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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Rei de Ferro / Maurice Druon
O Rei de Ferro / Maurice Druon

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Rei de Ferro

 

No início do século XIV, Filipe IV, rei de uma beleza lendária, reinava sobre a França como senhor absoluto. Tinha vencido o orgulho guerreiro dos grandes barões, vencido os flamengos revoltados, vencido o inglês na Aquitânia, vencido até o papado, instalando-o à força em Avignon. Os parlamentos estavam às suas ordens, e os concílios a seu soldo.

Tinha três filhos maiores, para assegurar a sua descendência. Sua filha casara com o Rei Eduardo II, da Inglaterra. Entre seus vassalos, contava com seis outros reis, e a rede de suas alianças estendia-se à Rússia.

Riqueza alguma escapava à sua mão. Tinha, sucessivamente, taxado os bens da Igreja, espoliado os judeus, golpeado o truste dos banqueiros lombardos. Para fazer frente às necessidades do Tesouro, procedia à alteração das moedas: da noite para o dia o ouro pesava menos e custava mais caro. Os impostos eram esmagadores, e a polícia, superabundante. As crises econômicas engendravam ruínas e fome, que por sua vez suscitavam motins, sufocados no sangue. As revoltas terminavam nas traves dos patíbulos. Diante da autoridade real, tudo teria de inclinar-se, dobrar-se ou romper-se.

A idéia nacional instalara-se na cabeça daquele príncipe calmo e cruel. No seu reinado, a França era grande e os franceses sentiam-se infelizes.

Um único poder ousara enfrentá-lo: a soberana Ordem dos Cavaleiros do Templo. Esta organização colossal, ao mesmo tempo militar, religiosa e financeira, devia às Cruzadas sua glória e riqueza. A independência dos templários inquietou Filipe, o Belo, ao mesmo tempo que seus bens imensos excitavam-lhe a cobiça. Instaurou contra eles o mais vasto processo de que a história tem memória, pois tal processo atingiu cerca de quinze mil acusados. Todas as infâmias foram ali perpetradas. E isso durante sete anos. Ao termo do sétimo, começa nossa narrativa.

 

A MALDIÇÃO

 

A RAINHA SEM AMOR

Um tronco inteiro, deitado sobre um leito de brasas incandescentes, ardia na lareira. Os vitrais esverdeados, recortados de chumbo, coavam um dia de março, avaro de luz.

Sentada numa cadeira alta, de carvalho, em cujo encosto apareciam os três leões da Inglaterra, a Rainha Isabel, esposa de Eduardo II, o queixo sobre a palma da mão, os pés repousando numa almofada vermelha, contemplava vagamente os reflexos da lareira, sem realmente os ver.

Tinha vinte e dois anos, bela tez clara, perfeitamente lisa, cabelos de ouro arranjados em trancas longas e levantadas como as asas de uma ânfora de cada lado do rosto.

Ouvia uma das damas francesas ler-lhe um poema do Duque Guilherme da Aquitânia

Do amor não devo mais dizer bem

Pois que dele não tenho pouco nem rem,

Já que não tenho quem me convém...

 

A voz cantante da dama leitora perdia-se naquela sala demasiado grande para permitir a uma mulher viver feliz.

Depressa, irei para o exílio,

Com medo grande, e grão perigo...

 

A rainha sem amor suspirou.

— Como são belas essas palavras — disse —, e parecem mesmo feitas para mim. Ah! Já não estamos no tempo em que os grandes senhores, como o Duque Guilherme, eram tão destros nas poesias quanto na guerra. Quando me dissestes que ele viveu? Há duzentos anos! Qualquer um juraria que isso foi escrito ontem!

E repetiu, para si própria:

Do amor não devo mais dizer bem

Pois que dele não tenho pouco nem rem...

 

Ficou pensativa por algum tempo.

— Devo prosseguir, senhora? — perguntou a leitora, com o dedo pousado sobre a página ornada de iluminuras.

— Não, minha amiga — respondeu a rainha. — Por hoje já fiz chorar suficientemente a alma...

Endireitou-se, mudando de tom.

— Meu primo Roberto d'Artois anunciou-me sua visita. Providencie para que seja introduzido assim que chegue.

— Vem da França? Então, será para vós uma alegria, senhora.

— É o que espero... se as notícias que me trouxer forem boas.

Uma porta se abriu e outra dama francesa entrou, toda esbaforida e erguendo um pouco as saias para correr melhor. Chamava-se, pelo nascimento, Joana de Joinville, e era esposa de Sir Rogério Mortimer.

— Senhora, senhora — exclamou a dama. — Ele falou.

— Realmente? — perguntou a rainha. — E que disse?

— Bateu na mesa, senhora, e disse: "Eu quero!" Uma expressão de orgulho passou pelo bonito rosto de

Isabel.

— Traga-mo — disse ela.

Lady Mortimer saiu, sempre correndo, e voltou um instante depois, trazendo uma criança de quinze meses, redonda, rosada e gorda, que depositou aos pés da rainha. Era um menino, vestido com um traje carmesim bordado a ouro, mais pesado do que ele próprio.

— Então, senhor meu filho, dissestes: "Eu quero!" — falou Isabel, curvando-se para acariciar-lhe o rosto. — Agrada-me que tenham sido essas as vossas primeiras palavras: são palavras de rei.

O menino sorria para ela, sacudindo a cabeça de lá para cá.

— E por que foi que ele disse isso? — perguntou a rainha.

— Por que lhe recusei um pedaço do bolo que estávamos comendo — respondeu Lady Mortimer.

Isabel esboçou um sorriso, depressa apagado.

— Já que começa a falar — disse ela —, peço que não o animem a tartamudear e a pronunciar tolices, como é de hábito fazer com as crianças. Pouco me importa que ele saiba dizer "papai" e "mamãe". Prefiro que conheça as palavras "rei" e "rainha".

Isabel tinha na voz grande autoridade natural.

— A senhora sabe, minha amiga — continuou —, quais foram as razões que me levaram a escolhê-la para governanta de meu filho? Sois neta do grande Joinville, que participou das cruzadas com nosso bisavô, Senhor São Luís, e sabereis ensinar a esse menino que ele pertence à França, tanto quanto à Inglaterra1 *.

* Os números no texto remetem o leitor a algumas notas e precisões complementares colocadas no fim do volume. (N. do A.)

 

Lady Mortimer inclinou-se. Nesse momento a primeira dama francesa voltava, anunciando o Conde Roberto d'Artois.

A rainha encostou-se bem ereta em sua cadeira e cruzou as mãos brancas sobre o peito, numa atitude de ídolo, com aquela preocupação de sempre lembrar seu sangue real, que não conseguia envelhecê-la.

Um passo com duzentas libras de peso abalou o soalho. O homem que entrou tinha seis pés de altura, coxas que pareciam troncos de carvalho, mãos iguais a maças. Suas botas vermelhas, de couro cordovês, estavam manchadas de uma lama que não fora de todo escovada. O manto que lhe pendia dos ombros era tão grande que dava para cobrir um leito, e teria sido suficiente que ele arvorasse uma adaga à cinta para dar a impressão de que estava indo para a guerra. Quando tal homem aparecia, tudo em torno dava a impressão de se tornar mais fraco, friável e frágil. Tinha o queixo redondo, o nariz curto, a mandíbula larga, o estômago robusto. Precisava, para respirar, de uma quantidade maior de ar que a exigida pelo comum dos homens. Aquele gigante contava vinte e sete anos, mas sua idade desaparecia sob os músculos, e poderiam bem dar-lhe uns trinta e cinco.

Tirou as luvas, dirigindo-se para a rainha, pôs um joelho em terra, com flexibilidade surpreendente em tal colosso, e levantou-se, antes que ela tivesse tempo de convidá-lo a isso.

— Então, senhor meu primo — disse Isabel —, fizestes boa travessia marítima?

— Execrável, senhora. Horrível — respondeu Roberto d'Artois. — Uma tempestade que nos obrigava a vomitar as tripas e a alma. Pensei que minha última hora tivesse chegado, e até comecei a confessar a Deus os meus pecados. Por felicidade eram tantos que, mal alcançara a metade, já havíamos chegado. Guardei o suficiente para a volta. Desatou a rir, fazendo os vitrais estremecerem.

— Mas, com os demônios, tenho mais jeito para correr terras do que para cavalgar a água salgada. E se não fosse por amor de vós, senhora minha prima, e pelas coisas urgentes que tenho a dizer-vos...

— Haveis de permitir que eu acabe, meu primo — disse Isabel, interrompendo-o. E mostrou-lhe o menino.

— Meu filho começou a falar hoje. Depois, voltando-se para Lady Mortimer:

— Desejo que ele se habitue com o nome dos parentes, e que saiba, desde que seja possível, que seu avô Filipe, o Belo, é o rei da França. Começai a dizer diante dele o padre-nosso e a ave-maria, e também a prece ao Senhor São Luís. São coisas que devem ser instaladas no coração antes mesmo que a razão as compreenda.

Ela não estava descontente por mostrar a um de seus parentes da França, também descendente de um irmão de São Luís, de que maneira velava pela educação de seu filho.

— É belo o ensino que ides dar a este jovem — disse Roberto d'Artois.

— Nunca é cedo demais para aprender a reinar — respondeu Isabel.

Sem desconfiar de que era dela que se tratava, a criança divertia-se a caminhar, em passos cheios de precaução e titubeantes, como fazem os bebês.

— Quando se pensa que também fomos assim! — disse d'Artois.

— Olhando-vos, então, meu primo — disse a rainha, sorrindo —, custa bastante crer, é verdade.

Por um instante, ela pensou no sentimento que poderia ter a mulher que engendrara aquela fortaleza humana, e no sentimento que ela própria teria quando seu filho se tornasse um homem...

A criança avançava para a lareira com a mão estendida, como se pretendesse agarrar uma chama em sua mão minúscula. Roberto d'Artois cortou-lhe o caminho, pondo de permeio sua bota vermelha. Sem mostrar o menor receio, o principezinho agarrou aquela perna, que mal podia rodear

com seus braços, e sentou-se, a cavaleiro, sobre o pé do gigante. Este levantou-o no ar por três ou quatro vezes. Encantado com aquela brincadeira, o principezinho ria.

— Ah! Messire Eduardo! — disse Roberto d'Artois.— Ousarei eu, mais tarde, quando fordes um príncipe poderoso, lembrar-vos que cavalgastes minha bota?

— Sim, meu primo — respondeu Isabel —, se vos mostrardes sempre nosso amigo leal... Que nos deixem, agora — acrescentou ela.

As damas francesas saíram, levando a criança que, se o destino seguisse normalmente seu curso, se tornaria um dia o Rei Eduardo III da Inglaterra.

Roberto d'Artois esperou que se fechasse a porta.

— Pois bem, senhora — disse ele —, para completar as boas lições que mandais dar ao vosso filho, podeis, bem depressa, ensinar-lhe que Margarida de Borgonha, rainha de Navarra, futura rainha da França, também neta de São Luís, será chamada, por seu povo, Margarida, a Prostituta.

— Realmente? — perguntou Isabel. — Então, o que pensávamos era verdade?

— Sim, minha prima. E não somente no que se refere a Margarida. O mesmo se dá com as vossas outras duas cunhadas.

— Quê? Joana e Branca?

— Branca, eu tenho certeza. Joana...

Roberto d'Artois, com sua mão imensa, fez um gesto de incerteza.

— Ela é mais hábil do que as outras — acrescentou ele. — Mas tenho todas as razões para acreditar que seja também uma refinada meretriz.

Deu três passos e, tomando uma atitude altiva, declarou:

— Vossos três irmãos são cornudos, senhora, cornudos como qualquer labrego!

A rainha levantou-se. Suas faces mostravam-se um tanto coloridas.

— Se o que dizeis é verdade, eu não tolerarei tal coisa — disse ela. — Não tolerarei essa vergonha e nem que minha família seja objeto de risos.

— Os barões da França também não o suportarão — retrucou d'Artois.

— Tendes os nomes, as provas? Roberto d'Artois tomou um grande fôlego.

— Quando fostes à França no verão passado, com vosso esposo, para aquelas festas que foram realizadas na ocasião em que tive a honra de ser armado cavaleiro junto com vossos irmãos... porque bem sabeis que não me poupam as honras que nada custam — comentou ele, com um riso trocista —, naquele dia eu vos confiei minhas suspeitas e vós me falastes nas vossas. Pedistes que vigiasse e vos informasse. Sou vosso aliado. Vigiei, e agora venho informar.

— Então? Que soubestes? — perguntou Isabel, impaciente.

— Pois bem! Antes de mais nada, que certas jóias desapareciam do cofre de vossa doce, vossa digna, vossa virtuosa cunhada Margarida. Ora, quando uma mulher se desfaz secretamente de suas jóias, ou é para presentear um amante ou para comprar cúmplices. Está claro, não achais?

— Ela pode dizer que deu esmolas à Igreja.

— Nem sempre. Quando determinado broche, por exemplo, tiver sido trocado em casa de um mercador lombardo por um punhal de Damasco...

— E descobristes em que cinto está preso esse punhal?

— Infelizmente não! — respondeu d'Artois. — Procurei, mas perdi a pista. As meretrizes são hábeis, como vos disse. Jamais cacei cervos, em minhas florestas de Conches, tão espertos quanto elas em apagar as pegadas e em tomar atalhos.

Isabel teve uma expressão decepcionada. Roberto d'Artois adiantou-se ao que ela ia dizer, estendendo os braços.

— Esperai, esperai — disse ele. — Isso não é tudo. A honesta, a pura, a casta Margarida mandou arranjar um aposento na velha torre do Palácio de Nesle a fim, disse ela, de lá recolher-se para fazer suas orações. Acontece porém que ela faz suas orações exatamente nas noites em que vosso irmão Luís está ausente. E a luz brilha ali até bem tarde. Sua prima Branca, às vezes sua prima Joana, vão ter com ela. Espertas, as donzelas! Se alguma fosse interrogada, não lhe custaria nada dizer: "Como? De que me acusais? Mas eu estava com a outra". Uma mulher culpada defende-se mal. Três devassas obstinadas são uma fortaleza. Entretanto, vede bem: nas mesmas noites em que Luís está ausente, nas mesmas noites em que a Torre de Nesle tem luz, naquela ribanceira ao pé da torre, naquele lugar sempre deserto há movimento. Já se viu saírem homens que não estavam vestidos de frades e que, se tivessem vindo cantar o ofício da tarde, teriam entrado por outra porta. A corte cala-se, mas o povo começa a murmurar, porque os criados tagarelam antes dos senhores...

Falando, ele se agitava, gesticulava, caminhava, abalava o chão, e sacudia o ar com grandes movimentos de sua capa. A exibição de excesso de força era, em Roberto d'Artois, uma forma de persuasão. Procurava convencer tanto com os músculos quanto com as palavras, e encerrava seu interlocutor num turbilhão. E a grosseria de sua linguagem, tão de acordo com seu aspecto, dava a impressão de ser a prova de uma rude boa fé. Entretanto, observando-o mais de perto era possível pensar se todo aquele movimento não seria alarde de pelotiqueiro, ou representação de comediante. Um ódio atento, tenaz, luzia nos olhos cinzentos do gigante. E a jovem rainha esforçava-se por conservar-se senhora de si.

— Falastes nisso com meu pai? — disse ela.

— Minha boa prima, conheceis o Rei Filipe melhor do que eu. Acredita tanto na virtude das mulheres que seria preciso mostrar-lhe vossas cunhadas deitadas com seus amantes para convencê-lo a ouvir-me. E eu não sou muito bem-visto na corte, desde que perdi meu processo...

— Sei, meu primo, que foram injustos convosco, e se dependesse só de mim essa injustiça seria reparada.

Roberto d'Artois precipitou-se para a mão da rainha, pousando ali os lábios, num grande ímpeto de gratidão.

— Mas justamente por causa desse processo — recomeçou docemente Isabel — não poderiam julgar que estais agindo por vingança?

O gigante levantou-se de um salto.

— Mas está claro, senhora, que estou sendo instigado pelo desejo de vingança!

Decididamente era desarmante, aquele grande Roberto! Pensava-se em armar-lhe um laço, apanhá-lo em flagrante, e ele se abria, inteiramente, como uma janela.

— Roubaram-me a herança do meu condado de Artois — exclamou ele — para dá-lo à minha tia Mafalda de Borgonha... a cadela, a rameira! Que ela rebente! Que a lepra lhe coma a boca! Que o peito lhe caia em podridão! E por que fizeram isso? Porque, à força de engodar, de intrigar, de forrar as mãos dos conselheiros de vosso pai com belas libras sonantes, ela conseguiu casar com vossos irmãos aquelas duas devassas que são suas filhas, e a outra devassa, que é sua prima.

Começou então a imitar um discurso imaginário de sua tia Mafalda, condessa da Borgonha e de Artois, dirigindo-se ao Rei Filipe, o Belo:

— "Meu caro senhor, meu parente, meu compadre, e se casásseis minha querida Joana com vosso filho Luís? Não? Ele não quer? Acha que ela é um tantinho enfezada? Pois bem: dai-lhe Margarida, então, e depois dai Joana a Filipe, e minha doce Branca ao vosso belo Carlos. Que prazer, vê-los enamorar-se uns dos outros! E depois, se me concederem o Artois, que era propriedade de meu defunto irmão, meu Franco-Condado da Borgonha irá para aquelas pombinhas. Meu sobrinho Roberto? Que dêem um osso àquele cão! O Castelo de Conches, o condado de Beaumont bastam para tal labrego." E eu sopro minhas malícias nas orelhas de Nogaret, e mando mil maravilhas a Marigny... e caso uma, e caso duas, e caso três. E mal isso se faz, minhas loureirazinhas começam suas combinações, seus recadinhos, arranjam amantes, e se ocupam em cornear muito bem a coroa da França... Ah! se fossem irrepreensíveis, senhora, eu saberia roer meu freio. Mas comportarem-se assim com tamanha baixeza, depois de me terem prejudicado tanto, as meninas da Borgonha hão de saber quanto isso lhes custará, e eu me vingarei nelas de tudo quanto me fez a mãe 2.

Isabel conservava-se pensativa diante daquele furacão de palavras. D'Artois aproximou-se dela e, baixando a voz:

— Elas vos odeiam.

— É verdade que, de minha parte, não gostei muito delas, desde o princípio, e sem saber por quê — disse Isabel.

— Não gostais delas porque são falsas, porque não pensam senão no prazer e não têm o senso de seus deveres. Mas elas vos odeiam porque têm ciúmes de vós.

— Minha sorte, entretanto, nada tem de invejável — disse Isabel, suspirando —, e o lugar delas parece-me mais doce do que o meu.

— Vós sois uma rainha, senhora. Vós o sois na alma e no sangue. Vossas cunhadas poderão usar a coroa, mas nunca serão rainhas. E é por isso que sempre vos tratarão como inimiga.

Isabel levantou para seu primo os belos olhos azuis, e d'Artois sentiu que dessa vez acertara. Isabel estava definitivamente de seu lado.

— Tendes os nomes de... enfim... dos homens com os quais minhas cunhadas... — disse ela.

A rainha não usava a linguagem crua de seu primo, e recusava-se a pronunciar certas palavras.

— Não os tendes? — insistiu ela. — Nada posso fazer sem eles. Tratai de obtê-los, e eu vos juro que então irei imediatamente a Paris, com um pretexto qualquer, e farei com que cessem esses desregramentos. Em que posso ajudar-vos? Prevenistes meu tio Valois?

Ela estava de novo decidida, precisa, autoritária.

— Tive o cuidado de nada dizer — respondeu d'Artois.

— Monseigneur de Valois é o meu protetor mais fiel e meu melhor amigo. Mas é exatamente o contrário de vosso pai. Iria badalar por toda parte aquilo que desejamos calar. Cedo demais daria o alarma, e quando quiséssemos agarrar as debochadas, iríamos encontrá-las puras como freiras...

— Então que desejais propor?

— Duas ações — disse d'Artois. — A primeira é conseguir a nomeação de uma nova dama de companhia para Mme Margarida, e que seja pessoa nossa, que nos mantenha informados. Pensei, para isso, em Mme de Comminges, que acaba de enviuvar, e que é muito considerada. É nessa altura que vosso tio Valois nos será útil. Mandai-lhe uma carta, expressando vosso desejo e fingindo interesse por essa viúva. Ele tem grande influência sobre vosso irmão Luís e, quando não fosse apenas para ter um pouco mais dessa influência, ele faria Mme Comminges entrar prontamente no Palácio de Nesle. Teríamos, assim, uma criatura nossa no lugar e, como costumamos dizer entre gente de guerra: um espião dentro dos muros vale mais do que um exército do lado de fora.

— Escreverei essa carta e vós a levareis — disse Isabel.

— E depois?

— Seria preciso, ao mesmo tempo, dissipar a desconfiança que vossas cunhadas têm de vós, mostrando-vos agradável e enviando-lhes amáveis presentes — continuou d'Artois. — Presentes que convenham tanto para homens como para mulheres, e que lhes faríeis chegar secretamente, sem advertir nem pai, nem esposo, como um pequeno mistério de amizade entre vós. Margarida rouba no próprio cofre jóias que oferece a um desconhecido, e seria realmente muito pouca sorte de nossa parte se, dispondo de um presente do qual não teria de dar contas, não viéssemos a encontrar o nosso objeto nas mãos do rapagão em referência. Tratemos de fornecer-lhes motivos para imprudências.

Isabel refletiu por um segundo, depois aproximou-se da porta e bateu palmas.

A primeira dama francesa apareceu.

— Minha amiga — disse a rainha —, mandai buscar aquela bolsa de ouro que o mercador Albizzi trouxe-me esta manhã, propondo-me a sua compra.

Durante aquela pequena espera, Roberto d'Artois saiu, enfim, de suas preocupações e combinações para olhar a sala onde se encontravam os afrescos religiosos pintados nas paredes, o forro imenso, guarnecido de madeira, em forma de quilha de navio. Tudo aquilo era bastante novo, triste e frio. O mobiliário era belo, mas pouco abundante.

— Não é muito risonho o lugar onde viveis, minha prima — disse ele. — Dá mais a impressão de uma catedral do que de um castelo.

— E Deus permita que não se transforme em prisão

— disse Isabel, a meia voz. — Como sinto falta da França, às vezes!

Ele sentiu-se surpreendido tanto pelo tom como pelas palavras. Compreendeu que havia duas Isabéis: de um lado, a jovem soberana, consciente de seu papel e que se esforçava um tanto para aparecer em sua majestade. E atrás daquela máscara, uma mulher que sofria.

A dama francesa voltou, trazendo uma bolsa de fios de ouro tecidos, forrada de seda e fechada com três pedras preciosas, grandes como a ponta do polegar.

— Maravilha! — exclamou d'Artois. — Exatamente o que precisamos. Um pouco pesada para enfeite feminino. E exatamente o objeto que um jovem sonha trazer à cintura, para se fazer valer...

— Encomendai mais duas bolsas como esta ao mercador Albizzi — disse Isabel à dama —, e que ele as faça imediatamente.

Depois, quando a dama francesa saiu, acrescentou para Roberto d'Artois:

— Assim, podereis levá-las para a França.

— Ninguém saberá que passaram pelas minhas mãos — disse ele.

Ouviu-se um ruído lá fora, gritos e risos. Roberto d'Artois aproximou-se de uma janela. No pátio, um grupo de pedreiros içava para o alto de uma abóbada uma pedra ornamental, gravada em relevo com os leões da Inglaterra; havia homens que puxavam cordas passadas em polias, e outros que, sobre um andaime, preparavam-se para agarrar a pedra. E todo aquele trabalho parecia ser executado com extremo bom humor.

— Pois bem! — disse Roberto d'Artois. — Ao que parece, o Rei Eduardo continua gostando dos trabalhos de pedreiro.

Reconhecera entre os trabalhadores Eduardo II, marido de Isabel, homem bastante bonito, de uns trinta anos, cabelos ondulados, ombros largos, ancas fortes. Suas roupas de veludo estavam sujas de gesso 3.

— Há mais de quinze anos começaram a reconstruir Westmoutiers! — disse Isabel, encolerizada. (Como toda a corte, pronunciava Westmoutiers, à francesa, em vez de Westminster.) — Há seis anos estou casada, e vivo entre colher de pedreiro e argamassa. Não cessam de desfazer o que fizeram um mês antes. Não é o trabalho de pedreiro que ele ama, são os pedreiros! Pensais, por acaso, que eles ao menos o chamam sire? Tratam-no por Eduardo, caçoam dele, e isso o deixa encantado. Olhai, prestai atenção!

No pátio, Eduardo II dava ordens, apoiando-se a um jovem trabalhador, em cujo pescoço passara o braço. Reinava em torno dele uma familiaridade suspeita. Os leões da Inglaterra tinham descido de novo para o chão, sem dúvida por ter se decidido que o lugar não era bom.

— Eu pensava — disse Isabel — ter passado pelo pior, com o Cavaleiro de Gabaston. Aquele bearnês insolente e gabarola governava tão bem meu esposo, que chegou a governar o reino. Eduardo lhe havia dado todas as jóias do meu cofre de noiva. Positivamente, é um hábito de família ver que as jóias das mulheres, de uma forma ou de outra, acabam sendo usadas pelos homens!

Tendo junto dela um parente, um amigo, Isabel deixava, enfim, exalar seus desgostos e humilhações. Os costumes do Rei Eduardo II eram conhecidos em toda a Europa.

— Os barões e eu, no ano passado, conseguimos derrotar Gabaston; foi decapitado e seu corpo está hoje bem putrefato sob a terra, em Oxford — disse a rainha, com satisfação.

Tanta crueldade, expressa por rosto tão belo, não pareceu surpreender Roberto d'Artois. Devemos dizer que tais processos eram, naquele tempo, moeda corrente. Os reinos ficavam, muitas vezes, entregues a adolescentes, que se deixavam deslumbrar com o seu poder total, como por um brinquedo. Mal saídos da idade em que é divertimento arrancar as asas das moscas, conseguiam divertir-se arrancando cabeças de homens. E muito jovens para temer ou imaginar a morte, não hesitavam em distribuí-la em torno de si.

Isabel subira ao trono aos dezesseis anos; em seis anos progredira muito.

— Pois bem, meu primo, chego a sentir falta do Cavaleiro de Gabaston — continuou ela. — Porque desde então, como para se vingar de mim, Eduardo chama ao palácio tudo quanto há de mais baixo e de mais infame entre os homens do povo. É visto a percorrer as espeluncas do porto de Londres, sentando-se entre os vagabundos, rivalizando na luta com os carregadores e na corrida com os palafreneiros. Que belos torneios ele oferece, dessa maneira! Durante esse tempo, quem quiser governa o reino, contanto que organize seus prazeres, e deles partilhe. Neste momento, são os barões Despenser: o pai não é melhor que o filho, que serve de mulher a meu marido. Quanto a mim, Eduardo não me procura mais, e se por acaso acontece-lhe procurar-me, tenho tamanha vergonha que me conservo fria.

Ela baixara a fronte.

— Uma rainha é o mais infeliz dos vassalos do reino, se seu marido não a ama. É bastante que ela tenha assegurado a descendência: sua vida, dali por diante, não conta mais. Qual seria a mulher de barão, a mulher de burguês ou de vilão, que suportaria o que eu tenho de tolerar, porque sou rainha? A última das lavadeiras do reino tem mais direitos do que eu: pode vir pedir-me apoio...

Roberto d'Artois sabia — quem não o sabia? — que o casamento de Isabel não era feliz. Mas não imaginara que o drama fosse tão profundo, que ela se sentisse atingida a tal ponto.

— Minha prima, minha bela prima, quero servir-vos de apoio — disse ele, calorosamente.

Ela levantou tristemente os ombros, como para dizer:

"Que podeis fazer por mim?" Estavam face a face. Ele estendeu as mãos, tomou-a pelos cotovelos, tão docemente quanto lhe foi possível, e disse, murmurando...

— Isabel...

Ela pousou as mãos sobre os braços do gigante, respondendo:

— Roberto...

Olharam-se, e apoderou-se deles uma perturbação que não tinham previsto. D'Artois teve a impressão de que Isabel lançava um apelo secreto. Sentiu-se, de repente, e de forma estranha, emocionado, oprimido, constrangido por uma força que temia utilizar desajeitadamente.

Vistos de perto, os olhos azuis de Isabel, sob o arco das sobrancelhas louras, eram ainda mais belos, as faces mais aveludadas, mais saborosas. Ela tinha a boca entreaberta, e o bordo de seus dentes brancos aparecia entre os lábios.

De repente d'Artois sentiu o brusco desejo de devotar seu tempo, sua vida, seu corpo e sua alma àquela boca, àqueles olhos, àquela rainha frágil que, naquele instante, voltava a ser a adolescente que era. Ele a desejava, simplesmente, com um desejo imediato e robusto que não sabia como expressar. Seus gostos não o levavam, habitualmente, para junto de mulheres de qualidade, e as graças da galanteria não eram seu natural.

— Por que vos confiei tudo isso? — indagou Isabel. Seus olhares não se desprendiam.

— O que um rei desdenha, porque não sabe reconhecer a perfeição — disse Roberto —, muitos outros homens agradeceriam ao céu, de joelhos. Na vossa idade, tão fresca, tão bela, será possível que estejais privada das alegrias da natureza? Será possível que esses doces lábios não sejam beijados jamais? Que esses braços... esse corpo... Ah! Tomai um homem, Isabel, e que esse homem seja eu.

Realmente, ele dizia o que desejava bastante rudemente, e sua eloqüência se parecia pouco com a daqueles poemas do Duque Guilherme da Aquitânia. Mas Isabel mal o ouvia. Ele dominava-a, esmagava-a, com toda a sua estatura. Recendia a floresta, a couro, a cavalo e a armadura. Não tinha a voz, nem a aparência de um sedutor, e, apesar disso, ela estava seduzida. Era um homem de verdade, um macho rude e violento, que respirava profundamente. Isabel sentia toda a sua vontade fugir-lhe e agora só tinha um desejo: apoiar a cabeça sobre aquele peito de búfalo, e abandonar-se... estancar aquela grande sede... Ela tremia um pouco. Com um movimento, libertou-se.

— Não, Roberto — exclamou —, não vou fazer o que tanto censuro em minhas cunhadas. Não posso e não devo. Mas quando penso nas imposições que faço a mim mesma, e naquilo que eu me recuso, quando elas têm a sorte de serem amadas por seus maridos... Ah! não! É preciso que elas sejam castigadas, bem castigadas!

Seu pensamento encarniçava-se sobre as culpadas, porque não se sentia autorizada a se tornar culpada também. Voltou a sentar-se na grande cadeira de carvalho. Roberto d'Artois acompanhou-a.

— Não, Roberto — repetiu, estendendo os braços. — Não vos aproveiteis do meu desfalecimento. Eu me zangaria.

A extrema beleza inspira tanto respeito quanto a majestade, e o gigante obedeceu.

Mas o que acabara de se passar jamais se apagaria da memória de ambos. Durante um instante, todas as barreiras tinham sido abolidas entre eles. Seus olhares relutavam em se separar. "Posso, pois, ser amada", pensava Isabel, sentindo quase que reconhecimento por aquele homem que conseguira dar-lhe tal certeza.

— Era tudo o que tínheis a contar-me, meu primo, e não me trazeis outras notícias? — disse ela, fazendo um esforço para se dominar.

Roberto d'Artois, que perguntava a si próprio se não errara por não insistir, já que tivera essa possibilidade, demorou-se a responder.

Respirou fundo, como quem volta de longe.

— Sim, senhora, tenho também uma mensagem de vosso tio Valois.

Novo elo se formara entre eles, e cada palavra que pronunciavam tinha, agora, outra ressonância.

— Os dignitários do Templo vão ser julgados brevemente — continuou d'Artois — e teme-se bastante que vosso padrinho, o Grão-Mestre Tiago de Molay, seja condenado à morte. Vosso tio Valois pede-vos que escrevais ao rei, rogando-lhe clemência.

Isabel não respondeu. Tinha novamente apoiado o queixo na palma da mão.

— Como vos pareceis com ele, assim! — disse d'Artois.

 

— Com quem?

— Com o Rei Filipe, vosso pai.

— O que o rei meu pai decidiu está bem decidido — respondeu lentamente Isabel. — Posso intervir no que se refere à honra da família; não tenho nada que dizer quando se trata do governo do reino da França.

— Tiago de Molay é velho. Foi nobre e foi grande. Se cometeu erros, já os expiou bastante. Lembrai-vos que ele vos levou à pia batismal... Acreditai-me, é um grande erro que vão cometer, e que se deve, mais uma vez, a Nogaret e Marigny! Ferindo o Templo, é toda a cavalaria e os altos barões que esses homens saídos do nada desejam ferir.

A rainha conservava-se perplexa. O assunto, visivelmente, excedia sua alçada.

— Eu não posso julgar nesse caso — disse ela —, eu não posso julgar.

— Sabeis que tenho uma grande dívida para com vosso tio Valois, e ele ficaria contente comigo se obtivesse de vós essa carta. Além disso, a piedade jamais deixou de convir a uma rainha; é sentimento feminino, e, por ele, só podereis receber louvores. Há quem vos acuse de terdes coração duro: será uma forma de lhes dar boa resposta. Fazei isso por vós, Isabel, e fazei-o por mim.

Tinha pronunciado aquele Isabel no mesmo tom em que o fizera, havia pouco, junto da janela. Ela sorriu-lhe.

— Sois bem hábil, Roberto, sob vosso ar de bicho-papão. Está bem, eu escreverei essa carta que desejais, e podereis levar tudo junto. Tentarei, mesmo, que o rei da Inglaterra escreva também ao rei da França. Quando voltais?

— Quando ordenardes, minha prima.

— As bolsas ficarão prontas amanhã, penso eu. É pouco tempo.

Havia certo pesar na voz da rainha. Ele fitou-a nos olhos e Isabel perturbou-se novamente.

— Esperarei um mensageiro vosso para saber se devo pôr-me a caminho da França. Adeus, meu primo. Tornaremos a ver-nos à hora do jantar.

Ele despediu-se, e o aposento, depois de sua saída, pareceu à rainha estranhamente calmo, como um vale depois da passagem de um temporal. Isabel fechou os olhos e ficou imóvel, durante um longo momento.

“Eis um bom homem”, pensou ela, "que se tornou porque o prejudicaram. Mas se o amarem, e ele será capaz de amor.”

Os homens chamados  a representar papel decisivo na história dos povos ignoram, na maior parte das vezes, quais os destinos que neles se encarnam. Duas personagens que saíam daquela longa entrevista, numa tarde de março de 1314, no castelo de Westminster, não podiam imaginar que, pelo encadeamento de seus atos, viriam a ser os artífices, quase os únicos artífices, de uma guerra entre os reinos da França e da Inglaterra, guerra que duraria mais de cem anos.

 

OS PRISIONEIROS DO TEMPLO

A muralha estava coberta de salitre. Uma claridade enfumaçada, de tom amarelado, começava a descer  para a sala abobadada, cavada no subsolo.

O prisioneiro, que dormitava com os braços dobrados sob o queixo, estremeceu e endireitou-se bruscamente, estonteado, o coração batendo. Ficou um instante imóvel, a olhar a bruma da manhã, que entrava pelo respiradouro. Aguçava os ouvidos. Distinto, embora abafado pela enormidade das paredes, chegara até ele o repicar dos sinos de Paris, anunciando as primeiras missas: sinos de Saint-Martin e de Saint-Merry, de Saint-Germain-l’Auxerrois, de Saint-Eustache e de Notre-Dame; sinos campestres das aldeias próximas de Courtille, de Clignancourt e de Mont-Martre.

O preso não ouviu ruído algum que pudesse inquietar.Fora apenas a angústia que o levava sobressaltar-se, aquela angústia que encontrava a cada despertar, como em  cada sono encontrava um pesadelo.

Agarrou uma grande escudela de madeira e bebeu longo gole de água, para acalmar aquela febre que havia dias e dias não o deixava. Depois de beber, deixou a água repousar e debruçou-se sobre ela, como sobre um espelho ou o fundo de um poço. A imagem que conseguiu captar, imprecisa e sombria, era a de um centenário. Ficou assim, durante alguns instantes procurando o que poderia ter ficado de sua antiga aparência naquele rosto flutuante, naquela barba que mais parecia a de um antepassado, nos lábios retraídos para dentro da boca desdentada, no comprido nariz adelgaçado, nos poços trevosos do olhar.

Afastou a escudela, levantou-se e deu alguns passos, até sentir estendida a corrente que o ligava à parede. Então, subitamente, começou a bramir:

Tiago de Molay! Tiago de Molay! Eu sou Tiago de Molay!

Ninguém lhe respondeu. Nada, ele o sabia, lhe responderia: nem mesmo o eco.

Mas tinha necessidade de gritar seu próprio nome, de lançá-lo às colunas de pedra, às abóbadas, à porta de carvalho, para evitar que seu espírito se desintegrasse na demência, para lembrar-se que tinha setenta e um anos, que comandara exércitos, governara províncias, que tivera em mãos um poderio igual ao dos soberanos, e que enquanto tivesse em si um sopro de vida continuaria a ser, mesmo naquela masmorra, o grão-mestre da Ordem dos Cavaleiros do templo.

Por um requinte de crueldade, de escárnio, fora nas salas baixas da torre grande do Palácio do Templo, transformadas em cárceres, que o haviam encerrado e aos principais dignitários da ordem. Em seu próprio estabelecimento, em sua sede.

— E dizer que fui eu quem mandou reformar esta torre! — murmurou o grão-mestre, encolerizado, batendo com os punhos contra a muralha.

O gesto arrancou-lhe um grito, revivendo uma dor atroz em sua mão, cujo polegar, esmagado, era apenas uma massa de carnes mal cicatrizadas. Aliás, em que região do corpo deixava ele de ter um ferimento ou uma dor? O sangue circulava mal em suas pernas, e desde que sofrerá o suplício dos sapatos de ferro padecia de cãibras abomináveis. Com as pernas ligadas entre tábuas, tinha sentido que nele se enterravam as cunhas de carvalho sobre as quais os "torturadores" batiam com os malhos, enquanto Guilherme de Nogaret, o guarda-selos do reino, fazia-lhe perguntas e exortava-o a que confessasse. Confessar o quê?... Acabara perdendo os sentidos.

Sobre as carnes laceradas, despedaçadas, a sujeira, a umidade, a falta de alimentação tinham deixado sua marca.

Sofrerá, mais recentemente, a tortura pelo estiramento, a mais horrorosa talvez de quantas suportara. Tinham-lhe amarrado ao pé direito um peso de cento e oitenta libras, e, com uma corda e uma polia, o haviam içado, a ele, um ancião, até o forro. E sempre a voz sinistra de Guilherme de Nogaret: "Mas, confessai, messire..."

E como ele se obstinasse em negar tinham puxado a corda, sempre mais forte, sempre mais depressa, do chão às abóbadas. Sentira seus membros se desconjuntarem, suas articulações romperem-se, seu corpo estalar, e pusera-se a bramir que confessava, sim, fossem quais fossemos crimes do mundo. Sim, os templários davam-se à sodomia entre eles; sim, para entrar na ordem precisavam escarrar sobre a cruz; sim, adoravam um ídolo com cabeça de gato; sim, entregavam-se à magia, à feitiçaria, ao culto do Diabo; sim, desviavam os fundos que lhes eram confiados; sim, tinham fomentado uma conspiração contra o papa e o rei... E que mais ainda?

Tiago de Molay pergunta-se como pudera sobreviver a tudo aquilo. Sem dúvida porque as torturas, dosadas sabiamente, jamais tinham sido levadas ao ponto em que havia risco de matar, e também porque a constituição do velho cavaleiro, treinado nas armas e na guerra, tinha resistência maior do que ele próprio poderia supor.

Ajoelhou-se, os olhos voltados para o raio de luz que vinha do respiradouro.

— Senhor, meu Deus — disse ele — porque me destesmenos força para a alma do que para o corpo? Seria eu, realmente, digno de dirigir a ordem? Não evitastes que eu caísse na covardia; poupai-me, senhor Deus, de tombar na loucura. Eu não poderei suportar muito tempo mais, não poderei.

Estava acorrentado havia sete anos, não saía senão para ser arrastado diante da comissão de inquérito e para ser submetido a todas as pressões, a todas as ameaças dos jurisconsultos e dos teólogos. Com semelhante regime, era natural que se temesse a loucura. Freqüentemente , o grão-mestre perdia a noção do tempo. Para se distrair, tentava domesticar um casal de ratos que vinha todas as noites roer os restos de seu pão. Passava da cólera às lágrimas, das crises de devoção aos desejos de violência, da apatia ao furor.

— Eles hão de rebentar, hão de rebentar — repetia consigo.

Quem rebentaria? Clemente, Guilherme, Filipe...O papa, o guarda-selos e o rei. Eles morreriam, Molay não sabia como, mas com certeza entre abomináveis sofrimentos, para que expiassem seus crimes. E remoia sem ce sar aqueles três nomes odiosos.

Sempre de joelhos, o queixo erguido para o respiradouro, o grão-mestre murmurou:

— Obrigado, Senhor meu Deus, por me terdes deixado o ódio. É a única coisa que ainda me sustenta ...

Levantou-se com dificuldade e voltou para o banco de pedra cimentado à muralha e que lhe servia ao mesmo tempo de assento e de leito.

Quem poderia imaginar, um dia, que ele chegaria àquilo? Seu pensamento voltava constantemente à juventude, ao adolescente que fora cinqüenta anos antes, e que descia as encostas do seu Jura natal para correr em direção à grande aventura.

Como todos os filhos mais jovens da nobreza daquela época, sonhava usar o comprido manto branco, que a cruz negra guarnecia, e que constituía o uniforme da Ordem do Templo. Bastava o nome de templário para evocar, então, exotismo e epopéia, navios de velas enfunadas navegando para o Oriente, países onde o céu é sempre azul, galopes pelos areais, tesouros da Arábia, cativos resgatados, cidades assaltadas e pilhadas, castelos fortes, de gigantescas escadarias, construídos à beira-mar. Contava-se, mesmo, que os templários tinham portos secretos, de onde embarcavam para continentes desconhecidos 4...

E Tiago de Molay realizara seu sonho. Caminhara altivamente através das cidades longínquas, vestido com a capa soberba cujas pregas desciam até suas esporas de ouro.

E subira na hierarquia da ordem, mais alto do que jamais ousara esperar, obtendo, uma a uma, todas as dignidades, para ser levado enfim, através da escolha de seus irmãos, à função suprema de grão-mestre da França e do Ultramar, no comando de quinze mil cavaleiros.

Tudo aquilo para terminar naquele subterrâneo, naquela podridão, naquela miséria. Poucos destinos tinham mostrado uma fortuna tão prodigiosa, seguida de tão grande queda...

Tiago de Molay, com o auxílio de um dos elos de sua cadeia, traçava sobre o salitre da parede alguns traços vagos que lhe lembravam o plano de uma fortaleza, quando ouviu passos pesados e ruídos de armas na escada que descia para a masmorra.

A angústia transiu-o novamente, mas desta vez uma angústia precisa, motivada.

A porta espessa rangeu, abrindo-se, e, atrás de um carcereiro, Molay percebeu quatro archeiros com túnicas de couro e pique nas mãos. Diante de seus rostos seu hálito se exalava em leve vapor.

— Viemos buscar-vos, messire — disse o chefe do destacamento.

Molay levantou-se, sem pronunciar uma palavra.

O carcereiro aproximou-se e, com grandes golpes de martelo e de buril, fez saltar o rebite que ligava a corrente aos braceletes de ferro, que pesavam quatro libras, e nos quais ficavam presos os tornozelos do prisioneiro.

Este ajeitou sobre os ombros descarnados a grande capa, sua capa ilustre, que agora não passava de um frangalho acinzentado, cuja cruz negra, sobre a espádua, fazia-se em tiras.

Pôs-se a caminhar. Naquele ancião exausto, cambaleante, que subia com os pés pesados de ferros os degraus da torre, conservava-se ainda alguma coisa do chefe militar que tinha retomado, pela última vez, Jerusalém aos sarracenos.

"Senhor meu Deus, dai-me força", murmurou ele, intimamente, "dai-me um pouco de força." E para encontrar essa força, repetia consigo os nomes de seus três inimigos: Clemente, Guilherme, Filipe.

A névoa enchia o vasto pátio do Templo, envolvendo os torreões da muralha que o fechava, insinuando-se entre as ameias, algodoando a agulha da grande igreja que ficava à direita da torre.

Uma centena de soldados se mostrava, em posição de descanso, conversando em voz baixa, e rodeando uma grande carreta aberta, e quadrada.

Para além das muralhas, ouvia-se o ruído de Paris, e às vezes o nitrido de um cavalo elevava-se, com dilacerante tristeza.

No meio do pátio, Messire Alain de Pareilles, capitão dos archeiros do rei, o homem que assistia a todas as execuções, que acompanhava todos os condenados aos julgamentos e aos suplícios, caminhava a passos lentos, o rosto impassível, com ar entediado. Tinha uns quarenta anos, e seus cabelos cor de aço tombavam em mechas curtas sobre sua testa quadrada. Usava cota de malhas, uma espada ao lado, e levava o capacete sob um dos braços.

Voltou-se ao ouvir que o grão-mestre saía, e aquele, vendo-o, sentiu-se empalidecer, se empalidecer ainda lhe era possível.

Habitualmente, para os interrogatórios, não havia tanto aparato, e não havia carreta, nem homens armados. Alguns sargentos reais vinham buscar os acusados, a fim de levá-los,

de barco, para a outra margem do Sena, quase sempre ao cair da noite.

A presença de Alain de Pareilles, aquela simples presença, era bastante significativa.

— Então, é coisa julgada? — perguntou Molay ao capitão dos archeiros.

— É, messire — respondeu ele.

— E o senhor sabe, meu filho — disse Molay, depois de uma hesitação —, o que contém o julgamento?

— Eu o ignoro, messire. Tenho ordem para conduzir-vos a Notre-Dame, a fim de que possais ouvir a sua leitura.

Houve um silêncio. Em seguida, Tiago de Molay perguntou, ainda:

— Em que dia estamos?

— Na segunda-feira depois de São Gregório.

O que correspondia a 18 de março, 18 de março de 13145.

"É para a morte que me conduzem?", perguntou Molay a si próprio.

A porta da torre abriu-se novamente, e, escoltados par guardas, três outros dignitários, o visitador-geral, o preceptor da Normandia e o comendador da Aquitânia, apareceram, por sua vez.

De cabelos brancos, também eles, a barba alva e enredada, as pálpebras batendo no fundo de órbitas enormes, o corpo flutuando em suas capas em frangalhos, ficaram imóveis por um momento, como grandes pássaros noturnos que a luz impede de ver. O comendador da Aquitânia, aliás, tinha sobre o olho esquerdo uma belida branca que lhe dava, verdadeiramente, a semelhança de um mocho. Parecia completamente embrutecido. O visitador-geral, meio calvo, tinha os pés e as mãos horrivelmente inchados.

Foi o preceptor da Normandia, Godofredo de Charnay, embora embaraçado pelos ferros, o primeiro a precipitar-se para o grão-mestre e abraçá-lo. Uma longa amizade unia os dois homens. Fora Tiago de Molay o artífice de toda a carreira de Charnay, que era dez anos mais moço do que ele, e no qual o grão-mestre via o seu sucessor.

Charnay mostrava na fronte uma cicatriz profunda, recordação de antigo combate, onde o mesmo golpe de espada lhe tinha também desviado o nariz. Aquele homem rude, de rosto modelado pela guerra, enterrou a fronte no ombro do grão-mestre para esconder as lágrimas.

— Coragem, meu irmão, coragem — disse-lhe aquele, apertando-o nos braços. — Coragem, meus irmãos — repetiu, dando a seguir um abraço aos dois outros dignitários.

Vendo-se uns aos outros, cada qual podia julgar de seu próprio estado.

Um carcereiro aproximou-se.

— Tendes o direito de ser libertados dos ferros, messires — disse ele.

O grão-mestre fez, com as mãos, um movimento amargo e cansado.

— Não tenho dinheiro —- respondeu ele.

Porque, para que lhes tirassem e lhes tornassem a pôr os ferros a cada saída — o que chamavam ferrar e desferrar —, os templários tinham que pagar um denier, sobre os doze deniers que lhes eram concedidos para pagar seu ignóbil alimento, a palha do cárcere e a lavagem da camisa. Mais uma argúcia, uma crueldade de Nogaret! Eles eram acusados, não condenados. Tinham direito a uma indenização de manutenção. Doze deniers, quando uma posta de carne custava mais de quarenta! Isso equivale a dizer que jejuavam quatro dias, em cada oito, dormiam sobre a pedra e apodreciam na imundície.

O preceptor da Normandia tirou de uma velha bolsa de couro, pendente de seu cinto, os dois deniers que lhe restavam e atirou-os ao chão, um para os seus ferros, outro para os ferros do grão-mestre.

— Meu irmão — disse Tiago de Molay, com um gesto de recusa.

— De que me serviriam, agora... — respondeu Charnay. — Aceitai, meu irmão; nisso não tenho mérito algum.

Enquanto faziam saltar os fechos dos ferros, sentiam as marteladas ressoar em seus ossos. Sentiam porém ainda mais forte o tumultuar do próprio sangue no peito.

— Desta vez está tudo acabado para nós — murmurou Molay.

Perguntava a si próprio que gênero de morte lhes haviam reservado, e se teriam que suportar torturas derradeiras.

— Se nos tiram os ferros, é talvez bom sinal — disse o visitador-geral, sacudindo as mãos inchadas. — Talvez o papa tenha resolvido agraciar-nos.

Ele tinha, ainda, alguns dentes quebrados, na frente, o que o levava a sibilar. E o cárcere tornara-lhe o espírito um pouco infantil.

O grão-mestre levantou os ombros e mostrou os cem archeiros alinhados.

— Preparemo-nos para morrer, meu irmão — respondeu.

— Vede, vede o que fizeram — exclamou o visitador, levantando a manga e mostrando seu braço tumefato.

— Todos nós fomos torturados —- respondeu o grão-mestre.

Desviou os olhos, como de cada vez que lhe falavam de tortura. Havia cedido, assinado falsas confissões, e não perdoava a si próprio.

Percorreu com o olhar o recinto fechado, imenso, que fora sede e símbolo do poderio deles.

"Pela última vez", pensava.

Pela última vez contemplava o conjunto formidável, com o torreão, a igreja, os palácios, as casas, os pátios e pomares, verdadeira praça-forte em plena Paris6.

Fora aí que os templários, por dois séculos, tinham vivido, rezado, dormido, julgado, contado, decidido suas longínquas expedições: naquele torreão fora depositado o Tesouro do reino da França, confiado à guarda e à gerência deles.

Fora para ali, depois das desastrosas expedições de São Luís e da perda da Palestina e de Chipre, que haviam regressado, arrastando consigo os escudeiros, as mulas carregadas de ouro, a cavalaria de cavalos árabes e os escravos negros.

Tiago de Molay revia aquele regresso de vencidos, que ainda tinha o aspecto de uma epopéia.

"Tínhamo-nos tornado inúteis, e não o sabíamos", pensava o grão-mestre. "Falávamos ainda em novas cruzadas e reconquistas... Talvez tenhamos conservado um pouco de soberba e de privilégios, sem que para isso tivéssemos mais justificativa."

De milícia permanente da cristandade haviam-se tornado os banqueiros permanentes da Igreja e dos reis. Quando se possuem muitos credores, surgem logo muitos inimigos.

Ah! O negócio fora bem dirigido! O drama se iniciara no dia em que Filipe, o Belo, pedira para fazer parte da ordem, da qual desejava se tornar o grão-mestre. O capítulo respondera com uma recusa distante e sem apelação.

"Teria errado?1", perguntava a si próprio Tiago de Molay, pela centésima vez. "Não fui ciumento demais de minha autoridade? Mas não. Eu não podia agir de outra forma. Nossa regra era formal: não podíamos ter príncipes soberanos em nossa comendadoria."

O Rei Filipe jamais se esquecera do fiasco e do insulto. Começara por usar de manha, continuando a cumular Tiago de Molay de favores e amizade. O grão-mestre fora o padrinho de sua filha Isabel. O grão-mestre era o sustentáculo do reino.

Mas o Tesouro real fora transferido do Templo para o Louvre. Ao mesmo tempo deu-se início a uma campanha de opinião, surda e venenosa, contra os templários. Contava-se que especulavam com os cereais e que eram responsáveis pelas épocas de fome. Pensavam mais em aumentar suas fortunas do que em retomar aos pagãos o túmulo de Cristo. Como usassem a rude linguagem dos militares, acusaram-nos de blasfemos. Inventou-se a expressão: "blasfemar como um templário". De blasfemos a hereges era apenas um passo. Afirmava-se que tinham hábitos contrários à natureza, e que seus escravos negros eram feiticeiros...

"Com certeza, nem todos os nossos irmãos eram santos, e para muitos deles a inação não se mostrava conveniente."

Dizia-se, sobretudo, que durante as cerimônias de recepção, os neófitos eram obrigados a renegar Cristo, a escarrar sobre a cruz e a submeter-se a práticas obscenas.

Sob o pretexto de pôr fim àqueles rumores, Filipe havia proposto ao grão-mestre, para honra e interesse da ordem, que mandasse abrir inquérito.

"E eu aceitei...", pensava Molay. "Fui abominavelmente enganado, fui iludido."

Porque, num dia de outubro de 1307... Ah! Como Molay se lembrava daquele dia... "Ainda na véspera ele me beijava e me chamava seu irmão, dando-me o primeiro lugar nos funerais de sua cunhada, a Condessa de Valois..."

Uma sexta-feira 13, exatamente, data de mau augúrio seguramente, o Rei Filipe, por uma gigantesca manobra da rede política preparada de longa data, mandava prender de madrugada todos os templários da França sob a acusação de heresia, em nome da Inquisição. E o próprio Nogaret viera deter Tiago de Molay e cento e quarenta cavaleiros, na casa matriz...

Uma ordem foi dada sobressaltando o grão-mestre e arrancando-o à sua meditação de homem que vem freqüentemente repisando sua desgraça. Messire Alain de Pareilles mandava alinhar seus archeiros. Colocara o capacete, e um soldado, detendo seu cavalo, apresentava-lhe o estribo.

— Vamos — disse o grão-mestre.

Os prisioneiros foram conduzidos para a carreta. Molay subiu em primeiro lugar. O comendador da Aquitânia, aquele que tinha uma belida branca num olho, o homem que repelira os turcos em São João de Acre, não saíra de seu embrutecimento. Foi preciso que o içassem. O visitador-geral mexia os lábios, falando sozinho, sem parar. Quando Godofredo de Charnay subiu por sua vez para a carreta um cão invisível começou a uivar algures, do lado das cavalariças, e a cicatriz do preceptor da Normandia enrugou-se duramente em sua testa.

Puxada por dois pares de cavalos, a pesada carreta pôs-se em marcha.

O grande portão abriu-se e um imenso clamor levantou-se. Muitos milhares de pessoas, todos moradores do bairro do Templo e dos bairros vizinhos, apertavam-se contra as muralhas. Os archeiros da frente tiveram de abrir caminho a golpes de cabo de pique através da multidão ululante.

— Lugar para a gente do rei! — gritavam os archeiros. Ereto em seu cavalo, o ar sempre impassível e entediado, Alain de Pareilles dominava o tumulto.

Mas quando os templários apareceram o clamor extinguiu-se de repente. Diante daqueles quatro velhos descarnados que as sacudidelas das rodas maciças atiravam uns contra os outros, os parisienses tiveram um momento de mudo estupor, de espontânea compaixão.

Depois, houve gritos: "À morte! À morte os hereges!", lançados pelos sargentos reais, que se haviam misturado à multidão. Então, como as pessoas estão sempre dispostas a gritar com o poder e a mostrar ferocidade quando nada arriscam, começou um belo concerto de vociferações:

— À morte!

— Ladrões!

— Idolatras!

— Olhem para eles! Já não estão hoje orgulhosos como eram, esses pagãos! À morte!

Os insultos, os dichotes grosseiros, as ameaças, cruzaram-se ao longo do sinistro cortejo. Mas aquele furor não tinha peso. Toda uma parte da multidão continuava calada e seu silêncio, mesmo que se tratasse de prudência, não era menos revelador.

Porque, em sete anos, as coisas haviam mudado. Sabia-se como fora conduzido o processo. Tinha-se visto templários, à porta das igrejas, mostrarem ao povo os ossos que haviam saído dos pés dos torturados. Em muitas cidades da França tinha-se visto queimar cavaleiros, às centenas, sobre fogueiras. Sabia-se que certas comissões eclesiásticas haviam recusado condenar, e que fora necessário nomear novos bispos, como o irmão do Primeiro-Ministro Enguerrand de Marigny, para cumprirem aquela obra. Dir-se-ia que o próprio Papa Clemente V cedera contra a vontade, porque estava nas mãos do rei e tinha receio de ter a mesma sorte de seu predecessor, o Papa Bonifácio. E depois, em sete anos, o trigo nem por isso se fizera mais abundante, o preço do pão aumentara ainda mais, e toda a gente era obrigada a admitir que dessas coisas já não cabiam culpas aos templários...

Vinte e cinco archeiros, o arco a tiracolo e o pique sobre o ombro, caminhavam diante da carreta; vinte e cinco em cada flanco, e o resto para fechar o cortejo.

"Ah! Se ao menos nos restasse ainda um pouco de força no corpo!", pensava o grão-mestre. Com vinte anos, ele teria saltado sobre um archeiro, arrancando-lhe o pique, e tentaria escapar; ou então teria lutado no local, até a morte. Agora, mal pudera subir à carreta.

Atrás dele, o irmão visitador murmurava, entre seus dentes rebentados:

— Eles não nos condenarão. Não posso crer que nos condenem. Não somos mais perigosos.

E o velho templário de belida no olho saiu enfim de sua prostração para murmurar:

— Como é bom sair, respirar o ar fresco! Não é verdade, meu irmão?

"Ele nem sequer está percebendo para onde nos levam", pensou o grão-mestre.

O preceptor da Normandia pousou-lhe a mão no braço.

— Messire, meu irmão — disse, em voz baixa —, vejo gente chorando nessa multidão, e pessoas que fazem o sinal-da-cruz. Não estamos sozinhos em nosso calvário.

— Essa gente pode ter pena de nós, mas não nos pode salvar — respondeu Tiago de Molay. — São outros rostos que procuro.

O preceptor compreendeu quais eram os rostos de que o grão-mestre queria falar, e a que esperança suprema, e insensata, ele se estava agarrando. E, apesar de tudo, começou também a observar a multidão. Porque, entre os cavaleiros do Templo, um certo número escapara à redada de 1307. Uns se haviam refugiado em conventos, outros tinham abandonado o uniforme e viviam clandestinamente, escondidos na região campesina ou em cidades. Ainda outros tinham passado para a Espanha, onde o rei de Aragão, recusando obedecer às injunções do rei da França e do papa, deixara-lhes suas comendadorias e fundara para eles nova ordem. E, demais, havia aqueles que, depois do julgamento diante dos tribunais, tinham sido confiados à guarda dos hospitalários. Todos aqueles antigos cavaleiros se haviam conservado em ligação uns com os outros, tanto quanto lhes fora possível, estabelecendo-se entre eles uma espécie de rede secreta.

E Tiago de Molay dizia consigo mesmo que talvez...

Talvez uma conspiração tivesse sido organizada... Talvez numa esquina da rua, na esquina da Rue des Blancs-Manteaux, na esquina da Rue de La Bretonnerie, na esquina do claustro Saint-Merry surgisse um grupo de homens e, retirando suas armas de sob as cotas, se lançassem sobre os archeiros, enquanto outros, colocados às janelas, lançariam projéteis. Com a carreta a galope, podiam bloquear o caminho e completar o pânico...

"E por que fariam isso nossos antigos irmãos?", pensava Molay. "Para libertar o seu grão-mestre, que os traiu, que renegou a ordem, que cedeu às torturas..."

E, apesar disso, esquadrinhava a multidão com os olhos, até o mais longe possível, e via apenas pais de família que tinham içado seus filhinhos para os ombros a fim de que estes nada perdessem do espetáculo. Crianças que mais tarde, quando diante delas se pronunciasse a palavra "templário", recordariam quatro velhos barbudos e trêmulos, cercados por gente de armas, como malfeitores públicos.

O visitador-geral continuava a resmungar, e o herói de

São João de Acre a repetir que era agradável passear assim pela manhã.

O grão-mestre sentiu formar-se uma dessas cóleras meio desvairadas que se apoderavam dele tão freqüentemente na prisão e faziam-no bramir, golpeando as paredes. Ia com toda a certeza fazer algo de terrível e de violento... não sabia o quê... mas tinha necessidade de fazê-lo.

Aceitava a morte, e quase como uma libertação, mas não aceitava morrer assim injustamente, nem morrer desonrado. O longo hábito de guerra agitou pela última vez seu sangue de velho. Desejava morrer combatendo.

Procurou a mão de Godofredo de Charnay, seu velho companheiro, o último homem forte que tinha a seu lado, e apertou aquela mão.

O preceptor, erguendo os olhos, viu sobre as têmporas fundas do grão-mestre pulsarem as artérias, com trejeitos de cobras azuis.

O cortejo alcançava a Ponte Notre-Dame.

 

AS NORAS DO REI

Um odor saboroso de farinha quente, de mel e de manteiga perfumava o ar em torno do açafate.

— Canudos quentes, canudos quentes! Não dá para todos. Vamos, burgueses, comei! Canudos quentes! — gritava o mercador, que se movimentava atrás do seu forno ao ar livre.

Fazia tudo ao mesmo tempo: estendia a massa, retirava do fogo os doces já prontos, dava o troco do dinheiro, vigiava os garotos para impedi-los de pilhar seu açafate.

— Canudos quentes!

Estava tão atarefado que nem reparou no cliente cuja mão branca depositou uma moeda sobre a tábua, em pagamento de um folheado bem delgado. Viu somente a mão esquerda pousar o folheado, no qual apenas fora dada uma dentada.

— Eis um tipo bem enjoado — disse ele, atiçando o fogo. — Pois que não goste: frumento puro e manteiga de Vaugirard...

Nesse momento, levantou a cabeça e ficou de boca aberta, a última palavra parada na garganta, percebendo a que cliente se estava dirigindo. Aquele homem, muito alto, de olhos imensos e imóveis, que usava um chapeirão branco e túnica três quartos...

Antes que o mercador pudesse esboçar uma reverência ou balbuciar uma desculpa, o homem de chapeirão branco já se afastara, e o confeiteiro, de braços pendurados enquanto sua última fornada de canudos se queimava, olhava-o a misturar-se com a multidão.

As ruas comerciais da Cite, no dizer dos viajantes que tinham percorrido a África e o Oriente, pareciam-se muito, então, aos suks de uma cidade árabe. A mesma ruidosa e incessante agitação, as mesmas lojas minúsculas, instaladas por toda parte, os mesmos odores de gordura cozida, de especiarias e de couro, a mesma caminhada lenta dos compradores e dos basbaques, que abriam caminho com dificuldade. Cada rua, cada viela, tinha sua especialidade, seu ofício particular: aqui, os tecelões, cujas navetas podiam ser vistas em movimento, no fundo das lojas; ali, os remendões, batendo sobre os pés de ferro, e mais além os seleiros, puxando pela sovela, ao lado dos marceneiros, que arredondavam os pés dos escabelos.

Havia uma rua de pássaros, uma rua de ervas e legumes, a rua dos ferreiros, cujos martelos ressoavam sobre as bigornas e cujos braseiros avermelhavam o fundo das oficinas. Os ourives ficavam agrupados ao longo do cais que lhes usava o nome, trabalhando em torno de seus fornilhos.

Viam-se pequenas faixas de céu, entre as casas de madeira e barro, cujas empenas ficavam tão próximas que de uma janela, para a que lhe ficava em frente, as pessoas poderiam dar-se as mãos. O chão, quase por toda parte, estava coberto de lama bastante fétida, onde os passantes arrastavam, segundo sua condição, os pés nus, os socos de madeira, ou os sapatos de couro.

O homem dos ombros altos e chapeirão branco continuava a avançar lentamente entre a multidão, com as mãos atrás das costas, sem se preocupar, ao que parecia, que nele esbarrassem os outros. Muitos, aliás, davam-lhe passagem e cumprimentavam-no. Ele respondia, com um rápido movimento de cabeça. Tinha arcabouço atlético, cabelos louros dando para o ruivo, sedosos, terminados em cachos que tombavam quase até o pescoço, enquadrando um rosto regular, impassível e de rara beleza de traços.

Três sargentos reais, de casaca azul, e trazendo sob o braço o bastão terminado com a flor-de-lis, insígnia de seu cargo7, seguiam aquele passeador a alguma distância, sem jamais perdê-lo de vista, parando quando ele parava, recomeçando a andar ao mesmo tempo em que ele o fazia.

Subitamente, um jovem de gibão justo, arrastado por três grandes lebréus que conduzia pela trela, surgiu de uma rua transversal e veio atirar-se aos pés do homem, com risco de derrubá-lo. Os cães se misturaram, latindo.

— Vejam só esse biltre! — exclamou o jovem, com marcado sotaque italiano. — O senhor quase pisou meus cães, e seria bem feito se eles o mordessem.

Dezoito anos, no máximo, bem-feito, embora de pequena altura, olhos negros e queixo fino, ele se firmara no meio da passagem e forçava a voz para bancar o homem. Alguém agarrou-lhe o braço e cochichou-lhe ao ouvido uma palavra. Imediatamente o jovem tirou o gorro e inclinou-se num grande gesto de respeito, mas sem servilismo.

