Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Segredos de Estado
Volume II
O REI DO MERCADO
A CASA PARA O MAR - 1638
TRÊS HOMENS AO SERVIÇO DE DEUS
O fogo rangia furiosamente, atiçado pelo vento, expelindo para o céu feixes de faíscas e caudais de fumo. O dia nascia. Um dia que se anunciava sombrio e cuja única luminosidade seria fornecida por aquele incêndio expiatório que as pessoas da aldeia vizinha contemplavam amedrontadas, dispostas numa encosta como pássaros empoleirados num ramo. De vez em quando, explodia uma das cargas de pólvora disseminadas pelo castelo, o que ocasionava novas chamas. Daqui a pouco, La Ferrière seria apenas um montão de ruínas sobre as quais a floresta, com a hera e as urtigas, viria reclamar os seus direitos; só a capela permaneceria intacta, protegida pelo largo espaço vazio que a rodeava. Tal fora o desejo de François de Vendôme, duque de Beaufort, quando ateara o seu auto-de-fé.
Montado a cavalo, no outeiro atrás do qual se dissimulava a aldeola, ele contemplava a realização da vingança incendiária, com a qual retribuía o martírio por que passara Sylvie. Uma vingança incompleta, aliás, dado que só um dos carrascos fora punido mas, cada coisa a seu tempo, e, por ora, François dava-se por satisfeito.
Quando as chamas diminuíram, dirigiu o cavalo para a encosta onde os camponeses estavam especados, de boina na mão. Ao verem-no aproximar-se, aconchegaram-se ainda mais uns aos outros. Estavam tão assustados que, por pouco, não se ajoelharam. É verdade que o jovem duque, com as roupas sujas, a tez escurecida e manchas de sangue no ombro, não oferecia um aspecto reconfortante, mas sorriu-lhes, revelando toda a brancura dos dentes, enquanto o seu olhar límpido perdia a dureza de há pouco:
- Quando o fogo se apagar e as cinzas esfriarem, procurareis os restos mortais daqueles que por lá ficaram e dar-lhes-eis uma sepultura cristã. Além disso, aquilo que puderdes recuperar será para vós.
Um velho, que devia ser o chefe, aproximou-se do cavalo:
- Monsenhor, será que ficaremos em segurança? O homem que... residia ali, pertencia ao...
- Ao senhor Cardeal? Bem sei, meu amigo. Mas não deixa de ser um criminoso e o que acaba de se desenrolar nesta residência, onde o sangue correu por demais, é a justiça divina! Quanto a vocês, ficai sabendo que não têm nada a temer: falarei com o bailio de Anet e encontrar-me-ei com Sua Eminência em Paris. Tomai! - acrescentou, estendendo a sua bolsa bem recheada. - Dividi isso entre vós! Mas não vos esqueceis de rezar pelas almas penadas daqueles que por lá ficaram.
Já mais seguro, o homem fez uma saudação e foi ter com os companheiros enquanto Beaufort, trotando devagar, ia ao encontro do seu escudeiro, Pierre de Ganseville, de Corentin e dos três guardas “que trouxera consigo para a expedição punitiva.
- Regressemos, senhores! - disse-lhes. - Não temos mais nada a fazer aqui.
Os aldeãos ficaram no mesmo sítio durante bastante tempo, parados à beira do caminho, até que o vento de oeste trouxe pesadas nuvens carregadas de chuva. A torrente de água molhou-os de tal modo, enquanto fazia gemer o enorme braseiro, que se apressaram a regressar a suas casas para se secarem, enquanto inventariavam as suas novas riquezas. Mais tarde, quando a chuva lhes tivesse concedido a graça de apagar as brasas, seria altura de ir ver o que restava do castelo e de enterrar os seus últimos habitantes com grandes quantidades de água benta, de forma a que não pudessem regressar para assombrar os locais. E também se encomendariam algumas preces...
No castelo de Rueil, o cardeal-duque de Richelieu, ministro do rei Luís XIII, desceu, numa certa manhã de Abril, na direção dos seus jardins, acompanhado pelo superintendente das Belas-Artes, M. Sublet de Noyers, a fim de inquirir do estado de crescimento das recentes plantações de castanheiro. Essas pequenas árvores as primeiras a serem implantadas em França eram uma verdadeira raridade. O Cardeal pagara-as bem caro à Sereníssima República de Veneza que, por seu turno, as importara da Índia, a fim de satisfazer o pedido. Por isso, dedicava-lhes uma atenção quase paternal.
Esse dia era importante, pois os jovens castanheiros iam deixar o laranjal e os seus grandes vasos em madeira, para serem colocados numa álea que fora especialmente concebida para eles e onde os jardineiros tinham acabado de cavar os buracos destinados a receber os grandes motes de terra que seriam alimentados com estrume de cavalo.
Sua Eminência estava na melhor das disposições. Apesar do tempo fresco e ligeiramente úmido, nada aconselhável para o reumatismo, as variadas dores de que padecia tinham-lhe concedido uma trégua aprazível, que lhe deixavam a paz de espírito adequada para tarefa tão agradável. Infelizmente, alguém veio estragar a festa.
Tinha o primeiro castanheiro acabado de entrar na sua morada definitiva, sob o olhar embevecido do Cardeal, quando chegou o capitão dos guardas para lhe anunciar uma visita:
- Monsenhor, o duque de Beaufort, acabara de chegar e solicitava um breve encontro, em particular.
Mesmo que tivesse ficado extremamente surpreendido, mesmo que tivesse perguntado a si próprio o que é que aquele sobrinho de Luís XIII, de descendência bastarda, aquele jovem estouvado que nunca se arriscara a vir ao seu encontro, poderia querer dele, a única manifestação que deixou transparecer foi um erguer de sobrancelhas.
- Dissestes que eu estava ocupado?
- Disse, monsenhor, mas o duque insistiu. Contudo, também mandou dizer que, caso estorve demasiadamente Sua Eminência, está disposto a esperar o tempo que julgardes necessário.
Isso também era novo! Beaufort, a “Tempestade”, Beaufort, o “Arrogante”, que escancarava mais vezes as portas do que as abria, devia ter cometido algum enorme disparate para se mostrar tão civilizado. Era uma circunstância demasiado rara para a deixar escapar. Contudo, o Cardeal, apesar da curiosidade que sentia, concedeu a si próprio o prazer de desfrutar de tão nova prova de sabedoria.
- Levai-o até ao meu gabinete e pedi-lhe para me esperar. Tendes alguma idéia do que deseja?
- Nenhuma, monsenhor. O duque contentou-se em dizer que se tratava de um assunto grave.
- Richelieu despediu o oficial com um gesto e foi ter com Sublet de Noyers, que encontrou, dessa vez, na companhia de um aluno de Salomon de Caus, o homem que desenhara aqueles magníficos jardins, mas que já não era deste mundo. Discutiam ambos um novo arranjo e o Cardeal juntou-se-lhes, enquanto os castanheiros eram colocados, um a um, nos seus respectivos lugares. Finalmente, contrariado, decidiu deixá-los, para regressar ao seu gabinete de trabalho e, de passagem, deu um relance de olhos pelo pátio principal, à espera de encontrar um coche, criados e um ou dois escudeiros com dois ou três gentis-homens, tal como seria natural esperar da parte de um príncipe de sangue, mesmo que esse sangue fosse bastardo. Ora só viu dois cavalos e um escudeiro seu conhecido, Pierre de Ganseville. Uma visita que se revestia de tal modéstia, tornava-se decididamente cada vez mais curiosa! O seu recreio, entretanto, terminara.
No grande salão, onde admiráveis tapeçarias flamengas alternavam com armários preciosos repletos de livros, François olhava por uma janela, roendo a unha do polegar, indiferente ao esplendor do lugar. Embrenhado nos seus pensamentos não ouviu a porta abrir-se e Richelieu parou um bom momento para olhar para o seu visitante, enquanto pensava que, de todos os descendentes de Henrique IV e da bela Gabrielle, aquele era, sem dúvida, o seu mais belo fruto e que a preferência da Rainha era bem compreensível... Cingido num gibão em tecido cinzento muito simples era mais uma indumentária para viajar do que para comparecer na Corte, mas enfeitado por um colarinho e punhos de renda de uma brancura estonteante, que condiziam às mil maravilhas com a sua compleição alta e magra e com os seus largos ombros, François de Beaufort era, indubitavelmente, aos vinte e dois anos, um dos mais belos homens de França. Com os cabelos compridos, claros e soltos, que desdenhava encaracolar, e com o seu rosto moreno que o arrogante nariz dos Bourbons e o queixo voluntarioso impediam que se tornasse demasiado meloso, tal como acontece quando os traços são demasiado perfeitos, ele dava a volta à cabeça de muitas mulheres, sem sequer necessitar de se empenhar nesse propósito.
O ruído da porta ao fechar-se levou-o a trocar a sua postura descontraída por uma profunda reverência, salientada pela trajetória das penas brancas do chapéu, mas os olhos, de um azul claro, não se baixaram, seguindo o andar do Cardeal até à grande mesa cheia de papéis, de dossiers e de cartas, que relegavam para segundo plano a restante decoração.
Ao chegar à poltrona, Richelieu olhou Beaufort com cortesia, mas não o convidou a sentar-se.
- Senhor duque, acabaram de me dizer que desejais falar-me de um assunto grave - começou. - Espero que não se trate de nenhum membro de vossa augusta família?
- Não inteiramente, mas quase. De qualquer modo, mesmo que se tratasse de meu pai ou de meu irmão, já o saberíeis antes de mim. Se bem que não possais saber sempre tudo, monsenhor. Pelo menos assim gostaria de acreditar.
- Dizei-me ao que vindes! - exclamou Richelieu com aspereza. - De quem me quereis falar?
- De uma jovem que conhecestes sob o nome de Mlle. de L’Isle e que na realidade se chamava Sylvie de Valaines.
O Cardeal franziu o sobrolho:
- Se chamava?... Não gosto nada desse imperfeito...
- Eu também não. Ela morreu. Morta por gente vossa.
- O quê?!...
O Cardeal erguera-se, como que propulsado por uma mola. A menos que fosse um ator genial, o seu espanto era completo. Não estava à espera daquela notícia e Beaufort sentiu um prazer amargo: não era dado a toda a gente conseguir agitar daquela forma a estátua impenetrável do Poder. Mas o prazer foi curto. Retomando a sua impassibilidade, Richelieu voltava a sentar-se.
- Estou à espera de explicações. Quem acusais de fato? E de quê?
- Monsenhor, acuso o tenente civil, Laffemas, e o barão de La Ferrière, um antigo oficial dos seus guardas.
- O que fizeram?
- O primeiro raptou aqui mesmo Mlle. de L’Isle, quando ela saía de uma audiência que lhe havíeis concedido. Em vez de tê-la levado de volta a Saint-Germain, como anunciou em voz alta, forçou-a a beber uma droga e conduziu-a até ao castelo de La Ferrière, próximo de Anet, onde outrora a mãe e os irmãos dela foram assassinados... por esse mesmo Laffemas. Procederam então aí a um simulacro de casamento com o barão, após o que este, abandonando os seus direitos conjugais, admitindo que os tivesse, em favor do seu cúmplice, deixou que ele violasse selvaticamente a minha pobre Sylvie, antes de regressar tranquilamente a Paris.
O Cardeal estendeu uma mão para um jarro de água pousado em cima da mesa, encheu um copo e bebeu-o de um só trago.
- Continuai! - mandou.
- Com o corpo conspurcado, mas ainda assim menos do que a alma, a infeliz rapariga, recordai-vos que tinha apenas dezesseis anos, conseguiu abandonar o local do suplício e fugiu pela floresta fora, descalça e em camisa, apesar do frio que se fazia sentir... Foi lá que a recolhi...
- Isso não se tornou já um hábito vosso? Não a tínheis encontrado outrora da mesma maneira?
- Efetivamente, depois dos seus parentes terem sido massacrados. Nessa altura ela tinha quatro anos e eu dez, e foi por isso que foi educada pela minha mãe sob um falso nome para evitar que lhe acontecesse o mesmo que aos seus.
- Muito romântico! Mas que fazíeis nesse dia na floresta?
- Nessa noite - corrigiu François. - Tenho de voltar um pouco atrás na narração dos acontecimentos, para precisar que Laffemas raptou Mlle. de Lisle sob as barbas do seu próprio cocheiro, um criado fiel de seu padrinho. Esse homem corajoso lançou-se na perseguição do captor...
- ... roubando o cavalo de um dos meus guardas? É isso?
- Monsenhor, quando alguém que amamos corre perigo não se olha a esses detalhes e estou disposto a pagar os devidos prejuízos, pois o cavalo morreu durante a perseguição. Graças a Deus, partiu-se uma das rodas da carruagem de Laffemas, o que reduziu o atraso do meu perseguidor. Este, que é um antigo criado de minha mãe, percebeu para onde a levavam. Parou então em Anet, em busca de auxílio e, por sorte, eu estava lá. Mas tudo isso levou algum tempo e o crime, cuja crueldade ninguém imaginaria, já fora perpetrado, tendo Laffemas partido quando nos pusemos a caminho de La Ferrière encontrando a pobre rapariga no estado que vos mencionei. Pegamos nela levamo-la de volta a Anet.
- E dizeis que ela está morta? Foram assim tão graves as sevícias por que passou?
- Foram, mas não a ponto de a matar. O mal que lhe tinham feito na alma revelou-se bem mais grave e foi isso que ela não conseguiu suportar. Enquanto eu ia pedir contas ao infame pseudo-marido, ela decidiu afogar-se no lago do castelo.
