e solitárias noites. À medida que ele esmagava sua boca contra a dela, sentiu-se arrastada pelas quebras de onda de seu desejo. Embora soubesse que estava mau, afogava-se de desejo.

Kareef. Seu marido. Não podia resistir a ele, não podia negá-lo. E se afundou em corpo e alma na exaustiva paixão de seu selvagem abraço.

Os lábios do rei saquearam sua boca com força e habilidade. Enquanto a masculina língua se entrelaçava com a dela, deixou-se cair em seus braços, tremendo de explosiva necessidade. Sentia desfalecer os joelhos, mas o resto de seu corpo estava tenso e duro. Os mamilos se endureceram violentamente e sentia os seios pesados e doloridos. Suas terminações nervosas chispavam e sentia um nó no estômago.

O desejo a deixou necessitada e sem fôlego. Possuía-a como não o tinha feito nenhum homem.

De repente o beijo mudou. A pressão de seus lábios se suavizou e ela já não se limitou a submeter-se a sua força. Estava-lhe devolvendo o beijo. A sensual e masculina boca se movia contra a sua em uma lânguida dança e, sob o vestido, todo seu corpo se inflamou ao sentir o de Kareef apertar-se contra o seu. Sentia-se frágil contra o sólido peito, e os fortes músculos das coxas do rei pressionavam os seus. Sujeitava-a tão forte que já não sabia onde terminava seu corpo e começava o dele. De repente ficou consciente de que lhe tinha rodeado o pescoço com os braços.

Um grito afogado surgiu de seu interior,num intento por respirar. Jogou a cabeça para trás e Kareef depositou pequenos e intensos beijos ao longo de seu pescoço, que enviavam descargas por todo seu corpo. Acariciava-a enquanto lhe sussurrava palavras ternas no antigo dialeto do Qais, antes de mordiscar os lóbulos de suas orelhas. As fortes mãos se deslizaram pelos braços nus e se cavaram sobre os seios, que se esticavam sob o tecido do vestido.

Quanto tempo que o desejava? Quanto tempo que repetia a si mesma que jamais voltaria a sentir-se igual, que aos vinte e nove anos era muito velha, que estava acabada, muito intumescida para sentir tais prazeres? Durante quanto tempo se havia dito a si mesma que deveria conformar-se sendo útil, ganhando dinheiro, tentando ser uma boa filha, uma boa irmã, uma boa esposa?

Com as mãos enredadas em seus cabelos, Kareef sussurrou velhas palavras de paixão e ternura contra sua pele. A seu redor, foi vagamente consciente da luz da lua que atravessava as escuras e ondulantes silhuetas das palmeiras, das estrelas dispersas na noite violeta. Estavam estreitamente entrelaçados.

Kareef. O único que lhe tinha feito sentir uma emoção tão explosiva. O único que lhe tinha feito sentir a magia da noite e a infinitude da vida, tanta como estrelas havia no céu.

Abriu os olhos e o olhou fixamente. Viu pequenas rugas ao redor de seus olhos azuis e notou que os ombros eram muito mais largos e musculosos. Converteu-se em um homem, um guerreiro, de enorme força e poder.

Mas seu sorriso não tinha trocado. Sua voz não tinha trocado.

Seus beijos não tinham trocado.

O corpo de Jasmine se acendeu ao perceber o rosto de Kareef inclinando-se para ela. Parecia existir um magnetismo entre os dois, que os atraía e que ao mesmo tempo os obrigava a separar-se.

Suas vidas tinham trocado em muitos aspectos, mas com esse abraço o tempo pareceu deter-se. Estavam apaixonados. Desejavam-se e tinham plena fé no futuro.

E essa era a sensação mais perigosa de todas.

Estremeceu-se e, com todas suas forças, separou-o de seu lado.

—Não posso — respirava entrecortadamente enquanto sobre suas cabeças se ouvia o sussurro do vento entre as folhas de palmeira e os gritos de lamento das aves noturnas—. O sinto.

—Sente-o? —a voz de Kareef soou apenas um pouco mais forte que um grunhido na escuridão—. A culpa é minha. Desejava-te — lhe acariciou a bochecha e sussurrou—, desejo-te agora.

O tom de sua voz, profunda e cortante, teve um efeito sísmico no corpo de Jasmine, arrancando-a como se arrancavam as esmeraldas nas minas do Qusay. As brilhantes facetas de sua alma se romperam sob a carícia.

Ela fechou os olhos e sentiu os ásperos dedos contra a bochecha. Sentiu o polegar deslizar-se brandamente sobre seu lábio inferior. Entreabriu a boca. O corpo lhe doía dos mamilos até o umbigo, e mais abaixo.

—Converter-te-ei em uma esposa, Jasmine —sussurrou ele sem deixar de lhe acariciar a bochecha—. Converter-te-ei em mãe.

Jasmine abriu os olhos desmesuradamente. Ele a olhava com paixão, com um rosto tão atrativo que lhe roubou o fôlego. Sendo adolescentes tinham celebrado numerosos encontros clandestinos nesse mesmo jardim. Fazia muito tempo. Em outra vida. Naquele lugar, a calidez da noite e os aromas especiais que se mesclavam com o salitre do mar faziam que tudo parecesse possível.

—O que quer dizer? —perguntou ela espantada, procurando algo em seu olhar.

—Se Umar Haijar for o homem com o que quer se casar — disse ele—, não lhe impedirei isso. Eu mesmo te entregarei no altar.

—Fá-lo-ia? —ela sentiu uma pontada de dor que subia em sua garganta.

—Mas ainda não — os sensuais lábios desenharam um sorriso enquanto os olhos refletiam um profundo desejo.

Jasmine se estremeceu.

—Devo ir — disse enquanto tentava soltar-se e ao longe ouvia um servente chamar o rei.

O celular de Kareef começou a soar. Nem sequer nesse lugar estavam completamente a sós. Mas ele fez caso omisso de sua chamada e a segurou com mais força.

—Vem comigo onde ninguém possa nos encontrar. Vem comigo ao deserto.

—Não tenho por que ir a nenhum lugar contigo — ela sacudiu a cabeça desesperadamente.

Ele a atraiu contra seu peito e a olhou. O rosto do rei estava a escassos centímetros do dele e, de repente, não podia respirar.

—Está segura? —sussurrou ele—, não tem nem um só motivo para querer estar a sós comigo?

—Se — ela mal era consciente de suas próprias palavras—. Não.

—Suponho que não terá medo… — ele se tornou para trás.

—Eu não te tenho medo — em realidade se sentia bem aterrorizada, mas jamais o diria—. Nunca tive medo de ti.

—Então não há nenhuma razão para negar-se. Vamos amanhã.

—Por que quer me levar ao deserto? —ela com muita dificuldade podia concentrar-se enquanto ele a tocasse.

—Está sob meu… amparo — ele sorriu lentamente—. Considero-te meu dever.

Ela olhou fixamente o sensual sorriso. Como podia ser tão cruel? Acaso não se dava conta de até que ponto a atormentava o desejo?

Mas claro, como ia dar-se conta de algo assim? Sua cama certamente estaria ocupada por uma mulher diferente a cada noite.

—Não — disse ela afogadamente enquanto o olhava com olhos suplicantes e ele não deixava de lhe acariciar a bochecha—. Não irei.

—Não posso te conceder o divórcio a não ser que vamos ao deserto — insistiu ele com calma—. A jóia se encontra ali.

Ela piscou. A esmeralda; é obvio, necessitavam-na para o divórcio.

E pensar que se imaginou que desejava levá-la ao deserto para seduzi-la de algum modo! Ridículo. Inclusive embora Kareef a desejasse, não se incomodaria em fazer uma comprida viagem pelo deserto só para seduzir à mulher que tinha abandonado anos atrás. Não quando a metade das mulheres da cidade suplicariam ao rei que saboreasse seus encantos.

Devia ter ficado louca ao pensar que era especial para esse homem. Mesmo assim, a idéia de estar sozinha com ele a assustava.

—Tem muitos compromissos aqui antes da coroação — disse ela—. Pode enviar a alguém a procurá-la.

—Há coisas que um homem prefere fazer por si mesmo — respondeu ele—. Embora esse homem seja o rei — arqueou uma sobrancelha—. E te levo comigo.

—De… acordo — ela se umedeceu os lábios.

Jasmine não podia permitir que ficasse nada pendente que pudesse pôr em dúvida a legitimidade de seu matrimônio com Umar. O que outra coisa podia fazer?

Uma risada ligeiramente histérica escapou de seus lábios. Imaginou a cara que poria seu pai se descobrisse que estava casada com o rei.

—Por que sorri assim? —perguntou Kareef.

—Estava imaginando a cara de meu pai se lhe dissesse que estou casada há treze anos. Crê que lhe pareceria bastante respeitável?

—E Haijar encontraria o modo de incorporar o brasão da família real do Qusay a sua bandeira — Kareef soltou uma gargalhada—, ou ao menos a seus cartões de visita.

Durante uns segundos, ambos sorriram.

—Salvo que ninguém pode saber que uma vez fui sua esposa — o sorriso de Jasmine se evaporou.

—Por que? —o olhar do rei se obscureceu.

—Não deve haver o menor escândalo associado ao nome do rei. Não depois da pena provocada pela morte de seu tio e a comoção pela abdicação de seu primo — ela sacudiu a cabeça—. O povo do Qusay já suportou bastante nas últimas semanas — respirou fundo e o olhou aos olhos—. E deve pensar em sua noiva.

—Minha noiva? —ele franziu o cenho—. Que noiva?

—A noiva que logo terá, segundo seu dever como rei.

Kareef a contemplou com a mandíbula encaixada.

—Uma princesa real — acrescentou Jasmine—. Com uma reputação irrepreensível.

Ele desviou o olhar.

—Uma formosa virgem que te dê filhos — continuou ela afundando-se em sua própria miséria—. Que seja sua rainha e a mãe dos herdeiros. Casar-te-á com ela, terão uns roliços bebês de olhos azuis e todo o reino se regozijará.

—Sim, Jasmine — ele voltou a olhá-la. Seus olhos azuis brilhavam sob a luz da lua—. É isso o que quer ouvir? A linhagem dos Al’Ramiz se remonta há mil anos. Devo ter herdeiros de minha própria linhagem. E os terei. Satisfaz-te minha resposta?

—Sim — respondeu ela afogadamente enquanto o coração pulsava com força em sua garganta. Isso era exatamente o que queria ouvir.

Exatamente o que necessitava: o golpe final que esmagasse qualquer brilho de esperança. A breve ilusão de ser jovem de novo, de voltar a um tempo em que estiveram apaixonados, tinha terminado.

Kareef já não era dela. Casado ou não, jamais tinha sido realmente dela.

Uma repentina brisa atravessou o pátio e alvoroçou os cabelos de Jasmine contra seu rosto. Ao longe se ouvia a chamada dos mochos entre as sombras noturnas. O aroma e a calidez da noite formavam redemoinhos ao redor de seu corpo. A lembrança da carícia ainda queimava em sua bochecha.

Os serventes voltaram a chamar o rei. As vozes soavam mais perto. Em qualquer momento os encontrariam.

—Entretanto, o dia de minhas bodas fica ainda longe — Kareef suspirou e avançou enquanto lhe recolhia os cabelos delicadamente detrás da orelha—. Aproveitaremos o tempo de que dispomos. Amanhã te levarei a deserto.

—E ali te divorciarás de mim? —ela estremeceu ante o contato de sua mão.

—Boa noite — ele sorriu e seus olhos refletiram tal desejo que Jasmine estremeceu—. Até manhã — inclinou a cabeça e lhe beijou a bochecha.

—Sim — sussurrou ela, apartando-se dele no instante em que os serventes os alcançaram e proclamaram com grande excitação que tinham encontrado a seu irmão, Tahir.

Jasmine correu de volta a seu diminuto quarto na ala dos serventes. Porém inclusive enquanto se deitava sobre a pequena cama, sentia Kareef a suas costas. Sentia seus lábios sobre os dela.

Sabia bem o que lhe aguardaria no dia seguinte. Sabia pelo desejo que tinha visto refletido em seus olhos. Tinha a intenção de fazê-la sua no deserto. De levá-la a sua cama.

Não! Não o permitiria. Não podia render-se.

 

Kareef chegou ao aeroporto internacional do Qusay quando o sol já estava alto no céu.

Tinha dedicado toda a manhã a reuniões com seus conselheiros e subsecretários, assinando documentos e discutido acordos futuros. Mas em nenhum momento tinha desaparecido o sorriso de seu rosto. Não podia deixar de antecipar-se ao prazer que estava por chegar.

Aquela noite, por fim, Jasmine dormiria em sua cama.

Beijá-la a noite anterior tinha sido uma experiência incrível. Se seus serventes não o tivessem encontrado no jardim, algo que não podia lhes reprovar, já que lhes tinha dado ordens de que o avisassem se conseguissem localizar por telefone a seu irmão caçula, Tahir, ele teria tomado Jasmine nos braços e a teria levado diretamente ao dormitório real.

Entretanto, a interrupção tinha sido para bem. No Qais desfrutariam de intimidade. E, além disso, se havia algo que desejava quase tanto como ter Jasmine em sua cama era a liberdade do deserto.

Ela tinha razão. Seus caminhos eram divergentes. E lhe permitiria seguir o que ela tinha escolhido: conceder-lhe-ia o divórcio.

Embora ainda não.

No momento, só queria uma coisa. Só tinha uma necessidade: satisfazer o desejo que havia sentido, e que o tinha consumido durante treze anos.

Satisfazer o desejo que sentia por ela.

Estaria ainda dormindo naquela diminuta cama no palácio? Estaria nua? Estaria sonhando? Fechou os olhos e imaginou os cabelos revoltos e o delicado corpo, quente sob os lençóis. Soltou um grunhido. Cada momento separado dela era tempo desperdiçado.

Ao menos, por fim se dirigia a uma reunião há muito tempo desejada. Ao lhe abrir o chofer a porta da limusine chapeada Kareef saltou dela com suas roupas cerimoniais ondeando ao vento enquanto olhava a seu redor.

A suas costas estava estacionada a segunda limusine de sua frota, mais à esquerda quatro motociclistas uniformizados e seu próprio Bentley com as bandeiras que levavam a insígnia do Qusay. Justo em frente viu o avião de seu irmão, recém-chegado da Austrália.

Seu ânimo melhorou ainda mais.

Era o dia perfeito. Jasmine logo estaria em sua cama. Rafiq acabava de retornar ao Qusay e inclusive Tahir, que tinha vivido durante anos em um auto-imposto exilo, estava de caminho. Kareef sentiu que seu coração repentinamente resplandecia como o sol do Qusay contra sua branca túnica.

Rafiq apareceu na porta do avião. Tinha trinta anos e umas incipientes rugas ao redor dos olhos entreabertos, e também tinha um desumano rictus na mandíbula. Durante anos tinha construído um império multinacional e isso o tinha trocado tanto como os anos no deserto tinham feito trocar a seu irmão, o rei.

—Rafiq! —Kareef sorriu ao ver seu irmão descer, espetacular em seu traje cinza Armani, a escada do avião.

—Me alegro de verte, irmão mais velho — o saudou Rafiq enquanto tomava ao rei do braço e o atraía para si para lhe aplaudir as costas—, Ou deveria te chamar «Senhor»?

Kareef bufou e sacudiu a mão no ar. Empurrou a seu irmão para o fresco interior da limusine que os aguardava e o chofer fechou a porta atrás deles. A comitiva arrancou para abandonar o aeroporto flanqueada pelas motos com as sirenes acesas.

—Alegra-me que tenha podido vir com tão pouco tempo.

—Pensava que ia perder sua coroação?

—Quase perdeu as bodas do Xavian. Quanto tempo ficou? Três, quatro horas como muito?

—É certo — admitiu Rafiq—. E resultou que Xavian não era nem sequer nosso primo. Mas por nada no mundo perderia sua coroação. Se houver algo do que estou seguro, Kareef é de que você é meu irmão — intercambiaram um sorriso idêntico e se olharam com uns olhos de idêntica tonalidade de azul—. Falando de irmãos, onde está Tahir? Vai honramos nosso extraviado irmão com sua presença esta vez?

—Falei com ele…

Kareef franziu o cenho. Pelo amor de Deus, tinha falado com ele a noite anterior após deixar Jasmine no jardim, mas parecia que tinha passado muito mais tempo. Tinha passado a noite inteira sonhando com ela, e a manhã debatendo com Akmal, o visir, furioso com seus planos de partir ao deserto. Sorriu abertamente.

—Falei com ele ontem.

—Não posso acreditar isso!

—Pois é certo. Embora não resultou fácil encontrá-lo em Monte Carlo, virá à coroação.

—Os três juntos de novo? —disse seu irmão surpreso.

—Passou muito tempo — reconheceu Kareef.

—Isso foi tudo um sorriso — Rafiq escrutinou a seu irmão.

—Pois claro que sorrio — o rei piscou—. Você está aqui e Tahir, em caminho.

—O sorriso se estendeu a todo o rosto — seu irmão entreabriu os olhos—. Fazia anos que não te via sorrir assim. Importar-te-ia me explicar isso.

— Saberá tudo muito em breve — Kareef temia delatar-se. Rafiq sempre tinha sido o mais perspicaz e desumano dos irmãos. Para trocar de tema, inclinou-se para frente e lhe deu uma palmada na coxa—. Mas agora está aqui, mas como meu irmão, é bom. Ouvi que seus negócios vão cada vez melhor. Conte-me mais.

Atravessar a cidade resultou muito simples já que o tráfego se paralisava para dar passo à comitiva real. Kareef tentou prestar atenção aos detalhes sobre o novo império que Rafiq acabava de inaugurar em Auckland e Perth, mas sua mente não deixava de pensar na mulher que o aguardava no palácio. E na noite que os aguardava no deserto.

Jasmine resistiria. Sabia bem. E também sabia que terminaria por render-se. Estaria em sua cama aquela mesma noite. Ao dia seguinte. E o dia depois, se até a desejasse para então. Far-lhe-ia o amor até que ambos estivessem completamente saciados.

E então, e só então, diria as palavras que os separariam para sempre e a deixaria partir para seu novo matrimônio.

O sorriso se voltou mais inseguro. A comitiva atravessou a entrada do palácio e se deteve sob um pórtico. Um servente com turbante lhe abriu a porta. Ao subir as escadas, o futuro rei olhou a seu irmão que ficou atrás. Rafiq contemplava deslumbrado as torres que apontavam para o céu, brilhantes como pérolas sob o sol do meio-dia.

—Devo te deixar, irmão — disse Kareef—. De modo que se me desculpar…

—Vai apostar na taça Qais? —Rafiq arqueou as sobrancelhas com gesto de suspeita.

—Faz anos que não aposto em um cavalo — Kareef soltou uma gargalhada.

—Então tem a ver com a coroação — supôs seu irmão—. Todo esse poder em bruto… Quase te invejo, irmão — acrescentou enquanto lhe piscava um olho.

—Não — certamente, não tinha nada que ver com isso—. Desculpe-me.

—Então do que se trata? —perguntou Rafiq—. Por que parece tão condenadamente feliz?

O rei não respondeu. Correu para o claustro de pedra, os antigos arcos bizantinos que rodeavam o pátio. Os serventes paravam para fazer reverências a seu passo onde o sol brilhava, ardente e deslumbrante. Uma cálida brisa soprava através das palmeiras, carregada do aroma a especiarias e laranja.

Seu aroma.

Contemplou o céu azul e ouviu o canto dos pássaros proveniente do jardim. Passava de meio-dia e ainda não tinha comido. Entretanto, só sentia fome de uma coisa.

Encontrou Jasmine esperando-o no pequeno dormitório da ala dos serventes, sentada na cama lendo um livro com encadernação de bolso. A mala estava a seus pés. Ao abrir a porta, levantou a vista com expressão pálida e severa.

—Por fim. Já estou pronta — ele contemplou pela primeira vez a diminuta e desmantelada habitação—. Peço-te desculpas por isso, mas era a única habitação livre no palácio.

—Não passa nada — se apressou a dizer ela enquanto guardava o livro na mala—. Para mim foi suficiente — ficou em pé—. Vamos?

Os grandes olhos marrons o olharam. Levava um vestido curto e moderno de seda, cor rosa. Seus escuros cabelos estavam recolhidos em um coque e presos por um chapéu de feltro. Tinha um ar retrô, moderno e com um estilo próprio.

Parecia que ainda tinha dezesseis anos. Tinha a mesma pele, pálida com um tom oliváceo. As mesmas espessas pestanas negras que varriam a parte alta das maçãs do rosto. Os mesmos lábios, carnudos e sensuais que, desprovidos de maquiagem, possuíam a cor das rosas.

Desejava beijar esses lábios.

Já sentia a ereção.

Era lógico. Tinha praticado o celibato durante… nem sequer se atrevia a recordá-lo. Desculpou-se com a idéia de que estava muito ocupado para as mulheres, ou simplesmente desinteressado ante a sucessão de caça fortunas que se jogavam em seus braços diariamente, apesar de que até fazia pouco não tinha sido mais que um membro principal da realeza.

Entretanto, a verdade se fez evidente. Seu corpo só tinha desejado a uma mulher. A mulher que tinha diante nesse momento.

Mal podia esperar para saciar-se dela. Ainda teria uma viagem de várias horas até o deserto. Seus olhos se posaram na diminuta cama. Não estava seguro de poder esperar tanto tempo.

Entretanto, enquanto calculava o tamanho da cama, ela já tinha saído do dormitório arrastando a pequena mala. Kareef a alcançou e lhe tirou a mala das mãos.

—Obrigada — disse ela secamente.

—Virtualmente não pesa nada — o qual era certo, já que a levava comodamente com uma mão—. Por que leva tão pouca bagagem?

—Será… — ela sorriu timidamente—. Para evitar pagar taxas de bagagem no aeroporto?

—Haijar dispõe de seu próprio avião — o rei soltou uma gargalhada—. De menina sempre você gostou da moda. Seu estilo era diferente ao do resto — sorriu—. Mudaram tanto as coisas para ti? Tão ocupada está agora que dirige uma empresa multimilionária em Nova Iorque que já não tem tempo de pensar em roupa?

—Bom — ela desviou o olhar inquieto—. Umar já escolheu a roupa que crê apropriada para mim. Chegará de Paris em uns dias. De modo que não vejo, quero dizer que não vi, muito sentido trazer minha própria roupa de Nova Iorque, sobretudo dado que só ficaremos no Qusay até as bodas.

—Entendo — Kareef se sentiu repentinamente irritado ante a idéia de que alguém dissesse a Jasmine que roupa devia usar. Tentou fazer caso omisso de seus pensamentos. Se a Jasmine não importava, por que ia importar a ele? Sua relação com Umar não era assunto dele. Em realidade, estava decidido a que ambos esquecessem sua existência durante uns poucos dias.

Fora do palácio, um guarda-costas tomou a pequena maleta de mãos do rei e a levou ao pé da escada onde outro servente a depositou no SUV que liderava a comitiva.

—Vejo que não viajaremos sozinhos — Jasmine contemplou com evidente alívio o SUV e a limusine estacionada detrás, e aos numerosos guarda-costas e serventes que trabalhavam em excesso ao redor.

—Não te emocione. Eu viajo como rei do Qusay — ele sorriu travessamente—. Mas no deserto será diferente. Como bem disse no deserto não serei mais que um homem. Como qualquer outro…

Kareef deixou que suas palavras flutuassem sugestivamente no ar e viu como ela tiritava sob o ardente sol. O chofer abriu a porta e a jovem teve muito cuidado de não roçar no rei enquanto passava ante ele para sentar-se na parte traseira do Rolls Royce.

Kareef se sentou a seu lado e se reclinou no assento olhando-a pela extremidade do olho enquanto saíam do palácio. Ela permanecia o mais longe dele possível. Quase lhe divertia. De verdade pensava que poderia escapar sem ocupar sua cama?

Bom, que seguisse sonhando. Não havia nada que gostasse mais que um desafio.

E ela não tinha nada pelo que sentir-se culpada. Não nesse caso. Nem em nenhum outro…

As lembranças ameaçavam fervorosamente em um espaço de sua mente obscurecendo seu sol. Obrigou-se a estacionar esses pensamentos. Não ia refletir sobre o que tinham perdido no passado, o que a tinha feito perder. Nesse momento só estava disposto a pensar em uma coisa: o prazer.

A caravana saiu rapidamente da cidade e se dirigiu ao nordeste pela costa. Mas com Jasmine sentada junto a janela oposta, pondo todo seu empenho em não tocá-lo, cada quilômetro parecia durar uma eternidade.

«Deveria ter escutado ao Akmal Al'Sayr», pensou com amargura. O visir tinha tentado lhe convencer para que utilizasse algum dos aviões ou helicópteros reais, dedicados ao traslado ao Qusay dos dignitários internacionais com motivo da coroação, em lugar de viajar de carro. De repente, mimar a uns diplomáticos pareceu menos prioritário que levar Jasmine a sua cama e desejou ter aceito o conselho.

O rei a olhou de esguelha. A jovem resistia a olhar em sua direção e tinha a vista fixa na janela fumê. A suas costas se via o brilhante mar azul turquesa além da moderna auto-estrada.

Nenhum se movia, mas a tensão era evidente.

Desejava-a. Desejaria tomá-la ali mesmo, no assento traseiro da limusine. Mas, acaso era essa a íntima e discreta aventura que procurava? Arrojá-la sobre o assento traseiro de um Rolls Royce? Os guarda-costas sem dúvida adivinhariam o que estava passando depois dos vidros fumês.

Soltou um juramento em voz baixa. Teria que esperar.

Entretanto, ao aproximar-se de uma bifurcação na estrada, inclinou-se repentinamente para diante.

—Gira aqui—ordenou.

—Senhor? —o chofer o olhou surpreso.

—Toma a velha estrada do deserto — ordenou em um tom de voz que não admitia discussão alguma. O guarda-costas comunicou por rádio a mudança de planos ao SUV que encabeçava a comitiva e o chofer do rei saiu da moderna auto-estrada pela saída que conduzia para o norte, através de caminhos de areia e rochas, para o deserto do Qais.