— Que belos cães! A quem pertencem? — perguntou o homem que passeava, olhando para o rapaz com seus olhos imensos e frios.

— A meu tio, o banqueiro Tolomei... para vos servir — respondeu o jovem.

Sem nada acrescentar, o homem do chapeirão branco continuou seu caminho. Quando já estava um tanto afastado, bem como os sargentos que o seguiam, as pessoas que ali estavam desataram a rir em torno do rapaz italiano. Este não tinha saído de seu lugar, e parecia sentir dificuldade em digerir seu engano. Os próprios cães mantinham-se quietos.

— Vejam! Ele já não se mostra tão orgulhoso! — diziam, rindo.

— Ora essa! Quase atirou o rei por terra, e ainda por cima insultou-o!

— Podes te preparar para dormir esta noite na cadeia, meu jovem, com trinta chicotadas.

O italiano enfrentou os basbaques.

— Ora essa! Eu nunca o tinha visto. Como poderia reconhecê-lo? Depois, fiquem sabendo, burgueses, que sou de um país onde não existe rei a cuja passagem o povo tenha que se encostar às paredes. Na minha cidade de Siena, cada cidadão pode ser rei, por sua vez. Quem quiser se medir com Guccio Baglioni, é só dizer!

Tinha lançado seu nome, como um desafio. O orgulho suscetível dos toscanos luzia em seu olhar. Trazia ao lado uma adaga cinzelada. Ninguém insistiu. O jovem estalou os dedos para instigar os cães e seguiu seu caminho, menos seguro do que desejava parecer, perguntando a si próprio se a sua tolice não teria más conseqüências.

Porque era mesmo Filipe, o Belo, que ele acabara de empurrar. Aquele soberano, que nenhum outro igualava em poderio, gostava de caminhar assim, através da sua cidade, como um simples burguês, indagando preços, provando as frutas, apalpando os tecidos, ouvindo a conversa das pessoas. Desse modo, tomava o pulso de seu povo. Os estrangeiros, ignorando quem era, dirigiam-se a ele para se informarem sobre o caminho. Um soldado, um dia, detivera-o para reclamar o soldo. Tão avaro de palavras como de dinheiro, era raro que durante todo um passeio ele pronunciasse mais de três frases ou gastasse mais de três soldos.

O rei passava pelo mercado de carne, quando o sino grande de Notre-Dame começou a tocar, ao mesmo tempo que se erguia um grande rumor.

— Aí estão eles! Aí estão eles! — gritavam.

O ruído aproximava-se. A multidão agitou-se, e as pessoas começaram a correr.

Um açougueiro gordo saiu de trás de seu balcão, facão em punho, vociferando:

— À morte os hereges!

A mulher dele agarrou-o pela manga.

— Hereges? Tanto quanto tu — disse ela. — Fica aí servindo os fregueses que é melhor, grande preguiçoso!

Começaram a discutir. Imediatamente formou-se uma aglomeração.

— Confessaram diante dos juizes! — continuava o açougueiro.

— Os juizes? — replicou alguém. — São sempre os mesmos. Julgam conforme a vontade dos que lhes pagam, e têm medo de pontapés no traseiro.

Então toda a gente começou a falar ao mesmo tempo.

— Os templários são homens santos. Sempre fizeram caridade.

— Podiam tirar-lhes o dinheiro, mas não precisavam torturá-los.

— Era o rei quem devia mais, por isso aconteceu tudo o que aconteceu.

— O rei fez bem.

— O rei ou os templários — disse um aprendiz —, é tudo o mesmo. É preciso deixar que os lobos se comam uns aos outros, porque, entrementes, não nos devoram.

Uma mulher voltou-se nesse momento e, empalidecendo, fez sinal aos outros para que se calassem. Filipe, o Belo, estava atrás deles e observava-os, com o olhar imóvel e glacial. Os sargentos, insensivelmente, se haviam aproximado dele, prontos a intervir. Dentro de um instante a aglomeração se desfez, e os que a compunham afastaram-se em passo de corrida, gritando bem forte:

— Viva o rei! À morte os hereges!

Nada mudara no rosto do rei. Poder-se-ia crer que ele nada ouvira. Se sentia prazer em surpreender sua gente, era um prazer secreto.

O clamor aumentava sempre. O cortejo dos templários passava na extremidade da rua, e o rei, através do espaço entre as casas, pôde perceber, num instante, o grão-mestre de pé sobre sua carreta, rodeado pelos três companheiros. O grão-mestre mantinha-se ereto; era irritante, para o olhar do rei; tinha o ar de mártir, mas não o de um vencido.

Deixando a multidão precipitar-se para o espetáculo, Filipe, o Belo, voltou para seu palácio, pelas ruas bruscamente vazias, com a mesma calma.

O povo podia resmungar um pouco, e o velho grão-mestre endireitar seu velho corpo alquebrado. Dentro de uma hora tudo estaria terminado, e a sentença, o rei acreditava, seria bem acolhida, de modo geral. Dentro de uma hora a obra de sete anos estaria realizada, terminada. O Tribunal Episcopal tinha decidido; os archeiros eram numerosos; os sargentos guardavam as ruas. Dentro de uma hora o caso dos templários estaria apagado dos cuidados públicos, e, de qualquer maneira, o poder real saía daquilo engrandecido e reforçado.

"Mesmo minha filha Isabel ficará satisfeita. Terei acolhido seu pedido, e dessa maneira contentado todo o mundo. Mas era tempo de acabar", dizia Filipe consigo mesmo, recordando as palavras que acabava de ouvir.

Voltou para casa, entrando pela Galeria Capelista.

Filipe, o Belo, mandara reedificar ou reformar inteiramente o palácio, não conservando dos antigos edifícios senão a Santa Capela, que datava de seu avô São Luís. A época era de construções e embelezamentos. Os príncipes rivalizavam uns com os outros nesse assunto. O que tinha sido feito em Westminster fora-o também em Paris. O novo conjunto da Cite, com as grandes torres brancas dominando o Sena, era bastante novo, imponente, e cheirava um tanto a ostentação.

Filipe, cuidadoso sempre que se tratava de despesas pequenas, não regateava quando se tratava de reafirmar seu poder. Mas não desprezando lucro algum concedera aos mercadores, em troca de grande pagamento anual, o privilégio de venderem na grande galeria que atravessava o palácio e que realmente se chamava, por isso, Galeria Capelista, antes de se denominar Galeria Comercial8.

Era um imenso vestíbulo, formando como que uma catedral de duas naves. Suas proporções constituíam a admiração dos viajantes. Sobre colunas, estavam alinhadas as quarenta estátuas dos reis que, desde Faramond e Meroveu, se sucediam na direção do império franco. Diante da estátua de Filipe, o Belo, fora levantada a de Enguerrand de Marigny, coadjutor e reitor do reino, o homem que inspirara e dirigira os trabalhos.

Em torno das colunas só havia mostruários de objetos de toalete, balcões de bugigangas, mercadores de ornamentos, bordados e rendas, diante dos quais se aglomeravam as belas burguesas parisienses e as damas da corte. Aberta para toda a gente, a galeria convertera-se num lugar de passeio, de encontros de negócios e reuniões galantes. Aquele local ressoava de risos, conversas, tagarelices, dominadas pelos aranzéis dos vendedores. Os sotaques estrangeiros eram numerosos, sobretudo os da Itália e da Flandres.

Um espertalhão esguio, que resolvera fazer fortuna espalhando o uso do lenço, discursava no centro de um grupo de senhoras gordas, agitando os quadrados de pano festonado.

— Ah! Não é mesmo uma lástima, belas damas — exclamava ele —, assoar-se nos dedos ou na manga, quando para isso existem lenços tão encantadores, inventados para esse uso? Coisas assim belas não parecem mesmo feitas para os narizes de vossas senhorias?

Ao lado, um gentil-homem idoso fazia-se de rogado para oferecer a uma donzela certas rendas da Inglaterra.

Filipe, o Belo, atravessou a galeria. Os familiares da corte saudavam-no, inclinando-se até o chão. As mulheres junto das quais ele passava esboçavam uma reverência. Sem que o parecesse, o rei gostava daquela animação, daqueles risos, e também dos sinais de respeito, que lhe davam a segurança de sua autoridade. Ali, o sino grande de Notre-Dame, por causa do tumulto das vozes, parecia longínquo, mais leve, mais benigno.

O rei notara a presença de um grupo cuja beleza e brilho chamavam a atenção e atraíam os olhares. Duas mulheres muito jovens e um rapagão louro, muito bem-feito. As jovens senhoras eram duas das noras do rei, as chamadas "irmãs da Borgonha". Joana, condessa de Poitiers, casada com o segundo filho do rei, e Branca, sua irmã mais jovem, casada com o último filho de Filipe. O rapaz que as acompanhava estava vestido como um oficial de casa principesca.

Falavam a meia voz, com agitação contida. Filipe, o Belo, diminuiu o ritmo de seus passos para melhor observar suas noras.

"Meus filhos não podem se queixar de mim", pensava, "pois ao mesmo tempo que lhes arranjei alianças úteis à coroa, dei-lhes esposas bem bonitas."

As duas irmãs pouco se pareciam. Joana, a mais velha, mulher de Filipe de Poitiers, tinha vinte e um anos. Era alta, esbelta, com cabelos entre o castanho e o cinza, e alguma coisa na atitude, um tanto composta, na linha do pescoço, na obliqüidade dos olhos, fazia lembrar ao rei os belos lebréus de sua matilha. Vestia-se com simplicidade, uma sobriedade que era quase requinte. Naquele dia usava um vestido comprido, de veludo cinza-claro, mangas colantes, sobre o qual vinha uma sobreveste sem mangas, curta, rematada com arminho, que descia até as ancas.

Sua irmã Branca era menor, mais gordinha, mais rosada, mais espontânea. Embora fosse apenas três anos mais moça do que Joana, tinha no rosto as covinhas da infância e, sem dúvida, havia de guardá-las por muito tempo ainda. Era de um belo louro quente e — coisa rara — tinha os olhos castanhos, muito brilhantes, e dentes pequenos e transparentes. Vestir-se era para ela mais do que um brinquedo, uma paixão. E a tal paixão entregava-se com uma extravagância que não provava sempre gosto muito apurado. Usava coifas plissadas, imensas, e prendia ao colo, nas mangas, na cintura, q maior número de jóias que conseguia. Suas roupas eram todas bordadas com pérolas e fios de ouro. Mas tinha tanta graça que lhe perdoavam tudo, e parecia tão contente consigo mesma que era um prazer olhar para ela.

No pequeno grupo tratava-se de um assunto qualquer onde havia referência a cinco dias. "É razoável ficar assim tão alarmado por causa de cinco dias?", dizia a Condessa de Poitiers, quando o rei surgiu por trás de uma coluna que mascarara sua aproximação.

— Bom dia, minhas filhas — disse ele.

Os três jovens calaram-se bruscamente. O belo rapaz saudou, inclinando-se muito, e afastou-se um passo, como convinha à sua posição, conservando os olhos baixos. As duas jovens senhoras, depois de terem feito uma flexão de joelhos, conservaram-se mudas, enrubescidas, um tanto embaraçadas. Tinham o jeito de pessoas apanhadas em falta.

— Pois bem, minhas filhas — disse o rei —, será que sou demais em vossa tagarelice? Que conversáveis?

Não se surpreendera muito com aquele acolhimento. Estava habituado a que todo o mundo, mesmo seus familiares, mesmo seus parentes mais próximos, se mostrasse intimidado em sua presença. Espantava-se, muitas vezes, com aquele muro de gelo que tombava entre ele e aqueles que dele se aproximavam — todos, menos Marigny, menos Nogaret... —, assim como não sabia explicar o ar assustado que muitas vezes os desconhecidos assumiam à sua passagem. Acreditava entretanto que tudo fazia para parecer de bom acolhimento e amável. Queria ser, ao mesmo tempo, temido e amado. Era pedir demais...

Foi Branca quem recuperou mais depressa a segurança...

— É preciso que nos perdoeis, sire — disse ela —, mas não é muito fácil repetir o que dizíamos!

— Por quê? — indagou Filipe, o Belo.

— É que... falávamos mal de vós — respondeu Branca.

— Realmente? — disse Filipe, não sabendo se aquilo era um gracejo, e espantado de que ousassem gracejar com ele.

Lançou um olhar ao rapaz, que, um tanto afastado, não parecia muito à vontade. E, designando-o com o queixo:

— Quem é? — perguntou.

— Messire Filipe d'Aunay, escudeiro de nosso tio de Valois, que o emprestou como acompanhante — respondeu a Condessa de Poitiers.

O rapaz tornou a saudar.

Por um momento, aflorou ao cérebro do rei a idéia de que seus filhos talvez fizessem mal em deixar sair suas esposas com escudeiros tão belos, e que o costume de outrora, que recomendava a saída das princesas escoltadas apenas por suas damas de honra, sem dúvida era muito bom.

— Não tendes um irmão? — disse ele, dirigindo-se ao escudeiro.

— Sim, sire, um irmão que está com Monseigneur de Poitiers — respondeu o jovem d'Aunay, mal conseguindo sustentar o olhar do rei.

— É isso: eu vos confundo sempre — disse este. Depois, voltando-se para Branca:

— Então, que dizíeis vós, minha filha?

— Joana e eu estávamos de acordo em vos querer muito mal, meu pai, porque há cinco noites que nossos maridos não nos servem para nada, de tal modo vós os mantendes até tarde nas sessões do conselho, ou os mandais para longe, a serviço do reino.

— Minhas filhas, minhas filhas, essas não são palavras que se digam em voz alta — disse o rei.

Ele era pudico de natureza, e diziam que se mantivera casto durante aqueles nove anos de viuvez. Mas não podia zangar-se com Branca. Sua vivacidade, sua alegria, sua audácia em dizer tudo, o desarmavam. Sentia-se, ao mesmo tempo, divertido e escandalizado. Sorriu, coisa que não lhe acontecia a não ser uma vez por mês.

— E a terceira, que diz ela? — acrescentou.

Pela terceira, ele queria se referir a Margarida de Bor-gonha, prima de Joana e Branca, e casada com seu filho mais velho, Luís, o rei de Navarra.

— Margarida! — exclamou Branca. — Ela se fecha, faz cara feia, e diz que sois tão mau quanto belo.

Ainda dessa vez o rei ficou um tanto indeciso, perguntando a si próprio como deveria receber essa última frase. Mas o olhar de Branca era tão límpido, tão cândido! Era a única a ousar dizer-lhe gracejos, e a que não tremia em sua presença.

— Está bem, podeis tranqüilizar-vos, Branca. Luís e Carlos vos farão companhia esta noite. Hoje é um dia bastante bom para o reino — disse Filipe, o Belo. — Não haverá conselho esta noite. Quanto ao vosso esposo, Joana, sei que voltará amanhã pela manhã, e que adiantou bastante nossos negócios na Flandres. Estou contente com ele.

— Então hei de preparar-me para festejar-lhe duplamente a volta — disse Joana, curvando o belo pescoço.

Para o Rei Filipe, aquela conversação já fora muito longa. Girou bruscamente nos calcanhares, sem dizer adeus, e afastou-se para a grande escadaria que levava aos seus aposentos.

— Ufa! — disse Branca, com a mão sobre o peito, olhando para o rei que desaparecia. — Escapamos por pouco.

— Eu pensei que ia desmaiar de medo — falou Joana. D'Aunay estava vermelho até a raiz dos cabelos, não de

confusão, como ainda havia pouco estivera, mas de cólera.

— Obrigado — disse ele, secamente, a Branca. — São coisas agradáveis de ouvir, as que dissestes.

— E que desejava o senhor que eu fizesse? — disse Branca. — Encontrou coisa melhor? Ficou atado, e todo sem jeito. Ele caiu-nos em cima sem que o víssemos. Tem os ouvidos mais agudos do reino, e se ouviu as nossas últimas palavras, aquele era o único meio de lhe dar réplica. E em vez de estar ainda fazendo recriminações, o senhor deveria antes me felicitar.

— Não recomeceis — disse Joana. — Caminhemos, aproximemo-nos das lojas. Deixemos este ar de conspiração.

Caminharam, tomando um ar displicente, respondendo aos cumprimentos que os honravam.

— Messire — disse Joana a meia voz —, devo observar que o senhor e seu estúpido ciúme foram as causas de tudo. Se não tivesse começado a gemer aqui a propósito dos sofrimentos que lhe inflige a rainha de Navarra, não teríamos corrido o risco de ter o rei ouvido demais.

D'Aunay conservava seu ar sombrio.

— Para dizer a verdade — disse Branca —, seu irmão é mais agradável que o senhor.

— Sem dúvida é mais bem tratado, e eu me sinto feliz por ele — respondeu d'Aunay. — Com efeito, eu sou estúpido, estúpido por me deixar humilhar assim por uma mulher que me trata como se eu fosse um servo, que me chama para seu leito quando lhe dá vontade, que me afasta quando a vontade passou, que me deixa dias sem me dar sinal de vida, que finge não me reconhecer quando passa por mim. Que jogo está ela fazendo, afinal?

D'Aunay, escudeiro do Conde de Valois, irmão do rei, era há três anos amante de Margarida, a mais velha das noras de Filipe, o Belo. E se ousava falar daquela maneira diante de Branca de Borgonha, esposa de Carlos, o terceiro filho de Filipe, o Belo, era que esta tinha por amante seu irmão, Gautier d'Aunay, escudeiro do Conde de Poitiers. E se ousava falar assim diante de Joana, devia-se a que, não sendo ela ainda amante de ninguém, favorecia entretanto, parte por fraqueza, parte por divertimento, as intrigas das outras noras reais, combinava os encontros, facilitava as reuniões.

Assim, naquela véspera da primavera de 1314, no próprio dia do julgamento dos templários, e quando esse grave assunto era a principal preocupação da coroa, dois dos três filhos da França, o mais velho, Luís, e o segundo, Carlos, usavam cornos, pela graça de dois escudeiros pertencentes, um à casa de seu tio, e o outro à casa de seu irmão, tudo isso sob a guarda de sua cunhada, Joana, esposa fiel mas alcoviteira benévola, que sentia duplo prazer vivendo os amores alheios.

A comunicação feita alguns dias antes à rainha da Inglaterra estava, pois, bem longe de ser falsa.

— Em todo o caso, esta noite nada de Torre de Nesle — disse Branca.

— Por mim, não haverá grande diferença das noites precedentes — respondeu d'Aunay. — Mas fico cheio de raiva ao pensar que esta noite, entre os braços de Luís de Navarra, Margarida dirá sem dúvida as mesmas palavras...

— Ah! meu amigo, isso é ir longe demais — disse Joana, com muita altivez. — Ainda há pouco o senhor acusava Margarida, sem razão, de ter outros amantes. Agora, quer impedir que ela tenha um marido. Os favores que ela lhe concede fazem com que esqueça demais quem é. Creio que amanhã vou aconselhar nosso tio a enviá-lo para o seu condado de Valois por alguns meses, porque suas terras são lá; e ali o senhor acalmará.

Com aquilo, o belo d'Aunay acalmou-se instantaneamente.

— Oh! senhora — murmurou ele. — Creio que morreria.

Ele era bem mais sedutor assim do que encolerizado. Dava vontade de assustá-lo por prazer, só para ver como se abaixavam seus longos cílios sedosos e como tremia ligeiramente seu queixo branco. O moço sentiu-se subitamente tão infeliz, tão lamentável, que as jovens senhoras, esquecendo o susto, não puderam deixar de sorrir.

— O senhor dirá a seu irmão Gautier que esta noite suspirarei bastante por ele — disse Branca, da maneira mais doce do mundo.

E, de novo, não se podia saber se ela dizia a verdade, ou mentia.

— Não será necessário prevenir Margarida sobre o que acabamos de saber? — disse d'Aunay, meio hesitante. — Para o caso de ter ela previsto para esta noite...

— Que Branca faça o que quiser. Eu não me encarrego de mais nada — falou Joana. — Tive medo demais. Não quero me imiscuir em vossos negócios. Um dia isso acabará mal e, verdadeiramente, estou me comprometendo sem razão, por coisa alguma.

— É verdade — disse Branca — que tu não aproveitas as vantagens. De nós todas, és tu aquela cujo marido se ausenta mais vezes. Se Margarida e eu tivéssemos essa sorte...

— Mas não tenho disposição — replicou Joana.

— Ou coragem — disse docemente Branca.

— É verdade que, mesmo que eu quisesse, não tenho tua habilidade para mentir, minha irmã, e estou certa de que me trairia imediatamente.

Dito isso, Joana ficou pensativa por um instante. Não, com certeza, ela não tinha vontade de enganar seu marido, mas estava cansada de passar por uma virtuosa afetada...

— Senhora — disse-lhe d'Aunay —, não poderíeis encarregar-me de... uma mensagem para vossa prima?

Joana contemplou o jovem, de lado, com enternecida indulgência.

— Não podeis passar um só dia sem ver a bela Margarida? — perguntou ela. — Vamos, vou ser boa. Vou comprar para Margarida uma jóia qualquer e o senhor irá levá-la de minha parte. Mas é a última vez.

Aproximaram-se de um balcão. Enquanto as duas jovens escolhiam, Branca dirigindo-se imediatamente aos objetos mais caros, d'Aunay tornava a pensar no encontro com o rei.

"De cada vez que ele me vê, torna a perguntar meu nome. Isso já aconteceu bem umas dez vezes. E faz sempre alusão a meu irmão."

Teve uma apreensão surda e perguntou a si mesmo por que razão o rei lhe causava tanto medo. Por causa do seu olhar, sem dúvida, por causa de seus olhos grandes demais, imóveis, e de sua estranha e incerta cor, entre o cinza e o azul-pálido, tal como o gênio dos lagos, nas manhãs de inverno. Olhos que não se esqueciam, horas depois de se ter cruzado com eles.

Nenhum dos três havia observado um homem de grande estatura, vestido como um caçador, e que, a distância, fingindo comprar uma fivela, observava-os havia algum tempo. Aquele homem era o Conde Roberto d'Artois.

— Não tenho comigo dinheiro que chegue. Quer pagar? Era Joana que acabava de falar, tirando d'Aunay de suas reflexões. E este obedeceu solicitamente. Joana escolhera para Margarida um trancelim de ouro.

— Oh! Eu queria um igual — disse Branca.

Mas ela também não tinha dinheiro, e foi d'Aunay quem pagou.

Era sempre assim, quando acompanhava aquelas damas. Elas lhe garantiam que o reembolsariam imediatamente, mas esqueciam-se sempre; e ele era demasiado cavalheiro para jamais fazer alusão àquilo.

— Cuidado, meu filho — dissera um dia Messire Gautier d'Aunay, o pai —, as mulheres mais ricas são as que custam mais caro.

E, gastando, ele via confirmadas as palavras do pai. Mas isso não lhe importava. Os d'Aunay eram ricos, e seus feudos de Vémars, e de Aunay-les-Bondy, entre Pontoise e Luzarches, davam-lhes grandes rendas. D'Aunay pensava que, mais tarde, deveria àquelas brilhantes amizades uma grande fortuna. E, no momento, sentia-se bastante certo de que nada era caro demais para satisfazer sua paixão.

Tinha agora seu pretexto, embora caro, para correr ao Palácio de Nesle, onde moravam o rei e a rainha de Navarra, do outro lado do rio. Passando pela Ponte Saint-Michel estaria lá dentro de poucos minutos.

Deixou as duas princesas e saiu da Galeria Capelista.

Lá fora o sino grande de Notre-Dame se calara e reinava sobre a ilha da Cite um silêncio pouco habitual, impressionante. Que estaria acontecendo em Notre-Dame?

 

NOTRE-DAME ERA BRANCA

Os archeiros tinham formado um cordão para manter a turba fora do adro. Em todas as janelas, cabeças curiosas se aglomeravam.

A bruma se levantara e um sol pálido iluminava as pedras brancas de Notre-Dame de Paris. Porque a catedral fora terminada havia apenas setenta anos, e nela trabalhavam incessantemente, a fim de embelezá-la. Trazia ainda o brilho do que é novo, e a luz sublinhava o arco de suas ogivas, trans-passava a renda de sua rosácea central, acentuava com sombras cor-de-rosa as estátuas que povoavam a parte de cima do átrio.

Os vendedores de galinhas, que todas as manhãs faziam seu comércio diante da igreja, tinham sido enxotados dali, ficando encostados às casas.

Os cacarejos da criação, que sufocava em suas gaiolas, rasgavam o silêncio, aquele silêncio esmagador que tinha surpreendido d'Aunay à saída da Galeria Capelista. E penas voavam aqui e ali, até a altura do nariz das pessoas.

O Capitão Alain de Pareilles mantinha-se imóvel, à frente de seus archeiros.

No alto dos degraus que subiam do adro, os quatro templários estavam de pé, de costas para a multidão e de frente para o tribunal eclesiástico, instalado entre os batentes abertos do grande pórtico. Bispos, cônegos, clérigos, estavam dispostos em fila, sentados em cadeiras ali colocadas para eles.

Uns apontavam aos outros, com curiosidade, os três cardeais legados, especialmente enviados pelo papa a fim de que ficasse bem claro que a sentença seria sem apelo nem recurso diante da Santa Sé. Os olhos dos espectadores interessavam-se também por João de Marigny, o jovem arcebispo de Sens, irmão do primeiro-ministro, que conduzira toda a questão, e o Irmão Reinaldo, confessor do rei e grande inquisidor da França.

Mais ou menos trinta monges, uns vestidos de preto, outros de branco, estavam de pé atrás dos membros do tribunal. Único civil naquela assembléia, o preboste de Paris, João Ployebouche, cerca de cinqüenta anos, atarracado, o rosto contraído, parecia bem pouco satisfeito por estar ali. Representava o poder real, e estava incumbido de manter a ordem. Seus olhos iam, sem cessar, da multidão ao capitão dos archeiros, e do capitão ao jovem arcebispo de Sens. Via-se que ele pensava, continuamente: "Contanto que tudo corra direito ..."

O sol dava relevo às mitras, às cruzes, à púrpura dos trajes cardinalícios, ao amaranto dos bispos, ao arminho e ao veludo das camurças, ao ouro das cruzes peitorais, ao aço das cotas de malhas e das armas da tropa. Aquelas cintilações, aquelas cores, aquele brilho, tornavam ainda mais violento o contraste com os acusados, para os quais todo aquele grande aparato fora reunido: quatro velhos templários, andrajosos, encostados uns aos outros, num grupo que dava a impressão de ter sido esculpido em cinza.

O cardeal-arcebispo de Albano, primeiro legado, de pé, lia os considerandos do julgamento. Fazia-o lenta e enfaticamente, saboreando a própria voz, satisfeito consigo próprio por se dar em espetáculo diante de um auditório estrangeiro. De vez em quando, representava o homem horrificado pela simples enunciação dos crimes que devia enumerar, e depois retomava uma untuosa majestade para relatar nova ofensiva, novo erro e novos testemunhos arrasadores.

— ... Ouvidos os irmãos Geraldo du Passage e João de Gugny, que afirmam terem sido forçados, quando de sua recepção na ordem, além de muitas outras coisas, a escarrar sobre a cruz, porque, segundo lhes foi dito, aquilo não passava de um pedaço de madeira, estando no céu o verdadeiro Deus ... Ouvido o Irmão Guido Dauphin, ao qual foi ordenado, se um dos irmãos superiores se sentisse atormentado pela carne e quisesse satisfazer-se nele, a consentir em tudo quanto lhe fosse solicitado... Ouvido sobre esse capítulo o Grão-Mestre Tiago de Molay, que em interrogatório reconheceu e confessou...

A multidão precisava aguçar os ouvidos para apanhar as palavras, deformadas pelo sotaque italiano e pela entonação enfática. O legado estava tirando excessivo proveito daquilo, e alongando-se demais. O povo começava a impacientar-se.

Diante da exposição das acusações, dos falsos testemunhos, das confissões arrancadas à força, Tiago de Molay murmurava:

"Mentira... mentira... mentira..."

E essa palavra, repetida, revolvida em sua garganta, produzia um ribombo surdo, que chegava aos ouvidos de seus companheiros.

A cólera que se apoderara do grão-mestre durante o trajeto da carreta, longe de se acalmar, continuava a crescer. O sangue pulsava cada vez mais fortemente em suas têmporas descarnadas.

Coisa alguma acontecera para deter o desenrolar daquele pesadelo. Nenhum grupo de antigos templários havia surgido de entre a multidão. O destino parecia ter-se fixado, inexoravelmente :

— ... Ouvido o Irmão Hugo de Payraud, que reconheceu ter exigido dos noviços, como obrigação, que renegassem Cristo três vezes...

Hugo de Payraud era o irmão visitador. Voltou para Tiago de Molay um rosto deformado pelo pavor, murmurando:

— Meu irmão, meu irmão, jamais disse semelhante coisa.

Os quatro dignitários estavam sós, abandonados pelo céu e pelos homens, apanhados por uma tenaz gigantesca, entre as tropas e o tribunal, entre a força real e a força da Igreja. Cada palavra do cardeal legado apertava a pressão, e o pesadelo só poderia terminar com a morte.

Como seria possível que as comissões de inquérito, embora lhes tivesse sido explicado uma centena de vezes, não quisessem compreender que aquela prova de renegação era imposta aos noviços apenas para que houvesse a certeza, através de sua atitude, de que eles não tinham sido seduzidos pelos muçulmanos, e intimados a abjurar?

O grão-mestre tinha um desejo furioso de saltar à garganta do prelado, esbofeteá-lo, atirar-lhe a mitra ao chão, estrangulá-lo. E nesse desejo só o detinha a certeza de que seu gesto seria paralisado, antes mesmo que o pudesse esboçar. E além disso não era apenas o legado que ele gostaria de estripar, mas também o jovem João de Marigny, aquele narciso afetado que usava ouro em sua mitra e tomava atitudes lânguidas. Mas sobretudodesejaria atingir seus três verdadeiros inimigos, aqueles que não estavam ali: o rei, o guarda-selos e o papa.

A raiva da impotência, mais pesada do que todas as cadeias, velava-lhe o olhar e punha-lhe a dançar diante dos olhos um véu rubro. Entretanto, era forçoso que alguma coisa acontecesse... Apoderou-se dele uma vertigem tão forte, que teve receio de se abater sobre as pedras. Não via, mesmo, que um furor igual se apoderara de Charnay, e que a cicatriz do preceptor da Normandia havia-se tornado toda branca, no meio de sua testa escarlate.

O legado fez uma pausa em sua declamação, baixou o grande pergaminho que lia, tornou a aproximá-lo dos olhos. Estava prolongando o espetáculo. Os considerandos tinham terminado e passava-se à sentença propriamente dita. O legado recomeçou:

— ...Considerando que os acusados confessaram e reconheceram seus crimes, condenamo-los ao muro e ao silêncio pelo resto de seus dias, a fim de que obtenham remissão de suas faltas pelas lágrimas do arrependimento. In nomine patris...

O legado havia terminado. Nada lhe restava mais senão sentar-se, enrolando o pergaminho, que entregou depois a um clérigo.

De início, a multidão não reagiu. Depois de um tal enunciado de crimes a pena de morte era tão esperada, que a condenação ao muro — isto é, à prisão perpétua, à masmorra, às cadeias, ao pão e água — parecia uma forma de clemência.

Filipe, o Belo, preparara bem o seu golpe. Iria a opinião pública, surpreendida, admitir sem dificuldade, quase insulsamente, aquele ponto final numa tragédia que a havia agitado durante sete anos? O primeiro legado e o jovem arcebispo de Sens trocaram um imperceptível sorriso de conivência.

— Meus irmãos, meus irmãos — gaguejou o irmão visitador —, terei ouvido bem? Não nos vão matar! Fazem-nos graça!

Tinha os olhos cheios de lágrimas. Suas mãos inchadas tremiam, e sua boca de dentes quebrados se abria, como se fosse rir.

Foi o espetáculo daquela horrível alegria que desencadeou tudo. Por um instante, Tiago de Molay contemplou aquele rosto semi-enlouquecido de um homem que outrora fora corajoso e forte.

E subitamente ouviu-se, do alto dos degraus, uma voz trovejar:

— Protesto!

E aquela voz era tão poderosa que de início não se poderia crer que pertencesse ao grão-mestre.

— Protesto contra uma sentença iníqua e afirmo que os crimes de que nos acusam são crimes inventados! — gritava Tiago de Molay.

Uma espécie de imenso suspiro levantou-se da multidão. O tribunal agitou-se. Os cardeais entreolharam-se, estupefatos. Ninguém esperava aquilo. João de Marigny levantara-se de um ímpeto. Acabaram-se as atitudes lânguidas, e ele estava lívido, tenso, trêmulo de cólera.

— Mentis — exclamou ele. — Confessastes diante da comissão.

Os archeiros, instintivamente, tinham-se aproximado mais uns dos outros, esperando uma ordem.

— Sou culpado — continuava Tiago de Molay — apenas de ter cedido às vossas adulações, ameaças e tormentos. Afirmo, diante de Deus que nos ouve, que a ordem de que sou grão-mestre é inocente.

E Deus parecia, realmente, ouvir, porque a voz do grão-mestre, lançada para o interior da catedral e repercutindo pelas abóbadas, voltava em eco, como se outra voz, mais profunda, da outra extremidade da nave, repetisse suas palavras.

— Confessastes a sodomia! — gritou João de Marigny.

— Sob tortura — replicou Molay.

"... sob tortura...", repetiu a voz que parecia formar-se no tabernáculo.

— Confessastes a heresia!

— Sob tortura!

"... sob tortura...", repetiu o tabernáculo.

— Retiro tudo! — disse o grão-mestre.

"... tudo...", respondeu, em ribombo, a catedral inteira.

Uma voz nova elevou-se. Era Godofredo de Charnay, o preceptor da Normandia, que por sua vez se dirigia ao arcebispo de Sens.

— Aproveitaram-se da nossa fraqueza — dizia ele. — Somos vítimas de vossos planos e de vossas falsas promessas. é o vosso ódio, é a vossa vingança que nos perdem! Mas por minha vez afirmo diante de Deus: somos inocentes, e os que dizem o contrário mentem miseravelmente.

Então, desencadeou-se o tumulto. Os monges que se tinham amontoado atrás do tribunal começaram a bramir:

— Hereges! Ao fogo! Ao fogo, os hereges!

Mas a voz deles depressa foi coberta. Com aquele movimento generoso que leva o povo a se manifestar a favor do mais fraco, e pela coragem infeliz, a multidão tinha tomado, em sua maioria, o partido dos templários.

Punhos cerrados erguiam-se para os juizes. Tumultos eclodiam em todos os cantos da praça, e das janelas vinham vociferações.

Por ordem de Alain de Pareilles, a metade dos archeiros formara em cadeia, braços enlaçados, para resistir à onda que ameaçava invadir o adro e atingir os degraus. Os outros, piques em riste, faziam face à multidão.

Os sargentos reais, com seus bastões rematados de flores-de-lis, iam batendo cegamente em torno deles. As gaiolas dos vendedores de aves tinham sido reviradas, e os animais, esmagados, esgoelavam.

O tribunal levantara-se, aflito. João de Marigny estava em conciliábulo com o preboste de Paris.

— De qualquer forma, decidi seja o que for — dizia o preboste. — Mas não devemos deixar que eles continuem assim. Vamos ser todos atingidos. Não conheceis os parisienses, quando se agitam.

João de Marigny, estendendo os braços, levantou sua cruz episcopal para dar a entender que desejava falar. Mas ninguém queria ouvi-lo, e cobriam-no de insultos:

— Torturador! Bispo falso! Deus te castigará!

— Falai, falai — dizia-lhe o preboste.

O homem temia por sua situação e por sua pele, lembrando-se dos motins de 1306, em que fora saqueada a moradia de seu predecessor, o Preboste Barbet.

— Dois dos condenados são declarados relapsos9 — dizia o arcebispo, forçando inutilmente a voz. — Reincidiram em suas heresias e rejeitaram a justiça da Igreja. A Igreja os rejeita e entrega-os à justiça real.

Suas palavras perderam-se no alarido geral. Depois, todo o tribunal, como um bando de galinhas aterrorizadas, entrou em Notre-Dame, cuja porta foi imediatamente fechada.

A um gesto do preboste para Alain de Pareilles, um grupo de archeiros precipitou-se, subindo os degraus. A carreta foi trazida, e os condenados empurrados para dentro dela, com o auxílio dos cabos de piques. Deixaram-se levar com docilidade. O grão-mestre e o preceptor da Normandia sentiam-se, ao mesmo tempo, exaustos e repousados. Estavam finalmente em paz consigo próprios. Os outros dois nada mais compreendiam.

Os archeiros abriram caminho para a carreta, enquanto o Preboste Ployebouche dava instruções a seus sargentos para que a praça fosse evacuada o mais depressa possível. O homem girava sobre si mesmo, completamente estonteado.

— Torne a levar os prisioneiros para o Templo — gritava ele para Alain de Pareilles —, que eu corro a avisar o rei.

E tomou consigo quatro sargentos reais para se proteger.

 

MARGARIDA DE BORGONHA, RAINHA DE NAVARRA

Entrementes, o jovem d'Aunay chegara ao Palácio de Nesle. Pediram-lhe que esperasse na antecâmara dos aposentos particulares da rainha de Navarra. Os minutos não acabavam de passar. D'Aunay perguntava a si próprio se Margarida estaria retida por importunos ou se simplesmente sentia prazer em queimá-lo a fogo lento. Isso estaria de acordo com sua maneira de ser. E ao cabo de uma hora seria bem possível que lhe mandasse dizer que não poderia recebê-lo. O jovem desesperava.

Três anos antes, no início de sua ligação, ela não teria agido daquela maneira. Ou talvez tivesse. Já não se recordava mais. Todo entregue ao deslumbramento de uma aventura que se iniciava, e onde havia tanto vaidade quanto amor, naquela ocasião ele faria cinco horas seguidas de sentinela, só para ver a distância a sua amante, roçar-lhe os dedos, ou receber dela, num palavra cochichada, o sinal para um encontro.

Os tempos haviam mudado. As dificuldades, que dão sabor a um amor nascente, tornam-se intoleráveis a um amor de três anos, e muitas vezes a paixão morre exatamente em conseqüência do que a fez nascer. A incerteza perpétua dos encontros-, as entrevistas canceladas, as obrigações da corte, a que se acrescentavam as peculiaridades do temperamento de Margarida, haviam levado d'Aunay a um sentimento exasperado que quase exclusivamente se expressava em reivindicações e cólera.

Margarida parecia aceitar melhor as coisas. Saboreava o duplo prazer de enganar seu marido e torturar seu amante. Era uma dessas mulheres que só encontram a renovação do desejo no espetáculo dos sofrimentos que infligem, até que mesmo esse espetáculo se torne cansativo.

Não passava um dia sem que d'Aunay dissesse a si próprio que um grande amor não tinha salvação no adultério, não passava um dia sem que ele jurasse romper.

Mas era fraco, era covarde, estava apaixonado. Tal como um jogador que se agarra ao seu lance, ele corria atrás de seus sonhos de outrora, de seus inúteis presentes, de seu tempo gasto, de sua felicidade passada. Não tinha coragem suficiente para se levantar da mesa dizendo: "Já perdi bastante".

E ali estava, encostado ao alizar de uma janela, à espera de que resolvessem que ele poderia entrar.

Para disfarçar sua impaciência olhava para o pátio do palácio, vendo o movimento dos palafreneiros que puxavam os cavalos para desarreá-los ao lado, no Petit-Pré-aux-Clercs, a entrada dos carregadores que traziam quartos de carne e fardos de legumes.

O Palácio de Nesle compunha-se de duas construções distintas: o palácio propriamente dito, que era de construção recente, e depois a torre, levantada cem anos antes, sob o reinado de Filipe Augusto, como parte de seu sistema de defesa. Filipe, o Belo, comprara o conjunto há seis anos ao Conde Amaury de Nesle, e o dera, como residência, a seu filho mais velho, o rei de Navarra10.

A torre fora, até então, utilizada como corpo de guarda e como depósito. Fora Margarida quem mandara reformá-la para ela, a fim de se encerrar ali, de vez em quando, e meditar — segundo dizia — sobre seu livro de orações, olhando o movimento do rio. Ela afirmava ter necessidade de solidão, e como todos conheciam seu humor extravagante, Luís de Navarra não se mostrara espantado. A verdade é que tal arranjo fora feito exclusivamente para que ela pudesse receber com maior sossego o belo d'Aunay.

O jovem se sentira tomado de imenso orgulho: por ele, uma rainha transformara uma fortaleza em ninho de amor.

Depois, quando seu irmão mais velho Gautier d'Aunay se tornara amante de Branca, a torre servira igualmente de asilo secreto ao novo casal. O pretexto era fácil: Branca vinha fazer visitas à sua prima e cunhada. E Margarida não queria outra coisa senão mostrar-se complacente e cúmplice.

Mas agora, quando d'Aunay contemplava, como naquele momento, aquela grande torre sombria, de teto cônico, de janelas estreitas em toda a altura debruçando-se sobre o rio, não podia evitar o pensamento de que talvez outros homens, por sua vez, conhecessem ali os mesmos furtivos abraços, ou as mesmas noites tumultuosas... Mesmo para quem acreditava conhecê-la melhor, Margarida conservava-se tão desorientadora! E aqueles cinco dias sem sinal de vida, quando tudo se prestava tão bem a um encontro, não seriam uma prova disso?

Uma porta se abriu e uma camareira convidou Filipe a segui-la. Ele sentia o peito oprimido, os lábios secos, mas estava decidido dessa vez a não se deixar conter. Percorreu o longo corredor e depois a camareira desapareceu. O jovem escudeiro entrou num aposento baixo, entulhado de móveis, onde flutuava um perfume obstinado que ele conhecia bem, uma essência de jasmim que os mercadores traziam do Oriente.

Só após um momento é que se habituou à penumbra e ao calor do quarto. Um tronco de árvore avermelhava sobre um amontoado de brasas ardentes, numa grande lareira.

— Senhora... — disse ele.

Uma voz veio do fundo do aposento, voz um tanto rouca, como que adormecida.

— Aproximai-vos, messire.

Margarida estaria sozinha? Ousaria recebê-lo em seu quarto, sem testemunha, quando o rei de Navarra poderia estar pelos arredores?

Logo se tranqüilizou, ao mesmo tempo que sentia decepção, pois a rainha de Navarra não estava só. Viu-a deitada em seu leito, meio escondida pela cortina, e uma dama de seu séquito, bastante idosa, sentada num tamborete, limava-lhe cuidadosamente as unhas dos pés.

Filipe adiantou-se e tomou um tom de cortesão, que seu rosto desmentia, para dizer que a Condessa de Poitiers o enviava para pedir notícias da rainha de Navarra, transmitir-lhe seus cumprimentos e entregar-lhe um presente.

Margarida ouviu-o sem se mover. Seus belos braços nus estavam dobrados sob a nuca, e tinha os olhos entrecerrados.

Pequena, cabelos pretos, tez ambarina, dizia-se que era senhora do mais belo corpo do mundo. E Margarida não era a última a confirmar tal coisa.

D'Aunay olhava aquela boca redonda, sensual, o queixo curto, o colo quase desnudo, aquelas pernas esbeltas e roliças que a dama de companhia havia descoberto.

— Colocai esse presente sobre a mesa. Vou vê-lo daqui a um momento.

Espreguiçou-se, bocejou, e ele entreviu sua língua rósea, o céu da boca e os dentinhos brancos, porque ela bocejava como bocejam os gatos.

Nem uma só vez a rainha pousara os olhos nele, e o jovem esforçava-se por não estourar. A dama de companhia observava-o disfarçadamente, com curiosidade, o que o levou a imaginar que sua cólera devia estar sendo muito visível. Não conhecia aquela aia. Era nova no serviço de Margarida?

— Devo levar — disse ele — alguma resposta à Condessa de...?

— Ai! — gritou Margarida, endireitando-se. — Estais me machucando, minha cara.

A dama de companhia balbuciou uma desculpa. Margarida consentiu, enfim, em olhar para ele. Os olhos eram admiráveis, sombrios e aveludados, e como que acariciavam as coisas e os seres.

— Dizei à minha cunhada de Poitiers... — disse ela. D'Aunay mudara de posição para escapar aos olhos da dama de companhia. Com um gesto nervoso da mão, fez sinal a Margarida para afastar a velha. Mas Margarida não pareceu compreender; sorria, e aquele sorriso nem mesmo se dirigia ao jovem: sorria para o vazio.

— Ou melhor... não — recomeçou ela. — Vou escrever-lhe uma mensagem, que vós lhe entregareis.

Depois, dirigindo-se à dama de companhia:

— Está bem, agora. Já é hora de me vestir. Podeis preparar as roupas que devo usar hoje.

A anciã passou para o aposento vizinho, mas deixou a porta aberta, e d'Aunay viu que ela olhava em sua direção.

Margarida levantara-se e, passando junto dele, quase sem abrir os lábios, disse num fôlego:

— Eu te amo.

— Por que há cinco dias não te vejo? — perguntou ele, da mesma forma.

— Oh! que beleza! — exclamou ela, desenrolando o trancelim. — Como Joana tem gosto! Que presente encantador!

— Por que não te vi? — insistiu ele, em voz baixa.

— Vai ficar maravilhosamente bem com a minha bolsa nova — tornou Margarida bem alto. — Messire d'Aunay, o senhor tem tempo para esperar que eu escreva uma palavra de agradecimento?

Sentou-se à mesa, apanhou uma pena de ganso e um pedaço de papel " e fez sinal ao jovem para se aproximar.

Escreveu então, de forma que ele pudesse ler, por cima de seu ombro: Prudência.

Depois, à dama de companhia, cujos movimentos se ouviam no aposento vizinho:

— Mme de Comminges, ide buscar minha filha, que ainda não beijei esta manhã.

A dama de companhia saiu.

— Mentes — disse-lhe ele então. — A prudência é um pretexto para afastar um amante e acolher outros.

Ela não mentia completamente. É sempre ao fim de uma ligação, quando os amantes começam a se desentender ou a se cansar, que chegam a se trair diante dos que os rodeiam, e que o mundo descobre, como se fosse novidade, o que está para terminar. Margarida tivera algumas palavras menos cuidadosas? Os furores do jovem d'Aunay teriam transbordado para além do pequeno círculo de Branca e Joana? Do porteiro e da camareira da torre, dos servos que ela trouxera da Borgonha, e que aterrorizava, ao mesmo tempo que os cobria de ouro, Margarida estava segura como de si própria. Porém, nunca se sabe. Sentia-se objeto de suspeitas vagas, e o rei de Navarra fizera-lhe algumas alusões aos seus êxitos, com um desses gracejos de marido cujo riso soa falso. E depois, aquela nova dama de companhia, aquela Mme de Comminges, que lhe tinham imposto há alguns dias para comprazer uma recomendação de Carlos de Valois e que andava por toda parte, em seus véus de viúva... E Margarida estava agora menos pronta a correr riscos do que o estivera no passado.

— És bem aborrecido, fica sabendo — declarou ela. — És amado e não cessas de reclamar.

— Está bem! Esta noite não terei ocasião de ser aborrecido — respondeu ele. — Não haverá conselho, o próprio rei o disse, e poderás, assim, tranqüilizar teu esposo inteiramente à tua vontade.

Ao ver a cara que ela fez, d'Aunay, se não estivesse cego pela cólera, poderia compreender que pelo menos daquele lado nada tinha a temer.

— E eu irei divertir-me com as mulheres da rua — acrescentou ele.

— Muito bem — disse Margarida. — Assim poderás contar-me como se comportam essas mulheres. Terei prazer nisso.

Seu olhar se havia inflamado. Lambia os lábios com a ponta da língua, ironicamente.

"Rameira! Rameira! Rameira!", pensava ele. Não era possível saber como investir contra ela, porque Margarida deslizava como água sobre um vitral.

A rainha de Navarra dirigiu-se a um cofre aberto, apanhou uma bolsa nova, de malhas de ouro, fechada com três grandes pedras preciosas, que ele ainda não conhecia.

Aquele fora um presente recebido na antevéspera, de sua cunhada Isabel da Inglaterra, por um mensageiro discreto que trouxera mais duas iguais, para Joana e Branca. Um recado de Isabel pedia-lhes que não falassem naquilo, porque, escrevia a rainha da Inglaterra, "meu esposo Eduardo vigia muitíssimo minhas despesas e poderia zangar-se". As três princesas tinham ficado bastante surpreendidas com aquela gentileza pouco habitual de sua cunhada. "Ela tem aborrecimentos íntimos", tinham comentado entre si, "e quer aproximar-se de nós."

— Fica uma maravilha — disse Margarida, passando o trancelim nos anéis de ouro e indo colocar a bolsa contra a cintura, diante de um grande espelho de estanho.

— Quem te deu essa bolsa? — perguntou Filipe.

— Foi...

Ia dizer a verdade, ingenuamente. Mas viu o jovem tão crispado, tão cheio de suspeitas, que não pôde resistir ao desejo de se divertir à custa dele.

— Foi... alguém — disse ela.

— Quem?

— Adivinha.

— Luís?

— Meu marido não tem dessas generosidades.

— Então, quem?

— Procura.

— Quero saber, tenho o direito de saber — disse d'Aunay alterando-se. — É um presente de homem, e de homem rico, de homem apaixonado... porque tem razões de sê-lo, eu calculo.

Margarida continuava a se olhar ao espelho, colocando a bolsa sobre uma anca, depois sobre a outra, depois no meio da cintura.

— Foi Roberto d'Artois — disse Filipe.

— Oh! que péssimo gosto me atribuís, messire! — disse ela. — Aquele grande abutre, que está sempre cheirando a caça...

Não podiam imaginar, nem ele nem ela, quanto estavam perto da verdade, e que papel Roberto d'Artois representara no envio daquela bolsa.

— Gaucher de Châtillon, então, que gira em torno de ti como de todas as mulheres? — insistiu Filipe.

Margarida inclinou a cabeça para um lado, numa atitude sonhadora.

— O condestável? — disse ela. — Não tinha reparado que ele se interessa por mim. Mas já que o dizes... Obrigada por me teres feito pensar nisso.

— Eu acabarei por saber quem foi.

— Quando tiveres citado toda a corte da França...

Ela ia acrescentar: "Pensarás talvez na corte da Inglaterra", mas foi interrompida pela volta de Mme de Comminges, que trazia consigo a Princesa Joana, ainda quase um bebê. A pequenina caminhava lentamente, afundada num vestido de veludo bordado de pérola. De sua mãe tinha apenas a testa curva, redonda, quase teimosa. Mas era loura, de nariz fino e longos cílios palpitantes sobre os olhos claros. Podia tanto ser filha do rei de Navarra como de d'Aunay. Mas, naquilo também, o jovem escudeiro jamais pudera saber a verdade, e Margarida era hábil demais para se trair em ponto de tamanha gravidade. De cada vez que ele via a pequenina Joana, perguntava a si próprio: "Será minha filha?" E pensava que mais tarde seria forçado a inclinar-se e receber ordens de uma princesa que talvez fosse sua filha, e que talvez, também, subisse a dois tronos. Porque Luís de Navarra, herdeiro da França, e Margarida, sua esposa, só tinham até aquele momento aquela filha.

Margarida ergueu a pequenina Joana, beijou-a na testa, constatou que ela mostrava um rosto fresco e entregou-a de novo à dama de companhia, dizendo:

— Pronto, já a beijei, podeis levá-la de volta.

Leu no olhar de Mme de Comminges que ela compreendia bem que a tinham mandado buscar a criança apenas para afastá-la por um momento. "Preciso me livrar desta velha", pensou Margarida.

Outra dama entrou como um pé-de-vento, perguntando se o rei de Navarra estava ali.

— Não é nos meus aposentos que ele costuma ser encontrado a esta hora — falou Margarida.

— É que o estão procurando por toda parte — disse a segunda dama. — O rei mandou-o chamar para que vá imediatamente. Há conselho de urgência no palácio.

— E sabeis qual é a razão? — interrogou Margarida.

— Penso ter compreendido, senhora, que os templários rejeitaram a sentença. O povo se agita em torno de Notre-Dame, e em toda a parte a guarda foi redobrada.

Margarida e d'Aunay trocaram um olhar. A mesma idéia lhes ocorrera, idéia que nada tinha a ver com os negócios do reino. Os acontecimentos talvez obrigassem Luís de Navarra a passar uma parte da noite no palácio.

— Pode ser que o dia não termine como estava previsto

— disse ele.

Margarida observou-o por um instante e achou que já o fizera sofrer o suficiente. O jovem retomara a atitude respeitosa e distante, mas seu olhar mendigava felicidade. Ela sentiu-se enternecida com aquilo, e seu amor por ele aumentou, tomando o aspecto que tivera nos primeiros dias.

— É possível, messire — disse ela.

Ao mesmo tempo pensava que jamais seria tão amada assim.

Foi apanhar o papel onde escrevera "prudência" e atirou-o ao fogo, acrescentando:

— Este recado não me agrada. Mandarei outro, mais tarde, à Condessa de Poitiers. Espero ter coisas melhores a dizer-lhe. Adeus, messire.

O d'Aunay que saiu do Palácio de Nesle não era mais o mesmo que ali havia entrado. Com uma única palavra de esperança, ele recuperara a fé em sua amante, em si mesmo, na existência inteira, e aquele fim de manhã parecia-lhe radioso.

"Ela me ama bastante e sou injusto", pensava.

Atravessando o corpo da guarda, esbarrou contra o Conde de Artois, que entrava. Podia parecer que o gigante lhe seguisse a pista. Tal não acontecia, entretanto. D'Artois, naquele momento, estava preocupado com outra coisa.

— Monseigneur de Navarra está em casa? — perguntou a Filipe.

— Sei que o procuram para o conselho do rei — respondeu d'Aunay.

— Vínheis preveni-lo?

— Sim — disse o jovem, instintivamente.

E imediatamente pensou que aquela mentira, tão facilmente controlável, era uma tolice.

— Procuro-o pelo mesmo motivo — disse d'Artois. — Monseigneur de Valois deseja conversar com ele, antes do conselho.

Separaram-se. Mas aquele encontro fortuito despertou a atenção do gigante. "Será que é ele?", pensou subitamente, atravessando o pátio. Vira-o uma hora antes, na Galeria Capelista, em companhia de Joana e Branca. Tornava a encontrá-lo agora, à porta de Margarida... "Este donzel lhes servirá de mensageiro ou será o amante de uma das três? Se for isso, não tardarei a ser informado."

Porque ele não perdera tempo depois que voltara da Inglaterra. Mme de Comminges, agora a serviço de Margarida, dava-lhe informações todos os dias. Havia um homem seu, encarregado de espiar à noite os pontos de abordagem da Torre de Nesle. As redes estavam armadas. Tanto pior para aquele pássaro de linda plumagem se ali se fosse prender!

 

O QUE ACONTECEU NO CONSELHO DO REI

O preboste de Paris, acorrendo todo esbaforido aos aposentos do rei, encontrara-o de bom humor. Filipe, o Belo, estava ocupado em admirar três grandes lebréus que acabava de receber com a seguinte carta:

Sire,

Um sobrinho meu, penalizado com sua falta, veio confessar-me que estes três lebréus que ele conduzia esbarraram contra vós, à vossa passagem. Por muito indignos que eles sejam de vos serem oferecidos, não sinto em mim o mérito suficiente para conservá-los por mais tempo comigo, agora que tocaram um alto e poderoso senhor como vós. Foram-me enviados trasanteontem da Inglaterra. Teço-vos que os aceiteis, para que eles vos levem a devoção e a humildade de vosso servidor,

Spinello Tolomei.

— Que homem hábil, esse Tolomei! — comentou Filipe, o Belo.

Ele, que recusava qualquer presente, não resistira em aceitar os cães. Possuía as mais belas matilhas do mundo, e oferecer-lhe animais magníficos como aqueles que tinha diante dos olhos era lisonjear sua única paixão.

Enquanto o preboste lhe explicava o que se havia passado em Notre-Dame, Filipe, o Belo, continuava a acariciar os três lebréus, levantando-lhes os beiços para examinar as brancas presas e as gargantas negras; apalpando-lhes os peitos profundos.

Entre o rei e os animais — os cães, sobretudo — existia certo acordo imediato, secreto, silencioso. Ao contrário dos homens, os cães não o temiam. E já o maior dos três lebréus viera, espontaneamente, pousar a cabeça sobre o joelho do rei, contemplando seu novo senhor.

— Bouville! — chamara Filipe, o Belo.

Hugo de Bouville, primeiro camareiro do rei, homem de uns cinqüenta anos, cabelos curiosamente alternados de mechas brancas e pretas, o que fazia com que se parecesse com um cavalo malhado, apareceu.

— Bouville, mandai reunir imediatamente o Conselho Intimo.

Depois, despedindo o preboste, dando-lhe a entender que ele responderia com sua vida pelo menor distúrbio que se desse em Paris, Filipe, o Belo, ficara a meditar em companhia de seus cães.

Decidira que o lebréu maior, que já parecia afeiçoar-se a ele, se chamaria Lombardo, pois que lhe vinha de um banqueiro italiano.

Entretanto, o Conselho Intimo estava reunido, não na vasta Sala da Justiça, que podia conter cem pessoas, e que se utilizava para os grandes conselhos, mas num pequeno aposento vizinho, onde havia uma lareira acesa.

Em torno de uma mesa comprida, os membros desse conselho restrito haviam tomado seus lugares para decidir sobre a sorte dos templários. O rei sentara-se na extremidade alta, o cotovelo apoiado no braço de sua cadeira e o queixo na mão. À sua direita estavam sentados Enguerrand de Marigny, coadjutor e reitor do reino, Nogaret, o guarda-selos, Raul de Presles, advogado no Parlamento da Justiça, e três outros jurisconsultos que faziam o papel de escreventes. À sua esquerda, seu filho mais velho, o Rei Luís de Navarra, que finalmente havia sido encontrado, e Hugo de Bouville, seu camareiro-mor. Dois lugares se conservavam vazios: o do Conde de Poitiers, que estava em missão, e o do Príncipe Carlos, último filho do rei, que partira aquela manhã para a caça e que não tinham podido alcançar. Faltava ainda Monseigneur de Valois, que tinham mandado procurar em seu palácio e que ali devia estar conspirando, como sempre fazia antes de cada conselho. O rei decidira que se iniciasse a reunião sem ele.

Enguerrand de Marigny tomou a palavra em primeiro lugar. Seis anos mais velho do que Filipe, o Belo, menos alto, mas da mesma forma imponente, aquele grande senhor não nascera nobre. Era um burguês normando, que se chamava Enguerrand Le Portier antes de se tornar Sire de Marigny. Fizera uma carreira prodigiosa que lhe valia tanto ciúme como respeito, e o título de coadjutor, criado para ele, transformara-o num alter ego do rei. Tinha cinqüenta e dois anos, sólido arcabouço, queixo amplo, pele grumosa, e vivia com magnificência da imensa fortuna que adquirira. Passava por ser dono da mais hábil eloqüência do reino e possuía uma inteligência política que dominava sua época.

Bastaram-lhe alguns minutos para fornecer um quadro completo da situação, segundo a comunicação que lhe fizera seu irmão, o arcebispo de Sens.

— O grão-mestre e o preceptor da Normandia foram colocados, sire, em vossas mãos, pela comissão da Igreja — disse ele. — Podeis dispor legal e totalmente deles. O que poderíamos esperar de melhor?

Foi interrompido pela porta, que acabara de se abrir como sob um furacão. Era Monseigneur de Valois, irmão do rei e ex-imperador de Constantinopla, que fazia sua entrada. Sem se dar ao trabalho de se informar sobre o que fora dito, o recém-chegado exclamou:

— Que estou ouvindo, meu irmão? Messire Le Portier de Marigny (ele frisara bastante o Le Portier) acha que nada podia ser melhor? Pois bem, meu irmão: vossos conselheiros contentam-se com pouco. Pergunto a mim mesmo quando é que eles acharão que tudo vai mal.

Com Carlos de Valois o ar parecia, bruscamente, deslocar-se mais depressa. Uma espécie de turbilhão acompanhava seus passos. Era dois anos mais moço do que Filipe, o Belo, com quem se parecia um pouco, e tão agitado quanto o outro era calmo.

Meio calvo, nariz grosso, faces barrosas devido à vida do campo e pelos excessos da mesa, empurrando diante de si uma arrogante pança, vestia-se com uma suntuosidade oriental, que teria parecido ridícula em qualquer outra pessoa que não ele. Nascido tão perto do trono da França, e não se consolando com a impossibilidade de atingi-lo, aquele príncipe enredador não deixara de correr o universo a fim de encontrar outro trono sobre o qual pudesse sentar-se. Fora, momentaneamente, rei de Aragão, depois renunciara àquele reinado para disputar a coroa de imperador da Alemanha. Mas perdera a eleição. Era, pelo segundo casamento com Catarina de Courtnay, imperador titular de Constantinopla, viera, espontaneamente, pousar a cabeça sobre o joelho do rei, contemplando seu novo senhor.

— Bouville! — chamara Filipe, o Belo.

Hugo de Bouville, primeiro camareiro do rei, homem de uns cinqüenta anos, cabelos curiosamente alternados de mechas brancas e pretas, o que fazia com que se parecesse com um cavalo malhado, apareceu.

— Bouville, mandai reunir imediatamente o Conselho Intimo.

Depois, despedindo o preboste, dando-lhe a entender que ele responderia com sua vida pelo menor distúrbio que se desse em Paris, Filipe, o Belo, ficara a meditar em companhia de seus cães.

Decidira que o lebréu maior, que já parecia afeiçoar-se a ele, se chamaria Lombardo, pois que lhe vinha de um banqueiro italiano.

Entretanto, o Conselho Intimo estava reunido, não na vasta Sala da Justiça, que podia conter cem pessoas, e que se utilizava para os grandes conselhos, mas num pequeno aposento vizinho, onde havia uma lareira acesa.

Em torno de uma mesa comprida, os membros desse conselho restrito haviam tomado seus lugares para decidir sobre a sorte dos templários. O rei sentara-se na extremidade alta, o cotovelo apoiado no braço de sua cadeira e o queixo na mão. À sua direita estavam sentados Enguerrand de Marigny, coadjutor e reitor do reino, Nogaret, o guarda-selos, Raul de Presles, advogado no Parlamento da Justiça, e três outros jurisconsultos que faziam o papel de escreventes. À sua esquerda, seu filho mais velho, o Rei Luís de Navarra, que finalmente havia sido encontrado, e Hugo de Bouville, seu camareiro-mor. Dois lugares se conservavam vazios: o do Conde de Poitiers, que estava em missão, e o do Príncipe Carlos, último filho do rei, que partira aquela manhã para a caça e que não tinham podido alcançar. Faltava ainda Monseigneur de Valois, que tinham mandado procurar em seu palácio e que ali devia estar conspirando, como sempre fazia antes de cada conselho. O rei decidira que se iniciasse a reunião sem ele.

Enguerrand de Marigny tomou a palavra em primeiro lugar. Seis anos mais velho do que Filipe, o Belo, menos alto, mas da mesma forma imponente, aquele grande senhor não nascera nobre. Era um burguês normando, que se chamava Enguerrand Le Portier antes de se tornar Sire de Marigny. Fizera uma carreira prodigiosa que lhe valia tanto ciúme como respeito, e o título de coadjutor, criado para ele, transformara-o num alter ego do rei. Tinha cinqüenta e dois anos, sólido arcabouço, queixo amplo, pele grumosa, e vivia com magnificência da imensa fortuna que adquirira. Passava por ser dono da mais hábil eloqüência do reino e possuía uma inteligência política que dominava sua época.

Bastaram-lhe alguns minutos para fornecer um quadro completo da situação, segundo a comunicação que lhe fizera seu irmão, o arcebispo de Sens.

— O grão-mestre e o preceptor da Normandia foram colocados, sire, em vossas mãos, pela comissão da Igreja — disse ele. — Podeis dispor legal e totalmente deles. O que poderíamos esperar de melhor?

Foi interrompido pela porta, que acabara de se abrir como sob um furacão. Era Monseigneur de Valois, irmão do rei e ex-imperador de Constantinopla, que fazia sua entrada. Sem se dar ao trabalho de se informar sobre o que fora dito, o recém-chegado exclamou:

— Que estou ouvindo, meu irmão? Messire Le Portier de Marigny (ele frisara bastante o Le Portier) acha que nada podia ser melhor? Pois bem, meu irmão: vossos conselheiros contentam-se com pouco. Pergunto a mim mesmo quando é que eles acharão que tudo vai mal.

Com Carlos de Valois o ar parecia, bruscamente, deslocar-se mais depressa. Uma espécie de turbilhão acompanhava seus passos. Era dois anos mais moço do que Filipe, o Belo, com quem se parecia um pouco, e tão agitado quanto o outro era calmo.

Meio calvo, nariz grosso, faces barrosas devido à vida do campo e pelos excessos da mesa, empurrando diante de si uma arrogante pança, vestia-se com uma suntuosidade oriental, que teria parecido ridícula em qualquer outra pessoa que não ele. Nascido tão perto do trono da França, e não se consolando com a impossibilidade de atingi-lo, aquele príncipe enredador não deixara de correr o universo a fim de encontrar outro trono sobre o qual pudesse sentar-se. Fora, momentaneamente, rei de Aragão, depois renunciara àquele reinado para disputar a coroa de imperador da Alemanha. Mas perdera a eleição. Era, pelo segundo casamento com Catarina de Courtnay, imperador titular de Constantinopla, mas um verdadeiro imperador, Andronico II Paleólogo, reinava naquele momento em Bizâncio. E bastante bem. Seus melhores títulos de glória eram sua campanha-relâmpago da Guyenne em 1297, pois era bom capitão, e sua campanha da Toscana, onde, apoiando os guelfos contra os gibelinos, assolara Florença e exilara um versejador político chamado Dante. E por isso o papa anterior o nomeara Conde da Romanha. Valois levava um padrão de vida régio, tinha sua corte e seu próprio chanceler, e detestava Enguerrand de Marigny por vinte razões: por sua origem plebéia, por sua dignidade de coadjutor, por sua estátua colocada entre as dos reis na Galeria Capelista, por sua política hostil aos grandes feudatários, por tudo. Valois não podia admitir, ele, neto de São Luís, que o reino fosse governado por um homem saído do povo. Naquele dia estava vestido de azul e ouro, desde o chapéu até os sapatos.

