Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O REI DO INVERNO
Segunda Parte
Eu não gosto do mar. É frio e traiçoeiro e os seus montes móveis e cinzentos deslocavam-se sem parar vindos do oeste longínquo onde o Sol morre todos os dias. Os marujos disseram-me que algures, para lá daquele horizonte vazio, ficava a terra de Lyonesse, mas nunca ninguém a vira ou, com certeza, nunca ninguém voltara de Lyonesse. Por isso tinha-se transformado num abrigo abençoado para todos os pobres marujos; uma terra de prazeres terrenos onde não há guerra nem fome e, acima de tudo, não há navios para atravessar o mar rugoso e cinzento com as crespinas brancas polidas pelo vento a precipitarem-se das montanhas verde-acinzentadas que tão impiedosamente agitavam os nossos pequenos barcos de madeira. A costa de Dumnónia parecia incrivelmente verde. Eu nunca me apercebera de como gostava daquele local até ao dia em que o deixei pela primeira vez. Os meus homens viajavam em três embarcações, todas com escravos aos remos. Mas quando saímos do rio levantou-se um vento de Oeste. Por isso os remos foram recolhidos enquanto as velas em farrapos arrastavam as toscas embarcações pelos declives das gigantescas ondas abaixo. Muitos dos meus homens ficaram enjoados. Eram novos, muitos deles, a maior parte, eram ainda mais nova do que eu próprio, pois a guerra é mesmo um jogo de rapazes, mas alguns eram mais velhos. Cavan, o meu segundo comandante, estava já perto dos quarenta. Tinha uma barba grisalha e um rosto cheio de cicatrizes. Era um irlandês severo que trabalhara com Uther e que agora não via nada de estranho em ser comandado por um homem com apenas metade da sua idade. Chamava-me Senhor, supondo que, por eu ter vindo do Tor, era herdeiro de Merlim ou, pelo menos, o magnífico filho do mágico parido por uma escrava saxónica. Penso que Artur me devia ter dado Cavan para o caso da minha autoridade não se mostrar superior à minha idade, mas, com toda a sinceridade, eu nunca tive problemas em comandar homens. Diz-se aos soldados o que têm de fazer, nós próprios também o fazemos, punem-se quando falham, mas, caso contrário, recompensam-se bem e dá-se-lhes a vitória. Os meus lanceiros eram todos voluntários e iam para Benoic ou porque me queriam servir ou, e era o mais provável, porque acreditavam que haveria maiores pilhagens e mais glória para sul daquele mar. Viajávamos sem mulheres, cavalos ou servos. Eu dera a Canna a sua liberdade e mandara-a para o Tor, esperando que Nimue tomasse conta dela, mas duvidava que tornasse a ver a minha pequena saxã. Em breve encontraria um marido enquanto eu ia ao encontro da nova Grã-Bretanha, a Bretanha, para ver por mim a fabulosa beleza de Ynys Trebes.
Bleiddig, o chefe enviado pelo rei Ban, viajava connosco. Resmungou por eu ser tão novo, mas depois de Cavan ter rosnado que eu provavelmente já matara mais homens do que o próprio Bleiddig, decidiu guardar para si próprio as reservas que tinha a meu respeito. Ainda se queixou que éramos poucos. Disse que os Francos eram numerosos e estavam bem armados e esfomeados pelas terras, que duzentos homens serviriam para alguma coisa, mas sessenta não.
Nessa primeira noite ancorámos na baía de uma ilha. Os mares bramiam ao passar pela boca da baía enquanto na costa havia um grupo de homens andrajosos que gritavam na nossa direcção e que, às vezes, lançavam setas com pouca força que caíam não muito longe dos nossos três barcos. O nosso capitão da marinha temia que estivesse a chegar uma tempestade e sacrificou um cabrito que levávamos para bordo e que servia apenas esse objectivo. Ele espalhou o sangue do animal moribundo pela proa do seu navio e, pela manhã, os ventos tinham acalmado, ainda que tivesse aparecido um denso nevoeiro a arrastar-se sobre o mar. Nenhum dos capitães dos navios navegaria com o nevoeiro. Por isso, esperámos um dia inteiro e uma noite e, então, sob um céu limpo remámos para Sul. Foi um dia muito longo. Contornámos algumas rochas medonhas coroadas com os esqueletos de navios naufragados. E, então, numa noite quente, com pouco vento e uma maré a subir que ajudava os nossos remadores cansados, deslizámos para um rio largo onde, sob as asas afortunadas de um bando de cisnes, encalhámos a nossa embarcação. Havia um forte próximo, e homens armados aproximaram-se da margem do rio para nos desafiar, mas Bleiddig gritou que éramos amigos. Os homens responderam em inglês, dando-nos as boas-vindas. A luz do crepúsculo dourava os redemoinhos e as correntes do rio. O local cheirava a peixe, a sal e a alcatrão. Havia redes pretas penduradas em cavaletes ao lado de barcos de pesca encalhados, fogueiras a arder sob as tinas do sal, cães a correr para trás e para a frente nas pequenas ondas, ladrando-nos. Um grupo de crianças saiu de algumas cabanas perto da beira-rio para nos ver desembarcar.
Eu ia à frente com o meu escudo com o símbolo do urso de Artur virado de pernas para o ar. Quando passei para lá da linha de algas formada pela maré-cheia enterrei a haste da minha lança na areia e disse uma oração a Bei, o meu protector, e a Manawydan, o Deus do Mar, para que um dia me levassem de volta da Armórica, de volta ao meu Senhor, de volta a Artur, na abençoada Grã-Bretanha. Depois fomos para a guerra.
Eu tinha ouvido alguns homens dizer que nenhuma cidade, nem sequer Roma ou Jerusalém, era tão bela como Ynys Trebes, e talvez esses homens estivessem a dizer a verdade, pois, apesar de eu nunca ter visto as outras, vi Ynys Trebes e era um local espantoso, uma cidade maravilhosa, o local mais bonito que já vi. Erguia-se numa ilha escarpada de granito no meio de uma ampla baía pouco profunda que podia estar coberta de espuma ou fustigada por ventos uivantes, mas no interior de Ynys Trebes tudo estaria calmo. No Verão a baía podia tornar-se escaldante por causa do calor, mas dentro da capital de Benoic parecia sempre fresco. Guinevere teria adorado Ynys Trebes, pois tudo o que era antigo era guardado como um tesouro e não se permitia que nada de feio estragasse a sua beleza.
Os Romanos estiveram em Ynys Trebes, claro, mas não a tinham fortificado, tendo apenas construído duas vivendas no cume da ilha. As vivendas ainda existiam: o rei Ban e a rainha Elaine tinham-nas ligado e aumentado, pilhando edifícios romanos no continente à procura de novas colunas e pedestais, mosaicos e estátuas. Agora o cume da ilha estava coroado por um gracioso palácio, cheio de luz, onde cortinas de linho brancas ondeavam com cada lufada de vento que soprava do mar espelhado de cintilações. Conseguia chegar-se com mais facilidade à ilha de barco, apesar de haver uma passagem que durante a maré alta ficava coberta e durante a maré baixa podia ser traiçoeira por causa das areias movediças. A passagem estava marcada por vergas, mas as enormes vagas da baía faziam desaparecer as marcas e só um louco tentaria atravessar a passagem sem contratar os serviços de um guia local para o conduzir por entre as areias movediças e pelas enseadas agitadas. Durante as marés baixas Ynys Trebes emergia do mar, elevando-se no meio de uma vastidão de areia encrespada cortada por pequenos canais e charcos com água das marés, enquanto durante as marés altas, quando o vento soprava forte vindo de oeste, a cidade era como um gigantesco navio abrindo destemida e ruidosamente o seu caminho pelo mar agitado.
Abaixo do palácio havia um amontoado de edifícios menores que se seguravam nas íngremes encostas de granito como ninhos de aves marítimas.
Havia templos, lojas, igrejas e casas, todas caiadas, todas construídas em pedra, todas ornamentadas com esculturas e decorações que não tinham sido utilizadas no grande palácio de Ban e todas com frente para a estrada pavimentada com pedras que subia em degraus em redor da ilha escarpada até à casa real. No lado este da ilha havia um cais onde podiam ancorar os barcos, se bem que só com mar calmo se pudesse ancorar comodamente, e era por isso que os nossos navios nos tinham deixado num local seguro que ficava a um dia de caminho para oeste. Do outro lado do cais havia um pequeno porto de abrigo que mais não era do que um lago formado pelas marés e protegido por bancos de areia. Na maré baixa o lago ficava separado do mar, enquanto na maré alta a ligação era precária sempre que o vento soprava do norte. Rodeando a base da ilha, excepto nos locais em que o próprio granito era íngreme de mais para se poder escalar, uma muralha de pedra tentava manter o mundo exterior afastado. Fora de Ynys Trebes havia tumultos, inimigos francos, sangue, pobreza e doenças, enquanto dentro da muralha se espalhava o saber, a música, a poesia e a beleza.
Eu não pertencia à querida ilha capital do rei Ban. A minha tarefa era defender Ynys Trebes lutando no continente, em Benoic, onde os Francos estavam a pressionar, entrando nas quintas que sustentavam a capital gastadora, mas Bleiddig insistira para que eu conhecesse o rei. Por isso, fui guiado pela passagem, atravessando o portão da cidade, decorado com um tritão a brandir um tridente, e seguindo pela estrada íngreme que levava ao grandioso palácio. Os meus homens tinham ficado todos no continente e eu só desejava tê-los trazido para verem as maravilhas daquela cidade: os portões entalhados; as íngremes escadas de pedra que se precipitavam para cima e para baixo no granito da ilha por entre templos e lojas; as casas com varandas ornamentadas com canteiros de flores; as estátuas e as nascentes que derramavam água limpa e fresca em calhas de mármore onde toda a gente podia encher um balde ou inclinar-se para beber. Bleiddig era o meu guia e não parava de resmungar como a cidade era um desperdício de bom dinheiro que devia antes ser gasto na defesa em terra, mas eu estava siderado. Aquele, pensei, era um lugar pelo qual valia a pena lutar.
Bleiddig conduziu-me até ao último portão decorado com um tritão, que dava entrada para o pátio do palácio. Os edifícios cobertos de latadas do palácio preenchiam três lados do pátio enquanto o quarto lado era limitado por uma série de arcos pintados de branco, que se abriam revelando uma ampla vista do mar. Havia guardas com capas brancas em todas as portas, com as hastes das lanças polidas e as cabeças das lanças a brilhar. Não prestam para nada murmurou Bleiddig por entre os dentes. Não conseguem sequer vencer nem um cachorrinho, mas são bem bonitos. Um cortesão vestido com uma toga branca recebeu-nos à entrada do palácio e escoltou-nos, levando-nos por sala atrás de sala, todas elas cheias de tesouros raros. Havia estátuas de alabastro, pratos dourados e uma sala com vários espelhos de metal polido alinhados, o que me levou a fazer uma careta quando me vi reflectido numa distância sem fim: um soldado barbudo, sujo e com uma capa castanho-avermelhada a ficar cada vez mais pequeno com as diminuições enrugadas dos espelhos. Na sala seguinte, pintada de branco e onde se sentia o aroma de flores no ar, estava uma rapariga a tocar harpa. Usava uma túnica curta e nada mais. Sorriu quando nós passámos e continuou a tocar. Tinha os seios dourados pelo sol, o cabelo curto e sorria com facilidade.
Parece um bordel confidenciou Bleiddig num murmúrio rouco e quem me dera que fosse. Sempre servia para alguma coisa.
O cortesão vestido com uma toga abriu o último par de portas com puxadores de bronze e, fazendo uma vénia, deixou-nos entrar numa ampla sala com vista para o mar.
Senhor! inclinou-se perante o único ocupante da sala, o Chefe Bleiddig e Derfel, um capitão de Dumnónia.
Um homem alto e magro com um rosto preocupado e uma cabeça já com pouco cabelo branco levantou-se por detrás de uma mesa onde estivera a escrever num pergaminho. Uma lufada de vento enrolou-lhe o trabalho e ele ficou todo nervoso enquanto não conseguiu prender os cantos do pergaminho com tinteiros e amotites.
Ah! Bleiddig! disse o rei avançando para nós. Já vejo que estás de volta. Muito bem. Algumas pessoas nunca voltam. As embarcações não resistem. Devíamos ponderar nisso. Achas que a resposta será embarcações maiores? Ou será que as construímos mal? Não sei se teremos os conhecimentos certos sobre a construção de barcos, ainda que os nossos pescadores jurem que sim, mas alguns deles também não voltam. Um problema. O rei Ban parou a meio da sala e coçou a têmpora, sujando ainda mais de tinta o cabelo ralo. Não me ocorre nenhuma ideia de imediato anunciou finalmente, depois olhou com atenção para mim. Drivel, não é?
Derfel, meu Senhor disse eu, pondo um joelho em terra.
Derfel! Disse o meu nome com espanto. Derfel! Deixa-me pensar! Derfel. Suponho que, se esse nome tem algum significado, será "pertença de um druida". Pertence a algum, Derfel?
Fui educado por Merlim, Senhor.
Foste? Foste, mesmo? Caramba! Isso é muito importante. Já vejo que temos de falar. Como está o meu querido Merlim?
Há cinco anos que ninguém o vê, Senhor.
Então está invisível! Ah! Sempre soube que esse devia ser um dos seus truques. Um truque muito útil além do mais. Tenho de pedir aos meus sábios para investigarem. Levanta-te, levanta-te. Não suporto que as pessoas se ajoelhem perante mim. Não sou nenhum Deus, pelo menos penso que não sou. O rei examinou-me e pareceu desapontado com o que viu. Pareces um franco! disse, num tom de voz que denotava confusão.
Sou dumnoniano, Senhor disse eu, orgulhoso.
Tenho a certeza que sim. Um dumnoniano que, espero bem, veio à frente do meu querido Artur, não é? perguntou avidamente.
Eu não estava propriamente ansioso por este momento.
Não, meu Senhor disse eu. Artur está cercado por muitos inimigos. Tem de lutar pela sobrevivência do nosso reino e, por isso, mandou-me com alguns homens, todos os que podia dispensar, e eu fiquei de lhe escrever a dizer se são precisos mais.
Vão ser precisos mais, olá se vão disse Ban tão furiosamente quanto lho permitia a sua voz estridente e aguda. Meu Deus, se vão. Então trouxeste alguns homens, foi? Quantos são esses alguns, precisamente?
Sessenta, Senhor.
O rei Ban deixou-se cair abruptamente numa cadeira de madeira com embutidos de marfim.
Sessenta! Eu esperava trezentos! E o próprio Artur em pessoa. Tu pareces-me muito novo para seres capitão disse ele, hesitante, e depois, de repente, animou-se. Será que ouvi bem? Disseste que sabias escrever?
Sim, meu Senhor.
E ler? insistiu o rei ansioso.
Deveras, Senhor.
Vês, Bleiddig! gritou o rei numa voz triunfante saltando da cadeira. Alguns guerreiros sabem ler e escrever! Isso não os faz menos homens. Isso não os reduz à insignificante condição de eclesiásticos, mulheres, reis ou poetas como tu tão ingenuamente acreditas. Ha! Um guerreiro que sabe ler e escrever. Por algum feliz acaso escreves poesia? perguntou-me ele.
Não, meu Senhor.
Que pena. Nós somos uma comunidade de poetas. Somos uma irmandade! Denominámo-nos fili e a poesia é nossa senhora implacável. É, por assim dizer, a nossa tarefa sagrada. Talvez te sintas inspirado. Vem comigo, meu letrado Derfel.
Ban, tendo já esquecido a ausência de Artur, correu com passos miudinhos e excitados pela sala, fazendo-me sinal para que o seguisse por outro conjunto de grandes portas, passando primeiro por uma sala pequena onde uma segunda harpista, meio nua como a primeira e tão bonita como ela, tocava nas cordas, e entrando depois numa biblioteca.
Eu nunca tinha visto uma biblioteca a sério e o rei Ban, encantado por me mostrar a sala, observou a minha reacção. Fiquei boquiaberto e não admira, pois cada rolo de pergaminho estava atado com uma fita e guardado em caixas feitas por encomenda com uma parte aberta e todas arrumadas umas por cima das outras como os alvéolos de uma colmeia. Havia centenas desses alvéolos, cada um com o seu próprio rolo de pergaminho e cada um com uma etiqueta escrita a tinta com uma caligrafia esmerada.
Que línguas falas, Derfel? perguntou-me Ban.
Saxão, meu Senhor, e britânico.
Ah... ele ficou desapontado. Apenas línguas rudes. Eu agora domino o latim, o grego, o britânico, é claro, e um pouco o árabe. Ali o padre Celwin fala dez vezes mais línguas, não é, Celwin?
O rei dirigiu-se ao único ocupante da biblioteca, um velho padre de barba branca com uma grotesca corcunda e um hábito de monge com capuz. O padre levantou uma mão franzina confirmando, mas não levantou os olhos dos pergaminhos estendidos em cima da sua mesa. Por um momento pensei que o padre tinha um cachecol de peles à volta da parte de trás do capuz, mas depois vi que era um gato cinzento, que levantou a cabeça, olhou para mim, bocejou e voltou a adormecer. O rei Ban ignorou a grosseria do padre e conduziu-me ao longo das prateleiras, falando-me dos tesouros que tinha coleccionado.
O que aqui tenho disse ele com orgulho é tudo o que os Romanos deixaram e tudo o que os meus amigos se lembram de me mandar. Alguns manuscritos estão velhos de mais para serem manuseados, pelo que são copiados. Ora vamos lá ver... O que é isto? Ah, sim, é uma das doze peças de Aristófanes. É claro que as tenho todas. Esta é Os Babilónicos. Uma comédia passada na Grécia, meu jovem.
E sem graça nenhuma disse o velho com brusquidão da sua mesa.
É extremamente engraçada disse o rei Ban, imperturbável ante a grosseria do padre, à qual estava evidentemente acostumado. Talvez os Fili devessem construir um teatro e representá-la acrescentou ele. Ah, isto tu vais gostar. A Ars Poética de Horácio. Fui eu próprio quem copiou este.
Não admira que esteja ilegível interpôs o padre Celwin.
Obrigo todos os fili a estudarem as máximas de Horácio disse-me o rei.
E é por isso que todos eles são poetas tão abomináveis disse o padre, mas ainda sem levantar os olhos dos pergaminhos.
Ah, Tertuliano! O rei tirou um rolo de uma caixa e soprou para retirar o pó do pergaminho. Uma cópia da sua Apologeticus.
Só lixo disse Celwin. Desperdício de tinta preciosa.
É a própria eloquência! Ban estava todo entusiasmado. Eu não sou cristão, Derfel, mas alguns textos cristãos estão cheios de um bom sentido moral.
Nada disso defendeu o padre.
Ah, e esta é uma obra que já deves conhecer disse o rei, retirando mais um rolo de pergaminho da respectiva caixa. Meditações de Marco Aurélio. É um guia sem igual, meu querido Derfel, de como um homem deve viver a sua vida.
Banalidades escritas num mau grego por um chato romano resmungou o padre.
Provavelmente o maior livro que já foi escrito disse o rei com um ar sonhador, colocando Marco Aurélio no lugar e retirando uma outra obra. E esta é deveras uma curiosidade. A grande dissertação de Aristarco de Samos. Conheces, tenho a certeza.
Não, não conheço, Senhor confessei.
Talvez não esteja na lista de leitura de toda a gente admitiu tristemente o rei, mas é estranhamente divertida. Aristarco afirma que é a Terra que anda à volta do Sol e não o Sol à volta da Terra. Ilustrou esta noção conflituosa com gestos giratórios e extravagantes dos seus longos braços. Ele diz que anda para trás, vês?
A mim parece-me razoável disse Celwin, ainda sem retirar os olhos do trabalho.
E Silius Italicus! O rei fez um gesto indicando todo um grupo de alvéolos de colmeia com rolos de pergaminho. Querido Silius Italicus! Tenho todos os dezoito volumes da sua história da Segunda Guerra Púnica. Tudo em verso, claro. Que tesouro!
A segunda guerra túrgida cacarejou o padre.
E é assim a minha biblioteca disse Ban, orgulhoso, conduzindo-me para fora da sala. A glória de Ynys Trebes! Ela e os nossos poetas. Desculpe por tê-lo incomodado, padre!
O camelo acaso se sente incomodado por um gafanhoto? perguntou o padre Celwin. Depois a porta foi fechada na cara dele e eu segui o rei, passando pela harpista de seios desnudos e voltando para onde Bleiddig continuava à espera.
O padre Celwin está a orientar as pesquisas sobre o tamanho das asas dos anjos anunciou Ban com orgulho. Talvez eu lhe devesse fazer algumas perguntas sobre a invisibilidade. Ele parece saber de tudo. Mas, vês agora, Derfel, por que é que é tão importante que Ynys Trebes não caia? Neste pequeno lugar, meu querido colega, está armazenada a sabedoria do nosso mundo, reedificada a partir das suas ruínas e arrumada em segurança. Pergunto-me o que será um camelo. Sabes o que é um camelo, Bleiddig?
Um tipo de carvão, Senhor. Os ferreiros usam-no para fazer aço.
Usam mesmo? Que interessante. Mas o carvão não seria incomodado por um gafanhoto, pois não? Essa contingência dificilmente ocorreria, então porquê sugeri-la? Estou perplexo. Tenho de perguntar ao padre Celwin, quando ele estiver com disposição para perguntas, o que é raro. Agora, meu jovem, eu sei que vieste para salvar o meu reino e tenho a certeza que estás ansioso por tratar disso, mas primeiro tens de ficar para o jantar. Os meus filhos estão cá, são os dois guerreiros! Eu tinha esperanças de que eles dedicassem as suas vidas à poesia e à cultura, mas os tempos exigem guerreiros! não é? Ainda assim, o meu querido Lancelote preza os fili tanto quanto eul pelo que há esperança para o nosso futuro. Fez uma pausa, franziu o nariz e ofereceu-me um amável sorriso. Penso que vais querer tomar um banho.
Vou?
Sim disse Ban decididamente. A Leanor vai levar-te aos teus aposentos, preparar o teu banho e dar-te roupas. Bateu palmas e a primeira harpista apareceu à porta. Devia ser ela a tal Leanor.
Eu estava num palácio perto do mar, cheio de luz e beleza, povoado de música, sagrado para a poesia e encantado pelos seus habitantes que a mim pareciam ter vindo de outra época e de outro mundo.
E foi então que conheci Lancelote.
Pouco mais és do que um garoto disse-me Lancelote.
É verdade, Senhor disse eu.
Eu estava a comer lagosta embebida em manteiga derretida e não me lembrava de alguma vez ter comido nada tão delicioso.
Artur insulta-nos ao mandar-nos apenas um garoto insistiu Lancelote.
Isso não é verdade, Senhor disse eu, com a manteiga a escorrer pela barba.
Acusas-me de mentir? perguntou o príncipe Lancelote, o Príncipe Herdeiro de Benoic.
Eu sorri-lhe.
Acuso-vos, Senhor, de estardes enganado.
Sessenta homens? escarneceu ele. É isso tudo o que Artur consegue arranjar?
Sim, meu Senhor respondi.
Sessenta homens chefiados por um miúdo? disse Lancelote com escárnio.
Ele era apenas um ou dois anos mais velho do que eu, mas possuía a lassitude de um homem muito mais velho em relação ao mundo. Era muito belo, alto e bem constituído, com um rosto estreito e uns olhos negros, tão notável na sua masculinidade como Guinevere na sua feminilidade. Porém, havia algo de desconcertante, algo que fazia lembrar as serpentes, no olhar distante de Lancelote. Tinha um cabelo negro todo apanhado em laçadas bem oleadas presas com travessas de ouro, a barba e o bigode asseadamente aparados e tão oleados que rebrilhavam, e usava um perfume de lavanda. Era o homem mais belo que eu já vira e, o pior, é que ele o sabia e eu não gostei dele desde o primeiro momento em que o vi. Conhecemo-nos no salão de festas de Ban que não era parecido com nenhum outro salão de festas que eu já vira. Este tinha colunas de mármore, cortinas brancas que embaciavam a vista do mar e suaves paredes estucadas decoradas com pinturas de Deuses, Deusas e animais fabulosos. Servos e guardas alinhavam-se ao longo das paredes daquela sala tão aprazível iluminada por inúmeros pratos de bronze onde boiavam pavios em azeite. Grossas velas de cera de abelha ardiam em cima da longa mesa coberta com uma toalha branca que eu estava constantemente a sujar com pingos de gordura, tal como besuntava a toga largueirona que o rei Ban insistira que eu usasse na festa.
Eu estava a adorar a comida e a detestar a companhia. O padre Celwin estava presente e teria adorado uma oportunidade de falar com ele, mas ele estava a aborrecer um dos três poetas à mesa, todos eles fili, o grupo querido do rei Ban, enquanto eu estava abandonado ao fundo da mesa com o príncipe Lancelote. A rainha Elaine sentada ao lado do marido, o rei defendia os poetas das farpas de Celwin, que pareciam muito mais divertidas do que a conversa azeda do príncipe Lancelote.
Artur insulta-nos mesmo disse Lancelote, voltando à carga.
Lamento que penseis assim, Senhor respondi eu.
Nunca discutes, miúdo? perguntou. Olhei-o nos olhos duros e insípidos.
Acho insensato que guerreiros discutam numa festa, Senhor disse eu.
Então és mesmo um puto cobarde! escarneceu ele. Suspirei e baixei o tom de voz.
Quereis mesmo uma discussão, Senhor? perguntei com a paciência a chegar ao fim. Porque, se é isso que quereis, então chamai-me puto outra vez e eu arranco-vos a cabeça. Sorri.
Puto disse ele um segundo depois.
Olhei-o de novo, perplexo, perguntando-me se ele estaria a fazer algum tipo de jogo cujas regras eu não conseguia adivinhar. Mas, se ele estivesse, então o jogo era mesmo a sério.
Dez vezes a espada negra disse eu.
O quê? Ele franziu as sobrancelhas, não reconhecendo a fórmula de Mitra, o que significava que ele não era meu irmão. Enlouqueceste? perguntou e, depois de uma pausa, disse: Não passas dum puto tresloucado, além de seres um puto cobarde?
Bati-lhe. Devia ter mantido a calma, mas o meu mal-estar e a minha fúria ultrapassaram toda a prudência. Dei-lhe um golpe para trás com o cotovelo que lhe fez sangrar o nariz, lhe rebentou o lábio e o atirou da cadeira abaixo, deixando-o estatelado no chão. Em seguida ele tentou atirar-me com a cadeira, mas fui mais rápido e estava perto de mais para o golpe adquirir alguma força. Dei um pontapé na cadeira, levantei-o, arrastando-o, e encostei-o de costas contra uma coluna onde lhe esmaguei a cabeça contra a pedra e lhe coloquei o meu joelho contra as virilhas. Ele estremeceu. A mãe gritava enquanto o rei Ban e os poetas convidados se limitavam a olhar para mim boquiabertos. Um guarda de capa branca muito nervoso encostou a ponta da lança à minha garganta.
Tira isso daí disse eu ao guarda ou és um homem morto. E ele tirou.
O que é que eu sou, Senhor? perguntei a Lancelote.
Um puto respondeu ele.
Coloquei o antebraço de través na garganta dele, quase o sufocando. Ele debatia-se, mas não me conseguia afastar.
O que é que eu sou, Senhor? perguntei de novo.
Um puto resmungou ele.
Senti uma mão tocar-me no braço e virei-me, vendo um homem de cabelo loiro e da minha idade que me sorria. Tinha-o visto sentado na outra ponta da mesa e pensava que fosse mais um poeta, mas a minha suposição estava errada.
Há muito que eu queria fazer o que tu estás a fazer disse o jovem, mas se queres fazer o meu irmão parar de te insultar então tens, de o matar e a honra da família obriga a que eu te mate a seguir e não tenho a certeza de querer fazer isso.
Afrouxei o braço da garganta de Lancelote. Durante alguns momentos ele ficou ali, tentando respirar, e depois sacudiu a cabeça, cuspiu na minha direcção e dirigiu-se para a mesa. Tinha o nariz a sangrar, os lábios inchados] e o cabelo tão cuidadosamente oleado estava todo em desalinho. O irmão parecia divertido com a luta.
Chamo-me Galaad disse ele e estou orgulhoso por conhecer! Derfel Cadarn.
Agradeci-lhe, e obriguei-me a ir até à cadeira do rei Ban, a cujos pés, apesar da sua aversão declarada a gestos de respeito, me ajoelhei.
Pelo insulto dirigido à vossa casa, Senhor disse eu peço perdão e submeto-me ao vosso castigo.
Castigo? disse Ban em tom de surpresa. Não sejas pateta. Foi o vinho. Vinho a mais. Devíamos deitar água no vinho como faziam os Romanos, não devíamos, padre Celwin?
Que coisa mais ridícula disse o velho padre.
Nada de castigos, Derfel disse Ban. E levanta-te, não suporto ser adorado. E qual foi a tua ofensa? Apenas seres ávido por uma discussão?! E que mal tem isso? Eu gosto de discussões, não é, padre Celwin? Um jantar sem uma discussão é como um dia sem poesia. O rei ignorou o comentário amargo do quão abençoado um dia desses seria. E o meu filho Lancelote
é um homem precipitado. Tem o coração de um guerreiro e a alma de um poeta e eu temo que isso seja uma mistura inflamável. Fica connosco e toca a comer
Ban era um monarca muito generoso, se bem que eu reparasse que a sua rainha, Elaine, estava tudo menos satisfeita com a decisão dele. Ela tinha o cabelo grisalho, mas um rosto sem rugas que possuía uma calma e um encanto que combinavam com a beleza serena de Ynys Trebes. No entanto, naquele momento a rainha tinha o semblante carregado, mostrando a sua severa desaprovação.
Todos os guerreiros dumnonianos são assim mal-educados? perguntou com azedume.
Quereis que os guerreiros sejam corteses? replicou Celwin bruscamente. Acaso mandastes os vossos preciosos poetas matar os Francos? E não me refiro a irem recitar-lhes os seus poemas, se bem que, bem vistas as coisas, talvez fosse uma táctica bastante eficaz.
Lançou um olhar de esguelha à rainha e os três poetas encolheram os ombros. Celwin tinha de alguma forma escapado à proibição de coisas feias em Ynys Trebes pois, sem o hábito de monge com capuz que usava na biblioteca, ele revelava surpreendentemente feio, com um olho feroz, uma venda bolorenta sobre o outro, uma boca retorcida e irascível, um cabelo liso que crescia para trás de uma linha de tonsura assaz irregular, uma barba imunda a esconder um pouco da tosca cruz de madeira que trazia pendurada sobre o peito côncavo e um corpo todo torcido e arqueado, deformado pela sua prodigiosa corcunda. O gato cinzento que estava enrolado à volta do seu pescoço na biblioteca estava agora enroscado no seu colo a comer bocados de lagosta.
Vem para a minha ponta da mesa disse Galaad e não te recrimines mais.
Mas eu culpo-me, sim insisti eu. A culpa foi minha. Devia ter mantido a calma.
O meu irmão disse Galaad quando os lugares foram trocados ou antes o meu meio-irmão, tem prazer em espicaçar as pessoas. É o seu desporto favorito, mas a maior parte não se atreve a lutar, porque ele é o Príncipe Herdeiro e isso significa que um dia vai ter poderes de vida e de morte. Mas tu fizeste a coisa certa.
Não, eu fiz foi a coisa errada.
Não vou discutir contigo. Mas vou levar-te para terra ainda esta noite.
Esta noite? Eu estava surpreso.
O meu irmão não aceita a derrota facilmente disse Galaad suavemente. Queres uma faca enfiada nas costelas enquanto dormes? Hem? Se eu fosse a ti, Derfel Cadarn, juntar-me-ia aos homens que tens em terra e dormia em segurança no meio deles.
Olhei para o fundo da mesa, para onde o belo e moreno Lancelote estava agora a ser consolado pela mãe, que lhe limpava o sangue do rosto com um guardanapo embebido em vinho.
Meio-irmão? perguntei a Galaad.
Nasci da amante do rei, não da sua esposa. Galaad inclinou-se um pouco mais e explicou calmamente: Mas o meu pai tem sido muito bom para mim e insiste em chamar-me príncipe.
O rei Ban discutia agora com o padre Celwin algum ponto obscuro da teologia cristã. Ban debatia-se com um entusiasmo cortês enquanto Celwin lhe lançava insultos, mas ambos se estavam a divertir bastante.
O vosso pai disse-me que vós e Lancelote sois ambos guerreiros disse eu a Galaad.
Ambos? Galaad riu-se. O meu querido irmão paga a poetas e a bardos para cantarem a sua glorificação como o maior guerreiro da Armórica, mas ainda tenho de vê-lo numa linha de escudos.
Mas eu tenho de combater disse eu amargamente para preservar a sua herança.
O reino está perdido disse Galaad descuidadamente. O meu pai gasta muito dinheiro em edifícios e manuscritos em vez de soldados, e aqui, em Ynys Trebes, estamos muito longe do nosso povo, pelo que eles preferem retirar-se para Broceliande a esperar que nós os ajudemos. Os Francos estão a ganhar por todo o lado. A tua missão, Derfel, é manteres-te vivo e chegares salvo a casa.
A sua honestidade fez-me olhar para ele com um novo interesse. Tinha um rosto mais largo, mais franco e mais aberto do que o irmão; o tipo de rosto que se gostaria de ter ao nosso lado direito numa linha de escudos. O lado direito de um homem era defendido pelo escudo do seu vizinho, por isso era bom estar de bem com esse homem. E eu senti instintivamente que Galaad era uma pessoa de quem se gostaria facilmente.
Estais a dizer que não devíamos lutar contra os Francos? perguntei-lhe com serenidade.
Estou a dizer que a luta está perdida, mas é óbvio que fizeste um juramento perante Artur de que lutarias, e cada momento que Ynys Trebes resistir corresponde a um momento de luz num mundo de trevas. Estou a tentar convencer o meu pai a mandar a sua biblioteca para a Grã-Bretanha, mas acho que ele preferia arrancar o próprio coração a fazer isso. Porém, quando chegar a hora, tenho a certeza de que ele a vai mandar para lá. Agora afastou a cadeira dourada da mesa, tu e eu temos de partir. E acrescentou suavemente: Antes dos fili começarem a recitar. A não ser, claro, que gostes de versos intermináveis sobre as glórias do luar a iluminar camas de juncos. Levantei-me e bati na mesa com uma das facas especiais que o rei Ban punha à disposição dos seus convidados. Esses convidados olhavam agora para mim com um ar circunspecto.
Tenho desculpas a pedir disse eu não só a todos vós, mas principalmente ao meu Senhor Lancelote. Um grande guerreiro como ele merecia melhor companhia para o jantar. Agora, perdoai-me, mas preciso de ir descansar.
Lancelote não respondeu. O rei Ban sorriu, a rainha Elaine parecia descontente e Galaad apressou-se a ir, primeiro, para onde estavam as minhas roupas e as minhas armas, e depois até ao cais iluminado onde um barco nos aguardava para nos levar até ao continente. Galaad, usando ainda a sua toga, levava um saco que atirou para o convés do pequeno barco e que, ao cair no chão, produziu um som metálico.
O que trazeis aí, Senhor? perguntei eu.
As minhas armas e a minha armadura disse ele. Desamarrou o cabo do barco e saltou para bordo. Vou contigo. E nada de vassalagens, trata-me por tu.
O barco deslizou, afastando-se do cais sob uma vela negra enfunada. A água encrespava-se na proa e esparrinhava suavemente contra o casco enquanto nós entrávamos na baía. Galaad estava a despir a toga, que atirou ao barqueiro, antes de vestir o seu equipamento de guerra, enquanto eu olhava para trás, para o palácio no cimo do monte. Estava suspenso no firmamento como um navio celestial a navegar nas nuvens, ou talvez como uma estrela a descer à terra. Um lugar de sonhos, um refúgio onde só governava um rei e uma linda rainha e onde os poetas cantavam e os velhos podiam estudar o tamanho das asas dos anjos. Ynys Trebes era tão bela, tão absolutamente bela.
E, a não ser que a pudéssemos salvar, absolutamente condenada à destruição.
Lutámos durante dois anos. Dois anos contra todas as probabilidades. Dois anos de esplendor e vileza. Dois anos de carnificinas e festins, de espadas partidas e escudos despedaçados, de vitórias e derrotas. E, durante todos esses meses durante todas essas batalhas tão violentas em que homens corajosos se sufocaram no seu próprio sangue e homens banais foram capazes de acções que nunca haviam sonhado possíveis, eu nunca vi Lancelote. Contudo, os poetas diziam que ele era o herói de Benoic, o mais perfeito guerreiro, o lutador dos lutadores. Os poetas diziam que, se Benoic continuava incólume, era graças às lutas de Lancelote, não às minhas, não às de Galaad, não às de Culhwch, mas sim às de Lancelote. Mas Lancelote passava a guerra na cama, a pedir à mãe para lhe levar vinho e mel.
Não, nem sempre na cama. Lancelote aparecia por vezes numa luta, mas sempre quilómetros atrás da frente de batalha, para poder voltar sempre em primeiro lugar para Ynys Trebes com as suas notícias de vitória. Ele sabia como rasgar uma capa, amassar a lâmina de uma espada, desgrenhar o cabelo oleado e até mesmo cortar o rosto para poder chegar a casa a cambalear como um herói. Depois, a mãe mandava os fili compor uma nova canção e essa canção seria levada para a Grã-Bretanha pelos comerciantes e marinheiros, pelo que, até na distante Rheged, a norte de Elmet, todos acreditavam que Lancelote era o novo Artur. Os Saxões temiam a sua vinda, enquanto Artur lhe mandou um presente: um cinturão bordado para a espada, com uma fivela ricamente esmaltada.
Achas que a vida devia ser justa? perguntou-me Culhwch quando reclamei por causa do presente.
Não, Senhor disse eu.
Então não gastes o teu fôlego com Lancelote aconselhou-me Culhwch.
Ele era o chefe da cavalaria deixado na Armórica, quando Artur partiu para a Grã-Bretanha, e era também primo de Artur, embora não fosse nada parecido com o meu Senhor. Culhwch era um zaragateiro atarracado, de barba farta e braços compridos, que nada mais queria da vida senão um abundante abastecimento de inimigos, bebida e mulheres. Artur deixara-o no comando de trinta homens e cavalos, mas todos os cavalos tinham morrido assim como metade dos homens, pelo que agora Culhwch lutava apeado. Juntei os meus homens aos dele e aceitei o seu comando. Ele mal podia esperar que a guerra acabasse em Benoic para poder ir lutar de novo ao lado de Artur. Ele adorava Artur.
Travámos uma guerra muito estranha. Quando Artur estava na Armórica, os francos estavam ainda a alguns quilómetros para leste onde a terra era plana e sem árvores e, por isso, ideal para os seus pesados cavaleiros, mas agora o inimigo tinha penetrado nos bosques que cobriam os montes no centro de Benoic. O rei Ban, tal como Tewdric de Gwent, confiara nas suas fortificações. Mas, se Gwent estava colocada num local ideal para fortes maciços e muralhas altas, os bosques e os montes de Benoic ofereciam ao inimigo demasiados caminhos que passavam pelas fortalezas do cume dos montes, guarnecidas com as forças desmoralizadas de Ban. A nossa missão era dar a essas forças uma nova esperança e fizemo-lo usando as próprias tácticas de Artur de marchas firmes e vigorosas e ataques surpresa. Os montes cobertos por bosques de Benoic eram feitos para batalhas desse género e os nossos homens eram incomparáveis. Há poucas alegrias que se possam comparar à luta que se segue a uma emboscada bem lançada, quando o inimigo está ainda estendido e com as armas embainhadas. A longa lâmina da Hywelbane ganhou novas cicatrizes.
Os Francos temiam-nos. Chamavam-nos lobos dos matos e nós adoptámos o insulto como símbolo e usávamos nos elmos caudas de lobo cinzentas. Gritávamos e uivávamos para os assustar, para os manter acordados noite após noite, espreitávamo-los durante dias e lançávamos as nossas emboscadas quando queríamos e não quando eles estavam preparados.
No entanto, o inimigo era muito numeroso e nós éramos poucos e, mês após mês, cada vez menos.
Galaad lutava a nosso lado. Era um grande lutador, mas era também um homem letrado que tinha bebido na biblioteca de seu pai e, à noite, falava de Deuses antigos, novas religiões, países estranhos e grandes homens. Lembro-me uma noite em que acampámos numa vivenda em ruínas. Ainda há uma semana ali havia uma pequena aldeia com o seu próprio apisoador, a sua própria olaria e a sua própria leitaria, mas os francos tinham lá estado e agora a vivenda era apenas um monte de ruínas fumegantes salpicadas de sangue, com as paredes a cair e a nascente de água próxima envenenada com os corpos das mulheres e das crianças. As nossas sentinelas estavam a guardar os caminhos nos bosques e, por isso, nós demo-nos ao luxo de acender uma fogueira onde assámos um par de lebres e um cabrito. E bebemos água, fingindo que era vinho.
Falernian disse Galaad com um ar sonhador, erguendo a caneca de barro para as estrelas como se fosse um copo dourado.
Quem é? perguntou Culhwch.
Falernian, meu querido Culhwch, é um vinho, um vinho romano muito agradável.
Eu nunca gostei de vinho disse Culhwch, depois bocejou. É bebida de mulheres. Agora a cerveja saxónica! Aí está uma bebida digna de vós.
Uns minutos depois já estava a dormir.
Galaad não conseguia dormir. O fogo tremeluzia baixo enquanto acima de nós as estrelas brilhavam. Uma delas caiu, rasgando o seu caminho branco e rápido pelo céu. Galaad fez o sinal da cruz, pois era cristão e, para ele, uma estrela cadente era sinal de que um demónio estava a cair do paraíso.
Outrora era na terra disse ele.
O quê? perguntei.
O paraíso. Deitou-se para trás, na erva, e pousou a cabeça sobre os braços. Doce paraíso.
Queres tu dizer Ynys Trebes?
Não, não. O que eu quero dizer, Derfel, é que quando Deus criou o homem, deu-nos um paraíso para viver e parece-me que, desde então, temos vindo a perder esse paraíso, palmo a palmo. Acho que em breve terá desaparecido por completo. As trevas estão a descer sobre a terra. Quedou-se em silêncio durante uns momentos. Depois sentou-se, quando os seus pensamentos lhe deram uma nova energia. Pensa só nisto disse ele, ainda nem há cem anos esta terra estava em paz. Os homens construíam grandes casas. Nós não sabemos construir casas como eles. Eu sei que o meu pai fez um belo palácio, mas foi apenas a partir de peças partidas de velhos palácios, peças todas juntas e remendadas com pedras. Nós não sabemos construir como os Romanos. Não sabemos construir nem tão alto nem com tanta beleza. Não sabemos fazer estradas, não sabemos fazer canais, não sabemos fazer aquedutos.
Eu nem sequer sabia o que era um aqueduto, mas fiquei em silêncio enquanto Culhwch ressonava com satisfação ao meu lado.
Os Romanos construíram cidades inteiras continuou Galaad lugares tão vastos, Derfel, que levaria uma manhã inteira a atravessar a cidade de um lado ao outro e todos os teus passos assentariam em pedras em bom estado. E nesses dias podias andar durante semanas e ainda estavas dentro do território de Roma, sujeito à lei de Roma e a ouvir a língua de Roma. Agora, olha para isto. Fez um gesto com a mão indicando a noite.
Só escuridão. E esta escuridão está a espalhar-se, Derfel. As trevas estão a rastejar por toda a Armórica. Benoic vai desaparecer e, depois de Benoic, Broceliande e, depois de Broceliande, a Grã-Bretanha. Não vai haver mais leis nem mais livros nem mais música nem mais justiça, apenas homens vis em redor de fogueiras fumarentas a planearem quem vão matar no dia seguinte.
Não enquanto Artur viver disse eu, teimoso.
Um homem sozinho contra as trevas? perguntou Galaad, céptico.
O teu Cristo não era um homem sozinho contra as trevas? perguntei.
Galaad pensou durante um momento, fitando a fogueira que lhe ensombrava o rosto forte.
Cristo disse finalmente foi a nossa última oportunidade. Ele disse-nos para nos amarmos uns aos outros, para fazermos o bem aos outros, para darmos esmolas aos pobres, comida aos que têm fome, roupa a quem andasse nu. E então os homens mataram-No. Virou-se e olhou-me nos olhos. Acho que Cristo sabia o que estava para vir e que foi por isso que Ele nos prometeu que, se vivêssemos como ele viveu, então um dia estaríamos com Ele no paraíso. Não na terra, Derfel, mas no paraíso. Lá em cima e apontou para as estrelas, porque sabia que a terra estava condenada. Estamos nas últimas. Até os teus Deuses fugiram de nós. Não foi isso que disseste? Que o teu Merlim anda a esquadrinhar terras estranhas à procura de pistas que o levem aos antigos Deuses, mas para que servirão as pistas? A tua religião morreu há muito tempo, quando os Romanos destruíram Ynys Mon e tudo o que sobrou foram fragmentos separados de sabedoria. Os teus Deuses desapareceram
Não disse eu, lembrando-me de Nimue, que sentia a sua presença, se bem que para mim os Deuses sempre tivessem estado distantes e ensombrados. Para mim, Bei era como Merlim, só que mais distante, indescritivelmente enorme e muito mais misterioso. Eu pensava em Bei como alguém que vivia lá longe, ao Norte, enquanto Manawydan devia viver para Oeste onde as águas se agitavam sem parar.
Os antigos Deuses desapareceram insistiu Galaad. Abandonaram-nos, porque nós não somos merecedores.
Artur é merecedor disse eu teimosamente e tu também.
Ele sacudiu a cabeça.
Eu sou um pecador tão desprezível, Derfel, que até tenho medo de pensar nisso.
Ri-me do seu tom abjecto.
Que disparate disse eu.
Eu mato, eu entrego-me à luxúria, eu invejo. Ele estava realmente num estado miserável, mas Galaad, tal como Artur, era um homem que estava sempre a julgar a sua própria alma, encontrando sempre nela só fraquezas, e eu nunca conhecera um homem desses que fosse feliz durante muito tempo.
Só matas os homens que te matariam se não o fizesses defendi-o.
E, que Deus me ajude, gosto de o fazer. Fez o sinal da cruz.
Muito bem disse eu. E o que há de errado na luxúria?
Sobrepõe-se à razão.
Mas tu és razoável referi.
Mas eu cobiço, Derfel, oh, como eu cobiço. Há uma rapariga em Ynys Trebes, uma das harpistas de meu pai... Sacudiu a cabeça desesperadamente.
Mas controlas a tua luxúria disse eu. Por isso, podes orgulhar-te disso.
E orgulho-me. Mas o orgulho é outro pecado. Sacudi a cabeça perante o desespero de discutir com ele.
E a inveja? falei-lhe no último dos três pecados que ele referira. Tens inveja de quem?
De Lancelote.
De Lancelote? Fiquei surpreendido.
Porque ele é o Príncipe Herdeiro e eu não. Porque ele deita a mão ao que quer, quando quer e parece não se arrepender de nada do que faz. Aquela harpista? Ele possuiu-a. Ela gritou, lutou, mas ninguém se atreveu a impedi-lo, pois ele era Lancelote.
Nem sequer tu?
Eu tê-lo-ia morto, mas eu não estava na cidade.
E o teu pai não fez nada para o impedir?
O meu pai estava com os seus livros. Provavelmente pensou que os gritos da rapariga eram uma gaivota a piar no mar ou dois dos seus fili a discutirem por causa de alguma metáfora.
Cuspi para a fogueira.
Lancelote é um verme disse eu.
Não insistiu Galaad ele é apenas Lancelote. Consegue tudo o que quer e passa os dias a maquinar como fazê-lo. Mas também sabe ser encantador, razoável, e pode mesmo vir a ser um grande rei.
Nunca, disse eu com firmeza.
É verdade. Se é poder que ele quer, e eu sei que é, e se o receber, então talvez os seus apetites sejam saciados. Ele precisa que gostem dele.
Mas tem uma maneira muito estranha de o mostrar disse eu, lembrando-me de como Lancelote me tinha insultado à mesa do pai.
Desde o princípio que ele sabia que vós não iríeis gostar dele e, por isso, desafiou-vos. Dessa forma, fazendo de vós um inimigo, consegue explicar a si próprio por que razão não gostais dele. Mas com pessoas que não o ameaçam ele é simpático. Pode vir a ser um grande rei.
Ele é um fraco disse eu com desdém. Galaad sorriu.
Derfel, o Forte. Derfel, o Sem Dúvidas. Deves pensar que somos todos fracos.
Não disse eu. Mas penso que estamos todos cansados e que amanhã temos muitos francos para matar. Por isso, vou dormir.
E, no dia seguinte, matámos mesmo francos e, depois, descansámos num dos fortes no alto de um dos montes de Ban antes de, já com as feridas ligadas e as espadas afiadas, penetrarmos de novo nos bosques. No entanto, de semana para semana, de mês para mês, lutávamos cada vez mais perto de Ynys Trebes. O Rei Ban pediu ao seu vizinho, Budic de Broceliande, que lhe enviasse tropas, mas Budic estava a fortificar a sua própria fronteira e recusou desperdiçar homens para defender uma causa perdida. Ban apelou a Artur e, apesar de Artur mandar um pequeno carregamento de homens, não veio em pessoa. Estava ocupado de mais a combater os Saxões. Recebíamos notícias da Grã-Bretanha, se bem que essas notícias fossem pouco frequentes e muitas vezes vagas. Soubemos no entanto que novas hordas de saxões estavam a tentar colonizar as terras do centro e a pressionar muito as fronteiras de Dumnónia. Gorfyddyd, que era uma grande ameaça quando eu deixara a Grã-Bretanha, andava mais calmo ultimamente graças a uma terrível praga que atingira o seu país. Os viajantes disseram-nos que o próprio Gorfyddyd estava doente e muitos achavam que ele não duraria até ao fim do ano. A mesma doença que atacara Gorfyddyd, matara o prometido de Ceinwyn, um príncipe de Rheged. Eu nem sequer soubera que ela estava prometida de novo e confesso que senti um prazer egoísta por saber que o príncipe morto de Rheged não casaria com a estrela de Powys. De Guinevere, Nimue e Merlim, não soube nada.
O reino de Ban desfez-se. Não houve homens para fazer as colheitas no último ano e, naquele Inverno em que nos amontoávamos numa fortaleza no sul do reino, vivemos de carne de veado, de raízes, bagas e galinholas. Ainda atacávamos de vez em quando o território franco, mas agora éramos como abelhas a tentar matar touros à ferroada, pois os Francos estavam por todo o lado. Os machados deles retiniam pelas matas no Inverno à medida que limpavam a terra para as suas quintas, enquanto as paliçadas recém-construídas com troncos brilhantemente rachados reluziam sob o pálido sol de Inverno.
No início da Primavera batemos em retirada perante um exército de guerreiros francos. Eles apareceram com tambores a rufar e estandartes feitos de chifres de touro em cima de mastros. Vi uma muralha de escudos de mais de duzentos homens e percebi que os nossos cinquenta sobreviventes nunca a poderiam quebrar. Assim, com Culhwch e Galaad ao meu lado, batemos em retirada. Os francos riram-se de nós e perseguiram-nos com uma saraivada das suas leves lanças de arremesso.
O reino de Benoic estava agora despido de habitantes. A maioria tinha ido para o reino de Broceliande, que lhes prometia terras em troca de serviços militares. As antigas povoações romanas estavam desertas e os campos entupidos de mato. Nós, os Dumnonianos, partimos para Norte com as lanças a arrastar pelo chão, para defender a última fortaleza do reino de Ban: a própria Ynys Trebes.
A ilha-cidade estava cheia de fugitivos. Em cada casa dormiam vinte pessoas. As crianças choravam e as famílias brigavam. Barcos de pesca levavam fugitivos quer para oeste, para Broceliande, quer para norte, para a Grã-Bretanha, mas nunca havia barcos suficientes e, quando os exércitos francos apareceram na costa em frente à ilha, Ban ordenou que os barcos que ainda restavam ficassem ancorados no pequeno e tosco porto de Ynys Trebes. Queria-os lá para que pudessem abastecer a guarnição militar quando o cerco começasse, mas os capitães da marinha são uma raça teimosa e, quando a ordem para que ficassem chegou, muitos deles, ignorando-a, içaram as âncoras e zarparam vazios rumo ao norte. Restava apenas uma mão-cheia de barcos.
Lancelote foi nomeado comandante da cidade e as mulheres aplaudiam quando ele descia a estrada em caracol da ilha. Os cidadãos acreditavam que tudo iria ficar bem agora, pois o maior de todos os soldados estava no comando. Ele aceitava a adulação com graciosidade e fazia discursos nos quais prometia construir uma nova ponte para Ynys Trebes com as cabeças dos francos mortos. O príncipe parecia mesmo um herói, pois usava uma armadura de escamas na qual cada placa de metal tinha sido esmaltada de branco, pelo que a armadura rebrilhava ao sol daquele início de Primavera. Lancelote afirmava que a armadura pertencera a Agamémnon, um herói da Antiguidade, mas Galaad garantiu-me que se tratava de um trabalho romano. As botas de Lancelote eram feitas de couro vermelho, a capa era azul-escura e, à ilharga, presa ao cinturão bordado da espada, que fora presente de Artur, usava Tanlladwyr, "a matadora resplandecente", a sua espada. O elmo era preto, ornamentado com as asas abertas de uma águia pesqueira.
Então ele pode fugir a voar comentou amargamente Cavan, o meu severo irlandês.
Lancelote convocou um conselho de guerra que teve lugar na sala beijada pelo vento ao lado da biblioteca de Ban. A maré estava baixa e o mar afastara-se dos bancos de areia da baía onde grupos de francos tentavam descobrir um caminho seguro que os levasse à cidade. Galaad tinha enterrado vergas falsas a atravessar a baía, tentando levar o inimigo a cair nas areias movediças ou levá-lo até bancos de areia firmes que seriam os primeiros a ser atingidos quando a maré voltasse e se arremessasse pela baía. Lancelote, com as costas voltadas para o inimigo, falou-nos da sua estratégia. O seu pai estava sentado de um lado, a mãe do outro, e ambos acenavam com a cabeça perante a sabedoria do filho.
Lancelote anunciou que a defesa de Ynys Trebes era muito simples. Tudo o que tínhamos de fazer era aguentar as muralhas da ilha contra o inimigo. Mais nada. Os Francos tinham poucos barcos, não podiam voar, por isso tinham de caminhar até Ynys Trebes e essa era uma viagem que só podiam fazer com a maré baixa e, mesmo assim, só depois de terem descoberto o caminho seguro que atravessava a planície das marés. Quando chegassem à cidade estariam cansados e nunca seriam capazes de escalar as muralhas de pedra.
Aguentem as muralhas disse Lancelote e estaremos em segurança. Os barcos podem abastecer-nos. Ynys Trebes não pode cair nunca!
Isso mesmo! Isso mesmo! disse o rei Ban, animado pelo optimismo do filho.
Quanta comida temos? perguntou Culhwch resmungando. Lancelote lançou-lhe um olhar compassivo e respondeu:
O mar está cheio de peixe. São aquelas coisinhas que brilham, Lorde Culhwch, com caudas e barbatanas, e que se comem.
Eu não sabia disse Culhwch com o rosto muito sério. Tenho andado muito ocupado a matar francos.
Ouviu-se um murmúrio de risos entre alguns dos soldados convocados para a reunião. Uma dúzia deles tinha andado, como nós, a lutar no continente, mas os restantes eram íntimos do príncipe Lancelote e tinham sido promovidos a capitães para este cerco. Bors, primo de Lancelote, era o capitão de Benoic e comandante da guarda do palácio. Este, pelo menos, tinha visto algumas batalhas e merecido a reputação de guerreiro, se bem que, agora, ali sentado com as pernas esticadas, uniforme romano e o cabelo negro oleado, penteado e acamado como o do seu primo Lancelote, parecesse completamente exausto.
Quantas lanças temos? perguntei.
Lancelote ignorara-me até então. Eu sabia que ele não tinha esquecido o nosso encontro dois anos atrás, mas, mesmo assim, sorriu perante a minha pergunta.
Temos quatrocentos e vinte homens armados, cada um deles com uma lança. Consegues chegar à resposta?
Retribui-lhe o sorriso meloso.
As lanças partem, Senhor, e homens a defender muralhas atiram lanças como dardos. Quando se tiverem atirado quatrocentas e vinte lanças, o que é que atiramos a seguir?
Poetas resmungou Culhwch, por sorte baixo de mais para Ban ouvir.
Há algumas de reserva disse Lancelote com desenvoltura e, além disso, usaremos as lanças que os francos nos atirarem.
Poetas, de certeza disse Culhwch.
Dissestes alguma coisa, Lorde Culhwch?
Arrotei, Senhor. Mas enquanto tenho a vossa preciosa atenção, temos arqueiros?
Alguns.
Muitos?
Dez.
Que os Deuses nos protejam disse Culhwch, deixando-se escorregar pela cadeira abaixo. Ele detestava cadeiras.
Elaine falou a seguir, lembrando-nos que a ilha dava abrigo a mulheres, crianças e aos maiores poetas do mundo.
A segurança dos fili está nas vossas mãos disse-nos ela e sabem o que lhes acontecerá se falharem.
Dei um pontapé a Culhwch para o impedir de fazer algum comentário. Ban levantou-se e apontou para a biblioteca.
Aqui existem sete mil oitocentos e quarenta e três rolos de pergaminho disse solenemente. São os tesouros acumulados do conhecimento humano e, se a cidade cair, a civilização também cairá. Depois, contou-nos uma história antiga de um herói a entrar num labirinto para matar um monstro, arrastando atrás de si um fio de lã com o qual pudesse voltar a encontrar a saída daquela escuridão. A minha biblioteca é esse fio disse, explicando finalmente o sentido da longa história. Se o perderem, meus senhores, ficaremos numa escuridão eterna. Por isso vos peço, vos imploro, lutem! Fez uma pausa e sorriu. Já mandei pedir ajuda. Enviei cartas para Broceliande e para Artur e acho que não está longe o dia em que no nosso horizonte aparecerão velas amigas! E lembrem-se de que Artur fez um juramento em como nos ajudaria.
Artur interveio Culhwch está com as mãos cheias de saxões.
Um juramento é um juramento! disse Ban em tom reprovador.
Galaad perguntou se planeávamos fazer os nossos ataques aos acampamentos francos em terra. Podíamos ir facilmente de barco, disse ele, atracar a este ou oeste das posições deles, mas Lancelote rejeitou a ideia.
Se abandonarmos as muralhas, morremos. É tão simples como isso.
Então não atacamos? perguntou Culhwch descontente.
Se abandonarmos as muralhas repetiu Lancelote morreremos. As vossas ordens são simples: fiquem atrás das muralhas.
Anunciou que os melhores guerreiros de Benoic, uma centena de veteranos da guerra no continente, guardariam o portão principal. A nós, os cinquenta dumnonianos sobreviventes, entregaram-nos as muralhas de oeste, enquanto os soldados recrutados da cidade, apoiados pelos fugitivos do continente, guardariam o resto da ilha. O próprio Lancelote, juntamente com a guarda do palácio, de capas brancas, formariam a reserva que observaria a luta do palácio e desceria sempre que a sua ajuda fosse necessária.
Podiam também chamar os maricas resmungou Culhwch, virando-se para mim.
Outro arroto? perguntou Lancelote.
É do peixe que como, meu Senhor disse Culhwch.
O rei Ban convidou-nos para visitar a sua biblioteca antes de partirmos, querendo talvez impressionar-nos com o valor do que defendíamos. A maioria dos homens que tinham estado no conselho de guerra entraram a arrastar os pés e ficaram de boca aberta a olhar para os rolos de pergaminho guardados nos pequenos compartimentos, mas logo desviaram o olhar para a harpista de seios descobertos que tocava na antecâmara da biblioteca. Galaad e eu ficámos mais tempo no meio dos livros onde o corcunda, o padre Celwin, continuava debruçado sobre a velha mesa onde tentava impedir o gato cinzento de brincar com a pena com que escrevia.
Ainda a estudar o tamanho das asas dos anjos, padre? perguntei-lhe.
Alguém tem de o fazer retorquiu. Depois virou-se e olhou-me com o seu único olho e cara de poucos amigos. Quem és tu?
Derfel, padre, venho de Dumnónia. Conhecemo-nos há dois anos. Admira-me que ainda aqui estejais.
A tua admiração não me interessa, Derfel de Dumnónia. Além disso, eu estive fora durante algum tempo. Fui a Roma. Que lugar imundo. Pensei que os vândalos a tivessem limpado de vez, mas aquele lugar continua cheio de padres e dos seus rapazinhos rechonchudos, pelo que voltei para aqui. As harpistas de Ban são muito mais bonitas do que os catamitos de Roma. Lançou-me um olhar pouco amável. Preocupas-te com a minha segurança, Derfel de Dumnónia?
Não podia responder que não, embora me sentisse tentado a fazê-lo.
A minha missão é proteger vidas disse, num tom bastante pretensioso incluindo a vossa, padre.
Então coloco a minha vida nas tuas mãos, Derfel de Dumnónia disse ele, voltando de novo o seu rosto hediondo para a mesa e empurrando o gato para longe da pena. Coloco a minha vida na tua consciência, Derfel de Dumnónia, e agora volta para as tuas lutas e deixa-me em paz.
Tentei fazer-lhe perguntas sobre Roma, mas ele afastava as minhas perguntas com acenos de mão e, por isso, desci para o armazém junto à muralha oeste, que seria a nossa Casa até ao fim do cerco. Galaad, que agora se considerava um dumnoniano honorário, estava connosco e ele e eu tentámos contar os francos que se estavam a afastar da maré que subia, depois de mais uma tentativa para descobrirem o caminho através das areias. Os bardos, entoando cânticos sobre o cerco de Ynys Trebes, diziam que os inimigos eram mais do que os grãos de areia na baía. Não eram tantos, mas mesmo assim eram bastantes. Todos os grupos guerreiros da Gália Ocidental se tinham coligado para ajudar a capturar Ynys Trebes, a jóia da Armórica que, segundo constava, estava a abarrotar de tesouros do Império Romano em declínio. Galaad calculava que tínhamos pela frente três mil francos, eu achava que eram dois mil, enquanto Lancelote nos assegurava que eram dez mil. Mas, fosse pelas contas de quem fosse, eram em número assustador.
Os primeiros ataques nada mais trouxeram aos Francos senão desastres. Encontraram um caminho pela areia e atacaram o portão principal, mas foram barbaramente repelidos. No dia seguinte atacaram a nossa parte da muralha e receberam o mesmo tratamento, só que desta vez ficaram tempo de mais e uma grande parte da sua força foi dizimada pela maré enchente. Alguns tentaram chegar ao continente e morreram afogados, outros recuaram para a cada vez mais estreita língua de areia junto às nossas muralhas e foram trucidados por um ataque de lanceiros que saíram o portão chefiados por Bleiddig, o chefe militar que me trouxera para Benoic e que era agora o comandante dos veteranos de Benoic. A sortida de Bleiddig pela areia desobedecia directamente à ordem de Lancelote de que devíamos manter-nos dentro das muralhas da ilha, mas os mortos foram tantos que Lancelote fingiu ter ordenado o ataque e, mais tarde, depois da morte de Bleiddig, chegou mesmo a afirmar ter sido ele a comandar o ataque. Os fili fizeram uma canção contando como Lancelote tinha obstruído a baía com os francos mortos, mas na verdade o príncipe ficara no palácio enquanto Bleiddig conduzia o ataque. Durante os dias que se seguiram, os corpos dos guerreiros francos boiaram à volta da ilha, ao sabor da maré, servindo de pasto para as gaivotas.
Os francos começaram então a construir uma passagem apropriada. Cortaram centenas de árvores e colocaram-nas na areia, segurando os troncos com pedras carregadas para a costa por escravos. As ondas na vasta baía de Ynys Trebes eram violentas, chegando por vezes a atingir a altura de metro e meio, e a nova passagem foi dilacerada pelas correntes. Por isso, na maré baixa, os charcos ficavam cheios de toros a boiar, mas os francos traziam mais troncos e mais pedras e tapavam os buracos. Tinham capturado milhares de escravos e não se preocupavam com quantos morriam na construção da nova estrada. A passagem ia aumentando enquanto o nosso abastecimento de comida ia diminuindo. Os poucos barcos que ainda nos sobravam iam à pesca e outros traziam cereais de Broceliande, mas os francos lançavam os seus próprios barcos em nossa perseguição e, depois de dois barcos de pesca terem sido capturados e as tripulações estripadas, os nossos capitães recusavam-se a abandonar a ilha. Os poetas, no cimo do monte, a postos com as suas lanças, viviam dos bons fornecimentos do palácio, mas nós, os guerreiros, arrancávamos lapas das rochas, comíamos mexilhões e navalheiras ou estufávamos as ratazanas que apanhávamos nas ratoeiras do nosso armazém, que ainda estava cheio de peles, sal e barris de pregos. Não passávamos fome. Tínhamos armadilhas feitas de salgueiro, para os peixes, na base das rochas e quase todos os dias lá encontrávamos alguns peixes pequenos, embora durante a maré baixa os francos enviassem grupos de ataque para destruir as armadilhas.
Durante a maré alta os barcos francos remavam em redor da ilha para puxarem as armadilhas para peixes colocadas longe da costa. A baía era pouco profunda, permitindo ao inimigo ver as armadilhas e rebentá-las com as lanças. Um desses barcos encalhou quando regressava ao continente e foi abandonado a um quarto de milha da cidade quando a maré baixou. Culhwch ordenou um ataque e trinta homens dos nossos desceram por redes de pesca presas no topo da muralha. Os doze homens da tripulação do barco fugiram quando nos aproximámos e dentro da embarcação abandonada encontrámos um barril de peixe salgado e dois pães de sêmea que levámos como sinal do nosso triunfo. Quando a maré subiu trouxemos o barco para a cidade e amarrámo-lo em segurança por detrás das muralhas. Lancelote assistiu à nossa desobediência, mas não mandou nenhuma reprimenda, apesar de ter vindo uma mensagem da rainha Elaine exigindo saber que mercadorias tínhamos trazido do barco. Mandámos algum peixe seco e, sem dúvida que o presente foi interpretado como um insulto, pois Lancelote acusou-nos de termos capturado o barco para podermos desertar de Ynys Trebes e ordenou que o entregássemos no pequeno porto da ilha. Em resposta, subi o monte até ao palácio e exigi que ele retirasse a acusação de cobardia com a espada. Gritei-lhe o desafio no pátio, mas o príncipe e os seus poetas ficaram do lado de dentro das portas fechadas. Cuspi na soleira e fui-me embora.
Galaad ia ficando mais contente à medida que o desespero aumentava Uma parte da sua alegria provinha da presença de Leanor, a harpista que me tinha recebido há dois anos, a rapariga que Galaad, tal como me tinha confessado, tanto desejava, a mesma rapariga que Lancelote violara. Ela e Galaad viviam num canto do armazém. Todos nós tínhamos mulheres. Havia algo naquela situação de desespero que adulterava o nosso comportamento normal e, por isso, tentávamos viver o mais que podíamos nessas horas que antecediam as nossas já esperadas mortes. As mulheres mantinham-se de guarda connosco e atiravam pedras sempre que os francos tentavam desmantelar as nossas frágeis armadilhas para os peixes. Há muito que tínhamos ficado sem lanças, excepto as que tínhamos trazido de Benoic e estávamos a guardar para o grande ataque. A nossa mão-cheia de arqueiros não tinha setas excepto as que tinham sido atiradas para a cidade pelos francos e esse número aumentou quando a passagem construída pelo inimigo já estava apenas à distância de um tiro de arco curto do portão principal da cidade. Os francos ergueram uma vedação de madeira ao fundo da passagem e os seus arqueiros punham-se atrás da vedação e atiravam setas aos guerreiros que defendiam o portão. Os francos não tentaram prolongar a passagem mesmo até à cidade, pois a nova estrada servia apenas para lhes proporcionar uma passagem seca até um lugar onde o ataque pudesse começar. Sabíamos que o ataque devia começar em breve.
No princípio do Verão a passagem estava pronta. A Lua estava cheia e trouxe nuvens enormes. A maior parte do tempo a passagem estava submersa, mas na maré baixa a areia estendia-se em volta de Ynys Trebes e os francos, que estavam a aprender pouco a pouco os segredos das areias movediças, alinhavam-se à nossa volta. Os seus tambores eram a nossa música constante e as suas ameaças estavam sempre a chegar-nos aos ouvidos. Houve um dia que foi especial era um dia de festa das tribos e eles, em vez de nos atacarem, acenderam grandes fogueiras na praia e fizeram marchar uma coluna de escravos até ao fim da passagem onde, um a um, os cativos foram decapitados. Os escravos eram bretões, alguns com parentes a assistirem da muralha da cidade, e o barbarismo e tal carnificina incitou alguns dos defensores de Ynys Trebes a precipitar-se para fora do portão numa tentativa vã de socorrerem as mulheres e as crianças condenadas à morte. Os francos estavam à espera do ataque e formaram uma muralha de escudos na areia, mas os homens de Ynys Trebes, enlouquecidos pela raiva e pela fome, atacaram. Bleiddig foi um dos que tomou parte no ataque. Morreu nesse dia, esquartejado por uma lança franca. Nós, os dumnonianos, vimos uma mão-cheia de sobreviventes voltar a correr para a cidade. Não havia nada que pudéssemos fazer senão acrescentar os nossos corpos à pilha. O corpo de Bleiddig foi esfolado, estripado e depois espetado numa cana no fim da passagem para que nós tivéssemos de olhar para ele até à próxima maré alta. No entanto o corpo aguentou-se na estaca mesmo depois de ter estado submerso, pelo que, na manhã seguinte, à luz cínzea da alvorada, as gaivotas dilaceravam o corpo cheio de sal.
Devíamos ter atacado com Bleiddig disse-me Galaad amargamente.
Não.
Era melhor ter morrido como um homem à frente da muralha de escudos do que morrer aqui à fome.
A tua vez de enfrentares a muralha de escudos há-de chegar prometi-lhe. Mas também fiz tudo o que estava ao meu alcance para ajudar o meu povo na hora da derrota. Barricámos as ruelas que levavam ao nosso sector para que, se os Francos entrassem na ilha-cidade, os pudéssemos manter afastados enquanto as nossas mulheres fossem levadas por um carreiro que corria entre os rochedos serpenteando pela espalda do pico granítico até uma pequena fenda na costa norte da ilha onde tínhamos escondido o barco capturado. Esta fenda não era de forma alguma um ancoradouro, pelo que protegemos o nosso barco enchendo-o com pedras, e a maré cobria-o duas vezes por dia. Debaixo de água a frágil carcaça estava a salvo de ser atirada pelo vento e pelas vagas contra os bordos rochosos da fenda. Eu supunha que o ataque inimigo seria desencadeado durante a maré baixa e dois dos nossos homens feridos tinham instruções para tirar as rochas do barco assim que o ataque começasse, para que a embarcação flutuasse na maré-cheia. A ideia de fugir no barco era muito perigosa, mas dava ânimo à nossa gente.
Nenhum barco veio em nosso socorro. Uma manhã viu-se uma grande vela a norte e correram rumores de que era o próprio Artur quem chegava, mas aos poucos a vela foi mudando de rota e desapareceu na neblina estival. Estávamos sozinhos. À noite entoávamos canções e contávamos histórias, e de dia ficávamos a ver os grupos guerreiros a juntarem-se na costa.
Esses grupos guerreiros atacaram numa tarde de Verão, já tarde, quando a maré estava a vazar. Era um elevado número de homens com armaduras de couro, elmos de ferro e os escudos de madeira bem levantados no ar. Atravessaram a passagem, saltaram para o areal e subiram a suave encosta de areia em direcção ao portão da cidade. Os homens da frente traziam um tronco enorme para servir de ariete, com a ponta endurecida pelo fogo e revestida com couro, enquanto os homens que os seguiam transportavam longas escadas. A horda aproximou-se e atirou as escadas contra as muralhas.