Kareef se reclinou no assento. Teria que ter paciência, mas isso não significava cruzar-se de braços. Chegariam antes pelo caminho mais direto.

A auto-estrada do Qusay bordejava a ilha, uma nova rota para transladar-se ao norte, ao Qais, em meio de uma árida paisagem de deserto, areias e estéreis montanhas. Dois anos antes, sendo príncipe do Qais, tinha terminado a construção da auto-estrada graças à riqueza proporcionada pelo desenvolvimento da zona, incluindo o incipiente esporte das corridas de cavalos. Qais se tinha convertido, depois do Dubai, na segunda cidade de importância no circuito das corridas de cavalos.

Era uma ironia que depois de haver se retirado desse esporte, que tinha amado mais que nada no mundo, tivesse-o convencionado em um lucrativo negócio para outros.

Embora isso não era de todo certo. Houve um tempo em que amou algo inclusive mais que as corridas de cavalos.

Olhou Jasmine. Seu formoso rosto tinha um aspecto cansado. Sob seus olhos se desenhavam uns escuros círculos e tinha as bochechas fundas.

Ao inferno, contudo.

Por que se empenhava em resistir ao que ambos desejavam?

O rei voltou a vista a janela. Sob o ardente sol, as dunas cuspiam areia sobre a estrada varrida pelo vento. Era uma estrada muito velha, da época de seu avô. Durante as tormentas de areia, chegava a desaparecer por completo.

Desaparecer. O mesmo que ele tinha tentado treze anos atrás.

Tinha preterido morrer antes que enfrentar à acusação refletida nesses formosos olhos. Tinha fugido ao deserto, rezando para ficar enterrado em uma tumba de areia.

Entretanto, Umar o tinha encontrado e levado a sua casa. Incapaz de morrer arrojou-se a uma vida de sacrifícios e deveres. Os povos nômades do deserto tinham ido a ele em busca de um líder e tinham convertido o honorífico título familiar de «príncipe do Qais» em um real.

Contra sua vontade se viu brutalmente sentenciado a… viver.

Esfregou a nuca carregada de tensão enquanto olhava Jasmine de rabo-de-olho. Jamais poderia reparar o dano que lhe tinha causado.

Mas não deveria ao menos tentá-lo?

Desejava-a, entretanto, significava isso que tinha direito a fazê-la sua? Não deveria tentar mostrar-se altruísta e deixá-la partir?

«Há um homem ao que não lhe custou resistir para mim. Kareef. Você».

Kareef reprimiu uma amarga gargalhada. Ele, que possuía um controle perfeito com as mulheres, perdia-o por completo com ela. Simplesmente pelo fato de estar sentado a seu lado sentia espetadas ardentes por todo o corpo.

Qualquer homem se sentiria atraído por Jasmine. Embora estivesse cego, embora ela estivesse envolta em véus dos pés a cabeça. Qualquer homem procuraria seu calor, seu aroma, uma sensual mescla de cítricos e cravo. Seu sedutor corpo, com essa diminuta cintura entre os deliciosos seios e a ampla curva de seus quadris. Tinha os quadris perfeitos para as mãos de um homem e uma dilaceradora doçura no olhar, na alma.

Não, melhor não pensaria em sua alma. Pensaria unicamente em seu corpo.

—Não vamos parar verdade? —sussurrou ela de repente com voz atormentada—. Não vamos parar pelo caminho?

—Quer que paremos? —ele se voltou para contemplar os formosos e reluzentes olhos marrons.

—Quero atravessar as montanhas o mais depressa possível — ela negou com a cabeça.

—Tem medo?

—Sim —sussurrou ela sem incomodar-se em ocultar —. Sabe bem o que me dá medo. Vejo-o em meus pesadelos. Você não?

Kareef sentiu um nó na garganta e assentiu inseguro.

A velha estrada do deserto passava justo ao lado da escola de equitação, com as vermelhas montanhas a suas costas. As ravinas. A cova oculta. O lugar que não a tinha protegido, onde tampouco tinha protegido ao filho que nenhum dos dois sabia que levava dentro. O lugar em que Jasmine quase tinha morrido de febre porque lhe tinha feito a ridícula promessa de não contar a ninguém do acidente. Como se o amor bastasse para salvá-los.

Havia se sentido indefeso. Inútil. Tinha fracassado na prova fundamental para qualquer homem. A dor lhe fechava a garganta e convertia sua voz em um murmúrio rouco.

—Não vamos parar.

—Obrigada — ela suspirou aliviada.

Ele assentiu sem atrever-se a falar. Muitos anos atrás tinham escapado à escola de equitação, fugindo dos vigilantes olhos do palácio. Sua amiga, Sera, tinha distraído à velha acompanhante de Jasmine para que ambos pudessem desfrutar de algum tempo juntos, a sós.

Apartada da escola, rodeada de currais e estábulos, era o lugar no que Kareef se sentia mais vivo, o lugar no que gostava de criar a seu corcel negro, Razul. Adorava observar o olhar de Jasmine quando ele mostrava suas habilidades como cavaleiro.

«Cavalga comigo, Jasmine», tinha-lhe suplicado, acrescentando com um sorriso: «Não terá medo, verdade?». E um dia, ela ao fim tinha aceitado.

Ao evitar as restrições estabelecidas por seus pais e encontrar um modo de estar juntos, acreditaram-se muito preparados. Mas, ao final, o destino os tinha castigado a todos, inclusive aos estritos e bem-intencionados pais de Jasmine, cujo único crime tinha sido o de proteger a sua filha de um homem que poderia levar a destruição e a vergonha a sua alma inocente e bondosa, e a sua beleza de conto de fadas. Um homem como ele.

Contemplou o reflexo do sol sobre a areia enquanto a comitiva seguia avançando através do deserto. Algumas nuvens dispersas, como símbolos yin e yang da escuridão e da luz, sulcaram ágeis o céu azul. Se avizinhava uma tormenta?

Então sentiu a pequena e feminina mão sobre seu braço e soube que a tormenta já tinha chegado. Estava em seu interior.

—Obrigada — sussurrou Jasmine de novo enquanto os dedos se fechavam com torça sobre o braço de Kareef—. Umar é um homem amável e tenta ser bom comigo, mas não queria me enfrentar a isto pela primeira vez com ele a meu lado, viajando pelo deserto no dia de mim bodas — sacudiu a cabeça e elevou uns luminosos olhos para ele—. Ele não o entenderia, mas troca você sim.

O ligeiro contato dos finos dedos fez Kareef estremecer.

Se fosse um homem civilizado, pensou de repente, deixá-la-ia partir nesse mesmo instante. Conceder-lhe-ia o divórcio imediatamente e permitiria que partisse imaculada para o homem com o que desejava casar-se. Seu amigo. Mas a idéia de Jasmine na companhia de qualquer outro homem lhe provocava uma dor lacerante em seu interior.

Desejava-a para si mesmo.

«Desejava»? Acaso se aproximava o término tão sequer remotamente à realidade? Seu corpo morria por ela, como morria sem comida ou sem água, ou sem ar.

«Desejava»?

Desejava-a tanto que se sentia estremecer. Estar tão perto dela, apanhado no assento traseiro de um Rolls Royce, mas sem poder tocá-la, era uma desumana prova de vontade.

Respirou fundo e baixou a vista à mão que seguia obstinada em seu braço. Teve que lutar para controlar-se quando o único que desejava era tomar-la em seus braços e beijá-la.

Depois de tantos anos de levar uma vida altruísta a serviço dos outros, podia realmente permitir-se tomar o que necessitava, o que mais desejava?

Que preço teria que pagar Jasmine se o fazia?

A seu lado, ouviu-a respirar agitadamente e sentiu seu delicado corpo mover-se contra o dele. Acabava de ver a escola de equitação ao outro lado da estrada. Rodeou-a com um braço e sentiu como estremecia enquanto contemplava a escola a seu passo com o rosto desencaixado e os olhos marrons alagados de lágrimas, qual oceano de lembranças.

E nesse instante se esqueceu de suas próprias necessidades.

Esqueceu-se da paixão de seus próprios desejos.

O único importante era que tinha Jasmine em seus braços. Jasmine, que tinha medo e a que devia proteger. Sujeitou-a contra seu peito e se inclinou para o chofer para rugir uma ordem.

—Conduz mais depressa.

O homem assentiu e pisou no acelerador.

A escola de equitação se converteu em um borrão. Kareef viu o lugar no que pela primeira vez sussurraram palavras de amor. O tranquilo clarão entre árvores, atrás do curral mais afastado, ao que a tinha levado e no que sobre uma manta, junto a um arroio, tinha-lhe feito amor pela primeira vez, virgens ambos, jurando-se em sussurros e sem fôlego amor eterno.

«Eu te desposo», tinha sussurrado ela três vezes.

«Eu te desposo», tinha respondido ele uma vez enquanto sujeitava as mãos Jasmine firmemente entre as suas.

Respirou fundo.

Devia mostrar-se generoso… uma última vez. Nos velhos tempos, a vontade do rei do Qusay teria sido lei. Ninguém podia negar ao rei a mulher que desejava sem ver-se condenado à pena de morte. Nos velhos tempos, faria sua a Jasmine como um bárbaro. Teria se encerrado com ela no harém, fechado a porta com chave, e não teria saído até estar completamente satisfeito dela. A teria feito sua sobre uma cama, contra a parede, sobre os macios tapetes junto à chaminé enquanto o fogo iluminava o suor de sua sedosa pele, até fazê-la ofegar e gritar seu nome.

Mas não era um rei bárbaro. Não podia sê-lo. Não quando Jasmine tremia de medo em seus braços.

—As lembranças já não podem nos fazer dano — murmurou enquanto lhe acariciava os cabelos—. Aconteceu faz muito tempo.

—Isso já sei. Em minha mente — sussurrou ela com voz apenas audível—, mas em meu coração, aconteceu ontem.

Olharam pela janela enquanto a comitiva passava como uma exalação frente aos singelos edifícios exteriores da escola de equitação, os currais e os estábulos.

A intimidade da cercania enquanto compartilhavam as mesmas lembranças fez que aflorasse no Kareef uma emoção que não desejava sentir. Seus músculos tremeram pelo esforço de ter que limitar-se a abraçá-la, a lhe oferecer seu consolo… com treze anos de atraso.

Por fim a escola desapareceu atrás deles. A limusine seguiu veloz sobre a velha estrada cheia de buracos, através do cânion de rocha vermelha, para o Qais.

Sentiu como Jasmine relaxava em seus braços. Fechou os olhos e aspirou o perfume de seus cabelos. Ela se apoiou contra seu peito. Durante um longo silencio ficaram abraçados. Os dois sozinhos, como estavam acostumados a fazer.

De repente ouviu seu guarda-costas tossir no assento dianteiro e a seu chofer trocar de marcha. Não estavam sozinhos e se obrigou a desfazer a comprometedora postura.

—Já está bem? —ele a olhou aos olhos e sorriu com doçura.

—Enganei-me — sussurrou ela enquanto as escuras pestanas tremiam sobre os pálidos maçãs do rosto—. Agora o compreendo, estava enganada ao te odiar — disse brandamente enquanto tomava uma mão—. Obrigada por me abraçar. Não poderia haver enfrentado a isto sozinha.

Ele a olhou estupefato.

Estava o perdoando? Em troca de um instante de simpatia, o tipo de simpatia que qualquer estranho poderia oferecer a uma mulher angustiada, ela estava disposta a passar por cima o que lhe tinha feito?

—Esquece-o — Kareef desviou o olhar e encaixou a mandíbula.

—Mas você…

—Não tenho feito nada — espetou ele enquanto se soltava.

Deixá-la-ia partir, disse-se com raiva. Era a única maneira de corrigir o dano que tinha infligido. A honra e o dever eram o único que ficava. Não a seduziria, nem sequer a tocaria. Assim que chegassem a sua casa, conceder-lhe-ia o divórcio e a enviaria para longe. Ia permitir-lhe ser feliz.

Levantou o rosto para o sol com raiva.

Durante treze anos se centrou tão profundamente em seus deveres que tinha sido incapaz de pensar ou respirar. Imolou-se como um louco ermitão do deserto, enterrado até o pescoço na areia ardente. Mas estar perto de Jasmine tinha despertado seu corpo e sua alma, que ele acreditava mortos para sempre.

Entretanto, deixá-la-ia partir, por muito que a desejasse. O devia. Permitir-lhe-ia desaparecer de sua vida, e para sempre. Umar Haijar a manteria bem cuidada, como o tesouro que era.

Mostrar-se-ia generoso uma última vez, embora isso o matasse. De fato, quase esperava que fosse assim.

As sombras das montanhas de rocha vermelha apareceram frente à comitiva ao sair do cânion. Enquanto as atravessavam para a ampla esplanada do deserto do Qais, contemplou os redemoinhos de areia que formava o vento para logo lançá-los ao ar.

Kareef se sentia igual cada vez que olhava a Jasmine. Enredado nela.

Notou a cabeça de Jasmine em seu ombro. Olhou-a surpreso e comprovou que tinha os olhos fechados. Dormiu. Percorreu seu bonito rosto com o olhar.

Morria de vontade de beijá-la.

Mais que beijá-la. Queria despi-la e deleitar-se em cada centímetro da suave pele, queria explorar as montanhas de seus seios e o vale que os separava. A planície de seu estômago e a ardente cidadela entre as coxas. Queria devorá-la como um conquistador se apropria de um reino para seu próprio desfrute, sob suas mãos, sob seu controle.

Mas os velhos tempos tinham acabado.

Era o rei do Qusay e, mesmo assim, incapaz de ter o que mais desejava. Nenhuma força poderia conquistá-la, nenhuma brutalidade poderia forçá-la. Não cederia a seus desejos; não a custas da felicidade de Jasmine.

Os músculos lhe doíam pelo esforço de não tocá-la apesar de senti-la contra seu peito. Apertou a mandíbula e voltou o rosto para a janela. Ao longe podia ver sua casa. Ao cabo de poucos minutos tudo teria terminado. Entraria em sua casa, encontraria a esmeralda e diria as palavras requeridas para liberá-la. E depois desse dia, assegurar-se-ia de não voltar a ver Jasmine nunca mais…

Seus pensamentos foram interrompidos por um repentino chiado e o som do metal roçando a estrada.

Como em um sonho levantou a vista para ver como o SUV que encabeçava a comitiva golpeava com força, primeiro à direita e logo à esquerda, a parede de pedra que se estendia a ambos os lados da estrada.

Ouviu o grito de seu guarda-costas e viu os desesperados esforços de seu chofer para girar o volante. Muito tarde. Mal teve tempo de pensar antes de sentir como o Rolls Royce se chocava contra o SUV e seu corpo saía voando para diante.

Enquanto a limusine voava pelos ares girando violentamente, procurou Jasmine com o olhar. A última imagem que viu foi a de seus olhos aterrorizados. O último som, seu grito.

 

Jasmine abriu os olhos. Estava caída sobre uma manta sob a refrescante sombra de umas árvores. Não muito longe ouvia o murmúrio de um arroio e o som dos cascos dos cavalos de corridas que corriam na escola de equitação. Sentiu a suave brisa do deserto em seu rosto. E o maior milagre de todos: o menino que estava sorridente, junto a ela e em cujos olhos azuis brilhavam o amor.

Ela a atraiu contra seu corpo sobre a manta, alargando uma mão para lhe retirar uma mecha de cabelos depois da orelha. A luz dourada do sol, peneirada pelas árvores, acariciava seus negros cabelos enquanto rodava sobre ela e a olhava com uma profunda intensidade.

—Não tenho direito a te pedir isto — sussurrou ele—, mas jamais me perdoaria se não o faço — lhe segurou o rosto entre as mãos—. Case-Te comigo, Jasmine. Case-te comigo.

—Sim — balbuciou ela.

Ele sorriu e, com lentidão, agachou-se até que os lábios de ambos se fundiram. Beijou-a e, pela primeira vez, fizeram muito mais que só beijar-se…

—Jasmine!

O repentino e brusco grito resultou irritante. Ela percebeu o pânico em sua voz, mas não podia responder. Algo a afogava. Lentamente, preguiçosamente, abriu os olhos.

E foi consciente de que não estava deitada sobre a manta junto ao arroio.

Estava caída, de barriga para baixo, em um carro. Os joelhos se penduravam contra o peito e via o céu azul através da janela, a seus pés. O cinto de segurança estava tão apertado que não podia respirar e algo líquido e quente gotejava através de suas pestanas.

—Estou sangrando — sussurrou.

Ouviu Kareef soltar uma praga e de repente se abriu a porta do carro, com grande estrondo de vidros quebrados. Imediatamente, soltou-lhe o cinto e ela se encontrou nos braços de Kareef, sentada sobre seus joelhos, em uma poeirenta estrada.

—Não tem nada quebrado — suspirou ele, aliviado após explorar atentamente sua cabeça, braços e resto do corpo. Depois a sustentou firmemente contra o peito enquanto lhe beijava os cabelos e não parava de sussurrar—. Está salva. Está salva.

Jasmine fechou os olhos coberta pelos fortes braços e pressionou a bochecha contra o quente e robusto pescoço.

Sentia-se confusa e sua mente era uma confusão, como a massa de carros derrubados sobre a estrada. Durante o instante que tinha durado o sonho, tinha voltado para seus dezesseis anos e tinha toda a vida por diante, segura do amor de Kareef e de seus fortes braços rodeando-a.

Eram os mesmos braços que a rodeavam naquele momento, ainda mais fortes e musculosos que anos atrás. O que tinha passado?

—Um médico! —rugiu Kareef.

Ela estava vagamente consciente da presença dos guarda-costas revoando a seu redor, falando com gritos pelos celulares, mas pareciam estar muito longe. Kareef e ela estavam no olho da tormenta.

Levantou a vista até ele e viu a camisa manchada de sangue e de lágrimas. A visão lhe provocou um calafrio. Tremente, alargou uma mão para seu rosto, para as finas linhas vermelhas que desciam da maçã do rosto rasgado.

—Estas sangrando.

—Não é nada — ele girou a cabeça bruscamente.

Não queria que o tocasse. Esse detalhe tinha ficado perfeitamente claro. Jasmine sentiu arder suas bochechas enquanto baixava a mão. Apertou os lábios com força ante o desejo de chorar. Já nada era igual à época de seu maravilhoso sonho.

—Mas… deveria ver-te um médico.

—Não é necessário — ele ficou em pé, sem deixar de segurá-la—. Em troca você… - contemplou seu rosto—. Pode se manter de pé?

—Sim — a cabeça lhe ia estalar, mas não tentaria apoiar-se nele. Não queria obrigá-lo a apartá-la de seu lado. Se ele não desejava que o tocasse, ela se manteria de pé sozinha, embora isso a matasse.

—Seu chapéu desapareceu — Kareef lhe soltou a mão e lhe limpou o pó das ombreiras de seu vestido rosa.

—Não importa — ela o olhou confusa.

—Farei que alguém o busque. Tomou uma toalha úmida que lhe oferecia um dos guarda-costas e lhe limpou a testa—. Tem um pequeno corte na cabeça — disse com voz calma, como se tentasse não assustá-la. Logo, voltou-se para o guarda-costas—. Devemos levar a senhorita Kouri ao hospital.

«A senhorita Kouri». De maneira que havia tornado atrás. Começava a guardar as distâncias, como se já tivessem se divorciado.

—Os carros estão destroçados, Alteza — o guarda-costas sacudiu negativamente a cabeça e sua voz adquiriu um tom amargo e furioso—. Essa égua tornou a escapar à estrada. Youssef teve que dar uma guinada para esquivar-se dela.

—Ah, Bara'ah — Kareef olhou mais à frente do destroçado Rolls Royce, para o cavalo negro, de pé junto à estrada e murmurou com voz suave—. Sempre volta aos maus hábitos.

Jasmine seguiu seu olhar. A magra égua negra comia a grama que crescia entre as gretas do pavimento enquanto olhava divertida a seu amo.

—Devolvam-na ao estábulo — disse Kareef—. E tragam outro carro de minha garagem. Sua garagem?

Jasmine procurou com o olhar até ver uma ampla residência de madeira rodeada de prados e palmeiras.

Cômoda e formosa, e carente da fastuosa ostentação de Umar. O lar do Kareef era um oásis de verdor na vasta planície do deserto.

Tinha-o feito. Tinha construído a casa que lhe tinha prometido anos atrás. Mas a tinha construído sozinho…

Jasmine apertou os punhos. Kareef queria afastá-la dali. Queria levá-la de volta à cidade para abandoná-la em alguma estéril habitação de hospital, sozinha. Possivelmente sua intenção era a de entrar correndo em sua casa, tirar a esmeralda e divorciar-se dela de caminho à cidade…

Isso era o que ela queria não? Um divórcio rápido sem intentos de sedução, sem complicações. Entretanto, de repente sentiu vontade de chorar.

—Não quero ir ao hospital.

O som de sua voz sobressaltou Kareef e ao guarda-costas, que se voltaram surpreendidos para ela, como se tivessem esquecido-se de sua presença.

—Mas Jasmine… — respondeu o rei com doçura e muito lentamente, como se estivesse falando com uma menina teimosa—, necessita que te veja um médico.

—Não quero hospitais — umas mechas do coque se soltaram com o vento e revoaram sobre seu rosto. Ela os apartou e viu que tinha as mãos manchadas de sangue. Ao olhar para baixo, comprovou que o vestido rosa estava salpicado de gotas vermelhas.

Igual à última vez que tinha sofrido um acidente. A última vez que tinha visto seu próprio sangue. Depois do acidente. Antes do escândalo.

De repente lhe faltava o ar.

Não podia respirar.

Presa do pânico apertou as mãos contra a cabeça enquanto tentava desesperadamente encher os pulmões de ar. Outras mechas de seus cabelos se soltaram do coque enquanto o mundo começava a dar voltas a seu redor.

—Jasmine? —Kareef entreabriu os olhos.

Enquanto respirava entrecortadamente, afastou-se dele. Tudo começava a mover-se em imprecisos círculos, cada vez mais rápidos, a seu redor. Olhasse onde olhasse algo a apanhava. O lar de seus sonhos. O homem de seus sonhos. O sangue de seu vestido…

Kareef a agarrou antes que caísse ao chão. Seus olhos intensamente azuis a olharam fixamente. Pareceu-lhe vagamente lhe ouvir gritar e viu seus homens apressar-se para obedecer.

Os lábios de Kareef se moviam e seus olhos azuis refletiam preocupação, mas ela não ouvia suas palavras. Só ouvia o desanimado estertor de sua respiração e o enlouquecido martelar de seu coração.

Tudo seguia dando voltas a seu redor enquanto os joelhos começavam a falhar. Ao longe viu a égua negra que a observava. Negra como o cavalo que a tinha atirado anos atrás. Negra como o acidente que lhe tinha feito perder tudo.

Negra.

Negra.

Negra…

De repente, o preocupado rosto de Kareef se voltou nítido.

—Está acordada — disse em voz baixa—. Sabe quem sou?

Jasmine descobriu que estava deitada na cama de um dormitório que não reconhecia. A cabeça lhe ia estalar e tinha a garganta seca.

—Onde… onde estou? —tentou incorporar-se.

—Não tente te mover — ele a empurrou brandamente contra a cama—. Meu médico pessoal está a caminho.

Com a cabeça apoiada no travesseiro, Jasmine olhou a seu redor. O dormitório era grande, rústico e acolhedor, com uma cama gigante e mobiliário espartano. Era muito masculino e cheirava a couro e madeira.

—Estou em seu dormitório? —ela olhou a pequena chaminé de pedra esculpida.

— Então sabe quem sou — Kareef suspirou aliviado.

—O ilustre rei do Qusay — Jasmine riu—, o adorado e reverenciado príncipe do Qais, a delícia de todas as garotas do harém o…

— Com que intensidade te golpeou contra o vidro? —perguntou ele com um incipiente sorriso. Notava-se que tinha estado preocupado. Muito preocupado.

—Desmaiei? —ela tentou sentar-se para demonstrar, a ambos, que estava bem.

—Não te mova!

—Mas se me encontro bem!

—Deixemos que seja o médico quem o diga.

—Disse que tinha um pequeno corte na cabeça. Isso não requer a uma equipe de especialistas. Ponha-me uma tira, e pronto.

—E te desmaiou — lhe recordou.

O rubor tingiu as bochechas de Jasmine. Estava segura de que o desmaio não tinha tido nada que ver com o golpe na cabeça e sim com um ataque de pânico, mas como explicar-lhe sem tirar a luz o antigo acidente do que, certamente, não queria falar?

Era algo que não sentia nenhuma necessidade de recordar. E as seguintes palavras de Kareef demonstraram que estava certa.

—O que acontece com você com os médicos? —disse ele com doçura enquanto a olhava—. Por que te nega a que te cuide como é devido?

Seus olhares se fundiram e ela conteve a respiração, sabia bem o que ele estava pensando.

Depois do acidente com o cavalo, lhe tinha suplicado que o deixasse ir em busca de um médico. Mas ela se negou. Estava desesperada por manter sua vergonha em segredo, para proteger a sua família. «Por favor, Kareef, te limite a me abraçar. Por-me-ei bem», tinha-lhe suplicado. Mas quando começou a tremer por causa da febre, ele rompeu sua promessa. Tinha retornado com um médico e dois serventes em quem acreditava poder confiar.

Um desses serventes devia ter sido o tal Marwan, que os traiu no mesmo instante em que Kareef desapareceu no deserto. Sua família quase tinha ficado destruída. Por culpa dela.

Jasmine piscou com rapidez para conter as lágrimas e girou a cabeça.

Kareef se inclinou sobre a cama. Aprisionada entre os braços apoiados no colchão, ela levantou lentamente o olhar.

Seus rostos estavam a poucos centímetros um do outro. A tensão ia aumentando.

—Espera — murmurou ele—. Deixa que o arrume.

Inclinou-se sobre ela e arrumou os travesseiros a suas costas. Logo, segurou-a para sentá-la delicadamente com as costas reclinadas nos travesseiros e ela fechou os olhos para deleitar-se na calidez e a força de seus braços. Por último, acariciou-lhe os cabelos.