— Quatro velhos semimortos — recomeçou ele — cuja sorte, segundo nos disseram, estava decidida... de que maneira, ai de nós! Esses velhos põem em xeque a autoridade real, e tudo não podia ser melhor. O povo cospe sobre o tribunal eclesiástico... que tribunal, aliás! Mas enfim, seja como for, a Igreja!... e tudo vai bem, não podia ser melhor. A multidão brame, pedindo a morte, mas contra vós, meu irmão: e tudo não podia ser melhor. Pois bem, seja, meu irmão: tudo vai bem, não podia ser melhor.

Levantou as mãos, que eram belas e carregadas de anéis, e depois sentou-se na primeira cadeira, na outra extremidade da mesa, como para deixar bem provado que, como não podia sentar-se à direita do rei, sentava-se em frente dele.

Enguerrand de Marigny conservara-se de pé, uma ruga irônica no canto dos lábios.

— Monseigneur de Valois deve estar mal informado — disse ele, calmo. — Dos quatro velhos de que fala, dois somente protestaram contra a sentença que os condenava. Quanto ao povo, todos os relatórios me asseguram que as opiniões estão muitíssimo divididas.

— Divididas! — exclamou Carlos de Valois. — Mas quem lhe pede opiniões divididas? Quem pede a opinião do povo? Vós, Messire de Marigny, e compreende-se por quê. Eis o resultado de vossa bela invenção de reunir burgueses, vilões e labregos para fazê-los aprovar as decisões do rei.' Agora, o povo pensa que tudo lhe é permitido!

Em todas as épocas e em todas as regiões, sempre houve dois partidos: o da reação e o do progresso. As duas tendências se enfrentavam no conselho do rei. Carlos de Valois considerava-se chefe natural dos grandes vassalos. Encarnava a permanência do passado, e seu evangelho político afirmava certos princípios que defendia encarniçadamente: o direito de guerra particular entre os senhores, o direito, para os grandes feudatários12, de cunhar moedas em seus territórios, a volta à ordem moral da cavalaria, a submissão à Santa Sé como supremo poder de arbitragem e a manutenção integral da organização social do feudalismo. Coisas que haviam sido determinadas pelo estado da sociedade em séculos já escoados, mas que Filipe, o Belo, inspirado por Marigny, abolira ou contra as quais continuava a lutar.

Enguerrand de Marigny representava o progresso. Suas grandes idéias eram a centralização do poder, a unificação da moeda e da administração, a independência do poder civil em relação à autoridade religiosa, a paz externa pela fortificação das cidades-chave, guarnições permanentes, a paz interna pela submissão à autoridade real, o aumento da produção e das trocas, a segurança do comércio. Essas disposições chamavam-se "inovações". Aquelas medalhas tinham o seu reverso: a polícia que proliferava custava muito caro, e cara também era a construção das fortalezas.

Constantemente batido pelo partido feudal, Enguerrand. esforçara-se por dar ao rei o apoio de uma classe que, desenvolvendo-se, tomava consciência de sua importância: a burguesia. Em várias ocasiões, para a cobrança de impostos ou para a questão dos templários, por exemplo, convocara os burgueses de Paris diante do palácio da Cite. Fizera o mesmo em várias cidades da província. Tinha no espírito o exemplo da Inglaterra, onde já funcionava a Câmara dos Comuns.

Não se tratava ainda, quanto às pequenas assembléias francesas, de discutir, mas somente de ouvir as razões das medidas tomadas pelo rei e aprová-las13.

Valois, embora fosse enredador, nada tinha de tolo. Nunca perdia ocasião de desacreditar Marigny. Sua oposição, surda durante algum tempo, tornara-se, havia vários meses, luta aberta, da qual o conselho de 18 de março era apenas uma fase.

A controvérsia tomara ar violento e as censuras estalavam, duras.

— Se os altos barões, dos quais sois o mais alto, monseigneur — disse Marigny —, se tivessem submetido com mais boa vontade às ordens reais, não teríamos necessidade de apoiar-nos no povo.

— Belo apoio, em verdade! — exclamou Valois. — Os motins de 1306, quando o rei, e vós mesmo, tivestes de vos refugiar no Templo, contra Paris sublevada, não vos serviram de lição! Eu vos predigo que, se isto continuar assim, não é preciso muito tempo para que os burgueses prescindam do rei para governá-los, e as vossas assembléias é que ditarão as leis.

O rei mantinha-se calado, o queixo na mão, e os olhos muito abertos, fixos diante dele. Nunca batia as pálpebras, e aquilo conferia-lhe ao olhar uma qualidade estranha que assustava toda a gente.

Marigny voltou-se para ele, como para pedir-lhe que usasse de sua autoridade para fazer cessar uma discussão que se ia desviando do assunto.

Filipe, o Belo, levantou ligeiramente o queixo e disse:

— Meu irmão, é dos templários que nos ocupamos hoje.

— Seja — disse Valois, tamborilando com os dedos sobre a mesa. — Ocupemo-nos dos templários.

— Nogaret! — murmurou o rei.

O guarda-selos levantou-se. Desde o início do conselho ele estava ardendo numa cólera que esperava apenas o instante de explodir. Fanático do bem público e da razão do Estado, o negócio dos templários era o seu negócio, e ele se entregava ao caso com uma paixão que não conhecia limites nem repouso. Era aliás a esse processo que devia o alto cargo que ocupava, desde o dramático conselho de 1307, quando o arcebispo de Narbonne, que tinha a guarda dos selos reais, se recusara a apô-los sobre a ordem de prisão dos templários, o que levou Filipe, o Belo, a tomá-los de suas mãos, para colocá-los nas de Nogaret. Ossudo, moreno, rosto comprido, olhos próximos um do outro, torcia constantemente um pedaço qualquer de sua roupa, ou roía a unha de um de seus dedos chatos. Era ardente, austero e duro como o alfanje da Morte.

— Sire, uma coisa monstruosa, uma coisa horrível tanto de pensar como de ouvir acaba de acontecer — começou ele, num tom a um tempo enfático e precipitado — e prova que toda indulgência, toda clemência concedida a sequazes do Diabo volta-se contra vós.

— É verdade — disse Filipe, o Belo, voltando-se para Valois — que a clemência que me aconselhastes, meu irmão, e que minha filha me pediu por carta da Inglaterra, não deu bons frutos... Continuai, Nogaret.

— Deixaram àqueles cães uma vida que eles não merecem, podres que são. Em vez de abençoarem seus juizes, aproveitaram-se disso imediatamente para insultar a Igreja e o rei. Os templários são hereges...

— Eram... — interrompeu Carlos de Valois.

— Como dizeis, monseigneur? — falou Nogaret impaciente.

— Eu disse eram, messire, porque, se tenho boa memória, dos quinze mil templários que havia na Europa, restam-vos em mãos apenas quatro... bastante embaraçosos, concordo, pois que depois de sete anos de processo eles ainda vêm clamar sua inocência! Parece que outrora, Messire Nogaret, trabalháveis mais depressa, pois que sabíeis, com um único sopapo, fazer desaparecer um papa.

Nogaret estremeceu e a pele de seu rosto tornou-se mais escura sob o pêlo azul de sua barba. Fora ele o homem que depusera o velho Papa Bonifácio VIII, de oitenta e seis anos, esbofeteando-o e arrastando-o pela barba, de sua cadeira pontificai abaixo. Os adversários do chanceler não deixavam jamais de lhe lembrar isso. Nogaret fora excomungado por aquele excesso de zelo, e fora preciso que a autoridade de Filipe, o Belo, se fizesse sentir junto de Clemente V para que a excomunhão fosse suspensa.

— Sabemos, monseigneur — replicou ele —, que sempre apoiastes os templários. Sem dúvida, contáveis com os seus exércitos para reconquistar, mesmo com grande prejuízo para a França, aquele trono-fantasma de Constantinopla, sobre o qual, até agora, não vos pudestes sentar.

Tinha revidado ultraje por ultraje, e seu rosto pareceu de melhor cor.

— Com os diabos! — gritou Valois, levantando-se e deixando cair sua cadeira para trás.

Um latido partiu de sob a mesa, sobressaltando os presentes, menos Filipe, o Belo, e provocando gargalhadas de Luís de Navarra. O latido vinha do grande lebréu que o rei conservara em sua companhia, e que ainda não estava habituado àqueles estouros.

— Luís... calai-vos — disse Filipe, o Belo, fixando em seu filho um olhar gelado.

Depois, estalou os dedos, dizendo: "Lombardo... quieto!" E tornou a puxar sobre sua coxa a cabeça do cão, que acariciou por um momento. Luís de Navarra, que já era chamado o Turbulento, por ser desordenado e confuso, baixou o nariz para sufocar seu riso desabalado. Tinha vinte e cinco anos, mas no cérebro não contava mais de quinze. Também ele tinha olhos claros, mas, ao contrário do que se dava com seu pai, seu olhar era fraco e fugidio, e seus cabelos sem brilho.

— Sire — disse Carlos de Valois depois que Bouville, o camareiro, levantou-lhe a cadeira —, sire, meu irmão, Deus é testemunha de que jamais pensei senão em vossos interesses e em vossa glória.

Filipe, o Belo, voltou os olhos para ele, e Carlos de Valois sentiu-se menos seguro do que falava. Entretanto, prosseguiu:

— E em vós, meu irmão, é que penso, quando vos vejo destruir, voluntariamente, o que fez a força do reino. Sem o Templo e sem a cavalaria, como podereis empreender uma cruzada, se tiverdes necessidade dela?

Foi Marigny quem respondeu:

— Sob o sábio reinado de nosso rei — disse ele — não temos tido necessidade de cruzadas, justamente porque a cavalaria está calma, monseigneur, e não é necessário levá-la para ultramar a fim de que ali acalme seus ardores.

— E a fé, messire?

— O ouro que retomamos aos templários aumentou muito mais o Tesouro do que todo o comércio e tráfico que se fazia atrás das auriflamas da fé; e as mercadorias circulam muito bem sem as cruzadas.

— Messire, falais como um ímpio!

— Falo como um servidor do reino, monseigneur! O rei bateu levemente na mesa.

— Meu irmão — disse ele de novo —, é dos templários que se trata hoje... Eu vos peço vossa opinião.

— Minha opinião... minha opinião? — repetiu Valois, apanhado de improviso.

Ele estava sempre pronto a reformar o universo, mas nunca a fornecer uma opinião exata.

— Pois bem, meu irmão, que aqueles que conduziram tão bem o caso (designava Nogaret e Marigny) vos inspirem a forma de terminá-lo. Por mim...

E fez o gesto de Pilatos.

O guarda-selos e o coadjutor trocaram um olhar.

— Luís... vossa opinião — disse o rei.

Luís de Navarra teve um sobressalto e demorou-se um momento para responder, em primeiro lugar porque não tinha idéia alguma, depois porque chupava uma bala de mel que se tinha colado em seus dentes.

— E se confiássemos esses templários ao papa? — disse, enfim.

— Luís, calai-vos — cortou o rei, levantando os ombros. E Marigny ergueu as sobrancelhas com uma expressão de piedade.

Tornar a enviar o grão-mestre ao papa era recomeçar tudo desde o princípio, voltar tudo à pauta, renunciar ao desapossamento tão duramente arrancado aos concílios, anular sete anos de esforços e reabrir o caminho de todas as contestações.

"E dizer que esse imbecil irá me suceder no trono", pensou Filipe, o Belo, observando o filho. "Enfim, esperemos que daqui até lá ele amadureça."

Um aguaceiro de março veio bater contra os vidros recortados de chumbo.

— Bouville — chamou o rei.

Hugo de Bouville pensou que o rei lhe pedia sua opinião. O grande camareiro era todo devotamento, obediência, fidelidade, desejo de agradar, mas não tinha o espírito voltado para as iniciativas. Perguntava-se, como sempre, que opinião gostaria Filipe, o Belo, de ouvir.

— Estou refletindo, sire, estou refletindo — respondeu.

— Mandai trazer velas, não se enxerga mais nada — disse o rei. — Nogaret, qual é o vosso parecer?

— Que aqueles que tombaram na heresia sofram o castigo dos hereges... e sem demora — respondeu o guarda-selos.

— E o povo? — perguntou Filipe, o Belo, passando o olhar para Marigny.

— Sua agitação cessará assim que aqueles que a causaram deixarem de existir — disse o coadjutor.

Carlos de Valois tentou um derradeiro esforço.

— Meu irmão, considerai que o grão-mestre tinha grau

de príncipe soberano, e que tocar na sua cabeça é atentar contra o princípio que protege as cabeças reais...

O olhar do rei cortou-lhe a palavra.

Houve um momento de silêncio pesado, depois Filipe, o Belo, falou:

— Tiago de Molay e Godofredo de Charnay serão queimados esta noite na ilhota dos Judeus, em frente do palácio. A rebelião foi pública: o castigo será público. Tenho dito.

Levantou-se e todos os presentes o imitaram.

— Redigireis a sentença, Messire de Presles. Quero que todos vós assistais ao suplício, messires, e que nosso filho Carlos esteja presente. Avisa-lo-eis, meu filho — terminou ele, olhando para Luís de Navarra.

Depois chamou:

— Lombardo!

E saiu, com o cão a seguir-lhe os passos.

Naquele conselho, do qual tinham feito parte dois reis, um imperador e um vice-rei, dois homens acabavam de ser condenados à morte. Mas, em nenhum momento houve a impressão de que estavam em jogo duas vidas humanas. De princípios é que se tratava.

— Meu sobrinho — disse Carlos de Valois a Luís, o Turbulento —, assistiremos esta noite ao fim da cavalaria.

 

A TORRE DOS AMORES

A noite caíra. Um vento fraco trazia odores de terra molhada, de lodo e seiva fermentando, e expulsava grandes nuvens negras, num céu sem estrelas.

Um barco que acabava de deixar a margem, à altura da torre do Louvre, avançava sobre o Sena, cuja água luzia como velha couraça bem lustrada.

Dois passageiros estavam sentados na popa do barco, o rosto metido na gola de suas grandes capas.

— Tempo esquisito, o de hoje — disse o barqueiro, que pesava lentamente sobre seus remos. — De manhã a gente acorda com tal nevoeiro que não se vê a duas toesas de distância. Depois, lá para as dez horas, temos o sol de fora. A gente pensa: é a primavera que vem chegando. Mas qual! Lá vêm os aguaceiros, pela tarde toda. E agora temos vento, e vento que vai aumentar, com certeza... Tempo esquisito.

— Mais depressa, meu velho — disse um dos passageiros.

— Faz-se o que se pode. Já sou velho, ficai sabendo; lá para o São Miguel vou fazer cinqüenta e três anos. Não sou mais tão forte como vós, meus jovens senhores — respondeu o barqueiro.

Estava coberto de andrajos, e parecia comprazer-se em tomar aquele tom choramingas.

— Então é mesmo para a Torre de Nesle que a gente vai? — perguntou ainda. — E há onde abicar ali?

— Há, sim — disse um dos passageiros.

— É que quase nunca se vai para aquele lado, que não é muito freqüentado.

A alguma distância, para a esquerda, viam-se luzes se moverem na ilhota dos Judeus, e, mais para longe, as janelas iluminadas do palácio. Havia grande movimento de barcos, daquele lado.

— Então, meus fidalgos, não ides ver assar os templários? — recomeçou o barqueiro. — Parece que o rei lá com seus filhos. É verdade?

— Parece — concordou um dos passageiros.

— E as princesas, também estarão?

— Não sei... mas com certeza estarão — disse o passageiro, virando o rosto para fazer sentir que não estava disposto a prosseguir na conversa.

Depois, a seu companheiro, disse em voz baixa, entre os dentes:

— Esse sujeito não me agrada; fala demais.

O outro passageiro ergueu os ombros com indiferença. Depois de um silêncio, cochichou:

— Como foste prevenido?

— Por Joana, como sempre — respondeu o primeiro.

— Querida Condessa Joana, quantos favores lhe devemos.

A cada remada, a Torre de Nesle mais se aproximava, alta massa negra levantada contra o negro céu.

O mais alto dos dois passageiros, o que falara em segundo lugar, pousou a mão por um instante sobre o braço do seu vizinho.

— Gautier — murmurou ele —, esta noite sinto-me feliz. E tu?

— Eu estou contente.

Assim falavam os dois irmãos d'Aunay, Gautier e Filipe, dirigindo-se ao encontro que Branca e Margarida lhes haviam marcado assim que souberam que seus maridos estariam retidos, aquela noite, junto do rei. E fora a Condessa de Poitiers, alcoviteira mais uma vez, quem se encarregara da mensagem.

Filipe d'Aunay mal podia conter sua impaciência e alegria. Todos os seus alarmas da manhã se tinham apagado, todas as suas suspeitas lhe pareciam injustas e vãs. Margarida chamara por ele; Margarida, por sua causa, expunha-se a todos os riscos; dentro de alguns instantes tê-la-ia em seus braços e jurava a si mesmo ser o amante mais terno, mais alegre e mais ardente que se poderia encontrar.

A barca abordou o talude sobre o qual se apoiava a parede enorme da torre. A última cheia do rio deixara ali uma camada de lodo.

O barqueiro estendeu os braços aos jovens para ajudá-los a descer.'

— Então está combinado — disse Gautier. — Tu nos esperarás sem te afastares, e sem te deixares ver.

— Toda a vida se quiserdes, meu jovem senhor, desde que me pagueis para isso — disse o barqueiro.

— A metade da noite será bastante — falou Gautier. Deu-lhe um soldo de prata, doze vezes mais do que valia a travessia, e prometeu-lhe outro tanto na volta. O barqueiro inclinou-se profundamente.

Cuidando de não escorregar e de não se enlamear demais, os dois irmãos transpuseram os poucos passos que os separavam de uma poterna, onde bateram segundo um sinal convencionado. A porta abriu-se docemente.

— Boa noite, meus senhores — disse-lhes a camareira que Margarida trouxera da Borgonha.

Trazia um morrão aceso e, depois de ter barricado novamente a porta, precedeu-os na escadaria em caracol.

O grande aposento da torre onde introduziu os jovens, no primeiro andar, estava iluminado apenas pelos clarões avermelhados de um grande fogo de lenha, numa lareira funda. E aqueles clarões perdiam-se nas alturas de um forro em rotunda, sustentado por doze arcos de ogiva.

Ali, como no quarto de Margarida, flutuava um odor de essência de jasmim. Tudo estava impregnado dele, os tecidos bordados a ouro, estendidos sobre as paredes, os tapetes, as peles de animais, espalhadas com abundância sobre os leitos baixos, à moda oriental.

As princesas não estavam lá. A camareira saiu, dizendo que ia avisá-las.

Os dois jovens tiraram suas grandes capas, aproximaram-se da lareira e estenderam maquinalmente as mãos para as chamas.

Gautier d'Aunay era dois anos mais velho que seu irmão, com quem se parecia bastante, porém mais baixo, mais sólido e mais loiro. Tinha o pescoço forte, as faces rosadas, e levava a vida no divertimento. Não estava, como o outro, arrasado pela paixão. Era casado — e bem casado — com uma Montmorency e já tinha três filhos.

— Eu me pergunto sempre — disse ele enquanto se aquecia — por que Branca tomou-me por amante e, mesmo, por que tem ela um amante. No que se refere a Margarida, isso se explica. Basta olhar para Luís de Navarra, com seu olhar baixo, seus pés rasteiros, seu peito cavado, e olhar para ti ao lado dele, para compreender imediatamente. E depois, há outras coisas que nós sabemos...

Aludia, assim, a segredos de alcova, ao pouco vigor amoroso do rei de Navarra e ao ódio surdo que existia entre os dois esposos.

— Mas Branca não compreendo — continuou Gautier d'Aunay. — O marido dela é bonito, bem mais bonito do que eu... sim, não protestes... é mais bonito; parece-se muitíssimo com o rei seu pai... ama a esposa, e creio, diga ela o que disser, que Branca também o ama. Então por quê? Eis o que pergunto a mim mesmo cada vez que a venho ver; por que me coube tal sorte?

— Porque deseja fazer como a prima — respondeu o irmão.

Ouviram leve ruído de passos e cochichos no corredor que ligava a torre ao palácio, e as duas princesas apareceram.

Filipe atirou-se para Margarida, mas seu movimento se deteve bruscamente. Na cintura de sua amante via a bolsa de ouro e de pedras preciosas que tanto provocara sua cólera pela manhã.

— Que tens, meu belo Filipe? — perguntou Margarida, os braços estendidos para ele e o rosto em oferenda. — Não te sentes feliz esta noite?

— Sim... sim... — respondeu ele, friamente.

— Que se passa, desta vez? Que nova mosca...

— É... para escarnecer de mim? — indagou Filipe designando a bolsa.

Ela teve um belo riso quente, que cascateou em sua garganta.

— Como és tolo, ciumento, maravilhoso! Não compreendeste então que era brincadeira? Dou-te esta bolsa, se isso te tranqüiliza. Vês, assim, que não se tratava de um presente de amor.

Tirou a bolsa do cinto e passou-a para o cinto de Filipe, estupefato. Ele esboçou um gesto de protesto.

— Sim, sim, eu quero. Agora é um presente de amor, para ti. Não, não recuses. Nada é belo demais para o meu belo Filipe. Mas não me perguntes outra vez quem me deu essa bolsa, porque serei forçada a tomá-la de ti. Posso apenas jurar-te que não foi um homem quem me deu. Aliás, Branca tem uma igual. Branca — disse ela, voltando-se para sua prima —, mostra tua bolsa a Filipe. Dei-lhe a minha.

Branca deitara-se em um dos leitos, na parte mais escura da sala. Gautier estava junto dela, um joelho em terra, e cobria-lhe de beijos o colo e as mãos.

— Aposto o que quiseres — murmurou Margarida ao ouvido de Filipe — que daqui a um minuto teu irmão terá recebido o mesmo presente.

Branca, levantando-se a meio, perguntou:

— Não será imprudência, Margarida, e teremos o direito?

— Claro — respondeu Margarida. — Ninguém, a não ser Joana, viu essas bolsas, nem sabe que nós as recebemos.

— Então — exclamou Branca — não quero que meu belo amante seja menos amado e menos enfeitado que o teu.

E desprendeu sua bolsa, que Gautier aceitou sem dificuldade nem constrangimento, já que seu irmão também a aceitara.

Margarida olhou para Filipe com um ar que significava: "Não disse?" Filipe sorriu-lhe. "Espantosa Margarida", pensava ele.

Jamais podia adivinhá-la, nem explicá-la. Era essa a mesma mulher que, de manhã, cruel, coquete, pérfida, divertia-se à sua custa como se virasse um faisão na grelha, e que agora, oferecendo-lhe um presente de cento e cinqüenta libras, mantinha-se entre seus braços, submissa, terna, quase trêmula?

— Se eu te amo tanto — disse ele —, penso que é por não te compreender.

Nenhum outro elogio poderia causar maior satisfação a Margarida. Agradeceu a Filipe comprimindo-lhe o pescoço com os lábios. Depois, desprendendo-se e subitamente alerta, exclamou:

— Estás ouvindo? Os templários. Levam-nos para a fogueira.

De olhar brilhante e rosto animado por uma curiosidade confusa, arrastou Filipe para a janela, alta seteira talhada em funil na espessura das paredes, e abriu o vitral.

Um grande rumor de populaça entrou no aposento.

— Branca, Gautier, venham ver! — chamou Margarida. Mas Branca respondeu, num gemido feliz:

— Ah! não! Não quero me mexer daqui! Estou muito bem.

Entre as duas princesas e seus amantes há muito fora abolido todo pudor, e eles costumavam entregar-se uns diante dos outros a todos os movimentos da paixão. Se Branca às vezes desviava os olhos, ou escondia sua nudez nos recantos mais sombrios, Margarida, ao contrário, sentia aumentar seu prazer contemplando o amor dos outros e oferecendo-se aos seus olhares.

Mas no momento, colada à janela, ela estava retida pelo espetáculo que se desenrolava no meio do Sena. Ali, na ilhota dos Judeus, cem archeiros dispostos em círculo levantavam tochas acesas, e a chama de todas aquelas tochas, vacilando ao vento, formava um reduto de luz onde se via claramente a imensa fogueira levantada e os ajudantes do carrasco, que subiam e descarregavam as pilhas de achas. Para cá dos archeiros, a ilhota, que habitualmente não passava de um prado onde levavam as vacas e as cabras a pastar14, estava coberta de gente. E uma grande quantidade de barcas riscava o rio, carregadas de pessoas que queriam assistir ao suplício.

Saída da margem direita, uma barca, mais pesada do que as outras e trazendo homens de armas, de pé, acabava de acostar na ilhota. Duas grandes silhuetas cinzentas, cobertas com chapéus estranhos, dela desceram, precedidas por um monge que levava uma cruz. Então o rumor da populaça aumentou, tornou-se clamor. Quase no mesmo instante, uma grande sacada iluminou-se na torre, chamada da Água, construída na ponta do jardim do palácio. E sombras foram vistas recortando-se naquela sacada, e o clamor da multidão tombou de súbito. Eram o rei e seu conselho que acabavam de se instalar.

Margarida deu uma gargalhada, um grande riso agudo que não terminava.

— Por que ris? — perguntou-lhe Filipe.

— Porque Luís está lá — respondeu ela —, e porque, se fosse dia, ele me poderia ver.

Seus olhos luziam, os cachos negros dançavam sobre sua testa abaulada. Com um movimento rápido, fez surgir para fora da roupa seus belos ombros ambarinos e deixou cair por terra as vestimentas, até ficar completamente nua, como se quisesse, através das distâncias da noite, escarnecer do marido que detestava. Puxou para suas ancas as mãos de Filipe.

Ao fundo da sala, Branca e Gautier estavam deitados um ao lado do outro, num abraço indistinto, e o corpo de Branca tinha reflexos de nácar.

Lá fora, no meio do rio, o clamor recomeçara. Amarravam os templários sobre a pilha de lenha a que, dentro de alguns momentos, iriam pôr fogo.

Margarida fremiu, ao ar da noite, e aproximou-se da lareira. Ficou um momento a contemplar fixamente o fogo, expôs-se ao ardor das brasas até que a carícia do calor tornou-se insuportável. As chamas projetavam sobre sua pele clarões dançarinos.

— Eles vão queimar, eles vão arder — disse ela, em voz um tanto arquejante e rouca —, e nós, enquanto isso ...

Seus olhos procuravam, no coração do fogo, imagens infernais que alimentassem seu prazer.

Voltou-se bruscamente, pondo-se de frente para Filipe, e ofereceu-se a ele, em pé, como as ninfas da lenda se ofereciam ao desejo dos faunos.

Sobre as paredes, a lareira projetava sua sombra, imensa, até as ogivas do forro.

 

"INTIMO A COMPARECER AO TRIBUNAL DE DEUS...”

O jardim do palácio ficava separado da ilhota dos Judeus apenas por um estreito braço de água. Como a fogueira fora levantada de forma a ficar em frente à sacada real, Filipe, o Belo, de seu lugar, podia ver tudo perfeitamente.

Os curiosos não cessavam de afluir para as duas margens do rio, e a própria ilhota desaparecia sob os pés da multidão. Os barqueiros, naquela noite, tinham ganho dinheiro.

Mas os archeiros estavam bem alinhados, e os sargentos reais metiam-se nas aglomerações. Piquetes de homens armados tinham sido postados sobre as pontes e à saída das ruas que iam ter ao Sena. Assim, nada havia a temer.

— Marigny, podeis cumprimentar o preboste — disse o rei ao seu coadjutor, que estava junto dele.

A agitação da manhã, que se poderia esperar ver transformada em revolta, acabava em festa popular, em regozijo de feira, em divertimento trágico oferecido pelo rei à sua capital. Reinava um ambiente de quermesse. Os truões misturavam-se aos burgueses, que tinham abalado de casa com toda a família; e as "garotas alegres" haviam acorrido, maquiladas e de cabelos tingidos, das ruelas que ficavam atrás de Notre-Dame, e onde exerciam seu comércio. Moleques metiam-se entre as pernas dos adultos para chegar às primeiras filas. Alguns judeus, reunidos em grupos tímidos, com o disco amarelo sobre as capas, tinham vindo olhar o suplício que, daquela vez pelo menos, não era com eles. E belas damas, envergando capas forradas de peles, ansiosas por emoções fortes, agarravam-se aos seus companheiros soltando pequenos gritos nervosos.

Fazia quase frio e o vento soprava em rajadas curtas. O clarão das tochas espalhava sobre o rio rubras marmorizações.

Messire Alain de Pareilles, com a viseira do capacete erguida, mantinha-se a cavalo, o ar entediado como sempre, diante de seus archeiros.

A fogueira era mais alta do que um homem; o carrasco-chefe e seus homens, vestidos de vermelho e cobertos com capuzes, movimentavam-se em torno dela, retificando o alinhamento das achas, preparando os molhos de lenha de reserva, com a preocupação do trabalho bem-feito.

No alto da fogueira, o grão-mestre dos templários e o preceptor da Normandia estavam amarrados a estacas, lado a lado, e voltados para a sacada real. Haviam colocado nas cabeças de ambos a infamante mitra de papel dos hereges. O vento brincava com as suas barbas.

Um monge, aquele que Margarida vira da Torre de Nesle, levantava até eles uma grande cruz e dirigia-lhes suas últimas exortações. A multidão fez silêncio em torno, para ouvir o que ele dizia:

— Dentro de um instante ides comparecer diante de Deus — gritava o monge. — Ainda é tempo de confessar vossos erros e de vos arrependerdes... Eu vos conjuro pela última vez.

Lá em cima os condenados, imóveis entre o céu e a terra, e como que já desapegados da vida, não responderam. Seus olhares baixavam para o monge com grande expressão de desprezo.

— Eles recusam confessar-se, não se arrependem — murmurava-se entre a assistência.

O silêncio se fez mais denso, mais profundo. O monge se pusera de joelhos, murmurando preces. O carrasco-chefe tomou da mão de um de seus ajudantes o facho de estopa aceso e fê-lo girar várias vezes a fim de avivar a chama.

Uma criança pôs-se a chorar, e imediatamente se ouviu o ruído de uma bofetada.

O Capitão Alain de Pareilles voltou-se para a sacada real, como se esperasse uma ordem, e todos os olhares, todas as cabeças se dirigiram para o mesmo lado. E a respiração suspendeu-se em todos os peitos.

Filipe, o Belo, estava de pé contra a balaustrada. Os membros do conselho mantinham-se imóveis em torno dele. Seus rostos enfileirados se destacavam sob a luz das tochas: pareciam um baixo-relevo de pedra cor-de-rosa, esculpido no flanco da torre.

Mesmo os condenados haviam levantado os olhos para a sacada. O olhar do rei e o do grão-mestre se cruzaram, mediram-se, prenderam-se um ao outro, retiveram-se mutuamente. Ninguém podia saber que pensamentos, que sentimentos, que recordações rolavam sob a fronte dos dois inimigos. Mas a populaça percebeu, instintivamente, que qualquer coisa de grandioso, de terrível, de sobre-humano, estava se passando naquele momento, naquela defrontação muda entre o príncipe todo-poderoso, rodeado pelos executores de sua vontade, e o grão-mestre de cavalaria, ligado ao madeirame infamante, entre os dois homens que o nascimento e os fatos da história tinham elevado acima de todos os outros.

Iria Filipe, o Belo, num movimento de última clemência, agraciar os condenados? Tiago de Molay ia, enfim, humilhar-se e implorar piedade?

O rei fez um gesto com a mão, e viu-se uma esmeralda luzir em seu dedo. Alain de Pareilles repetiu o gesto em direção ao carrasco, e este meteu a estopa acesa entre os feixes de lenha e de cavacos da fogueira. Um suspiro imenso escapou de milhares de peitos, suspiro de alívio e de horror, de alegria confusa e de assombro, de angústia, de repulsa e de prazer, misturados.

Muitas mulheres gritaram. Crianças esconderam as cabeças nas roupas dos pais. Uma voz de homem gritou:

— Eu bem te disse que não viesses!

A fumaça começou a subir em espirais espessas, que uma rajada de vento enviou para a sacada real.

Monseigneur de Valois começou a tossir o mais ostensivamente possível e, recuando entre Nogaret e Marigny, disse:

— Se isso continuar, ficaremos sufocados antes que os vossos templários queimem. Poderíeis, pelo menos, ter providenciado para que houvesse lenha seca.

Ninguém fez eco à observação. Nogaret, os músculos tensos, os olhos ardentes, saboreava rudemente seu triunfo. Aquela fogueira era o coroamento de sete anos de lutas e de viagens exaustivas, o término de milhares de palavras de persuasão, de milhares de páginas de provas. "Vamos, ardei, flambai", pensava. "Vós me mantivestes em situação crítica. Eu tinha razão, e estais vencidos."

Enguerrand de Marigny, imitando a atitude do rei, esforçava-se por manter-se impassível e por considerar aquele suplício como uma necessidade do poder. "Era preciso", repetia a si próprio. Mas não podia evitar a visão de homens agonizantes, o pensamento da morte. Os dois condenados que tinha sob os olhos deixavam de ser abstrações políticas. O fato de terem sido declarados prejudiciais à ordem pública não impedia que fossem criaturas de carne, de pensamento, de desejo e de dor, como todos, como ele próprio. "No lugar deles, seria eu capaz de idêntica coragem?", perguntava a si mesmo Marigny, sem deixar de admirá-los. Aquele "no lugar deles" fez-lhe passar um arrepio pela espinha. Conteve-se. "Vamos, em que estou pensando?", disse consigo. "Arrisco-me à doença e ao acidente, como todo o mundo, e nada mais. Minha pessoa está inteiramente protegida, e sou tão intocável quanto o rei..."

Mas também o grão-mestre, sete anos antes, não corria nenhum risco, e ninguém era tão poderoso quanto ele...

Hugo de Bouville, o bom camareiro de cabelos brancos e pretos, rezava sem ser notado.

O vento mudou e a fumaça, de segundo em segundo mais espessa e mais alta, envolveu os condenados, escondendo-os quase da multidão. Ouviam-se a tosse e os soluços de sufocação dos anciãos, em suas estacas. Luís de Navarra pôs-se a rir idiotamente, esfregando os olhos avermelhados.

Seu irmão Carlos, o mais moço dos filhos de Filipe, o Belo, desviava a cabeça. O espetáculo parecia ser, para ele, visivelmente penoso. Tinha vinte anos, era esbelto, loiro e rosado, e os que tinham conhecido seu pai na mesma idade diziam que ele se lhe assemelhava de forma impressionante, mas com um aspecto menos vigoroso, menos autoritário também, como cópia esmaecida do grande modelo. A parecença existia, mas faltava a tempera.

— Acabo de ver luz em tua casa, na torre — disse a Luís, a meia voz.

— Devem ser os guardas que também querem ver o que se passa.

— Eu lhes daria meu lugar de boa vontade — murmurou Carlos.

— Quê? Não te diverte ver assar o padrinho de Isabel? — indagou Luís de Navarra.

— É verdade. Molay é o padrinho de nossa irmã — murmurou Carlos.

— Eu acho isso muito engraçado — disse Luís de Navarra. -

— Luís... calai-vos — disse o rei, a quem aquele cochichar incomodava.

Para dissipar o mal-estar que se apoderara dele, o jovem Príncipe Carlos esforçou-se para dirigir seu pensamento a um objeto agradável. Começou a pensar em sua esposa Branca, em seu braços leves que logo mais se estenderiam para ele, a fim de fazê-lo esquecer aquela visão atroz. Como ela sabia amar e espalhar felicidade em torno de si! Se ao menos seus dois filhos não tivessem morrido ao fim de poucos meses ... Mas eles teriam outros, e a vida, então, não mostraria mais sombra alguma... O encantamento e a plenitude... Branca lhe dissera que iria fazer companhia, naquela noite, à sua prima Margarida. Já devia ter voltado, naquela altura. Teria se agasalhado bem, sua escolta seria suficiente?

O bramir da multidão sobressaltou-o. As chamas acabavam de irromper da fogueira. Por ordem de Alain de Pareilles, os archeiros apagaram suas tochas na relva, e a noite teve por iluminação apenas o braseiro.

O preceptor da Normandia foi o primeiro atingido. Teve um patético movimento de recuo quando as línguas de fogo começaram a lambê-lo; e seus lábios se abriram muito, como se procurasse, inutilmente, aspirar um ar que lhe fugia. Seu corpo, apesar da corda, dobrou-se em dois; sua mitra de papel tombou, e viu-se a grande cicatriz branca em seu rosto arroxeado. O fogo dançava em torno dele. Depois, uma torrente de fumaça acinzentada engoliu-o. Quando se dissipou, Godofredo de Charnay estava em chamas, bramindo e arquejando, e tentando libertar-se da estaca fatal, que tremia em sua base. Via-se que o grão-mestre gritava-lhe algo, mas a multidão produzia um rumor tão forte no momento, para conter seu horror, que só se pôde ouvir a palavra "irmão", duas vezes lançada.

Os ajudantes do carrasco corriam, esbarrando uns nos outros, apanhando lenha na reserva e atiçando o fogo com grandes ganchos de ferro.

Luís de Navarra, cujo pensamento funcionava sempre retardado, perguntou ao irmão:

— Tu disseste que havia luz na Torre de Nesle?

E por um momento pareceu tomado por uma preocupação.

Enguerrand de Marigny pusera a mão diante dos olhos, como para se proteger contra o brilho das chamas.

— Bela imagem do inferno que vós nos dais ali, Nogaret — disse Monseigneur de Valois. — É no vosso futuro que pensais?

Guilherme de Nogaret não respondeu.

A fogueira transformara-se em fornalha e Godofredo de Charnay não era senão um objeto que escurecia, crepitava, enchia-se de bolhas, e desmanchava-se lentamente sobre as cinzas, transformado em cinza.

Mulheres desmaiavam. Outras aproximavam-se da ribanceira, rapidamente, para vomitar na água, quase sob o nariz do rei. A multidão, depois de ter vociferado tanto, acalmara-se, e começava a invocar o milagre, porque o vento se obstinava a soprar no mesmo sentido, de modo que o grão-mestre ainda não fora tocado. Como podia resistir tanto tempo? A fogueira, de seu lado, estava intata.

Depois, subitamente, houve um desmoronamento do braseiro e, reavivadas, as chamas atiraram-se para ele.

— Pronto, ele também vai! — exclamou Luís de Navarra.

O rosto comprido e o pescoço esticado, sacudia-se naquele riso incompreensível que se apoderava dele nas ocasiões mais trágicas.

Os grandes olhos frios de Filipe, o Belo, mesmo naquele momento, não piscavam.

E de repente, a palavra do grão-mestre surgiu da cortina de fogo e, como se fosse endereçada a cada um em especial, feriu-os a todos em pleno rosto. Com uma força irresistível, com voz que já era quase uma voz do além, Tiago de Molay falava de novo, como o fizera em Notre-Dame.

E ele gritava:

— Vergonha! Vergonha! Vós estais vendo morrer inocentes. Vergonha sobre vós todos! Deus julgará.

A chama flagelou-o, queimou-lhe a barba, calcinou em um segundo sua mitra de papel e acendeu seus cabelos brancos.

A populaça, estupefata, calara-se. Dir-se-ia que estava sendo queimado um profeta louco.

O rosto em fogo do grão-mestre estava voltado para a sacada real. E com voz terrível, gritou:

— Papa Clemente... Cavaleiro Guilherme de Nogaret... Rei Filipe: antes de um ano eu vos intimo a comparecer diante do tribunal de Deus, para ali receberdes o justo castigo. Malditos! Malditos! Todos malditos, até a décima terceira geração de vossas raças!...

As chamas entraram-lhe pela boca e abafaram seu último grito. E depois, durante um tempo que pareceu interminável, ele lutou contra a morte.

Enfim, dobrou-se em dois. A corda rompeu-se e ele abateu-se na fornalha; e viu-se que sua mão se conservava erguida entre as chamas. E assim ficou, até que se tornasse toda negra.

A multidão, aterrorizada com a maldição, ficara plantada em seu lugar, e só havia suspiros, murmúrios, espera, consternação, angústia. Todo o peso da noite e do horror descera sobre ela: as trevas ganhavam força contra a luz da fogueira, que se ia enfraquecendo.

Os archeiros enxotaram as pessoas, que não se decidiam a partir.

— Não foi a nós que ele amaldiçoou, foi ao rei, não é mesmo? — cochichavam.

E os olhares se voltavam para a sacada real. O rei continuava encostado à balaustrada. Olhava para a mão negra do grão-mestre, plantada na cinza vermelha. Aquela mão queimada era tudo quanto restava de tanto poder e glória, tudo quanto restava da ilustre Ordem dos Cavaleiros do Templo. Mas aquela mão se imobilizara num gesto de anátema.

—- Pois bem, meu irmão — disse Monseigneur de Valois, com um sorriso mau —, penso que estais contente.

Filipe, o Belo, voltou-se.

— Não, meu irmão — disse ele. — Não estou contente. Cometi um erro.

Valois estufou-se, já pronto a triunfar.

— Sim, cometi um erro — repetiu o rei. — Devia ter mandado arrancar-lhes a língua, antes de queimá-los.

E sempre impassível, seguido de Nogaret, de Marigny e de seu camareiro, voltou aos aposentos.

Entretanto, a fogueira tornara-se cinzenta, com algumas estrelas de fogo que saltavam ainda e depressa se extinguiam. A sacada estava cheia de fumaça e de um cheiro áspero de carne queimada.

— Isto cheira mal — disse Luís de Navarra. — Acho, realmente, que isto cheira mal. Vamo-nos embora.

O jovem Príncipe Carlos perguntava a si próprio se, mesmo entre os braços de sua esposa Branca, conseguiria esquecer aquilo.

 

OS ASSALTANTES

Indecisos, os irmãos d'Aunay, que acabavam de sair da Torre de Nesle, patinhavam na lama e escrutavam a escuridão. Seu barqueiro desaparecera.

— Eu bem disse que aquele sujeito não me agradava — disse Gautier. — Devia ter desconfiado...

— Tu lhe deste dinheiro demais — respondeu Filipe. — O velhaco achou que tinha ganho o dia e foi assistir ao suplício.

— Espero que seja apenas isso.

— E que quererias que fosse?

— Não sei. Mas isto não me parece nada bom. Aquele homem oferece-se para nos atravessar, queixando-se de que não tinha ganho coisa alguma o dia inteiro. Manda-se que ele espere, e vai embora.

— E que poderíamos fazer? Não tínhamos escolha, já que ele era o único barqueiro à mão.

— Justamente — disse Gautier. — E fazia perguntas demais.

Aguçou o ouvido, esperando um ruído de remos. Mas ouvia-se apenas o marulho do rio e o rumor disperso das pessoas que voltavam às suas casas, em Paris. Na ilhota dos Judeus, que do dia seguinte em diante passaria a ser chamada a ilhota dos Templários, tudo se apagara. Um odor de fumaça se mesclava ao desagradável cheiro do Sena.

— Só nos resta voltar a pé — disse Gautier. — Vamos ficar com os calções enlameados até as coxas. Mas, afinal, valeu a pena.

Avançaram ao longo das muralhas do Palácio de Nesle, dando-se o braço para evitar os escorregões. Continuavam a olhar em torno e a interrogar a escuridão. Nem sinal do barqueiro.

— Quem terá podido dar-lhes aquilo? — indagou subitamente Filipe.

— O quê?

— As bolsas.

— Ah! Continuas a pensar nisso — respondeu Gautier.

— Confesso que não me preocupo por esse lado. De todos os presentes que elas nos deram, jamais tivemos outros mais belos.

Ao mesmo tempo afagava a bolsa que pendia de seu cinto e sentia sob os dedos os relevos das pedras preciosas.

— Não pode ser gente da corte — recomeçou o outro.

— Margarida e Branca não arriscariam que reconhecessem as jóias em nosso poder. Então quem? Um presente de sua família da Borgonha, talvez?... Em todo o caso, é estranho que elas não tenham querido dizer.

Gautier ia responder quando, diante deles, ouviu-se um ligeiro assobio. Eles se sobressaltaram e, com um mesmo movimento, levaram a mão à adaga. Um encontro àquela hora e naquele lugar tinha toda a possibilidade de ser um mau encontro.

— Quem está aí? — perguntou Filipe.

Ouviram novo assobio e nem mesmo tiveram tempo pára se pôr em guarda.

Seis homens, surgidos da noite, atiraram-se sobre eles. Três dos assaltantes, agarrando-se a Filipe, tinham-no colado de costas ao muro e, mantendo-lhe os braços seguros, impediam-no de servir-se de sua adaga. Os outros três tinham tido menos sorte com Gautier, que atirara um deles por terra. Ou antes, um de seus agressores se atirara ao chão para evitar um golpe de sua adaga. Mas os outros dois agarraram Gautier d'Aunay por trás, torceram-lhe o punho, forçando-o a largar a arma. Filipe sentiu que procuravam roubar-lhe a bolsa que ganhara.

Impossível gritar por socorro! Os guardas do Palácio de Nesle, surgindo, poderiam interrogá-los sobre as razões de sua presença ali. Tiveram o mesmo instinto de se calar. Deviam livrar-se daquela situação sozinhos, ou então tudo acabaria.

O mais jovem, arqueando o corpo contra a parede, debatia-se com a energia do desespero e distribuía pontapés, já que não podia ferir com sua adaga. Não queria que lhe tomassem a bolsa. Aquele objeto transformara-se, de repente, na coisa mais preciosa do universo, e ele estava decidido a tudo para salvá-lo. Gautier sentia-se mais disposto a parlamentar. Que os roubassem, mas que lhes deixassem a vida. E não sabia se lhas deixariam, ou se, uma vez feita a pilhagem, seus cadáveres não seriam atirados ao Sena.

Foi nesse momento que nova sombra surgiu na noite. Gautier, que não a tinha visto chegar, não teve tempo de saber se aquela forma seria a de outro assaltante.

Tudo se passou muito rapidamente.

Um dos agressores soltou um grito:

— Alerta, companheiros, alerta!

Como um leão, o recém-chegado se abatera sobre o centro do grupo, e viu-se o brilho de uma espada que turbilhonava.

— Ah! Velhacos! Canalhas! Abutres! — gritava ele com voz poderosa, e distribuindo golpes à vontade.

Os ladrões afastaram-se como moscas, diante dos seus molinetes. Como um dos assaltantes passasse ao alcance de sua mão livre, ele agarrou-o pela gola e atirou-o contra a parede. Todo o bando desatou a fugir sem tentar mais nada. Ouviu-se o ruído de uma fuga precipitada, que foi decrescendo ao longo da ribanceira, na direção do Petit-Pré-aux-Clercs, e depois mais nada.

Ofegante, titubeante, Filipe, as duas mãos apertadas contra o peito, adiantou-se para seu irmão.

— Ferido? — perguntou-lhe.

— Não — disse Gautier sem fôlego, esfregando o ombro. — E tu?

— Também não. Mas foi um milagre termos saído desta.

Juntos voltaram-se para o homem que, durante alguns segundos, ainda perseguira os malfeitores e que agora voltava, metendo de novo a espada na bainha. Era homem de grande estatura, ombros largos, poderoso. Um sopro brutal escapava-se de suas narinas.

— Pois bem, messire — disse Gautier —, devemos-vos um grande favor. Sem vós não teríamos demorado a flutuar de barriga para cima. A quem temos a honra de dever...

O homem ria, um riso amplo e gordo, um tanto forçado. Na escuridão, adivinhavam-se seus dentes de animal carniceiro. Um instante e os dois irmãos murmuravam que já tinham ouvido aquele riso; no mesmo momento, a lua surgiu por trás das nuvens e eles reconheceram seu defensor: Roberto d'Artois.

— Oh! Com o diabo, monseigneur, sois vós? — exclamou Filipe.

— Ah! Com o diabo, meus donzéis — respondeu o homem. — Mas também eu vos reconheço! Os irmãos d'Aunay! — exclamou ele. — Os mais belos moços da corte! Diabos me levem se eu esperava... Ia passando pela margem, ouvi barulho que vinha daqui, e disse comigo: "Com certeza trata-se de algum pacífico burguês que está sendo roubado". A verdade é que Paris está infestada de salteadores, e que esse tal Preboste Ployebouche... Ployecul é que deviam chamá-lo... está sempre mais ocupado em lamber as polainas de Marigny do que em policiar a cidade.

— Monseigneur — disse Filipe —, não sabemos como vos agradecer...

— Não tem importância — disse Roberto d'Artois, deixando cair uma de suas manzorras sobre o ombro de Filipe, que cambaleou. — Foi um prazer! O movimento natural de todo gentil-homem é ir em socorro de pessoas atacadas. Mas a satisfação é dupla quando se trata de senhores de nossa relação, e estou encantado de ter conservado a meus primos Valois e Poitiers seus melhores escudeiros. Foi pena que estivesse tão escuro! Ah! com os diabos, se a lua tivesse aparecido um pouco mais cedo, eu gostaria de ter aberto a barriga de alguns daqueles patifes. Não ousei ferir de verdade, com receio de vos machucar... Mas dizei-me, meus donzéis, que diabo fazíeis neste lamacento reduto?

— Nós... nós passeávamos — apressou-se a dizer o mais novo, constrangido.

O gigante desatou a rir às gargalhadas.

— Passeáveis! Que belo lugar, e que bela hora para passeios! Passeáveis!... Com lama até as nádegas. Há cada resposta! Ah! mocidade! Coisas de amor, não é? Negócio de mulheres — disse ele jovialmente, esmagando de novo o ombro de Filipe —, sempre com fogo nos calções! É belo ter a vossa idade.

Subitamente ele entreviu as bolsas deles, que brilhavam à luz da lua.

— Com a breca! — exclamou ele. — Os calções em fogo, mas com bons resultados! Belo ornamento, meus donzéis, belo ornamento!

Sopesava agora a bolsa de Gautier.

— Trancelim de ouro, trabalho fino... Trabalho italiano, ou melhor, inglês. E novas... Não é com o soldo de escudeiros que a gente pode usar tais esplendores. Os assaltantes teriam feito um belo trabalho.

Ele agitava-se, gesticulava, sacudia os jovens com cachações, todo arruivado naquela claridade indecisa, enorme, barulhento e frascário. Começava a pesar seriamente sobre os nervos dos dois irmãos. Mas como dizer a um homem que acaba de vos salvar a vida que não se meta no que não lhe diz respeito?

— O amor vale a pena, meus lindinhos — continuou ele, caminhando entre os dois. — Com certeza vossas amantes são bem altas damas, e bem generosas. Estes danados destes d'Aunay, vamos! Quem acreditaria numa coisas destas? ...

— Monseigneur se engana — disse Gautier friamente. — Estas bolsas são jóias de nossa família.

— Com certeza, eu sabia disso — disse d'Artois. — De uma família que a gente visita mais ou menos à meia-noite, sob as muralhas da Torre de Nesle!... Bom, bom, ninguém vai falar nada. A honra em primeiro lugar. Eu vos aprovo, meus filhos. Quando se beija uma mulher, devemos respeitar-lhe a reputação! Vamos, adeus. E não deveis sair mais à noite com todas as vossas jóias.

Soltou nova gargalhada, bateu os dois irmãos um contra o outro num grande gesto que poderia ser um abraço e deixou-os ali, inquietos, contrariados, sem mesmo lhes dar tempo de insistir em seus agradecimentos.

Estavam na Porta de Buci e continuavam seu caminho para a direita, enquanto d'Artois se afastava pelos campos, em direção a Saint-Germain-des-Prés.

— Será melhor que ele não vá contar à corte inteira onde nos encontrou — disse Gautier. — Pensas que será capaz de fechar aquela bocarra?

— Fechará, sim — disse Filipe. — Não é mau sujeito. A prova é que sem sua bocarra, como tu dizes, e sem seus grandes braços não estaríamos aqui. Não sejamos ingratos tão depressa.

— É verdade. Aliás, também nós poderíamos ter perguntado o que fazia ele naquele lugar.

— Procurava vadias, eu juro. E agora deve estar se encaminhando para um bordel qualquer — disse Filipe.

Enganava-se. Roberto d'Artois não se dirigia para "um bordel". Tinha feito um desvio pelo Pré-aux-Clercs e, retomando a margem do rio, voltara para o pé da Torre de Nesle.

A lua estava novamente mascarada, e ele assobiou, com aquele mesmo assobio leve que precedera o assalto.

As seis mesmas sombras se destacaram da parede e mais uma sétima, que se levantou de uma barca. E as sombras se mantiveram em atitude respeitosa.

— Está bem, fizestes vosso trabalho direito — disse d'Artois —, e tudo se passou como eu vos pedi. Toma, Carl-Hans — acrescentou ele, chamando o chefe dos patifes —, reparte isto.

E atirou-lhe uma bolsa.

— Vós me destes uma pancada bem forte no ombro, monseigneur — disse um dos assaltantes.

— Bah! Estava incluído no pagamento — respondeu d'Artois, rindo. — Desaparecei imediatamente. Se eu tiver necessidade de vossos serviços novamente, mandarei prevenir-vos.

Depois subiu para o barco, que ali esperava, e que arriou com seu peso. O homem que tomou os remos era o mesmo barqueiro que tinha levado os d'Aunay.

— Então, monseigneur, estais satisfeito? — perguntou ele.

Tinha perdido o tom lamentoso, parecia dez anos mais jovem e não poupava mais as suas forças.

— Perfeito, meu velho Lormet! Pregaste tua peça aos rapazes, e às mil maravilhas — disse o gigante. — Agora já sei o que queria saber.

Inclinou-se para trás no barco, estendeu as pernas monumentais, e deixou pender sua manzorra para dentro da água negra.

 

AS PRINCESAS ADÚLTERAS

 

O BANCO TOLOMEI

Messer Spinello Tolomei tomou um ar pensativo, e depois, baixando a voz como se receasse que alguém estivesse escutando às portas, disse:

— Duas mil libras adiantadas? É soma que vos convenha, monsenhor?

Seu olho esquerdo estava fechado. Seu olho direito brilhava, inocente e tranqüilo.

Embora estivesse instalado na França há muitos anos, não pudera desfazer-se de seu sotaque italiano. Era um homem gordo, de duplo queixo, pele morena. Seus cabelos grisalhos cuidadosamente cortados caíam sobre a gola de sua roupa de fina lã, rematada com pele e esticada na cintura, sobre o ventre em pêra. Quando falava, levantava as mãos gordas e pontudas e esfregava-as docemente uma contra a outra. Seus inimigos afirmavam que aquele olho aberto era o da mentira e que mantinha fechado o da verdade.

Aquele banqueiro, um dos mais poderosos de Paris, tinha maneiras de bispo. Naquele instante, pelo menos, porque era a um prelado que ele se dirigia.

O prelado era João de Marigny, jovem esbelto, elegante, quase gracioso, o mesmo que na véspera, no tribunal episcopal armado no adro de Notre-Dame, chamara a atenção pelas atitudes lânguidas, antes de se encolerizar tanto contra o grão-mestre. Era irmão de Enguerrand de Marigny e fora nomeado para o arcebispado de Sens, do qual dependia a diocese de Paris, a fim de levar a bom termo o processo dos templários. Estava, portanto, bem próximo dos grandes negócios do reino.

— Duas mil libras? — perguntou ele.

Parecia um pouco nervoso, e voltou-se para esconder a surpresa feliz que lhe causava a soma enunciada pelo banqueiro. Não esperava tanto.

— Está bem, essa quantia convém-me bastante — disse ele, afetando um ar displicente. — E eu gostaria que as coisas se arranjassem o mais depressa possível.

O banqueiro observava-o como um gato observa um belo pássaro.

— Mas podemos resolver agora mesmo — disse ele.

— Está muito bem — concordou o jovem arcebispo. — E quando desejais que vos tragam os...

Interrompeu-se, pois tivera a impressão de ouvir um ruído atrás da porta. Mas não. Tudo estava tranqüilo. Percebiam-se apenas os rumores habituais da manhã na Rue des Lombards, os gritos dos amoladores, dos aguadeiros, dos vendedores de legumes, de cebolas, de agriões da fonte, de queijo branco e de carvão. "Leite, comadres, leite... Tenho bom queijo de Champanha!... Carvão! Um saco por um denier..." Pelas janelas em três ogivas, feitas à moda sienense, a luz vinha iluminar docemente as ricas tapeçarias das paredes com seus motivos guerreiros, as credencias de carvalho encerado, o grande cofre guarnecido de ferro.

— Os objetos? — perguntou Tolomei, terminando a frase do arcebispo. — Quando vos parecer melhor, monsenhor, quando vos parecer melhor.

Aproximara-se de uma comprida mesa de trabalho, coberta de penas de ganso, rolos de pergaminho, tabuinhas e estiletes. Tirou da gaveta dois sacos.

— Mil em cada — disse ele. — Tomai-os agora, se quiserdes. Estavam preparados para vós. E fareis o favor, monsenhor, de assinar este recibo...

E estendeu a João de Marigny uma folha também já preparada.

— Pois não — disse o arcebispo, tomando uma pena de ganso.

Mas quando ia assinar, hesitou. No recibo estavam enumerados os "objetos" que ele devia entregar a Tolomei para que aquele os negociasse: material de igreja, cibórios de ouro, cruzes preciosas, armas raras, coisas provenientes dos bens arrebatados aos templários na diocese de Sens. Ora, todos aqueles bens deveriam ter ido para o tesouro real, ou para a ordem dos hospitalários. Era um desvio, uma bela malversação que o jovem arcebispo estava cometendo, e sem perda de tempo. Apor uma assinatura embaixo daquela lista, quando o grão-mestre fora queimado na noite anterior...

— Eu preferia... — disse ele.

— Que os objetos não fossem vendidos na França? — atalhou o sienense. — Mas isso está implícito, monsenhor. Non sono pazzo, não sou um louco.

— Eu queria dizer... este recibo.

— Ninguém, a não ser eu, jamais o verá. Tenho tanto interesse nisso quanto vós. Isso é apenas para o caso de acontecer uma desgraça a um de nós... que Deus nos guarde.

Persignou-se e depois, rapidamente, por trás da mesa, fez figas com os dedos da mão direita.

— Não será pesado demais? — continuou ele, designando os dois sacos, como se para ele o negócio não necessitasse mais ser discutido. — Quereis que vos mande acompanhar?

— Obrigado, tenho meu servo embaixo — respondeu o arcebispo.

— Então... aqui, por favor — disse Tolomei, marcando com o dedo, na folha, o lugar onde o arcebispo devia assinar.

Este não podia mais recuar. Quando se é forçado a tomar cúmplices, fica-se obrigado a ter confiança neles...

— Aliás, monsenhor, vede bem — continuou o banqueiro — que, dando uma soma dessas, não pretendo ter grandes lucros sobre vós. Terei o trabalho e não os lucros. Mas quero vos ajudar porque sois homem poderoso, e a amizade dos homens poderosos é mais preciosa do que o ouro.

Dissera aquilo com um tom bonacheirão, mas seu olho esquerdo continuava fechado.

"Afinal este sujeito fala a verdade", pensou João de Marigny. "Tomam-no como um espertalhão, mas sua esperteza é ser franco..."

E assinou o recibo.

— A propósito, monsenhor — indagou Tolomei —, sabeis como o rei recebeu os cães ingleses que lhe enviei ontem?

— Ah! Como? Então fostes vós que lhe destes aquele grande lebréu que não o deixa mais e que ele chama Lombardo?

— Deu-lhe o nome de Lombardo? Fico satisfeito ao saber. O rei é um homem de espírito — disse Tolomei, rindo. — Imaginai que ontem pela manhã, monsenhor...

Ia contar a história, quando bateram à porta. Um empregado apareceu, anunciando que o Conde Roberto d'Artois pedia para ser recebido.

— Bem. Vou vê-lo — disse Tolomei, despedindo o empregado com um gesto.

João de Marigny ficara de novo sombrio.

— Eu preferiria... não o encontrar — disse ele.

— Sem dúvida, sem dúvida — replicou o banqueiro com doçura. — Monseigneur d'Artois é um grande falador. Iria contar por toda parte que vos viu aqui...

Agitou uma campainha. Um reposteiro afastou-se imediatamente e um jovem de gibão justo entrou na sala. Era o rapaz que, na véspera, quase derrubara o rei da França.

— Meu sobrinho — disse-lhe o banqueiro —, acompanha monsenhor sem passar pela galeria, cuidando que ele não encontre ninguém. E leva isto até a rua — acrescentou, pondo-lhe os dois sacos de ouro nos braços. — Até à vista, monsenhor.

Messer Spinello Tolomei inclinou-se bem baixo para beijar a ametista do dedo do prelado. Depois afastou o reposteiro.

Quando João de Marigny acabou de sair o sienense encaminhou-se para a mesa, apanhou o recibo que o outro tinha assinado, enrolou-o cuidadosamente, murmurando:

— Coglione! Vanesio, ladro, ma sopratutto coglione! * E agora seu olho esquerdo estava aberto. Pôs o documento numa gaveta e saiu, por sua vez, para receber a outra visita.

* Poltrão! Vaidoso, ladrão, mas sobretudo poltrão! (N. do E.)

 

Atravessou a grande galeria iluminada por dez janelas onde estavam instalados seus balcões, porque Tolomei não era apenas banqueiro, mas importador e negociante de mercadorias de toda espécie, desde especiarias e couros de Córdova até lãs de Flandres, tapetes de Chipre, bordados a ouro e essências da Arábia.

Uma porção de caixeiros se ocupava dos fregueses que entravam e saíam sem cessar. Os contadores faziam seus cálculos com o auxílio de tabuleiros quadriculados especiais, sobre cujas casas empilhavam tentos de cobre. E a galeria inteira ressoava com um zumbido surdo.

Sempre avançando rapidamente, o gordo sienense cumprimentava alguém, retificava uma cifra, descompunha um empregado, ou recusava, com um "niente" pronunciado entre os dentes, um pedido de crédito.

Roberto d'Artois estava debruçado sobre um balcão de armas do Levante, e sopesava um pesado punhal tauxiado.

O gigante voltou-se com um movimento brusco quando o banqueiro lhe pousou a mão sobre o braço, e tomou aquele ar rústico e jovial que afetava geralmente.

— Então — indagou Tolomei —, precisais de mim?

— Isso mesmo — respondeu o gigante. — Quero pedir duas coisas.

— Imagino que a primeira seja dinheiro!?

— Psiu! — ralhou d'Artois. — Será preciso que Paris inteira saiba, usurário dos meus pecados, que eu devo fortunas? Vamos conversar na sala.

Saíram da galeria. Uma vez no gabinete, e com a porta fechada, Tolomei disse:

— Monseigneur, se é para novo empréstimo, receio que não seja mais possível.

— Por quê?

— Caro Monseigneur Roberto — disse pausadamente Tolomei —, quando instaurastes processo contra vossa tia Mafalda por causa da herança do Conde d'Artois, fui eu quem pagou as despesas. Esse processo, vós o perdestes.

— Mas perdi-o devido à infâmia, bem o sabes — exclamou d'Artois. — Perdi por causa das intrigas daquela cadela da Mafalda. Que ela rebente!... Negócio de canalhas! Deram-lhe o Artois, para que o Franco-Condado volte à coroa por intermédio de sua filha. Mas se houvesse justiça, eu devia ser par do reino e o mais rico barão da França! E serei, estás ouvindo, Tolomei, eu serei!

E seu punho enorme batia sobre a mesa.

— É o que espero, meu caro — disse Tolomei, sempre calmo. — Mas enquanto esperamos perdestes vosso processo.

Deixara suas maneiras eclesiásticas, e usava para com d'Artois de maior familiaridade do que para com o arcebispo.

— Recebi, ainda assim, o condado de Beaumont-le-Roger, com cinco mil libras de renda, e o Castelo de Conches, onde moro — respondeu o gigante.

— De acordo — disse o banqueiro. — Mas isso não vos levou a reembolsar-me; ao contrário.

— Não consigo que me paguem minhas rendas. O Tesouro deve-me uma porção de anos atrasados...

— Dos quais já tendes pedido emprestado uma boa parte. Tivestes necessidade de dinheiro para reparar os telhados de Conches e as cavalariças...

— Elas tinham se incendiado — disse Roberto.

— Bom. E depois, precisastes ainda de dinheiro para manter vossos partidários no Artois.

— E que faria eu sem eles? É graças a eles, a Fiennes e aos outros, que ganharei minha causa um dia, e de armas na mão se for preciso... E depois dize-me, messer banqueiro ...

E o gigante mudou de tom, como se já estivesse farto de bancar a criança ouvindo sermões. Tomou o banqueiro pela roupa, entre o polegar e o indicador, e começou a levantá-lo devagarinho.

— Dize-me pois... pagaste meu processo, minhas cavalariças e toda a bendita tralha, estou de acordo, mas não fizeste alguns negociozinhos bem bons à minha custa? Quem te contou que os templários iam ser presos e te aconselhou a pedir-lhes empréstimos que nunca mais tiveste de devolver? Quem anunciou a limagem das moedas, que te permitiu colocar todo o ouro em mercadorias, que depois vendeste pelo dobro? Hein? Quem foi?