Um silêncio súbito desceu sobre as duas personagens, tal como é costume quando as asas da morte nos roçam. Surpreendido, François vislumbrou a sombra de uma emoção perpassando no rosto severo do Cardeal.
- Pobre passarinho cantor!... - murmurou este. - Quem poderá alguma vez perscrutar o abismo de torpeza que se esconde dentro de certos homens?
Todavia, tal como fizera há pouco com a cólera, ele arredou a emoção para se concentrar noutras perguntas:
- Pedistes contas a La Ferrière? Quer dizer que houve um duelo?
- Ele acabava de sair de uma noite de copos e eu teria podido executá-lo sem qualquer esforço, mas não sou um assassino. Comecei por acordá-lo despejando-lhe água fria, antes de lhe pôr uma espada na mão. Exceto o medo que sentia, estava em plena posse das suas faculdades quando o matei, enquanto que os meus homens combatiam os seus na proporção de um contra dois. Depois mandei incendiar e fazer ir pelos ares esse maldito castelo. Ficaram lá sepultados...
O tom de voz de Beaufort era calmo, quase sereno: era o de um simples cronista e Richelieu mal queria acreditar no que ouvia.
- Um duelo! Vários, até, e ainda para mais o incêndio de um castelo? E vindes dizer-me isso, a mim?
- Sim, monsenhor, pois penso que antes de vos pedir a cabeça de Laffemas devo contar-vos a verdade.
- De fato, sois muito boa pessoa! Mas a lei é a lei e ela aplica-se tanto a vós como a qualquer outro, por muito grande que seja!
- Mesmo que se chame Montmorency, bem sei! - disse François, com ligeireza.
- Deste modo vou mandar que vos prendam, senhor duque, e sereis levado até à Bastilha, enquanto esperais pelo vosso julgamento!
- Ordenai!...
Tanto sangue-frio levou ao rubro a cólera do ministro todo-poderoso. Já estendia a mão para uma campainha, quando o visitante voltou a falar:
- Não vos esqueceis de recomendar que me amordacem bem ou, melhor ainda, que me arranquem a língua, pois, caso contrário, gritarei com tanta força que o Rei ouvirá o seu sobrinho!
- O Rei não possui o espírito de família, dado que nunca teve razões para louvar a sua. Mas, aliás, por que não fostes queixar-vos junto a ele, em vez de terdes aqui vindo?
François fixou o seu olhar no do Cardeal com tanta gravidade que este ficou impressionado.
- Porque, monsenhor, vós sois o senhor deste reino, muito mais do que ele. Além disso, desde há algum tempo que tenho a impressão que a minha presença em Saint-Germain não é propriamente desejada.
- Quer isso dizer que a Rainha não vos quer ver mais? - perguntou Richelieu, com um fino sorriso.
- Ainda não lhe perguntei, mas é verdade que agora ela recebe pouca gente. O que é natural, devido ao seu estado de gravidez. Então, em que ficamos, monsenhor: sou ou não preso?
Richelieu gostava da coragem. Habituado a ver as pessoas tremer perante ele, ao ponto de, por vezes, nem sequer se conseguirem exprimir, decidiu que havia algo melhor a fazer do que enviar aquele jovem louco para a Bastilha. A sua excepcional bravura era bem conhecida nos corpos do exército. Devia ser empregue ao serviço do Estado.
- Não. Dadas as circunstâncias, esquecer-me-ei do que acabais de... confessar. Eu gostava muito... dessa pequena Sylvie. Ela era fresca, pura e frontal como uma queda de água. Encomendarei algumas missas em seu nome mas, quanto a vós, deveis contentar-vos com a vossa vingança sobre La Ferrière. Não vos entregarei Laffemas!
François deu um pulo:
- Não ireis castigar esse monstro? Não só violou Sylvie, deixando-a num estado deplorável, como também assassinou a baronesa de Valaines, sua mãe, sem contar com as prostitutas que nos últimos tempos foram encontradas degoladas e com as marcas impressas pelo sinete de cera vermelha...
- Eu sei!
- Sabeis? Contudo, conservais na prisão uma pessoa de bem, o padrinho de Sylvie, Perceval de Raguenel, que o vosso Laffemas teve o desplante de acusar dos crimes que ele próprio cometeu.
O punho do Cardeal abateu-se sobre a secretária:
- Basta! Quem vos permite gritar dessa maneira na minha presença? Ficai sabendo o seguinte: o cavaleiro de Raguenel saiu da Bastilha, creio que faz dez dias...
- Como foi possível?
- M. Renaudot, que fora ferido no mesmo caso, recobrou a consciência e contou-me a verdade. Ele tem grande estima e amizade pelo cavaleiro de Raguenel.
- E, contudo, Laffemas...
- Preciso dele! - bramou o Cardeal. - E enquanto os seus préstimos me forem úteis não vo-lo entregarei.
- É verdade que lhe chamam “o carrasco do Cardeal”! - disse Beaufort, com azedume. - Não deve ser fácil substituí-lo!
- Oh, para esse tipo de funções é sempre possível encontrar alguém, mas Laffemas possui outras qualidades. Entre outras, a seguinte: é íntegro!
- Íntegro? - espantou-se Beaufort, que esperava tudo menos aquilo.
- Incorruptível, se preferirdes. Ele pertence-me e ninguém, nem dispondo da maior fortuna, o poderia comprar. Isso talvez se deva ao seu ascendente protestante, mas esses homens são raros. O pai dele foi um bom servidor do Estado e ele próprio presta enormes serviços.
- Então foi por ordem vossa que ele raptou Mlle. de L’Isle? - O punho do Cardeal bateu de novo em cima da mesa:
- Não sejais ridículo! Essa jovem veio aqui pedir justiça para o seu padrinho e eu acolhi-a favoravelmente. Uma vez acabada a visita, confiei-a a um dos meus guardas, para que a escoltasse até ao seu coche e foi por sua própria iniciativa que o tenente civil agiu, ao pedir a M. de Saint-Loup para o substituir nas suas funções.
- Então, afinal ele nem sempre obedece?
- Ele não desobedeceu, visto que eu nem sabia que ele cá se encontrava. Tereis que resignar-vos senhor duque. Enquanto eu for vivo, proíbo-vos de o ameaçardes. Depois, podereis fazer o que bem vos aprouver!
- Então ele vai poder continuar a assassinar pobres raparigas pelas ruas de Paris, nas noites de lua cheia?
Richelieu encolheu os ombros.
- Ele que corra os riscos que quiser. À noite todos os gatos são pardos, mas terei uma conversa com ele. Quero a vossa palavra de gentil-homem em como não empreendereis nada contra a sua pessoa antes de eu vir a falecer. Na realidade, é possível que essas infelizes encontrem um vingador, por entre os homens da noite. Desagradar-me-ia muito, mesmo muito, ter de vos acusar, a vós ou a alguém da vossa linhagem!
- Monsenhor - resmungou Beaufort - fazeis-me lamentar ter vindo pedir-vos justiça. Caso eu o tivesse degolado na sua própria casa, numa noite sombria, nunca teríeis imaginado que fosse eu o culpado.
- Não conteis com isso! Acabo sempre por saber o que quero e caso Laffemas viesse a morrer ainda me sobrava Laubardemont, que é temível. O vosso audacioso golpe em La Ferrière deixou com certeza testemunhas. Ele teria sujeito todos os camponeses a um apertado interrogatório para saber a verdade e ter-vos-ia encontrado sem dificuldade. Nessa altura, conheceríeis todo o peso da minha cólera, mesmo príncipe que sois. Ao contrário do que pensais, atuastes com muito mais sabedoria do que haveis imaginado.
O jovem duque desviou a cabeça para escapar ao terrível olhar que parecia querer sondá-lo até ao fundo da alma. No seu íntimo travava-se uma luta. Jurar que não estrangularia aquele miserável na primeira vez que o visse, era pedir-lhe muito. Como responder às forças violentas que sempre se desencadeavam dentro dele? Saberiam elas ainda esperar... alguns anos? Mas Richelieu lia nele como num livro aberto:
- A minha saúde continua num estado sempre detestável - disse, com um meio sorriso. - Talvez não demore tanto como o receais...
- Eminência, esse pensamento nem me ocorreu.
- Sois um homem de honra. É por isso que quero a vossa palavra!
Beaufort olhou-o diretamente nos olhos:
- Não tenho alternativa. Tendes a minha palavra de gentil-homem e de príncipe francês!
Em seguida, esboçando uma saudação que nada tinha de protocolar, rodopiou nos calcanhares e apressou-se a sair com uma sensação que ainda não conhecia e que era a da derrota. Sentia-se vencido por aquele juramento que lhe tinham arrancado e que nunca teria prestado, caso só ele estivesse em causa. Mas... e os outros, os da sua casa, será que poderia pôr em jogo a sua liberdade ou até as suas vidas? Todavia, o mais duro era talvez aquela sensação velada com que regressava: Richelieu não ficara descontente que lhe tivessem anunciado a morte de Sylvie. Não seria mais incomodado por uma das testemunhas das circunstâncias que envolveram o nascimento do Delfim...
A sua disposição ainda piorou, ao alcançar o grande vestíbulo, quando avistou uma silhueta escura, a última que desejava encontrar. O tenente civil vinha sem dúvida transmitir ao seu senhor as últimas notícias que circulavam em Paris. O sangue do jovem duque ferveu e ele levou automaticamente a mão até à bainha da espada, mas, depois, pensou que acabara de dar a sua palavra. Ainda assim outorgou a si próprio uma pequena satisfação: indo direito ao outro, empurrou-o com tanta brusquidão que este perdeu o equilíbrio e caiu pelas escadas, soltando um grito. François, com a soberba de um príncipe de sangue para quem a canalha não existe, continuou tranquilamente o seu caminho, na direção dos cavalos, sem sequer se dignar a olhar para trás.
- Pois bem, monsenhor, - suspirou Ganseville - já me começava a perguntar se o Homem de Vermelho não vos teria enfiado nalguma masmorra[1] ou enviado para a Bastilha. Esperava ver-vos aparecer desarmado e escoltado por quatro guardas.
- Que terias feito?
- Teria seguido no vosso encalço, é claro, pois o destino também podia ser Vincennes. Depois teria amotinado todo o hotel de Vendôme, bem como todos os vossos amigos, e até uns tantos populares, para que fossem todos montar um cerco ao Rei e teríamos clamado por toda a parte o que se passou em La Ferrière.
Beaufort sabia que ele o teria feito. Aquele normando louro, que entrara ao seu serviço na altura da sua primeira campanha militar e que se lhe assemelhava um pouco pela altura e pela cor dos cabelos, possuía as qualidades das gentes da sua região: obstinação na fidelidade e fidelidade na obstinação, a que se juntava a arte consumada de nem dizer sim, nem dizer não, e uma verdadeira paixão pelos cavalos. De resto, alegre companheiro, apreciando as moças e dotado de um belo apetite, ele dava-se mal com o outro escudeiro de Beaufort, Jacques de Brillet, um bretão calmo e frio, cujos costumes se aparentavam mais com os de um monge. Brillet desconfiava das mulheres, não bebia, só comia aquilo de que precisava, conhecia a Bíblia como um protestante e não perdia uma oportunidade de citar os Evangelhos, o que não o impedia de ter um feitio tão mau quanto o seu companheiro. Na realidade, aqueles dois rapazes, de vinte e três e vinte e quatro anos, só estavam de acordo num ponto: a dedicação total que nutriam pelo duque e que era totalmente desprovida de ciúmes recíprocos.
- Se Richelieu não me enviou para a Bastilha, foi só por um cabelo. Mesmo assim só me deixou sair em liberdade em troca da minha palavra em como não atentaria contra a vida de Laffemas, até que ele próprio deixasse este mundo! Estou um pouco envergonhado comigo próprio...
- Não deveis! Eu teria agido da mesma maneira. Diz-se que a vingança sabe melhor quando é comida fria...
- Brillet responder-te-ia que a vingança pertence ao Senhor.
- Di-lo-ia, é verdade, mas não seria isso o que estaria a pensar! A vossa prisão não teria ajudado ninguém e teria causado dor a muito boa gente.
- Isso não é uma razão que chegue. Não sei se conseguirei evitar cometer perjúrio. Viste há pouco? Só o ar daquele miserável põe-me doido!
- Acalmai-vos, príncipe, e escutai-me um momento, jurastes a Richelieu que não mataríeis o seu tenente civil?
- É o que acabei de te dizer.
- Mas não jurastes a ninguém que não mataríeis Richelieu?
Ganseville proferira a sua pergunta com um tal sorriso que Beaufort não compreendeu imediatamente:
- O que é que acabaste de dizer?
- Ouvistes muito bem. E não fiqueis com esse ar de zangado! Apenas iríeis aumentar o lote daqueles que sonham todas as noites em desembaraçarem o Rei do seu ministro. Perguntai a vosso pai, o duque César!
François explodiu repentinamente numa enorme gargalhada que o libertou da sua angústia. Dando um safanão no ombro do escudeiro, saltou para cima do cavalo:
- Mas que idéia magnífica! Devia ter pensado nisso mais cedo! Ah, já me ia esquecendo, inocentaram o cavaleiro de Raguenel dos crimes de que era acusado. Deve ter regressado a casa.
- Vamos até lá?