Deixem-nos subir rugiu Culhwch para os nossos soldados. Esperou até estarem cinco homens numa escada e, depois, lançou um pedregulho enorme mesmo entre as guardas da escada. Os francos gritaram ao cair pelos degraus abaixo. Uma seta ricocheteou no elmo de Culhwch quando ele atirou outra pedra. Outras setas batiam na muralha ou sibilavam sobre as nossas cabeças enquanto uma chuva de lanças de arremesso chocou inutilmente contra a pedra. Os francos formavam uma massa escura que se agitava aos pés da muralha e para cima da qual atirávamos pedras e imundícies. Cavan conseguiu trazer uma escada vazia para dentro da muralha e nós partimo-la em bocados que atirámos sobre os nossos atacantes. Quatro das nossas mulheres conseguiram trazer para a muralha uma coluna de pedra estriada retirada de uma das entradas da cidade e nós atirámo-la por cima da muralha, ouvindo regozijantes os gritos terríveis dos homens que ela esmagou.
É assim que as trevas chegam! gritou-me Galaad. Estava exultante, a travar a última batalha e a cuspir na cara da morte. Esperou que um franco chegasse ao cimo da escada e, depois, desferiu-lhe um golpe tão forte com a espada que a cabeça do homem, cortada cerce, rolou na areia. O resto do corpo ficou colado à escada, obstruindo a passagem dos francos que vinham atrás e que se tornaram, assim, alvos fáceis para as nossas pedras. Estávamos a deitar abaixo a parede do armazém para termos munições e também estávamos a ganhar a luta, pois cada vez menos Francos se atreviam a tentar subir as escadas. Afastavam-se, pelo contrário, da base da muralha e nós escarnecíamos deles, dizendo-lhes que tinham sido vencidos por mulheres, mas que, se atacassem de novo, íamos acordar os nossos guerreiros para a luta. Se eles perceberam os nossos insultos, não o sei dizer, mas o certo é que hesitaram, com medo da nossa defesa. O ataque principal ainda fervilhava no portão onde o som do aríete era como um tambor gigante a fazer vibrar toda a baía.
O Sol estendia as sombras do promontório do lado oeste da baía pela areia enquanto nuvens cor-de-rosa formavam barras que atravessavam o Céu. As gaivotas voavam para os seus poleiros. Os nossos dois feridos tinham ido despejar as pedras do nosso barco, eu esperava que nenhum franco tivesse chegado tão longe e descoberto a nossa embarcação no entanto, não pensei que fôssemos mesmo precisar dela. A noite estava a cair e a maré a subir, pelo que, em breve, obrigaria os francos a voltar à passagem e aos acampamentos e nós celebraríamos uma vitória notável.
Foi então que ouvimos o clamor de vitória de homens que festejam para lá do portão da cidade e vimos os nossos francos vencidos a correr, afastando-se da nossa muralha para se juntarem ao ataque distante. Nesse momento percebemos que a cidade estava perdida. Mais tarde, falando com alguns sobreviventes, descobrimos que os francos tinham conseguido galgar o cais de pedra do porto e estavam agora a espalhar-se por toda a cidade.
E, então, elevou-se o clamor.
Galaad e eu próprio levámos vinte homens até à nossa barricada mais próxima. Havia mulheres a correr na nossa direcção, mas ao verem-nos entraram em pânico e tentaram subir o pico de granito. Culhwch ficou para guardar a nossa muralha e proteger a nossa retirada para o barco. E então os primeiros rolos de fumo de uma cidade vencida começaram a subir em espiral naquele céu crepuscular.
Corremos atrás dos defensores do portão principal, descemos um lanço de escadas de pedra e vimos os inimigos a treparem como ratazanas para um celeiro. Centenas de lanceiros inimigos transbordavam do cais. Os seus estandartes de chifres de touro avançavam por todo o lado, os tambores rufavam enquanto as mulheres presas nas casas da cidade guinchavam. À nossa esquerda, no lado mais distante do porto onde apenas alguns atacantes tinham conseguido uma posição, apareceu de repente uma vaga de lanceiros com capas brancas. Bors, primo de Lancelote e comandante da guarda do palácio, chefiava um contra-ataque e, por um momento, pensei que ele ia virar a sorte da contenda e cortar a retirada aos invasores, mas, em vez de atacar o cais, Bors levou os seus homens para os degraus junto ao mar onde uma frota de pequenos barcos esperava para os levar a todos para um lugar seguro. Vi o príncipe Lancelote a caminhar à pressa entre os guardas, trazendo a mãe pela mão e chefiando uma ninhada de cortesãos em pânico. Os fili fugiam da cidade condenada à destruição.
Galaad abateu dois homens que tentavam subir os degraus e eu vi a rua atrás de nós cheia de francos de capas negras.
Para trás! gritei, tirando Galaad do caminho.
Deixa-me lutar! Ele tentou afastar-me e encarar os dois homens seguintes que subiam os estreitos degraus de pedra.
Não sejas tolo, procura mas é manter-te vivo!
E, dizendo isto, empurrei-o para trás de mim, lancei um ataque simulado com a minha lança e, depois, levantei-a e enterrei a lâmina no rosto de um franco. Larguei a haste e arranquei a lança do segundo homem que estava enterrada no meu escudo ao mesmo tempo que desembainhava a Hywelbane e, acto contínuo, apliquei um golpe baixo sob o rebordo do escudo que mandou o homem a gritar para os degraus com o sangue a sair aos borbotões por entre as mãos que seguravam a virilha.
Sabes como levar-nos para um lugar seguro atravessando a cidade? gritei para Galaad.
Abandonei a minha lança e arrastei-o para longe dos inimigos que, ensandecidos pela batalha, se precipitavam para os degraus. Havia uma loja de oleiro ao cimo das escadas e, apesar do cerco, os artigos manufacturados pelo artesão estavam ainda em exibição em cima de mesas assentes em cavaletes cobertas com um toldo de lona. Tombei uma mesa cheia de jarros e vasos atravessando-a no caminho dos atacantes e, em seguida, rasguei o toldo e atirei-o violentamente contra as caras deles.
Indica o caminho! gritei.
Havia ruas estreitas e jardins que só os habitantes de Ynys Trebes conheciam e íamos precisar desses caminhos secretos se queríamos escapar.
Os invasores tinham já arrombado o portão principal, afastando-nos de Culhwch e dos seus homens. Galaad levou-nos pelo monte acima, virando primeiro à esquerda e entrando num pequeno túnel que corria por baixo de um templo, atravessando a seguir um jardim e correndo por fim para a parede de uma cisterna para a água das chuvas. Abaixo de nós a cidade contorcia-se com aquele horror. Os francos vitoriosos deitaram portas abaixo para vingarem os mortos caídos no areal. As crianças gritavam e eram silenciadas pelas espadas. Vi um guerreiro franco, um homem enorme com chifres no elmo, abater à machadada quatro defensores da cidade que tinham ficado encurralados.
Via-se mais fumo a sair das casas. A cidade podia ser construída em pedra, mas havia muita mobília, pez e telhados de ripas para alimentar os fogos assassinos. Ao largo, onde a maré na enchente redemoinhava nos bancos de areia, vi o elmo cintilante e alado de Lancelote num dos três barcos que escapavam, enquanto acima de mim, o gracioso palácio, todo ele em tons róseos do Sol pôr, esperava pelos seus últimos momentos. A brisa do entardecer, arrebatando o fumo cinzento da cidade, ia formando com ele uma cortina branca e ondulante que pairava ensombrando as janelas do palácio.
Por aqui! chamou Galaad, apontando para um caminho estreito. É seguir o caminho até ao nosso barco! Os nossos homens correram para salvar a vida. Anda, Derfel! chamou-me ele.
Mas eu não me mexi. Estava parado a olhar o monte íngreme.
Anda, Derfel! insistiu Galaad.
Mas eu estava a ouvir uma voz na minha cabeça. Era a voz de um velho: uma voz seca, cínica e pouco amável e o som dessa voz não me deixava mexer.
Anda, vamos lá, Derfel! gritou Galaad.
"Coloco a minha vida nas tuas mãos" dissera o velho e, de repente, ele falou de novo dentro da minha cabeça. "Coloco a minha vida na tua consciência, Derfel de Dumnónia."
Como é que eu chego ao palácio? perguntei a Galaad.
Ao palácio?
Como? gritei furioso.
Por aqui disse ele por aqui! Subimos.
Os bardos cantam o amor, celebram as carnificinas, exaltam os reis e lisonjeiam as rainhas, mas, se eu fosse poeta, escreveria em louvor da amizade.
Tenho tido sorte com os meus amigos. Artur foi um deles, mas de todos os meus amigos nunca houve nenhum como Galaad. Alturas houve em que nos compreendíamos um ao outro sem precisarmos de palavras e outras em que as palavras brotavam sem parar durante horas. Partilhávamos tudo menos mulheres. Nem me lembro de quantas vezes ficámos ombro no ombro numa muralha de escudos ou partilhámos o nosso último pedaço de comida. As pessoas julgavam-nos irmãos e nós próprios nos víamos dessa maneira.
E naquele desalentado fim de tarde, enquanto a cidade ardia a fogo lento por baixo de nós, Galaad compreendeu que eu não podia ser levado para o barco que nos esperava. Ele sabia que eu estava sob o poder de alguma coisa imperiosa, alguma mensagem dos Deuses, que me fazia subir desesperadamente em direcção ao palácio sereno que coroava Ynys Trebes. À nossa volta o horror subia pelo monte acima, mas nós mantínhamo-nos à frente dele, a correr desesperados por cima do telhado de uma igreja, a saltar para uma ruela onde abríamos caminho por entre uma multidão de fugitivos que acreditavam que a igreja lhes serviria de santuário, depois a subir por um lanço de degraus de pedra, chegando assim à rua principal que circundava Ynys Trebes. Havia francos a correr na nossa direcção, a competir para serem os primeiros a entrar no palácio de Ban, mas nós levávamos-lhes a dianteira juntamente com uma mão-cheia de pessoas dignas de dó que tinham escapado à carnificina na parte de baixo da cidade e que procuravam agora um refúgio sem esperança na residência real no cume do monte.
Os guardas tinham desaparecido do pátio. As portas do palácio estavam escancaradas e lá dentro, onde as mulheres se aninhavam e as crianças choravam, a linda mobília esperava pelos subjugadores. As cortinas agitavam-se ao vento.
Mergulhei nos elegantes salões, atravessei a correr a câmara dos espelhos, passando pela harpa abandonada de Leanor e entrando na grande sala onde Ban me recebera pela primeira vez. O rei ainda lá estava, ainda com a sua toga e ainda sentado à sua mesa de trabalho com uma pena na mão.
Tarde de mais disse ele, quando entrei de rompante na sala de espada desembainhada. Artur falhou-me.
Ouviram-se gritos nos corredores do palácio. A panorâmica da janela em arco aparecia esbatida pelo fumo.
Vinde connosco, meu pai! disse Galaad.
Tenho trabalho para fazer disse Ban num tom lamentoso. Mergulhou a pena no tinteiro e começou a escrever. Não vês que estou ocupado?
Passei pela porta que levava à biblioteca, atravessei a antecâmara vazia, empurrei a porta da biblioteca, abrindo-a de par em par, e vi o padre corcunda de pé junto a uma das prateleiras de rolos de pergaminhos. O chão de madeira polido estava coberto de manuscritos.
A vossa vida é minha gritei furioso, ressentindo-me de que um velho tão horrível me tivesse obrigado àquilo, quando havia tantas vidas para salvar na cidade. Por isso vinde comigo! Já! O padre ignorou-me. Tirava freneticamente os rolos das prateleiras, rasgando as fitas e os selos e lendo as primeiras linhas antes de os atirar para o chão e se apressar a agarrar noutro rolo de pergaminho. Vinde! ordenei com rispidez.
Espera! insistiu Celwin, puxando mais um rolo, pondo-o depois de lado e abrindo outro. Ainda não!
Ouviu-se um barulho de coisas partidas no palácio. Soou uma gargalhada que foi abafada pelos gritos. Galaad estava entre portas, porta do lado de fora da biblioteca, implorando ao pai que viesse connosco, mas Ban limitava-se a acenar com a mão para o filho como se as palavras dele fossem um incómodo. Depois a porta abriu-se com um estrondo e três guerreiros francos cobertos de suor entraram de roldão. Galaad correu para os enfrentar, mas não teve tempo para salvar a vida do pai e Ban nem sequer tentou defender-se. O franco que vinha à frente deu-lhe um violento golpe com a espada e eu acho que o rei de Benoic já tinha morrido de um ataque de coração antes mesmo da lâmina lhe ter tocado. O franco tentou arrancar a cabeça do rei e esse homem morreu na lança de Galaad enquanto eu dava uma estocada no segundo homem com a Hywelbane e atravessava no chão o seu corpo ferido para obstruir a passagem do terceiro. O hálito do franco moribundo tresandava a cerveja como o hálito dos Saxões. Apareceu fumo na porta. Galaad estava agora ao meu lado, a desferir cutiladas com a espada para matar o terceiro homem, mas mais francos corriam já pelo corredor. Libertei a minha espada e voltei à antecâmara.
Vinde, velho tolo! gritei por cima do ombro para o padre obstinado.
Velho, sim, Derfel, mas tolo? Nunca.
O padre riu-se e alguma coisa naquele riso amargo me fez virar e então vi, como num sonho, que a corcunda desaparecia à medida que o padre esticava o seu longo corpo atingindo a sua altura completa. Afinal não era nada horrível, pensei eu, mas admirável, majestoso e tão cheio de sabedoria que, apesar de eu estar num lugar de morte que tresandava a sangue e ecoava com os gritos dos moribundos, me senti mais seguro do que alguma vez me sentira em toda a minha vida. Ele continuava a rir-se para mim, satisfeito por me ter enganado durante tanto tempo.
Merlim! disse eu, e confesso que me vieram lágrimas aos olhos.
Dá-me alguns minutos disse ele. Aguenta-os aí.
Ele continuava a arrancar os rolos das prateleiras, a rasgar-lhes o selo e a atirá-los para o chão depois de os olhar apressadamente. Tinha tirado a venda do olho, que fora apenas uma parte do seu disfarce.
Aguenta-os aí disse ele outra vez, mudando para uma nova prateleira de rolos de pergaminho ainda por examinar. Ouvi dizer que és bom nas matanças. Por isso sê muito bom agora.
Galaad colocou a harpa e o banco da harpista na entrada externa e, depois, ambos defendemos a passagem com lanças, espadas e escudos.
Sabias que ele estava aqui? perguntei a Galaad.
Quem? Galaad enterrou a sua lança no escudo redondo de um franco e puxou-a de novo bruscamente.
Merlim.
Ele está aqui? Galaad estava espantado. É claro que eu não sabia.
Um franco aos gritos de cabelo encaracolado e cheio de sangue na barba carregou com a lança na minha direcção. Agarrei-a mesmo abaixo da cabeça e usei-a para o puxar para a minha espada. Outra lança foi atirada na minha direcção, passou por mim e foi enterrar a sua cabeça de aço na padieira atrás das minhas costas. Um homem emaranhou os pés nas cordas cacófonas da harpa e caiu para a frente sendo pontapeado no rosto por Galaad. Eu dei uma machadada com o rebordo do meu escudo na parte de trás do pescoço do homem, desviando-me em seguida do golpe de uma espada. O palácio ressoava com a gritaria e estava cheio de um fumo acre, mas os homens que nos atacavam começavam a perder o interesse em qualquer saque que pudessem descobrir na biblioteca, preferindo recolhas mais fáceis noutros lugares do edifício no cume do monte.
Merlim está aqui? perguntou-me Galaad incrédulo.
Vê por ti mesmo.
Galaad virou-se para olhar para a figura alta que procurava tão desesperadamente alguma coisa no meio da biblioteca de Ban condenada à destruição
Aquele é Merlim?
É.
Como soubeste que ele estava aqui?
Eu não sabia disse eu. Anda cá, meu filho da puta!
Esta imprecação era dirigida a um enorme franco com uma capa de couro que trazia um machado de guerra com duas cabeças e queria mostrar que era um herói. Ele entoava o seu hino de guerra quando nos atacou e estava ainda a cantar quando morreu. O machado enterrou-se no soalho aos pés de Galaad, quando ele puxou a lança, arrancando-a do peito do homem.
Descobri! Descobri! gritou de repente Merlim atrás de nós. Súms Italicus, claro! Ele nunca escreveu dezoito livros sobre a Segunda Guerra Púnica, mas apenas dezassete. Como pude ser tão estúpido? Tens razão, Derfel, sou mesmo um velho louco! Um louco perigoso! Dezoito livros sobre a Segunda Guerra Túrgida? Até uma criança sabe que sempre houve apenas dezassete! Descobri! Vamos, Derfel, não me faças perder tempo! Não podemos ficar aqui toda a noite!
Corremos de volta à biblioteca em desordem onde encostei a grande mesa de trabalho contra a porta, como barreira temporária, enquanto Galaad rebentava a pontapé as persianas das janelas viradas para Oeste. Um novo enxame de francos entrou pela sala da harpista e Merlim arrancou a cruz de madeira do pescoço e atirou o débil míssil contra os invasores, que se encontravam momentaneamente em dificuldades por causa da pesada mesa. Quando a cruz caiu, uma grande explosão, seguida de labaredas, engoliu a antecâmara. Pensei que o fogo mortal era uma mera coincidência e que a parede da sala tinha sucumbido, provocando uma onda de fogo no preciso momento em que a cruz tinha caído, mas Merlim disse que aquele era um triunfo seu.
Aquela coisa horrorosa tinha de servir para alguma coisa disse ele, referindo-se à cruz, e depois riu-se dos inimigos, aos gritos, a morrerem queimados. Assem, seus vermes, assem! Entretanto, enfiava o rolo de pergaminho no peito da sua toga. Já leste Silius Italicus? perguntou-me.
Nunca ouvi falar dele, Senhor respondi, arrastando-o para a janela aberta.
Escreveu epopeia em verso, meu querido Derfel, epopeia em verso. Merlim resistiu à minha tentativa em pânico de o arrastar e colocou-me uma mão no ombro. Deixa-me dar-te um conselho. Falava com um ar muito sério. Afasta-te da epopeia em verso. Falo por experiência própria.
De repente deu-me vontade de chorar como uma criança. Era um alívio tão grande olhar de novo nos seus olhos sábios e perversos. Era como se tivesse encontrado de novo o meu próprio pai.
Tive tantas saudades, Senhor disse eu abruptamente.
Isto não é hora para pieguices! disse Merlim com brusquidão, e correu para a janela, quando um guerreiro franco, passando por entre as chamas transpôs a porta e escorregou pelo tampo da mesa abaixo gritando que se ia vingar. O cabelo do homem fumegava, quando ele se atirou a nós com a lança em riste. Desviei a ponta com o meu escudo, dei-lhe uma estocada com a espada seguida de um pontapé e de mais outra estocada.
Por aqui! gritou Galaad do jardim por detrás da janela. Dei uma última cutilada no franco moribundo e, então, vi que Merlim voltara à sua mesa de trabalho. Despachai-vos, Senhor! gritei eu.
O gato! explicou Merlim. Não posso abandonar o gato! Não sejas absurdo.
Pelo amor dos Deuses, Senhor! vociferei, mas Merlim estava de gatas debaixo da mesa, tentando agarrar o assustado gato cinzento que aconchegou nos braços. E só então avançou para o peitoril e passou para um jardim de relva protegido por pequenas sebes de loureiro. O Sol pontificava esplêndido a Oeste, colorindo o Céu de um vermelho vibrante e espraiando-se em agitados reflexos ardentes pelas águas da baía. Saltámos a sebe e, guiados por Galaad, descemos um lanço de escadas que levava a uma cabana de jardineiro, metendo depois por um caminho perigoso que contornava uma saliência do pico de granito. De um lado do caminho havia um penhasco de pedra e do outro havia o mar, mas Galaad conhecia estes caminhos desde a infância e guiou-nos com segurança pelo trilho abaixo em direcção à água escura.
Havia corpos a boiar no mar. O nosso barco, repleto ao ponto de ser preciso um milagre para o fazer flutuar, já estava a um quarto de milha da ilha com os remos a laborar incansavelmente para arrastar os passageiros para um lugar seguro. Coloquei as mãos em concha em redor da boca e gritei.
Culhwch! A minha voz ecoou nas rochas e foi enfraquecendo pelo mar fora, perdendo-se na imensidão de gritos e clamores que marcavam o fim de Ynys Trebes.
Deixa-os ir disse Merlim, calmamente. Depois, procurou por baixo da túnica imunda que usara como padre Celwin. Segura-o. Atirou-me o gato para os braços e procurou às apalpadelas, de novo por debaixo da túnica, até encontrar um pequeno assobio de prata que soprou uma única vez, dele saindo uma nota suave.
Quase imediatamente um pequeno bote preto apareceu vindo da costa norte de Ynys Trebes. Um único homem, envergando uma túnica, impelia o pequeno barco com um comprido remo preso a um tolete na popa. O bote tinha uma proa alta e aguçada e só tinha espaço no seu bojo para três passageiros. Lá dentro estava uma arca de madeira marcada com o selo de Merlim Cernunnos, o Deus Chifrudo.
Tratei de preparar isto disse Merlim alegremente quando se tornou evidente que o pobre Ban não tinha uma ideia certa de quantos rolos possuía. Pensei que iria precisar de mais tempo, e assim foi. É claro que os rolos tinham etiquetas, mas os fili passavam a vida a misturá-los, já para não dizer a tentar melhorá-los, quando não roubavam os versos e afirmavam que eram seus. Um patife passou seis meses a plagiar Catulo e depois arquivou-o em Platão. Boa-noite, meu querido Caddwg! disse Merlim, cumprimentando o barqueiro com bom humor. Está tudo bem?
Tirando que o mundo está a morrer, sim resmungou Caddwg.
Mas tens a arca. Merlim fez um gesto na direcção da caixa selada. Nada mais importa.
Aquele elegante bote fora outrora um barco de palácio usado para transportar passageiros do porto para embarcações maiores ancoradas ao largo da costa e Merlim tinha dado instruções para que esperasse o seu chamado. Entrámos e afundámo-nos no convés enquanto o amargo Caddwg impelia a pequena embarcação para o mar nocturno. Uma única lança precipitou-se lá do alto para ser engolida pela água mesmo ao nosso lado, mas, tirando isso, a nossa partida passou despercebida e sem problemas. Merlim tirou-me o gato e sentou-se com ar satisfeito na proa enquanto eu e Galaad olhávamos para trás, para a morte da ilha.
O fumo espalhava-se pela água. O clamor dos condenados era um cântico lúgubre naquele fim de dia. Podíamos ver as formas escuras dos lanceiros francos ainda a atravessar a passagem e a chapinhar na água em direcção à cidade em queda. O sol afundou-se, escurecendo a baía e tornando as chamas que consumiam o palácio ainda mais brilhantes. Uma cortina incendiou-se e flamejou durante um breve, mas fulgurante, momento antes de se desfazer em cinzas suaves. O fogo na biblioteca era feroz: pergaminho após pergaminho irrompia em chamas, transformando aquele recanto do palácio num autêntico inferno. Aquela era a pira funerária do rei Ban, a arder pela noite dentro.
Galaad chorava. Ajoelhado no convés, agarrado à sua lança, via a sua casa transformar-se em pó. Fez o sinal da cruz e rezou em silêncio uma oração que mandava a alma de seu pai para um qualquer Outro Mundo no qual Ban tivesse acreditado. O mar estava misericordiosamente calmo. Estava vermelho e preto, sangue e morte, um espelho perfeito da cidade em chamas onde os nossos inimigos dançavam num triunfo macabro. Ynys Trebes nunca foi reconstruída no nosso tempo: as paredes caíram, as ervas daninhas cresceram, as aves marinhas arranjaram aí os seus poleiros. Os pescadores francos evitavam a ilha onde tantos deles tinham morrido. Já não lhe chamavam Ynys Trebes, mas deram-lhe um novo nome na sua própria e grosseira língua: o Monte da Morte. E dizem os seus marinheiros que à noite, quando a ilha deserta se eleva negra acima do mar que a rodeia, ainda se ouvem os gritos das mulheres e o choro das crianças.
Atracámos numa praia vazia do lado oeste da baía. Abandonámos o barco e carregámos a arca selada de Merlim por entre o tojo e os espinheiros vergados pela ventania até ao alto espinhaço do promontório. A noite caiu cerrada, quando chegámos ao cume. Virei-me, para ver Ynys Trebes incandescente como uma brasa na escuridão, e depois continuei, para levar o meu fardo para casa, para a consciência de Artur. Ynys Trebes estava morta.
Apanhámos um barco para a Grã-Bretanha no mesmo rio onde eu tinha uma vez rezado a Bei e a Manawydan para que me levassem são e salvo para casa. Encontrámos Culhwch no rio, com o barco sobrecarregado encalhado na lama. Leanor estava viva, tal como a maior parte dos nossos homens. Estava ancorado no meio do rio um barco de pesca preparado para fazer a viagem de volta a casa e o seu mestre estava à espera de ganhar um bom dinheiro à custa dos sobreviventes desesperados, mas Culhwch apontou a espada à garganta do homem obrigando-o a levar-nos de graça. O resto das pessoas já tinha fugido dos Francos. Esperámos uma noite, uma noite profusamente iluminada devido às chamas de Ynys Trebes a arder e, de manhã, içámos a âncora e zarpámos rumo ao Norte.
Merlim via a costa perder-se de vista, e eu, mal me atrevendo a acreditar que o velho tinha mesmo voltado para nós, olhava-o fixamente. Era um homem alto e ossudo, talvez o homem mais alto que eu já conhecera, com um longo cabelo branco que crescia para trás da sua linha de tonsura e estava apanhado num rabicho com uma fita preta. Ele usara o cabelo solto e desgrenhado enquanto fingia ser Celwin, mas agora, de novo com o rabicho, parecia-se com o antigo Merlim. A sua pele era cor de madeira velha e polida, os olhos eram verdes e o nariz uma aguçada proa ossuda. Usava a barba e os bigodes entrançados em finos cordões que ele gostava de torcer entre os dedos enquanto pensava. Ninguém sabia que idade tinha, mas decerto nunca conheci ninguém mais velho, excepto talvez o druida Balise, tal como também nunca conheci ninguém que parecesse sempre tão eternamente jovem como Merlim. Tinha os dentes todos e mantinha a agilidade de um jovem, embora gostasse de fingir que era velho, frágil e desamparado. Vestia-se de negro, sempre de negro, nunca de outra cor e empunhava habitualmente um grande bastão preto, se bem que agora, ao fugir de Armórica, lhe faltasse essa divisa da sua função.
Era um homem dominante, não só por causa da sua estatura, reputação e elegância, mas por toda a sua presença. Tal como Artur, tinha a capacidade de dominar uma sala e fazer um salão cheio de pessoas parecer vazio quando saía. Mas, enquanto a presença de Artur era generosa e entusiástica, a de Merlim era sempre perturbadora. Quando olhava para alguém parecia que conseguia ler a parte secreta do coração dessa pessoa e o pior era que ele se divertia com isso. Era malicioso, impaciente, impulsivo e totalmente, absolutamente sábio. Depreciava tudo, difamava toda a gente e eram muito poucas as pessoas que amava completamente. Artur era uma delas, Nimue era outra e penso que eu seria uma terceira, embora nunca tivesse podido ter a certeza absoluta, pois Merlim era um homem que adorava o fingimento e os disfarces.
Estás a olhar para mim, Derfel! Acusou-me da popa do barco, ainda de costas para mim.
Espero nunca mais vos perder de vista, Senhor.
Que tolo piegas que tu és, Derfel. E, virando-se para mim, dirigiu-me um olhar mal-humorado. Devia ter-te atirado de novo para o poço da morte de Tanaburs. Leva essa arca para a minha cabina.
Merlim requisitara a cabina do capitão onde eu agora acondicionava a arca de madeira. Merlim curvou-se para passar pela porta baixa e atarantou-se com as almofadas do capitão até arranjar um assento confortável, posto o que se afundou nelas com um suspiro de felicidade. O gato cinzento saltou-lhe para o colo enquanto ele desenrolava os primeiros centímetros do grosso rolo de pergaminho pelo qual tinha arriscado a vida em cima de uma tosca mesa que brilhava com escamas de peixe.
O que é isso? perguntei.
É o único verdadeiro tesouro que Ban possuía disse Merlim. O resto era, na sua grande maioria, lixo grego e romano. Algumas coisas boas, penso eu, mas não muitas.
Então, isso é o quê? perguntei de novo.
Um rolo de pergaminho, querido Derfel disse ele, como se eu fosse maluco por ter perguntado. Olhou pela clarabóia aberta, vendo a vela a enfunar com uma brisa ainda acre do fumo de Ynys Trebes. Um bom vento! disse ele alegre. Talvez cheguemos a casa ao cair da noite. Senti saudades da Grã-Bretanha. Olhou de novo para o pergaminho. E Nimue? Como está a minha adorada menina? perguntou, enquanto passava uma vista de olhos pelas primeiras linhas.
Da última vez que a vi disse eu amargamente tinha sido violada e tinha perdido um olho.
Essas coisas acontecem disse Merlim descuidadamente.
A sua insensibilidade deixou-me sem fôlego. Esperei um pouco e, mais uma vez, perguntei-lhe o que é que o pergaminho tinha de tão importante. Ele suspirou.
És uma criatura inoportuna, Derfel. Bem, vou fazer-te a vontade. Largou o manuscrito, que se enrolou sozinho, inclinou-se para trás e recostou-se nas almofadas puídas e húmidas do mestre da embarcação. Sabes, é claro, quem foi Caleddin?
Não, meu Senhor admiti.
Ele levantou os braços em sinal de desespero.
Não tens vergonha da tua ignorância, Derfel. Caleddin era um druida dos Ordovicii. Uma tribo miserável e eu devia sabê-lo. Uma das minhas mulheres era ordoviciiana e uma dessas criaturas era suficiente para uma dúzia de vidas. Nunca mais. Estremeceu com a lembrança e, depois, olhou-me com atenção. Gundleus violou Nimue, certo?
Sim. Perguntei-me como é que ele soubera.
Que tolo! Que tolo! Parecia mais divertido do que zangado com o destino da sua amante. Como ele vai sofrer. Nimue está zangada?
Furiosa.
Muito bem. A fúria é muito útil e a minha querida Nimue tem um talento especial para isso. Uma das coisas que não suporto nos cristãos é a admiração que têm pela resignação. Imagine-se, elevar a resignação a uma virtude! Resignação! Consegues imaginar um céu só cheio de resignados? Que ideia assustadora. A comida ficaria gelada enquanto todos passavam os pratos para o vizinho do lado. A resignação não é uma coisa boa, Derfel. A fúria e o egoísmo são as qualidades que fazem andar o mundo. Riu-se. Agora, sobre Caleddin: era um druida razoável para um ordoviciiano, nem por sombras tão bom como eu, claro, mas teve os seus dias. A propósito, gostei da tua tentativa de matares Lancelote e foi uma pena não teres terminado o trabalho. Suponho que ele escapou da cidade, não?
Assim que se sentiu ameaçado, claro.
Os marinheiros dizem que os ratos são sempre os primeiros a abandonar o navio em perigo. Pobre Ban. Era um tolo, mas um tolo de bom coração.
Ele sabia quem éreis? perguntei.
Claro que sabia disse Merlim. Teria sido monstruosamente mal-educado da minha parte ter enganado o meu anfitrião. Mas é claro que ele não disse a mais ninguém, senão eu seria cercado por todos aqueles poetas terríveis a pedirem-me que usasse a minha magia para lhes fazer desaparecer as rugas. Fazes ideia, não fazes Derfel, de como uma pequena magia pode ser enfadonha? Ban sabia quem eu era, tal como Caddwg, o meu servo. O pobre Hywel está morto, não está?
Se já sabeis disse eu porque perguntais?
Estou só a conversar! protestou ele. Conversar é uma das artes civilizadas, Derfel. Não podemos caminhar pesada e ruidosamente pela vida com uma espada e um escudo e sempre a resmungar. Alguns de nós, poucos aliás, tentam preservar as dignidades. Deu uma fungadela.
Então como sabeis que Hywel está morto? perguntei.
Porque Bedwin me escreveu a contar, claro, seu idiota.
Bedwin tem-vos escrito todos estes anos? perguntei surpreendido.
Claro! Ele precisava dos meus conselhos. O que pensas que fiz? Que desapareci?
Desaparecestes, sim disse eu, ressentido.
Que disparate. Tu simplesmente não sabias onde procurar. Não que Bedwin tivesse alguma vez seguido os meus conselhos. Que barafunda que o homem fez! Mordred vivo! Pura loucura. A criança devia ter sido estrangulada com o seu próprio cordão umbilical, mas suponho que nunca convenceriam Uther a fazer uma coisa dessas. Pobre Uther. Acreditava que as virtudes passavam pelos testículos de um homem. Que disparate! Uma criança é como um bezerro, se nasce estropiado dá-se-lhe uma pancada rápida na cabeça e cobre-se a vaca de novo. Foi por isso que os Deuses fizeram com que gerar filhos desse tanto prazer, porque muitos desses seres inferiores têm de ser substituídos. É claro que não há lá muito prazer neste processo para as mulheres, mas alguém tem de sofrer e graças aos Deuses são elas e não nós.
Vós alguma vez tivestes filhos? perguntei, imaginando por que razão nunca me tinha lembrado de o perguntar antes.
Claro que tive! Que pergunta mais bizarra. E olhou para mim como se duvidasse da minha sanidade. Nunca gostei muito de nenhum deles e, felizmente, a maioria morreu e o resto eu reneguei. Um, penso eu, até é cristão. Encolheu os ombros. Prefiro os filhos dos outros, são muito mais agradecidos. Ora de que é que estávamos a falar? Ah, sim, de Caleddin. Um homem terrível. E sacudiu a cabeça, melancólico.
Ele escreveu o pergaminho? perguntei.
Não sejas absurdo, Derfel disse brusca e impacientemente. Os druidas não podem escrever nada, é contra as regras. Tu sabes isso! Quando se escreve alguma coisa, essa coisa fica assente. Transforma-se num dogma. E depois as pessoas podem discuti-lo, tornam-se autoritárias, fazem referências aos textos, produzem novos manuscritos, discutem mais e não tarda nada estão a matar-se uns aos outros. Se nunca escreveres nada, então ninguém sabe exactamente o que disseste e, por isso, podes sempre mudar de opinião. Será que tenho de te explicar tudo?
Podeis explicar-me o que está escrito no pergaminho disse eu com humildade.
Era precisamente o que eu estava a fazer! Mas tu não paras de me interromper e de mudar de assunto! Que comportamento mais bizarro! E pensar que cresceste no Tor. Eu devia ter-te batido mais com o chicote. Isso devia ensinar-te boas maneiras. Soube que Gwlyddyn está a reconstruir a minha casa. É verdade?
É.
Um homem bom e honesto, esse Gwlyddyn. Provavelmente eu próprio vou ter de a reconstruir depois, mas ele pelo menos tenta.
O pergaminho relembrei-o.
Eu sei! Eu sei! Caleddin era um druida, já te disse isso. E era também ordoviciiano. Umas bestas hediondas, esses Ordoviciianos. Seja como for, lembra-te do Ano Negro e pergunta-te como é que Suetónio sabia tudo o que sabia sobre a nossa religião. Suponho que saibas quem era Suetónio, não?
A pergunta era um insulto, pois todos os Bretões conhecem e insultam o nome de Suetónio Paulino, o Governador nomeado pelo Imperador Nero e que, no Ano Negro, cerca de quatrocentos anos antes da nossa era, praticamente destruiu a nossa antiga religião. Todos os Bretões cresceram a ouvir a terrível história de como as duas legiões de Suetónio destruíram o santuário druida de Ynys Mon. Ynys Mon, tal como Ynys Trebes, era uma ilha, o maior santuário dos nossos Deuses, mas os Romanos conseguiram atravessar os estreitos e esquartejaram à espadeirada todos os druidas, os bardos e as sacerdotisas. Destruíram as matas sagradas e profanaram o lago sagrado. Tudo o que nos deixaram foi pouco mais do que uma sombra da antiga religião e os nossos druidas, como Tanaburs e lorweth, eram apenas débeis ecos de uma esplendorosa glória.
Sei muito bem quem foi Suetónio respondi.
Houve outro Suetónio disse ele, divertido. Um escritor romano, e um bom escritor. Ban possuía a sua De Viris Illustribus que trata principalmente da vida dos poetas. Suetónio era particularmente escandaloso quanto a Virgílio. É extraordinário o tipo de coisas que os poetas levam para a cama; a maioria levam-se uns aos outros, é claro. É uma pena que aquela obra tenha ardido, pois eu nunca vi outra. O pergaminho de Ban devia ser a última cópia e agora não passa de cinzas. Virgílio ficará aliviado. Seja como for, a questão é que Suetónio Paulino queria saber tudo o que havia a saber sobre a nossa religião antes de atacar Ynys Mon. Ele queria ter a certeza de que não o transformaríamos num sapo ou num poeta. Por isso, encontrou um traidor, o druida Caleddin. E Caleddin ditou tudo o que sabia a um escriba romano que copiou tudo no que parece ser um latim execrável. Mas, execrável ou não, é o único registo da nossa antiga religião: todos os seus segredos, os rituais, os significados e todo o seu poder. E é isso que aqui está, rapaz. Fez um gesto, apontando para o pergaminho e deixando-o cair da mesa.
Eu apanhei o manuscrito, que tinha rolado para debaixo do beliche do mestre.
E eu que pensei disse eu, amargamente que éreis um cristão a tentar descobrir o tamanho das asas dos anjos.
Não sejas sarcástico, Derfel! Todos sabem que o tamanho da asa deve variar conforme a altura e o peso do anjo. Desenrolou o pergaminho de novo e olhou atentamente para o seu conteúdo. Procurei este tesouro por todo o lado. Até em Roma. E durante todo este tempo aquele velho louco do Ban tinha-o catalogado como o décimo oitavo volume de Silius Italicus. Isto prova que ele nunca o leu todo, apesar de afirmar que era maravilhoso. Por outro lado, acho que nunca ninguém o leu todo. E como poderia? Encolheu os ombros.
Não admira que vos tenha levado mais de cinco anos a achá-lo disse eu, pensando na quantidade de pessoas que sentiram a falta dele durante aquele tempo.
Que disparate. Eu só soube da existência do pergaminho há um ano. Antes disso andava à procura de outras coisas: o Chifre de Bran Galed, a Faca de Laufrodedd, o Tabuleiro de Gwenddolau, o Anel de Eluned. Os Tesouros da Grã-Bretanha, Derfel... Fez uma pausa, olhando para a arca selada e, depois, olhou de novo para mim. Os Tesouros são as chaves do poder, Derfel, mas sem os segredos deste pergaminho são outros tantos objectos mortos.
Havia uma reverência fora do vulgar na sua voz, e não admira, pois os Treze Tesouros eram os mais sagrados e misteriosos talismãs da Grã-Bretanha. Uma noite, em Benoic, quando tremíamos no escuro e tentávamos ouvir os francos escondidos entre as árvores, Galaad tinha desdenhado da existência dos Tesouros, duvidando que eles tivessem sobrevivido aos longos anos de domínio romano, mas Merlim sempre insistira que os antigos druidas, enfrentando a derrota, os tinham escondido tão bem que nenhum romano os encontraria. O trabalho da sua vida era coleccionar os treze talismãs; a sua ambição era o pavoroso momento final em que eles seriam utilizados. Tudo levava a crer que essa utilização estava descrita no pergaminho perdido de Caleddin.
Então o que é que o pergaminho nos diz? perguntei avidamente.
Como vou saber? Não me dás tempo para o ler. Por que não vais fazer alguma coisa de útil. Vai consertar um remo ou seja lá o que for que os marinheiros fazem quando não se estão a afogar. Esperou até eu chegar à porta. Oh, só mais uma coisa acrescentou de modo absorto.
Virei-me e vi que estava a olhar de novo para as linhas abertas do pesado pergaminho. Senhor? incitei-o.
Só queria agradecer-te, Derfel disse ele de modo descuidado. Por isso, obrigado. Sempre tive esperanças de que algum dia me serias útil.
Pensei em Ynys Trebes a arder e em Ban morto.
Falhei em relação a Artur disse eu amargamente.
Toda a gente falha em relação a Artur. Ele espera de mais das pessoas. E agora vai.
Eu estava convencido de que Lancelote e a mãe, Elaine, navegariam para oeste, para Broceliande, para aí se juntarem à massa de fugitivos empurrados do reino de Ban pelos francos, mas eles, pelo contrário, navegaram para norte, para a Grã-Bretanha. Para Dumnónia.
E, assim que chegaram a Dumnónia, viajaram para Durnovária, tendo chegado à cidade dois dias antes de Merlim, Galaad e eu próprio atracarmos, pelo que não estávamos lá para assistir à sua entrada triunfal, se bem que tivéssemos ouvido como tudo se passou, pois a cidade ressoava com histórias admiráveis sobre os fugitivos.
O grupo real de Benoic tinha viajado em três barcos velozes, tendo todos eles sido preparados antes da queda de Ynys Trebes, trazendo os porões carregados com todo o ouro e prata que os francos tinham esperado encontrar no palácio de Ban. Na altura em que o grupo da rainha Elaine chegou a Durnovária o tesouro tinha sido escondido e os fugitivos vinham todos a pé, alguns até mesmo descalços, andrajosos e cobertos de pó, com o cabelo desgrenhado e coberto de salitre e com sangue a manchar-lhes não só a roupa mas também as armas amassadas que seguravam nas mãos nervosas. Elaine, rainha de Benoic, e Lancelote, agora rei de um Reino Perdido, subiram a rua principal da cidade para mendigar abrigo como indigentes no palácio de Guinevere. Atrás deles vinha uma variada mistura de guardas, poetas e cortesãos que, exclamou pesarosamente Elaine, eram os únicos sobreviventes do massacre.
Se pelo menos Artur tivesse cumprido a sua palavra lamentou-se ela a Guinevere se, pelo menos, tivesse feito metade do que prometeu!
Mãe! Mãe! clamou Lancelote, agarrando-se a ela.
Tudo o que quero é morrer, meu querido declarou Elaine, como quase aconteceu contigo na luta.
Guinevere, claro, mostrou-se esplendidamente à altura das circunstâncias. Arranjaram-se roupas, prepararam-se banhos, preparou-se comida, derramou-se vinho, curaram-se as feridas, ouviram-se histórias, ofereceram-se tesouros e convocou-se Artur.
As histórias eram maravilhosas. Corriam toda a cidade e, na altura em que chegámos a Durnovária, essas histórias já se tinham espalhado por toda a Dumnónia e voavam já para além fronteiras para serem recontadas em inúmeros salões de festas britânicos e irlandeses. Era uma magnífica história de heróis: como Lancelote e Bors tinham defendido o Portão do Tritão e como tinham atapetado a areia com francos mortos e saciado as gaivotas com a sua carne putrefacta. Os francos, diziam as histórias, gritavam por misericórdia, temendo que a brilhante Tanlladwyr aparecesse de novo na mão de Lancelote, mas é então que outros defensores, longe da vista de Lancelote, os deixaram entrar. O inimigo estava dentro da cidade e se, antes a luta tinha sido terrível, agora tornara-se pavorosa. Inimigo atrás de inimigo ia tombando à medida que rua após rua era defendida. No entanto nem todos os heróis da antiguidade juntos poderiam ter resistido àquela investida dos guerreiros com elmos de ferro que chegavam em número avassalador vindos do mar circundante, como se fossem demónios libertados dos pesadelos de Manawydan. Os heróis ultrapassados em número recuavam deixando as estradas estranguladas com inimigos mortos; mais inimigos chegavam e mais recuavam os heróis, acabando por recuar para o próprio palácio onde Ban, o bom rei Ban, se debruçava do seu terraço à procura dos barcos de Artur no horizonte.
Eles virão! insistia Ban. Pois Artur prometeu.
O rei, dizia a história, não deixaria o terraço, pois se Artur chegasse e ele ali não estivesse, o que diriam as pessoas? Insistira em ficar para receber Artur, mas primeiro beijou a mulher e abraçou o seu herdeiro e, depois, desejou que bons ventos os levassem à Grã-Bretanha antes de se virar para procurar a salvação que não chegou.
Era uma história magnífica e, no dia seguinte, quando parecia que mais nenhum barco chegaria da distante Armórica, a história mudou subtilmente. Agora já tinham sido os homens de Dumnónia, as forças chefiadas por Culhwch e Derfel, que tinham permitido a entrada do inimigo em Ynys Trebes.
Eles lutaram assegurou Lancelote a Guinevere, mas não conseguiram aguentar-se.
Artur, que estivera em campanha contra os Saxões de Cerdic, cavalgou rapidamente para Durnovária para dar as boas-vindas aos seus convidados. Chegou algumas horas antes do nosso deplorável grupo se arrastar despercebido pela rua que vinha do mar e passar pelas grandes muralhas de Mai Dun cobertas de erva. Um dos guardas do portão do lado sul da cidade reconheceu-me e deixou-nos entrar.
Chegaste mesmo a tempo disse ele.
A tempo de quê? perguntei.
Artur está cá. Eles vão contar a história de Ynys Trebes.
Ai vão? Agora? Lancei um olhar pela cidade na direcção do palácio, alcandorado no monte do lado oeste. Gostaria de assistir disse eu, conduzindo os meus companheiros à cidade.
Apressei-me a atravessar as ruas do centro, curioso por ver a capela que Sansum construíra para Mordred, mas, para grande surpresa minha, não havia nenhuma capela nem nenhum templo naquele lugar, apenas um espaço maninho onde cresciam tasneiras.
Nimue disse eu, admirado.
O quê? perguntou-me Merlim, que trazia a cabeça coberta com o capuz para não ser reconhecido.
Um homenzinho que se acha muito importante disse eu ia construir uma igreja aqui e Guinevere mandou chamar Nimue para o impedir.
Então Guinevere não é totalmente insensata, pois não? perguntou Merlim.
E eu alguma vez disse que era?
Não, querido Derfel, não disseste. Podemos continuar? Virámos para o monte em direcção ao palácio. Começava a escurecer
e os escravos do palácio estavam a colocar tochas em redor do pátio onde, sem querer saber do mal que causava às rosas de Guinevere e aos canais de rega, uma multidão se juntara para ver Lancelote e Artur. Ninguém nos reconheceu quando passámos pelo portão. Merlim trazia o capuz enfiado enquanto Galaad e eu usávamos as peças do elmo com cauda de lobo que protegiam o rosto. Nós três, Culhwch e mais uma dúzia de homens ficámos entalados no meio da multidão que enchia a arcada.
E, aí, ao cair da noite, ouvimos a história da queda de Ynys Trebes.
Lancelote, Guinevere, Elaine, Artur, Bors e Bedwin estavam no lado oeste do pátio onde o pavimento era ligeiramente elevado em relação aos outros três lados, formando um estrado natural; uma impressão realçada pelas tochas brilhantes fixas na parede abaixo do terraço que tinha escadas que levavam ao pátio. Procurei Nimue, mas não a vi, como também não vi o jovem bispo Sansum. O bispo Bedwin disse uma oração e os cristãos que se encontravam entre a multidão murmuraram a sua resposta, fizeram o sinal da cruz e, depois, calaram-se para ouvir mais uma vez a terrível história da queda de Ynys Trebes. Bors contou a história. Estava no cimo das escadas e contou a luta terrível que Benoic teve de travar, e a multidão que o ouvia sobressaltava-se quando o horror atingia o auge e aplaudia quando ele descrevia algum aspecto em particular do heroísmo de Lancelote. Uma vez, dominado pela emoção, Bors limitou-se a fazer um gesto na direcção de Lancelote, que tentou acalmar os vivas e os aplausos levantando uma mão envolvida numa espessa camada de ligaduras, como se o aplauso da multidão fosse simplesmente estrondoso de mais para o suportar. Elaine, vestida de negro, chorava ao lado do filho. Bors não insistiu no insucesso de Artur em reforçar a guarnição militar condenada, preferindo explicar que, apesar de Lancelote saber que Artur estava a lutar na Grã-Bretanha, o rei Ban se tinha agarrado às suas esperanças irrealistas. Artur, também ferido, sacudiu a cabeça e parecia à beira das lágrimas, especialmente quando Bors contou a história comovente do momento em que o rei Ban se despediu da mulher e do filho. Também eu estava quase a chorar, não por causa das mentiras que ouvia, mas pela alegria genuína que sentia ao ver de novo Artur. Ele não tinha mudado. O rosto ossudo continuava forte e os seus olhos ainda estavam cheios de alegria.
Bedwin perguntou o que acontecera aos homens de Dumnónia e Bors, com aparente relutância, contou a história das nossas sentidas mortes. A multidão lamentou-se, quando soube que tínhamos sido nós, os homens de Dumnónia, quem tinha soçobrado na defesa da muralha da cidade. Bors levantou uma mão enluvada e disse:
Eles lutaram bem! Mas a multidão não estava conformada. Merlim parecia alheado dos disparates de Bors. Em vez de lhe prestar atenção, tinha estado a falar em voz baixa com um homem atrás da multidão, mas agora arrastava-se para a frente, tocando-me no cotovelo.
Preciso de ir mijar, meu rapaz disse com a voz do padre Celwin. É a bexiga dum velho. Toma conta desses tolos que eu já volto.
Os vossos homens lutaram bem! gritou Bors para a multidão. E apesar de terem sido vencidos, morreram como homens!
E agora, como fantasmas, eis que voltam do Outro Mundo gritei eu, batendo com o escudo contra uma coluna, fazendo até saltar um bocado de cal desfeito em pó. Avancei para um lugar iluminado pela luz de uma tocha. Mentes, Bors! gritei.
Culhwch avançou e colocou-se a meu lado.
Eu também digo que mentes resmungou.
E eu digo o mesmo. Era Galaad. Desembainhei a Hywelbane.
O raspar do aço na garganta de madeira da bainha fez a multidão recuar deixando livre uma passagem sobre as rosas pisadas que conduzia ao terraço. Nós os três, cansados da batalha, cobertos de pó, com os elmos e as armas, avançámos. Seguíamos em passo certo, vagaroso, e nem Bors nem Lancelote se atreveram a abrir a boca, quando viram as caudas de lobo penduradas no nosso elmo. Parei no meio do jardim e bati com a ponta da Hywelbane num canteiro de rosas.
A minha espada diz que mentes gritei. Derfel, filho de uma escrava, diz que Lancelote Ban, rei de Benoic, mente!
Culhwch Galeid diz o mesmo! E Culhwch batia com a sua lâmina amassada ao lado da minha.
E Galaad Ban, príncipe de Benoic, também. Galaad juntou a sua espada às nossas.
Nenhum franco passou pela nossa muralha disse eu, tirando o elmo para que Lancelote pudesse ver a minha cara. Nenhum franco se atreveu a escalar a nossa muralha pois havia muitos mortos aos pés dela.
E eu, meu irmão disse Galaad, tirando também o elmo é que estava com o nosso pai no fim, não tu.
E vós, Lancelote gritei eu não tínheis nenhuma ligadura quando fugistes de Ynys Trebes. O que aconteceu? Picastes acaso o dedo em alguma farpa da borda do navio?
Levantou-se uma grande algazarra. Alguns dos guardas de Bors estavam ao lado do pátio e, desembainhando as espadas, começaram a insultar-nos, mas Cavan e o resto dos nossos homens entraram pelo portão aberto com as lanças em riste ameaçando um massacre.
Nenhum de vocês, seus filhos da puta, lutou na cidade! gritou Cavan Então, lutem agora!
Lanval, comandante da guarda de Guinevere, gritou, ordenando aos seus arqueiros que se alinhassem no terraço. Elaine estava lívida, Lancelote e Bors estavam ao lado dela e ambos pareciam estar a tremer. O bispo Bedwin gritava, mas foi Artur quem restaurou a ordem. Desembainhou a Excalibur e bateu com ela no escudo. Lancelote e Bors tinham recuado para o fundo do terraço, mas Artur fez um gesto com a mão para que eles viessem para a frente. Depois olhou para nós, os três guerreiros. A multidão ficou em silêncio e os arqueiros prepararam as flechas.
Numa batalha disse Artur com suavidade, congregando a atenção de todo o pátio as coisas são confusas. Os homens raramente vêem tudo o que acontece numa batalha, tal é o barulho, o caos e o horror. Os nossos amigos de Ynys Trebes e, neste momento, colocou o braço da espada sobre os ombros de Lancelote estão enganados, mas o engano deles foi honesto. Sem dúvida, algum pobre homem confuso lhes disse que vocês tinham morrido e eles acreditaram, mas agora, felizmente, reconheceram que estavam enganados. Mas não humilhados! Houve glória suficiente em Ynys Trebes para ser dividida por todos. Estou ou não estou certo?
Artur dirigira a pergunta a Lancelote, mas foi Bors quem respondeu.
Eu estava enganado disse ele e estou feliz por me ter enganado.
Eu também disse Lancelote num tom de voz claro e corajoso.
Aqui têm! exclamou Artur, sorrindo para nós os três. Agora, meus amigos, recolham as vossas armas. Não teremos aqui inimizades! Todos vocês são heróis, todos! Esperou, mas nenhum de nós se moveu. As chamas da tocha ricochetearam nos nossos elmos e tocaram as lâminas das nossas espadas espetadas no chão num desafio à luta para repor a verdade. O sorriso de Artur foi desaparecendo à medida que ele se empertigava mostrando toda a sua altura. Estou a ordenar-vos que recolham as armas. Esta é a minha casa. Tu, Culhwch, e tu, Derfel, têm juramentos para comigo. Pretendem quebrar os vossos juramentos?
Estou a defender a minha honra, Senhor respondeu Culhwch.
A tua honra está ao meu serviço disse Artur com brusquidão, e a dureza na sua voz foi suficiente para me fazer estremecer. Ele era um homem afável, mas era fácil esquecer que ele não se tinha tornado um senhor da guerra apenas por ser afável. Falava muito de paz e reconciliação, mas numa batalha a sua alma libertava-se dessas preocupações e entregava-se às carnificinas. E agora ameaçava-nos com uma carnificina ao colocar a mão nos copos da Excalibur.
Recolham as espadas ordenou-nos. A não ser que queiram que seja eu a recolhê-las.
Não podíamos lutar contra o nosso Senhor e, por isso, obedecemos. Galaad seguiu-nos o exemplo. A rendição deixou-nos taciturnos e frustrados, mas Artur, assim que restaurou a concórdia dentro de sua casa, sorriu de novo. Estendendo os braços em sinal de boas-vindas, desceu rapidamente os degraus e a sua alegria por nos ver era tão óbvia que o meu ressentimento desapareceu no mesmo instante. Abraçou o seu primo Culhwch e, depois, abraçou-me a mim e eu senti no meu rosto as lágrimas do meu Senhor.
Derfel disse ele Derfel Cadarn. És mesmo tu?
E mais ninguém, meu Senhor.
Pareces mais velho disse ele com um sorriso.
Vós não, Senhor. Fez um esgar.
Eu não estive em Ynys Trebes. Quem me dera ter estado. Virou-se para Galaad. Ouvi falar da vossa coragem, Senhor, e eu vos saúdo.
Mas não me insulteis, Senhor, acreditando no meu irmão disse Galaad amargamente.
Não! disse Artur. Não vou permitir disputas. Vamos ser amigos. Eu insisto. E, dando-me o braço, levou-nos aos três pelas escadas do terraço onde decretou que devíamos abraçar Bors e Lancelote. Já temos problemas suficientes mesmo sem este disse ele calmamente, quando eu resisti.
Dei um passo em frente e estendi os braços. Lancelote hesitou, mas depois avançou na minha direcção. O seu cabelo oleado cheirava a violetas.
Puto segredou-me ele ao ouvido depois de me ter beijado a face.
Cobarde segredei-lhe eu também e, depois, afastámo-nos sorrindo. O bispo Bedwin tinha lágrimas nos olhos quando me abraçou.
Meu querido Derfel!
Tenho notícias ainda melhores para vós disse-lhe eu suavemente. Merlim está aqui.
Merlim? Bedwin olhou-me perplexo, não se atrevendo a acreditar na boa nova. Merlim... aqui? Merlim?
A notícia espalhou-se pela multidão. Merlim estava de volta! O Grande Merlim tinha regressado. Os cristãos fizeram o sinal da cruz, mas até eles reconheciam a importância da notícia. Merlim chegara a Dumnónia e, de repente, os problemas do reino pareciam ter sido reduzidos a metade.
Então onde é que ele está? perguntou Artur.
Saiu disse eu debilmente, apontando para o portão.
Merlim gritou Artur. Merlim!
Mas não houve resposta. Os guardas procuraram-no, mas nenhum o encontrou. Mais tarde as sentinelas do portão do lado ocidental disseram que um velho padre corcunda, com uma venda no olho, um gato cinzento e uma tosse infecta tinha deixado a cidade, mas não tinham visto nenhum sábio de barba branca.
Passaste por uma batalha terrível, Derfel disse-me Artur, quando estávamos no salão de festas do palácio onde foi servida uma refeição de carne de porco, pão e hidromel. Os homens têm sonhos estranhos quando passam por privações.
Não, meu Senhor insisti. Merlim estava aqui. Perguntai ao príncipe Galaad.
Vou perguntar disse ele é claro que vou.
Virou-se para olhar para a mesa de honra, onde Guinevere estava inclinada para a frente, apoiada sobre um cotovelo para melhor ouvir Lancelote.
Tu sofreste muito disse ele.
Mas falhei em relação a vós, Senhor confessei e peço perdão por isso.
Não, Derfel, não! Eu é que falhei em relação a Ban. Mas que mais podia eu fazer? São tantos os inimigos. Quedou-se em silêncio e, depois, sorriu quando a gargalhada de Guinevere ressoou pelo salão. Estou contente por ver que ela, pelo menos, está feliz disse, começando em seguida a falar com Culhwch que, sozinho, devorava um leitão.
Lunete estava na corte nessa noite. Tinha o cabelo entrançado e enrolado num aro ornamentado com flores. Usava colares, pregadores e braceletes de ouro, e o seu vestido de linho tingido de vermelho estava cingido com um cinto com uma fivela de prata. Sorriu-me, sacudiu o pó da minha manga e depois torceu o nariz por causa do cheiro da minha roupa.
As cicatrizes ficam-te bem, Derfel disse ela, tocando-me ao de leve no rosto. Mas corres demasiados riscos.
Sou um guerreiro.
Não é a esse tipo de riscos que me refiro, mas sim a inventares histórias sobre Merlim. Deixaste-me envergonhada! E apresentares-te como o filho de uma escrava! Nunca pensaste como isso me faria sentir? Eu sei que já não estamos juntos, mas as pessoas sabem que já estivemos. Como achas que me sinto quando dizes que nasceste de uma escrava. Devias pensar nos outros, Derfel, devias mesmo. Reparei que ela já não usava o nosso anel do amor, mas eu também já não esperava vê-lo, pois há muito que ela encontrara outros homens que tinham possibilidades de ser mais generosos do que eu alguma vez havia podido. Acho que Ynys Trebes te deixou um pouco amalucado continuou ela. Senão porque irias desafiar Lancelote para um combate? Eu sei que és bom com uma espada, Derfel, mas trata-se de Lancelote, não de um guerreiro qualquer. Ela virou-se, olhando para onde o rei estava sentado ao lado de Guinevere. Não o achas maravilhoso? perguntou-me.
Incomparavelmente disse eu, amargo.
E ouvi dizer que é solteiro continuou Lunete, provocante. Inclinei-me, aproximando-me do ouvido dela.
Ele prefere rapazes murmurei. Ela bateu-me no braço.
Tolo. Qualquer um vê que não. Vês a forma como ele olha para Guinevere? Foi a vez de Lunete colar a boca ao meu ouvido. Não digas a ninguém murmurou com uma voz rouca mas ela está grávida.
Que bom disse eu.
Não é nada bom. Ela não está feliz. Não quer ficar gorda, percebes? E não a culpo. Eu detestei estar grávida. Ah, ali está alguém com quem quero falar. Gosto de novos rostos na corte. Oh, só mais uma coisa, Derfel. E sorriu docemente. Toma um bom banho, meu querido. Depois atravessou a sala abeirando-se de um dos poetas da rainha Elaine.
Fora o velho, e que venha o novo? O bispo Bedwin apareceu ao meu lado.
Estou tão velho que até me admira que Lunete ainda se lembre de mim respondi friamente.
Bedwin sorriu e levou-me para o pátio que agora estava vazio.
Merlim estava contigo disse ele, não como uma pergunta, mas como uma afirmação.
Estava, Senhor. E contei-lhe como Merlim tinha dito que deixava o palácio apenas por um momento.
Bedwin sacudiu a cabeça.
Ele gosta destes jogos disse, desesperadamente. Conta-me mais.
Disse-lhe tudo o que podia. Passeávamos para cima e para baixo no terraço superior, por entre o fumo das tochas colocadas nas paredes. Falei-lhe do padre Celwin e da biblioteca de Ban, contei-lhe a verdadeira história do cerco e a verdade sobre Lancelote, e terminei descrevendo o pergaminho de Caleddin que Merlim salvara da cidade em queda.
Ele diz que esse pergaminho contém toda a Sabedoria da Grã-Bretanha disse eu a Bedwin.
Peço a Deus que sim, e que Deus me perdoe disse Bedwin. Alguém tem de nos ajudar.
As coisas estão assim tão más?
Bedwin encolheu os ombros. Parecia velho e cansado. Agora tinha o cabelo e a barba muito ralos e o rosto mais fatigado do que eu me lembrava.
Penso que podiam estar piores admitiu por fim. Mas, infelizmente, nunca melhoram. Na verdade, as coisas não estão muito diferentes do que quando te foste embora, excepto que Aelle está mais forte, tão forte que até se autodenomina de Bretwalda. E Bedwin encolheu os ombros perante tão bárbara pretensão. Bretwalda era um título saxónico que significava Governador da Grã-Bretanha. Ele capturou todo o território entre Durocobrivis e Corinium disse Bedwin e provavelmente teria capturado essas duas fortalezas se não tivéssemos comprado a paz com o último ouro que nos restava. Depois há Cerdic no Sul que está a mostrar ser ainda mais vil do que Aelle.
E Aelle não ataca Powys? perguntei.
Gorfyddyd paga-lhe em ouro tal como nós fizemos.
Pensei que Gorfyddyd estivesse doente.
A praga passou como passam todas as pragas. Ele recuperou e, agora, chefia os homens de Elmet juntamente com as forças de Powys. Está a sair-se melhor do que pensávamos disse Bedwin tristemente talvez por estar a ser impelido pelo ódio. Já não bebe como bebia e jura vingar o braço com a cabeça de Artur. Mas o pior de tudo, Derfel, é que Gorfyddyd está a fazer o que Artur esperava fazer: unir as tribos. Infelizmente, porém, está a uni-las contra nós e contra os Saxões. Ele paga aos Silurianos de Gundleus e aos Blackshields irlandeses para atacarem as nossas costas e suborna o rei Mark para ajudar Cadwy, e eu atrevo-me mesmo a dizer que está agora a juntar dinheiro para pagar a Aelle, para que ele quebre as tréguas que tem connosco. Gorfyddyd sobe e nós caímos. Em Powys, agora, já chamam a Gorfyddyd o Rei Supremo. E ele tem Cuneglas como herdeiro enquanto nós temos o pobre Mordred, um aleijado. Gorfyddyd está a formar um exército, nós temos apenas grupos de guerra. E quando as colheitas deste ano estiverem terminadas, Derfel, Gorfyddyd virá então para Sul com os homens de Elmet e Powys. Dizem que será o maior exército que a Grã-Bretanha já viu e não me admira que haja baixou a voz quem diga que devíamos selar a paz aceitando as suas condições.
E quais são?
Só há uma condição. A morte de Artur. Gorfyddyd nunca perdoará a Artur a desfeita que fez a Ceinwyn. E quem pode culpá-lo? Bedwin encolheu os ombros e deu alguns passos em silêncio. O verdadeiro perigo continuou é se Gorfyddyd consegue o dinheiro para trazer Aelle de novo para a guerra. Nós não podemos pagar mais aos Saxões. Já não temos nada. O erário real está vazio. Quem pagará impostos a um regime em queda? E não podemos dispensar lanceiros para irem receber os impostos.
Há ali muito ouro disse eu indicando com a cabeça o salão onde soavam alto os sons do festim. Lunete trazia bastante em cima dela acrescentei irritado.
Não se espera que as damas da princesa Guinevere contribuam para a guerra com as suas jóias disse Bedwin amargamente. Mesmo que assim fosse, duvido que houvesse o suficiente para subornar Aelle outra vez. E, se ele nos atacar no Outono, Derfel, então esses homens que querem a vida de Artur não vão murmurar a sua exigência, vão gritá-la do alto das muralhas. É claro que Artur podia simplesmente partir. Podia ir para Broceliande, penso eu. Gorfyddyd tomaria então o jovem Mordred aos seus cuidados e nós seríamos apenas um país a pagar tributos e a ser governado por Powys.
Caminhei em silêncio. Não fazia ideia de que as coisas estivessem assim tão desesperadas.
Bedwin sorriu tristemente.
Por isso, meu jovem amigo, parece-me que saltaste do pote a ferver para a fogueira. Não te preocupes, Derfel, que, muito em breve, vai haver muito trabalho para a tua espada.
Eu queria tempo para visitar Ynys Wydryn disse eu.
Para encontrares Merlim de novo?
Para encontrar Nimue disse eu. Ele parou.
Não soubeste?
Um arrepio gelado trespassou-me o coração.
Não soube de nada. Pensei que ela estava aqui em Durnovária.
Ela esteve disse Bedwin. A princesa Guinevere foi buscá-la. Fiquei surpreendido por ela vir, mas veio. Deves saber, Derfel, que Guinevere e o bispo Sansum... lembras-te dele? Como poderias esquecer?... ele e ela estão sempre em desacordo. Nimue era a arma de Guinevere. Só Deus sabe o que ela pensava que Nimue podia fazer, mas Sansum não esperou para ver. Pregou contra Nimue, dizendo que ela era uma bruxa. Temo que alguns dos meus companheiros cristãos não sejam muito amáveis e Sansum pregou que ela devia ser apedrejada até à morte.
Não! protestei.
Não, não! Ele levantou uma mão para me acalmar. Ela ripostou, trazendo pagãos das aldeias para a cidade. Eles saquearam a nova capela de Sansum, houve um motim e morreram algumas pessoas, embora nem ela nem Sansum tivessem sido feridos. Os guardas do rei entraram em pânico, julgando que se tratava de um ataque a Mordred. É claro que não era, mas isso não os impediu de usarem as lanças. Então Nimue foi presa por Nabur, o magistrado responsável pelo rei, que a considerou culpada por provocar a revolta. Sendo cristão, é claro que não seria de esperar outra coisa. O bispo Sansum exigia que ela fosse morta, a princesa Guinevere exigia que a libertassem e, no meio destas duas exigências, Nimue apodrecia nas celas de Nabur. Bedwin fez uma pausa e eu pude ver no seu rosto que o pior ainda estava para vir. Ela enlouqueceu, Derfel continuou, por fim, o bispo. Era como engaiolar um falcão, percebes, e ela revoltou-se contra as grades. Começou a gritar como uma louca. Ninguém a conseguia controlar.
Eu sabia o que estava para vir e sacudi a cabeça.
Não disse eu.
A ilha dos Mortos. Bedwin dava-me assim a terrível notícia. Que mais podiam fazer?
Não! protestei de novo, percebendo que Nimue estava na ilha dos Mortos, perdida entre os loucos e eu não suportava que ela tivesse esse destino. Ela já tem a sua Terceira Chaga disse eu calmamente.
O quê? Bedwin pôs uma mão em concha no ouvido para ouvir melhor.
Nada disse eu. Ela está viva?
Quem pode saber? Nenhuma pessoa viva lá vai ou, se vai, não consegue voltar.
Mas então é para lá que Merlim deve ter ido! gritei aliviado. Sem dúvida Merlim deve ter sabido da notícia através do homem com quem estivera a falar em voz baixa ao fundo do pátio e Merlim podia fazer o que nenhum outro homem ou mulher se atrevia a fazer. A ilha dos Mortos não abrigava terrores para Merlim. Que mais o poderia ter feito desaparecer tão precipitadamente? Dentro de um ou dois dias, pensei eu, ele regressaria a Durnovária com Nimue salva e recuperada. Tinha de ser isso.
Rezo a Deus para que assim seja disse Bedwyn pelo bem dela.
O que aconteceu a Sansum? perguntei por vingança.
Ele não foi oficialmente castigado, mas Guinevere persuadiu Artur a tirar-lhe a capelania, depois o velhote que administrava o santuário do Espinheiro Sagrado em Ynys Wydryn morreu e eu consegui convencer o nosso jovem bispo a ir para lá. Não ficou muito contente, mas sabia que tinha feito muitos inimigos em Durnovária e, por isso, aceitou. Bedwin estava claramente satisfeito com a queda em desgraça de Sansum. Com certeza perdeu todo o seu poder aqui e não imagino que o recupere. A não ser que seja muito mais astuto do que eu penso. Ele, claro, é um dos que anda para aí a dizer à boca pequena que Artur devia ser sacrificado. Nabur é outro. Há uma facção a favor de Mordred no nosso reino, Derfel, que se interroga por que razão devemos lutar para preservar a vida de Artur.
Passei ao lado do vomitado de um soldado bêbado que tinha saído do salão. O homem gemeu, olhou para mim e, depois, vomitou de novo.
Quem mais poderia governar Dumnónia? perguntei a Bedwin, quando estávamos já seguramente afastados do raio de audição do bêbado.
Ora aí está uma boa pergunta, Derfel. Quem? Gorfyddyd, claro, ou então o seu filho, Cuneglas. Alguns homens falam em segredo no nome de Gereint, mas ele não quer. Nabur até sugeriu que eu devia tomar conta do poder. Não disse nada de específico, só insinuações. Bedwyn soltou um riso irónico. Mas que utilidade teria eu contra os nossos inimigos? Nós precisamos de Artur. Ninguém teria conseguido aguentar este anel de inimigos durante tanto tempo, Derfel, mas as pessoas não percebem isso. Culpam-no pelo caos, mas, se outra pessoa qualquer estivesse no poder, o caos seria ainda maior. Somos um reino sem um rei a sério, pelo que qualquer tratante ambicioso tem os olhos postos no trono de Mordred.
Parei ao lado do busto de bronze que tanto se parecia com Gorfyddyd.
Se pelo menos Artur tivesse casado com Ceinwyn... comecei. Bedwin interrompeu-me.
Se, Derfel, se. Se o pai de Mordred não tivesse morrido ou se Artur tivesse matado Gorfyddyd em vez de só lhe arrancar o braço, tudo seria diferente. A História é feita de "ses". E talvez tenhas razão. Talvez se Artur tivesse casado com Ceinwyn estivéssemos agora em paz e talvez a cabeça de Aelle estivesse espetada na ponta de uma lança em Caer Cadarn, mas durante quanto tempo achas tu, que Gorfyddyd teria suportado o sucesso de Artur? E lembra-te da principal razão pela qual ele concordou com o casamento.
Pela paz? sugeri.
Valha-me Deus, não. Gorfyddyd só permitiu que Ceinwyn fosse prometida a Artur, porque acreditava que o filho dela, seu neto, governaria Dumnónia em vez de Mordred. Eu pensava que isso era mais do que evidente.
Não para mim disse eu, pois em Caer Sws, quando Artur ficara louco de amor, eu era um simples lanceiro da guarda, não um capitão que precisasse de aprofundar os motivos dos reis e dos príncipes.
Precisamos de Artur disse Bedwin, olhando-me nos olhos. E, se Artur precisa de Guinevere, então que assim seja. Encolheu os ombros e continuou a andar. Eu teria preferido Ceinwyn como mulher dele, mas a escolha e o leito conjugal não me cabia a mim fazê-los. Agora, a pobrezita vai casar com Gundleus.
Gundleus! disse eu alto de mais, assustando o soldado maldisposto que gemia sobre o vomitado. Ceinwyn vai casar com Gundleus? perguntei a Bedwyn.