Porque Tolomei, obedecendo a uma tradição que jamais se perdeu entre os grandes banqueiros, tinha seus informantes junto aos conselhos de governo, e o principal deles era Roberto d'Artois, por ser amigo e comensal de Carlos de Valois, que lhe contava tudo.

Tolomei soltou-se, desamarrotou a prega de sua roupa, sorriu e disse, com a pálpebra esquerda sempre fechada:

— Reconheço, monseigneur, reconheço. Vós me informastes bem ultimamente, algumas vezes. Mas, ai de mim!...

— Como, ai de mim?

— Ai de mim! Os lucros que me proporcionastes estão longe de cobrir as somas que vos adiantei.

— É verdade?

— É verdade, monseigneur — disse Tolomei, com o ar mais inocente.

Mentia, e estava certo de poder fazê-lo impunemente, porque Roberto d'Artois, tão hábil na intriga, pouco entendia dos cálculos de dinheiro.

— Ah! — disse este último, aborrecido.

Cocou o rosto, balançou o queixo da direita para a esquerda, e disse:

— Apesar disso, os templários... Devias estar bem satisfeito, esta manhã, não é mesmo? — perguntou ele.

— Sim e não, monseigneur. Sim e não. Há muito tempo já que eles não mais prejudicavam nosso negócio... Contra quem vão se voltar agora? Contra nós, os lombardos, como dizem... O ofício de mercador de ouro não é fácil. E entretanto, sem nós nada se poderia fazer... A propósito — acrescentou Tolomei —, será que Monseigneur de Valois não vos disse que vão mudar mais uma vez a cotação da libra parisis, conforme ouviu?

— Não — respondeu d'Artois, que seguia sua idéia. — Mas desta vez eu apanho Mafalda. Apanho Mafalda porque apanhei suas filhas e sua sobrinha. E vou estrangulá-las... crac... deste jeito!

O ódio endurecia-lhe os traços e dava-lhe um aspecto quase belo. Aproximara-se novamente de Tolomei e o banqueiro pensava: "Este homem, com a sua obsessão, é capaz de qualquer coisa... De qualquer maneira, estou disposto a emprestar-lhe ainda quinhentas libras... É verdade que ele cheira a caça". Depois, falou:

— De que se trata?

Roberto d'Artois baixou a voz. Seus olhos brilhavam.

— As pequenas devassas têm amantes — disse ele —, e desde a noite passada eu sei quem são eles. Mas, bico calado, hein! Não quero que saibam... por enquanto!

O sienense pôs-se a refletir. Já lhe tinham dito aquilo e ele não acreditara.

— Em que isso vos pode servir? — perguntou ele.

— Servir-me? — exclamou d'Artois. — Mas vejamos, banqueiro, já imaginaste a vergonha? A futura rainha da França, apanhada como uma meretriz, com vadios... vai haver escândalo, repúdio! Toda a família de Borgonha mergulhada nessa lama até a boca, e Mafalda perde todo o crédito na corte, as heranças desaparecem das esperanças da coroa. Faço reabrir meu processo, e ganho!

Caminhava de lá para cá, fazendo vibrar o soalho, os móveis, os objetos.

— E sereis vós — perguntou Tolomei — quem tornará pública essa vergonha? Ireis procurar o rei...

— Não, messer, eu não. Não me ouviriam. Há outro... bem mais indicado para fazê-lo... mas que não está na França... E é somente a segunda coisa que vinha pedir-te.

Preciso de um homem seguro e que chame pouco a atenção para ir à Inglaterra levar uma mensagem.

— Para quem?

— Para a Rainha Isabel.

— Ah! Bah! — murmurou o banqueiro.

Depois houve um silêncio, durante o qual ouviram-se alguns ruídos da rua e os gritos dos bufarinheiros apregoando as suas mercadorias.

— É verdade que Mme Isabel não morre de amores por suas cunhadas da França — disse enfim Tolomei, que não tinha necessidade de ouvir mais para saber como d'Artois montara aquela conspiração. —- Sois muito amigo dela, penso eu, e estivestes na Inglaterra ainda há poucos dias?

— Voltei de lá na sexta-feira passada, e logo me pus ao trabalho.

— Mas por que não enviar a Mme Isabel um dos vossos homens, ou um mensageiro de Monseigneur de Valois?

— Meus homens são conhecidos e os de Monseigneur de Valois também, nesta terra onde todo mundo vigia todo mundo; e depressa me estragariam todo o plano. Pensei que um mercador, mas um mercador em quem se possa confiar, conviria mais. Tens várias pessoas que viajam por tua conta... Aliás, a mensagem nada terá que possa inquietar o portador.

Tolomei olhou para o gigante bem nos olhos, meditou um momento, depois sacudiu a campainha de bronze.

— Vou tentar, ainda uma vez, prestar-vos um serviço — disse ele.

O reposteiro afastou-se e o mesmo jovem que acompanhara o arcebispo reapareceu. O banqueiro apresentou-o:

— Guccio Baglioni, meu sobrinho, chegado de Siena há muito pouco tempo. Não creio que os prebostes e os sargentos reais do nosso amigo Marigny já o conheçam bem... embora ontem pela manhã — acrescentou Tolomei, a meia voz, olhando para o jovem com sua severidade fingida — ele se tenha distinguido por uma bela proeza em relação ao rei da França... Como o achais?

Roberto d'Artois considerou Guccio.

— Bonito moço — disse ele, rindo. — Bem-feito, panturrilhas firmes, cintura fina, olhos de trovador e astúcia suficiente no olhar. Bonito moço. Será ele o mensageiro, Messer Tolomei?

— É como se fosse eu mesmo... — disse o banqueiro — menos gordo e mais jovial. Eu fui como ele, imaginai, mas sou o único que se recorda disso.

— Se o Rei Eduardo o vir, arriscamo-nos a que ele não volte nunca.

E com isso o gigante desatou numa gargalhada, a que se juntaram a do tio e a do sobrinho.

— Guccio — disse Tolomei, cessando de rir —, vais conhecer a Inglaterra. Partirás amanhã bem cedo, chegarás a Londres e irás à casa de nosso primo Albizzi; e de lá, com o auxílio dele, irás a Westmoutiers entregar à rainha, e a ela apenas, a mensagem que monseigneur vai escrever. Logo mais te direi com mais pormenores o que deves fazer.

— Eu preferiria ditar — disse d'Artois. — Sirvo-me melhor de um chuço do que dessas benditas penas de ganso.

Tolomei pensou: "É desconfiado, além do mais, o sujeito; não quer deixar vestígios".

— Como quiserdes, monseigneur.

E ele próprio escreveu, sob ditado, a seguinte carta:

Senhora,

As coisas que tínhamos adivinhado são verdadeiras e mais vergonhosas do que se podia acreditar. Sei de quem se trata e descobri-os tão bem que não poderão escapar, se nos apressarmos. Mas vós, apenas, tendes poder bastante para realizar o que tencionamos, e pôr termo, com vossa vinda, a tanta vilania, que mancha assim a honra de vossos parentes mais próximos. Não tenho outro desejo senão o de ser, em tudo, vosso servidor, de corpo e alma.

— A assinatura, monseigneur? — perguntou Guccio.

— Ei-la — disse d'Artois, estendendo para o jovem um anel de ferro. — Entregarás isto a Mme Isabel. Ela saberá ... mas estás certo de conseguir falar com ela assim que chegares? — acrescentou ele, como se tivesse uma dúvida.

— Bah! monseigneur — disse Tolomei —, não somos de todo desconhecidos dos soberanos da Inglaterra. Quando o Rei Eduardo veio no ano passado, com Mme Isabel, para as grandes festas em que fostes armado cavaleiro, com os filhos do rei... pois bem, ele pediu emprestado ao nosso grupo de mercadores lombardos vinte mil libras. Todos nos associamos para fornecê-las, e até agora não nos devolveram.

— Também ele? — perguntou d'Artois. — A propósito, banqueiro, e aquela... primeira coisa que vinha pedir?

— Ah! Eu não vos resistirei jamais, monseigneur — disse Tolomei, suspirando.

E foi buscar um saco de quinhentas libras que entregou ao visitante, acrescentando:

— Juntaremos isto à vossa conta, assim como a viagem do mensageiro.

— Ah! banqueiro, banqueiro — disse d'Artois, com um grande sorriso que lhe iluminou o rosto —, és um amigo. Quando tiver recuperado meu condado paterno, farei de ti meu tesoureiro.

— Conto mesmo com isso, monseigneur — disse o outro, inclinando-se.

— Ou, senão, hei de te levar comigo para o inferno. Farias muita falta, se não te levasse.

E o gigante saiu, grande demais para a porta, fazendo saltar na mão o saco de ouro como uma pela.

— Destes-lhe mais dinheiro, tio? — disse Guccio, sacudindo a cabeça em reprovação. — Sabeis, entretanto, muito bem que...

— Guccio mio, Guccio mio — respondeu docemente o banqueiro (e agora ele tinha os dois olhos bem abertos) —, lembra-te sempre disto: os segredos dos grandes são os juros do dinheiro que lhes emprestamos. Nesta mesma manhã, Monsenhor João de Marigny e Monseigneur d'Artois deram-me sobre eles títulos de crédito que valem mais do que o ouro, e que saberemos negociar no devido tempo. Quanto ao ouro... vamos recuperar uma parte dele.

Ficou pensativo um instante e depois disse:

— De volta da Inglaterra farás um desvio e pássaras por Neauphle-le-Vieux.

— Está bem, tio — disse Guccio, sem entusiasmo.

— Nosso empregado de lá não consegue receber uma soma que os castelãos de Cressay nos devem. O pai morreu há pouco. Os herdeiros recusam-se a pagar. Parece que não têm mais nada.

— E como fazer, se eles não têm mais nada?

— Bah! Eles têm as paredes, têm uma terra, talvez parentes. Devem pedir emprestado em algum lugar para restituir o que é nosso. Senão, irás procurar o preboste, mandas arrebanhar tudo e vendes. É duro, é triste, eu sei. Mas um banqueiro precisa habituar-se a ser duro. Nada de piedade para com pequenos clientes, senão não poderíamos servir mais aos grandes. Não é apenas o nosso dinheiro que corre. Em que estás pensando, figlio mio?

— Na Inglaterra, tio — respondeu Guccio.

A volta por Neauphle parecia-lhe uma estopada, que aceitava, porém, com boa vontade. Toda a sua curiosidade, os seus olhos de adolescente, já estavam voltados para Londres. Ia atravessar o mar pela primeira vez... a vida de mercador lombardo era decididamente uma vida agradável e que apresentava belas surpresas. Partir, correr caminhos, levar a príncipes mensagens secretas...

O ancião contemplava o sobrinho com ar de profunda ternura. Guccio era a única afeição daquele coração astuto e gasto.

— Vais fazer uma bela viagem, e eu te invejo — disse ele. — Poucas pessoas, na tua idade, tiveram ocasião de ver tantas regiões. Trata de instruir-te, espia, olha tudo, pergunta e fala pouco. Toma cuidado quando te oferecerem bebida; não dês às garotas mais dinheiro do que elas valem, e toma cuidado de te descobrir diante das procissões... E se cruzares com um rei em teu caminho, age de maneira que desta vez não me custe um cavalo ou um elefante.

— É verdade, tio — disse Guccio, sorrindo —, que Mme Isabel é tão linda como dizem?

 

A CAMINHO DE LONDRES

Certas pessoas sonham sempre com viagens e aventuras para se dar, aos olhos dos outros e aos seus próprios, colorido de heróis. Depois, quando estão dentro dos fatos e surge um perigo, começam a pensar: "Que tolice me levou a fazer isto, e que necessidade tinha eu de me meter onde estou?" Era esse, exatamente, o caso do jovem Guccio Baglioni. Nada ele desejara tanto como conhecer o mar. Mas agora que navegava sobre ele, daria fosse o que fosse para se ver longe.

Era a época das marés de equinócio, e poucos navios naquele dia tinham levantado âncora. Tomando certa atitude de fanfarrão no cais de Calais, espada ao lado e capa atirada para trás, sobre o ombro, Guccio acabara por encontrar um chefe de barco que concordara em recebê-lo. Tinham partido ao anoitecer, e a tempestade se levantara quase à saída do porto. Fechado num recinto arranjado sob a ponte, junto do mastro grande ("É o lugar onde há menos balanço" — dissera o chefe) e com um tabique de madeira a servir de leito, Guccio estava passando a pior noite de sua vida.

As ondas batiam contra o navio como se fossem golpes de aríete, e Guccio sentia o mundo balançar diante de si. Rolava do leito para o chão e se debatia longamente numa escuridão total, ora indo de encontro ao vigamento, ora contra os rolos de cordas endurecidas pela água, ou contra as caixas mal equilibradas, que rolavam ruidosamente. E o jovem procurava agarrar-se a coisas invisíveis que lhe fugiam de sob os dedos. Aquela casca de noz parecia prestes a rebentar. Entre dois arquejos do temporal, Guccio ouvia as velas estalarem e massas de água derramarem-se pela ponte. Perguntava-se se todo o equipamento não teria sido varrido, ficando ele como único ser vivo a bordo de um navio desconjuntado que as águas atiravam contra o céu, para lançar imediatamente sobre os abismos, em quedas que pareciam jamais ter fim.

"Vou morrer, com certeza", pensava Guccio. "Como é idiota morrer desta maneira, na minha idade, desaparecido no meio do mar. Jamais tornarei a ver meu tio, jamais tornarei a ver o sol. Se ao menos tivesse esperado um ou dois dias em Calais! Que tolice! Mas se me livrar desta, per Ia Madonna, fico em Londres, faço-me aguadeiro, seja lá o que for, mas não hei de tornar a pôr os pés num navio."

Enfim, agarrou-se com os dois braços ao pé do mastro grande e, de joelhos, no escuro, aferrado ali, trêmulo, o estômago revoltado, as vestes empapadas, ficou à espera do fim, fazendo promessas a Santa Maria delle Nevi, a Santa Maria delia Scala, a Santa Maria dei Servi, a Santa Maria dei Carmine, isto é, a todas as igrejas de Siena que conhecia.

Com a aurora a tempestade amainou bruscamente. Guccio, exausto, olhou em torno de si: as caixas, as velas, as lonas, as âncoras e o cordame amontoavam-se em desordem assustadora, e ao fundo do barco, sobre o soalho de tábuas desnudas, um lençol de água ondulava.

O alçapão que dava acesso à coberta abriu-se e uma voz rude gritou:

— Olá, signor! Pudestes dormir?

— Dormir? — respondeu Guccio, num tom cheio de raiva. — Eu poderia era estar morto.

Lançaram-lhe uma escada de cordas e ajudaram-no a içar-se para a coberta. Um grande sopro frio envolveu-o e causou-lhe arrepios sob as vestes molhadas.

— Não poderíeis avisar-me que haveria um temporal? — disse Guccio ao chefe do barco.

— Bah! meu gentil-homem, é verdade que tivemos uma noite má. Mas parecíeis tão apressado... E depois, para nós, é coisa corrente isso — respondeu o chefe. — Agora estamos perto da costa.

Era um velho robusto, com olhos pretos e pequeninos, que contemplava Guccio de uma forma um tanto zombeteira.

Estendendo o braço para uma linha esbranquiçada que saía da bruma, o velho marinheiro acrescentou:

— Ali está Dover.

Guccio suspirou, envolvendo-se melhor em seu manto.

— Dentro de quanto tempo chegaremos? O outro sacudiu os ombros e respondeu:

— Quatro ou cinco horas no máximo, porque temos vento de leste.

Sobre a coberta, três marinheiros estavam deitados, exaustos. Um outro, agarrado ao braço do leme, mordia um pedaço de carne salgada, sem tirar os olhos da proa do barco e da costa da Inglaterra.

Guccio sentou-se ao lado do velho marinheiro, ao abrigo de um pequeno tabique de madeira, que evitava o vento, e apesar da claridade do dia, do frio e dos vagalhões, caiu adormecido.

Quando acordou, o porto de Dover exibia diante dele sua bacia retangular e suas fileiras de casas baixas, de paredes grosseiras, com telhados carregados de pedras. À direita da barra, destacava-se a casa do xerife, guardada por soldados. O cais, atravancado de mercadorias abrigadas sob telheiros, fervilhava de uma multidão ruidosa. A brisa trazia odores de peixe, de alcatrão e de madeira podre. Pescadores circulavam, puxando suas redes e carregando aos ombros seus remos pesados. Crianças empurravam, pelo chão, sacos maiores do que elas.

O barco, velas arriadas, entrou a remo na bacia.

A juventude depressa recupera as forças e as ilusões. Os perigos superados só servem para lhe dar mais confiança em si mesma, e para impeli-la a outras proezas. Um sono de algumas horas fora o suficiente para que Guccio esquecesse os terrores da noite. Não estava mesmo longe de atribuir a si todo o mérito de ter o barco dominado a tempestade. Via naquilo o sinal de uma boa estrela e a prova de seu faro na escolha de marinheiros hábeis. Em pé sobre a coberta, numa atitude de conquistador, olhava com apaixonada curiosidade o reino de Isabel, que lhe parecia vir ao encontro.

A mensagem de Roberto d'Artois cosida em suas vestes e o anel de ferro colocado em seu indicador pareciam-lhe penhores de um grande futuro. Ia entrar na intimidade do poder, conhecer reis e rainhas, saber o conteúdo dos tratados mais secretos. Com embriaguez, ultrapassava o tempo: via-se já um embaixador de prestígio, confidente ouvido dos poderosos da Terra, diante do qual as mais altas personagens se inclinavam. Participaria dos conselhos dos príncipes... Não tinha o exemplo de seus compatriotas Biccio e Musciato Guardi, os dois famosos financeiros toscanos que os franceses chamavam Biche e Mouche *, que tinham sido, durante mais de dez anos, os tesoureiros, os embaixadores, os familiares do austero Filipe, o Belo? Ele faria melhor ainda, e um dia haviam de contar a história do ilustre Guccio Baglioni, que se iniciara na vida quase derrubando, numa esquina de Paris, o rei da França...

* Corça e mosca

 

O rumor do porto já chegava até ele como uma aclamação. O velho marinheiro atirou uma prancha que ligou o barco ao cais. Guccio pagou a passagem e trocou o mar pela terra firme. Mas suas pernas haviam tomado o hábito de se dobrar por causa do movimento das vagas e, cambaleando, ele quase se estendeu sobre o chão escorregadio.

Já que não transportava mercadorias, não lhe foi necessário passar pelo "tráfico", isto é, pela alfândega. Ao primeiro garoto que se ofereceu para transportar-lhe a mala pediu para ser conduzido à casa do lombardo do lugar.

Os banqueiros e mercadores italianos daquela época possuíam sua própria organização de correio e transporte. Reunidos em grandes "companhias" que traziam o nome de seu fundador, tinham casas em todas as cidades principais e em todos os portos. Aquelas casas eram como as sucursais dos bancos modernos, que tivessem, anexos, um serviço particular de correio e um serviço de viagem.

O agente da casa de Dover pertencia à companhia Albizzi. Mostrou-se feliz por receber o sobrinho do chefe da companhia Tolomei e tratou-o o melhor que pôde. Em casa dele, Guccio pôde lavar-se e suas vestes foram passadas a ferro. Trocaram-lhe seu ouro francês por ouro inglês, e serviram-lhe uma sólida refeição, enquanto lhe preparavam um cavalo.

Durante a refeição Guccio contou como fora a tempestade que suportara, atribuindo-se um papel de destaque no sucedido.

Estava ali um homem chegado na véspera, chamado Boccaccio, viajante por conta da companhia Bardi. Assistira, quatro dias antes, ao suplício de Tiago de Molay. Com seus ouvidos ouvira a maldição, e se servia, para descrever a tragédia, de uma ironia precisa e macabra que encantou a mesa italiana. Era indivíduo de uns trinta anos — o que vale dizer que pareceu a Guccio um homem idoso —, o rosto inteligente e vivo, de lábios delgados, e um olhar que parecia se divertir com tudo. Tendo de ir também a Londres, Guccio combinou fazerem a viagem juntos.

Partiram ao meio-dia, escoltados por um criado.

Lembrando-se dos conselhos do tio, Guccio fez falar seu companheiro, que aliás não desejava senão isso. O Signor Boccaccio parecia ter visto muita coisa. Andara em toda parte: Sicília, Veneza, Espanha, Flandres, Alemanha e até Oriente. E saíra-se habilmente de todas as aventuras. Conhecia os costumes de todos esses lugares, tinha sua opinião pessoal sobre o valor comparado das religiões, desprezava os monges e detestava a Inquisição. Parecia também interessar-se muito pelas mulheres, e dava a entender que tinha grande prática e que sabia, a propósito delas, ilustres ou obscuras, grande quantidade de histórias curiosas. Pouco caso fazia da virtude, e sua linguagem temperava-se, falando das damas, com imagens que tornavam Guccio sonhador. Com tudo aquilo, dava a impressão de ter tanta audácia quanto astúcia. Um espírito livre, o Signor Boccaccio, e bem acima do comum.

— Eu gostaria de escrever isso tudo, se tivesse tempo — disse a Guccio. — Toda essa seara de histórias e de idéias, que recolhi ao longo das minhas viagens.

— Por que não escreveis, signor? — perguntou Guccio. O outro suspirou, como se confessasse algum sonho não realizado.

— Muito tarde... Uma pessoa não se faz escritor na minha idade — disse. — Quando o ofício que se tem é ganhar ouro, depois dos trinta anos não se pode fazer outra coisa. E além disso, se eu escrevesse tudo quanto sei arriscava-me a morrer queimado.

Aquela viagem em companhia de um camarada tão interessante, através de um belo campo verde, encantou Guccio. Aspirava com prazer o ar da primavera. As ferraduras dos cavalos pareciam-lhe acompanhar a marcha de uma canção feliz, e ele ia formando de si próprio uma opinião tão boa como se tivesse compartilhado de todas as aventuras de seu vizinho.

Ao anoitecer pararam num albergue. As paradas, numa viagem, são propícias às confidencias. Bebendo diante do fogo picheis de zurrapa, muito bem temperada com gengibre, pimenta e cravos de cheiro, enquanto lhes preparavam a refeição e o leito, o Signor Boccaccio contou a Guccio que tinha uma amante francesa, da qual lhe nascera um filho no ano anterior, menino que fora batizado com o nome de Giovanni15.

— Dizem que as crianças nascidas fora do casamento são mais vivas e vigorosas do que as outras — comentou sentenciosamente Guccio, que tinha algumas boas banalidades de reserva para alimentar a conversa.

— Sem dúvida Deus lhes dá dons de espírito e de inteligência para compensá-las do que lhes tira em herança e respeito. Ou, simplesmente, têm que se bater na vida um pouco mais duramente do que os outros, e não pensam em ser coisa alguma senão por si próprias — respondeu o Signor Boccacio.

— O seu, em todo o caso, terá um pai que poderá ensinar-lhe muito.

— A menos que venha a detestar o pai, por tê-lo posto ao mundo em tão más condições — disse o viajante, levantando os ombros.

Dormiram no mesmo quarto, partilhando do mesmo catre, e às cinco horas da manhã puseram-se novamente a caminho. Retalhos de bruma agarravam-se ainda à terra. O Signor Boccaccio ia calado: já não era o mesmo homem da véspera. O tempo estava agradável e o céu depressa clareou. Guccio descobriu em torno de si um campo cuja graça o arrebatava. As árvores estavam ainda nuas, mas o ar cheirava a seiva em elaboração; e a terra já se mostrava verde, mercê de uma erva fresca e tenra que a recobria. A hera corria sobre as paredes das casas baixas e dos solares com torres iguais. Inúmeras sebes recortavam os campos e as colinas. A paisagem, cavada em pequenos vales e orlada de florestas, o brilho azul e verde do Tâmisa entrevisto do alto de uma encosta, o encontro com um grupo de caçadores com suas matilhas, à saída de uma aldeia, tudo seduzia Guccio. "A Rainha Isabel tem um belo reino", repetia consigo mesmo.

À medida que as léguas se passavam, aquela rainha, diante da qual iria aparecer, tomava cada vez mais lugar em seu pensamento. Cumprindo a missão que o trouxera, por que não tentaria ao mesmo tempo agradar? Seria talvez devido ao interesse de Isabel que Guccio alcançaria os altos destinos para os quais se sentia feito. A história dos príncipes e dos impérios oferecia vários exemplos de coisas ainda mais espantosas. "Por ser rainha, ela não deixa de ser mulher", dizia Guccio em seus pensamentos; "tem vinte e dois anos e um esposo que não a ama. Os senhores ingleses com certeza não a cortejam, receosos de desagradarem ao rei. Ao passo

que eu estou chegando, sou um mensageiro secreto. Para chegar até aqui afrontei a tempestade... ponho um joelho em terra, cumprimento-a com o chapéu amplamente, beijo a fímbria de seu vestido..."

Começava já a polir as palavras pelas quais iria colocar seu coração, sua astúcia e seu braço a serviço da jovem rainha loira... "Senhora, não sou nobre, mas sou cidadão livre de Siena, e isso vale bem um título fidalgo. Tenho dezoito anos, e nenhum desejo mais caro do que contemplar vossa beleza e vos oferecer minha alma e meu sangue..."

— Chegaremos dentro de poucos momentos — disse o Signor Boccaccio.

Tinham alcançado os subúrbios de Londres sem que Guccio se apercebesse disso. As casas mostravam-se mais próximas umas das outras e se perfilavam ao longo do caminho. O cheiro bom da floresta tinha desaparecido e o ar tresandava a turfa queimada.

Guccio olhava em torno de si com surpresa. Seu tio Tolomei falara-lhe numa cidade extraordinária, e ele via apenas intermináveis sucessões de aldeias feitas de casebres, cujas paredes eram negras, e de ruas sujas, onde passavam mulheres magras carregadas com fardos pesados, crianças em andrajos e soldados de má catadura.

Subitamente, no meio de grande aglomeração de gente, de cavalos e de carroças, os viajantes se viram diante da Ponte de Londres. Duas torres quadradas fortificavam a entrada, e entre elas, à noite, estendiam-se correntes e fechavam-se enormes portas. A primeira coisa que Guccio observou foi uma cabeça humana, toda sangrenta, plantada sobre um dos piques que eriçavam aquelas portas. Os corvos voltejavam em torno daquele rosto de olhos furados.

— A justiça do rei dos ingleses funcionou esta manhã — disse o Signor Boccaccio. — É assim que terminam os criminosos ou aqueles que são considerados como tal para os que se querem ver livres deles.

— Curioso estandarte para receber os estrangeiros — disse Guccio.

— Uma forma de preveni-los de que não chegam a uma cidade de galanteria e ternuras.

Aquela ponte era,, então, a única a cruzar o Tâmisa. Formava uma verdadeira rua construída sobre a água, cujas casas de madeira, apertadas umas contra as outras, abrigavam toda espécie de negócios.

Vinte arcos de sessenta pés de altura sustentavam aquele edifício extraordinário. Foram necessários quase cem anos para que o construíssem, e os londrinos muito se orgulhavam dele.

Uma água turva fervia em torno dos arcos, roupa-branca secava nas janelas, mulheres despejavam baldes no rio.

Ao lado da Ponte de Londres, o Ponte Vecchio, em Florença, parecia apenas um brinquedo na lembrança de Guccio, e o Arno, junto do Tâmisa, não passava de um regato. Ele fez ao companheiro essa observação, e o outro respondeu:

— Mas ainda assim somos nós que lhes ensinamos tudo.

Levaram cerca de três quartos de hora para passar ao outro lado, de tal modo a multidão era densa, e tenazes os mendigos que se agarravam às suas botas.

Chegando à outra margem, Guccio entreviu, à direita, a torre, cuja enorme e trágica massa se recortava sobre o céu cinzento. Depois, seguindo o Signor Boccaccio, meteu-se na City. O ruído e agitação que reinavam pelas ruas, aquele rumor estranho sob um céu plúmbeo, e o pesado cheiro de turfa espalhado sobre a cidade, os gritos que saíam das tabernas, a audácia das moças desavergonhadas, a brutalidade dos soldados vociferantes, tudo parecia a Guccio ao mesmo tempo curioso e sufocante. Paris surgia subitamente em sua lembrança como uma cidade clara, luminosa, enquanto Londres, em pleno meio-dia, dava a impressão de descambar para a noite.

Ao fim de trezentos passos, os viajantes viraram à esquerda, para a Lombard Street, onde todos os bancos italianos tinham seus estabelecimentos, anunciados por tabuletas pintadas, de ferro forjado. Eram casas com pouca aparência externa, de um andar, dois, no máximo, mas muito bem cuidadas, com portas enceradas e grades nas janelas.

O Signor Boccaccio deixou Guccio diante do Banco Albizzi. Os companheiros de viagem separaram-se calorosamente, felicitando-se um ao outro pelo prazer de sua amizade nascente e prometendo rever-se bem depressa, em Paris. São coisas que se dizem, em viagem, mas que não se fazem...

 

EM WESTMINSTER

Messer Albizzi era um homem grande, seco, de comprido rosto moreno, sobrancelhas espessas e tufos de cabelos pretos, que saíam de sob o gorro. Recebeu Guccio com graça tranqüila e afabilidade de grão-senhor. De pé diante de sua mesa, o corpo magro apertado no traje de veludo azul-escuro guarnecido de botões de prata, Albizzi tinha o aspecto de um príncipe toscano.

Enquanto eram trocados os cumprimentos de uso, o olhar de Guccio ia das altas cadeiras de carvalho às tapeçarias de parede vindas de Damasco, dos tamboretes de madeiras preciosas, incrustados de marfim, aos ricos tapetes que cobriam inteiramente o soalho, da lareira monumental aos candelabros de prata maciça. E o jovem não podia deixar de fazer uma rápida avaliação: "Esses tapetes... sessenta libras cada um... esses candelabros, o dobro... A casa, se cada aposento tiver o tamanho deste, vale três vezes mais que a de meu tio". Porque apesar de se sonhar embaixador secreto e cavaleiro servidor de uma rainha, Guccio não deixava de ser mercador, filho, neto e bisneto de mercadores.

— Deveríeis ter embarcado em um dos meus navios... porque nós também somos armadores... e vindo por Bolonha — disse Messer Albizzi; — assim, meu primo, teríeis feito viagem mais confortável.

Mandou servir hipocraz, vinho aromatizado que se bebe enquanto se comem confeitos. Guccio explicou então o fim de sua viagem.

— Quereis uma audiência com a rainha? — indagou Albizzi, brincando com o grande rubi que trazia na mão direita. — Vosso tio Tolomei, que muito estimo, fez bem em mandar-vos ter comigo. Não vos esconderei que esse desejo, para qualquer outro irrealizável, para mim é coisa fácil de obter. Um dos meus principais clientes, e dos que me devem favores, chama-se Hugo Le Despenser.

— O amigo particular do Rei Eduardo? — interrogou Guccio.

— A patroa, você quer dizer, a favorita do rei! Não. Hugo, o pai. Sua influência é mais secreta, mas é grande. Serve-se habilmente do favor em que vive o filho, e se as coisas continuarem como vão, ele logo estará em vias de mandar no reino. Não é, precisamente, do partido da rainha...

— Mas então — disse Guccio —, será ele a pessoa a quem devo pedir apoio?

— Meu primo — cortou Albizzi, com um sorriso —, vós me pareceis ainda muito jovem. Aqui, como em qualquer lugar, há pessoas que, não pertencendo a um partido nem a outro, aproveitam-se dos dois, negaceando com um e outro. É suficiente, para isso, dosar os sorrisos e as palavras e saber arranjar seus trunfos com as fraquezas dos grandes. Conhecê-los, enfim, melhor do que eles próprios se conhecem. Eu sei o que posso fazer.

Chamou seu secretário, escreveu rapidamente algumas linhas num papel e dobrou-o.

— Ireis a Westmoutiers hoje mesmo, depois do jantar, meu primo — disse ele, assim que despediu o secretário —, e a rainha vos dará audiência. Para todos, sereis um mercador de pedras preciosas e de ourivesaria vindo da Itália expressamente, e por mim recomendado. Como todas as mulheres, Isabel gosta das coisas belas. Apresentando-lhe jóias, pode-reis desincumbir-vos de vossa missão.

Foi até um grande cofre, abriu-o e tirou uma caixa de veludo vermelho ornada com guarnições douradas.

— Eis vossas credenciais — disse ele.

Guccio levantou a tampa da caixa: anéis de pedras resplandecentes, pesados colares de pérolas, um espelho cercado de esmeraldas e diamantes alternados, repousavam no fundo da caixa.

— E se a rainha quiser adquirir alguma dessas jóias, que farei?

Albizzi sorriu.

— A rainha não vos comprará nada diretamente, porque não tem dinheiro de que disponha e suas despesas são vigiadas. Se ela desejar alguma coisa, mandará avisar-me. Mandei fazer para ela, no mês passado, três bolsas que ainda não me foram pagas.

Depois da refeição, tendo Albizzi se desculpado por se tratar do cardápio comum, digno não obstante das melhores mesas senhoriais, Guccio tornou a montar seu cavalo para ir a Westminster. Ia acompanhado por um criado do banco, espécie de guarda-costas metido numa cota preta de couro de búfalo, que levava o cofre preso ao cinto por uma corrente.

O coração de Guccio batia de orgulho e ele ia, queixo erguido, com seu ar de segurança, e contemplava a cidade como se no dia seguinte fosse se tornar o proprietário dela.

O palácio, imponente pelas proporções gigantescas, mas sobrecarregado com todos os ornamentos góticos, pareceu-lhe de bastante mau gosto, comparado aos que se construíam na Toscana, e particularmente em Siena, naqueles últimos anos. "Essa gente já tem pouco sol e, ao que me parece, faz tudo para impedir de passar o pouco que tem", pensava.

Chegou à entrada de honra e apeou sob sua abóbada, onde os homens do corpo de guarda se aqueciam em torno de grandes achas acesas. Um escudeiro aproximou-se.

— Signor Baglioni? Sois esperado. Vou conduzir-vos — disse ele, em francês.

Sempre escoltado pelo criado que levava o cofre de jóias, Guccio seguiu o escudeiro. Atravessaram um pátio rodeado de arcadas, depois outro, subiram uma ampla escadaria de pedra e penetraram nos aposentos. As abóbadas eram muito altas, e estranhamente sonoras; a luz era escassa. Ã medida que avançava através de uma sucessão de salas geladas e de galerias sombrias, Guccio esforçava-se em vão por conservar sua segurança, mas sentia-se como que diminuir de tamanho. Naquele lugar seria fácil morrer sem deixar vestígios. Enfim, na extremidade de um corredor de vinte toesas de comprimento, Guccio viu um grupo de homens cujas ricas vestimentas distinguiu, roupas guarnecidas de peles. No flanco de cada um brilhava o punho de uma espada. Era a guarda da rainha.

O escudeiro disse a Guccio que o esperasse e deixou-o só entre os gentis-homens, que olhavam para ele com ar bastante zombeteiro, e trocavam comentários em inglês, língua que o jovem não compreendia. Subitamente Guccio sentiu-se tomado de inesperada angústia. Se acontecesse algum imprevisto? Se naquela corte que ele sabia dividida em facções rivais e estraçalhada pelas intrigas passasse por suspeito? Se, antes de ter visto a rainha, se apoderassem dele, revistassem-no, e descobrissem a mensagem que trazia? Todos os receios que podem nascer numa imaginação aflita se lhe apresentaram, duplicados pelo temor de estar demonstrando sua angústia e, dessa forma, denunciando-se.

Quando o escudeiro, vindo buscá-lo, tomou-lhe a manga, Guccio teve um sobressalto. Apanhou o cofre das mãos do criado de Albizzi, mas> em sua precipitação, esqueceu-se de que o objeto estava preso à cintura do homem por uma corrente. E o criado, com aquele movimento brusco, foi precipitado para a frente. A corrente embaraçou-se, o cadeado resistiu. Houve risos, e Guccio sentiu que se cobria de ridículo. De tal forma que entrou humilhado, desajeitado, confuso, nos aposentos da rainha, e encontrou-se diante dela mesmo antes de ter chegado a vê-la.

Isabel estava sentada, muito direita, numa cadeira que pareceu a Guccio um trono, na mesma sala em que, algum tempo antes, recebera Roberto d'Artois. Uma jovem senhora, de rosto estreito, atitude rígida, estava ao lado dela, num tamborete. Guccio pôs um joelho no chão e procurou um cumprimento, que não veio. Tinha imaginado — e por que aquela tola ilusão? — que a rainha estaria só. A presença de uma terceira pessoa acabava de derrotar suas mais belas esperanças.

Foi a rainha quem falou.

— Lady Le Despenser — disse ela —, vejamos as jóias que nos traz este jovem italiano. Disseram-me que são verdadeiras maravilhas.

Aquele nome Despenser acabou de perturbar Guccio e tornou-o inquieto. Qual poderia ser o papel de uma Despenser junto da rainha?

Levantando-se a um gesto de Isabel, ele abriu o cofre e apresentou-o à rainha. Lady Le Despenser, mal lançando um olhar para as jóias, disse em voz breve e seca:

— São jóias muito bonitas, com efeito, mas não nos interessam, porque não poderíamos comprá-las, senhora.

A rainha teve um movimento de cólera e, contendo os ímpetos de violência, replicou:

— Eu sei que a senhora e seu esposo e todos os seus parentes têm grande cuidado com o dinheiro do reino, como se se tratasse de dinheiro próprio. Mas, aqui, a senhora tolerará que eu disponha de minha bolsa particular... Admiro-me aliás, senhora, ao observar que todas as vezes que vem ao palácio algum mercador estrangeiro são afastadas, como que por acaso, as minhas damas francesas, a fim de que sua sogra ou a senhora mesma me façam companhia. Companhia que mais se parece com uma guarda. Penso que se estas mesmas jóias fossem apresentadas ao meu marido, e ao seu, eles gostariam de se enfeitar com elas como as mulheres talvez não ousassem.

Fosse qual fosse o esforço feito para se controlar, Isabel deixava que em sua boca explodisse o ressentimento contra aquela abominável família que, ao mesmo tempo que ridicularizava a coroa, pilhava o tesouro do reino. Porque não somente os Despenser, pai e mãe, se aproveitavam de forma abjeta do amor que o rei dedicava a seu filho, mas a própria mulher deste consentia de boa vontade no escândalo, ajudando-o mesmo. Aquela Lady Le Despenser, a jovem, pelo nascimento Eleanor de Clare, era aliás a própria cunhada do falecido Cavaleiro de Gabaston, o que quer dizer que o Rei Eduardo II tinha casado a mais próxima parente de seu antigo amante executado com o seu favorito atual. Desapontada com a recriminação, Eleanor Le Despenser levantou-se, e foi ocupar-se a um canto do imenso aposento, mas sem deixar de vigiar a rainha e o jovem sienense.

Guccio, recuperando um pouco o aprumo que lhe era natural e que agora tão estranhamente lhe vinha faltando, ousou enfim olhar de frente para Isabel. Era o instante, ou nunca, de dar a compreender à jovem rainha que ele estava a seu lado, que lamentava seus desgostos, e que não desejava senão servi-la. Mas encontrou tal frieza, tal indiferença para com ele, que sentiu o coração enregelado. Era bela, certamente, a rainha, mas de uma beleza que, para Guccio, fazia recuar toda espécie de desejo, de ternura ou somente de cumplicidade. Dava mais a impressão de uma imagem religiosa do que a de um ser vivo. Seus admiráveis olhos azuis tinham a mesma fixidez gelada dos de Filipe, o Belo. Como seria possível declarar a uma tal mulher: "Senhora, somos quase da mesma idade, jovens os dois, e desejo amar-vos"? Parecia que a hereditariedade, a função real, a sagração tinham feito dela um ser separado do resto da raça humana, para o qual o tempo e a carne obedeciam a outras medidas.

Tudo quanto Guccio pôde fazer foi retirar do dedo o anel de ferro de Roberto d'Artois, arranjando-se para esconder o gesto ao olhar de Lady Le Despenser e dizendo:

— Senhora, quereis fazer-me o favor de considerar este anel e reparar na gravação?

A rainha curvou a cabeça, examinou o anel, sem que em seu rosto houvesse o menor movimento.

— Agrada-me ver isto — respondeu ela. — O senhor, penso eu, tem outros objetos trabalhados pela mesma mão?

Guccio fingiu remexer no cofre, disfarçou com as pérolas e, tirando de entre suas roupas a mensagem, falou:

— Os preços estão escritos aqui.

— Aproximemo-nos da luz do dia, para que eu veja melhor estas pérolas — disse Isabel.

Levantou-se e, acompanhada por Guccio, alcançou o vão de uma janela, onde pôde ler tranqüilamente a mensagem.

— Volta para a França? — murmurou ela.

— Assim que vos digneis ordenar que o faça, senhora — respondeu Guccio, no mesmo tom.

— Diga então a Monseigneur d'Artois que eu brevemente estarei na França e que tudo será feito conforme combinamos.

Seu rosto animara-se um pouco, e sua atenção toda estava voltada para a mensagem e nem um pouco para o mensageiro. Um cuidado bastante real de pagar bem àqueles que a serviam fez com que dissesse, todavia:

— Direi a Monseigneur d'Artois que o recompense pelo seu trabalho, melhor do que eu o poderia fazer neste momento.

— A honra de vos ver e de vos obedecer, senhora, é com certeza a mais bela das recompensas para mim.

Isabel agradeceu com um movimento de cabeça, como a um simples cumprimento de servidor, e Guccio compreendeu que entre uma bisneta de São Luís e o sobrinho de um banqueiro toscano havia uma distância que seria impossível transpor.

Com voz bem alta, a fim de que Lady Le Despenser a ouvisse, Isabel falou:

— Eu lhe farei saber, por Albizzi, o que decidir, no que se refere a estas pérolas. Adeus, messer.

E despediu-o com um gesto.

O moço tornou a pôr o joelho em terra, aliviado por ter cumprido sua missão, mas muito desapontado em seus sonhos.

 

 A DIVIDA

Apesar da cortesia de Albizzi, que lhe oferecia hospitalidade por mais alguns dias, Guccio deixou Londres no dia seguinte cedo, muito irritado consigo mesmo. Não se perdoava o fato de se ter deixado perturbar a tal ponto pela presença de uma rainha, ele, cidadão livre de Siena, e que por isso se julgava igual a qualquer gentil-homem deste mundo. Porque, de nenhum modo, poderia esconder a si próprio que a palavra lhe tinha faltado, que seu coração havia batido forte demais, e que suas pernas tinham enfraquecido quando se encontrara diante da rainha da Inglaterra, que nem sequer o honrara com um sorriso. "É uma mulher como as outras, afinal! Por que precisava tremer daquela maneira?", repetia-se ele, de mau humor. Mas dizia isso agora que estava já bem longe de Westminster.

Não tendo achado companheiro na volta, como encontrara na vinda, caminhava sozinho, remoendo seu descontentamento com os outros e consigo mesmo. Aquele estado de espírito não o abandonou durante toda a viagem de volta, e passou mesmo a agravar-se, à medida que as léguas se passavam.

Por não ter recebido na corte da Inglaterra o acolhimento que esperava, por não lhe terem prestado, à simples vista de seu aspecto, honrarias de príncipe, ele formara a opinião, agora que punha de novo os pés em território francês, de que os ingleses eram bárbaros. Quanto à Rainha Isabel, se era infeliz, se seu marido a injuriava, só tinha o que merecia. "Como? Então, atravessa-se o mar, arrisca-se a vida e não se obtém agradecimento maior do que se se fosse um criado? Essas pessoas têm grandes ares, que aprenderam, mas não têm delicadeza de coração, e repelem os melhores devotamentos. Não deviam espantar-se de serem tão malqueridas e tão bem traídas."

Nos mesmos caminhos onde, na semana anterior, ele já se acreditava embaixador e amante real, Guccio começava a compreender que a sorte não surge para os jovens como nos contos de fadas. Mas teria a sua desforra. Sobre quem, sobre quê, não sabia ainda, mas precisava de sua desforra.

E para começar, já que o destino e o desdém dos reis queriam que ele não passasse de um banqueiro lombardo, iria ser um banqueiro como raramente se viu. Seu tio Tolomei o encarregara de passar pela sucursal de Neauphle-le-Vieux para cobrar uma dívida? Pois bem! Os devedores nem desconfiavam do raio que ia cair-lhes sobre a cabeça!

Tomando por Pontoise, para bifurcar através da Ile-de-France, Guccio, que sempre sentia necessidade de representar um papel, aplicava-se agora em manter o de credor implacável. Ao lado dele, o Judeu de Veneza, que segundo a lenda desejava uma libra de ouro por uma libra de carne, pareceria um coração terno.

Chegou assim a Neauphle, na manhã de São Hugo. A sucursal de Tolomei ocupava uma casa próxima da igreja, na praça do burgo construído num flanco de colina.

Guccio aterrorizou os empregados do banco, exigiu vista dos registros, maltratou toda a gente. Para que prestava o caixeiro principal? Era preciso que ele, Guccio Baglioni, o próprio sobrinho do diretor da companhia, se desse a trabalhos cada vez que houvesse uma dívida de trezentas libras para cobrar? Primo, quem eram aqueles castelãos de Cressay, que deviam trezentas libras? Explicaram-lhe. O pai tinha morrido, sim, isso Guccio sabia. E depois? Havia dois filhos, vinte e vinte e dois anos. Que faziam eles? Caçavam... Vagabundos, evidentemente. Havia também uma filha, dezesseis anos... Feia, certamente, decidiu Guccio... E a mãe, que dirigia a casa depois da morte do Sire de Cressay. Gente de boa nobreza, mas completamente arruinada. Quanto valiam o castelo e os campos? Mais ou menos mil e quinhentas libras. Tinham um moinho e uma centena de servos em suas terras.

— E com tudo isso, os senhores não conseguem pagar? — exclamou Guccio. — Vão ver comigo, se isso vai durar muito! Onde mora o preboste?... Em Monfort-1'Amaury? Bom. Como se chama ele?... Portefruit? Perfeito! Se esta noite eles não tiverem pago, vou procurar o preboste e mando executar a penhora. Pronto!

Tornou a montar a cavalo e partiu para Cressay, como se fosse, sozinho, tomar uma praça-forte. "Meu dinheiro ou a penhora... meu dinheiro ou a penhora", repetia ele para si próprio. "E eles que se dirijam a Deus ou aos santos."

Acontecia porém que alguém tivera a mesma idéia, antes dele, e fora justamente o Preboste Portefruit.

Cressay, a meia légua de Neauphle, era uma casa construída em rampa, à beira do Mauldre, rio que se pode atravessar num bom salto de cavalo.

O castelo que Guccio enxergou não passava de um grande solar, bastante estragado, sem fosso circundante, pois que o rio lhe servia de defesa, e com pequenas torres baixas e caminhos de acesso lamacentos. A pobreza e a péssima conservação marcavam aquele lugar. Os telhados tinham ruído em vários lugares; o pombal parecia pouco guarnecido; as paredes musgosas tinham brechas, e nos bosques vizinhos grandes lacunas mostravam que centenas de troncos tinham sido serrados rente ao chão.

Havia um grande movimento no pátio, quando o sienense ali entrou. Três sargentos reais, bastão de flores-de-lis na mão, assustando com suas ordens alguns servos andrajosos, mandavam juntar e amarrar o gado e transportar do moinho sacos de trigo, que eram atirados na carreta do preboste. Os gritos dos sargentos, as galopadas dos camponeses aterrorizados, os balidos de umas vinte ovelhas, os cacarejos das galinhas, produziam, em conjunto, um belo alarido.

Ninguém prestou atenção em Guccio. Ninguém veio tomar-lhe o cavalo, que ele próprio prendeu pela rédea a uma argola. Um camponês velho, passando junto dele, disse apenas:

— A desgraça cai sobre esta casa. Se o nosso senhor estivesse presente, iria rebentar pela segunda vez. Isso não é justo!

A porta da casa estava aberta, e dali vinham os ruídos de violenta discussão. "Parece-me que não chego em boa hora", pensou Guccio, cujo mau humor aumentava.

Subiu as escadas da entrada e, guiando-se pelas vozes, penetrou numa sala comprida e sombria, de paredes de pedra e forro de traves.

Uma jovem, que ele não se deu ao trabalho de olhar, veio ao seu encontro.

— Venho para negócios e queria falar a alguém da casa — disse ele.

— Eu sou Maria de Cressay. Meus irmãos estão ali e minha mãe também — respondeu a jovem com voz hesitante, mostrando o fundo do aposento. — Mas no momento acham-se muito ocupados...

— Não faz mal, eu esperarei — disse Guccio.

E, para confirmar sua vontade, foi plantar-se diante da lareira e estendeu a bota para o fogo, embora não tivesse frio algum.

No fundo da sala, gritavam com vontade. Ladeada pelos seus dois filhos, um barbudo, outro glabro, mas ambos grandes e rubicundos, Mme de Cressay esforçava-se para fazer face a uma quarta personagem, que Guccio logo compreendeu ser o Preboste Portefruit.

Mme de Cressay — Dona Eliabel para toda a região — tinha os olhos brilhantes, o peito forte, e mostrava uns quarenta anos generosos em carne, dentro de suas vestes de viúva.

— Messire preboste — gritava —, meu esposo endividou-se para se equipar, a fim de tomar parte na guerra do rei, onde recebeu mais ferimentos do que benefícios, enquanto o domínio, sem homem, ia como podia. Sempre pagamos as fintas e os subsídios, e dávamos esmolas a Deus. Quem fez melhor do que isso na província, dizei-me? E para engordar gente como vós, Messire Portefruit, cujos avós andavam de pés descalços nos regatos de nossas terras, que nos vêm saquear!

Guccio olhou em torno de si. Alguns escabelos rústicos, duas cadeiras com encostos, dois bancos pregados nas paredes, arcas e um grande diva coberto de pano, que deixava ver seu enxergão, constituíam o mobiliário. Acima da lareira estava pendurado um velho escudo desbotado, o broquel de guerra, sem dúvida, do falecido Sire de Cressay.

— Darei queixa ao Conde de Dreux — continuava Dona Eliabel.

— O Conde de Dreux não é o rei, e são ordens do rei que estou cumprindo — respondeu o preboste.

— Eu não acredito em vós, messire preboste. Não quero crer que o rei mande tratar como malfeitores as pessoas que pertencem à cavalaria há mais de duzentos anos. Ou então o reino já não anda bem.

— Ao menos conceda-nos algum tempo! — disse o filho barbudo. — Pagaremos aos poucos. Não se estrangulam assim as pessoas.

— Acabemos com este palavrório. Já vos dei tempo, e vós não pagastes — cortou o preboste.

Tinha os braços curtos, o rosto redondo e o tom decidido.

— Meu trabalho não é ouvir vossas queixas, mas cobrar dívidas — continuou ele. — Deveis ainda ao Tesouro trezentas e vinte libras e oito soldos. Se não os tendes, tanto pior. Penhoro e vendo.

Guccio pensou: "Esse tipo está usando exatamente a linguagem que eu estava pronto a usar e, depois que ele tiver passado, nada mais haverá a tomar. Má viagem, decididamente. Devo meter-me imediatamente na conversa?"

E sentiu-se indisposto contra aquele preboste inoportuno, que lhe cortava as vazas e roubava-lhe o papel que prometera a si próprio representar.

A jovem que o recebera não tinha ficado muito longe dele. Guccio observou-a melhor. Era loira, com belas ondas de cabelo que saíam de sua coifa, pele muito luminosa, grandes olhos escuros e um corpo fino, direito e bem-formado. Parecia muito constrangida por estar um desconhecido assistindo àquela cena. Nem todos os dias aparecia um jovem cavaleiro de rosto agradável, e cujas vestimentas diziam bastante que a riqueza passava pelos seus campos. Era de fato uma falta de sorte que aquilo acontecesse exatamente quando a família se mostrava sob seu pior aspecto.

Os olhos de Guccio demoraram-se sobre Maria de Cressay. Por muito mal disposto que ele estivesse, devia reconhecer que falara mal dela sem conhecê-la. Não era de esperar uma jovem assim tão bonita, num lugar daqueles. O olhar de Guccio deslizou do busto para as mãos: eram brancas, delicadas e lisas, e não desmentiam o rosto.

Lá no fundo da sala, a discussão continuava.

— Não é bastante perder o marido e ainda se tem de pagar seiscentas libras para conservar um teto? Darei queixa ao Conde de Dreux — repetia Dona Eliabel.

— Nós já pagamos duzentas e setenta — dizia o filho barbudo.

— Penhorar-nos é reduzir-nos à fome e vender o que e nosso é querer ver-nos mortos — disse o segundo filho.

— Ordens são ordens — replicou o preboste. — Conheço o meu direito e farei a venda como faço a penhora16. Ainda uma vez, eram as mesmas palavras que Guccio preparara.

— Esse preboste parece-me bem odioso. Que quer ele? — perguntou Guccio, em voz baixa.

— Não sei, e meus irmãos também não sabem direito. Compreendemos pouco dessas coisas — respondeu Maria de Cressay. — Trata-se de direitos de sucessão.

— É por isso que ele reclama seiscentas libras? — disse Guccio, enrugando a testa.

— Ah! messire, temos sido bem infelizes! — murmurou ela.

Seus olhares se encontraram, retiveram-se por um instante, e Guccio pensou que a jovem ia chorar. Mas não. Ela manteve-se firme contra a adversidade, e apenas por pudor desviara dele suas belas pupilas azul-escuras.

Guccio refletia. Sua cólera estava refluindo contra o preboste, justamente porque aquele homem lhe dava uma representação da má personagem que ele próprio se dispusera a representar.

Subitamente, por uma grande volta através da sala, Guccio veio plantar-se diante do agente da autoridade e lançou-lhe:

— Permite-me, messire preboste! Não estaríeis roubando?

Estupefato, o preboste voltou-se para ele e perguntou-lhe quem era.

— Não importa — replicou Guccio —, e não desejeis sabê-lo depressa demais, se por infelicidade vossas contas não estiverem certas. Mas eu também tenho minhas razões para me interessar pela sucessão do Sire de Cressay. Dizei-me, por favor, em quanto estimais este domínio.

Como o outro tentasse tomá-lo de cima e ameaçasse chamar seus sargentos, Guccio continuou:

— Cuidado! Estais falando com um homem que anteontem era hóspede da Senhora Rainha da Inglaterra, e que tem o poder, amanhã, de comunicar a Messire Enguerrand de Marigny como se comportam seus prebostes. Agora respondei, messire: quanto vale este domínio?

Aquelas palavras causaram grande efeito. Ao nome de Marigny o preboste se perturbara; a família se calara, atenta, espantada. E Guccio sentia ter crescido mais duas polegadas.

— Cressay, segundo a avaliação do bailiado, vale três mil libras — respondeu enfim o preboste.

— Três mil, realmente? — exclamou Guccio. — Três mil libras este solar de campo, quando o Palácio de Nesle, que é um dos mais belos de Paris e moradia de Monseigneur Luís de Navarra, está inscrito por cinco mil libras nos registros da finta? Em vosso bailiado avaliam muito alto.

— Há as terras.

— O total vale, no máximo, mil e quinhentas libras, e isso eu sei de fonte segura.

O preboste tinha na testa, sobre o olho esquerdo, um defeito de nascença, um grande morango, que ficava roxo quando ele se emocionava. E Guccio, ao falar, fixava aquele morango, o que acabou por desconcertar o preboste.

— Quereis dizer-me agora — recomeçou Guccio — qual é o imposto de transmissão?

— Quatro soldos por libra, segundo o bailiado.

— O senhor está mentindo de fato, Messire Portefruit. Para os nobres o imposto é de dois soldos, em todos os bailiados. Não sois o único a conhecer a lei, e aqui somos dois. Esse homem serve-se da vossa ignorância para vos extorquir dinheiro como um velhaco — disse Guccio, dirigindo-se à família Cressay. — Ele vos vem assustar, falando-vos em nome do rei, mas o que não diz é que tem os impostos e fintas como rendas, e que entregará ao Tesouro do rei exatamente a quantidade que está indicada nas ordenanças, e tratará de meter o resto, sem dúvida, no próprio bolso. E se vos faz vender, quem comprará, não por três mil libras, mas por mil e quinhentas ou apenas pela dívida, o Castelo de Cressay? Não sereis vós, messire preboste, quem terá essa bela oportunidade?

Todas as irritações de Guccio, todos os seus rancores, toda a sua cólera acumulada pelo caminho, encontravam onde se expandir. Inflamava-se, falando. Tinha enfim encontrado ocasião para ser importante, para se fazer respeitar e representar o papel do homem forte. Passando, sem perceber, para o campo que vinha atacar, tomava a defesa dos mais fracos e exibia-se como cavaleiro andante.

Quanto ao preboste, seu grande rosto redondo estava sem sangue, e o morango roxo sobre o olho era a única mancha escura. Agitava os braços curtos demais, com um movimento de asa de pato. Afiançou sua boa fé. Não fora ele quem fizera as contas. Talvez houvesse um erro... seus ajudantes, ou os do bailiado.

— Pois bem, vamos tornar a fazer as vossas contas — disse Guccio.

Em alguns instantes demonstrou-lhe que os Cressay não deviam ao preboste mais do que cem libras e alguns soldos.

— Então, agora, ide dar aos vossos sargentos ordens para soltar os bois, levar de novo o trigo ao moinho e deixar em paz as pessoas de bem!

E agarrando o preboste pela cava do traje, levou-o até a porta. O outro obedeceu e gritou aos sargentos que houvera erro, que era preciso verificar, que voltariam em outra ocasião, e que, pelo momento, pusessem tudo no lugar. Pensava ter acabado com aquilo, mas Guccio tornou a levá-lo para o meio da sala, dizendo-lhe:

— E agora devolvei-nos cento e setenta libras. Porque Guccio tomara de tal forma o partido dos Cressay, que já dizia "nos", defendendo sua causa.

Nessa altura o preboste ficou sufocado de furor, mas Guccio depressa o acalmou.

— Não ouvi, ainda há pouco, que já tínheis recebido antes duzentas e setenta libras?

Os dois irmãos confirmaram.

— Então, messire preboste... cento e setenta libras — disse Guccio, estendendo a mão.

O gordo Portefruit quis argumentar: o que estava pago estava pago. Seria necessário verificar as contas do prebostado. Aliás, não trazia tanto ouro com ele. Voltaria.

— Melhor seria que tivésseis esse ouro convosco. Estais bem certo de não terdes recolhido soma alguma no dia de hoje?... Os investigadores de Messire de Marigny são rápidos, e melhor seria, para vós, que esse negócio ficasse encerrado agora mesmo.

O preboste pensou um instante. Chamar os sargentos? Mas o jovem tinha um ar singularmente vivo, e trazia uma boa espada em seu cinto. Depois, havia os dois irmãos Cressay, de sólida compleição e cujos chuços de caça estavam à mão, sobre uma arca. Os camponeses tomariam com certeza-o partido de seus senhores. Mau negócio, no qual melhor seria não embarcar, sobretudo com o nome de Marigny suspenso sobre sua cabeça. Rendeu-se então e, tirando uma grande bolsa de sob seus trajes, contou sobre a tampa da arca o excesso recolhido. Só então Guccio deixou-o partir.

— Nós nos lembraremos de vosso nome, Messire Portefruit — exclamou o jovem quando o viu à porta.

E voltou-se, rindo amplamente, descobrindo todos os dentes, que eram brancos, belos e bem cerrados.

Imediatamente a família rodeou-o, cumulando-o de bênçãos, tratando-o como salvador. No ímpeto geral, a bela Maria de Cressay agarrou a mão de Guccio e levou-a aos lábios. Depois pareceu ficar toda assustada por ter ousado aquilo.

Guccio, encantado consigo mesmo, instalava-se às maravilhas em seu novo papel. Acabava de conduzir-se exatamente segundo o ideal da cavalaria; era o cavaleiro errante que chega a um castelo desconhecido para socorrer a jovem em extremo perigo, proteger contra os maus as viúvas e os órfãos.

— Mas enfim quem sois vós, messire, a quem devemos tanto? — perguntou João de Cressay, que usava barba.

— Chamo-me Guccio Baglioni; sou sobrinho do banqueiro Tolomei, e venho por causa da dívida.

Tombou o silêncio no aposento e o gelo sobre os rostos. Toda a família entreolhou-se, angustiada, cheia de consternação. E Guccio sentiu-se como que despojado de bela armadura.

Dona Eliabel foi a primeira a recuperar a calma. Pegou rapidamente o ouro deixado pelo preboste e, fazendo um sorriso de fachada, disse em tom alegre que havia de falar naquilo, mas que antes de mais nada desejava que seu benfeitor lhes fizesse a honra de partilhar de seu jantar.

Começou a agitar-se, mandou os filhos para diversas tarefas, e depois, reunindo-os na cozinha, disse-lhes:

— Atenção! Apesar de tudo, trata-se de um lombardo. Devemos desconfiar sempre dessa gente, sobretudo quando nos presta serviço. Foi bem lamentável que vosso pobre pai tivesse que recorrer a eles. Mostraremos a esse moço, aliás de muito bom aspecto, que não temos dinheiro, mas façamos de jeito que não se esqueça de que somos nobres.

Porque Mme de Cressay era muito apegada à sua nobreza, como sempre o foram os pequenos gentis-homens do campo, e acreditava conceder grande honra a quem quer que não fosse nobre, convidando-o a sentar-se à sua mesa. Por felicidade os filhos tinham trazido, na véspera, bastante caça.

Torceram o pescoço de algumas aves domésticas, e assim puderam compor os dois serviços de quatro pratos que exigia a etiqueta senhorial. O primeiro serviço foi composto de um caldo alemão, com ovos fritos, um ganso, guisado de lebre e coelho assado; o segundo reuniu rabo de javali ao molho, capão gordo, creme de leite e manjar branco.

Cardápio reduzido, mas que sobressaía das habituais sopas de farinha e das lentilhas com toicinho, com as quais, tal como faziam os camponeses, a família se contentava o mais das vezes.

Tudo aquilo levou tempo a preparar. Mandaram vir o vinho da adega. A mesa foi armada sobre cavaletes, na mesma sala grande, contra um dos bancos. Uma toalha branca descia até o chão, e os convivas ergueram-na sobre seus joelhos, a fim de nela limparem as mãos. Havia uma escudela de estanho para dois, e uma para uso de Dona Eliabel apenas, o que testemunhava sua condição. Os pratos estavam colocados no meio da mesa, e cada um servia-se dali, com a mão.

Três camponeses, que de costume se ocupavam mais do galinheiro do que de outra coisa, tinham sido chamados para o serviço. Cheiravam um tanto a porco e a coelheira.

— Nosso escudeiro trinchador — disse, com uma mímica de desculpa e ironia, Dona Eliabel, designando o coxo que cortava fatias de pão, grossas como mós de moinho, e sobre as quais se comia a carne. — Devo dizer-vos, Messire Baglioni, que ele entende mesmo é de cortar madeira. Isso explica...

Guccio comeu e bebeu muito. O escanção tinha a mão pesada, e parecia que estava dando de beber a cavalos.

A família levou Guccio a falar, o que não foi difícil. Ele relatou a tempestade na Mancha, de tal maneira que seus hospedeiros deixaram cair o rabo de javali em seu molho. Falou de tudo, dos acontecimentos, do estado das estradas, dos templários, da Ponte de Londres, da Itália, da administração de Marigny. Segundo ele, era íntimo da rainha da Inglaterra, e insistiu tanto sobre o mistério de sua missão, que seria possível acreditar que ia haver guerra entre os dois países. "Não vos posso dizer mais do que isto, porque se trata de segredo do reino, que não me pertence." Fazendo a exposição de si próprio diante dos outros, as pessoas acabam convencendo-se do que dizem; e Guccio, vendo as coisas de uma forma diferente da que as vira naquela manhã, considerava sua viagem como um grande êxito.

Os dois irmãos Cressay, bons moços, mas não muito espertos, e que jamais tinham ido além da distância de dez léguas de sua casa, contemplavam com admiração e inveja aquele jovem, que tinha menos idade do que eles e já tinha visto e feito tantas coisas.

Dona Eliabel, que estava um tanto apertada em seu vestido e na qual o gosto das boas comidas despertava os apetites insatisfeitos da viuvez, começava a olhar ternamente para o toscano; seu peito forte levantava-se em movimentos que a ela mesma surpreendiam e, apesar de sua prevenção contra os lombardos, achava bastante encanto em Guccio, em seus cabelos encaracolados, em seus dentes brilhantes, em seus olhos negros, e mesmo em seu sotaque, onde havia certo zetacismo. E fazia-lhe hábeis elogios.

"Desconfia das lisonjas", dissera muitas vezes Tolomei a seu sobrinho. "A lisonja é o pior perigo para um banqueiro. Resistimos mal quando ouvimos dizer bem de nós, e mais nos vale um ladrão do que um adulador." Mas naquela noite Guccio estava bem longe de pensar em tal coisa, e bebia todos os louvores, como se fossem hidromel.

Na verdade, era sobretudo para Maria de Cressay que ele falava, para aquela jovem que não tirava os olhos dele, levantando para seu rosto os longos cílios dourados. Ela tinha uma forma de ouvir, os lábios entreabertos como romã madura, que dava a Guccio vontade de falar, de falar mais e depois morder longamente a romã.

A distância enobrece facilmente as pessoas. Para Maria, Guccio representava o príncipe estrangeiro em viagem. Ele era o imprevisto, o inesperado, o sonho impossível e freqüentemente sonhado, que de repente bate à porta, com um rosto, com um corpo e com um nome.