O rosto de François ensombrou-se novamente:
- Não!... Não, ainda não. Preciso de pensar durante um bocado... e, depois, tenho de me confessar!
Ganseville esteve para soltar uma piada mas a sua experiência levou-o a aperceber-se de que não era a altura adequada. Era sempre assim quando no rosto do amo transparecia aquela expressão grave, próxima da severidade, em ser tão piedoso quanto Brillet, François nunca transigia com os seus deveres de cristão e a sua fé era profunda, mesmo que na sua vida quotidiana revelasse uma certa tendência para maltratar alguns dos dez mandamentos.
- Nesse caso, vamos primeiro até ao hotel de Vendôme e, depois, até los Capuchinhos?
- Não. Primeiro vamos até Saint-Lazare. Quero falar com o senhor Vincent.
Ganseville, logo inquieto, perguntou:
- É por causa daquilo... que eu acabei de vos propor? A idéia não vem de vós, monsenhor. Não tendes de vos acusar a vós próprio.
François lançou-lhe um olhar cansado.
- De que estás a falar?... Ali da morte do... Ainda não tentei nada nesse sentido e não estou certo de o desejar verdadeiramente. Não, tenho outros pecados. Por exemplo, menti muito nos últimos tempos. E não gosto nada disso...
Comparativamente às suas congêneres, o edifício de Saint-Lazare, situado fora da cidade, no faubourg de Saint-Denis, era indiscutivelmente o mais amplo domínio religioso de Paris. Era também o mais estranho, pelo conjunto formado pelas suas partes, as quais serviam ao mesmo tempo de hospital, de leprosaria (desde a sua fundação), de local de retiro, de seminário e de casa de correção, pois era lá que se fechavam os jovens demasiado turbulentos, de cujo comportamento os pais tinham razões de queixa. Além disso, apenas separada da rua por um diminuto jardim, havia ainda uma residência real onde os reis só passavam duas vezes na vida: a primeira quando da “alegre entrada” na capital, a segunda quando os seus restos mortais eram transportados para Saint-Denis.
Neste vasto domínio reinava um homem quase sexagenário, mas ainda robusto. Num amplo rosto, um pouco alongado pela pêra que Henrique IV colocara na moda, sobressaíam um nariz saliente, olhos pequenos e vivos que brilhavam sob profundas arcadas superciliares, e uma grande boca com um rictus sempre malicioso. Chamava-se Vincent de Paul e quando nascera numa pobre aldeia das Landes era um simples camponês, cuja aparência nunca desejara modificar, à exceção do porte da batina sempre a mesma, e que não melhorava com a passagem dos anos, no entanto ele era a mais linda prenda que o sudoeste dera à França, no tempo do bom rei Henrique: um garbo rústico, mas uma alma radiosa, habitada por um verdadeiro amor por Deus e pelos homens.
O percurso da sua vida também fora surpreendente. O fato de ter feito o sacerdócio muito cedo, o que lhe permitira efetuar os estudos apesar da escassez de meios e de adquirir uma certa cultura à custa de muito trabalho, valera-lhe ser escolhido como preceptor dos filhos de Philibert de Gondi, duque de Retz, general responsável pelas galés, onde desempenhara o ofício de capelão. Aliás, ele protagonizou o caso mais estranho que por ali se vira: um homem que ao ver estrebuchar um forçado sob o chicote do comitre, exigira que este fosse agrilhoado no lugar do outro! Contudo, recusava todas as honrarias e, um belo dia, deixara aquela nobre família, da qual era o confessor, e partira com a sua trouxa para se tornar cura de uma aldeia perdida em Chátillon, na Dombe pantanosa, onde as febres, a miséria e a indiferença dos poderosos reinavam permanentemente. E lá, em seis meses, alterara tudo, obtendo até a amizade dos protestantes. Todavia os Gondi não o esqueciam depois da morte da duquesa, o seu esposo entrou para o Oratório, legando ao senhor Vincent (era assim que o país inteiro o iria adotar, numa espécie de consagração) ouro em quantidade suficiente para que ele fundasse a sua própria congregação dos Padres Missionários. Tratava-se de uma missão que ainda não se encaminhara para terras longínquas, tendo antes optado pelas aldeias e aldeolas a começar pelas que se encontravam nas imediações da capital, frequentemente miseráveis e onde se tratava mais de sobreviver do que viver e das quais Deus parecia arredado. Claro que os homens do senhor Vincent traziam a palavra divina, mas esforçavam-se também por aliviar os sofrimentos mais gritantes e, quando necessário, davam uma ajuda nos trabalhos do campo.
Era a esta personagem que já conhecia desde há muito e que a casa de Vendôme venerava, que François desejava confiar os tormentos do seu espírito e da sua consciência.
Foi encontrá-lo na botica, de mangas arregaçadas nos braços musculosos, ocupado a amassar folhas de couve com argila. Infelizmente, não estava sozinho e o jovem que lhe fazia companhia era mesmo a última das pessoas que François teria desejado encontrar. Aliás, foi este que acolheu o recém-chegado, clamando alto e a bom som
- Ora, ora, vede quem aqui vem, senhor Vincent. O astro das belezas parisienses, que se eclipsou há semanas. Por onde tendes andado, caro duque?
Este começou por saudar o mestre da casa com grande respeito, antes de retorquir:
- Se soubesse que ia encontrar-vos aqui, senhor de ditos espirituosos, teria vindo mais tarde.
Sem interromper o seu trabalho, Vincent de Paul desatou a rir:
- Mas que preâmbulo. Meus filhos, decerto não ireis confundir a casa do bom Deus com a Praça Real. Sede bem-vindo, François. Há muito que não vos via. E vós, rapaz, dai-lhe um lugar.
Possuía uma voz calorosa, um pouco rude mas quão compreensiva e reconfortante, entrecortada por uma alegre pronúncia “gascon” [2].
- O que vale ser-se duque - suspirou o interpelado, mas Beaufort encolheu os ombros, não se deixando iludir minimamente por aquela falsa modéstia. Efetivamente já conhecia Paul-François-Jean de Gondi, sobrinho do arcebispo de Paris e irmão do atual duque de Retz, desde a sua infância, altura em que o encontrara várias vezes em Belle-Isle, onde passavam despreocupados dias de veraneio. E não gostava nada dele. Não que isso se devesse à sua estranha aparência física: pequeno, trigueiro, de nariz arrebitado, sempre mal penteado, de pernas arqueadas e com uma tal falta de tato que esta já se tornara proverbial não por ser incapaz de abotoar sozinho o gibão, mas devido a um espírito sagaz e afiado como uma lâmina, que cintilava em olhos tão sombrios quanto o resto da sua pessoa. Destinado por um pai muito piedoso a entrar ao serviço da Igreja, prosseguia os devidos estudos, acalentando a idéia de nunca chegar a ordenar-se: gostava demasiado do prazer e das mulheres! Conheciam-se-lhe, pelo menos, duas amantes: a princesa de Guéménée, que tinha mais vinte anos do que ele e a bela e jovem duquesa de La Meilleraye, cujo esposo era o Grande Mestre da Artilharia.
Em resumo, era uma personagem completamente fora do comum, tal como o haviam previsto no dia do seu nascimento os aldeões de Montmirail, em Champagne pois, na precisa hora em que sua mãe, a duquesa, entrava em trabalho de parto no castelo, haviam pescado um esturjão no rio peixe raríssimo naquela região. A sabedoria popular concluíra que o recém-nascido seria um fenômeno. Tendo dado, aliás, provas de coragem, e maneando habilidosamente a espada, recebera do senhor Vincent, que era na altura o seu preceptor e o de seus irmãos, os primeiros germes de cultura assim como uma firme educação cristã. Sobrara-lhe pouca fé, mas um grande respeito, um verdadeiro afeto, por um homem que não chegava a compreender verdadeiramente. Quanto a Beaufort, devolvia-lhe de bom grado a sua animosidade e entretinha-se a escarnecer da sua reconfortante falta de cultura e do seu espírito menos arguto que o seu.
Só existia um ponto comum entre o “abade de Gondi” e François: ambos detestavam Richelieu. O primeiro, por orgulho: achava-se de uma estirpe demasiado elevada para se curvar perante um homem que considerava oriundo de uma classe inferior. Se, por um lado, lhe concedia algum mérito, por outro, também dizia que “Richelieu não tinha nenhuma qualidade que não fosse a causa ou a consequência de algum grande defeito”. O segundo, pelas razões que se sabe e, também, pelo amor que tinha pela Rainha, que tanto sofrera com o Cardeal-duque.
Dado que o convidavam a desaparecer sem grandes cerimônias, Gondi foi-se embora para grande alívio de François, que esperou pela sua saída antes de expor os motivos da visita:
- Senhor Vincent, vim cá para vos solicitar a vossa benevolência a fim de ouvirdes a minha confissão.
Sem parar de trabalhar, o velho padre franziu as sobrancelhas:
- Confessar-vos, a mim? Mas, filho, no hotel de Vendôme, não dispondes de Monsenhor, o bispo de Lisieux, Philippe de Cospéan, que vela pelas almas da duquesa vossa mãe e de vossa gentil irmã? Eu sei que ele está lá neste momento...
- É verdade, e trata-se de um santo homem, mas muito distraído e demasiado predisposto à indulgência para com os membros da nossa família. E eu preciso de um outro olhar...
- Ah...
O senhor Vincent interrompeu a sua trituração e quedou-se um instante de mãos no ar, contemplando, com uma espécie de desespero, o monte de folhas de couve que esperavam para ser esmagadas.
- Meu filho, escutar-vos-ia de bom grado, mas confesso-vos ter grande dificuldade em largar isto tudo. O nosso irmão boticário está doente e temos uma necessidade urgente de uma grande quantidade deste unguento milagroso para os reumáticos. E só Deus sabe quanto sofrem com esta Primavera úmida! Bom, vou ter de vos conduzir até à capela...
- Será mesmo preciso? Podeis escutar-me enquanto continuais o vosso trabalho que... que será também meu: deixai-me ajudar-vos!
Sob o olhar divertido do velho homem, Beaufort despiu o gibão, arregaçou as mangas da camisa e vestiu um avental ajustado ao seu tamanho, que encontrou num canto da sala. Em seguida, pegou num grande almofariz, começou a pilar enormes folhas verdes seguindo as indicações do senhor Vincent, a quem esta iniciativa divertia e sensibilizava, sem que isso o impedisse, contudo, de ir escutando, com um ar sério e compenetrado, aquilo que François tinha para lhe dizer.
O jovem não se esqueceu de nada do que, desde há vários meses, lhe pesava na sua consciência de homem cristão. O seu ouvinte depressa percebeu que o que lhe era confiado se tratava, nada mais, nada menos, de um segredo de Estado, no qual se enxertava a aventura terrível de uma jovem dama de honor dilacerada pelo cruel amor de um monstro. Um monstro relativamente ao qual o penitente tivera, no entanto e devido a outra razão de Estado, de jurar que nada lhe faria.
Mesmo assim, prometeu absolvê-lo inteiramente caso ele lhe prometesse não mais se imiscuir na intimidade da Rainha.
- As vias de Deus são impenetráveis, meu filho - murmurou, por fim. - Se Ele permitiu que vos tornásseis o instrumento do Destino, agora deveis esquecê-la...
- Esquecer? Não imaginais como a amo!
- Nem quero sabê-lo! Doravante essa mulher deve ser-vos sagrada devido ao fruto que traz consigo e cujo pai só pode ser o Rei. Haveis-me compreendido bem? A partir deste momento, em relação à Rainha, sereis apenas um súdito muito fiel, um amigo, caso sentirdes coragem para tal, mas, sobretudo, não mais que isso! Jurais?
O poder que exercia aquele pequeno homem rude era de tal ordem que François, completamente fascinado, estendeu a mão para prestar juramento, sem ver que o fazia sobre um almofariz cheio de folhas de couve e não sobre o Evangelho: para ambos, o gesto possuía o mesmo significado.
- Quanto ao resto que me confessastes - acrescentou o senhor Vincent - também vos absolvo pois, na verdade, não era possível agir de outra forma. Ide em paz!
Ao deixar Saint-Lazare, Beaufort sentia-se a um tempo[3] aliviado e infeliz. Acertara ao pensar que o santo homem não iria aceitar que prosseguisse as suas relações amorosas com Ana de Áustria e outra coisa teria sido impossível. Isso, sabia-o mas, a partir do momento em que a interdição divina caía de rompante entre eles, a Rainha ainda se tornava mais querida, mais desejável.
Ao trazer-lhe o cavalo, Ganseville pôs-se a fungar:
- Mas que odor mais estranho, monsenhor... Não me digais que é o cheiro da santidade?
Apesar da sua tristeza, François não conseguiu evitar de rir, o que era, aliás, uma necessidade sua. Dotado de um grande sentido de humor, nos momentos de forte tensão nervosa recorria, de bom grado, ao riso. Era um alívio para ele... Foi assim que, ao saltar para a sela do cavalo, já recuperara uma parte do seu habitual otimismo:
- Estive a esmagar couves com um almofariz - resmungou. - Mas como era na companhia do senhor Vincent, a santidade não devia estar longe. Agora regressemos!