A cerimónia dos esponsais é dentro de duas semanas disse Bedwin calmamente durante o Lughnasa. O Lughnasa era o festival de Verão de Lleullaw, o Deus da Luz, e era dedicado à fertilidade. Assim, qualquer cerimónia de esponsais feita durante essa festa era considerada particularmente auspiciosa. Vão casar no fim do Outono, depois da guerra. Fez uma pausa, consciente de que as suas últimas três palavras sugeriam que Gorfyddyd e Gundleus ganhariam a guerra e que a cerimónia do casamento seria, assim, uma parte das celebrações da vitória. Gorfyddyd jurou até que lhes daria a cabeça de Artur como presente de casamento acrescentou Bedwin com tristeza.
Mas Gundleus já é casado! protestei, perguntando-me por que motivo eu estava tão indignado. Seria por me lembrar da frágil beleza de Ceinwyn? Eu ainda usava o pregador dela por dentro da minha couraça, mas disse a mim mesmo que a minha indignação não era por causa dela, mas simplesmente porque odiava Gundleus.
Ser casado com Ladwys não impediu Gundleus de casar com Norwenna disse Bedwin com desdém. Ele afastará Ladwys, dará três voltas à pedra sagrada e, depois, beijará o cogumelo venenoso mágico ou seja lá o que for que vocês, os pagãos, fazem para se divorciarem hoje em dia. A propósito, ele já não é cristão. Terá um divórcio pagão, casará com Ceinwyn, far-lhe-á um herdeiro e, depois, voltará a correr para a cama de Ladwys. Esta parece ser a maneira de se fazerem as coisas hoje em dia. Fez uma pausa, arrebitando uma orelha na direcção dos sons de gargalhadas que nos chegavam do salão. No entanto continuou, talvez nos anos que estão para vir nos lembremos destes dias como os últimos dias dos bons velhos tempos.
Alguma coisa na sua voz fez o meu espírito afundar-se ainda mais.
Estamos condenados à morte?
Se Aelle mantiver as tréguas, poderemos durar mais um ano, mas só se vencermos Gorfyddyd. E se não? Então rezemos para que Merlim nos tenha trazido uma nova vida. Encolheu os ombros, mas não parecia muito esperançoso.
O bispo Bedwin não era um bom cristão, mas era um homem muito bom. Sansum diz-me agora que a bondade de Bedwin não impediria que a sua alma ardesse no inferno. Mas nesse Verão, acabado de chegar de Benoic, todas as nossas almas me pareciam condenadas à perdição. As colheitas estavam mesmo a começar, mas, assim que tivessem terminado, desencadear-se-ia o terrível ataque de Gorfyddyd.
A Ilha da Morte
Igraine pediu para ver o pregador de Ceinwyn. Segurou-o junto à janela, virando-o e contemplando as espirais douradas. Pude ver a cobiça nos seus olhos.
Tendes muitos que são bem mais bonitos, Senhora disse-lhe eu com suavidade.
Mas nenhum tão cheio de história disse ela, segurando o pregador junto ao peito.
A minha história censurei-a, não a vossa. Ela sorriu.
Mas o que foi que escreveste? Que, se eu fosse tão amável como sabias que eu era, deixaria que ficasses com ele.
Eu escrevi isso?
Porque sabias que isso faria que eu to devolvesse. És um velho matreiro, irmão Derfel. Estendeu-me o pregador, mas antes que eu pudesse pegar nele, fechou os dedos sobre o ouro. Será meu um dia?
E de mais ninguém, adorada Senhora. Prometo. Ela continuou a segurá-lo.
E não vais deixar que o bispo Sansum fique com ele?
Nunca disse eu fervorosamente. Deixou-o cair na minha mão.
Usava-lo mesmo por debaixo da couraça?
Sempre disse eu, escondendo o pregador por debaixo da batina.
Pobre Ynys Trebes.
Igraine estava sentada no lugar habitual, no peitoril da minha janela, de onde podia ver o vale de Dinnewrac até ao rio distante que corria mais caudaloso agora devido às chuvas do início do Verão. Será que estava a imaginar os invasores francos a atravessarem o forte e a subirem as encostas em enxames? O que aconteceu a Leanor? perguntou, surpreedendo-me com a pergunta.
A harpista? Morreu.
Não me digas! Pensei que tinhas dito que escapara de Ynys Trebes?
Acenei com a cabeça, confirmando.
E escapou, mas adoeceu durante o primeiro Inverno na Grã-Bretanha e morreu. Morreu, assim, sem mais nem menos.
E a tua mulher?
A minha...?
Em Ynys Trebes. Disseste que Galaad tinha Leanor, mas que todos vocês tinham mulher. Por isso, quem era a tua? E o que lhe aconteceu?
Não sei.
Oh, Derfel! Ela não pode ter significado assim tão pouco! Suspirei.
Era a filha de um pescador. Chamava-se Pellcyn, só que todos a tratavam por Puss. O marido dela tinha morrido afogado um ano antes de eu a ter conhecido. Tinha uma filha pequenina e, quando Culhwch guiava os nossos sobreviventes para o barco, Puss caiu no carreiro dos penhascos. Levava a filha ao colo e não se podia segurar às rochas. Reinava o caos e todos estavam em pânico e apressados. Não foi culpa de ninguém.
Porém, eu pensava muitas vezes que, se lá estivesse, Pellcyn não teria morrido. Era uma rapariga forte e de olhos brilhantes, com uma gargalhada fácil e uma inesgotável vontade de trabalhar. Uma boa mulher. Mas, se eu tivesse salvado a vida dela, Merlim teria morrido. O destino é inflexível.
Igraine devia ter estado a pensar o mesmo.
Quem me dera ter conhecido Merlim disse ela melancolicamente.
Ele teria gostado de vós disse eu. Sempre gostou de mulheres bonitas.
Mas Lancelote também? perguntou ela rapidamente.
Ah, sim.
Não de rapazes?
Não de rapazes.
Igraine riu-se. Trazia hoje um vestido de linho bordado tingido de azul que condizia com a sua pele clara e os seus cabelos negros. Trazia dois colares de ouro ao pescoço e um emaranhado de pulseiras no pulso fino. Tresandava a fezes, mas eu era suficientemente diplomático para ignorar esse facto, pois percebi que devia estar a usar um pessário feito com as primeiras fezes de um recém-nascido, um antigo remédio para as mulheres estéreis. Pobre Igraine.
Tu odiavas Lancelote disse-me ela de repente, em tom acusatório.
Completamente.
Isso não é justo! Saltou do peitoril da janela e começou a andar para trás e para a frente na pequena sala. As histórias das pessoas não deviam ser contadas pelos seus inimigos. Imagina que Nwylle escrevia a minha.
Quem é Nwylle?
Não conheces disse ela, franzindo as sobrancelhas, e eu calculei que Nwylle seria a amante do marido dela. Mas não é justo insistiu ela. Porque toda a gente sabe que Lancelote era o melhor dos soldados de Artur. Todos sabem!
Eu não.
Mas ele devia ter sido corajoso!
Olhei pela janela, tentando ser justo nos meus pensamentos, tentando encontrar alguma coisa de bom para dizer do meu pior inimigo.
Ele podia ser corajoso disse eu, mas preferiu não o ser. Por vezes lutava, mas normalmente evitava as batalhas. Tinha medo de ficar com o rosto marcado pelas cicatrizes, estais a perceber? Era muito vaidoso com a sua aparência. Coleccionava espelhos romanos. A sala dos espelhos no palácio de Benoic era a sala de Lancelote. Era capaz de se sentar e ficar a admirar-se em todas as paredes.
Eu não acredito que ele fosse tão mau como tu o pintas protestou Igraine.
Pois eu acho que ele era pior retorqui. Não gosto de escrever sobre Lancelote... a sua lembrança surge como uma mancha na minha vida. Acima de tudo continuei era desonesto. Dizia mentiras propositadamente, porque queria esconder a verdade sobre si próprio, mas também, quando queria, sabia fazer as pessoas gostar dele. Sabia apanhar o peixe com os seus encantos, minha querida.
Ela fungou, nada satisfeita com o meu julgamento. Sem dúvida que, quando Dafydd Gruffud traduzir estas palavras, Lancelote sairá burilado tal como ele teria gostado. O ilustre Lancelote! O honesto Lancelote! O belo homem, o bom dançarino, o sempre sorridente, gracioso e elegante Lancelote! Ele era o Rei sem Terra e o Senhor das Mentiras, mas, se Igraine fizer as coisas à sua maneira, ele brilhará pelos anos fora como o modelo ideal dos guerreiros reais
Igraine olhou com atenção para onde Sansum estava a expulsar um grupo de leprosos do portão. O santo atirava-lhes torrões de terra, gritando-lhes que fossem para o inferno e chamando os outros irmãos para o ajudar. O noviço Tudwal, que de dia para dia é mais insolente para os restantes, saltitava ao lado do seu mestre, animando-o. Os guardas de Igraine, recostados indolentemente à porta da cozinha, como de costume, apareceram finalmente e usaram as suas lanças para livrar o mosteiro dos pedintes doentes.
Sansum queria mesmo sacrificar Artur? perguntou Igraine.
Foi o que Bedwin me disse. Igraine lançou-me um olhar malicioso.
Sansum gosta de rapazes, Derfel?
O santo ama toda a gente, minha querida rainha, até mesmo jovens senhoras que fazem perguntas impertinentes.
Ela sorriu respeitosamente, depois, fez uma careta.
Tenho a certeza de que não gosta de mulheres. Por que é que ele não deixa nenhum de vós casar? Os outros monges casam-se, mas aqui não se casa nenhum.
O devoto e amado Sansum expliquei eu acredita que as mulheres nos distraem do nosso dever de adorar a Deus. Tal como vós me distraís do meu trabalho.
Ela riu-se e, de repente, lembrou-se de um recado e pôs-se muito séria.
Há duas palavras que Dafydd não entendeu nas últimas peles, Derfel. Ele quer que as expliques. Catamito?
Dizei-lhe para perguntar a outra pessoa.
Perguntarei a outra pessoa, com certeza disse ela, indignada. E camelo? Ele diz que não é carvão.
Um camelo é um animal mítico, Senhora, com chifres, asas, escamas, uma cauda bifurcada e que lança chamas quando sopra.
Parece Nwylle disse Igraine.
Ah! Os escritores do Evangelho a trabalhar! Os meus dois evangelhistas! Era Sansum, com a mão suja por causa da terra que atirara aos leprosos, que entrava timidamente na sala, lançando ao actual pergaminho um olhar duvidoso antes de torcer o nariz. Mas que cheiro desagradável disse ele.
Fiquei envergonhado.
Os feijões ao pequeno-almoço, Senhor disse eu. Peço desculpa.
Espanta-me que consigais suportar a companhia dele disse Sansum a Igraine. E não deveríeis estar na capela, Senhora? A rezar para terdes um filho? Não é esse o assunto que vos traz cá?
Não é com certeza da vossa conta disse Igraine mordazmente. Se quereis saber, Senhor, estávamos a discutir as parábolas do nosso Salvador. Não fizestes uma vez um sermão sobre o camelo e o rabo de uma agulha?
Sansum resmungou e olhou sobre o meu ombro.
E qual é, meu tolo irmão Derfel, a palavra saxónica para camelo?
Nwylle disse eu.
Igraine soltou uma gargalhada e Sansum olhou-a, irado.
A minha Senhora acha as palavras do nosso abençoado Senhor divertidas?
Estou apenas feliz por estar aqui disse Igraine humildemente, mas gostaria de saber o que é um camelo.
Toda a gente sabe! disse Sansum com ironia. Um camelo é um peixe, um grande peixe! Nada parecido acrescentou manhosamente com o salmão que o vosso marido por vezes se lembra de nos mandar, a nós, os pobres monges.
Vou dizer-lhe para que mande mais juntamente com o próximo fardo de peles para Derfel, disse Igraine. Sei que ele vai mandar algumas em breve, pois este Evangelho saxão é muito importante para o rei.
Ai é? perguntou Sansum, desconfiado.
Muito importante, meu Senhor disse Igraine firmemente.
Ela é uma rapariga esperta, muito esperta e bonita também. O rei Brochvael é louco se mantiver uma amante e a sua rainha, mas os homens sempre foram loucos por mulheres. Ou alguns, pelo menos, e o mais louco de todos, suponho, era Artur. Querido Artur, o meu Senhor, aquele que me dava os presentes, o mais generoso dos homens, sobre quem fala esta história.
Era estranho estar em casa, especialmente porque eu não tinha casa. Possuía alguns colares de ouro e bocados de jóias, mas esses, excepto o pregador de Ceinwyn, vendi-os para que os meus homens, pelo menos, tivessem comida para os primeiros dias de volta à Grã-Bretanha. Tudo o resto que possuía ficara em Ynys Trebes e seria agora parte do tesouro de um franco qualquer. Eu estava pobre, sem casa, sem mais nada para dar aos meus homens, nem sequer uma sala para lhes fazer um festim, mas eles perdoavam-me isso. Eram bons homens e juraram ficar ao meu serviço. Tal como eu, deixaram para trás tudo o que não podiam trazer quando Ynys Trebes caiu. Tal como eu, estavam pobres, mas nenhum se queixava. Cavan limitou-se a dizer que um soldado deve levar as suas posses como leva o seu saque, ou seja, levemente. Issa, um rapaz do campo, que era um extraordinário lanceiro, tentou devolver um estreito colar de ouro que eu lhe tinha dado. Não era justo, dizia ele, que um lanceiro usasse um colar de ouro quando o seu capitão não usava, mas eu não aceitei, por isso Issa deu-o como lembrança à rapariga que trouxera de Benoic e, no dia seguinte, ela fugiu com um padre vagabundo e o seu bando de meretrizes. As aldeias estavam cheias deste tipo de cristãos que viajavam de um lado para o outro, missionários era como eles se chamavam a si próprios, e quase todos tinham um bando de mulheres crentes que supostamente deviam assistir aos rituais cristãos, mas que, corriam rumores, eram provavelmente mais usadas para seduzir os convertidos à nova religião.
Artur deu-me uma casa mesmo no norte de Durnovária: não era só para mim, visto que pertencia a uma herdeira chamada Gyllad, uma órfã, mas Artur fez-me seu protector, uma posição que normalmente acaba com a ruína da criança e o enriquecimento do tutor. Gyllad mal tinha oito anos e eu podia ter casado com ela se quisesse e, depois, dispor dos seus bens, ou então podia ter vendido a sua mão em casamento a um homem que quisesse comprar a noiva e a quinta. Mas, em vez disso, tal como Artur pretendia, eu vivia das rendas de Gyllad e permitia que a criança crescesse em paz. Mesmo assim os parentes dela protestaram com a minha nomeação. Nessa mesma semana em que eu regressara de Ynys Trebes, quando estava há menos de dois dias em casa de Gyllad, um tio dela, um cristão, recorreu da minha tutela a Nabur, o magistrado cristão em Durnovária, dizendo que, antes da sua morte, o pai de Gyllad prometera-lhe a tutela, e eu só consegui manter o presente de Artur colocando os meus lanceiros em redor do tribunal. Estavam com o equipamento de guerra e com as pontas das lanças bem afiadas e o certo é que a sua presença convenceu o tio e os seus apoiantes a não levarem o processo por diante. Os guardas da cidade foram convocados, mas um olhar sobre os meus veteranos convenceu-os de que talvez tivessem alguma coisa de melhor para fazer noutro lugar. Nabur queixou-se de soldados retornados a cometerem actos de banditismo numa cidade tranquila, mas quando os meus oponentes não compareceram no tribunal ele deu-me uma sentença leve. Mais tarde soube que o tio tinha já comprado o veredicto oposto a Nabur e que nunca mais conseguiu recuperar o seu dinheiro. Nomeei administrador de Gyllad um dos meus homens, um tal Llystan que tinha perdido um pé numa batalha nos bosques de Benoic, e ele, tal como a herdeira e os seus bens, prosperaram na vida.
Na semana seguinte, Artur mandou-me chamar. Encontrei-o no salão do palácio onde estava a almoçar com Guinevere. Ele ordenou que me trouxessem um divã e mais comida. O pátio lá fora estava cheio de suplicantes.
Pobre Artur comentou Guinevere uma visita a casa e, de repente, todos se vêm queixar do vizinho ou pedir uma redução na renda. Por que não vão aos magistrados?
Porque não são suficientemente ricos para os subornar disse Artur.
Ou suficientemente poderosos para cercarem o tribunal com homens de elmos de ferro acrescentou Guinevere, sorrindo, para mostrar que não desaprovava a minha acção. Ela nunca a desaprovaria, pois era uma oponente declarada de Nabur, o líder da facção cristã do reino.
Um gesto espontâneo de apoio por parte dos meus homens disse eu com suavidade e Artur riu-se.
Foi uma refeição agradável. Eu raramente estava sozinho com Artur e Guinevere, mas quando estava via sempre como ela o deixava contente. Tinha uma aguçada vivacidade de espírito que ele não tinha, mas que muito apreciava, e ela usava-a com suavidade, como sabia que ele preferia que ela a usasse. Lisonjeava Artur, mas também lhe dava bons conselhos. Artur estava sempre pronto a acreditar no melhor sobre as pessoas e precisava do cepticismo de Guinevere para compensar esse optimismo. Ela não parecia mais velha do que a última vez que eu estivera perto dela, se bem que talvez houvesse uma maior sensatez naqueles olhos verdes de caçadora. Não via nada que me mostrasse que estava grávida: o seu vestido verde-pálido caía direito sobre a barriga onde um cordão guarnecido a ouro caía como um cinto folgado. À volta do pescoço trazia a sua divisa do veado com uma lua em cima, por baixo dos pesados raios de sol do colar saxão que Artur lhe mandara de Durocobrivis. Ela escarnecera do colar, quando eu a presenteara com ele, mas agora usava-o com orgulho.
A conversa durante o almoço foi leve. Artur queria saber por que razão os melros e os tordos paravam de cantar no Verão, mas nenhum de nós sabia a resposta. Tal como também não lhe soubemos dizer para onde os gaivões e as andorinhas iam no Inverno, apesar de Merlim uma vez me ter dito que iam para uma grande gruta nas regiões selvagens do Norte onde dormiam em grandes matas de penas até à Primavera. Guinevere pressionou-me sobre Merlim e jurei-lhe, pela minha vida, que o druida tinha mesmo regressado à Grã-Bretanha.
Ele foi para a ilha dos Mortos disse-lhe eu.
Ele fez o quê? perguntou Artur, aterrado.
Expliquei tudo quanto sabia sobre Nimue e lembrei-me de agradecer a Guinevere os seus esforços para salvar a minha amiga da vingança de Sansum.
Pobre Nimue disse Guinevere. Mas ela é uma criatura feroz, não é? Eu gostava dela, mas acho que ela não gostou de nós. Somos todas muito frívolas! E não consegui fazê-la interessar-se por ísis. Ela disse-me que ísis era uma Deusa estrangeira e, depois, cuspiu como um gato e resmungou por entre dentes uma oração a Manawydan.
Artur não mostrou nenhuma reacção à menção de ísis, o que me levou a pensar que teria perdido os seus medos em relação à estranha Deusa.
Quem me dera ter conhecido melhor Nimue foi tudo o que ele disse.
Haveis de conhecer disse eu quando Merlim a trouxer de volta do meio dos mortos.
Se ele conseguir disse Artur duvidosamente. Nunca ninguém voltou da ilha.
Nimue voltará insisti.
Ela é extraordinária disse Guinevere. E, se há alguém que consiga sobreviver à ilha, é ela.
Com a ajuda de Merlim acrescentei.
Só no fim da refeição é que a nossa conversa se virou para Ynys Trebes e, mesmo nessa altura, Artur foi cuidadoso para não mencionar o nome de Lancelote. Em vez disso lamentou não ter nenhum presente com que me pudesse recompensar pelos meus esforços.
Estar em casa já é recompensa suficiente, meu Senhor e Príncipe disse eu lembrando-me de usar o título que Guinevere preferia.
Posso pelo menos dar-te o título de Lorde disse Artur e assim serás chamado doravante, Lorde Derfel.
Ri-me, não por ser ingrato, mas porque a recompensa de um título de senhor da guerra me parecia notável de mais para os meus predicados. Estava também orgulhoso: um homem recebia o título de lorde por ser um rei, um príncipe, um chefe ou porque a sua espada o tornara famoso. Supersticiosamente toquei nos copos da Hywelbane para que a minha sorte não fosse estragada pelo orgulho.
Guinevere riu-se para mim, não com rancor, mas por estar satisfeita com a minha alegria, e Artur, que o que mais gostava era de ver os outros felizes, ficou contente por nós dois. Ele próprio estava contente nesse dia, mas a alegria de Artur foi sempre mais serena do que a alegria dos outros homens. Até essa altura, desde que ele chegara à Grã-Bretanha, eu nunca o vira bêbado, nunca o vira ser violento e nunca o vira perder o autodomínio excepto num campo de batalha. Tinha uma tranquilidade que alguns homens consideravam desconcertante, pois temiam que ele pudesse ler-lhes a alma, mas eu acho que essa calma vinha do desejo de ser diferente. Queria ser admirado e adorava recompensar a admiração com generosidade.
O clamor dos suplicantes que aguardavam aumentava cada vez mais e Artur suspirou quando pensou no trabalho que o esperava. Pôs de lado o vinho e lançou-me um olhar de desculpas.
Mereces descansar, Lorde Derfel disse ele, lisonjeando-me deliberadamente com o meu novo título, mas, ai de mim, em breve te vou pedir para levares as tuas lanças para Norte.
As minhas lanças são vossas, Senhor disse eu respeitosamente. Desenhou um círculo no tampo da mesa de mármore com o dedo.
Estamos rodeados de inimigos, mas o verdadeiro perigo é Powys. Gorfyddyd está a reunir um exército como a Grã-Bretanha nunca viu. Esse exército virá muito em breve para Sul e temo que o rei Tewdric não tenha estômago para a luta. Preciso pôr o maior número de lanças que puder em Gwent para aguentar a fidelidade de Tewdric. Cei consegue aguentar Cadwy, Melwas terá de fazer o seu melhor contra Cerdic e nós, os restantes, iremos para Gwent.
E Aelle? perguntou Guinevere. Uma pergunta cheia de significado.
Ele está em paz insistiu Artur.
Ele obedece a quem pagar o preço mais elevado disse Guinevere e Gorfyddyd vai subir o preço muito em breve.
Artur encolheu os ombros.
Eu não posso enfrentar Gorfyddyd e Aelle ao mesmo tempo disse calmamente. Seriam necessárias trezentas lanças para aguentar os saxões de Aelle. Não para vencê-los, repara bem, apenas para os aguentarmos. A falta dessas trezentas lanças significará a derrota em Gwent.
O que Gorfyddyd sabe muito bem salientou Guinevere.
Então, meu amor, o que devo fazer? perguntou-lhe Artur. Mas Guinevere não tinha uma resposta melhor do que a de Artur, e a sua resposta foi apenas esperar e rezar para que se mantivesse a frágil paz com Aelle. O rei saxão fora comprado com uma carrada de ouro e mais nenhum tributo podia ser pago, pois não havia mais ouro no reino.
Só nos resta esperar que Gereint o consiga aguentar disse Artur enquanto nós destruímos Gorfyddyd. Afastou o seu divã da mesa e sorriu-me. Descansa até acabar o Lughnasa, Lorde Derfel e, depois, assim que as colheitas estiverem feitas, podes marchar para Norte comigo.
Bateu as palmas para chamar os servos para limparem os restos da refeição e deixar entrar os suplicantes que esperavam. Guinevere chamou-me com a mão enquanto os servos se apressavam a fazer o seu trabalho.
Podemos falar? perguntou ela.
Com todo o prazer, Senhora.
Ela tirou o pesado colar, entregou-o a um escravo e conduziu-me por uma escadaria de pedra acima, que terminava numa porta que dava para um pomar onde dois dos seus grandes galgos esperavam para a cumprimentar. As vespas zumbiam em redor dos frutos caídos e Guinevere ordenou que os escravos limpassem a fruta a apodrecer para que pudéssemos falar sossegados. Deu aos galgos os restos de galinha que tinham sobrado do almoço enquanto uma dúzia de escravos apanhava os frutos moles e pisados para o regaço das suas batinas, fugindo a correr em seguida, já bem picados, deixando-nos sozinhos. Em redor de todo o muro do pomar tinham sido construídas barracas de verga que seriam decoradas com flores para a grande festa do Lughnasa.
Está bonito disse Guinevere, falando do pomar, mas quem me dera estar em Lindinis.
No próximo ano, Senhora disse eu.
Estará em ruínas disse ela mordazmente. Não soubeste? Gundleus atacou Lindinis. Não capturou Caer Cadarn, mas deitou abaixo o meu palácio novo. Isso foi há um ano. Fez um esgar. Espero que Ceiwyn o faça completamente miserável, mas duvido que o faça. Ela é uma coisinha insípida. O sol filtrado pelas folhas iluminava-lhe o cabelo vermelho e lançava-lhe sombras no rosto bem delineado. Às vezes desejava ser um homem disse ela, surpreendendo-me.
Desejáveis?
Sabes como é detestável esperar notícias? perguntou-me cheia de cólera. Dentro de duas ou três semanas vão todos para Norte e, então, a nós só nos resta esperar. Esperar e continuar a esperar. Esperar para saber se Aelle quebra a sua palavra, esperar para saber quão numeroso é realmente o exército de Gorfyddyd. Fez uma pausa. Por que é que Gorfyddyd está à espera? Por que não nos ataca agora?
Os soldados estão a trabalhar nas colheitas disse eu. Tudo pára durante as colheitas. Os homens dele querem estar seguros das suas colheitas antes de virem deitar a mão às nossas.
Podemos impedi-los? perguntou-me abruptamente.
Na guerra, Senhora, nem sempre é uma questão do que podemos fazer, mas sim do que temos de fazer. Nós temos de os suster. Ou morrer, pensei eu de modo sinistro.
Ela caminhou em silêncio durante algum tempo, empurrando os cães excitados para longe dos seus pés.
Sabes o que as pessoas dizem de Artur? perguntou ela, depois de um momento.
Eu assenti, com a cabeça.
Que seria melhor se ele fugisse para Broceliande e entregasse o reino a Gorfyddyd. Dizem que a guerra está perdida.
Olhou para mim, dominando-me por completo com os seus olhos enormes. Naquele momento, tão perto dela, sozinho com ela no jardim aquecido e submerso no seu subtil perfume, compreendi por que razão Artur tinha arriscado a paz de um reino por aquela mulher.
Mas tu lutarás por Artur? perguntou-me ela.
Até ao fim, Senhora disse eu. E por vós acrescentei desajeitadamente.
Ela sorriu.
Obrigada.
Dobrámos uma esquina, caminhando em direcção à pequena nascente que brotava de uma rocha no canto da muralha romana. O fio de água irrigava o pomar e alguém tinha metido fitas votivas em nichos da rocha cheia de musgo. Guinevere levantou a bainha dourada do seu vestido verde-maçã ao passar sobre o regato.
Há no reino uma facção a favor de Mordred disse ela, repetindo o que o bispo Bedwin tinha dito na noite do meu regresso. São cristãos na sua maioria e estão todos a rezar para que Artur seja derrotado. Se ele fosse derrotado, é claro que teriam de rastejar aos pés de Gorfyddyd, mas rastejar, eu já reparei, é uma coisa natural nos cristãos. Se eu fosse homem, Derfel Cadarn, três cabeças rolariam sob a minha espada: as de Sansum, Nabur e Mordred.
Não duvidei das suas palavras.
Mas se Nabur e Sansum são os melhores homens que a facção por Mordred consegue reunir, Senhora disse eu então Artur não precisa de se preocupar com eles.
O rei Melwas também, penso eu disse Guinevere e quem sabe quantos mais? Quase todos os padres errantes espalham a epidemia, perguntando por que razão os homens devem morrer por Artur. Eu cortava-lhes a cabeça, mas os traidores não se revelam, Lorde Derfel. Esperam no escuro e atacam quando não estamos a vê-los. Mas, se Artur derrotar Gorfyddyd, eles cantarão em seu louvor e fingirão que sempre o apoiaram. Ela cuspiu para afastar o mal e, depois, lançou-me um olhar perspicaz. Fala-me do rei Lancelote pediu de repente.
Tive a impressão de que estávamos finalmente a chegar à verdadeira razão daquele passeio por entre macieiras e pereiras.
Não o conheço muito bem disse eu, evasivo.
Ele falou bem de ti ontem à noite.
Falou? perguntei, céptico.
Eu sabia que Lancelote e os seus companheiros ainda estavam a morar em casa de Artur. Na verdade receara até encontrá-lo e ficara aliviado por ele não estar presente no almoço.
Ele disse que eras um grande soldado disse Guinevere.
É bom saber que ele por vezes consegue dizer a verdade respondi amargamente.
Supunha que Lancelote, preparando as velas para um novo vento, tivesse procurado cair nas boas graças de Artur elogiando um homem que sabia ser amigo dele.
Talvez os guerreiros que sofreram uma derrota tão terrível como a queda de Ynys Trebes acabem sempre por brigar disse Guinevere.
Sofrer? disse eu asperamente. Eu vi-o sair de Benoic, Senhora, mas não me lembro de o ver sofrer. E nem me lembro de ver aquela ligadura na mão dele, quando partiu.
Ele não é um cobarde insistiu ela de modo caloroso. Usa bastantes anéis de guerreiro na mão esquerda, Lorde Derfel.
Anéis de guerreiro! disse eu com ironia e, enfiando a mão na bolsa do meu cinto, tirei um punhado deles. Eu agora tinha tantos que já nem me preocupava em fazê-los. Atirei os anéis para a relva do pomar, assustando os galgos que olharam para a sua dona para ganharem coragem. Qualquer pessoa pode encontrar anéis de guerreiro, Senhora.
Guinevere olhou para os anéis caídos e, depois, deu um pontapé num.
Eu gosto do rei Lancelote disse ela, em tom de desafio, avisando-me, deste modo, contra qualquer outro comentário depreciativo. E temos de cuidar dele. Artur acha que falhámos em relação a Benoic e o mínimo que podemos fazer é tratar os seus sobreviventes com dignidade. Quero que sejas simpático com Lancelote, por mim.
Sim, Senhora minha disse eu com resignação.
Temos de lhe arranjar uma mulher rica disse Guinevere. Ele tem de ter homens e terras para comandar. Acho que Dumnónia tem sorte em ele ter vindo para a nossa costa. Precisamos de bons soldados.
É verdade que precisamos, Senhora concordei.
Ela percebeu o sarcasmo na minha voz e fez uma careta, mas, apesar da minha hostilidade, persistiu na verdadeira razão pela qual me convidara para aquele pomar privado e sombreado.
O rei Lancelote disse ela quer ser um dos adoradores de Mitra, e Artur e eu não o queremos contrariar.
Senti um fulgor de raiva ao ver a minha religião ser levada tão pouco a sério.
Mitra, Senhora disse eu friamente é uma religião para os corajosos.
Até tu, Derfel Cadarn, não precisas de mais inimigos replicou Guinevere num tom tão frio como o meu, e percebi nesse momento que ela se tornaria minha inimiga se eu me opusesse aos desejos de Lancelote. E sem dúvida que Guinevere passaria a mesma mensagem a qualquer outro homem que se opusesse à iniciação de Lancelote nos mistérios de Mitra.
Nada será feito até ao Inverno disse eu, fugindo de um compromisso firme.
Mas assegura-te de que será feito disse ela, empurrando a porta do salão. Obrigada, Lorde Derfel.
Obrigado, Senhora disse eu e senti outra onda de fúria a invadir-me enquanto descia as escadas até ao salão.
Dez dias, pensei, apenas dez dias e Lancelote tinha transformado Guinevere numa sua apoiante. Praguejei, jurando que me tornaria num cristão miserável antes de ver Lancelote a festejar numa gruta por debaixo da cabeça ensanguentada de um touro. Eu tinha quebrado três muralhas de escudos saxónicas e enterrado a Hywelbane até aos copos no país dos meus inimigos antes de ter sido eleito para o serviço de Mitra, mas tudo o que Lancelote fizera fora exibir-se e vangloriar-se.
Entrei no salão encontrando Bedwin sentado ao lado de Artur. Estavam a ouvir os suplicantes, mas Bedwin deixou o estrado e levou-me para um lugar sossegado junto à porta exterior do salão.
Soube que agora és um lorde disse ele. Os meus parabéns.
Um lorde sem terras disse eu amargamente, ainda aborrecido com a exigência ultrajante de Guinevere.
As terras seguem-se à vitória disse Bedwin e a vitória segue-se à batalha, e batalhas, Lorde Derfel, terás muitas este ano.
Deteve-se quando a porta do salão se abriu e Lancelote e os seus seguidores entraram de maneira pomposa. Bedwin fez-lhe uma vénia, e eu limitei-me a dirigir-lhe um aceno de cabeça. O rei de Benoic pareceu surpreso ao ver-me, mas nada disse, indo juntar-se a Artur, que ordenou que uma terceira cadeira fosse colocada no estrado.
Agora Lancelote também já é membro do conselho? perguntei a Bedwin, furioso.
Ele é um rei disse Bedwin cheio de paciência. Não podes esperar que fique de pé enquanto nós estamos sentados.
Reparei que o rei de Benoic ainda tinha uma ligadura na mão direita.
Acredito que a ferida do rei signifique que ele não vai poder vir connosco disse eu asperamente.
Quase confessei a Bedwin como Guinevere tinha exigido que elegêssemos Lancelote como membro de Mitra, mas decidi que a notícia podia esperar.
Ele não vai connosco confirmou Bedwin. Vai ficar aqui como comandante da guarnição militar de Durnovária.
Como o quê? perguntei eu, tão alto e num tom tão furioso que Artur se virou na cadeira para ver do que se tratava.
Se os homens do rei Lancelote guardarem Guinevere e Mordred disse Bedwin com aborrecimento os homens de Lanval e de Llywarch ficam livres para lutarem contra Gorfyddyd. Hesitou e, depois, colocou uma mão frágil no meu braço. Há mais uma coisa que preciso de te contar, Lorde Derfel. O seu tom de voz era baixo e brando. Merlim esteve em Ynys Wydryn na semana passada.
Com Nimue? perguntei avidamente. Ele abanou a cabeça.
Ele não foi buscá-la, Derfel. Em vez disso foi para Norte, mas porquê e para onde não sabemos.
A cicatriz na minha mão esquerda latejava.
E Nimue? perguntei, temendo ouvir a resposta.
Ainda está na ilha, se é que ainda está viva. Fez uma pausa e acrescentou: Sinto muito.
Olhei para o salão cheio de gente. Será que Merlim sabia o que se passava com Nimue? Ou teria preferido deixá-la entre os mortos? Ao mesmo tempo que o amava às vezes também pensava que Merlim podia ser o homem mais cruel do mundo. Se ele visitara Ynys Wydryn, então devia ter sabido onde Nimue estava prisioneira. Contudo nada fizera. Deixara-a com os mortos e, de repente, os meus medos gritavam dentro de mim como os gritos das crianças a morrer em Ynys Trebes. Durante alguns gélidos momentos não consegui mexer-me nem falar. Depois olhei para Bedwin.
Galaad levará os meus homens para Norte se eu não regressar disse-lhe eu.
Derfel! Ele agarrou-me no braço. Ninguém regressa da ilha dos Mortos. Ninguém!
E isso importa? perguntei.
Pois se toda a Dumnónia estava perdida, que diferença fazia? E Nimue não estava morta. Sabia-o, porque a cicatriz martelava na minha mão. E se Merlim não se importava com ela, eu importava-me. Eu importava-me mais com Nimue do que com Gorfyddyd ou Aelle ou o miserável Lancelote com as suas ambições de se juntar aos eleitos de Mitra. Eu amava Nimue mesmo que ela nunca me viesse a amar e eu tinha jurado sobre a cicatriz que seria o seu protector.
O que significava que eu tinha de ir onde Merlim não fora. Eu tinha de ir à ilha dos Mortos.
A ilha ficava apenas a cerca de quinze quilómetros a sul de Durnovária, não mais do que uma manhã a caminhar devagar. Mas, pelo que eu sabia da ilha, até podia ficar do lado mais longe da lua.
Eu sabia que não era propriamente uma ilha, mas sim uma península de pedra clara e sólida ao fim de uma longa, mas estreita passagem. Os Romanos tinham levado a pedra toda da ilha, mas nós tínhamos levado a pedra toda dos edifícios deles em vez de a tirarmos da terra e, por isso, as pedreiras fecharam e a ilha dos Mortos foi deixada vazia, transformando-se numa prisão. Foram construídas três muralhas que atravessavam a passagem, foram lá postos guardas de vigia e para a ilha mandavam-se aqueles que queríamos ver punidos. A certa altura começámos a mandar outros também: homens e mulheres que tinham perdido a capacidade mental e que não podiam viver em paz entre nós. Eram os loucos violentos, mandados para um reino dos loucos onde não vivia ninguém que fosse são de espírito e onde as suas almas possessas do demónio não podiam pôr em perigo os vivos. Os druidas afirmavam que a ilha era o domínio de Crom Dubh, o Deus Negro estropiado. Os cristãos diziam que era o plinto do Diabo na terra. Mas ambos concordavam que as mulheres e os homens para lá escorraçados através das muralhas da passagem eram almas perdidas Estavam mortas embora os seus corpos ainda vivessem e, quando os seus corpos morressem, os demónios e os espíritos do mal que as possuíam ficariam presos na ilha e jamais conseguiriam regressar para assombrar os vivos. Havia famílias que traziam os seus loucos para a ilha e, chegados à terceira muralha, libertavam-nos aos horrores desconhecidos que os esperavam no fim da passagem. Depois, de volta ao continente, a família dava uma festa para celebrar a morte do seu ente perdido. Mas nem todos os loucos eram mandados para a ilha. Alguns eram tocados pelos Deuses e, por isso, eram sagrados, e algumas famílias mantinham os seus loucos fechados, tal como Merlim tinha encerrado o pobre Pellinore, mas quando os Deuses que tocavam os loucos eram malevolentes, então a ilha era o local para onde a alma capturada devia ser mandada.
As ondas do mar rebentavam em redor da ilha, desfazendo-se em espuma branca. Na ponta virada para o mar, até mesmo com o tempo muito calmo, havia sempre redemoinhos em grande agitação sobre o local onde a Gruta de Cruachan conduzia ao Outro Mundo. Os salpicos de água explodiam do mar elevando-se acima da gruta e as ondas rebentavam incessantemente assinalando a sua terrível boca invisível. Nenhum pescador se aproximava do redemoinho, pois qualquer barco que passasse perto do medonho turbilhão estava de certo perdido. Afundar-se-ia e a tripulação seria sugada para se transformar em sombras no Outro Mundo.
O Sol brilhava no dia em que fui à ilha. Levava comigo a Hywelbane, mas mais nenhum outro equipamento de guerra, visto que nenhum escudo ou couraça feitos pelo homem me protegeriam dos espíritos e das serpentes da ilha. Como mantimentos, levava um odre de pele cheio de água fresca e uma bolsa com bolos de farinha de aveia e, como talismãs contra os demónios da ilha, o pregador de Ceinwyn e um raminho de alho preso à minha capa verde.
Atravessei o salão onde se faziam as festas dos mortos. A estrada para lá do salão estava ladeada por caveiras, humanas e de animais, avisando os imprudentes de que se estavam a aproximar do Reino das Almas Penadas.
Agora, à minha esquerda estava o mar e à minha direita um pântano escuro e de água salobra onde nem sequer havia pássaros a cantar. Para lá do pântano havia um grande banco de areão que se encurvava, afastando-se da costa e transformando-se na passagem que ligava a ilha ao continente. Para se chegar à ilha pelo banco de areão fazia-se um desvio de muitos quilómetros, pelo que normalmente se optava pela rua ladeada por caveiras que levava a um cais de madeira a desfazer-se onde um barco fazia a travessia até à praia. Junto ao cais havia um conjunto de casas feitas de vimes que pertenciam aos guardas. Mais guardas patrulhavam o banco de areão.
Os guardas no cais eram homens velhos ou então veteranos feridos que viviam com as famílias nas cabanas. Os homens viram-me aproximar e, depois, barraram-me o caminho com as lanças enferrujadas.
O meu nome é Lorde Derfel e exijo que me deixem passar.
O comandante da guarda, um homem já velho com uma antiga couraça de ferro e um elmo de couro bolorento, fez-me uma vénia.
Não tenho poder para vos impedir a passagem, Lorde Derfel disse ele. Mas não vos posso deixar regressar.
Os seus homens, espantados por alguém querer entrar voluntariamente na ilha, olhavam-me boquiabertos.
Passarei na mesma disse eu e os lanceiros afastaram-se quando o comandante da guarda lhes gritou para guarnecerem com tripulação o pequeno barco que fazia a travessia. São muitos os que pedem para passar desta forma? perguntei ao comandante.
Poucos disse ele. Alguns estão cansados de viver, outros pensam que conseguem governar uma ilha de pessoas loucas. Poucos até viveram tempo suficiente para me implorar que os deixasse sair outra vez.
E deixaste-os sair? perguntei.
Não disse ele de forma concisa. Ficou parado a ver os remos serem trazidos de uma das cabanas e olhou-me de sobrolho carregado. Tendes a certeza, Senhor? perguntou.
Tenho.
Estava cheio de curiosidade, mas não se atreveu a perguntar-me o que ia lá fazer. Em vez disso, ajudou-me a descer os íngremes degraus do cais e a entrar no barco pintado com piche.
Os remadores vão deixar-vos passar pelo primeiro portão disse-me ele, depois apontou para um local mais distante da passagem, que ficava do outro lado do estreito canal. Depois disso chegareis a uma segunda muralha e depois a uma terceira no fim da passagem. Não há portões nessas muralhas, apenas degraus para as atravessar. Não é provável que encontreis almas penadas entre as muralhas, mas... e depois delas? Só os Deuses sabem. Quereis mesmo ir?
Nunca sentiste curiosidade? perguntei-lhe.
É-nos permitido levar comida e almas penadas até à terceira muralha e eu não desejo ir mais além disse ele de forma sinistra. Chegarei à ponte de espadas que leva ao outro mundo, quando chegar a minha vez, Senhor. E apontou com o queixo para a passagem. A Gruta de Cruachan fica do outro lado da ilha, Senhor, e só os loucos e os homens desesperados procuram a morte antes de chegar a sua hora.
Eu tenho as minhas razões disse eu e voltarei a ver-te neste mundo dos vivos.
Não se atravessardes a água, Senhor.
Olhei para a encosta verde e branca da ilha que se elevava acima das muralhas da passagem.
Eu já estive num poço da morte disse eu ao comandante da guarda e saí de lá a rastejar como rastejarei daqui para fora. Procurei na minha bolsa e encontrei uma moeda para lhe dar. Discutiremos a minha partida quando chegar a altura.
Sereis um homem morto, Senhor, a partir do momento em que atravessardes esse canal avisou-me ele pela última vez.
A morte não sabe como me agarrar retorqui eu, numa fanfarronice de loucos e, depois, ordenei aos remadores que me levassem pelo canal em redemoinho.
Foram precisas apenas algumas remadas e o barco encalhou num banco inclinado de lama e subimos até à entrada em arco na primeira muralha onde os dois remadores levantaram a barra, abriram os portões e se afastaram para me deixar passar. Uma soleira negra marcava a divisão entre este mundo e o outro. Assim que passasse sobre aquela tábua de madeira enegrecida, seria contado como um homem morto. Durante um momento os meus medos fizeram-me hesitar, mas depois atravessei-a.
Os portões fecharam-se com barulho atrás de mim. Estremeci.
Virei-me para examinar o lado de dentro da muralha principal. Tinha três metros de altura e era uma barreira de pedra lisa tão perfeita como qualquer outro trabalho romano e tão bem feita que não se via na sua fachada branca nem um único buraco para apoiar a mão. Uma barreira-fantasma de caveiras encimava a muralha para afastar as almas penadas do mundo dos vivos.
Rezei aos Deuses. Rezei a Bei, o meu protector especial, e a Manawydan, o Deus do Mar que salvara Ninme no passado. Depois desci a passagem até onde a segunda muralha barrava a estrada. Esta muralha era um tosco talude de pedras polidas pelo mar que, tal como a primeira muralha, estava encimada por uma fiada de caveiras humanas. Desci os degraus que havia no lado mais afastado da muralha. À minha direita, a oeste, as grandes vagas rebentavam no areão, enquanto à minha esquerda a baía pouco profunda jazia calma sob a luz do sol. Alguns barcos de pesca andavam na faina na baía, mas todos estavam bem afastados da ilha. À minha frente tinha a terceira muralha. Não via nenhum homem nem nenhuma mulher lá, à espera. As gaivotas voavam por cima de mim, perdendo-se os seus gritos no vento vindo de oeste. Os lados da passagem estavam orlados de algas escuras.
Eu estava assustado. Durante os anos que se seguiram ao regresso de Artur à Grã-Bretanha enfrentara inúmeras muralhas de escudos e um sem-número de homens em combate. No entanto, em nenhuma dessas lutas, nem mesmo em Benoic a arder, sentira um medo assim, como este frio que agora me crispava o coração. Parei e virei-me para olhar os suaves montes verdes de Dumnónia e para a pequena aldeia piscatória na baía de leste. Volta para trás agora, pensei, volta para trás! Nimue estivera ali durante um ano e eu duvidava que muitas almas sobrevivessem durante tanto tempo na ilha dos Mortos, a não ser que fossem ao mesmo tempo selvagens e poderosas. E, mesmo que eu a encontrasse, ela estaria louca. Não poderia sair dali. Aquele era o seu reino, o domínio da morte. Volta para trás, insistia comigo próprio, volta para trás. Mas nisto a cicatriz da minha mão esquerda latejou e eu disse a mim próprio que Nimue estava viva.
Um grito vibrante assustou-me. Virei-me e vi uma figura escura e andrajosa a saltar em cima da terceira muralha, depois a figura desapareceu do outro lado da muralha e eu pedi aos Deuses que me dessem força. Nimue sempre soubera que sofreria as Três Chagas e a cicatriz da minha mão esquerda era a sua certeza de que eu a ajudaria a sobreviver às provas. Continuei a andar.
Trepei a terceira muralha, que era outro monte de pedras cinzentas e polidas, e vi um lanço de toscos degraus que levavam à ilha. Ao fundo das escadas estavam alguns cestos vazios. Era evidentemente o meio que os vivos usavam para entregar pão e carne salgada aos seus parentes mortos.
A figura andrajosa desaparecera, deixando apenas o monte altaneiro acima de mim e um emaranhado de espinheiros a ladear uma estrada de pedra que conduzia ao flanco oeste da ilha, onde podia ver um grupo de edifícios em ruínas na base do grande monte. A ilha era um local enorme. Um homem demoraria duas horas a caminhar da terceira muralha até onde o mar se encapelava na ponta sul da ilha, e outro tanto tempo para subir até ao espinhaço da grande rocha, para atravessar do lado oeste para a costa leste.
Segui a estrada. O vento sussurrava nos sargaços para lá dos espinheiros. Um pássaro gritou-me e, depois, voou bem alto estendendo as asas brancas no céu soalheiro. A estrada curvava, de forma que eu estava a andar directamente na direcção da velha cidade. Era uma cidade romana, mas nada como Glevum ou Durnovária, apenas um sórdido amontoado de edifícios baixos de pedra onde tinham vivido os escravos que trabalhavam na pedreira. Os telhados dos edifícios eram toscas coberturas de colmo feitas de madeira flutuante ou algas secas. Eram abrigos pobres, mesmo para os mortos. O medo do que pudesse existir na cidade fez-me hesitar, mas uma voz repentina gritou-me um aviso e uma pedra saltou da vegetação da encosta do meu lado esquerdo e caiu na estrada ao meu lado. O aviso provocou um enxamear de criaturas andrajosas que saíam a correr das cabanas para ver o que se aproximava da sua povoação. O enxame era composto por homens e mulheres, a maioria vestidos com roupas esfarrapadas. Mas alguns usavam os seus andrajos com grandeza e caminhavam na minha direcção como se fossem os maiores monarcas da terra. O cabelo deles estava coroado com grinaldas de algas. Alguns homens traziam lanças e quase todas as pessoas agarraram em pedras. Alguns estavam nus. Havia crianças entre eles, crianças pequenas, ferozes e perigosas. Alguns dos adultos tremiam incontrolavelmente, outros contorciam-se e todos me olhavam com olhos brilhantes e famintos.
Uma espada! disse um homem enorme. Eu fico com a espada' Uma espada! Dirigiu-se a mim arrastando os pés e os seus seguidores avançaram atrás dele, descalços. Uma mulher atirou uma pedra e, de repente, estavam todos a gritar de satisfação, porque tinham uma nova alma para saquear.
Desembainhei a Hywelbane, mas nenhum homem, mulher ou criança parou perante a visão da longa lâmina. Então fugi. Não podia haver vergonha para um guerreiro que fugia dos mortos. Corri de novo pela estrada acima e as pedras aterravam junto aos meus tornozelos,. Depois um cão saltou e agarrou a minha capa verde. Abati o animal com a espada e consegui chegar à curva da estrada onde me enfiei para o lado direito, abrindo caminho por entre os espinheiros e a vegetação para alcançar a encosta do monte. Alguma coisa se ergueu à minha frente, uma coisa nua com a cara de um homem e o corpo de um animal cheio de pêlo e todo sujo. Um dos olhos daquela coisa era uma chaga, a boca era uma cova com as gengivas todas podres e a coisa lançava-se a mim com as mãos transformadas em garras com unhas em forma de ganchos. A Hywelbane, resplandecente, fendeu o ar. Eu gritava de terror, certo de que enfrentava um dos demónios da ilha, mas os meus instintos ainda estavam tão afiados como a minha lâmina, que trespassou o braço peludo do animal e o golpeou na cabeça. Saltei por cima dele e subi o monte, consciente de que uma horda de almas famintas subia atrás de mim. Uma pedra acertou-me nas costas, outra bateu na rocha ao meu lado, mas eu trepava rapidamente as colunas e as plataformas da pedreira até que encontrei um caminho estreito que serpenteava como os caminhos de Ynys Trebes em redor do abrupto flanco do monte.
Virei-me a meio do caminho para enfrentar os meus perseguidores. Pararam, finalmente, com medo da espada que os esperava no estreito caminho onde apenas um de cada vez se podia aproximar de mim. O gigante olhou-me lubricamente.
Lindo menino disse ele numa voz aduladora desce daí, meu lindo menino. E ergueu no ar um ovo de gaivota para me tentar. Anda comer!
Uma velha levantou a saia e mostrou-me o sexo.
Vem a mim, meu amor! Vem a mim, meu querido. Eu sabia que tu virias! Começou a urinar. Uma criança riu-se e atirou-me uma pedra.
Deixei-os. Alguns seguiram-me pelo caminho acima, mas, passado algum tempo, aborreceram-se e voltaram para a sua povoação fantasma.
O estreito caminho seguia por entre o céu e o mar. De vez em quando era interrompido por uma antiga pedreira onde havia marcas de ferramentas romanas nas pedras, mas para lá de cada pedreira o caminho voltava a enrolar-se por entre canteiros de tomilho e pequenos bosques de espinheiros. Não vi ninguém até que, de repente, uma voz vinda de uma das pequenas pedreiras me chamou.
Tu não pareces louco disse a voz de modo dúbio.
Virei-me com a espada levantada e vi um homem de maneiras requintadas vestido com uma capa preta a olhar-me solenemente da entrada de uma gruta. Levantou uma mão.
Por favor! Nada de armas. Chamo-me Malldynn e saúdo-te, forasteiro, se vens em paz, e se não vens, então imploro-te que passes e nos deixes.
Limpei o sangue da Hywelbane e enfiei-a de novo na bainha.
Venho em paz disse eu.
Chegaste há pouco tempo à ilha? perguntou, aproximando-se de mim cautelosamente.
Tinha um rosto agradável, profundamente enrugado e triste, com uns modos que me faziam lembrar o bispo Bedwin.
Acabei de chegar respondi eu.
E, sem dúvida, foste perseguido pela multidão na entrada. Peço desculpas por eles, ainda que os Deuses saibam que não sou responsável por aqueles vampiros. Todas as semanas ficam com o pão e obrigam-nos a nós, os restantes, a pagar por ele. Não é fascinante como até num sítio povoado de almas penadas temos as nossas hierarquias? Aqui existem governantes. Há os fortes e os fracos. Alguns homens sonham formar paraísos nesta terra e o primeiro requisito para que isso aconteça, ou pelo menos segundo o que entendi, é que devemos estar libertos das leis. Mas suspeito, meu amigo, que qualquer lugar sem leis se parecerá mais com esta ilha do que com um paraíso. Não tenho ainda o prazer de saber o teu nome.
Derfel.
Derfel? Franziu as sobrancelhas, pensativo. Um servo dos druidas?
Já fui. Agora sou um guerreiro.
Não, não és corrigiu-me ele estás morto. Vieste para a ilha dos Mortos. Por favor, entra e senta-te. Não é muito, mas é a minha casa, Fez um gesto na direcção da gruta onde dois blocos de pedra semialinhados serviam de cadeira e mesa. Um velho pedaço de pano, talvez arrastado pelo mar, escondia em parte o seu quarto de dormir onde pude ver uma cama feita de erva seca. Ele insistiu para que eu usasse o pequeno bloco de pedra como cadeira.
Posso oferecer-te água da chuva para beberes disse ele e algum pão velho de cinco dias para comeres.
Pus um bolo de farinha de aveia em cima da mesa. Malldynn estava claramente esfomeado, mas resistiu ao impulso de agarrar o biscoito. O que ele fez foi pegar numa faca com uma lâmina que tinha sido afiada tantas vezes que tinha a orla ondulada e dividir o bolo em duas partes.
Correndo o risco de parecer ingrato disse ele a aveia nunca foi a minha comida preferida. Prefiro carne, carne fresca, mas, mesmo assim, agradeço-te, Derfel. Estava de joelhos em frente a mim, mas, assim que acabou de comer o bolo de aveia e limpou delicadamente as migalhas da boca, levantou-se e encostou-se à parede da gruta. A minha mãe fazia bolos de aveia disse, mas os dela eram mais duros. Acho que a aveia não era descascada como devia ser. Este era delicioso e acho que vou reconsiderar a minha opinião sobre a aveia. Obrigado de novo. E fez-me uma vénia.
Tu não pareces louco disse eu.
Ele sorriu. Era um homem de meia-idade, com um rosto distinto, olhos espertos e uma barba branca que tentava manter espontada. A sua gruta tinha sido varrida com um pequeno ramo de árvore que estava encostado à parede.
Não são apenas os loucos que para aqui são mandados, Derfel disse ele num tom de reprovação. Quem quer castigar os sãos também os manda para aqui. E, ai de mim, eu ofendi Uther. Fez uma pausa lúgubre. Eu era um dos conselheiros continuou um grande homem até, mas quando disse a Uther que o seu filho Mordred era um tolo, acabei por vir aqui parar. Mas eu estava certo. Mordred era um tolo, mesmo aos dez anos ele era um tolo.
Estás aqui há já tanto tempo? perguntei, espantado.
Estou, ai de mim.
Como sobreviveste?
Encolheu os ombros numa atitude de autodesaprovação.
Os vampiros que guardam o portão acreditam que eu faço magia. Ameaço-os de lhes restabelecer a sanidade mental se me molestarem e, por isso, eles fazem tudo para me manterem contente. São mais felizes loucos, acredita-me. Qualquer homem na posse das suas faculdades mentais rezaria para ficar louco nesta ilha. E tu, amigo Derfel, posso perguntar o que te trouxe aqui?
Procuro uma mulher.
Ah! Temos muitas e a maioria está livre de todo o pudor. Mulheres dessas, acredito, são outro requisito para os paraísos na terra, mas, ai de mim, a realidade mostra o contrário. Elas não têm certamente nenhum pudor, mas também são porcas, a sua conversa é enfadonha e o prazer que se consegue delas é tão momentâneo quanto vergonhoso. Se é uma mulher dessas que procuras, Derfel, então vais encontrá-las aqui em abundância.
Procuro uma mulher chamada Nimue.
Nimue disse ele, franzindo o sobrolho enquanto tentava lembrar-se do nome Nimue! Sim, com efeito, agora lembro-me dela! Uma rapariga só com um olho e de cabelos negros. Ela foi ter com a gente do mar.
Afogada? perguntei aterrado.
Não, não e sacudiu a cabeça. Deves entender que temos as nossas próprias comunidades na ilha. Já conheceste os vampiros do portão. Nós, os que moramos aqui nas pedreiras, somos os eremitas, um pequeno grupo que prefere a solidão e, por isso, habita as grutas deste lado da ilha. O lado mais longínquo é habitado pelas feras. Podes imaginar como elas são. Na ponta sul está a gente do mar. Pescam com linhas feitas de cabelo humano e usam espinhos como anzóis. São, devo dizer-te, a tribo mais bem comportada da ilha, se bem que nenhuma delas seja famosa pela sua hospitalidade. É claro que todas lutam entre si. Vês como aqui temos tudo o que a Terra dos Vivos tem para oferecer? Excepto, talvez, a religião, apesar de um ou dois dos nossos habitantes acreditarem que são Deuses. E quem pode contradizê-los?
Nunca tentaste sair daqui?
Tentei disse ele tristemente. Há muito tempo. Uma vez tentei atravessar a baía a nado, mas eles vigiam-nos, e uma pancada com a haste da lança na cabeça é uma forma eficiente de nos lembrarem que não devemos sair da ilha, pelo que eu voltei para trás muito antes de me poderem dar um golpe desses. Muitos afogam quem tenta fugir por aí. Uns poucos seguem a passagem e alguns talvez consigam voltar para entre os vivos, mas apenas se conseguirem passar primeiro pelos vampiros do portão. E, se sobreviverem a essa prova, têm de evitar os guardas que estão à espera na praia. Lembras-te das caveiras que viste ao atravessar a passagem? São todas de homens e mulheres que tentaram escapar. Pobres almas! Quedou-se em silêncio e, por um momento, pensei que ele ia chorar. Depois desencostou-se com vivacidade da parede. Mas onde é que eu tenho a cabeça? Será que não tenho boas maneiras? Devia oferecer-te água. Vês? A minha cisterna! Fez um gesto orgulhoso na direcção de um barril de madeira que estava mesmo à saída da boca da gruta, colocado de forma a apanhar a água que caía em cascata dos lados da pedreira durante as chuvadas. Tinha uma concha funda com a qual encheu dois copos de madeira com água. O barril e a colher vieram de um barco de pesca que naufragou aqui. Quando? Ora deixa cá ver... foi há dois anos. Pobre gente! Três homens e dois rapazes. Um homem tentou fugir a nado e afogou-se, os outros dois morreram sob uma saraivada de pedras e os dois rapazes foram levados. Podes imaginar o que lhes aconteceu! Pode haver mulheres em grande quantidade, mas a carne fresca de um jovem pescador é um petisco raro nesta ilha. Ele pôs o copo à minha frente e sacudiu a cabeça. É um lugar terrível, meu amigo, e foste tolo em vires para cá. Ou foste mandado?
Vim, porque quis.
Então, de certa forma este é o teu lugar, pois estás nitidamente louco. Bebeu a sua água. Dá-me novas da Grã-Bretanha pediu.
Assim fiz. Ele soubera da morte de Uther e da chegada de Artur, mas não muito mais. Carregou o sobrolho quando lhe disse que o rei Mordred era coxo, mas ficou contente quando soube que Bedwin ainda era vivo.
Gosto de Bedwin disse ele. Ou melhor, gostava. Aqui temos de aprender a falar como se estivéssemos mortos. Ele deve estar velho, não?
Não tão velho como Merlim.
Merlim ainda está vivo? perguntou, surpreendido.
Está.
Meu Deus! Então Merlim está vivo! Parecia satisfeito. Uma vez dei-lhe uma pedra d'águia e ele ficou tão agradecido. Tenho outra algures por aqui. Mas onde? Procurou por entre uma pilha de pedras e pedaços de madeira amontoados ao lado da porta da gruta. Está ali? Apontou na direcção da cortina da cama. Consegues vê-la?
Virei-me para procurar a pedra preciosa e no momento em que olhei para lá Malldynn saltou para as minhas costas e tentou cortar-me a garganta com a orla imperfeita da sua pequena faca.
Vou comer-te! gritou triunfante. Comer-te!
Mas eu, ainda estou para saber como, consegui segurar-lhe a mão que segurava a faca com a minha mão esquerda e manter a lâmina afastada da minha traqueia. Ele atirou-me ao chão e tentou morder-me a orelha. Babava-se todo em cima de mim, com o apetite estimulado pelo pensamento de carne humana limpa e nova para comer. Bati-lhe uma vez, duas, consegui virar-me e levantar o joelho e, depois, bati-lhe de novo, mas o desgraçado tinha uma força notável e o barulho da nossa luta trouxe mais homens a correr de outras grutas. Tinha apenas alguns segundos antes de ser dominado pelos recém-chegados e, por isso, tentei um último e desesperado movimento para me levantar, dei-lhe uma cabeçada e, finalmente, atirei-o para o lado. Dei-lhe um pontapé para o afastar, arrastei-me desesperadamente para longe dos seus amigos e, por fim, levantei-me na entrada do quarto onde, finalmente, tinha espaço para desembainhar a Hywelbane. Os eremitas encolheram-se perante a lâmina brilhante da espada.
Malldynn, com a boca a sangrar, estava caído num dos lados da gruta.
Nem sequer um pedaço de fígado fresco? implorou ele. Só um bocadinho? Por favor?
Deixei-o. Os outros eremitas puxaram-me a capa enquanto passava pela pedreira, mas nenhum tentou fazer-me parar. Um deles deu uma gargalhada.
Terás de voltar! disse ele. E, nessa altura, estaremos mais esfomeados ainda!
Comam Malldynn disse-lhes eu amargamente.
Subi para o espinhaço da ilha onde o tojo crescia entre as rochas. Do cume pude ver que o grande monte de rocha não se estendia até à ponta sul, mas que descia íngreme até uma vasta planície coberta por um emaranhado de antigas paredes de pedra; uma prova de que homens e mulheres normais tinham já vivido na ilha e cultivado o planalto rochoso cujas encostas desciam até ao mar. Ainda havia residências no planalto e supus que fossem as casas da gente do mar. Um grupo dessas almas penadas observava-me do seu aglomerado de cabanas na base do monte e a presença deles convenceu-me a ficar onde estava e esperar pela madrugada. A vida arrasta-se devagar de manhã cedo, razão pela qual os soldados gostam de atacar com a primeira luz do dia, e eu procuraria a minha Nimue perdida, quando os loucos habitantes daquela ilha estivessem ainda indolentes e estupidificados pelo sono.
Foi uma noite difícil. Uma má noite. As estrelas rodavam por cima de mim, lares brilhantes de onde os espíritos olhavam para baixo, para a terra frágil. Rezei a Bei, pedindo-lhe forças. Por vezes, adormecia, se bem que cada sussurro da erva ou a queda de alguma pedra me acordassem logo. Tinha-me abrigado numa fenda estreita da rocha que impediria qualquer ataque, pelo que estava confiante de que me podia proteger, se bem que só Bei soubesse como é que eu iria sair da ilha. Ou se iria alguma vez encontrar a minha Nimue.
Arrastei-me para fora do meu nicho de rocha antes do amanhecer. Um nevoeiro denso espalhava-se sobre o mar, para lá da soturna agitação que marcava a entrada da Gruta de Cruachan, e havia uma luz débil e cinzenta que fazia a ilha parecer fria e plana. Não vi ninguém enquanto descia pela encosta abaixo. O Sol ainda não se tinha levantado, quando entrei na primeira aldeola de toscas cabanas. Tinha chegado à conclusão de que no dia anterior fora acanhado de mais com os habitantes da ilha. Doravante iria tratar os mortos como coisas repugnantes que eles eram.
As cabanas eram feitas de vimes e lama, com telhados de ramos e erva. Dei um pontapé numa decrépita porta de madeira, inclinei-me para entrar e agarrei na primeira forma adormecida que encontrei. Atirei essa criatura com violência lá para fora, dei um pontapé numa outra, depois abri um buraco no telhado com a Hywelbane. As coisas que outrora tinham sido humanas desemaranhavam-se e arrastavam-se para longe de mim. Dei um pontapé na cabeça de um homem, bati noutro com o lado da lâmina da Hywelbane e arrastei um terceiro lá para fora para a luz fraca. Atirei-o ao chão, pus-lhe o pé em cima do peito e encostei-lhe a ponta da Hywelbane à garganta.
Procuro uma mulher chamada Nimue disse eu.
Ele gaguejou qualquer coisa sem nexo. Não sabia falar, ou melhor, só falava numa linguagem inventada por ele e, por isso, deixei-o e corri atrás de uma mulher que fugia a coxear em direcção aos arbustos. Ela gritou, quando a apanhei, e gritou de novo quando lhe pus o aço na garganta.
Conheces uma mulher chamada Nimue?
Estava demasiado aterrorizada para falar. Por isso, levantou a saia imunda e lançou-me um repugnante e desdentado sorriso. Não tive outro remédio senão bater-lhe na cara com o lado da espada.
Nimue! gritei-lhe. Uma rapariga só com um olho chamada Nimue. Conhece-la?
A mulher continuava sem conseguir falar, mas apontou para Sul, indicando com a mão a ponta da ilha voltada para o mar, num esforço inquieto para me fazer abrandar a pressão. Tirei a espada e dei-lhe um pontapé na saia, fazendo-a cair sobre as ancas. A mulher fugiu, arrastando-se para um canteiro de espinheiros. As outras almas assustadas espiavam das suas cabanas enquanto eu seguia o caminho para sul em direcção ao mar agitado.
Passei por outras duas aldeolas, mas agora ninguém me tentava impedir. Eu tornara-me parte do pesadelo vivo da ilha dos Mortos, uma criatura saída da madrugada de aço desembainhado. Caminhei pelo meio de campos de erva mortiça ponteados com trevos, ervas leiteiras azuis e as pontas carmesim das orquídeas e disse a mim próprio que eu devia saber que Nimue, uma criatura de Manawydan, encontraria o seu refúgio o mais perto possível do mar.
A costa sul da ilha era um emaranhado de rochas orlado por penhascos baixos. Ondas enormes quebravam-se em espuma que era sugada pelas ravinas e se despedaçava em nuvens brancas, salpicando tudo em redor. O caldeirão rugia em turbilhões muito perto da costa. Era uma manhã de Verão, mas o mar estava cinzento como o ferro, o vento era frio e as aves marinhas lamentavam-se em gritos estridentes.
Saltei de pedra em pedra, descendo em direcção àquele mar de morte. A minha capa rasgada levantou-se com o vento, quando rodeei uma coluna de pedra descorada e vi uma gruta que ficava alguns centímetros acima da linha negra de algas e ervas que tinham dado à costa nas marés altas. Uma fieira de rochas levava à entrada da gruta e nas rochas estavam amontoados ossos de aves e de animais de terra. Os montes tinham sido feitos por mãos humanas, pois tinham espaços regulares entre eles e cada monte estava cingido com um cuidadoso entrançado de ossos maiores cumeados por uma caveira. Parei e senti o medo começar a agitar-se dentro de mim como se agitava o mar, quando olhei para aquele refúgio mais perto do mar do que qualquer outro local podia estar naquela ilha de almas condenadas.
Nimue? chamei, quando consegui reunir a coragem necessária para me aproximar da fieira de rochas. Nimue?
Subi para a estreita plataforma de rocha e caminhei devagar por entre os ossos amontoados. Tinha receio do que pudesse encontrar na gruta.
Nimue? chamei.
Abaixo de mim uma onda rugiu atravessando um esporão de rocha e estendendo as suas garras brancas na direcção da fieira de rochas. A água recuou, escoando-se em calhas escuras para o mar, antes de outra onda larga e alta ribombar nas pedras do cabo e galgar as rochas reluzentes. A gruta estava escura e silenciosa.
Nimue? disse eu outra vez com voz vacilante.
A boca da gruta estava guardada por duas caveiras humanas que tinham sido metidas à força em nichos, pelo que os seus dentes partidos se abriam num sorriso de desdém para os gemidos do vento dos dois lados da entrada.
Nimue?
Não houve resposta excepto o uivar do vento, os lamentos dos pássaros e o sugar e palpitar do mar sinistro.
Entrei. Estava frio na caverna e a luz era débil. As paredes estavam húmidas. O chão de cascalho elevava-se à minha frente, obrigando-me a dobrar-me sob o vulto pesado do tecto enquanto avançava cautelosamente.
A gruta ia ficando cada vez mais estreita e virava bruscamente para a esquerda. Uma terceira caveira amarelada vigiava a esquina, onde parei, enquanto os meus olhos se habituavam à escuridão, passando depois pela caveira guardiã para ver que a gruta ia diminuindo até terminar num fundo negro, de morte.
E ali, no negrume do fundo da gruta, lá estava ela. A minha Nimue.
A princípio pensei que estivesse morta, pois estava nua e em desalinho, com os cabelos escuros imundos espalhados sobre o rosto, as pernas magras dobradas sobre os seios e os braços pálidos a agarrarem as canelas. Por vezes, nos montes verdejantes, aventurávamo-nos a cavar os taludes cobertos de erva que serviam de túmulos para procurarmos o ouro dos povos antigos, e encontrávamos os ossos deles assim amontoados, porque eles se inclinavam na terra para se defenderem dos espíritos por toda a eternidade.
Nimue? Fui obrigado a percorrer de gatas os últimos centímetros até ao lugar onde ela estava. Nimue? disse eu de novo. Desta vez o nome dela ficou-me preso na garganta, pois eu tinha a certeza de que ela estava morta, mas nisto vi as costelas arquear. Ela respirava. Porém, tirando isso, estava tão imóvel como se estivesse morta. Pus a Hywelbane no chão e estendi a mão para lhe tocar no ombro branco e frio. Nimue?
Ela saltou para cima de mim, a sibilar, de dentes arreganhados. Um dos olhos era um orifício de um vermelho lívido e o outro estava revirado, pelo que só se via o branco do globo ocular. Tentou morder-me, arranhou-me, entoou uma praga em voz chorosa, lançou-me a praga e, depois, atirou-se aos meus olhos com as suas longas unhas.
Nimue! gritei eu.
Ela cuspia, babava-se, lutava e tentava morder-me no rosto com os dentes imundos.
Nimue!
Ela gritou, lançando outra praga e crispou a mão direita na minha garganta. Tinha a força dos loucos e soltou um grito de triunfo enquanto os seus dedos se fechavam sobre a minha traqueia. Então, de repente, eu soube exactamente o que tinha de fazer. Agarrei com firmeza a sua mão esquerda, ignorei a dor que sentia na garganta e coloquei a palma da minha mão esquerda com a cicatriz sobre a cicatriz dela. Encostei-a, deixei-a ficar e não me mexi.
E, então, devagar, muito devagar, a sua mão direita foi afrouxando na minha garganta. Muito devagar, o seu olho bom foi rolando e eu pude ver a alma brilhante do meu amor outra vez. Olhou para mim e, então, começou a chorar.
Nimue disse eu, e ela abraçou-se ao meu pescoço e agarrou-se a mim. Soluçava convulsivamente e os soluços faziam-lhe estremecer as costelas magras enquanto eu a abraçava, a afagava e lhe dizia o seu nome.
Os soluços abrandaram e, por fim, pararam. Ficou agarrada ao meu pescoço durante longo tempo, até que senti a sua cabeça mexer-se.
Onde está Merlim? perguntou, numa voz de criança pequena.
Aqui, na Grã-Bretanha.
Então temos de ir. Tirou os braços do meu pescoço e sentou-se sobre os calcanhares para poder olhar bem para o meu rosto. Sonhei que virias disse ela.
É mesmo amor o que sinto por ti respondi. Não tinha intenção de o dizer, embora fosse verdade.
Então, foi por isso que vieste disse ela como se isso fosse óbvio.
Tens roupas? perguntei.
Tenho a tua capa disse ela. Não preciso de mais nada senão da tua mão.
Rastejei para fora da gruta, embainhei a Hywelbane e embrulhei a minha capa verde à volta do seu corpo pálido que tremia. Ela passou um braço por uma abertura na capa de lã rasgada e depois caminhámos de mãos dadas por entre os ossos e subimos o monte em direcção ao local onde a gente do mar nos observava. Fugiram assim que chegámos ao cume do penhasco e não nos seguiram quando descemos devagar pela vertente este da ilha. Nimue não falava. A loucura dela desaparecera no momento em que a minha mão tocara a sua, mas deixara-a terrivelmente fraca. Ajudei-a nos troços mais íngremes do caminho. Passámos pelas grutas dos eremitas sem sermos incomodados. Talvez estivessem a dormir, ou então os Deuses tinham posto a ilha sob feitiço enquanto nós continuávamos o nosso caminho para Norte, afastando-nos das almas penadas.