Tanto deslumbramento no olhar e nos traços de Maria de Cressay fez com que Guccio a considerasse, logo, a mais bela jovem que ele vira no mundo e a mais desejável. Junto dela, a rainha da Inglaterra parecia-lhe fria como a pedra de um túmulo: "Se ela aparecesse na corte, vestida convenientemente", dizia ele consigo, "seria a mulher mais admirada da semana".

A refeição durou tanto tempo que, quando lavaram as mãos, todos estavam um tanto embriagados e o dia estava terminando.

Dona Eliabel decidiu que o jovem não podia voltar àquela hora e rogou-lhe que aceitasse dormir ali, por modesto que fosse o alojamento.

— Dormireis ali — disse ela, designando o enxergão coberto, onde seis pessoas poderiam deitar-se à vontade. — Em tempos mais felizes eram os guardas que o usavam. Hoje, são meus filhos. Partilhareis do sono deles.

Garantia que sua montaria estava sendo bem tratada e fora levada às cavalariças. A existência do cavaleiro de aventura continuava, e Guccio achava aquela vida muito excitante.

Logo, Dona Eliabel e sua filha retiraram-se para o quarto das mulheres, e Guccio deitou-se sobre o vasto enxergão, na sala, em companhia dos irmãos Cressay. Caiu imediatamente no sono, pensando numa boca que se parecia com uma romã e sobre a qual ele premia os lábios, bebendo ali todo o amor do mundo.

 

A ESTRADA DE NEAUPHLE

Foi acordado por uma mão que lhe pesava docemente sobre o ombro. Quase pegou aquela mão e apertou-a contra o rosto... Ao abrir os olhos, viu, acima da cama, o busto abundante e o rosto sorridente de Dona Eliabel.

— Dormistes bem, messire?

Era dia claro. Guccio, um tanto encabulado, garantiu que passara a melhor noite do mundo e que se sentia agora com pressa de fazer sua toalete.

— É uma vergonha estar assim diante de vós — disse ele.

Dona Eliabel bateu palmas e o camponês coxo que servira à mesa na véspera apareceu, com um machado na mão. Madame de Cressay recomendou-lhe que trouxesse uma bacia de água quente e toalha.

— Outrora tínhamos no castelo uma estufa, para os banhos — disse ela. — Mas estava caindo aos pedaços, porque datava do tempo do avô do meu falecido marido e jamais tivemos o bastante para reformá-la. Hoje serve de depósito de lenha. Ah! a vida não é fácil para nós, gente do campo!

"Ela começa a pregar por causa da dívida", pensou Guccio.

Tinha a cabeça um tanto pesada, em conseqüência do vinho da véspera, e Dona Eliabel não era exatamente a pessoa que ele gostaria de encontrar pela manhã. Perguntou onde estavam Pedro e João de Cressay. Tinham partido para a caça, de madrugada. Mais hesitante, perguntou por Maria de Cressay. Dona Eliabel explicou que sua filha tivera que ir a Neauphle, onde tinha algumas compras de casa para fazer.

— Preciso ir para lá daqui a pouco — disse Guccio. — Se eu soubesse, poderia levá-la em meu cavalo, e evitar-lhe a caminhada.

Aquela idéia não pareceu causar grande pena a Dona Eliabel, e Guccio perguntou a si próprio se a castelã não teria afastado toda a gente de propósito, para ficar sozinha com ele. Tanto que, quando o coxo trouxe a bacia, cuja água derramou em grande parte pelo chão, Dona Eliabel ali se conservou, aquecendo as toalhas diante do fogo. Guccio esperava que ela se retirasse.

— Lavai-vos, meu jovem messire — disse ela. — Nossos servos são tão grosseiros que seriam capazes de vos esfolar, ao enxugar-vos. E não faço nada de mais, cuidando de vós. Vamos! Não vos preocupeis, eu podia ser vossa mãe.

Balbuciando um agradecimento que não sentia, Guccio resolveu despir-se até a cintura e, evitando olhar para a senhora, molhou-se com água morna, na cabeça e no busto. Era bastante magro, como é natural naquela idade, mas bem-feito, em seu pequeno arcabouço. "Ainda bem que não veio uma tina, onde eu teria que me despir inteiramente sob os olhos dela; essa gente do campo tem maneiras bem estranhas!"

Quando o rapaz acabou, ela aproximou-se com as toalhas quentes e pôs-se a enxugá-lo. Guccio pensava que, partindo depressa e mantendo ritmo de galope, teria possibilidade de alcançar Maria na estrada de Neauphle, ou de se encontrar com ela no burgo.

— Que bonita pele tendes, messire! — disse subitamente Dona Eliabel, cuja voz se mostrava jovial, embora um tanto trêmula. — As mulheres poderiam invejar uma pele assim tão suave... e eu imagino que muitas hão de se mostrar gulosas dela. Esta bela cor morena deve parecer-lhes agradável.

Ao mesmo tempo, a senhora acariciava-lhe as costas com as pontas dos dedos, ao longo da espinha. Aquilo fez cócegas em Guccio, que se voltou, rindo.

Dona Eliabel tinha o olhar perturbado, o peito agitado e um sorriso singular, que lhe modificava o rosto. Guccio vestiu rapidamente a camisa.

— Ah! É uma bela coisa a mocidade! — disse Dona Eliabel. — Vendo-vos, garanto que sabeis gozá-la bastante e que aproveitais todas as vantagens que ela vos oferece.

Guccio continuava a vestir-se o mais decentemente que podia. Mme de Cressay calou-se por um instante e ouvia-se a respiração dela. Depois, no mesmo tom:

— Vamos, meu gentil-homem, que ides fazer quanto à nossa dívida?

"É isso que a preocupa", pensou Guccio.

— Podeis pedir-nos o que quiserdes — continuou ela.

—Sois o nosso benfeitor e vos abençoamos. Se quiserdes o ouro que obrigastes aquele velhaco do preboste a nos devolver, ele é vosso, levai-o. Cem libras, se quiserdes. Mas estais vendo em que estado nos encontramos, e já nos mostrastes que tendes coração.

Ao mesmo tempo ela o contemplava, enquanto o jovem afivelava o calção, e Guccio não se via, assim, em boas condições para uma discussão de negócios.

— Quem nos salva não pode ser o mesmo que nos perde

—continuou ela. — Vós, que morais nas cidades, não sabeis em que constrangimento vivemos. Se ainda não pagamos nossa dívida ao banco foi porque não o pudemos fazer. A gente do rei nos explora, como pudestes constatar. Os servos não trabalham como no passado. Desde as ordenanças17, meteu-se-lhes na cabeça a idéia da liberdade. Não se pode obter nada deles, e esses labregos estão quase a considerar-se da mesma raça a que nós pertencemos. Porque vós não sois nobre — comentou ela, para insistir bem na honra que lhe fazia colocando-o em seu mesmo campo —, mas merecíeis muito sê-lo... Acrescentai que aquilo que se colhe num ano, o mau tempo leva no outro, e que os homens despendem nas guerras o pouco que se pode economizar, quando, além disso, nelas não deixam a própria vida.

Guccio não tinha senão uma idéia na cabeça: encontrar Maria. Assim, tentou livrar-se habilmente:

— Não sou eu, e sim meu tio quem decide — disse ele. Mas já se sabia vencido.

— Podeis dizer a vosso tio que não se trata de má colocação de seu dinheiro; desejo-lhe que jamais tenha devedores mais honestos do que nós. Dai-nos mais um ano; pagaremos os juros. Fazei isso por mim, e vos serei muitíssimo grata — disse Dona Eliabel, agarrando-lhe- as mãos.

Depois, com ligeira confusão, mas que não a impedia de olhá-lo bem nos olhos, acrescentou:

— Sabeis, por acaso, gentil messire, que desde vossa chegada ontem — e eu não devia talvez dizer isso, mas vamos lá! — senti amizade por vós? E que não há nada que dependa de mim que eu não fosse capaz de fazer para vos dar alegria? ...

Guccio não teve a presença de espírito de responder:

"Pois bem! Pagai então vossa dívida, e isso será para mim uma alegria!"

Evidentemente, a viúva estava pronta a pagar com sua pessoa, e era caso de perguntar se estava disposta ao sacrifício para conseguir o adiamento da dívida, ou se se servia da dívida para ter a ocasião de se sacrificar.

Como bom italiano, Guccio pensou que seria agradável ter, ao mesmo tempo, a mãe e a filha. Dona Eliabel tinha ainda encantos, para quem gostasse de peso. Suas mãos eram suaves, e seu colo, embora opulento, parecia ter conservado a firmeza. Mas aquilo não podia ser senão um divertimento a mais. Arriscar-se a perder a mais jovem para se demorar junto da outra tirava toda a graça da brincadeira.

Guccio desvencilhou-se, fingindo estar muito comovido com as atenções de Dona Eliabel, e garantiu-lhe que ia se esforçar para conseguir o negócio. Mas para tanto deveria ir imediatamente a Neauphle, conferenciar com os empregados do banco.

Saiu para o pátio, encontrou o coxo, que se apressou a selar-lhe o cavalo, saltou para a sela e partiu para o burgo. Não encontrou Maria pelo caminho. Sempre galopando, perguntava a si próprio se a jovem seria mesmo tão bela quanto lhe parecera na véspera, se não se teria enganado quanto às promessas que pensara ler em seus olhos, e se tudo aquilo não seriam ilusões de fim de ceia, que talvez não valessem tanta pressa. Porque há mulheres que, quando vos olham, parecem se entregar a vós no primeiro instante. Mas é aquela a sua maneira natural: olham para uma árvore, para um móvel, da mesma maneira, e por fim nada entregam...

Guccio não viu Maria na praça do burgo. Deu uma olhada nas ruas transversais, entrou na igreja, demorou ali apenas o tempo de fazer o sinal-da-cruz e de verificar que não encontrava quem procurava. Depois voltou à sucursal, onde acusou os três empregados de o terem informado mal. Os Cressay eram gente de qualidade, honrada e solvável. Poderiam prolongar o prazo da dívida. Quanto ao preboste, não passava de rematado canalha... Sempre gritando, Guccio não cessava de olhar pela janela. Os empregados sacudiam a cabeça, contemplando aquele jovem louco, que mudava de parecer da noite para o dia, e pensavam que seria uma grande pena se o banco lhe caísse realmente nas mãos.

— Pode ser que eu volte com freqüência: esta sucursal tem necessidade de ser vigiada de perto — disse ele, à guisa de adeus.

Saltou para a sela, e as pedras da rua voaram, sob os ferros de seu cavalo. "Talvez ela tenha tomado por algum atalho", dizia consigo. "Então, hei de vê-la no castelo, mas será difícil vê-la a sós..."

Pouco depois da saída do burgo entreviu uma silhueta que se apressava na direção do caminho de Cressay e reconheceu Maria. Então, bruscamente percebeu que as aves cantavam, que o sol brilhava, que era abril e que pequenas folhas tenras haviam surgido em todas as árvores. Por causa daquele vestido que seguia na frente, entre os prados verdejantes, a primavera acabara de romper para Guccio, que três dias antes em nada reparara.

Diminuiu a marcha de seu cavalo e alcançou Maria. Ela olhou-o, não propriamente surpreendida com a presença dele, mas como se acabasse de receber o mais belo presente do mundo. A caminhada colorira-lhe a face e Guccio achou-a ainda mais bela do que na véspera.

Ofereceu-se para levá-la à garupa. Ela sorriu para concordar, e seus lábios se abriram novamente, como um fruto. Guccio encostou o cavalo ao talude e debruçou-se, para oferecer a Maria seu braço e seu ombro. A jovem era leve e içou-se rapidamente. Dali seguiram a passo. Por um momento cavalgaram em silêncio. A palavra faltava a Guccio. Aquele tagarela, de repente, nada achava para dizer.

Sentiu que Maria mal ousava pousar as mãos para se segurar nele. Perguntou-lhe se estava habituada a andar assim a cavalo.

— Com meu pai e meus irmãos... somente — respondeu ela.

Nunca antes tinha caminhado assim, o flanco contra as costas de um estranho. A moça atreveu-se um pouco mais, e apertou as mãos sobre os ombros do jovem.

— Tendes pressa de voltar? — perguntou ele.

Ela não respondeu, e Guccio meteu o cavalo por um caminho transversal, para se conservar sobre a colina.

— Vossa região é bela — disse ele, depois de um novo silêncio. — Tão bela quanto a Toscana.

Era um grande cumprimento de amoroso que ele lhe fazia. E realmente jamais sentira daquela maneira a doçura da região campesina da Ile-de-France. O olhar de Guccio se perdia nos horizontes azulados, nos horizontes de colinas e florestas, cuja linha estava mergulhada em nevoeiro leve; voltava à erva compacta dos prados que o rodeavam, às grandes manchas de um verde mais leitoso, mais frágil, produzidas pelas culturas do centeio, que mal começava a despontar, e para as cercas vivas de pilriteiro, onde se abriam os renovos gomosos.

Guccio perguntou que torres eram aquelas que se distinguiam para o lado do sul, no limite da paisagem, destacando-se daquela vastidão ondulada e verde. Maria teve grande dificuldade em responder que se tratava das torres de Monfort-1'Amaury.

Ela sentia ao mesmo tempo angústia e felicidade, o que a impedia de falar, de pensar. Para onde levava aquele caminho? Não mais sabia. Para onde a levava aquele cavaleiro? Também não sabia. Obedecia a algo que até então conhecera apenas de nome, que era mais forte que o medo do desconhecido, mais forte que a moral aprendida, que os preceitos de família e que as recomendações do confessor. Sentia-se entregue inteiramente a uma vontade estranha. Suas mãos se crispavam um pouco mais sobre aquela capa, sobre as costas do homem que constituía naquele momento, no meio do soçobro geral, a única certeza do universo. E através da espessura dupla do tecido, Guccio recebia até o peito as palpitações do coração de Maria.

O cavalo, que ia com as rédeas soltas, parou por si mesmo para comer um broto novo.

Guccio desceu, estendeu os braços para Maria e pousou-a no chão. Mas não a deixou e conservou as mãos em torno de sua cintura, cuja esbeltez e firmeza o espantaram. A jovem continuava sem se mover, prisioneira inquieta mas submissa entre aqueles dedos que a cingiam. Guccio sentiu que era necessário falar, porém as palavras habituais da sedução recusavam-se a vir. E foram expressões italianas que lhe subiram aos lábios:

— Ti voglio bene, ti voglio tanto bene.

Ela pareceu compreendê-las, de tal maneira a voz era suficiente para expressar o seu sentido. Olhando bem de perto o rosto de Maria, assim sob o sol, Guccio percebeu que seus cílios não eram dourados, como vira na véspera. Maria era castanha, com reflexos arruivados, carnação de loira e grandes olhos de um azul escuro, largamente recortados sob o arco das sobrancelhas. De onde vinha aquele brilho dourado que se desprendia dela? De instante a instante, Maria se tornava mais exata, mais real ao olhar de Guccio, e era perfeitamente bela naquela realidade. O rapaz abraçou-a mais, deslizou a mão lenta e docemente ao longo das ancas, depois pelo corpinho, continuando a tomar conhecimento da verdade daquele corpo.

— Não — murmurou ela, afastando-lhe a mão.

Mas como se temesse decepcioná-lo, curvou um pouco o rosto para o dele. Tinha os lábios entreabertos e os olhos fechados. Guccio debruçou-se sobre aquela boca, sobre aquele belo fruto que tanto cobiçava. E ficaram longos segundos presos um ao outro, entre o gorjeio dos pássaros, os longínquos latidos dos cães, e toda a grande respiração da natureza, que parecia levantar a terra sob os pés dos jovens.

Quando se desprenderam, Guccio reparou no tronco negro e nodoso de uma velha macieira que ali estava, e aquela árvore lhe pareceu espantosamente bela e viva, como jamais vira igual até aquele dia. Uma pega saltava no centeio, e o rapaz da cidade continuava todo surpreendido com aquele beijo em pleno campo.

Feliz, cheia de uma felicidade que lhe iluminava os traços, Maria não tirava os olhos de Guccio.

— Vieste... enfim, vieste — murmurou ela. Dir-se-ia que ela o esperava desde o fundo das idades, do fundo das noites, e que sempre soubera que rosto ele teria. O moço quis tomar-lhe de novo os lábios, mas dessa vez ela o afastou.

— Não, precisamos voltar — disse ela.

Tinha a certeza de que o amor entrara em sua vida e, naquele momento, nada mais desejava, pois sentia-se em plenitude.

Quando se viu de novo sentada no cavalo, atrás de Guccio, passou os braços em torno do peito do jovem sienense, pousou a cabeça contra seu ombro e se deixou levar assim, ao ritmo da montaria, presa ao homem que Deus lhe enviara.

Maria tinha o gosto do milagre e o senso do absoluto, mas não o dom da imaginação. Nem por um instante pensou que Guccio pudesse encontrar-se num estado de alma diferente do seu, nem que o beijo trocado pudesse ter para ele outra significação que não a que ela própria lhe emprestara.

Só se endireitou e retomou a atitude que convinha à sua condição quando os tetos de Cressay apareceram no vale.

Os dois irmãos tinham voltado da caça. Dona Eliabel viu, sem prazer, Maria voltar em companhia de Guccio. Teve para com sua filha pensamentos severos, inspirados menos pelos cuidados das conveniências do que por um inconsciente despeito. Fizessem o que fizessem para que nada transparecesse, os dois jovens tinham contudo um ar de felicidade que desagradou à castelã. Ela não ousou porém fazer observação alguma diante do jovem banqueiro.

— Encontrei Mlle Maria e pedi-lhe para me mostrar os arredores de vosso domínio — disse Guccio. — A terra que possuis é rica.

Depois acrescentou:

— Ordenei que transferissem a cobrança de vossa dívida para o próximo ano. Espero que meu tio aprove o que fiz. Pode-se lá recusar alguma coisa a tão nobre dama?

Dissera isso sorrindo a Dona Eliabel. Aquela enfunou-se um tanto, e seu despeito acalmou-se.

Todos agradeceram muitíssimo a Guccio, mas ainda assim, quando ele falou em ir embora, ninguém insistiu demais para que ficasse. Tinham obtido o que desejavam, era um cavaleiro bem encantador, aquele jovem lombardo, e prestara-lhes um grande serviço... Mas não o conheciam bem, afinal. E Dona Eliabel pensava nas insinuações que lhe fizera naquela manhã, bem como na maneira bastante brusca com que ele a deixara, e não se sentia muito satisfeita consigo mesma. A dívida fora prorrogada, era o essencial. Dona Eliabel não precisaria fazer muito esforço para se persuadir de que seus encantos tinham ajudado.

A única pessoa que verdadeiramente desejava que Guccio ficasse não ousou dizer nada.

A atmosfera de súbito ficou bastante constrangedora. Nem por isso deixaram de forçar Guccio a levar um quarto de cabrito montes que os irmãos tinham matado, e fizeram-no prometer que voltaria. Ele prometeu, mas desta vez foi para Maria que olhou disfarçadamente.

— Voltarei por causa da dívida, podeis estar certo — disse ele, em tom jovial de quem prega uma peça.

Com a bagagem afivelada sobre o cavalo, montou e partiu.

Vendo-o afastar-se, seguindo o Mauldre, Mme de Cressay suspirou fundamente e declarou a seus filhos, menos por eles do que por ela própria:

— Meus filhos, vossa mãe ainda sabe falar com os donzéis. Manobrei bem aquele: a coisa seria mais rude, se eu não tivesse chamado o moço de lado.

Com medo de se trair, Maria refugiara-se na cozinha.

Na estrada de Paris, Guccio, galopando, considerava-se um sedutor irresistível, ao qual bastava aparecer nos castelos para ali fazer colheita de corações. A imagem de Maria na beira do campo de centeio não o deixava. E ele prometia a si próprio voltar a Neauphle bem depressa, dentro de alguns dias talvez...

São coisas que se pensam, quando em viagem, mas não se chega a fazer.

Era noite quando ele chegou à Rue des Lombards e até uma hora avançada falou com seu tio Tolomei. Aquele aceitou sem dificuldade as explicações que Guccio lhe deu sobre a dívida: tinha outras preocupações na cabeça. Mas pareceu interessar-se especialmente pelas atividades do Preboste Portefruit.

Durante toda a noite, em seu sono, Guccio teve a impressão de que sonhava apenas com Maria. No dia seguinte já pensava um pouco menos nela.

Conhecia em Paris duas mulheres de mercadores, bonitas burguesas de vinte anos, que não eram cruéis para com ele. Ao fim de alguns dias já havia esquecido sua conquista de Neauphle.

Mas os destinos se formam lentamente e ninguém sabe quais dos nossos atos, surgidos ao acaso, irão se desenvolver como árvores. Ninguém podia imaginar que o beijo trocado à beira de um campo de centeio iria, um dia, modificar a história do reino da França, conduzindo a bela Maria até o berço de um rei.

Em Cressay, Maria começava a esperar.

 

A ESTRADA DE CLERMONT

Vinte dias mais tarde, a pequena cidade de Clermont-de-1'Oise era centro de extraordinária animação. Do castelo até as portas, da igreja ao prebostado, havia grande movimento de povo. Empurravam-se pelas ruas e nas tabernas, com um rumor jovial. Desde cedo as tapeçarias flutuavam nas janelas: soubera-se pelos pregoeiros públicos que Monseigneur Filipe, conde de Poitiers, segundo filho do rei, e seu tio Monseigneur de Valois vinham receber, em nome de seu soberano, sua irmã e sobrinha, a Rainha Isabel da Inglaterra.

Isabel, tendo desembarcado dois dias antes em terra da França, viajava através da Picardia. Deixara Amiens pela manhã e, se tudo corresse bem, chegaria a Clermont no fim da tarde. Dormiria ali e no dia seguinte, já com sua escolta da Inglaterra reunida à da França, iria para Pontoise, onde seu pai, Filipe, o Belo, a esperava no Castelo de Maubuisson.

Pouco depois das vésperas, prevenidos da chegada próxima, o preboste, o capitão da cidade e os escabinos passaram a Porta de Paris para apresentar as chaves. Filipe de Poitiers, que cavalgava na vanguarda, deu-lhes boas-vindas e penetrou em primeiro lugar em Clermont.

Atrás dele, dentro de grande nuvem de poeira levantada pelos cavalos, vinham mais de cem gentis-homens, escudeiros, criados e soldados, tanto de seu séquito como do de Carlos de Valois.

Uma cabeça dominava todas as outras, a do colossal Roberto d'Artois, cuja passagem atraía todos os olhares. Realmente, aquele senhor, montado num alto cavalo percherão rucilho — para cavaleiro gigantesco, montaria gigantesca —, usando botas vermelhas e cota de armas de veludo vermelho, tinha uma aparência deveras assustadora. Quando em muitos cavaleiros a fadiga já se fazia sentir, ele continuava direito em sua sela, como se acabasse de montar naquele momento.

Na verdade, desde a partida de Pontoise, Roberto d'Artois trazia consigo, para se sustentar e refrescar a alma, o agudo sentimento do triunfo. Só ele sabia qual era o verdadeiro objetivo da viagem da jovem rainha da Inglaterra, só ele sabia quais os acontecimentos, por ele desencadeados para satisfazer sua vingança, que iriam sacudir a corte da França. E, antecipadamente, tirava daquilo um gozo áspero e secreto.

Durante todo o trajeto não cessara de vigiar Gautier e Filipe d'Aunay, que faziam parte do cortejo, o primeiro como escudeiro do Conde de Poitiers, e o outro de Carlos de Valois. Os dois jovens estavam encantados com aquele movimento e com todo aquele aparato real. Para brilhar melhor eles tinham, em sua inocência e vaidade, prendido a suas vestes de gala as belas bolsas, presente de suas amantes. E vendo-as nos cintos deles, Roberto d'Artois sentia passar em seu peito ondas de enorme alegria cruel, e mal podia evitar o riso. "Vamos, meus lindinhos, meus papalvos", dizia ele consigo, "sorri, pois, pensando nos belos seios de vossas amantes. Pensai bem nisso, porque não tocareis mais neles. E respirai o dia de hoje, porque acredito bem que não tereis muitos outros. Vão fazer estourar vossas bonitas cabeças, que não têm cérebro, que parecem simples nozes."

Ao mesmo tempo, como um tigre enorme brincando com sua presa e mantendo as garras escondidas, dirigia aos irmãos d'Aunay cumprimentos cordiais, ou atirava-lhes alguma exclamação sonora e jubilosa. Desde que os salvara da falsa emboscada da Torre de Nesle, estes testemunhavam-lhe amizade e sentiam-se como seus obrigados.

Quando o cortejo se deteve na praça, os irmãos convidaram d'Artois a esvaziar com eles um canjirão de vinho bem fresco. Diante de seus copos altos, dizia consigo Roberto d'Artois: "Bebei, meus irmãozinhos, bebei agora, e guardai bem o gosto deste vinho".

Em torno deles, a taberna vibrava com uma alegria fácil, de gritos e palavras lançadas ao sol.

Na cidade em festa vendia-se como em dia de feira, e do castelo real18 até a igreja corria o fluxo de densa multidão, que atrasava os cavalos.

As grandes flâmulas de tecidos multicores que ornavam as janelas flutuavam ao vento. Um mensageiro chegou a galope, anunciando a aproximação da rainha, e houve um grande movimento confuso.

— Apressai nossa gente — disse Filipe de Poitiers a Gautier d'Aunay, que acabara de reunir-se a ele.

Depois, o segundo filho do rei voltou-se para Carlos de Valois:

— Chegamos na hora exata, meu tio. A rainha não esperará.

Carlos de Valois, todo vestido de azul, um pouco congestionado pela fadiga, contentou-se em inclinar a cabeça. Ele teria bem dispensado aquela viagem a cavalo, e sentia-se propenso à rabugice.

Os sinos da igreja começaram a tocar e seu alarido rolou contra os muros da cidade. O cortejo avançou pela estrada de Amiens.

Roberto d'Artois aproximou-se dos príncipes e começou a caminhar bota a bota com Poitiers. Embora despojado da herança do Artois, Roberto nem por isso era menos primo do rei, e seu lugar encontrava-se entre as primeiras coroas da França. Olhando a mão de Filipe de Poitiers fechar-se sobre as rédeas de seu cavalo alazão, Roberto pensava: "Foi por ti, meu magro primo, foi para te darem o Franco-Condado que me tiraram o meu Artois. Mas antes que termine o dia de amanhã receberás um golpe, do qual a honra de um homem não se recupera tão facilmente".

Filipe, conde de Poitiers e marido de Joana de Borgonha, tinha vinte e um anos. Pelo físico, tanto como pela maneira de ser, era diferente de todo o resto da família real. Não se apresentava tão belo e dominador como seu pai, nem tão gordo e impetuoso como seu tio. Magro de corpo e rosto, a estatura elevada, os membros estranhamente longos, tinha sempre gestos medidos, voz precisa e um pouco seca. Os traços, a simplicidade das vestes, a cortesia controlada das expressões, tudo nele revelava uma natureza refletida, decidida, onde a cabeça ficava acima dos movimentos do coração. Já era, no reino, uma força com a qual se devia contar.

A uma légua de Clermont os dois cortejos, o da rainha da Inglaterra e o dos príncipes, encontraram-se. Oito servidores da casa da França agruparam-se de um lado do caminho e lançaram com suas trompas sons longos e monótonos. Os corneteiros ingleses responderam com instrumentos semelhantes, mas duma sonoridade mais aguda. Depois os príncipes adiantaram-se, e Isabel, esbelta e direita em sua hacanéia branca, recebeu as breves palavras de boas-vindas de seu irmão Filipe de Poitiers. A seguir, foi Carlos de Valois quem veio beijar a mão de sua sobrinha, e depois coube a vez ao Conde d'Artois, que na grande inclinação de cabeça e no olhar que lançou à jovem rainha soube sugerir-lhe que tudo estava como tinham previsto.

Enquanto se trocavam cumprimentos, perguntas e novidades, as duas escoltas esperavam e observavam. Os cavaleiros franceses julgavam os costumes dos ingleses, e esses últimos, imóveis e dignos, com o sol nos olhos, usavam altivamente seus escudos peitorais com os três leões da Inglaterra. Sentia-se que estavam seguros de si e preocupados em fazer bela figura em terra estrangeira.

Da grande liteira azul e ouro que seguia a rainha ergueu-se um grito de criança.

— Minha irmã — disse Filipe —, então trouxestes nosso sobrinhozinho nesta viagem? É bem duro, para uma criança tão pequena.

— Eu não teria sossego se o deixasse em Londres sem mim. Sabeis como estou cercada... — respondeu Isabel.

Filipe de Poitiers e Carlos de Valois perguntaram-lhe qual era o fim de sua visita, e ela lhes disse, simplesmente, que desejara ver seu pai. Ambos compreenderam que não saberiam mais nada, pelo menos naquele momento.

Isabel declarou-se um tanto fatigada e pediu para descer de sua égua branca, tomando lugar na grande liteira tirada por duas mulas inteiramente ajaezadas de veludo, uma nos varais da frente e outra nos varais de trás. As duas escoltas puseram-se em marcha para Clermont.

Aproveitando do fato de Poitiers e Valois terem voltado à vanguarda do cortejo, d'Artois dirigiu seu cavalo para junto da liteira.

— Estais mais bela cada vez que vos vemos, minha prima — disse ele.

— Não é preciso mentir. Não posso estar bela, com certeza, depois de doze horas de caminhos e poeira — respondeu a rainha.

— Quando alguém vos amou em sua lembrança durante longas semanas, esse alguém não vê a poeira, vê apenas vossos olhos.

Isabel acomodou-se melhor em suas almofadas. Sentia-se novamente tomada por aquela singular fraqueza que se apoderara dela em Westminster, diante de Roberto. "É, pois, verdade que ele me ama", pensava ela, "ou está simplesmente me fazendo os cumprimentos que faz a qualquer mulher?" Por entre as cortinas da liteira via o flanco do cavalo rucilho, a imensa bota vermelha e a espora de ouro do Conde d'Artois, bem como aquela coxa gigante, cujos músculos se salientavam. E perguntava a si própria se cada vez que se encontrasse na presença daquele homem sentiria a mesma perturbação, o mesmo desejo de abandonar-se, o mesmo anelo de ceder a domínios desconhecidos... Fez um esforço para se dominar. Não tinha vindo para pensar em si.

— Meu primo — disse ela —, desejo que me ponhais ao corrente do que tendes a me dizer, depressa, aproveitando este momento em que podemos falar.

Rapidamente, e fingindo comentar para ela a paisagem, Roberto contou-lhe o que sabia e o que fizera, a vigilância que estabelecera em torno das princesas reais, a emboscada da Torre de Nesle.

— Quais são esses homens que desonram a coroa da França? — perguntou ela.

— Caminham a vinte passos de vós. Pertencem à escolta que vos acompanha.

E deu as informações essenciais sobre os irmãos d'Aunay, seus feudos, sua parentela e suas alianças.

— Quero vê-los — disse Isabel.

Com grandes sinais, d'Artois chamou os dois jovens.

— A rainha reparou em vós — disse-lhes, piscando-lhes fortemente um olho — e eu falei-lhe a vosso respeito.

Os rostos dos d'Aunay expandiram-se de orgulho e prazer.

O gigante conduziu-os para junto da liteira, como se estivesse tratando de fazer a fortuna deles, e enquanto os jovens se inclinavam em saudação, mais baixo do que o pescoço de suas montarias, ele disse, com fingida jovialidade:

— Senhora, eis messires Gautier e Filipe d'Aunay, os mais leais escudeiros de vosso irmão e de vosso tio. Eu os recomendo à vossa benevolência. Eles são meus protegidos.

Isabel examinou por um instante os dois jovens, perguntando a si própria o que teriam eles no rosto e em suas pessoas para desviar assim de seus deveres mulheres que eram filhas de reis. Eram belos, não se poderia negar, e a beleza dos homens constrangia sempre um pouco Isabel. Depois percebeu as bolsas nos cintos dos dois cavaleiros, e seu olhar foi daqueles objetos para Roberto, que esboçou um sorriso. Dali por diante, ele podia voltar à sombra. Não precisava sequer assumir, diante da corte, o papel de delator. Aquele encontro fortuito bastava para a perda dos dois escudeiros. "Belo trabalho, Roberto, belo trabalho", dizia a si próprio.

Os irmãos d'Aunay, a cabeça cheia de sonhos, tinham ido retomar seu lugar no cortejo.

De Clermont em festa já se elevavam longos clamores de boas-vindas àquela bela rainha de vinte e dois anos, que trazia à corte da França a mais surpreendente das infelicidades.

 

TAL PAI, TAL FILHA

Na noite da chegada de Isabel, o rei estava a sós com sua filha, num aposento do Castelo de Maubuisson, onde gostava de se isolar.

— É ali que tomo conselho comigo mesmo — tinha ele declarado a seus familiares, num dia em que consentira em falar.

Sobre a mesa, um candelabro de prata, de três braços, iluminava um rolo de pergaminhos, dos quais o rei terminava o exame e as assinaturas. O parque sussurrava ao crepúsculo, e Isabel, com o rosto voltado para a noite, olhava as sombras irem tomando uma por uma as árvores.

Desde o tempo de Branca de Castela, Maubuisson, situado nas proximidades de Pontoise, era moradia real, e Filipe transformara aquele lugar em seu ponto habitual de vilegiatura. Gostava daquele domínio silencioso, fechado por altas muralhas, com seu parque, seus jardins e sua abadia, onde as irmãs beneditinas levavam vida tranqüila. O próprio castelo não era grande, mas Filipe, o Belo, apreciava sua calma, e preferia Maubuisson às suas moradias mais vastas.

Isabel aproximara-se de suas três cunhadas, Margarida, Joana e Branca, com um rosto perfeitamente sorridente, e respondera em tom de circunstância às suas palavras de acolhimento.

A ceia fora rápida. E agora Isabel estava fechada com seu pai, a fim de cumprir a ação atroz e necessária que resolvera levar a cabo. O Rei Filipe observava-a com aquele olhar gelado que dirigia a todas as criaturas humanas, mesmo que se tratasse de sua própria filha. Esperava que ela falasse e ela não ousava falar. "Vou inquietá-lo tanto!", pensava a rainha. E subitamente, por causa daquela presença, daquele parque, daquelas árvores, daquele silêncio, Isabel foi tomada por uma rajada de recordações da infância, e sentiu apertar-lhe a garganta um sentimento amargo de piedade de si própria.

— Meu pai — disse ela —, meu pai, como sou infeliz! Ah! como a França me parece longe, desde que sou rainha da Inglaterra! E como lamento os dias que já se passaram!

E teve de lutar contra um inimigo imprevisto: as lágrimas.

Após um momento de silêncio, sem se aproximar dela, docemente mas sem nenhum calor, Filipe, o Belo, perguntou:

— Foi para me informar sobre isso, Isabel, que empreendestes toda esta viagem?

— E se não for a meu pai, a quem direi eu que não conheço a felicidade? — respondeu ela.

O rei olhou a noite por trás da janela de vidraças brilhantes, depois as velas, depois o fogo.

— A felicidade... — disse ele, lentamente. — Que é a felicidade, pois, minha filha, senão a aceitação do próprio destino? Senão aprender a dizer sempre sim a Deus... e muitas vezes aos homens?

Estavam sentados face a face, em cadeiras de carvalho, sem almofadas.

— Eu sou rainha, é verdade — disse ela, em voz baixa. — Mas por acaso tratam-me como rainha, lá onde vivo?

— Maltratam-vos?

Ele pusera bem pouca surpresa no tom de sua pergunta. Sabia muito bem o que ela ia responder.

— Ignorais quem é aquele com o qual me casastes? — disse ela, vivamente. — É um marido, aquele que desertou de meu leito desde o primeiro dia? Aquele a quem nem os cuidados, as atenções, os sorrisos que venham de mim arrancam uma palavra? Aquele que foge de mim como se eu fosse doente, e distribui, nem mesmo a favoritas, mas a homens, meu pai, a homens, os favores que me negou?

Filipe, o Belo, sabia tudo aquilo havia muito tempo, e sua resposta também, havia muito tempo, estava pronta.

— Eu não vos casei com um homem — disse ele —, mas com um rei. Não vos sacrifiquei em conseqüência de um erro. Será preciso que eu vos ensine a vós, Isabel, o que devemos aos nossos Estados, e que não nascemos para nos deixar dominar pelas dores das pessoas? Não vivemos nossas próprias vidas, mas as dos nossos reinos, e só nisso poderemos encontrar satisfação... se nos dobrarmos ao nosso destino.

Ele se aproximara um pouco dela, falando, e a claridade das chamas esculpia as sombras sobre seu rosto e melhor lhe desenhava a beleza e acentuava aquele ar de sempre desejar vencer-se, e de se sentir orgulhoso por se ter vencido.

Mais do que as palavras, aquela expressão do rei e aquela beleza libertaram Isabel de toda a debilidade. "Eu não poderia amar senão um homem que se parecesse com ele", pensou a rainha, "e não amarei nunca, nem serei amada, porque não encontrarei jamais um homem que se lhe assemelhe."

Depois, em voz alta:

— Gostei que me recordásseis aquilo a que devo veneração. Não foi para chorar que vim à França, meu pai. Gostei também de ouvir-vos falar no respeito de si próprio que convém às pessoas reais, e dizer que a felicidade não deve contar para nós. Gostaria apenas que em torno de vós todos pensassem da mesma maneira.

— Por que viestes? Ela tomou fôlego.

— Porque meus irmãos casaram-se com rameiras, meu pai, e eu soube disso e sinto-me tão inflexível como vós quando se trata de defender a honra.

Filipe, o Belo, suspirou.

— Vós não gostais, eu o sei, de vossas cunhadas. Mas o que vos separa...

— O que me separa delas é o que separa uma mulher honesta de uma prostituta! — disse Isabel, friamente. — Ouvi, meu pai! Sei coisas que vos esconderam. Ouvi-me, porque não vos trago apenas palavras. Conheceis o jovem Messire Gautier d'Aunay.

— Há dois irmãos que eu sempre confundo. O pai deles esteve comigo na Flandres. Aquele de que me falais é casado com Agnès de Montmorency, não é? E pertence a meu filho, o Conde de Poitiers, como escudeiro.

— Pertence também à vossa nora Branca, mas de outra forma. Seu irmão mais moço, Filipe, que vive no palácio de meu tio de Valois...

— Sim — disse o rei —, sim...

Coisa muito rara, uma ruga marcava-lhe a fronte.

— ... Pois bem! Esse é de Margarida, que escolhestes para ser um dia a rainha da França. Quanto a Joana, não lhe apontam amante, porque sem dúvida ela o esconde melhor do que as outras. Mas sabe-se, ao menos, que ela cobre os prazeres de sua irmã e de sua prima, protege as visitas galantes à Torre de Nesle, e cumpre bem um ofício que tem nome... E sabei que toda a corte fala, menos a vós. Filipe, o Belo, levantou a mão.

— Tendes provas, Isabel?

Isabel revelou então a história das bolsas.

— Ireis encontrá-las à cinta dos irmãos d'Aunay. Eu própria as vi, no caminho. Era tudo quanto vos tinha a dizer.

Filipe, o Belo, olhava para sua filha. Parecia-lhe que, sob seus olhos, ela acabara de mudar bruscamente de alma e de rosto. Fizera sua acusação sem hesitar, sem enfraquecer, e ali estava, direita na sua cadeira, os lábios cerrados, com qualquer coisa de gelado e irredutível no fundo dos olhos. Falara não por baixeza ou ciúme, mas por justiça. Era, verdadeiramente, sua filha.

O rei levantou-se, sem responder. Ficou um longo momento de pé diante de uma janela, sempre com aquela ruga profunda a atravessar-lhe a fronte.

Isabel não se movia, esperando as conseqüências do que tinha desencadeado, pronta a dar outras informações.

— Vinde — disse subitamente o rei. — Vamos aos aposentos delas.

Abriu a porta, depois atravessou um longo corredor sombrio, empurrou uma segunda porta. Bruscamente, o vento da noite envolveu-os, fazendo flutuar e bater atrás deles suas longas vestes.

As três noras tinham seus aposentos na outra ala do Castelo de Maubuisson. Da torre onde ficava o gabinete do rei chegava-se àqueles aposentos seguindo um caminho de sentinela, coberto. Junto de cada ameia, um guarda dormitava. Curtas rajadas de vento sacudiam as ardósias. Do chão, lá embaixo, vinha o cheiro da terra úmida.

Sem uma palavra o rei e sua filha seguiram o caminho da sentinela. Seus passos soavam juntos sobre as lajes, e de dez em dez toesas um archeiro se levantava.

Quando chegou diante da porta dos aposentos das princesas, Filipe, o Belo, parou por um momento. Escutava. Risos e pequenos gritos de alegria vinham até ele através da porta. O rei olhou para Isabel.

— É preciso — disse ele.

Isabel inclinou a cabeça, sem responder, e Filipe, o Belo, abriu a porta. Margarida, Joana e Branca soltaram um grito de surpresa e seus risos cessaram bruscamente.

Estavam brincando com fantoches, e divertiam-se reconstituindo uma cena inventada por elas, e que, dirigida por hábil pelotiqueiro, muito agradara às princesas um dia em Vincennes, mas irritara o rei.

Os fantoches eram feitos à imagem das principais personagens da corte. O pequeno cenário representava o quarto do rei, onde este estava deitado num leito guarnecido com uma cortina de ouro. Monseigneur de Valois batia à porta e pedia para falar a seu irmão. Hugo de Bouville, o camareiro, respondia que o rei não podia receber e que proibira que alguém lhe falasse. Monseigneur de Valois partia, cheio de cólera. Vinham em seguida bater à porta os fantoches de Luís de Navarra e de seu irmão Carlos. Bouville dava aos filhos do rei a mesma resposta. Enfim, precedido de três sargentos segurando maças, apresentava-se Enguerrand de Marigny. Imediatamente eram abertas para trás as portas e lhe diziam: "Monseigneur, sede bem-vindo: o rei deseja muito falar convosco".

Aquela sátira aos hábitos da corte irritara grandemente Filipe, o Belo, que proibira que se repetisse a representação. Mas as três jovens princesas tinham passado por cima da proibição e, em segredo, divertiam-se com aquilo, tanto mais que se tratava de uma diversão proibida.

Variavam o texto, e enriqueciam-no com achados e gracejos, sobretudo quando manejavam os fantoches que figuravam seus maridos.

À entrada do rei e de Isabel, sentiram-se como colegiais apanhadas em falta.

Rapidamente Margarida apanhou um casaco que estava atirado sobre uma cadeira e vestiu-o, para cobrir seu belo colo demasiado despido. Branca levantava os cabelos que tinha desarranjado, simulando uma discussão com seu tio Valois.

Joana, que conservava melhor a calma, disse muito depressa:

— Terminamos, sire, terminamos agora mesmo, e vós poderíeis ter ouvido que nada vos feria. Vamos pôr tudo em ordem.

Bateu palmas.

— Olá! Beaumont, Comminges! minhas caras...

— É inútil chamar vossas damas — disse secamente o rei.

Mal tinha olhado para a brincadeira das jovens. Olhava para elas. Dezesseis anos, vinte e um, vinte e um anos; todas as três bonitas, cada uma à sua maneira. Depois de sua chegada, vira-as crescer e embelezarem-se para desposar seus filhos. Mas não pareciam ter adquirido mais juízo do que possuíam então. Brincavam ainda com fantoches, como garotas desobedientes. Seria possível que Isabel tivesse dito a verdade? Seria possível que uma tão grande malícia de mulher se tivesse instalado naqueles seres que ali estavam e que lhe pareciam sempre crianças? "Talvez", pensava ele, "eu não entenda nada de mulheres."

— Onde estão vossos esposos? — perguntou-lhes.

— Na sala de armas, sire — respondeu Joana.

— Como vedes, eu não vim sozinho — disse ele. — Vós dizeis freqüentemente que vossa cunhada não gosta de vós. E, entretanto, contaram-me que ela vos deu um belo presente, a cada uma...

Isabel viu que os olhos de Margarida e de Branca se apagavam, como se lhes tivessem soprado o brilho.

— Quereis — prosseguiu lentamente Filipe, o Belo — mostrar-me as bolsas que recebestes da Inglaterra?

O silêncio que se seguiu separou o mundo em dois. Havia, de um lado, Filipe, o Belo, Isabel, a corte, os barões, os reinos; e de outro lado, começando a entrar num horroroso pesadelo, as três noras do rei de ferro.

— Bem! — disse o rei. — Por que este silêncio? Continuava a olhar fixamente para elas, com seus olhos imensos cujas pálpebras jamais palpitavam.

— Deixei a minha em Paris — disse Joana.

— Eu também, eu também — disseram imediatamente as outras duas.

Filipe, o Belo, lentamente, dirigiu-se à porta que dava para os corredores, e ouviu-se a madeira estalar sob seus passos. As três jovens senhoras, lívidas, observavam seu gesto.

Ninguém olhava para Isabel. Ela se encostara à parede, um pouco para além da lareira, e respirava em pequenos arquejos.

O rei disse sem se voltar:

— Já que deixastes vossas bolsas em Paris, vamos pedir aos jovens d'Aunay que vão buscá-las imediatamente.

Abriu a porta, chamou um dos guardas e ordenou-lhe que fosse buscar os dois escudeiros.

Branca não resistiu. Deixou-se cair sobre um tamborete,

a cabeça vazia de sangue, o coração parado, e sua fronte inclinou-se para o lado, como se ela fosse deslizar para o chão. Joana agarrou-a pelo braço, junto do ombro, e sacudiu-a para lhe dar forças.

Margarida, com suas mãozinhas morenas, torcia maquinalmente o pescoço do fantoche que representava Marigny e com o qual ela brincava alguns momentos antes.

Isabel não se movia. Sentia sobre si os olhares de Margarida e de Joana, olhares de ódio que lhe diziam bastante seu papel de delatora. E subitamente caíra sobre a rainha uma grande fadiga. "Irei até o fim", pensou ela.

Os irmãos d'Aunay entraram rápidos, embaraçados, empurrando-se quase, em seu desejo de bem servir e de se fazer valer.

Isabel, sem deixar a parede contra a qual se apoiava, estendeu a mão e disse somente:

— Meu pai, esses cavaleiros parecem ter adivinhado vosso pensamento, pois que aqui vos trazem as bolsas pendentes de sua cintura.

Filipe, o Belo, voltou-se para suas noras:

— Podeis me dizer como é que esses escudeiros estão enfeitados com os presentes que vos deu vossa cunhada?

Nenhuma respondeu.

Filipe d'Aunay olhou para Isabel com espanto, tal como um cão que não compreende por que lhe batem, e depois voltou os olhos para o irmão mais velho, procurando proteção. Gautier tinha a boca entreaberta.

— Guardas! — gritou o rei.

Sua voz fez passar um frio na espinha de todos os presentes e repercutiu, insólita, terrível, através do castelo e da noite. Havia mais de dez anos, desde a Batalha de Mons-en-Pévèle exatamente, quando ele tornara a espicaçar as tropas levando-as à vitória, ninguém o ouvira mais gritar, e ninguém mais se lembrava da força que podia ter aquela garganta. Foi aquela, aliás, a única palavra que pronunciou assim.

— Chamai os archeiros! Fazei vir o vosso capitão — disse ele aos homens que acorreram.

Houve rápidas galopadas e Messire Alain de Pareilles apareceu, cabeça nua, terminando de se ajaezar.

— Messire Alain — disse o rei —, prendei estes dois homens. Para a masmorra, para os ferros. Terão que responder diante da minha justiça pela felonia.

Filipe d'Aunay quis adiantar-se.

— Sire — balbuciou ele —, sire...

— Basta — disse Filipe, o Belo. — É a Messire de Nogaret que tendes de falar agora... Messire Alain — continuou ele —, as princesas serão guardadas aqui por vossos homens até novo aviso. Estão proibidas de sair, e seja quem for, suas servas, seus parentes, e mesmo seus maridos, ficam proibidos de entrar aqui e de falar com elas. Ficais responsável por isso.

Por mais surpreendentes que fossem as ordens, Alain de Pareilles ouviu-as sem tremer. O homem que prendera o grão-mestre dos templários já não podia surpreender-se com coisa alguma. A vontade do rei era sua única lei.

— Ide, messires — disse ele aos dois irmãos d'Aunay, designando-lhes a porta.

Deu instruções a seus archeiros, para a execução das que recebera.

Pondo-se em marcha, Gautier murmurou para seu irmão:

— Oremos a Deus, meu irmão, porque tudo acabou... Depois seus passos, cobertos pelos dos soldados, foram-se pouco a pouco esmaecendo.

Margarida e Branca ouviam aqueles passos que se afastavam. Eram seus amores, sua honra, sua fortuna, sua vida inteira que se iam. Joana perguntava a si própria se conseguiria alguma vez desculpar-se. Margarida, bruscamente, atirou ao fogo o fantoche que tinha nas mãos.

Branca, de novo, estava quase a perder os sentidos.

— Vem, Isabel — disse o rei.

Saíram. A rainha da Inglaterra vencera, mas sentia-se cansada e estranhamente comovida porque seu pai lhe dissera: "Vem, Isabel". Era a primeira vez que ele a tuteava, desde sua mais recuada infância.

Retornaram, um seguindo o outro, pelo caminho da sentinela. O vento de leste empurrava no céu enormes nuvens negras. Filipe deixou Isabel na porta de seus aposentos e, levando consigo o candelabro de prata, partiu à procura de seus filhos.

Sua grande sombra e o ruído de seus passos acordavam os guardas nos corredores desertos. O coração pesava-lhe no peito e ele não sentia as gotas de cera que corriam sobre sua mão.

 

MAFALDA DE BORGONHA

No meio da noite, dois cavaleiros se afastaram do Castelo de Maubuisson: eram Roberto d'Artois e seu fiel e inseparável Lormet, ao mesmo tempo servo, criado de armas, companheiro de estrada, confidente e executor de todos os ofícios.

Desde o dia em que d'Artois o distinguira entre os camponeses de sua Conches, ligando-o à sua pessoa, Lormet não tinha, por assim dizer, se separado dele mais do que um palmo. Era uma coisa maravilhosa ver aquele homenzinho redondo, espadaúdo e já encanecendo inquietar-se a todo momento por aquele jovem gigante que era seu senhor, e segui-lo passo a passo, com o fim de protegê-lo. Sua astúcia era tão grande e tão eficaz quanto o seu devotamento. Fora ele quem servira de barqueiro para passar os irmãos d'Aunay na noite da emboscada.

Nascia o sol quando os dois cavaleiros chegaram às portas de Paris. Puseram a passo seus cavalos que fumegavam, e Lormet bocejou uma boa dezena de vezes. Cinqüenta anos antes, resistia melhor que um jovem escudeiro às longas corridas a cavalo. Hoje, porém, não dormir o derrubava.

Na Place de Grève fazia-se a reunião habitual de trabalhadores à procura de ocupação. Contramestres dos estaleiros do rei e chefes de barcos circulavam entre os grupos e engajavam ajudantes, descarregadores e moços de recados. Roberto d'Artois atravessou a praça e meteu-se pela Rue Mauconseil, onde morava sua tia Mafalda d'Artois, condessa da Borgonha.

— Ah! meu bom Lormet — disse o gigante —, quero que aquela cadela gordíssima ouça a notícia de sua desgraça e minha própria boca. Eis uma das grandes manhãs de prazer da minha vida. Não há rosto de moça bonita e apaixonada que me dê mais prazer do que a cara nojenta da minha ha quando eu lhe contar o que se passa em Maubuisson.

E quero que ela vá a Pontoise, que vá zurrar diante do rei e que rebente de raiva.

Lormet bocejou por muito tempo.

— Ela rebentará, monseigneur, ela rebentará, podeis ter certeza, pois que fazeis tudo quanto podeis para isso — disse ele.

Chegavam então ao esplêndido palácio dos condes d'Artois.

— Dizer que foi meu avô que o construiu. Dizer que eu é quem devia viver aqui! — continuou Roberto.

— Vivereis aqui, monseigneur, vivereis aqui.

— E farei de ti porteiro, com cem libras por ano.

— Obrigado, monseigneur — respondeu Lormet, como se já estivesse naquela alta função e com o dinheiro no bolso.

D'Artois saltou de seu cavalo percherão, atirou a rédea a Lormet e agarrou a aldrava, com a qual deu pancadas capazes de rachar a porta.

O ruído repercutiu de alto a baixo no prédio. O batente de carvalho abriu-se, dando passagem a um guarda muito alto, bem acordado, e que tinha na mão um cacete grosso, capaz de matar um boi.

— Quem está aí? — perguntou o servo, indignado com semelhante alarido.

Mas Roberto d'Artois empurrou-o e entrou no palácio. Não faltava gente nos corredores e nas escadarias: uma dezena de criados e de servos movimentavam-se, fazendo a limpeza matinal da casa. A inquietude pintou-se em todos os rostos. Roberto, empurrando todo mundo, subiu ao andar onde ficavam os aposentos de Mafalda. E soltando um "olá" que faria empinar uma fileira de cavalos fez surgir um criado, todo esbaforido, e que trazia um balde na mão.

— Minha tia, Picard! Preciso ver minha tia imediatamente.

Picard, homem de cabeça chata e cabelo raro, pousou seu balde e respondeu:

— Ela está à mesa, senhor!

— Está bem! Eu não me incomodo com isso! Vai preveni-la da minha chegada, e anda depressa!

Tendo imediatamente composto um rosto onde se pintavam o desgosto e a angústia, Roberto d'Artois, fazendo tremer o chão sob seu peso, seguiu o criado até o quarto de Mafalda.

A Condessa Mafalda d'Artois, ex-regente do Franco-Condado da Borgonha e par da França, era uma robusta mulher de uns cinqüenta anos, carcaça sólida, corpo maciço, ancas fortes. Com uma cabeça que tinha sido bela, conservava ainda, sob a máscara deformada pela gordura, a altivez segura de si mesma. Tinha a testa alta, larga e curva, cabelos ainda negros, o lábio um tanto penugento demais, a boca vermelha e o queixo pesado.

Tudo era grande naquela mulher, os traços, os membros, o apetite, as cóleras, a avidez de possuir, as ambições e o gosto do poder. Com a energia de um guerreiro e a tenacidade de um jurisconsulto, ia do Artois para a Borgonha, de sua corte de Arras para a sua corte de Dôle, vigiando a administração de seus dois condados, exigindo obediência de seus vassalos, manejando a força alheia, mas ferindo sem piedade o inimigo descoberto.

Doze anos de lutas com seu sobrinho tinham-na levado a conhecê-lo bem. Cada vez que surgia uma dificuldade, cada vez que os senhores d'Artois recalcitravam, que uma cidade protestava contra o imposto, ela podia estar certa de que Roberto estava atrás daquilo.

"É um lobo selvagem, um grande lobo, cruel e falso", dizia ela, falando do sobrinho. "Mas tenho a cabeça sólida, e ele acabará por se matar sozinho, à força de tanto teimar."

Mal se falavam, havia longos meses, e não se viam senão pelas obrigações da corte.

Naquela manhã, sentada diante de uma mesinha armada junto de sua cama, ela comia, fatia por fatia, um patê de lebre que constituía o início de seu cardápio matinal.

Da mesma forma com que Roberto se aplicara em fingir perturbação e emotividade, ela se aplicou, quando o viu entrar, em fingir naturalidade e indiferença.

— Oh! Ora viva, meu sobrinho. Assim tão esperto, logo de madrugada! — disse ela, com voz sem surpresa. — Chegas como a tempestade! De onde vem essa pressa?

— Minha tia! Minha tia! — exclamou Roberto. — Tudo está perdido!

Mafalda, sem mudar de atitude, regou tranqüilamente a garganta com um copo cheio de vinho do Artois, cor de rubi, que lhe vinha de suas terras, e que ela preferia a qualquer outro para começar o seu dia.

— Que foi que perdeste, Roberto? Outro processo? — perguntou.

— Minha tia, juro-vos que não é este o momento para nos espicaçarmos. A desgraça que cai sobre nossa família não permite gracejos.

— E que desgraça para um de nós pode ser desgraça também para o outro? — disse Mafalda com tranqüilo cinismo.

— Minha tia, estamos nas mãos do rei.

Mafalda deixou transparecer um pouco de inquietação no olhar. Perguntava a si própria que armadilha lhes estavam querendo armar, e que significaria todo aquele preâmbulo.

Com um gesto que lhe era familiar, arregaçou as mangas para cima dos cotovelos. Depois colocou a mão sobre a mesa e chamou:

— Teodorico!

— Minha tia, não posso falar deste assunto diante de mais ninguém — disse Roberto. — Porque o que vos venho contar diz respeito à nossa honra.

— Bah! Podes dizer tudo diante do meu chanceler. Desconfiava dele, e queria ter uma testemunha. Durante um curto instante mediram-se com os olhos, ela atenta, ele deleitando-se com a comédia que representava. "Chama, então, a tua gente", pensava ele. "Chama, e que todos ouçam."

Era uma coisa singular ver como se observavam, mediam e enfrentavam aqueles dois seres que tinham tantos traços naturais em comum, aqueles dois bois do mesmo sangue, que se pareciam tanto e tanto se detestavam.

A porta se abriu, e Teodorico apareceu. Antigo cônego capitular da Catedral de Amiens, chanceler de Mafalda na administração do Artois, e também um pouco o amante da condessa, aquele homenzinho balofo, de rosto gordo, nariz pontudo e branco dava uma surpreendente impressão de segurança e autoridade. Tinha lábios delgadíssimos e muita crueldade no olhar. Acreditava na velhacaria, na inteligência, na tenacidade.

Cumprimentou Roberto d'Artois:

— É coisa rara a vossa visita, monseigneur — disse ele.

— Meu sobrinho, segundo parece, tem uma grande desgraça a me contar — disse Mafalda.

— Infelizmente! — fez Roberto, deixando-se cair numa cadeira.

Demorou um pouco e Mafalda começava a demonstrar impaciência:

— Tivemos, juntos, algumas questões, minha tia — começou ele.

— Bem mais do que isso, meu sobrinho. Tivemos disputas feias e que terminaram mal para ti.

— Com certeza, com certeza, e Deus é testemunha de que vos desejei todo o mal possível.

Retomava sua esperteza favorita, a boa e rude franqueza, a confissão de suas más intenções, para dissimular a arma que tinha na mão.

— Mas jamais vos teria desejado esta — continuou ele. — Porque vós sabeis que sou bom cavaleiro e firme em tudo o que concerne à honra.

— Mas que há, afinal? Fala, então! — exclamou Mafalda.

— Vossas filhas, minhas primas, foram acusadas de adultério e presas por ordem do rei; e Margarida também.

Mafalda não acusou o golpe imediatamente. Não acreditava naquilo.

— Quem te contou essa fábula?

— Eu próprio soube, minha tia, e toda a corte o sabe. Passou-se ao cair da noite de ontem.

Daí por diante teve o maior prazer em estontear a mulheraça, em colocá-la na grelha da angústia, não lhe contando do caso senão o que queria, retalho por retalho, e narrando-lhe como Maubuisson fora acordado pela cólera do rei.

— Elas confessaram? — perguntou Teodorico d'Hirson.

— Não sei — falou Roberto. — Mas os jovens d'Aunay estão neste momento para confessar por elas, entre as mãos de vosso amigo Nogaret.

— Não gosto de Nogaret — disse Mafalda. — Mesmo que elas fossem inocentes, sairiam das mãos dele negras como o alcatrão.

— Minha tia — disse Roberto d'Artois —, fiz em plena noite as dez léguas de Pontoise a Paris para vos vir avisar, porque ninguém se lembrava disso. Acreditais ainda que são maus os sentimentos que me trouxeram?

No drama e na incerteza em que se encontrava, Mafalda levantou os olhos para aquele gigante que era seu sobrinho e pensou: "Talvez ele seja capaz, de vez em quando, de uma boa ação".

Depois, em tom ríspido perguntou:

— Queres comer?

E, só por aquelas palavras, Roberto percebeu que ela estava real e duramente tocada.

Apanhou sobre a mesa um faisão frio, que cortou em dois com as mãos e que se pôs a morder. De súbito viu sua tia mudar estranhamente de cor. Primeiro o alto de seu colo, acima do traje debruado de arminho, tornou-se de um vermelho escarlate. Depois o pescoço e a parte baixa do rosto. Via-se que o sangue ia invadir-lhe o rosto, atingir-lhe a testa e torná-la rubra. A Condessa Mafalda levou a mão ao peito.

"Aí temos", pensou Roberto. "Ela rebenta, ela vai rebentar."

Mas não. A condessa endireitara-se, e ouviu-se um grande ruído: o patê de lebre, os copos e os pratos de prata, foram varridos com um grande gesto de braços, caindo no chão.

— Rameiras! — bramiu ela. — Depois de tudo o que fiz por elas, depois dos casamentos que lhes arranjei... Deixaram-se apanhar como meretrizes! Pois bem. Que percam tudo! Que as prendam, que as empalem, que as enforquem!

O antigo cônego hão se movia. Estava habituado aos furores da condessa.

— É exatamente isso que eu pensava — disse Roberto com a boca cheia. — Não souberam agradecer vossos trabalhos ...

— Preciso ir imediatamente a Pontoise — disse Mafalda,, sem ouvi-lo. — É preciso que as veja e lhes sopre o que devem responder.

— Duvido que o consigais, minha tia. Elas estão incomunicáveis e ninguém pode...

— Então falarei com o rei. Beatriz! Beatriz! — chamou ela, batendo palmas.

Um reposteiro levantou-se e uma bela jovem de uns vinte anos, morena, grande, o peito redondo e firme, a anca bem marcada, as pernas longas, entrou sem se apressar. Assim que a viu, Roberto d'Artois sentiu que ela lhe despertava o apetite.

— Beatriz, tu ouviste tudo, não foi? — perguntou Mafalda.

— Sim, senhora — respondeu a jovem. — Eu estava atrás da porta, como de costume.

Tinha uma lentidão curiosa na voz, como nos gestos, como na forma de se movimentar e de olhar. Dava uma impressão de moleza ondulante e de placidez anormal. Dir-se-ia que mesmo que um raio atravessasse a janela não conseguiria que ela andasse mais depressa, nem apagaria aquele meio sorriso tranqüilo preso ao canto de seus lábios. Mas a ironia lhe brilhava nos olhos, entre os longos cílios negros. A infelicidade dos outros, suas crises e seus dramas deviam, com certeza, ser para ela razões de regozijo.

— É a sobrinha de Teodorico — disse Mafalda a seu sobrinho, designando-a. — Fiz dela minha primeira donzela de séquito.

Beatriz d'Hirson encarava Roberto d'Artois com um cândido impudor. Estava visivelmente curiosa de conhecer aquele gigante de quem tanto ouvira falar como de um ser malfazejo.

— Beatriz — disse Mafalda —, manda atrelar minha liteira e selar seis cavalos. Partimos para Pontoise.

Beatriz continuava a olhar para Roberto, bem nos olhos, e dava impressão de nada ter ouvido. Havia naquela bela moça algo irritante e perturbador. Ela dava aos homens, desde o primeiro encontro, um sentimento imediato de cumplicidade, como se não lhes devesse opor a mínima resistência. E, ao mesmo tempo, ficava-se sem saber se ela seria razoavelmente estúpida, ou se caçoava de toda a gente.

"Esta moça", pensou Roberto, enquanto ela saía sem pressa, "esta moça, hei de possuí-la. Não sei quando, mas é coisa certa."

Do faisão restava apenas um osso, que ele atirou ao fogo. Agora sentia sede. Não tinham trazido outro vinho. Roberto apanhou de sobre uma credencia a jarra da qual Mafalda se servira — porque assim não se arriscava a ser envenenado — e tomou um grande gole.

A condessa caminhava de cá para lá, arregaçando as mangas e mordendo os lábios.

— Não vos deixarei sozinha hoje, minha tia — disse d'Artois. — Eu vos acompanho. É um dever de família.

Mafalda ergueu os olhos, ainda um pouco desconfiada. Depois resolveu, por fim, estender-lhe as mãos.

— Tu me fizeste muito mal, Roberto, e aposto como ainda me farás. Hoje, porém, devo reconhecer que te estás comportando como um bom moço.

 

O SANGUE DOS REIS

O dia começava a invadir o aposento em que Nogaret interrogara os irmãos d'Aunay, uma adega comprida e baixa do velho Castelo de Pontoise. Pelos respiradouros estreitos, que acabavam de abrir para renovar o ar, entravam baforadas de neblina clara. Um galo cantou, depois outro, e uma revoada de pardais passou rente ao solo. A tocha presa à parede crepitava, juntando seu cheiro acre ao dos corpos torturados. A sua luz era tão fraca que Guilherme de Nogaret disse, com sua voz breve, impessoal:

— A tocha.

Um dos dois carrascos deixou a parede onde se apoiava e apanhou num canto uma tocha nova; acendeu-a, encostando-a às brasas que avermelhavam os ferros, agora inúteis. Depois, enfiou-a na argola fixada ao muro. E voltou ao seu lugar, para junto de seu companheiro.

Os dois carrascos — os "torturadores", como os chamavam — tinham os mesmos traços rudes, o mesmo rosto embrutecido, com olhos circundados de vermelho pela fadiga. Seus antebraços musculosos e peludos, que conservavam sinais de sangue, pendiam ao longo de suas cotas de couro. Tinham um cheiro forte.

Nogaret apenas relanceou os olhos para eles. Levantou-se do tamborete sobre o qual se conservara sentado durante o interrogatório, e sua silhueta magra projetou uma sombra trêmula contra as pedras cinzentas.

Do fundo do aposento vinha um arquejar cortado de soluços: os dois irmãos d'Aunay pareciam gemer com a mesma voz. Os carrascos haviam-nos deixado por terra, quando terminaram a sua tarefa. Depois, sem nada perguntar a Nogaret, tinham ido apanhar as capas de Gautier e de Filipe e haviam-nas atirado sobre os jovens, como para escondê-los de si próprios.