—Melhor? —perguntou em um sussurro.

Tinham as bocas separadas por poucos centímetros e Jasmine sentia o quente fôlego sobre sua pele. A sensação lhe provocou um calafrio da boca até o pescoço, passando pelos lóbulos das orelhas e os mamilos. Inclusive da ferida da cabeça surgia um comichão que não tinha nada que ver com a dor e tudo a ver com…

Obrigou-se a interromper a tendência de seus pensamentos. Com Kareef tão perto lhe custava pensar com claridade. O que lhe tinha perguntado?

—Estou muito… muito melhor — umedeceu os lábios.

—O médico chegará em seguida — disse ele com voz rouca. Os fortes músculos de seu corpo pareciam tensos, quase trementes, como se tivesse que fazer um esforço para controlar-se—. Em qualquer momento estará aqui…

Começou a apartar-se, mas, de repente Jasmine não pôde suportar perder o contato de seus braços. Não depois de ter sofrido tanta solidão. Não quando estavam tão perto. Esse era o homem ao que tinha tentado odiar, o homem ao que jamais tinha deixado de desejar.

Ergueu-se o suficiente para que seus lábios tocassem os de Kareef.

Foi um beijo breve. Um selinho. O suficiente para sentir a aspereza de seus lábios, a força e o poder masculinos.

Kareef a olhou surpreso. Ela ouviu sua respiração rouca e entrecortada enquanto as fortes mãos lhe aferravam os ombros.

Com um grunhido, empurrou-a contra o travesseiro enquanto a fogueira se convertia em um incêndio. Beijou-a profunda e intensamente. Seu beijo era ansioso, brutal.

Beijou-a como se levasse meia vida morrendo de sede por ela.

Kareef a rodeou com seus braços contra o travesseiro, envolvendo seu pequeno corpo com a enorme mão. Sua boca era brusca e selvagem e lhe feria os lábios apesar de lhe acariciar a nuca, segurando-a como se fosse uma frágil rosa.

A ardente exigência de seu beijo a rasgou, enchendo seu corpo de faíscas. Os seios pesavam e os mamilos se esticaram até chegar a uma dolorosa intensidade. A dor do desejo se enroscou debaixo de seu estômago e mais abaixo, mais abaixo ainda, entre as coxas.

Enquanto lhe acariciava o corpo com as pontas dos dedos, do pescoço até o abdômen, a boca de Kareef nunca abandonou a sua. O ligeiro toque dos dedos contra a rosada seda do vestido provocou em Jasmine uma sensação deliciosamente agonizante. O beijo se fez mais intenso, mais exigente. Agarrou-a pelos braços nus, pelos ombros, mantendo-a deitada.

Quantas noites tinha sonhado com aquilo? Quantas noites tinha sonhado sentindo suas mãos sobre a pele, estando em sua cama?

Estava sonhando. Tinha que ser um sonho. E rezou para nunca despertar.

As mãos masculinas se deslizaram por sua cintura. Kareef se afundou contra os doces lábios, obrigando-a a abrir a boca para receber sua língua.

Um suave gemido escapou dos lábios de Jasmine, que lhe rodeou o pescoço com os braços para colar seu corpo ao dele. Suas línguas se entrelaçaram, mesclaram, lutaram. Os lábios de Kareef feriam os seus, ou era ao contrário? Já não sabia. Nenhum dos dois era capaz de manter sob controle treze anos de desejo. Mal obtiveram não causar-se dano um ao outro, sob o peso do mútuo e insaciável desejo.

Resultou ser muito melhor que aos dezesseis anos. Com vinte e nove anos sabia quão estranho era experimentar uma paixão assim.

Jasmine deslizou as mãos sob a camisa de Kareef e sentiu o calor de sua pele, a dureza de seus músculos e a tensão do abdômen. Sentiu o povoado pêlo de seu peito.

—Esta noite será minha — respirando fundo, ele lhe agarrou os pulsos—. Custe o que custar — a voz surgia profunda e escura, como se saísse do fundo de sua alma—. Farei que esqueça a todos outros.

—Não houve ninguém mais — sussurrou ela—. Só você. Como ia entregar-me a outro homem se ainda era sua esposa?

Sentia as bochechas ao vermelho vivo e era incapaz de olhá-lo aos olhos. Ia fazer pouco caso de sua patética fidelidade? Ia ir dela?

—Jasmine — Kareef sussurrou seu nome quase sem fôlego.

De repente afundou as mãos em seus longos cabelos e apertou o corpo contra o dela. Os azuis olhos se viam escuros e famintos enquanto lhe empurrava a cabeça para trás, deixando exposta sua garganta.

—Jasmine. Minha primeira mulher — sussurrou—, minha única mulher.

O coração dela se acelerou. Significaria isso que…?

Não! Impossível. Ele era um xeque atrativo e poderoso, logo se converteria no rei do Qusay. Não podia ter passado os últimos treze anos igual a ela, com uma solitária cama e um dolorido coração por companheiro.

Entretanto, ao ver-se atravessada pelo ardente olhar de Kareef, soube a verdade. Acariciou-lhe a bochecha, deslizando o polegar contra seu lábio inferior. Tremente, fechou os olhos ao sentir o contato. Não podia estar acontecendo. Não podia…

Kareef sujeitou o rosto de Jasmine entre suas mãos e a beijou com raiva. O beijo foi tão profundo e puro que ela sentiu renascer o fogo, alimentado no recipiente de seu mútuo desejo. As mãos masculinas se deslizaram sob o vestido rosa, pressionando com força contra a suave pele. De repente lhe arrancou o vestido e ela sentiu essas mãos por todo o corpo, nas costas enquanto, com um ágil movimento, desabotoava-lhe o prendedor. Nos quadris enquanto lhe tirava as calcinhas brancas e as deslizava pelas longas pernas.

De súbito se encontrou nua e deitada sobre a cama.

Sem lhe tirar os ardentes olhos de cima, Kareef desabotoou lentamente a camisa branca e a deixou cair ao chão antes de tirar os sapatos e as calças. De sua posição, nua sobre a colcha branca, ela o olhou e conteve o fôlego.

O bronzeado e atlético corpo resultava magnífico contra a cegante luz que entrava pelas janelas, envolvendo-o em um halo que lhe dava o aspecto de um anjo negro. As sombras dançavam sobre o fornido torso em sentido descendente para o abdômen plano e sua grossa protuberância, endurecida em honra a Jasmine, erguida e orgulhosa em sua brutal e masculina exigência.

Um grito ficou afogado na garganta dela ao contemplá-lo. Kareef se ajoelhou sobre ela e deslizou as fortes mãos sobre seu ventre.

Os dedos, antes ásperos, voltaram-se sedutoramente ligeiros. Mal tocavam sua pele enquanto desenhava com eles a silhueta de seus quadris e coxas. Prendeu os seios com as mãos em conchas, sentindo seu peso, adorando-os. Ajoelhado sobre ela, beijou-lhe o pescoço e logo a boca.

Beijou-a com uma reverência que a comoveu até o mais profundo da alma. As robustas mãos acariciaram seus tensos e doloridos seios, obrigando-a a fechar os olhos. Quando seus lábios se separaram dos dela, esteve a ponto de emitir um grunhido de protesto. Então sentiu como se deslizava para baixo, lhe beijando o seio. Sentiu os masculinos lábios sugar o dolorido mamilo, a língua descrevia círculos a seu redor e os dentes produziam um prazer próximo à dor. Ela arqueou as costas e respirou fundo.

Fossem quais fossem as consequências, não queria que parasse.

Os lábios e a língua de Kareef eram puro fogo contra sua pele. O saboreou, sugou e mordeu um seio e logo o outro até que ela mal pôde respirar e de seus lábios surgiu um grito. As mãos em concha lhe pressionavam os seios com crescente intensidade até que estiveram eretos por desejo próprio, apontando para sua boca. Jasmine sentiu o calor do sol sobre sua pele e ouviu seus próprios ofegos como se fossem de outra pessoa. O duro e masculino corpo se movia contra o dela e o desejo a alagou, deixando-a suspensa no ar e sem fôlego.

Kareef lhe beijou o abdômen, juntando ambos os seios para lamber o profundo espaço que ficava no meio.

Ela sentiu a rugosa penugem das coxas masculinas mover-se contra suas pernas enquanto descia por seu corpo. Sentiu a dura protuberância pressionar contra ela, exigir sua atenção, sacudir-se violentamente ao roçar-se contra sua pele. Entretanto, não se colocou entre suas pernas, mas sim lhe acariciou os quadris e entre as coxas.

Com um grunhido lhe separou as pernas.

Ela fechou os olhos para bloquear toda luz. Se os abria e via a cabeça de Kareef entre suas coxas, temia perder o controle.

A mandíbula se movia rugosa e áspera contra sua delicada pele. Sentiu o ardente fôlego contra as coxas enquanto com seus dedos ele a abria um pouco mais para poder saboreá-la.

Jasmine gritou e arqueou violentamente as costas. A nuca se afundou nos travesseiros enquanto se estremecia abaixo de quebras de onda, maravilhosas e insuportáveis, da sorte.

O prazer. Céu santo, que prazer! A tensão se retorceu e descreveu redemoinhos em seu interior, enviando-a mais acima com cada passada da língua, com cada movimento da ponta ereta contra seu úmido corpo. Elevou o queixo e fechou os olhos, jogando a cabeça ainda mais para trás. A respiração se converteu em um ofego de desespero crescente enquanto a poderosa língua de Kareef trabalhava sobre ela, lambendo em amplos círculos para passar a uns movimentos pequenos e fechados contra o dolorido botão central de suas ânsias.

Kareef alargou as mãos para sentir os femininos seios sem deixar de lamber. Sua língua era uma coluna, úmida e dura, de calor que lentamente afundou em seu interior.

Uma nova quebra de onda de tremores assaltou a Jasmine, que se agarrou com força a cabeceira da cama. Sentia-se tonta, como se seu corpo girasse sem controle.

Ele afundou a língua mais profundamente em seu interior enquanto acariciava o rígido botão com o polegar. Depois moveu a língua até o ponto mais sensível e o lambeu com movimentos giratórios enquanto introduzia um grosso dedo dentro dela.

Ao que seguiu outro dedo. E logo um terceiro.

Jasmine não podia suportá-lo mais. Não podia…

Seu corpo experimentou umas sacudidas como se estivesse sob o efeito de um terremoto. Mais duro, mais alto, mais rápido. Seu corpo e sua alma se abriram a ele como gretas nas rochas do deserto, permitindo a entrada ao sol e ao vento. Sentiu como ele se deslizava para cima para lhe beijar o pescoço e como colocava sua larga e dura protuberância entre suas coxas. Com as mãos lhe segurou os pulsos contra a cabeceira da cama. Imobilizando-a. Mantendo-a deitada.

Entretanto ela já estava aprisionada. Levantou a vista e o olhou.

Não tinha havido jamais homem mais formoso. Seus olhos eram de um azul brilhante que a rasgava com seu desejo e necessidade. Sua mandíbula tensa e escura pela incipiente barba. Umas maçãs marcadas do rosto projetavam sombras sobre seu nariz de perfil romano, sob os negros traços formados pelas sobrancelhas. Era seu anjo negro. Seu marido. Jasmine sentiu um nó na garganta.

O olhar que lhe dedicou a comoveu até a alma e lhe fez perder todo sentido do tempo e o lugar. Todo o sentido de onde terminava ela e começava ele. Eram um.

Olhando-a aos olhos, ele se afundou lentamente em seu interior. Sem piedade observou seu rosto enquanto entrava todo, direto a seu coração.

Ela conteve o fôlego ao senti-lo dentro. Sua enormidade lhe fazia dano. O prazer se uniu à dor e juntas sacudiram seu corpo como em ondas antes que pudesse estirar-se para acomodá-lo.

Ele se retraiu para voltar a investi-la profundamente, e com tanta dureza e força que outra quebra de onda de prazer a sacudiu, tombando-a e afundando-a sob as ondas. Lentamente, montou sobre ela empurrando mais e mais profundamente com cada investida, até que o prazer foi excessivo, excessivo, além da razão.

Aferrando-se aos fortes ombros com as mãos, Jasmine gritou enquanto explorava como um fogo que lançasse as brasas a seu redor. E enquanto estalava em um milhão de pedaços, como estrelas no firmamento, ouviu vagamente sua voz chamando-o por seu nome, gritando palavras de amor enquanto caía em pedaços.

 

Quando Kareef ouviu Jasmine ofegar de prazer, quando a sentiu tremer e agitar-se sob seu corpo, foi quase insuportável. Sua primeira investida quase tinha sido a última.

Sorte que já não era um menino de dezoito anos. Pausa funda e aguadamente em um intento de controlar seu avassalador desejo. O controle foi máximo enquanto empurrava dentro dela, e lhe custou toda sua torça de vontade conter-se.

Era o paraíso.

Era o inferno.

Era tudo o que tinha sonhado e mais.

Contemplou o sedutor corpo de Jasmine convexo sobre a cama. Seus seios estavam iluminados pelo sol da tarde e os rosados e eretos mamilos refulgiam enquanto arqueava as costas. Seu formoso rosto se perdia em uma expressão de feroz e agonizante sorte enquanto a montava. Jasmine se regozijava em sua posse, e ele de fazê-la sua.

O brilhante sol do deserto a banhava por completo. Sua imagem lhe resultava refrescante como uma onda de água fria.

Quanto tempo a tinha desejado? Durante quanto tempo tinha agonizado como o sedento em busca de um oásis? Durante quantos anos o tinham atormentado, em corpo e alma, os sonhos sobre Jasmine Kouri?

Suas mãos tremiam enquanto se aferravam aos ombros de Jasmine em um intento de conter a sacudida que lhe faria verter sua semente dentro dela.

Não era nenhum menino egoísta disposto unicamente a satisfazer rapidamente seu próprio prazer. Já a tinha levado ao êxtase várias vezes, mas não bastava. Queria lhe dar mais, lhe fazer sentir mais. Queria lhe fazer amor durante todo o dia, toda a noite. Até que ela não o suportasse mais.

—Jasmine — sussurrou com voz rouca.

Ela respondeu com um suave ronronar.

Que formosa era. Contemplou seu rosto. O formoso rosto da única mulher que tinha desejado.

Agachou a cabeça e a beijou. Jasmine se retorceu sob seu corpo e lhe sujeitou pelas costas, contra ela. Kareef se esticou em uma doce agonia.

«Jasmine», sussurrou para seus adentros enquanto lhe acariciava o nu corpo. Era dele. Unicamente dele. Nenhum outro amante tinha compartilhado seu leito. Ele era o único homem que a havia possuído.

A idéia lhe provocou uma repentina urgência e sua testa ficou banhada em suor ante o esforço de conter seu próprio clímax.

Não havia pressa, disse-se a si mesmo. Não havia necessidade de correr. Tinha todo o tempo do mundo.

Retirou-se e, lentamente, entrou novamente dentro dela. Jasmine arqueou as costas e ofegou enquanto murmurava palavras encantadas que ele não conseguia ouvir.

Fazendo comemoração de um férreo domínio de si mesmo, voltou a afundar-se dentro dela, montando-a com crescente intensidade e velocidade. Seus suarentos corpos se esfregavam um contra o outro com crescente dureza e força. O musculoso torso quase a transpassou ao esfregar-se contra o suave montículo de seus seios.

Já não aguentaria muito mais. Não podia…

Sentiu como ela começava a esticar-se ao redor de seu membro. Viu-a conter a respiração, ofegar e soltar o ar como um sussurro através de seus lábios carnudos, avermelhados e castigados.

De repente, as femininas unhas se cravaram em suas costas. Enquanto gritava palavras incompreensíveis, ela retorceu os quadris impulsionando-se para diante e para trás sob seu forte corpo, e ele já não pôde conter-se mais. Ao ouvir como gritava seu nome, perdeu todo controle.

Investiu dentro dela com um gemido, com tal força que o orgasmo o assaltou quase imediatamente, com uma sensação de felicidade tão intensa que perdeu toda noção da realidade durante uns segundos.

Quando voltou a si, podiam ter passado minutos ou horas. Kareef se encontrou nu sobre a cama, ainda abraçado a ela, seus corpos envoltos em um lençol retorcido.

Sem que o batimento de seu coração tivesse recuperado a normalidade, contemplou o formoso e esgotado rosto. Com grande ternura se inclinou para lhe beijar a testa, ainda manchada com o pó do deserto.

As espessas pestanas tremeram e ela abriu os olhos, olhando-o em silêncio. Kareef escutou os entrecortados ofegos e durante uns minutos se limitou a embalá-la em seus braços enquanto se olhavam sem dizer nada sob a rosácea luz do entardecer.

De repente, alguém golpeou a porta com os nódulos e a abriu.

—Senhor, desculpe-me, tive que atender um parto difícil, mas já estou aqui para… o OH!

O médico pessoal de confiança, um senhor de idade nascido no Qusay, fiel à família Al’Ramiz, colocou a cabeça pela porta e sofreu uma comoção. Ruborizou-se até a raiz do cabelo e, rapidamente, deu um passo atrás.

—Isto… esperarei fora até que estejam preparados, e por enquanto deixarei a paciente em suas… hábeis mãos.

O homem partiu discretamente e fechou a porta detrás de si.

Kareef e Jasmine, ainda nus e estendidos na cama, olharam-se.

Para surpresa de Kareef, ela riu.

—Acima de tudo, discrição — disse Jasmine enquanto enxugava as lágrimas provocadas pela risada.

Kareef não podia apartar o olhar de seu rosto. Os olhos lhe brilhavam e os dentes cintilavam em sua brancura, e o som de sua risada…

—Não dirá nada — lhe prometeu sem poder deixar de lhe sorrir.

O som da risada de Jasmine era o mais belo que tinha escutado em sua vida. Uma risada que tinha temido não voltar a ouvir jamais.

Horas depois, quando o doutor lhe tinha dado dois pontos no couro cabeludo, tratado outros cortes e proclamado seu bom estado geral, fizeram amor várias vezes antes de dormir abraçados. Embora em realidade Kareef a abraçava enquanto ela dormia.

Não podia apartar o olhar de Jasmine.

Pela janela do dormitório viu amanhecer no deserto e seu estômago protestou, insistindo em que era a hora do café da manhã. De repente se lembrou de que não tinha comido nada no dia anterior. Sorriu a Jasmine, que ainda dormia em seus braços, e lhe acariciou docemente uma bochecha. Tinha estado muito distraído no dia anterior

Mal podia acreditar-lhe, mas a desejava de novo. Quase não tinham dormido durante a noite. Fizeram amor ao menos quatro vezes, possivelmente quatro e meia, segundo o que contasse e o que não.

Deveria limitar-se a abraçá-la e dormir um pouco. Fechou os olhos. Jasmine era a única mulher a que tinha desejado ter tão perto. De repente foi consciente de que era a única mulher com a que se deitou, em todos os sentidos.

O abraço se fez mais forte o protesto de seu estômago se intensificou e a olhou, surpreso de que o ruído não a tivesse despertado.

Suspirou resignado. Com cuidado para não despertá-la, recuperou o braço que tinha debaixo de sua cabeça e se vestiu em silencio antes de abandonar o dormitório.

Quando Jasmine se levantasse, surpreendê-la-ia. Primeiro com um café da manhã. Seus lábios desenharam um sorriso travesso; depois com a sobremesa…

Encaminhou-se pelo corredor até a moderna cozinha e acendeu o fogo. Preparou uns ovos mexidos com carne, torradas e fruta. Tirou dois pratos de um armário e os dispôs sobre uma bandeja. De repente lhe ocorreu sair ao jardim em busca de uma rosa das muitas que cresciam em seus vasos de barro.

Ao voltar a entrar na casa encontrou Jasmine de pé em meio da reluzente cozinha, vestida unicamente com uma velha camiseta vários números maiores.

—Não sabia onde estava — disse ela em tom acusatório.

—Tinha fome — ele se agachou e lhe prendeu a rosa no cabelo antes de beijá-la na bochecha.

Ela sorriu. Vestida com a enorme camiseta, e com a flor presa no cabelo, parecia a princesa de um conto de fadas.

—Parece que tem fome de muitas coisas — murmurou ela.

—É você quem a desperta — Kareef lhe dedicou um sensual sorriso e arqueou uma sobrancelha.

Ela franziu o cenho enquanto procurava seus olhos. Depois respirou fundo e fixou o olhar na bandeja.

—Tem um aspecto delicioso — disse com voz doce e quase inaudível—. Quem o preparou?

—Eu.

—Agora de verdade — ela pôs-se a rir enquanto olhava a seu redor como se esperasse encontrar a algum cozinheiro de luxo escondido detrás da geladeira—. Quem o preparou?

—Não tenho serventes aqui, Jasmine — respondeu ele—. Já lhe disse isso. Eu não gosto que me incomodem.

—Está me dizendo que esfregou você mesmo o chão? — ela assinalou o imaculado chão da cozinha.

—Sou independente, não idiota — ele riu—. Tenho uma criada, e também um jardineiro, um veterinário e empregados fixos. Mas cada um dispõe de uma residência no outro extremo da propriedade. Aqui vivo sozinho. Prefiro-o assim.

—Entendo.

—Saiamos fora — Kareef tomou duas xícaras de fumegante café turco e as deixou sobre a bandeja junto aos pratos com o café da manhã. Sustentou aberta a porta do pátio com um ombro enquanto levava a bandeja com uma mão—. Poderemos contemplar a saída do sol.

Ela o seguiu até um terraço com chão de madeira que se estendia por detrás da cozinha. Apoiada no corrimão contemplou a vasta extensão do deserto que se prolongava mais à frente do vale.

— Sempre disse que queria construir uma casa aqui — sussurrou ela—. Mas não imaginava que fosse ser algo tão formoso como isto.

Kareef deixou a bandeja sobre a mesa e contemplou a sinuosa silhueta de Jasmine, desenhada a contraluz frente ao deserto, que cintilava de cor rosa sob o sol nascente.

—É verdade que é formoso — admitiu.

—Deve te resultar muito difícil ter que abandonar tudo isto — ela se voltou e o olhou aos olhos.

—Sim — ele sentiu uma surda sacudida na cabeça.

Por um instante tinha esquecido o palácio real, esquecido o incessante fluxo de pessoas insatisfeitas que bombardeavam a seu rei com exigências. Esquecido o fato de que poucos dias mais tarde renunciaria oficialmente, e para sempre, a ser um cidadão particular com seus próprios e egoístas desejos. Seria o rei, e teria que sacrificar-se para sempre pelo bem de seu povo.

Respirou fundo. Ao menos nesses momentos estava em seu lar. Era livre. Olhou Jasmine, impossivelmente formosa com a velha camiseta que se apertava sobre seu seio e apenas lhe cobria as coxas. Ao menos nesses momentos ela estava ali, a seu lado.

—Aqui podemos esquecer que é o rei — disse ela com doçura enquanto voltava a apoiar-se no corrimão e contemplava a saída do rosado sol sobre as montanhas violáceas—. E eu também posso esquecer que logo serei uma mulher casada.

Sem tirar a vista do deserto, ela estremeceu visivelmente.

Com as duas xícaras de fumegante café na mão Kareef se colocou detrás dela. Entregou-lhe uma enquanto lhe rodeava o corpo com um braço e a atraía contra seu peito. Abraçando-a com força, juntos contemplaram a saída do sol, enchendo o deserto de calor e cor, enquanto bebiam café em silêncio.

—Disse que estava acostumado a vir aqui para estar sozinho — ela soltou uma tímida gargalhada—. Quer que vá?

—Não — respondeu ele enquanto a abraçava com força—. Quero que fique.

Jasmine foi consciente de que sua presença não interrompia a solidão de Kareef. Melhorava. A tranquila intimidade que oferecia enriquecia tudo, até o amanhecer.

Enquanto contemplava a ampla extensão desértica, ele teve claro que tinha em seus braços à única pessoa sobre a face da terra que desejava ter perto. E não só em sua cama, também em sua vida.

Aquilo não podia durar. Sabia. Ao cabo de uns poucos dias retornariam à cidade. Ele voltaria a ser o rei e Jasmine se converteria na mulher de outro homem. A magia teria terminado.

Mas enquanto admirava os alaranjados raios de sol que atravessavam o céu azul, disse-se que ainda tinham tempo. Ficavam uns quantos dias. Horas e horas por diante.

E, certamente, nesse lugar mágico, esses dias seriam eternos.

 

Dois dias depois, Jasmine flutuava de costas na piscina contemplando o céu mais extenso e mais azul da terra quando sentiu Kareef sair de debaixo da água junto a ela e tomá-la em seus braços.

—Bom dia — disse com gesto sério. A água se deslizava pelos fortes e bronzeados músculos de seu torso—. Por que se levantou tão cedo? —sussurrou enquanto esfregava o nariz contra seu pescoço—. Deveria ter ficado na cama.

Ao olhá-lo melhor, ela se deu conta de que estava nu. E também de que lhe oferecia sinais inequívocos de desejar algo dela…

—Cedo? —brincou enquanto se aferrava aos largos ombros e fingia espernear como protesto—. Mas se já é meio-dia!

—Mantém-me acordado até o amanhecer. Portanto, é tua culpa — disse ele antes de beijá-la.

Escassos minutos depois, sem deixar de beijar, saiu da piscina com as pernas de Jasmine enroscadas ao redor da cintura. Atravessou o pátio com ela nos braços e a deitou sobre uma rede sob uma galeria. Ali lhe arrancou o diminuto biquíni e lhe fez amor lentamente ao ar livre, sob o ardente sol do deserto.

Jasmine devia ter dormido depois, pois ao abrir os olhos percebeu que o sol se transladou no céu. Fazia tempo que era incapaz de reconhecer a diferença entre estar dormindo ou acordada. Como saber se dormia quando tudo o que tinha imaginado nos mais profundos sonhos de seu coração se materializou, em carne e osso em seus braços?

Os dias que tinha passado em casa de Kareef tinham estado repletos de risadas, ternura e paixão. Sua curta estadia tinha estado tão cheia de vida e cor que os treze longos anos transcorridos se converteram em um breve e cinzento sonho.