O Sol levantou-se. Agora, podia ver que o cabelo de Nimue estava todo emaranhado por causa do lixo e cheio de piolhos, a pele estava coberta de imundície e ela perdera o seu olho de ouro. Estava tão fraca que mal podia andar e, quando descíamos o monte em direcção à passagem, peguei nela ao colo e vi que pesava menos do que uma criança de dez anos.
Estás fraca.
Já nasci fraca, Derfel, e a minha vida é passada a fingir que assim não é.
Precisas de descansar.
Eu sei. Encostou a cabeça ao meu peito e por uma vez na vida estava muito satisfeita por alguém tomar conta dela.
Levei-a para a passagem, transpondo a primeira muralha. À nossa esquerda ouvia-se a rebentação, à nossa direita, na baía, brilhava o reflexo do sol nascente. Eu não sabia como a ia fazer passar pelos guardas. Tudo o que sabia era que tínhamos de deixar a ilha, porque era esse o destino de Nimue e eu era o instrumento desse destino, e, por isso continuei a caminhar satisfeito, pois os Deuses resolveriam o problema quando chegássemos à barreira final.
Levei-a nos braços, passando pela muralha do meio com a sua fila de caveiras e caminhei em direcção aos montes verdejantes de Dumnónia. Conseguia ver a silhueta de um único lanceiro acima da fachada de pedra macia da última muralha e imaginei que alguns dos guardas se tivessem posto em fila através do canal, quando me viram sair da ilha. Havia mais guardas no talude de cascalho, colocados de forma a barrar-me a passagem para o continente. Se tivesse de matar, pensei, então mataria. Era essa a vontade dos Deuses, não minha, e a minha Hywelbane iria esquartejá-los com a habilidade e a força de um Deus.
Mas, quando me aproximei da muralha final, com a minha carga leve nos braços, os portões da vida e da morte abriram-se para me receber. Em parte estava à espera que ali estivesse o comandante da guarda com a sua espada enferrujada, pronto para me mandar para trás. Mas, afinal, eram Galaad e Cavan que me aguardavam na soleira negra com as espadas desembainhadas e os escudos nos braços.
Seguimos-te disse Galaad.
Bedwin mandou-nos acrescentou Cavan.
Eu cobri o cabelo horrível de Nimue com o capuz da minha capa para que os meus amigos não vissem a sua degradação e ela agarrou-se a mim, tentando esconder-se.
Galaad e Cavan tinham trazido os meus homens, que tinham trazido o pequeno barco que fazia a travessia e estavam agora a suster os guardiães da ilha nas pontas das suas lanças no talude mais afastado do canal.
Hoje teríamos ido à tua procura disse Galaad e, depois, fez o sinal da cruz ao olhar até ao fundo da passagem.
Lançou-me um olhar curioso, como se temesse que eu tivesse voltado diferente da ilha.
Eu devia ter adivinhado que estarias aqui disse-lhe eu.
Pois devias. Tinha lágrimas nos olhos, lágrimas de alegria. Caminhámos em fila pelo canal e eu levei Nimue pela estrada de caveiras acima até ao salão de festas ao fundo da estrada, onde encontrei um homem a carregar uma carroça com sal para levar para Durnovária. Deitei Nimue em cima da sua carga e caminhei ao lado dela enquanto a carroça chiava rumo ao Norte, em direcção à cidade. Resgatara Nimue da ilha dos Mortos, trazendo-a de volta para uma terra em guerra.
Levei Nimue para a quinta de Gyllad. Não a instalei na casa principal, preferindo utilizar uma cabana de pastor abandonada onde podíamos estar os dois sozinhos. Alimentei-a com caldos de carne e leite, mas primeiro dei-lhe banho até ficar completamente limpa. Lavei-a duas vezes e depois lavei-lhe o cabelo negro. Em seguida usei um pente de osso para lhe pentear o cabelo emaranhado. Algumas madeixas estavam tão emaranhadas que tiveram de ser cortadas. Mas consegui desembaraçar a maior parte e, quando o cabelo já lhe caía molhado e liso pelas costas abaixo, usei o pente para catar e matar os piolhos antes de lhe dar mais outro banho. Ela suportou tudo como uma criancinha obediente e, quando já estava limpa, embrulhei-a num grande cobertor de lã. Tirei o caldo de carne do fogo e obriguei-a a comer enquanto eu próprio tomava banho e matava os piolhos que tinham passado do corpo dela para o meu.
Quando acabei, já a noite caía e já ela dormia profundamente numa cama feita de fetos acabados de cortar. Dormiu toda a noite e de manhã comeu seis ovos que eu tinha mexido numa panela sobre o fogo. Depois voltou a adormecer. Entretanto, peguei numa faca e num pedaço de couro e fiz-lhe uma venda para o olho com uma fita que ela podia amarrar atrás da cabeça. Tinha mandado uma das escravas de Gyllad trazer-lhe roupas e mandei Issa à cidade para me trazer as notícias que pudesse. Era um rapaz esperto com uma maneira de ser muito aberta, de forma que, até mesmo os estranhos lhe faziam de bom grado confidências à mesa de taberna.
Metade da cidade diz que a guerra já está perdida, Senhor disse-me ele, quando regressou.
Nimue estava a dormir e nós falávamos na margem do regato que corria perto da cabana.
E a outra metade? perguntei. Ele sorriu de esguelha.
Esperam ansiosamente a chegada do Lughnasa, Senhor. Não pensam em mais nada para além disso. Mas os que pensam nisso são todos cristãos. Cuspiu para o regato. Dizem que o Lughnasa é uma festa do mal e que o rei Gorfyddyd vem aí para castigar os nossos pecados.
Nesse caso disse eu é melhor certificarmo-nos de que cometemos pecados suficientes para merecermos o castigo.
Ele riu-se.
Há quem diga que Lorde Artur não se atreve a sair da cidade, pois tem medo que haja uma revolta assim que os seus soldados deixarem a cidade
Abanei a cabeça.
Ele quer é estar ao pé de Guinevere no Lughnasa.
Quem não quereria? perguntou Issa.
Foste falar com o ourives? perguntei. Ele acenou afirmativamente.
Diz que não pode fazer um olho em menos de duas semanas, porque nunca fez nenhum antes, mas vai procurar um cadáver e arrancar-lhe o olho para ter o tamanho certo. Eu disse-lhe para arranjar antes o corpo de uma criança, pois a senhora não é muito grande, pois não? E apontou com a cabeça na direcção da cabana.
Disseste-lhe que o olho tinha de ser oco?
Disse, sim, meu Senhor.
Portaste-te muito bem. E agora suponho que estás morto por te portares muito mal e celebrares o Lughnasa, não é?
Ele sorriu de esguelha.
Sim, meu Senhor.
O Lughnasa era supostamente uma celebração das colheitas que estavam prestes a chegar, mas os jovens sempre a tinham transformado numa festa da fertilidade e os festejos começariam nessa noite, a véspera da grande festa
Então vai disse-lhe eu. Eu fico por aqui.
Nessa tarde fiz para Nimue a sua tenda para o Lughnasa. Duvidava no entanto que ela o apreciasse, mas eu queria muito fazê-lo e, por isso, construí uma pequena cabana ao lado do regato. Cortei os vimes e curvei-os, construindo um abrigo coberto onde entrancei centáureas azuis, papoilas, margaridas, dedaleiras e longos emaranhados de campainhas cor de rosa. Este tipo de tendas estava a ser feito por toda a Grã-Bretanha para a festa e, por toda a Grã-Bretanha, mais tarde, na próxima Primavera, nasceriam centenas de bebés do Lughnasa. A Primavera era considerada uma boa altura para nascimentos, pois a criança viria a um mundo a despertar para a fartura do Verão, se bem que saber se a plantação desse ano ia ou não levar a uma boa colheita dependesse das batalhas que iam ser travadas depois da época das colheitas.
Nimue saiu da cabana exactamente quando eu estava a entrançar a última dedaleira no topo da tenda.
Estamos no festival de Lughnasa? perguntou ela, surpresa.
É amanhã.
Ela riu-se, envergonhada.
Nunca ninguém me fez uma tenda.
Tu nunca quiseste.
Mas agora quero disse ela, sentando-se debaixo da sombra florida com tanta satisfação no olhar que me fez saltar o coração. Ela encontrara a venda para o olho e vestira um dos vestidos que a criada de Gyllad trouxera para a cabana. Era um vestido de escrava de um tecido castanho grosseiro que, no entanto, lhe ficava muito bem, como sempre acontece com as coisas simples. Estava pálida e magra, mas estava limpa e com as faces ligeiramente rosadas. Não sei o que aconteceu ao olho de ouro disse ela, num lamento, tocando na nova venda.
Mandei fazer outro olho disse-lhe eu, mas não acrescentei que o dinheiro dado como sinal ao ourives me tinha levado as últimas moedas. Precisava desesperadamente do saque de uma batalha, pensei eu, para voltar a encher a minha bolsa.
Estou cheia de fome disse ela com um toque da sua antiga traquinice.
Coloquei alguns galhos de vidoeiro no fundo da panela para o caldo de carne não pegar, verti o resto do caldo e pu-lo ao lume. Ela comeu-o todo e, no fim, estendeu-se na tenda do Lughnasa e quedou-se a olhar o regato. Apareceram bolhas de ar no local onde uma lontra nadava debaixo de água. Já a tinha visto antes. Era uma velha lontra macho com a pele cheia de cicatrizes provocadas por muitas batalhas e falhanços das lanças dos caçadores. Nimue ficou a ver o rasto de bolhas desaparecer por baixo de um salgueiro caído e, depois, começou a falar.
Ela sempre tivera um grande apetite pela conversa, mas nessa noite estava insaciável. Queria saber notícias e eu contei-lhas, mas depois queria mais pormenores, sempre mais pormenores e encaixava obsessivamente cada pormenor num esquema que ela própria imaginava. Desse modo, a história do último ano tornou-se, pelo menos para ela, num grande painel de azulejos onde cada azulejo sozinho parecia insignificante, mas que, em conjunto com os outros, se tornava parte de um todo complexo e cheio de significado. Mostrava-se particularmente interessada em Merlim e no pergaminho que ele arrancara da biblioteca de Ban, condenada à destruição.
Não o leste? perguntou.
Não.
Pois eu hei-de ler disse fervorosamente.
Hesitei por um momento, mas depois disse-lhe francamente o que pensava.
Achei que Merlim iria à ilha buscar-te.
Arriscava-me a ofendê-la duas vezes: primeiro, por implicitamente criticar Merlim e, segundo, por referir o único assunto de que ela ainda não falara a ilha dos Mortos. Mas ela pareceu não se importar.
Merlim acha que eu sei tomar conta de mim disse ela, sorrindo. E ele sabe que te tenho a ti.
Já tinha escurecido e o regato formava pequenas ondas de prata sob a lua do Lughnasa. Havia muitas perguntas que eu lhe queria fazer, mas não me atrevia. E eis que, de repente, ela começou a responder a essas perguntas. Falou da ilha, ou melhor, falou de como uma pequenina parte da sua alma sempre estivera consciente do horror daquela ilha, mesmo que o resto se tivesse abandonado ao seu destino lúgubre.
Pensei que a loucura fosse como a morte disse ela e que eu não iria saber que havia alternativa à loucura, mas soube-o sempre. Como o soube! É como se te estivesses a ver e não conseguisses ajudar-te. Abandonas-te a ti próprio disse ela. Quando parou, vi lágrimas no seu olho bom.
Não disse eu. De repente, não queria saber de mais nada.
Às vezes continuou ela sentava-me no meu rochedo, punha-me a contemplar o mar e sabia que estava sã. Então, imaginava que propósito estaria eu a servir e chegava à conclusão de que tinha de estar louca, porque, se não estivesse, nada daquilo teria o seu propósito.
E não havia propósito nenhum disse eu, irado.
Oh, Derfel, meu querido Derfel! Essa tua cabeça é que nem uma pedra a cair de um penhasco. Sorriu. É o mesmo propósito que levou Merlim a encontrar o pergaminho de Caleddin. Não percebes? Os Deuses fazem jogos connosco, mas, se nos abrirmos, então podemos tornar-nos parte do jogo em vez de vítimas dele. A loucura tem um propósito, sim! É uma oferta dos Deuses que, como todas as suas ofertas, traz o seu preço, mas eu já o paguei. Ela falava apaixonadamente, mas, de repente, senti que ia bocejar e, por mais que me esforçasse, não consegui evitar o bocejo. Tentei disfarçar, mas ela reparou. Precisas de dormir disse ela.
Não protestei.
Dormiste alguma coisa a noite passada?
Um pouco. Tinha-me sentado à porta da cabana e dormitado um pouco enquanto ouvia os ratos a esgaravatar no telhado de colmo.
Então vai para a cama disse ela firmemente e deixa-me aqui a pensar.
Eu estava tão cansado que mal conseguia despir-me. Finalmente, deitei-me na cama de fetos onde dormi como se estivesse morto. Foi um sono longo e profundo, como o descanso que chega quando estamos em segurança depois de uma batalha, quando os sonos mal dormidos, interrompidos por pesadelos que lembram as estocadas próximas das lanças e os golpes de espada já desapareceram da alma. E foi assim que eu dormi. Durante a noite Nimue veio ter comigo. A princípio pensei que era um sonho, mas depois acordei sobressaltado e encontrei a sua pele nua e fria junto à minha.
Está tudo bem, Derfel sussurrou ela dorme. E eu adormeci de novo com os meus braços à volta do seu corpo magro.
Acordámos numa madrugada perfeita de Lughnasa. Houve na minha vida momentos de pura alegria e aquele foi um deles. Há alturas, penso eu, em que o amor anda lado a lado com a vida ou talvez em que os Deuses querem que sejamos tolos, e nada é tão doce como a tolice que nos assalta no Lughnasa. O sol brilhava, filtrando a sua luz pelas flores da nossa tenda, onde fizemos amor. Depois, brincámos como crianças no regato onde tentei fazer bolhas como a lontra debaixo de água, vindo acima quase a sufocar e vendo Nimue a rir-se. Um pica-peixe passou rapidamente por entre os salgueiros, com as cores brilhantes como uma capa de sonho. As únicas pessoas que vimos durante todo o dia foram um par de cavaleiros que subiram pela outra margem do regato com falcões nos pulsos. Eles não nos viram e nós ficámos quietos a ver como uma das aves abateu uma garça real: um bom presságio. Durante aquele dia perfeito Nimue e eu fomos amantes, apesar de nos ter sido negado o segundo prazer do amor, que é o conhecimento seguro de um futuro partilhado passado numa felicidade tão grande como o início do amor. Mas eu não tinha futuro com Nimue. O futuro dela estava nos caminhos dos Deuses e eu não tinha talento para seguir essas estradas.
No entanto, até mesmo Nimue se sentia tentada a afastar-se desses caminhos. Ao fim da tarde do Lughnasa, quando a extensa luz ensombrava as árvores nas encostas ocidentais, ela estava enrolada nos meus braços debaixo da tenda e falou de como tudo podia vir a ser: uma casa pequena, um pedaço de terra, crianças e rebanhos.
Podíamos ir para Kernow disse ela num tom sonhador. Merlim diz sempre que Kernow é um lugar abençoado. E está muito afastado dos Saxões.
A Irlanda disse eu fica ainda mais longe. Senti-a sacudir a cabeça no meu peito.
A Irlanda está amaldiçoada.
Porquê? perguntei.
Eles tiveram os Tesouros da Grã-Bretanha e deixaram-nos desaparecer.
Eu não queria falar dos Tesouros da Grã-Bretanha nem dos Deuses nem de nada que pudesse estragar aquele momento.
Então vamos para Kernow concordei.
Uma casa pequena disse ela e, depois, fez uma lista de tudo o que uma pequena casa precisava: jarros, panelas, assadores, joeiras, peneiras, baldes de teixo, foices, tosquiadores, uma roca, um bobinador de meadas, uma rede para salmões, um barril, uma lareira, uma cama. Será que ela sonhara com essas coisas na sua caverna fria e húmida por cima do caldeirão?
E nada de saxões nem de cristãos continuou. Talvez devêssemos ir para as ilhas no mar Ocidental. Para as ilhas que ficam para lá de Kernow. Para Lyonesse. Pronunciou aquele adorado nome com suavidade.
Viver e amar em Lyonesse acrescentou, rindo.
Porque ris?
Quedou-se em silêncio por uns momentos e encolheu os ombros.
Lyonesse é para uma outra vida disse ela e com aquela frase gélida quebrou o encantamento. Pelo menos quebrou-o para mim, porque pensei ter ouvido a gargalhada de escárnio de Merlim a cacarejar entre a folhagem e, assim, deixei o sonho desvanecer-se enquanto continuávamos ali, imóveis, sob aquela luz suave e extensa. Dois cisnes voaram para norte, vale acima, em direcção à grande imagem fálica do Deus Sucellos cravada na encosta de argila mesmo a norte das terras de Gyllad. Sansum quisera destruir essa imagem arrojada, mas Guinevere impedira-o, apesar de não ter conseguido evitar que ele construísse um pequeno santuário no sopé do monte. Eu pensava comprar aquelas terras quando pudesse, não para as cultivar, mas para impedir que os cristãos semeassem erva por cima da argila ou cavassem a imagem do Deus.
Onde está Sansum? perguntou Nimue, que lera os meus pensamentos.
Ele agora é o guardião do Espinheiro Sagrado.
Espero que se pique todo disse ela, vingativa. Desembaraçou-se dos meus braços e sentou-se, puxando o cobertor até ao pescoço. E hoje é a cerimónia dos esponsais de Gundleus, não é?
É.
Ele não viverá para desfrutar da noiva disse ela, mas temi que ela tivesse dito aquilo mais como uma esperança do que como uma profecia.
Ele desfrutará sim, se Artur não conseguir vencer o exército deles disse eu.
E, no dia seguinte, as esperanças dessa vitória pareceram ter desaparecido para sempre. Estava eu a preparar as coisas para a colheita de Gyllad
a afiar as foicinhas e a preparar os maços de malhar os cereais, quando chegou um mensageiro a Durnovária vindo de Durocobrivis. Issa trouxe da cidade as notícias do mensageiro e essas notícias eram terríveis. Aelle rompera as tréguas. Na véspera do Lughnasa um enxame de saxões atacara a fortaleza de Gereint e devastara as suas muralhas. O príncipe Gereint estava morto, Durocobrivis caíra, o príncipe Meriadac de Stronggore, que pagava tributo a Dumnónia, transformara-se num fugitivo e aquilo que restava do seu reino tornara-se parte de Lloegyr. Agora, além de enfrentar o exército de Gorfyddyd, Artur tinha de lutar contra a hoste guerreira saxónica. Dumnónia estava seguramente condenada à destruição.
Nimue desdenhou do meu pessimismo.
Os Deuses não vão acabar com o jogo assim tão cedo afirmou, peremptória.
Então é melhor que os Deuses encham o nosso erário depressa disse eu rispidamente, porque não podemos vencer Aelle e Gorfyddyd ao mesmo tempo, o que significa que só temos duas alternativas: comprar os Saxões ou morrermos todos.
Só as mentes mesquinhas se preocupam com dinheiro disse Nimue.
Então agradece aos Deuses pelas mentes mesquinhas repliquei. Eu preocupava-me imenso com o dinheiro.
Há dinheiro em Dumnónia, se for preciso disse Nimue descuidadamente.
O de Guinevere? disse eu, abanando a cabeça. Artur nem vai tocar nele.
Nessa altura nenhum de nós sabia como era grande o tesouro que Lancelote trouxera de Ynys Trebes; esse tesouro podia ter sido suficiente para comprar a paz de Aelle, mas o exilado rei de Benoic mantinha-o bem escondido.
Não me refiro ao ouro de Guinevere disse Nimue e, depois, contou-me onde se podia encontrar um valor de sangue para os Saxões e eu amaldiçoei-me por não ter pensado nisso antes. Afinal ainda havia uma oportunidade, pensei eu, apenas uma oportunidade, desde que os Deuses nos dessem tempo e o preço de Aelle não fosse inatingivelmente alto. Calculei que os homens de Aelle precisariam de uma semana para curar a ressaca depois do saque de Durocobrivis e nós tínhamos apenas essa semana para fazer funcionar o nosso milagre.
Levei Nimue até Artur. Não haveria nenhum idílio em Lyonesse nem peneira nem joeira nem cama junto ao mar. Merlim fora para norte para salvar a Grã-Bretanha, e agora Nimue tinha de fazer a sua própria magia no sul. Fomos comprar uma paz saxónica enquanto atrás de nós, na margem do nosso regato de Verão, as flores do Lughnasa murchavam.
Artur e a sua guarda cavalgaram para norte pela Estrada Fosse. Sessenta cavaleiros aparelhados com couro e ferro iam para a guerra e, com eles, cinquenta lanceiros, seis meus e os restantes chefiados por Lanval, o antigo comandante da guarda de Guinevere, cujo cargo e propósito tinham sido usurpados por Lancelote, rei de Benoic, que, juntamente com os seus homens, era agora o protector de todas as pessoas importantes que viviam em Durnovária. Galaad levara o resto dos meus homens para norte, para Gwent, e foi uma medida de urgência que nos levou a partir em campanha antes das colheitas, mas a traição de Aelle não nos deixara outra escolha.
Eu fui com Artur e Nimue. Ela insistira em acompanhar-me, apesar de estar ainda muito fraca, mas nada a afastaria da guerra que estava para começar. Partimos dois dias depois do Lughnasa e, talvez como um mau presságio do que estava para acontecer, o céu enchera-se de nuvens ameaçando chuva forte.
Os cavaleiros, com os seus lacaios e as mulas de carga, juntamente com os lanceiros de Lanval, esperaram na Estrada Fosse enquanto Artur atravessou a ponte de terra que levava a Ynys Wydryn Nimue e eu fomos com ele, levando apenas os meus seis lanceiros como escolta. Era estranho voltar ao sopé do cume pouco definido do Tor onde Gwlydddyn reconstruíra a casa de Merlim, pelo que o cume do Tor tinha quase o mesmo aspecto do dia em que Nimue e eu fugíramos da selvajaria de Gundleus. Até mesmo a torre tinha sido reconstruída e eu perguntava-me se, tal como a primeira torre, esta também seria um quarto dos sonhos onde os murmúrios dos Deuses ecoavam aos ouvidos do feiticeiro adormecido.
Mas o que vínhamos tratar não dizia respeito ao Tor, mas sim ao santuário do Espinheiro Sagrado. Cinco dos meus homens ficaram fora dos portões do santuário enquanto Artur, Nimue e eu entrámos lá dentro. Nimue trazia a cabeça coberta com um capuz para que o seu rosto com a venda de couro não fosse visto. Sansum apressou-se a receber-nos. Tinha uma aparência excelente para um homem que estava aparentemente caído em desgraça por ter provocado um tumulto mortal em Durnovária. Estava mais gordo do que eu me lembrava e usava uma batina preta nova, meio coberta por uma capa de asperges sumptuosamente bordada com cruzes douradas e espinheiros prateados. Ao peito trazia uma pesada cruz de ouro presa a uma corrente também de ouro, enquanto no pescoço brilhava um grosso colar de ouro. O seu rosto de rato com o cabelo hirtamente tonsurado ofereceu-nos um sorriso afectado que pretendia ser um sorriso afável.
Muito nos honrais! exclamou ele, abrindo as mãos num gesto de boas-vindas. Quanta honra! Atrevo-me, Lorde Artur, a supor que viestes para adorar o nosso querido Senhor Deus? Ou seja, o Seu Espinheiro Sagrado! Uma lembrança dos espinhos que picaram a Sua cabeça enquanto Ele sofria pelos vossos pecados. Fez um gesto na direcção da árvore a gotejar com as suas tristes e minúsculas folhas. Um grupo de peregrinos postados em torno da árvore tinha envolvido as suas pernadas patéticas com oferendas votivas. Ao ver-nos, os peregrinos afastaram-se arrastando os pés, não se apercebendo de que o moço de lavoura pobremente vestido que com eles prestava culto era um dos nossos homens. Era Issa, que eu mandara à frente com uma pequena oferenda de moedas para o santuário.
Talvez queiram tomar um copo de vinho? ofereceu-nos Sansum. E comida? Temos salmão fumado, pão fresco, até alguns morangos.
Vives bem, Sansum disse Artur, olhando em redor do santuário.
Tinha crescido desde a última vez em que eu estivera em Ynys Wydryn. A igreja de pedra tinha sido aumentada e tinham sido construídos dois novos edifícios: um era um dormitório para os monges, o outro uma casa para o próprio Sansum. Ambos os edifícios eram de pedra e tinham telhados feitos de telhas retiradas de vivendas romanas.
Sansum levantou os olhos para as nuvens ameaçadoras.
Somos apenas servos humildes do grande Deus, Senhor, e a nossa vida na Terra deve-se à Sua graça e providência divina. Vossa estimada esposa encontra-se bem, espero.
Muito bem, obrigado.
Essa notícia enche-nos de alegria, Senhor mentiu Sansum. E o nosso rei, também está bem?
O rapaz está a crescer, Sansum.
E na verdadeira fé, acredito. Sansum recuava à medida que nós avançávamos. Então, Senhor, o que vos traz à nossa pequena povoação?
Artur sorriu.
A necessidade, bispo, a necessidade.
De graça espiritual? perguntou Sansum.
De dinheiro.
Sansum levantou as mãos no ar.
Será que um homem que procura peixe sobe ao cume de uma montanha? Ou que um homem desejoso de água vai para o deserto? Por que vindes a nós, Lorde Artur? Nós, os irmãos, fizemos voto de pobreza e todas as poucas migalhas que o nosso querido Senhor permite que nos caiam no regaço, nós damos aos pobres. E juntou graciosamente as mãos.
Então eu venho, querido Sansum disse Artur para ter a certeza de que estás a manter os teus votos de pobreza. A guerra está a endurecer, exige dinheiro, o erário está vazio e tu terás a honra de fazer um empréstimo ao teu rei.
Nimue, que estava agora humildemente encapuçada atrás de nós como uma serva, lembrara a Artur a riqueza da igreja. Como ela devia estar a divertir-se com a inquietação de Sansum.
A igreja tinha sido poupada a esses empréstimos forçados disse Sansum de uma forma penetrante e com um tom de escárnio nas últimas palavras. O Rei Supremo Uther, que a sua alma descanse em paz, isentou a igreja de todas essas extorsões, tal como os santuários pagãos benzeu-se estão vergonhosa e pecadoramente isentos.
O conselho do rei Mordred disse Artur revogou dessa isenção e o vosso santuário, bispo, é conhecido como o mais rico de Dumnónia.
Sansum levantou de novo os olhos ao céu.
Se tivéssemos nem que fosse uma moeda de ouro, Senhor, eu teria muito prazer em vo-la dar, e inteiramente como uma oferta. Mas nós somos pobres. Devíeis procurar o vosso empréstimo no monte. Fez um gesto na direcção do Tor. Os pagãos, Senhor, têm lá armazenado durante séculos bastante ouro infiel!
O Tor intervim friamente foi atacado por Gundleus, quando Norwenna foi morta. O pouco ouro que lá havia, e era mesmo muito pouco, foi roubado.
Sansum fingiu ter reparado em mim apenas naquele momento.
É Derfel, não é? Bem me parecia. Bem-vindo a casa, Derfel!
Lorde Derfel disse Artur, corrigindo Sansum.
Os olhos pequeninos de Sansum abriram-se desmedidamente.
Louvado seja Deus! Louvado seja! Estais a subir na vida, Lorde Derfel, e que satisfação isso me dá, um humilde eclesiástico que agora se poderá vangloriar de que vos conheceu quando éreis um simples lanceiro. Então agora sois um lorde? Que bênção! E que grande honra que a vossa presença nos dá! Mas até vós sabeis, meu querido Lorde Derfel, que quando o rei Gundleus atacou o Tor, também atacou os pobres monges que lá viviam. Ai de mim, que devastação ele causou! O santuário sofreu por Cristo e nunca mais recuperou.
Gundleus foi primeiro ao Tor disse eu. Eu sei, porque estava lá. E ao fazê-lo, deu tempo aos monges daqui para esconderem os seus tesouros.
Que fantasias que vocês, os pagãos, alimentam sobre nós, os cristãos! Ainda afirmam que nós comemos bebés nas nossas festas do amor? E Sansum riu-se.
Artur suspirou.
Meu querido bispo Sansum disse ele eu sei que o meu pedido é duro para ti. Sei que é teu dever preservar a riqueza da tua igreja, para que ela possa crescer e reflectir a glória de Deus. Tudo isso eu sei, mas também sei que, se não tivermos o dinheiro necessário para lutar contra os nossos inimigos, então o inimigo virá aqui e deixará de haver igreja, deixará de haver Espinheiro Sagrado e o bispo do santuário espetou um dedo nas costelas de Sansum nada mais será do que ossos secos, limpos pelos bicos dos corvos.
Há outras formas de manter os inimigos afastados dos nossos portões disse Sansum, insinuando de forma imprudente que Artur era a causa da guerra e que, se Artur saísse simplesmente de Dumnónia, Gorfyddyd ficaria satisfeito.
Artur não ficou zangado. Limitou-se a sorrir.
O teu tesouro é preciso para Dumnónia, bispo.
Nós não temos tesouro nenhum. Ai de mim! Sansum fez o sinal da cruz. Deus é testemunha, meu Senhor, de que não temos nada.
Dirigi-me devagar para o espinheiro.
Os monges de Ivinium disse eu, referindo-me ao mosteiro que ficava alguns quilómetros para sul são melhores jardineiros do que vós, bispo. Tirei a Hywelbane da bainha e com a ponta piquei o solo ao lado da deplorável árvore. Talvez devêssemos desenterrar o Espinheiro Sagrado e entregá-lo aos cuidados de Ivinium. Estou certo de que os monges de lá pagariam um bom preço por esse privilégio.
E o Espinheiro estaria mais longe dos Saxões! disse Artur vivamente. Com certeza aprovas o nosso plano, não é verdade, bispo?
Sansum agitava desesperadamente as mãos.
Os monges de Ivinium são uns tolos ignorantes, Senhor, que apenas resmungam orações. Se vossas Senhorias esperarem na igreja, talvez eu encontre algumas moedas que sirvam o vosso propósito.
Faz isso disse Artur.
Fizeram-nos entrar aos três na igreja. Era um edifício simples com chão de pedra, paredes de pedra e um telhado com vigas. Era um local escuro, pois pouca luz entrava pelas janelas altas e estreitas onde havia pardais a fazer barulho e onde cresciam goiveiros. Ao fundo da igreja estava uma mesa de pedra com um crucifixo em cima. Nimue, com o capuz puxado para trás, cuspiu para o crucifixo enquanto Artur caminhou devagar até à mesa e, dando um pequeno salto, se sentou em cima dela, mesmo à beira.
Não gosto nada de fazer isto, Derfel disse ele.
Porque haveríeis de gostar, Senhor?
Não queria ofender os Deuses disse Artur com melancolia.
Dizem que este Deus disse Nimue com desdém é um Deus que perdoa. É melhor ofender este tipo de Deus do que outro qualquer.
Artur sorriu. Usava um colete simples, calças, botas, uma capa e a Excalibur. Não trazia ouro nenhum, nenhuma armadura, mas não podia haver engano quanto à sua autoridade nem, naquele momento, quanto ao seu constrangimento. Ficou sentado em silêncio durante algum tempo e, por fim, levantou os olhos para mim. Nimue andava a explorar as pequenas salas ao fundo da igreja e nós estávamos sozinhos.
Talvez eu devesse sair da Grã-Bretanha disse Artur.
E entregar Dumnónia a Gorfyddyd?
Quando chegar a hora, Gorfyddyd colocará Mordred no trono disse Artur e isso é tudo o que importa.
Ele diz isso? perguntei.
Diz.
E que mais diria ele? argumentei, aterrado por o meu Senhor pensar no exílio. Mas a verdade acrescentei energicamente é que Mordred pagará tributo a Gorfyddyd e por que razão devia Gorfyddyd colocar no trono alguém que lhe paga tributo? Porque não pôr um dos seus parentes no trono? Porque não pôr o seu filho Cuneglas no nosso trono?
Cuneglas é um homem honesto insistiu Artur.
Cuneglas fará o que o pai mandar disse eu desdenhosamente e Gorfyddyd quer ser Rei Supremo, o que significa que certamente não quer que o herdeiro de outro Rei Supremo cresça para se tornar num rival. Além disso, achais que os druidas de Gorfyddyd vão deixar um rei aleijado viver? Se partirdes, Senhor, os dias de Mordred estão contados.
Artur não respondeu. Continuou sentado, com as mãos na beira da mesa e a cabeça inclinada para baixo, olhando para o chão. Ele sabia que eu estava certo, tal como sabia que, de todos os senhores da guerra da Grã-Bretanha, só ele lutava por Mordred. O resto da Grã-Bretanha queria um homem dos seus no trono de Dumnónia, enquanto Guinevere queria que o próprio Artur lá se sentasse. Ele olhou para mim.
Guinevere...? começou ele.
Sim interrompi-o tristemente.
Eu pensava que ele se referia à ambição de Guinevere de o colocar no trono de Dumnónia, mas ele tinha estado a pensar num outro assunto diferente.
Saltou da mesa e começou a andar para cima e para baixo.
Compreendo os teus sentimentos em relação a Lancelote disse ele, surpreendendo-me, mas pensa nisto, Derfel. Imagina que Benoic era o teu reino e imagina que acreditavas que eu o salvaria para to devolver, pois sabias que eu tinha feito um juramento de que o salvaria e, depois, eu não o salvava. É que Benoic foi destruído. Será que isso não te ia deixar amargo? Será que isso não te ia deixar desconfiado? O rei Lancelote sofreu imenso e esse sofrimento foi-lhe infligido pelas minhas mãos! Pelas minhas mãos! E eu quero, se puder, compensar as suas perdas. Não posso recapturar Benoic, mas talvez possa dar-lhe outro reino.
Qual? perguntei.
Ele sorriu manhosamente. Já preparara todo o esquema e sentia um enorme prazer em revelar-mo.
Silúria disse ele. Suponhamos que conseguimos vencer Gorfyddyd e, com ele, Gundleus. Gundleus não tem herdeiro, Derfel, pelo que, se conseguirmos matar Gundleus, fica um trono vago. Nós temos um rei sem trono, eles têm um trono sem rei. Mais, nós temos um rei solteiro! Oferecemos Lancelote como marido a Ceinwyn e Gorfyddyd terá a filha como rainha e nós teremos o nosso amigo no trono siluriano. É a paz, Derfel! Falou com todo o seu antigo entusiasmo, construindo uma visão maravilhosa com as suas palavras. Uma união. Uma união por casamento que eu nunca fiz, mas que agora podemos fazer de novo. Lancelote e Ceinwyn! E, para o conseguirmos, só temos de matar um homem. Apenas um.
Assim como muitos outros que teriam de morrer numa batalha, pensei eu, mas nada disse. Algures para norte soou o rumor longínquo de um trovão.
O Deus Taranis estava ciente da nossa presença, pensei, e eu esperava que ele estivesse do nosso lado. O Céu que se via pelas janelas minúsculas estava escuro como a noite.
Então? pressionou Artur.
Eu nada dissera, porque a ideia de Lancelote casar com Ceinwyn era-me tão dolorosa que eu não podia confiar no meu julgamento, mas esforcei-me por soar cortês.
Primeiro temos de comprar os Saxões e derrotar Gorfyddyd disse eu amargamente.
E se o conseguirmos? perguntou ele, impaciente, como se as minhas objecções fossem obstáculos banais.
Encolhi os ombros como se a ideia do casamento estivesse para lá da minha competência de julgar.
Lancelote gosta da ideia disse Artur e a mãe dele também. Guinevere também aprova, mas também era inevitável que aprovasse, visto que a ideia de casar Ceinwyn com Lancelote foi dela. É uma rapariga inteligente. Muito inteligente. E sorriu, como sorria sempre que pensava na mulher.
Mas nem mesmo a vossa inteligente mulher, Senhor, pode escolher os aderentes a Mitra atrevi-me a dizer.
Ele levantou a cabeça bruscamente, como se eu lhe tivesse batido.
Mitra! disse ele, furioso. Porque é que Lancelote não pode aderir?
Porque é um cobarde rosnei, incapaz de esconder por mais tempo a minha amargura.
Bors diz que não, assim como uma dúzia de outros homens desafiou-me Artur.
Perguntai a Galaad disse eu e ao vosso primo Culhwch.
De repente, começou a ouvir-se a chuva no telhado e, logo depois, começou a pingar água dos peitoris das janelas. Nimue reaparecera na pequena porta em arco ao lado da mesa de pedra, puxando novamente o capuz para cima.
Se Lancelote provar ser corajoso, prometes ser menos severo? perguntou-me Artur depois de um momento.
Se Lancelote mostrar que é um lutador, Senhor, serei menos severo. Mas eu pensava que ele era agora o guarda do vosso palácio.
O desejo dele é comandar em Durnovária apenas até a mão ferida sarar explicou Artur. Mas, se ele lutar, Derfel, vais elegê-lo?
Se ele lutar bem prometi, relutante sim. Mas tinha a certeza absoluta de que aquela era uma promessa que eu jamais teria de cumprir.
Muito bem disse Artur satisfeito como sempre que encontrava uma plataforma de entendimento. Depois virou-se, quando a porta da igreja se abriu com estrondo por causa de uma rajada de vento que empurrava a chuva, e Sansum entrou a correr seguido por dois monges. Os dois monges carregavam sacos de couro. Sacos de couro muito pequenos.
Sansum sacudiu a água da batina enquanto subia a igreja apressado.
Procurámos, Senhor disse ele sem fôlego esquadrinhámos tudo, debicámos aqui e acolá e juntámos todos os pequenos tesouros que a nossa miserável casa possui, tesouros esses que agora colocamos diante de vós, num dever humilde, mas relutante. E sacudiu a cabeça tristemente. Vamos passar fome esta estação como resultado da nossa generosidade, mas onde uma espada manda, nós, os simples servos de Deus, devemos obedecer.
Os monges despejaram o conteúdo dos dois sacos nas lajes do chão. Uma moeda rolou pelo chão até eu a fazer parar com o pé.
Ouro do Imperador Adriano! disse Sansum da moeda. Peguei nela. Era um sestércio de bronze com a cabeça do Imperador
Adriano num lado e a imagem de Britânia com o seu tridente e o seu escudo no outro. Dobrei a moeda em duas entre os dedos e atirei-a para Sansum.
Ouro de tolos, bispo disse eu.
O resto do tesouro não era muito melhor. Havia algumas moedas usadas, a maioria de cobre e algumas de prata, algumas barras de ferro que eram normalmente usadas como moeda, um pregador de ouro fraco e alguns elos de ouro de uma corrente rebentada. Tudo aquilo valia talvez uma dúzia de peças de ouro.
É tudo? perguntou Artur.
Nós damos aos pobres, Senhor! disse Sansum. Mas se as vossas necessidades são muitas, então talvez eu possa acrescentar isto. Tirou a corrente de ouro do pescoço.
A pesada cruz e a sua grossa corrente valiam facilmente quarenta ou cinquenta peças de ouro e agora, relutante, o bispo entregava-a a Artur.
O meu empréstimo pessoal para a vossa guerra, Senhor sugeriu ele. Artur ia pegar na corrente, mas Sansum puxou-a imediatamente para trás.
Senhor disse, baixando a voz, pelo que só Artur e eu o podíamos ouvir eu fui injustamente tratado no ano passado. Pelo empréstimo desta corrente sacudiu-a, fazendo os elos tilintar exijo que a minha nomeação para capelão particular do rei Mordred seja honrada. O meu lugar é ao lado do rei, Senhor, não aqui, nesta terra pantanosa e pestilenta.
Antes de Artur poder responder, a porta da igreja abriu-se de novo e um Issa todo encharcado entrou trôpego por ali dentro. Sansum virou-se furioso para o recém-chegado.
A igreja não está aberta a peregrinos! disse o bispo com brusquidão. Há serviços regulares. Agora sai! Fora!
Issa afastou o cabelo molhado do rosto, sorriu de esguelha e dirigiu-se a mim.
Eles escondem todos os seus bens ao lado do lago por detrás da casa grande, Senhor, está tudo debaixo de um monte de pedras. Eu vi-os meterem lá o tributo de hoje.
Artur arrancou a pesada corrente da mão de Sansum.
Podes ficar com os outros tesouros indicou com um gesto a colecção já puída que jazia no chão para alimentar a tua casa miserável durante o Inverno, bispo. E fica também com o teu colar para te lembrares de que o teu pescoço é um presente meu. E encaminhou-se a passos largos para a porta.
Senhor! gritou Sansum, em protesto. Imploro-vos...
Então implora. Interrompeu-o Nimue, afastando o capuz do rosto. Implora, cão. Virou-se e cuspiu no crucifixo e, em seguida, para o chão da igreja e, uma terceira vez, para Sansum. Implora, monte de lixo rosnou-lhe ela.
Meu Deus! Sansum empalideceu ao ver a sua inimiga. Cambaleou para trás, fazendo no peito o sinal da cruz. Por um momento dir-se-ia tão aterrado que parecia nem conseguir falar. Devia ter pensado que Nimue estava perdida para sempre na ilha dos Mortos. No entanto, ali estava ela, cuspindo em tudo, triunfante. Fez o sinal da cruz pela terceira vez, e rodou nos calcanhares, virando-se para Artur. Atreveis-vos a trazer uma bruxa para dentro da casa de Deus! gritou ele. Isto é sacrilégio! Oh, Cristo!
Deixou-se cair de joelhos e ergueu os olhos para as vigas do tecto. Manda o fogo do céu! Manda-o agora!
Artur ignorou-o, mergulhando na chuva pesada e persistente que esfarrapava as patéticas fitas votivas amarradas ao Espinheiro Sagrado.
Chama os outros lanceiros para dentro ordenou Artur a Issa. Os meus homens tinham esperado fora do santuário, não fosse Sansum
ter tentado esconder os seus tesouros do lado de fora da muralha circundante, mas agora os lanceiros tinham entrado no recinto para ajudar a afastar os monges fanáticos da pilha de rochas que escondia o seu tesouro secreto. Alguns dos monges caíram de joelhos ao verem Nimue. Sabiam quem ela era. Sansum correu lá para fora e atirou-se para cima das pedras, decretando dramaticamente que sacrificaria a sua vida para preservar o dinheiro de Deus. Artur sacudiu a cabeça tristemente.
Estais seguro de que quereis fazer mesmo esse sacrifício, Lorde bispo?
Meu Deus adorado! rugiu Sansum. O teu servo está a chegar, assassinado por homens malvados e pela sua bruxa imunda! Tudo o que fiz foi obedecer à Tua palavra. Recebe-me, Senhor! Recebe este Teu humilde servo! A isto seguiu-se um grito, quando ele antecipava já a sua morte, mas era apenas Issa a levantá-lo pelo cachaço e pelos fundilhos da batina, levando-o devagar da pilha de pedras para o lago onde deixou Sansum cair na água pouco funda e lamacenta. Estou a afogar-me, Senhor! gritou Sansum. Lançado para as águas poderosas como Jonas foi atirado para o oceano! Um mártir por Cristo! Assim como Paulo e Pedro foram martirizados, Senhor, também eu serei!
Fez algumas insistentes bolhas, mas ninguém além do seu Deus lhe prestava atenção, pelo que não teve outro remédio senão arrastar-se devagar para fora das águas pejadas de caparrosas lamacentas, lançando pragas aos meus homens que retiravam avidamente as pedras para o lado.
Por debaixo da pilha de rochas havia uma cobertura de tábuas de madeira que se levantava, revelando uma cisterna de pedra a abarrotar de sacos de couro e, nos sacos, havia ouro. Grossas moedas de ouro, correntes de ouro, estátuas de ouro, colares de ouro, pregadores de ouro, pulseiras de ouro, alfinetes de ouro. Todo o ouro para ali trazido por centenas de peregrinos à procura da bênção do Espinheiro e que agora Artur fazia questão de que um monge contasse e pesasse para que uma receita apropriada fosse entregue ao mosteiro. Deixou os meus homens a vigiar a contagem enquanto ele próprio levava um Sansum encharcado e a protestar até ao Espinheiro Sagrado.
Primeiro tens de aprender a criar espinheiros antes de te intrometeres nos negócios dos reis, Lorde bispo disse Artur. Não vais ser restituído à capelania do rei, mas vais ficar aqui a aprender agricultura.
Quando plantardes a próxima árvore espalhai em volta dela palha húmida e folhas aconselhei-o. Deixai que as raízes se mantenham húmidas enquanto se fixam à terra. E não transplanteis uma árvore em flor, bispo, elas não gostam. Foi esse o vosso problema com os últimos espinheiros que aqui plantastes, desenterraste-os do bosque na altura errada. Trazei-os no Inverno e cavai-lhes um bom buraco com algum estrume, palha molhada e folhas e talvez consigais um verdadeiro milagre.
Perdoa-lhes, Senhor! disse Sansum, caindo de joelhos e olhando para o céu húmido.
Artur quis visitar o Tor, mas antes perfilou-se ao lado do túmulo de Norwenna, que se tornara um lugar de veneração para os cristãos.
Ela foi uma mulher mal usada disse-me ele.
Todas as mulheres o são disse Nimue. Ela tinha-nos seguido até ao túmulo mesmo ao lado do Espinheiro Sagrado.
Não insistiu Artur. Talvez a maioria das pessoas o seja, mas as mulheres não o são mais do que os homens. Mas esta mulher foi-o e nós ainda temos de a vingar.
Tivestes a vossa oportunidade de vingança uma vez acusou-o bruscamente Nimue e deixastes que Gundleus vivesse.
Porque eu tinha esperança de que houvesse paz disse Artur. Mas da próxima vez ele morre.
A vossa mulher disse Nimue prometeu-mo.
Artur encolheu os ombros, sabendo quanta crueldade se ocultava por trás do desejo de Nimue, mas concordou com um aceno de cabeça.
Ele é teu disse ele prometo.
Virou-se e conduziu-nos aos dois por entre a chuva torrencial até ao cume do Tor. Nimue e eu regressávamos a casa, Artur ia ver Morgana.
Abraçou a irmã no salão. A máscara de ouro de Morgana reflectia um brilho baço à luz tempestuosa. À volta do pescoço trazia o colar de garras de urso encastoadas em ouro que Artur lhe trouxera de Benoic há muito, muito tempo. Agarrou-se a ele, desesperada por afecto, e eu deixei-os sozinhos. Nimue, quase como se nunca tivesse estado afastada do Tor, curvou-se para entrar na pequena porta dos aposentos reconstruídos de Merlim enquanto eu corri debaixo de chuva até à cabana de Gudovan. Encontrei o velho escrivão sentado à sua mesa, mas não a trabalhar, pois ficara cego devido às cataratas, apesar de ter dito que conseguia ainda distinguir o claro do escuro.
E agora está quase sempre escuro disse ele tristemente e, depois, sorriu. Imagino que agora já deves estar crescido de mais para te bater, Derfel.
Podes tentar, Gudovan, mas já não vai valer de muito.
E alguma vez valeu? Soltou um riso abafado. Merlim falou-me de ti quando aqui esteve a semana passada. Não que tivesse ficado muito tempo. Chegou, falou connosco, deixou-nos outro gato, como se já não tivéssemos gatos de sobra, e foi-se embora. Nem sequer passou a noite. Estava com muita pressa.
Sabes para onde foi? perguntei.
Ele não disse, mas onde achas que foi? perguntou Gudovan com um toque da sua antiga rudeza. Atrás de Nimue. Pelo menos penso que é o que ele está a fazer agora, ainda que não perceba porque há-de ele ir atrás daquela rapariga tola. Ele devia ficar com uma escrava! Fez uma pausa e, de repente, vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Sabes que Sebile morreu? continuou. Pobre mulher. Foi assassinada, Derfel! Assassinada! Cortaram-lhe a garganta. Ninguém sabe quem lhe fez isso. Algum viajante, penso eu. Em breve o mundo ficará entregue às feras, Derfel, às feras. Por um momento pareceu-me perdido, mas logo reencontrou o fio dos seus pensamentos. Merlim devia usar uma escrava. Não há nada de mal numa escrava solícita e há muitas na cidade que prestam o serviço por uma moeda. Eu uso a casa ao lado da antiga oficina de Gwlyddyn. Há lá uma mulher simpática, embora nestes últimos tempos costumemos falar mais do que andar aos pulos na cama. Estou a ficar velho, Derfel.
Não me pareces nada velho. E Merlim não anda atrás de Nimue. Ela está aqui.
Soou de novo um trovão e a mão de Gudovan apanhou um bocado de ferro que conservou apertado como protecção contra o mal.
Nimue está aqui? perguntou admirado. Mas soubemos que ela estava na ilha. Tocou de novo no ferro.
Esteve, mas já não está disse eu, sucinto.
Nimue... Articulou o nome sem querer acreditar. Ela vai ficar?
Não, vamos todos para Leste ainda hoje.
Deixando-nos sozinhos? perguntou ele irritado. Sinto falta de Hywel.
Eu também. Ele suspirou.
Os tempos mudam, Derfel. O Tor já não é o que era. Estamos todos velhos e já não há crianças. Sinto falta delas e o pobre Druidan não tem ninguém para perseguir. Pellinore discursa para o vazio, enquanto Morgana está cada vez mais amarga.
E não o foi sempre? perguntei casualmente.
Ela perdeu o poder que tinha explicou ele. Não o poder de interpretar os sonhos ou curar os enfermos, mas o poder de que desfrutava, quando Merlim estava aqui e Uther estava no trono. E ela ressente-se disso, Derfel, tal como se ressente da tua Nimue. Fez uma pausa, pensativo. Ficou sobretudo furiosa quando Guinevere mandou buscar Nimue para combater Sansum por causa daquela capela em Durnovária. Morgana acredita que ela é que devia ter sido convocada, mas ouvimos dizer que Lady Guinevere só quer à sua volta o que é bonito e, nesse caso, o que é que resta a Morgana? E soltou uma risada abafada, em resposta à sua própria pergunta. Mas ela é ainda uma mulher forte, Derfel, e, como tem a ambição do irmão, não se contentará em ficar aqui a ouvir os sonhos dos camponeses e a esfregar ervas para curar a febre do leite. Ela anda aborrecida! Tão aborrecida que até joga ao tabuleiro com o miserável do bispo Sansum do santuário. Por que o mandaram para Ynys Wydryn?
Porque não o queriam em Durnovária. Quer dizer que mesmo aqui ele faz jogos com Morgana?
Gudovan assentiu com um aceno.
Ele diz que precisa de uma companhia inteligente e que ela tem a cabeça mais esperta de Ynys Wydryn, e eu atrevo-me a dizer que ele está certo. Prega-lhe sermões, é claro, disparates intermináveis sobre uma virgem que dá à luz um Deus que depois é pregado numa cruz, mas Morgana não deixa que nada lhe passe para dentro da máscara. Pelo menos, assim o espero. Ele fez uma pausa e beberricou de um copo de chifre com hidromel onde uma vespa se debatia enquanto se afogava Quando pousou o copo, tirei a vespa e esmaguei-a em cima da mesa. O Cristianismo ganha convertidos, Derfel continuou Gudovan. Até a mulher de Gwlyddyn, aquela mulher simpática, a Ralla, se converteu, o que provavelmente significa que Gwlyddyn e os dois filhos a vão seguir. Eu não me importo, mas porque é que têm de cantar tanto?
Não gostas de cantar? arreliei-o.
Ninguém gosta mais de uma boa canção do que eu! disse ele, resoluto. A Canção da Batalha de Uther ou o Cântico da Chacina de Taranis, a isso é que eu chamo uma canção, não a estes choros e lamentos sobre serem pecadores e precisarem de perdão. Suspirou e sacudiu a cabeça. Soube que estiveste em Ynys Trebes, não foi? perguntou ele.
Contei-lhe a história da queda da cidade. Parecia uma história bem apropriada para quem ali estava sentado a ouvir a chuva cair nos campos lá fora, com as trevas a descerem por toda a Dumnónia. Quando cheguei ao fim da história, Gudovan olhava pela porta, sem nada ver, e também não disse nada. Pensei que tivesse adormecido, mas, quando me levantei do banco, ele fez um gesto com a mão para que me sentasse de novo.
As coisas estão tão mal como o bispo Sansum as pinta? perguntou.
Estão más, sim, meu amigo admiti.
Ora conta.
Contei-lhe como os Irlandeses e os habitantes da Cornualha estavam a atacar a Oeste, onde Cadwy ainda fingia governar um reino independente. Tristan fazia o que podia para deter os soldados de seu pai, mas o rei Mark não conseguia resistir à tentação de enriquecer o seu pobre reino roubando de uma Dumnónia enfraquecida. Contei-lhe como os Saxões de Aelle tinham quebrado as tréguas, mas acrescentei que o exército de Gorfyddyd ainda era o que constituía a maior ameaça.
Ele juntou os homens de Elmet, Powys e Silúria disse eu a Gudovan e, assim que terminarem as colheitas, vai trazê-los a todos para Sul.
E Aelle não luta contra Gorfyddyd? perguntou o velho escrivão.
Gorfyddyd comprou a paz com Aelle.
E Gorfyddyd vai ganhar? perguntou Gudovan. Fiz uma longa pausa.
Não disse eu, finalmente, não por ser essa a verdade, mas porque não queria que aquele velho amigo se preocupasse pensando que o último vislumbre que teria desta vida seria um clarão de luz, quando a espada de um guerreiro girasse em direcção aos seus olhos cegos. Artur vai combater contra eles disse eu e Artur tem ainda de ser vencido.
Tu também os vais combater?
É esse agora o meu trabalho, Gudovan.
Terias dado um bom escrivão disse ele tristemente. É uma profissão honrada e útil, apesar de ninguém nos fazer lordes por ela. Julgava que ele não sabia do título que me tinha sido concedido e, de repente, senti-me envergonhado por estar tão orgulhoso dele. Gudovan tacteou à procura do hidromel e bebeu mais um gole. Se vires Merlim, diz-lhe para voltar. O Tor está morto sem ele.
Direi, sim.
Adeus, Lorde Derfel disse Gudovan, e eu senti que ele sabia que não nos voltaríamos a encontrar neste mundo. Tentei abraçar o ancião,
mas ele afastou-me com medo de trair as suas emoções.
Artur esperava no portão que dava para o mar, olhos postos no Oeste, para além dos pântanos varridos por grandes e descoradas ondas de chuva.
Isto será mau para as colheitas disse ele tristemente. Um relâmpago tremeluziu por cima do mar Severn.
Houve uma tempestade como esta depois da morte de Uther disse eu.
Artur aconchegou a capa ao corpo.
Se o filho de Uther não tivesse morrido... disse ele, quedando-se em silêncio em vez de terminar o pensamento. A sua disposição estava tão sombria e gélida como o tempo.
O filho de Uther não podia ter lutado contra Gorfyddyd, Senhor, nem contra Aelle.
Nem contra Cadwy acrescentou ele amargamente. Nem contra Cerdic. Tantos inimigos, Derfel.
Então alegrai-vos por terdes amigos, Senhor.
Ele reconheceu essa verdade com um sorriso e virou-se para olhar para Norte.
Preocupo-me com um amigo disse suavemente. Estou com medo de que Tewdric não combata. Está cansado da guerra e não o posso culpar por isso. Gwent sofreu muito mais do que Dumnónia. Olhou para mim e havia lágrimas nos seus olhos, ou talvez fosse apenas a chuva. Eu queria fazer coisas tão importantes, Derfel disse ele coisas tão importantes. E, no fim, fui eu quem os traiu, não foi?
Não, meu Senhor disse eu firmemente.
Os amigos devem dizer a verdade censurou-me ele suavemente.
Vós precisáveis de Guinevere disse eu, embaraçado por estar a falar assim e estáveis destinado a ficar com ela, senão por que razão os Deuses a teriam trazido para o salão de festas na noite dos vossos esponsais? Não nos cabe a nós, Senhor, ler as mentes dos Deuses, apenas viver plenamente o nosso destino.
Ele fez um esgar ao ouvir-me dizer isto, pois gostava de acreditar que era senhor do seu próprio destino.
Achas que devemos descer como tolos os caminhos do destino?
Acho, Senhor, que quando o destino nos agarra fazemos bem em pôr a razão de lado.
E eu pus disse ele
calmamente, e sorriu-me. Amas alguém, Derfel? perguntou.
As únicas mulheres que amo, Senhor, não são para mim respondi com autocompaixão.
Ele franziu as sobrancelhas e abanou a cabeça com comiseração.
Pobre Derfel disse, com voz suave, e alguma coisa no seu tom de voz me fez olhar para ele. Será que julgava que eu quisera incluir Guinevere entre essas mulheres? Corei e pensei no que havia de dizer, mas Artur já se tinha voltado para ver Nimue a sair da casa. Um dia destes, quando tivermos tempo, tens de me contar o que se passou na ilha dos Mortos disse ele.
Contar-vos-ei, Senhor, depois da vossa vitória respondi. Quando precisardes de boas histórias para preencher as longas noites de Inverno.
Sim, depois da nossa vitória. No entanto, ele não me parecia muito esperançoso. O exército de Gorfyddyd era enorme e o nosso tão pequeno.
Mas antes de podermos lutar contra Gorfyddyd tínhamos de comprar a paz saxónica com o dinheiro de Deus. E, assim, viajámos em direcção a Lloegyr.
Sentimos o cheiro de Durocobrivis muito antes de chegarmos perto da cidade. Esse cheiro surgiu no nosso segundo dia de viagem e estávamos ainda a um dia e meio da cidade capturada, mas o vento soprava de leste e trazia consigo o cheiro forte e azedo da morte e do fumo que atravessava as terras de cultivo agora desertas. Os campos estavam prontos para as colheitas, mas as pessoas tinham fugido aterradas por causa dos Saxões. Em Cunétio, uma pequena cidade construída pelos Romanos, onde passámos a noite, os refugiados enchiam as ruas e o gado tinha sido amontoado em currais reerguidos à pressa para o Inverno. Ninguém tinha aplaudido Artur em Cunétio e não admira, pois culpavam-no tanto pelo arrastar da guerra como pelos desastres por ela provocados. Os homens resmungavam que tinha havido paz sob o comando de Uther e nada mais do que guerra sob o comando de Artur.
Os cavaleiros de Artur iam à frente da nossa silenciosa coluna. Levavam a sua armadura, lanças e espadas, mas os escudos iam deitados e levavam ramos verdes amarrados nas pontas das lanças, sinal de que vínhamos em paz. Atrás da guarda avançada marchavam os lanceiros de Lanval e depois deles duas vintenas de mulas carregadas com o ouro de Sansum e com todos os pesados escudos de couro que os cavalos de Artur usavam nas batalhas. Um segundo contingente mais pequeno de cavaleiros formava a retaguarda. O próprio Artur caminhava apeado com os meus lanceiros com caudas de lobo nos elmos mesmo atrás do portador do seu estandarte, que cavalgava com o grupo de cavaleiros da frente. A égua negra de Artur, Llamrei, era levada por Hygwydd, o seu servo, e com ele ia um estranho que imaginei ser outro servo. Nimue caminhava connosco e, tal como Artur, tentou aprender alguma coisa da língua saxónica comigo, mas nenhum deles se revelou bom aluno. Nimue depressa se enfadou com aquela língua rude enquanto Artur tinha muito mais em que pensar. Mesmo assim aprendeu devidamente algumas palavras: paz, terra, lança, comida, mãe, pai. Eu ia ser o seu intérprete, na primeira de muitas vezes em que falei por Artur e reverti as palavras do seu inimigo.
Encontrámos o inimigo ao meio-dia, quando descíamos uma longa, mas suave, encosta com bosques dos dois lados da estrada. De repente uma seta saiu de entre as árvores enterrando-se na erva mesmo à frente do nosso homem da vanguarda, Sagramor. Ele levantou uma mão e Artur gritou que todos os homens da coluna ficassem quietos.
Nada de espadas! ordenou ele. Esperem apenas!
Os Saxões deviam ter estado a observar-nos durante toda a manhã, pois tinham reunido um pequeno grupo guerreiro para nos enfrentar. Esses homens, sessenta ou setenta bem fortes, saíram de entre as árvores atrás do seu chefe, um homem de peito largo que caminhava atrás de um estandarte de chefe militar feito de chifres de veado onde estavam pendurados bocados de pele humana morena.
O chefe militar tinha o amor saxão pelas peles, um afecto sensato, pois poucas coisas evitam tão bem um golpe de espada como uma rica e espessa pele. O homem usava um colarinho de uma pesada pele preta em redor do pescoço e tiras de pele à volta da parte de cima dos braços e das coxas. O resto da sua indumentária era de couro ou de lã: um colete, calças, botas e um elmo de couro com uma crista formada por um tufo de pele preta. À cinta trazia pendurada uma longa espada, enquanto na mão empunhava a arma favorita dos Saxões o machado de lâmina larga.
Estão perdidos, wealhas? gritou ele. Wealhas era a palavra deles para nós, os Bretões. Significa estrangeiros e tem um som ridículo, tal como o nosso Sais tem para eles. Ou estão apenas cansados de viver?
Manteve-se firme, no meio do caminho, pernas abertas, cabeça erguida e o machado a descansar sobre o ombro. Tinha barba castanha e uma massa de cabelo castanho que saía nitidamente por debaixo do rebordo do elmo. Os seus homens, alguns com elmos de ferro, outros com elmos de couro e quase todos trazendo machados, formaram uma muralha de escudos, cortando a estrada. Alguns tinham cães enormes presos com trela, feras do tamanho de lobos e sabíamos que, recentemente, os Sais andavam a usar esses cães como armas, atiçando-os contra as nossas muralhas de escudos apenas alguns segundos antes de atacarem com o machado e a lança. Os cães assustavam alguns dos nossos homens ainda mais do que os Saxões.
Caminhei ao lado de Artur, parando a poucos passos do saxão desafiador. Nenhum de nós trazia lança ou escudo e as nossas espadas descansavam nas bainhas.
O meu Senhor disse eu em saxão é Artur, Protector de Dumnónia, que vem em paz.
Por agora disse o homem a paz é vossa, mas só por agora. Falava em tom de desafio, mas ficara impressionado com o nome de Artur e lançou um longo e curioso olhar ao meu Senhor antes de voltar a olhar para mim. És saxão? perguntou.
Nasci saxão. Mas agora sou britânico.
Será que um lobo se pode transformar num sapo? perguntou com o olhar carrancudo. Porque não tornares-te outra vez saxão?
Porque jurei prestar serviço a Artur disse eu e esse serviço é levar ao teu rei uma grande oferta em ouro.
Berras bem para um sapo disse ele. Chamo-me Therdig. Nunca ouvira falar dele.
A tua fama disse eu provoca pesadelos nas nossas crianças. Ele deu uma gargalhada.
Bem dito, sapo. Então quem é o nosso rei?
Aelle disse eu.
Não te ouvi, sapo. Suspirei.
Bretwalda Aelle.
Muito bem, sapo disse Therdig.
Nós, os Bretões, não reconhecíamos o título de Bretwalda, Governador da Grã-Bretanha, mas eu usara-o para apaziguar o chefe saxónico. Artur, que não percebia nada da nossa conversa, esperava pacientemente que eu estivesse pronto para traduzir alguma coisa. Mas tinha confiança em quem nomeara seu intérprete e não me apressava nem intervinha.
O Bretwalda disse Therdig está a algumas horas daqui. Podes dar-me alguma razão, sapo, para eu perturbar o seu dia com a notícia de que uma praga de ratazanas, ratos e vermes rastejou até às suas terras?
Trazemos ao Bretwalda mais ouro do que aquele que consegues imaginar, Therdig. Ouro para os vossos homens, para as vossas mulheres, para as vossas filhas e até ouro suficiente para os vossos escravos. Será esta razão suficiente?
Mostra-mo, sapo.
Era um risco, mas Artur correu esse risco de boa vontade, levando Therdig e seis dos seus homens até às mulas e revelando aí o grande tesouro guardado nos sacos. O risco era que Therdig pudesse decidir que por aquela fortuna valia a pena lutar ali mesmo, naquele momento, mas nós éramos mais do que eles e ver os homens de Artur nos seus cavalos enormes era um impedimento assustador, pelo que se limitou a pegar em três moedas de ouro, dizendo que ia informar o Bretwalda da nossa presença.
Esperarão nas Pedras ordenou-nos. Estejam lá ao fim da tarde e o meu rei virá ter convosco de manhã. Aquela ordem disse-nos que Aelle devia ter sido avisado de que nos estávamos a aproximar e que devia também ter adivinhado ao que vínhamos. Podeis ficar nas Pedras em paz disse-nos Therdig até que o Bretwalda decida o vosso destino.
Nessa noite, pois levou-nos toda a tarde a chegar às Pedras, foi a primeira vez que vi o grandioso anel. Merlim falara muitas vezes deles e Nimue ouvira falar do seu poder, mas ninguém sabia quem os tinha feito ou por que razão os grandes seixos ornamentados estavam enfileirados no seu círculo altaneiro. Nimue estava certa de que só os Deuses poderiam ter construído um lugar daqueles e, por isso, começou a entoar rezas quando nos aproximámos dos solitários monólitos cinzentos cujas sombras da noite se estendiam longas e escuras pela terra coberta de erva mortiça. Um fosso circundava as Pedras que estavam dispostas num grande círculo de pilares com outras pedras formando padieiras em cima, enquanto dentro dessa arcada tosca e maciça existiam rochas verticais mais vastas, muito juntas, em redor de um altar parecido com uma lage. Havia muitos outros círculos de pedras na Grã-Bretanha, alguns até com uma circunferência maior, mas nenhum com aquele mistério e aquela majestade, e todos nós nos quedámos em silêncio, temerosos, quando nos aproximámos.
Nimue lançou os seus feitiços e, depois, disse-nos que era seguro atravessar o fosso, pelo que vagueámos maravilhados por entre aqueles seixos dos Deuses. Líquenes cresciam espessos nas Pedras, algumas das quais tinham ficado inclinadas ou mesmo tombado ao longo dos anos, enquanto outras estavam profundamente gravadas com nomes e números romanos. Gereint fora o Senhor daquelas Pedras, um cargo legado por Uther para recompensar o homem responsável por defender a nossa fronteira leste contra os Saxões, se bem que agora um outro homem tivesse de ficar com o título e tentar empurrar Aelle para lá da incendiada Durocobrivis. Nimue disse-me que era vergonhoso que Aelle exigisse encontrar-se connosco ali, tão dentro de Dumnónia.
Havia bosques num vale que ficava a um quilómetro e meio para Sul e nós usámos as mulas para ir buscar madeira suficiente para fazer uma fogueira que ardia brilhante naquela noite assombrada por fantasmas. Outras fogueiras ardiam também para lá do horizonte leste, prova de que os Saxões nos tinham seguido. Foi uma noite desassossegada. A nossa fogueira ardia como uma fogueira de Beltain, mas as sombras das chamas nas pedras ainda nos enervavam. Nimue lançou feitiçarias de segurança em redor do fosso e essa precaução acalmou os nossos homens, mas os cavalos presos às estacas relincharam e pisaram a erva durante toda a noite. Artur suspeitava que eles sentiam o cheiro dos cães de guerra dos Saxões, mas Nimue tinha a certeza de que os espíritos dos mortos rodopiavam à nossa volta. Os nossos vigias agarravam com força as hastes das lanças e desafiavam cada sopro de vento que passava pelas elevações dos túmulos que circundavam as Pedras, mas não fomos incomodados por nenhum cão, nenhum espírito nem nenhum guerreiro, se bem que poucos de nós tivessem dormido.
Artur não pregou olho. A determinada altura da noite pediu-me para passear um pouco com ele e eu andei a seu lado em redor do círculo exterior das grandes pedras. Durante algum tempo caminhou sem falar, com a cabeça descoberta sob as estrelas.
Já aqui estive uma vez disse, quebrando o silêncio abruptamente.
Quando, Senhor? perguntei.
Há dez anos. Talvez onze. Encolheu os ombros como se o número de anos não fosse importante. Merlim trouxe-me aqui. Quedou-se novamente em silêncio e eu nada disse, pois senti pelas suas últimas palavras que aquele lugar ocupava um lugar especial na sua memória. E ocupava mesmo, pois, finalmente, ele parou e apontou para a rocha cinzenta que parecia um altar, no coração das Pedras.
Foi ali, Derfel, que Merlim me deu a Caledfwlch.
Eu olhei para a bainha da espada, ornamentada com losangos.
Um presente precioso, Senhor disse eu.
Um presente pesado, Derfel. Ele veio com um fardo. Puxou-me pelo braço para que continuássemos a andar. Ele deu-ma na condição de eu fazer o que ele me ordenasse e eu obedeci-lhe. Fui para Benoic e aprendi com Ban quais os deveres de um rei. Aprendi que um rei é tão bom como o homem mais pobre debaixo do seu comando. Esta foi a lição de Ban.
Mas foi uma lição que o próprio Ban não aprendeu disse eu, amargamente, pensando em como Ban ignorara o seu povo para enriquecer Ynys Trebes.
Artur sorriu.
Alguns homens são melhores na teoria do que na prática, Derfel. Ban era muito sensato, mas pouco prático. Eu tenho de ser ambas as coisas.
Para serdes rei? atrevi-me a perguntar, pois expor essa ambição era contra tudo o que Artur afirmava sobre o seu destino.
Mas Artur não se ofendeu com as minhas palavras.
Para ser um governante disse ele.
Parou de novo e olhou por cima das sombras de capas pretas dos seus homens adormecidos para a pedra no centro do círculo e, para mim, a laje de rocha parecia tremeluzir ao luar, ou talvez fosse apenas a minha fértil imaginação.
Merlim mandou-me despir e ficar em cima dessa pedra durante toda a noite continuou Artur. Havia chuva e vento e estava frio. Ele entoou feitiços e mandou-me segurar a espada com o braço estendido e mantê-la assim. Lembro-me que o meu braço estava como o fogo e, por fim, ficou entorpecido, mas mesmo assim ele não me deixou largar a Caledfwlch. "Segura-a" gritava-me ele "segura-a", e eu ali fiquei, a tremer enquanto ele convocava os mortos para testemunharem a sua oferta. E eles vieram, Derfel, filas e filas de mortos: guerreiros de olhos vazios e elmos enferrujados que ressuscitaram do Outro Mundo para verem a espada ser-me oferecida. Sacudiu a cabeça ante tal lembrança. Ou talvez eu tenha apenas sonhado com esses homens comidos pelos bichos. Eu era muito novo, percebes, e muito impressionável e Merlim sabe como incutir o medo dos Deuses nas mentes jovens. Uma vez assustou-me com uma multidão de testemunhas mortas. No entanto ensinou-me como chefiar homens, como encontrar guerreiros que precisassem de chefes e como combater nas batalhas. Disse-me qual era o meu destino, Derfel. Ficou novamente em silêncio. O seu rosto comprido estava ameaçador sob a luz do luar. Depois sorriu com pesar e acrescentou: Só disparates.
As suas duas últimas palavras foram ditas tão baixinho que eu quase não as ouvi.
Disparates? perguntei, incapaz de esconder a minha desaprovação.
Eu tenho de entregar a Grã-Bretanha aos seus Deuses disse Artur, vendo-se, pelo tom de voz que escarnecia desse dever.
E entregareis, Senhor disse eu.
Ele encolheu os ombros. Merlim queria um braço forte para segurar uma boa espada disse ele, mas o que os Deuses querem, Derfel, isso eu não sei. Se querem a Grã-Bretanha, para que precisam de mim? Ou de Merlim? Será que os Deuses precisam dos homens? Ou somos como cães a ladrar para chamar os donos que não querem ouvir?
Nós não somos cães disse eu. Somos criaturas dos Deuses. Eles devem ter um desígnio bem definido para nós.
Devem? Se calhar servimos apenas para os fazer rir.
Merlim diz que perdemos contacto com os Deuses disse eu, teimoso.