Nogaret debruçou-se: os dois rostos tinham uma semelhança estranha. A pele estava com o mesmo tom acinzentado, cortada de laivos úmidos, e os cabelos, colados pelo suor e pelo sangue, revelavam a forma dos crânios. Um estremecimento contínuo acompanhava os gemidos, saindo de lábios estraçalhados onde se viam as marcas dos dentes.

Gautier e Filipe d'Aunay tinham sido crianças felizes, tinham sido homens felizes. Haviam vivido para seus desejos e seus prazeres, suas ambições e suas vaidades. Eram, como todos os moços de sua categoria, treinados no ofício das armas; mas haviam sofrido apenas pequenos incômodos, ou aqueles males que o espírito inventa. Ainda ontem faziam parte do cortejo do poder e todas as esperanças lhes pareciam legítimas. Uma única noite se passara: eles nada mais eram agora que animais torturados, e se alguma coisa ainda fossem capazes de desejar, seria o aniquilamento.

Nogaret endireitou-se; seu rosto não mudara. O sofrimento dos outros, o sangue dos outros, os insultos de seus inimigos, o desespero e o ódio deslizavam sobre ele como água sobre a pedra. Sua dureza lendária, aquela insensibilidade que fizera dele o servidor fiel dos mais secretos desejos do rei, não lhe custava grande esforço encontrá-la. Era assim porque assim fora feito: tinha a vocação do que pensava ser o bem público, como outros têm a vocação do amor.

Uma vocação é o nome que se dá a uma paixão. Havia na alma de chumbo e de ferro de Nogaret aquele mesmo egoísmo, aquela mesma feroz exigência que faz com que o amante sacrifique tudo ao corpo que o obseda: Nogaret vivia num mundo onde tudo se arranjava segundo uma regra que era a da razão do Estado. Os indivíduos pouco contavam a seus olhos, e ele próprio não era nada.

Há na história uma linhagem singular, sempre renascente, a dos fanáticos do interesse geral e da lei escrita. Lógicos até à inumanidade, impiedosos para com os outros como para consigo mesmos, esses servidores de deuses abstratos e de regras absolutas aceitam tornar-se carrascos, porque desejam ser os últimos carrascos. Enganam-se, porque depois de sua morte o mundo não lhes obedece.

Nogaret, torturando os irmãos d'Aunay, acreditava ajudar a vida do reino; olhara para os rostos quase anônimos de Gautier e Filipe sem pensar que se tratava de rostos de homens. Pusera inconscientemente uma sombra sobre aqueles traços deformados. Tais moços eram, para ele, apenas símbolos de desordem; ele vencera.

"Os templários foram mais duros", disse consigo mesmo. É verdade que usava agora de torturadores locais, e não dos da Inquisição de Paris.

Endireitando-se, fez uma careta, pois seus rins estavam pesados e uma dor vaga invadira-lhe as costas. "É o frio", murmurou. Mandou fechar os respiradouros e aproximou-se do tripé onde as brasas ainda luziam. Estendeu as mãos para o calor, esfregou-as uma contra a outra, depois fez uma massagem nos rins, resmungando.

Os dois carrascos, sempre encostados à parede, pareciam dormir. Do chão onde jaziam os irmãos d'Aunay subia um queixume que Nogaret não mais ouvia.

Quando acabou de aquecer o corpo voltou à mesa e apanhou um pergaminho. Depois, com um suspiro, dirigiu-se para a porta e saiu.

Então os carrascos dirigiriam-se para Gautier e Filipe, tentando levantá-los. Como não o conseguissem, tomaram nos braços aqueles corpos que tinham torturado e, assim como se carregam as crianças doentes, levaram-nos até a masmorra.

Do velho Castelo de Pontoise, que servia agora somente de sede da capitania e prisão, à residência real de Maubuisson, não havia sequer meia légua de caminho. Messire de Nogaret fez esse caminho a pé, precedido de dois sargentos do prebostado e seguido de seu escrivão, que levava os pergaminhos e o tinteiro.

Nogaret caminhava rapidamente, seu grande corpo magro deixando flutuar a capa atrás de si. Gostava do ar frio da manhã e do cheiro da floresta úmida.

Sem responder ao cumprimento dos archeiros de guarda, atravessou o pátio de Maubuisson, transpôs a entrada, sem dar atenção alguma aos cochichos nem ao ar de velório que tinham os camareiros e os gentis-homens reunidos no vestíbulo e nos corredores. Um escudeiro precipitou-se para abrir-lhe a porta e o guarda-selos encontrou-se face a face com a família real.

Filipe, o Belo, estava sentado atrás de uma comprida mesa, coberta com um tapete de seda. Seu rosto parecia mais tenso que de costume. Seus olhos imóveis tinham olheiras azuladas e ele mantinha os lábios apertados. À sua direita estava Isabel, erguida e um pouco hierática em sua atitude. A coifa plissada, rematada por um diadema leve, e as duas trancas douradas, como asas de ânfora, enquadravam-lhe o rosto e acentuavam-lhe a dureza. Era a obreira da desgraça. Partilhava aos olhos dos outros da responsabilidade do drama e, por aquele estranho elo que une o delator ao culpado, a rainha se sentia quase como acusada.

À esquerda de Filipe, o Belo, Monseigneur de Valois tamborilava nervosamente sobre a mesa e sacudia a cabeça, como se alguma coisa o incomodasse no colarinho. Outro irmão do rei, Monseigneur Luís d'Evreux, atitude calma, vestes sóbrias, estava também presente.

Depois, havia os três filhos do rei, os três esposos das princesas, sobre os quais acabara de se abater a catástrofe e o ridículo: Luís de Navarra, com seu olhar falso e seu peito cavado, que não cessava de se agitar; Filipe de Poitiers, cujo rosto de lebréu parecia ainda mais delgado, comprido, pelo esforço que fazia para se conservar calmo; e enfim Carlos, seus belos traços de adolescente devastados pelo primeiro desgosto de sua vida...

Mas Nogaret não olhou para eles; Nogaret só queria ver o rei.

Desdobrou seu pergaminho e, a um sinal do soberano, leu as minutas do interrogatório. Seu tom de voz mostrava-se tão calmo como quando fizera as perguntas a Gautier e Filipe d'Aunay. Mas em torno dele, naquela sala fria iluminada por três janelas em ogiva, sua voz tomava um acento assustador; era a família real, agora, que suportava a provação. Nada faltava, porque Nogaret gostava do trabalho bem-feito. Evidentemente, como bons gentis-homens, os irmãos d'Aunay tinham começado por negar; mas o guarda-selos tinha uma forma de interrogar diante da qual os escrúpulos e a galanteria não se agüentavam por muito tempo. O mês em que haviam começado as aventuras das princesas, os dias em que os amantes se encontravam, as noites na Torre de Nesle, os nomes dos servidores cúmplices, tudo o que, para os culpados, tinha representado paixão, febre e prazer, estava exposto, remexido, revolvido e ali se transformava em lama. E quanta gente, metida naquela intriga, devia ter-se divertido com o caso...

Mal se podia olhar para os três príncipes, que por sua vez hesitavam também em se entreolhar. Havia mais de três anos que estavam sendo escarnecidos, enganados, ludibriados, e cada palavra de Nogaret trazia-lhes um aumento de vergonha.

Em Luís de Navarra, um pensamento terrível ia-se instalando, nascido do enunciado das datas: "Durante os seis primeiros anos de nosso casamento, não tivemos filhos. E tivemos uma filha exatamente quando esse Filipe d'Aunay foi admitido ao leito de Margarida... Portanto, a pequena Joana, minha filha... talvez não seja minha..." E não ouvia mais nada porque não cessava de repetir consigo mesmo: "Minha filha não é minha... minha filha não é minha..." Um grande referver de sangue queimava-lhe o crânio.

O Conde de Poitiers, ao contrário, esforçava-se por nada perder da leitura de Nogaret. Este, apesar de todos os seus esforços, não conseguira que os irmãos d'Aunay dissessem que a Condessa Joana tinha um amante, nem pudera arrancar-lhes o nome desse amante. Depois de tudo quanto eles haviam confessado, teriam dito isso, também, se o soubessem. De que ela representara um papel bastante infame, não havia dúvida... Filipe de Poitiers refletia.

Quando Nogaret acabou, colocou as minutas sobre a mesa e Filipe, o Belo, lhe disse:

— Messire de Nogaret, instruístes-nos claramente sobre coisas dolorosas. Quando tivermos julgado, destruireis isso — e mostrou os pergaminhos — a fim de que não fique traço senão no segredo de nossos ouvidos. Podeis ir; agistes bem.

Nogaret inclinou-se e saiu.

Houve um longo silêncio, depois alguém de súbito exclamou:

— Não!

Era Carlos que se levantara. E repetia: "Não!" como se lhe fosse impossível admitir a verdade. Seu queixo tremia, suas faces estavam riscadas e ele não conseguia reter as lágrimas.

— Os templários... — disse ele, o ar desvairado.

— Que há? — perguntou Filipe, o Belo, franzindo a testa.

Não gostava que lhe lembrassem aquele fato demasiado recente. Porque o mesmo pensamento já atravessara o espírito de cada um deles: "Malditos até a décima terceira geração de vossas raças..."

Mas Carlos não pensava na maldição.

— Naquela noite — balbuciou ele —, naquela noite eles estavam juntos.

— Carlos — disse o rei —, fostes um esposo bem fraco. Fingi, ao menos, que sois um príncipe forte.

E foi a única palavra de amparo que o jovem recebeu de seu pai.

Monseigneur de Valois ainda nada dissera, e para ele era uma penitência ficar muito tempo calado. Aproveitou do momento para explodir.

— Pelo sangue de Deus! — disse ele. — Passam-se coisas estranhas no reino, e mesmo sob o teto do rei. A cavalaria morre, sire meu irmão, e toda a honra se vai com ela.

E daí partiu numa diatribe que, sob a aparência de bolha desordenada, nem por isso continha menos perfídia. Para Valois tudo se explicava assim: os conselheiros do rei (não os nomeava, mas era a Marigny que ele visava) punham abaixo as ordens de cavalaria e a moral pública desmoronava em conseqüência do mesmo golpe. Os jurisconsultos, "nascidos na escumalha", inventavam não se sabia que novo direito, tirado do direito romano, para substituir o bom e velho direito feudal, que servira tão bem aos antepassados. O resultado estava patente. No tempo das cruzadas podiam-se deixar as mulheres sozinhas durante anos: elas sabiam guardar a honra, e nenhum vassalo se teria atrevido a roubar-lha. Agora, tudo era vergonha, licenciosidade. Como? Então dois escudeiros ...

— Um dos escudeiros pertence ao vosso palácio, meu irmão — disse secamente o rei.

— Como o outro pertence ao palácio de vosso filho — replicou Valois, mostrando o Conde de Poitiers.

Este fez um gesto, separando suas longas mãos.

— Qualquer de nós — disse ele — pode ser enganado pela criatura em que tem confiança.

— E é justamente por isso — disse Valois, que de tudo fazia um argumento — que ainda é pior o crime do vassalo que pratica sedução e desonra a mulher de seu soberano, sobretudo quando se trata de esposa ou filha de reis. Os escudeiros d’Aunay faltaram...

— Considerai-os mortos, meu irmão — interrompeu o rei, com um pequeno gesto, a um tempo negligente e nítido, que valia pela mais longa sentença e riscava sem apelo duas vidas. E continuou:

— Isso não é o importante. Precisamos decidir sobre a sorte das princesas adúlteras... Permiti, meu irmão — acrescentou ele, detendo Valois que ia falar de novo —, permiti que, desta vez, eu interrogue primeiro meus filhos... Falai, Luís.

No momento de abrir a boca, Luís de Navarra foi tomado de um acesso de tosse e duas placas vermelhas vieram-lhe às maçãs do rosto: estava invadido pelo sangue da cólera. Respeitaram-lhe a sufocação.

— Logo vão dizer que minha filha é bastarda — exclamou ele assim que retomou fôlego. — Eis o que vão dizer. Uma bastarda!

— Se fordes o primeiro a proclamar isso, Luís — falou o rei, contrariado —, os outros com certeza não deixarão de repeti-lo.

— Com efeito, com efeito — disse Carlos de Valois, que ainda não tinha pensado nisso, e cujos grandes olhos brilharam bruscamente, com uma claridade bizarra.

— E por que não proclamar, se for verdade? — replicou Luís, perdendo o controle.

— Calai-vos, Luís — disse o rei da França, batendo com a mão na mesa. — Dizei apenas qual é vossa opinião quanto ao castigo de vossa esposa.

— Que ela rebente! — respondeu o rei de Navarra.

— Ela e as duas outras. Para todas as três, a morte, a morte, a morte!

Repetia "a morte" com os dentes cerrados, e sua mão, no espaço, abatia cabeças.

Então Filipe de Poitiers, tendo com um olhar pedido o consentimento do rei para falar, disse:

— A dor vos desvaria, Luís. Joana não tem na alma um pecado tão grande quanto o de Branca e Margarida. É muito culpada, naturalmente, porque serviu aos arrebatamentos das outras, em lugar de me vir denunciá-los. E com isso muito se desmereceu a meus olhos. Entretanto, Messire de Nogaret, que obtém tanta coisa, não conseguiu provar que ela tenha traído a fé conjugai.

— Fazei-a torturar por ele, e vereis se confessa ou não!

— exclamou Luís. — Ela ajudou a manchar minha honra e a de Carlos, e se dizeis amar-nos, deveis dar-lhe o mesmo castigo que tiverem as outras duas meretrizes.

Filipe de Poitiers deu então esta resposta estarrecedora, que dizia bem de seu caráter:

— Vossa honra me é cara, Luís, mas o Franco-Condado não o é menos.

Os presentes se entreolharam e Filipe prosseguiu:

— Tendes Navarra como propriedade, Luís, propriedade que vos vem de nossa mãe, e tereis, o mais tarde possível, assim permita Deus, a França. Quanto a mira, só tenho Poitiers, que nosso pai fez-me a graça de me conceder, e nem mesmo sou par da França. Mas, através de Joana, sou Conde Palatino da Borgonha, Sire de Salins, cujas minas constituem o forte de minhas rendas. E, com a morte de Mafalda, terei todo o condado. É tudo. Que Joana seja fechada num convento pelo tempo que o caso leve a ser esquecido, ou para sempre, se for necessário à honra da coroa, mas que não toquem na sua vida.

Monseigneur Luís d'Evreux, que nada dissera até então, aprovou Filipe.

— Meu sobrinho tem razão, diante de Deus como diante do reino — disse ele. — A morte é coisa grave, que para cada um de nós será grande tormento, e que não devemos decidir para os outros no momento da cólera.

Luís de Navarra atirou-lhe um olhar rancoroso.

Havia dois clãs na família, e isso já de longa data. O tio Valois gostava de seus sobrinhos Luís e Carlos, que eram fracos, influenciáveis, que se deslumbravam um tanto diante de sua facúndia e do prestígio de sua vida de aventuras, diante de seus tronos perdidos e reconquistados. Filipe de Poitiers ficava do lado do tio d'Evreux, pessoa calma, direita, refletida, e que, se a sorte tivesse querido, teria sido um rei honesto, do qual pouco se falaria. Era destituído de ambição e se contentava muito bem com suas terras, que administrava inteligentemente. O traço predominante de sua natureza era deixar-se obsedar facilmente pela idéia da morte.

Os presentes não se surpreenderam portanto, naquele negócio de família, de vê-lo apoiar a posição de seu sobrinho preferido. Conhecidas eram as suas afinidades.

Mais surpreendente foi a atitude de Valois, que depois do discurso furibundo que fizera virou do avesso e, deixando por essa vez de parte o seu caro Luís de Navarra, pronunciou-se também contra a pena de morte para as princesas. O convento, sim, era um castigo doce demais, mas a prisão, a fortaleza, a prisão perpétua (insistia na palavra "perpétua"), eis o que aconselhava.

A mansuetude, no imperador titular de Constantinopla, não era uma disposição natural. Seria necessário que ela fosse produzida por um cálculo qualquer; ora, esse cálculo surgira no momento em que Luís de Navarra pronunciara a palavra "bastarda". Com efeito... com efeito, os três filhos de Filipe, o Belo, não tinham descendência masculina. Luís e Filipe tinham uma filha cada um, mas eis que já a pequena Joana estava manchada por uma grave suspeita de ilegitimidade, o que poderia causar obstáculos à sua eventual subida ao trono. Carlos tivera duas filhas, natimortas... Se as esposas culpadas fossem executadas, os três príncipes se apressariam a casar novamente, e teriam boas possibilidades de obter filhos. Ao passo que se as princesas fossem aprisionadas perpetuamente eles continuariam casados, impedidos de contrair novo matrimônio, e sem grande posteridade. Havia a anulação, era verdade ... mas adultério não constituía motivo para anulação... Tudo isso ia-se desenrolando bem rapidamente na cabeça daquele príncipe imaginativo. Tal como os capitães que, partindo para a guerra, sonham com a eventualidade de ver mortos todos os oficiais que estão acima deles e já se imaginam levados ao comando do exército, o tio Valois, olhando para o peito cavado de seu sobrinho Luís, para a magreza de seu sobrinho Filipe, pensava que a doença bem poderia fazer devastações imprevistas. Havia também os acidentes nas caçadas, as lanças que se quebram nos torneios, os cavalos que empinam; e já vira muitos tios sobreviverem aos sobrinhos...

— Carlos! — disse o homem de pálpebras imóveis, que no momento era o único e verdadeiro rei da França.

Valois estremeceu, como se receasse que lhe surpreendessem o pensamento.

Mas não era a ele, era a seu filho mais moço que Filipe, o Belo, se dirigia.

O jovem príncipe retirou as mãos do rosto. Não cessara de chorar.

— Branca, Branca, como foi possível, meu pai? Como ela pôde fazer uma coisa dessas? — gemeu ele. — Dizia-me tanto que me amava, e provava-o tão bem.

Isabel teve um movimento de impaciência e desprezo. "Esse amor dos homens pelos corpos que possuíram", pensou ela, "e essa facilidade com que engolem a mentira, contanto que possuam o ventre que desejam! É, pois, tão importante isso para eles, esse ato que me repugna e me magoa?"

— Carlos — insistiu o rei, como se falasse a um débil mental —, que aconselhais que se faça com vossa esposa?

— Não sei, meu pai, não sei. Quero me esconder, quero ir embora, quero entrar para um convento.

Seria ele, entretanto, quem depressa reclamaria o castigo para a esposa que lhe fora infiel.

Filipe, o Belo, compreendeu que não conseguiria nada mais. Olhava para seus filhos como se jamais os tivesse visto, e refletia sobre o valor de ordem da primogenitura; dizia consigo mesmo que muitas vezes a natureza servia bem mal a lei do trono. Que tolices poderia fazer, à frente do reino, aquele irrefletido, impulsivo e cruel Luís, seu primogênito? E que sustentáculo podia ser o último filho, aquele moleirão choramingas, que se deixava derrotar pelo seu primeiro drama? O mais equilibrado para reinar era com certeza o segundo, Filipe. Mas Luís não o ouviria muito, era fácil de prever.

— Teu parecer, Isabel? — perguntou ele a sua filha, bem baixo, curvando-se para ela.

— A mulher que pecou — respondeu ela — deve ser para sempre impedida de transmitir o sangue dos reis. E o castigo deve ser conhecido pelo povo, a fim de que se saiba que o crime da esposa ou filha de rei é punido com mais dureza que o da mulher de um servo.

— é bem pensado — disse o rei.

De todos os seus filhos, era ela realmente a que teria dado melhor soberano. De fato, era muito de lamentar que não fosse homem e primogênito.

— Justiça será feita sem mais demora — disse o rei, levantando-se.

E retirou-se para ir, como sempre, tomar sua última decisão entre Marigny e Nogaret.

 

O JULGAMENTO

Durante todo o trajeto de Paris a Pontoise, a Condessa Mafalda, em sua liteira, só pensara na maneira com que ia tentar comover o' rei. Mas não conseguia fixar suas idéias. Muitos pensamentos a assaltavam, muitos receios, muita cólera contra a loucura de suas filhas e de sua prima, contra a estupidez dos maridos delas, contra a imprudência de seus amantes, contra todos aqueles que, por leviandade, cegueira, ou busca sensual, arriscavam arruinar o edifício de seu poder. Mãe de princesas repudiadas, a que se havia reduzido Mafalda? Estava decidida a culpar Margarida para salvar as duas outras. Afinal, Margarida não era sua filha. Além disso, ela era a mais velha, e facilmente poderia ser acusada de ter desviado as mais jovens.

Roberto d'Artois conduzia a tropa a bom passo, como se quisesse mostrar seu zelo. Sentia prazer em olhar para o belo seio de Beatriz d'Hirson, que se erguia ao ritmo da corrida. Mas ainda se regozijava ao ver o antigo cônego sobre a sela, e sobretudo ao ouvir os gemidos de sua tia. De cada vez que aquele grande corpo, sacudido pelos solavancos, deixava escapar uma queixa, Roberto, como por acaso, mandava apressar o passo. Assim, a condessa suspirou aliviada quando apareceram enfim, sobre a linha das árvores, as torres baixas de Maubuisson.

Logo depois, a comitiva da condessa penetrava no pátio do castelo, onde reinava um grande silêncio, rompido apenas pelos passos dos archeiros.

Mafalda desceu da liteira e, dirigindo-se ao primeiro guarda, perguntou:

— Onde está o rei?

— O rei está fazendo justiça, na. sala capitular. Seguida de Roberto, de Teodorico d'Hirson e de Beatriz,

Mafalda dirigiu-se rapidamente para a abadia. Apesar de sua fadiga, caminhava depressa e com firmeza.

A sala capitular oferecia naquele dia um espetáculo inusitado; entre as colunas cinzentas, sob a enorme abóbada fria, não estavam as religiosas rezando. O que ali estava era a corte da França, imóvel e em silêncio, diante do rei.

Quando a Condessa Mafalda entrou, algumas cabeças se viraram e ouviu-se um murmúrio. Uma voz, que era a de Nogaret, parou de ler e o rei trocou um olhar com seu austero conselheiro.

Mafalda não teve dificuldade em passar, porque as pessoas se afastavam diante dela. Viu o rei sentado em seu trono, coroa na cabeça e cetro na mão, o rosto mais frio do que de costume, o olhar mais fixo.

Parecia ausente do mundo, aquele rei. Na terrível função que executava, todo penetrado dos ensinamentos de seu avô, São Luís, não era ele o representante da justiça divina?

Isabel, Enguerrand de Marigny, Monseigneur de Valois, Monseigneur d'Evreux estavam sentados, assim como os três príncipes e alguns barões. Diante do estrado, três jovens monges de cabeça raspada estavam cabisbaixos, ajoelhados sobre as lajes. Alain de Pareilles, o homem de todas as execuções, aparecia de pé, um pouco de lado, junto do soberano. "Deus seja louvado", pensou Mafalda, "chego a tempo. Estão julgando um assunto qualquer de feitiçaria ou sodomia."

E preparou-se para alcançar o estrado, onde seria natural que tomasse lugar, pois era par da França. Subitamente sentiu que suas pernas amoleciam: um dos penitentes, daqueles que ali estavam ajoelhados diante do rei, tinha levantado a cabeça, e era sua filha Branca. Aqueles três jovens monges eram as três princesas, que haviam sido vestidas de burel, e cujas cabeças tinham sido despojadas de seus cabelos. Mafalda cambaleou sob aquele golpe, com um grito surdo, como se a tivessem ferido no ventre. Maquinalmente agarrou-se ao braço de seu sobrinho, porque fora o primeiro que encontrara.

— Tarde demais, minha tia! Ai de nós! chegamos tarde demais — disse simplesmente Roberto, que saboreava plenamente a vingança.

O rei fez sinal ao guarda-selos, que retomou a leitura.

Com a voz dura de Nogaret, uma onda de imagens degradantes passava sobre os crânios despidos das princesas de Borgonha. A vergonha atingia Mafalda, como também os três príncipes, esposos enganados, sentados perto de seu pai, e que baixavam a cabeça, até eles, como se fossem culpados.

— "... E em seguida, e pelos testemunhos e confissões dos acima referidos Gautier e Filipe d'Aunay, tendo sido provado que são adúlteras as ditas damas Margarida e Branca de Borgonha, serão elas presas na Fortaleza de Château Gaillard, isso pelos restos dos dias que Deus houver por bem lhes conceder."

— Prisão perpétua — murmurou Mafalda —, elas estão condenadas à prisão perpétua!

— "Dona Joana, condessa palatina da Borgonha e condessa de Poitiers" — continuava Nogaret —, "visto não ter ficado provado que tenha sido infiel ao casamento, não lhe podendo tal crime, com justiça, ser imputado, mas tendo ficado estabelecidas sua cumplicidade e complacência culposas, será encerrada no Castelo de Dourdan, pelo tempo que for necessário ao seu arrependimento, e conforme resolva o rei."

Houve uma pausa, durante a qual Mafalda pensou, olhando para Nogaret: "Foi ele, foi esse cão, que com sua odiosa mania de espiar, de denunciar, fez isto tudo. Ele me pagará. Ele me pagará com sua vida". Mas o guarda-selos ainda não acabara a leitura.

— "Os senhores Gautier e Filipe d'Aunay, tendo sido infiéis à honra e traído o laço feudal para com as pessoas de majestade real, serão esfolados vivos, postos na roda e castrados, depois decapitados e expostos no patíbulo público, isso na manhã do dia seguinte ao de hoje. Assim julgou nosso muito sábio, poderoso e amado rei."

Os ombros das princesas estremeceram às palavras anunciadoras do suplício que esperava seus amantes. Nogaret enrolou seu pergaminho e o rei levantou-se. A sala começou a esvaziar-se, num longo murmúrio que se elevava entre aquelas paredes habituadas à oração. Todos se afastavam de Mafalda e evitavam-lhe os olhares. Ela sentia a covardia dos homens em torno de si. Quis ir ter com suas filhas, mas Alain de Pareilles lhe barrou a passagem.

— Não, senhora — disse ele. — O rei só autoriza seus filhos, se o desejarem, a ouvir os adeuses e as palavras de arrependimento de suas esposas.

Procurou então voltar-se para o rei, mas ele já havia saído e Luís de Navarra saíra atrás dele, sufocado de ódio e humilhação, bem como Filipe de Poitiers, que não tivera um olhar para sua esposa.

— Minha mãe! — gritou Branca, vendo Mafalda afastar-se, amparada pelo seu chanceler e por Beatriz. Dos três esposos enganados, apenas Carlos ali permanecera. Aproximou-se de Branca, mas só soube murmurar.

— Tu fizeste isso! Tu fizeste isso!

Branca estremeceu e sacudiu a cabeça calva, onde a navalha deixara pequenas placas vermelhas. Parecia-se com um pássaro.

— Eu não sabia... Eu não queria... Carlos — disse ela, rebentando em soluços.

Nesse momento, levantou-se a voz dura de Isabel:

— Nada de fraqueza, Carlos! Conservai-vos príncipe — disse ela.

Direita, sob sua coroa estreita, ela também ficara ali, como uma guardiã, com uma ruga de desprezo no canto dos lábios.

Foi então que se desencadeou o furor há muito concentrado de Margarida de Borgonha.

— Nada de fraqueza, Carlos! Nada de piedade! — exclamou. — Imitai vossa irmã Isabel, que não tem possibilidade de compreender as fraquezas de amor. Ela só tem ódio e fel no coração. Se não fosse ela, jamais teríeis sabido de nada. Mas ela me odeia, ela vos odeia, ela odeia a nós todos.

Isabel cruzou as mãos sob sua roupa e contemplou Margarida com uma cólera fria.

— Deus perdoa vossos crimes — disse ela.

— Ele perdoará mais depressa meus crimes do que fará de ti uma mulher feliz.

— Eu sou rainha — replicou Isabel. — Se não tenho felicidade, tenho ao menos um cetro e um reino.

— Eu, se não tive felicidade, tive pelo menos prazer, que vale todas as coroas do mundo. E não lamento nada do que fiz.

Erguida diante da soberana da Inglaterra, aquela mulher de crânio despido, de rosto cavado pelo cansaço e pelas lágrimas, tinha ainda força para insultar, para ferir e para defender o seu corpo.

— Para mim havia a primavera — disse ela, com voz apressada, arquejante —, havia o amor de um homem, o calor e a força de um homem, a alegria de ser possuída e de possuir... Tudo o que não conheces, que ardes por conhecer, que não conhecerás jamais... Ah! Tu não deves ser muito agradável na cama, para que teu marido prefira os moços a ti!

Lívida, mas incapaz de responder, Isabel fez um sinal a Alain de Pareilles.

— Não — gritou Margarida. — Tu nada tens a dizer a Messire de Pareilles. Eu já lhe dei ordens, e talvez ainda volte a dar-lhas, um dia. Ainda desta vez ele permitirá que eu lhe ordene que partamos.

Voltou as costas à rainha e a Carlos, e fez sinal de que estava pronta. As três condenadas saíram, atravessaram sob escolta os corredores e o pátio e voltaram ao quarto que lhes servia de cela.

Quando Alain de Pareilles fechou a porta sobre elas, Margarida correu para o leito e ali se atirou, mordendo os lençóis.

— Meus cabelos, meus lindos cabelos — soluçava Branca.

 

O suplício                                                                                      

A aurora demorou a surgir para aqueles que tiveram de atravessar a noite sem repouso e sem esperança, sem olvido e sem mentira. Numa cela do prebostado de Pontoise, dois homens, deitados lado a lado sobre um molho de palha, esperavam a morte. Obedecendo a ordens de Guilherme de Nogaret, haviam cuidado dos irmãos d'Aunay. Assim, suas feridas não mais sangravam, seu coração batia melhor, e em seus músculos estraçalhados, em suas carnes esmagadas, um pouco de força voltara a aparecer, para que sofressem ainda mais, e melhor sentissem o terror do suplício ao qual estavam votados.

Nem as princesas condenadas, nem Mafalda, nem os três filhos do rei, nem o próprio rei, dormiram naquela noite. E também Isabel não pôde dormir. As palavras de sua cunhada Margarida davam voltas em sua cabeça. Só dois homens tinham mergulhado no sono sem dificuldades: Nogaret, porque cumprira seu dever, e Roberto d'Artois, porque, para satisfazer sua vingança, trazia em suas botas umas boas vinte léguas.

Um pouco antes da prima 19, passos pesados ressoaram nas lajes dos corredores: os archeiros de Messire Alain de Pareilles vinham buscar as princesas. No pátio, três carretas recobertas de panos pretos esperavam, com uma escolta de sessenta cavaleiros de gibão de couro, cota de malhas e chapéu de ferro. Alain de Pareilles fez as princesas subirem, depois deu o sinal de partida e o cortejo do suplício lá se foi, aos solavancos, na claridade rósea da manhã.

A uma janela do castelo, a Condessa Mafalda estava de pé, a testa apoiada ao vitral, e seus ombros largos sacudiam-se em sobressaltos.

— Chorais, senhora? — perguntou-lhe Beatriz d'Hirson.

— Isso também me pode acontecer — respondeu Mafalda, com voz rouca.

Beatriz já estava vestida.

— Vais sair? — perguntou-lhe Mafalda.

— Sim, senhora, vou ver... se me permitirdes. Entretanto, a Place du Martroy, em Pontoise, onde se devia dar a execução dos d'Aunay, já estava negra de gente. Burgueses, camponeses e soldados, desde a madrugada, não cessavam de afluir. Os proprietários das casas cujas fachadas davam para a praça haviam alugado por bom preço suas janelas, e viam-se bustos apertados uns contra os outros em todos os vãos. O fato de serem nobres os supliciados, de serem jovens e sobretudo senhores da região decuplicava a curiosidade. E a própria natureza de seu crime, aquele enorme escândalo de amor, excitava a imaginação.

A plataforma fora levantada durante a noite, e elevava-se a uma toesa do chão: os dois patíbulos que a rematavam atraíam todos os olhares.

Os dois carrascos chegaram, o gorro vermelho e o colete da mesma cor marcando ao longe a sua presença. Atrás deles, os ajudantes traziam os cofres pretos onde estavam guardados seus utensílios. Os carrascos subiram para a plataforma e um silêncio brusco caiu sobre a populaça. Depois um deles fez girar uma das rodas, que rangeu. E então a multidão se pôs a rir, como a uma careta de bufão. Diziam-se gracejos, davam-se cotoveladas expressivas, passava-se de mão em mão uma botija de vinho aos carrascos, que a beberam sob o aplauso geral.

Quando a carreta que trazia os irmãos d'Aunay apareceu, um grande clamor se ergueu, ampliando-se à medida que se distinguiam melhor os dois jovens. Nem Gautier nem Filipe se moviam. Sem as cordas que os amarravam às xelmas da carreta, eles não poderiam ficar de pé.

Um padre fora à prisão, para recolher sua confissão balbuciada e as últimas palavras que desejassem enviar à sua família20. Exaustos, arquejantes, embrutecidos, eles não faziam movimento algum de revolta, quase não mais tinham consciência clara do que se passava, e não desejavam outra coisa senão o fim rápido do seu pesadelo e o aniquilamento.

Os carrascos içaram-nos para a plataforma e despiram-nos inteiramente de suas vestes.

Vendo-os nus, semelhantes a dois grandes títeres cor-de-rosa, a multidão teve um grande alarido de feira. Um chorrilho de gracejos grosseiros e de comentários obscenos se espalhou pela praça, enquanto os dois gentis-homens eram ligados às rodas, com o rosto para o céu. Depois, houve uma espera. Os carrascos tinham-se apoiado às estacas do patíbulo, os braços cruzados. Passaram-se, assim, vários minutos. A populaça começava a se impacientar, a fazer perguntas, a se agitar. Subitamente compreendeu-se a razão da espera. Três carretas recobertas de preto chegavam à entrada da praça. Por um requinte supremo naquele castigo, Nogaret, de acordo com o rei, dera ordem para que as princesas assistissem ao suplício.

Vendo os dois corpos nus expostos sobre as rodas, os membros em cruz, Branca perdeu os sentidos.

Joana, agarrada ao parapeito de sua carreta, o rosto em lágrimas, bramia para a multidão:

— Dizei a meu esposo, dizei a Monseigneur Filipe que estou inocente.

Até então agüentara-se bem, mas seus nervos acabavam de estourar, e a populaça, rindo, mofava de seu desespero.

Somente Margarida de Borgonha teve a coragem de olhar para o patíbulo. E aqueles que estavam em torno dela puderam perguntar a si próprios, por um momento, se ela não teria experimentado um horrendo, atroz prazer, vendo exposto aos olhos de todos, rosado, sob o sol, o homem que ia morrer porque a tinha possuído.

Quando os carrascos levantaram suas maças para romper os ossos dos condenados, ela gritou: "Filipe!" Mas aquele tom não era de dor.

Depois, as maças se abateram sobre os jovens. Ouviram-se os estalidos, e o céu, para os irmãos d'Aunay, apagou-se sobre eles. Os carrascos, com ganchos de ferro, arrancavam a pele dos dois corpos, agora insensíveis, e o sangue escorria pela plataforma.

Uma vaga de histeria agitou a assistência, quando os dois mestres-carrascos, com longas facas de açougueiro, mutilaram os dois amantes culpados e lançaram para o ar, juntos, num movimento bem ajustado de pelotiqueiros, os objetos do erro.

Empurravam-se, na praça, para ver melhor. E mulheres gritavam a seus maridos:

— Isso não te dá vontade de fazer outro tanto, velho devasso?

— Estás vendo o que te acontecerá?

— Tu merecias que te fizessem o mesmo!

Os corpos foram descidos das rodas e os machados brilharam à luz, para separar as cabeças. Depois, o que restava de Gautier e Filipe d'Aunay, daqueles dois belos escudeiros que há poucos dias ainda caracolavam sobre as estradas de Clermont, foi içado, massas informes e sanguinolentas, para as forcas do patíbulo, em torno do qual os corvos das igrejas vizinhas já começavam a voejar.

Então, as três carretas negras recomeçaram a marcha, e os sargentos do prebostado se puseram a evacuar a praça, voltando cada qual com aquela estranha tranqüilidade de espírito de pessoas para as quais a morte alheia não passa de um espetáculo.

Porque, naqueles séculos em que grande número de crianças morriam no berço e a metade das mulheres nos partos, aquela época em que as epidemias devastavam a maturidade, em que os ferimentos não se curavam senão raramente, em que as feridas não se fechavam, em que a Igreja ensinava a pensar sem repouso na morte, em que as imagens dos santuários mostravam vermes roendo cadáveres, e em que cada qual se sentia, durante toda a sua vida, como que carregando a própria carcaça, a idéia de morte era habitual, familiar, natural. Ver um homem lançar o último suspiro não seria, como para nós, uma trágica advertência da ordem de nosso destino comum.

Enquanto pela estrada da Normandia uma mulher de crânio raspado, numa carreta negra, continuava a gritar: "Dizei a Monseigneur Filipe que estou inocente! Dizei-lhe que não o enganei!", os carrascos, na Place du Martroy, partilhavam entre si, diante de alguns palermas obstinados, os despojos das duas vítimas. O costume dispunha que os carrascos ficassem com tudo o que encontrassem com os condenados "da cintura para cima". Assim, as belas bolsas da rainha da Inglaterra foram cair-lhes às mãos. Cada um deles apanhou uma: era uma sorte rara, coisa que não lhes acontecia senão uma vez em sua vida de carrascos.

Estavam ocupados naquela partilha, quando uma bela criatura morena, vestida como jovem da nobreza, mais do que como burguesa, aproximou-se deles e, em voz baixa e forma um tanto arrastada de falar, pediu-lhes que lhe dessem a língua de um dos supliciados. Aquela bonita moça era Beatriz d'Hirson.

— Dizem que é bom para as doenças do ventre — explicou ela. — A língua de qualquer um dos dois, isso me é indiferente.

Os carrascos olharam para ela com ar desconfiado, perguntando a si próprios se aquilo não teria algo a ver com feitiçaria. Porque era bastante sabido que a língua de um enforcado, sobretudo de um enforcado em sexta-feira, servia para evocar o Diabo. Mas a língua de um decapitado poderia ter o mesmo efeito?

E como Beatriz tinha uma bela moeda de ouro brilhando na palma da mão, aceitaram entregar-lhe discretamente o que ela desejava.

 

O MENSAGEIRO DO CREPÚSCULO

Enquanto o sangue dos irmãos d'Aunay secava sobre a terra amarela da Place du Martroy, onde os cães durante dias viriam cheirar rosnando, Maubuisson saía lentamente do pesadelo.

Os três filhos do rei continuavam invisíveis até a noite. Ninguém os visitou, a não ser os gentis-homens ligados ao seu serviço particular: passavam todos longe das portas, atrás das quais a cólera, a humilhação ou a dor acabavam de marcar profundamente três homens.

Mafalda, escoltada por seu pequeno séquito, voltara para Paris no meio da tarde. Devorada pelo ódio e pelo desgosto, tentara falar com o rei; Nogaret veio declarar-lhe que o rei trabalhava e não queria ser perturbado. "É ele, é esse mastim que me barra a passagem e me impede de chegar até o seu senhor." Tudo vinha confirmar, para a condessa, a idéia de que o guarda-selos era o único responsável pela perda de suas filhas e pela sua desgraça pessoal. Tudo a autorizava a crer nisso. Esta não era a primeira intriga de Nogaret.

— Deixo-vos à piedade de Deus, Messire de Nogaret, deixo-vos à piedade de Deus — disse-lhe ela, em tom ameaçador, ao deixá-lo.

Outras paixões, outros interesses agitavam Maubuisson. Os familiares das princesas exiladas procuravam unir os fios invisíveis do poder e da intriga, mesmo que fosse renegando as amizades com que na véspera se enfeitavam. As navetas do medo, da vaidade e da ambição se punham de novo em movimento, para tornar a tecer, sobre desenho novo, a tela brutalmente despedaçada.

Roberto d'Artois, prudente, tivera a habilidade de não exibir seu êxito. Esperava a ocasião de recolher-lhe os frutos. Mas as atenções que geralmente eram dedicadas ao clã da Borgonha se voltavam para ele.

À noite, a ceia do rei reuniu em torno dele, além dos dois irmãos e de sua filha, Marigny, Nogaret, Bouville e, enfim, Roberto d'Artois, que percebeu bem de onde lhe vinha tal favor.

Ceia simples, quase ceia de luto. Na sala longa e estreita perto do quarto do rei, onde a refeição estava sendo servida, pesava um silêncio de chumbo. O próprio Monseigneur de Valois se calava, e o lebréu Lombardo, como se percebesse o constrangimento dos convivas, saíra dos pés do seu senhor e fora se estender diante da lareira.

No momento em que os escudeiros, entre dois serviços, trocavam as fatias de pão, Lady Mortimer entrou, trazendo nos braços o principezinho Eduardo, para que ele desse à mãe o beijo de boa-noite.

— Mme de Joinville — disse o rei, chamando Lady Mortimer pelo seu glorioso nome de solteira —, trazei-me aqui o meu neto.

"Meu único neto...", acrescentou ele, interiormente.

Tomou a criança e manteve-a um bom momento diante dos olhos, estudando aquele pequeno rosto inocente, redondo e róseo, onde as covinhas faziam pontos de sombra. "Filho de quem te mostrarás tu?", tinha vontade de perguntar-lhe Filipe, o Belo. "De teu pai versátil, sugestionável e debochado, ou de minha filha Isabel? Pela honra do meu sangue, gostaria mais de que te parecesses com tua mãe; mas, pela felicidade da França, permita o céu que sejas apenas o filho de teu débil pai!"

— Eduardo! Um sorriso para o senhor vosso avô — disse Isabel.

O bebê não parecia ter medo algum do olhar imóvel, fixado sobre ele. Subitamente, estendendo sua mão pequenina, meteu-a nos cabelos dourados do soberano e puxou uma mecha que se enrolava em cacho.

Foi Filipe, o Belo, quem sorriu. Então, houve em todos os convivas um suspiro de alívio, e todos se apressaram a rir. Ousou-se, enfim, falar.

Saindo a criança e terminada a refeição, o rei despediu a todos, com exceção de Marigny e Nogaret, aos quais fez sinal para que se conservassem ali. Ficou um momento sem nada dizer, e seus conselheiros respeitaram-lhe o silêncio.

— Os cães são criaturas de Deus? — perguntou ele subitamente, sem que fosse possível compreender a que espécie de preocupação se ligava aquela pergunta.

Levantara-se e pousara a mão sobre a nuca tépida do lebréu que se erguera à sua aproximação e espreguiçava-se diante do fogo.

— Sire — disse Nogaret —, sabemos muito sobre os homens, porque nós próprios somos homens, mas bem pouco entendemos das aparências do resto da natureza...

Filipe, o Belo, foi até uma janela e ali ficou, olhando para fora, sem nada ver a não ser a massa confusa de pedra e folhagem. Como acontece muitas vezes aos homens poderosos na noite dos dias em que tiveram de assumir trágicas responsabilidades, seu espírito errava em torno de problemas misteriosos e vagos, procurando a certeza de uma ordem universal que justificasse sua vida, seu lugar e suas ações.

Enfim, voltou-se e disse:

— Enguerrand, as coisas estão feitas e não é possível apagar as marcas do ferro e do fogo. Os culpados agora pertencem a Deus. Mas para onde vai o reino? Meus filhos não têm herdeiros.

Marigny disse, sem levantar a cabeça:

— Terão, sire, se tornarem a casar...

— Eles são casados diante de Deus...

— Deus pode apagar... — falou Marigny.

— Deus não obedece aos senhores da Terra. Deus não vê meu reino, mas apenas o dele. Não será pela prece que conseguirei libertar meus filhos de seus laços!

— O papa pode libertá-los — disse Marigny. O olhar do rei voltou-se para Nogaret.

— O adultério não é considerado motivo para a anulação do casamento — disse o guarda-selos com sua voz seca.

— Não teremos entretanto, hoje, outro recurso senão Clemente — disse Filipe, o Belo. — E eu não tenho que considerar, antes de mais nada, a lei comum, mesmo que ela esteja nas mãos do papa. Um rei deve prever que pode morrer a qualquer momento. A quem, Nogaret, e vós, Enguerrand, iríeis falar de minha volta a Deus, em primeiro lugar, se isso acontecesse amanhã? A Luís. Ele é o primeiro: é ele, portanto, quem precisa ser libertado em primeiro lugar.

Nogaret levantou sua grande mão magra e chata, que a chama da lareira iluminou.

— Não vejo, realmente, como Monseigneur de Navarra possa desejar receber novamente sua esposa, nem como tal coisa se mostre de alguma forma desejável para o reino.

— Vós sabereis portanto — disse Filipe, o Belo — convencer a Cúria e o Papa Clemente de que as razões de um rei não são razões de homem, mas razões, apenas.

— Fa-lo-ei com todo o meu zelo, sire — respondeu Nogaret.

Ouviu-se um ruído de galope. Marigny levantou-se e aproximou-se da janela, enquanto Nogaret dizia ao rei:

— A Duquesa da Borgonha21 vai, com certeza, entrar em ação para nos causar obstáculos, diante da Santa Sé. Será preciso recomendar a Monseigneur Luís que não vá, com as extravagâncias de seu temperamento, arruinar seus próprios interesses.

— Sim — disse Filipe, o Belo. — Eu falarei com ele amanhã, e vós partireis o mais cedo possível para falar com o papa.

O ruído de galope que levara Marigny à janela cessara sobre o piso do pátio.

— Um mensageiro, sire — disse Marigny. — Parece vir de longe, porque tem as roupas cobertas de poeira e seu cavalo não se agüenta mais.

— De onde vem ele? — perguntou o rei.

— Não sei. Não distingo bem suas armas22. Depois, muito depressa, ouviu-se um passo rápido no corredor, e Bouville, o primeiro camareiro, entrou.

— Sire, um mensageiro chegou de Carpentras e pede para ser recebido pessoalmente por vós.

— Mandai-o entrar.

Quem entrou foi um rapaz de vinte e cinco anos, mais ou menos, de alta estatura e largo de ombros. Seu colete amarelo e preto estava coberto de poeira; a cruz bordada dos mensageiros do papado brilhava sobre seu peito. Tinha na mão esquerda um barrete, também sujo de poeira e de lama, e o bastão esculpido, insígnia de sua função. Adiantou-se para o rei, pôs em terra o joelho direito, e tirou de seu cinto a caixa de ébano que continha a mensagem.

— Sire — disse ele —, o Papa Clemente morreu.

O rei e Nogaret tiveram o mesmo recuo de todo o corpo, e seus rostos empalideceram. O silêncio que se seguiu àquela notícia foi terrível. O rei abriu a caixa de ébano, tirou um pergaminho cujo selo quebrou e leu com atenção, para bem se certificar da verdade daquela notícia.

— O papa que fizemos está com Deus, agora — murmurou ele, estendendo o pergaminho a Marigny.

— Quando morreu ele? — indagou Nogaret.

— Há seis dias. Na noite de 19 para 20 — respondeu o mensageiro.

— Quarenta dias... — disse o rei.

Não precisava dizer mais nada, porque seus dois ministros estavam fazendo o mesmo cálculo. Havia quarenta dias, exatamente, que na ilhota dos Judeus a voz do grão-mestre dos templários gritara no meio das chamas: "Papa Clemente, Cavaleiro de Nogaret, Rei Filipe, antes de um ano eu vos intimo a comparecer ao tribunal de Deus..." Seis semanas haviam-se passado, e a maldição já se abatera sobre o primeiro deles.

— Dize-me — disse o rei, dirigindo-se ao mensageiro e fazendo-lhe sinal para se levantar —, como foi que morreu nosso Santo Padre, e que fazia ele em Carpentras?

— Sire, ele ia para Cahors e precisou parar. Sofria de febre e de angústia, havia alguns dias. Dizia que queria voltar ao lugar em que nascera, para ali morrer. Os médicos tudo tentaram para curá-lo, fazendo-o mesmo comer esmeraldas reduzidas a pó, que são o melhor remédio, ao que parece, para o mal que ele tinha. Mas nada adiantou. A sufocação tomou conta dele. Os cardeais o rodeavam. E não sei de mais nada.

O mensageiro calou-se.

— Podes retirar-te — disse o rei.

O mensageiro saiu. Na sala não se ouviu mais do que a respiração de três homens, imóveis em seu lugar, ali onde a notícia os atingira, e o resfolegar do grande lebréu que dormia, amodorrado pelo calor.

O rei e Nogaret olharam um para o outro. "Qual de nós dois, agora?", pensavam eles. Os olhos de Filipe, o Belo, pareciam ainda maiores, mais fixos que de costume; seu rosto mostrava-se de impressionante palor, e havia nele, sob a longa veste regia drapeada sobre seu corpo, a rigidez gelada dos jacentes.

 

A MÃO DE DEUS

 

A RUE DES BOURDONNAIS

Oito dias após o suplício dos irmãos d'Aunay e a condenação das princesas, o povo de Paris já tinha adotado uma lenda, onde a crueldade, a vergonha e o amor tinham cada qual o seu papel.

Por uma simplificação inconsciente, todo o peso dessa lenda recaía sobre Margarida de Navarra. Não era somente um amante que lhe atribuíam, mas dez, cinqüenta. E olhavam com terror para o lado da Torre de Nesle, onde, chegada a noite, guardas vigiavam ao rés das paredes, pique em punho, prontos a afastar quem quer que por uma imprudente curiosidade se dirigisse àquele local maldito. Porque a história não acabara. Murmuravam-se pelas esquinas coisas bem estranhas. Naqueles dias houve uma excessiva pescaria de cadáveres por aquelas bandas, e dizia-se que Monseigneur Luís, o Turbulento, fechado em seu palácio, torturava aqueles fâmulos que poderiam ter auxiliado o adultério de sua esposa, mandando depois atirar os seus corpos ao Sena.

Naquela manhã, a bela Beatriz d'Hirson deixara bem cedo o palácio da Condessa Mafalda. Era o início de maio, e o sol se refletia em todas as vidraças das casas. Sem se apressar, Beatriz avançava, satisfeita por sentir o vento tépido acariciar-lhe a fronte. Seu corpo todo amava o calor, e ela saboreava o cheiro da primavera nascente e aprazia-se em provocar o olhar dos homens, sobretudo se eram de condição humilde. "Se eles soubessem o que vou fazer! Se eles soubessem o que levo em minha bolsa!", divertia-se ela a pensar.

Entrou no bairro Saint-Eustache e logo chegou à Rue des Bourdonnais. Era um lugar estranho, animado por uma vida secreta. Os escreventes públicos ali tinham suas lojas, assim como os mercadores de cera, porque fabricavam as tabuinhas de escrever, ao mesmo tempo que faziam velas, círios e encáusticas.

Mas naquela Rue des Bourdonnais, em certos fundos de lojas, fazia-se também um comércio bem estranho. Cediam-se, ali, a peso de ouro e com infinitas precauções, os medicamentos misteriosos dos quais viviam todos que praticavam a feitiçaria: pó de serpente, sapos moídos, cérebros de gatos, línguas de enforcados, pêlos de meretrizes, assim como toda sorte de plantas que serviam à fabricação dos filtros de amor, ou dos venenos com que "se ervavam" os inimigos. E aquilo dava razão aos que batizavam tal passagem estreita com o nome de "Rua das Feiticeiras", onde o Diabo negociava em torno da cera, matéria-prima dos encantamentos.

Nariz levantado, ar displicente, olhar deslizante, Beatriz d'Hirson penetrou numa loja cuja tabuleta pintada dizia:

 

Engelbert

fornece velas e círios à

corte real

e a muitas igrejas e capelas.

                                                                                                                    

A loja, comprimida entre duas casas, era comprida, baixa e sombria. Do forro pendiam círios de todos os tamanhos e, sobre grandes pranchas presas às paredes, estavam arrumadas velas, reunidas em molhos de doze, ao lado dos bastões coloridos de castanho, vermelho e verde, de que se fazia uso para os sinetes. O ar cheirava a cera, fortemente, e todos os objetos mostravam-se escorregadios ao toque.

O mercador, um velhinho coberto com um grande boné de lã de cor crua, atiçava as brasas de um forno e vigiava os moldes. À chegada de Beatriz, um grande sorriso desdentado fendeu-lhe o rosto.

— Mestre Engelbert — disse Beatriz —, vim aqui pagar-vos a despesa da Casa d'Artois.

— É uma boa ação, minha bela senhorita, porque o comércio anda ruim. A maltôte23, essa invenção do Diabo, nos mata. Realmente, não sei se ainda poderei ter a minha loja aberta por muito tempo — disse Mestre Engelbert, limpando as mãos sujas em seu avental.

Dirigiu-se para um dos cantos da loja e voltou com uma pequena tábua que consultou com as sobrancelhas franzidas.

— Vejamos se estamos de acordo!

— Com toda a certeza estaremos de acordo — disse docemente Beatriz, depositando na palma da mão do velho algumas moedas de prata.

— Ah! Ah! Eis uma boa freguesa, como eu precisava ter muitas! — disse o velhote, rindo, depois de ter contado as moedas.

A seguir, acrescentou, com ar de cumplicidade:

— Vou chamar o vosso protegido. Estou bem satisfeito com ele, porque não faz má cara ao trabalho e fala pouco... Mestre Evrard!

O homem que entrou, vindo da parte dos fundos da loja, teria uns trinta anos, era magro mas solidamente constituído. Tinha o rosto ossudo, as órbitas fundas e sombrias, os lábios delgados.

Coxeava, e aquela claudicação levava-o às vezes a caretear nervosamente.

Era um antigo cavaleiro do Templo, da Comendadoria d'Artois. Depois de doze horas de torturas escapara a seus carrascos, mas aquela noite de sofrimentos inumanos, dos quais seu pé quebrado era constante recordação, tinha-o deixado um tanto demente. Perdera a fé e aprendera a odiar. Só vivia ruminando seus sonhos de vingança.

Sem o tique que lhe torcia bruscamente o rosto e sem o olhar de brilho inquietador, não seria desprovido de uma espécie de rude sedução. Viera refugiar-se um dia, como animal encurralado, nas cavalariças do Palácio d'Artois. Beatriz colocara-o na loja de Engelbert, que o alimentava, dava-lhe dormida e, sobretudo, fornecia-lhe um álibi em relação ao prebostado. Em troca de tudo isso, o antigo cavaleiro, além dos trabalhos pesados, ajudava na contabilidade e na cobrança das dívidas.

Como de cada vez que Beatriz vinha, Mestre Engelbert pretextou uma compra urgente e saiu. Sem inquietação. Outros clientes podiam vir; Evrard jamais vendia a crédito. Quanto ao tráfico de cera para bruxarias, Engelbert preferia que fosse feito longe de seus olhos e sob outra responsabilidade que não a sua. Desejava ignorar tudo e contentava-se com embolsar o dinheiro.

Assim que ficaram sós, o antigo templário agarrou Beatriz pelos pulsos.

— Vem — disse-lhe este.

A jovem seguiu-o, passou por sob uma cortina que ele levantou e encontrou-se no depósito onde Mestre Engelbert armazenava os pães de cera bruta, as barricas de sebo, os pacotes de mechas. Evrard dormia ali, numa estreita enxerga, espremido entre um cofre velho e a parede leprosa.

— Meu castelo, meus domínios, a comendadoria do cavaleiro Evrard — disse, com amarga ironia, designando com um grande gesto circular a sombria e sórdida habitação. — Mas isto, ainda assim, é melhor do que a morte — acrescentou.

Depois, tomando Beatriz pelos ombros, atraiu-a a si.

— E tu — sussurrou ele — vales mais que a eternidade. Tanto quanto a voz de Beatriz era lenta, a de Evrard mostrava-se precipitada.

Beatriz sorria, com aquele seu ar de sempre, que parecia zombar vagamente das pessoas e das coisas. Olhava para a testa do antigo templário. Gozava um perverso deleite ao sentir as criaturas dependerem dela. Ora, aquele homem estava duplamente à sua mercê, primeiro porque era um fugitivo, um clandestino, que a qualquer momento ela poderia entregar; depois, porque a moça constituía para ele verdadeira obsessão erótica. Enquanto ele a percorria com a mão, febrilmente, Beatriz, deixando-o agir, disse:

— Deves estar contente. O papa morreu.

— Sim... sim... — disse Evrard, com uma alegria selvagem no olhar. — Os médicos fizeram-no ingerir esmeraldas piladas, bom remédio que corta os intestinos. Sejam quem forem esses médicos, são meus amigos. A maldição começa a se cumprir, Beatriz. Um já rebentou. A mão de Deus fere depressa, sobretudo quando a mão dos homens ajuda.

— E também a do Diabo — disse ela, sorrindo.

Não parecia ter percebido que o homem lhe levantara a saia. Os dedos untados de cera do antigo templário acariciavam a bela coxa, firme, lisa e quente.

— Queres ajudar a ferir outra vez?

— Quem?

— O homem a quem deves o teu pé quebrado.

— Nogaret... — murmurou Evrard.

Recuou um pouco e seu tique deformou-lhe por três vezes o rosto. Foi ela quem tornou a aproximar-se.

— Podes vingar-te, se quiseres — falou. — Não é aqui que ele compra a luz que usa?

Evrard olhava para a jovem, sem compreender.

— Não é aqui que se fabricam as velas para ele? — insistiu a moça.

— Sim — respondeu ele —, e são as mesmas que entregamos para o gabinete do rei.

— Como são feitas?

— Velas muito compridas, de cera branca, com mechas tratadas à parte para dar pouca fumaça. Para o seu palácio ele compra também grandes círios amarelos. As velas são empregadas somente quando quer escrever, e ele gasta duas dúzias por semana.

— Tens certeza?

— Sei disso pelo porteiro que as vem buscar, às grosas. Porque não somos nós que as entregamos. Não é fácil entrar na casa dele. O cão é desconfiado e guarda-se bem.

Designou os embrulhos que estavam sobre o aparador.

— Ali tens: a próxima remessa está pronta, já, e a do rei está de lado... E pensar que sou eu — acrescentou ele com súbita cólera, ao mesmo tempo que batia no peito —, sou eu quem prepara a luz com que ilumina todos os crimes que seu cérebro fabrica. De cada vez que vejo sair um destes embrulhos, tenho vontade de escarrar sobre ele o veneno do Diabo.

Beatriz continuava a sorrir.

— Posso te dar, do mesmo jeito, essa oportunidade — disse ela. — Não há necessidade alguma de entrar na casa dele. Sei de que forma é possível envenenar uma vela.

— Realmente? — perguntou Evrard.

— Quem respirar aquela chama durante uma hora nunca mais olhará para outra senão a do inferno-. É um meio que não deixa vestígios e não tem remédio.

— Como o sabes?

— Ora! Sei... — disse Beatriz, ondulando os ombros e baixando as pálpebras, como se se tratasse de uma denguice. — Um pó que basta misturar à cera...

— E por que desejas... — disse Evrard.

Ela puxou-o pelo ombro, aproximou a boca de sua orelha, como para uma carícia.

— Porque há outros, além de ti — sussurrou ela —, que desejam se vingar. Acredita-me, tu nada arriscas.

Evrard refletiu um instante. Respirava depressa e violentamente. Seu olhar fazia-se mais agudo, mais luzente.

— Então seria preciso não demorar — disse ele, precipitando as palavras. — Pode ser que eu tenha de partir brevemente. Não contes a ninguém, sobretudo... Mas o sobrinho do grão-mestre, Messire João de Longwy, começou a contar-nos. Jurou, também ele, vingar a morte de Messire de Molay. Não estamos todos mortos, apesar do cão de quem falávamos. Recebi um desses dias um dos meus antigos irmãos, João de Pré, que me trazia uma mensagem informando-me que me mantivesse pronto para ir a Londres. Seria uma bela coisa, levar de presente a Messire de Longwy a alma de Nogaret... Quando poderás arranjar-me o tal pó?

— Aqui o tens — disse Beatriz, abrindo sua bolsa.

Entregou a Evrard um saquinho, que ele abriu com prudência. O saquinho continha duas matérias mal misturadas, uma cinzenta e a outra cristalina e esbranquiçada.

— São cinzas — disse Evrard, mostrando o pó cinzento.

— São — respondeu ela. — Cinzas da língua de um homem que foi morto por Nogaret... para atrair o Diabo sobre ele e para que não haja engano. — Designou depois o pó esbranquiçado, dizendo: — É "serpente de Faraó24". Não tenhas medo. Isto só mata quando queima. Quando vais fabricar a vela?

— Imediatamente — disse Evrard.

— Terás tempo? Engelbert não vai voltar?

— Ele ainda demorará uma boa hora. Põe-te de sobreaviso, para o caso de aparecerem fregueses.

Foi buscar o forno, que levou para o depósito e cujas brasas atiçou. Depois tirou uma vela das já preparadas para o guarda-selos, colocou-a num molde e pô-la a derreter. Enfim, abriu-a no sentido do comprimento com uma lâmina e ali derramou o conteúdo do saquinho.

Beatriz, na loja, tomara o ar de uma freguesa que espera ser atendida. Mas pela fresta da cortina olhava Evrard, o rosto iluminado pelas brasas, movimentar-se em torno do forno. Ao mesmo tempo, a jovem murmurava palavras de esconjuro, entre as quais por três vezes foi pronunciado o nome de batismo de Guilherme. Depois, Evrard foi esfriar a vela numa tina cheia de água.

— Pronto, está acabada — disse ele. — Podes voltar. A vela estava refeita e não mostrava vestígio algum da operação.

— Para um homem que estava mais habituado a manejar a espada do que qualquer outra coisa, é um bonito trabalho — disse Evrard com ar cruel, contente consigo mesmo.

E foi recolocar a vela no local de onde a tirara, acrescentando:

— Esperemos que seja uma boa mensageira da eternidade.

A vela envenenada, no meio do pacote, e sem que fosse possível reconhecê-la entre as outras, era agora como o grande bilhete de uma loteria. Em que dia o criado encarregado de guarnecer os candelabros do guarda-selos a tiraria dali? Vendo ao lado a provisão do rei, Beatriz teve um risinho. Mas já Evrard voltava para ela e tomava-a em plenos braços.

— É talvez a última vez que te vejo...

— Talvez sim... talvez não — respondeu ela, entrecerrando os olhos.

Ele levou-a, sem que ela opusesse a mínima resistência, para a enxerga.

— Como fazias tu, quando eras templário, para te conservares casto? — perguntou ela.

— Nunca pude me conservar casto — respondeu ele, com voz surda.

Então, a bela Beatriz fechou os olhos; seu lábio superior levantou-se curiosamente, descobrindo os dentes pequenos e brancos. E ela deixou-se penetrar da ilusão de estar sendo possuída pelo Diabo.

Aliás, Evrard não era coxo?

 

O TRIBUNAL DAS SOMBRAS

Todas as noites Nogaret trabalhava, como o fizera durante toda a sua vida. E toda manhã a Condessa Mafalda esperava a chegada da notícia que aguardava e que lhe poderia dar o acesso junto ao rei. Em vão. Messire Nogaret passara muitíssimo bem, e Beatriz tinha de suportar os furores da terrível condessa. A moça voltou à loja de Engelbert e, como supunha aliás, Evrard havia desaparecido subitamente. Isso levou-a a começar a duvidar dele, e também do poder da "serpente de Faraó". A menos que, apesar ou por causa da língua calcinada de um dos irmãos d'Aunay, o Demônio tivesse ido realizar sua façanha em outro lugar.

Por uma das manhãs da terceira semana de maio, Nogaret, contrariando seus hábitos, chegou um tanto atrasado ao Conselho de Estado, e entrou na sala imediatamente depois do rei, roçando em Lombardo na passagem.

Ali estavam os conselheiros habituais e, dessa vez ao menos, os três filhos do rei se encontravam presentes.

O assunto mais urgente era a eleição do papa. Marigny acabava de receber um relatório de Carpentras em que os cardeais, que estavam em conclave desde a morte de Clemente V, entregavam-se a uma batalha que dava a impressão de não mais ter fim.

O trono pontifício estava sem titular havia já três semanas e a situação exigia que o rei da França tornasse suas intenções bem nítidas, sem mais demora.

Todos os presentes estavam a par do pensamento do rei: ele queria que o papado ficasse em Avignon, o mais possível ao alcance de sua mão. Desejava escolher, se não aparentemente, ao menos de fato, o futuro chefe da cristandade e, através mesmo de tal escolha, prendê-lo, a si. Desejava que a enorme organização política que a Igreja representava não pudesse manobrar, como freqüentemente fizera, contra o reino da França. ,

Ora, os vinte e três cardeais presentes em Carpentras, aqueles cardeais que vinham de toda parte, da Itália, da França, da Espanha, da Sicília e da Alemanha, e que deviam sua dignidade a méritos bastantes diferentes, estavam divididos em quase tantos campos quantos eram os chapéus cardinalícios.

As disputas teológicas, as oposições, as rivalidades de interesse, os rancores de família alimentavam suas lutas. Em relação aos cardeais italianos, principalmente, eram notáveis os ódios implacáveis entre os Colonna e os Orsini.

— Aqueles oito cardeais italianos — disse Marigny — só estão de acordo em um único ponto: levar o papado para Roma novamente. Felizmente, o mesmo acordo não existe quando se trata do nome que poderiam indicar para chefe desse papado.

— Mas com o tempo esse acordo pode aparecer — disse Monseigneur de Valois.

— É por isso que não devemos dar-lhes esse tempo — respondeu Marigny.

Fez-se ligeira pausa e Nogaret sentiu, naquele momento, como que uma náusea, que lhe tornava pesado o estômago e constrangia-lhe a respiração. Quis endireitar-se na cadeira onde estava sentado e teve dificuldade para movimentar os músculos. Depois, e subitamente, aquela fadiga desapareceu. Nogaret respirou amplamente e enxugou a fronte.