Oxalá pudesse ficar ali para sempre.

Contemplou o reflexo do sol sobre a piscina de cor azul turquesa e tentou não pensar nisso. Era seu último dia ali. Deveria aproveitá-lo. Ao dia seguinte, pela manhã, Kareef tinha que estar de volta na cidade. Seus compromissos oficiais não podiam pospor-se por mais tempo, nem tampouco o banquete real ao que assistiriam os dirigentes estrangeiros que tinham viajado a aquele país para ir à coroação.

Essa mesma noite, o sonho acabaria.

«Deixa de pensar nisso», tentou repreender-se a si mesma. «Não fará mais que arruinar as preciosas horas que ficam». Entretanto, não podia evitá-lo. Inclusive na cama aquela mesma manhã, aconchegada nos braços de Kareef que dormia a seu lado, tinha contemplado o teto do dormitório e desejado de todo coração poder ficar ali para sempre.

Em sua cama. Em seus braços.

Tinha desejado seguir sendo sua esposa.

O desejo tinha sido tão forte que quase a tinha asfixiado. E esse era o motivo pelo que tinha fugido para jogar-se de cabeça à piscina, para contemplar o céu, para deixar que a água, o cloro e o ardente sol dissolvessem suas lágrimas.

Entretanto, nesses momentos, abraçada a ele sobre a rede, sob a galeria, esteve quase tentada a lhe perguntar se havia alguma possibilidade de que acontecesse. Embora fosse uma possibilidade remota. As palavras tremiam em sua boca. Além disso, já conhecia a resposta.

—Kareef? —sussurrou antes de interromper-se.

—Sim? —respondeu ele distraidamente, sem abrir os olhos e com o rosto pegado ao dela. O sol virtualmente lhe tinha secado os escuros e ondulados cabelos.

—Eu me… perguntava… — respirou fundo.

De repente, um brilho chamou sua atenção. As calças que Kareef tirou antes de lançar-se à água estavam atiradas junho à piscina. Algo tinha saído de um dos bolsos, algo que emitia um brilho esverdeado sob a luz do sol.

A esmeralda.

A pequena esmeralda com forma de coração, pendurada de uma corrente de ouro, que seus pais lhe tinham dado em seu décimo sexto aniversário. Levava-a posta quando lhe pediu que se casasse com ela naquele dia na clareira das árvores, detrás da escola de equitação. Segundo um ancestral ritual do Qusay, ela devia entregar um como prova de confiança. De modo que tinha tirado a corrente de ouro do pescoço e a tinha depositado na palma da mão de seu amado enquanto entre lágrimas pronunciava as palavras que os uniriam.

E treze anos depois, esse objeto era descuidadamente transportado no bolso de uma calça, aguardando o momento em que seu depositário se divorciasse dela.

Enquanto contemplava fixamente a esmeralda que brilhava ao sol, todos os sonhos se derrubaram a seu redor.

—O que acontece? —Kareef levantou a vista com preguiça e suspirou enquanto com uma mão lhe acariciava o seio—. Não me diga isso. Quer mais — ele bocejou sorrindo e alargou uma mão para ela—. Mulher esgota-me.

Jasmine fechou os olhos. Em efeito, queria mais. Mais dele. Mais de tudo. E de repente soube que não podia lhe permitir tocá-la, não quando sentia umas enormes ganas de chorar, de dar golpes, de soluçar como um bebê por aquilo que jamais poderia ter.

—Jasmine? —ele parou em seco.

—Não é nada — sussurrou ela—. É que sou… —sua voz se quebrou— feliz.

—Igual a mim —a mão de Kareef se fechou em concha na dela—. Mas sabe que nosso tempo se acaba.

Já? Jasmine abriu os olhos desmesuradamente. Não estava preparada para lhe ouvir pronunciar essas palavras. Seu olhar posou sobre a esmeralda que pendurava do bolso das calças curtas, junto à piscina. Não estava preparada! Ainda não!

—Faz um dia precioso — ela ficou de pé de um salto e aterrada deu um passo atrás—. Saímos a montar?

Se não tivesse o coração destroçado, o modo em que desencaixou a mandíbula de Kareef a teria feito rir.

—Montar? —repetiu ele espantado.

—A cavalo — esclareceu ela.

—Mas você odeia montar a cavalo — ele franziu o cenho perplexo e esfregou a nuca—. Os odeia.

Estaria experimentando as mesmas lembranças que ela tinha do passeio a cavalo anos atrás?

De como a tinha encontrado caída sobre uma rocha depois de que seu cavalo, Razul, espantou-se por culpa de uma serpente? Kareef tinha caído de joelhos junto a ela com os olhos alagados de pânico, o rosto pálido, suarento e poeirento sob a avermelhada luz do entardecer. «Aguenta, Jasmine», tinha-lhe sussurrado enquanto a levava até a cova. «Aguenta».

—Não odeio montar a cavalo — ela elevou o queixo e tragou com dificuldade enquanto tentava apagar as lembranças de sua mente.

—Desde quando?

—Estive fora muito tempo — ela o olhou, furiosa.

—Tanto que mudou?

—O que te parece comprová-lo com uma corrida?

—Uma corrida… contra mim? —ele riu—. Suponho que está de brincadeira.

—Acaso te dá medo? —ela o provocou.

O rosto de Kareef se voltou sério. Ficou em pé, nu ante ela, sob as sombras da galeria e tomou o rosto entre as mãos.

—Não tem que fazê-lo — seu cálido olhar azul, infinito como o céu do deserto, alcançou a alma de Jasmine—. Não tem que me demonstrar nada.

—Sei — em seus braços, sob a profunda intensidade de seu olhar, sentia como se rompia seu coração de desejo por ser sua mulher. Não só esse dia, mas para sempre. Respirou profundamente e se obrigou a apartar-se dele—. Te desafio a uma corrida até os estábulos!

Correu de volta a seu dormitório e revolveu no fundo da mala. «Desfrutarei pela última vez», jurou a si mesma. «Ficará gravado para sempre em meu coração». Colocou a roupa interior sob um vestido do verão de algodão branco e rapidamente escovou os longos cabelos antes de voltar a sair da casa.

Minutos depois, quando Kareef apareceu nos estábulos, vestido com umas calças negras e camisa branca, ela subiu ao cavalo. Ao ver a arreios escolhidos, ele parou em seco.

—Esse não.

—É o que quero — respondeu Jasmine.

Kareef olhou irado ao veterano cavalariço de pele curtida e bronzeada como o couro, que lhe tinha ajudado a montar.

—Ela escolheu a Bara'ah, senhor — o homem se encolheu de ombros—. Disse que devíamos lhe dar à dama liberdade na casa. "Obedeçam até o último de seus desejos», disse.

Apanhado por suas próprias ordens, Kareef os olhou furioso a ambos.

Jasmine lhe devolveu um olhar resplandecente. Estava decidida a lhe demonstrar a ele e a si mesma, o muito que tinha mudado em treze anos. Era forte. Independente. Não o necessitava para protegê-la como antigamente, e o demonstraria. Aos dois.

—Esta égua não, Jasmine — ele se aproximou do cavalo e levantou a vista—. Bara'ah é muito traiçoeira. Já viu como escapou… e provocou o acidente de carro.

—Não o fez de propósito —Jasmine lhe deu uns tapinhas no cavalo—. Tão somente estava farta de ver-se apanhada entre quatro paredes.

—Jasmine…

—Está perdendo a corrida — disse ela enquanto esporeava o cavalo para fazê-lo arrancar.

A égua deu um salto para diante e saiu voando do estábulo. Kareef soltou um xingamento atrás de outro.

Cinco minutos mais tarde a alcançou, depois de que ela houvesse mudado o galope da égua para um suave trote.

—Certamente sabe montar — admitiu ele a contra gosto—. Onde aprendeu?

—Em Nova Iorque — ela sorriu com doçura.

Tinha assistido a aulas de equitação no Westchester e dedicado seus momentos livres a montar a cavalo em Central Park. Tinha aprendido a montar ao estilo inglês, ao estilo ocidental, inclusive ao estilo do Qusay, sem cadeira. Tinha acreditado que com isso cessariam seus pesadelos, que cessariam os sonhos nos que caía ao chão e despertava com um sabor a sangue na boca.

Não tinha funcionado, mas ao menos tinha aprendido algo novo. E nesses momentos era todo um prazer montar a cavalo ao mesmo nível que Kareef, com confiança e habilidade. Sobretudo naquele lugar tão formoso.

Qais era inóspito e selvagem, pensou ela enquanto olhava a seu redor. Algumas pessoas encontrariam as vastas planícies estéreis, mas ela experimentava liberdade. Já não se sentia aprisionada pelos arranha-céus que bloqueavam sua visão, que bloqueavam a luz do sol.

Ali via o horizonte. E se sentia livre.

—Vamos — disse Jasmine em tom divertido enquanto fazia girar ao cavalo em uma nova direção. Não tinha nem idéia para onde ia, e adorava não sabê-lo—. Em suas marcas, preparados, preparados… já!

Arrancou rapidamente seguindo para o deserto e Kareef a seguiu.

Jasmine levou a dianteira durante uns três segundos, antes de ser ultrapassada pelo forte garanhão. Seguiu obstinada a Bara'ah com toda sua determinação, mas Kareef tinha sido cavaleiro de corridas desde menino, e levava um cavalo maior e mais rápido. Os dez anos de práticas em Nova Iorque jamais poderiam competir com sua gloriosa e intrépida velocidade.

— Ganhei — Kareef parou ante ela com um sorriso.

— Sim — suspirou Jasmine—. Você ganhou.

—E, portanto receberei meu prêmio — depois de situar-se ao lado da égua, inclinou-se e beijou a Jasmine sobre o cavalo. Foi um beijo intenso e exigente que não fez mais que lhe abrir o apetite.

Quando se apartou, ela o olhou sobressaltada.

Ali, no deserto, o sol reduzia a cinzas qualquer mentira. Contemplando seu formoso, robusto e arrogante rosto, tudo encaixou de repente.

Estava apaixonada por ele.

Sempre o tinha estado e sempre o estaria.

Jasmine se aferrou à cadeira e pestanejou com força, emocionada pela evidência.

Um sorridente Kareef lhe acariciou uma bochecha.

—Beija igual a com monta. Com pura lascívia — murmurou ele com admiração antes de olhá-la fixamente—. Jasmine deve saber que eu…

De repente, seus olhos se fixaram em algo ao longe. Sua mão abandonou a bochecha da jovem e se ergueu tenso sobre o cavalo.

—O que acontece? —sussurrou ela olhando-o fixamente.

O assentiu fazia um ponto na lonjura enquanto encaixava a mandíbula.

—Essa é a casa em que vai viver. A casa do Haijar.

Ela se girou na cadeira e deu um salto. Ao longe, no horizonte, viu uma enorme monstruosidade de mansão. Um castelo de pedra vermelha com bandeiras vermelhas ondeando nos mastros. Contemplou-o horrorizada.

—Ele não está aqui — disse Kareef com calma—. Não estão em casa.

—E onde está? —sussurrou ela—. Aonde foram?

—Eu não gosto do aspecto dessas nuvens — ele sussurrou ao soltar o ar e se removeu na cadeira—. As vê?

As tormentas de areia eram o tema de numerosos relatos de medo que se contavam aos meninos do Qusay, de modo que Jasmine olhou espantada para o horizonte. O céu, em efeito, obscureceu-se até adquirir um profundo tom marrom cinzento. Entretanto, mal era capaz de olhar mais à frente do odioso castelo do Umar. Ao compará-lo com o singelo lar do Kareef no oásis sentiu vontade de chorar. Mas não podia permitir que ele a visse chorar. Não podia!

—Jasmine, deveríamos voltar — disse ele com calma a suas costas—. E logo temos que falar.

Ela se girou bruscamente na cadeira. A mão de Kareef se dirigia ao bolso da calça. Ela conteve o fôlego. Ia tirar o colar de esmeralda. Não necessitava de mais nada que entregar-lhe e pronunciar três palavras para que estivessem separados para sempre.

Que ironia. Dentro da mesma hora em que se deu conta de que estava apaixonada por ele, divorciar-se-ia dela.

Casar-se-ia com Umar e seria sua esposa troféu, enjaulada naquele monstruoso castelo e outras suntuosas mansões de idêntico luxo espalhadas por todo mundo.

Gozaria de respeitabilidade. Teria uma família.

Mas em troca de sua alma.

—Terá que apressar-se — Kareef entreabriu os olhos e contemplou de novo o horizonte—. Vamos.

Emitiu um leve assobio e girou seus arreios para lançar-se ao galope, dando por feito que ela o seguiria.

Jasmine o contemplou durante uns segundos.

—Não — sussurrou—. Não o farei.

A jovem girou seus arreios em direção oposta. Deu uma ordem seca junto à orelha da égua e se agarrou contra suas costas enquanto cravava os joelhos nos flancos. O cavalo partiu a galope com um suspiro.

—Jasmine! —gritou Kareef a suas costas—. O que faz? Volta!

Mas ela não podia. Nem sequer era capaz de olhar para trás. O amor a queimava como o ácido, dissolvendo sua alma.

Apertou os joelhos com mais força e manteve o corpo agachado contra as costas da égua, subindo pelo cânion vermelho. Montando por sua vida.

 

Kareef conteve o fôlego ao ver Jasmine saltar através de um arbusto de zimbro e passar roçando uma artemísia. Tempo atrás, os cavalos a aterrorizavam. Entretanto, naqueles momentos cavalgava com a graça e naturalidade de um nômade do Qusay.

Contemplou horrorizado a nuvem de pó que se formava através do deserto.

Jasmine não tinha nem idéia de como era essa égua de verdade, mas ele sim sabia. Havia um motivo claro pelo qual Bara'ah não se encontrava naquele momento no estádio treinando para a corrida da taça Qais, que teria lugar dois dias mais tarde. No ano anterior tinha deixado a um cavaleiro engessado dos pés a cabeça. Com um enorme repertório de vícios, não havia coisa que gostasse mais que lançar a seus cavaleiros ao chão.

Em sua mente se formou a imagem de Jasmine, golpeada contra uma rocha, encolhida e sangrando, tal como a tinha encontrado treze anos atrás.

—Jasmine! Pára!

Mas o que ela fez foi esporear à égua para que fosse com mais velocidade.

O pânico assaltou Kareef ao jogar outra olhada ao horizonte e ver as dispersas nuvens marrons, que avançavam muito depressa. Muito depressa. Poucos minutos mais tarde, o deserto sofreria uma tormenta de areia que dizimaria tudo a seu passo e o deixaria enterrado abaixo de enormes quantidades de areia.

Sentiu um calafrio que o atravessou por completo. Deu-se meia volta e com férreo controle cravou os joelhos nos flancos do cavalo. O animal saiu disparado para diante enquanto relinchava. Mas Jasmine ia muito adiantada

Seu gesto o tinha pegado por surpresa. Ninguém o tinha desobedecido em anos.

Deveria ter esperado dela.

Enquanto a perseguia, lançou outra olhada a suas costas. As nuvens começavam a agrupar-se com força através da extensão do deserto. O céu estava cada vez mais escuro. Já não havia nenhuma dúvida. Sujeitando com força as rédeas com uma mão, com a outra procurou o celular no bolso da calça, para descobrir que tinha desaparecido, sem dúvida perdido durante a corrida pelo deserto. Em troca, o que ainda conservava era o colar de Jasmine.

Entreabriu os olhos ao vê-la cavalgar para o cânion. Ninguém iria em sua ajuda antes da tormenta.

A sorte estava arremessada. Teria que salvá-la ele sozinho.

Enquanto se mantivesse a coberto, enquanto não saísse do cânion, sobreviveria.

Mas se saísse à planície, a tormenta de areia a engoliria viva.

Os cascos do cavalo golpeavam o chão no mesmo ritmo que os pensamentos de Kareef, que corria a toda velocidade para o escuro cânion ao encontro de Jasmine.

Tinha que encontrá-la.

Encontrá-la-ia.

Esticou os fortes músculos das coxas contra a cadeira, inclinou-se para diante e apressou ao cavalo para que fosse mais rápido. Tinha crescido entre esses cânions. E de novo se converteu no descuidado cavaleiro que não temia nada… salvo perdê-la.

Correu cada vez mais depressa. O garanhão levantava o pó do deserto aos quatro ventos. Passou sob os bicudos arcos e os altíssimos precipícios do cânion.

Em poucos minutos a alcançou. Inclinando-se para frente gritou seu nome por cima do ensurdecedor ruído dos cascos dos cavalos.

Jasmine olhou para trás e uma expressão de pânico cruzou seu semblante. Com a voz afetada pelo medo, urgiu à égua para que corresse mais.

Mas Kareef reduzia cada vez mais as distâncias e, no final, alargou uma mão em um intento de agarrá-la.

Entretanto, ela fez que a égua girasse bruscamente para o oeste, para uma abertura na rocha e começou a subir pela ladeira, fora do cânion.

—Não! —gritou ele—. A tormenta!

Suas palavras ficaram afogadas no crescente uivo do vento e sob o ensurdecedor, distraído, alegre e selvagem galope da égua.

Kareef sentia mais que ouvia o avanço da tormenta a suas costas. As primeiras nuvens começaram a lhes rodear pintando o céu de uma doentia cor marrom cinzenta. Os penhascos estavam cada vez mais escuros e ocultos em profundas sombras.

Amaldiçoando a ela e a si mesmo, fez girar ao cavalo para segui-la. Jasmine era rápida, mas ele o era mais. Pela primeira vez em treze anos voltava a ser Kareef Al'Ramiz, o temerário cavaleiro. Implacável. Invencível.

Morreria antes de perder essa corrida.

—A tormenta de areia! —gritou por cima do uivo do vento.

No alto da cela, ela se voltou bruscamente. Mas, nesse mesmo instante a égua parou em seco, farta da corrida e, deliberadamente, quase por diversão, jogou sua amazona ao chão. Durante um longo e terrível instante, Kareef viu como sua amada voava pelos ares.

A égua farejou o ar e saltou delicadamente em direção contrária antes de retornar pelo mesmo caminho pelo que tinha vindo, dirigindo-se para o estábulo e a rica aveia que a aguardava.

Jasmine golpeou o chão e se encolheu sobre o pó. Kareef tinha o coração apertado enquanto todas as lembranças do passado o assaltavam. Saltou do cavalo e caiu de joelhos ante ela.

—Jasmine — sussurrou angustiado enquanto lhe acariciava o rosto—. Jasmine!

Como se se tratasse de um milagre, a jovem tossiu em seus braços. Seus formosos olhos bordejados de negras pestanas o olharam. Tragou saliva e tentou falar.

—Não fale — ordenou ele. O alívio debilitou seu corpo ao tomá-la nos braços. Sujeitou-a com força, consciente de não querer deixá-la partir jamais. Como tinha podido sobreviver tantos anos sem ela? Como teria podido saber se estava viva se não a tivesse açoitado até o último limite da terra?

Ao longe ouviu retumbar os trovões, a areia e o vento.

—Tenho que lhe tirar daqui — assobiou para chamar o cavalo—. Não resta muito tempo.

Olhou a suas costas com angústia. A parte resguardada do cânion estava muito longe. Jamais conseguiriam.

—Pensei… — Jasmine seguiu seu olhar e seu rosto empalideceu ao ver o escuro muro de nuvens—. Pensei que era um truque — disse com voz entrecortada.

Criou-se no Qusay. Sabia o que podia fazer uma tormenta de areia.

—Temos que encontrar um refúgio — ele negou com a cabeça enquanto esfregava a mandíbula com força e a olhava nos olhos—. O mais rápido.

—Não — os olhos cor chocolate se abriram desmesuradamente ante o horror—. Ali não, Kareef. Prefiro morrer!

Ele sentiu como a areia começava a lhe golpear o rosto.

—Se não te levar imediatamente a um lugar seguro — disse com amargura—, certamente morrerá.

Jasmine choramingou e sacudiu a cabeça. Entretanto, Kareef sabia que ela tinha visto como a escuridão se apropriava do sol, e tinha que sentir a areia golpeando sua pele. Se não encontrassem um refúgio, logo começariam a respirar areia. Arrancar-lhes-ia a pele e logo lhes enterraria vivos.

—Não! —gritou ela, esperneando e lutando ao sentir que ele a montava sobre o cavalo antes de fazer o mesmo—. Não posso voltar!

—Não te deixarei aqui para que morra — rugiu ele enquanto esporeava ao cavalo para que se dirigisse para a colina mais próxima.

—Faz muito tempo que morri — os olhos se encheram de lágrimas e sua voz se quebrou enquanto contemplava o escuro buraco escondido na rocha vermelha—. Morri nessa cova.

A dor que Kareef ouviu em sua voz era insidioso, como uma nuvem de fumaça. Aspirou essa dor, e sentiu como infectava também seu próprio corpo.

Jasmine Kouri. A que uma vez foi sua vida. A que uma vez foi seu tudo.

—Não posso lhe deixar morrer — disse enquanto seu olhar adquiria uma repentina dureza.

Ela se revolveu na cadeira e lhe rodeou o pescoço com os braços enquanto o olhava suplicante.

—Por favor — sussurrou com os olhos alagados de lágrimas—. Se alguma vez me quis, por favor, não me leve ali.

Ele contemplou o formoso rosto e o coração lhe parou no peito.

Se alguma vez a tinha querido?

Tinha-a querido mais do que um homem deveria amar a uma mulher. Mais do que um homem deveria amar algo que não suportaria perder. Olhando-a novamente aos olhos, soube que lhe daria qualquer coisa que lhe pedisse, até sua própria vida, para que deixasse de chorar.

Então viu uma gota de sangue aparecer na pálida pele de sua bochecha, como uma rosa vermelha surgindo da terra. O primeiro sangue.

De sua garganta surgiu um rugido. Daria sua própria vida, mas não a dela. A dela não.

Ignorou seu pranto e esporeou ao cavalo negro para a planície em direção ao penhasco de rocha vermelha. O som dos gemidos de Jasmine se mesclava com o do vento. Sentiu como sua pele começava a sofrer pequenos cortes produzidos pela areia.

Sujeitou-a com força contra seu peito para protegê-la enquanto se dirigia para o último lugar que gostaria de voltar a ver. O lugar no que ambos tinham perdido tudo treze anos atrás. Seu inferno particular.

Obrigou a seu coração a endurecer-se até adquirir a consistência do granito e cavalgou direto para a cova.

—Não! — gritou Jasmine em seus braços enquanto tentava saltar do cavalo. Mas Kareef não a soltava.

Sentiu o enlouquecido galope do cavalo sob seu corpo. Sentiu o calor do peito de Kareef contra suas costas. Sentiu os fortes braços que a protegiam enquanto a areia começava a formar redemoinhos a seu redor com uma mortífera força.

O uivo do vento se fez mais forte. Seus escuros cabelos formavam redemoinhos ao redor de seu rosto. Fechou os olhos e lutou contra a crescente quebra de onda de pânico. Levava-a a cova. O lugar que a tinha aterrorizado além de toda lógica e razão em milhares de pesadelos.

—Conseguiremos — disse Kareef bruscamente, como se tentasse convertê-lo em realidade por sua mera vontade. Seu grito soou como um sussurro sob o rugido da tormenta.

Olhando para trás viu o muro de nuvens que avançava como uma enorme nuvem negra atrás deles, um redemoinho negro que arrasava tudo a seu caminho.

Alcançaram a cova bem a tempo. Ele a desceu do cavalo e penetraram um pouco mais ao interior da escuridão. Jasmine cambaleou e pôde ver a enorme onda de vento e areia passar frente à cova, envolvendo-os em uma nuvem de pó que lhes fez tossir.

Deu uns torpes passos e olhou cegamente a negra boca da cova. E contra sua vontade viu o lugar exato no que tinha perdido ao bebê.

A dor a sobressaltou, golpeando-a como uma corrente de sacudidas. A angústia abriu passo, tão devastadora como o muro de areia do exterior, e esmagou sua alma sob o peso.

Kareef se voltou para o cavalo e o atou a uma rocha próxima enquanto ela sentia que as trementes pernas começavam a ceder. Apoiou-se contra a parede de rocha vermelha e se deslizou até o chão, incapaz de desviar o olhar do lugar da terra no que tinha estado a ponto de morrer.

No que tinha morrido.

Ao outro lado da cova viu Kareef, que acalmava com doçura ao garanhão, sussurrando palavras no antigo dialeto do Qusay enquanto lhe tirava a cadeira. Ofereceu-lhe água e comida e logo o escovou em largas passadas. O som da escova encheu a cova. Ela o olhou fixamente…

Kareef cuidava de tudo aquilo que amava. Seria um pai formidável.

Mas jamais poderiam compartilhar um filho.

Nem um só dia passava sem que pensasse no bebe que tinha perdido no acidente com o cavalo, antes inclusive de saber que estava grávida. Seu bebê teria nesse momento doze anos. Um menino com os olhos azuis de seu pai? Uma menina com as bochechas gordinhas e um doce sorriso?

Kareef acendeu uma fogueira com a lenha deixada por algum nômade da região e ela não pôde evitar um sonoro soluço que surgiu de seu interior.

—Sinto muito — sussurrou enquanto o olhava com os olhos alagados de lágrimas—. Perdi a nosso bebê por minha culpa.

Ele deu um salto e de repente foi para seu lado, rodeando-a com seus braços. Apoiado contra a parede da cova sentou-a em seu regaço e a sujeitou contra o peito como se fosse uma menina.

—Não foi tua culpa. Jamais — disse em voz baixa—. Eu sou o único culpado.

Falou com voz entrecortada enquanto o pequeno fogo lançava sua luz às profundidades da cova, formando sombras vermelhas sobre o chão de terra. Ela o olhou pausadamente. À luz do fogo, seu rosto se via impreciso.

Jasmine piscou, transbordada pela dor que se refletia nos olhos de Kareef. Ouvia o rugido do vento e os golpes da areia contra a rocha no exterior. Instintivamente, alargou uma mão para acariciar os escuros cabelos da cabeça inclinada, mas se conteve.