Tal como Merlim perdeu contacto connosco disse Artur firmemente. Viste como ele fugiu de Durnovária naquela noite em que regressaste de Ynys Trebes? Merlim anda muito ocupado, Derfel. Merlim anda atrás dos seus Tesouros da Grã-Bretanha e o que fizermos em Dumnónia não tem qualquer consequência para ele. Eu podia construir um grande reino para Mordred, podia restabelecer a paz e a justiça, podia fazer que cristãos e pagãos dançassem juntos sob a luz do luar e nada disso interessaria a Merlim. Merlim apenas anseia pelo momento em que tudo será restituído aos Deuses e, quando esse momento chegar, ele exigirá que eu lhe devolva a Caledfwlch. Essa era a sua outra condição. Eu podia ficar com a espada dos Deuses, disse ele, desde que a devolvesse quando ele precisasse dela.
Havia na voz de Artur um indício de escárnio que me perturbava.
Não acreditais no sonho de Merlim? perguntei.
Acredito que Merlim é o homem mais sábio da Grã-Bretanha disse Artur muito sério e que ele sabe mais do que eu tenho esperança de alguma vez vir a saber. Sei também que o meu destino está ligado ao dele, tal como o teu, julgo eu, está ligado ao de Nimue, mas também acho que Merlim se sente aborrecido desde o momento em que nasceu, pelo que está a fazer o que os Deuses fazem. Anda a divertir-se à nossa custa. O que significa, Derfel, que, quando chegar o momento de devolver a Caledfwlch, será o momento em que mais precisarei da espada.
Então o que ides fazer?
Não faço ideia. Não faço a mínima ideia. Pareceu achar esse pensamento divertido, pois sorriu e pôs-me uma mão no ombro. Vai dormir, Derfel. Amanhã preciso da tua língua e não a quero mal articulada por causa do cansaço.
Deixei-o, e lá consegui dormir um pouco encostado a uma pedra pouco distinta batida pela sombra da lua, mas antes de adormecer fiquei a pensar na tão distante noite em que Merlim deixara em brasa o braço de Artur devido ao peso da espada e a sua alma pesada devido ao fardo do destino. Tentava imaginar por que razão Merlim escolhera Artur, pois agora parecia-me que Artur e Merlim eram como dois opostos. Merlim acreditava que o caos só podia ser vencido aproveitando os poderes do mistério enquanto Artur acreditava nos poderes dos homens. Pensei na possibilidade de Merlim ter treinado Artur para governar os homens, para que ele próprio ficasse livre para governar os poderes ocultos, mas também percebi, apesar de obscuramente, que chegaria o momento em que todos nós teríamos de escolher entre eles e temia esse momento. Rezei para que ele nunca chegasse. Depois adormeci até que o sol se levantou, lançando a sombra de uma única coluna de pedra que estava isolada da parte de fora do círculo sobre o coração das Pedras onde nós, os guerreiros cansados, guardávamos o resgate de um reino.
Bebemos água, comemos pão duro e afivelámos as nossas espadas antes de espalharmos o ouro pela erva orvalhada ao lado do altar de pedra.
O que vai impedir Aelle de ficar com o ouro e continuar a fazer a guerra? perguntei a Artur enquanto ele esperava a chegada do saxão. Afinal, Aelle já tinha ficado com ouro nosso antes e isso não o impedira de incendiar Durocobrivis.
Artur encolheu os ombros. Usava a sua armadura de reserva, uma cota de malha romana já amolgada e cheia de cicatrizes infligidas em muitas batalhas. Usava a pesada cota de malha por debaixo de uma das suas capas brancas.
Nada respondeu ele excepto a pouca honra que possa ter. E é por isso que devemos ter de lhe oferecer mais do que ouro.
Mais? perguntei eu, mas Artur não respondeu, porque na linha do horizonte, a oriente, embelezada pela luz da madrugada, apareceram os Saxões.
Formavam uma interminável linha ao longo do horizonte com os tambores de guerra a rufar e os lanceiros dispostos em posição de batalha, embora as suas armas trouxessem folhas nas pontas para mostrar que não nos iriam fazer mal por enquanto. Aelle vinha à frente. Foi o primeiro de dois homens que conheci que reclamavam o título de Bretwalda. O outro veio mais tarde e veio dar-nos mais problemas, mas Aelle já era problema suficiente. Era um homem alto, com um rosto duro e desinteressante e uns olhos negros que não revelavam nenhum dos seus pensamentos. Tinha barba negra, as bochechas com cicatrizes de batalhas e faltavam-lhe dois dedos na mão direita. Usava uma cota de tecido preto com um cinto de couro, botas de couro, um elmo de ferro com chifres de touro em cima e sobre tudo isto trazia uma capa de pele de urso que largou quando o calor do dia se tornou de mais para vestuário tão flamejante. O seu estandarte era uma cabeça de touro coberta de sangue presa no bastão de uma lança.
O seu grupo guerreiro era de duzentos homens, talvez um pouco mais, e mais de metade desses homens traziam grandes cães de guerra presos com cordas de couro. Atrás dos guerreiros vinha uma horda de mulheres, crianças e escravos. Agora havia saxões mais do que suficientes para nos dominarem por completo, mas Aelle dera a sua palavra de que estávamos em paz, pelo menos até ele decidir o nosso destino, e os seus homens não se mostraram hostis. A formação deles parou do lado de fora do fosso circundante enquanto Aelle, o seu conselho, um intérprete e um par de feiticeiros vieram encontrar-se com Artur. Os feiticeiros tinham o cabelo espetado com excrementos de animal e usavam capas grosseiras de pele de lobo. Quando eles rodopiaram para dizer as suas feitiçarias, as pernas, as caudas e os focinhos dos lobos afastaram-se dos corpos pintados dos bruxos. Gritavam essas feitiçarias à medida que se aproximavam, anulando qualquer magia que pudéssemos ter feito contra o seu chefe. Nimue agachou-se atrás de nós e entoou as suas contra feitiçarias.
Os dois chefes observaram-se mutuamente. Artur era mais alto e Aelle mais encorpado. O rosto de Artur era impressionante, o de Aelle assustador. Era implacável, o rosto de um homem que viera de além mar para fixar um reino numa terra estranha, e ele construíra esse reino com uma brutalidade directa e selvagem.
Devia matar-te agora mesmo, Artur disse ele. Ficava com um inimigo a menos para destruir.
Os seus feiticeiros, nus por baixo das peles comidas pelas traças, agacharam-se atrás dele. Um mastigava um bocado de terra e o outro rolava os olhos enquanto Nimue, com o orifício do olho vazio, sibilava na direcção deles. A luta entre Nimue e os feiticeiros era uma guerra privada que os dois chefes ignoraram.
Chegará a altura, Aelle disse Artur em que talvez venhamos a encontrar-nos numa batalha. Mas por agora ofereço-te a paz.
Eu estava quase à espera de que Artur se inclinasse perante Aelle que, ao contrário de ele próprio, era um rei, mas Artur tratou o Bretwalda de igual para igual e Aelle aceitou o tratamento sem protestar.
Porquê? perguntou Aelle rudemente.
Aelle não usou rodeios como nós, os Britânicos, costumávamos fazer. Reparei nessa diferença entre nós e os Saxões. Os pensamentos dos Britânicos seguiam curvas e meandros, como as intricadas espirais da sua joalharia, enquanto os Saxões eram brutos e directos, tão rudes como os pesados pregadores de ouro e as correntes para o pescoço que mais pareciam cepos. Os Britânicos raramente abordavam um assunto precipitadamente, perdendo-se em rodeios, envolvendo-o em alusões e sugestões, sempre à procura de manobras, mas os Saxões dão a estocada deixando a subtileza de lado. Uma vez Artur afirmou que eu tinha essa mesma franqueza saxónica e eu penso que ele o disse como um elogio.
Artur ignorou a pergunta de Aelle. Pensei que já tínhamos paz. Nós tínhamos um acordo selado com ouro.
O rosto de Aelle não traiu nenhuma vergonha por ter quebrado a trégua. Limitou-se a encolher os ombros, como se uma paz quebrada fosse coisa sem importância.
Então, se uma trégua falhou, porquê comprar outra? perguntou.
Porque eu tenho uma disputa com Gorfyddyd replicou Artur, adoptando a forma rude dos Saxões e procuro a tua ajuda nessa disputa.
Aelle acenou com a cabeça assentindo.
Mas se eu te ajudar a destruíres Gorfyddyd, tu ficas mais forte. Porque deveria eu fazer isso?
Porque, se não o fizeres, então Gorfyddyd vai destruir-me e, se o fizer, será ele mais forte.
Aelle riu-se, mostrando os dentes apodrecidos.
Acaso um cão se importa com qual de dois ratos ele mata? perguntou Aelle.
Eu traduzi esta frase por se um cão se importava com qual de dois veados ele derruba. Pareceu-me mais diplomático e reparei que o intérprete de Aelle, um escravo britânico, não disse ao seu senhor.
Não admitiu Artur, mas os veados não são todos iguais. O intérprete de Artur disse que os ratos não eram iguais e eu não disse a Artur. No máximo, Lorde Aelle continuou Artur preservo Dumnónia e faço Powys e Silúria meus aliados. Mas, se Gorfyddyd ganhar, ele unirá Elmet, Rheged, Powys, Silúria e Dumnónia contra ti.
Mas também terás Gwent do teu lado disse Aelle. Era um homem perspicaz e rápido.
É verdade, mas também o terá Gorfyddyd, se se chegar a uma guerra entre Britânicos e Saxões.
Aelle grunhiu. A situação actual, com os Britânicos a lutarem entre si, era-lhe favorável, mas sabia que as guerras britânicas acabariam por cessar. Uma vez que tudo indicava que Gorfyddyd iria ganhar essas guerras em breve, a presença de Artur proporcionava-lhe uma forma de prolongar o conflito dos seus inimigos.
Então o que queres de mim? perguntou.
Os feiticeiros estavam agora a saltar de gatas como gafanhotos humanos enquanto Nimue dispunha pedrinhas no chão. O desenho das pedrinhas deve ter perturbado os feiticeiros, pois começaram a soltar ganidos de aflição. Aelle ignorou-os.
Quero que dês a Dumnónia e a Gwent três meses de paz disse Artur
Estás apenas a comprar paz? Aelle vociferou essas palavras e até Nimue se sobressaltou. O saxão apontou com uma mão enluvada na direcção do seu grupo de guerreiros acocorados com as mulheres, os cães e os escravos para lá do fosso pouco profundo. O que é que um exército faz em tempo de paz? Diz-me! Eu prometi-lhes mais do que ouro. Prometi-lhes terra! Prometi-lhes escravos! Prometi-lhes o sangue dos wealhas e tu dás-me paz? Cuspiu. Em nome de Thor, Artur, vou dar-te paz, mas a paz será feita atravessando os teus ossos e os meus homens vão revezar-se para possuírem a tua mulher. É essa a minha paz! Cuspiu para a erva e olhou para mim. Diz ao teu senhor, cão disse ele que metade dos meus homens acabaram de chegar de barco. Não têm as colheitas feitas e nem meios para alimentar a família durante o Inverno. Não podemos comer ouro. Se não deitarmos a mão a terras e a cereais, vamos ficar esfomeados. De que serve a paz para um homem esfomeado?
Traduzi para Artur, deixando de lado os insultos maiores. Um olhar de dor perpassou o rosto de Artur. Aelle viu esse olhar e interpretou-o como fraqueza, pelo que se virou desdenhosamente para se ir embora
Dou-vos duas horas de avanço, ralé atirou ele, por cima do ombro e depois vou perseguir-te.
Ratae disse Artur, mesmo sem esperar que eu traduzisse a ameaça de Aelle.
O saxão virou-se. Não disse nada, limitando-se a olhar para o rosto de Artur. O fedor do seu manto de pele de urso era terrível: uma mistura de suor, excrementos e gordura. Ele esperou.
Ratae disse Artur de novo. Diz-lhe que pode ser tomada.
Diz-lhe que está cheia das coisas que ele deseja. Diz-lhe que a terra protegida por ela será dele.
Ratae era a fortaleza que protegia a fronteira com os Saxões mais a leste que Gorfyddyd detinha e, se Gorfyddyd perdesse essa fronteira, os Saxões ficariam cerca de trinta quilómetros mais perto do coração de Powys.
Traduzi. Levou-me algum tempo a identificar Ratae a Aelle, mas, por fim, ele entendeu. Não ficou contente, pois parecia que Ratae era uma formidável fortaleza romana que Gorfyddyd fortalecera com uma maciça muralha de terra.
Artur explicou que Gorfyddyd levara os melhores lanceiros da guarnição militar para se juntarem ao exército que formara para a invasão de Gwent e Dumnónia. Não precisou explicar que Gorfyddyd só tinha arriscado esse movimento, porque acreditava na paz que comprara de Aelle, uma paz que Artur estava agora a sobrelançar. Artur revelou que uma comunidade cristã em Ratae construíra um mosteiro mesmo do lado de fora da muralha de terra e as entradas e saídas de monges ganharam o direito de passagem pelas muralhas. O comandante da fortaleza, explicou ele, era um dos raros cristãos de Gorfyddyd e dera a sua bênção ao mosteiro.
Como é que ele sabe? perguntou-me Aelle.
Diz-lhe que tenho um homem comigo, um homem de Ratae, que sabe como se pode chegar ao mosteiro e que, de boa vontade, lhe servirá de guia. Diz-lhe que peço apenas que o homem seja recompensado com a vida. Percebi então quem devia ser o estranho que caminhara ao lado de Hygwydd. Percebi também que Artur sabia que teria de sacrificar Ratae mesmo antes de deixar Durnovária.
Aelle exigiu saber mais sobre o traidor e Artur contou-lhe como o homem tinha desertado de Powys e tinha vindo para Dumnónia à procura de vingança, porque a sua mulher o tinha abandonado por um dos chefes militares de Gorfyddyd.
Aelle conferenciou com o seu conselho enquanto os dois feiticeiros balbuciavam rezas contra Nimue. Um deles apontou-lhe um fémur humano, mas Nimue limitou-se a cuspir. O gesto pareceu concluir a guerra de feitiçarias, pois os dois bruxos cambalearam para trás enquanto Nimue se levantava e esfregava as mãos. O conselho de Aelle regateou connosco. A certa altura insistiram que lhes entregássemos todos os grandes cavalos de guerra, mas Artur exigiu todos os cães de guerra em troca e, finalmente, já a tarde ia alta, os Saxões aceitaram a oferta de Ratae e o ouro de Artur. Aquele foi talvez o maior tesouro em ouro alguma vez pago por um bretão a um saxão, mas Aelle também insistiu em ficar com dois reféns que, prometeu ele, seriam libertados se o ataque a Ratae não se revelasse uma armadilha preparada em conjunto por Gorfyddyd e Artur. Escolheu ao acaso, separando dois dos guerreiros de Artur: Balin e Lanval.
Nessa noite comemos com os saxões. Eu estava cheio de curiosidade de conhecer aqueles homens que eram meus irmãos por nascimento e até temia sentir algum laço de parentesco com eles, mas na verdade achei a sua companhia repelente. O seu humor era grosseiro, os modos rudes e o cheiro da carne embrulhada em peles causava náuseas. Alguns deles troçavam de mim dizendo que eu me parecia com o rei Aelle, mas eu não via nenhuma parecença entre os seus traços duros e nada interessantes e o meu rosto. Finalmente Aelle rosnou para que aqueles que me escarneciam se calassem e, depois, lançou-me um olhar gelado antes de me ordenar que convidasse os homens de Artur a partilhar a refeição da noite composta por grandes fatias de carne assada que comemos com as mãos enluvadas, roendo a carne a ferver até o suco ensanguentado pingar das nossas barbas. Demos-lhes hidromel, eles deram-nos cerveja. Seguiram-se algumas escaramuças entre bêbados, mas ninguém foi morto. Aelle, tal como Artur, permaneceu sóbrio, apesar dos dois feiticeiros do Bretwalda terem ficado abominavelmente embriagados. Depois de terem adormecido ao lado do seu próprio vomitado, Aelle explicou que aqueles eram loucos em contacto com os Deuses. Tinha outros padres, disse ele, que eram sãos, mas considerava-se que os lunáticos possuíam um poder especial de que os Saxões podiam precisar.
Tememos que pudesses trazer Merlim explicou.
Merlim é senhor de si mesmo respondeu Artur, mas esta é a sua sacerdotisa. E fez um gesto na direcção de Nimue, que olhava para o saxão com um só olho.
Aelle fez um gesto que devia ser a sua forma de afastar o mal. Temia Nimue por causa de Merlim e era bom saber disso.
Mas Merlim está na Grã-Bretanha? perguntou Aelle, medroso.
Há quem diga que sim respondi eu por Artur e há quem diga que não. Quem sabe? Talvez esteja lá fora na escuridão. E fiz um gesto com a cabeça na direcção da escuridão para lá das pedras iluminadas pelo fogo.
Aelle usou o bastão de uma lança para picar e acordar um dos seus feiticeiros loucos. O homem latiu lastimavelmente e Aelle pareceu satisfeito, pois acreditava que aquele som afastaria qualquer mal. O Bretwalda tinha a cruz de Sansum ao pescoço, enquanto outros dos seus homens usavam os pesados colares de ouro de Ynys Wydryn. Mais tarde, nessa noite, quando a maior parte dos saxões já ressonavam, alguns dos escravos contaram-nos a história da queda de Durocobrivis e de como o príncipe Gereint tinha sido apanhado com vida e depois torturado até à morte. A história fez Artur chorar. Nenhum de nós tinha conhecido Gereint muito bem, mas ele fora um homem modesto e sem ambições que tentara fazer o seu melhor para reprimir as forças saxónicas em crescimento. Alguns dos escravos imploraram-nos que os levássemos connosco, mas não nos atrevemos a ofender os nossos anfitriões acedendo a tais pedidos.
Viremos buscá-los um dia prometeu-lhes Artur. Viremos. Os saxões foram-se embora na tarde do dia seguinte. Aelle insistiu que esperássemos mais uma noite antes de deixarmos as Pedras, para ter a certeza de que não o seguiríamos. Levou Balin, Lanval e o homem de Powys com o seu grupo guerreiro. Artur consultou Nimue para saber se Aelle cumpriria a sua palavra e ela assentiu com um aceno e disse que sonhara com a condescendência do saxão e com o regresso a salvo dos nossos reféns. Mas o sangue de Ratae mancha as tuas mãos disse ela num tom agoirento.
Arrumámos tudo e preparámo-nos para a nossa viagem, que só começaria na madrugada do dia seguinte. Artur nunca ficava satisfeito quando era obrigado à inactividade e, quando a tarde começava a dar lugar à noite, pediu que Sagramor e eu fôssemos com ele até aos bosques a sul. Durante algum tempo parecia que vagueávamos sem destino, mas por fim Artur parou por baixo de um grande carvalho que tinha penduradas longas barbas de líquenes cinzentos.
Sinto-me sujo disse ele. Não cumpri o meu juramento para com Benoic e agora estou a comprar a morte de centenas de bretões.
Não podíeis ter salvo Benoic insisti.
Uma terra que compra poetas em vez de lanceiros não merece sobreviver acrescentou Sagramor.
Quer eu a pudesse ter salvado ou não disse Artur isso não interessa. Eu tinha um juramento para com Ban e não o cumpri.
Um homem cuja casa está a arder não leva água para apagar o fogo do vizinho disse Sagramor.
O seu rosto negro, tão impenetravelmente duro como o de Aelle, deixara os saxões fascinados. Muitos tinham lutado contra ele nos últimos anos e acreditavam que ele era algum tipo de demónio chamado por Merlim, e Artur brincara com esses medos dando a entender que deixaria Sagramor a defender a nova fronteira. Na verdade Artur levaria Sagramor para Gwent, pois precisava de todos os seus melhores homens para combater Gorfyddyd.
Vós não podíeis manter o juramento para com Benoic continuou Sagramor pelo que os Deuses vos perdoarão. Sagramor tinha uma visão firme e pragmática dos Deuses e dos homens. Esse era um dos seus pontos fortes.
Os Deuses podem perdoar-me disse Artur, mas eu não. E agora pago aos saxões para matarem os bretões. Estremeceu perante semelhante pensamento. Ontem à noite dei por mim a querer Merlim aqui disse ele para saber se aprovaria o que estamos a fazer.
Aprovaria, sim garanti eu.
Nimue não aprovara que se sacrificasse Ratae, mas Nimue era sempre mais pura do que Merlim. Ela entendia a necessidade de pagar aos saxões, mas revoltava-se contra a ideia de pagar com sangue britânico, mesmo que esse sangue pertencesse aos nossos inimigos.
Mas não interessa o que Merlim pensa disse Artur, furioso. Não teria importância se todos os padres, os druidas e os bardos da Grã-Bretanha concordassem comigo. Pedir a bênção de outro homem serve simplesmente para evitar tomar a responsabilidade. Nimue tem razão. Serei responsável por todas as mortes em Ratae.
Que mais poderíeis ter feito? perguntei.
Não percebes, Derfel acusou-me Artur, amargo, se bem que, na verdade, se estivesse a acusar a si próprio. Eu sempre soube que Aelle quereria mais do que ouro. São Saxões! Não querem paz, querem terra! Eu sabia disso, senão, por que outra razão teria trazido aquele pobre homem de Ratae. Mesmo antes de Aelle pedir, eu estava pronto para dar e quantos homens irão morrer por essa previsão? Trezentos? E quantas mulheres serão levadas para a escravidão? Duzentas? E quantas crianças? Quantas famílias serão separadas? E para quê? Para provar que sou um chefe melhor do que Gorfyddyd? Será que a minha vida vale tantas almas?
Essas almas disse eu manterão Mordred no trono.
Outro juramento! disse Artur amargamente. Todos estes juramentos que nos obrigam moralmente a fazer alguma coisa! Estou obrigado por juramento feito a Uther a pôr o seu neto no trono, obrigado por juramento a Leodegan a reconquistar Henis Wyren. Parou abruptamente e Sagramor olhou para mim alarmado, pois era a primeira vez que algum de nós ouvia falar de um juramento para lutar contra Diwrnach, o terrível rei irlandês de Lleyn que roubara o território de Leodegan. No entanto, de entre todos os homens disse Artur num lamento só eu quebro os juramentos tão facilmente. Quebrei o juramento que tinha feito a Ban e quebrei o juramento que tinha feito a Ceinwyn. Pobre Ceinwyn. Foi a primeira vez que algum de nós o ouviu lamentar tão abertamente o compromisso rompido. Eu pensara que Guinevere era um sol tão brilhante no firmamento de Artur que tivesse ofuscado o brilho pálido de Ceinwyn, tornando-o até invisível, mas parecia que a lembrança da princesa de Powys ainda feria a consciência de Artur como uma espora. Tal como o pensamento do destino lúgubre de Ratae o feria agora. Talvez eu devesse mandar-lhes um aviso disse ele.
E perder os reféns? perguntou Sagramor.
Artur abanou a cabeça. Eu troco a minha vida por Balin e Lanval.
Ele estava a pensar fazer isso mesmo. Eu sabia-o. A agonia do remorso corroía-o e ele procurava uma saída daquele emaranhado de consciência e dever, mesmo ao preço da sua própria vida.
Se Merlim me visse agora, ia rir-se de mim disse ele.
Sim concordei ia rir-se de vós.
A consciência de Merlim, se é que ele tinha alguma, era apenas um guia para a forma como pensavam os homens pequenos e assim servia de incentivo a Merlim para agir de forma contrária. A consciência de Merlim era apenas uma brincadeira para divertir os Deuses. A de Artur era um fardo.
Ele olhava agora para o chão musgoso por baixo da sombra do carvalho. O dia dava lugar ao crepúsculo enquanto a mente de Artur se afundava nas trevas. Será que ele estava mesmo tentado a abandonar tudo? Cavalgar até à praça forte de Aelle e trocar a sua existência pelas vidas das almas de Ratae? Acho que estava mesmo, mas então a lógica insidiosa da sua ambição cresceu, sobrepondo-se ao seu desespero, como uma onda a inundar as areias ermas de Ynys Trebes.
Há cem anos disse ele devagar esta terra vivia em paz. Havia justiça. Um homem podia limpar a terra na alegre convicção de que os seus netos viveriam para a cultivar. Mas esses netos estão mortos, assassinados pelos Saxões ou pelos da sua própria raça. Se não fizermos alguma coisa, então o caos vai espalhar-se até nada mais haver senão Saxões arrogantes e os seus feiticeiros loucos. Se Gorfyddyd ganhar, vai despojar Dumnónia da sua riqueza, mas, se eu ganhar, abraçarei Powys como um irmão. Detesto o que estamos a fazer, mas se o fizermos, então podemos endireitar as coisas. Olhou para nós os dois. Pertencemos todos a Mitra disse ele, por isso podeis os dois testemunhar este juramento a Ele feito. Fez uma pausa. Estava a aprender a detestar juramentos e os deveres que eles impunham, mas era tal o seu estado depois do encontro com Aelle que queria sobrecarregar-se com mais um.
Procura uma pedra, Derfel ordenou.
Dei um pontapé numa pedra tirando-a do solo e sacudi a terra que a cobria. Depois, por ordem de Artur, arranhei o nome de Aelle na pedra com a ponta da minha faca. Artur usou a sua própria faca para escavar um buraco fundo no chão junto ao carvalho. Depois levantou-se.
O meu juramento é o seguinte: se eu sobreviver a esta batalha com Gorfyddyd, vingarei as almas inocentes que condenei em Ratae. Vou matar Aelle. Vou destruí-lo a ele e aos seus homens. Vou servi-los como pasto para os corvos e dar a riqueza que tiverem às crianças de Ratae. Vocês são os dois minhas testemunhas e, se eu faltar a este juramento, ficam os dois livres de todos os laços que os ligam a mim. Deixou cair a pedra no buraco e os três juntos atirámos terra para cima dela. Que os Deuses me perdoem disse Artur pelas mortes que acabei de causar.
Depois, partimos para causar mais algumas.
Viajámos para Gwent por Corinium. Ailleann ainda lá vivia e, apesar de Artur ter visto os filhos, não recebeu a mãe deles para que nenhuma palavra sobre esse encontro pudesse magoar a sua Guinevere, se bem que me tivesse feito portador de um presente para Ailleann. Ela recebeu-me com bondade, mas encolheu os ombros quando viu o presente de Artur. Era um pequeno pregador de prata esmaltada com uma pintura de um animal muito parecido com uma lebre, mas com pernas e orelhas mais curtas. Viera do tesouro do santuário de Sansum, se bem que Artur tivesse meticulosamente substituído o preço do pregador por moedas da sua própria bolsa.
Ele desejava ter alguma coisa melhor para vos mandar disse eu, entregando a mensagem de Artur, mas, enfim, por esta altura os Saxões devem ter as nossas melhores jóias.
Houve uma altura disse ela amargamente em que os seus presentes vinham do amor, não do remorso.
Ailleann era ainda uma mulher atraente, apesar do seu cabelo ter já algumas madeixas grisalhas e os seus olhos estarem embaciados pela resignação. Usava um longo vestido de lã azul e o cabelo preso em dois caracóis iguais acima das orelhas. Olhou com atenção para o estranho animal esmaltado.
O que achas que é? perguntou-me ela. Não é uma lebre. Será um gato?
Sagramor diz que se chama coelho. Ele viu-os em Cappadocia, seja lá isso onde for.
Não deves acreditar em tudo o que Sagramor te diz censurou-me Ailleann enquanto prendia o pequeno pregador ao vestido. Tenho jóias que chegam para uma rainha acrescentou ela conduzindo-me para o pequeno pátio da sua casa romana, mas continuo a ser uma escrava.
Artur não vos libertou? perguntei, chocado.
Tem medo que eu volte para Armórica. Ou para a Irlanda e leve os gémeos para longe dele. Encolheu os ombros. No dia em que os rapazes atingirem a maioridade, Artur dar-me-á a minha liberdade e sabes o que vou fazer? Vou ficar aqui mesmo. Fez um gesto, indicando-me uma cadeira à sombra de uma vinha. Pareces mais velho disse ela enquanto deitava no meu copo um vinho cor de palha de uma garrafa embrulhada em verga. Soube que Lunete te deixou acrescentou, entregando-me uma taça feita de chifre.
Acho que nos deixámos um ao outro.
Ouvi dizer que ela agora é uma sacerdotisa de Isis disse Ailleann trocista. Ouço muita coisa sobre Durnovária e não me atrevo a acreditar em metade do que ouço.
Tal como? perguntei.
Se não sabes, Derfel, então é melhor continuares na ignorância. Bebeu um gole e fez uma careta. Artur é assim. Nunca quer ouvir as más notícias, só as boas. Ele até acredita que há alguma coisa de bom nos gémeos.
Chocou-me ouvir uma mãe falar assim dos seus filhos.
Tenho a certeza de que há.
Ela lançou-me um olhar suave e divertido. Os rapazes não estão melhor do que antes e nunca foram bons. Ressentem-se do pai. Acham que deviam ser príncipes e, por isso, comportam-se como príncipes. Não há mal nenhum nesta cidade que não tenha sido começado ou incentivado por eles e se eu os tento controlar, eles chamam-me puta. Esmigalhou um pedaço de bolo e atirou as migalhas para alguns pardais.
Um servo varria o outro lado do pátio com um feixe de galhos de árvore até que Ailleann lhe ordenou que nos deixasse sozinhos. Depois perguntou-me pela guerra e eu tentei esconder o meu pessimismo sobre o enorme exército de Gorfyddyd.
Não podes levar Amhar e Loholt contigo? perguntou Ailleann algum tempo depois. Eles deviam dar bons soldados.
Duvido que o pai deles pense que já têm idade suficiente disse eu.
Se é que ele pensa neles. Manda-lhes dinheiro. Quem me dera que não mandasse. Passou os dedos pelo novo pregador. Todos os cristãos da cidade dizem que Artur está condenado à destruição.
Ainda não, Senhora.
Ela sorriu. Não durante muito tempo, Derfel. As pessoas subestimam Artur. Vêem a sua bondade, ouvem a sua simpatia, escutam a sua conversa sobre justiça e nenhum deles, nem sequer tu, sabe o que arde dentro dele.
E o que é?
Ambição disse ela peremptória e, depois, pensou por uns instantes. A sua alma continuou é uma carruagem puxada por dois cavalos: ambição e consciência. Mas digo-te, Derfel, o cavalo da ambição está no arreio da mão direita e irá sempre à frente do outro. E ele é esperto, muito esperto. Sorriu tristemente. Observa-o, Derfel, quando ele parecer condenado, quando tudo parecer estar perdido e, nessa altura, ele vai deixar-te atónito. Eu já vi isso antes. Ele ganhará, mas depois o cavalo da consciência puxará as rédeas e Artur cometerá o seu erro do costume, que é perdoar aos seus inimigos.
E isso é mau?
Não é uma questão de ser bom ou mau, Derfel, mas sim uma questão de aspecto prático. Nós, os Irlandeses, sabemos uma coisa acima de todas as outras: um inimigo perdoado é um inimigo que terá de ser constantemente combatido. Artur confunde moralidade com poder e piora essa mistura ao acreditar sempre que as pessoas são inerentemente boas, por piores que sejam, e é por isso, presta atenção ao que te digo, que ele nunca terá paz. Ele anseia pela paz, fala da paz, mas a sua própria alma confiante é a razão pela qual ele sempre terá inimigos. A não ser que Guinevere consiga meter alguma dureza na alma dele. Pode ser que consiga. Sabes quem é que ela me faz lembrar?
Não sabia que a tínheis conhecido disse eu.
Também nunca conheci a pessoa que ela me faz lembrar, mas ouço coisas e conheço Artur muito bem. Ela parece-se com a mãe dele: muito atraente e muito forte e acho que ele fará qualquer coisa para lhe agradar.
Mesmo ao preço da sua consciência? Ailleann sorriu com a pergunta.
Devias saber, Derfel, que algumas mulheres querem sempre que os seus homens paguem um preço exorbitante. Quanto mais o homem pagar, maior é o valor da mulher, e eu suspeito que Guinevere é uma senhora que se dá um grande valor. E assim é que ela deve ser. Assim é que todas devíamos ser. Disse estas últimas palavras com tristeza e, em seguida, levantou-se da cadeira. Diz-lhe que lhe mando saudades disse-me ela enquanto caminhávamos de novo pela casa e diz-lhe que, por favor, leve os filhos para a guerra.
Mas Artur não os levou.
Deixa passar mais um ano disse-me ele, quando partimos na manhã seguinte. Tinha jantado com os gémeos e tinha-lhes dado pequenos presentes, mas todos nós tínhamos notado o mau humor com que Ãmhar e Loholt tinham recebido o afecto do pai. Artur também notara e era por isso que estava, ao contrário do que era normal, muito severo enquanto marchávamos para Oeste.
Às crianças nascidas de mães solteiras disse ele depois de um longo silêncio falta-lhes uma parte da alma.
E a vossa alma, Senhor? perguntei eu.
Remendo-a todas as manhãs, Derfel, bocadinho por bocadinho. Suspirou. Eu devia ter tempo para dar a Amhar e Loholt e só os Deuses sabem onde vou encontrar tempo, porque dentro de quatro ou cinco meses serei pai outra vez. Se ainda viver acrescentou tristemente.
Então Lunete estava certa e Guinevere estava grávida.
Fico feliz por vós, Senhor disse eu, apesar de estar a pensar no comentário de Lunete de como Guinevere estava infeliz com essa gravidez.
Fico feliz por mim! Ele riu-se e, de repente, o seu mau humor foi superado. E feliz por Guinevere. Será bom para ela e, daqui a dez anos, Derfel, Mordred assumirá o trono e Guinevere e eu podemos arranjar um lugar feliz para criar o nosso gado, as crianças e os porcos. Nessa altura serei feliz. Vou treinar a Llamrei para puxar uma carroça e usar a Excalibur como aguilhão para os bois que puxarem o arado.
Tentei imaginar Guinevere como lavradora numa quinta, mesmo que fosse uma quinta muito rica, mas não consegui evocar essa imagem. Porém, nada disse.
De Corinium fomos para Glevum, depois atravessámos o Severn e marchámos pelo interior de Gwent. Constituíamos um grande espectáculo, pois Artur cavalgava deliberadamente com os estandartes a esvoaçar e os homens com as armaduras de combate. Marchávamos em grande estilo, pois queríamos dar às pessoas uma nova confiança. Naquele momento eles não tinham nenhuma. Todos supunham que Gorfyddyd sairia vitorioso e, mesmo sendo tempo de colheitas, os campos estavam taciturnos. Passámos por uma eira e a flauta tocava o Lamento de Essylt em vez da alegre canção que se costumava tocar e que dava ritmo aos malhos. Notámos também como todas as vivendas, casas e cabanas estavam estranhamente vazias de tudo o que fosse valioso. Os bens possuídos estavam a ser escondidos, provavelmente enterrados, para que os invasores de Gorfyddyd não deixassem o povo sem nada.
As toupeiras estão outra vez a ficar ricas disse Artur amargamente. Só Artur é que não cavalgava com a sua melhor armadura.
Morfans tem a armadura de escamas disse-me ele, quando lhe perguntei por que usava a cota de malha de reserva. Morfans era aquele guerreiro horrível com quem eu conversara na festa que se seguira à chegada de Artur a Caer Cadarn tantos anos antes.
Morfans? perguntei, atónito. Como é que ele ganhou tal presente?
Não é um presente, Derfel. Morfans apenas a levou emprestada e durante toda a semana tem andado a cavalgar perto dos homens de Gorfyddyd. Eles pensam que eu já lá estou e talvez isso os tenha levado a fazer uma pausa. Pelo menos até agora não tivemos notícias de nenhum ataque.
Não pude deixar de rir só de pensar no rosto horrível de Morfans oculto por detrás dos protectores das faces do elmo de Artur e talvez o engodo tivesse funcionado, pois, quando nos juntámos ao rei Tewdric no forte romano de Magnis, o inimigo ainda não tinha saído das fortalezas dos montes de Powys.
Tewdric, vestido com a sua elegante armadura romana, já parecia um velho. O cabelo estava grisalho e havia uma inclinação no seu porte que não existia na última vez que o vira. Recebeu as notícias sobre Aelle com um grunhido, mas fez um esforço para ser mais amável.
Boas notícias disse ele cortesmente e, depois, esfregou os olhos se bem que Gorfyddyd nunca precisasse da ajuda dos Saxões para nos vencer. Tem homens que cheguem.
O forte romano estava em ebulição. Os armeiros faziam pontas para as lanças e deitaram-se abaixo quilómetros de troncos de freixo para fazer as hastes. Carroças cheias de cereais acabados de ser colhidos chegavam de hora a hora e os fornos dos padeiros ardiam com a mesma intensidade das fornalhas dos ferreiros, pelo que havia uma constante pira de fumo sobre as muralhas protegidas por paliçadas. No entanto, e apesar da nova colheita, o exército que se reunira estava esfomeado. A maioria dos lanceiros estavam acampados do lado de fora das muralhas, alguns estavam mesmo a quilómetros de distância e havia constantes discussões sobre a distribuição de pão duro e feijões secos. Outros contingentes queixavam-se da água poluída pelas latrinas despejadas pelos homens acampados a montante. Havia doenças, fome e deserção, prova de que Tewdric e Artur nunca tinham enfrentado o problema de comandar um exército tão grande.
Mas se nós temos dificuldades disse Artur com optimismo imagina os problemas de Gorfyddyd.
Eu preferia ter os problemas dele aos meus disse Tewdric, melancólico.
Os meus lanceiros, ainda sob o comando de Galaad, estavam acampados a treze quilómetros a norte de Magnis, onde Agrícola, o comandante de Tewdric, vigiava atentamente os montes que marcavam a fronteira entre Gwent e Powys. Senti uma súbita alegria ao ver de novo os seus elmos com caudas de lobo. Depois do derrotismo sentido no campo, de repente, era bom pensar que, pelo menos ali, estavam homens que nunca seriam derrotados. Nimue veio comigo e os meus homens juntaram-se em volta dela para que ela pudesse tocar as pontas das lanças e as lâminas das espadas para lhes dar poder. Reparei que até os cristãos queriam o seu toque pagão. Ela estava a fazer o que competia a Merlim e, como sabiam que ela tinha saído da ilha dos Mortos, julgavam que ela era quase tão poderosa como o seu mestre.
Agrícola recebeu-me dentro de uma tenda, a primeira que eu vi. Era um lugar espantoso com um mastro alto central e tinha quatro cantos onde umas varas seguravam uma capota de linho que filtrava o Sol, pelo que o cabelo curto e grisalho de Agrícola parecia estranhamente amarelo. Envergava a sua armadura romana e estava sentado a uma mesa cheia de pergaminhos. Era um homem austero e o seu cumprimento foi superficial, se bem que tivesse elogiado os meus homens. Eles estão confiantes. Mas também o está o inimigo e eles são muitos mais do que nós. O seu tom era cruel.
Quantos? perguntei.
Agrícola pareceu ofendido com a minha rudeza, mas eu já não era o rapaz de outros tempos, quando conhecera o senhor da guerra de Gwent. Eu próprio era agora um senhor da guerra, um comandante de homens e tinha o direito de saber as probabilidades que aqueles homens tinham de enfrentar. Ou talvez não fosse a minha franqueza que irritara Agrícola, mas talvez o facto de não querer ser lembrado da preponderância do inimigo. No entanto acabou por me dar os números. De acordo com os nossos espiões disse ele Powys reuniu seiscentos lanceiros só da sua terra. Gundleus trouxe mais duzentos e cinquenta homens da Silúria, ou talvez mais. Ganval de Elmet mandou duzentos homens e só os Deuses sabem quantos homens sem senhor procuraram o estandarte de Gorfyddyd só por uma parte dos saques.
Homens sem senhor eram vagabundos, desterrados, assassinos e selvagens que eram arrastados para um exército pelas pilhagens que podiam ganhar nas batalhas. Esses homens eram temidos, porque não tinham nada a perder e tinham tudo a ganhar. Duvidava que tivéssemos muitos desses do nosso lado, não só porque todos achavam que íamos perder, mas também porque tanto Tewdric como Artur tinham má impressão em relação a essas criaturas sem senhor. No entanto, curiosamente, muitos dos melhores cavaleiros de Artur tinham outrora sido homens desse género. Guerreiros como Sagramor tinham lutado nos exércitos romanos que tinham sido despedaçados pelos invasores pagãos da Itália e fora o espírito tutelar e jovem de Artur que juntara esses mercenários sem senhor num grupo guerreiro.
E há mais continuou Agrícola, agoirento. O reino de Comovia doou homens e ainda ontem ouvimos dizer que Oengus Mac Airem de Demétia chegara com um grupo guerreiro dos seus blackshields, talvez uns cem homens bem fortes. E outro relatório diz que os homens de Gwynedd se juntaram a Gorfyddyd.
Soldados recrutados? perguntei. Agrícola encolheu os ombros.
Quinhentos ou seiscentos. Talvez mil. Mas eles não virão enquanto as colheitas não tiverem terminado.
Comecei a desejar não ter perguntado.
E os nossos números, Senhor?
Agora que Artur chegou fez uma pausa, setecentas lanças. Eu não disse nada. Não admirava, pensei eu, que as pessoas de Gwent e de Dumnónia andassem a enterrar os seus tesouros e a sussurrar que Artur devia deixar a Grã-Bretanha. Tínhamos uma horda para enfrentar.
Agradecia disse Artur num tom acre, como se a ideia da gratidão fosse completamente alheia ao seu pensamento que não divulgasses os números. Já tivemos deserções que chegassem. E mais, temos também de cavar os nossos próprios túmulos.
Nenhum dos meus homens desertou insisti.
Não, admitiu ele ainda não. Levantou-se e pegou na sua curta espada romana que estava pendurada numa das vigas da tenda e, depois, parando à porta, lançou um olhar sinistro na direcção dos montes inimigos. Os homens dizem que és amigo de Merlim.
Sou sim, meu Senhor.
Ele virá?
Não sei, Senhor. Agrícola grunhiu.
Rezo para que venha. Alguém precisa de dizer coisas acertadas a este exército. Todos os comandantes estão convocados esta noite para Magnis. Um conselho de guerra disse ele num tom amargo, como se soubesse que tais conselhos levavam a mais disputas do que camaradagem. Está lá ao pôr do Sol.
Galaad foi comigo. Nimue ficou com os meus homens, pois a presença dela incutia-lhes confiança e eu fiquei contente por ela não ir, pois o conselho foi aberto com uma oração do bispo Conrad de Gwent que parecia impregnado de derrotismo implorando ao seu Deus que nos desse força para enfrentar um adversário tão poderoso. Galaad com os braços abertos, a posição dos cristãos em oração, murmurava juntamente com o bispo enquanto os pagãos resmungavam que não devíamos pedir força, mas sim a vitória. Eu desejei que tivéssemos alguns druidas entre nós, mas Tewdric, um cristão, não tinha nenhum e Balise, o velho que assistira à aclamação de Mordred, morrera durante o primeiro Inverno que eu passei em Benoic. Agrícola estava certo ao esperar que Merlim viesse, pois um exército sem druidas dava já uma vantagem ao inimigo.
Estavam cerca de quarenta ou cinquenta homens no conselho, todos chefes militares ou comandantes. Encontrámo-nos na sala de pedra vazia das termas de Magnis, que me fazia lembrar a igreja de Ynys Wydryn. O rei Tewdric, Artur, Agrícola e o filho de Tewdric, o príncipe herdeiro Meurig, estavam sentados numa mesa sobre um estrado de pedra. Meurig crescera tornando-se numa criatura magra e pálida, parecendo extremamente infeliz dentro da armadura romana que não lhe assentava bem. Já tinha idade suficiente para lutar, mas com aquele seu ar nervoso não parecia muito adequado para a batalha. Piscava constantemente os olhos, como se tivesse acabado de sair de uma sala muito escura para a luz do sol, e não parava de mexer numa pesada cruz de ouro que trazia ao pescoço. De todos os comandantes, só Artur não usava o seu equipamento de guerra, parecendo deveras descontraído com as suas roupas de homem do campo.
Os guerreiros irromperam em vivas e bateram com as pontas das lanças, quando o rei Tewdric anunciou que se pensava que os Saxões se tinham afastado da fronteira leste, mas esses foram os últimos vivas durante um longo período nessa noite, porque depois Agrícola levantou-se e apresentou bruscamente o seu cálculo dos dois exércitos. Não se referiu a todos os pequenos contingentes do inimigo, mas mesmo sem essas adições era claro que o exército de Gorfyddyd ultrapassaria em dobro o nosso.
Só teremos de matar duas vezes mais rápido! gritou Morfans lá de trás. Ele devolvera a armadura de escamas a Artur, jurando que só um herói conseguia usar aquele monte de metal e ainda ter forças para lutar. Agrícola ignorou a interrupção, acrescentando que as colheitas deviam acabar no prazo de uma semana e que os mercenários de Gwent viriam, então, aumentar o nosso contingente. Ninguém pareceu ficar contente com tais notícias.
O rei Tewdric propôs que devíamos lutar contra Gorfyddyd sob a protecção das muralhas de Magnis. Dai-me uma semana disse ele e eu encherei tanto esta fortaleza com as novas colheitas que Gorfyddyd nunca mais nos fará tombar. Lutem aqui, fez um gesto na direcção da escuridão para lá das portas do salão e, se a batalha começar a correr mal, metemo-nos dentro dos portões e deixamos que eles gastem as lanças nas paliçadas de madeira. Era a forma de guerra que Tewdric preferia e tinha há muito aperfeiçoado: guerra por cerco, em que podia usar o trabalho de engenheiros romanos mortos já há muito tempo para frustrar lanças e espadas. Um murmúrio de concordância ecoou por toda a sala, murmúrio esse que aumentou ainda mais quando Tewdric disse ao conselho que Aelle poderia estar a planear atacar Ratae.
Segurem Gorfyddyd aqui disse um homem e ele voltará a correr para norte, quando souber da entrada de Aelle pela porta das traseiras.
Aelle não vai fazer a minha batalha. Artur falava pela primeira vez e a sala ficou em silêncio.
Artur parecia embaraçado por ter falado com tanta firmeza. Sorriu como se a pedir desculpas ao rei Tewdric e quis saber o local exacto onde o inimigo estava reunido. É claro que Artur já sabia, mas estava a perguntar para que nós, os restantes, ouvíssemos a resposta.
Agrícola respondeu por Tewdric.
Os homens deles mais avançados estão dispostos em fila entre o Monte de Coei e Caer Lud enquanto o exército principal está reunido em Branogenium. E há mais homens a chegar de Caer Sws.
Os nomes pouco significavam para nós, mas Artur parecia entender a geografia.
Então eles guardam os montes entre nós e Branogenium?
Todas as passagens confirmou Agrícola e todos os cumes dos montes.
Quantos estão no Vale do Lugg? perguntou Artur.
Pelo menos duzentos dos seus melhores lanceiros. Eles não são loucos, Senhor acrescentou Agrícola amargamente.
Artur levantou-se. Ele saía-se bem nestes conselhos, dominando facilmente multidões de homens intratáveis. Sorriu-nos.
Os cristãos vão compreender isto melhor disse ele, lisonjeando subtilmente os homens que mais provavelmente se poderiam opor a ele. Imaginem uma cruz cristã. Aqui em Magnis estamos na base da cruz. O mastro da cruz é a estrada romana que vai de Magnus para Branogenium e os braços da cruz são constituídos pelos montes que barram essa estrada. O Monte de Coei fica no braço esquerdo, Caer Lud no direito e o Vale do Lugg no centro da cruz. O vale é por onde a estrada e o rio atravessam os montes. Saiu de trás da mesa e sentou-se na parte da frente do tampo para estar mais próximo da audiência. Quero que pensem em qualquer coisa disse ele. A luz das chamas das tochas presas nas paredes lançava sombras nas suas faces esguias, mas os seus olhos brilhavam e o seu tom era enérgico. Toda a gente sabe que devemos perder esta batalha disse ele. Eles são muito mais do que nós. Ficamos aqui à espera que Gorfyddyd nos ataque. Esperamos, alguns de nós ficam desanimados e arrumamos as lanças. Outros adoecem. Todos nós matutamos naquele grande exército reunido na bacia formada pelos montes em redor de Branogenium e tentamos não imaginar a nossa muralha de escudos cercada e o inimigo a aproximar-se de nós vindo de três lados ao mesmo tempo. Mas pensem no inimigo! Eles também esperam, mas enquanto esperam ficam mais fortes! Vêm homens da Comovia, de Elmet, de Demétia, de Gwynedd. Homens sem terra que vêm para ganhar terras e homens sem senhor que vêm para conseguir pilhagens. Sabem que vão ganhar e sabem que esperamos como ratos encurralados por um bando de gatos. Sorriu de novo e levantou-se.
Mas nós não somos ratos. Temos alguns dos melhores guerreiros que alguma vez levantaram uma lança. Temos campeões! Os vivas começaram. Nós podemos matar gatos! Sabemos esfolá-los também! Mas... A última palavra fez parar o aplauso seguinte assim que este começou.
Mas continuou Artur, não se ficarmos aqui à espera de sermos atacados. Ficamos aqui à espera, atrás das muralhas de Magnis, e o que é que acontece? O inimigo marchará à nossa volta. As nossas casas, as nossas mulheres, os nossos filhos, as nossas terras, os nossos rebanhos e as nossas colheitas passam a ser deles e tudo o que nós passamos a ser é ratos apanhados numa ratoeira. Temos de atacar e atacar em breve.
Agrícola esperou que os vivas dumnonianos acabassem.
Atacar onde? perguntou, amargo.
Onde eles menos esperam, Senhor, no seu lugar mais forte. O Vale do Lugg. Mesmo no topo da cruz! Mesmo no coração! Levantou a mão para impedir os vivas. O Vale é um lugar estreito disse ele onde nenhuma muralha de escudos pode ser cercada. A estrada atravessa o rio num vau a norte do vale. Falava de sobrolho carregado, tentando lembrar-se de um lugar que só tinha visto uma vez na vida, mas Artur tinha a memória de um soldado para os terrenos e só precisava de ver o lugar uma vez. Precisaríamos de pôr homens no monte a oeste para impedir os seus arqueiros de atirarem flechas lá para baixo, mas depois de entrarmos no vale, juro que não nos podem tirar de lá. Agrícola protestou.
Podemos aguentar lá, mas como fazemos para entrar? Eles têm lá duzentos lanceiros, talvez mais, mas até mesmo cem homens podem aguentar aquele vale durante todo o dia. Quando tivermos conseguido chegar a lutar ao outro lado do vale, Gorfyddyd terá já descido com a sua horda de Branogenium. Pior, os Blackshields irlandeses que guarnecem o Monte de Coei podem marchar para sul dos montes e atacar-nos pela retaguarda. Podemos não sair de lá, Senhor, mas seremos mortos onde estivermos.
Os Irlandeses no Monte de Coei não interessam disse Artur descuidadamente. Estava agitado e não conseguia estar quieto. Começou a andar no estrado para um lado e para o outro, explicando e adulando. Pensai, peço-vos, Senhor disse para Tewdric no que acontecerá se ficarmos aqui. O inimigo virá, retiramo-nos para trás de paredes inconquistáveis e eles vão atacar as nossas terras. Lá para meados do Inverno estaremos vivos, mas será que mais alguém em Gwent e Dumnónia estará vivo? Não. Aqueles montes a sul de Branogenium são as muralhas de Gorfyddyd. Se abrirmos brechas nessas muralhas ele tem de nos combater e, se ele combater no Vale do Lugg, é um homem derrotado.
Os duzentos homens que ele tem no Vale do Lugg vão impedir-nos insistiu Agrícola.
Esses homens vão esfumar-se como a bruma! proclamou Artur, confiante. São duzentos homens que nunca enfrentaram cavalos com armaduras numa batalha.
Agrícola abanou a cabeça.
O vale está cortado por uma barreira de árvores cortadas. O cavalo com armadura será detido fez uma pausa para bater com o punho na palma da mão e morto. Proferiu a palavra de forma retumbante e o carácter definitivo do seu tom fez Artur sentar-se.
Pairava no ar um cheiro de derrota. Vindo de fora das termas, onde os ferreiros trabalhavam noite e dia, ouvi o sibilar de uma lâmina recém-forjada a ser mergulhada na água.
Talvez me deis permissão para falar quem disse isto foi Meurig, o filho de Tewdric. Tinha uma voz estranhamente alta, quase petulante e ele era, evidentemente, míope, pois semicerrava os olhos e erguia a cabeça sempre que queria olhar para um homem que estivesse na parte principal do salão. O que eu gostaria de perguntar disse ele depois do pai lhe ter dado permissão para se dirigir ao conselho é o seguinte: afinal porque é que lutamos? E piscou rapidamente os olhos depois de fazer a pergunta.
Ninguém respondeu. Talvez estivéssemos todos admirados de mais com a pergunta.
Deixem-me... permitam-me... consintam-me que explique disse Meurig num tom pedante. Ele podia ser novo, mas possuía a confiança de um príncipe, se bem que eu achasse falsa a modéstia com que encobria as suas declarações irritantes. Combatemos Gorfyddyd, corrijam-me se eu estiver errado, devido à nossa já longa aliança com Dumnónia. Essa aliança foi importante para nós, não duvido, mas Gorfyddyd, se bem entendi, não tem planos para o trono de Dumnónia.
Soaram protestos pelo salão, vindos do nosso lado, dos dumnonianos, mas Artur levantou a mão, pedindo silêncio e fez um gesto para que Meurig continuasse. Meurig piscou os olhos e mexeu mais uma vez na cruz.
Pergunto-me por que será que lutamos. Qual é, se é que posso exprimir-me assim, o nosso casus belli?
O caos belo, podes dizê-lo! gritou Culhwch. Culhwch tinha-me visto quando eu entrei e atravessara o salão para me dar as boas-vindas. Agora, dizia com a boca colada ao meu ouvido: Estes filhos da puta têm mas é os escudos finos de mais, Derfel, e estão a ver se se escapam.
Artur levantou-se de novo e disse cortesmente a Meurig.
A causa da guerra, meu príncipe, é o juramento feito por vosso pai de preservar o trono do rei Mordred e é evidente o desejo do rei Gorfyddyd de usurpar esse trono ao meu rei.
Meurig encolheu os ombros.
Corrigi-me, por favor, peço-vos... mas... se bem percebo estas coisas.. Gorfyddyd não procura destronar o rei Mordred.
Estais certo disso? gritou Culhwch.
Há indícios disse Meurig, irritado.
Os filhos da puta andaram a falar com o inimigo segredou-me Culhwch ao ouvido. Alguma vez tiveste uma faca encostada às costas, Derfel? Artur tem uma agora.
Artur permaneceu calmo.
Que indícios? perguntou suavemente.
O rei Tewdric manteve-se em silêncio enquanto o filho falava, prova de que lhe tinha dado permissão para ele sugerir, apesar de delicadamente, que Gorfyddyd devia ser apaziguado em vez de confrontado, mas agora, com um aspecto envelhecido e cansado, o rei assumiu o controlo da sessão.
Não há indícios, Senhor, dos quais eu queira fazer depender a minha estratégia. Contudo e quando Tewdric pronunciou esta palavra com tanto ênfase todos percebemos que Artur perdera o debate, contudo, Senhor, estou convencido de que não precisamos provocar Powys desnecessariamente.
Deixai-nos ver se podemos ou não ter paz. Fez uma pausa, como se temesse que a palavra enfurecesse Artur, mas Artur nada disse. Tewdric suspirou. Gorfyddyd luta disse ele calma e cuidadosamente por causa de um insulto que fizeram à sua família. Fez nova pausa, temendo que a sua franqueza tivesse ofendido Artur, mas Artur nunca foi homem para fugir à responsabilidade e acenou afirmativamente, concordando relutante com a sinceridade de Tewdric. ao passo que nós, continuou Tewdric lutamos para manter o juramento que fizemos a Uther, o Rei Supremo. Um juramento pelo qual prometemos preservar o trono de Mordred. Eu, pela minha parte, não vou quebrar esse juramento.
Nem eu! disse Artur bem alto.
Mas, e se, Lorde Artur, o rei Gorfyddyd não tiver planos para esse trono? perguntou o rei Tewdric. E se ele pretender manter Mordred como rei? Nesse caso, porque combatemos?
O reboliço espalhou-se pela sala. Nós, os Dumnonianos, sentíamos o cheiro da traição, os homens de Gwent sentiam o cheiro de um escape à guerra e durante algum tempo gritámos uns com os outros até que, por fim, Artur conseguiu restabelecer a ordem batendo com a mão na mesa.
Do último mensageiro que mandei para Gorfyddyd disse Artur recebi a cabeça metida num saco. Estais a sugerir, Senhor, que mandemos outro?
Tewdric abanou a cabeça.
Gorfyddyd tem-se recusado a receber os meus mensageiros. São obrigados a voltar para trás na fronteira. Mas, se esperarmos aqui e deixarmos o seu exército esgotar as suas forças contra as nossas muralhas, então acredito que se sentirá desencorajado e negociará.
Os homens dele murmuraram, concordando.
Artur tentou mais uma vez dissuadir Tewdric. Evocou a imagem do nosso exército enraizado por detrás das muralhas enquanto a horda de Gorfyddyd devastava as quintas onde se tinham acabado de fazer as colheitas, mas os homens de Gwent não seriam dissuadidos nem pela sua oratória nem pela sua paixão. Só viam muralhas de escudos cercadas e campos pejados de homens mortos e, por isso, agarravam-se à crença do seu rei de que a paz viria se eles se limitassem a recolher-se em Magnis e deixassem Gorfyddyd cansar os seus homens batendo com as lanças contra as fortes muralhas de Magnis. Começaram a exigir a concordância de Artur para a sua estratégia e eu vi a dor estampada no seu rosto. Tinha perdido. Se ficasse ali à espera, Gorfyddyd exigiria a sua cabeça. Se fugisse para a Armórica viveria, mas estaria a abandonar Mordred e o seu sonho de uma Grã-Bretanha justa e unida. O clamor no salão aumentou e foi então que Galaad se levantou e gritou, pedindo uma oportunidade para ser ouvido.
Tewdric apontou para Galaad, que primeiro se apresentou.
Sou Galaad, Senhor disse ele um príncipe de Benoic. Se o rei Gorfyddyd não recebe mensageiros de Gwent nem de Dumnónia, de certeza que não recusará um da Armórica. Deixai-me ir, Senhor, a Caer Sws perguntar o que Gorfyddyd pretende fazer com Mordred. E, se eu for, Senhor, aceitais a minha palavra como sendo o veredicto dele?
Tewdric aceitou com manifesta satisfação. Ficava contente com qualquer coisa que pudesse afastar o perigo da guerra, mas ainda estava ansioso pela concordância de Artur.
Imaginemos que Gorfyddyd decreta que Mordred está seguro sugeriu ele a Artur. O que ides fazer então?
Artur olhou para a mesa. Via o seu sonho desvanecer-se, mas não podia mentir para salvar esse sonho, pelo que ergueu os olhos com um sorriso triste. Nesse caso, Senhor, deixo a Grã-Bretanha e confio Mordred à vossa guarda.
Mais uma vez, nós, os dumnonianos, gritámos em protesto, mas desta vez Tewdric silenciou-nos.
Não sabemos que resposta o príncipe Galaad nos vai trazer disse ele, mas prometo-vos isto: se o trono de Mordred estiver ameaçado então eu, o rei Tewdric, lutarei. Se não estiver, não vejo razão para lutar.
E tivemos de nos contentar com essa promessa. Tudo indicava que a guerra dependia da resposta de Gorfyddyd. Para a conhecer, Galaad partiu a cavalo rumo ao norte na manhã seguinte.
Eu fui com Galaad. Ele não queria que eu o acompanhasse, alegando que a minha vida estaria em perigo, mas eu discuti com ele como nunca tinha discutido antes. Também pedi a Artur, dizendo que pelo menos um dumnoniano devia ouvir Gorfyddyd declarar as suas intenções em relação ao nosso rei, e Artur defendeu o meu caso junto de Galaad, que finalmente cedeu. Afinal de contas éramos amigos, se bem que, para minha própria segurança, Galaad tivesse insistido que eu viajasse como seu servo e levasse o seu símbolo no meu escudo.
Tu não tens símbolo disse-lhe eu.
Agora tenho disse ele e ordenou que os nossos escudos fossem pintados com cruzes. Porque não? perguntou-me ele. Afinal, sou cristão.
Não me parece certo disse eu. Eu estava acostumado a escudos de guerreiros com brasões de touros, águias, dragões e veados, não com um pedaço descarnado de geometria religiosa.
Eu gosto disse ele e, além disso, tu és agora o meu humilde servo, Derfel, pelo que a tua opinião não tem nenhum interesse para mim. Absolutamente nenhum. Riu-se e escapou de um murro que lhe dei no braço.
Fui obrigado a ir a cavalo para Caer Sws. Em todos os anos que passei com Artur nunca me acostumei a sentar-me no dorso de um cavalo. A mim sempre me pareceu uma coisa natural sentar bem atrás na garupa do cavalo, mas assim era impossível prender os flancos do animal com os joelhos, pelo que se tinha de escorregar para a frente até se ficar inclinado logo atrás do pescoço, com os pés a balançar no ar atrás das patas da frente do cavalo. Acabei por meter um pé na cilha da sela para ter um ponto de apoio, recurso este que ofendeu Galaad, que se orgulhava de ser um bom cavaleiro.
Monta em condições! disse-me ele.
Mas não há lugar para pôr os pés!
O cavalo tem quatro. Quantos mais queres?
Cavalgámos em direcção a Caer Lud, a maior fortaleza de Gorfyddyd nos montes fronteiriços. A cidade ficava num monte, numa curva do rio, e nós calculávamos que as sentinelas estariam menos atentas do que as que guardavam a estrada romana no Vale do Lugg. Mesmo assim não dissemos o que vínhamos realmente fazer a Powys, limitando-nos a dizer que éramos homens sem terra, vindos da Armórica, a tentar entrar no país de Gorfyddyd. Os guardas, ao descobrirem que Galaad era um príncipe, insistiram em escoltá-lo até ao comandante da cidade e assim nos levaram pela cidade que estava cheia de homens armados cujas lanças estavam amontoadas em cada porta e cujos elmos estavam empilhados sob todos os bancos das tavernas. O comandante da cidade era um homem perturbado que nitidamente detestava as responsabilidades de comandar uma guarnição avassalada pela iminência da guerra.
Soube que devíeis ser de Armórica quando vi os vossos escudos, Senhor disse ele a Galaad. Um símbolo estranho aos nossos olhos provincianos.
Um símbolo honrado aos meus disse Galaad em tom solene, sem me encarar.
Com certeza, com certeza concordou o comandante. Chamava-se Halsyd. É claro que sois bem-vindo, Senhor. O nosso Rei Supremo recebe todos... Fez uma pausa, embaraçado. Esteve quase a dizer que Gorfyddyd recebia todos os guerreiros sem terra, mas essa expressão era quase um insulto, quando dirigida a um príncipe privado de terras de um reino da Armórica. ... todos os homens corajosos disse o comandante, emendando a tempo. Não estaríeis a pensar ficar aqui, por acaso? Estava preocupado que fôssemos mais duas bocas esfomeadas numa cidade com dificuldades em alimentar a guarnição já existente.
Vou para Caer Sws anunciou Galaad. Com o meu servo. Fez um gesto na minha direcção.
Que os Deuses favoreçam a vossa viagem, Senhor.
E, assim, entrámos no país inimigo. Cavalgámos por vales tranquilos onde as medas de milho decoravam os campos e os pomares se apresentavam carregados com as maçãs amadurecidas. No dia seguinte estávamos entre os montes, seguindo uma estrada de terra que rasgava grandes extensões de bosques húmidos até que, por fim, subimos para lá das árvores e atravessámos o desfiladeiro que descia até à capital de Gorfyddyd. Senti um arrepio nervoso, quando vi as toscas muralhas de terra de Caer Sws. O exército de Gorfyddyd podia estar reunido em Branogenium, a cerca de sessenta quilómetros dali, mas, mesmo assim, a terra em redor de Caer Sws estava carregada de soldados. As tropas tinham levantado abrigos toscos com paredes de pedra e telhados de erva e esses abrigos rodeavam o forte onde esvoaçavam oito estandartes mostrando que homens de oito reinos serviam nas fileiras cada vez mais numerosas de Gorfyddyd.
Oito? perguntou Galaad. Powys, Silúria, Elmet e quem mais?
Comovia, Demétia, Gwynedd, Rheged e os Blackshields de Demétia disse eu, terminando a lúgubre lista.
Não admira que Tewdric queira a paz disse Galaad serenamente, surpreendido com a hoste de homens acampados nas duas margens do rio que corria ao lado da capital do inimigo.
Descemos em direcção à colmeia de ferro. Vieram crianças atrás de nós, curiosas por causa dos nossos estranhos escudos, enquanto as mães delas nos olhavam desconfiadas pelas aberturas ensombradas dos abrigos. Os homens lançavam-nos olhares breves, compreendendo a nossa estranha insígnia e reparando na qualidade das nossas armas, mas nenhum nos desafiou até chegarmos aos portões de Caer Sws onde a guarda real de Gorfyddyd nos barrou a entrada com pontas de lança bem polidas.
Sou Galaad, príncipe de Benoic anunciou Galaad num tom imponente e venho ver o meu primo, o Rei Supremo.
Ele é teu primo? perguntei, sussurrando.
É como nós, da realeza, falamos sussurrou ele.
O cenário dentro do forte explicava, de alguma forma, o porquê de tantos soldados reunidos em Caer Sws. Três grandes estacas tinham sido enterradas na terra e esperavam agora as cerimónias formais que precediam a guerra. Powys era um dos reinos com menos cristãos e os antigos rituais eram ali cuidadosamente executados e eu suspeitava que muitos dos soldados acampados do lado de fora das muralhas tinham regressado de Branogenium especificamente para assistirem aos ritos e, assim, informarem os seus companheiros de que os Deuses tinham sido apaziguados. Não devia haver nada de precipitado na invasão de Gorfyddyd, tudo seria feito com método, e Artur, pensei eu, devia estar certo ao pensar que aquela diligência pedestre podia ser desequilibrada por um ataque surpresa.
Os nossos cavalos foram levados por servos e, então, depois de um conselheiro ter questionado Galaad e determinado que ele era realmente quem dizia ser, fomos introduzidos no grande salão de festas. O porteiro pegou nas nossas espadas, nas lanças e nos escudos e juntou-os aos montes de armas idênticas que pertenciam aos homens já reunidos no salão de Gorfyddyd.
Mais de cem homens estavam reunidos entre as colunas baixas de carvalho, onde havia caveiras humanas penduradas para mostrar que o reino estava em guerra. Os homens por detrás dos ossos de dentes à mostra eram os reis, príncipes, lordes, chefes e campeões dos exércitos reunidos. O único mobiliário do salão era a fila de tronos colocada num estrado, no fundo escuro do salão, onde Gorfyddyd estava sentado sob o seu símbolo da águia, enquanto ao lado dele, mas num trono mais baixo, se sentava Gundleus. Só o ver o rei siluriano fez a cicatriz da minha mão esquerda pulsar. Tanaburs estava acocorado ao lado de Gundleus, enquanto Gorfyddyd tinha lorweth, o seu próprio druida, ao seu lado direito. Cuneglas, o príncipe herdeiro de Powys, estava sentado num terceiro trono ladeado por reis que eu não reconheci. Não havia nenhuma mulher presente. Era sem dúvida um conselho de guerra ou, pelo menos, uma oportunidade para os homens se regozijarem com a vitória que já era quase sua. Os homens envergavam cotas de malha e armaduras de couro.
Parámos ao fundo da sala e vi Galaad rezar uma oração silenciosa ao seu Deus. Um cão-lobo, com uma orelha mordida e os quadris cheios de cicatrizes, farejou as nossas botas e, depois, correu aos saltos para o seu dono, que estava com os outros guerreiros no chão de terra coberto de juncos. Num canto distante do salão um bardo cantava suavemente um cântico de guerra, se bem que a sua recitação staccata fosse ignorada pelos homens que escutavam Gundleus a descrever as forças que esperava virem de Demétia. Um chefe, evidentemente um homem que, no passado, sofrera com os Irlandeses, protestou que Powys não precisava da ajuda dos Blackchields para vencer Artur e Tewdric, mas o seu protesto foi acalmado por um gesto abrupto de Gorfyddyd. Eu estava à espera de que fôssemos obrigados a permanecer ali enquanto o conselho terminava o seu outro assunto, mas não esperámos mais de um minuto para sermos conduzidos pelo centro do salão até ao espaço aberto à frente de Gorfyddyd. Olhei para Gundleus e para Tanaburs, mas nenhum deles me reconheceu.
Ajoelhámo-nos e esperámos.
Levantem-se disse Gorfyddyd. Obedecemos e mais uma vez olhei para o seu rosto frio. Não tinha mudado muito desde a última vez que o vira. O seu rosto continuava tão arrogante e desconfiado como quando Artur viera pedir a mão de Ceinwyn, se bem que a sua doença dos últimos anos lhe tivesse deixado o cabelo e a barba brancos. A barba era pouca e não conseguia esconder a papeira que agora lhe desfigurava a garganta. Olhou para nós circunspecto. Galaad disse numa voz enrouquecida príncipe de Benoic. Ouvimos falar de teu irmão, Lancelote, mas não de ti. És, tal como o teu irmão, um dos ursinhos de Artur?
Não tenho juramento nenhum para com homem nenhum, Senhor disse Galaad excepto para com o meu pai, cujos ossos foram esmagados pelos seus inimigos. Eu não tenho terra.
Gorfyddyd mexeu-se no seu trono. A sua manga esquerda vazia caía ao lado do braço do trono, uma lembrança sempre presente do seu odiado inimigo: Artur.
Então vens ter comigo à procura de terra, Galaad de Benoic? perguntou ele. Muitos outros vieram com o mesmo propósito avisou ele. fazendo um gesto pela sala repleta. Apesar de me atrever a dizer que há terra suficiente para todos em Dumnónia.
Eu vim a vós, Senhor, com saudações, espontaneamente trazidas, do rei Tewdric de Gwent.
Esta frase causou um reboliço no salão. Alguns homens ao fundo da sala que não tinham ouvido o anúncio de Galaad pediram para que fosse repetido e o murmúrio das conversas continuou durante alguns segundos. Cuneglas, o filho de Gorfyddyd, ergueu os olhos e olhou-o de maneira penetrante. O seu rosto redondo com longos bigodes negros parecia preocupado e não admirava, pensei eu, pois Cuneglas era como Artur, um homem que suspirava pela paz, mas quando Artur desprezou Ceinwyn tinha também destruído as esperanças de Cuneglas e, agora, o Príncipe Herdeiro de Powys nada podia fazer senão seguir o seu pai numa guerra que ameaçava devastar os reinos do Sul.
Parece que os nossos inimigos estão a perder a sua sede de batalha disse Gorfyddyd. Por que outra razão Tewdric manda saudações?
O rei Tewdric, Rei Supremo, não teme nenhum homem, mas ama mais a paz disse Galaad, cautelosamente, usando o título que Gorfyddyd tinha concedido a si próprio em antecipação à sua vitória.
O corpo de Gorfyddyd agitou-se e, por um momento, pensei que ele estava prestes a vomitar, mas depois percebi que estava a rir-se.
Nós, os reis, só amamos a paz quando a guerra se torna inconveniente para nós. Esta multidão, Galaad de Benoic fez um gesto na direcção do ajuntamento de chefes e príncipes explicará o novo amor pela paz de Tewdric. Fez uma pausa para respirar. Até agora, Galaad de Benoic, recusei-me a receber os mensageiros de Tewdric. Por que razão os devia receber? Será que uma águia escuta um cordeiro a balir por misericórdia? Dentro de alguns dias pretendo escutar todos os homens de Gwent a balirem pela paz, mas, por agora, já que chegaste tão longe, podes divertir-me. O que é que Tewdric tem para me oferecer?
Paz, Senhor, só paz. Gorfyddyd cuspiu.
Tu não tens terra, Galaad, e andas de mãos a abanar. Tewdric pensa que basta pedir para se ter paz? Tewdric pensa que eu gastei o dinheiro do meu reino num exército para nada? Ele pensa que sou maluco?
Ele pensa, Senhor, que o sangue derramado entre Bretões é sangue desperdiçado.