Situando-se o hotel de Vendôme fora das muralhas da cidade, tal como Saint-Lazare, os dois cavaleiros prosseguiram pelo caminho que ladeava as valas, a fim de alcançar o faubourg de Saint-Honoré. Contíguo ao convento das Capuchinhas, que parecia integrar-se nele, tratava-se de uma vasta residência cujos jardins que se estendiam pelo sopé dos moinhos do outeiro de Saint-Roch, tinham amputado uma parte de um mercado de cavalos. Era aí que a duquesa de Vendôme, mãe de François, passava o Inverno com a filha Elisabeth e com o filho mais velho, Louis, duque de Mercosur; os mais belos dias do ano eram reservados para o castelo de Anet ou para o de Chenonceau, residência habitual e forçada do seu marido o duque César de Vendôme, filho bastardo, mas reconhecido, de Henrique IV e de Gabrielle D’Estrées, por ordem do rei Luís XIII, seu meio-irmão, o qual, desde há vários anos, o obrigara a ali permanecer exilado. Era uma residência calma e piedosa onde se ouviam mais os murmúrios das orações que o som dos violinos e, contudo, o filho mais novo gostava de voltar a encontrar aquela decoração principesca e a beleza dos seus jardins, sem contar com o afeto da mãe e da irmã...
Porém, nesse dia, alguém o precedera e foi sem qualquer alegria que, ao penetrar no gabinete da duquesa Françoise, deparou novamente com o abade de Gondi, que se instalara como se estivesse em sua casa.
- Ah! - exclamou este, ao vê-lo. - Bem vos tinha dito que ele não ia demorar a chegar! Ao sair de casa do senhor Vincent não se vai a correr até à casa de uma amante!
- Filho! - exclamou Mme. de Vendôme, num ímpeto de alegria. - Perguntávamo-nos para onde havíeis desaparecido nestes últimos dias e, confesso-vos que, tanto eu como a vossa irmã, nos inquietamos.
- Não era preciso, mãe - respondeu François que abraçava Elisabeth. - Fui a Anet. Lembrai-vos que vos informei do meu desejo de afastar-me de Paris.
- Não sem razão! - disse Gondi, num tom de compaixão que o seu olhar brilhante desmentia. - E, de regresso, essa estadia campestre levou-vos direitinho às santas mãos do senhor Vincent! Que fizestes para terdes de ser perdoado?
- E vós, que fazeis aqui? - retorquiu Beaufort, cujo olhar azul se transformou num cinzento ameaçador.
- Oh, eu vim simplesmente despedir-me, antes de empreender uma longa viagem que decidi fazer a Veneza e a Roma.
- Não vos sabia assim tão amigo de grandes trajetos. Como ireis viver longe da Praça Real e do Arsenal?
- O nosso pobre amigo não tem outra alternativa - suspirou Elisabeth, que tinha um fraquinho por aquela espécie de gnomo com pequena gola. - Desde que disputou a honra de poder pregar na Corte, que o Cardeal quer que ele se afaste. Sua Eminência reserva esse posto para M. de La Motte-Houdancourt, um dos seus amigos...
- Coisa que eu não o sou, Deus me livre! Sempre afirmei que sob aqueles seus ares de grande senhor não passava de um mariola. Assim decidi eu próprio viajar antes que ele se desse ao trabalho de me obrigar a fazê-lo. Daí a minha ida a Veneza, onde tenho alguns amigos, e a Roma, onde visitarei o Papa. Mas antes - acrescentou com um ar mais grave - vou até Belle-Isle para saudar meu irmão.
Para surpresa da irmã que o observava, François ficou muito corado e olhou para o pequeno abade com ar assustado:
- Se a vossa ausência for apenas momentânea, que necessidade há em ir amedrontar vosso irmão e vossa cunhada com rumores de exílio?
- Não têm um coração assim tão frouxo! Além disso, na nossa família é de regra que estejamos constantemente informados acerca das nossas grandes viagens... Aparentemente não seguis os mesmos princípios, visto que vossa mãe e vossa irmã ignoravam onde estáveis...?
O jovem duque encolheu os ombros com desagrado:
- Será mesmo necessário enviar cartas de tipo convite para informar que nos deslocamos até umas vinte e cinco léguas e ainda por cima para um domínio da própria família? Ide a Belle-Isle se isso vos aprouver! Quando partis?
- Daqui a três ou quatro dias, o tempo para saudar o meu tio, o arcebispo de Paris e... algumas amigas. Mas dir-se-ia que a minha visita ao meu irmão vos incomoda?
- De modo algum! Bem podeis dar a volta à Bretanha para ir a Veneza, se isso vos der na real gana!
- E se falássemos de outra coisa? - propôs Elisabeth, com o seu pequeno ar angélico. - E, sobretudo, falemos de coisas sérias: meu irmão, saibeis que nos atormentamos quanto ao paradeiro da nossa Sylvie? Já lá vão três semanas que desapareceu e todos nós, inclusive a Rainha, ignoramos o que lhe aconteceu. Não soubestes nada sobre ela desde essa altura? O que soubemos é, sobretudo, inquietante. Jeannette, a sua criada de quarto, que a esperava no castelo de Rueil, no coche do cavaleiro de Raguenel, viu-a subir, ou antes, ser raptada, para a carruagem do tenente civil. Corentin, o criado de M. de Raguenel, roubou o cavalo de um dos guardas e foi no seu encalço. Desde então não voltamos a vê-lo!
- Mas que imprudência em entregar-se assim às goelas do Papão - exclamou Gondi. - Nunca é bom imiscuir-se nos seus assuntos e receio bem que não volteis a vê-la... nem a ela nem ao criado!
- Pensais que a terão encarcerado na Bastilha ou noutra prisão qualquer? - gemeu a duquesa. - Mlle. de L’Isle nem sequer tem dezesseis anos e Sua Eminência convidava-a, por vezes, para ir cantar a sua casa. Além disso, ela ia defender o seu tutor, acusado de crimes tão horríveis que era impossível acreditar que pudesse ser ele o culpado! Aliás, devolveram-lhe a liberdade alguns dias após o desaparecimento de Sylvie. O infeliz está meio morto de inquietação...
Uma pesada atmosfera de angústia espalhou-se repentinamente por aquele salão tão calmo. Sensível, como todas as naturezas nervosas, o abade sentou-se afetado e como se considerava suficientemente ocupado pelos seus próprios problemas, despediu-se com graciosidade mas, também, com certa pressa. O que regozijou François. No entanto, a duquesa mudara o seu ar aprazível para uma feição mais sombria.
- Estamos verdadeiramente inquietas quanto a Sylvie - disse, ao pegar na mão que a filha lhe estendia. - Monsenhor de Cospéan obteve, nestes últimos dias, uma audiência com o padre Joseph du Tremblay, que se encontra muito doente, mas que se dispôs ainda assim a questionar o irmão, que é o governador da Bastilha. O nosso amigo obteve todas as garantias possíveis, a pobre pequena não está nem na Bastilha, nem em Vincennes.
- O que não é de molde a acalmar os nossos temores - suspirou Elisabeth. - Pois, nesse caso, onde poderá ela estar? Claro que pensamos nos subterrâneos do castelo de Rueil, podendo dar-se o caso do rapto ter sido apenas uma manobra de diversão. Mas o nosso irmão mais velho pensa que, nesse caso, teríamos visto Corentin regressar.
- E também estamos desoladas por a Rainha, a quem nos dirigimos, não se ter mostrado mais preocupada quanto ao que possa ter acontecido à sua dama de honor. Só pensa na sua gravidez e não quer ouvir nenhuma notícia susceptível de afligi-la.
François sorriu. De tudo o que acabara de ouvir, só retivera uma informação: a Eminência Parda, o mais secreto e firme conselheiro de Richelieu, estava prestes a terminar os seus dias de vida, o que não era uma má notícia: tudo o que pudesse enfraquecer o seu inimigo, deleitava-o. Mas como o seu ar encantado parecia chocar as “suas mulheres”, apressou-se a dissimulá-lo e perguntou:
- Onde está Jeannette? Queria falar-lhe...
- Não está cá - respondeu a mãe. - Logo que Perceval de Raguenel regressou a casa, foi-se logo embora. Quis fazer-lhe companhia nesta prova tão dura de suportar. Faz pena ver o infeliz...
François não teve tempo para comentar estas últimas palavras, o mordomo entrava, anunciando um correio do Rei, o que arrefeceu a atmosfera, como se a severa silhueta de Luís XIII viesse intrometer-se no meio do círculo familiar, o correio, um oficial da cavalaria ligeira, trazia um envelope selado com um sinete de cera vermelha.
- Da parte do Rei, para o duque de Beaufort - disse, inclinando-se, depois de ter tocado no tapete com as penas vermelhas do chapéu, numa saudação destinada à duquesa e à sua filha. Em seguida, depois de ter entregue a mensagem, foi-se embora, deixando as duas mulheres a morrer de curiosidade. Com um dedo nervoso, François partiu a fina placa com as armas de França e abriu a mensagem mas, à medida que a ia lendo, o seu rosto ensombrava-se;
- Mãe, o Rei envia-me para Flandres, para ir ter com o marechal-duque de Châtillon... Devo partir logo que as minhas bagagens estejam prontas.
- Ides combater, meu filho? Mas eu pensava...
- Que o Rei iria continuar a menosprezar o sangue dos Vendôme, mesmo que este fosse colocado ao serviço das suas armas? Aparentemente o Cardeal não pensa assim...
- Mas, e o vosso irmão?
- Não está aqui nada que o mencione. Pode permanecer tranquilamente em Paris. O que, aliás, não invejo, e não vos escondo que noutros tempos teria ficado muito feliz em ir respirar o cheiro da pólvora, só que teria preferido que fosse mais tarde. É por isso que sinto a mão do Cardeal por detrás disto tudo. Ele não gosta de mim e se um mosquete espanhol pudesse acabar comigo, ficaria decididamente satisfeito...
- Não digas essas coisas! - exclamou Elisabeth. - Tu não vais...
- Deixar-me matar? Não tenho a menor intenção de dar esse prazer a Sua Eminência... Bom, por ora, se não vos fizer diferença, gostaria, querida mãe, que preparásseis as minhas coisas; ficar-vos-ia reconhecido. Pedi ajuda a Brillet! Eu tenho de sair e levo Ganseville comigo.
- Ides sair a horas tão tardias? Mas...
- Não vos alarmeis! Trata-se de uma simples visita e não demoro nada. - Assim que se afastou, Elisabeth aproximou-se da mãe, cujo rosto acabara de empalidecer e que murmurava:
- Mas onde é que ele irá? Espero que não vá arranjar mais problema.
A jovem pegou-lhe na mão e encostou-a à sua cara fresca...
- Dir-se-ia que não o conheceis, mãe... Como pode ele deixar Paris sem primeiro se despedir de alguma bela dama? Continua a falar-se de Mme. Montbazon, mas não creio que haja algo entre eles. Talvez se trate de Mlle de Janzé?
François não ia a casa nem de uma nem de outra. Amava demasiado a Rainha, para desejar outra mulher. Nesse preciso momento, acompanhado por Ganseville, seguia apressadamente pela rue Saint-Honoré, pela rue de li Ferronnerie e pela sua continuação, a rue dos Lombards, alcançando, por fim a rue Saint-Antoine, próximo da Bastilha, atravessando desse modo a cidade em todo o seu comprimento e escapando assim à rue Saint-Thomas du Lou onde ficava o hotel de Montbazon. Mas muito antes de alcançar a velha fortaleza, virou à esquerda por uma rua muito estreita, saltou para o chão frente a uma pequena residência de belo aspecto e foi tocar, ele próprio, o sino do pórtico:
- Ide transmitir ao senhor cavaleiro de Raguenel que o duque de Beaufort deseja vê-lo agora mesmo! Mesmo que ele ache que a hora é tardia! O que tenho para lhe dizer não pode esperar - declarou a um porteiro assustado, que desandou como um coelho perseguido, deixando os dois cavaleiros penetrarem no pátio.
- Julgava - observou o escudeiro -que desejáveis esperar um pouco antes de o verdes?
- Não posso esperar mais. Parto para Flandres amanhã de manhã...
- Partimos para Flandres - corrigiu Ganseville. - Eis uma boa notícia!
- Não. Referi-me a mim. Tu, virás ter comigo mais tarde. Tenho uma missão para ti...
- E onde tenho de ir? - perguntou Pierre, desiludido.
- Para o local de onde viemos... mas não irás sozinho, escoltarás uma jovem que já conheces e de quem tomarás conta com todo o cuidado. Teria desejado ser eu próprio a fazê-lo, mas o Rei e o seu ministro decidiram de outro modo.
- Enviais-me de volta à Bretanha?
- Exatamente. E é Jeannette que terás de levar. Julgava que ela estivesse com a minha mãe mas, ao que parece, veio ter com M. de Raguenel logo que este foi liberto...
Calou-se. Perceval vinha a caminho e François ficou espantado pela mudança que nele ocorrera em tão pouco tempo, é certo que o seu aspecto, de que sempre cuidara conservando uma certa simplicidade, continuava o mesmo mas, sob os espessos cabelos louros que a recente quarentena já acinzentara nas têmporas, o rosto perdera a sua expressão descontraída e os olhos o seu fulgor habitual. Na realidade a tristeza imprimira-se-lhe em cada traço e François lastimou que, desde que regressara a Paris, ainda não tivesse vindo visitar este antigo escudeiro de sua mãe, aquele amigo de infância... Nessa noite os seus olhos cinzentos estavam esbugalhados e interrogavam tanto quanto a voz:
- Vós por aqui, monsenhor?...Vindes dar-me a notícia que mais temo?
Beaufort pegou-lhe nas mãos, que pôs dentro das suas, sentindo-as tremer, elas que, habitualmente, eram tão firmes:
- Entremos! - disse com muita gentileza. - O que tenho a dizer-vos não pode ser ouvido pelo vento da noite.