—Não cumpriu a promessa que me fez, Kareef — disse ela com voz rouca—. Trouxe um médico a esta cova depois de me haver dado sua palavra de não fazê-lo. Embora ambos sabíamos que era muito tarde.

—Jasmine, você estava morrendo! —ele a olhou com raiva—. Fui um idiota por te fazer uma promessa assim, um idiota por pensar que poderia cuidar de ti eu sozinho, um idiota ao pensar que o amor, sem mais, poderia te salvar.

—Mas quando perdi nosso filho, junto com a capacidade de voltar a conceber — disse ela com voz apagada—, não te faltou tempo para desaparecer de meu lado.

As mãos de Kareef se fecharam em torno dos ombros da jovem. A profunda fúria em seus olhos a assustou.

—Parti para me deixar morrer — rugiu e com um profundo suspiro a soltou e começou a arrancar os cabelos—. Falhei. Não suportava ver a acusação e a pena em seus olhos. Fugi ao deserto para morrer.

Sua voz ressoava na fria escuridão da cova.

Tinha tentado morrer. Ele forte, poderoso, valente menino que ela tinha amado? O rei bárbaro do qual ela pensou uma vez que era indestrutível?

—Não — disse ela—. Você não faria uma coisa assim.

—Outro fracasso mais em minha lista.

—Mas… não foi culpa tua — estupefata, ela contemplou o atrativo rosto semi-oculto entre as sombras.

—Fui eu quem selou ao Razul para ti. Fui eu quem te convenceu para que o montasse. Estava tão ansioso por cavalgar contigo… — riu amargamente—. Pensei que poderia te proteger.

—Kareef — soluçou ela—. Deixe disso já.

—Depois do acidente — ele já não escutava—, permiti que ficasse aqui na cova durante dias, ferida, sem receber os cuidados de um médico. Quase morre por culpa da infecção.

—Tentava proteger a minha família da vergonha.

—Quando ao fim trouxe o médico, era muito tarde, e nem me ocorreu me preocupar de seu ajudante — soltou uma gargalhada cheia de amargura e frágil como as folhas secas voando ao vento—. Depois, quando desapareci no deserto, deixei-te, pensando que seria mais feliz sem mim, a salvo e protegida por sua família. Jamais me ocorreu pensar que estouraria o escândalo e que lhe enviariam ao desterro. Quando me inteirei de que já não estava no Qusay, levava três anos em Nova Iorque! —inclinou-se para diante com a mandíbula encaixada. Os olhos brilhavam escuros sob a luz das chamas—. Mas lhe fiz pagar pelo dano que te causou.

—A quem? —os carnudos e rosados lábios do Jasmine tremeram.

—Ao Marwan. Quando descobri que tinha sido ele quem tinha iniciado os rumores, desapropriei-lhe de tudo o que tinha. Desterrei-o.

—Obrigada — sussurrou ela. Um pequeno suspiro escapou de seus lábios—. Sabia que me chantageou?

—O que?

—Durante o trajeto de volta à cidade, estando eu ainda estava sob o efeito da febre, ameaçou-me contar a todo mundo do aborto. Disse que me acusaria de havê-lo feito de propósito para me desfazer do bebê. Diria que tinha tido inumeráveis amantes e que nem sequer sabia quem era o pai. Disse que me arruinaria a vida — ela respirou fundo e se obrigou a olhá-lo aos olhos—. Disse que faria tudo isso… se não me convertesse em seu amante.

—Como? —explodiu Kareef tentando recuperar o fôlego.

—Ele tinha medo de você —sussurrou Jasmine enquanto enxugava as lágrimas com força—, mas a mim não. Quando me neguei, cumpriu sua ameaça. Em poucos dias, o escândalo custou a meu seu pai o posto em palácio. Seus inimigos conseguiram a arma que necessitavam. Se meu pai não era capaz de controlar a sua própria família, disseram, como poderia aconselhar ao rei? De modo que já vê que todo o acontecido foi culpa minha — ela respirou fundo—. Tudo minha culpa.

Levantou a vista e olhou Kareef.

E mal reconheceu ao homem que viu.

Uma fúria, como jamais tinha visto antes, cobria seu rosto. Uma fúria que lhe deu medo.

—Matá-lo-ei — rugiu enquanto ficava em pé com os punhos apertados—. Em qualquer lugar que se esconda esse homem, encontrá-lo-ei e lhe farei experimentar tal sofrimento que…

—Não — ela deu um salto e tomou uma mão—. Por favor. Todo aquilo já passou — apoiou a mão de Kareef em sua própria testa e fechou os olhos—. Por favor, só quero esquecer.

A mão apoiada na testa de Jasmine se esticou, e logo se relaxou. Lentamente, deixou-se cair ao chão até ficar ajoelhado frente a ela.

—Quando descobri que lhe tinham obrigado a se exilar — ele tomou as mãos de Jasmine entre as suas—, já era muito tarde para fazer outra coisa que não fosse lhe enviar dinheiro a Nova Iorque — a voz lhe quebrou—. Entretanto, após, cada dia tentei expiar minha culpa — desviou o olhar—. Mas agora sei que jamais será possível, por muito que o tente.

—Kareef — sussurrou ela com lágrimas nos olhos—. Não foi tua culpa. Foi… foi… — apoiou uma mão sobre o forte ombro enquanto contemplava a suave parede de rocha da cova e a verdade se fazia patente em sua cabeça—. Foi um acidente.

—O que disse?—ele se esticou lentamente.

—Um acidente. Ela o olhou. De repente era como se o sol tivesse atravessado as escuras nuvens, as substituindo por luz e paz. Suspirou e as lagrimas alagaram seus olhos—. Estava grávida de muito pouco. Nem sequer sabíamos. Jamais poderemos esquecer que quase tivemos um filho. Mas precisamos perdoar. Os dois. Não foi tua culpa.

—Oxalá pudesse te acreditar — ele tinha a voz grave enquanto lhe contemplava as mãos—. Está tremendo.

Era certo. Tremia, mas não de frio.

Kareef se levantou e se dirigiu para o cavalo. Rebuscou nos alforjes e encontrou uma manta vermelha que desdobrou junto ao fogo. Jasmine observou seu rosto sob as sombras da fogueira. Seu coração sangrava de dor.

Durante todos esses anos tinha acreditado que ele a culpava por tudo. E ele tinha pensado o mesmo dela.

Para ela tinham sido treze anos de exílio.

Para ele, uma morte em vida.

—Toma — disse ele em voz baixa—. Pode se deitar aqui. Está mais quente — acrescentou enquanto lhe dava as costas—. Eu ficarei acordado e vigiarei até que passe a tormenta.

Tremente, Jasmine ficou em pé. Lentamente caminhou para ele e, ficando nas pontas dos pés, apoiou uma mão em sua bochecha e o obrigou a olhá-la.

—Foi um acidente, Kareef — disse olhando-o aos olhos—. Não foi tua culpa!

—É possível que chegue a me perdoar? —ele inspirou ruidosamente lhe devolvendo o olhar. Os olhos azuis eram profundos e infinitos como o mar.

—Como poderia te culpar? —lhe acariciou a bochecha enquanto lhe enchiam os olhos de lágrimas—. Foi… sempre foste… —«meu único amor», pensou, embora o que disse com voz entrecortada foi outra coisa— meu mais querido amigo.

Ela ouviu a respiração acelerada de Kareef e sentiu o forte martelar de seu coração contra o dela. O masculino corpo ardia. Sua pele cheirava a almíscar, sol e areia.

Kareef a olhou e esse olhar a queimou, esticou cada uma de suas terminações nervosas, das pontas dos dedos das mãos até as dos pés, de pura antecipação enquanto seguia ouvindo o uivo da tormenta fora da cova.

—E você a minha.

Agachando a cabeça, beijou-a.

Escondidos na cova, ocultos do mundo exterior e protegidos da tormenta, beijou-a como se não existisse ninguém mais no universo. Empurrou-a contra a parede de rocha vermelha da cova e lhe devolveu o beijo com ardor, vertendo o coração em seus lábios.

Bruscamente. Kareef se separou dela. Jasmine piscou, estupefata. Os azuis olhos se obscureceram de desejo. Sentia seus rosados lábios inchados e machucados ante a força dos beijos, quase tão machucados como seu coração em processo de cura.

Com um grunhido, tomou em seus braços sujeitando-a contra o forte peito como se não pesasse nada. Ela o olhou sem fôlego, deslumbrada por sua força brutal. Ouvia o uivo do vento que lançava areia contra a rocha, e também ouvia as queixa do cavalo. A pequena fogueira lançava sombras de fogo contra a suave rocha vermelha da cova.

Ali estavam a salvo. Ali estavam ao abrigo. Ali estavam juntos.

Ele a deitou delicadamente sobre a manta antes de despojar-se da camisa branca, a calça negra e os sapatos. Jasmine contemplou maravilhada o corpo nu de pé ante ela. Os músculos refulgiam sob a luz do fogo.

Ajoelhando-se sobre a manta, junto a ela, lentamente lhe tirou as calcinhas e as deslizou pelas pernas.

E de repente, com um travesso sorriso nos lábios, jogou-as na fogueira.

—O que faz? —balbuciou ela enquanto contemplava como ardia o objeto de algodão branco—. Por que fez isso?

—Precisávamos alimentar o fogo — ele elevou uma sobrancelha e lhe dedicou um sensual olhar.

Jasmine já tinha um fogo ardendo em seu interior, consumindo-a inteira. Ele fez que se incorporasse até que esteve também de joelhos e lhe levantou a saia do vestido até os quadris. Estava nua enquanto ele deslizava sua dureza contra seu mais sensível núcleo, oscilando de trás para diante. Depois se ergueu para beijá-la.

Ardente. Ardente. Jasmine se queimava. Pouco a pouco se convertia em cinzas e chamas.

—Me tire o vestido — sussurrou ela—. Tire isso—Você… — disse ele com um gesto de aprovação enquanto deslizava as mãos sobre os femininos seios e depositava pequenos beijos em seu pescoço— é pura lascívia.

De um puxão lhe arrancou o vestido de algodão branco e o jogou no chão. Ela se sentou em seu regaço com as pernas enroscadas ao redor da robusta cintura. À luz das chamas, contemplou os nus corpos entrelaçados. Ele começou a mover-se contra ela e os suaves ofegos que provocou logo se assemelharam aos uivos do vento no exterior.

A tensão cresceu no interior de Jasmine à medida que Kareef se deslizava sobre ela. O prazer foi aumentando e, de repente, elevou-a com seus fortes braços e a penetrou com uma única e profunda sacudida. A profundidade da penetração a deixou sem fôlego.

Não só lhe tinha enchido o corpo. Também lhe tinha enchido a alma.

Jasmine se aferrou aos fortes ombros e deixou que o prazer aumentasse em seu interior, mais e mais. Mas inclusive quando a euforia ao fim a rasgou, fazendo-a estalar em pedaços, manteve o segredo bem guardado em seu interior.

«Amo-te».

«Sempre te amarei».

Não podia pronunciar essas palavras em voz alta, porque sabia que não significariam nada.

 

Durante um instante, Kareef temeu lhe ter feito mal. Mas segundos depois, ela gemeu e começou a balançar-se contra ele, fechando as pernas sobre sua cintura enquanto ele a enchia.

Ante o movimento de Jasmine, e ao sentir os femininos seios esfregando-se contra seu torso, conteve o fôlego antes de lançar-se novamente em seu interior, enchendo-a de tal maneira que não pôde reprimir um rugido que escapou do fundo de sua garganta.

A luz das chamas desenhava sombras sobre o formoso rosto de carnudos e inflamados lábios, com as longas e negras pestanas firmemente fechadas em uma expressão de felicidade. Ao observá-la, ficou sem fôlego ante o esforço necessário para conter-se.

Apesar de estar em seu interior, era ela quem o enchia.

Jasmine, sua beleza, sua infinita sensualidade. Jasmine se balançava contra ele com a graça de uma ninfa. Sobre a branca pele de seu pescoço de cisne se deslizavam pérolas de suor enquanto ofegava e se jogava para trás. O véu de seu escuro e sedoso cabelo caía em ondas sobre as costas, balançando-se ao ritmo de seus gemidos. Os formosos olhos permaneciam fechados.

Kareef lhe sujeitou o queixo para obrigá-la a elevar a cabeça e a beijou, lhe provocando um gemido de prazer afogado enquanto se aterrava aos fortes ombros e lhe cravava as unhas para marcá-lo em seu próprio ato de posse.

A força da penetração foi brutal e incontrolável. Ao ouvi-la gritar, ele soube que não podia controlar-se por mais tempo. Sujeitou-a com força contra seu corpo e se verteu em seu interior com um grito.

Depois caiu rendido sobre a manta e a atraiu para si. Não soube quanto demorou para despertar, mas ela dormia em seus braços.

Ambos estavam nus. O fogo diminuía e a noite era cada vez mais fria à medida que a escuridão se apropriava de tudo.

Sentiu um calafrio. Contemplou o formoso rosto da mulher que dormia com a bochecha apoiada em seu peito. Sua beleza ia além dos escuros cabelos ou os rosados e perfeitos lábios. Era mais profunda que a pálida pele de rosadas bochechas.

Apesar de lhe haver feito o amor numerosas vezes, não conseguia saciar-se. Começava a temer que jamais o fizesse.

Não queria divorciar-se dela.

Sem fazer ruído, deslizou-se de debaixo do feminino corpo e ficou em pé. Atravessou a cova e tirou outra manta dos alforjes do cavalo. Depois se aconchegou novamente junto a ela e cobriu a ambos com a manta enquanto a rodeava com um braço. Sabia com absoluta certeza que jamais a deixaria partir.

Sentindo uma crescente sonolência, olhou-a, dormindo contra ele. Assim era como a desejava cada noite. Em sua cama. A sua mesa. A sua mão. Dançando em seus braços.

Com essa beleza e delicada graça, Jasmine seria a rainha perfeita. Entretanto…

Apertou a mandíbula com força enquanto contemplava o fogo que se apagava.

Tinha que divorciar-se dela. Sua obrigação era proporcionar um herdeiro à dinastia. Os Al’Ramiz tinham reinado no Qusay durante mil anos. Seu primo, Xavian, tinha renunciado ao trono ao saber que tinha sido um menino trocado, que tinha suplantado ao autêntico Xavian depois do falecimento deste.

O sangue era tudo. Proporcionava aos Al’Ramiz o direito a reinar. Não só o direito, mas também a obrigação. E Jasmine jamais poderia ficar grávida.

Sentiu um nó formar-se na garganta. Desviou o olhar e se fixou nos montículos e rochas de terra iluminadas pelas brasas. No exterior até se ouvia o tamborilar da areia contra as rochas dos penhascos e o uivo enfurecido do vento que cada vez era mais débil.

E dormiu profundamente, abraçado com força a sua mulher.

 

—Kareef — o corpo nu de Jasmine se revolveu—. Está acordado?

A doce e cálida voz parecia provir de um sonho que o alagava de paz. Lentamente, abriu os olhos.

Através da entrada da cova, sobre os montículos de areia, viu a cinzenta luz do amanhecer que subia sobre as montanhas. O vento tinha cessado. O deserto estava em calma. Ouvia-se o som dos pássaros, e a débil queixa do cavalo que reclamava seu café da manhã.

Já amanhecia. A tormenta tinha passado.

E seu tempo também.

A contra gosto, voltou-se para Jasmine. Seu rosto era como a água fresca, um bálsamo para sua alma. Os olhos marrons pareciam profundos lagos de luz. E isso não fazia mais que piorar a dor.

Não queria deixá-la partir.

—Mal amanheceu — lhe mentiu com doçura sem soltá-la—. Volte a dormir.

Durante uns segundos ela se recostou sobre ele e o silêncio se apropriou da fria escuridão da cova. Entretanto, em seguida se virou de novo e levantou a cabeça para olhá-lo.

—Crê que seus homens nos estarão procurando?

—Sim — respondeu ele—. Em seguida estarão aqui.

—Então chegou a hora — Jasmine respirou fundo e se separou dele. Sua voz soava estranhamente impessoal.

—A hora?

—A hora de que te divorcie de mim.

Ele a olhou, estupefato. A doce expressão se tornou pétrea e os lagos de luz desapareceram. Os olhos marrons se posaram na calça negra enrugada ao outro lado da cova.

—Sei que leva a esmeralda contigo — sussurrou.

—Sim — admitiu ele com a mandíbula encaixada—. A trouxe comigo.

—Tanta vontade tinha de se desfazer de mim?

—Prometi te deixar libere.

—Pois fá-lo — ela elevou o queixo com expressão a meio caminho entre o desafio e a dor.

Kareef fechou os punhos com força.

Jasmine tinha razão, tinha chegado a hora. A tormenta tinha passado e seus homens estariam rastreando o deserto. Logo os encontrariam e ele voltaria para o Shafar, ao palácio real, a seus intermináveis deveres. Aquela mesma noite ofereceria o banquete real.

E no dia seguinte, assistiria à taça Qais. E seria testemunha das bodas de Jasmine Kouri com Umar Haijar.

Tinha amanhecido e a magia se esfumou.

—Kareef? —Jasmine o olhou com uma expressão de profunda tristeza nos olhos.

Estava claro que sentia o mesmo que ele. Não desejava o divórcio.

A evidência o alagou de uma repentina força.

Não renunciaria a ela. Ainda não. Inclusive não tinha terminado com ela.

—Não — rugiu—. Ainda não direi as palavras.

—Mas Kareef… —balbuciou —, sabe que tem que fazê-lo!

«Tem que»? Ele se sentou. Enquadrou os ombros e todo seu corpo se esticou como o aço. Olhou-a com dureza, egoísta e desumano como os antigos sultões.

—Não há nenhum «tem que» valha — rugiu enquanto elevava o queixo e a olhava com olhos injetados de orgulho—. Sou o rei do Qusay. E até que te deixe partir, pertence-me.

«Pertence-me».

Jasmine estremeceu ante aquelas palavras. Não podia negar sua veracidade. Pertencia a Kareef. Sempre lhe tinha pertencido, em corpo e alma.

Mas ele era o rei do Qusay, não podia seguir casado com uma mulher estéril. E tampouco podia conservá-la abertamente como seu amante. O escândalo deixaria em ridículo o que tinha estalado treze anos atrás.

Com um tremente suspiro, fechou os olhos. Tinha voltado para o Qusay para ajudar a sua família, não para arruiná-la de novo. Além disso, depois de tudo o que tinha feito por ela, para Umar a humilhação pública seria como se o apunhalasse.

Tinham que divorciar-se, tinham que despedir-se. Não havia outra solução. Se ficasse com Kareef, tal e como desejava, se se permitia ser egoísta, destruiria a todos aqueles a quem amava. Levantou a vista e o olhou aos olhos.

Os guarda-costas os estariam procurando, sem dúvida aterrados pelo desaparecimento de seu rei em meio da tormenta de areia.

Isso que se ouvia ao longe não era um helicóptero?

«Não!», disse-se com desespero. «Ainda não!»

Entretanto, não ficava mais remédio que enfrentar à realidade. Esse doce parêntese roubado tinha chegado a seu fim.

Apartando-se do calor de Kareef, ficou lentamente em pé. Era muito tarde para recuperar as calcinhas, já que tinham ardido na fogueira, mas não para o soutien de algodão branco que encontrou no chão da cova.

— Isso não te faz falta — disse Kareef convexo de costas sobre a manta—. Ainda ficam várias horas. Mal amanheceu.

Ela não respondeu.

—Jasmine — ele se apoiou sobre um cotovelo.

Ela não olhou para trás. Temia que se contemplasse a letal intensidade de seu olhar azul ficaria apanhada de novo pela magia e perderia a capacidade de fazer o correto. Inclusive nesses momentos, seu corpo se estremecia pelo esforço de desafiá-lo e, pior ainda, desafiar seus próprios e íntimos desejos.

Encontrou o vestido branco de algodão, sujo e com alguma rasgadura, enrugado detrás de uma rocha. Parecia que tivesse passado séculos desde que ele o tinha arrancado.

Após tinham acontecido muitas coisas. Mundos inteiros tinham trocado.

Sentiu seu olhar sobre ela, mas não se voltou para não encontrar-se com esses olhos.

Nu. Kareef ficou de pé de um salto, como um guerreiro. Abraçou-a e a obrigou a girar-se e a olhá-lo aos olhos.

—O que tem? O que acontece?

—Obrigado por estes maravilhosos dias no deserto — ela tragou com dificuldade. Tinha a sensação de que o coração lhe sangrava, quebrado em mil pedaços, em seu peito—. Nunca os esquecerei.

—Ainda temos tempo.

Uma tremente Jasmine fechou os olhos. Resultar-lhe-ia mais fácil falar se não tivesse que olhar o rosto belamente masculino, a sensual boca, os olhos de uma impossível cor azul. O olhar de Kareef lhe despedaçava o coração.

—Terminou — sussurrou ela—. Terminamos.

—Me olhe — o sobressalto de Kareef era evidente. As mãos se relaxaram um instante antes de agarrá-la com mais força.

Ela não podia olhá-lo.

—Me olhe!

Obrigada a obedecer, ela abriu os olhos.

O rosto do Kareef estava escurecido por causa da ira.

—É minha. Jasmine. Enquanto te siga desejando.

Ela sentiu a garganta seca. Oxalá fosse certo, oxalá pudesse ser sua para sempre, ou ao menos durante uma noite mais.

—Como? —respondeu ela com voz rouca—. Como poderia ser tua, Kareef?

—Uniu-te para mim faz muito tempo — olhos de Kareef se obscureceram até adquirir o tom de mil tormentas sobre o mar Ártico.

—Kareef…

—Não te casará com ele amanhã. É muito cedo!

—E o que vai me obrigar a fazer? —torturados, os olhos de Jasmine o olharam—. Abandonar ao Umar no altar? Transformar-me em sua amante? Permitir a ruína de minha família?

—Poderíamos manter nossa relação em segredo… — ele encaixou a mandíbula.

—Em palácio não existem segredos! —gritou ela—. Ao menos no deserto, com seus serventes de confiança, poderíamos mantê-lo em segredo durante algum tempo. Mas sabe tão bem como eu que no palácio real os segredos não existem. É provável que já circulem rumores sobre nós. Causei muita dor a minha família, e agora minha irmã pequena está grávida. Como poderiam meus pais manter a cabeça erguida se aceitar a me converter em sua amante?

—Ninguém se atreveria a te chamar de tal coisa — rosnou cheio de raiva—. Seria respeitada como minha… minha… como minha…

—Como você o que, como sua esposa? Não podemos seguir casados. Sabe bem que não podemos!

—Posso fazer o que me agrade. A olhou com olhos brilhantes—. Sou o rei.

Jasmine ouviu ao longe o som das hélices de um helicóptero que sobrevoava o deserto. Não havia dúvida possível. Sacudiu a cabeça e soltou uma amarga gargalhada.

—Para um homem com seu sentido do dever — disse enquanto tentava conter as lágrimas—, ser rei te converte em menos livre que o mais humilde servente de seu palácio.

—Jasmine…

—Não! —gritou ela—. Não posso anular meu compromisso, seria uma humilhação para Umar e destroçaria a reputação de minha família. Meu primeiro escândalo, a gravidez de Nima… Meus pais jamais poderiam voltar a sair de sua casa

—Como pode preocupar-se tanto com eles depois do modo que lhe trataram?

—Porque os quero. Porque… —ela levantou a cabeça enquanto seus olhos se alagavam de lágrimas— são a única família, nunca terei outra. Eles, Umar e os filhos do Umar. Não posso ser a causa de sua ruína por me converter em sua amante!

—Não empregue essa palavra! Mataria a quem te chamasse assim.

—A todos? —um nó se formou na garganta de Jasmine, que riu com voz rouca—. Mataria a seus súditos por dizer a verdade?

—Não é a verdade — ele a sujeitou com força pelos ombros—. E você sabe!

—Como não poder qualificar a uma mulher noiva de outro homem e que acaba de fazer o que eu tenho feito contigo? —ela fechou os olhos durante uns segundos, tentando recuperar forças, tentando recuperar o fôlego.

—Não tem feito nada mau. É minha esposa.

—Me solte Kareef—sussurrou ela—. Deixe-me livre.

Ele a olhou com olhos cheios de uma impetuosa mescla de possessividade e uma emoção que lhe chegou à alma.

—Posso te proteger Jasmine.

—Como? —sussurrou ela enquanto sacudia a cabeça—. Nem sequer você pode fazer milagres.

—Que esteja agora aqui comigo já é um milagre —ele a olhou enquanto lhe sujeitava o rosto com as palmas das mãos—. E não te deixarei ir. Ainda não.

Jasmine sentiu os ásperos dedos sobre sua pele.

Sentiu seu corpo nu, quente, forte e duro contra o dela. Sentiu quanto a desejava. Sentiu o poder de sua selvagem força enquanto se agachava para beijá-la.

Os lábios de Kareef se moveram sobre os dela com profunda e deliciosa ternura. Persuadindo-a. Dominando-a, não só com sua sensualidade, mas também com a dor de seu próprio corpo e coração.

Quando finalmente a soltou, ela emitiu um leve suspiro. Olhou-o aos olhos, ao homem que amava, sentindo-se cálida e aturdida, impregnada da suave luz de sua cercania.

O beijo a tinha conquistado como não tinham obtido mil argumentos.

—É minha, Jasmine — ele soltou o ar que estava retendo e a atraiu contra seu torso nu enquanto murmurava, com a boca enterrada em seus cabelos, palavras quase inaudíveis—. E eu sou teu.

Ao longe, Jasmine ouviu sua voz interior que lhe dizia que ele não era dela, que jamais o seria, já não. Voltar com ele ao Shafar como sua amante secreta suporia arriscar tudo aquilo que mais lhe importava, a todos a quem amava.

Entretanto, não podia separar-se dele. Ainda não!

Fechou os olhos enquanto ele a abraçava. O destino decidiria seu futuro. De algum modo encontrariam o modo de estar juntos um pouco mais sem machucar ninguém, ou não?

O som do helicóptero se transformou em um estrondo e viu o redemoinho de areia que os sinais de multiplicação produziam à entrada da cova enquanto o aparelho aterrissava sobre a planície.