— Roma é a cidade do papa para muitos cristãos — disse Carlos de Valois. — Aos olhos deles o centro do mundo está em Roma.

— Coisa que convém ao imperador de Constantinopla, sem dúvida, mas não ao rei da França — disse Marigny.

— Em todo o caso, não podeis reformar a obra de séculos, Messire Enguerrand, e impedir que o trono de São Pedro esteja onde foi fundado.

— Mas quando o papa quer ficar em Roma — exclamou Marigny — jamais consegue conservar-se ali. Vê-se forçado a fugir diante de facções que estraçalham a cidade, tem de acabar refugiando-se em um castelo qualquer, sob a proteção desta ou daquela cidade, com tropas que não lhe pertencem. Fica sempre muito melhor sob nossa guarda de Villeneuve, instalado do outro lado do Ródano.

— O papa continuará habitando sua propriedade de Avignon — disse o rei.

— Conheço muito bem Francesco Caetani — disse Carlos de Valois. — Homem de grande saber e de grande mérito, e sobre o qual poderei ter influência.

— Não quero esse Caetani — disse o rei. — É da família de Bonifácio, e recomeçará os erros da bula Unam saneiam 2S.

Filipe de Poitiers, que até então nada dissera, interveio, inclinando para a frente seu busto comprido.

— Neste caso há intrigas bastantes para que umas anulem as outras — disse ele. — Se não pusermos ordem nisso, vamos nos ver novamente metidos num conclave que durará um ano. Em circunstâncias mais difíceis, Messire Nogaret demonstrou do que é capaz. Cabe-nos, agora, sermos os mais tenazes e os mais firmes.

Depois de um instante de silêncio, Filipe, o Belo, voltou-se para Nogaret. Este, com o rosto pálido, respirava com dificuldade.

— Vossa opinião, Nogaret?

— Sim, sire — disse o guarda-selos, com esforço. Passou a mão trêmula sobre a fronte, dizendo:

— Peço-vos que me desculpeis, mas este horrível calor...

— Mas não está fazendo calor — atalhou Hugo de Bouville.

Nogaret, com grande esforço, disse com voz que parecia vir de longe:

— O interesse do reino e o da fé aconselham a agir dessa maneira.

Depois calou-se, e ninguém compreendeu por que falara tão pouco.

— Vossa opinião, Marigny.

— Proponho que nos sirvamos do pretexto de levar a Cahors, segundo a vontade por ele manifestada, os despojos do falecido papa para fazer sentir ao conclave a necessidade de se apressar. Bertrand de Got, o sobrinho de Clemente, poderia ser encarregado dessa piedosa missão. Messire de Nogaret viajaria com ele munido dos poderes necessários, bem como de uma boa escolta convenientemente armada. A escolta garantirá os poderes.

Carlos de Valois virou a cabeça; ele desaprovava aquela demonstração de força.

— E minha anulação, nisso tudo? — perguntou Luís de Navarra.

— Calai-vos, Luís — disse o rei. — É justamente para isso que estamos trabalhando.

— Sim, sire — disse Nogaret, sem mesmo saber que tinha falado.

Sua voz era rouca e baixa. Ele sentia grande perturbação no espírito, e as coisas começaram a deformar-se ante seus olhos. As abóbadas da sala pareceram-lhe tornar-se tão altas quanto as da Santa Capela. Depois, subitamente elas se aproximaram até se tornarem tão baixas quanto as do subterrâneo onde ele costumava interrogar os prisioneiros.

— Que se passa? — perguntou, tentando abrir seu gibão.

Bruscamente, dobrou-se sobre si mesmo, os joelhos levantados contra o ventre, a cabeça baixada, as mãos crispadas sobre o peito. O rei levantou-se, imitado por todos os presentes... Nogaret soltou um grito abafado e rolou para o chão, vomitando.

Foi Hugo de Bouville, o grande camareiro, quem o conduziu ao seu palácio, onde imediatamente os médicos do rei o visitaram.

Esses médicos mantiveram entre si longa consulta, antes de irem levar notícias ao rei. Nada foi revelado sobre o relatório deles, mas num instante a corte e toda a cidade sabiam que se falava de uma moléstia desconhecida. Veneno? Afirmavam que os mais poderosos antídotos haviam sido usados, sem resultado. Os negócios do reino naquele dia ficaram como que em suspenso.

Quando a Condessa Mafalda soube do caso, pela boca de Beatriz, disse apenas: "Está pagando". E sentou-se para comer.

Nogaret estava pagando. Havia já muitas horas que não reconhecia quem quer que fosse. Jazia em seu leito, devastado, e deitado de lado, o corpo sacudido por espasmos, escarrava sangue.

De início tentara conservar-se debruçado sobre uma bacia. Agora já não tinha forças para isso e o sangue corria de sua boca sobre um lençol grosso, dobrado, que um criado trocava de vez em quando.

O quarto estava cheio de gente: mensageiros revezando-se para transmitir notícias ao rei, criados, mordomos, secretários, e num canto, formando um pequeno grupo dissimulado e tagarela, os parentes de Nogaret, que pensavam no espólio que partilhariam e avaliavam os móveis.

E todos, para Nogaret, eram espectros irreconhecíveis que se agitavam muito longe dele, sem razão nem finalidade, num ruído confuso. Mas outras presenças, visíveis apenas para ele, se preparavam para assaltá-lo.

Porque, naquele momento em que sobre ele se abatia a angústia da morte, Nogaret pensava pela primeira vez na morte dos outros e se sentia irmão de todos os que havia perseguido, encurralado, martirizado, executado. Mortos durante os interrogatórios, mortos nas prisões, mortos na fogueira, mortos na roda, saíam todos de sua memória alucinada e aproximavam-se dele, quase a tocá-lo.

— Para trás, para trás! — bramiu ele, com voz apavorada.

Os médicos se precipitaram. Nogaret, desvairado, torcia-se em seu leito, os olhos exorbitados, repelindo as sombras ... E o cheiro do sangue que vomitava parecia-lhe o cheiro do sangue de suas vítimas.

Endireitou-se, depois caiu para trás. Os presentes haviam-se afastado e observavam a maneira como aquele que era um dos senhores do reino ia mergulhando na noite.

Com as mãos na garganta, ele se esforçava por afastar os ferros rubros que, diante dele, haviam queimado tantos peitos nus. Suas pernas foram tomadas de cãibras atrozes. Súbito gritou:

— As tenazes! Tirai-as, por piedade!

O mesmo grito que haviam soltado os irmãos d'Aunay em sua masmorra de Pontoise...

O pesadelo em que Nogaret se debatia era apenas o de sua própria vida, tal como essa vida pesara sobre os outros.

— Eu nada fiz em meu nome! O rei, somente... eu servi ao rei...

Aquele jurisconsulto, diante do tribunal da agonia, tentava ainda um último processo.

Às onze horas da noite o quarto esvaziou-se. Um médico, um barbeiro e um velho criado ficaram junto de Nogaret. Os mensageiros do rei, envoltos em suas capas, dormiam no chão da antecâmara. A parentela partira, não sem certo descontentamento. Um entre os demais passara uma bolsa a um criado, dizendo:

— Tu irás me prevenir, quando estiver acabado...

Bouville, que vinha saber as notícias, interrogou o médico de guarda.

— Nada produziu efeito — disse aquele, em voz baixa. — Ele vomita menos, mas não cessa de delirar. Só temos que esperar a hora em que Deus o leve! A menos que um milagre...

Estertorando em seu leito, Nogaret era o único a saber que os templários mortos o esperavam no fundo das trevas.

Passavam diante dele, uns a cavalo vestidos com suas cotas de guerra, outros carregando os próprios corpos deformados pelas torturas. E mantinham-se todos ao longo de uma estrada nua, margeada de precipícios e iluminada pelos reflexos das fogueiras do martírio.

— Aymon de Barbonne... João de Fume... Pedro Suffet... Britinhiac... Guilherme Bocelli... Ponsard de Giziy...

Eram as sombras que lhe gritavam seus nomes, ou o moribundo que já não reconhecia suas próprias palavras?

— Filho de cátaros26! — gritou uma voz, que cobriu bruscamente outras.

E surgindo da noite mais profunda, o grande corpo de Bonifácio VIII se ergueu naquele espaço gigantesco que Nogaret trazia em si, naquela paisagem onde havia montanhas, naqueles vales onde multidões caminhavam para o julgamento final.

— Filho de cátaros!

A voz de Bonifácio ressuscitava o grande drama da vida de Nogaret. Ele se revia num dia de setembro, sob o céu deslumbrante da Itália, cavalgando à vanguarda de seiscentos cavaleiros e de mil soldados de infantaria em direção do rochedo de Anagni. Sciarra Colonna, o inimigo mortal de Bonifácio, o homem que preferira conservar-se durante três anos encadeado a uma galera barbaresca a se deixar reconhecer, arriscando-se com isso a ser devolvido ao papa, cavalgava a seu lado. Teodorico d'Hirson fazia parte da expedição, também. A pequena cidade abriu espontaneamente suas portas; o Palácio Caetani foi tomado de assalto e, passando pelo interior da catedral, os invasores penetraram nos aposentos sacerdotais. Lá, o velho papa de oitenta e seis anos, tiara na cabeça, cruz na mão, sozinho na imensa e deserta sala, olhava para aquela horda metida em armaduras. Conjurado a abdicar, respondeu: "Aqui está o meu pescoço, aqui está a minha cabeça: morrerei, mas morrerei papa". Sciarra então esbofeteou-o com seu guante de ferro.

— Eu evitei que ele o matasse — exclamava Nogaret, do fundo de sua agonia.

A cidade estava sendo saqueada. No terceiro dia os habitantes mudavam de campo, caíam sobre as tropas francesas e feriam Nogaret, que era forçado a fugir. Mas seu objetivo fora alcançado, de qualquer maneira. A razão do velho pontífice não resistira ao medo, à cólera, ao ultraje. Quando o libertaram, Bonifácio chorava como uma criança. Levaram-no de volta a Roma, mas ali caiu em demência furiosa, insultando todos quantos dele se aproximavam, recusando alimentos e arrastando-se de quatro pelo chão através do quarto onde vivia. Um mês mais tarde o rei da França havia triunfado, o papa morrera blasfemando e recusando, numa crise furiosa, os últimos sacramentos.

O médico, inclinado sobre Nogaret, contemplava aquele corpo a lutar, por movimentos imperceptíveis, contra uma excomunhão havia muito tempo levantada.

— Papa Clemente... Cavaleiro Guilherme de Nogaret... Rei Filipe...

Os lábios de Nogaret articulavam debilmente, eco da voz do grão-mestre, que acabava de lhe ressoar dentro do crânio.

— Estou queimando — disse, ainda.

Às quatro horas da manhã o bispo de Paris veio ministrar os últimos sacramentos ao guarda-selos. A cerimônia foi simples. Uma oração passou por sobre o corpo prostrado, por sobre os presentes ajoelhados e que se arrepiavam de fadiga e de um obscuro pavor.

O bispo conservou-se alguns minutos em oração, ao pé do leito. Nogaret estava imóvel, enterrado nos lençóis como se já uma pedra muito pesada o cobrisse. O bispo partiu e pensaram que tudo estava acabado. O médico aproximou-se: Nogaret ainda vivia.

As janelas tornaram-se cinzentas ao tímido clarão da aurora e um sino de timbre agudo e fraco ressoou, do outro lado do Sena, do outro lado do mundo. O velho criado abriu uma janela e respirou um pouco de ar fresco, avidamente. Paris cheirava a primavera e a flores. A cidade acordava num rumor confuso.

Ouviu-se murmurar:

— Piedade!

Voltaram-se. Nogaret estava morto e um filete de sangue secava sob suas narinas. O médico falou:

— Deus levou-o!

Então o velho criado foi buscar, na última remessa de Mestre Engelbert, duas longas velas brancas que meteu nos candelabros e colocou junto do leito, para que iluminassem a última vigília do guarda-selos da França.

 

OS DOCUMENTOS DE UM REINADO

Mal o guarda-selos acabara de entregar a alma ao Criador, Messire Alain de Pareilles, em nome do rei, penetrava no palácio de Nogaret para arrebanhar todos os documentos que ali se encontravam. Cofres e gavetas foram abertos sob sua ordem, tiveram de ser forçados alguns móveis, cujas chaves Nogaret guardava em lugar secreto.

Ao fim de uma hora, Alain de Pareilles estava de volta ao palácio com um volume de arquivos, de papéis, de pergaminhos e de tabuinhas, que foram depositados, segundo as indicações de Hugo de Bouville, no centro da grande mesa de carvalho que ocupava todo um lado do gabinete real.

Depois, o próprio rei foi fazer a última visita a Nogaret. Esteve diante do corpo durante pouco tempo, rezando silenciosamente. Seus olhos não deixavam o rosto do morto, como se tivesse ainda uma pergunta a fazer àquele que partilhara de todos os seus segredos e que tão bem o servira.

Voltando ao palácio, Filipe, o Belo, seguido de três sargentos reais, caminhava um tanto curvado. Na manhã clara ouviam-se os criados dos banhos chamar os citadinos para os seus estabelecimentos. A vida começava em Paris e crianças despreocupadas já brincavam, perseguindo-se umas às outras, ao longo das ruas.

Filipe, o Belo, atravessou a Galeria Comercial e entrou em seu palácio. Em companhia de seu secretário particular, Maillard, pôs-se imediatamente a examinar os documentos trazidos da casa de Nogaret: a desaparição inesperada do guarda-selos deixava pendentes muitos assuntos importantes.

Às sete horas Enguerrand de Marigny entrou nos aposentos do rei. Os dois homens se olharam sem nada dizer e o secretário saiu.

— O papa — disse bruscamente o rei. — E agora Nogaret...

Havia angústia, quase aflição, na forma pela qual ele pronunciara aquelas palavras. Marigny aproximou-se da mesa e sentou-se na cadeira que o soberano lhe apontava. Ficou silencioso durante um momento, depois disse:

— Pois bem! São coincidências estranhas, sire, eis tudo. Coisas semelhantes acontecem todos os dias, mas não nos sentimos atingidos por elas porque as ignoramos.

— Estamos avançados em anos, Marigny.

Ele tinha quarenta e seis anos e Marigny quarenta e nove. Poucos homens, naquela época, alcançavam os cinqüenta anos.

— Será preciso examinar tudo isto — disse o rei, mostrando os documentos.

E sem nada mais acrescentar, nem um nem outro, puseram-se a separar o que devia ser destruído, a classificar o que Marigny devia conservar, ou o que seria repartido entre os vários jurisconsultos.

O silêncio reinava no gabinete, apenas perturbado pelos gritos distantes dos mercadores, pelo rumor do trabalho de Paris. A fronte pálida do rei curvava-se sobre rolos abertos, dos quais os mais importantes estavam guardados em estojos de couro onde figurava o monograma de Nogaret.

Era todo o seu reinado que Filipe via passar assim diante de si, vinte e nove anos, durante os quais tivera entre as mãos a sorte de milhões de homens e impusera sua influência à Europa.

E bruscamente aquela série de acontecimentos pareceu-lhe estranha à sua própria vida, a seu próprio destino. Tudo lhe surgiu agora sob outras luzes e com outras sombras.

Descobria o que os outros pensavam e escreviam a respeito dele, via a si mesmo do exterior. Nogaret guardara relatórios de seus agentes, minutas de interrogatórios, verdadeiras fichas de polícia. De todas aquelas linhas saía uma imagem do rei que ele próprio não reconhecia, a imagem de um ser remoto, duro, estranho à dor dos homens, inacessível à piedade. Cheio de espanto, estava lendo duas frases de Bernardo de Saisset, aquele bispo cuja agitação desencadeara o desentendimento com Bonifácio VIII... Duas frases terríveis e geladas: "Ele pode ser o homem mais belo do mundo, mas só sabe olhar para as pessoas sem nada dizer. Não é um homem, nem um animal, é uma estátua".

Havia também as palavras de outra testemunha de seu reinado: "Nada o fará vergar, é um rei de ferro".

— Um rei de ferro — murmurou Filipe, o Belo. — Pude, então, esconder tão bem as minhas fraquezas? Como os outros me conhecem pouco, e como serei mal julgado!

Subitamente um nome encontrado trouxe-lhe à lembrança uma extraordinária embaixada que ele recebera logo no início de seu reinado. Rabban Kaumas, o bispo nestoriano chinês, viera à França enviado pelo grande cã da Pérsia, descendente de Gengis-Cã, para propor ao rei francês sua aliança, um exército de cem mil homens e a guerra contra os turcos.

Filipe, o Belo, contava então vinte anos. Que sedução, para um jovem, aquele sonho de uma cruzada da qual participariam a Europa e a Ásia! Que empreendimento digno de Alexandre! Naquele dia, entretanto, ele escolhera outro caminho: não mais cruzadas, não mais aventuras guerreiras; era sobre a França e sobre a paz que ele queria fazer sentir seus esforços. Tinha tido razão? Qual seria o poder da França, se ele tivesse aceitado a aliança com o cã da Pérsia? Sonhou por um instante com a gigantesca reconquista das terras cristãs, que teria levado sua glória pelos séculos afora... Depois, voltando à realidade, levantou uma nova pilha de pergaminhos empoeirados.

E bruscamente vergou os ombros. Daquela vez a data foi suficiente: 1305! Era o ano da morte de sua esposa Joana, que trouxera Navarra ao reino, e a ele o único amor de sua vida. Nunca desejara outra mulher. E nove anos depois que ela desaparecera não olhara sequer para outra e nunca olharia. Saíra do drama do luto para entrar nos motins de 1306, onde, diante de Paris sublevada pelos seus decretos sobre as moedas, precisara refugiar-se no Templo. No ano seguinte mandava prender os que o haviam acolhido e defendido... Os depoimentos dos templários estavam conservados ali, em gigantescos rolos de pergaminho, cujos atilhos Nogaret selara. O rei não os abriu.

E agora? Depois de tantos outros, o rosto de Nogaret tinha por sua vez perdido a luz, o calor. Seu cérebro infatigável, sua vontade, sua alma exaltada e dura, tudo estava apagado. Apenas sua obra ficara. Porque a vida de Nogaret não fora uma vida de homem que tivesse, por trás de sua personagem oficial, todas aquelas pequenas coisas íntimas dilacerantes que um homem deixa após sua passagem, e que a inadvertência dos demais ignora... Ele, Nogaret, era bem semelhante à sua imagem. Identificara sua vida com a do reino. Seus segredos ali estavam todos, inscritos nos testemunhos de seu labor.

"Quantas coisas esquecidas dormem aqui", pensou o rei. "Tantos processos, torturas, mortes. Um rio de sangue... Por quê? Que terra ele nutriu?"

De olhos fixos, o rei meditava.

"Por quê?", perguntava-se ainda. "Com que fim? Onde estão as minhas vitórias? Nada, jamais, que eu tenha a certeza de durar depois de mim..."

Sentia a grande vaidade de agir que sente o homem dominado pela idéia da própria morte e daquele desaparecer de tudo o que o espera, como se o mundo não tivesse existido.

Marigny continuava imóvel, inquieto com aquela gravidade do rei. Tudo lhe fora relativamente fácil, no aumentar constante de seus trabalhos, de seus encargos e de suas honras, tudo, menos compreender os silêncios de seu soberano. Nunca estava certo de adivinhar com certeza as causas desses silêncios.

— Fizemos canonizar o Rei Luís por Bonifácio — disse bruscamente Filipe, o Belo, em voz baixa —, mas seria ele realmente um santo?

— Era útil ao reino, sire — respondeu Marigny.

— Mas seria necessário, em seguida, empregar a força contra Bonifácio?

— Ele estava para vos excomungar, sire, porque vós não praticáveis em vossos Estados a política que ele desejava. Não faltastes com o dever dos reis. Ficastes no lugar em que Deus vos colocou e proclamastes que não tínheis recebido o reino de ninguém, a não ser de Deus.

Filipe, o Belo, designou um rolo de pergaminho.

— E os judeus? Não teremos queimado alguns a mais? São criaturas humanas, sofredoras e mortais como nós. Deus não o ordenava.

— O Senhor São Luís, sire, os odiava, e o reino tinha necessidade das riquezas deles.

O reino, o reino, para cada ato a necessidade do reino. "Era preciso, pelo reino... Devíamos, pelo reino..."

— O Senhor São Luís amava a fé e a grandeza de Deus!

Eu, o que foi que amei? — indagou Filipe, o Belo, em voz baixa.

— A justiça — disse Marigny —, a justiça, que é necessária ao bem comum e atinge todos os que não seguem o ritmo do mundo.

— Os que não seguem o ritmo do mundo foram numerosos no meu reinado, e serão ainda numerosos, se todos os séculos se parecerem.

Levantava os relatórios de Nogaret e deixava-os cair sobre a mesa, um após o outro.

— O poder é coisa amarga — disse ele.

— Nada do que é grande deixa de ter sua parte de fel, sire — respondeu Marigny —, e o Senhor Cristo bem o soube. Reinastes com grandeza. Pensai que unistes à coroa Chartres, Beaugency, Champagne, Bigorre, Angoulême, Marque, Douai, Montpellier, o Franco-Condado, Lyon e uma parte da Guyenne. Fortificastes vossas cidades, como vosso pai, o Senhor Filipe III, o desejava fazer, para que elas não ficassem à mercê dos outros... Reformastes as leis, de acordo com as da antiga Roma. Destes ao Parlamento seu estatuto, para que ele apresente melhores decisões. Conferistes a muitos de vossos súditos a burguesia do rei27. Libertastes os servos de vários bailiados e senescalias. Não, sire, não tendes razão para receardes ter errado. De um reino estraçalhado fizestes um país que começa a ter um só coração.

Filipe, o Belo, levantou-se. A firme convicção de seu coadjutor tranqüilizava-o, e o rei apoiava-se nele para lutar contra uma fraqueza que não lhe era natural.

— Talvez tenhais razão, Enguerrand. Mas se o passado vos satisfaz, que dizeis do presente? Ontem foi preciso que os archeiros mantivessem a calma, na Rue Saint-Merri. Lede o que me escrevem os bailios da Champagne, Lyon e Orléans. Por toda parte gritam, por toda parte se queixam da alta do trigo e dos magros salários. E os que reclamam jamais saberão, Enguerrand, que o que eu queria dar-lhes depende do tempo e não da minha vontade. Esquecerão minhas vitórias, para só se recordarem de meus impostos, e me acusarão de não os ter alimentado, no tempo em que viviam...

Marigny escutava, mais inquieto agora com as palavras do rei do que com seus silêncios. Jamais ouvira-o falar tanto, nem confessar semelhantes incertezas, nem deixar transparecer tal desânimo.

— Sire — disse ele —, precisamos resolver vários assuntos.

Filipe, o Belo, olhou ainda um instante para os documentos de seu reino, esparsos sobre a mesa. Depois endireitou-se, como se acabasse de dar uma ordem a si próprio: esquecer a dor e o sangue dos homens e voltar a ser rei.

— Sim, Enguerrand — disse ele —, precisamos.

 

O VERÃO DO REI

Com a morte de Nogaret, Filipe, o Belo, pareceu ter penetrado numa região onde ninguém poderia ir ter com ele. A primavera reinava sobre a terra e sobre as casas dos homens; Paris vivia ao sol; mas o rei estava como que exilado num inverno interior. E a predição do grão-mestre não mais deixava seu espírito.

Muitas vezes ele partia para uma de suas residências, onde longas caçadas distraíam-no, por um momento, daquela obsessão. Mas logo era chamado a Paris por relatórios alarmantes. A situação dos campos e das cidades era má. O custo dos víveres aumentava: as regiões prósperas não enviavam para as regiões pobres suas riquezas excedentes. Diziam: "Muito sargento e pouco frumento". Recusavam pagar os impostos e revoltavam-se contra prebostes e recebedores. Aproveitando aquele mau pedaço, as ligas de barões, na Borgonha e na Champagne, se reconstituíam e faziam pesadas exigências. No Artois, Roberto, aproveitando-se do escândalo das princesas e do descontentamento geral, recomeçava a fazer agitação.

— Má primavera para o reino — chegou a dizer Filipe, o Belo, diante de Monseigneur de Valois.

— Nós estamos no décimo quarto ano do século — respondeu Valois —, um ano que a sorte marcou para a desgraça.

Com isso lembrava a perturbadora constatação feita sobre os acontecimentos do passado: 714, invasão dos muçulmanos na Espanha; 814, morte de Carlos Magno; 914, invasão dos húngaros e grande fome; 1114, perda da Bretanha; 1214, Bouvines... uma vitória à beira da catástrofe, uma vitória cara. Somente o ano de 1014 faltava à chamada dos lutos e dramas.

Filipe, o Belo, olhou para o irmão como se não o visse.

Deixou cair a mão sobre o pescoço do Lombardo, acariciando-o a contrapelo.

— Todas as dificuldades de vosso reinado, meu irmão, provêm do fato de vos rodeardes de gente má — disse Carlos de Valois. — Marigny não tem mais senso de medida. Usa da confiança que depositais nele para vos enganar e fazer-vos seguir sempre mais adiante, no caminho que lhe convém. Se me houvésseis escutado no caso da Flandres...

Filipe, o Belo, sacudiu os ombros, com um movimento que significava: "Nada posso fazer nesse caso". A questão da Flandres voltava aquele ano, como muitas outras vezes voltara, qual teimosa maré. Bruges, a irredutível, punha em xeque os esforços do rei: o condado de Flandres escapava sem cessar das mãos que queriam sujeitá-lo. De negociações a combates, de tratados a esquivas, aquela questão flamenga continuava como chaga no flanco do reino. Que restava dos sacrifícios de Furnes e de Courtrai, que restava da vitória de Mons-en-Pévèle? Seria preciso empregar a força mais uma vez.

Mas a formação de um exército exigia muito ouro. E se tornassem à luta, o orçamento seria sem dúvida superior ao de 1299, que ficara na lembrança de todos porque fora o mais elevado que o reino conhecera: 1642 649 libras, com um déficit de 70000 libras. Ora, havia alguns anos que as receitas ordinárias do Tesouro equilibravam-se ao redor de 500 000 libras. Onde encontrar a diferença?

Marigny, contra a opinião de Carlos de Valois, convocou uma assembléia popular para 1.° de agosto de 1314. Por duas vezes já tinham lançado mão daquele meio, mas ambas as vezes por ocasião de conflitos com o papado, primeiro no caso Bonifácio, depois no caso dos templários. Fora ajudando o poder civil a se libertar da obediência ao poder religioso que a burguesia conquistara seu direito de palavra. Agora, fato novo, o povo ia ser consultado em matéria de finanças.

Marigny preparou aquela assembléia com o maior cuidado, enviando às cidades mensageiros e secretários, multiplicando as entrevistas e as promessas. Seu gênio era o de um grande diplomata: falava"a cada um em sua própria linguagem.

A Assembléia reuniu-se na Galeria Capelista, onde as lojas, naquele dia, permaneceram fechadas. As quarenta estátuas dos reis e a de Marigny pareciam velar de sobre seus pedestais. Fora erguida uma plataforma e ali se instalaram o rei, os membros do seu conselho e os grandes barões do reino.

Marigny tomou a palavra em primeiro lugar. Falou em pé, junto de sua efígie de mármore, e sua voz parecia mais segura do que de costume, mais certa de expressar a verdade sobre o reino. Estava soberbamente vestido e tinha, do orador, o porte imponente e o gesto. Abaixo dele, na imensa nave de duas abóbadas, muitas centenas de homens escutavam.

Marigny explicou que a escassez dos víveres — tornando-os portanto mais caros — era fato que não devia causar surpresa. A paz que o Rei Filipe tinha mantido favorecera o aumento da população. "Nós comemos o mesmo trigo, mas ele é repartido entre um número maior." Seria, pois, necessário semear mais. Depois passou à acusação: as cidades da Flandres ameaçavam a paz. Ora, sem a paz não haveria incremento de colheitas, nem braços para trabalhar nas terras incultas. E sem as rendas e as riquezas que vinham de lá os impostos tornar-se-iam mais pesados para as outras províncias. A Flandres tinha de ceder, porque a isso a obrigariam pela força. Para aquilo seria necessário dinheiro, não para o rei, mas para o reino, e todos os que ali estavam deviam compreender que sua própria segurança e prosperidade estavam ameaçadas.

— Assim aparecerão — acabou ele — aqueles que darão auxílio para irmos contra os flamengos.

Um ruído subiu, imediatamente interrompido pela voz estrondosa de Pedro Barbette.

Barbette, burguês de Paris, reconhecido pelos seus pares como o mais capaz na discussão dos direitos e taxas com a autoridade real, rico devido a um comércio de panos e cavalos, era aliado e pessoa de Marigny. Os dois homens tinham preparado aquela intervenção. Em nome da primeira cidade do reino, Barbette prometeu o auxílio pedido. Arrastou consigo a assistência, e os deputados de quarenta e três "boas cidades" aclamaram em uníssono o rei, Marigny e Barbette, seu leal servidor.

Se a Assembléia fora uma vitória, os resultados financeiros que dela se esperavam provaram logo ser insuficientes. O Exército foi preparado para a partida antes que a subvenção estivesse inteiramente arrecadada.

As tropas reais fizeram uma demonstração na Flandres e Marigny, desejoso de obter êxito o mais depressa possível, apressou-se a negociar e concluir, nos primeiros dias de setembro, a convenção de Marquette. Assim que o Exército partiu, Luís de Nevers, conde de Flandres, denunciou a convenção e as agitações recomeçaram. Monseigneur de Valois e seu clã dos grandes barões acusaram Marigny de se ter deixado comprar pelos flamengos. As despesas da campanha estavam por pagar, e os oficiais reais continuavam a perceber, com grande descontentamento das províncias, o auxílio extraordinário que agora já não tinha razão de ser. O Tesouro se esgotava e Marigny, mais uma vez, teve que se servir de recursos excepcionais.

Os judeus tinham sido atacados por duas vezes: tosá-los novamente daria pouca lã. Os templários já não existiam e o ouro deles de há muito fora fundido. Restavam os lombardos.

Em 1311 eles já tinham necessitado resgatar sua permanência no reino. Dessa vez não se podia tratar de resgate; era a tomada de todos os seus bens e sua expulsão da França que Marigny preparava. Seu tráfico com a Flandres poderia servir de pretexto, assim como o apoio financeiro que eles davam às ligas de senhores descontentes.

O bocado a atacar era bem grande. Os lombardos, burgueses do rei, amparavam-se entre si; estavam fortemente organizados e tinham à sua frente um capitão-geral. Viviam em toda parte, dominavam o comércio, reinavam sobre o crédito. Emprestavam aos barões, às cidades e ao rei. Sempre que era preciso, também davam esmolas.

Assim, Marigny passou várias semanas completando seu projeto e convencendo o rei.

A necessidade encontrara em Marigny um advogado tenaz, e lá para o meio de outubro tudo estava pronto para uma vasta operação, cujo desenrolar se pareceria muito ao daquela que, sete anos antes, fora o prelúdio do esmagamento dos templários.

Mas os lombardos de Paris estavam bem informados: instruídos pela experiência, pagavam caro os segredos do conselho real.

Tolomei, com seu único olho aberto, velava.

 

O PODER E O DINHEIRO

Carlos de Valois concebera tal ódio em relação a Marigny que teria desejado até uma desgraça para o reino, se tal desgraça pudesse abater o coadjutor. Assim, esforçava-se por destruir todos os planos do outro. Roberto d'Artois secundava-o à sua moda: como pedia a Tolomei somas cada vez mais altas, adoçava o acolhimento do banqueiro informando-o sobre as intenções de Marigny.

Um dia, a meio do mês de outubro, houve em casa de Tolomei uma reunião de cerca de trinta homens que representavam um dos mais extraordinários poderes da época.

O mais jovem, Guccio Baglioni, tinha dezoito anos, e o mais velho, setenta e cinco: era Boccanegra, capitão-geral das companhias lombardas. Por diferentes que aqueles homens fossem, em idade e em traços, havia entre eles uma semelhança singular: a mesma riqueza de trajes, a mesma segurança no falar, a mesma mobilidade de expressão e de gestos, a mesma maneira atenta de se inclinar, para nada perder das explicações de Tolomei.

Iluminados por grandes círios fixados nas paredes, aqueles homens morenos, de rostos expressivos, formavam uma família que tinha uma linguagem comum. Uma tribo em guerra, também, e cuja força era igual, apesar do pequeno número, à de todas as ligas de nobres ou à de todas as assembléias de burgueses.

Estavam presentes os Peruzzi, os Albizzi, os Guardi, os Bardi, os Pucci, os Casinelli, todos de Florença, como o velho Boccanegra e o Signor Boccaccio; o principal viajante dos Bardi; estavam os Salimbene, os Buonsignori, os Allerani e os Zaccaria, de Gênova; estavam os Scotti, de Piacenza, e o clã sienense, dirigido por Tolomei. Existiam entre aqueles homens rivalidades de prestígio, de concorrências comerciais e antigos ódios herdados de família, ou criados por questão de mulheres e de costumes. Mas, no perigo, encontravam-se como irmãos.

Tolomei expôs a situação, sem clarear de forma alguma as cores do quadro.

Quando todos os lombardos já estavam preparados para a decisão extrema: deixar a França, liquidar as sucursais, reivindicar em toda parte o pagamento das dívidas dos senhores ingratos, e provocar na capital, a grandes golpes de ouro, as piores disputas... quando tudo fervia e cada qual pensava com cólera no que ia ser forçado a abandonar, um sua moradia suntuosa, outro o casamento que arranjara, ainda outro suas três amantes, Tolomei disse:

— Eu tenho um meio de manietar o coadjutor, e talvez de o abater.

— Então não hesites: abate-o! — disse Buonsignori, o chefe do clã genovês. — Estamos fartos de fazer a fortuna desses porcos, que engordam com o nosso trabalho.

— Não vamos mais dobrar as costas para sermos batidos! — exclamou um dos Albizzi.

— Qual é esse meio? — perguntou Scotti. Tolomei sacudiu a cabeça:

— Não posso dizer...

— Dívidas, com certeza? — falou Zaccaria. — E depois? Isso alguma vez incomodou essa gente? Ao contrário! Se partirmos, eles terão uma bela ocasião para se esquecerem do que nos devem.

Zaccaria falava num tom amargo. Representava uma companhia pequena e tinha ciúme dos que possuíam clientes importantes. Tolomei, voltando-se para ele, disse num tom que expressava ao mesmo tempo a prudência e a força.

— Muito mais do que dívidas, Zaccaria! Uma arma envenenada, que ele ignora, e que sou forçado a guardar em segredo, pelo que peço desculpas... Mas para poder utilizá-la tenho necessidade de vós. Porque é necessário que tratemos com o coadjutor de poder para poder: eu posso ameaçá-lo, mas gostaria de propor-lhe outra alternativa, a fim de que Marigny escolha entre um entendimento ou a luta de morte.

Desenvolveu então a sua idéia. Se desejavam espoliar os lombardos, era porque o rei não tinha dinheiro para pagar sua guerra à Flandres. Marigny devia a todo custo encher o Tesouro, pois seu destino pessoal estava ligado àquilo. Os lombardos iam-se mostrar bons súditos e propor espontaneamente um empréstimo enorme, com juros mínimos. Se Marigny recusasse, Tolomei tiraria sua arma da bainha.

— Tolomei, é preciso que nos esclareças — disse Bardi. — Que arma é essa de que falas tanto?

Depois de um instante de hesitação, Tolomei disse:

— Se quiserdes, posso revelá-la apenas a Boccanegra. Ouviu-se um murmúrio e todos se consultaram com os olhos.

— Si... va bene... facciamo cosi... — disseram.

Tolomei chamou o capitão-geral para um canto do aposento e falou-lhe em voz baixa. Os outros espiavam o rosto de nariz fino, lábios retraídos e olhos cansados do velho florentino.

Tolomei revelou-lhe as malversações de João de Marigny, no que se referia aos bens dos templários, e a existência do recibo assinado pelo jovem arcebispo.

— Duas mil libras, bem colocadas — murmurou Tolomei. — Eu sabia que um dia me serviriam.

Boccanegra deu uma risadinha, que gargarejou no fundo de sua velha garganta. Depois retomou seu lugar e disse, rapidamente, que podiam ter confiança em Tolomei. Então aquele, tabuinha e estilete na mão, começou a recolher os montantes das quantias com que cada um deles subscrevia o eventual empréstimo real.

Boccanegra inscreveu-se em primeiro lugar, com uma soma considerável: dez mil e treze libras.

— Por que as treze libras? — perguntaram-lhe.

— Para lhes atrair desgraça.

— Peruzzi, quanto podes dar? — perguntou Tolomei. Peruzzi calculava, rabiscando rapidamente a sua tabuinha.

— Vou te dizer... daqui a um momento — disse Peruzzi.

— E tu, Guardi?

Todos tinham o ar de homens aos quais estão arrancando um pedaço de carne. Os genoveses, em torno de Salimbene e de Zaccaria, confabulavam. Eram conhecidos como os mais duros em negócios. Dizia-se deles: "Se um genovês apenas olhar para tua bolsa, já ela se esvaziará". Entretanto, resolveram-se, e alguns murmuraram: "Se ele conseguir nos tirar deste passo, será um dia o sucessor de Boccanegra".

Tolomei aproximou-se dos Bardi, que falavam com Boccaccio.

— Quanto, Bardi?

O mais velho dos Bardi sorriu:

— Tanto quanto tu, Tolomei.

O olho esquerdo do sienense abriu-se:

— Então vai ser o dobro do que pensavas.

— Pior seria perder tudo — falou Bardi, levantando os ombros. — Non è vero, Boccaccio?

O nomeado inclinou a cabeça. Mas levantou-se, para falar a Guccio de parte. Seu encontro na estrada de Londres tinha criado entre ambos uma espécie de intimidade.

— Será verdade que teu tio tem o meio de torcer o pescoço de Enguerrand?

Guccio tomou seu ar mais sério para responder:

— Caro Boccaccio, jamais ouvi meu tio dizer uma coisa que não pudesse realizar.

Quando a reunião terminou, o ofício da tarde também já tinha acabado em todas as igrejas e a noite descera sobre Paris. Os trinta banqueiros saíram da casa de Tolomei pela portinha que dava para o claustro Saint-Merri. Escoltados pelos seus criados, portadores de tochas, formavam, na sombra atravessada pelas chamas vermelhas, a estranha procissão da fortuna ameaçada, a procissão dos penitentes do ouro.

Em seu gabinete, Tolomei, a sós com Guccio, calculava o total das somas prometidas, como se contam as tropas de um exército. Quando terminou, sorriu. Com o olho entreaberto, as mãos cruzadas nas costas, olhando o fogo onde os toros de lenha se transformavam em cinza, ele murmurou:

— Messire de Marigny, ainda não vencestes. Depois, falando a Guccio:

— Se tivermos êxito, exigiremos novos privilégios na Flandres.

Porque, próximo como estava do desastre, Tolomei ainda pensava, sem querer, em tirar proveito de seu medo e do risco corrido. Empurrando diante de si sua vasta barriga, dirigiu-se para um cofre, abriu-o e retirou um estojo de couro.

— O recibo assinado pelo arcebispo — disse ele. — Com o ódio que lhes vota Monseigneur de Valois, e com o que já se conta dos dois Marigny e essa história de que Enguerrand se teria feito pagar pelos flamengos, há o suficiente para que ambos sejam enforcados... Vais saltar sobre o melhor cavalo e partir imediatamente para Neauphle, onde colocarás isto em segurança...

Olhou Guccio bem de frente e acrescentou gravemente:

— Se me acontecer alguma desgraça, Guccio mio, entregarás este pergaminho a Monseigneur d'Artois. Ele saberá com certeza fazer bom uso dele... Toma cuidado, porque a sucursal de Neauphle não estará também ao abrigo dos archeiros...

Subitamente, no perigo em que ingressava, Guccio se recordou de Cressay, da bela Maria e do beijo à beira do campo de centeio.

— Meu tio, meu tio — disse ele, vivamente —, tenho uma idéia. Farei como ordenastes, mas não irei a Nauphle e sim a Cressay, cujos castelães nos ficaram obrigados. Naquela ocasião eu lhes prestei excelentes serviços, e a dívida que têm conosco é bastante grande. E penso que a filha da casa, se as coisas não mudaram, não se recusará a me ajudar.

— Bem pensado — disse Tolomei, calorosamente. — Tu amadureces, meu rapaz! Num banqueiro, o bom coração deve sempre servir para alguma coisa... Faze então como dizes. Mas já que tens necessidade dessas pessoas, deves chegar com alguns presentes. Leva alguns tecidos bordados a ouro e a renda que ontem recebi de Bruges para as mulheres. Há dois rapazes, segundo disseste?

— Sim — disse Guccio. — Eles gostam de caçar e mais nada.

— Perfeito! Leva-lhes então os dois falcões que mandei vir para d'Artois. Ele que espere... A propósito...

Deu uma risadinha, sem continuação, pois uma idéia acabava de lhe atravessar o espírito.

Debruçou-se de novo sobre o cofre e tirou um pergaminho.

— Eis as contas de Monseigneur d'Artois — disse ele. — Ele não se recusará a te ajudar, se for necessário. Mas estarei ainda mais seguro de seu apoio se lhe apresentares teu pedido com uma das mãos e a conta dele com a outra... E eis ainda a dívida do Rei Eduardo... Não sei, meu sobrinho, se ficarás rico com isso tudo, mas terás meios de fazer bastante mal. Vamos! Não demores mais. Vai mandar selar teu cavalo.

Pôs uma das mãos sobre o ombro do jovem e rematou:

— A sorte das nossas companhias está em tuas mãos, Guccio, não te esqueças. Arma-te e leva contigo dois homens. Toma também este saco com mil libras. É uma arma que vale algumas espadas.

Guccio beijou o tio com emoção, como jamais sentira. Daquela vez não se tratava de criar para seu uso uma personagem imaginária e de inventar um papel de conspirador perseguido. O papel vinha a seu encontro. O homem se forma com os riscos que corre, e Guccio estava se tornando adulto.

Menos de uma hora mais tarde, com dois criados de escolta trotando a seu lado, ele tomava a direção da Porta Saint-Honoré.

Então Messer Spinello Tolomei colocou aos ombros sua capa forrada de peles, porque outubro estava frio, chamou dois servidores com tochas e adagas e, assim rodeado, dirigiu-se para a casa de Enguerrand de Marigny, para ali empreender o violento combate.

— Diga a Monseigneur Enguerrand que o banqueiro Tolomei quer vê-lo com urgência — disse ele ao porteiro.

Tolomei esperou longamente numa antecâmara suntuosa; o nível de vida do coadjutor era régio.

— Venha, messer — disse o secretário, abrindo uma porta.

Tolomei atravessou três grandes salas e encontrou-se diante de Enguerrand de Marigny, que sozinho em seu gabinete terminava de cear, trabalhando.

— Visita imprevista — disse Marigny friamente, fazendo sinal ao banqueiro para se sentar. — De que se trata?

Tolomei inclinou ligeiramente a cabeça e respondeu, com voz tranqüila:

— Negócio do reino, messire. Corre um rumor há vários dias de que o conselho do rei iria tomar certa medida que concerne ao meu comércio e, devo dizer-vos, incomoda-nos muito. A confiança está em suspenso, os compradores se fazem raros, os fornecedores exigem pagamentos, e quanto aos que têm conosco outros negócios... dívidas, por exemplo ... adiam seus pagamentos. Tudo isso traz grande dificuldade ...

— Que não é assunto do reino — respondeu Marigny.

— Depende — falou Tolomei —, depende. Se se tratasse apenas de mim, eu dormiria tranqüilo. Mas a questão diz respeito a muita gente, aqui e fora daqui. Em toda parte se afligem, em minhas sucursais...

Marigny esfregou seu forte queixo grumoso.

— Sois um homem razoável, Messer Tolomei, e não deveis dar fé a esses rumores, dou-vos minha palavra — disse ele, olhando tranqüilamente para aquele homem que se preparava para abater.

— Com certeza, com certeza, vossa palavra... Mas a guerra custou caro ao reino — respondeu Tolomei. — Os impostos talvez não estejam entrando tão bem quanto seria de se desejar, e o Tesouro pode estar sentindo necessidade de novo fornecimento de ouro. Assim, também nós, messire, preparamos um projeto...

— Que projeto? O vosso comércio, já vos disse, não é assunto que me diga respeito...

Tolomei levantou a mão, como para dizer: "Paciência, messire coadjutor, ainda não sabeis tudo..." E falou:

— Desejamos fazer um grande esforço para virmos em auxílio de nosso rei bem-amado. Estamos prontos a oferecer ao Tesouro um empréstimo considerável, do qual participariam todas as companhias lombardas, e isso a juros mínimos. Estou aqui para vos falar a esse respeito.

Depois Tolomei inclinou-se para o fogo e murmurou um total tão vultoso que Marigny estremeceu. Mas o coadjutor pensou imediatamente: "Se eles estão prontos a se desfazerem dessa soma, é que têm vinte vezes mais, que lhes poderemos tomar".

Lendo muito e fazendo constantes vigílias, o coadjutor tinha os olhos sempre avermelhados.

— É um bom pensamento e acho louvável a intenção, de que sou grato — disse ele, depois de um breve momento de silêncio. — Convém, entretanto, que vos diga de minha surpresa... Ouvi dizer que certas companhias enviaram para a Itália somas muito importantes em ouro... Esse ouro não poderia estar ao mesmo tempo aqui e lá.

Tolomei fechou inteiramente o olho esquerdo.

— Sois um homem bem razoável, monseigneur, e não deveis dar fé a esses rumores, eu vos dou minha palavra — disse ele, insistindo ironicamente nas duas últimas palavras. — O oferecimento que vos faço não é uma prova de nossa boa fé?

— Felizmente — disse com frieza o coadjutor — confio no que vós me garantis. Se não fosse por isso, o rei não poderia suportar brechas assim na fortuna da França e teria sido necessário pôr termo a tais remessas...

Tolomei não se moveu. O êxodo dos capitais lombardos começara por causa da ameaça de espoliação, e aquele êxodo

ia justamente servir de pretexto a Marigny para justificar sua medida. Era o círculo vicioso.

— Já dissemos, eu creio, o que era necessário, Messer Tolomei — voltou a falar Marigny.

— Realmente, monseigneur — respondeu o banqueiro, levantando-se. — Mas não esqueçais nosso oferecimento... se os acontecimentos o tornarem útil.

Depois, dirigindo-se para a porta, disse, de repente, como se algo lhe tivesse vindo à memória:

— Disseram-me que monsenhor vosso irmão, o arcebispo, está em Paris no momento...

— É verdade.

Tolomei sacudiu a cabeça pensativamente.

— Não ouso — disse ele — incomodar tão importante prelado, embora tenha certa obrigação para comigo. Mas gostaria que ele soubesse que estou à disposição, desde hoje, se lhe parecer bem, e seja a que horas for. Minha mensagem é importante para ele.

— Que tendes a lhe dizer?

— Monseigneur — disse Tolomei, sorrindo —, a primeira virtude de um banqueiro é saber calar.

Depois, já saindo, repetiu muito secamente:

— Desde hoje, se lhe parecer bem.

 

TOLOMEI GANHA

Tolomei, naquela noite, praticamente não dormiu. Perguntava a si próprio se teria tempo de empregar a forma de pressão que possuía contra os Marigny.

Seria suficiente a assinatura de Filipe, o Belo, embaixo de um pergaminho que Enguerrand de Marigny lhe apresentasse, para que se decidisse a sorte dos lombardos. Enguerrand não trataria de precipitar as coisas? "Terá prevenido o irmão?", indagava Tolomei em seus pensamentos. "E o arcebispo terá confessado qual é a arma que deixou em minhas mãos? Não irá ele conseguir esta mesma noite a assinatura do rei, para se antecipar a mim? Ou talvez se combinem, os dois irmãos, para me assassinar..."

Voltando-se na cama, em sua insônia, Tolomei pensava com amargura nessa segunda pátria, que considerava haver servido tão bem com seu trabalho e seu dinheiro. Sentia-se apegado à França mais do que à sua Toscana natal, porque ali enriquecera. Amava realmente a França, à sua maneira. Não mais sentir sob as solas de seus calçados o pavimento da Rue des Lombards, não mais ouvir o sino grande de Notre-Dame, não mais estar presente às reuniões do Parlatório dos Burgueses, não mais respirar o odor do Sena, da primavera, eram renúncias que lhe despedaçavam o coração. Sem ter-se apercebido disso, fizera-se um verdadeiro parisiense, daqueles parisienses que nasceram fora da França e que não têm outra cidade. "Recomeçar a vida noutro lugar, na minha idade... se ainda me deixarem a vida para recomeçar!"

Adormeceu pelo amanhecer e foi acordado quase que imediatamente por um rumor de passos em seu pátio e golpes de aldraba contra a porta. Tolomei pensou que vinham prendê-lo e atirou-se sobre suas roupas. Um criado, todo esbaforido, apareceu.

— O arcebispo pede para vos falar com urgência — disse ele.

Ouvia-se, vindo do rés-do-chão, um rumor confuso de solas pesadas e de piques batendo sobre as lajes.

— Por que esse barulho todo? — perguntou Tolomei. — O arcebispo não está só?

— Seis guardas o acompanham, senhor — respondeu o criado.

Tolomei fez carranca. Seu olhar tomou uma grande dureza de expressão.

— Abre os postigos das janelas do meu gabinete — disse ele.

Monsenhor João de Marigny subia a escada. Tolomei esperou-o de pé sobre o patamar. Fino, uma cruz de ouro batendo-lhe de encontro ao peito, o arcebispo imediatamente enfrentou o banqueiro.

— Que quer dizer, messer, a estranha mensagem que meu irmão me enviou esta noite?

Tolomei levantou as mãos gordas e pontudas, num gesto pacificador.

— Nada que vos deva perturbar, monsenhor, nem que merecesse que vos désseis a tal incômodo. Eu teria ido ao palácio episcopal, quando vos fosse conveniente... Quereis entrar em meu gabinete? Estaremos melhor ali para conversar sobre negócios.

Os dois homens entraram no aposento onde Tolomei habitualmente trabalhava. O criado acabava de retirar os postigos interiores, ornamentados com pinturas. Depois atirou lenha miúda sobre as brasas ainda vermelhas da lareira, e logo as chamas subiram, estralejantes. Tolomei fez sinal ao empregado para sair.

— Viestes acompanhado, monsenhor — disse ele. — Era necessário? Não tendes confiança em mim? Pensáveis correr algum perigo em minha casa? Devo dizer-vos que me havíeis habituado a outras maneiras...

Sua voz se esforçava por parecer cordial, mas seu sotaque toscano era mais pronunciado do que de costume, sinal de inquietação.

João de Marigny sentou-se diante do fogo, para o qual estendeu a mão que trazia o anel.

"Esse homem não está seguro de si e não sabe de que forma me tratar", pensou Tolomei. "Chega com todo aquele espalhafato de homens armados, como se fosse rebentar tudo, e agora está a olhar para as próprias unhas."

— Vossa pressa em me prevenir causou-me inquietação — disse enfim o arcebispo. — Meu propósito era vir visitar-vos, mas teria preferido escolher a ocasião para essa visita.

— Mas vós a escolhestes, monsenhor, vós a escolhestes... O que eu disse a Monseigneur Enguerrand era apenas uma forma polida... Podeis crê-lo...

O prelado teve um rápido olhar para Tolomei. O banqueiro dava a impressão da maior calma possível e olhava para o outro com um olho só.

— Na verdade, Messer Tolomei, tenho um favor a vos pedir — disse ele.

— Estou sempre pronto a vos prestar favores— respondeu Tolomei, docemente.

— Aqueles... objetos que eu vos... confiei? — disse João de Marigny.

— ...muito preciosos, e que provinham dos bens do Templo — esclareceu Tolomei sem mudar de tom.

— Foram vendidos?

— Não sei, monsenhor, não sei. Foram enviados para fora da França, como ficara convencionado entre nós, pois não poderíamos deixá-los circular por aqui... Penso que uma parte terá encontrado comprador. No fim do ano devo receber o aviso.

Tolomei, com seu corpanzil bem instalado, as mãos cruzadas sobre o ventre, balançava a cabeça com bonomia.

— E aquele recibo que eu assinei? Continuais precisando dele? — indagou João de Marigny.

Escondia seu medo, mas escondia-o mal.

— Não tendes frio, monsenhor? Estais com o rosto tão branco — disse Tolomei, que se abaixou para pôr um tronco no fogo.

Depois, como se tivesse esquecido a pergunta formulada pelo arcebispo, falou:

— Que pensais dessa questão que o conselho do rei discutiu várias vezes nesta semana, monsenhor? Será possível que tenham a intenção de roubar-nos nossos bens, de nos reduzir à miséria, ao exílio, à morte...

— Nada posso dizer — disse o arcebispo. — Esses são negócios do reino.

Tolomei sacudiu a cabeça.

— Transmiti ontem a monseigneur vosso irmão uma proposta cujo sentido ele pareceu não ter penetrado bem. É lamentável. Estão-se preparando, dizem, para nos espoliar no interesse do reino. Ora, oferecemos ao reino um enorme empréstimo, monsenhor, e vosso irmão conserva-se mudo. Não vos terá dito nada sobre o assunto? É lamentável, é muito lamentável realmente!

João de Marigny levantou-se.

— Não tenho que discutir, messer, as decisões do rei — disse ele, secamente.

— Ainda não se trata de uma decisão do rei — replicou Tolomei. — Não podeis repetir ao coadjutor que os lombardos, intimados a dar sua vida, que pertence ao rei, podeis crer-me, e seu ouro, que também pertence ao rei, gostariam, se fosse possível, de conservar a vida? Oferecem o ouro de boa vontade, quando querem tomá-lo à força. Por que não ouvi-los?

Fez-se silêncio e João de Marigny, imóvel, parecia olhar para além das paredes.

— Que ides fazer daquele pergaminho que eu assinei? — perguntou ele.

Tolomei passou a língua sobre os lábios.

— Que faríeis em meu lugar, monsenhor? Imaginai por um instante... isso não passa de uma estranha imaginação, está claro... mas imaginai que vos ameaçam de ruína e que possuis algo... um talismã, é isso, um talismã... que pode evitar essa ruína...

Foi até uma das janelas, porque ouvia ruído no pátio. Chegavam carregadores com caixas e fardos de tecidos. Tolomei calculou maquinalmente o montante das mercadorias que iam entregar em seus depósitos naquele dia e suspirou.

— Sim... um talismã contra a ruína —- murmurou ele.

— Não estais querendo dizer que aquele recibo...

— Sim, monsenhor, eu quero dizer e digo — falou, duramente, Tolomei. — Aquele recibo demonstra que traficastes com os bens do Templo, que estavam sob seqüestro real. Testemunha que roubastes, e roubastes o rei.

Olhou bem de frente para o arcebispo. "Desta vez", pensava ele, "está feito. Vamos ver quem fraqueja primeiro."

— Vós serieis detido como meu cúmplice! — disse João de Marigny.

— Então balançaríamos juntos, como dois ladrões, em Montfaucon — disse Tolomei, friamente. — Mas eu não balançaria sozinho...

— Sois um velhaco abominável! — gritou João de Marigny.

Tolomei sacudiu os ombros.

— Eu não sou arcebispo, monsenhor, não fui eu quem desviou os ostensórios de ouro onde os templários apresentavam o corpo de Cristo. Não passo de um mercador, e neste momento tratamos de um negócio, convenha-vos ou não. Eis a única verdade das nossas palavras todas. Não havendo espoliação de lombardos, não haverá escândalo convosco. Mas se eu cair, monsenhor, também caireis. E de mais alto. E o coadjutor, que tem sorte demais para possuir apenas amigos, será arrastado atrás de vós.

João de Marigny agarrou o braço de Tolomei.

— Devolvei-me o recibo — disse ele.

Tolomei olhou para o arcebispo, que tinha os lábios brancos; suas mãos, seu queixo, todo o seu corpo tremia.

Tolomei desembaraçou-se docemente dos dedos que o haviam agarrado.

— Não — disse ele.

— Eu vos reembolsarei as duas mil libras que me destes — disse João de Marigny — e ganhareis todo o lucro da venda.

— Não.

— Cinco mil.

— Não.

— Dez mil! Dez mil libras por aquele recibo! Tolomei sorriu.

— E onde ireis buscá-las? Sei melhor do que vós qual é a vossa fortuna. Seria preciso que eu próprio vos emprestasse esse dinheiro!

João de Marigny, os punhos cerrados, repetiu.

— Dez mil libras! Eu as encontrarei... Meu irmão me ajudará.

— Monsenhor, eu ofereci, só de minha parte, ao Tesouro real, dezessete mil libras!

O arcebispo compreendeu que seria necessário mudar de tática.

— E se eu obtiver de meu irmão que sejais excluído do decreto? Que vos deixem levar a fortuna e recomeçar a vida em outro lugar?

Tolomei refletiu um instante. Davam-lhe o meio de se salvar sozinho? Contra uma tal segurança, valia a pena arriscar grande lance de dados?

— Não, monsenhor — respondeu ele, afinal. — Sofrerei a sorte que todos sofrerem. Não quero recomeçar em outro lugar, não tenho razão alguma para querê-lo. Pertenço à França, agora, tanto quanto vós. Sou burguês do rei. Quero ficar nesta casa que construí, quero ficar em Paris. Aqui passei trinta e dois anos de minha vida, monsenhor, e se Deus quiser, aqui se acabará minha existência...

Seu tom e sua resolução tinham uma certa grandeza.

— De resto — acrescentou ele —, mesmo que eu desejasse restituir-vos aquele recibo, não me seria possível, porque não o tenho comigo.

— Estais mentindo! — exclamou o arcebispo.

— Foi para Siena, monsenhor. Para a casa de meu primo Tolomei, com quem tenho muitos negócios em comum.

João de Marigny não respondeu. Foi depressa até a porta, e chamou:

— Souillard! Chavelot!

Tolomei pensou: "Agora, agüentemos firme!" Dois latagões de uns seis pés de altura entraram, pique em punho.

— Vigiem este homem: que ele não se mova uma polegada! — disse o arcebispo. — E fechem a porta... Tolomei, obrigais-me a isto, e haveis de lamentá-lo! Vou revistar tudo aqui, por toda a parte, até encontrar aquela folha! Não sairei sem ela!

— Eu nada terei a lamentar, monsenhor, e vós nada encontrareis. Partireis como viestes, esteja eu morto ou vivo. Mas se porventura eu fosse morto, sabei que isso de nada vos serviria. Porque meu primo de Siena está avisado de que, no caso de que eu tivesse morte muito rápida, ele devia dar conhecimento ao Rei Filipe, o Belo, da existência daquele recibo — disse Tolomei.

Em seu corpo gordo o coração batia depressa demais e um suor frio corria-lhe pelas costas. Mas, dobrado sobre si mesmo e encostado a uma parede invisível, ele se obrigava a permanecer impassível.

O arcebispo revistou os cofres, revirou no chão as gavetas das credencias, desmanchou rolos de pergaminho e maços de papéis. De vez em quando olhava disfarçadamente para o banqueiro, a fim de ver se a manobra de intimidação dava resultados. Dali passou para o quarto de Tolomei e o banqueiro ouviu-o saquear seus armários.

"Felizmente, Nogaret morreu", pensava Tolomei. "Ele teria tomado outro caminho, e encontraria bastante com que me atrapalhar."

O arcebispo reapareceu.

— Podem ir — disse aos dois guardas.

Estava vencido. Tolomei não cedera ao medo. Seria necessário capitular.

— Então? — perguntou Marigny.

— Então, monsenhor — disse Tolomei calmamente —, nada mais tenho a dizer-vos além do que já vos disse ainda há pouco. Toda essa desordem íoi inútil. Falai ao coadjutor e forçai-o a aceitar o oferecimento que lhe fiz, enquanto é tempo. Senão...

O banqueiro, sem acabar a frase, foi até a porta e abriu-a. João de Marigny saiu, sem uma palavra.

A cena que, naquele mesmo dia, opôs o arcebispo aos irmãos foi terrível. Postos bruscamente face a face, na nudez de suas naturezas, os irmãos Marigny, que até então haviam caminhado no mesmo passo, se estraçalharam.

O coadjutor arrasou seu irmão mais novo com censuras e desprezos e o outro defendeu-se como pôde, covardemente.

— Boa cara tens para me esmagar! — exclamou ele. — De onde te veio a tua riqueza? De que judeus esfolados? De que templários queimados? Não fiz senão imitar-te. Eu te servi bastante, em tuas manobras. Serve-me também agora.

— Se eu tivesse sabido quem eras, não teria feito de ti um arcebispo — disse Enguerrand.

— Não encontradas nenhum outro, a não ser eu, para condenar os templários, e sabes muito bem disso.

Sim, o coadjutor sabia que o exercício do poder obriga a conluios indignos. Mas ficara subitamente esmagado, por ver as conseqüências em sua própria família. Um homem que aceitava vender sua consciência em troca de uma mitra podia também roubar e trair. Aquele homem era seu irmão, eis o fato...

Enguerrand de Marigny apanhou o monte de papéis que tinham servido para preparar o decreto contra os lombardos e, com um gesto de raiva, atirou-os ao fogo.

— Tanto trabalho para nada — disse ele —, tanto trabalho!

 

OS SEGREDOS DE GUCCIO

Cressay, à luz da primavera, com suas árvores de folhas transparentes e o fremir argênteo do Mauldre, conservava na lembrança de Guccio uma visão feliz. Mas quando, naquela manhã de outubro, o jovem sienense, que se voltava sem cessar para ter a certeza de que não trazia archeiros em seu rasto, chegou às alturas de Cressay, perguntou a si próprio por um instante se não se teria enganado. O outono parecia ter amesquinhado a mansão, enterrando-a ainda mais. "As torres eram então assim baixas?", dizia Guccio consigo mesmo. "Será suficiente meio ano para que as lembranças assim se modifiquem?" O pátio, com a chuva, transformara-se num pantanal, onde os cavalos se enterravam até o travadouro. "Pelo menos", pensou Guccio, "há poucas possibilidades de me virem procurar aqui." Ao criado coxo que acorria, ele atirou as rédeas do cavalo, dizendo-lhe:

— Manda limpar os cavalos e dar-lhes de comer!

A porta da mansão entreabriu-se e Maria de Cressay apareceu.

— Messire Guccio! — exclamou.

Sua surpresa foi tão grande que a moça ficou branca e teve de apoiar-se ao batente.

"Como é bela!", pensou Guccio. "E não deixou de amar-me." As gretas das paredes então desapareceram e as torres da manhã retomaram, para Guccio, as proporções que tinham em sua lembrança.

Mas já Maria gritava, para o interior da casa:

— Mãe! Messire Guccio voltou!

Dona Eliabel fez grande festa ao jovem, beijando-o nas faces e apertando-o contra seu peito opulento. A imagem de Guccio por várias vezes povoara as noites da viúva. Tomou-lhe as mãos, fê-lo sentar-se, mandou que lhe trouxessem vinho e patês.

Guccio aceitou de bom coração aquele acolhimento e explicou sua vinda da forma que premeditara: vinha a Neauphle para pôr em ordem a sucursal, que sofria pela má administração. Os empregados não providenciavam para que as dívidas fossem cobradas a tempo... Imediatamente Eliabel se inquietou:

— Vós nos tínheis dado um ano inteiro — disse ela.

— O inverno veio depois de uma colheita bem fraca e nós nada temos ainda...

Guccio acalmou-a, dando a entender que os castelões de Cressay eram seus amigos e não permitiria que os inquietassem. Dona Eliabel convidou Guccio para se hospedar na mansão. Em parte alguma na cidade, garantia ela, o rapaz encontraria mais conforto e melhores companheiros. Guccio aceitou e reclamou suas bagagens.

— Trouxe comigo — falou — alguns tecidos e ornamentos que vos agradarão, espero... Quanto a Pedro e João, tenho para eles dois falcões bem amestrados, que lhes permitirão melhores caçadas, se for possível.

As fazendas, os enfeites, os falcões deslumbraram a casa e foram recebidos com gritos de alegria. Pedro e João, ao voltarem da caçada cotidiana com aquele cheiro de terra e sangue que a eles se colava como um traje, fizeram mais de cem perguntas a Guccio. Aquele companheiro, que surgia miraculosamente, agora que se preparavam para o tédio das noites de mau tempo, pareceu-lhes ainda mais digno de afeição do que em sua primeira passagem. Tinham a impressão de que eram conhecidos antigos.

— E nosso amigo, o Preboste Portefruit, que fim levou? — perguntou Guccio.

— Continua a pilhar tanto quanto pode, mas não aqui em nossa casa, graças a Deus... e graças a vós...

Maria deslizava pelo aposento, dobrando o busto diante do fogo que atiçava, ou dispondo palha nova sobre o enxergão coberto. Não falava, mas não tirava os olhos de Guccio. E o moço, no fim do dia, encontrando-se a sós com ela, tomou-a docemente pelos cotovelos e atraiu-a para si.

— Não há nada em meus olhos para te recordar a felicidade? — disse, usando a frase de uma história de cavalaria que lera recentemente.

— Oh! sim, messire! — respondeu Maria, com voz trêmula e os olhos dilatados. — Não cessei de ver-vos aqui, por muito longe que estivésseis. Nada esqueci e nada desfiz.

Ele procurou uma desculpa por não ter voltado há seis meses e não ter mandado mensagem alguma. Com muita surpresa de sua parte, Maria, longe de censurá-lo, agradeceu-lhe por ter regressado mais depressa do que ela esperava.