O PORTO DO BOM SOCORRO
Às cinco da manhã do dia seguinte, um domingo, um par de jovens burgueses, de aparência modesta, instalava-se no coche para Rennes, que levaria uma semana para chegar ao seu destino. Na figura do esposo, envergando um sólido fato pardo escuro com a gola de pano holandês branco descaída, calçando pesados sapatos afivelados e com a cabeça coberta por um chapéu preto com o alto encurvado, ninguém teria reconhecido Pierre de Ganseville, o elegante escudeiro do duque de Beaufort. O próprio, não estava, aliás, lá muito à vontade na sua indumentária: sentia a falta da espada, mas fora preciso colocá-la no cofre que fazia parte das suas bagagens.
Esse detalhe não preocupava a sua companheira: não havia qualquer diferença entre o vestido de uma burguesa e aquele que era utilizado por uma criada de quarto ligada à Corte. O que agora trazia, de cor cinzenta e com o colarinho e as mangas enfeitadas com renda, com a coifa bem engomada, era aquilo que costumava usar, e ela completara o conjunto com uma ampla capa encapuçada que a cobria completamente. Jeannette sentia-se um pouco menos triste, o tempo estava ótimo e a viagem agradava-lhe se bem que não soubesse qual o seu destino tanto mais que não teriam de suportar muito tempo os solavancos naquela caranguejola, pouco confortável e malcheirosa: deixá-la-iam em Vitré, sob qualquer pretexto, bem como o disfarce de Ganseville, trocando-a por cavalos dos correios que, passando por Chateaubriant, os levariam até Piriac, onde deveriam embarcar. O importante era deixar Paris iludindo a vigilância que Beaufort esperava da parte do tenente civil. Àquela hora Laffemas já não devia ignorar o que se passara em La Ferrière e Raguenel dissera-lhe supor que, desde que ele se reapossara dela, havia pessoas de aspecto suspeito que se interessavam pela casa. Foi assim que na véspera da partida, François reconduzira Jeannette até ao hotel de Vendôme, e era o seu pouso natural, dado que era aí que vivia desde que Sylvie fora para lá morar.
Ganseville sentia-se melancólico ao pensar no seu amo: enquanto era sacudido pelos solavancos, ao percorrer as más estradas e os enormes pedregulhos, Beaufort, escoltado por Brillet e por dois criados, galopava pela estrada da Flandres, tendo como perspectiva a febre dos combates, o troar dos canhões, o crepitar dos mosquetes, o rufar dos tambores, talvez a glória... em suma, a vida! O seu único consolo era que aquela escolta sem qualquer brio representava uma missão de extrema confiança relacionada com o tal segredo que ele tinha a honra de partilhar com o amo, de quem tanto gostava.
Tudo correu pelo melhor, em companhias que não solicitavam a conversa, um padre que rezava sem parar e uma viúva que chorava durante todo o dia, um casal idoso que, quando não sussurrava entre si com cacarejos de prazer, dormia afincadamente. Mesmo assim, ao chegar a Vitré, Ganseville sentia as pernas dormentes. Jeannette morria de impaciência mas, na velha cidade pousada no seu soberbo quadro feudal, bastou-lhes uma breve passagem pelo hotel de Plessis, cujos donos eram amigos antigos dos Vendôme, para que Pierre reencontrasse a sua disposição habitual. Foi a vez de Jeannette perder o seu porte usual: transformada num belo cavaleiro a sua jovem ama pedira que a ensinassem a cavalgar para que ela a pudesse seguir nas suas galopadas através dos bosques, em Anet ou em Chenonceau, pulou para a sela com uma segurança que agradou ao seu companheiro, ligeiramente inquieto pelo ritmo que a presença de uma mulher começaria por lhe impor.
- Ides por fim dizer-me para onde vamos? - perguntou a jovem, quando chegaram ao fim da primeira etapa, em Bain. - Não abristes a boca durante toda a viagem. Que lindo marido parecestes aos olhos daqueles que nos acompanhavam!
- Desejaríeis que vos tivesse cortejado? - inquiriu Ganseville, rindo-se.
- Oh, não! Não o leveis a mal, mas já estou comprometida com um moço cujo paradeiro atual ignoro - acrescentou, tristemente. - Desapareceu com a nossa linda menina e nem sequer se sabe se ainda são deste mundo...
- Eu sou como S. Tomás: enquanto não vir não acredito! Quanto ao nosso destino, trata-se de um pequeno porto de pesca que se chama Piriac.
- E que vamos lá fazer?
- Embarcar para Belle-Isle. Espero que não enjoeis... Detesto as pessoas que vomitam.
- E que faremos em Belle-Isle?
- Saudaremos o senhor duque e a senhora duquesa de Retz. Agora basta de perguntas. Já sabeis que chegue.
- Não fiquei mais esclarecida e gostaria de perceber todos estes mistérios...
- Cara menina, haveis cometido um grande disparate ao instalar-vos em casa de M. de Raguenel, em vez de regressardes ajuizadamente a vossa própria casa. Deveríeis ter esperteza suficiente para adivinhar que a casa dele estaria vigiada. Ora a minha missão era fazer-vos deixar Paris sem levantar as suspeitas dos espiões do tenente civil. Isso já está feito...
- Nesse caso, por que não me contais o resto? Já estamos bem longe de Paris...
- Porque o governo da Bretanha foi retirado ao duque César por ordem do cardeal de Richelieu, e porque, lá onde se instalou o novo governador, é sempre de temer que exista um espião atrás de cada moita.
- E em Belle-Isle, não há espiões?
- Não. Encontra-se suficientemente afastada da costa e pertence a Pierre de Gondi em pessoa, o duque de Retz. E agora, toca a andar! Não responderei a mais nenhuma pergunta antes de lá chegarmos. E mesmo assim!...
Desta vez Jeannette não teve dúvidas. Aliás, a diferença social que existia entre ela, uma simples criada de quarto e um gentil-homem, impunha-lhe limites que conhecia sobejamente. Além disso, o novo andamento da viagem não permitia minimamente qualquer conversa, pois só deviam parar antes de chegar ao mar para mudar de cavalos e para se alimentarem. Depois de Bain, passando por Redon e La Roche-Bernard, alcançaram o estuário do Vilaine, galopando a direito até Piriac, um pequeno porto de pesca onde a rapariga chegou arrasada, uma coisa era ter de seguir Sylvie nos seus aprazíveis passeios campestres, outra era saltar de cavalo em cavalo sem parar, fosse de dia ou de noite.
- Nunca mais poderei sentar-me! - gemia a jovem, quando Ganseville, finalmente com pena dela, a ajudou a descer do cavalo. - Se calhar nem sequer poderei andar!
- Devia ter-vos aconselhado a utilizar emplastros de sebo - suspirou este último - mas isso ter-nos-ia atrasado. Percebo que vos sintais dessa maneira, que teríeis preferido viajar num coche, mas as estradas da Bretanha estão em mau estado e com um cavalo temos a certeza de passar por todo o lado e depressa!
- Então estamos com pressa?
- Estamos, e esta cavalgada faz-nos ganhar três dias de avanço. Ora é imperioso que cheguemos a Belle-Isle antes de outra pessoa! Vamos, coragem! Prometo-vos uma surpresa à chegada...
Deixando-a sentada num rochedo, Ganseville foi à procura de um barco, após o que, enquanto esperavam pela maré apropriada, trataram de recobrar forças graças a uma deliciosa sopa de peixe e a bolachas de milho de sarra adoçadas com mel, tudo regado com uma sidra ligeiramente ácida. Ao cair da noite embarcaram ambos num barco de pesca que se intitula Ainte-Anne-duray. Jeannette, coberta por uma manta, que tresandava a peixe de forma a proteger-se dos salpicos das ondas, instalou o seu posterior dolorido em cima de outra manta que lhe tinham dobrado no fundo da embarcação e, se bem que não fosse propriamente o cúmulo do conforto, ela adormeceu logo. Afortunadamente, o mar estava relativamente calmo e o seu extremo cansaço evitou-lhe os efeitos do balanceamento. Dessa forma não viu nada das quatro léguas que separavam Belle-Isle da terra firme, como não viu nada da pesca a que os homens se iam dedicando pelo caminho.
Quando voltou a abrir os olhos, depois de a terem sacudido sem qualquer amenidade, o barco transpunha a garganta de um porto que, sob as cores rosadas da aurora, lhe pareceu o mais lindo do mundo. Situado à saída de um desses riachos por onde subia a maré, entrava por uma colina adentro, na qual se encontravam plantadas árvores retorcidas pelas tempestades e um promontório rochoso, no cimo do qual se erguia uma cidadela com torres baixas e redondas e em cujas aberturas surgiam os focinhos negros dos canhões. O burgo parecia deslizar por detrás dessas muralhas que o defendiam, enquanto que no fundo do porto uma ponte romana ligava as duas margens e servia uma ampla mansão senhorial, cujos jardins partiam ao assalto de uma segunda colina, mais elevada que a primeira. Era uma casa branca, grande e bela, cujas janelas altas refletiam as cores quentes do nascer do Sol.
- Chegamos a Belle-Isle - comentou Ganseville - e esta aldeia, que é a principal, chama-se Lê Palais[4]. Não é difícil perceber porquê...
- E é para ali que vamos?
- É! Lá encontrareis pessoas que amais e cuja falta sentis...
O escudeiro teve subitamente a impressão que toda a luz daquele dia se refugiara nos olhos azuis da jovem.
- Sylvie? Oh, quero dizer Mlle. de L’Isle...
- Calada! Nada de nomes!
Ela desejou desatar a correr pelo caminho transitável que levava até às barreiras formadas pelas altas tamargueiras, que protegiam os jardins dos estragos que o vento podia provocar, mas ele reteve-a com mão firme:
- Quedai-vos tranquila! Não ides irromper por aquela casa dentro chamando Mlle. Sylvie como uma louca. Deveis pensar que se a trouxeram para aqui foi por alguma razão grave. É aqui que ela está escondida desde que escapou a uma sina terrível, cuja ameaça ainda não se desfez. Foi por isso que o senhor duque decidiu, de acordo com M. de Gondi, que ela seria dada como morta até que o perigo desaparecesse.
- Meu Deus, mas que aconteceu? - gemeu Jeannette, já prestes a soluçar.
- Havereis de sabê-lo, mas por ora andemos! Não vamos ficar aqui plantados no meio do caminho durante horas a fio! Aliás já vêm aí ao nosso encontro.
Dois criados de libré vermelho aproximavam-se para tomar conhecimento de quem eram os visitantes. Ganseville extraiu uma carta do seu gibão:
- Da parte de monsenhor[5], duque de Beaufort, para o senhor duque de Retz, com os seus cumprimentos!
Os criados fizeram as saudações da praxe; um deles pegou na carta, enquanto o outro se encarregava do saco de viagem de Jeannette.
- Se quiserem ter a amabilidade de me seguir - pediu o primeiro. Em seguida, os dois viajantes foram entregues a um mordomo que os fez esperar num grande vestíbulo com lajes pretas e brancas, informando-os que o casal ducal estava naquele momento ocupado a assistir a uma missa matinal na capela do palácio e que estava fora de questão ir estorvá-los.
Esperaram, portanto, num silêncio quase monástico, que nenhum deles ousava quebrar, mas Jeannette sentia que a impaciência a devorava, onde é que poderia estar Sylvie naquela casa enorme? Quanto a Ganseville, habituado que estava a ver todas as portas abrirem-se perante o seu amo, não ficara nada satisfeito ao ver que ele, o seu mensageiro, tinha de esperar como um vulgar pedinte. Finalmente abriu-se uma porta, aparecendo o duque em pessoa, seguido pelo seu mordomo. Foi a este que se dirigiu em primeiro lugar:
- Levai esta jovem até ao pé da senhora duquesa, que a espera em sua casa. - Depois, voltando-se para Ganseville, disse: - Contente em voltar a ver-vos, rapaz! Espero que tenhais feito boa viagem e que tragais novidades. Vinde por aqui. Estaremos mais à vontade para falar no meu gabinete.
Com trinta e seis anos, Pierre de Gondi, segundo duque de Retz, parecia ter mais dez: no seu longo rosto bronzeado pelo clima vincavam-se os traços de tédio devido ao fato de ter sido obrigado a reformar-se três anos antes, o que suportava muito mal. Efetivamente, nomeado general das galés do Rei, para substituir o pai que entrara para o serviço religioso após o falecimento da mãe tudo isto em 1627. Richelieu retirara-lhe um comando que ele tanto estimava, em benefício do seu próprio sobrinho, o marquês de Pontcourlay. A partir de então fechara-se no seu castelo em Belle-Isle, para remoer os seus rancores; inútil precisar que não morria de amores pelo Cardeal-ministro.
Enquanto era informado por Ganseville sobre as últimas notícias provenientes da capital, uma jovem camareira bretã, envergando um traje tradicional, levava Jeannette até ao quarto da duquesa, ocupada a abastecer-se depois da comunhão. Dez anos mais nova que o marido, do qual era aliás uma prima próxima, filha do anterior duque de Retz o título transitara do ramo mais velho da família ao mais novo e irmã da duquesa de Brissac, Catherine de Gondi teria podido aspirar à beleza caso a austeridade dos seus costumes e uma certa dose de avareza não tivessem marcado os seus traços, de resto, finos e delicados. Recebeu Jeannette como se fosse uma servente, quer dizer, deixando-a de pé enquanto ela própria continuava a molhar pão sem manteiga no leite, sem deixar todavia de examiná-la. Não esperando outra coisa, a jovem não se perturbou, mas não conseguiu deixar de pensar que também a ela lhe teria dado prazer beber uma caneca de leite. Finalmente, depois de ter limpo cuidadosamente a boca a um guardanapo bordado, a duquesa disse:
- Sois a acompanhante daquela pequena que nos foi confiada por M. de Beaufort? De onde vindes, minha filha?