—Vista-se — Jasmine se separou dele alarmada—. Seus homens não podem te encontrar nu, e a sós comigo!

—Seria todo um espetáculo, verdade? —ele soltou uma gargalhada.

— Vista-se! —ela recolheu a roupa de Kareef do chão e a entregou.

Sorriu-lhe, e ela não pôde evitar lhe devolver o sorriso. Durante um segundo, o tempo se congelou entre eles com a antecipação de infinitas alegrias futuras

Mas então ouviu seus homens chamando-o, e ruído de motores. Ouviu as fortes pisadas, cada vez mais fortes, que se aproximavam da cova.

Suspirando ante o ansioso e suplicante olhar de Jasmine, Kareef se moveu com rápida precisão militar e colocou a cueca e as calças. Enquanto colocava a camisa, ela lançou uma última olhada ao atrativo corpo e se maravilhou de ser a única mulher que teve o incrível prazer de compartilhar seu leito. Como podia ser? Como podia ter sido tão abençoada pelos deuses?

De novo recordou a maneira reverente, ardente e terna em que a havia tocado durante a noite. E durante o dia…

—Senhor? Senhor!

O chefe dos guarda-costas de Kareef apareceu por cima da areia empilhada à entrada da cova antes de cair de joelhos, refletindo assim sua gratidão e alívio. Detrás dele, havia uma dúzia de homens com traje militar

—Louvado seja Deus! Essa maldita égua voltou sem cavaleiro justo antes que a tormenta alcançasse a casa. Pensávamos que… temíamos que…

Kareef abotoou a enrugada camisa branca e se colocou ante seus homens, alto e orgulhoso. Todo um rei.

—Estamos a salvo, Faruq. A senhorita Kouri e eu montávamos a cavalo quando fomos surpreendidos pela tormenta e nos refugiamos aqui. Obrigada por nos encontrar — assinalou o cavalo negro amarrado a uma rocha—. Por favor, te ocupe de que atendam ao Tayyib. Fez-nos um grande serviço.

—Sim, Senhor.

—E minha gente? Minha casa?

—Não houve feridos — respondeu o guarda-costas—. Alguns pequenos danos. Montões de areia. Trouxemos um médico no caso de fazer falta.

—Eu estou ileso. Mas faremos que revise à senhorita Kouri.

Faruq a olhou inquieto antes de fazer uma reverência e partir recuando para o exterior da cova. Jasmine sentiu as olhadas de soslaio do resto dos guarda-costas e seu rosto avermelhou.

—O helicóptero nos levará imediatamente de retorno ao palácio real — disse Kareef antes de voltar-se para ela e lhe estender uma mão—. Senhorita Kouri?

Um sorridente Kareef a escoltou ao exterior da cova, devolvendo-a ao ardente e branco sol. E, de repente, toda ansiedade desapareceu como se jamais tivesse existido.

Conduziu-a até o helicóptero que os aguardava, tentando ignorar os tensos rostos dos guarda-costas que os seguiam. Conseguiriam manter sua relação em segredo um dia mais. Um precioso dia mais antes que Kareef se visse obrigado a reconhecer que não tinha escolha, que devia divorciar-se dela antes que cada um partisse para as respectivas vidas que o destino tinha disposto para eles.

Um dia mais, pensou desesperada. Ninguém resultaria ferido por um dia mais de egoísmo. Um único dia podia parecer-se com toda uma vida.

Kareef conseguiria manter o segredo. Jamais se tinha conseguido guardar um segredo no palácio, mas ele encontraria o modo de fazê-lo. Era um ser mágico. Poderoso.

Era o rei.

 

Kareef corria com os ombros tensos pelo corredor do palácio real, apartando a seus ajudantes a seu passo.

Desde sua volta à cidade, cada minuto de sua agenda tinha sido meticulosamente ditado por cinco ajudantes diferentes e subsecretários que trabalhavam em equipe, fiscalizados pelo visir. As tarefas do rei não tinham fim. Tratados que negociar, sorrisos fingidos obrigados pela devida cortesia, diplomacia, política. Dizer uma coisa quando queria dizer outra. O que sabia ele de tudo isso?

Grunhiu para seus adentros. Já tinha aprendido muito mais do que tivesse desejado.

Odiava ter que manter Jasmine em segredo.

Ela tinha dormido apoiada contra seu ombro durante todo o trajeto no helicóptero do deserto. Ainda a sentia, ainda cheirava o embriagador aroma a laranja e cravo, apesar de haver tomado banho e trocado de roupa no palácio real.

Assim que teve posto um pé no palácio, quis levá-la a seus aposentos reais, mas ela tinha posto reparos enquanto olhava com receio aos numerosos secretários e ajudantes que o aguardavam. «Mais tarde», tinha-lhe sussurrado e, com um suspiro se viu obrigado a deixá-la partir. Prometeu a si mesmo que conseguiria cortar as reuniões para voltar o mais rapidamente possível à asa dos serventes.

Isso tinha ocorrido dez horas atrás. Seu visir, Akmal Al’Sayr, ainda rasgava as vestimentas pelos dias que Kareef tinha faltado. Ao parecer, nem sequer o fato de haver se perdido, e quase perecido no deserto bastava para desculpar a um monarca de seus deveres.

Virtualmente era de noite e não tinha visto Jasmine desde sua volta. Tinha desperdiçado um dia inteiro. Um dia dedicado às obrigações em um palácio cheio de corredores ocultos e insidiosas fofocas.

Apertou os punhos com força. Odiava aquele segredo, teria que convencê-la para que renunciasse a casar-se. De algum modo, conseguiria arrumar as coisas com Haijar. Uma vez que estivesse de acordo em anular as bodas, estaria disposto a divorciar-se dela. Mas não antes que conseguisse converter-se em seu amante para sempre

«Como poderiam meus pais manter a cabeça erguida se aceitasse a me converter em sua amante?».

Deu um salto ante o qualificativo. Não. «Maldita seja, não!». Arrojaria pessoalmente ao que ousasse insultá-la às masmorras bizantinas que se estendiam por debaixo do palácio. Enviá-lo-ia ao desterro no deserto sem água nem comida. Ele…

«Mataria a seus súditos por dizer a verdade?». Ouviu o eco das palavras sussurradas por Jasmine na cova. «Solte-me». «Deixe-Me».

Apertou a mandíbula com força e desterrou o pensamento de sua mente. Mantê-la-ia a seu lado enquanto a desejasse, mesmo que fossem dez anos ou cinquenta. Ainda era jovem, só tinha trinta e um anos. Ficaria só para ele e pospor suas próprias bodas tanto que pudesse.

Acelerou o passo grunhindo a um servente que se atreveu a olhá-lo.

Estaria Jasmine ainda acordada? Estaria nua sob os lençóis, com sua escura cabeleira estendida sobre o travesseiro? O desejo fez que se endurecesse imediatamente. Acelerou o passo ainda mais. Virtualmente corria.

—Permite-me umas palavras, senhor?

No corredor, junto ao despacho real, viu seu visir aparecendo pela porta.

—Mais tarde — rugiu sem deter-se.

—É obvio. Senhor — disse o visir com voz aveludada—. Só queria que soubesse que iniciei as negociações para o matrimônio real. Não terão que se preocupar de nada. Dentro de umas semanas lhe apresentarei a sua futura esposa.

Kareef se deteve em seco no meio do corredor, entrou na sala de recepção e fechou a porta.

—Não organizará nada — disse friamente—. Não me interessa o matrimônio.

—Mas, senhor, estas coisas levam seu tempo. E Sua Alteza já não é tão jovem…

—Tenho trinta e um anos!

—Depois do caos organizado pela abdicação de Zafir, os súditos necessitam do consolo e da segurança de ver perpetuada a linha de sucessão. Uma boda real. Uma família real — coçou a encanecida barba—. Pode ser que não resulte fácil encontrar a noiva adequada, uma jovem virgem com a linhagem adequada e uma reputação perfeita e imaculada…

—Por que tem que ser virgem? —perguntou Kareef.

—Para que não possa haver nenhuma dúvida de que os filhos são de Sua Alteza — respondeu o visir visivelmente surpreso—. O herdeiro jamais deverá ser posto em interdição.

—Não negociará um matrimônio em meu nome — Kareef apertou a mandíbula com força—. Proíbo-lhe.

—Possivelmente porque os interesses se dirigem em outra direção? —o visir o olhou com olhos ardilosos e brilhantes.

Kareef entreabriu as pálpebras enquanto se perguntava quanto saberia esse homem. O visir tinha espiões por toda parte. Estava tão obcecado pela segurança do país, que a intimidade não significava nada para ele.

—A que te refere?

—Seria um grave engano insultar ao Umar Haijar, Alteza — respondeu o visir sem desviar o olhar—. Tenho entendido que esta noite retornará de Paris.

Paris. De modo que ele tinha acertado em suas suspeitas: Haijar estava com sua amante francesa. E se supunha que devia renunciar a Jasmine a favor de um homem que não se importava o suficiente sequer para lhe ser fiel?

—Não tenho nenhuma intenção de insultar ao Haijar — apertou os punhos com força, muito zangado para ser justo—. É meu amigo. Salvou-me a vida.

—Sim. Certo — Akmal limpou a garganta—. O banquete real começará logo senhor. Os embaixadores e membros da realeza de todo o mundo vieram para celebrar sua iminente coroação. Não irão querer chegar tarde…

—Aparecerei quando eu quiser — Kareef chiou os dentes. Ia ter que falar de ninharias com pessoas pelas quais não sentia nada.

—É uma pena que em uma ocasião como esta não possam assistir de braço com sua futura esposa —o visir coçou a barba e suspirou antes que uma idéia fizesse que lhe iluminassem os olhos—. A princesa Lara du Plessis assistirá com seu pai. É uma possibilidade tão boa como qualquer outra. É muito formoso…

—Nada de matrimônio — rugiu Kareef enquanto que, com a mente posta em Jasmine, dava-se meia volta para partir.

—Encontrá-la-á nos jardins reais — disse o visir com amargura—. Onde não merece estar.

Kareef se voltou bruscamente e o olhou aos olhos.

Jasmine tinha razão. No palácio não havia segredos, Akmal Al'Sayr conhecia a todos.

Salvo um.

Não sabia que já estava casado.

—Ordena a seus espiões que se retirem — disse secamente—. Deixa-a em paz.

A boca de Akmal se torceu para baixo e seus lábios desapareceram entre a longa barba cinza enquanto a emudecia.

—E busca lhe um lugar no banquete.

O visir adquiriu uma expressão ainda mais compungida e seu fino corpo se encolheu sob o gesto de mal-estar. Entretanto, teve que agachar a cabeça ante a ordem de seu soberano.

—Sim, senhor — levantou a vista e o olhou com olhos brilhantes—. Mas jamais poderá ser algo mais que uma concubina para Sua Alteza. O povo jamais aceitaria a uma mulher assim em sua vida, uma mulher que teve tantos amantes que teve que lançar-se de um cavalo para desfazer-se da criatura que tinha engendrado com enganos…

Kareef viu tudo vermelho. Bastaram-lhe duas pernadas para colocar-se frente ao ancião e agarrá-lo por pescoço.

—Foi um acidente — vaiou—. Um acidente. E quanto a seus numerosos amantes, só teve um: eu. Entendeste-o bem, Al’Sayr. Eu fui seu amante, o único que teve.

Os olhos do outro homem começaram a inchar-se antes que o rei recuperasse o controle e o soltasse. O ancião se agachou para diante sujeitando a garganta enquanto tossia.

—Não volte a falar dela nesses termos — lhe ordenou Kareef antes de dar-se meia volta e partir furioso pelo corredor com sua túnica ao vento.

Seu coração ainda martelava com fúria quando encontrou Jasmine no jardim real, sob a luz do crepúsculo, dormindo em uma poltrona à sombra de um caramanchão. Tinha um livro aberto no regaço. Parou ante ela e a contemplou, maravilhado de novo por sua beleza.

Dormia pacificamente, como um bebe. O vento soprava brandamente entre as árvores, agitando as folhas e soltando mechas de seus escuros cabelos sobre o rosto. Levava um ajustado pulôver negro sobre uma camisa branca e saia larga e negra. Calçava umas sandálias esportivas vermelhas.

Seu bonito rosto estava desprovido de maquiagem, formoso em sua beleza natural. Modesta, singela, como uma criada. Tinha todo o aspecto da esposa e mãe perfeita, o coração perfeito do lar de qualquer homem. De seu lar.

Respirou fundo e se relaxou sob o calmante efeito de sua doce pureza, de sua inocência. Não pôde evitar lhe sorrir. E então seu olhar se posou em sua mão e viu que ainda levava o diamante do Haijar.

Os olhos marrom escuro de Jasmine se abriram trementes. Ao vê-lo, seu rosto se iluminou com um sorriso. Um sorriso que lhe chegou à alma.

—Kareef — o doce tom de sua voz a empapou como uma onda—. Quanto te senti falta de hoje!

—Acreditava que este dia jamais chegaria a seu fim — ele se sentou a seu lado e tomou as mãos.

—E, uma vez mais, pilhaste-me no jardim real — sua expressão se voltou envergonhada, de remorso—. Onde não deveria estar.

—O jardim é teu — respondeu ele com brutalidade—. Tem todo o direito.

—Por agora — ela tentou sorrir, mas não o conseguiu. Contemplou suas mãos e girou o anel em seu dedo.

—Tire isso — um espasmo de inesperado ciúme atravessou Kareef enquanto contemplava o anel, a evidência física da existência de outro homem.

—Por quê? —ela o olhou surpreendida.

—Tire.

—Não.

—Não te casará com ele manhã.

—Sim o farei — o rosto de Jasmine adquiriu uma expressão rebelde enquanto ficava em pé—. E se não puder aceitar que…

—Então será melhor não falar disso agora — ele a agarrou pelo pulso—. Acompanhe-me durante o banquete real esta noite.

—Esta é sua idéia da discrição? —ela baixou o olhar até o pulso—. Sentar-nos um ao lado do outro no banquete, como amantes, para que todo mundo o veja? —sacudiu a cabeça e as lágrimas apareceram em seus olhos—. Reconhece que eu tinha razão — sussurrou—. O palácio já começa a nos separar. Terminemos de maneira limpa, devemos nos separar.

Ele a olhou com o coração pesaroso. Como ia lhe fazer trocar de idéia se ele mesmo sentia que tinha razão?

—Uma noite mais — entretanto, suspirou e sacudiu a cabeça.

—Não mudará nada.

—Seja meu par no banquete. Dê-me uma última oportunidade de tentar te fazer mudar de idéia, de te convencer para que não te case com ele. Uma última noite — apertou a mandíbula—. Depois, se ainda desejar te casar com ele… te direi adeus.

—Divorciar-te-á de mim? —o rosto de Jasmine evidenciava a luta que se livrava em seu interior entre o desejo e a dor.

—Sim.

—Dá-me sua palavra de honra?

—Sim — respondeu ele secamente.

—De acordo — ela assentiu. Alargou uma mão para lhe acariciar a bochecha, mas se conteve—. Será melhor que vá trocar-me — baixou a vista para as sandálias esportivas e, quando a levantou de novo, tinha os olhos banhados em lágrimas—. Até esta noite, Alteza.

Meia hora mais tarde, Kareef entrou no salão de baile, sozinho, para receber o ensurdecedor aplauso de quinhentos ilustres convidados que clamavam por sua atenção, por um olhar dela. Ainda não lhe tinha ocorrido nenhum argumento para convencer a Jasmine de que seguisse sendo sua amante. Porque não havia nenhum.

Jasmine queria respeitabilidade. Queria uma família. Queria filhos.

Como rei, o que poderia lhe oferecer, salvo a desonra?

Saudou seus convidados enquanto caminhava para um extremo da larga mesa. Procurava o mais formoso dos rostos. Onde estava? Onde a tinha colocado o visir? Sem sua balsâmica presença se sentia como um leão enjaulado, meio louco a causa do cativeiro. Rezou para encontrá-la sentada junto a ele na mesa.

Mas quando chegou ao lugar que tinha atribuído parou em seco.

Sentado a sua esquerda viu o ancião rei de um país vizinho.

E a sua direita, uma formosa loira de não mais de dezoito anos, coberta de diamantes e que ria tampando a boca com uma mão enquanto o olhava com uns luminosos olhos azuis. Em seguida imaginou quem era, a princesa Lara du Plessis.

Amaldiçoou a seu visir em silêncio e se sentou. Tinha as mãos duras sobre a toalha de linho. Contemplou com desânimo os pratos com desenhos realizados em ouro de vinte e quatro quilates e as taças cheias de champanha. Onde estava Jasmine?

Enquanto se servia o jantar, o ancião rei sentado a sua esquerda se queixou longa e extensamente de um injusto imposto entre o Qusay e seu próprio país. Kareef esteve tentado de dirigir a adaga cerimonial contra si mesmo, como um lobo arrancando uma pata a dentadas para liberar-se de uma armadilha.

De repente sentiu um comichão na nuca e levantou a vista.

Jasmine o olhava do extremo oposto do salão de baile, o ponto mais longínquo possível. Tinham-na sentado entre uma insossa mulher vestida de cor marrom e o bojudo e quase calvo secretário do Ministério de Fazenda. Não havia dúvida de que o visir tinha escolhido pessoalmente a colocação.

Ela tentou sorrir, mas seu olhar era triste. As sombras do salão de baile, em penumbra sob as luzes dos candelabros, fizeram que todos outros desaparecessem.

Era muito formosa. E estava muito longe.

O coração lhe deu um salto no peito. Isso era tudo? Não podia lhe oferecer mais? Ser sua amante secreta, adequada unicamente para encontros clandestinos em seu quarto, e não a ilustre companheira sentada a seu lado?

Kareef comeu rapidamente e respondeu com monossílabos ao ancião rei e a sorridente e jovem princesa, mas só quando se via obrigado a responder a alguma pergunta direta. Assim que chegaram ao salão de baile os músicos e as bailarinas, apagaram-se as velas para acrescentar a magia da atuação.

Kareef arrojou o guardanapo de linho sobre o prato e se dirigiu para sua amante.

Abriu passo entre as sombras escuras e profundas. O público estava assanhado contemplando umas complicadas danças com espadas e chamas, ao som da excitante melodia do jowza e o santur. Assim, Kareef resultava invisível na escuridão e ouvia as conversações sussurradas que ninguém manteria ante ele.

—Jasmine Kouri… — ouviu murmurar uma mulher. Apesar de não desejá-lo, não pôde evitar reter o passo e escutar — está há alguns dias com ele aqui, no palácio… e certo que as noites também. O rei é um homem bom e decente, mas quando uma mulher está tão disposta a abrir-lhe de pernas…

—Além disso, está noiva! —foi a viperina resposta—. Pôs em ridículo ao Umar Haijar ao aceitar casar-se com ele. Lembra-te do escândalo quando era jovem? Sempre foi má.

—Ao final receberá seu castigo, já o verá…

Com os punhos apertados, Kareef se voltou para tentar identificar às proprietárias das vozes, mas estavam mescladas e escondidas entre o resto das pessoas. Só podia ver sombras que se moviam.

Se pudesse lutar de igual a igual! Uma luta em que pudesse ver o rosto de seu inimigo, não o sussurro de maledicentes fofoqueiros na escuridão.

Ainda se estremecia de raiva quando alcançou as mesas mais afastadas do salão de baile. Em silêncio, sussurrou o nome de Jasmine. Ansiava tocá-la, tê-la em seus braços. Ansiava mantê-la a salvo e, de algum modo, protegê-la das cruéis palavras.

Mas ao chegar a sua cadeira encontrou-a vazia.

 

Assim que as luzes se apagaram e os músicos entraram no salão de baile com seus violões, gaitas e flautas, com acompanhamento das espadas de fogo dançantes, Jasmine se levantou de um salto de sua cadeira.

O banquete tinha sido um inferno. Tinha ouvido murmúrios e percebido olhadas em direção a ela, algumas curiosas, outras invejosas e umas poucas de puro ódio. Estava claro que, apesar de que Kareef não a tivesse beijado nem se deitado com ela na volta ao palácio, todo mundo dava por feito que era seu amante. E culpavam a ela, e unicamente a ela, por esse pecado.

Sentado a sua direita na mesa, um homem grosso de incipiente calvície não tinha deixado de olhá-la de rabo-de-olho durante todo o jantar. A sua esquerda, uma mulher de aspecto medíocre se enrijeceu em seu traje marrom para, continuando, ignorá-la descaradamente durante uma hora.

Jasmine tinha vigiado Kareef, sentado ao outro extremo do salão de baile. Era evidente que seus súditos o adoravam e admiravam, e ele aceitava essa devoção com naturalidade, como se fosse seu dever.

Ele não a necessitava em sua vida, por mais que lhe dissesse o contrário. Estava rodeado de pessoas que lhe suplicavam um pouco de sua atenção, incluindo a virginal e loira princesa sentada a seu lado. Era a classe de jovem com a que sem dúvida se casaria… e muito em breve.

Tinha fugido assim que o salão de baile ficou às escuras. Sua única obsessão era a de escapar antes que alguém pudesse vê-la chorar. Entretanto, assim que saiu ao corredor sentiu uma mão no ombro e se deu a volta com os punhos apertados.

Imediatamente suas mãos se relaxaram e sentiu o corpo intumescido.

—Pai — sussurrou—. O que faz aqui?

Yazid Kouri parecia ter envelhecido anos nos últimos dias e seu antigamente robusto corpo se tornou fino e curvado.

Olhou a sua filha de cima abaixo, do cuidado coque até o vestido negro que lhe tinha emprestado para a ocasião sua velha amiga, Sera.

— Em que tornaste? —perguntou ele após soltar uma risada cheia de amargura.

—Já sabe por…

—Pensei que ao fim te tinha convertido em uma garota respeitável e honesta — sacudiu a cabeça e a olhou com uns olhos negros suspeitosamente brilhantes—. Para que acessar a te casar com um homem respeitável se for lhe enganar com o rei inclusive antes de pronunciar os votos?

—Não o entende! —ela negou com a cabeça.

—Me diga que nunca te deitaste com o rei — insistiu seu pai—, me diga que não é mais que um asqueroso rumor, e te acreditarei.

Ela pestanejou com força e desviou o olhar. A desilusão de seu pai lhe doía tanto que mal podia suportá-lo.

—Só traí a mim mesma. Não há motivo de vergonha no fato de que esteja ou não com o rei, não quando…

«Não quando estamos casados», quis dizer, embora as palavras ficassem presas em sua garganta. Não podia revelar seu segredo. A palavra do rei era respeitada em todo mundo. Como ia revelar que tinha ocultado um segredo assim durante treze anos?

De jovem tinha calado para protegê-lo.

Agora seguiria fazendo-o.

—Não vê nada mau em te deitar com um homem que não é seu marido? —continuou seu pai com a voz carregada de pesar—. Pode ser que essa classe de comportamento resulte aceitável no mundo moderno, mas não em nossa família. Sua irmã te necessita. Case-te com o Umar. Volta para Nova Iorque com seu flamejante marido e sua nova família. E ajuda a Nima a criar a seu filho.

—Falaste com ela? —Jasmine ficou boquiaberta.

—Chamou-nos faz duas horas — ele desviou o olhar com a mandíbula encaixada—. Diz que não sabe como ser uma mãe. Ameaça entregar o bebê a algum estranho quando nascer! Está assustada. É tão jovem…

A raiva se apoderou do Jasmine. Uma raiva que era incapaz de controlar. Elevou a cabeça.

—Igual a mim então! —gritou—. Eu também tinha dezesseis anos quando me jogou de casa, quando me jogou do país!

—Estava zangado — sussurrou ele com os olhos cheios de lágrimas—. Tinha outras expectativas para ti, Jasmine. Foi minha primogênita. Foi muito inteligente e tinha muita força. Orgulhava-me de ti. E de repente… tudo veio abaixo.

Ela sentiu que o coração lhe dava um salto no peito.

—Volta para Nova Iorque como uma mulher casada. Tranquiliza a Nima com sua fortaleza — os chorosos olhos de seu pai brilhavam—. Amanhã estarei no Qais e espero assistir a uma boda.

O ancião deu meia volta para partir, mas se deteve em seco ao ver Kareef de pé a suas costas. Seu corpo, vestido com uma túnica branca cerimonial, estava tenso.

—Deveria te matar pelo modo em que desonraste a minha filha! —o rosto do pai de Jasmine se tornou violáceo. Desolado, elevou os punhos contra Kareef, muito mais alto e forte.

Este não moveu um músculo nem fez um gesto. Limitou-se a ficar de pé e a esperar o golpe.

O pai do Jasmine deixou cair os braços e as lágrimas começaram a rolar por seu enrugado rosto.

—Você não é um rei — disse com voz rouca e tremente pela dor—. Nem sequer é um homem.

Dito isso se encaminhou a tropicões corredor abaixo.

Jasmine o observou partir antes de derrubar-se. Kareef a tomou em seus braços e a abraçou enquanto chorava.

Acariciou-lhe docemente a cabeça e a olhou com seu rosto entre as mãos. Enxugou-lhe as lágrimas com os polegares enquanto a olhava com olhos escuros e profundos. Respirou fundo e deixou cair os ombros com gesto de resignação.

—Vem comigo — sussurrou.

A suas costas, no salão de baile, ainda se ouvia a música e os gritos dos bailarinos. Kareef a conduziu pelo escuro corredor, passando junto a vários serventes que fingiram não dar-se conta, que fingiram não ver que o Rei tinha abandonado seu banquete com uma mulher que pertencia a outro.

Conduziu-a para ala este, até seus aposentos. Fechando a porta atrás deles, deixou-a sobre a enorme cama.

Sentado junto a ela, inclinou-se para um lado e a beijou. Devolveu-lhe o beijo apaixonadamente enquanto as lágrimas seguiam rolando por suas bochechas. Tudo o que tinha sentido por ele, toda a ternura dos sonhos adolescentes e todo o fogo do desejo de uma mulher se refletiram nesse beijo.