Falas como uma mulher, Galaad de Benoic. Gorfyddyd lançou o insulto numa voz deliberadamente alta, pelo que no salão com tecto de vigas ecoaram as zombarias e as risotas. No entanto continuou ele, quando as gargalhadas se dissiparam tens de levar alguma resposta para o rei de Gwent. Então deixa que seja esta. Fez uma pausa para ordenar os pensamentos. Diz a Tewdric que ele é um cordeiro a sugar na teta seca de Dumnónia. Diz-lhe que a minha disputa não é com ele, mas sim com Artur. Por isso, diz a Tewdric que pode ter a sua paz nestas duas condições: primeiro, que deixe o meu exército passar pelo seu território sem pôr obstáculos e, segundo, que me dê cereais suficientes para alimentar mil homens durante dez dias. Os guerreiros presentes no salão sobressaltaram-se, pois aqueles eram termos generosos, mas também inteligentes. Se Tewdric os aceitasse, então evitaria o saque do seu país e tornaria mais fácil a invasão de Dumnónia por Gorfyddyd. Tens poder, Galaad de Benoic perguntou Gorfyddyd para aceitar estes termos?
Não, meu Senhor, apenas para perguntar que termos ofereceríeis e perguntar o que pretendeis fazer com Mordred, rei de Dumnónia, a quem Tewdric jurou proteger.
Gorfyddyd adoptou um olhar ferido.
Tenho ar de quem faz guerra com crianças? perguntou ele e, depois, levantou-se e avançou até à borda do estrado dos tronos. A minha disputa é com Artur repetiu, não só para nós, mas para todo o salão que preferiu casar com uma puta de Henis Wyren a casar com a minha filha. Será que algum homem deixaria este insulto por vingar? Pelo salão troou a resposta. Artur é um arrogante gritou Gorfyddyd
parido por uma mãe puta e para uma puta ele voltou! Enquanto Gwent proteger o amante da puta, Gwent é nosso inimigo. Enquanto Dumnónia lutar pelo amante da puta, Dumnónia é nossa inimiga. E o nosso inimigo será o generoso fornecedor do nosso ouro, dos nossos escravos, da nossa comida, da nossa terra, das nossas mulheres e da nossa glória! Vamos matar Artur e poremos a sua puta a trabalhar nas nossas casernas. Esperou até os vivas desaparecerem, olhando em seguida autoritariamente para Galaad.
Diz isto a Tewdric, Galaad de Benoic, e depois di-lo a Artur.
Derfel pode dizer isso a Artur disse uma voz vinda do salão e eu virei-me para ver Ligessac, o manhoso do Ligessac, outrora comandante da guarda de Norwenna e agora um traidor ao serviço de Gundleus. Apontou para mim e prosseguiu: Esse homem tem um juramento para com Artur, Rei Supremo. Juro pela minha vida.
O salão agitou-se em alvoroço. Conseguia ouvir homens a gritar que eu era um espião e outros a exigir a minha morte. Tanaburs olhava para mim atentamente, tentando ver para lá da minha barba loura e comprida e do meu espesso bigode até que, de repente, me reconheceu e gritou:
Matem-no! Matem-no!
Os guardas de Gorfyddyd, os únicos homens armados no salão, correram na minha direcção. Gorfyddyd mandou parar os seus lanceiros com a mão erguida e, aos poucos, silenciou a multidão barulhenta.
Estás ligado por juramento ao amante da puta? perguntou-me o rei numa voz assustadora.
Derfel está ao meu serviço, Rei Supremo insistiu Galaad. Gorfyddyd apontou para mim.
Ele responderá. Estás ligado por juramento a Artur? Eu não podia mentir sobre um juramento.
Sim, meu Senhor admiti.
Gorfyddyd saiu com passos pesados da plataforma e esticou o seu único braço para um guarda, se bem que continuasse a olhar para mim.
Sabes, cão, o que fizemos ao último mensageiro de Artur?
Mataram-no, Senhor disse eu.
Mandei a cabeça dele cheia de larvas ao teu amante da puta, foi isso o que eu fiz. Anda, despacha-te! disse ele, num tom brusco, ao guarda mais próximo que não sabia o que pôr na mão estendida do seu rei. A tua espada, parvalhão! disse Gorfyddyd, e o guarda desembainhou apressadamente a espada e entregou-a pelo lado dos copos ao rei.
Senhor. Galaad avançou, mas Gorfyddyd moveu a lâmina, fazendo-a vacilar muito perto dos olhos de Galaad.
Cuidado com o que dizes no meu salão, Galaad de Benoic resmungou Gorfyddyd.
Eu suplico-vos pela vida de Derfel disse Galaad. Ele não veio como espião, mas como um emissário da paz.
Eu não quero a paz! gritou Gorfyddyd para Galaad. A paz não me traz prazer! Quero ver Artur a chorar como a minha filha chorou. Percebes? Quero ver as lágrimas dele! Quero vê-lo suplicar como ela me suplicou. Quero vê-lo rastejar, quero vê-lo morto e a sua puta a dar prazer aos meus homens. Nenhum mensageiro de Artur é aqui bem recebido e Artur sabe disso! E tu sabias disso! Gritou estas últimas quatro palavras para mim, virando a espada na direcção da minha cara.
Matai-o! Matai-o! Tanaburs, com a sua andrajosa túnica bordada, saltava para cima e para baixo, pelo que os ossos que trazia no cabelo chocalhavam como feijões secos numa panela.
Toca-lhe, Gorfyddyd disse uma nova voz na sala e a tua vida será minha. Vou enterrá-la num monte de estrume em Caer Idion e chamar os cães para mijar nela. Darei a tua alma aos espíritos de crianças com falta de brinquedos. Vou manter-te na escuridão até ao último dia e, depois, vou cuspir-te em cima até a nova era começar e, mesmo então, Senhor, os teus tormentos terão apenas começado.
Senti a tensão a desaparecer de mim como um fluxo de água. Apenas um homem se atreveria a falar assim a um Rei Supremo. Era Merlim. Merlim! Merlim, que agora caminhava em passo lento e altaneiro até à nave central do salão, Merlim, que passou por mim e, com um gesto mais real do que algum que Gorfyddyd já fizera, usou o seu bastão negro para atirar para o lado a espada do rei. Merlim, que agora caminhava para Tanaburs e lhe sussurrava algo ao ouvido, fazendo o druida menos poderoso gritar e fugir do salão.
Era Merlim, que conseguia mudar como nenhum outro homem. Ele adorava fingir, confundir e enganar. Sabia ser brusco, maldoso, paciente ou altivo, mas nesse dia escolhera aparecer com uma majestade fria e decidida. Não havia sorriso no seu rosto moreno nem um pingo que fosse de alegria nos seus olhos profundos, apenas um olhar de tal autoridade e arrogância que os homens mais próximos dele se deixaram cair instintivamente de joelhos e até mesmo o rei Gorfyddyd, que segundos antes estava pronto para enterrar a espada na minha garganta, baixou a lâmina.
Falais por este homem, Lorde Merlim? perguntou Gorfyddyd.
Estás surdo, Gorfyddyd? perguntou Merlim bruscamente. Derfel Cadarn deve viver. Deve ser teu hóspede de honra. Deve comer da tua comida e beber do teu vinho. Deve dormir nas tuas camas e ficar com as tuas escravas, se assim o desejar. Derfel Cadarn e Galaad de Benoic estão sob a minha protecção. Virou-se para abranger com o olhar todo o salão, desafiando qualquer homem a opor-se-lhe. Derfel Cadarn e Galaad de Benoic estão sob a minha protecção repetiu ele e, desta vez, levantou o bastão negro e até se sentiam os guerreiros a tremer ante a ameaça. Sem Derfel Cadarn e Galaad de Benoic disse Merlim não haveria Sabedoria da Grã-Bretanha. Eu teria morrido em Benoic e todos vós estaríeis condenados à escravatura sob o governo saxão. Virou-se de novo para Gorfyddyd. Eles precisam de comida. E pára de olhar para mim, Derfel acrescentou, mesmo sem estar virado para mim.
Eu estivera a olhar para ele, num misto de espanto e de alívio, mas também tentava imaginar o que estaria Merlim a fazer naquela cidadela do inimigo. É claro que os druidas eram livres de viajar para onde quisessem, mesmo para território inimigo, mas a sua presença em Caer Sws em e precisamente nesta altura parecia-me estranha e até perigosa, pois apesar de os homens de Gorfyddyd estarem intimidados com a presença do druida, não deixavam de estar também ressentidos com a sua interferência e alguns, a salvo ao fundo do salão, resmungavam-lhe que se metesse na sua própria vida.
Merlim virou-se para eles.
A minha vida disse ele numa voz subjugada que, no entanto, acabou com os pequenos protestos é tomar conta das vossas almas e, se eu tratar de afogar essas almas na miséria, então vocês desejarão que as vossas mães nunca os tivessem dado à luz. Cambada de tolos! Esta última palavra foi dita alto e bruscamente e acompanhada por um gesto do bastão que fez cair de joelhos os homens vestidos com armaduras apesar da dificuldade que tinham em fazê-lo assim vestidos. Nenhum dos reis se atreveu a intervir, quando Merlim desferiu um golpe com o bastão dando uma forte pancada numa das caveiras penduradas numa coluna. Vocês rezam pela vitória! disse Merlim. Mas a troco de quê? Da vossa própria família e não do vosso inimigo! Os vossos inimigos são os Saxões. Durante anos sofremos sob o jugo romano, mas, por fim, aprouve aos Deuses livrar-nos dos vermes romanos e o que é que nós fazemos? Lutamos entre nós e deixamos um novo inimigo tomar conta da nossa terra, violar as nossas mulheres e ceifar as nossas searas. Por isso, façam a vossa guerra, cambada de tolos, façam-na e ganhem-na e, ainda assim, não conseguirão a vitória.
Mas a minha filha será vingada disse Gorfiddyd por detrás de Merlim.
A tua filha, Gorfyddyd disse Merlim, virando-se para ele vingará a sua própria dor. Queres saber qual o destino dela? Fez a pergunta em tom zombeteiro, mas respondeu-lhe sobriamente e numa voz que tinha a entoação de uma profecia. Ela nunca chegará muito alto nem nunca descerá muito baixo, mas será feliz. A alma dela, Gorfyddyd, é abençoada e se tu tivesses pelo menos o bom senso de uma pulga ficarias contente com isso.
Ficarei contente com a cabeça de Artur disse Gorfyddyd num tom de desafio.
Então vai buscá-la disse Merlim com escárnio e, depois, puxou-me pelo cotovelo. Anda, Derfel, vem desfrutar da hospitalidade do teu inimigo.
Conduziu-nos para fora do salão, avançando sem preocupação por entre as fileiras de ferro e couro do inimigo. Os guerreiros olhavam-nos ressentidos, mas não havia nada que pudessem fazer para nos impedir de sair do salão e ocupar um dos quartos de hóspedes de Gorfyddyd que, evidentemente, o próprio Merlim estivera a usar.
Então Tewdric quer a paz? perguntou-nos ele.
Quer, Senhor respondi.
Tewdric tinha de querer. Ele é cristão e, por isso, pensa que sabe mais do que os Deuses.
E vós conheceis as mentes dos Deuses, Senhor? perguntou Galaad.
Sei que os Deuses detestam que os aborreçam, pelo que faço o possível para os divertir. Assim, eles sorriem para mim. O teu Deus disse Merlim amargo, despreza a diversão, exigindo em seu lugar uma veneração abjecta. Deve ser uma criatura muito triste. Deve ser mais ou menos como Gorfyddyd, desconfiado de mais e abominavelmente zeloso da sua reputação. Já viram a sorte que vocês tiveram de eu aqui estar? Sorriu-nos de esguelha, súbita e manhosamente, e vi o quanto ele tinha saboreado a humilhação pública de Gorfyddyd. Uma parte da reputação de Merlim devia-se às suas acções. Alguns druidas, como lorweth, trabalhavam calmamente; outros, como Tanaburs, apoiavam-se na sua astúcia sinistra, mas Merlim gostava de dominar e confundir, e humilhar um rei ambicioso era nele algo de instintivo e que lhe dava muito prazer.
Ceinwyn é mesmo abençoada? perguntei-lhe. Ele ficou atónito perante uma pergunta tão inesperada.
O que é que isso te interessa? Mas ela é uma rapariga bonita e confesso que raparigas bonitas são o meu fraco, pelo que lhe vou tecer um encanto de felicidade. Uma vez fiz o mesmo contigo, Derfel, apesar de não ter sido por tu seres bonito. Riu-se e olhou pela janela para avaliar o comprimento das sombras do Sol. Tenho de partir em breve.
O que vos trouxe aqui, Senhor? perguntou Galaad.
Precisava de falar com lorweth disse Merlim, olhando em redor para ter a certeza de que tinha arrumado todos os seus pertences. Ele pode ser um idiota chapado, mas possui aquele fragmento ímpar do conhecimento que eu devo ter esquecido momentaneamente. Mostrou ter conhecimentos acerca do Anel de Eluned. Tenho-o algures por aqui. Bateu ao de leve nos bolsos cozidos no forro da túnica. Bem, tinha-o disse ele, descuidado, apesar de eu suspeitar que a indiferença era apenas fingimento.
O que é o Anel de Eluned? perguntou Galaad.
Merlim lançou um olhar carrancudo ao meu amigo pela sua ignorância, mas resolveu satisfazer-lhe a curiosidade.
O Anel de Eluned anunciou de modo imponente é um dos Treze Tesouros da Grã-Bretanha. É claro que sempre soubemos que os Tesouros existiam, pelo menos aqueles de nós que reconhecem os verdadeiros Deuses acrescentou, mordaz, olhando de soslaio para Galaad. Mas nenhum de nós tinha a certeza do seu verdadeiro poder.
E o pergaminho disse-vos qual era? perguntei.
Merlim esboçou um sorriso sinistro. O seu longo cabelo branco estava irrepreensivelmente amarrado na nuca com uma fita preta enquanto a barba estava entrançada em rabichos apertados,
O pergaminho disse ele confirmou tudo o que eu suspeitava ou sabia e até sugeriu um ou dois bocados novos de conhecimento. Ah, aqui está. Tinha andado a vasculhar nos bolsos à procura do anel que agora nos mostrava. A mim o tesouro parecia um vulgar anel de guerreiro, feito de ferro, mas Merlim segurava-o na palma da mão como se fosse a mais preciosa jóia da Grã-Bretanha. Aqui está o Anel de Eluned disse Merlim forjado no Outro Mundo no início dos tempos. Na verdade é apenas um pedaço de metal, nada de especial. Atirou-mo e eu agarrei-o apressadamente. Por si só disse Merlim o Anel não tem qualquer poder.
Nenhum dos Tesouros tem poder por si só. O Manto da Invisibilidade não se vai tornar visível, nem a Corneta de Bran Galed soa melhor do que qualquer outra corneta de caça. Por falar nisso, Derfel, foste buscar Nimue?
Fui.
Muito bem. Calculei que o fizesses. É um lugar interessante, a ilha dos Mortos, não achas? Eu vou lá, quando preciso de companhia estimulante. Onde é que eu ia? Ah, sim, os Tesouros. Tralha sem valor, na verdade. Não darias o Casaco de Padarn a um pedinte, se fosses simpático, claro. No entanto também é um dos Tesouros.
Então para que servem? perguntou Galaad. Tinha-me tirado o Anel da mão, e agora entregava-o de novo ao druida.
Comandam os Deuses, claro disse Merlim com brusquidão, como se a resposta tivesse sido óbvia. Por si só são aparatos que nada valem, mas junta-os todos e consegues pôr os Deuses a saltar como rãs. É claro que não é suficiente juntar os Tesouros acrescentou rapidamente há mais um ou dois rituais que são necessários. E quem sabe se tudo isso funcionará? Que eu saiba nunca ninguém experimentou. Nimue está bem? perguntou-me, muito sério.
Agora está.
Pareces ressentido! Achas que eu a devia ter ido buscar? Meu querido Derfel, já ando suficientemente ocupado sem ter de andar a correr a Grã-Bretanha atrás de Nimue! Se a rapariga não consegue fazer frente à ilha dos Mortos, então para que é que serve?
Ela podia ter morrido acusei-o, pensando nos vampiros e nos canibais da ilha.
Claro que podia! Para que serve uma prova física se não houver perigo? Pareces criança, Derfel. E Merlim abanou a cabeça cheio de compaixão, ao mesmo tempo que enfiava o Anel num dos seus dedos longos e ossudos. Olhou-nos solenemente e cada um de nós esperou aterrado por alguma manifestação de poder sobrenatural, mas depois de alguns segundos ameaçadores Merlim limitou-se a rir da expressão dos nossos rostos. Eu bem vos disse! disse ele. Os Tesouros não são nada de especial.
Quantos Tesouros tendes? perguntou Galaad.
Vários respondeu Merlim, evasivo. Mas, mesmo que tivesse doze dos treze, ainda assim estaria com problemas, a não ser que encontrasse o décimo terceiro. E esse, Derfel, é o Tesouro que falta. O Caldeirão de Clyddno Eiddyn. Sem o Caldeirão estamos perdidos.
Estamos perdidos de qualquer maneira disse eu, amargamente. Merlim olhou para mim como se eu estivesse a ser particularmente obtuso.
A guerra? disse ele depois de alguns segundos. Foi por isso que aqui vieram? Suplicar pela paz! Que tolos que vocês são! Gorfyddyd não quer a paz. O homem é um animal. Tem os miolos de um boi e nem sequer de um boi muito inteligente. Quer ser Rei Supremo, o que significa que tem de governar Dumnónia.
Ele diz que deixará Mordred no trono disse Galaad.
É claro que diz! disse Merlim com desdém. O que mais poderia ele dizer? Mas no minuto em que puser as mãos no pescoço da infeliz criança vai torcê-lo como se torce o pescoço de uma galinha, e isso é bom.
Quereis que Gorfyddyd ganhe? perguntei aterrado. Ele suspirou.
Derfel, Derfel, és tão parecido com Artur. Julgas que o mundo é simples, que o bom é bom e o mau é mau, que em cima é em cima e em baixo é em baixo. Perguntas-me o que é que eu quero? Eu digo-te o que quero. Quero os Treze Tesouros e usá-los-ei para trazer os Deuses de volta para a Grã-Bretanha e, depois, ordenar-lhes-ei que renovem a Grã-Bretanha e a elevem à abençoada condição de que desfrutava antes da vinda dos Romanos. Nada de adoradores de Cristo apontou um dedo a Galaad nem de adoradores de Mitra apontou para mim apenas o povo dos Deuses no país dos Deuses. Isso, Derfel, é o que eu quero.
E então Artur? perguntei eu.
O que tem Artur? É um homem, tem uma espada, pode tomar conta de si próprio. O destino é inflexível, Derfel. Se o destino quiser que Artur ganhe esta guerra, então não importa que Gorfyddyd junte todos os exércitos do mundo contra ele. Se eu não tivesse nada mais importante para fazer, confesso que ajudaria Artur, porque gosto dele, mas o destino decretou que sou um velho, cada vez mais fraco e com uma bexiga que nem um odre esburacado, e que, por isso, devo poupar as minhas energias em declínio. Proclamou esta condição patética num tom vigoroso. Nem mesmo eu posso vencer as guerras de Artur, curar a mente de Nimue e descobrir os Tesouros, tudo ao mesmo tempo. É claro que se descobrir que salvar a vida de Artur me ajuda a encontrar os Tesouros, então, podes ficar com a certeza de que participarei na batalha. Mas, e se não for assim? Encolheu os ombros como se a guerra não tivesse qualquer importância para ele. E suponho que não tinha mesmo. Virou-se para a pequena janela e olhou para as três estacas que tinham sido erguidas na fortaleza. Vão ficar para assistir às formalidades, espero bem.
Devemos ficar? perguntei eu.
Claro que devem, se Gorfyddyd o permitir. Toda a experiência é útil, embora horrível. Eu já realizei os ritos vezes suficientes, pelo que não ficarei para me divertir, mas tenham a certeza de que vão estar em segurança aqui. Transformarei Gorfyddyd numa lesma se ele tocar num só cabelo das vossas cabeças loucas, mas agora tenho de ir. lorweth pensa que há uma velhota na fronteira com Demétia que se deve lembrar de alguma coisa de útil. Se estiver viva, claro, e ainda se lembrar. Detesto falar com velhotas; ficam tão agradecidas pela companhia que nunca mais se calam e afastam-se sempre do assunto. Que perspectiva. Diz a Nimue que estou ansioso por vê-la! E com estas palavras saiu pela porta e atravessou o interior do forte.
Nessa tarde o céu ficou cheio de nuvens e uns chuviscos horríveis ensoparam o forte antes do anoitecer. O druida lorweth veio ter connosco e garantiu-nos que estávamos a salvo, mas diplomaticamente sujeriu que iríamos afrontar a relutante hospitalidade de Gorfyddyd se participássemos no festim dessa noite, que marcava a última reunião dos aliados e dos chefes de Gorfyddyd antes dos homens reunidos em Caer Sws marcharem para Sul para se juntarem ao resto do exército em Branogenium. Garantimos a Gorfyddyd que não pretendíamos ir à festa. O druida sorriu, agradeceo e sentou-se num banco ao lado da porta.
São amigos de Merlim? perguntou.
Lorde Derfel é disse Galaad.
lorweth esfregou os olhos, cansado. Era velho, com um rosto sereno e afável e uma cabeça calva onde o fantasma de uma tonsura aparecia mesmo acima de cada orelha.
Não consigo deixar de pensar disse ele que o meu irmão Merlim espera muito dos Deuses. Acredita que o mundo pode ser feito de novo e que a história pode ser apagada como uma linha desenhada na lama. Mas não é assim. Catou um piolho na barba e olhou para Galaad, que usava uma cruz ao pescoço. Abanou a cabeça. Invejo o vosso Deus cristão. É três e é um, está morto e está vivo, está em todo o lado e não está em lado nenhum e exige que vocês O adorem, mas afirma que nada mais merece ser adorado. Há espaços nestas contradições para um homem acreditar em alguma coisa e em nada, mas isso não acontece com os nossos Deuses. Eles são como reis, inconstantes e poderosos, e se nos quiserem esquecer, esquecem-nos. Não interessa o que acreditamos, apenas o que eles querem. Os nossos feitiços só funcionam quando os Deuses o permitem. É claro que Merlim não concorda. Ele acha que se gritarmos suficientemente alto, conseguiremos a atenção deles, mas o que se faz a uma criança que grita?
Dá-se-lhe atenção? sugeri.
Bate-se-lhe, Lorde Derfel disse lorweth. Bate-se-lhe até ficar sossegada. Temo que Lorde Merlim possa gritar muito alto por muito tempo. Levantou-se e apanhou o bastão. Peço desculpa por não poderem comer com os guerreiros esta noite, mas a princesa Helledd diz que sois bem-vindos para comer com a sua família.
Helledd de Elmet era a mulher de Cuneglas e o convite dela não era necessariamente um elogio. Na realidade o convite poderia ser um insulto medido e inventado por Gorfyddyd para implicar que nós só servíamos para comer com as mulheres e as crianças, mas Galaad disse que ficaríamos honrados por aceitar.
E ali, no pequeno salão de Helledd, estava Ceinwyn. Eu quisera vê-la de novo, quisera-o desde o momento em que Galaad se aventurou a sugerir que se enviasse uma embaixada a Powys, e fora por isso que eu fizera tamanhos esforços para o acompanhar. Eu não tinha vindo a Caer Sws para fazer a paz, mas sim para ver o rosto de Ceinwyn de novo e agora, à luz tremeluzente das velas do salão de Helledd, eu vi-a.
Os anos não a tinham mudado. O seu rosto continuava tão doce, os seus modos tão reservados, o seu cabelo tão brilhante e o seu sorriso tão encantador como antes. Quando entrámos no salão ela estava ocupada com uma criança, tentando dar-lhe pequenos pedaços de maçã. A criança era Perddel, filho de Cuneglas.
Disse-lhe que se ele não comesse a maçã os horríveis dumnonianos o levariam embora disse ela com um sorriso. Acho que ele deve querer ir convosco, pois não come nada.
Helledd de Elmet, a mãe de Perddel, era uma mulher alta com os maxilares quadrados e uns olhos pálidos. Deu-nos as boas-vindas, ordenando a uma serva que nos servisse hidromel e, depois, apresentou-nos às suas duas tias, Tonwyn e Elsel, que nos olhavam com ressentimento. Tínhamos evidentemente interrompido uma conversa que lhes estava a agradar e os olhares azedos das tias sugeriam que nos devíamos ir embora, mas Helledd foi mais amável.
Conheceis a princesa Ceinwyn? perguntou.
Galaad fez-lhe uma vénia, depois acocorou-se ao lado de Perddel. Ele sempre gostara de crianças que, por sua vez, confiavam nele desde o primeiro momento. Momentos depois os dois príncipes brincavam com os pedaços de maçã como se fossem raposas, sendo a boca de Perddel a caverna das raposas e os dedos de Galaad os galgos atrás da raposa. E os pedaços de maçã desapareceram.
Porque não pensei eu nisso? perguntou Ceinwyn.
Porque não fostes criada pela mãe de Galaad, Senhora disse eu que sem dúvida lhe dava de comer da mesma forma. Ainda agora ele só come se alguém tocar uma corneta de caça.
Ela riu-se e, então, reparou no pregador que eu usava. Perdeu a respiração, corou e, por um momento, pensei que tinha cometido um tremendo erro. Mas ela sorriu.
Devia lembrar-me de vós, Lorde Derfel?
Não, Senhora minha. Eu era muito novo.
E guardaste-o? perguntou ela, aparentemente atónita por alguém ter transformado num tesouro um dos seus presentes.
Guardei-o, Senhora, mesmo quando perdi tudo o resto.
A princesa Helledd interrompeu-nos, perguntando o que nos trouxera a Caer Sws. Tenho a certeza de que ela já sabia, mas era diplomático uma princesa fingir que estava por fora do conselho dos homens. Respondi dizendo que tínhamos sido enviados para averiguar se a guerra era inevitável ou não.
E é? perguntou a princesa com uma preocupação compreensível, pois no dia seguinte o marido partiria para Sul, em direcção ao inimigo.
Infelizmente, Senhora, parece que sim respondi.
É tudo culpa de Artur disse firmemente a princesa Helledd, e as tias concordaram vigorosamente com a cabeça.
Acho que Artur concorda convosco, Senhora disse eu e lamenta que assim tenha de ser.
Então porque luta contra nós? quis saber Helledd.
Porque jurou manter Mordred no trono, Senhora.
O meu sogro nunca afastaria o herdeiro de Uther disse Helledd, furiosa.
Lorde Derfel quase ficou sem a cabeça ao ter essa conversa esta manhã disse Ceinwyn num tom travesso.
Lorde Derfel interveio Galaad, erguendo os olhos e desviando os pensamentos da última caçada à raposa continua a ter a cabeça no lugar, porque é amado pelos seus Deuses.
E não pelo vosso, Senhor? perguntou Helledd rispidamente.
O meu Deus ama todos, Senhora.
Quereis dizer que o faz indiscriminadamente? E riu-se. Comemos ganso, galinha, lebre e carne de veado e foi-nos servido um mau vinho que devia ter estado guardado durante muito tempo. Depois da refeição fomos sentar-nos em divãs com almofadas e uma harpista tocou para nós. Os divãs eram mobília indispensável nos salões das damas, e tanto Galaad como eu nos sentíamos desconfortáveis naquelas camas baixas e macias, mas eu estava muito contente, pois conseguira ocupar o divã ao lado de Ceinwyn. Durante algum tempo fiquei sentado muito direito, mas depois inclinei-me sobre um cotovelo para poder falar suavemente com ela, e felicitei-a pelos seus esponsais com Gundleus. Ela lançou-me um olhar divertido.
Pareceis um cortesão a falar disse ela.
Às vezes sou obrigado a ser um cortesão, Senhora. Preferis que seja o guerreiro?
Ela também se apoiou no cotovelo para podermos falar sem perturbar a música e com a proximidade do seu corpo era como se os meus sentidos pairassem em fumo.
O preço que o meu Senhor, Gundleus pediu pela minha mão foi o seu exército participar nesta guerra disse ela suavemente.
Então, o exército dele, Senhora disse eu é o mais valioso da Grã-Bretanha.
Ela não sorriu com o elogio, mas manteve os olhos fixos nos meus.
É verdade perguntou muito calmamente que ele matou Norwenna?
A franqueza da pergunta abalou-me.
O que diz ele, Senhora? perguntei em vez de responder directamente.
Diz e a sua voz ficou ainda mais baixa, pelo que eu mal conseguia ouvir o que dizia que os seus homens foram atacados e que na confusão ela morreu. Diz que foi um acidente.
Olhei de relance para a jovem que tocava harpa. As tias olhavam iradamente para nós, mas Helledd não parecia preocupada com a nossa conversa. Galaad ouvia a música, com um braço em redor de Perddel, que dormia.
Eu estava no Tor nesse dia, Senhora disse eu, virando-me de novo para Ceinwyn.
E?
Decidi que a franqueza dela merecia uma resposta franca.
Ela ajoelhou-se perante ele como sinal de boas-vindas, Senhora disse eu e ele enfiou-lhe a espada pela garganta abaixo. Eu vi.
O rosto dela tornou-se mais duro por um momento. A luz tremeluzente das velas dava brilho à sua tez pálida e lançava sombras suaves nas suas faces e por baixo do lábio inferior. Usava um vestido magnífico de linho azul pálido ornamentado com a pele prateada e manchada de negro de um furão. Um colar de prata rodeava-lhe o pescoço, os brincos eram de prata e reparei como a prata condizia com o seu cabelo brilhante. Soltou um leve suspiro.
Temia ouvir essa verdade disse ela, mas, sendo princesa, significa que devo casar com quem me for mais útil fazê-lo e não com quem eu possa querer. Virou a cabeça para a música, por um momento, e voltou a reclinar-se, aproximando-se de mim. O meu pai disse ela nervosa diz que esta é uma guerra para lavar a minha honra. É mesmo?
Para ele é, Senhora. Mas posso dizer-vos que Artur está arrependido do mal que vos fez.
Ela esboçou um leve esgar. O assunto era claramente doloroso, mas ela não podia deixar de falar nele, pois a rejeição de Artur mudara a vida de Ceinwyn de forma muito mais subtil e triste do que alguma vez mudara a dele. Artur partira para a felicidade e para o casamento enquanto ela fora deixada a sofrer os arrependimentos e a procurar as respostas dolorosas que, evidentemente, não tinham sido encontradas.
Vós entendeis Artur? perguntou ela, momentos depois.
Nessa altura eu não o entendia, Senhora disse eu. Pensava que ele era um tolo. Era o que todos pensávamos.
E agora? perguntou ela com os olhos azuis presos aos meus.
Pensei durante alguns segundos.
Agora, penso, Senhora, que por uma vez na vida, Artur foi atingido por uma loucura que ele não conseguiu controlar.
O amor?
Olhei para ela e disse a mim mesmo que eu não estava apaixonado por ela e que o pregador dela era um talismã conseguido por acaso. Disse a mim mesmo que ela era uma princesa e eu o filho de uma escrava.
Sim disse eu.
Entendeis essa loucura? perguntou-me ela.
Eu não tinha consciência de mais nada naquele salão senão de Ceinwyn A princesa Helledd, o príncipe adormecido, Galaad, as tias, a harpista, nenhum deles existia para mim, tal como não existiam as tapeçarias nas paredes nem os suportes de bronze das velas. Só tinha consciência dos olhos grandes e tristes de Ceinwyn e do bater do meu próprio coração. Eu entendo que se possa olhar dentro dos olhos de alguém ouvi-me dizer e, de repente, perceber que a vida seria impossível sem essa pessoa. Saber que a voz dela pode fazer o coração bater mais depressa e que a companhia dela é tudo o que a nossa felicidade deseja, e que a ausência dela deixará a nossa alma só, perdida e despojada.
Durante algum tempo ela não disse nada, limitando-se a olhar-me com uma expressão algo confusa.
Isso alguma vez vos aconteceu, Lorde Derfel? perguntou por fim.
Hesitei. Sabia as palavras que a minha alma queria dizer e sabia as palavras que a minha posição me devia fazer dizer, mas depois disse a mim mesmo que um guerreiro não prosperava com a timidez e deixei que a minha alma tomasse conta da minha língua.
Nunca me aconteceu até este momento, Senhora disse eu. Precisei de mais coragem para fazer aquela declaração do que alguma vez precisara para quebrar uma muralha de escudos.
Ela desviou imediatamente o olhar e sentou-se muito direita e eu amaldiçoei-me por tê-la ofendido com a minha estúpida falta de jeito. Permaneci reclinado no divã, com o rosto vermelho e a alma a doer-me de embaraço enquanto Ceinwyn aplaudia a harpista atirando algumas moedas de prata para o tapete ao lado do instrumento. Depois pediu-lhe que tocasse a Canção de Rhiannom.
Pensei que não estavas a ouvir, Ceinwyn disse uma das tias num tom desagradável.
Estou, Tonwyn, estou e sinto um grande prazer em tudo o que ouço
disse Ceinwyn e, de repente, senti-me como um homem se sente, quando a muralha de escudos do inimigo se desmorona. Só que não me atrevia a acreditar nas palavras dela. Eu queria, mas não me atrevia. Era a loucura do amor, a oscilar entre o êxtase e o desespero, num único e selvagem segundo.
A música recomeçou, tendo como fundo os vivas roufenhos que vinham do salão principal onde os guerreiros antecipavam a batalha. Reclinei-me completamente sobre as almofadas, com o rosto ainda ruborizado tentando descobrir se as últimas palavras de Ceinwyn se referiam à nossa conversa ou à música e, nisto, Ceinwyn recosta-se também e inclina-se de novo para mim.
Eu não quero uma guerra por minha causa disse ela.
Parece inevitável, Senhora.
O meu irmão concorda comigo.
Mas é o vosso pai quem governa Powys, Senhora.
Pois é disse ela, sem rodeios. Fez uma pausa, franzindo as sobrancelhas, e levantou os olhos para mim. Se Artur ganhar, com quem é que ele quer que eu me case?
Mais uma vez a franqueza da sua pergunta me surpreendeu, mas dei-lhe a resposta verdadeira.
Ele quer que sejais rainha da Silúria, Senhora disse eu. Ela olhou-me, subitamente alarmada.
Casada com Gundleus?
Casada com o rei Lancelote de Benoic, Senhora disse eu, revelando a esperança secreta de Artur. Observei a sua reacção.
Ela olhou-me nos olhos, aparentemente tentando aferir se eu falara verdade.
Dizem que Lancelote é um grande guerreiro disse ela passado um momento e com uma falta de entusiasmo que me aqueceu o coração.
Dizem isso, Senhora, é verdade disse eu.
Ela quedou-se novamente em silêncio. Reclinou-se sobre o cotovelo e observou as mãos da harpista a tremer sobre as cordas, e eu observei-a a ela.
Dizei a Artur disse ela, alguns momentos depois e sem olhar para mim que eu não lhe guardo nenhum rancor. E dizei-lhe mais uma coisa. Parou de repente.
Sim, minha Senhora? encorajei-a.
Dizei-lhe que, se ele ganhar disse ela e, depois, olhou para mim e estendeu um dedo delicado sobre o buraco que separava os nossos divãs, tocando nas costas da minha mão para mostrar como eram importantes as suas palavras ... se ele ganhar disse ela de novo pedirei a sua protecção.
Dir-lhe-ei, Senhora disse eu, fazendo uma pausa, sentindo o coração pleno de felicidade. E prometo-vos a minha protecção também, com toda a honra.
Ela manteve o dedo sobre a minha mão, e o seu toque era tão leve como a respiração do príncipe adormecido.
Eu devia prender-vos a esse juramento, Lorde Derfel disse ela com os olhos nos meus.
Até ao fim dos tempos e para sempre, este juramento será verdadeiro, Senhora.
Ela sorriu, retirou a mão e sentou-se muito direita.
Nessa noite fui para a cama num entorpecimento causado pela confusão, pela esperança, pela patetice, pela apreensão, pelo medo e pela alegria. Pois, tal como Artur, eu viera a Caer Sws e fora atingido pelo amor.
A Muralha de Escudos
Então era ela! disse Igraine, acusadora. Era a princesa Ceinwyn quem transformava o teu sangue em fumo, irmão Derfel.
Sim, Senhora minha, era ela confessei, e confesso agora que tinha lágrimas nos olhos ao lembrar-me de Ceinwyn. Ou talvez seja o tempo que me faz os olhos lacrimejar, pois o Outono tinha chegado a Dinnewrac e um vento frio entrava sorrateiramente pela janela. Em breve terei de fazer uma pausa nesta escrita, pois devemos andar ocupados a armazenar os nossos géneros alimentícios para o Inverno e a fazer a pilha de toros de madeira que o abençoado Santo Sansum terá prazer em não deixar arder para que possamos partilhar o sofrimento do nosso Salvador.
Não admira que odiasses tanto Lancelote! disse Igraine. Vocês eram rivais. Ele sabia o que tu sentias por Ceinwyn?
A determinada altura soube.
E o que aconteceu? perguntou ela avidamente.
Porque não deixamos a história decorrer na sua devida ordem, Senhora?
Porque eu não quero, claro.
Mas quero eu repliquei e o contador da histórias sou eu, não vós.
Se eu não gostasse tanto de ti, irmão Derfel, mandava-te cortar a cabeça e alimentava os meus cães com o teu corpo disse, franzindo as sobrancelhas, pensativa. Ela está hoje muito bonita com uma capa de lã cinzenta orlada com pele de lontra. Mas não está grávida, pelo que ou o pessário de fezes de recém-nascido não funcionou ou então Brochvael está a passar tempo de mais com Nwylle. Sempre se falou na família do meu marido da tia avó Ceinwyn disse ela, mas nunca ninguém explicou realmente qual foi o escândalo.
Nunca conheci ninguém, Senhora disse eu com dureza sobre quem houvesse menos escândalos.
Ceinwyn nunca casou disse Igraine. Isso eu sei.
E isso é assim tão escandaloso? perguntei.
É, se ela se comportava como se fosse casada disse Igraine, indignada. É o que prega a tua igreja. A nossa igreja apressou-se a corrigir. Então o que foi que aconteceu? Vá, diz lá!
Puxei a minha manga de monge sobre o coto da mão, sempre a primeira parte do meu corpo a enregelar com o frio.
A história de Ceinwyn é longa de mais para a contar agora disse, recusando-me a acrescentar mais alguma coisa, apesar das exigências inoportunas da minha rainha.
E Merlim chegou a encontrar o Caldeirão?
Lá chegaremos na devida altura insisti. Ela levantou os braços ao ar.
Enfureces-me, Derfel. Se eu fosse uma rainha em condições exigia mesmo a tua cabeça.
E se eu fosse mais do que um monge velho e fraco, Senhora, dar-vo-la-ia.
Ela riu-se e, depois, virou-se à janela. As folhas dos pequenos carvalhos que o irmão Maelgwyn plantara para servirem de paravento amareleceram mais cedo e os bosques dos vales abaixo de nós estão carregados de bagas. São dois sinais seguros de que um Inverno rigoroso se aproxima. Sagramor disse-me uma vez que havia locais onde o Inverno nunca chega e onde o Sol brilha quente durante todo o ano, mas talvez, tal como a existência dos coelhos, aquela fosse mais uma das suas histórias fantasistas. Uma vez desejei que o Céu cristão fosse um lugar quente, mas o santo Sansum garante que o Céu deve ser um lugar frio, porque o inferno é quente, e acho que o santo tem razão. Há tanto para a nossa alma ambicionar. Igraine estremeceu e virou-se de novo para mim.
Nunca ninguém me fez uma tenda do Lughnasa disse ela tristemente.
É claro que já fizeram! disse eu. Todos os anos tendes uma!
Mas essa é a tenda do Caer. Os escravos fazem-na, porque têm de a fazer e, naturalmente que me sento lá, mas não é o mesmo que ter o nosso próprio apaixonado a fazer-nos uma tenda com dedaleiras e salgueiros. Merlim ficou zangado por tu e Nimue terem feito amor?
Eu nunca vos devia ter confessado isso disse eu. Se ele sabia, nunca disse nada. Isso não importava para ele. Não era ciumento. Não era como nós, os restantes. Não era como Artur, não era como eu. Quanta da nossa terra ficou manchada de sangue devido ao ciúme! E, no fim da vida, o que é que tudo isso interessa? Envelhecemos, os novos olham para nós e não vêem que já fizemos um reino vibrar de amor.
Igraine adoptou o seu olhar malicioso.
Disseste que Gorfyddyd chamou puta a Guinevere. Ela era?
Não devíeis usar essa palavra.
Muito bem, Guinevere era o que Gorfyddyd dizia que ela era e que eu não estou autorizada a dizer por temer ofender os teus inocentes ouvidos?
Não, disse eu não era.
Mas era fiel a Artur?
Esperai disse eu. Deitou-me a língua de fora.
Lancelote tornou-se num adorador de Mitra? perguntou.
Esperai e vereis insisti.
Odeio-te!
E eu sou o servo que mais vos venera, querida Senhora disse eu. Mas também estou cansado e este tempo gelado torna a tinta pegajosa. Escreverei o resto da história, prometo-vos.
Se Sansum deixar disse Igraine.
Deixará respondi.
O santo tem andado mais feliz graças ao nosso noviço sobrevivente, que já não é noviço, mas sim consagrado padre e monge e a acreditar em Sansum, santo como ele próprio. Santo Tudwal é como o devemos chamar. Os dois santos partilham a cela e glorificam Deus em conjunto. A única coisa que acho mal nesta abençoada associação é que o sagrado santo Tudwal, agora com doze anos, continue a fazer esforços para aprender a ler. É claro que não sabe a língua saxónica, mas mesmo assim temo que ele decifre alguma coisa da minha escrita. Mas esse medo pode esperar até ao momento em que o santo Tudwal dominar as letras, se é que algum dia o vai conseguir. Por ora, se Deus o desejar e para satisfazer a curiosidade impaciente da minha querida rainha Igraine, continuarei mesmo a história de Artur, o meu querido e perdido Senhor, meu amigo, meu Senhor da guerra.
No dia seguinte não prestei atenção a nada. Fiquei ali de pé com Galaad, como hóspede indesejável do meu inimigo Gorfyddyd, enquanto lorweth apaziguava os Deuses e, pela atenção que prestei durante as cerimónias, ele até podia estar a lançar ao vento sementes de dentes-de-leão. Mataram um touro, amarraram três prisioneiros às três estacas, estrangularam-nos e, depois, registaram os augúrios da guerra apunhalando um quarto prisioneiro no diafragma. Cantaram a Canção da Guerra de Maponos enquanto dançavam à volta dos mortos e, depois, os reis, os príncipes e os chefes militares mergulharam as cabeças das suas lanças no sangue dos homens mortos antes de lamberem o sangue das lâminas e besuntarem a cara com ele. Galaad fez o sinal da cruz enquanto eu sonhava com Ceinwyn. Ela não compareceu às cerimónias. Nenhuma mulher o fez. "Os augúrios", disse-me Galaad, "eram favoráveis à causa de Gorfyddyd", mas eu não me importei com isso. Estava ditosamente perdido na lembrança daquele leve toque de prata do dedo de Ceinwyn na minha mão.
Trouxeram-nos os nossos cavalos, as armas e os escudos e o próprio Gorfyddyd acompanhou-nos até aos portões de Caer Sws. Cuneglas, o seu filho, também veio. Devia pretender fazer-nos uma cortesia ao acompanhar-nos, mas Gorfyddyd não tinha essas delicadezas em mente.
Diz ao teu amante da puta disse o rei, com as faces ainda besuntadas de sangue que só uma coisa pode evitar a guerra. Diz a Artur que, se ele se apresentar no Vale do Lugg perante o meu julgamento e veredicto, considerarei limpa a mancha na honra da minha filha.
Dir-lhe-ei, Senhor respondeu Galaad.
Artur continua sem usar barba? perguntou Gorfyddyd, fazendo a pergunta soar como um insulto.
Continua, Senhor disse Galaad.
Então não posso prender a trela de prisioneiro à sua barba resmungou Gorfyddyd. Por isso, diz-lhe para cortar o cabelo ruivo da sua puta antes de vir e entrançá-lo para lhe servir de trela. Gorfyddyd sentia um evidente prazer em exigir essa humilhação aos seus inimigos, se bem que o rosto do príncipe Cuneglas tivesse traído um grande embaraço ante a rudeza de seu pai. Diz-lhe isso, Galaad de Benoic continuou Gorfyddyd e diz-lhe que, se ele me obedecer, então a sua puta de cabelo rapado poderá ir em liberdade desde que abandone a Grã-Bretanha.
A princesa Guinevere poderá ir em liberdade disse Galaad repetindo a oferta.
A puta! gritou Gorfyddyd. Deitei-me com ela vezes sem conta, por isso sei. Diz isso a Artur! E atirou estas frases à cara de Galaad. Diz-lhe que ela veio para a minha cama por vontade própria e para outras camas também!
Dir-lhe-ei, Senhor mentiu Galaad para conter as amargas palavras. E, Senhor continuou Galaad no que diz respeito a Mordred...
Sem Artur, Mordred precisará de um novo protector disse Gorfyddyd. Eu tomarei a responsabilidade do futuro de Mordred. Agora ide-vos.
Fizemos uma vénia, montámos e partimos, e eu olhei para trás uma vez, na esperança de ver Ceinwyn, mas só se viam homens nas muralhas de Caer Sws. Em redor da fortaleza, os abrigos estavam a ser desmontados enquanto os homens se preparavam para marchar pela estrada que levava directamente a Branogenium. Tínhamos concordado em não utilizar essa estrada, mas sim voltar para casa pelo caminho mais longo, atravessando Caer Lud para não irmos espiar o contingente reunido por Gorfyddyd.
Galaad estava com um ar sisudo enquanto cavalgávamos para Leste, mas eu não conseguia refrear a minha alegria e, quando nos afastámos dos acampamentos em reboliço, comecei a cantar a Canção de Rhiannon.
O que se passa contigo? perguntou Galaad, irritado.
Nada. Nada! Nada! Nada! gritei de alegria e bati com os calcanhares fazendo o cavalo desatar a correr pela vereda verdejante e acabei por cair em cima de um canteiro de urtigas. Mesmo nada disse, quando Galaad me trouxe de novo o cavalo. Absolutamente nada.
Estás louco, meu amigo.
Tens razão disse eu enquanto tentava desajeitadamente montar de novo o cavalo. Eu estava mesmo louco, mas não ia dizer a Galaad a razão da minha loucura, pelo que me comportei sobriamente durante algum tempo. O que vamos dizer a Artur? perguntei-lhe eu.
Nada sobre Guinevere disse Galaad firmemente. Além disso, Gorfyddyd estava a mentir. Meu Deus! Como pode ele dizer tais mentiras sobre Guinevere?
Para nos provocar, é claro disse eu. Mas o que vamos nós dizer a Artur sobre Mordred?
A verdade. Que Mordred está salvo.
Mas se Gorfyddyd mente sobre Guinevere disse eu por que não mentiria sobre Mordred? E Merlim não acreditou nele.
Não fomos mandados à procura da resposta de Merlim disse Galaad.
- Fomos enviados para descobrir a verdade, meu amigo, e eu digo que Merlim falou verdade.
Mas Tewdric acreditará em Gorfyddyd respondeu Galaad firmemente.
O que significa que Artur perdeu disse eu tristemente, mas eu não queria falar de derrotas, pelo que, em vez disso, perguntei a Galaad o que pensava de Ceinwyn. Estava a deixar a loucura tomar conta de mim outra vez e queria ouvir Galaad elogiá-la e dizer que era a mais bela criatura que existia entre os mares e as montanhas, mas ele limitou-se a encolher os ombros. Uma coisinha engraçada disse descuidadamente e bastante bonitinha para quem gosta destas raparigas de aspecto frágil. Fez uma pausa, para pensar. Lancelote vai gostar dela continuou. Sabes que Artur quer que eles se casem? Se bem que eu pense que isso não vai acontecer agora. Suspeito que o trono de Gundleus está seguro e Lancelote terá de procurar mulher noutro lado.
Eu não disse mais nada sobre Ceinwyn. Voltámos pelo mesmo caminho e na segunda noite chegámos a Magnis onde, tal como Galaad tinha previsto, Tewdric pôs toda a sua fé na promessa de Gorfyddyd enquanto Artur preferiu acreditar em Merlim. Percebi que Gorfyddyd nos usara para separar Artur de Tewdric e pareceu-me que o tinha conseguido, pois ao ouvirmos os dois homens a discutir nos aposentos de Tewdric ficou claro que o rei de Gwent não tinha estômago para a guerra que se aproximava. Galaad e eu deixámos os dois a discutir enquanto caminhávamos pelos baluartes formados pela grande muralha de terra flanqueada por um fosso com água e encimada por uma paliçada resistente.
Tewdric ganhará a discussão disse Galaad tristemente. Ele não confia em Artur, percebes?
É claro que confia protestei. Galaad abanou a cabeça.
Ele sabe que Artur é um homem honesto admitiu, mas Artur é também um aventureiro. É um homem sem terra, já pensaste nisso? Defende uma reputação, não uma propriedade. Mantém a sua posição por causa da idade de Mordred, não pelo seu próprio nascimento. Para que Artur vença, tem de ser mais corajoso do que qualquer outro homem, mas Tewdric, agora, não quer coragem. Quer segurança. Ele aceitará a oferta de Gorfyddyd. Quedou-se em silêncio por um momento. Talvez o nosso destino seja sermos guerreiros errantes continuou, num tom sombrio, desprovidos de terra e sempre empurrados em direcção ao mar Ocidental por novos inimigos.
Estremeci e apertei mais a minha capa. A noite estava a cobrir-se de nuvens, trazendo uma fria promessa de chuva no vento oeste.
Queres tu dizer que Tewdric nos vai abandonar?
Já abandonou disse Galaad sem cerimónia. Agora o seu único problema é livrar-se de Artur com elegância. Tewdric tem muito a perder e não vai correr mais riscos, mas Artur não tem nada a perder a não ser as esperanças.
Vocês os dois! Chamou-nos bem alto uma voz atrás de nós e, quando nos virámos, vimos Culhwch a correr pela muralha. Artur quer falar convosco.
Para quê? perguntou Galaad.
O que achais, Senhor? Que está com falta de jogadores para jogar o tabuleiro? Culhwch sorriu ironicamente. Estes filhos da puta poderão não ter estômago para uma batalha e fez um gesto na direcção do forte apinhado de homens impecavelmente uniformizados, mas nós temos. Suspeito que vamos atacar sozinhos. Viu a nossa surpresa e riu-se. Vocês ouviram Lorde Agrícola na outra noite. Duzentos homens conseguem aguentar o Vale do Lugg contra um exército. Bem! Nós temos duzentos lanceiros e Gorfyddyd possui um exército, então por que é que precisamos de alguém de Gwent? São horas de dar de comer aos corvos!
A primeira chuva caiu, sibilando nas fogueiras das oficinas dos ferreiros e tudo indicava que íamos para a guerra.
Por vezes penso que esta foi a decisão mais corajosa de Artur. Deus sabe que ele tomou outras decisões em circunstâncias tão desesperadas como esta, mas Artur nunca tinha estado tão fraco como naquela noite chuvosa de Magnis, em que Tewdric dava ordens pacientes que fariam recolher os seus homens mais avançados para dentro das muralhas romanas, primeiro passo para uma trégua entre Gwent e o inimigo.
Artur reuniu cinco de nós numa guarita junto a essas muralhas. A chuva restolhava no telhado enquanto sob o colmo uma fogueira de toros esfumaçava, iluminando-nos com um lampejo pálido. Sagramor, o comandante em que Artur mais confiava, estava sentado ao lado de Morfans no pequeno banco da cabana, e Culhwch, Galaad e eu próprio acocorámo-nos no chão enquanto Artur falava.
Artur admitiu que o príncipe Meurig dissera uma incómoda verdade, pois a guerra era realmente obra de Artur. Se ele não tivesse rejeitado Ceinwyn não haveria inimizade entre Powys e Dumnónia. Gwent estava envolvido por ser o inimigo mais antigo de Powys e o amigo tradicional de Dumnónia, mas não era do interesse de Gwent continuar a guerra.
Se eu não tivesse vindo para a Grã-Bretanha disse Artur então o rei Tewdric não estaria a braços com a devastação próxima do seu território. Esta guerra é minha e, tal como a comecei, tenho de a acabar. Fez uma pausa. Era um homem que se emocionava facilmente e, naquele momento, estava dominado pelo sentimento. Vou ao Vale do Lugg amanhã disse ele, por fim, e por um momento terrível pensei que ele queria dizer que se ia entregar à vingança medonha de Gorfyddyd, mas depois Artur ofereceu-nos o seu sorriso aberto e generoso e gostaria que viessem comigo, mas não tenho o direito de o exigir.
Fez-se silêncio na sala. Suponho que estávamos todos a pensar que a luta no vale já era uma perspectiva perigosa, quando se pensava empregar os exércitos de Gwent e Dumnónia combinados, mas como iríamos nós ganhar só com homens de Dumnónia.
Tendes o direito de nos exigir que vamos disse Culhwch quebrando o silêncio, pois fizemos juramentos de que vos serviríamos.
Eu liberto-vos desses juramentos disse Artur. Peço apenas que, se sobreviverem, mantenham a minha promessa de ver Mordred crescer e tornar-se nosso rei.
Fez-se de novo silêncio. Penso que nenhum de nós vacilou na sua lealdade, mas também não sabíamos como expressar-lhe isso até que Galaad falou.
Eu nunca vos fiz nenhum juramento disse ele a Artur, mas faço-o agora. Onde combaterdes, Senhor, eu vou combater. Quem for vosso inimigo será meu inimigo e quem for vosso amigo meu amigo será. Juro pelo precioso sangue do Cristo vivo. Inclinou-se para a frente, pegou na mão de Artur e beijou-a. Que eu perca o direito à vida se quebrar a minha palavra.
São precisas duas pessoas para fazer um juramento disse Culhwch. Podereis até libertar-me, Senhor, mas eu não me liberto.
Nem eu, Senhor acrescentei eu. Sagramor parecia aborrecido.
Eu sou um homem vosso disse ele a Artur e de mais ninguém.
Que se lixe o juramento disse o horrível Morfans. Eu quero é lutar.
Artur tinha lágrimas nos olhos. Durante algum tempo não conseguiu falar, pelo que se atarefou a remexer a fogueira com uma acha até ter conseguido reduzir para metade o seu calor e feito o dobro do fumo.
Os vossos homens não estão ligados a mim por juramento disse ele com a voz embargada e amanhã eu só quero voluntários no Vale do Lugg.
Porquê amanhã? perguntou Culhwch. Porque não no dia seguinte? Quanto mais tempo tivermos para nos prepararmos tanto melhor; não será assim?
Artur abanou a cabeça.
Não estaremos mais bem preparados se esperarmos um ano inteiro. Além disso, a estas horas os espiões de Gorfyddyd já estão a caminho do Norte com a notícia de que Tewdric aceita os termos de Gorfyddyd e, por isso, temos de atacar antes que esses mesmos espiões descubram que nós, os Dumnonianos, não retirámos. Atacamos amanhã de madrugada. Olhou para mim. Serás o primeiro a atacar, Lorde Derfel, pelo que esta noite deves ir ter com os teus homens e falar com eles. Se mostrarem que não querem, então assim será. Mas, se quiserem, então Morfans pode dizer-te o que eles têm de fazer.
Morfans cavalgara por toda a linha inimiga, exibindo-se com a armadura de Artur, mas fazendo também o reconhecimento das posições inimigas. Agora, tirava mãos cheias de grãos de um pote e amontoava-as sobre a sua capa, espalhada no chão, para representar o Vale do Lugg.
Não é um vale longo disse ele, mas os lados são íngremes. A barricada está aqui ao fundo, a sul. Apontou para um ponto mesmo no interior do vale em maqueta. Eles deitaram árvores a baixo e construíram uma barreira. Tem altura suficiente para fazer parar um cavalo, mas não é preciso muito tempo para que alguns homens consigam afastar essas árvores para o lado. O ponto fraco deles está aqui. E indicou o monte do lado oeste. É íngreme na extremidade norte do vale, mas onde eles construíram a barricada pode descer-se facilmente pela encosta. Sobe-se o monte à noite e de madrugada ataca-se pelo monte abaixo e desmantela-se a barreira de árvores enquanto eles estão ainda a acordar. Depois os cavalos podem passar. Sorriu ironicamente, saboreando o pensamento de surpreender o inimigo.
Os teus homens são usados para marchar durante a noite disse-me Artur pelo que, amanhã de madrugada destroem a barricada e depois aguentam-se no vale tempo suficiente para os nossos cavalos chegarem. Depois dos cavalos virão os nossos lanceiros. Sagramor comandará os lanceiros no vale enquanto eu e cinquenta cavaleiros atacamos Branogenium.
Sagramor não reagiu à proclamação que lhe dava o comando da maior parte do exército de Artur.
Nós, os restantes, não conseguíamos esconder o nosso espanto, não pela nomeação de Sagramor, mas pela táctica de Artur.
Cinquenta cavaleiros a atacar todo o exército de Gorfyddyd? perguntou Galaad, duvidoso.
Não vamos capturar Branogenium admitiu Artur se calhar nem vamos chegar perto, mas vamos incitá-los a perseguir-nos e essa perseguição levá-los-á para o vale. Sagramor enfrentará essa perseguição na extremidade norte do vale, onde a estrada atravessa o rio num vau e, quando eles atacarem, vocês recuam. Olhou também para nós, para ter a certeza de que tínhamos entendido as instruções. Recuam disse ele de novo recuam sempre. Deixem-nos pensar que ganharam! E, quando os tiverem atraído bem para dentro do vale, eu ataco.
De onde? perguntei.
De trás, claro! Artur, estimulado pela perspectiva da batalha, recuperara todo o seu entusiasmo. Quando os meus cavaleiros retirarem de Branogenium não vamos voltar ao vale, vamos sim esconder-nos fora da sua extremidade a norte. O local está completamente coberto de árvores. E assim que tiverem atraído o inimigo para dentro do vale, nós apareceremos pela retaguarda.
Sagramor olhava para as pilhas de grãos.
Os Blackshields Irlandeses no Monte de Coei disse ele no seu sotaque execrável podem marchar para sul dos montes e atacar a nossa retaguarda. Empurrou um dedo pelos grãos espalhados na extremidade sul do vale para demonstrar o que queria dizer. Todos sabíamos que aqueles irlandeses eram os temidos guerreiros de Oengus Mac Airem, rei de Demétia, que fora nosso aliado até Gorfyddyd ter mudado a sua lealdade a troco de ouro. Quereis que aguentemos um exército à nossa frente com os Blackshields atrás de nós? perguntou Sagramor.
Vêem disse Artur com um sorriso porque é que propus libertar-vos dos vossos juramentos? Mas assim que Tewdric souber que estamos em batalha, ele virá. À medida que o dia passa, Sagramor, verás que a tua linha de escudos vai aumentando minuto a minuto. Os homens de Tewdric tratarão do inimigo do Monte de Coei.
E se não o fizerem? perguntou Sagramor.
Então provavelmente perderemos admitiu Artur calmamente. Mas com a minha morte virá a vitória de Gorfyddyd e a paz de Tewdric. A minha cabeça será entregue a Ceinwyn como presente de casamento e vós, meus amigos, estareis a festejar no Outro Mundo onde, acredito, tereis um lugar na mesa para mim.
Fez-se de novo silêncio. Artur parecia estar seguro de que Tewdric lutaria, se bem que nenhum de nós estivesse tão certo disso. Parecia-me que Tewdric preferia deixar Artur e os seus homens morrerem no Vale do Lugg, livrando-se assim de uma aliança inconveniente, mas também disse a mim próprio que essas altas políticas não eram parte das minhas preocupações. A minha preocupação era sobreviver ao dia seguinte e, olhando para o tosco modelo do campo de batalha de Morfans, o que me preocupava era o monte de oeste, onde íamos atacar de madrugada. E, se conseguíssemos atacar por aí, pensei eu, então também o inimigo conseguia.
Eles vão flanquear a nossa linha de escudos disse eu, descrevendo a minha preocupação.
Artur discordou.
O cume do monte é íngreme de mais para um homem com armadura subir a extremidade norte do vale. O máximo que eles poderão fazer é mandar os mercenários para lá, o que significa arqueiros. Se puderes dispensar alguns homens, Derfel, põe lá uma mão-cheia deles, mas, se assim não for, reza para Tewdric vir rapidamente. Para conseguir isso disse, virando-se para Galaad e apesar de me doer pedir-vos que fiqueis afastado da muralha de escudos, Senhor, sereis de mais valor para mim amanhã se fordes como meu mensageiro até ao rei Tewdric. Sois um príncipe, falais com autoridade, e vós, acima de todos os homens, podereis convencê-lo a tirar vantagem da vitória que pretendo dar-lhe com a minha desobediência.
Galaad ficou preocupado.
Eu preferia lutar, Senhor.
Estamos equilibrados. Artur sorriu. Eu preferia ganhar a perder. Para isso, preciso que os homens de Tewdric venham antes do fim do dia e vós, Senhor, sois o único e certo mensageiro que posso enviar a um rei ofendido. Tendes de persuadi-lo, adulá-lo, suplicar-lhe, mas acima de tudo, Senhor, convencê-lo de que ou ganhamos a guerra amanhã ou então lutaremos até ao fim dos nossos dias.
Galaad aceitou a proposta.
Conquanto que tenha a vossa permissão para regressar e lutar ao lado de Derfel quando a mensagem for entregue acrescentou.
Sereis bem-vindo disse Artur. Fez uma pausa, olhando para as pilhas de grãos. Nós somos poucos disse ele, simplesmente e eles formam uma hoste. No entanto os sonhos não se tornam realidade usando de precaução, mas apenas desafiando o perigo. Amanhã podemos trazer a paz aos Bretões. Parou abruptamente, atingido talvez pelo pensamento de que a sua ambição pela paz era também o sonho de Tewdric. Talvez Artur estivesse a decidir se, apesar de tudo, deveria lutar. Lembrei-me de como, depois da nossa reunião com Aelle, quando fizemos o juramento por baixo do carvalho, Artur tinha pensado em desistir da luta, e eu estava quase à espera de que ele esvaziasse a sua alma de novo, mas nessa noite chuvosa o cavalo da ambição puxava com força a sua alma e ele não podia contar com uma paz cujo preço era a sua própria vida ou o exílio. Ele queria paz, mas, mais ainda, queria ditar essa paz. Sejam quais forem os Deuses aos quais rezais disse calmamente que eles vos acompanhem amanhã.
Tive de montar um cavalo para voltar para junto dos meus homens. Ia apressado e caí três vezes. Como presságios, as quedas eram terríveis, mas a estrada estava macia devido à lama e não fiquei magoado excepto no meu orgulho. Artur cavalgou comigo, mas fez parar o meu cavalo quando estávamos já muito perto de onde as fogueiras do acampamento dos meus homens ardiam baixas sob a chuva insistente.
Faz isto por mim amanhã, Derfel disse ele e poderás arvorar o teu próprio estandarte e pintar os teus próprios escudos.
Neste mundo ou no próximo, pensei, mas não expus o meu pensamento com receio de tentar os Deuses. Porque no dia seguinte, numa madrugada gelada e cinzenta, iríamos lutar contra o mundo.
Nenhum dos meus homens tentou fugir aos seus juramentos. Alguns, poucos, poderiam ter querido evitar a batalha, mas nenhum quis mostrar fraqueza frente aos seus companheiros e, por isso, marchámos todos, partindo a meio da noite para atravessar os campos encharcados pela chuva. Artur despediu-se de nós, partindo em seguida para onde os seus cavaleiros estavam acampados.
Nimue insistiu em acompanhar-nos. Prometera-nos um feitiço de encobrimento e, depois disso, nada persuadiria os meus homens a deixá-la para trás. Realizou o feitiço antes de partirmos, executando-o à luz das chamas sobre a caveira de um cordeiro que encontrara numa vala perto do acampamento. Arrastou a carcaça para fora do matagal onde um lobo se tinha regalado, cortou-lhe a cabeça, esfolou o resto da pele bichenta e, depois, agachou-se com a capa a cobri-la a ela própria e à caveira fedorenta. Deixou-se ficar ali agachada durante muito tempo, respirando o horrível fedor da cabeça em decomposição, posto o que se levantou e deu um pontapé desdenhoso na caveira. Observou onde ia parar e, depois de um momento de deliberação, declarou que o inimigo olharia para o outro lado enquanto marchássemos durante a noite. Artur, fascinado com a intensidade de Nimue, estremeceu quando ela fez a declaração. Depois abraçou-me.
Devo-te um favor, Derfel.
Não me deveis nada, Senhor.
Se não for por mais nada disse ele, agradeço-te por me teres trazido a mensagem de Ceinwyn. Ele ficara muito contente com o perdão dela e, depois, encolhera os ombros quando eu acrescentara as outras palavras sobre ser-lhe garantida a protecção dele. Ela nada tem a temer de nenhum homem de Dumnónia dissera ele. Deu-me agora umas palmadinhas nas costas e prometeu: Ver-te-ei de madrugada. E ficou a ver-nos sair em fila da luz das fogueiras para a escuridão.
Atravessámos prados cobertos de erva e campos onde as colheitas tinham acabado de ser feitas, não encontrando outro obstáculo que não fosse o chão empapado, a escuridão e a chuva. A chuva vinha do nosso lado esquerdo, de Oeste, e parecia implacável, uma chuva pesada e persistente, fria e mordaz, que pingava para dentro dos nossos coletes e nos gelava os corpos. A princípio íamos todos em grupo para que nenhum homem se perdesse no escuro, se bem que, mesmo ao atravessarmos terrenos menos difíceis, estivéssemos constantemente a chamar-nos uns aos outros em voz baixa para ver onde estariam os nossos companheiros. Alguns homens tentavam agarrar-se à capa de um amigo, mas as lanças batiam umas nas outras e os homens davam passos em falso até que, finalmente, mandei parar toda a gente e formei duas filas. Ordenei a todos os homens que prendessem os escudos atrás das costas e que, depois, segurassem a lança do homem à sua frente. Cavan ia na retaguarda, para se assegurar de que ninguém desistia, enquanto Nimue e eu íamos à frente. Ela segurava a minha mão, não por afecto, mas simplesmente para não nos afastarmos um do outro na noite escura. Agora o Lughnasa parecia um sonho, afastado não pelo tempo, mas pela cruel recusa de Nimue de que o nosso encontro na tenda tinha realmente acontecido. Aquelas horas, tal como os meses que passou na ilha dos Mortos, tinham servido o seu propósito e eram agora irrelevantes.
Chegámos a uma zona de árvores. Hesitei e, depois, desci uma rampa íngreme e lamacenta, mergulhando numa escuridão tão profunda que fiquei desesperado por levar cinquenta homens por aquele horrível negrume, mas Nimue começou a cantarolar em voz baixa e o som funcionou como um farol, guiando os homens em segurança através da escuridão que os fazia hesitar. Ambas as correntes de lanças se quebraram, mas, seguindo a voz de Nimue, todos conseguimos avançar às cegas sem saber como por entre as árvores, indo dar a um prado que ficava para lá do arvoredo. Aí chegados parámos enquanto Cavan e eu próprio contávamos os homens e Nimue andava à nossa volta sibilando feitiços na escuridão.
O meu ânimo, abatido pela chuva e pelas trevas, estava muito em baixo. Tinha tido uma imagem mental daquele campo que ficava mesmo a norte do acampamento dos meus homens, mas o nosso avanço vacilante tinha feito desaparecer essa imagem. Não fazia ideia de onde estava, nem para onde devia ir. Pensava que tínhamos estado a dirigir-nos para Norte, mas sem uma estrela para me guiar nem a Lua para iluminar o meu caminho, deixei que os meus medos dominassem o meu poder de decisão.
Porque esperas? Nimue veio colocar-se a meu lado, sussurrando estas palavras.
Eu não disse nada, não querendo admitir que estava perdido. Ou não querendo talvez admitir que estava assustado.
Nimue sentiu a minha incapacidade de tomar decisões e tomou conta do comando.
Temos uma longa extensão de pastagem aberta à nossa frente disse ela aos meus homens. Costumava servir para apascentar ovelhas, mas retiraram o rebanho, pelo que não há pastores nem cães para nos verem. É sempre a subir, mas fácil de percorrer se ficarmos juntos. Ao fim da pastagem chegamos a um bosque e aí esperamos pela madrugada. Não é longe nem é difícil. Sei que estamos gelados e encharcados, mas amanhã vamos aquecer-nos nas fogueiras dos nossos inimigos. A confiança com que o disse era total.
Acho que eu não conseguia chefiar aqueles homens por entre aquela noite de chuva, mas Nimue conseguiu-o. Dizia que o seu único olho via no escuro o que os nossos dois olhos não viam, e talvez isso fosse verdade, ou talvez ela simplesmente tivesse uma ideia melhor daquela área do que eu tinha. Mas seja como for que ela o tivesse feito, fê-lo bem. Durante a última hora caminhámos ao longo do rebordo de um monte e, de repente, a caminhada tornou-se mais fácil, pois estávamos agora no monte de oeste acima do Vale do Lugg e os fogos de bivaque dos nossos inimigos ardiam no escuro abaixo de nós. Eu conseguia até ver a barricada de pinheiros cortados e o rio Lugg a reluzir para lá da barricada. No vale, homens atiravam grandes toros de madeira para as fogueiras para iluminarem a estrada por onde podiam vir inimigos do Sul.
Chegámos ao bosque e afundámo-nos no chão molhado. Alguns quase dormitaram num torpor leve, cheio de sonhos e ilusório, um sono que não é sono e deixa um homem frio, cansado e dorido, mas Nimue manteve-se acordada, murmurando encantamentos e falando com os homens que não conseguiam dormir. Não eram conversas banais, pois Nimue não tinha tempo para tagarelices fúteis, mas explicações intensas da razão pela qual lutávamos. "Não por Mordred", dizia ela, "mas por uma Grã-Bretanha desprovida de estranhos e de ideias estranhas." Até os cristãos das minhas fileiras a escutavam.
Não esperei pela madrugada para levar a cabo o meu ataque. Antes disso, quando a este, no céu encharcado pela chuva, despontou o primeiro reflexo pálido da aurora, acordei os adormecidos e conduzi os meus cinquenta lanceiros pelo monte abaixo até ao limiar do bosque. Aí, ficámos à espera, acima de uma encosta coberta de erva que descia até ao leito do vale de forma tão íngreme como os flancos do Tor de Ynys Wydryn. O meu braço esquerdo estava preso às correias do escudo, a Hywelbane pendia-me da ilharga e a pesada lança estava bem firme na minha mão direita. Havia algum nevoeiro onde o rio corria para fora do vale. Uma coruja branca voou baixo ao lado das nossas árvores e os meus homens julgaram o animal um mau presságio, mas depois um gato selvagem rosnou atrás de nós e Nimue disse que o aparecimento carregado de má sorte da coruja tinha sido anulado. Rezei a Mitra, oferecendo as próximas horas à sua glória. Depois disse aos meus homens que os Francos tinham sido inimigos muito mais ferozes do que aqueles Powysianos embriagados pela noite no vale abaixo de nós. Duvidava que isso fosse totalmente verdade, mas os homens no limiar da batalha não precisam da verdade, mas sim de confiança. Eu tinha ordenado em particular a Issa e a outro homem que ficassem sempre junto de Nimue, pois se ela morresse a confiança dos meus homens dissipar-se-ia como um nevoeiro de Verão.
A chuva batia-nos por trás, tornando a ladeira coberta de erva muito escorregadia. O céu acima da outra extremidade do vale tinha mais luz, mostrando as primeiras sombras entre as nuvens a desaparecer. O mundo estava vestido de preto e cinzento, escuro como a noite no próprio vale, mas mais claro no limiar do bosque, num contraste que me fazia temer que o inimigo nos pudesse ver enquanto nós não o podíamos ver. As fogueiras deles ainda ardiam, mas muito mais baixo do que tinham ardido durante as escuras profundezas da noite assombradas pelos espíritos. Não via sentinelas. Estava na hora de avançar.
Avancem devagar ordenei aos meus homens.