— Tinhas dito que voltarias para os juros, ao fim de um ano — disse ela. — Eu não te esperava antes. Mas mesmo que não tivesses vindo, eu te esperaria toda a minha vida.

Guccio deixara em Cressay a lembrança de uma jovem bela e doce e o pesar de uma aventura inacabada, na qual, para ser bem franco, pouco pensara durante aqueles meses. Vinha encontrar um amor deslumbrado, maravilhoso, que crescera qual uma planta ao longo da primavera e do verão. "Que sorte tenho!", pensava ele. "Ela podia ter me esquecido, estar casada..."

Como acontece muitas vezes com os homens de temperamento infiel, aquele jovem, por enfatuado que fosse, era no fundo bastante modesto em amor, porque imaginava os outros tal como ele próprio se sentia. Não pensara ter inspirado, já que tão pouco o alentara, sentimento tão poderoso e tão raro.

— Maria — disse ele com um calor que lhe era inteiramente novo para apagar antecipadamente a mentira mais comum dos homens —, eu também não deixei de pensar em ti e nada me desligou de tua pessoa.

Estavam um diante do outro, igualmente emocionados, igualmente embaraçados com suas palavras e com seus gestos.

— O campo de centeio... — murmurou Guccio.

E aproximou seus lábios dos de Maria, que se entreabriram como um belo fruto.

Julgou então que o momento era bem escolhido para pedir o auxílio de que necessitava.

— Maria — disse ele —, eu não vim por causa da sucursal, nem por causa de dívida alguma. Mas de ti nada quero esconder, nem posso. Seria ofender o amor que te dedico. O segredo que te vou revelar é mais um elo que te ofereço, e é grave, pois dele dependem as vidas de muitos outros e a minha própria... Meu tio e amigos poderosos incumbiram-me de esconder em lugar seguro papéis de grande importância para o reino e para a própria segurança deles. A esta hora já haverá, com certeza, archeiros à minha procura — continuou Guccio, que, levado pelo hábito, recomeçava a enfeitar um tanto a sua personagem. — Eu tinha vinte lugares onde buscar um refúgio, mas foi para junto de ti, Maria, que me encaminhei. Minha vida, daqui por diante, depende do teu silêncio.

— Sou eu — disse Maria — quem depende de ti. Não tenho fé senão em Deus e naquele que foi o primeiro a ter-me em seus braços. Minha vida é a dele.

Tendo-se convencido intimamente enquanto falava, Guccio sentiu um grande ímpeto de gratidão, ternura e desejo, ao mesmo tempo, em relação a Maria. Por muito orgulhoso que fosse, admirava-se de ter sabido inspirar um amor tão duradouro, tão poderoso e tão pronto a socorrer.

— Minha vida é a tua vida — repetiu a jovem. — Teu segredo é o meu segredo. Esconderei o que desejas esconder, calarei o que quiseres calar e o segredo morrerá comigo.

Lágrimas formavam-se nos cantos dos olhos de um azul sombrio. "Assim, ela se assemelha", pensou Guccio, "a essas manhãs de primavera, quando a chuva cai ao mesmo tempo em que brilha o sol."

Depois, voltando à sua preocupação, disse:

— O que eu preciso esconder está dentro de um cofre de chumbo, que mal tem o tamanho de dois punhos. Há algum lugar aqui?...

Maria pensou por um momento.

— Na capela — respondeu ela. — Iremos amanhã, logo que o dia apareça. Meus irmãos deixam a casa antes da aurora, para a caça. Amanhã minha mãe sairá logo depois deles, porque precisa fazer algumas compras na cidade. Contanto que ela não queira me levar! Mas, então, eu me queixarei de dores de garganta.

Guccio murmurou "obrigado", e o passo de Dona Eliabel se fez ouvir.

Daquela vez, como Guccio devia passar uma temporada maior, alojaram-no no andar superior, num quarto vasto, limpo, mas frio. Ele se deitou, a adaga ao lado e a caixa de chumbo que continha o recibo do arcebispo pousada sob sua cabeça. Estava decidido a não dormir. Ignorava que àquela mesma hora os dois irmãos Marigny tinham recebido sua tremenda sacudidela, e que o decreto contra os lombardos já não passava de cinza.

Lutando para manter os olhos abertos, contava as mulheres que já havia possuído (não tinha ainda dezenove anos e o cálculo era bastante rápido), lembrava-se das duas jovens burguesas que no momento ele ajudava a enganar os maridos e, comparando-as a Maria, achava-as baixas de sentimentos e imperfeitas de corpo.

Não sentiu que adormecia. Um nitrido acordou-o, em sobressalto: pensou que o vinham prender e correu à vidraça. Eram Pedro e João de Cressay, acompanhados de dois camponeses e com seus falcões novos no punho, que deixavam o domínio. Depois as portas estalaram; uma égua cinzenta, com ar bastante cansado pela idade, foi trazida para Dona Eliabel, que se afastou por sua vez, escoltada pelo criado coxo. Então Guccio enfiou suas botas e esperou.

Alguns momentos depois Maria chamou-o do rés-do-chão e Guccio desceu, escondendo o cofre de chumbo sob a capa.

A capela era uma pequena peça abobadada no interior da mansão, na parte voltada para leste. As paredes eram caiadas.

Maria acendeu um círio na lâmpada de azeite que queimava diante de uma estátua de São João Evangelista, bem grosseiramente trabalhada em madeira. Na família Cressay dava-se sempre o nome de João ao primogênito.

— Encontrei este esconderijo quando era criança, brincando com meus irmãos — disse Maria. — Vem.

Levou Guccio até um dos lados do altar.

— Ali, empurra essa pedra — disse ela, baixando o círio para iluminar o trecho que mostrava.

Guccio fez força sobre a pedra, mas nada se moveu.

— Não, assim não.

Maria deu o círio a Guccio e apoiou-se à pedra de certa forma, levando-a a girar sobre si mesma, descobrindo um alvéolo sob o altar. Ã luz da chama, Guccio percebeu um crânio e alguns restos de ossos.

— Quem é? — perguntou.

Era supersticioso e fazia figas, com a mão atrás das costas.

— Não sei — disse Maria —, ninguém sabe. Guccio depositou junto do crânio esbranquiçado a caixa de chumbo que continha a ruína do mais poderoso prelado da França.

Depois a pedra voltou para seu lugar e seria impossível dizer que alguém tinha tocado ali.

— Nosso segredo está selado diante de Deus — disse Maria.

Guccio tomou-a nos braços e quis beijá-la.

— Não, aqui não — falou ela, com ar medroso —, não aqui na capela.

Voltaram para a sala grande, onde uma criada acabava de colocar sobre a mesa o leite e o pão da primeira refeição. Guccio ficou diante do fogo até que, tendo a empregada saído, Maria veio ter com ele.

Então deram-se as mãos e Maria pousou a cabeça sobre o ombro de Guccio, e assim ficou um grande momento, em pé contra ele, aprendendo, adivinhando aquele corpo de homem, o primeiro que tinha em seus braços e o único que jamais teria.

— Eu te amarei sempre mesmo que deixes de me amar — disse ela.

Depois foi encher de leite quente as escudelas, picando sobre o leite pedaços de pão. Cada um de seus gestos era um gesto feliz. Guccio pensava no crânio entrevisto sob as pedras do altar...

Quatro dias se passaram. Guccio acompanhou os irmãos à caça e não se mostrou inábil. Fez várias visitas à sucursal de Neauphle, para justificar sua estada. De uma das vezes encontrou o Preboste Portefruit, que o reconheceu e o saudou servilmente. Aquela saudação tranqüilizou Guccio. Se alguma disposição tivesse sido tomada contra os lombardos, Messire Portefruit não gastaria tanta delicadeza. "E se for ele que em dia próximo tiver que me prender", pensava Guccio, "as mil libras que eu trouxe comigo serão bem úteis para untar-lhe a palma da mão."

Dona Eliabel, aparentemente, não suspeitava do que se passava entre sua filha e o jovem sienense. Guccio ficou convencido disso por uma conversa que surpreendeu uma noite entre a boa senhora e seu filho mais novo. Guccio estava em seu quarto do andar superior. Dona Eliabel e Pedro de Cressay falavam junto do fogo, na sala grande, e suas vozes subiam pela chaminé.

— É uma pena que Guccio não seja nobre — dizia Pedro. — Seria um bom esposo para minha irmã. É bem-feito, instruído, colocado como se deve ser na sociedade... Pergunto a mim mesmo se não se devia considerar...

Dona Eliabel não gostou da sugestão:

— Nunca! — disse ela. — O dinheiro te faz perder a cabeça, meu filho. Nós presentemente somos pobres, mas nosso sangue nos dá direito às melhores alianças, e eu não irei dar minha filha a um jovem plebeu, que além disso nem mesmo é da França. Esse donzel é realmente agradável, mas não se ponha a arrastar as asas para Maria... Eu depressa poria ordem no caso... Um lombardo! Minha filha dada a um lombardo!... Aliás, ele nem pensa em tal coisa, e se a idade não me tornasse modesta, eu te confessaria que ele tem mais olhos para mim do que para ela e que foi por essa razão que ele se instalou aqui como um enxerto em árvore.

Guccio, ao mesmo tempo que sorria das ilusões da castelã, não deixou de se sentir ferido pelo desprezo com que ela falava de sua situação de plebeu e de sua profissão. "Essa gente pede emprestado aos outros para comer, não paga o que pede, e ainda considera que aquele que lhes acudiu vale menos do que os seus labregos. E como se arranjaria a senhora, boa dama, sem os lombardos?", dizia consigo Guccio, muito contrariado. "Pois bem! Tente casar sua filha com um grão-senhor e verá como ela não o aceita."

Mas ao mesmo tempo sentia-se bastante orgulhoso por ter seduzido tão bem uma jovem da nobreza, e foi naquela noite que resolveu casar com ela, apesar de todos os obstáculos que opusessem ao seu desejo, e por causa mesmo desses obstáculos. Dava-se para isso toda a sorte de boas razões, menos a verdadeira: ele a amava.

Na refeição que se seguiu contemplava a jovem, pensando: "Ela é minha, ela é minha". E tudo no rosto de Maria, de belos cílios recurvos, as pupilas lantejouladas de ouro, os lábios entreabertos, tudo parecia responder-lhe: "Eu sou tua". E Guccio perguntava a si mesmo: "Mas como é que os outros não vêem isso?"

No dia seguinte Guccio recebeu em Neauphle uma mensagem de seu tio, na qual ele lhe informava que o perigo no momento tinha passado, e Guccio devia voltar imediatamente.

O jovem teve, pois, que anunciar sua partida, dizendo que um negócio importante o chamava a Paris. Dona Eliabel, Pedro e João mostraram-se muito penalizados. Maria nada disse e continuou o bordado com que se ocupava. Mas quando ficou sozinha com o jovem, deixou transparecer sua angústia. Acontecera alguma desgraça? Guccio estava ameaçado?

Ele tranqüilizou-a. Ao contrário, graças a ele, graças a ela, graças aos documentos escondidos na capela, os homens que tramavam a perda dos financeiros italianos tinham sido vencidos.

Então Maria rompeu em soluços, porque o jovem ia embora.

— Deixas-me — disse ela —, e é como se eu morresse.

— Voltarei assim que puder — disse Guccio.

Ao mesmo tempo, cobria de beijos o rosto de Maria. Sentia uma súbita indignação contra os acontecimentos que se atravessavam entre ele e seu desejo. Que todos os bancos lombardos tivessem sido salvos, isso não lhe causava alegria alguma, ao contrário! Ele gostaria que o perigo ainda existisse, para ter pretexto para se conservar em Cressay. Censurava-se por não ter sabido aproveitar o tempo para se apoderar daquele belo corpo desamparado, em oferenda, que se abandonava em seus braços. "Não é para o homem, uma espera assim", dizia ele consigo.

— Eu voltarei, bela Maria — repetiu —, juro-te, porque não há nada no mundo que eu deseje como a ti.

E dessa vez estava sendo sincero. Tinha vindo procurar um refúgio; voltava com um amor no coração.

Como seu tio, na mensagem, não lhe falava no recibo do arcebispo, Guccio fingiu ter entendido que seria necessário deixá-lo na capela de Cressay, arranjando assim um pretexto para voltar brevemente. Mas outros acontecimentos iriam modificar o destino de todos.

 

O ENCONTRO DE PONT-SAINTE-MAXENCE

No dia 4 de novembro o rei devia ir caçar na floresta de Pont-Sainte-Maxence. Com seu primeiro camareiro, Hugo de Bouville, seu secretário particular, Maillard, e alguns familiares, ele dormira no Castelo de Clermont, a duas léguas do ponto de encontro.

O rei parecia bem disposto e de melhor humor do que demonstrara nos últimos tempos. Os negócios do reino davam-lhe no momento algum repouso. O empréstimo dos lombardos mantivera o Tesouro à tona. O inverno acalmaria os agitados senhores da Champagne e os burgueses da Flandres.

Nevara durante a noite, primeira neve do ano, precoce, quase insólita: o gelo da manhã, vindo de cima, caía em geada sobre aquela neve fina, transformando a paisagem toda em imenso mar branco. E tinha-se aquela surpresa, que volta uma vez todos os anos, de ver às avessas as cores do mundo, encontrando luz onde habitualmente há sombra e vendo o céu do meio-dia mais sombrio do que a terra.

Homens, cavalos e cães lançavam diante de si enormes baforadas de vapor, que se expandiam no ar como grandes flocos de algodão.

Lombardo trotava junto da montaria do rei. Embora fosse um cão para lebres, participava muito bem da caça ao cervo ou ao porco selvagem, trabalhando um pouco por sua conta e recolocando muitas vezes a matilha no rasto certo.

É de hábito dizer-se que os lebréus têm ouvido e velocidade na corrida, mas não têm olfato. Pois aquele tinha um faro de cão do Poitou.

Filipe, o Belo, era tão impassível e distante com os homens, quanto capaz de familiaridade e contato direto com os animais. Mostrava-lhes mais amizade do que a seus parentes mais próximos. No fundo de todo Capeto havia um camponês, um homem da terra. Entre as árvores, as plantas e os animais, o Rei Filipe sentia uma impressão de plenitude e tranqüilidade.

No meio da clareira onde se marcara o encontro, num grande ruído, vindo do pisotear dos cavalos e dos homens, de nitridos e latidos, o rei ficou um bom momento a contemplar sua magnífica matilha, a pedir notícia de determinada cadela de caça, que não estava ali porque tinha acabado de parir, e a falar com seus cães.

— Oh! Meus valetes! Oh! Meus belos! — dizia-lhes.

O mestre de caça, acompanhado de vários batedores, veio fazer seu relatório ao rei. Tinham seguido pela madrugada vários cervos, dos quais um era um grande dez-pontas que, segundo diziam os chefes de equipamento, tinha doze galhos, o que se chamava um dez-pontas real, pois nenhum outro animal mais nobre se podia encontrar na floresta. Aquele, além disso, era um desses cervos ditos "peregrinos", que passam, isolados, de floresta em floresta, mais fortes e mais selvagens justamente por estarem sós.

— Vamos atacá-lo — disse o rei.

Desatrelaram os cães, levaram-nos aos rastos, colocaram-nos no caminho, e os caçadores se espalharam, dirigindo-se para os pontos onde o cervo poderia saltar.

— Taille-hors! Taille-hors28! — ouviu-se logo gritar. Tinham visto o cervo; os latidos dos cães, os apelos das trompas e o grande rumor da galopada e de galhos quebrados encheram a floresta.

Habitualmente os cervos deixam-se caçar durante um certo tempo nas cercanias do lugar onde foram localizados, dão a volta pela floresta, usam de astúcia, cruzam seus caminhos, procuram encontrar um cervo mais novo, junto do qual correm durante algum tempo para enganar o olfato dos cães. E voltam ao recinto do ataque.

Aquele cervo surpreendeu os caçadores correndo direto para o norte. Sentindo o perigo, ele voltava instintivamente para a longínqua floresta das Ardennes, de onde sem dúvida viera.

O rei, muito animado, cortou através do bosque para tomar grande dianteira, alcançar a fímbria da mata e esperar o cervo quando ele resolvesse sair para a planície.

Ora, nada se perde mais depressa do que uma caçada. Pensa-se estar a cem toesas dos cães e dos outros caçadores que se está ouvindo, e um instante depois fica-se em silêncio total, em solidão absoluta no meio da catedral de árvores, sem saber como desapareceu aquela matilha que ladrava tão fortemente, nem que fado ou sortilégio roubou os demais companheiros.

Além disso, naquele dia o ar gelado não conduzia muito bem os sons, e os cães estavam certamente correndo com dificuldade por causa daquela camada de geada que se espalhava por toda parte e apagava os odores.

O rei se perdera e, contemplando aquele grande vale branco onde, a perder de vista, os prados, as sebes curtas, os colmos da colheita anterior, os tetos de uma aldeia e as ondulações longínquas da floresta seguinte, tudo se mostrava recoberto com a mesma camada imaculada e cintilante, sentiu-se tomado por uma espécie de tontura. O sol, que conseguira atravessar as nuvens, fazia brilhar a paisagem, e o rei achou-se de súbito muito cansado, como que completamente estranho ao universo. Não prestou grande atenção naquilo porque era robusto e suas forças jamais o haviam traído. Pensou que devia ter-se excitado demais ao galopar. Ocupado em saber se o seu cervo já teria surgido ou não, seguiu a orla do bosque a passo, olhando para o chão, para ver se distinguia a marca da passagem do animal. "Nesta geada, o rasto devia aparecer muito bem", pensava ele. Viu então um camponês que caminhava não longe dali.

— Olá, homem!

O camponês voltou-se e veio ter com ele. Era um camponês de uns cinqüenta anos, de ombros largos e pernas curtas, e rosto moreno fundamente riscado de rugas. Tinha as' pernas protegidas por polainas de pano grosso e trazia um cacete na mão direita. Tirou o gorro, descobrindo cabelos que encaneciam.

— Não viste um cervo grande fugindo? — perguntou o rei.

O homem sacudiu a cabeça e respondeu:

— Vi, sim, meu sire. Um animal como dizeis passou-me sob o nariz ainda não fez o tempo de uma ave-maria. Devia ter bem duas horas de caça porque vinha cansado, de língua de fora. Com toda a certeza é o vosso animal. Não tereis que correr muito, porque do jeito que estava ele ia à procura de água. E só encontrará água no lago da Fontaine.

— Os cães iam muito perto dele?

— Não havia cães, meu sire. Mas haveis de encontrar o rasto dele, de garra bem afastada, mais ou menos na altura daquela grande bétula branca, ali embaixo. Agarrareis vosso animal no lago, com ou sem cães. O rei espantou-se.

— Tu pareces entender da região e da caça — disse ele. O rosto moreno abriu-se num bom sorriso, e os olhos pequenos e espertos se fixaram no rei.

— Entendo um pouco da região e da caça — disse ele — e desejo que um rei, tão grande como sois, aqui por muito tempo encontre seu prazer, enquanto Deus o quiser.

— Reconheceste-me, então?

O outro sacudiu a cabeça de novo e disse altivamente:

— Sou homem livre graças a vós, sire, e não servo, como nasci. Conheço minhas contas e sei manejar o ábaco para fazer meus cálculos, se for preciso. Vi Monseigneur de Valois uma vez, quando ele libertou os servos do condado e, pelo vosso aspecto e pelo que dizem de vós, vi que sois o irmão dele.

— Estás satisfeito por seres livres?

— Satisfeito... com certeza estou. Quero dizer... a gente sente-se diferente, deixa-se de ser um morto-vivo. E sabemos bem, nós, que vos devemos o decreto que Monseigneur de Valois nos mandou ler, e que repetimos muitas vezes, como nossa oração sobre a terra: "Considerando que toda a criatura humana, que é formada à imagem de Nosso Senhor, deve geralmente ser livre por direito natural..." É bom ouvir isso, quando uma pessoa já se acreditava para sempre nem mais nem menos do que os animais.

— Quanto pagaste pela tua libertação?

— Sessenta e cinco libras.

— Tu as tinhas?

— O trabalho de uma vida, sire.

— Como te chamas?

— André... André dos Bosques, como me chamam, porque é ali que eu moro.

O rei, que habitualmente não era generoso, sentiu desejo de dar alguma coisa àquele homem. Não uma esmola, mas um presente.

— Trata de ser sempre bom servidor do reino, André dos Bosques, e guarda isto para te lembrares de mim.

Desprendeu sua trompa e deu-a ao camponês, que apanhou o objeto, belo pedaço de marfim esculpido guarnecido de prata, que valia muito mais do que a soma que aquele homem pagara pela sua liberdade. As mãos do camponês tremiam de orgulho e emoção.

— Oh! isto... isto... — murmurou ele. — Vou pô-la sob a imagem da Senhora Virgem para que proteja a casa. Que Deus vos guarde, sire.

O rei afastou-se, tomado de uma alegria como há meses não sentia. Um homem falara com ele na solidão da floresta, um homem que, graças a ele, era livre e feliz. O peso imenso do poder e dos anos se aligeirara de repente. "Sabe-se sempre quem se golpeia", pensava ele, "mas não se sabe nunca, do alto do trono, se o bem que se quis fazer foi feito, e a quem." Aquela aprovação que lhe vinha inesperada, da massa de seu povo, parecia mais preciosa e doce do que todos os louvores dos cortesãos. "Quando meu irmão teve necessidade de dinheiro eu lhe disse: 'Não imponhas novas contribuições sem nada dar em troca. Liberta os servos de teus domínios, como eu fiz com os de Agenais, Rouergue, Gasconha e das senescalias de Carcassonne e de Toulouse. Eu deveria ter estendido essa medida a todo o reino... Este homem que acabo de ver, se o tivessem instruído quando jovem, teria dado um preboste ou um capitão de cidade melhor que muitos outros."

Pensava em todos os Andrés do bosque, do vale ou do prado, em todos os Joões dos campos, nos Tiagos da hamelia e do cercado, cujos filhos, saídos da condição servil, iam constituir a grande reserva de homens e de força para o reino. "Eu mandarei lançar o edito para os servos dos outros bailiados também."

Sim, aquele encontro apaziguava-o e expulsava a obsessão que não o deixara desde a morte do papa e de Nogaret. Levava a impressão de que Deus se servira da voz mais humilde de seus Estados para aprovar seu trabalho de rei.

Nesse momento ouviu um resfolegar rouco e breve à sua direita, e reconheceu Lombardo.

— Bonito, meu valete, bonito! Para a frente! Para a frente! — gritou-lhe o rei.

Lombardo estava no rasto, correndo com o corpo alongado, o nariz a poucas polegadas do chão. Não era o rei que estava perdido, mas todo o resto da caçada. E Filipe, o Belo, experimentava um prazer juvenil pensando que ele ia acuar e matar o grande dez-pontas, só com a companhia de seu cão predileto.

Tornou a pôr o cavalo a galope e durante uma hora ainda, através de campos e vales, saltando taludes e barreiras, seguiu Lombardo. Sentia calor e o suor escorria-lhe ao longo das costas.

Subitamente, ao sair de um pequeno bosque, viu um vulto negro que fugia.

— Taille-hors! — exclamou o rei. — Para a frente, meu Lombardo, para a frente!

Era sem dúvida o cervo que procuravam, um grande animal negro, de ventre claro. Não mostrava mais o ímpeto vivo do início da caçada. Caminhava pesadamente, parando de vez em quando, olhando para trás e tornando a seguir, com um salto sem leveza. Dirigia-se de fato para o lago de que falara o camponês. Procurava água para se refrescar, a água mortal para os animais cansados, que lhes prende os membros e não os deixa sair mais.

Lombardo latia mais forte, pois que caçava à vista e ganhava terreno. Mas todos, o rei, seu cavalo, o cão, o cervo, estavam quase sem fôlego.

A armação do cervo intrigara o rei: alguma coisa ali brilhava por momentos, depois se extinguia. Ele nada tinha,, entretanto, daqueles animais fabulosos de que as lendas estão cheias, mas que nunca se encontram, tal como o famoso cervo de Santo Humberto, com sua cruz de ouro plantada na fronte. Aquele era um grande animal exausto, que tinha feito uma corrida sem elegância, fugindo para a frente, levado pelo medo através do campo e que depressa estaria encurralado.

Com Lombardo nos jarretes, penetrou num pequeno bosque de faias e dali não saiu. Imediatamente o rei ouviu a voz de Lombardo tomar aquela sonoridade mais longa, mais alta, ao mesmo tempo furiosa e patética, que os cães têm quando acuam o animal que caçam.

O rei, por sua vez, penetrou no faial. Através dos galhos passavam os raios de um sol sem calor, dando tons rosados à geada que estalava no chão.

Parando, o rei soltou o punho de sua espada curta. Lombardo não cessava de latir. O grande cervo ali estava, encostado a uma árvore, firme, a cabeça baixa e o focinho ao rés do solo. Em seu pêlo escorria um suor ofegante. Entre seus galhos imensos ele trazia de fato uma cruz, grande como cruz de altar e brilhante. Essa foi a visão que teve o rei, no espaço de um momento, porque imediatamente seu estupor se transformou no pior dos pavores: seu corpo deixara de lhe obedecer. Quis descer do cavalo, mas seus pés não saíam dos estribos, e suas pernas, contra os flancos do animal, pareciam duas pesadas botas de mármore. Então o rei, aterrorizado, quis empunhar sua trompa para chamar. Onde estava a trompa? Ele não a tinha mais. Não sabia mais onde a havia perdido, e seus braços, deixando escapar as rédeas, não se moviam. Tentou gritar, mas som algum saiu de sua garganta.

O cervo erguera a cabeça e, com a língua pendente, olhava com seus grandes olhos trágicos para aquele cavaleiro do qual esperava a morte e que bruscamente se petrificara. Em seus galhos, a cruz brilhava novamente. As árvores, o chão, o conjunto do mundo se deformou diante dos olhos do rei. Então ele sentiu um estouro formidável na cabeça. Depois foi a noite total que desabou sobre ele.

Alguns momentos mais tarde, quando o resto dos caçadores chegou ao pequeno bosque, o corpo do rei da França foi encontrado caído ao chão junto de seu cavalo. Lombardo continuava latindo diante do grande cervo peregrino, cuja armação, segundo todos repararam, trazia, nela emaranhados, dois galhos secos que ali se teriam agarrado quando o animal passara por alguma ramagem mais baixa. E esses dois galhos tinham formado uma cruz, e luziam ao sol sob seu verniz de geada. Mas não tinham tempo a perder com o cervo; enquanto os picadores detinham a matilha ele fugiu, um tanto repousado, seguido apenas por alguns cães mais obstinados, que errariam em perseguição dele até a noite, ou o levariam a afogar-se no lago.

Foi Hugo de Bouville quem chegou em primeiro lugar junto ao corpo de Filipe, o Belo, percebendo que o soberano ainda respirava.

— O rei está vivo!

Com duas varas cortadas a espada, e mais cintos e capas, fabricaram uma padiola improvisada sobre a qual deitaram o rei, que só se moveu um pouco para vomitar e aliviar-se por todos os lados, como um pato que está sendo estrangulado. Tinha os olhos vítreos e semicerrados. Onde estava o atleta que outrora fazia dobrar dois homens de armas, apenas fazendo força em seus ombros?

Levaram-no assim até Clermont, onde durante a noite recuperou parcialmente o uso da palavra. Os médicos, chamados imediatamente, tinham-no sangrado.

A Bouville, que velava, sua primeira palavra, penosamente articulada, foi:

— A cruz... a cruz...

E Bouville, pensando que o rei queria rezar, foi buscar-lhe um crucifixo.

Depois, Filipe, o Belo, disse:

— Tenho sede.

Pela madrugada pediu, tartamudeando, que o levassem para Fontainebleau, onde nascera. Não deixou de haver quem comparasse o fato ao pedido do Papa Clemente V, que também quisera, antes de morrer, voltar ao lugar de seu nascimento. E morrera no caminho.

Decidiram transportar o rei por via fluvial, para que o sacudissem menos, e instalaram-no no dia seguinte numa grande barca rasa, que desceu o Oise. Os familiares, os servidores e os archeiros da escolta seguiam em outras barcas, ou a cavalo pelas margens do rio.

A notícia andava mais depressa do que aquele estranho cortejo e os ribeirinhos acorriam para ver passar a grande estátua abatida. Os camponeses tiravam seus gorros como quando a procissão das rogações passava pelos seus campos.-Em cada aldeia archeiros iam pedir bacias de brasas, que levavam para a barca a fim de aquecer o ar. Acima dos olhos reais, o céu mostrava-se uniformemente cinzento, pesado de nuvens de brancor de neve.

Sire de Vauréal desceu de sua mansão que dominava uma curva do Oise e veio saudar o rei: achou que a cor da morte estava estampada no rosto do soberano. O rei só lhe respondeu com as pálpebras, mas começava a recuperar o uso de seus membros.

O dia tombou cedo. Acenderam grandes tochas na proa das barcas, e aquela claridade vermelha e dançarina projetava-se nas margens, fazendo o cortejo assemelhar-se a uma gruta de chamas que atravessasse a noite.

Chegaram assim ao confluente do Sena e, dali, até Poissy. O rei foi levado para o castelo onde seu avô São Luís . nascera. Os dominicanos e os dois conventos reais puseram-se a orar pela sua cura.

Lá ficou ele uns dez dias, ao fim dos quais pareceu um tanto mais restaurado. A palavra lhe voltara e ele já podia ficar de pé, com gestos ainda entorpecidos e pouco amplos. Insistiu em continuar a viagem para Fontainebleau, o que parecia sua idéia fixa, e fazendo um grande esforço de vontade exigiu que o pusessem a cavalo. Foi assim, prudentemente, até Essonnes; mas apesar de toda a tensão de sua energia viu-se obrigado a desistir. O corpo real não obedecia mais à vontade. Foi preciso que o deitassem numa liteira. E assim acabou ele o trajeto. A neve recomeçara a cair e os passos dos cavalos silenciavam sobre ela. Mensageiros enviados antecipadamente tinham mandado acender todas as lareiras do castelo. E uma grande parte da corte já chegara.

O rei, ao entrar, murmurou:

— O sol, Bouville, o sol...

 

UMA GRANDE SOMBRA SOBRE O REINO

Durante uns doze dias, o rei errou no interior de si próprio, como viajante perdido. Durante alguns momentos, embora se fatigasse muito depressa, parecia retomar sua atividade, inquietava-se a propósito dos negócios do reino, exigia o controle das contas, pedia com autoritária impaciência que lhe apresentassem todas as cartas e decretos a assinar. Jamais mostrara tanta disposição para assinar como naqueles dias. Depois, bruscamente caía em singular embrutecimento, pronunciando poucas palavras, sem seqüência e sem razão de ser. Passava sobre a fronte a mão flácida, cujos dedos não se dobravam bem.

Murmurava-se na corte que ele estava ausente de si. Realmente, ele começava a estar ausente do mundo.

Daquele homem de quarenta e seis anos, a doença em tão pouco tempo fizera um ancião de traços cavados, que não vivia senão pela metade, no fundo de um quarto imenso do Castelo de Fontainebleau.

E sempre aquela sede que o atormentava e levava-o a reclamar o que beber!

Às pessoas de fora que pediam notícias dele, respondiam que o soberano tinha caído do cavalo e que um cervo o atacara. Mas a verdade começava a se espalhar e cochichava-se que a mão de Deus o havia ferido na cabeça29.

Os médicos asseguravam que ele não escaparia, e o astrólogo Martin, em termos disfarçados e prudentes, anunciou uma terrível provação a suportar no fim do mês, por um poderoso monarca do Ocidente, provação que coincidiria com um eclipse do sol. "Nesse dia", escrevia Mestre Martin, "uma grande sombra cairá sobre o reino..."

E subitamente, uma noite, Filipe, o Belo, sentiu de novo, no crânio, aquele estouro negro e aquela temerosa queda nas trevas que já sentira na floresta de Pont-Sainte-Maxence. Dessa vez não havia mais nem cervo nem cruz. Apenas um grande corpo prostrado num leito, sem nenhuma idéia dos cuidados que lhe prodigalizavam.

Quando emergiu dessa noite de inconsciência, que não saberia dizer se durara uma hora ou dois dias, a primeira coisa que o rei distinguiu foi uma grande forma branca debruçada sobre o leito. Ouviu também uma voz que a ele se dirigia.

— Ah! Irmão Reinaldo — disse o rei, debilmente —, eu vos reconheço bem... Mas vós me pareceis como que envolto em bruma.

Depois, rapidamente acrescentou:

— Tenho sede.

Irmão Reinaldo, dos dominicanos de Poissy, Grande Inquisidor da França, umedeceu os lábios do doente com um pouco de água benta.

— Mandaram chamar o Bispo Pedro? Ele chegou? — perguntou então o rei.

Por um desses movimentos do espírito freqüentes entre os moribundos, e que se relacionam com as suas lembranças mais recuadas, tinha sido obsessão do rei, naqueles últimos dias, chamar para a cabeceira de seu leito Pedro de Latille, bispo de Châlons, um de seus companheiros de infância. Por que justamente Pedro de Latille? Faziam-se conjeturas em torno desse desejo, cujos motivos secretos se procuravam adivinhar, quando ao que parecia não passava de um acidente da memória. E foi justamente essa obsessão que o rei tornou a encontrar, ao sair do estado de coma que se seguira ao seu segundo ataque.

— Sim, sire, mandou-se chamá-lo — respondeu Irmão Reinaldo —, e admiro-me de que já não esteja aqui.

Mentia, porque mandara efetivamente um mensageiro ao bispo de Châlons, mas, de acordo com Monseigneur de Valois, fizera partir esse mensageiro de forma que o bispo fosse prevenido tarde demais.

Irmão Reinaldo tinha um papel a representar e não aceitava dividir tal papel com nenhum outro eclesiástico. Com efeito, o confessor do rei devia ser obrigatoriamente o Grande Inquisidor da França. Tinham demasiados segredos em comum, para que esses segredos, no instante da morte do soberano, se arriscassem a ir ter a outros ouvidos. Assim, o monarca todo-poderoso não podia obter o amigo de sua escolha para assisti-lo na grande passagem.

— Faláveis comigo havia muito tempo, Irmão Reinaldo? — perguntou o rei.

Irmão Reinaldo, com o queixo enterrado na carne, os olhos negros e pequenos, o crânio despido e somente rodeado por uma estreita coroa de cabelos rígidos e amarelados, estava encarregado, sob a cobertura das vontades divinas, de comunicar ao rei o que dele desejavam obter ainda.

— Sire — disse ele —, se Deus vos chamasse a si, como pode acontecer a todos nós a qualquer momento, ele vos agradeceria que deixásseis em ordem os negócios do reino.

O rei ficou um momento sem responder.

— Irmão Reinaldo, eu me confessei? — perguntou ele.

— Confessastes, sim, sire, anteontem — respondeu o dominicano. — Uma bela confissão — prosseguiu —, que admiramos grandemente, e que será grandemente admirada pelos vossos súditos. Dissestes que vos arrependíeis de terdes sobrecarregado vosso povo, e sobretudo a Igreja, com impostos em demasia, mas que não tínheis perdão a pedir pelas mortes que tivessem sido conseqüência de atos vossos, porque a fé e a justiça devem-se assistência.

O Grande Inquisidor elevara bastante a voz, para que todos os presentes pudessem ouvir bem.

— Eu disse isso? — falou o rei. — Eu disse realmente isso?

Não sabia mais. Teria de fato pronunciado aquelas palavras, ou o religioso estava tratando de inventar um fim edificante, como deve ter toda grande personagem? Murmurou, simplesmente: — Os mortos... — Não tinha mais forças para discutir, porém, e sabia que ia juntar-se a eles.

— Será preciso que deis a conhecer vossas últimas vontades, sire — insistiu pacientemente o dominicano.

Afastou-se um pouco da frente do olhar do rei, e este verificou, de súbito, que seu quarto estava repleto.

— Ah! — disse ele — eu vos reconheço bem, todos os que estais aqui.

Parecia surpreender-se de lhe ter ficado aquele poder de saber a quem pertenciam os rostos que via.

Estavam todos em torno de seu leito, seus três filhos, seus dois irmãos e os médicos com suas bacias e suas lancetas, e o grande camareiro, e Enguerrand de Marigny. O fundo do aposento estava ocupado pelos pares da França, pelos altos senhores do reino e outras pessoas menos importantes

que ali se encontravam pelos acasos de seu cargo ou das circunstâncias. Toda aquela gente cochichava.

— Sim, sim — repetiu ele —, eu vos reconheço muito bem.

Mas estava vendo todos eles como que através de uma bruma.

Quem era aquele gigante lá no fundo, apoiado contra a parede, e cuja cabeça ultrapassava a de todos os outros? Ah! sim, era Roberto d'Artois, aquele trapalhão, que lhe dera tanto que fazer... E aquela mulher robusta, não muito distante, que arregaçava as mangas num gesto de parteira? Reconhecia-a, também: era a sua prima, a terrível Condessa Mafalda...

O rei pensou em tudo que deixava em suspenso, em todos os interesses opostos que formavam a vida de um povo.

— O papa não foi eleito — murmurou ele.

Outros problemas o atropelavam, cavalgavam seu espírito esgotado. O caso das princesas não fora terminado e seus filhos estavam sem esposas, mas sem poderem tomar outras. O assunto da Flandres estava por liquidar...

Todos os homens acreditam um pouco que o mundo nasceu com eles e sofrem, no momento de partir, por deixar o universo inacabado.

O rei desviou a cabeça para contemplar Luís de Navarra, que, as mãos pendentes ao longo do corpo, o peito cavado, parecia não abandonar seu pai com os olhos, mas só pensava em si mesmo.

— Pesai, Luís, pesai — murmurou Filipe, o Belo — o que é ser rei da França! Procurai saber o mais depressa possível qual é o estado do vosso reino.

O Conde de Poitiers esforçou-se por se manter impassível, e Carlos, o terceiro filho, mal podia reter as lágrimas.

O frade dominicano trocou com Carlos de Valois um olhar que queria dizer: "Monseigneur, tratai de intervir ou não teremos mais tempo!"

O Grande Inquisidor, durante aqueles últimos dias, havia seguido com habilidade o deslocamento do poder. Filipe, o Belo, estava morrendo. Luís de Navarra seria o seu sucessor, e Monseigneur de Valois tinha grande influência sobre o espírito do herdeiro. Assim, o Grande Inquisidor, em todos os seus gestos, em todas as suas ações, pedia o parecer de Valois e testemunhava-lhe um devotamento crescente.

Valois aproximou-se do moribundo e disse-lhe:

— Meu irmão, acreditais que nada tendes a mudar em vosso testamento de 1311?

— Nogaret morreu — disse o rei.

O dominicano e Valois se olharam de novo, pensando que o rei já não raciocinava mais e que eles haviam esperado além do que convinha. Mas Filipe, o Belo, prosseguiu:

— Ele era o executor das minhas vontades.

Valois fez imediatamente um sinal a Maillard, o secretário particular do rei, que se aproximou com seu tinteiro e suas canetas.

— Seria bom que fizésseis um codicilo para designar novos executores, meu irmão — disse Valois.

— Tenho sede — murmurou Filipe, o Belo. Molharam-lhe novamente os lábios com água benta. Valois retornou:

— Desejais, penso, que seja eu a velar pelas vossas vontades.

— Com certeza — disse o rei. — E vós também, Luís, meu irmão — acrescentou ele, voltando a cabeça para d'Evreux, que nada pedia, nada dizia e pensava na morte.

Maillard começara a escrever. As pálpebras do rei não se moviam. Seus olhos tinham sempre a mesma fixidez, mas em lugar de apresentarem aquele brilho que tanto assustava seus contemporâneos, as imensas pupilas azuis estavam como que cobertas por um véu opaco.

Depois do nome de Luís d'Evreux, outros nomes passaram ainda pelos lábios do rei, à medida que seu olhar ia fitando os rostos que o rodeavam. Assim, designou um cônego de Notre-Dame, Filipe de Convers, que ali estava como assistente do Irmão Reinaldo, e depois Pedro de Chambly, um familiar de seu filho mais velho, e ainda Hugo de Bouville, o grande camareiro.

Então, Enguerrand de Marigny aproximou-se e fez com que seu grande corpo escondesse o dos demais.

Marigny sabia que durante os dias precedentes Valois não cessara de prejudicá-lo na mente enfraquecida do rei. Tinham contado ao coadjutor quais as acusações que lhe eram feitas. "Vossa doença, meu irmão", dissera Valois, "é conseqüência de todas as preocupações que vos deu aquele mau servidor. Foi ele quem afastou de vós todos os que vos amam e, em proveito próprio, colocou o reino no triste estado em

que se encontra. E foi ele, meu irmão, que vos aconselhou a queimar o grão-mestre dos templários."

Iria Filipe, o Belo, designar Marigny como um de seus testamenteiros e, com esse gesto, dar-lhe um último testemunho de confiança?

Maillard, a pena levantada, esperava. Mas Valois disse imediatamente:

— Acho que o número está completo, meu irmão.

E fez a Maillard um sinal que indicava o fechamento da lista. Então Marigny disse:

— Eu vos servi sempre fielmente, sire. Peço-vos que me recomendeis a vosso filho.

Entre aquelas duas vontades que se disputavam em seu espírito, entre Valois e Marigny, entre seu irmão e seu primeiro-ministro, o rei teve um momento de hesitação. Como todos naquele instante pensavam em si próprios e como pensavam pouco nele!

— Luís — disse o rei, num tom cansado —, que não lesem Marigny, se ele provar que foi fiel.

Então Marigny compreendeu que as acusações tinham dado fruto.

Mas Marigny sabia-se forte e tinha em suas mãos a administração, as finanças, o Exército. Tinha mesmo a Igreja, menos o Grande Inquisidor. Estava seguro de que não poderiam governar sem ele. Cruzou os braços e, olhando para Valois e para Luís de Navarra, que estavam do outro lado do leito onde agonizava seu soberano, pareceu desafiar o reinado que se seguiria.

— Sire, tendes outras vontades a manifestar? — perguntou o dominicano.

Nesse momento, Hugo de Bouville arranjava um dos círios que ameaçava despencar-se do alto candelabro de ferro forjado, que já transformava aquele quarto em câmara ardente.

— Por que está tão escuro? — perguntou o rei. — É noite ainda, o dia ainda não surgiu?

Os presentes maquinalmente voltaram-se para as janelas. Com efeito, naquele dia o sol, em eclipse, não aparecia, e a sombra se estendia por sobre toda a terra da França.

— Devolvo à minha filha Isabel — disse bruscamente o rei — o anel de que ela me fez presente, e que tem o grande rubi a que dão o nome de Cereja.

Interrompeu-se por um instante, depois perguntou:

— Pedro de Latille chegou?

Como ninguém respondesse, acrescentou:

— Lego-lhe a minha bela esmeralda.

Depois continuou legando a diversas igrejas, a Notre-Dame de Boulogne, porque sua filha ali se casara, a Saint-Martin-de-Tours, a Saint-Denis, flores-de-lis de ouro, "do valor de mil libras", precisava ele, de cada vez. Aquele homem, que toda a sua vida fora tão cuidadoso com as despesas, pesava ainda o valor de suas doações, como se por elas esperasse alguma indulgência.

Irmão Reinaldo debruçou-se e disse-lhe ao ouvido:

— Sire, não vos esqueçais de nosso priorado de Poissy...

Sobre o rosto devastado de Filipe, o Belo, viu-se passar uma expressão de contrariedade.

— Irmão Reinaldo — disse ele —, eu lego ao vosso convento a bela Bíblia que anotei com minha própria mão. Ela vos será útil, a vós e a todos os confessores dos reis da França.

O Grande Inquisidor, que pelo fato de ter queimado tantos hereges e conspirado tantas vezes com o poder esperava mais, baixou os olhos para esconder seu despeito.

— E a vossas irmãs dominicanas de Poissy — acrescentou o rei — eu lego a grande cruz dos templários. É sob a guarda delas que ela estará melhor30.

Um grande frio passou pelos assistentes. Valois fez imperiosamente um sinal a Maillard para concluir e mandou que lesse em voz alta o codicilo. Quando o secretário chegou às palavras "pelo rei", Valois, puxando a si seu sobrinho Luís, e apertando-lhe fortemente o braço, disse:

— Acrescentai: "e com o consentimento do rei de Navarra".

Então Filipe, o Belo, olhou para aquele filho que seria seu sucessor e teve a noção de que, naquele momento, seu reinado terminara.

Foi preciso segurar-lhe a mão para que ele pudesse assinar o pergaminho. Depois murmurou:

— É tudo?

Mas não, não era tudo, e o último dia do rei da França não tinha ainda acabado.

— É preciso, sire, que agora passeis a vosso filho o segredo real — disse o Grande Inquisidor.

E mandou esvaziar o quarto a fim de que o rei transmitisse ao filho o poder misterioso de curar escrófulas.

Com a cabeça atirada para trás, Filipe, o Belo, gemeu:

— Irmão Reinaldo, olhai o que vale o mundo. Eis o rei da França.

No instante de sua morte, ainda exigiam dele um último esforço para ensinar ao seu sucessor como aliviar uma doença benigna.

Não foi Filipe, o Belo, quem ensinou os gestos e as palavras sacramentais: ele os esquecera. Foi o Grande Inquisidor. E Luís de Navarra, ajoelhado junto de seu pai, as mãos ardentes e unidas às mãos geladas do rei, recebeu a herança secreta.

Terminada aquela cerimônia, a corte foi de novo admitida no quarto do soberano e o dominicano começou a rezar, acompanhado a meia voz pelos presentes.

Estavam recitando o versículo "In manus tuas, Domine..." (Em tuas mãos, Senhor, entrego meu espírito...), quando uma porta se abriu: era Pedro de Latille que chegava. Os olhos de todos voltaram-se para o recém-chegado e, durante um instante, enquanto os lábios continuavam maquinalmente a murmurar, as atenções foram para ele.

— In manus tuas, Domine... — disse o bispo, juntando-se à oração dos outros.

Depois voltaram-se para o leito. Todas as orações se detiveram nas gargantas: o rei de ferro estava morto.

Irmão Reinaldo aproximou-se para fechar os olhos do rei. Mas as pálpebras que jamais haviam batido levantaram-se por si mesmas. Por duas vezes o Grande Inquisidor tentou, em vão, baixá-las. Foi preciso que cobrissem com uma faixa o olhar daquele monarca que, assim, entrava de olhos abertos na eternidade.

 

 

NOTAS HISTÓRICAS

1 Em 1314 o Rei São Luís morrera havia quarenta e quatro anos. Fora canonizado vinte e sete anos depois de seu falecimento, em 1297, no reinado de seu neto Filipe, o Belo, e sob o pontificado de Bonifácio VIII.

 

2 O caso da sucessão do Artois é um dos mais prodigiosos dramas de herança que a história registra.

Em 1237, São Luís dera o condado pariato do Artois, como apanágio, a seu irmão Roberto. Esse Roberto I d'Artois teve um filho, Roberto II, que se casou com Amicie de Courtenay, dama de Conches. Teve dois filhos: Filipe, morto em 1298 de ferimentos recebidos na Batalha de Furnes, e Mafalda, que se casou com Othon, conde palatino da Borgonha.

Por morte de Roberto II, ocorrida em 1302, na Batalha de Courtray, "ferido por trinta golpes de pique", a herança do condado foi reclamada ao mesmo tempo por seu neto Roberto III (filho de Filipe) e por sua filha Mafalda, que invocava uma disposição do direito consuetudinário do Artois.

Filipe, o Belo, em 1309, resolveu a pendência em favor de Mafalda. Esta, tornada regente do condado da Borgonha pela morte de seu marido, nesse meio tempo casara suas duas filhas, Joana e Branca, com o segundo e o terceiro filhos de Filipe, o Belo, Filipe e Carlos; a decisão que a favoreceu foi grandemente inspirada por essas alianças, que traziam novamente para a coroa o condado da Borgonha, chamado Franco-Condado, entregue como dote a Joana.

Roberto não se deu por vencido, e durante vinte anos, com obstinação rara, através de ações jurídicas ou por ação direta, manteve contra a tia uma luta em que — como se verá neste volume e nos próximos — todos os processos foram empregados de parte a parte: delação, calúnia, falsificações, feitiçaria, envenenamento, agitação política. Tal luta terminou tragicamente para Mafalda, tragicamente para Roberto, tragicamente para a França e tragicamente para a Inglaterra.

 

3 O Rei Eduardo II foi o primeiro soberano da Inglaterra a usar, antes de sua ascensão ao trono, o título de Príncipe de Gales. Segundo certos autores, ele nascera três dias depois de terem vindo os senhores galeses solicitar de seu pai, Eduardo I, que lhes desse um príncipe que os pudesse compreender e que não falasse inglês nem francês. Eduardo I respondeu que iria satisfazê-los, e designou-lhes seu filho, que não falava ainda língua alguma.

 

4 A soberana Ordem dos Cavaleiros do Templo de Jerusalém foi fundada em 1128 para garantir a guarda dos Lugares Santos da Palestina e proteger as peregrinações.

Suas regras, recebidas de São Bernardo, eram severas. Impunham aos cavaleiros castidade, pobreza, obediência. Não deviam "olhar demais para o rosto das mulheres", nem "beijar fêmea, nem viúva, nem donzela, nem mãe, nem irmã, nem tia, nem qualquer outra mulher". Deviam, na guerra, aceitar combate de um contra três, e não podiam se resgatar mediante pagamento. Não lhes era permitido caçar a não ser o leão.

Única força militar bem organizada, aqueles monges-soldados serviram de moldura às hordas informes que eram os exércitos das cruzadas. Colocados na vanguarda de todos os ataques, na retaguarda de todas as retiradas, constrangidos pela incompetência ou pela rivalidade dos príncipes que comandavam aqueles exércitos de aventura, perderam em dois séculos mais de vinte mil de seus membros nos campos de batalha, número considerável em relação aos efetivos da ordem. No fim, cometeram alguns erros estratégicos que lhes foram funestos.

Mas durante todo esse tempo mostraram-se, além de tudo, bons administradores. Como precisavam deles, e para lhes agradecer todos os serviços que prestavam, o ouro da Europa afluía para seus cofres. Províncias inteiras foram colocadas sob a sua guarda. Durante cem anos eles garantiram o governo efetivo do reino latino de Constantinopla. Movimentavam-se como senhores pelo mundo, sem serem obrigados a pagar imposto, tributo ou peagem. Não dependiam senão do papa. Tinham comendadorias em toda a Europa e em todo o Oriente Médio. Mas o centro de sua administração ficava em Paris. Haviam estabelecido grande movimento bancário, e a Santa Sé e os principais soberanos da Europa tinham contas correntes com eles. Emprestavam dinheiro sob garantia e adiantavam os resgates dos prisioneiros. O Imperador Balduíno lhes deu em penhor "a verdadeira cruz".

Expedições, conquistas, fortuna, tudo é desmesurado no caso dos templários, até mesmo a maneira como foram suprimidos. O rolo de pergaminho que contém a transcrição dos interrogatórios de 1307 mede vinte e dois metros e vinte. Depois desse prodigioso processo as controvérsias jamais cessaram: certos historiadores tomaram partido contra os acusados, outros contra Filipe, o Belo. Não é de duvidar que as acusações lançadas contra os templários fossem em grande parte exageradas ou mentirosas; mas também não é de duvidar que entre eles tivessem existido profundos erros dogmáticos. Suas longas estadas no Oriente deviam tê-los posto em contato com certos ritos perpetuados da religião cristã primitiva, com a religião islâmica que combatiam e com as tradições esotéricas do antigo Egito. Foi a propósito de suas cerimônias iniciáticas que se formou, por certa confusão muito habitual à Inquisição medieval, a acusação da adoração de ídolos, de práticas demoníacas e de feitiçaria. Isso explica que o Rei Filipe, o Belo, que como todos os soberanos da Idade Média respeitava muitíssimo a Inquisição e era muito ligado aos preceitos do dogma católico (fossem quais fossem os conflitos que pudesse ter com o papado), tenha perseguido com tamanha obstinação e destruído a Ordem do Templo, tal como se realizasse a destruição de uma heresia. Isso explica igualmente por que o papa, apesar de todo interesse que tinha em manter a força do Templo, acabou por consentir na sua supressão. Aliás, por outro lado, o Rei Filipe fazia uma colossal operação financeira.

O caso dos templários nos interessaria menos se não tivesse prolongamentos até na história do mundo moderno. É sabido que a Ordem do Templo, imediatamente depois de sua destruição oficial, reconstituiu-se sob a forma de uma sociedade secreta internacional, e conhecemos hoje os nomes de grão-mestres que viveram ocultos até o século XVIII. Os templários são a origem do Companheirismo, instituição que existe ainda hoje. Tinham necessidade, em suas comendadorias distantes, de trabalhadores cristãos. Organizaram-nos de acordo com sua própria filosofia e deram-lhes um regulamento chamado "dever". Esses trabalhadores, que não usavam espadas, vestiam-se de branco. Fizeram as cruzadas e construíram no Oriente Médio formidáveis cidadelas, levantadas segundo o que se chama, em arquitetura, "o aparelho dos cruzados". Adquiriram por lá certo número de métodos de trabalho, herdados da Antigüidade, e que lhes serviram para edificar no Ocidente as igrejas góticas. Em Paris, esses companheiros viviam, ou dentro da área do Templo, ou no bairro vizinho, onde gozavam de "franquias", e que durante quinhentos anos foi o centro dos trabalhadores iniciados.

Enfim, a Ordem do Templo, através das sociedades de companheiros, liga-se às origens da Franco-Maçonaria. Encontram-se nesta as "provas" dos ritos de iniciação e até emblemas muito precisos, que não são apenas os das antigas companhias de trabalhadores, mas, fato bastante espantoso, mostram-se ainda visíveis nas paredes de certas tumbas de arquitetos do Egito antigo. Essas paredes são verdadeiros manuais de iniciação profissional. Tudo leva, pois, a pensar que aqueles ritos, aqueles emblemas, aqueles processos de trabalho, só podem ter sido trazidos para aquele período da Idade Média pelos templários ou seus companheiros trabalhadores.

 

5 A forma de datar utilizada na Idade Média não era a mesma que se emprega em nossos dias, e além disso mudava de um país para outro.

O ano oficial começava, na Alemanha, na Suíça, na Espanha e em Portugal, no dia de Natal; em Veneza, a 1.° de março; na Inglaterra, no dia 25 de março; em Roma, às vezes no dia 25 de janeiro, às vezes no dia 25 de março; na Rússia, no equinócio da primavera.

Na França, o início do ano oficial era no dia de Páscoa. Esse costume singular de tomar uma festa móvel como ponto de partida do ano (é o que se chama estilo de Páscoa, ou estilo antigo, ou estilo francês) levava a duração dos anos a ir de trezentos e trinta a quatrocentos dias. Certos anos tinham duas primaveras, uma no início e outra no fim.

Esse estilo antigo é a fonte de uma infinidade de confusões e de grandes dificuldades no estabelecimento de uma data exata, porque, se não se prestar muita atenção, descobrem-se datas de falecimento anteriores de muitos meses à de casamento do interessado, ou ainda batalhas que, segundo parece, se travaram depois dos tratados de paz a elas referentes.

Segundo a antiga maneira de datar, o fim do processo dos templários se desenrolou em 1313, pois o ano de 1314 só começou no dia 7 de abril.

Foi somente em dezembro de 1564, sob o reinado de Carlos IX, penúltimo rei da dinastia Valois, que o início do ano oficial foi fixado no dia 1.° de janeiro.

A Rússia só adotou esse "novo estilo" em 1725, a Inglaterra em 1752 e Veneza, a última, quando da conquista de Bonaparte.

Todas as datas deste livro são naturalmente referidas dentro do "novo estilo".

 

6 O Palácio do Templo, seus anexos, suas "culturas" e todas as ruas circunvizinhas, formavam o bairro do Templo, que traz ainda esse nome. Na sua Torre Grande foi encerrado Luís XVI, durante a Revolução. E dali só saiu para ir à guilhotina. Essa torre desapareceu em 1811.

 

7 Os sargentos reais eram funcionários subalternos, encarregados de diferentes tarefas de ordem pública e da execução da justiça. Seu papel confundia-se com os dos "porteiros" e maceiros. Entre suas atribuições estava a de escoltar ou preceder o rei, os ministros, os senhores do Parlamento e da universidade.

No reinado de Carlos IV, último filho de Filipe, o Belo, um certo Jourdain de 1'Isle, senhor da Gasconha, foi executado por ter, entre outros crimes maiores, empalado sargentos reais com seus próprios bastões rematados pela flor-de-lis.

O bastão de nossos atuais agentes de polícia (que correspondem aos sargentos reais) é uma longínqua sobrevivência do bastão dos sargentos de outrora, da mesma forma que a maça que ainda usam os maceiros nas cerimônias universitárias.

 

8 Essa concessão feita a certas corporações de mercadores para vender nas proximidades ou na moradia do soberano parece vir do Oriente. Em Bizâncio eram os mercadores de perfumes que tinham direito de manter lojas diante da entrada do palácio imperial, sendo suas essências a coisa mais agradável que poderia chegar ao nariz do basileu.

O Palácio de Justiça de Paris ocupa o local do palácio de Filipe, o Belo, e algumas de suas dependências datam ainda daquela época.

 

9 O termo relapso (do latim re-lapsus, recaído) era aplicado aos culpados que recaíam na heresia, depois de terem feito abjuração pública.

 

10 A Torre e o Palácio de Nesle ocupavam o local onde hoje está o Instituto da França e uma parte da Casa da Moeda. As dimensões eram mais ou menos iguais às do Louvre daquela época.

 

11 O papel de algodão, que se acredita ser invenção chinesa, e que de início foi chamado "pergaminho grego", porque os venezianos o haviam encontrado em uso na Grécia, apareceu na Europa pelas alturas do século x. O papel de linho (ou de trapos) foi importado do Oriente um pouco mais tarde pelos sarracenos da Espanha. As primeiras fábricas de papel se estabeleceram na Europa durante o século XIII. Por motivos de conservação e resistência, o papel jamais era utilizado em documentos oficiais, que deviam receber "selos pendentes".

 

12 Chamavam-se feudatários os que possuíam um feudo, e deviam, por conseqüência, fé e obediência ao suserano.

 

13 Foi a partir das assembléias instituídas por Filipe, o Belo, que os reis da França tomaram o hábito de recorrer a consultas nacionais que, com a continuação, tomaram o nome de Estados Gerais, e de onde saíram, por sua vez, depois de 1789, as primeiras instituições parlamentares francesas.

 

14 Essa ilhota, na ponta da ilha da Cite, devia seu nome aos numerosos judeus queimados ali. Reunida a outra ilhota, ela forma hoje o Jardin du Vert-Galant.

15 Esse menino viria a ser o ilustre poeta Boccaccio, autor do Decamerão

.

16 Os prebostes eram funcionários reais que acumulavam, mais ou menos, as funções hoje atribuídas aos prefeitos e subprefeitos, aos chefes das subdivisões militares, aos comissários das divisões, aos controladores das contribuições, aos recebedores e agentes do fisco. Isso basta para explicar o fato de serem eles muito raramente queridos. Mas já naquela época, em certas regiões, começavam a dividir suas atribuições com os recebedores, no que se referia à cobrança dos impostos, e com os capitães da cidade, no que se referia aos assuntos militares.

 

17 As determinações de Filipe, o Belo, sobre o livramento dos servos de certos bailiados e senescalias. Mais adiante falaremos disso.

 

18 Foi nesse Castelo de Clermont que nasceu, em 1294, o Príncipe Carlos, terceiro filho de Filipe, o Belo, e futuro Rei Carlos IV.

 

19 Como a noção do tempo era na Idade Média muito menos precisa do que hoje, empregava-se, geralmente, para designar as diferentes partes de um dia, o método de divisão eclesiástica: prima, terça, nona e vésperas. A prima correspondia mais ou menos às seis horas da manhã. A terça se aplicava às horas da manhã. A nona à hora do meio-dia e do meio da tarde. E as vésperas, ou vesperal (com uma distinção entre baixa vesperal e alta vesperal), ao resto do dia até o pôr-do-sol.

 

20 Gautier d'Aunay deixou dois filhos, chamados Filipe e Gautier. Um de seus netos foi mordomo dos reis Carlos V e Carlos VI, e um de seus bisnetos tornou-se, em 1413, Grão-Mestre das Águas e Florestas da França.

 

21 Agnès de France, descendente de São Luís, Duquesa da Borgonha e mãe de Margarida de Borgonha, mulher de Luís, o Turbulento.

 

22 Naquela época em que os Correios ainda não estavam organizados, as mensagens oficiais eram levadas por mensageiros a cavalo. Os príncipes soberanos, o papa, os grandes senhores e os principais dignitários eclesiásticos tinham cada qual sua própria organização de mensageiros a cavalo, que usavam trajes onde apareciam suas armas. Os mensageiros reais tinham direito de requisição de prioridade para conseguir montarias sobressalentes durante o percurso.

 

23 A maltôte (do baixo latim mala tolta, soma indevidamente cobrada) era um imposto sobre as vendas, na proporção de um denier por libra. Foi essa taxa de menos de meio por cento, numa época em que não havia imposto sobre o total dos negócios, que desencadeou os motins e deixou na história uma lembrança como se se tratasse de medida financeira esmagadora.

 

24 Tal veneno deve ser sulfocianureto de mercúrio. É um sal que gera, por combustão, ácido sulfúrico, vapores de mercúrio e compostos cianídricos, podendo provocar uma intoxicação, tanto cianídrica quanto mercurial. Quase todos os venenos da Idade Média eram feitos à base de mercúrio, material de predileção dos alquimistas.

O nome de "serpente de Faraó" passou, depois, a um brinquedo infantil, em cuja composição entra esse sal.

 

25 Filipe, o Belo, pode ser considerado o primeiro rei galicano. Bonifácio VIII, pela bula Unam saneiam, declarara: "...que toda criatura humana está submetida ao pontífice romano, e que essa submissão é uma necessidade para a sua salvação".

Filipe, o Belo, lutou, constantemente, pela independência do poder civil em assuntos temporais. Ao contrário, seu irmão Carlos de Valois era resolutamente ultramontano.

 

26 O pai e a mãe de Guilherme de Nogaret eram de origem catara. O termo cátaro aplica-se aos adeptos de uma seita religiosa que teve grande desenvolvimento, sobretudo no sul da França, no fim do século xii e no início do século XIII.

Os cátaros, divididos em perfeitos e crentes, professavam o desprendimento das contingências da carne e da vida terrena. Encorajavam a não-procriação e honravam o suicídio. Recusavam-se a considerar o matrimônio como um sacramento, e nutriam sólida hostilidade em relação à Igreja Romana. Foram declarados hereges, e o Papa Inocêncio III organizou contra eles uma cruzada que conservou o nome de Cruzada dos Albigenses e foi dirigida, de forma selvagem, pelo famoso Simão de Montfort. Verdadeira guerra religiosa interna, ela terminou por um tratado assinado em Paris em 1229.

As suspeitas que podiam pesar sobre Guilherme de Nogaret devido à sua ascendência herética obrigaram-no a ser mais vigilante e intolerante sobre todas as questões relacionadas com a exatidão da fé. Nem por isso deixou de ser excomungado devido à sua expedição contra o Papa Bonifácio, excomunhão levantada por Clemente V mediante a penitência de uma peregrinação à Terra Santa, a ser realizada por ele próprio ou pelos seus descendentes. Cerca de 1870, duas senhoras já de certa idade foram a Roma pedir uma audiência ao papa: eram as últimas descendentes de Nogaret que haviam descoberto, cinco séculos e meio mais tarde, que a penitência infligida a seu antepassado nunca fora cumprida. Pretendiam saber o que deviam fazer. O papa libertou-as de sua obrigação.

 

27 Instituídos mais ou menos nos meados do século XIII, os burgueses do rei constituíam uma categoria especial de súditos que, ao implorar a justiça do rei, se libertavam de seus elos de sujeição para com um senhor, ou de suas obrigações de residência numa cidade, e não dependiam mais, onde quer que estivessem dentro do reinado, senão do poder central.

Essa instituição teve grande desenvolvimento sob o reinado de Filipe, o Belo. Pode dizer-se que os burgueses do rei foram os primeiros franceses a terem um estatuto jurídico semelhante ao dos modernos cidadãos.

 

28 Taille-hors é a expressão que deu origem à moderna palavra taiaut, intraduzível, e que é o grito do caçador para açular os cães, quando a caça se levanta.

 

29 Segundo os documentos e os relatórios de embaixadores de que se dispõe, chega-se à conclusão de que Filipe, o Belo, sucumbiu a uma apoplexia cerebral em uma zona não motora. A afasia do início pode ter sido devida a edema passageiro e regressivo, consecutivo da apoplexia. A persistência da sede, as perturbações motoras e o torpor podem ser devidos a uma lesão da região da base do crânio (região infundíbulo-tuberiana). Teve uma recaída mortal no dia 26 ou 27 de novembro.

 

30 Essa cruz era incrustada de pérolas, rubis e safiras e estava adaptada a um pedestal de cobre cinzelado. No centro da cruz, pequena placa de cristal permitia que se visse um grande fragmento da "verdadeira cruz". Foi transportada para o Mosteiro de Poissy, assim como o coração de Filipe, o Belo. Aquele coração era tão pequeno que, na opinião daqueles que o viram, "podia ser comparado ao de uma criança recém-nascida ou ao de uma ave".

Sob o reinado de Luís XIV, na noite de 21 de julho de 1695, um raio caiu sobre a igreja do mosteiro e incendiou-a quase completamente. O coração de Filipe, o Belo, e a cruz dos templários foram destruídos nessa ocasião.

 

                                                                                            Maurice Druon

 

 

                      

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