O enorme e luxuoso dormitório estava às escuras. O balcão estava aberto e do jardim chegava o ardente vento do deserto, junto com o ruído e a repentina explosão de risadas e de aplausos provenientes do salão de baile do andar inferior. Mas eles estavam em outro mundo.

Doce e meigamente, deitou-a de costas sobre sua cama e lhe fez amor pela última vez. O êxtase do corpo feminino era tão agudo como a dor em seu coração.

«Amo-te», gritava sua alma. «Amo-te». Entretanto, sabia bem que o amor não trocava nada.

Quando lhe fez chegar à dolorosa e ofegante plenitude não pôde evitar chorar. Durante uns segundos a abraçou com força contra seu peito, em seus braços, como se não quisesse deixá-la ir.

Depois, levantou-se lentamente da cama e se vestiu. Sem olhá-la, aproximou-se de um antigo joalheiro junto à livraria. Abriu-o com uma chave e tirou dele algo antes de voltar para a cama onde ela estava sentada e vestida.

Sem dizer nada lhe entregou o colar com a esmeralda. Ela contemplou em silêncio as verdes facetas da pedra.

Kareef tomou sua mão e depositou a esmeralda na palma, flexionando os dedos sobre a cadeia de ouro.

Ela ouviu a respiração entrecortada antes que seu corpo adotasse uma postura de dureza, como o granito.

Kareef colocou uma mão sobre a sua. Quando falou, sua voz era profunda e fria, e ressoou no enorme dormitório real.

—Jasmine, divorcio-me de ti.

 

À manhã seguinte, Jasmine desceu do helicóptero e alargou o pescoço para contemplar o moderno e resplandecente hipódromo que separava as planícies desérticas da ampla solidão do céu azul.

Qais. O deserto que mais amava. Entretanto, a habitual liberdade desse lugar tinha um «mas». O horizonte se estendia a seu redor burlando-se dela, vestida dos pés a cabeça com uma roupa escolhida por outra pessoa.

Sua roupa finalmente tinha chegado de Paris e, portanto ia ao gosto de seu futuro esposo, com um vestido de seda vermelho do Christian Dior, sapatos negros de salto do Christian Louboutin e uma bolsa negra de vintage do Kelly. Completava o conjunto um chapéu branco e negro de aba larga. Sua preciosa roupa de grife lhe parecia um disfarce dos anos 1950, elegante e formal.

Já não sentia liberdade daquele lugar. Nem sequer na roupa que levava posta.

Levantou a vista para o hipódromo de vidro que Kareef e Umar tinham construído juntos. Logo não seria quão único os dois amigos iriam compartilhar. Quando finalizasse a taça Qais, começaria suas bodas.

Kareef a seguiu junto ao resto dos guarda-costas e ajudantes. Ela o sentiu vacilar antes de avançar com um gesto de amargura. Que mais ficava por dizer?

Já tinha entregado a noiva.

Jasmine contemplou suas tensas e musculosas costas enquanto a adiantava. Memorizou o gesto de sua cabeça e a linha de sua mandíbula. A forma de seu extraordinariamente corpo masculino vestido com roupagens brancas.

Contra sua vontade, recordou a sensação de seu corpo nu sobre o dela. Da doce dor de satisfação ao ser possuída por ele, a maneira em que os lábios lhe tinham doido pela intensidade de seus beijos, a irritação da parte interna das coxas, provocada por seu rosto sem barbear. A lembrança fez que seu corpo se esticasse com uma quebra de onda de calor, inclusive ante a agitação de sua alma pela angústia da perda.

Respirou fundo e obrigou a si mesma a levantar a vista.

Surgindo do deserto, o hipódromo de vidro competia em brilho com a cegante luz do sol. Mas nem sequer esse sol poderia queimar a lembrança do corpo de Kareef sobre o seu. Nem a expressão nos olhos azuis na noite anterior enquanto tinha pronunciado as palavras que os tinham divorciado.

—Carinho meu — Umar surgiu de uma entrada lateral privada do hipódromo e se inclinou para beijá-la docemente na bochecha—, alegra-me muito ver-te por fim.

Apesar de suas palavras, estava pálido.

—Onde estiveste, Umar? —ela nem sequer fez ameaça de lhe devolver o beijo, ou de sorrir.

—Na França — Umar se ruborizou—. Houve uma emergência familiar. Com Leoa.

—Com a babá? —perguntou Jasmine—. Vai tudo bem?

—Bem, muito bem — disse ele com um sorriso nervoso.

Parecia estranhamente nervoso e inquieto comparado com o homem urbano e sofisticado que ela conhecia.

Umar deu a volta e se encaminhou, quase correndo, para a porta, apesar de que o protocolo ordenava que o rei devia entrar primeiro. Virtualmente tiveram que correr para manter seu ritmo e não ficar atrás.

—Não tem nada mais que me dizer? —perguntou ela.

—A corrida está a ponto de começar — se desculpou Umar enquanto enrugava o nariz para sua noiva e suspirava—. Já falaremos quando terminar.

Jasmine ficou olhando fixamente. Acaso tinha ouvido os rumores sobre ela e Kareef? Acaso já não queria casar-se com ela?

Ia abandoná-la no altar, para a eterna vergonha de sua família?

—Espera — balbuciou—. Não sei o que terá ouvido, mas posso explicar isso.

—Mais tarde — Umar se apressou para a porta—. Sua família já está aqui. Instalei-os não muito longe do camarote real, em um lugar de honra — fez uma pausa—. Eu me sentarei com meus filhos no camarote contiguo ao teu. Você está no camarote real com o rei.

De modo que sabia.

—Espera! —gritou ela—. Não o entende!

—Acaso tem medo de estar sozinha comigo? —sussurrou Kareef detrás alcançá-la.

Ela o olhou e se estremeceu ante a escuridão que refletiam os olhos azuis. Aquilo era muito duro, muito mais do que tinha pensado que seria.

—Parece-te bem a disposição que organizei meu rei? —perguntou Umar a Kareef com uma inclinação de cabeça.

Kareef respondeu com um seco assentimento antes de voltar-se para Jasmine com os olhos brilhantes.

Divorciados, estavam divorciados. Mas esse fato não tinha alterado seus sentimentos para ele, nem impedia que seu corpo o desejasse aos gritos. O divórcio não tinha trocado nada, absolutamente nada.

—Obrigado senhor — Umar correu para a tribuna.

Jasmine sentiu o feroz olhar azul de Kareef sobre ela, desumano como o sol do deserto, reduzindo sua alma a cinzas. Olhou-a furioso e passou diante dela.

Jasmine elevou o queixo e, sujeitando a aba do chapéu, seguiu-o pela porta privada escada acima. Passaram a uma sala privada com ar condicionado, envidraçada sobre o hipódromo e, por fim, saíram ao camarote real.

Kareef foi o primeiro a fazê-lo.

As quarenta mil pessoas que abarrotavam os degraus o receberam com vivas, postos em pé e fazendo coro seu nome.

Ele os saudou com uma mão.

A gritaria se intensificou.

Jasmine saiu ao camarote com uma mão apoiada no estômago, segurando a bolsa firmemente contra seu corpo como um escudo contra o rugido da multidão.

Contemplou o rosto formoso e selvagem de Kareef. Viu os rasgos de fortaleza e sabedoria em seus olhos, a poderosa linha de sua mandíbula.

Estava convencida de ter feito o correto, embora sentisse como a matava.

Tinha-o deixado livre para que pudesse converter-se no rei que estava destinado a ser.

Kareef ao fim se sentou e ela se afundou em uma cadeira a seu lado. Era consciente de sua presença em todo momento, mas não olhou para ele uma só vez. Em seu lugar, aferrou-se com força à aba do chapéu para proteger seus olhos do sol enquanto contemplava a pista de corridas.

Milhares de pessoas a olhavam. Sentada junto ao atrativo e poderoso rei, Jasmine sabia que devia parecer afortunada. Embora alguma mulher idosa cochichava maliciosamente, tampando a boca com a mão, suas filhas contemplavam o ajustado vestido de seda vermelha e a bolsa com inveja. Certamente pensariam que a reputação era um preço muito pequeno a pagar em troca de uma vida tão glamourosa, de vestidos de grife e com um poderoso e atrativo homem a seu lado.

Se soubessem o que ela sentia de verdade por dentro… O certo era que desejaria ter disposto de uma faca para poder tirar o coração com ela.

Vestidos de alta costura, riqueza, cuidados e poder. Nada disso importava se não podia ter ao homem que amava.

— Dormiste bem? —perguntou Kareef em voz baixa.

— Sim — mentiu ela enquanto um nó se formava em sua garganta e, desviando a olhada, esforçava-se por reter as lágrimas—. Muito bem.

O pistoleiro marcou o começo da corrida e os cavalos se lançaram pela pista.

O ardente olhar do rei seguia em seu rosto. Sentiu-o no comichão da nuca. No modo em que seus mamilos se esticaram e os seios pareceram aumentar de peso. Se abanou com força com um programa, suando pelo golpe de calor, que não tinha nada que ver com o deslumbrante sol do deserto.

No camarote contiguo viu Umar sentado com seus quatro filhos. O bebê de dois anos estava comodamente aconchegado no regaço da babá francesa, Leoa, que, não sendo manifestamente bonita, possuía um rosto roliço e doce. Só tinha uns poucos anos mais que ela. Umar se reclinou no assento até que os cavalos arrancaram velozes, em meio de um estrondo de ensurdecedores cascos. Então ficou em pé e começou a gritar a seu cavalo com uma mescla de insultos e adulações.

Os quatro meninos eram adoráveis, pensou sua futura mãe. Entretanto, a idéia de sua iminente maternidade não a alegrava tanto como deveria. Nenhum dos meninos a queria. De fato, já pareciam ter uma mãe, Leoa.

—Corre! Corre maldito seja! —ao aproximar-se da linha de meta, Umar se agarrou ao corrimão e agitou um punho no ar.

Jasmine viu seus pais sentados em outra zona do hipódromo com suas irmãs, os maridos e os filhos destas. Timidamente elevou uma mão para saudar seu pai.

O ancião lhe devolveu um olhar furioso ao vê-la sentada no camarote real, antes de desviar o rosto com frieza.

Ela se enquadrou de ombros. Nada disso importava já, disse-se enquanto tentava respirar através do nó que tinha na garganta. Assim que estivesse casada, caso Umar ainda quisesse casar-se com ela, seu pai ao fim estaria orgulhoso. Faria o correto. Embora tivesse que pagar com sua vida.

Ouviu o grito de felicidade de Umar e lhe ouviu aplaudir com força. Seu cavalo tinha ganhado. Revolveu os cabelos de um de seus filhos maiores e correu a receber seu prêmio, seguido de seus filhos e da babá. Ao vê-los, Jasmine se sentiu mais desconjurada que nunca.

Ficou em pé e se aproximou da parte dianteira do camarote para vê-lo aparecer junto à pista, saudando a multidão.

—Não significa nada para ti, verdade? —disse Kareef em voz baixa a suas costas—. Dá igual lhe entregar seu corpo esta noite quando ontem mesmo estava em minha cama?

—Estamos divorciados — ela fingiu dedicar um sorriso ao Umar enquanto este recebia um buquê de flores, dava umas palmadas ao cavalo e estreitava a mão do jóquei—. Já não significa nada para mim.

—Não te case com ele, Jasmine — sua voz era rouca e grave. Ela o ouviu levantar-se da cadeira—. Não o faça.

Seu prometido sorria e saudava todo mundo. Sentou a seu filho de dois anos sobre os ombros e a multidão rugiu em sinal de aprovação.

Jasmine sentiu aproximar-se de Kareef a suas costas, o suficiente para tocá-la. Não se voltou. Não podia. Os vivas da multidão se converteram em um ruído branco e ensurdecedor, quase estático. Ao final, quão único foi capaz de ouvir foi o batimento de seu próprio coração e a corrente do fluxo sanguíneo em seus ouvidos.

Sentiu ao rei lhe dar um breve puxão à aba do chapéu. Tinha as costas banhada no quente e masculino fôlego. Seu corpo estava tenso da cabeça até os seios e uma doce e agonizante tensão formava redemoinhos cada vez mais abaixo.

—Fica comigo — sussurrou Kareef—. Não porque esteja ligada a mim, mas sim por sua livre escolha. Se converta em minha concubina.

A amante do rei.

Jasmine teria sacrificado alegremente algo em troca dessa vida. Algo, salvo uma. Seu olhar posou em sua família, que aplaudia ao vencedor.

Fechou os olhos com força. Pensava que já conhecia o significado da dor, mas aquilo era muito mais do que podia suportar. Respirou fundo e se voltou, e ficou pegada a ele. Arrancou-lhe o chapéu das mãos e o sujeitou contra a bolsa enquanto recuava.

—Não posso.

—Jasmine…

—Volta para palácio, Kareef — disse com voz entrecortada—. Não fique para as bodas. Mata-me te ter tão perto. Não te dá conta de que está me matando?

Jasmine correu para a saleta privada com ar condicionado e desapareceu pela porta.

Kareef a alcançou quase imediatamente. Agarrou-a e a empurrou com brutalidade contra a parede. O chapéu e a bolsa caíram ao chão. Ela se defendeu, mas as fortes mãos a tinham prendido pelos pulsos. Não podia correr. Não podia escapar. Não podia resistir.

Preparou-se para um violento contato com seus lábios. Esperou que ele a esmagasse. Entretanto, Kareef fez algo muito pior. Agachou-se pouco a pouco sobre sua boca e a beijou da maneira mais afastada da brutalidade que se podia esperar.

Beijou-a… como se a amasse.

 

Kareef deslizou as mãos pelo vestido vermelho de seda de Jasmine e saboreou o curvilíneo corpo que tinha em seus braços. Ao senti-la de volta ao lugar que pertencia, percebeu alívio. Enquanto degustava a deliciosa doçura desses lábios, o desejo alagou suas veias como uma droga.

Tinha chegado a pensar que a perderia. Divorciou-se dela porque lhe tinha dado sua palavra de honra. Mas ainda a desejava. E queria que ela decidisse ficar a seu lado, por vontade própria. Queria que o escolhesse acima de todos outros homens, por inconveniente ou complicado que pudesse ser seu amor.

Não se dava conta de que tinham perdido muitos anos vivendo separados?

Pertencia-lhe. Igual ele pertencia a ela.

Com as mãos cavadas lhe agarrou os seios e lhe acariciou os ombros e o pescoço de cisne. Beijou-lhe a pele, mordiscando com força, quase machucando-a. Desejava deixar uma marca sobre ela, eliminar tudo de outro homem. Queria arrancar esse maldito diamante de sua mão esquerda.

—Pertence-me — rugiu—. Diga-o.

Os preciosos olhos cor chocolate brilharam trementes enquanto se deslizavam sobre ele com a sensualidade da cálida noite do deserto. A lembrança de seu corpo, das vezes que tinham feito amor com uma imensa urgência, atravessaram-no como uma corrente. Suas mãos se fecharam mais em tomo dela.

—Pertenço-te — sussurrou Jasmine—. Mas, Kareef, deve saber que…

Ele a interrompeu com um apaixonado beijo. Estremeceu-se em seus braços enquanto a acariciava através da seda vermelha. Enterrou as mãos no brilhante cabelo escuro com mechas de cor avelã, como fios de ouro.

Pertenciam-se um ao outro. E ele se encarregaria de que todo o mundo soubesse. Já não ocultaria seu amor por Jasmine entre as sombras.

Seu amor.

Céu santo. Amava-a.

Não só desejava a Jasmine. Não só desejava compartilhar cada instante de sua vida com ela.

Amava-a. Jamais tinha deixado de amá-la. Por isso nunca tinha cedido à tentação das inumeráveis mulheres ansiosas por lançar-se a seus braços. Seu corpo, seu coração, eram para uma única mulher.

Jasmine.

Embora lhe custasse a coroa, embora lhe custasse a vida. Estariam juntos a plena luz do dia.

Sujeitou o formoso rosto entre as mãos e a beijou com ternura. Beijou as pálpebras fechadas, as bochechas, os lábios. Um suspiro escapou de Jasmine, que se balançou em seus braços e levantou o rosto para ele.

—Direi ao Haijar que as bodas fica anulada — Kareef tomou a mão esquerda e a apoiou contra o coração enquanto a olhava aos olhos. Sorridente, começou a lhe tirar o anel do dedo.

Entretanto, ela fechou a mão em um punho.

—Jasmine? —inquiriu ele enquanto a olhava exasperado.

Ela sacudiu a cabeça a modo de negativa, com o rosto totalmente carente de expressão.

—Será minha respeitada amante — disse ele com o cenho franzido—. Será minha rainha em tudo salvo no nome. Já não terá que esconder-se entre as sombras, não haverá vergonha para sua família. Tratar-te-ei como à dama de mais alta fila do país. E o povo seguirá meu exemplo.

—E Umar?

—Perdoar-nos-á.

—E você? —ela levantou a vista lentamente—, quando escolher uma esposa que será a rainha do Qusay? Então o que será de mim?

Ele apertou a mandíbula com força. A idéia o punha doente.

—Pode ser que morra solteiro — grunhiu.

—Necessita de um herdeiro — sussurrou ela.

—Os filhos de meus irmãos podem me herdar — ele se encolheu de ombros em um gesto despreocupado que desmentia a emoção que refletiam seus olhos—. Ou seus netos. Tenho intenção de viver muitos anos.

—Mas seus irmãos nem sequer estão casados. O que lhe faz pensar que chegarão a estarão algum dia?

—Casar-se-ão — ele titubeou durante uns segundos, mas rapidamente a dúvida se transformou em raiva e impaciência.

—Nem sequer lhes importa Qusay o suficiente para viver aqui. Crê que Rafiq renunciaria a seus negócios milionários e abandonaria a Austrália para ser rei? E pelo que ouvi, Tahir se dedica a desperdiçar sua vida no circuito internacional de festas…

— As pessoas mudam.

—Está disposto a apostar por isso o trono do Qusay? Está disposto a impor essa carga sobre os ombros de seus irmãos? —ela sacudiu com força a cabeça—. Embora algum dia tenham filhos ou netos…, esses netos não saberão nada do Qusay. Pensa que nosso povo consentiria ser governado por alguém que ignore nossas línguas, nossos costumes?

Kareef apertou a mandíbula com força e desviou o olhar. Quando voltou a olhá-la aos olhos, sua voz estava cheia de uma agonia que já não tentava dissimular.

—Não existe nenhuma possibilidade de que fique grávida, Jasmine? —perguntou com voz rouca—. Nem sequer uma mínima possibilidade? Poderíamos ir aos melhores especialistas do mundo, sem reparar em gastos, o que fosse para que pudesse levar a meu filho em seu seio…

—Não — respondeu ela com dureza—. Já visitei alguns dos melhores médicos de Manhattan. Solicitei segundas e terceiras opiniões. Jamais poderei ficar grávida — um soluço surgiu de seus lábios—. Não destruirei a minha família me convertendo em sua amante — enxugou as lágrimas e elevou o queixo—. Mereço algo mais. E você também — sussurrou.

—Estive te esperando durante treze anos — ele a agarrou com força pelos ombros—. Não vou perder-te outra vez — as mãos se fecharam com mais força—. Embora o mundo se desintegre por minha culpa, não vou deixar-te partir.

Ela o olhou impossivelmente belo. Inalcançável.

A suas costas, as brilhantes flores e a decoração em tons vermelho e ouro da sala privada pareciam apagadas, como se estivessem envoltas em uma escura névoa. Ao outro lado da janela, a grama verde, os cavalos marrons e as camisetas dos cavaleiros, de vivas cores, pareciam voltar-se de cor negra enquanto Jasmine se apartava fixamente dele e se agachava para recolher o chapéu e a bolsa.

—Te case com outra — disse em voz baixa sem olhá-lo—.Converta-te em rei.

—Tão singelo te resulta me jogar em braços de outra? —ele a olhou perplexo.

—Não — respondeu com voz entrecortada enquanto o olhava com olhos cheios de dor—. Odeio a essa mulher. Quem quer que seja.

—E eu odeio a qualquer homem que compartilhe a cama contigo. Inclusive ao amigo que me salvou a vida — ele a olhou com a tensão refletida no rosto—. Posto que não será minha amante, só há uma solução. Casar-te-á comigo.

—O que? —Jasmine o olhou boquiaberta.

—Case-te comigo. Deve ser minha rainha, Jasmine. Só você.

Ela abriu os olhos desmesuradamente e pareceu estremecer-se enquanto piscava com força, como se estivesse fechando uma porta em seu coração.

—Não pode ser, necessita um herdeiro. Se te casasse comigo, apesar do que cria, ver-se-ia obrigado a abdicar.

—Tenho direito a escolher a minha esposa…

—Não — ela o interrompeu com brutalidade—. Não o tem.

—Mas Jasmine… — Kareef se interrompeu. Ele tinha lhe devotado tudo. Seu reino. Seu sobrenome. Tinha-lhe devotado tudo que possuía e ela o tinha rechaçado.

Entretanto, não lhe tinha devotado tudo. Havia um risco que ainda não tinha deslocado.

—Tem que te casar comigo, Jasmine — insistiu—. Tem que ser minha esposa porque eu… — respirou fundo e a olhou aos olhos—, amo-te.

Ela abriu os olhos surpreendida e de novo se estremeceu. Continuando, lenta e sem piedade, enquadrou-se de ombros.

—Então é um estúpido — disse com voz indiferente—. De todo coração, dá-me pena.

—Mas você me ama — rugiu enquanto avançava para ela—. Dava-me a verdade. Você me ama tanto como eu a ti.

Ela elevou uma mão.

—O certo é que desejo o que você não pode me dar — a voz de Jasmine era fria como o gelo e lhe atravessou o coração como um afiado pedaço de gelo—. Casar-me com o Umar é a única oportunidade de ter filhos — entreabriu os olhos e se preparou para atirar o golpe mortal—. Tirou-me toda possibilidade de ser mãe. Kareef—sussurrou—. Privou-me de toda possibilidade de ter um filho.

Era sua maior pena, seu maior temor. A culpabilidade que o tinha devorado junto às fogueiras das noites passadas no deserto. Mas aquilo era mil vezes pior, já que a acusação surgia dos lábios da mulher que amava.

Seus olhos azuis, cheios de agonia, estavam fixos nela. Deu um torpe passo para trás e tropeçou com um cubo de prata para esfriar champanha que estava sobre uma mesa e que caiu estrepitosamente ao chão. A garrafa rodou até a parede, fazendo-se pedacinhos e dispersando o champanha e os cubos de gelo por todo o tapete.

Mas Kareef não se deu conta. A dor o atendia, despedaçava-o com maior eficácia e sanha que a pior tormenta de areia.

«Privou-me de toda possibilidade de ter um filho».

A dor e a pena lhe queimavam como a lava de um vulcão.

Havia-lhe dito que tinha sido um acidente. Havia-lhe dito que o tinha perdoado.

Mentira! Tudo tinha sido mentira!

De repente já não pôde conter a ira e a dor. Com uma força selvagem se voltou e de um murro fez um buraco na parede. Jasmine recuou, espantada.

—Ensina-me a não sentir nada, como faz você — disse em voz baixa—. Estou farto de ter coração. Do instante em que comecei a te amar, não deixou de romper-se.

Kareef se separou dela, mas se deteve ao chegar à porta, sem olhar para trás. Não queria ver seu rosto. Quando falou, sua voz estava carregada de pesar.

—Adeus. Jasmine — disse enquanto apoiava a cabeça contra a porta e fechava os olhos—. Desejo-te uma vida cheia de felicidade.

Dito aquilo, partiu.

 

Uma hora mais tarde, Jasmine contemplou aturdida sua imagem ante o enorme espelho dourado do dormitório rosa da defunta senhora Haijar.

—Minha filha! —exclamou seu pai com ternura enquanto lhe cobria o rosto com o véu—. É a noiva mais formosa que vi em minha vida.

—Muito formosa — assentiu sua mãe, uma mulher gordinha de cabelos cinza, enquanto a olhava com adoração—. Direi a eles que está preparada.

Jasmine se contemplou no espelho. O sol da tarde, que entrava por uma janela redonda situada a suas costas, iluminava o véu branco, deixando seu rosto em sombras. Custava-lhe respirar e mal podia mover-se, fortemente engravatada, aprisionada em uma ampla saia com aros sob capas e capas de tule.

Umar tinha encarregado até o último dos componentes de seu traje, inclusive a roupa interior, em uma casa de modas de Paris seis meses antes que aceitasse casar-se com ele. Voltou a olhar-se no espelho. Uma princesa perfeitamente engalanada para um empetecado palácio.

Pela janela via o deserto. Quase podia imaginar-se, ao longe, uma mansão baixa de madeira, rodeada de árvores e cuidadas flores junto a uma piscina imensamente azul, e uma galeria em que, em uma ocasião tinha abraçado ao homem que amava nu contra seu corpo.

No deserto, o desumano sol calcinava todas as mentiras.

Salvo uma.

A mentira que inventou para afastar Kareef de seu lado.

Sem deixar de contemplar à noiva perfeita do espelho se sentiu enjoada ante o acelerado ritmo de seu coração.

Kareef lhe havia dito que a amava.

E lhe tinha arrojado esse amor à cara.

«Não tinha escolha», disse a si mesma enquanto sentia como lhe tremiam os joelhos. «Não tinha escolha. Pediu-me que me casasse com ele. Teria se visto obrigado a abdicar, a renunciar ao trono por mim».

Para ficar ao seu lado tinha conjurado o mais cruel dos feitiços, a pior das acusações que poderia imaginar-se para lhe fazer fugir. Tinha utilizado contra ele sua própria dor e sentimento de culpa.

O fazia sentir doente. Por puros que fossem seus motivos, sabia que tinha cometido a pior traição do coração. E se se casava com Umar consumaria o suicídio de sua alma.

De repente soube que não podia fazê-lo.

Não podia casar-se com um homem ao que não amava. Não havia razão alguma para isso.

—Onde está Umar? —sussurrou enquanto apertava as mãos contra a cintura engravatada e se esforçava por respirar—. Disse que falaríamos antes das bodas. Por favor, vão buscá-lo.

—Não acredito que seja uma boa idéia… — seu pai começou a falar desmesuradamente.