Eu imaginara uma louca investida pelo monte abaixo, mas agora tinha mudado de ideias. A erva molhada seria traiçoeira e achara que seria melhor se rastejássemos vagarosa e silenciosamente pela encosta abaixo como fantasmas na madrugada. Eu ia à frente, caminhando cada vez com mais cuidado à medida que o monte ia ficando mais íngreme. Mesmo as botas ferradas ofereciam uma fixação traiçoeira no chão molhado, pelo que avançávamos tão devagar como um gato a perseguir um rato e o maior ruído que se ouvia naquela meia escuridão era o som do nosso próprio respirar. Usávamos as lanças como apoio. Por duas vezes dois homens caíram pesadamente, tendo os escudos batido contra as bainhas das espadas ou contra as lanças, e das duas vezes ficámos muito quietos à espera de um desafio. Mas não veio nenhum.
A última parte da encosta era a mais íngreme, mas da borda dessa descida final podíamos, pelo menos, ver todo o leito do vale. O rio corria como uma sombra escura do outro lado, enquanto abaixo de nós a estrada romana passava entre um grupo de cabanas com telhados de colmo onde o inimigo tinha de estar abrigado. Só via quatro homens. Dois estavam agachados junto às fogueiras, um terceiro estava sentado sob o beiral e o quarto andava para cima e para baixo por trás da barreira de árvores. O Céu de leste começava a empalidecer adquirindo o brilho da madrugada e era tempo de libertar os meus lanceiros com caudas de lobo nos elmos para a matança.
Os Deuses serão a vossa muralha de escudos disse-lhes eu e matem bem.
Lançámo-nos com violência pelos últimos metros da íngreme encosta abaixo. Alguns homens escorregavam de costas em vez de tentarem aguentar-se em pé, outros corriam impetuosamente e eu, porque era o seu chefe, corria com eles. O medo dava-nos asas e fazia-nos gritar em desafio. Éramos os lobos de Benoic que vínhamos trazer a morte aos montes fronteiriços de Powys e, de repente, como sempre acontece nas batalhas, o júbilo tomou conta de nós. Um júbilo insustentável flamejava dentro das nossas almas enquanto toda e qualquer sobriedade, pensamento e decência eram completamente eliminados deixando apenas o brilho selvagem da peleja. Saltei os últimos centímetros, caindo no meio de uns arbustos de framboesas, dei um pontapé num balde vazio e, depois, vi o primeiro homem sair assustado de uma cabana próxima. Estava de calças e colete, com uma lança na mão e piscando os olhos por causa da chuva matinal, e assim morreu quando lhe espetei a lança na barriga. Eu uivava com o uivo do lobo, desafiando os meus inimigos a aparecerem para serem mortos.
A minha lança ficou presa nas entranhas do moribundo. Deixei-a lá ficar e desembainhei a Hywelbane. Outro homem espreitou da cabana para ver o que estava a acontecer e eu dei-lhe uma estocada nos olhos, atirando-o para trás. Os meus homens passaram a correr por mim, a uivar e a gritar. As sentinelas fugiram. Um deles correu para o rio, hesitou, virou-se para trás e morreu sob dois golpes de espada. Um dos meus homens agarrou num tição da fogueira e atirou-o para cima do colmo molhado. Seguiram-se mais tições até que, por fim, as cabanas pegaram fogo, obrigando os ocupantes a sair cá para fora, para onde os meus lanceiros os aguardavam. Uma mulher gritou quando o colmo em chamas lhe caiu em cima. Nimue arrancara a espada de um inimigo morto e estava a enterrá-la no pescoço de um homem caído ao mesmo tempo que entoava um som estridente e sobrenatural que conferia um novo terror à gélida madrugada.
Cavan bramiu aos homens para começarem a afastar a barreira de árvores. Deixei os poucos inimigos que ainda viviam à mercê dos meus homens e fui ajudá-lo. A barreira era uma barricada feita de cerca de vinte pinheiros cortados e cada árvore precisava de outros tantos homens para ser afastada. Tínhamos feito um buraco de cerca de um metro e meio de largura onde a estrada passava através da barricada, quando Issa gritou, avisando-me.
Os homens que tínhamos assassinado não constituíam toda a força de guarda acampada no vale, sendo antes o piquete que guardava a barreira e agora, a principal guarnição, acordada pelo reboliço, começava a surgir na parte norte, mais ensombrada, do vale.
Muralha de escudos! gritei. Muralha de escudos! Formámos a linha mesmo a norte das cabanas queimadas. Dois dos meus homens tinham partido os tornozelos ao descer a íngreme encosta e um terceiro tinha sido morto nos primeiros momentos da refrega, mas, nós, os restantes, caminhámos arrastando os pés para a linha e encostámos as bordas dos escudos umas às outras para termos a certeza de que a linha estava firme. Tinha recuperado a minha lança, pelo que embainhei agora a Hywelbane e empurrei a ponta da lança para a juntar às outras pontas de aço que se eriçavam a aproximadamente metro e meio à frente da muralha de escudos. Ordenei que meia dúzia de homens ficassem atrás com Nimue, para o caso de algum inimigo ainda estar escondido entre as sombras e, depois, tivemos de esperar enquanto Cavan substituía o seu escudo. As correias do escudo tinham rebentado, pelo que ele arranjou um escudo powysiano e rapidamente cortou a cobertura de couro com o símbolo da águia, apressando-se a ocupar o seu lugar na ponta do lado direito da muralha. Este era o local mais vulnerável, porque o homem da direita numa linha de escudos deve segurar o seu escudo de forma a proteger o homem ao seu lado esquerdo, expondo assim aos golpes do inimigo o lado direito do seu próprio corpo.
Pronto, Senhor! gritou ele.
Em frente! gritei. Pensei que seria melhor avançar do que esperar que o inimigo formasse e nos atacasse.
Os flancos do vale tornavam-se mais altos e íngremes à medida que avançávamos para norte. A encosta à nossa direita, para lá do rio, era um espesso emaranhado de árvores, enquanto à nossa esquerda, o monte era, a princípio, coberto de erva e, depois, de pequenos arbustos. O vale ia ficando mais estreito à medida que avançávamos, mas não o suficiente para poder ser considerado um desfiladeiro. Havia espaço para um bando guerreiro manobrar no Vale do Lugg, se bem que a margem pantanosa do rio ajudasse a diminuir a parte seca do terreno necessária para a batalha. A primeira luz que aparecia por entre as nuvens iluminava os montes de oeste, mas essa luz tinha ainda de se espalhar até às profundezas do vale, onde a chuva tinha, finalmente, parado, apesar das rajadas de vento serem frias e húmidas e fazerem bruxulear as chamas das fogueiras dos acampamentos que ardiam vale acima. Essas fogueiras dos acampamentos revelaram uma aldeia com telhados de colmo em redor de um edifício romano. As sombras de homens apressados tremeluziam em frente às fogueiras, um cavalo relinchava e, de repente, quando, por fim, a luz fantasmagórica da madrugada iluminou a estrada, vi formar-se uma muralha de escudos.
Também vi que a muralha de escudos tinha, pelo menos, uns cem homens e havia mais a juntarem-se às fileiras.
Alto! gritei para os meus homens. Depois olhei para a luz fraca e supus que a muralha inimiga era formada por perto de duzentos homens. A luz cinzenta reluzia nas cabeças das lanças. Aquela era a guarda de elite que Gorfyddyd preparara para guardar o vale.
O vale era com certeza amplo de mais para os meus cinquenta homens suportarem o embate. A estrada corria junto à encosta de oeste e deixava à nossa direita espaço suficiente para o inimigo nos flanquear facilmente e, por isso, dei aos meus homens ordem para recuarem.
Recuar devagar! gritei. Devagar e confiantes! Recuar para a barreira! Podíamos guardar o buraco que tínhamos aberto na barreira de árvores, apesar de ser apenas uma questão de segundos para o inimigo avançar por cima das restantes árvores e nos cercar.
Recuar devagar! gritei de novo e, depois, fiquei quieto enquanto os meus homens retiravam. Esperei, porque um cavaleiro isolado saía das fileiras do inimigo e esporeava o cavalo na nossa direcção.
O emissário do inimigo era um homem alto que cavalgava muito bem. Trazia um elmo de ferro encimado por penas de cisne, uma lança e uma espada, mas não trazia escudo. Usava couraça e a sua sela era de pele de carneiro. Era um homem de aspecto impressionante, de olhos negros e barba escura e havia alguma coisa de familiar no seu rosto. Mas foi só quando ele parou o cavalo à minha frente que eu o reconheci. Era Valerin, o chefe militar que era noivo de Guinevere quando ela conhecera Artur. Olhou para mim e levantou devagar a cabeça da lança apontando-a à minha garganta.
Esperava que fosses Artur disse.
O meu Senhor manda-te saudações, Lorde Valerin respondi. Valerin cuspiu para o meu escudo que ostentava de novo o símbolo do urso de Artur.
Retribui-lhe as minhas saudações e à puta com quem ele casou. Fez uma pausa, levantando a ponta da lança e colocando-a rente aos meus olhos. Estás muito longe de casa, miúdo disse ele. A tua mãe sabe que não estás na caminha?
A minha mãe respondi está a preparar um caldeirão para os teus ossos, Lorde Valerin. Precisamos de cola e ouvimos dizer que os ossos de carneiro são os que dão a melhor cola.
Ele pareceu satisfeito por eu o ter reconhecido, achando que o reconhecera pela sua fama e não se apercebendo de que eu fora um dos guardas que viera a Caer Sws com Artur muitos anos antes. Levantou a ponta da lança, afastando-a do meu rosto e olhou para os meus homens.
Vocês não são muitos disse, mas nós somos. Querem render-se agora?
Vocês são muitos disse eu, mas os meus homens anseiam pela batalha e, por isso, vão receber bem uma grande quantidade de inimigos.
Esperava-se que um chefe fosse bom neste ritual de insultos que antecediam a batalha e eu sempre me diverti com ele. Artur nunca foi bom nesta troca de palavras, pois até ao último momento, antes da matança começar, esforçava-se por fazer os inimigos gostarem dele. Valerin deu meia volta ao cavalo.
Como te chamas? perguntou antes de se afastar.
Lorde Derfel Cadarn respondi, orgulhoso, e pensei ver, ou talvez julgasse ver, um movimento vacilante de reconhecimento antes de bater com os calcanhares, conduzindo o cavalo para norte.
Se Artur não viesse, pensei, seríamos todos homens mortos, mas quando me juntei aos meus lanceiros ao lado da barricada encontrei Culhwch, que mais uma vez cavalgava com Artur, à minha espera. O seu grande cavalo pastava ruidosamente ali perto.
Não estamos longe, Derfel assegurou-me ele e quando aqueles vermes atacarem vocês têm de fugir. Percebido? Façam-nos ir atrás de vocês. Isso vai obrigá-los a espalharem-se e, quando vocês nos virem chegar, saiam do caminho. Apertou-me a mão com vigor e envolveu-me num forte abraço muito apertado. Isto é melhor do que falar da paz, não é? disse ele, dirigindo-se para o cavalo e, com um impulso, subindo para a sela. Sejam cobardes por alguns minutos! gritou para os meus homens e, depois, levantou a mão e partiu batendo com as esporas em direcção ao sul.
Expliquei aos meus homens o que significavam as palavras que Culhwch proferira antes de partir e ocupei o meu lugar no centro da muralha de escudos que se esticava pelo buraco que tínhamos feito nas árvores caídas. Nimue estava atrás de mim, segurando ainda a espada ensanguentada.
Vamos fingir que entramos em pânico, quando eles atacarem a primeira vez gritei para a muralha de escudos. Não tropecem quando forem a correr e assegurem-se de que saem do caminho dos cavalos. Ordenei que quatro dos meus homens ajudassem os outros dois que tinham os tornozelos partidos a irem para um matagal por detrás da barreira, onde se podiam esconder.
Esperámos. Olhei para trás uma vez, mas não vi os homens de Artur que imaginei estarem escondidos onde a estrada entrava numa mata a cerca de meio quilómetro para sul. À minha direita o rio corria em redemoinhos escuros, mas reluzentes, onde dois cisnes eram arrastados pela corrente. Uma garça-real alcançou a margem do rio, mas depois estendeu preguiçosamente as asas e voou para norte, uma direcção que Nimue tomou como sendo um bom augúrio, porque o pássaro estava a levar a sua má sorte na direcção do inimigo.
Os lanceiros de Valerin vinham devagar. Tinham sido acordados para a batalha e estavam ainda muito lentos. Alguns não traziam os elmos e calculei que os chefes os tinham arrancado das enxergas de palha com tanta pressa que nem todos teriam tido tempo de pôr a armadura completa. Não tinham nenhum druida com eles, o que significava que, pelo menos, estávamos livres de pragas, se bem que, tal como os meus homens, eu murmurasse orações rápidas. As minhas eram dirigidas a Mitra e a Bei. Nimue rezava a Andraste, a Deusa da Matança, enquanto Cavan rezava aos seus Deuses irlandeses para que proporcionassem à sua lança um bom dia de matanças. Vi que Valerin tinha desmontado e chefiava os seus homens a partir da linha do centro, apesar de eu reparar que um servo levava o cavalo do chefe militar mesmo atrás da linha que avançava.
Uma forte rajada de vento húmido espalhou o fumo das cabanas incendiadas pela estrada, escondendo uma parte da linha inimiga. Perguntava-me se os corpos dos seus companheiros mortos não iriam acordar os lanceiros que avançavam e ouvi os gritos de raiva à medida que iam encontrando os corpos recém-chacinados e, quando uma lufada de vento afastou o fumo, a linha de ataque avançava mais rápida e a lançar insultos. Esperámos em silêncio enquanto a luz cinzenta da manhã se infiltrava no chão molhado do vale.
Os lanceiros inimigos pararam a cinquenta passos de nós. Todos eles traziam a águia de Powys nos escudos, pelo que nenhum era nem da Silúria nem dos outros contingentes reunidos por Gorfyddyd. Supus que aqueles lanceiros deviam estar entre os melhores de Powys e, por isso, cada um que matássemos agora seria uma ajuda mais tarde, e só os Deuses sabiam como precisávamos de ajuda. Até agora estávamos com o melhor do dia e eu tinha de estar constantemente a lembrar-me de que aqueles momentos fáceis tinham como único objectivo trazer toda a força de Gorfyddyd e dos seus aliados até aos poucos, mas leais, homens de Artur.
Dois homens saíram a correr da linha de Valerin e lançaram lanças que passaram muito acima das nossas cabeças indo enterrar-se na erva atrás de nós. Os seus homens começaram a provocar-nos com zombarias e alguns tiraram deliberadamente os escudos da frente dos corpos, como se convidando o inimigo a tentar de novo. Agradeci a Mitra por Valerin não ter arqueiros. Poucos guerreiros traziam arco, pois nenhuma flecha consegue furar um escudo ou uma couraça de couro. O arco era uma arma de caçador, de melhor efeito contra aves selvagens ou numa escaramuça, mas um conjunto de homens do campo recrutados com arcos leves podiam mesmo tornar-se um incómodo, obrigando os guerreiros a agacharem-se por detrás da muralha de escudos.
Mais dois homens atiraram lanças. Uma delas enterrou-se num escudo, a outra voou outra vez por alto. Valerin observava-nos, avaliando o nosso poder de decisão e, talvez por não termos atirado também lanças, terá pensado que já éramos homens batidos. Levantou os braços, bateu com a lança no escudo e gritou aos seus homens para atacarem
Os homens rugiram em uníssono o seu grito de guerra e nós, tal como Artur tinha ordenado, desfizemos a muralha de escudos e fugimos. Durante alguns segundos houve uma grande confusão enquanto os homens na linha de escudos se atropelavam uns aos outros, mas depois separámo-nos e corremos pesadamente pela estrada abaixo. Nimue, com a capa negra a esvoaçar, corria à nossa frente, mas sempre a olhar para trás para ver o que se passava. O inimigo regozijava com a sua vitória e corria para nos apanhar enquanto Valerin, vendo uma oportunidade de meter o cavalo por entre uma multidão rendida, gritou para que o servo lhe trouxesse o animal.
Nós corríamos desajeitadamente, atrapalhando-nos com as capas, os escudos e as lanças. Eu estava cansado e tinha dificuldade em respirar seguindo os meus homens para sul. Conseguia ouvir o inimigo atrás de nós e por duas vezes olhei por cima do ombro e vi um homem alto, de cabelo ruivo, fazendo esgares esforçando-se por me apanhar. Era um corredor mais rápido do que eu e eu começava a pensar que teria de parar, virar-me e lutar com ele, quando ouvi o doce e abençoado som da corneta de Artur. Soou duas vezes e, depois, Artur saiu do meio das árvores ainda entorpecidas pela madrugada mesmo à nossa frente.
À frente vinha o próprio Artur com uma pluma branca, usando uma armadura cintilante, trazendo o seu escudo que brilhava como um espelho e a capa branca aberta para trás, como umas asas. A cabeça da sua lança inclinou-se quando os seus cinquenta homens apareceram a cavalo com as armaduras, os rostos envolvidos em ferro e as pontas das lanças a brilhar. Os estandartes do dragão e do urso esvoaçavam resplandecentes e a terra tremia sob os pesados cascos que atiravam água e lama para o ar à medida que os grandes cavalos ganhavam velocidade. Os meus homens correram para o lado, formando dois grupos que rapidamente se juntaram em círculos de defesa com os escudos e as lanças virados para fora. Eu fui para a esquerda e virei-me a tempo de ver os homens de Valerin desesperados a tentarem formar uma muralha de escudos. Valerin, montado no seu cavalo, gritou-lhes que retirassem para a barricada, mas era tarde de mais. A nossa armadilha fora lançada e os defensores do Vale do Lugg estavam condenados.
Artur passou pesadamente por mim montado na Llamrei, a sua égua favorita. As fraldas do cobertor do cavalo e as pontas da sua capa estavam já empapadas em lama. Um homem atirou uma lança que ricocheteou na armadura que cobria o peito de Llamerei e Artur enterrou a sua lança no primeiro soldado inimigo, abandonando a arma e desembainhando a Excalibur em plena madrugada. O resto dos cavalos passavam ruidosamente numa confusão de água e barulho. Os homens de Valerin gritavam enquanto os grandes animais se precipitavam sobre as fileiras desfeitas. As espadas golpeavam deixando homens a cambalear e a sangrar enquanto os cavalos abriam caminho por entre eles, alguns pisando homens em pânico sob os seus pesados cascos de ferro. Lanceiros rendidos não tinham como se defender dos cavalos e aqueles guerreiros de Powys não tinham a mínima oportunidade de formarem um arremedo que fosse de uma muralha de escudos.
A única coisa que podiam fazer era correr e Valerin, vendo que não tinha salvação, virou o seu pequeno cavalo e galopou para Norte.
Alguns dos seus homens seguiram-no, mas qualquer homem a pé estava condenado a ser derrubado e pisado pelos cavalos. Outros viraram para os lados e correram em direcção ao rio ou ao monte, mas esses caçámo-los com grupos de lanceiros. Só muito poucos atiraram ao chão as lanças e os escudos e levantaram os braços. Esses deixámo-los viver, mas qualquer homem que oferecesse resistência era rodeado como um javali apanhado numa armadilha no meio de um matagal e espetado com as lanças até à morte. O cavalo de Artur tinha desaparecido no vale, deixando para trás um horrível rasto de homens com as cabeças cortadas até ao cérebro por golpes de espada. Outros inimigos coxeavam e caíam e Nimue, perante aquela destruição, soltava arrepiantes gritos de triunfo.
Fizemos cerca de cinquenta prisioneiros. Pelo menos outros tantos estavam mortos ou moribundos. Poucos escaparam fugindo pelo monte que nós tínhamos descido à luz cinzenta da madrugada e alguns afogaram-se ao tentar atravessar o Lugg, mas o resto estava a sangrar, a cambalear, a vomitar. Era a derrota. Os homens de Sagramor, cento e cinquenta lanceiros de primeira água, apareceram quando acabávamos de capturar os últimos sobreviventes de Valerin.
Não podemos dispensar homens para guardar prisioneiros disse Sagramor, saudando-me.
Eu sei.
Então mata-os ordenou-me, e Nimue ecoou a sua aprovação.
Não insisti eu.
Sagramor era meu comandante pelo resto daquele dia e eu não gostava de discordar dele, mas Artur queria trazer paz aos Bretões e matar prisioneiros indefesos não era a forma correcta de ligar Powys à sua paz. Além disso, tinham sido os meus homens a fazê-los prisioneiros, pelo que o destino deles era da minha responsabilidade. Em vez de os matar, ordenei que se despissem e, depois, foram levados um a um para onde Cavan esperava com uma pedra pesada que lhe ia servir de martelo e um seixo que lhe ia servir de bigorna. Colocámos a mão que segura a lança de cada homem em cima do seixo, segurámo-la e depois esmagámos os dois dedos mais pequenos com a pedra. Um homem com dois dedos despedaçados viveria e até podia voltar a agarrar uma lança, mas não nesse dia. Nem por muitos dias. Depois mandámo-los para Sul, nus e a sangrar e dissemos-lhes que se os víssemos de novo antes da noite cair, iam morrer com certeza. Sagramor escarneceu de mim por mostrar tanta clemência, mas não anulou as minhas ordens. Os meus homens ficaram com as melhores roupas e as botas do inimigo e procuraram moedas nas roupas que não quiseram, atirando-as para as cabanas ainda a arder. Amontoámos as armas capturadas ao lado da estrada.
Depois marchámos para Norte e verificámos que Artur tinha terminado a sua perseguição no vau e rumara para a aldeia em redor do enorme edifício romano que Artur afirmava ter sido uma casa de repouso para viajantes que se dirigiam aos montes do Norte. Uma multidão de mulheres estava aninhada sob vigilância ao lado da casa, agarradas aos filhos e aos seus miseráveis pertences.
O vosso inimigo disse eu a Artur era Valerin. Levou-lhe alguns segundos a situar o nome e depois sorriu. Tinha tirado o elmo e desmontado para nos saudar.
Pobre Valerin disse ele duas vezes perdedor. Depois abraçou-me e agradeceu aos meus homens.
A noite estava tão escura disse ele. Duvidei que chegassem a encontrar o vale.
Não fui eu quem o encontrou. Foi Nimue.
Então devo-te um agradecimento disse ele a Nimue.
Agradecei-me disse ela, conseguindo hoje a vitória.
Com a ajuda dos Deuses, assim farei. Virou-se e olhou para Galaad que cavalgara no ataque. Ide para Sul, Senhor, e levai a Tewdric as minhas saudações e implorai-lhe que envie as lanças dos seus homens para o nosso lado. E que Deus dê à vossa língua o dom da eloquência. Galaad picou o cavalo e cavalgou de novo para Sul ao longo do vale a tresandar a sangue.
Artur virou-se e olhou para o cimo de um monte a cerca de quilómetro e meio para norte do vau. Havia lá um velho forte de terra, uma herança do Povo Antigo, mas que parecia estar deserto.
Seria muito mau para nós disse com um sorriso se alguém visse onde nos escondemos. Ele queria encontrar um esconderijo e deixar lá a pesada armadura do cavalo antes de cavalgar para norte para empurrar os homens de Gorfyddyd para fora dos acampamentos de Branogenium.
Nimue executar-vos-á um feitiço de encobrimento disse eu.
Farás isso, Senhora? perguntou ele avidamente.
Ela foi procurar uma caveira. Artur abraçou-me de novo e chamou o servo Hygwydd para o ajudar a tirar a pesada armadura de escamas. Saiu-lhe pela cabeça, deixando-lhe o cabelo curto despenteado.
Usarias esta armadura? perguntou-me ele.
Eu? Fiquei atónito.
Quando o inimigo atacar disse ele esperará encontrar-me aqui e, se eu aqui não estiver vai suspeitar de uma armadilha. Sorriu. Eu pediria a Sagramor, mas o rosto dele é um pouco mais difícil de confundir do que o teu, Lorde Derfel. No entanto vais ter de cortar algum desse longo cabelo. O meu cabelo loiro a aparecer por debaixo do rebordo do elmo seria um sinal seguro de que eu não era Artur. E talvez aparar um pouco a barba acrescentou ainda.
Tirei a armadura das mãos de Hygwydd e fiquei chocado com o seu peso.
Será uma honra disse eu.
É pesada avisou-me ele. Vais ficar com calor e não consegues ver para os lados quando usas o elmo, pelo que precisarás de dois bons homens a flanquear-te. Ele sentia a minha hesitação. Queres que peça a outra pessoa para a usar?
Não, não, meu Senhor disse eu. Eu uso-a.
Significará perigo avisou-me ele.
Eu não estava à espera de um dia seguro, Senhor respondi.
Vou deixar-vos os estandartes disse ele. Quando Gorfyddyd chegar tem de ficar convencido de que todos os seus inimigos estão num só lugar. Será uma luta muito dura, Derfel.
Galaad trará ajuda assegurei-lhe.
Ele tirou-me a minha couraça e o escudo, deu-me o seu próprio escudo brilhante e a capa branca e, depois, virou-se e agarrou firmemente o freio da Llamrei.
Isto disse ele, depois de o terem ajudado a subir para a sela foi a parte mais fácil do dia. Chamou Sagramor com um aceno de cabeça e disse-nos: O inimigo estará aqui ao meio-dia. Façam tudo o que puderem para estarem preparados e, depois, lutem como nunca lutaram antes. Se vos voltar a ver, então é porque saímos vitoriosos. Se não, então agradeço-vos, saúdo-vos e esperarei festejar convosco no Outro Mundo. Gritou para os seus homens montarem e cavalgou para Norte.
E nós ficámos à espera de que a verdadeira batalha começasse.
A armadura de escamas era terrivelmente pesada, sobrecarregando os meus ombros como a água que as mulheres carregam para casa todas as manhãs. Até levantar o braço que segura a espada era difícil, se bem que se tivesse tornado mais fácil quando apertei a cilha do cinto da espada em redor das escamas de ferro, aliviando assim dos ombros o peso da parte de baixo da armadura.
Nimue, depois de ter terminado o seu feitiço de encobrimento, cortou-me o cabelo com uma faca. Queimou todo o cabelo que cortou para evitar que algum inimigo o encontrasse e fizesse algum feitiço. Depois usei o escudo de Artur como espelho para cortar a minha longa barba o suficiente para ficar escondida atrás das peças do elmo que cobrem as faces. Em seguida coloquei o elmo, aconchegando o estofamento de couro sobre o crânio até me rodear a cabeça como uma concha, A minha voz parecia abafada apesar das perfurações feitas no metal brilhante sobre os ouvidos. Tomei o peso ao escudo, deixei Nimue apertar a capa branca salpicada de lama em redor dos meus ombros e tentei habituar-me ao incómodo peso da armadura. Pedi a Issa para lutar comigo com a haste da lança como se fosse um bastão e vi que estava muito mais lento do que o habitual.
O medo vai obrigar-vos a ser mais rápido, Senhor disse-me Issa depois de ter vencido a minha guarda pela décima vez e me ter dado um golpe sonoro que me ecoou na cabeça.
Não deites a pluma abaixo com os golpes disse-lhe eu. Secretamente, desejava nunca ter aceite a pesada armadura. Era equipamento de cavaleiros, destinado a acrescentar peso e temor a um homem montado que tinha de abrir caminho por entre as fileiras do inimigo, mas nós, os lanceiros, dependíamos da agilidade e da rapidez, quando não estávamos entalados ombro com ombro numa muralha de escudos.
Mas estais muito elegante, Senhor disse-me Issa com admiração.
Serei um cadáver muito elegante se não guardares o meu flanco disse-lhe eu. É como lutar dentro de um balde. Arranquei o elmo, e fiquei aliviado por aquela pressão desaparecer do meu crânio. Quando vi esta armadura pela primeira vez disse eu a Issa queria-a mais do que qualquer outra coisa no mundo. Agora trocava-a por qualquer decente couraça de couro.
Correrá tudo bem, Senhor disse-me ele sorrindo de esguelha. Tínhamos trabalho para fazer. As mulheres e as crianças abandonadas pelos homens vencidos de Valerin tiveram de ser afastadas do vale e levadas para sul e preparámos defesas junto aos restos da barreira de árvores. Sagramor temia que o peso esmagador do inimigo nos pudesse empurrar para fora do vale, antes de os cavaleiros de Artur chegarem em nosso auxílio e, por isso, preparou o terreno o melhor que pôde. Os meus homens queriam dormir, mas tivemos de cavar um fosso baixo que atravessava o vale. O fosso estava longe de ser suficientemente fundo para fazer parar um homem, mas obrigaria os lanceiros que atacassem a abrandarem a marcha e talvez a tropeçarem ao aproximarem-se da nossa linha de lanças. A barreira de árvores ficava mesmo atrás do fosso e marcava o limite ao sul até onde podíamos recuar e o lugar que devíamos defender até à morte. Sagramor fixou as árvores tombadas com algumas das lanças abandonadas de Valerin que ele ordenou que fossem enterradas bem fundo na terra para fazer uma paliçada de cabeças de lança assestadas entre os ramos dos pinheiros. Deixámos o buraco por onde a estrada passava pelo centro da barreira para podermos recuar para trás da frágil barricada antes de a defendermos.
A minha preocupação era a encosta ampla e íngreme pela qual os meus homens tinham atacado de madrugada. Os guerreiros de Gorfyddyd atacariam sem dúvida pelo vale, mas os mercenários seriam provavelmente mandados para o monte para ameaçarem o nosso flanco esquerdo. Todavia, Nimue garantia que não havia razões para me preocupar. Ela pegou em dez das lanças capturadas e, com a ajuda de meia dúzia dos meus homens, cortou a cabeça a dez dos lanceiros mortos de Valerin e levou as lanças e as cabeças ensanguentadas pelo monte acima. Chegados ao alto, mandou enterrar as hastes das lanças na terra, enterrou as cabeças ensanguentadas nas pontas de ferro das lanças e envolveu-as com horríveis perucas de erva cheias de nós, cada nó representando um feitiço, antes de espalhar ramos de teixos entre os postes que estavam bastante afastados uns dos outros. Construía assim uma barreira-fantasma: uma linha de espantalhos humanos impregnados de encantamentos e feitiços que nenhum homem se atreveria a passar sem a ajuda de um druida. Sagramor queria que ela fizesse outra barreira dessas no terreno a norte do vau, mas Nimue recusou-se.
Os guerreiros deles virão com druidas explicou e uma barreira-fantasma é ridícula para um druida. Mas os mercenários não terão um druida. Ela tinha trazido do monte uma braçada de verbena e agora distribuiu as pequenas flores vermelhas entre os lanceiros que sabiam que a verbena dava protecção durante as batalhas. Meteu um raminho inteiro por dentro da minha armadura.
Os cristãos juntaram-se para dizer as suas orações enquanto nós, os pagãos, procurávamos a ajuda dos Deuses. Os homens atiraram moedas para o rio e, depois, trouxeram os seus talismãs para Nimue lhes tocar. A maioria trazia uma pata de lebre, mas alguns trouxeram-lhe dardos de duende ou amotites. Dardos de duende eram pequenas cabeças de setas feitas de sílex atiradas pelos espíritos e muito valorizadas pelos soldados, enquanto amotites eram pedras com cores brilhantes que Nimue enriquecia mergulhando as pedras no rio antes de as encostar ao seu olho bom. Eu fiz pressão sobre a armadura de escamas até sentir o pregador de Ceinwyn picar-me o peito, posto o que me ajoelhei e beijei a terra. Mantive a testa no chão húmido enquanto suplicava a Mitra que me desse força, coragem e, se fosse da sua vontade, uma morte digna. Alguns dos nossos homens bebiam o hidromel que tínhamos encontrado na aldeia, mas eu nada bebi a não ser água. Comemos a comida que os homens de Valerin pensavam que ia ser o seu pequeno-almoço e, depois disso, um grupo de lanceiros ajudou Nimue a apanhar sapos e musaranhos que ela matou e colocou na estrada para lá do vau para dar ao inimigo que se aproximava maus agouros. Em seguida afiámos as nossas armas de novo e esperámos. Sagramor encontrara um homem escondido no bosque atrás da aldeia. O homem era um pastor e Sagramor fez-lhe perguntas sobre os campos em redor e ficou a saber que havia um segundo vau, a montante, onde o inimigo nos podia flanquear se tentássemos defender a margem do rio no extremo norte do vale. A existência do segundo vau não nos preocupava, mas tínhamos de nos lembrar que ele existia, pois proporcionava ao inimigo uma forma de flanquear a nossa linha de defesa mais ao norte.
Eu estava nervoso com a luta que se aproximava, mas Nimue parecia não sentir medo.
Não tenho nada a temer disse-me ela. Já sofri as Três Chagas. Por isso, o que mais me pode magoar? Estava sentada ao meu lado, perto do vau, no extremo norte do vale. Esta seria a nossa primeira linha de defesa, o local onde iríamos iniciar a lenta retirada que sugaria o inimigo para dentro do vale e para a armadilha de Artur. Além disso acrescentou ela estou sob a protecção de Merlim.
Ele sabe que estamos aqui? perguntei-lhe.
Ela fez uma pausa e, depois, acenou afirmativamente.
Sabe.
E virá?
Franziu as sobrancelhas como se a minha pergunta fosse estúpida.
Ele fará disse muito devagar o que tiver de fazer.
Então virá disse eu com uma esperança fervorosa. Nimue sacudiu a cabeça com impaciência.
Merlim só se preocupa com a Grã-Bretanha. Ele acredita que Artur pode ajudar a restaurar a Sabedoria da Grã-Bretanha, mas se chegar à conclusão de que Gorfyddyd o fará melhor, então, acredita Derfel, Merlim passará para o lado de Gorfyddyd.
Merlim insinuara-me o mesmo em Caer Sws, mas ainda me custava a acreditar que as suas ambições estivessem tão longe das minhas próprias fidelidades e esperanças.
E tu? perguntei a Nimue.
Eu tenho um destino que me liga a este exército disse ela e depois disso ficarei livre para ajudar Merlim.
Gundleus disse eu. Ela assentiu, com um aceno.
Dá-me Gundleus vivo, Derfel disse ela, olhando-me nos olhos dá-mo vivo, suplico-te. Tocou na venda de couro e quedou-se em silêncio enquanto concentrava toda a sua energia na vingança pela qual ansiava. O seu rosto ainda tinha uma palidez de osso e o cabelo negro caía-lhe liso sobre o rosto. A suavidade que revelara no Lughnasa fora substituída por uma tristeza fria que me fez pensar que nunca a entenderia. Eu amava-a, não como eu acreditava amar Ceinwyn, mas como um homem pode amar uma bela criatura selvagem, uma águia ou um gato selvagem, pois sabia que nunca entenderia a sua vida ou os seus sonhos. Fez um esgar, repentino. Vou fazer a alma de Gundleus gritar por toda a eternidade disse ela suavemente. Vou mandá-la pelo meio do abismo que leva ao nada, mas ele nunca chegará ao nada, Derfel, sofrerá para sempre no limiar do nada, aos gritos.
Estremeci por Gundleus.
Um grito fez-me olhar para lá do rio. Seis cavaleiros galopavam na nossa direcção. Os soldados da nossa muralha de escudos levantaram-se e enfiaram as armas nos ganchos dos escudos, mas depois vi que o homem da frente era Morfans. Cavalgava desesperado, dando pontapés no cavalo cansado e a rebrilhar com o suor, e temi que aqueles seis cavaleiros fossem tudo o que restasse das tropas de Artur.
Os cavalos passaram a chapinhar pelo vau enquanto Sagramor e eu corríamos ao seu encontro. Morfans puxou as rédeas na margem do rio.
A cerca de três quilómetros daqui disse ele arquejando. Artur mandou-nos para vos ajudar. Meus Deuses, aqueles filhos da puta são às centenas! Limpou o suor da testa, depois sorriu de esguelha. Há pilhagem suficiente para mil de nós! Escorregou pesadamente do cavalo e vi que trazia a corneta de prata, o que me levava a supor que a usaria para chamar Artur quando fosse a altura certa.
Onde está Artur? perguntou Sagramor.
Escondido em lugar seguro assegurou-nos Morfans que, depois, olhou para a minha armadura, abrindo a sua cara horrível num esgar cambado. Deita-te abaixo com o peso, essa armadura, não deita?
Como é que ele consegue lutar com isto? perguntei.
Luta muito bem, Derfel, muito bem. E tu também lutarás. Agarrou-me o ombro. Alguma notícia de Galaad?
Nenhuma.
Agrícola não nos deixará lutar sozinhos, seja o que for que queiram aquele rei cristão e aquele filho medricas que ele tem disse Morfans. Depois conduziu os seus cinco cavaleiros para trás da muralha de escudos. Dai-nos só alguns minutos para descansar os cavalos gritou.
Sagramor enfiou o elmo na cabeça. O Númida usava uma cota de malha, uma capa preta e botas altas. O seu elmo de ferro estava pintado de preto com piche e acabava numa ponta aguçada que lhe dava um aspecto exótico. Normalmente lutava a cavalo, mas não mostrava nenhum pesar por ser um soldado de infantaria naquele dia. Nem nenhum nervosismo ao caminhar com passadas largas para cima e para baixo em frente à nossa linha de escudos, resmungando encorajamentos para os seus homens.
Coloquei o sufocante elmo de Artur na cabeça e afivelei a correia por debaixo do queixo. Depois, preparado como o meu Senhor, também andei ao longo da linha de lanças e avisei os meus homens de que a luta seria dura, mas que a vitória estava certa desde que a muralha de escudos se aguentasse. Era uma muralha perigosamente fina,
em alguns lugares tinha apenas três homens de profundidade, mas todos os homens da muralha eram homens bons. Um deles saiu da linha, quando me aproximei do lugar onde os lanceiros de Sagramor faziam fronteira com os meus.
Lembrais-vos de mim, Senhor? perguntou.
Por um momento pensei que me tivesse confundido com Artur e puxei para o lado as peças articuladas que me protegiam as faces para que ele me visse o rosto. Finalmente, reconheci-o. Era Griffid, o capitão de Owain e o homem que me tentara matar em Lindinis antes de Nimue ter intervido para me salvar a vida.
Griffid Annan saudei-o.
Tem havido mau sangue entre nós, Senhor disse ele e caiu de joelhos. Perdoai-me.
Puxei-o para que se levantasse e abracei-o. A sua barba tornara-se grisalha, mas continuava a ser o mesmo homem de rosto comprido e triste.
A minha alma está à tua guarda disse-lhe eu e estou contente por ela aí estar.
E a minha está à vossa guarda, Senhor disse ele.
Minac! Reconheci outro dos meus velhos companheiros Estou perdoado?
Havia alguma coisa a perdoar, Senhor? perguntou ele, embaraçado com a pergunta.
Não havia nada a perdoar asseverei-lhes. Juro que nenhum juramento foi quebrado.
Minac avançou e abraçou-me. Ao longo de toda a muralha de escudos outras questões daquele género estavam a ser resolvidas.
Como tens andado? perguntei a Griffid.
A lutar bastante, Senhor. A maior parte das vezes contra os saxões de Cerdic. Hoje a luta será fácil comparada com a luta contra aqueles filhos da puta, excepto por uma coisa. Hesitou.
Então? incitei-o.
Ela vai devolver-nos as nossas almas, Senhor? perguntou Griffid, lançando um olhar a Nimue. Ele recordava a terrível maldição que ela lançara sobre ele e os seus homens.
É claro que sim disse eu e chamei Nimue que tocou na testa de Griffid e nas testas de todos os outros homens ainda vivos que tinham ameaçado a minha vida naquele dia distante em Lindinis. Desta forma a maldição lançada sobre eles foi levantada e eles agradeceram-lhe beijando-lhe a mão. Abracei Griffid de novo e levantei a voz para que todos os meus homens me pudessem ouvir. Hoje disse eu daremos aos bardos canções suficientes para mil anos! E hoje tornamo-nos de novo homens ricos!
Eles regozijaram. A emoção naquela linha de escudos era tão grande que alguns homens choravam de alegria. Agora sei que não há alegria tão grande como a alegria de servir Jesus Cristo, mas saudades sinto da companhia dos guerreiros. Naquela manhã, não havia barreiras entre nós, não havia nada senão um grande e orgulhoso amor pelos outros enquanto esperávamos pelo inimigo. Éramos irmãos, éramos invencíveis e até o lacónico Sagramor tinha lágrimas nos olhos. Um lanceiro começou a cantar o Cântico de Guerra de Beli Mawr, o maior cântico guerreiro da Grã-Bretanha e as fortes vozes masculinas aumentaram de volume numa harmonia instintiva ao longo de toda a linha. Outros homens dançavam com as espadas, saltando desajeitadamente com as armaduras de couro enquanto davam os intrincados passos de dança de cada lado da lâmina. Os nossos cristãos tinham os braços bem abertos, quase como se o cântico fosse uma oração pagã ao seu próprio Deus, enquanto outros batiam com as lanças contra os escudos ao compasso da música.
Cantávamos ainda sobre o derramar do sangue dos nossos inimigos na nossa terra, quando esse inimigo apareceu. Continuámos a cantar desafiadoramente à medida que surgiam grupos de lanceiros atrás de grupos de lanceiros que se iam espalhando pelos campos distantes sob estandartes reais que brilhavam na semiobscuridade provocada pelas nuvens. E continuámos a cantar, uma torrente interminável de canções, para desafiar o exército de Gorfyddyd, o exército do pai da mulher que eu estava convencido que amava. Era por isso que eu lutava, não apenas por Artur, mas também porque só através da vitória podia ir de novo a Caer Sws e, assim, ver Ceinwyn outra vez. Não tinha nenhuma pretensão sobre ela nem nenhuma esperança, pois nascera escravo e ela princesa. No entanto, de alguma forma, naquele dia sentia-me como se tivesse mais a perder do que o que tivera em toda a minha vida.
Demorou mais de uma hora para aquela pesada horda erguer uma linha de batalha na outra margem do rio. O rio só podia ser atravessado no vau, o que significava que teríamos tempo para recuar, quando chegasse o momento, mas por agora o inimigo devia imaginar que planeávamos defender o vau durante todo o dia, pois juntaram os seus melhores homens no centro da linha. Estava lá o próprio Gorfyddyd, com o estandarte da águia manchado da tinta que tinha escorrido com a chuva, pelo que parecia que a bandeira já tinha sido mergulhada no nosso sangue. Os estandartes de Artur, o urso preto e o dragão vermelho, esvoaçavam no centro da nossa linha, onde eu estava colocado de frente para o vau. Sagramor estava ao meu lado, contando os estandartes do inimigo. Estava lá a raposa de Gundleus, o cavalo vermelho de Elmet e muitos outros que não reconhecemos.
Seiscentos homens? tentou adivinhar Sagramor.
E mais ainda a chegar acrescentei.
Quase de certeza. Cuspiu na direcção do vau. E todos viram que falta o touro de Tewdric. Deu um dos seus raros sorrisos. Será uma luta que valerá a pena relembrar, Lorde Derfel.
Fico satisfeito por partilhá-la convosco, Senhor disse eu, fervorosamente, e estava mesmo satisfeito por isso.
Não havia melhor guerreiro do que Sagramor, nenhum homem mais temido pelos seus inimigos. Nem sequer a presença de Artur despertava tanto pavor como o rosto impassível do Númida e a sua horrível espada. Era uma espada curva, de aspecto estranho e estrangeiro e Sagramor manejava-a com uma terrível rapidez. Uma vez perguntei a Sagramor por que tinha jurado fidelidade a Artur.
Porque quando eu não tinha nada explicou ele de forma concisa, Artur deu-me tudo.
Finalmente os nossos lanceiros pararam de cantar quando os dois druidas avançaram, saindo do meio do exército de Gorfyddyd. Nós só tínhamos Nimue para contra-atacar os feitiços deles e, agora, ela passava com dificuldade pelo vau para ir ter com os homens avançados que saltavam pela estrada abaixo com um braço levantado e um olho fechado. Os druidas eram lorweth, o feiticeiro de Gorfyddyd, e Tanaburs, com a sua longa túnica bordada com luas e lebres. Os dois homens trocaram beijos com Nimue, falaram com ela durante algum tempo e depois ela voltou para o nosso lado do vau.
Eles queriam que nos rendêssemos disse ela com desdém e eu convidei-os a fazerem o mesmo.
Muito bem resmungou Sagramor.
lorweth saltava desajeitadamente em direcção ao lado de lá do vau.
Os Deuses saúdam-vos! gritou ele na nossa direcção, se bem que nenhum de nós lhe respondesse. Eu fechara os protectores das faces para não poder ser reconhecido. Tanaburs saltava mais a montante, usando o bastão para manter o equilíbrio. lorweth levantou o seu próprio bastão acima da cabeça para mostrar que desejava falar mais. O meu rei, o rei de Powys e Rei Supremo da Grã-Bretanha, o rei Gorfyddyd Cadell Brychan Laganis Coei Beli Mawr poupará às vossas almas corajosas uma viagem para o Outro Mundo. Tudo o que precisam de fazer, bravos guerreiros, é entregar-nos Artur! Ergueu o bastão na minha direcção e imediatamente Nimue sibilou uma reza de protecção e atirou duas mãos cheias de terra para o ar.
Eu não disse nada e o silêncio expressou a minha recusa. lorweth fez rodopiar o bastão e cuspiu três vezes na nossa direcção. Depois começou a descer aos saltos a margem do rio para juntar as suas pragas aos feitiços de Tanaburs. O rei Gorfyddyd, acompanhado pelo seu filho Cuneglas e pelo seu aliado Gundleus, tinham cavalgado até meio caminho do rio para observarem os seus druidas a trabalhar e eles trabalharam mesmo. Amaldiçoaram as nossas vidas de dia e as nossas almas de noite. Deram o nosso sangue aos vermes, a nossa carne aos animais e os nossos ossos à agonia. Amaldiçoaram as nossas mulheres, as nossas crianças, os nossos campos e o nosso gado. Nimue contra-atacou os feitiços, mas, ainda assim, os nossos homens tremiam. Os cristãos gritavam que nada havia a temer, mas até eles faziam o sinal da cruz à medida que as pragas atravessavam o rio nas asas da escuridão.
Os druidas lançaram pragas durante uma hora e deixaram-nos a tremer. Nimue andava pela linha de escudos a tocar nas cabeças das lanças assegurando aos homens que as maldições não tinham funcionado, mas os nossos homens estavam nervosos com a
ira dos Deuses, quando, finalmente, a linha de lanças inimigas avançou.
Escudos para cima! gritou Sagramor bruscamente. Lanças para cima!
O inimigo parou a cinquenta passos do rio enquanto um homem sozinho avançou a pé. Era Valerin, o chefe que afugentáramos do vale nessa madrugada e que agora avançava para a borda norte do vau com escudo e lança. Ele sofrera uma derrota de madrugada e o seu orgulho levara-o a este momento em que podia recuperar a sua reputação.
Artur gritou ele para mim. Casaste com uma puta.
Mantém-te em silêncio, Derfel avisou-me Sagramor.
Uma puta! gritou Valerin. Ela já estava usada, quando veio para mim. Queres a lista dos amantes dela? Uma hora, Artur, não seria tempo suficiente para te dar essa lista! E com quem estará ela agora, enquanto tu estás à espera de morrer? Pensas que ela está à tua espera? Eu conheço aquela puta! Está a enrolar-se na cama com um ou dois homens! Estendeu os braços e sacudiu as ancas num gesto obsceno e os meus lanceiros também lançaram insultos, mas Valerin ignorou os gritos deles. Uma puta gritou uma puta gasta e rançosa! Lutarias pela tua puta, Artur? Ou perdeste o apetite para a luta? Defende a tua puta, verme! Atravessou o vau onde a água lhe chegava às coxas e parou na nossa margem, com a capa a escorrer, a apenas uma dúzia de passos de mim. Olhou para a sombra escura do buraco para os olhos do meu elmo. Uma puta, Artur repetiu ele a tua mulher é uma puta. E cuspiu. Não trazia elmo e usava raminhos de azevinho protector entrançados na longa cabeleira negra. Envergava uma couraça, mas mais nenhuma armadura lhe protegia o corpo, e o escudo estava pintado com a águia de asas abertas de Gorfyddyd. Riu-se de mim e, depois, levantou a voz para gritar para todos os nossos homens: O vosso chefe não lutará pela puta dele. Por isso, por que é que vocês devem lutar por ele?
Sagramor resmungou-me que ignorasse os insultos, mas a provocação de Valerin estava a perturbar os nossos homens, já gelados até aos ossos pelas pragas dos druidas. Esperei que Valerin chamasse Guinevere de puta mais uma vez e, quando o fez, atirei-lhe a minha lança com violência. Foi um lançamento desastrado, por causa da compressão provocada pela armadura de escamas, e a lança passou por ele para ir cair no rio.
Uma puta gritou ele e correu para mim com a lança de guerra na horizontal enquanto eu tirava a Hywelbane da bainha. Avancei para ele e só tive tempo de dar dois passos antes de ele me atirar a lança soltando um grito de raiva.
Caí sobre um joelho e levantei o escudo bem polido, desviando assim a ponta da lança da minha cabeça. Conseguia ver os pés de Valerin e ouvir o seu rugido de raiva, quando o trespassei com a Hywelbane por baixo do rebordo do meu escudo. Dei uma estocada para cima com a lâmina, sentindo-a penetrar mesmo antes do seu corpo em posição de ataque cair em cima do meu escudo e me empurrar para o chão. Agora ele gritava em vez de rugir, pois aquela espada enterrada por baixo do escudo constituía um corte cruel que saíra do chão para perfurar as entranhas de um homem e percebi que a Hywelbane se tinha enterrado a fundo no corpo de Valerin, pois, quando ele caiu sobre o escudo, conseguia sentir o peso do corpo a empurrar a lâmina da espada. Levantei-me e chamei todas as minhas forças para o tirar de cima do escudo. Ele deu um grunhido, quando dei um sacão para tirar a espada do aperto da sua carne. O sangue derramava-se imundo ao lado da lança tombada no chão onde ele agora também jazia a sangrar e a contorcer-se com dores terríveis. Mesmo assim, tentou desembainhar a espada enquanto eu me erguia com dificuldades e lhe colocava o pé em cima do peito. O seu rosto estava a ficar amarelo, todo ele tremia e os olhos estavam já turvos pela morte.
Guinevere é uma dama disse-lhe eu e a tua alma pertence-me se o negares.
Ela é uma puta conseguiu dizer entre os dentes cerrados e, depois, sufocou e sacudiu debilmente a cabeça. Que o touro me guarde teve ainda forças para acrescentar. Fiquei assim a saber que ele pertencia a Mitra e, por isso, enterrei com força a Hywelbane. A lâmina encontrou a resistência da sua garganta por um segundo, mas acabou rapidamente com a vida dele. O sangue jorrou em borbotões pela espada acima e acho que Valerin nunca chegou a perceber que não foi Artur quem mandou a sua alma para a ponte de espadas da Gruta de Cruachan.
Os nossos homens aplaudiram. Os seus espíritos, tão corroídos pelos druidas e gelados pelos insultos obscenos de Valerin, foram instantaneamente recuperados, pois tínhamos derramado o primeiro sangue. Caminhei até à beira do rio onde ensaiei alguns passos de vitória enquanto mostrava ao inimigo desalentado a lâmina da Hywelbane manchada de sangue. Gorfyddyd, Cuneglas e Gundleus, depois de verem o seu campeão vencido, viraram os cavalos e os meus homens insultaram-nos de cobardes e de fracos.
Sagramor acenou com a cabeça quando regressei à muralha de escudos. O aceno era evidentemente a sua forma de me elogiar por uma luta bem travada.
O que queres que lhe faça? Fez um gesto na direcção do corpo caído de Valerin.
Mandei Issa aliviar o corpo das jóias que o adornavam e disse, depois, a outros dois homens que carregassem o corpo para o rio, rezando para que os espíritos da água levassem o meu irmão de Mitra até à sua recompensa. Issa trouxe-me as armas de Valerin, o seu colar de ouro, dois pregadores e um anel.
São vossos, Senhor disse-me ele, oferecendo-me o saque. Também recuperara a minha lança do rio.
Peguei na lança e nas armas de Valerin, mas em mais nada.
O ouro é teu, Issa disse-lhe eu, lembrando-me de como ele tentara dar-me o seu próprio colar, quando tínhamos regressado de Ynys Trebes.
Isto não, Senhor disse ele mostrando-me o anel de Valerin. Era uma peça de ouro maciço, de grande beleza, gravada com a figura de um veado a correr sob o quarto crescente. Era o símbolo de Guinevere. E, na parte de trás do anel, tosca, mas profundamente marcada no ouro grosso, estava uma cruz. Era um anel dos amantes e Issa, penso eu, fora esperto ao reconhecê-lo.
Peguei no anel e pensei em Valerin a usá-lo durante todos aqueles sofridos anos. Ou talvez, atrevi-me a esperar, ele tivesse tentado vingar o golpe desferido na sua reputação gravando uma falsa cruz no anel para as pessoas pensarem que fora amante dela.
Artur nunca poderá saber disto avisei Issa e, depois, atirei o pesado anel para o rio.
O que era aquilo? perguntou Sagramor quando me juntei de novo a ele.
Nada respondi nada. Apenas um feitiço que nos podia ter trazido má sorte.
Foi então que soou uma corneta de chifre de carneiro do outro lado do rio e me foi poupada a necessidade de pensar na mensagem do anel. O inimigo atacava.
Os bardos ainda cantam a batalha, apesar de só os Deuses saberem como é que eles inventaram os pormenores com que bordaram a história, porque ao ouvir as canções deles pensar-se-ia que nenhum de nós poderia ter sobrevivido no Vale do Lugg e talvez nenhum de nós devesse ter sobrevivido. Foi também, se bem que os bardos não o admitissem, uma derrota para Artur.
O primeiro ataque de Gorfyddyd foi uma investida barulhenta de lanceiros enlouquecidos que atacaram pelo vau. Sagramor ordenou-nos que avançássemos e enfrentámo-los no rio onde o barulho dos escudos quando bateram era como trovoada na boca do vale. O inimigo tinha a vantagem do número, mas o ataque deles era ladeado pelas margens do vau e nós pudemos trazer homens dos nossos flancos para reforçar o centro.
Nós, os da linha da frente, tivemos tempo para dar estocadas uma vez e, depois, baixámo-nos por detrás dos nossos escudos e empurrámo-nos violentamente contra a linha inimiga enquanto os homens na nossa segunda fila lutavam por cima das nossas cabeças. O som das lâminas das espadas, o barulho dos escudos e o embater das hastes das lanças era ensurdecedor, mas poucos homens morreram, pois é difícil matar na colisão, quando duas muralhas de escudos impenetráveis se esmagam uma contra a outra. É mais como um jogo do empurra. O inimigo agarra-nos a lança e não a podemos puxar para trás, quase não há espaço para desembainhar a espada e durante todo o tempo a segunda fila do inimigo ataca a golpes de espada, machado e lança os elmos e os rebordos dos escudos. As piores feridas são causadas por homens a enterrar lâminas por baixo dos escudos e gradualmente forma-se, à frente, uma barreira de homens estropiados, tornando a matança ainda mais difícil. Só quando um dos lados recua é que o outro pode matar os inimigos estropiados encalhados na linha de batalha. Triunfámos nesse primeiro ataque, não tanto por valentia, mas porque Morfans levou os seus seis cavaleiros por entre o aperto dos nossos homens e usou as longas lanças dos cavalos para atacar a linha da frente inimiga.
Escudos! Escudos! Ouvi Morfans a gritar enquanto o grande peso dos cavalos afivelava a nossa linha de escudos. Os homens da nossa fila da retaguarda levantaram os escudos bem alto para proteger os grandes cavalos de guerra da saraivada de lanças inimigas, enquanto nós, na linha da frente nos baixávamos no rio, tentando acabar com os homens que recuavam perante os ataques dos cavaleiros. Abriguei-me por detrás do polido escudo de Artur e ia dando estocadas com a Hywelbane sempre que aparecia uma abertura na linha do inimigo. Recebi dois poderosos golpes na cabeça, mas o elmo amorteceu-os, mesmo que o meu cérebro tenha ficado a ressoar durante uma hora. Uma lança atingiu a minha armadura de escamas, mas não a conseguiu penetrar. O homem que lançou esse golpe foi morto por Morfans e depois da sua morte o inimigo perdeu a coragem e passou de novo a chapinar para a margem norte do rio. Levaram os seus feridos, todos menos uma mão-cheia deles que estavam muito próximos da nossa linha e esses nós matámo-los antes de recuarmos para a nossa margem. Seis homens tinham sido perdidos para o Outro Mundo e o dobro tinha sofrido ferimentos.
Não devias estar na linha da frente disse-me Sagramor enquanto via os nossos feridos a serem levados. Eles vão ver que não és Artur.
Eles vêem que Artur luta disse eu ao contrário de Gorfyddyd e de Gundleus. Os reis inimigos tinham estado perto da luta, mas nunca o suficiente para usarem as armas.
lorweth e Tanaburs gritavam aos homens de Gorfyddyd, encorajando-os à matança e prometendo-lhes a recompensa dos Deuses, mas enquanto Gorfyddyd reorganizava os seus lanceiros um grupo de homens sem senhor atravessaram com dificuldade o rio para atacar por sua conta. Tais guerreiros contavam com uma exibição de coragem para lhes proporcionar riquezas e posição social e esses trinta homens desesperados atacaram com raiva e aos berros depois de terem passado pela parte mais funda do rio. Ou estavam bêbados ou enlouquecidos pela batalha, pois eram apenas trinta a atacarem toda a nossa força. A recompensa pelo seu sucesso teria sido terras, ouro, o perdão dos seus pecados e o estatuto de senhor na corte de Gorfyddyd, mas trinta homens não eram suficientes. Eles atingiram-nos, mas morreram ao fazê-lo. Eram todos bons lanceiros com as mãos que seguravam os escudos cheias de anéis de guerreiro, mas cada um tinha agora de enfrentar três ou quatro inimigos. Um grupo inteiro precipitou-se sobre mim, vendo na minha armadura e na pluma branca o caminho mais rápido para a glória. Porém, Sagramor e os meus lanceiros com caudas de lobo nos elmos enfrentaram-nos e puseram-nos à prova. Um homem enorme manejava um machado saxão. Sagramor matou-o com a sua lâmina curva e negra e, depois, arrancou o machado da mão moribunda e atirou-o violentamente contra outro lanceiro, enquanto, durante todo esse tempo, entoava um misterioso cântico de guerra na sua língua nativa. Um último espadachim atacou-me e eu desviei o seu ataque de gadanha com a saliência de ferro do escudo de Artur, afastando o escudo dele com a Hywelbane e dando-lhe, depois, um pontapé na virilha.
Ele dobrou-se, ferido de mais para gritar, e Issa enterrou-lhe uma lança no pescoço. Despojámos os atacantes mortos das armaduras, das armas e das jóias e deixámos os seus corpos à beira do vau à guisa de barreira contra o próximo ataque.
Esse ataque surgiu rápido e fulgurante. Tal como o primeiro, este terceiro assalto foi feito por um grupo de lanceiros, só que, desta vez, enfrentámo-los na margem do rio mais próxima onde a pressão dos homens por detrás da linha da frente do inimigo obrigou os lanceiros da frente a tropeçarem nos corpos amontoados. Este contratempo abriu-os para o nosso contra-ataque e era ver-nos a gritar de triunfo enquanto desferíamos cutiladas com as nossas lanças vermelhas. Depois os escudos voltaram a provocar estrondo, os moribundos gritavam e chamavam pelos seus Deuses e as espadas soavam alto como as bigornas em Magnis. Eu estava outra vez na linha da frente, apertado tão próximo da linha inimiga que podia sentir o cheiro a hidromel do bafo deles. Um homem tentou arrancar-me o elmo da cabeça e perdeu a mão num golpe de espada. O jogo do empurra começou de novo e, de novo, parecia que o inimigo nos empurraria para trás só com o seu peso, mas mais uma vez os homens de Morfans atacaram com as suas longas lanças de cavalo pelo meio da formação, e de novo o inimigo atirou violentamente lanças que chocaram contra os nossos escudos, e mais uma vez os homens de Morfans atacaram com as longas lanças de cavalos e mais uma vez o inimigo recuou. Os bardos dizem que o rio corria vermelho, o que não é verdade, se bem que eu tivesse visto veios de sangue a desvanecerem-se rio abaixo, dos feridos que tentavam e não conseguiam voltar para trás através do vau.
Podíamos enfrentar aqui os filhos da puta todo o dia disse Morfans. O seu cavalo sangrava e ele desmontara para tratar da ferida do animal.
Abanei a cabeça.
Há outro vau mais acima e apontei para Oeste. Terão lanceiros deste lado rapidamente.
Esse inimigo que vinha pelos flancos chegou mais cedo do que eu imaginava, pois passados dez minutos um grito vindo do nosso flanco esquerdo avisou-nos de que um grupo de inimigos tinha mesmo atravessado o rio a oeste e avançava agora pela nossa margem.
São horas de regressar disse-me Sagramor.
O seu rosto negro e sem barba estava manchado de sangue e suor, mas havia alegria nos seus olhos, pois aquela estava a revelar-se uma batalha que faria os poetas lutar por novas palavras para descreverem uma batalha, uma luta que as pessoas relembrariam em salões cheios de fumo durante os Invernos seguintes. Uma luta que, mesmo perdida, mandaria um homem de honra lavada para os salões dos guerreiros do Outro Mundo.
É altura de os atrair disse Sagramor e, depois, gritou a ordem para retirar e, assim, vagarosa e desastradamente, toda a nossa força recuou, passando pela aldeia com o seu edifício romano e parando cem passos atrás. O nosso flanco esquerdo estava agora fixado com firmeza na íngreme vertente oeste do vale, enquanto a nossa direita estava protegida pelo terreno pantanoso que se estendia até ao rio. Mesmo assim estávamos muito mais vulneráveis do que estivéramos no vau, pois a nossa muralha de escudos era agora desesperadamente fina e o inimigo podia atacar a todo o seu cumprimento. Gorfyddyd demorou uma hora inteira a fazer os seus homens atravessarem o rio e a ordená-los numa nova muralha de escudos. Calculei que já fosse de tarde e lancei um olhar para trás de mim à procura de algum sinal de Galaad ou dos homens de Tewdric, mas não vi ninguém a aproximar-se. Mas fiquei satisfeito por ver que não havia nenhum homem no monte do lado oeste, onde a barreira-fantasma de Nimue guardava o nosso flanco. A verdade, porém, era que Gorfyddyd quase nem precisava de homens desse lado, pois o seu exército era agora maior do que nunca. Tinham chegado novos contingentes de Branogenium e os comandantes de Gorfyddyd empurravam e puxavam os recém-chegados para a muralha de escudos. Vimos os capitães inimigos usarem as longas lanças para endireitarem a linha da frente e todos nós, apesar dos desafios que lhes gritávamos, sabíamos que por cada homem que tínhamos matado no rio tinham atravessado dez pelo vau.
Nunca os vamos conseguir aguentar aqui disse Sagramor enquanto víamos crescer a força inimiga. Temos de recuar até à barreira de árvores.
Mas, então, antes de Sagramor poder dar a ordem de retirada, o próprio Gorfyddyd cavalgou mais para a frente para nos desafiar. Vinha sozinho, nem mesmo o filho o acompanhava, trazendo apenas uma espada embainhada e uma lança, pois não tinha braço para segurar o escudo. O elmo guarnecido a ouro de Gorfyddyd, que Artur tinha devolvido na semana dos seus esponsais com Ceinwyn, estava coroado com as asas abertas de uma águia dourada e a sua capa negra estava espalhada sobre a garupa do cavalo. Sagramor resmungou-me que ficasse onde estava e avançou em passada larga ao encontro do rei.
Gorfyddyd não usava rédeas, mas falou com o cavalo que, obediente, parou a dois passos de Sagramor. Gorfyddyd pousou a ponta da lança no chão e abriu os protectores das faces para o lado, mostrando a cara irascível.
Tu és o demónio negro de Artur acusou ele Sagramor, cuspindo para afastar qualquer mal e o teu Senhor amante da puta esconde-se por detrás da tua espada. Gorfyddyd cuspiu de novo, desta vez na minha direcção. Por que não falas comigo, Artur? gritou ele. Perdeste a língua?
O meu Senhor, Lorde Artur respondeu Sagramor no seu pesado sotaque britânico está a poupar o fôlego para cantar a canção da vitória.
Gorfyddyd sopesou a sua longa lança.
Eu só tenho uma mão gritou-me ele, mas vou lutar contigo!
Eu não disse nada e também não me mexi. Sabia que Artur nunca lutaria em combate singular contra um homem estropiado, se bem que Artur também nunca tivesse ficado em silêncio. Por esta altura estaria a suplicar a paz a Gorfyddyd.
Gorfyddyd não queria paz. Queria matança. Cavalgou para cima e para baixo diante da nossa linha, controlando o cavalo com os joelhos, sempre a gritar para os nossos homens.
Vocês estão a morrer, porque o vosso Senhor não consegue manter-se afastado de uma puta! Estão a morrer por uma égua de garupa molhada! Por uma égua sempre a ferver! As vossas almas serão amaldiçoadas. Os meus mortos estão já a festejar no Outro Mundo, mas as vossas almas vão servir-lhes de peças no jogo do tabuleiro. Em nome de quê ides morrer? Da sua puta de cabelo ruivo? Depois apontou-me a lança e conduziu o cavalo direito a mim. Saltei para trás para que ele não visse pela ranhura dos olhos do elmo que eu não era Artur e os meus lanceiros agruparam-se em meu redor numa atitude protectora. Gorfyddyd riu-se da minha aparente cobardia. O seu cavalo estava ao alcance dos meus homens, mas Gorfyddyd não mostrou medo das suas lanças quando cuspiu na minha direcção. Mulher! gritou ele. Era o seu pior insulto. Depois tocou no cavalo com o pé esquerdo e o animal virou-se, galopando em direcção ao seu exército.
Sagramor virou-se para nós e levantou os braços.
Para trás! gritou. Para trás até à barreira! Depressa! Agora! Para trás!
Virámos as costas ao inimigo e apressámo-nos a bater em retirada. Levantou-se uma grande algazarra, quando viram os nossos estandartes gémeos a retirar. Pensaram que estivéssemos a fugir e quebraram as fileiras para nos perseguirem, mas tínhamos um grande avanço sobre eles e passámos pelo buraco da barricada muito antes de algum dos homens de Gorfyddyd nos ter podido alcançar. A nossa linha espalhou-se por detrás da barreira enquanto eu ocupava o lugar apropriado de Artur mesmo no centro da linha onde a rua passava pelo buraco vazio entre as árvores derrubadas. Deixámos deliberadamente o buraco sem nenhum obstáculo na esperança de que pudesse atrair os ataques de Gorfyddyd e, assim, dar aos nossos flancos tempo para descansarem. Levantei os dois estandartes de Artur nesse sítio e esperei pelo ataque.
Gorfyddyd berrou para que os seus lanceiros desordenados fizessem uma nova muralha de escudos. O rei Gundleus comandava o flanco direito do inimigo e o príncipe Cuneglas o esquerdo. Esta organização sugeria que Gorfyddyd não ia morder o nosso isco do buraco aberto, mas sim que pretendia atacar ao longo de toda a linha.
Vocês ficam aqui gritou Sagramor para os nossos lanceiros. Vocês são guerreiros! Vão prová-lo agora! Ficam aqui, matam aqui e ganham aqui!
Morfans obrigara o seu cavalo ferido a subir um pouco o monte do lado oeste, de onde olhou para norte do vale, avaliando se seria a melhor altura para fazer soar a corneta e chamar Artur, mas reforços do inimigo estavam ainda a atravessar o vau e voltou para trás sem chegar a prata aos lábios.
Em vez da nossa, foi a corneta de Gorfyddyd que soou. Era um corno de carneiro rouco a mandar, não avançar a muralha de escudos, mas incitando uma dúzia de loucos nus a irromperem da linha do inimigo e a correrem na nossa direcção. Estes homens tinham colocado as suas almas à guarda dos Deuses e, depois, tinham embriagado os sentidos com uma mistura de hidromel, sumo de pilrito, mandrágora e beladona, uma beberagem que pode provocar num homem pesadelos mesmo quando lhe tira o medo. Estes homens podiam estar loucos, bêbados e nus, mas também eram perigosos, pois tinham só um objectivo e esse objectivo era abater os comandantes inimigos. Lançaram-se na minha direcção, com as bocas a espumar, por causa das ervas mágicas que tinham estado a mastigar, e com as lanças levantadas acima da cabeça, prontas para atacar.
Os meus lanceiros com caudas de lobo avançaram para os enfrentar. Os homens nus não se importavam com a morte, atirando-se aos meus lanceiros como se acolhessem com prazer as pontas das lanças. Um dos meus homens foi empurrado para trás por um desses animais nu que lhe arranhava os olhos e lhe cuspia na cara. Issa matou esse demónio, mas um outro conseguiu matar um dos meus melhores homens e, depois, gritou a sua vitória, de pernas abertas, braços levantados e com a lança ensanguentada na mão ensanguentada. Todos os meus homens pensaram que os Deuses nos tinham abandonado, mas Sagramor rasgou a barriga do homem nu e quase lhe cortou a cabeça antes do corpo cair no chão. Sagramor cuspiu sobre o cadáver nu e eviscerado e, depois, cuspiu de novo na direcção da muralha de escudos inimiga. Essa muralha, vendo que o centro da nossa linha estava desorganizada, atacou.
O nosso centro, realinhado à pressa, afivelou-se quando a massa de lanceiros se lançou sobre nós. A fina linha de homens estendida através da estrada inclinou-se como uma árvore muito nova, mas, de alguma forma, conseguimos aguentar. Animávamo-nos uns aos outros, gritávamos pelos Deuses e dávamos estocadas e golpes enquanto Morfans e os seus cavaleiros cavalgavam ao longo de toda a muralha de escudos e entravam na luta sempre que o inimigo parecia prestes a perfurá-la. Os flancos da nossa linha de escudos estavam protegidos pela barricada e, o que lhes tornava mais fácil a resistência, mas no centro a luta era desesperada. Por esta altura eu já estava enlouquecido, perdido na agitada alegria da batalha. Perdi a minha lança, que fora agarrada por um inimigo, e desembainhei a Hywelbane, mas contive o primeiro golpe para deixar um escudo inimigo, malhar contra a prata polida de Artur. Os escudos bateram um no outro e o rosto do inimigo apareceu por um instante, que eu aproveitei para lançar a Hywelbane para a frente até sentir a pressão desaparecer do escudo. O homem caiu, formando o seu corpo uma barreira sobre a qual os seus companheiros tinham de passar. Issa matou um homem, depois sofreu um golpe de lança no braço do escudo que lhe ensopou a manga em sangue. Mas continuou a lutar. Eu acutilava como um louco no espaço deixado pelos meus inimigos vencidos para abrir um buraco na muralha de escudos de Gorfyddyd. Vi o rei inimigo uma vez, a olhar do seu cavalo para onde eu estava a gritar, a golpear e a desafiar os seus homens a virem roubar-me a minha alma. Alguns aceitaram o desafio, pensando tornar-se matéria para canções, mas, em vez disso, tornaram-se cadáveres. A Hywelbane estava encharcada em sangue, a minha mão direita estava viscosa por causa do sangue e a manga da pesada malha de escamas tresandava a sangue, mas nenhum era meu.
O centro da nossa linha, sem a protecção do emaranhado de árvores, esteve uma vez muito perto de quebrar, mas dois dos cavaleiros de Morfans usaram os seus animais para tapar o buraco. Um dos cavalos morreu a relinchar e a bater os cascos enquanto se esvaía em sangue na estrada. Depois a nossa muralha de escudos restabeleceu-se e nós empurrámos outra vez para trás o inimigo que, muito lentamente, estava a ficar sufocado com a pressão dos mortos e dos moribundos que jaziam entre as duas filas da frente. Nimue estava atrás de nós, a guinchar e a lançar pragas.
O inimigo retirou e, finalmente, pudemos descansar. Todos nós estávamos ensanguentados e enlameados e o nosso fôlego saía em grandes arfadas. As nossas espadas e lanças estavam cansadas. Notícias sobre companheiros passavam de fila em fila. Minac estava morto, fulano estava ferido, beltrano estava a morrer. Os homens ligavam as feridas dos vizinhos e, depois, faziam juramentos para se defenderem um ao outro até à morte. Tentei aliviar a pressão, que até feria, da armadura de Artur e que abrira grandes chagas nos meus ombros.