- De Anet, senhora duquesa, onde nasci e onde entrei muito nova ao serviço de Mlle. de L’Isle. Em seguida acompanhei-a até à Corte quando ela se tornou dama de honor de Sua Majestade, a Rainha...
- Isso nota-se! Não evidenciais hábitos campestres. Pois bem, minha filha, ficai sabendo que a vossa senhora está num estado lastimável. Ao que se diz, foi raptada por um sequaz de Richelieu que perseguira outrora a mãe dela com um amor odioso e por ele entregue e casada à força a um outro sequaz do Cardeal que, ao que consta, teria seguidamente cedido os seus direitos de esposo ao primeiro, que terá abusado deles de um modo absolutamente deplorável...
Proferido num tom de indiferença, este relatório sucinto horrorizou Jeannette:
- Oh, meu Deus! E eu que de nada sabia! Pobre... pobre rapariga!... Mas por que motivo M. François... quero dizer, Monsenhor o duque de Beaufort, a trouxe para aqui?
- Porque se o duque fez tábua rasa do marido, resta-lhe ainda abater o carrasco principal, o que não é tarefa fácil. A infeliz precisava de um asilo distante, secreto e, sobretudo, fora do alcance dos homens do Cardeal. Belle-Isle pertence-nos. É uma terra soberana e os próprios homens do Rei só têm acesso a ela quando bem o permitimos!
Se agora Jeannette compreendia melhor as coisas, nem por isso deixava de lamentar no seu íntimo que a pobre Sylvie tivesse sido confiada à guarda daquela mulher, que talvez fosse uma grande cristã, pois fora instruída, tal como seu esposo, pelo senhor Vincent, mas que não parecia ter aprendido lá grande coisa em matéria de caridade.
- Ela tem de ser dada como morta... pelo menos enquanto o Cardeal viver - concluiu Mme. de Gondi - e esta ilha no fim do mundo deve ter parecido a M. de Beaufort o local ideal para levar a cabo esse projeto.
- Posso pedir à senhora duquesa que tenha a amabilidade de me levar até junto dela? Tenho pressa de começar a dispensar-lhe os meus cuidados e em julgar, por mim própria, em que estado se encontra.
- O seu estado é que não é nada brilhante. Naik vai levar-vos para junto dela. Independentemente do que pensa M. de Beaufort, recebemos frequentemente visitas. Demasiadas para o meu gosto e, como ela viveu na Corte, é possível que um dos visitantes a reconheça. Por isso instalamo-la no pequeno pavilhão situado no fundo do jardim. É lá que ela vive, à guarda da velha Maryvonne, que esteve ao serviço da minha falecida sogra, Mme. de Gondi, e desse rapaz, um tal Corentin, que creio ter estado ao serviço do seu... tio?
O coração de Jeannette deu um pulo. Corentin! Corentin também ali estava! O seu Corentin, pois ele sempre fora o seu prometido! E esse sopro de alegria remediou um pouco a tristeza que lhe provocara a exposição dos fatos feita pela duquesa naquele seu modo tão seco, tão desprovido de compaixão.
Momentos depois caminhava atrás de uma jovem bretã, através de um espesso bosquezinho de figueiras, palmeiras e loureiros, que revestia os confins do parque. Subitamente surgiram uma pequena casa e um poço, numa espécie de clareira, mas tudo o que Jeannette viu foi o seu Corentin ocupado em extrair água. Incapaz de se conter mais tempo, deixou cair a bagagem e correu para ele com um grito de alegria.
- Meu Corentin! Estava tão convencida que não voltaria a encontrar-te! - exclamou, chorando de felicidade. Ele olhou-a como se ela tivesse caído do céu:
- Jeannette?... Mas, como vieste parar aqui?
- Foi M. de Ganseville quem me trouxe, por ordem de Monsenhor François.
Afastando a jovem, Corentin passou as mãos pelo rosto no qual Jeannete destrinçou, então, as marcas de cansaço. Ele suspirou:
- Jesus! Finalmente haveis ouvido as minhas preces! Nunca poderei agradecer-vos quanto baste! Talvez ainda estejamos a tempo...
- Mas que se passa? - perguntou Jeannette, da qual a angústia se reapoderara. Mlle. Sylvie...?
Vem ver!
Ela viu, efetivamente, e o seu coração contraiu-se. Pálida e emagrecida, com o aspecto de não ter mais que um sopro de vida, Sylvie, envergando um triste vestido preto, debaixo do qual se vislumbrava um pouco da roupa interior, encontrava-se estendida numa poltrona, ao pé de uma pequena lareira. O monte dos seus cabelos castanhos com tão lindos reflexos dourados, que ninguém pensava em compor, espalhava-se, em desordem, pelos ombros. Segurava nas mãos uma caneca de leite que não bebia, o que não parecia preocupar minimamente a velha camponesa sentada e tricotando afincadamente. A mobília, constituída por um guarda-louça, quatro cadeiras e um pequeno armário, estava reduzida ao essencial. Não se descortinava a mínima tapeçaria, nem o menor tapete que pudessem aquecer as paredes e o soalho, mas um crucifixo pendurado na parede e um pequeno banco disposto à sua frente, lembravam que se estava num dos domínios mais piedosos de França. Detectava-se um ar de abandono, quase de miséria, o que trouxe lágrimas aos olhos da recém-chegada. Um impulso levou-a a ajoelhar-se ao pé da sua jovem senhora, que parecia não ter dado pela sua presença, continuando de olhos fechados. Ela afastou a caneca menosprezada, para pegar naquelas mãozinhas frágeis entre as suas.
- Menina Sylvie!... Olhai para mim! É a Jeannette, a vossa Jeannette!
Os lindos olhos cor de avelã, avermelhados por demasiadas lágrimas, entreabriram-se e Sylvie murmurou:
- És tu, minha Jeannette? Julgava que ainda estava a sonhar ao ouvir a tua voz...
A sua era fraca, hesitante, como se aquela rapariga de dezesseis anos não lhe pudesse transmitir nenhum alcance. Entretanto Jeannette erguia-se e, de punhos nas ancas, examinava o interior miserável, possuída por uma cólera crescente:
- Na verdade, julgo que já estava bem na altura de me trazerem para aqui. Que mosca picou Monsenhor François para ter a idéia de vos confiar a esta gente?... Eh, vós aí, ó senhora das malhas! - acrescentou, interpelando a velha camponesa que continuava a sua obra. - É assim que tomais conta dela? Não sois capaz de ver que ela está doente? Não vedes que se trata de uma verdadeira dama, nada habituada a estas coisas?...
- Não te canses - disse Corentin. - Ela não te percebe e só fala bretão. Mme. de Gondi pensa que é melhor para a segurança de Mlle. Sylvie, que passa por ser uma grande doente. Felizmente que eu sei falá-lo...
- Que passa por uma doente? Mas ela está doente! Bem o vês. E por que esperais todos, tu e a tua Mme. de Gondi? Que ela morra?
- Vou explicar-te, Jeannette, mas primeiro diz-me quem te trouxe aqui. Foi...
Ela adivinhou o nome em que ele pensava:
- Não, não foi Monsenhor François. Por ora, ele está a caminho, a fim de se juntar aos exércitos. Foi M. de Ganseville quem me trouxe. Neste momento, está a falar com M. de Gondi, mas tu vais dizer-me porque deixam a minha pequena senhora neste estado, com um velho vestido coçado, despenteada... suja e, que diacho, tendo por única companhia uma velha desmazelada! Se M. de Raguenel visse isto, passavas um mau quarto de hora.
- Não me permitem fazer melhor, minha pobre Jeannette. Aqui estamos num território de mulheres da incumbência exclusiva de Mme. de Gondi. Logo após a partida de monsenhor François, ela instalou-nos aqui, onde se desloca de vez em quando, sempre a sós, por temer as coscuvilhices das suas servas. Ninguém pode ficar a saber que ela está aqui escondida e sou eu quem lhe vai buscar a comida. Proibiu-a de sair, para evitar as curiosidades.
Nisto, Jeannette explodiu.
- E a comida em questão, dão-te em quantidade suficiente? Também não tens um ar saudável. Virgem Santa! Porquê tê-la trazido para esta ilha? Como se não houvesse boas pessoas, em Vendôme ou em Anet, que a teriam tratado bem! Terá Monsenhor François enlouquecido?
- Não, mas desde a infância que gosta de Belle-Isle, que é para ele uma espécie de paraíso. Além disso, não conhece verdadeiramente os Gondi. Oh, o duque é boa pessoa e estou certo de que não está ao corrente do que se passa...
- E não lhe podias ter dito?
- Não, é a duquesa quem trata de todos os assuntos e, quanto a esta história, o marido ainda mais lhe confia tudo. Juro-te que fiz o que pude, Jeannette e, há três dias, até escrevi a Monsenhor François pedindo-lhe que encontrasse outro refúgio. Ele está longe de imaginar até que ponto a duquesa é uma mulher severa, de religião austera... Ela não gostou lá muito que nos trouxessem... Vem por aqui - acrescentou, empurrando Jeannette para o exterior, antes de prosseguir. - Tenho a impressão que ela julga que Mlle. Sylvie é uma “amiguinha” de François e, ainda por cima, suspeito que ela está um pouco apaixonada por ele. Então, imagina!... Ela acha que é cômodo sequestrá-la, sob o pretexto de que o duque recebe muitas visitas e que algumas delas poderiam reconhecê-la. E... ainda não é tudo...
- Pois aquilo que me acabaste de contar ainda não chega?
- Não. O pior é a nossa própria doente. Penso... penso que ela não tem mais vontade de viver. Apesar das minhas reprimendas, ela mal se alimenta. Receio que se deixe morrer...
Jeannette empalidecera, mas já entrava resolutamente na casa, à qual decidiu fazer uma vistoria rigorosa, começando logo por abrir uma porta que dava para um quarto estreito, com as janelas tapadas e contendo apenas uma cama em madeira, enquanto proferia exclamações furibundas que arrancaram Sylvie do seu torpor:
- Por favor, acalma-te!... Sinto-me tão fraca...
- Como poderia ser de outra maneira, numa casa onde o Sol não tem o direito de entrar e vós, o de sair? O que me espanta é não estardes ainda morta com este bárbaro regime. Mas juro-vos que isto tudo vai mudar! Ela não me mete medo, a vossa duquesa!
- Calma! - pediu a voz jovial de Ganseville, que acabam de entrar e passava pelo soalho as penas cinzentas do seu chapéu, para saudar Sylvie. - Monsenhor envia-vos um beija-mão, menina, e lamenta não poder vir em pessoa como o teria desejado, mas ele é um soldado e um soldado deve obedecer. Foi por isso que nos enviou, tal como Jeannette já vos deve ter dito. Na realidade vamos mudar-vos de residência, porque neste local não estais mais em segurança. O abade de Gondi, cuja língua desabrida e cujas idéias loucas conheceis, deve chegar num destes dias. Dessa forma, tenho ordem para vos adquirir uma pequena propriedade afastada, onde podereis viver de modo independente com o vosso pessoal.
Depois, rodando nos calcanhares para examinar as imediações, acrescentou:
- Aliás, penso que é muito urgente... Quando Monsenhor François souber! Esta gente trata-vos de modo indigno! Isto espanta-me da parte do duque...
- Então levai-nos daqui para fora e bem depressa! - exclamou Jeannette. - Não vejo porque deveríamos comprar qualquer coisa nesta ilha inospitaleira. Há cantos tranquilos em profusão para os lados de Vendôme...
- Não pode ser. Mlle. Sylvie tem de ser dada como morta e, se houver dúvidas, é para lá que se orientarão as buscas. Ela tem de ficar por aqui, mas ficai tranquila: Belle-Isle é vasta e, se ela assim o quiser, nunca mais terá de ver os Gondi.
- Terei então de ficar sempre aqui? - interveio Sylvie, pesarosa.
- Não. Monsenhor virá buscar-vos logo que possível. Apenas tereis de ser paciente... e tratar, sobretudo, de recuperar a saúde. Estais num estado deplorável. Monsenhor cairia no desespero ao ver-vos nesse estado...
As faces demasiado pálidas coraram ligeiramente. Desde que François partira, Sylvie deixara-se invadir por um sombrio desespero, à idéia de que ele não mais regressaria. E, no entanto, aquela viagem até ao fim do mundo fora tão suave...
Houvera, em primeiro lugar, aquele momento divino que repetira o da infância, quando ele a agarrara, retirando-a de sob os cascos do seu cavalo e a abraçara, acarinhando-a, porque tivera tanto medo que ela estivesse a morrer. O desmaio de Sylvie, devido a um terrível desgaste, durara menos tempo que François pensara, mas fora tão maravilhoso, depois do horror por que passara, encontrar-se aconchegada daquela maneira contra ele e deixar-se embalar, acarinhar, que ela permanecera com os olhos fechados mais tempo do que devia. Porém, fora necessário regressar à realidade...