—Encontraremo-lo — disse sua mãe enquanto lhe lançava um agudo olhar a seu mando antes de para Jasmine—. Não se preocupe.

—Espera — ela agarrou a sua mãe pelo pulso enquanto um nó se formava em sua garganta ante o repentino terror de não voltar a vê-la.

—Vamos, Jasmine — disse a mulher idosa com doçura enquanto lhe acariciava a cabeça através do véu, como se fosse uma menina pequena—. O que acontece?

Perdoar-na-iam por anular as bodas? Poderiam chegar a perdoá-la?

Rezaria para que a pusessem para fora. Faria todo o possível para ajudar a sua irmã, faria todo o possível para demonstrar a sua família que a amava.

Mas não sacrificaria sua alma.

—Mãe — disse Jasmine enquanto tentava reprimir as lágrimas—, sei que nem sempre fui motivo de orgulho para vós, mas… — sem deixar de choramingar sob o elegante véu, seu olhar passou de sua mãe a seu pai antes de sacudir a cabeça—. Quero-lhes aos dois. Muitíssimo.

—E nós sempre lhe queremos — disse sua mãe enquanto lhe apertava a mão—. E sempre o faremos.

—Vamos — disse o pai secamente enquanto atirava de sua esposa—. Deixemos Jasmine em paz.

A mãe soltou a mão de sua filha. A porta se fechou com suavidade.

Jasmine respirou fundo e abriu os olhos no dormitório de flores rosa decorado pela falecida esposa de Umar. No papel pintado, os arco íris parecia ter movimento. Baixou o olhar para o enorme diamante que luzia na mão, cujas inumeráveis facetas arrojavam reflexos de luz e o arrancou do dedo.

Sentia a pedra fria na palma de sua mão. Dura. Morta.

«Ensina-me a não sentir nada, como faz você. Estou farto de ter coração. Do instante em que comecei a te amar, não deixou de romper-se».

Por isso tinha ouvido, Kareef já tinha abandonado Qais, e havia tornado em helicóptero à cidade. Ao dia seguinte seria coroado rei… sozinho.

Ao fim tinha obtido o que desejava. Tinha-o jogado de seu lado.

O anel caiu de sua mão inerte. Jasmine se jogou no chão, rodeada de capas de tule enquanto caía sobre a enorme e volumosa saia branca. Agachou a cabeça e todo seu corpo se sacudiu com os soluços de sua pena.

—Céu santo — disse Umar da porta—. Alguém lhe contou isso.

—Sinto-o — sussurrou ela enquanto cobria o rosto, já coberto pelo véu, com as mãos—. O sinto muitíssimo.

—Sou eu quem deve senti-lo — sentiu os braços de Umar a seu redor—. Deveria lhe ter dito isso faz dias.

—Me dito o que? —ela o olhou estupefata.

—Levava tanto tempo te fazendo a corte, mas você me rechaçava… e ela estava ali, cálida e carinhosa. Não encaixa com o tipo de mulher que escolheria como esposa. Não tem dinheiro, nem contatos, nem é especialmente formosa — sacudiu a cabeça e baixou a vista ao chão—. Em meio de nosso banquete de compromisso me chamou e me disse que acreditava que estava grávida.

—Grávida? —Jasmine respirou fundo—. Quem? De quem me fala?

—De Leoa — sussurrou ele—. Não deveria haver seguido tentando te conquistar quando me estava deitando com outra mulher. Disse-me que ela não contava que era uma empregada. Mas meus filhos a adoram e está grávida de meu filho. Devo me casar com ela — tomou a mão e a apertou com força—. Quero me casar com ela, apesar de que não tenha nada que ver com a esposa que imaginei… e acredito que poderia chegar a amá-la — apoiou a mão de Jasmine contra sua testa e inclinou a cabeça—. Perdoe-me — disse com humildade.

—Não há nada que perdoar — disse ela enquanto uma risada quase histérica subia até seus lábios—. Porque eu mesma…

—Você e o rei? —ele a olhou de esguelha e sorriu—. Uma fofoca de tal categoria viaja inclusive até Bretanha, onde eu estava pedindo ao pai de Leoa a mão de sua filha.

Umar já tinha quatro filhos, que logo seriam cinco. Jasmine sacudiu a cabeça e manteve o olhar fixo no tapete. Ao contemplar as sombras que produzia a luz que penetrava pela janela redonda, não lhe custou nenhum esforço imaginar um prado cheio de flores nem ouvir a risada de um menino. Levantou a vista e olhou a seu ex prometido aos olhos.

—Desejo-te toda a felicidade do mundo — disse com doçura—. A ti e a seus adoráveis pequenos.

—É muito boa — lhe beijou a mão agradecido.

Ela voltou a fixar a vista nos jogos de luz sobre o tapete. Boa? Estava muito longe de ser boa. Recolheu o anel do chão e o entregou ao Umar.

—E agora o que fará? —perguntou ele.

—Voltarei para Nova Iorque — Jasmine respirou fundo—. Tenho um negócio que dirigir. E também ajudarei a minha irmã em todo o necessário.

—E o rei?

—Seu dever está em outra parte — ela negou com a cabeça.

—Está segura?

—Deve casar-se com uma mulher que possa lhe dar filhos — tremente, ficou em pé.

—Jasmine, às vezes — começou Umar com calma—, é preciso deixar a um lado à pessoa que todos querem que seja para te converter na pessoa que esta destinada a ser.

Ela o olhou fixamente.

Durante anos tinha vivido sozinha em Nova Iorque, trabalhando para construir sua carteira de investimentos. Centrou-se no passado e o futuro, jamais no presente.

Mas o passado já tinha terminado. E o futuro era desconhecido. Só tinha vinte e nove anos. Se assim o desejasse, poderia construir toda uma vida em Nova Iorque. Poderia converter seu asséptico apartamento de Park Avenue em um lar confortável. Poderia começar de zero.

—Há algo que possa fazer por ti, Jasmine? —perguntou ele—. Possivelmente explicar-lhe a seu pai?

—Essa seria uma boa idéia — ela soltou uma risada nervosa antes de negar com a cabeça—. Em realidade, sim há uma coisa. Você tem um avião privado…

—Feito.

Jasmine levantou o véu de seu rosto e o deixou cair ao chão.

—Não posso permitir que Kareef se sacrifique por mim, mas sim há algo que posso fazer — ela olhou pela janela redonda e pensou na casa no meio do deserto—. Posso ser testemunha de como se converte em rei. E antes de abandonar Qusay, posso esclarecer uma mentira. Posso lhe dizer… —respirou fundo— posso lhe dizer a verdade.

 

Kareef olhou a seu redor nos aposentos reais, banhados pela luz do sol.

Era o dia de sua coroação.

O enorme dormitório estava bem equipado, fastuosamente decorado, e era o bastante grande para os dez serventes que estavam acostumados a empenhar-se em lhe atender. Aquela manhã os tinha expulsado a todos. Vestir-se-ia para sua coroação ele sozinho.

Lentamente tomou a espada cerimonial com esmeraldas incrustadas na bainha e prendeu o cinturão ao redor das roupagens brancas. Na última semana se produziram numerosas mudanças. E ao mesmo tempo, nada tinha trocado.

Era rei.

Estava sozinho.

E não sentia nada.

Tinha umas vagas lembranças de ter voado ao palácio do deserto do Qais a noite anterior, depois da taça Qais. Estava bastante seguro de ter acontecido a noitada falando de ninharias com os dignitários estrangeiros. Entretanto, não recordava os detalhes de nenhuma conversação, nem de seus interlocutores. Cada vez que tentava rememorar a noite anterior, quão único ia a sua mente era a imagem da expressão pálida de Jasmine e como tinha dado um salto ao vê-lo abrir um buraco na parede de um murro.

«Privou-me de toda possibilidade de ter um filho».

Ao golpear a parede, tinha tentado desfazer da dor. Em certo modo, tinha funcionado. Sua mão ainda estava intumescida. Igual ao resto de seu corpo.

Ele tinha devotado tudo a Jasmine. Seu sobrenome. Seu trono. Seu amor. E ela o tinha rechaçado.

«É um estúpido. De todo coração, dá-me pena».

Todos os serventes esperavam fora dos aposentos o seguiram em fila enquanto se dirigia ao salão do café da manhã para sua última comida antes da coroação.

«A última comida», pensou com aborrecimento. «O condenado tomou um generoso café da manhã».

Tinha-a amado, ainda a amava…, mas não podia tê-la.

—Ah, Senhor! —recebeu-o o visir com expressão resplandecente quando entrou no salão—. Bom dia! Faz um dia alegre e precioso, ensolarado e perfeito para o primeiro dia oficial de qualquer reinado. Agora que te livrastes que… ahn… enredos, possivelmente depois da coroação possa receber sua permissão para iniciar os trâmites para lhes buscar esposa…

Kareef o olhou com expressão esgotada para ouvir a palavra enredos. Akmal Al'Sayr fez uma discreta careta. Esse homem já estava informado do rechaço de Jasmine, e se mostrava odiosamente feliz por isso. Kareef chiou os dentes.

—Muito bem — espetou.

Se Jasmine podia seguir seu caminho, ele também. Já tinha vivido antes sem amor, poderia voltar a fazê-lo.

Só ficava o dever. Um dever frio e interminável.

—Perfeito, Senhor! Há umas quantas formosas princesas entre as que possa escolher.

—Escolhe a que queira — disse Kareef com pesar.

—Conheço a noiva perfeita. E veio para assistir à coroação. Falarei com sua família imediatamente e, se se mostrarem de acordo, começaremos as negociações esta mesma tarde — fez uma pausa—. A não ser que prefira conhecê-la antes.

—Não preciso conhecê-la — disse ele secamente—. Limite-se a te assegurar de que entenda que se trata de um matrimônio político. Nada mais.

—É obvio. Senhor. O direi — Akmal fez uma delicada pausa—. Embora, é obvio, terá que haver filhos…

Kareef contemplou seu prato e viu que estava vazio. De algum modo, e sem saborear a comida, tinha conseguido tragar-lhe tudo. A idéia lhe produziu uma amarga felicidade. Sobreviveria. Ao menos seu corpo, e isso era o único necessário, não?

—Preparado? —seu irmão Rafiq entrou no salão de café da manhã.

—Tahir veio?

—Não há sinais dele.

—Claro — por que não lhe surpreendia? Naturalmente, seu irmão caçula tinha trocado de parecer sobre retornar ao lar, embora o tivesse prometido. Quando recordava sua felicidade e otimismo dias atrás, não podia evitar sentir-se como o estúpido que Jasmine afirmava que era.

Ficou lentamente em pé e seguiu a Rafiq pelo comprido corredor. Ao sair pela porta e entrar no pátio, com vistas aos escarpados sobre o Mediterrâneo, ouviu alguém gritar seu nome. Uma doce voz se elevava sobre o resto. O fantasma de um velho e esquecido sonho.

Continuou sua marcha. Nem sequer voltou a cabeça.

E então ouviu de novo a voz e se parou em seco.

—Ouviste isso?

—Não ouvi nada — disse o visir com evidente nervosismo enquanto tentava empurrá-lo para que seguisse adiante—. Por aqui, se tiver a bondade, Senhor. Não irá querer chegar tarde a…

Kareef deu uns quantos passos mais. Por cima do rugido da multidão, reunida para assistir à coroação ao outro lado das portas do palácio, ouviu de novo sua voz. Gritava desesperada seu nome. Respirou fundo e entrecortadamente.

—Devo estar me voltando louco… — sussurrou Kareef—. Não deixo de imaginar que ouço sua voz.

—De quem? De Jasmine? —disse Rafiq—. Está aí mesmo.

Kareef se voltou rapidamente e a viu. Estava ao outro lado das portas do palácio, rodeada de uma multidão que gritava e a empurrava.

—Façam-na entrar! —rugiu voltando-se para o visir.

—Senhor — suplicou Akmal Al'Sayr—, por favor. Leva toda a noite tentando entrar, mas tenho feito todo o possível para impedir-lhe. Pelo bem do país, deve considerar…

Kareef deu um salto e agarrou ao homem mais velho do pescoço. Depois deixou escapar o ar contido e recuperou o controle.

—Traga-me ela aqui —resmungou entre dentes.

Aterrorizado, o visir deu as ordens oportunas aos guardas. Uns segundos mais tarde, Jasmine estava dentro do palácio.

Correu diretamente a seus braços. Ia vestida com um singelo vestido de algodão vermelho e umas sandálias. Levava o cabelo solto sobre as costas.

—Jasmine — sussurrou ele enquanto a sujeitava contra seu peito. Os dignitários de meio mundo aguardavam para vê-lo coroado rei, mas não podia soltá-la. Voltou com ela até os jardins reais, a um lugar íntimo depois dos muros de pedra.

—Era mentira — balbuciou ela enquanto começava a chorar—. Disse-te todas essas coisas horríveis porque pensei que devia te afastar de mim. Não te culpo pelo acidente. Perdoe-me — sussurrou—. Pensei que não tinha escolha.

Os olhos de Kareef se posaram na esmeralda que pendurava de seu pescoço. E então viu sua mão esquerda… desprovida do anel!

—Casaste-te com ele, Jasmine? —perguntou com um nó na garganta.

—Não podia fazê-lo — ela sacudiu a cabeça—. Sei que nunca poderemos estar juntos, Kareef, mas não podia abandonar Qusay sem te dizer a verdade. Amo-te. Sempre te amei e sempre te amarei.

Kareef tomou ar e a apertou mais contra seu peito enquanto fechava os olhos e voltava o rosto para o sol. Uma suave brisa fez que a túnica revoasse ao redor de seu corpo, contra sua pele.

E pela primeira vez desde no dia anterior, sentiu-se de novo vivo. Sentiu o sangue correr por suas veias. Sentiu o ar encher os pulmões com cada respiração. Jasmine o amava.

—Tinha que sabê-lo — sussurrou ela—. Tinha que lhe dizer isso. Não podia partir com essa mentira sobre a consciência.

—Partir? —ele franziu o cenho—. Aonde vai?

—A Nova Iorque — ela deixou escapar uma tímida risada—. A começar uma nova vida. Minha nova antiga vida — disse com doçura—, em um lugar no que o novo rei do Qusay sempre terá a alguém que o ama de longe. Jamais te esquecerei, jamais deixarei de te amar. Nem sequer depois de que tenha tomado uma esposa…

Ele a fez calar com um beijo. Quando sentiu os femininos lábios contra os seus, sua alma contra a sua própria, tão doce e forte, soube o que devia fazer.

Honraria o juramento pronunciado muito tempo atrás. Manter-se-ia fiel a sua mais profunda obrigação.

Tomou as mãos de Jasmine entre as suas e a conduziu fora dos jardins reais. Seu irmão, Rafiq, esperava pacientemente ao outro lado do pátio. Kareef sentiu uma pontada antes que seu coração se endurecesse. Fazia a escolha correta. A única escolha. A honra o exigia, uma honra mais importante que a linhagem. A promessa que anulava todo o resto.

Mesmo assim…

«Perdoe-me», pensou enquanto fechava os olhos e antes de voltar-se para Jasmine.

—Vem — disse com calma—. Antes de abandonar esta cidade para sempre, vai me ouvir pronunciar as palavras que me comprometem.

 

Kareef a conduziu da mão através do pátio até as velhas ruínas bizantinas ao bordo do escarpado. Jasmine sabia que seria doloroso presenciar o discurso que o converteria em rei do Qusay para sempre. Entretanto, respirou fundo e o seguiu de todos os modos. Amava-o e era consciente de que seria a última vez que o ia ver. Necessitava que suas últimas lembranças fossem os de seu rosto iluminado pelo amor e não pelas horríveis palavras que lhe havia dito a noite anterior.

Bruscamente, lhe soltou a mão, deixando-a detrás dos trezentos convidados sentados nas cadeiras colocadas entre as velhas colunas de pedra. Kareef e seu irmão, o príncipe Rafiq, continuaram sua marcha pelo corredor das antigas ruínas sem teto.

Jasmine notou como algumas pessoas se voltavam para olhá-la, uns poucos com desprezo, outros com inveja, antes de voltar-se de novo para o Kareef, de pé ante eles. Kareef estreitou a mão de seu irmão Rafiq antes que este lhe obsequiasse com uma reverência e passasse a sentar-se entre os assistentes junto à Sera, a amiga da infância de Jasmine. Esta não pôde evitar pensar no gosto que pareciam estar os dois juntos. Acaso começava a haver algo entre o príncipe Rafiq e a acompanhante da viúva do xeque Jazam? Enquanto estava absorta nesses pensamentos, a música se fez mais intensa e, de repente, ninguém a observava.

Kareef estava de pé frente aos convidados, vestido com sua túnica branca cerimonial e a espada embainhada no quadril. Ninguém poderia olhar para outro lado. As lágrimas brotaram dos olhos de Jasmine. Ele representava a força, era o poder.

O era seu amor.

O visir começou a falar no antigo dialeto do Qusay e seu coração se inflamou de orgulho ao ver Kareef tão régio ante a multidão. Inclusive apesar de que tudo tivesse acabado com uma ruptura, não podia lamentar-se de sua aventura.

Jamais lamentaria havê-lo amado. Amava-o ainda.

A música se interrompeu repentinamente e ela ouviu o vento e o som das ondas que se estrelavam sob os escarpados. As ruínas da milenar cidadela pareciam vibrar sob seus pés.

O visir fez uma pausa e, tal e como exigia o protocolo, Kareef se voltou para os assistentes, escuro e formoso. O rei perfeito.

Seus olhos se encontraram entre a multidão. E então ele começou seu discurso.

Mas não o fez no antigo dialeto, tal e como mandavam os cânones, a não ser em um idioma que todos pudessem compreender e com uma voz clara e pausada que ressoava sobre a areia e o mar.

—Renuncio ao trono.

Um murmúrio abriu passo entre os assistentes, como um trovão. Jasmine ouviu o visir gritar angustiado. E alguém mais emitiu uma exclamação de horror. Rafiq talvez?

Kareef permaneceu erguido e em calma, no olho do furacão.

—Faz treze anos pedi a uma mulher que se casasse comigo. Uma jovem virgem, pura e sincera — entre o público reinava o mais absoluto silêncio enquanto ele continuava falando com os olhos brilhantes e o queixo elevado—. Essa mulher era Jasmine Kouri.

—A filha mais velha dos Kouri! —a exclamação ressoou entre os assistentes e os sussurros se intensificaram ante a expressão de perplexidade dos mandatários estrangeiros—. A daquele velho escândalo…

—Jasmine suportou o escândalo sozinha — o rosto de Kareef se endureceu—, embora não havia nenhum motivo para envergonhar-se. Ela perdeu o nosso filho em um acidente. Entretanto, antes daquilo, converteu-se em minha esposa — elevou os braços para proclamar—. Estou em dívida com ela e essa dívida invalida qualquer outra dívida ou obrigação.

Jasmine estava aturdida e tinha o coração em um aperto enquanto o povo olhava de um a outro sem parar.

Ele baixou um degrau do estrado com os olhos azuis fixos nela.

—Jasmine Kouri, te case comigo.

—Não — sussurrou ela.

Kareef começou a avançar pelo corredor.

—Jasmine Kouri, casar-te-á comigo — exigiu.

Ela o olhou fixamente, incapaz de articular uma só palavra contra os desejos de seu coração.

O continuou seu avanço, sem separar os olhos dela. De repente estava a escassos centímetros, imponentemente alto. Todas as olhadas estavam fixas neles.

—Jasmine Kouri —disse ele com doçura—, casar-te-á comigo.

A seu redor ninguém respirava.

Ela levantou a vista com os olhos alagados em lágrimas.

—Sim —balbuciou com o coração cheio de felicidade—. Sim. Sim!

O sorriso de felicidade que apareceu no atrativo rosto do Kareef superava qualquer casa que ela tivesse visto jamais. O tomou em seus braços e a beijou.

—Agora mesmo —sussurrou com impaciência detrás separar os lábios—. Agora mesmo.

—Amo-te —sussurrou ela a modo de resposta.

O visir apareceu atrás deles como uma serpente furiosa. A barba do ancião tremia de raiva e frustração antes de dar-se meia volta com gesto de amargura.

—Kareef Al'Ramiz renunciou ao trono —exclamou o visir com uma voz profunda que ressonou além das antigas ruínas. Mais à frente do mar—. Qusay deve ter um rei. Larga vida ao rei… Rafiq!

Com uma exclamação pronunciada ao uníssono, todos os assistentes se voltaram para contemplar ao irmão do Kareef, o magnata da Austrália. A pessoa mais emocionada de todas parecia ser o próprio Rafiq. Seus olhos azuis se abriram desmesuradamente enquanto contemplava à mulher sentada a seu lado. Jasmine viu o bonito rosto da Sera contrair-se em um gesto de horror e dor.

—Diga-o ordenou Kareef.

—Eu te desposo — sussurrou ela com voz quase inaudível.

—Mais alto.

—Eu te desposo.

—Uma vez mais — ele a olhou e seus olhos brilhavam de puro amor.

—Eu te desposo! —por fim, os votos de Jasmine ressoaram altos, claros e sinceros.

Kareef lhe tirou o colar de esmeralda e o pendurou no seu pescoço. Depois, tomou o rosto entre as mãos e ante os príncipes e embaixadores de meio mundo beijou com ternura cada uma das lágrimas que alagavam seu formoso rosto.

—E eu te desposo — disse ele, completando assim o antigo ritual de bodas do Qusay. Uma parte dos assistentes prorrompeu em aplausos, enquanto que o resto ficou muda de comoção.

Jasmine levantou a vista para o atrativo, amado e selvagem rosto de seu marido e toda tormenta desapareceu de seus olhos azuis, varrida pelo vento como se fosse areia.

—Vamos, meu amor — sussurrou ele com ternura—. Vamos para casa.

 

Seis meses depois, Jasmine se sentava com um bebê em braços. Sentada à sombra, em uma cômoda cadeira, sujeitou a Aziza em seu regaço e bebeu um gole de água gelada enquanto observava a seu marido treinar a um potro no curral próximo, fora do rancho.

O sol luzia forte e brilhante no céu azul e, ao redor de sua acolhedora e cômoda casa, o horizonte se estendia imensamente livre.

Entretanto, o deserto era mais que um simples horizonte. Era algo mais que areia. Visto de perto havia muito mais. Diminutas flores rosa. Árvores de cacto. Falcões que atravessavam o céu e pequenos coelhos que se escondiam nas rochas. O que parecia ser um terreno baldio estava cheio de vida, cor e alegria.

—Jasmine! —Kareef abandonou o treinamento ao vê-las. Saltou a cerca e a beijou antes de tomar ao alegre e gorgojeante bebê nos braços—. Devo ensinar a montar a nossa filha?

—Ainda é um pouco jovem para isso — Jasmine reprimiu uma gargalhada.

O bebê emitiu um suave ronrono e agitou emocionada os bracinhos ao ver correr aos indômitos cavalos pelo prado. Kareef olhou a sua filha e a sua esposa com uma sobrancelha arqueada.

—De acordo — disse Jasmine—. Não demorará muito, tem sua mesma insensatez.

—E seu valor — ele se ajoelhou para abraçar a ambas de uma vez enquanto olhava a Jasmine aos olhos.

Esta sentiu o quente sol sobre suas costas enquanto ela e sua filha recebiam o protetor abraço de Kareef. Se aconchegou contra seu marido e contemplou os cavalos selvagens. Aziza riu com um som precioso que nunca se cansava de ouvir, como a música produzida por alegres sinos ressoando no deserto.

Que vida tão maravilhosa.

Jasmine tinha decidido ajudar a sua irmã caçula a iniciar sua nova vida, mas Nima já o tinha feito por ela. Tinha decidido sem hesitações entregar a seu bebê em adoção, insistindo em que era muito jovem e imatura para ser uma boa mãe. O dia depois das bodas entre Jasmine e Kareef, Nima tinha chamado a sua irmã para lhe fazer uma petição entre lágrimas.

—Fica com meu bebê, Jasmine. Não poderia haver melhor mãe que você em todo mundo.

A Jasmine tinha levado uns quantos meses aceitar que sua irmã não mudaria de idéia. E não tinha terminado por acreditar até o dia em que Kareef e ela tinham levado a recém-nascida com eles de volta a casa.

Nima tinha ficado vivendo em Nova Iorque, onde se preparava para o ingresso na universidade com a intenção de estudar Química e Biologia. Da adoção tinha viajado várias vezes ao Qusay, mas sempre tinha deixado clara sua posição. «Sou sua tia», tinha afirmado com convicção antes de olhar Jasmine e a seu cunhado com uma imensa gratidão refletida no rosto. «Aziza sabe bem quais são seus verdadeiros pais».

Os pais e irmãos do Jasmine estavam loucos com o novo membro da família Kouri e tinham visitado o rancho do Qais em múltiplas ocasiões. Nem sequer seu ancião pai encontrava motivos de queixa, como podia sentir algo que não fora orgulho pela filha que tinha seduzido a todo um rei e o tinha arrancado do trono para celebrar um respeitável matrimônio?

Ao menos essa era a escusa que esgrimia, embora o certo era que nem sequer seu férreo orgulho lhe tinha servido para resistir ao bebê. Ninguém podia resistir a Aziza, e sua mãe menos que ninguém.

A felicidade obtida ao conseguir todo aquilo que tinha sonhado na vida, e justo em um momento em que pensava que tudo estava perdido, fez que seu coração se expandisse tanto no peito que temeu que fosse a romper-se.

Kareef beijou as roliças bochechas do bebe antes de fazer o próprio com a testa de sua esposa. Um novo brilho apareceu em seus olhos e se agachou para beijá-la na boca. O beijo foi terno, apaixonado e cheio de promessas do que lhe aguardaria aquela noite. Quando se separou dela, Jasmine suspirou de felicidade.

Cada dia a beijava como se fosse a primeira vez.

Contra todas as expectativas, sua vida, como o deserto, tinha florescido. E soube que o calor do sol, o amplo céu azul e a calidez de seu amor durariam para sempre.

 

                                                                                Jennie Lucas

 

                      

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