Agora o inimigo estava mais cauteloso. Os homens exaustos que estavam de frente para nós tinham sentido as nossas espadas e aprendido a temer-nos. No entanto, atacaram-nos de novo. Desta vez foi a guarda real de Gundleus que atacou o nosso centro e nós enfrentámo-los junto ao amontoado de mortos e moribundos que tinham sido deixados no último ataque. E esse espinhaço sangrento salvou-nos, pois os lanceiros inimigos não conseguiam passar por cima dos corpos e protegerem-se ao mesmo tempo. Partimos-lhes os tornozelos, cortámos-lhes as pernas e, depois, espetámo-los com as lanças tornando mais alto o espinhaço sangrento. Corvos negros esvoaçavam em redor do vau, com as asas rasgadas contra o céu sombrio. Vi Ligessac, o traidor que entregara Norwenna à espada de Gundleus, e tentei abrir caminho até ele, mas a maré da batalha afastou-o da Hywelbane. Depois o inimigo recuou de novo e eu, com a voz já rouca, ordenei que alguns dos meus homens fossem buscar odres de água ao rio. Estávamos todos com sede, pois o suor tinha-se decantado de nós e misturado com o sangue. Eu tinha um arranhão na mão da espada, mas nada mais. Tendo estado no poço da morte, sempre supus que era por isso que tinha tanta sorte nas batalhas.
O inimigo começou a colocar novas tropas na linha da frente. Alguns traziam a águia de Cuneglas, outros a raposa de Gundleus e muito poucos os seus próprios emblemas. É então que, atrás de mim, soam gritos de alegria. Virei-me, à espera de ver chegar os homens de Tewdric com os seus uniformes romanos, mas, em vez deles, era Galaad que vinha sozinho e num cavalo suado. Parou atrás da nossa linha e quase caiu do cavalo tal era a pressa de nos alcançar.
Pensei que seria tarde de mais disse ele.
Eles vêm? perguntei.
Fez uma pausa e, mesmo antes de ele falar, soube que tínhamos sido abandonados.
Não disse ele, por fim.
Praguejei e olhei de novo para o inimigo. Tinham sido os Deuses quem nos salvara no último ataque, mas só os Deuses sabiam quanto tempo mais podíamos aguentar.
Não vem ninguém? perguntei, amargo.
Alguns, talvez. Galaad deu a má notícia em voz baixa. Tewdric acredita que estamos condenados, Agrícola diz que nos deviam ajudar, mas Meurig diz que devem deixar-nos morrer. Fartaram-se de discutir, e Tewdric acabou por dizer que os homens que quisessem morrer aqui me podiam seguir. Talvez alguns estejam a caminho.
Rezei para que estivessem, pois alguns dos mercenários de Gorfyddyd tinham chegado agora ao monte de oeste, se bem que nenhum elemento daquela horda andrajosa tivesse passado a barreira-fantasma de Nimue. Podíamos aguentar por mais umas duas horas, pensei, e, depois, estaríamos condenados, apesar de Artur chegar de certeza primeiro.
Não há sinal dos Blackshields irlandeses? perguntei a Galaad.
Não, graças a Deus disse ele, e aquela era uma pequena bênção num dia quase desprovido de bênçãos. Apesar disso, meia hora depois de Galaad ter chegado, recebemos finalmente alguns reforços. Sete homens caminhavam para norte, na direcção da nossa muralha de escudos já tão batida, sete homens com equipamento de guerra, lanças, escudos e espadas e o símbolo dos seus escudos era o falcão de Kernow, nosso inimigo. No entanto, aqueles homens não eram inimigos. Eram seis lutadores duros e cheios de cicatrizes chefiados pelo seu príncipe herdeiro, o príncipe Tristan.
Ele explicou a sua presença, terminada que foi a excitação das saudações.
Artur lutou por mim uma vez e há muito que eu lhe queria pagar a dívida.
Com a vossa vida? perguntou Sagramor de modo sinistro.
Ele arriscou a dele limitou-se Tristan a responder. Eu lembrava-me dele como um homem alto e atraente, e ainda o era, se bem que os anos tivessem acrescentado ao seu rosto um olhar abatido e cansado como se tivesse sofrido muitas desilusões. O meu pai acrescentou num tom lamentoso nunca deve perdoar a minha vinda, mas eu nunca perdoaria a minha ausência.
Como está Sarlinna? perguntei.
Sarlinna? Levou alguns segundos a lembrar-se da rapariguinha que tinha ido a Caer Cadarn acusar Owain. Ah, a Sarlinna! Já está casada. Com um pescador. Sorriu. Tu deste-lhe o gatinho, não foi?
Colocámos Tristan e os seus homens no centro da nossa formação, o lugar de honra deste campo de batalha. No entanto, quando o ataque seguinte do inimigo surgiu, não foi desencadeado contra o centro, mas sim contra a barreira de árvores que protegia os nossos flancos. Durante algum tempo o fosso pouco profundo e os ramos emaranhados causaram-lhes grandes prejuízos, mas rapidamente aprenderam a usar as árvores caídas para se protegerem e, em alguns lugares, passaram sem nenhuma dificuldade e, mais uma vez, vergaram a nossa linha para trás. Mas, mais uma vez, os aguentámos e Griffid, o meu antigo inimigo, tornou-se conhecido ao esquartejar Nasiens, o campeão de Gundleus. Os escudos batiam uns nos outros sem parar. As lanças partiam-se, as espadas despedaçavam-se e os escudos rachavam enquanto os completamente exaustos lutavam contra os fatigados. No cimo do monte os mercenários inimigos juntaram-se para ver por detrás da barreira-fantasma de Nimue, enquanto Morfans obrigou mais uma vez o seu cavalo já esgotado a subir a encosta perigosamente íngreme. Olhou para norte e nós observávamo-lo e rezávamos para que ele soasse a corneta. Ele quedou-se a olhar durante muito tempo, mas deve ter ficado satisfeito por todas as forças inimigas estarem agora presas no vale, pois levou a corneta de prata aos lábios e soprou o abençoado chamamento por entre o ruído da batalha.
Nunca um chamamento de corneta foi tão bem-vindo. Toda a nossa linha se encapelou para a frente e as espadas cheias de cicatrizes atacavam o inimigo com uma nova energia. A corneta de prata, com um som tão claro e cristalino, continuava a chamar, um chamamento de caça para a matança, e cada vez que soava os nossos homens pressionavam para a frente até aos ramos das árvores caídas, para esquartejarem, apunhalarem e gritarem insultos ao inimigo que, suspeitando de algum truque, olhava nervosamente em redor do vale enquanto se defendia. Gorfyddyd gritava aos seus homens para acabarem connosco agora e a sua guarda real chefiava o ataque ao nosso centro. Ouvi os homens de Kernow darem o seu grito de guerra enquanto pagavam a dívida do seu príncipe herdeiro. Nimue estava entre os nossos lanceiros empunhando uma espada com ambas as mãos. Gritei-lhe que se afastasse, mas a ânsia de sangue tinha-lhe atolado a alma e lutava como um demónio. O inimigo tinha medo dela, sabendo que ela pertencia aos Deuses, e os homens tentavam fugir em vez de lutar contra ela, mas, mesmo assim, fiquei contente quando Galaad a afastou da luta. Galaad podia ter vindo tarde para a batalha, mas lutava com uma satisfação selvagem que empurrava o inimigo para trás da pilha de mortos e moribundos que se contorciam.
A corneta soou uma última vez. E, finalmente, Artur atacou.
Os seus lanceiros com armaduras tinham saído do seu esconderijo a norte do rio e, agora, os seus cavalos espumavam ao atravessarem o vau como uma onda trovejante. Abriam ruidosamente caminho por entre os corpos deixados pela primeira refrega e atacavam com as suas brilhantes lanças ao entrarem de rompante pelas unidades da retaguarda do inimigo. Os homens dispersavam como palha à medida que os cavalos com cascos de ferro penetravam no exército de Gorfyddyd. Os homens de Gorfyddyd dividiram-se em dois grupos que cortaram profundos canais por entre aquele apinhamento de lanceiros. Eles atacaram, deixaram as lanças presas nos mortos e fizeram mais mortos com as espadas.
E, por um momento, por um glorioso momento, pensei que o inimigo fosse quebrar, mas eis que Gorfyddyd viu o mesmo perigo e gritou para que os seus homens formassem uma nova muralha de escudos virada para norte. Sacrificaria os seus homens da retaguarda e faria uma nova linha de lanças com as fileiras mais recuadas das tropas mais avançadas. E essa nova linha aguentou-se. Há muito tempo Owain tivera razão, quando me disse que nem mesmo os cavalos de Artur conseguiriam desbaratar uma linha de escudos bem feita. E não desbaratariam. Artur espalhara o pânico e a morte por um terço do exército de Cuneglas, mas o resto estava agora formado como devia ser e desafiava a sua mão-cheia de cavaleiros.
E, ainda assim, o inimigo era superior a nós em número.
Por detrás da barreira de árvores, a nossa linha não tinha mais de dois homens de profundidade e, em alguns lugares, tinha apenas um. Artur não conseguira cortar todo o exército e chegar até nós e Gorfyddyd sabia que Artur nunca iria abrir caminho enquanto tivesse uma linha de escudos em frente dos cavalos. Firmou essa linha de escudos, abandonando o terço perdido do seu exército à mercê de Artur e, depois, virou o resto dos seus homens para enfrentarem de novo a linha de escudos de Sagramor. Gorfyddyd conhecia agora a táctica de Artur e tinha-a contrariado, pelo que podia lançar de novo os seus lanceiros para a batalha com confiança renovada, se bem que agora, em vez de atacar ao longo de toda a nossa linha, ele tivesse concentrado o seu ataque ao longo da orla oeste do vale, numa tentativa de virar o nosso flanco esquerdo.
Os homens desse flanco lutaram, mataram e morreram, mas aqueles poucos homens tinham conseguido aguentar a linha por muito tempo e nenhum a poderia ter aguentado depois dos silurianos de Gundleus nos terem flanqueado subindo as encostas mais baixas do monte, abaixo da terrível barreira-fantasma. O ataque foi brutal e a defesa também foi horrível. Os cavaleiros sobreviventes de Morfans atiraram-se aos silurianos, Nimue lançava-lhes pragas e os homens de Tristan, ainda frescos, lutaram contra eles como campeões, mas mesmo que possuíssemos o dobro dos homens não teríamos podido evitar que o inimigo nos flanqueasse e, assim, a nossa muralha de escudos, tal como uma cobra a recuar, desabou na margem do rio onde fizemos um meio círculo defensivo em redor dos dois estandartes e dos poucos feridos que conseguíramos trazer connosco. Foi um momento terrível. Eu vi a nossa muralha de escudos quebrar, vi o inimigo começar a matança de homens espalhados por todos os lados e, depois, corri com os restantes num amontoado desesperado de sobreviventes. Só tivemos tempo de erguer uma tosca muralha de escudos e só pudemos limitar-nos a ver as forças triunfantes de Gorfyddyd a perseguirem e a matarem os nossos fugitivos. Tristan sobreviveu, assim como Galaad e Sagramor, mas essa era bem pequena consolação, pois tínhamos perdido a batalha e tudo o que nos restava era morrer como heróis. Na parte norte do vale, Artur estava ainda impedido de avançar pela muralha de escudos, enquanto a sul, a nossa muralha, que resistira aos seus inimigos durante todo aquele longo dia, tinha sido quebrada e o que dela restava tinha sido cercado. Éramos duzentos homens fortes, quando fomos para a batalha, e agora éramos pouco mais de cem.
O príncipe Cuneglas cavalgou para a frente para pedir a nossa rendição. O seu pai comandava os homens que enfrentavam Artur e o rei de Powys estava satisfeito por deixar a destruição dos restantes lanceiros de Sagramor nas mãos do seu filho e do rei Gundleus. Pelo menos Cuneglas não insultou os meus homens. Parou o cavalo a uma dúzia de passos da nossa linha e levantou a mão direita vazia em sinal de tréguas.
Homens de Dumnónia! gritou Cuneglas. Lutaram bem, mas lutar mais é morrer. Ofereço-vos a vida.
Usai uma vez a vossa espada antes de pedirdes a homens corajosos para se renderem gritei-lhe eu.
Medo de lutar, não é? escarneceu Sagramor, pois, até então, nenhum de nós vira Gorfyddyd, Cuneglas ou Gundleus à frente da muralha de escudos inimiga. O rei Gundleus estava sentado no seu cavalo alguns passos atrás do príncipe Cuneglas. Nimue amaldiçoava-o, mas se ele estava ou não consciente da presença dela, eu não o sabia. Se estava, não precisava de se preocupar, pois estávamos todos apanhados e condenados, com certeza.
Ou então lutai comigo agora gritei a Cuneglas. De homem para homem, se é que vos atreveis.
Cuneglas olhou para mim com ar triste. Eu estava sujo de suor, coberto de lama, a transpirar, pisado e ferido, enquanto ele estava elegante com uma cota de malha de escamas curta e um elmo coroado com penas de águia. Esboçou um sorriso.
Sei que não sois Artur disse ele pois já o vi montar, mas sejais quem fordes lutastes nobremente. Ofereço-vos a vida.
Tirei o elmo suado e apertado da cabeça e atirei-o para o centro do nosso semi-círculo.
Vós conheceis-me, Senhor disse eu.
Lorde Derfel. Ele tratou-me pelo nome, honrando-me. Lorde Derfel Cadarn disse ele se eu vos garantir a vossa vida e a vida de vossos homens, rendeis-vos?
Senhor disse eu não sou eu quem está no comando. Deveis falar com Lorde Sagramor.
Sagramor veio colocar-se a meu lado e tirou o seu elmo preto em espiral que tinha sido perfurado por uma lança, pelo que o seu cabelo negro e encaracolado estava desgrenhado e empapado de sangue.
Senhor disse ele, circunspecto.
Ofereço-vos a vida disse Cuneglas desde que vos rendais. Sagramor apontou a sua espada curva para onde os cavaleiros de Artur dominavam a parte norte do vale.
O meu Senhor não se rendeu disse ele a Cuneglas. Por isso, também não posso render-me. Mas liberto os meus homens dos seus juramentos disse, levantando a voz.
Eu também gritei eu para os meus homens.
Tenho a certeza de que alguns ficaram tentados a abandonar as fileiras, mas os companheiros resmungavam-lhes que ficassem ou talvez esse resmungar fosse apenas o som do desafio de homens cansados. O príncipe Cuneglas esperou alguns segundos e, depois, tirou dois colares finos de ouro de uma bolsa do cinto e sorriu-nos.
Saúdo a vossa coragem, Lorde Sagramor. Saúdo-vos também a vós, Lorde Derfel. E atirou o ouro que aterrou aos nossos pés. Peguei no meu e separei as pontas para que coubesse no meu pescoço. Mais uma coisa, Derfel Cadarn? chamou Cuneglas. O seu rosto redondo e amigável sorria.
Senhor?
A minha irmã pediu-me para vos saudar. E, por isso, eu vos saúdo. A minha alma, tão perto da morte, pareceu saltar de alegria com aquela saudação.
Dai-lhe as minhas saudações, Senhor respondi e dizei-lhe que esperarei ansioso pela companhia dela no Outro Mundo. Depois, o pensamento de nunca mais voltar a ver Ceinwyn neste mundo sobrepôs-se à minha alegria e, de repente, senti vontade de chorar.
Cuneglas viu a minha tristeza.
Não precisais de morrer, Lorde Derfel disse ele. Ofereço-vos a vida e ofereço-vos a segurança. Ofereço-vos também a minha amizade, se a quiserdes.
Honrá-la-ia, Senhor, mas enquanto o meu Senhor lutar, eu lutarei. Sagramor colocou o elmo, retraindo-se quando o metal roçou na ferida de lança aberta no seu couro cabeludo.
Agradeço-vos, Senhor disse ele a Cuneglas, mas escolho lutar contra vós.
Cuneglas virou o cavalo. Olhei para a minha espada, tão batida e pegajosa e, depois, olhei para os meus homens que tinham sobrevivido.
Se mais não conseguimos disse-lhes eu impedimos pelo menos o exército de Gorfyddyd de marchar sobre Dumnónia durante um dia. E talvez nunca marche! Quem quereria lutar contra homens como nós duas vezes?
Os Blackshields irlandeses lutariam resmungou Sagramor e apontou com a cabeça na direcção da encosta onde a barreira-fantasma tinha aguentado o nosso flanco durante todo o dia. E ali, para lá dos postes dominados pela magia, estava um grupo guerreiro com escudos redondos e pretos e as longas e cruéis lanças da Irlanda. Era a guarnição do Monte de Coei, os Blackshields irlandeses de Oengus Mac Airem, que tinham vindo juntar-se à matança.
Artur ainda lutava. Desbaratara um terço do exército do seu inimigo transformando-o numa ruína escarlate, mas o restante aguentava-o agora ali reprimido. Ele atacava sem parar, num esforço de quebrar aquela linha de escudos, mas nenhum cavalo do mundo cavalgaria por entre um matagal de homens, escudos e lanças. Até Llamrei o deixou ficar mal e tudo o que lhe restava fazer, pensei eu, era enterrar a Excalibur no solo vermelho de sangue e esperar que o Deus Gofannon viesse do abismo mais escuro do Outro Mundo para o salvar.
Mas não veio nenhum Deus nem veio nenhum homem de Magnis. Mais tarde soubemos que alguns voluntários tinham vindo, mas tinham chegado tarde de mais.
Os mercenários de Powys estavam no monte, assustados de mais para atravessarem a barreira-fantasma, enquanto ao lado deles se juntavam mais de cem guerreiros irlandeses. Esses homens começaram a andar para sul, tendo como objectivo contornar os fantasmas vingativos da barreira. Pensei que dentro de meia hora os Blackshields irlandeses se juntariam ao ataque final de Cuneglas e, por isso, fui ter com Nimue.
Atravessa o rio a nado insisti com ela. Sabes nadar, não sabes? Ela levantou a mão esquerda com a cicatriz.
Tu morres aqui, Derfel disse ela. Então eu morro aqui também.
Tens de...
Calar-te disse ela é o que tu tens de fazer. Pôs-se nas pontas dos pés e beijou-me na boca. Mata Gundleus por mim antes de morreres
implorou ela.
Um dos nossos lanceiros começou a cantar o Cântico da Morte de Werlinna e os restantes começaram a seguir a melodia calma e triste. Cavan, com a capa enegrecida pelo sangue, martelava no bocal da cabeça da lança com uma pedra, tentando apertar o ajuste da haste.
Nunca pensei que chegasse a isto disse-lhe eu.
Nem eu, Senhor disse ele, desviando o olhar do trabalho. A pluma de cauda de lobo estava também ensopada de sangue, o elmo estava amolgado e tinha um farrapo amarrado à volta da coxa esquerda.
Eu pensava que tinha sorte disse eu. Sempre pensei isso, mas talvez todos os homens o pensem.
Todos os homens não, Senhor, mas os melhores chefes sim. Sorri, agradecendo-lhe.
Gostava de ter visto o sonho de Artur tornar-se realidade disse eu.
Se isso acontecesse, não haveria trabalho para os guerreiros disse Cavan friamente. Seríamos todos escrivães ou agricultores. Talvez seja melhor assim. Uma última luta e, depois, descer até ao Outro Mundo, para o serviço de Mitra. Passaremos lá uns bons tempos, Senhor. Mulheres roliças, boas lutas, hidromel bem forte e ouro para sempre.
Ficarei contente por ter lá a tua companhia disse eu, mas na verdade estava completamente desprovido de alegria. Ainda não queria partir para o Outro Mundo, não enquanto Ceinwyn vivesse neste. Pressionei a armadura sobre o peito para sentir o pequeno pregador que ela me dera e pensei na loucura que, agora, nunca seguiria o seu curso. Disse alto o nome dela, confundindo Cavan. Eu estava apaixonado, mas morreria sem nunca ter segurado a mão do meu amor e sem ter visto o seu rosto uma vez mais.
Depois fui obrigado a esquecer Ceinwyn, pois os Blackshields irlandeses de Demétia, em vez de contornarem a barreira, tinham decidido desafiar os fantasmas e atravessá-la. Só depois percebi porquê. Um druida aparecera no monte para os conduzir e ajudar a atravessar a linha dos espíritos. Nimue veio colocar-se ao meu lado e olhou monte acima para onde a figura alta, de túnica e capuz brancos caminhava a passos largos pela encosta íngreme. Os irlandeses seguiam-no e, por detrás dos seus escudos pretos, e das longas espadas vinham os mercenários de Powys com a sua mistura de armas
arcos, picaretas, machados, lanças, bastões e forcados.
A canção dos meus homens esmoreceu. Levantaram as lanças e encostaram os rebordos dos escudos uns aos outros para ter a certeza de que a muralha estava bem firme. O inimigo, que estivera a preparar a sua própria muralha de escudos para atacar a nossa, virava-se agora para olhar o druida que trazia os irlandeses para o vale. lorweth e Tanaburs correram ao seu encontro, mas o druida que tinha acabado de chegar brandiu o seu longo bastão para lhes ordenar que saíssem do caminho e, depois, puxou o capuz para trás e nós vimos a longa e entrançada barba e o rabicho balouçante preso com uma fita preta. Era Merlim.
Nimue gritou quando viu Merlim e, depois, correu para ele. O inimigo desviou-se para a deixar passar, tal como se afastaram para deixar Merlim passar em direcção a ela. Mesmo num campo de batalha, um druida podia andar por onde lhe apetecesse e aquele druida era o mais famoso e o mais poderoso de toda a terra. Nimue corria e Merlim abriu os braços para a receber. Ela ainda soluçava quando finalmente se deu o reencontro e ela o abraçou com os seus braços magros e pálidos. De repente, fiquei contente por ela.
Merlim mantinha um braço em redor de Nimue enquanto avançava para nós a passos largos. Gorfyddyd vira a chegada do druida e galopava agora na direcção da nossa parte do campo de batalha. Merlim levantou o bastão saudando o rei, mas ignorou as suas perguntas. O grupo guerreiro irlandês parara no sopé do monte onde os homens formaram a sua ameaçadora muralha de escudos pretos.
Merlim caminhou na minha direcção e, tal como no dia em que salvara a minha vida em Caer Sws, ostentava aquele seu ar majestoso, frio e resoluto. Não havia sorriso no seu rosto moreno, apenas um olhar de fúria atroz que me fez afundar, caindo de joelhos e inclinando a cabeça, quando ele se aproximou. Sagramor fez o mesmo e, subitamente, todo o nosso grupo batido de lanceiros se ajoelhava perante o druida.
Ele esticou o bastão preto e tocou primeiro em Sagramor e, depois, nos meus ombros.
Levantem-se disse ele num tom de voz baixo e duro, antes de se virar para encarar o inimigo. Tirou o braço dos ombros de Nimue e segurou o bastão preto na horizontal com as duas mãos, acima da cabeça tonsurada. Olhou para o exército de Gorfyddyd, baixou o bastão devagar e era tal a autoridade que emanava daquele rosto velho, esguio e zangado e daquele gesto lento e seguro que todo o exército inimigo se ajoelhou perante ele. Apenas os dois druidas ficaram de pé e os poucos cavaleiros permaneceram nas suas selas.
Durante sete anos disse Merlim numa voz que alcançou todo o vale e chegou até ao seu âmago mais profundo, pelo que até Artur e os seus homens o ouviram procurei a Sabedoria da Grã-Bretanha. Procurei o poder dos nossos antepassados, o poder que abandonámos quando os Romanos chegaram. Procurei essas coisas que restituirão esta terra aos seus verdadeiros Deuses, aos seus próprios Deuses, aos nossos Deuses, aos Deuses que nos fizeram e que podem ser persuadidos a voltar para nos ajudarem. Falou devagar e de forma simples para que todos os homens pudessem ouvir e entender. Agora, continuou preciso de ajuda. Preciso de homens com espadas, homens com lanças, homens com corações sem medo para irem comigo a um lugar inimigo em busca do último Tesouro da Grã-Bretanha. Procuro o Caldeirão de Clyddno Eiddyn. O Caldeirão é o nosso poder, o nosso poder perdido, a nossa última esperança de transformar a Grã-Bretanha de novo numa ilha dos Deuses. Nada vos prometo senão provações. Não vos darei nenhuma recompensa senão a morte. Nada vos darei de comer senão o amargor, e dar-vos-ei apenas o fel para beber. Mas, em troca, peço-vos as vossas espadas e as vossas vidas. Quem virá comigo procurar o Caldeirão?
Fez a pergunta de forma abrupta. Esperávamos que ele falasse daquele sangue espalhado por todo o lado, que deixara vermelho um vale que era verde, mas, em vez disso, ele ignorava a luta como se esta fosse irrelevante, quase como se nem tivesse notado que tinha atravessado um campo de batalha.
Quem? perguntou de novo.
Lorde Merlim! gritou Gorfyddyd antes que qualquer homem pudesse responder. O rei inimigo empurrou o cavalo por entre as filas dos seus lanceiros ajoelhados. Lorde Merlim! O seu tom de voz era furioso e o rosto frio.
Gorfyddyd reconheceu-o Merlim.
A vossa busca pelo Caldeirão não pode esperar uma horita? Gorfyddyd fez a pergunta em tom sarcástico.
Pode esperar um ano, Gorfyddyd Cadell. Pode esperar cinco anos. Pode esperar para sempre, mas não deve.
Gorfyddyd levou o cavalo para o espaço aberto entre as muralhas de escudos. Estava a ver a sua grande vitória posta em perigo e a sua reivindicação para ser Rei Supremo ameaçada por um druida, e, assim, virou o cavalo para os seus homens, abriu os protectores das faces do seu elmo alado e elevou o tom de voz.
Haverá tempo para empenhar lanças na busca do Caldeirão gritou ele para os seus homens, mas só quando tiverem punido o devasso e enterrado as vossas lanças nos homens dele. Eu tenho um juramento a cumprir e não deixarei que nenhum homem, nem mesmo Lorde Merlim, me desvie desse juramento. Não poderá haver paz nem Caldeirão enquanto o amante da puta viver. Virou-se e olhou para o feiticeiro. Com este apelo salvaríeis o amante da puta!
Não me preocuparia, Gorfyddyd Cadell, que a terra se abrisse e engolisse Artur e todo o seu exército disse Merlim. Nem que também engolisse o teu.
Então lutemos! gritou Gorfyddyd, usando o seu único braço para desembainhar a sua espada. Estes homens, falou para o seu exército, mas apontou com a espada para os nossos estandartes são vossos.
As mulheres e as filhas deles são agora as vossas putas. Vocês, que lutaram contra eles até aqui, vão agora deixá-los escapar? O Caldeirão não desaparecerá com as vidas deles, mas a vossa vitória desaparecerá se não acabarmos o que viemos aqui fazer. Lutemos!
Fez-se um segundo de silêncio e, depois, os homens de Gorfyddyd levantaram-se e começaram a bater com as hastes das lanças nos escudos. Gorfyddyd lançou a Merlim um olhar de triunfo e, pontapeando o cavalo, dirigiu-se de novo para as suas fileiras clamorosas.
Merlim virou-se para Sagramor e para mim.
Os Blackshields irlandeses disse num tom casual estão do vosso lado. Falei com eles. Atacarão os homens de Gorfyddyd e tereis uma grande vitória. Que os Deuses vos dêem força. Virou-se de novo, colocou um braço sobre os ombros de Nimue e caminhou por entre as fileiras de inimigos que se abriram para o deixarem passar.
Foi uma boa tentativa! gritou Gundleus para Merlim. O rei de Powys estava no limiar da sua grande vitória e essa tonta perspectiva enchera-o de confiança para desafiar o druida, mas Merlim ignorou o insulto de vanglória e limitou-se a afastar-se com Tanaburs e lorweth.
Issa trouxe-me o elmo de Artur. Enfiei-o de novo na cabeça, satisfeito com a sua protecção nestes últimos minutos da batalha.
O inimigo reorganizou a sua muralha de escudos. Foram lançados poucos insultos, pois poucos eram os homens que tinham energia para outra coisa que não a ameaçadora matança que se agigantava na margem do rio. Pela primeira vez, durante todo o dia, Gorfyddyd desmontou e ocupou o seu lugar na muralha. Não tinha escudo, mas ia chefiar este último ataque que esmagaria o poder do seu odiado inimigo. Levantou a espada, segurou-a no ar durante alguns segundos e baixou o braço.
O inimigo atacou.
Empurrámos as lanças e os escudos para a frente para os enfrentar e as duas muralhas embateram uma na outra com um som terrível. Gorfyddyd tentou fazer a sua espada trespassar o escudo de Artur, mas eu desviei-a e desferi-lhe um golpe com a Hywelbane. A espada ricocheteou no seu elmo, cortando uma asa da águia e, depois, ficámos cerrados um contra o outro por causa da pressão dos homens que empurravam de trás.
Empurrem-nos! gritou Gorfyddyd para os seus homens e cuspiu-me por cima do escudo. O teu amante da puta esconde-se enquanto tu lutas disse, sobrepondo a voz ao ruído da batalha.
Ela não é nenhuma puta, Senhor disse eu e tentei soltar a Hywelbane do aperto que a prendia para desferir outro golpe, mas a espada estava bem presa pela pressão de escudos e homens.
Ela levou-me muito ouro disse Gorfyddyd e eu não pago a mulheres que não abrem as pernas para mim.
Soltei a Hywelbane e levantei-a, tentando enterrá-la nos pés de Gorfyddyd, mas a espada ricocheteou no saio da sua armadura. Ele riu-se do meu falhanço, cuspiu-me de novo e levantou a cabeça ao ouvir um medonho grito de batalha.
Era o ataque dos Irlandeses. Os Blackshields de Oengus Mac Airem atacavam sempre com um grito ululante; um grito de guerra terrível que parecia sugerir um prazer não humano na matança. Gorfyddyd gritou aos seus homens que se lançassem e abrissem caminho, para quebrarem a nossa minúscula muralha de escudos e, durante alguns segundos, os homens de Powys e da Silúria atacaram-nos com um furor renovado, acreditando que os Blackshields os vinham ajudar. Mas, então, novos gritos que vinham das fileiras da retaguarda fizeram-nos perceber que a traição mudara a fidelidade dos Blackshields. Os irlandeses retalhavam as fileiras de Gorfyddyd, as suas longas lanças encontravam alvos fáceis e, de repente, num ápice, os homens de Gorfyddyd tombavam como odres furados.
Vi a raiva e o pânico perpassarem o rosto de Gorfyddyd.
Rendei-vos, Senhor! gritei-lhe, mas a sua guarda pessoal encontrou espaço para acutilar com as espadas e durante alguns segundos de desespero tive de me defender conforme pude, sem prestar atenção ao que acontecia ao rei, se bem que Issa tivesse gritado que vira Gorfyddyd ferido. Galaad estava ao meu lado, dando estocadas e desviando golpes e, então, como se por magia, o inimigo fugiu. Os nossos homens perseguiram-nos, juntando-se aos Blackshields para empurrarem os homens de Powys e da Silúria como um rebanho para onde os cavaleiros de Artur os esperavam para os matarem. Procurei Gundleus e vi-o uma vez entre um grupo de homens cobertos de lama e sangue em desenfreada correria, mas depois perdi-o de vista.
O vale já assistira a muitas mortes naquele dia, mas assistia agora a um massacre absoluto, pois nada torna uma matança mais fácil do que uma muralha de escudos quebrada. Artur tentou parar a matança, mas nada podia impedir a libertação daquela selvajaria reprimida, e os seus cavaleiros carregavam como Deuses vingadores por entre a multidão em pânico enquanto nós perseguíamos e esquartejávamos os fugitivos numa orgia de sangue. Muitos dos inimigos conseguiram fugir, passando pelos cavaleiros e atravessando o vau para a segurança da outra margem, mas muitos outros foram obrigados a procurar refúgio na aldeia onde, por fim, arranjaram tempo e espaço para formarem uma nova muralha de escudos. Agora era a sua vez de se renderem. A luz do fim da tarde espraiava-se pelo vale, tocando as árvores com a primeira luz débil e amarela do sol daquele longo e sangrento dia, quando parámos em redor da aldeia. Estávamos ofegantes e as nossas espadas e lanças estavam cobertas de sangue.
Artur, com a sua espada tão escarlate como a minha, escorregou pesadamente do dorso de Llamrei. A égua preta estava esbranquiçada do suor, e tremia com os olhos pálidos muito abertos enquanto o próprio Artur se apresentava completamente esgotado depois da desesperada batalha. Ele tentara vezes sem conta atravessar a linha até nós; os seus homens disseram-nos que lutara como um homem possuído pelos Deuses, apesar de parecer que, durante toda aquela longa tarde, os Deuses o tinham abandonado. Agora, apesar de ser o vencedor do dia, estava angustiado quando nos abraçou, a Sagramor e a mim.
Faltei ao que vos tinha prometido, Derfel disse ele. Faltei ao que te tinha prometido.
Não, meu Senhor disse eu nós ganhámos. E apontei com a minha espada batida e avermelhada para os sobreviventes de Gorfyddyd que se tinham reunido em redor do estandarte da águia do seu rei apanhado na armadilha. O estandarte da raposa de Gundleus também lá estava, se bem que não se visse nenhum dos reis inimigos.
Falhei disse Artur. Não consegui atravessar. Eram muitos. De mais. Aquele falhanço exasperava-o, pois sabia muito bem como estivéramos à beira da derrota total. Na realidade, sentia que tinha sido vencido, pois os seus cavaleiros gabarolas tinham sido sustidos e tudo o que ele pudera fazer fora ficar a olhar enquanto nós éramos esquartejados. Mas estava enganado. A vitória era dele, só dele, pois Artur fora o único de todos os homens de Dumnónia e de Gwent que tivera a confiança suficiente para iniciar a batalha. Essa batalha não se tinha desenrolado como Artur planeara, Tewdric não viera para nos ajudar e os cavalos de Artur tinham sido reprimidos pela muralha de escudos de Gundleus, mas era na mesma uma vitória, uma vitória tornada apenas possível por uma coisa: a coragem de Artur para a luta. É claro que Merlim tinha intervido, mas Merlim nunca reclamava a vitória para si. Essa vitória era de Artur e apesar de, nessa altura, Artur estar cheio de auto-recriminação, foi o Vale do Lugg, a única vitória que Artur desprezou, que o tornou no eventual governador da Grã-Bretanha. O Artur dos poetas, o Artur que cansa as línguas dos bardos, o Artur por cujo regresso todos os homens rezam nestes dias de trevas, tornou-se grande por aquele caminhar arrastado e hesitante de uma luta. É claro que hoje os bardos não cantam a verdade sobre o Vale do Lugg. Fazem-no parecer uma vitória tão completa como as batalhas posteriores e talvez tenham razão em moldarem assim a sua história, pois nestes tempos duros bem precisamos de que Artur tenha sido um grande herói desde o princípio, mas a verdade é que nesses primeiros anos Artur era vulnerável. Ele governava Dumnónia em virtude da morte de Owain e do apoio de Bedwin, mas à medida que os anos de guerra aumentavam houve muitos que desejaram que ele partisse. Gorfyddyd tinha apoiantes em Dumnónia e, que Deus me perdoe, muitos cristãos rezavam pela derrota de Artur. E foi por isso que ele lutou, porque sabia que era fraco de mais para não lutar. Artur tinha de conseguir uma vitória ou perder tudo e, no fim, ele venceu, mas só depois de ter estado às portas de um desastre total.
Artur foi abraçar Tristan e, depois, saudou Oengus Mac Airem, o rei irlandês de Demétia, cujo contingente salvara a batalha. Artur, como sempre, ajoelhou-se perante um rei, mas Oengus levantou-o e deu-lhe um abraço muito apertado. Eu virei-me e olhei para o vale enquanto os dois homens conversavam. Estava encravado de homens rendidos, deplorável, repleto de cavalos moribundos e a abarrotar de cadáveres e restos de armas. O sangue tresandava e os feridos choravam. Eu sentia-me, tal como os meus homens, mais cansado do que alguma vez me sentira em toda a minha vida, mas vi que os mercenários de Gorfyddyd tinham descido do monte para começarem a saquear os mortos e os feridos e, por isso, mandei Cavan e uma vintena de lanceiros afastá-los dali. Os corvos agitaram as asas negras e atravessaram o rio para dilacerar as entranhas dos mortos. Vi que as cabanas que incendiáramos nessa manhã ainda fumegavam. Depois pensei em Ceinwyn e, de repente, por entre todo aquele bestial horror, a minha alma elevou-se como se tivesse grandes asas brancas.
Virei-me a tempo de ver Merlim e Artur a abraçarem-se. Artur parecia prestes a sucumbir nos braços do druida, mas Merlim levantou-o e abraçou-o. Depois caminharam os dois na direcção dos escudos do inimigo.
O príncipe Cuneglas e o Druida lorweth saíram da muralha de escudos em círculo. Cuneglas trazia uma lança, mas não trazia escudo, enquanto Artur tinha a Excalibur embainhada e mais nenhuma arma. Caminhava à frente de Merlim e, quando se aproximou de Cuneglas, levou um joelho ao chão e inclinou a cabeça.
Senhor disse ele.
O meu pai está a morrer disse Cuneglas. Um golpe de lança atingiu-o nas costas. Disse-o num tom de acusação, se bem que todos soubessem que, quando uma muralha de escudos se quebra, muitos homens morrem com feridas nas costas.
Artur manteve o joelho em terra. Por um momento pareceu não saber o que dizer, mas depois olhou para Cuneglas e perguntou:
Posso vê-lo? Ofendi a vossa casa, Senhor, e insultei a sua honra e, apesar de não ter tido a intenção de a insultar, pedirei, ainda assim, o perdão de vosso pai.
Foi a vez de Cuneglas parecer estupidificado, encolhendo os ombros como se não estivesse certo de que tomara a decisão acertada, mas, finalmente, fez um gesto na direcção da muralha de escudos. Artur levantou-se e, lado a lado com o príncipe, foi ao encontro do moribundo rei Gorfyddyd.
A minha vontade foi gritar a Artur para não ir, mas ele foi engolido pelas fileiras do inimigo antes dos meus confusos sentidos se restabelecerem. Encolhi-me ao pensar no que Gorfyddyd diria a Artur e eu sabia que Gorfyddyd ia dizer todas aquelas coisas obscenas que me lançara na cara por detrás do rebordo do seu escudo marcado pelas lanças. O rei Gorfyddyd não era homem de perdoar aos seus inimigos e também não era homem de poupar sofrimento a um inimigo, mesmo estando a morrer. Principalmente estando a morrer. Seria o seu derradeiro prazer neste mundo saber que tinha ferido os sentimentos do seu adversário. Sagramor partilhava os meus medos e ambos olhávamos angustiados, quando, passados alguns momentos, Artur emergiu das fileiras vencidas com um rosto mais sombrio do que a Gruta de Cruachan. Sagramor avançou na sua direcção.
Ele mentiu, Senhor disse Sagramor suavemente. Ele sempre mentiu.
Eu sei que ele mentiu disse Artur, estremecendo. Mas algumas mentiras são duras de ouvir e impossíveis de perdoar. De repente a fúria explodiu dentro dele e, desembainhando a Excalibur, virou-se com um ar feroz para o inimigo apanhado na armadilha. Algum de vocês quer lutar pelas mentiras do vosso rei? gritou ele enquanto percorria para cima e para baixo a linha inimiga. Há por aí algum? Um homem, apenas, que queira lutar por aquele mal que morre connosco? Só um? Senão vou amaldiçoar a alma do vosso rei, condenando-a à escuridão eterna! Vamos, lutem!
Bateu com a Excalibur nos escudos levantados. Lutem! Escumalha! A sua fúria era tão terrível como tudo o que o vale presenciara durante o dia inteiro. Em nome dos Deuses gritou ele declaro o vosso rei um mentiroso, um filho da puta, uma coisa sem honra, uma nulidade! Cuspiu para cima deles e, depois, mexeu desajeitadamente e só com uma mão nas fivelas da minha couraça de couro que ainda trazia vestida, conseguindo desapertar as correias do ombro, mas não as da cinta, pelo que a couraça ficou pendurada à frente dele como se fosse o avental de um ferreiro. Torno-vos as coisas mais fáceis! vociferou. Nada de armaduras. Nada de escudos. Venham lutar contra mim! Provem-me que o filho da puta e o devasso do vosso rei fala a verdade! Quê, nem um só? A sua fúria tinha-o fora de controlo, pois agora estava nas mãos dos Deuses e espalhava a sua ira por um mundo que se acobardava perante a sua temível força. Cuspiu de novo. Suas putas rançosas! Rodopiava sobre si mesmo, quando Cuneglas reapareceu na muralha de escudos. Tu, por exemplo, cachorro e apontou a Excalibur a Cuneglas lutarias por aquele pedaço moribundo de imundície?
Cuneglas, como qualquer dos presentes estava chocado com a fúria de Artur, mas saiu sem armas da muralha de escudos e, a alguns centímetros de Artur, caiu de joelhos.
Estamos à vossa mercê, Lorde Artur disse, e Artur olhou para ele. O seu corpo estava tenso, pois toda a raiva e frustração de um dia de luta ferviam dentro dele. Por um segundo, pensei que a Excalibur sibilaria no crepúsculo para decepar dos seus ombros a cabeça de Cuneglas, mas depois Cuneglas ergueu os olhos. Agora sou rei de Powys, Lorde Artur, mas à vossa mercê.
Artur fechou os olhos. Depois, ainda de olhos fechados, procurou a bainha da Excalibur e embainhou a longa espada. Afastou-se de Cuneglas, abriu os olhos e olhou para nós, e eu e os lanceiros vimos a loucura que o possuía a desaparecer. Estava ainda agitado pela fúria, mas a raiva incontrolável passara e a sua voz era calma quando pediu a Cuneglas que se levantasse. Depois Artur chamou os porta-estandartes para que os estandartes gémeos do dragão e do urso acrescentassem dignidade às suas palavras.
Os meus termos são os seguintes disse ele, de forma que todas as pessoas o pudessem ouvir. Exijo a cabeça do rei Gundleus. Já a manteve durante muito tempo e o assassinato da mãe do meu rei deve ser levado à justiça. Estando isso garantido, só peço que haja paz entre o rei Cuneglas e o meu rei e entre o rei Cuneglas e o rei Tewdric. Peço que haja paz entre todos os Bretões.
Fez-se um silêncio de espanto. Artur era o vencedor. As suas forças tinham matado o rei do inimigo e capturado o herdeiro de Powys e todos os homens no vale esperavam que Artur exigisse um resgate real pela vida de Cuneglas. Mas, afinal, ele nada mais pedia senão paz.
Cuneglas franziu o sobrolho.
E o meu trono? Conseguiu perguntar.
O vosso trono é vosso, Senhor disse Artur. De quem mais poderia ser? Aceitai os meus termos, Senhor, e sois livre para regressar para o vosso trono.
E o trono de Gundleus? perguntou Cuneglas, suspeitando talvez que Artur queria a Silúria para si próprio.
Não será vosso replicou Artur firmemente, nem meu. Juntos encontraremos alguém que o ocupe. Quando Gundleus estiver morto acrescentou ameaçadoramente. Onde está ele?
Cuneglas fez um gesto na direcção da aldeia.
Num dos edifícios, Senhor.
Artur virou-se para os lanceiros vencidos de Powys e subiu o tom de voz para que todos o ouvissem.
Esta guerra nunca devia ter sido travada! gritou. Foi travada por minha culpa, eu aceito essa culpa e pagarei por ela com outra qualquer moeda que não a minha vida. À princesa Ceinwyn devo mais do que um pedido de desculpas e pagarei o que ela me pedir, mas tudo o que peço agora é que sejamos aliados. Todos os dias chegam novas hordas de saxões para roubar a nossa terra e escravizar as nossas mulheres. Devemos lutar contra eles, não entre nós. Peço a vossa amizade e, como prova desse meu desejo, deixo-vos a vossa terra, as vossas armas e o vosso ouro. Isto não é uma vitória nem uma derrota fez um gesto abrangendo o vale ensanguentado e coberto de fumo é uma paz. Tudo o que peço é paz e uma vida. A de Gundleus. Olhou de novo para Cuneglas e baixou a voz. Espero a vossa decisão, Senhor.
O druida lorweth correu para o lado de Cuneglas e puseram-se os dois a conferenciar. Nenhum deles parecia acreditar na oferta de Artur, pois os senhores da guerra não costumavam ser generosos na vitória. Os vencedores das batalhas exigiam resgates, ouro, escravos e terra; Artur só queria amizade.
E Gwent? perguntou Cuneglas a Artur. O que vai Tewdric querer?
Artur percorreu teatralmente o olhar por todo o vale que a pouco e pouco ia mergulhando na penumbra.
Não vejo nenhum homem de Gwent, Senhor. Se um homem não toma parte numa luta, então não pode tomar parte nas decisões posteriores. Mas posso dizer-vos, Senhor, que Gwent anseia pela paz. O rei Tewdric não pedirá nada excepto a vossa amizade e a amizade do meu rei. Uma amizade que nos devemos comprometer mutuamente a nunca quebrar.
E fico livre para partir se vos der essa garantia? perguntou Cuneglas, desconfiado.
Para onde quiserdes, Senhor, mas peço-vos autorização para ir a Caer Sws para continuarmos a nossa conversa.
E os meus homens são livres de partir? perguntou Cuneglas.
Com as armas, o ouro, as vidas e a minha amizade respondeu Artur. Este era um Artur no auge da honestidade, desesperado por garantir que aquela fora a última batalha travada entre Bretões, se bem que eu tivesse reparado que ele tinha tido o cuidado de não dizer nada sobre Ratae. Essa surpresa podia esperar.
Cuneglas ainda parecia achar a oferta boa de mais para ser verdade, mas, depois, lembrando-se talvez da antiga amizade que o unia a Artur, sorriu.
Tereis a vossa paz, Lorde Artur.
Com uma última condição disse Artur brusca e inesperadamente, mas não muito alto, para que apenas alguns de nós pudéssemos ouvir as suas palavras. Cuneglas pareceu desconfiado, mas esperou. Asseverai-me, Senhor disse Artur por juramento e pela vossa honra, que o vosso pai mentiu ao morrer.
A paz estava suspensa da resposta de Cuneglas. Ele fechou os olhos durante alguns momentos como se sentisse ofendido e, depois, falou.
O meu pai nunca se importou com a verdade, Lorde Artur, mas apenas com as palavras que podiam concretizar as suas ambições. Afirmo sob juramento que o meu pai era um mentiroso.
Então temos paz! exclamou Artur.
Eu só o tinha visto mais feliz uma vez, e foi quando se casou com Guinevere, mas agora, por entre o fumo e o cheiro nauseabundo de uma batalha ganha, parecia quase tão contente como naquela clareira florida na margem do rio. Na verdade, mal conseguia falar, tanta era a alegria, pois tinha ganho o que mais queria no mundo. Fizera a paz.
Partiram mensageiros para Norte e para Sul, para Caer Sws e para Durnovária. O Vale do Lugg tresandava a fumo e a sangue. Muitos dos feridos estavam a morrer onde tinham caído e os seus gritos na noite eram terríveis e cortavam o coração enquanto os vivos se amontoavam em redor das fogueiras e falavam dos lobos que desciam dos montes para se regalarem com os mortos da batalha.
Artur parecia quase desorientado com o tamanho da vitória. Ele era agora, se bem que ainda não se tivesse apercebido disso completamente, o governante efectivo da Grã-Bretanha do Sul, pois não havia mais nenhum homem que se atrevesse a enfrentar o seu exército, mesmo no estado deplorável em que se encontrava. Precisava de falar com Tewdric, precisava de mandar lanceiros de volta para a fronteira saxónica, queria desesperadamente que as boas notícias chegassem a Guinevere e os homens não cessavam de lhe pedir favores e terras, ouro e posição social. Merlim falava-lhe do Caldeirão e Cuneglas queria falar sobre os Saxões de Aelle, enquanto Artur queria falar de Lancelote e Ceinwyn, e Oengus Mac Airem exigia terras, mulheres, ouro e escravos da Silúria.
Nessa noite eu só lhe pedi uma coisa e Artur concedeu-me essa única coisa.
Deu-me Gundleus.
O rei da Silúria refugiara-se num pequeno templo de construção romana que estava ligado à casa romana maior da pequena aldeia. O templo era feito de pedra e não tinha janelas além de um tosco buraco deixado na alta empena para o fumo sair, e tinha apenas uma porta que dava para o pátio da cavalariça da casa. Gundleus tentara escapar do vale, mas o seu cavalo fora abatido por um dos cavaleiros de Artur e agora, como um rato escondido no seu último buraco, o rei esperava que se cumprisse o seu lúgubre destino. Uma mão-cheia de lanceiros silurianos leais guardava a porta do templo, mas desertaram, quando viram os meus guerreiros a avançar na noite.
Tanaburs ficou sozinho a guardar o templo iluminado pelo fogo, onde tinha feito uma pequena barreira-fantasma colocando duas cabeças recém-cortadas aos pés das colunas gémeas da entrada. Viu as cabeças das nossas lanças brilharem no portão do pátio da cavalariça e levantou o seu bastão com a ponta em lua enquanto nos lançava pragas. Gritava aos Deuses para que engelhassem as nossas almas, quando, de repente, os seus guinchos pararam.
Pararam quando ouviu a Hywelbane ser desembainhada. Ao ouvir esse som, olhou com atenção para o pátio escuro enquanto eu e Nimue avançávamos lado a lado e, ao reconhecer-me, deu um curto, mas assustado grito como o grito de uma lebre apanhada por um gato selvagem. Ele sabia que eu possuía a sua alma, pelo que, aterrorizado, fugiu a correr pela porta do templo. Desdenhosamente, Nimue afastou as cabeças dando um pontapé em cada uma e entrou atrás de mim. Ela levava uma espada. Os meus homens esperavam lá fora.
O templo fora outrora dedicado a algum Deus romano, se bem que agora fosse em honra dos Deuses britânicos que as pilhas de caveiras cresciam tão altas nas paredes de pedra vazias. Os escuros orifícios dos olhos das caveiras olhavam sem expressão na direcção das fogueiras gémeas que iluminavam o alto e estreito aposento onde Tanaburs fizera para si próprio um círculo de poder com um aro de caveiras amareladas. Estava agora nesse círculo a cantarolar feitiços, enquanto atrás dele, encostado à parede mais distante, onde se erguia um baixo altar de pedra manchado de negro do sangue dos sacrifícios, Gundleus esperava de espada desembainhada.
Tanaburs, com a túnica bordada salpicada de lama e sangue, levantou o bastão e lançou-me maldições imundas. Amaldiçoou-me pela água e pelo fogo, pela terra e pelo ar, pela pedra e pela carne, pelo orvalho e pelo luar, pela vida e pela morte, mas nenhuma das maldições me impedia de avançar devagar em direcção a ele, com Nimue a meu lado, vestida com uma túnica branca manchada. Tanaburs lançou uma última praga e, depois, apontou o bastão mesmo para a minha cara.
A tua mãe está viva, saxão! gritou ele. A tua mãe está viva e a sua vida pertence-me. Estás a ouvir-me, saxão? Olhava-me lubricamente de dentro do círculo e no seu rosto decrépito as duas fogueiras do templo projectavam sombras que faziam dos seus olhos ameaças vermelhas e selvagens. Estás a ouvir-me? gritou de novo. A alma da tua mãe é minha! Copulei com ela para que assim fosse! Formei com ela a besta dos dois costados e derramei o seu sangue para fazer minha a sua alma. Toca-me, saxão, e a alma da tua mãe vai para os dragões do fogo. Será esmagada pela terra, queimada pelo ar, sufocada pela água e atirada para o sofrimento para sempre. E não apenas a sua alma, saxão, mas também a alma de qualquer coisa viva que tenha saído de dentro dela. Espalhei o sangue dela pelo chão, saxão, e esfreguei o meu poder na barriga dela. Riu-se e levantou bem alto o bastão em direcção ao tecto com vigas do templo. Toca-me, saxão, e a minha maldição roubar-lhe-á a vida e, através da vida dela, roubará a tua. Baixou o bastão, apontando de novo para mim. Mas deixa-me partir, e tu e ela viverão.
Parei no limiar do círculo. As caveiras não formavam uma barreira-fantasma, mas havia ainda assim um poder medonho na forma como estavam ordenadas. Eu conseguia sentir esse poder como asas invisíveis que batiam com força para me confundirem. Se atravessasse o círculo de caveiras, pensei eu, ia entrar no pátio de recreio dos Deuses para competir com coisas que nem sequer imaginava e muito menos compreendia. Tanaburs apercebeu-se da minha incerteza e sorriu triunfante.
A tua mãe é minha, saxão trauteou ele tornei-a minha, toda minha. O seu sangue, a sua alma e o seu corpo são meus e isso faz-te meu também, pois nasceste do meu corpo no meio do sangue e da dor. Brandiu o bastão, fazendo a ponta em forma de lua tocar no meu peito. Queres que te leve até ela, saxão? Ela sabe que estás vivo e uma viagem de dois dias levar-te-ia de novo para junto dela. Sorriu maldosamente. És meu gritou ele todo meu! Sou tua mãe e teu pai, a tua alma e a tua vida. Fiz o feitiço da unidade no ventre da tua mãe e agora és meu filho! Pergunta-lhe! E apontou com o bastão para Nimue. Ela conhece esse feitiço.
Nimue não disse nada, limitava-se a olhar sinistramente para Gundleus enquanto eu olhava para os horríveis olhos do druida. Eu tinha medo de atravessar o círculo, estava aterrorizado pelas ameaças dele, mas eis que, quase como uma torrente, os acontecimentos daquela noite tão distante voltaram à minha cabeça como se tivessem acontecido no dia anterior. Lembrava-me dos gritos da minha mãe, lembrava-me de vê-la a implorar aos soldados que me deixassem junto dela, lembrava-me dos lanceiros a rirem-se e a baterem-lhe na cabeça com as hastes das lanças, lembrava-me daquele druida cacarejante com as lebres e as luas na túnica e os ossos no cabelo, e lembrava-me de como ele me pegara ao colo, me acariciara e dissera que boa oferenda para os Deuses eu seria. De tudo isso eu me lembrava, assim como me lembrava de ter sido levado por entre as duas linhas de fogo onde os guerreiros dançavam e as mulheres gemiam e de Tanaburs a levantar-me bem acima da sua cabeça tonsurada enquanto se dirigia para a beira de um poço que era um círculo escuro no chão, rodeado por fogueiras cujas chamas ardiam com brilho suficiente para iluminar a ponta manchada de sangue de uma estaca aguçada que se projectava para fora do interior do poço escuro e redondo. As memórias eram como serpentes do sofrimento a picarem-me a alma à medida que me lembrava dos pedaços ensanguentados de carne e de pele pendurados na estaca iluminada pelo fogo e do horror que eu não entendia inteiramente, dos corpos estropiados que se contorciam numa agonia lenta e deplorável enquanto morriam na escuridão sangrenta do poço da morte daquele druida. E lembrava-me como ainda gritei pela minha mãe, quando Tanaburs me ergueu para as estrelas, preparando-se para me oferecer aos seus Deuses.
Para Gofannon, bradara ele, e a minha mãe gritava enquanto era violada e eu gritava porque sabia que ia morrer Para Lleullaw, gritou Tanaburs para Cernunnos, para Taranis, para Sucellos, para Bei! E, depois deste grande e último nome, ele atirara-me para a estaca assassina.
E falhara.
A minha mãe gritava tanto que eu ainda ouvia os seus gritos quando entrei aos pontapés no círculo de caveiras de Tanaburs e os gritos dela se misturaram com os guinchos de Tanaburs quando eu ecoei o seu grito de morte de há tantos anos atrás.
Para Bei! gritei.
A Hywelbane cortou. E eu não falhei. A Hywelbane esquartejou Tanaburs pelo ombro, desceu-lhe pelas costelas e era tal a cólera pura e impregnada de sangue da minha alma que a Hywelbane continuou a descer pela sua barriga descarnada, entrando nas suas pestilentas entranhas e fazendo o seu corpo abrir-se em dois como um cadáver apodrecido. E, durante todo esse tempo, eu soltei o terrível grito de uma criança a ser oferecida ao poço da morte.
O círculo de caveiras encheu-se de sangue e os meus olhos encheram-se de lágrimas, quando olhei para o rei que chacinara o filho de Ralla e a mãe de Mordred. O rei que violara Nimue e lhe arrancara o olho e, lembrando-me dessa dor, agarrei nos copos da Hywelbane com as duas mãos e puxei violentamente, soltando a lâmina do refugo imundo tombado a meus pés e passei por cima do corpo do druida para levar a morte a Gundleus.
Ele é meu gritou-me Nimue. Tirara a venda dos olhos para que o orifício vazio aparecesse lúbrico e vermelho à luz do fogo. Nimue passou por mim, sorrindo. És meu trauteou ela todo meu. E Gundleus gritou.
E talvez no Outro Mundo Norwenna tenha ouvido esse grito e tenha ficado a saber que o seu filho, o seu menino nascido no Inverno, ainda era o rei.
A história de Artur continua no segundo volume de
As Crónicas do Senhor da Guerra
O Inimigo de Deus
O Inimigo de Deus será o 2º volume a publicar desta trilogia. Segue-se um extracto do primeiro capítulo.
Em Caer Sws as folhas estavam pesadas com os últimos frutos do Verão.
Eu estava entre os primeiros homens de Artur a chegar à capital de Cuneglas. Estava lá quando o corpo do rei Gorfyddyd foi cremado em Caer Dolforwyn e vi as chamas da sua pira funerária lufarem bem altas na noite enquanto a sua alma seguia para o seu corpo-sombra no Outro Mundo. A fogueira estava rodeada por um anel duplo de lanceiros de Powys que carregavam tochas acesas e caminhavam lado a lado enquanto cantavam o Lamento da Morte de Beli Mawr. Cantaram durante muito tempo e as suas vozes ecoavam nos montes distantes como um coro de fantasmas. Havia muita dor em Caer Sws. Eram muitas as viúvas e os órfãos e, na manhã seguinte ao rei ter sido cremado e quando a sua pira funerária ainda enviava uma coluna de fumo na direcção das montanhas a norte, a dor aumentou ainda mais com as notícias da queda de Ratae.
Ceinwyn estava de luto pelo pai. Vestiu-se de lã preta e fechou-se nos aposentos das mulheres, de onde nos chegaram aos ouvidos os prantos e as lamentações durante os três dias de velório.
E, ao fim dos três dias, Artur chegou. Chegou com vinte cavaleiros, cem criados e o dobro de lanceiros. Trouxe bardos e meninos de coro. Trouxe Merlim e presentes de ouro retirados dos mortos do Vale do Lugg.
Também trouxe Lancelote e Guinevere.
Resmunguei quando vi Guinevere. Tínhamos conseguido uma vitória e feito a paz, mas mesmo assim achei cruel da parte de Artur trazer a mulher pela qual tinha deixado Ceinwyn. Porém, Guinevere tinha feito questão de acompanhar o marido, pelo que chegou a Caer Sws numa grande carroça puxada por bois, guarnecida de peles e de tapeçarias de linho, e adornada com ramos verdes, que significavam paz. A rainha Elaine, a mãe de Lancelote, também vinha na carroça, mas foi Guinevere, e não a rainha, quem atraiu as atenções. Ela levantou-se quando a carroça atravessou devagar o portão de Caer Sws e manteve-se de pé enquanto os bois a conduziam até à porta do grande salão de Cuneglas. Parecia um conquistador a chegar a um lugar onde outrora tivesse sido um exilado inconveniente. Usava uma túnica de linho tingido de dourado, trazia ouro ao pescoço e nos braços e a farta cabeleira ruiva vinha presa num aro de ouro. Parecia uma deusa.
E, se Guinevere parecia uma deusa, Lancelote entrou a cavalgar em Caer Sws como um deus. Muitos homens pensaram que se tratava de Artur, pois estava magnífico num cavalo branco ornamentado com um tecido de linho pálido guarnecido com estrelas douradas. Usava a sua armadura de escamas esmaltada de branco, a espada vinha numa bainha branca e o elmo era agora encimado por uma asa de cisne toda aberta em vez das asas da águia pesqueira que usava em Ynys Trebes. Uma capa branca, forrada a vermelho, caía-lhe dos ombros e o seu rosto moreno e atraente estava emoldurado pelo elmo dourado. As pessoas viam-no passar boquiabertas e, depois, ouvi correr rumores pela multidão de que afinal não era Artur, mas sim o rei Lancelote, o herói trágico do reino perdido de Benoic e o homem que casaria com a princesa Ceinwyn. A multidão ficou deslumbrada com Lancelote e quase nem reparou em Artur, que trazia um colete de couro e parecia algo embaraçado por estar em Caer Sws.
Nota do Autor
Não causa surpresa que o período Arturiano da História da Grã-Bretanha seja conhecido como a Idade das Trevas, pois quase nada sabemos sobre os acontecimentos e as personalidades desses anos. Nem podemos tão-pouco ter a certeza de que Artur existiu, apesar de tudo levar a crer que um grande herói britânico chamado Artur (ou Arthur ou Artorius) terá reprimido temporariamente as invasões dos Saxões durante os primeiros anos do século Vi D.C. Durante a década de 540, Gildas escreveu uma história desse conflito: o De Excidio et Conquestu Britanniae e poder-se-ia esperar que tal obra fosse uma fonte autorizada das proezas de Artur, mas Gildas não menciona sequer o nome de Artur, facto a que invariavelmente se apegam aqueles que põem em causa a sua existência.
No entanto, há provas anteriores de que Artur existiu. Por volta dos meados do século Vi, exactamente quando Gildas estava a escrever a sua história, os registos dos sobreviventes apresentam um número invulgar e surpreendente de homens chamados Artur, o que sugere uma moda repentina de ter filhos com o mesmo nome de um homem famoso e poderoso. Tal prova está longe de ser conclusiva, assim como o não é a primeira referência literária a Artur, uma breve referência no grande poema épico Y Gododdin, escrito por volta do ano 600 D.C. para celebrar uma batalha entre os Britânicos do Norte (uma hoste mantida a hidromel) e os Saxões, mas muitos especialistas acreditam que a referência a Artur é uma interpolação mais tardia.
Depois desta referência duvidosa em Y Gododdin temos de esperar mais duzentos anos para a existência de Artur ser registada numa crónica por um historiador, intervalo este que enfraquece a autoridade da prova. No entanto, e apesar disso, Nennius, que compilou a sua história dos Bretões durante os últimos anos do século Viii , faz muito por Artur. Significativamente, Nennius nunca o chama de rei, descrevendo antes Artur como o Dux Bellorum, o Chefe das Batalhas, título que eu traduzi por o Senhor da Guerra. Nennius estava certamente a valer-se dos antigos contos populares, que eram uma fonte fértil a alimentar os cada vez mais frequentes recontos da história de Artur e que atingiram o auge no século Iii, quando dois escritores de países diferentes transformaram Artur num herói para todos os tempos. Na Grã-Bretanha, Geoffrey of Monmouth escreveu a sua mítica e maravilhosa História Regum Britanniae enquanto em França o poeta Chrétien de Troyes acrescentou, entre outras coisas, Lancelote e Camelote à mistura real. O nome Camelote podia ter sido pura invenção (ou então arbitrariamente adaptado do nome romano de Colchester Camulodunum), mas, tirando isso, Chrétien de Troyes valia-se quase de certeza dos mitos bretões que deviam ter preservado, tal como os contos populares galeses que alimentavam a história de Geoffrey, memórias genuínas de um antigo herói. Depois, no século Xv, Sir Thomas Malory escreveu Lê Morte d'Arthur, que constitui a proto-versão da nossa flamejante Lenda de Artur com o seu Santo Graal, a távola redonda, graciosas donzelas, animais de caça, feiticeiros poderosos e espadas encantadas.
É provavelmente impossível deslindar esta tradição tão rica e conseguir encontrar a verdade sobre Artur, se bem que muitos o tivessem tentado e muitos mais sem dúvida o vão tentar de novo. Artur tanto é apresentado como um homem do norte da Grã-Bretanha, como do Essex ou do West Country. Um estudo recente identifica categoricamente Artur como sendo um governante galês do século Vi chamado Owain Ddantgwyn, mas, como os autores dizem depois que "não há nada registado sobre Owain Ddantgwyn", este estudo não se revela de grande utilidade. Camelote tem sido diversamente situado em Carlisle, Winchester, Cadbury do Sul, Colchester e uma dúzia de outros lugares. A minha escolha nesta questão é no mínimo inconstante e fortalecida pela certeza de que não existe nenhuma resposta verdadeira. Dei a Camelote o nome inventado de Caer Cadarn e situei-a em Cadbury do Sul, no Somerset, não porque ache que seja este o lugar mais provável (se bem que também não pense que seja o menos provável), mas porque conheço e amo essa parte da Grã-Bretanha. Podemos escavar o quanto quisermos, mas o que podemos seguramente deduzir da história é que um homem chamado Artur viveu provavelmente nos séculos V e Vi, que era um grande Senhor da Guerra mesmo que nunca tenha sido rei, e que as suas maiores batalhas foram travadas contra os odiados invasores saxões.
Podemos saber muito pouco sobre Artur, mas podemos concluir muitas coisas sobre os tempos em que ele provavelmente viveu. A Grã-Bretanha dos séculos V e Vi deve ter sido um lugar terrível. Os protectores romanos partiram no início do século V e os Bretões romanizados foram assim abandonados a um círculo de temíveis inimigos. De Oeste vinham os Irlandeses, que se dedicavam à pilhagem e que eram parentes celtas próximos dos Britânicos, mas, não obstante, invasores, colonizadores e escravizadores. A Norte situava-se o estranho povo das Terras Altas escocesas, sempre pronto a vir para Sul com os seus ataques destrutivos. Mas nenhum destes inimigos era tão temido como os odiados Saxões, que primeiro atacaram, depois colonizaram e, mais tarde, capturaram o leste da Grã-Bretanha e, na devida altura, o coração da Grã-Bretanha e lhe deram um novo nome Inglaterra.
Os Bretões que enfrentaram estes inimigos estavam longe de estarem unidos. Os seus reinos pareciam gastar tanta energia a lutar uns contra os outros como a opor-se aos invasores, e estavam também, sem sombra de dúvida, divididos no campo ideológico. Os Romanos deixaram um legado de leis, indústria, erudição e religião, mas a esse legado devem ter-se oposto muitas tradições nativas que tinham sido violentamente reprimidas durante a longa ocupação romana, mas que nunca desapareceram por completo, sendo o Druidismo a maior dessas tradições. Os Romanos esmagaram o Druidismo por causa das suas associações com o nacionalismo britânico (portanto anti-romano) e substituiram-no uma confusão de outras religiões incluindo, como é claro, o Cristianismo. Uma opinião erudita sugere que o Cristianismo se espalhou na Grã-Bretanha pós-romana (se bem que fosse um Cristianismo irreconhecível para as mentes modernas), mas sem dúvida que o paganismo também existia, principalmente no campo (pagão vem da palavra latina para gente do campo), e quando o Estado romano se desfez, os homens e as mulheres devem ter-se agarrado a tudo o que fosse sobrenatural. Pelo menos um especialista moderno sugeriu que o Cristianismo se mostrava compreensivo em relação aos restos do Druidismo britânico e que os dois credos existiam numa cooperação pacífica, mas a tolerância nunca foi a maior virtude da igreja e duvido das suas conclusões. Em minha opinião, a Grã-Bretanha de Artur era um lugar tão atormentado pelas divergências religiosas como o era pelas invasões e pela política. Na devida altura, claro, as histórias de Artur tornam-se bastante cristianizadas, principalmente no tocante à sua obsessão pelo Santo Graal, se bem que possamos duvidar de Artur saber ou não da existência de tal cálice. No entanto, as lendas sobre o Santo Graal podem não se limitar a invenções posteriores, pois têm semelhanças notáveis com contos populares célticos de guerreiros à procura de caldeirões mágicos; contos pagãos aos quais, tal como aconteceu na mitologia arturiana, os autores cristãos deram, mais tarde, o seu brilho piedoso, enterrando assim uma tradição arturiana muito mais inicial que agora existe apenas nas vidas muito antigas e obscuras de alguns santos celtas. Surpreendentemente, essa tradição descreve Artur como um vilão e um inimigo da Cristandade. Parece que a igreja céltica não gostava de Artur e as vidas dos santos sugerem que era por causa de ele sequestrar o dinheiro da igreja para custear as suas guerras, o que podia explicar o porquê de Gildas, um homem da igreja e o historiador contemporâneo mais próximo de Artur, se recusar a dar-lhe crédito pelas vitórias britânicas que impediram temporariamente o avanço dos Saxões.
É claro que o Espinheiro Sagrado poderia ter existido em Ynys Wydryn (Glastonbury), se acreditarmos na lenda segundo a qual José de Arimateia trouxe o Santo Graal para Glastonbury em 63 D.C., se bem que essa história só tivesse realmente sido conhecida no século Xiii, pelo que suspeito de que a minha inclusão do Espinheiro em O Rei do Inverno seja um dos meus deliberados anacronismos. Quando comecei a escrever o livro estava determinado a excluir todo e qualquer anacronismo, incluindo os enfeites de Chrétien de Troyes, mas tais puritanismos teriam excluído Lancelote, Galaad, a Excalibur e Camelote, e muito mais figuras, tais como Merlim, Morgana e Nimue. Terá Merlim existido? As provas da sua vida são ainda menos convincentes do que as de Artur e é muito pouco provável que os dois tenham coexistido. Todavia são personagens inseparáveis e pareceu-me impossível deixar Merlim de fora. Felizmente, muitos anacronismos puderam, no entanto, ter sido abandonados e, como tal, o Artur do século V não usa armadura nem uma lança medieval. Não tem nenhuma mesa redonda, se bem que os seus guerreiros (e não cavaleiros) tivessem, à maneira céltica, festejado muitas vezes formando um círculo no chão. Os seus castelos teriam sido feitos de terra e madeira e não de pedra atorreada e altaneira e, infelizmente, duvido que algum braço vestido com samito branco, místico e maravilhoso, tenha surgido do nevoeiro para agarrar a sua espada para toda a eternidade, apesar de ser quase certo que os tesouros pessoais de um grande chefe fossem, por ocasião da sua morte, lançados ao lago como uma oferenda aos Deuses.
A maior parte dos nomes das personagens do livro são retirados de registos dos séculos V e Vi, mas sobre as pessoas ligadas a esses nomes não sabemos quase nada, tal como também sabemos muito pouco sobre os reinos da Grã-Bretanha pós-romanos na realidade as histórias até discordam do número e do nome desses reinos. Dumnónia existiu, tal como existiu Powys, e o narrador do romance, Derfel (pronunciado à maneira galesa, Dervel?) é identificado em alguns dos primeiros romances como um dos guerreiros de Artur e é referido que mais tarde se tornou monge; mas nada mais sabemos sobre ele. Outros, como o bispo Sansum, existiram sem dúvida e continuam hoje a ser conhecidos como santos, embora pareça que poucas preciosas virtudes eram exigidas a esses primeiros homens sagrados.
O Rei do Inverno é, então, um romance sobre a Idade das Trevas, no qual a lenda e a imaginação devem compensar a escassez de registos históricos. Uma coisa de que podemos estar completamente certos é do amplo fundo histórico: uma Grã-Bretanha na qual estão ainda presentes as cidades romanas, as estradas romanas, as vivendas romanas e algumas maneiras de ser romanas, mas também uma Grã-Bretanha a ser rapidamente destruída pelas invasões e pelos conflitos sociais. Alguns dos Bretões tinham já abandonado a luta e tinham-se estabelecido na Armórica, na Bretanha, o que explica a persistência das histórias arturianas nessa parte da França. Mas, para os Bretões que continuaram na sua amada ilha, esta foi uma época em que procuraram desesperadamente a salvação, tanto espiritual como militar, e nesse lugar conturbado apareceu um homem que, pelo menos durante algum tempo, repeliu o inimigo. Esse homem é o meu Artur, um grande senhor da guerra e um herói que lutou contra probabilidades impossíveis com tal resultado que, mesmo passados mil e quinhentos anos, os seus inimigos ainda amam e veneram a sua memória.
Bernard Cornwell
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