A realidade foram os tratamentos que lhe deram em Anet, logo que a mulher do intendente a deitara num dos dois ou três quartos sempre prontos para acolher qualquer membro da família Vendôme, enquanto os restantes permaneciam fechados. A sorte de Sylvie residira no fato de François de Beaufort ter vindo para ali amuar, só, na companhia de Ganseville, depois da Rainha se ter recusado a recebê-lo, pretextando cansaço, e de Mlle. de Hautefort o ter posto na rua, em Saint-Germain, dizendo que lhe fariam saber quando a sua presença fosse novamente desejada. O que não era coisa para o dia seguinte.
Seguindo a pista dos raptadores da jovem, Corentin Bellec, que fora até ao castelo procurar ajuda, tivera a surpresa divina de deparar com o jovem duque e tinham ambos disparado na direção de La Ferrière, para lá descobrirem Sylvie, evadida do seu inferno, no estado que sabemos. Um estado que se veio a descobrir ser pior do que se receava, quando a mulher do intendente retirara a camisa ensanguentada, rasgada e suja pela descida pela hera e pela queda no caminho: o corpo frágil e gracioso estava coberto de nódoas negras e de esfoladelas, como se ela tivesse sido fechada na companhia de gatos enfurecidos mas, sobretudo, fora a violação selvagem que havia rebentado com a sua intimidade tão terna. Perante aquele desastre, a mulher do intendente confessara-se impotente:
- Uma boa parteira saberia o que fazer - disse a François, ao pô-lo ao corrente da situação - mas a que aqui dispomos está frequentemente metida nos copos e as mulheres preferem encarregar-se elas próprias do assunto na altura devida. Neste caso seria necessário mandar buscar um médico a Dreux. O tempo urge: a pequena ainda está a perder sangue...
Foi nessa altura que Ganseville tivera uma idéia, por que não mandar chamar a Charlot? Se bem que acolhida a princípio por gritos de indignação, essa proposta acabou por reter a atenção de Beaufort. A Charlot, era a dona da casa de meninas de Anet, mais ou menos instalada pela própria Mme. de Vendôme, a fim de proteger as mulheres e as raparigas da região quando ela e o duque se encontravam instalados com todo o pessoal no castelo, pessoal que comportava um certo número de militares. A duquesa, que se interessava de perto pelo destino das prostitutas, tinha cuidadosamente escolhido a dona de casa; com a Charlot, o asseio não era uma palavra vã e as raparigas eram tratadas quando as circunstâncias assim o exigiam. Foi portanto a ela que recorreram e o veredicto a seguir pronunciado fora sem apelo, era preciso coser os tecidos rasgados.
O que ela empreendeu com uma delicadeza inesperada, depois de ter obrigado a sua paciente a beber uma caneca de vinho na qual adicionara alguns grãos de ópio, que Ganseville tratou de ir buscar ao boticário. Nem por isso a operação deixou de ser dolorosa. Em seguida, Sylvie mergulhou num sono assombrado por pesadelos, enquanto Beaufort, o seu escudeiro e Corentin voltavam a partir para levar a bom termo a expedição punitiva contra La Ferrière. Sylvie nada soube sobre o conselho de guerra que se reuniu e que acabou pela decisão de dá-la como morta e, para melhor a esconder, de a levar até Belle-Isle onde os sequazes de Richelieu nunca teriam a idéia de ir procurá-la.
Essa viagem, Sylvie guardava-a no coração como a sua mais preciosa lembrança, apesar de ainda se encontrar fraca e dolorida devido à febre que a acometera. Ficara a sós com François num dos coches de viagem dos Vendôme e, durante todo o trajeto, ele pôs a mão dela na sua, quando não a abraçava para acalmar as suas angústias e a terrível sensação de vergonha que a esmagava. De uma rapariga jovial, sorridente, facilmente arrebatada, terna e maliciosa, Laffemas fizera uma jovem mulher dolorida, angustiada, doente de tristeza, porquanto consciente de ter sido aviltada e julgando-se, doravante, indigna daquele que desde a sua primeira infância, e apesar da diferença de linhagem, esperava poder ainda um dia vir a conquistar o amor...
Beaufort, com uma psicologia que muitos o julgariam incapaz, e adivinhando o que se passava pela cabeça daquela que ele considerava como uma irmã mais nova, esforçara-se, durante todo o caminho, por lutar contra os demônios negros que assolavam Sylvie, explicando-lhe que ela seria sempre a mesma pessoa, que aquilo por que passara não a manchava mais do que se tivesse sido violada numa cidade assaltada pelos bárbaros, que devia considerar nulo o casamento com La Ferrière, pois fora forçada e ele não fora consumado e que, de qualquer modo, o homem em questão tinha ido fazer companhia aos seus antepassados. Antes de mais, ela devia pensar em curar-se, física e moralmente. E ele estava ali, estaria sempre presente para a ajudar! Além disso, ela iria conhecer Belle-Isle!...
Palavras divinas que ela escutava deliciada, mas sem acreditar muito nelas. Ela conhecia o arrebatamento que François punha em todas as coisas, sobretudo quando se encontrava sob forte emoção. Sabia que era a Rainha que possuía o seu amor... e os seus sentidos. E até mesmo a perspectiva de viver naquela ilha que ele tanto amava não chegava a consolá-la pois, logo que ficasse seguro do seu paradeiro, abandoná-la-ia e ir-se-ia novamente embora. Nem que fosse para vingá-la do abominável Laffemas...
No entanto, Belle-Isle encantou-a. O começo da Primavera, tão frio e úmido no continente, já desabrochava naquela terra de clima tão ameno. Havia árvores desconhecidas e grandes extensões de giestas que a iluminavam, mesmo quando o céu ainda estava cinzento. Soube também que encontraria François na sua paixão pelo mar. Com efeito, talvez o exílio que o destino lhe impusera fosse menos cruel face ao oceano, cujas ondas compridas e tão cheias de cambiantes, vinham rebentar aos pés dos rochedos de granito.
O acolhimento que recebeu encantou-a menos. Não que fosse desagradável, pelo menos da parte do duque Pierre, afável e generoso, mas teve imediatamente a impressão de desagradar a Catherine de Gondi. Embora esta tivesse declarado que a foragida poderia permanecer em sua casa tanto tempo quanto o desejasse, a sua expressão fora a de estar a cumprir um mero dever cristão e não a de efetuar um gesto ditado pela simpatia, mesmo que ela não tivesse sido posta ao corrente de toda a verdade a respeito de Sylvie.
Talvez François tivesse posto demasiado calor no seu discurso em defesa de Sylvie, talvez nele se tivesse podido detectar o eco de uma paixão, mas o fato é que Sylvie captou um raio de cólera debaixo das sobrancelhas, subitamente franzidas, da jovem duquesa que ainda há uns momentos atrás a acolhera com benignidade. Também estaria apaixonada pelo seu antigo companheiro de juventude, no tempo longínquo em que os Vendôme residiam algumas semanas do Verão em Belle-Isle?
Enquanto Beaufort permaneceu na ilha, tudo correu pelo melhor mas, mal a sua barca se afastou, trataram logo de mudá-la para aquele casebre no fundo do parque.
Talvez o tivesse preferido à atmosfera fria do palácio, caso não tivessem estipulado que as portas das janelas nunca deveriam ser abertas “como medida de prudência e para que a sua presença continuasse a ser ignorada pelas eventuais visitas”. Além disso, a duquesa decidira que o estado em que ela estava exigia o isolamento. Sem dúvida que a antiga Sylvie teria protestado veementemente, mas agora tinha que aceitar o que lhe era imposto por aqueles que lhe ofereciam a hospitalidade. E por ali ficou, guardada pela velha Maryvonne, taciturna e silenciosa, que não a compreendia e que ela também não entendia. E também por Corentin que, esse sim, entendia perfeitamente a língua bretã. Impotente e desconsolado, bem tentou levantar algumas objeções, mas fizeram-no compreender que, se as novas medidas não lhe agradavam, sempre se podia ir embora...
O jovem criado pensara em galopar até Paris para inteirar Beaufort das realidades, mas como abandonar à sua triste sina um ser tão frágil e tão dorido? E encontraria Beaufort no seu destino? E, sobretudo, porque haveria ele de o acreditar? Uma vez dada a sua amizade, tinha grandes dificuldades em retirá-la. Para ele, os Gondi eram pessoas maravilhosas, ligadas a belas imagens da infância e ao confiá-la a eles, estava certamente persuadido de ter feito o máximo que pudera pelo bem estar de Sylvie... Então, enquanto a pobre enfraquecia a olhos vistos, persuadida que François a abandonara, o infeliz Corentin desenvolvia todos os esforços para impedi-la de se afundar ainda mais, o que era cada vez mais difícil. Que alívio teve, pois, ao ver chegar Jeannette e o escudeiro de Beaufort! Já não era sem tempo!
Uma hora mais tarde, enquanto Ganseville voltava ao castelo para acabar de regularizar tudo com Gondi, Jeannette operava maravilhas. Abrira as portas das janelas, encontrara o que precisava para lavar convenientemente a sua senhora, que bem necessitava, obrigara-a a comer um pouco de sopa e alguns biscoitos que Corentin fora buscar à cozinha e, depois, empurrando a velha Maryvonne, que tentava intrometer-se, levara consigo Sylvie, com um vestido de cor púrpura e já penteada, para dar alguns passos sob as árvores, a fim de “ensiná-la de novo a respirar”, aproveitando um pequeno raio de sol. Quanto a Pierre de Ganseville, desdobrou-se em tarefas.
Na manhã seguinte, uma carroça que servia para transportar as provisões para o castelo veio buscar Sylvie e Jeannette, juntamente com os poucos bens que lhes pertenciam. Ganseville era o condutor.
- Onde vamos? - perguntou Jeannette. - E onde está Corentin?
- Ele já está para onde vos levo. Neste momento acaba os preparativos para vos receber...
- Vamos abandonar esta casa? - perguntou Sylvie, com uma nota de esperança na voz, que se assemelhava à alegria.
- Posso assegurar-vos que se Monsenhor François vos tivesse visto fechada num lugar destes, nunca vos teria trazido até aqui. Foi isso que transmiti a M. de Gondi que, na verdade, ignorava tudo acerca do estado a que estáveis reduzida. Doravante, ireis viver numa casa só vossa, do outro lado da aldeia e uma cidadela, longe deste castelo. Lá estareis melhor e sereis mais livre!
A partida efetuou-se apenas sob o olhar da velha serva. A duquesa, a um tempo vexada e aliviada, não se manifestou. Quanto ao duque, fora a Locmaria, na extremidade leste da ilha, para inspecionar uma fortificação que mandara construir. Sylvie ficou contente, sentira uma inimiga naquela mulher que prometera a François que zelaria por ela. Para onde quer que fosse, mesmo que se tratasse de um sótão, estaria melhor do que ali.
Ora, não se tratava de um sótão mas sim de uma pequena casa outrora construída pelos monges da abadia de Quimperlé, quando Belle-Isle ainda lhes pertencia, antes de ser dos Gondi. Sylvie gostou logo dela.
Encostada a um bosque de pinheiros que dominava uma enseada, constava de uma grande sala e de três pequenos quartos que eram antigas celas monásticas. Seguramente que os monges eram de tipo desconfiado, pois a residência estava protegida por um sólido pórtico, uma cruz de ferro forjado nas janelas e um pequeno muro espesso em redor do que devia ter sido o seu jardim. Além disso, ao mesmo nível, no outro lado da praia, havia um moinho que espraiava as suas asas.
Sylvie soltou um gritinho de alegria ao descobrir o imenso panorama de rochas e de água que se estendia a seus pés. A maré estava baixa e punha a descoberto as pedras lisas da ponta de Taillefer, que avançava longe até ao norte, como se quisesse reunir-se às defesas naturais, aos rochedos e às terras elevadas da ponta de Quiberon. Entre as duas pontas, um braço de mar, o Teignouse, reputado difícil, permitia a passagem dos navios. Eram todos nomes que ela ainda ignorava mas que em breve lhe seriam familiares, a começar pelo próprio local em que se encontrava.
- Chama-se o Porto do Bom Socorro - explicou-lhe um dos dois aldeãos que Corentin requisitara para que o ajudassem a instalar o novo domínio. - O nome deve-se ao fato de por lá terem encontrado a ajuda de homens ao serviço de Deus, contra as misérias do naufrágio e as doenças terrestres.
- Por que se foram embora os monges?
- Não se entendiam com os soldados da cidadela. Além disso o priorado está agora na nossa região, em Haute-Boulogne. Não tinham mais nada a fazer aqui...
Informada, Sylvie foi sentar-se num rochedo para contemplar o seu novo cenário. O mar: doravante iria viver em consonância com a sua respiração, ao ritmo dos seus humores, dos seus sonos e, desse modo, encontrar-se-ia mais próxima de François, que tanto gostava do grande oceano, no qual embalara os seus sonhos de criança: “É na Bretanha que o mar é mais bonito. Nada que se compare com o Mediterrâneo, tão azul, tão sedoso, tão pérfido”, dizia aquele que se intitulava, nessa altura, o príncipe de Martigues. “O mar do sul é feminino, o oceano pertence aos heróis: ele é masculino, é o Rei! Quando estou ao pé dele, posso ficar horas a contemplar os seus azuis, os seus verdes, os seus cinzentos, os seus reflexos claros e brilhantes e a sua longa ondulação.”
Sim, Sylvie ficaria bem ali, enquanto esperava que a sua vida desfeita pudesse reencontrar um curso mais normal...
O vento ligeiro que soprava do interior trouxe-lhe um cheiro agradável a peixe grelhado e despertou-lhe uma fome que julgara relegada para sempre. Levantou-se para seguir a direção que lhe indicava o nariz, quando Pierre de Ganseville, que ia ter com ela, a encontrou.
- Vinha buscar-vos - disse, com boa-disposição. - Está na hora de ir para a mesa. Tendes fome?
Houve um primeiro verdadeiro sorriso, o da Sylvie de outrora, um nada malicioso:
- Tenho. Creio que morro de fome. Mas, dizei-me, senhor de Ganseville, esta casa...
- Pertence-vos. Recebi ordem para comprar uma pequena propriedade que fosse verdadeiramente vossa. Ao trazer-vos para aqui, onde esperava regressar, Monsenhor apenas tentou dar despacho aos assuntos mais urgentes. Quanto a mim, dou por finda a minha tarefa e parto na maré desta noite...
- Ides ter com ele?
- Sim, irei juntar-me a ele algures na Flandres. Sei que me espera impacientemente, mas desta vez deixo-vos em boas mãos...
- Só mais uma palavrinha, senhor de Ganseville! Sabeis algo acerca do cavaleiro de Raguenel, o meu padrinho, que se encontrava detido na Bastilha?
- Claro. Já saiu de lá e agora, que está ao corrente do vosso destino, tudo lhe corre melhor...
- Virá aqui?
- Não, isso seria a última das imprudências. A casa dele está vigiada. Tem de andar de luto e desempenhar o seu papel. Nem sequer lhe foi permitido escrever-vos, poderíamos ter sido interceptados pelo caminho...
- Esperarei! - suspirou Sylvie, que acrescentou: - “se por acaso o virdes, dizei-lhe que o amo...”
- E ao monsenhor? Que devo dizer-lhe?
Ela corou subitamente, como se todo o sangue do seu corpo lhe subisse ao rosto:
- Nada... Não, não lhe digais nada. Ele já sabe tudo... pelo menos, assim o espero...
No dia seguinte, sentada naquele rochedo que adotara definitivamente, Sylvie não viu a embarcação de Ganseville que deixava o porto, na direção de Piftac: dali a vista era cortada pelo promontório que coroava a cidadela, mas ela não se sentia triste. Estava, isso sim, um nada invejosa, pois ele ia ter com François e; sentia, sobretudo, um grande reconhecimento: não fora ele, ainda estaria a vegetar no horrível pavilhão de portas fechadas. Agora ia tentar voltar a viver, caso as angústias que lhe assombravam as noites lhe dessem um pouco de descanso.
Teria aquela terrível noite passada em La Ferrière algum seguimento? Se fosse esse o caso, Sylvie sabia que, apesar de todos os princípios cristãos que recebera de Mme. de Vendôme, não teria coragem para permanecer viva e as belas vagas transparentes daquele Porto do Bom Socorro, de nome tão apropriado, arrastá-la-iam numa dada tarde, à hora em que o Sol se deita... Naquele preciso momento havia outra pessoa a pensar no mesmo. Sentada à entrada da casa, com uma saladeira em cima dos joelhos, Jeannette descascava feijões automaticamente. A sua vista não largava a frágil silhueta vestida de cinzento, sentada sobre o rochedo. Sylvie ia melhor, isso era incontestável. A sua chegada e a de Ganseville tinham-lhe trazido um surto de energia. Ela comia bem, mas as noites continuavam difíceis de passar. O que aconteceria se ela tivesse engravidado?
Corentin, que regressava da arrecadação com um punhado de achas, estacou na esquina da casa para olhar, por sua vez, para Jeannette, ela deixara de descascar e, com o rosto crispado e o pescoço estendido, olhava para Sylvie. Então, aproximou-se. Sei no que estás a pensar disse-lhe. Agora ela é uma mulher como as outras e, às vezes, uma violação pode acarretar o seu fruto.
- Sim - respondeu Jeannette, sem se mexer - e tenho a certeza que ela está transtornada com essa idéia. À noite sonha com isso e já não sabe a quantas anda. A violência de que foi objeto e o seu ferimento alteraram, sem dúvida, as suas regras... mas até que ponto? E já lá vão seis semanas. Que faremos, caso... e, sobretudo, que fará ela? Oh, isso posso dizer-te: matar-se-á. Já o queria fazer quando a apanhamos... nos lagos de Anet. Então aqui!... - acrescentou, designando com o queixo a extensão azul crespada de espuma. - A nossa obrigação está toda traçada, temos de nos revezar para a vigiar ininterruptamente. E se os nossos receios se revelarem fundamentados? Imaginas bem que já me informei desde que aqui estou. Existe uma guarnição e, portanto, tentações para as raparigas. Parece que vive uma mulher, não muito longe daqui, que se ocupa dessas coisas. Mora numa gruta, Aliás, consta que há muita feitiçaria nesta ilha. Consta que ainda veneram os velhos deuses celtas... [6]
- Julgas que ela deixaria que a levássemos até lá?
- Nem que seja à força! Se lhe acontecesse alguma desgraça, o senhor cavaleiro e Monsenhor François nunca nos perdoariam.
Jeannette encolheu os ombros:
- Acredito que será o caso com M. de Raguenel, mas quanto a Monsenhor François já estou menos segura! Está muito ocupado com a Rainha, só lhe restando afeto e piedade a dispensar à nossa Sylvie...
Corentin inclinou a cabeça, enquanto torcia os lábios num ar de dúvida:
- Ele está mais agarrado a ela do que julga. Se o tivesses visto, quando a encontramos no caminho e soube que... julguei que ia enlouquecer. E em La Ferrière, não esteve com meias medidas!
Ele teria feito a mesma coisa por uma irmã mais pequena ou por uma prima...
- Não com toda aquela raiva! Se queres saber o que penso, ele ainda está enfeitiçado pela Rainha, mas ela é mais velha quinze anos e um dia ele já não a verá da mesma maneira.
- Seja! Mas, e Mme. de Montbazon? Ela não é quinze anos mais velha do que ele, apenas quatro e é muito, muito bela...
- Não creio que ela seja sua amante. Ele corteja-a apenas para enfurecer a Rainha. Aliás, entre o amor e a cama existem algumas diferenças... volta aos teus feijões! Ei-la de volta...
Sylvie deixava a praia e subia pela escada rústica que levava até à casa. Dava a impressão de estar a contar algo com os dedos...
... Seis dias mais tarde, ainda contava. Fosse qual fosse o tempo que fazia, lá estava ela horas a fio, sentada no seu rochedo, coberta pela grande capa negra das mulheres da ilha, olhando para o mar com olhos de sonâmbula. Comia pouco, dormia ainda menos e recomeçava a emagrecer. Jeannette e Corentin tinham-se posto de acordo para que um deles a tivesse sempre no seu campo de visão e, sem que ela soubesse, revezavam-se alternadamente durante a noite, frente à porta do seu quarto, que constituía a única saída, pois a janela deste, com a cruz de ferro, era muito estreita para ser franqueada. Todavia, nenhum deles ousava falar-lhe do problema angustiante, o único que podia corroê-la até àquele ponto.
- Vamos ter de nos decidir - disse Corentin, numa manhã em que, de saco no braço, se dispunha a descer até ao mercado do palácio. - Não podemos continuar assim! Esta noite, vou falar-lhe.
- Esse é o meu papel, mas tenho medo. E se essa mulher der cabo dela? Também se pode morrer disso...
Jeannette lançou um olhar desolado para a porta fechada, atrás da qual se esperava que Sylvie estivesse a descansar. Corentin atraiu-a contra si, para abraçá-la:
- Preferes que seja ela própria a matar-se? Acredita-me, já não dispomos de muito tempo...
Já nem havia tempo nenhum. No seu quarto pequenino, onde ouvira toda a conversa, Sylvie decidira acabar com tudo. Já não podia haver dúvidas quanto ao seu estado, caso nada fizesse, dentro de alguns meses daria à luz alguém que só poderia ser um monstro. Não sabia quais eram os projetos de Jeannette e de Corentin mas, para se libertar, já só confiava na morte. Preparou-se, escrevendo algumas palavras que colocou bem em evidência em cima da cama, vestiu-se e esperou que o ranger da porta de entrada lhe indicasse que Jeannette, julgando-a sempre a dormir, acabasse, como todas as segundas, por ir pôr a roupa de molho na arrecadação onde Corentin lhe arranjara um espaço próprio.
Logo que ouviu o ruído característico que era, todavia, ligeiro, abandonou o quarto, cuja porta fechou cuidadosamente. Assim que saiu de casa, em vez de descer na direção dos rochedos, dirigiu-se para o bosque de pinheiros, saltando por cima do pequenino muro e encaminhando-se para o norte, no local em que a costa dava para um monte de destroços banhados pelo mar. Ao sair do pequeno bosque, atravessou a charneca. Naquela manhã o tempo estava cinzento, quase ameno, mas os ventos entrecruzavam-se na ilha, que envolviam num turbilhão. À sua esquerda, o mar mostrava inúmeras cristas brancas encrespadas e as gaivotas, sentindo talvez que se preparava uma tempestade, disparavam como flechas, à procura de um abrigo. Sylvie sorriu: o abrigo, esse encontrá-lo-ia em breve, e agradava-lhe que fosse naquele quadro em que as giestas começavam a ficar douradas. Dentro de alguns dias tudo ficaria amarelo, daquela cor que sempre amara tanto e que lhe ficava tão bem. Já não sentia nem medo, nem vergonha. Sentia-se antes liberta, de tal modo o fato de tomar uma decisão difícil retira um enorme peso de cima de nós. Pensava também que se Deus lhe perdoasse por ela ter escolhido a hora da sua morte sem Lhe ter pedido permissão, talvez Ele autorizasse a que a sua alma pudesse velar pelo seu querido François. O Senhor, que é tão bom, não podia ficar insensível face àquele grande amor que ela trazia no coração e ao qual iria sacrificar o invólucro carnal que outro conspurcara.
À sua direita, no meio de pequenos rochedos rodeados por líquenes brancos, abria-se um pequeno caminho. Tratava-se daquele que desembocava onde sabia, e por ali arremeteu, despachando-se, com receio que Jeannette já se tivesse apercebido da sua fuga. Ele fugia-lhe sob os seus pés e ela já avistava o vazio para lá do qual sabia nada mais existir.
Contudo, quando chegou à borda, parou para contemplar uma última vez aquela magnífica paisagem marítima, para respirar ainda uma grande golfada do ar que sabia a algas e sal. Abriu os braços e o vento entrou-lhe pela capa como se enfunasse a vela de um navio. Ia lançar-se, quando lhe caiu qualquer coisa em cima, puxando-a para trás. Julgando que se tratava de Jeannette, lançou um grito de desespero, enquanto se debatia:
- Deixa-me! Por favor, solta-me! Não tens o direito de me impedir...
A sua voz foi abafada pelo tecido que lhe tinham lançado para cima, para arrancá-la ao vazio. Quando lhe retiraram, viu-se estendida ao comprido no caminho e com uma curiosa personagem debruçada, de joelhos, sobre ela. Tratava-se de um curioso homem, pequeno, de cabelos desgrenhados e de nariz arrebitado, que reconheceu com tanta surpresa que não conseguiu evitar de manifestá-la:
- O Senhor abade de Gondi?...Oh, meu Deus!...
- Já está na altura de vos preocupardes com Ele, pobre infeliz, que vos preparáveis para tão gravemente O ofender. Mas... eu também vos conheço! Sois a protegida de Mme. de Vendôme, Mlle. de... de L’Isle - concluiu com um ar de triunfo. - Mas que diabo fazeis aqui? Não morríeis...
- Bem sabeis que sim, pois haveis-me retido! - exclamou Sylvie, acometida por uma cólera súbita. - Mas porque vos intrometeis?
- Porque se trata de um assunto que diz respeito a qualquer homem de bem, sobretudo quando este ainda por cima se encontra ao serviço da Igreja. Quereis realmente morrer, vós, que sois tão nova, tão encantadora?
- Quando se está desesperado, não há idade nem charme que possam contar para alguma coisa... Ide-vos, senhor abade, e esquecei-vos que me vistes!
- Nem pensar! Ides regressar comigo e...
Ela reerguera-se com uma destreza de gato e empurrou-o com um gesto brusco. Ele quase caiu, mas conseguiu agarrar na capa preta cujo colchete começou a estrangular Sylvie. Isso apenas a levou a debater-se com maior energia quando sentiu que, ao aproveitar-se daquela vantagem, ele a apertava finalmente nos seus braços.
Se bem que de pequeno tamanho, Gondi era mais forte que uma rapariga de dezesseis anos. Além disso, era assíduo praticante de esgrima e de equitação, o que lhe fornecera bons músculos. Contudo, durante um momento, o desfecho do combate permaneceu suspenso, tal era a raiva com que Sylvie defendia o seu projeto mortal. Rebolaram ambos pelo solo, sem que qualquer deles conseguisse uma vantagem sobre o outro e sem se aperceberem que tinham alcançado a curva do caminho. E, subitamente, deixou de haver algo sob os seus corpos. Caíram, agarrados um ao outro...
UM TÃO GRANDE AMOR...
A partir do dia 28 de Agosto, a França entrou em preces para que o Céu concedesse um parto feliz à Rainha, cujo desfecho se aproximava, mas, sobretudo, para que a criança fosse um Delfim. O Santo Sacramento foi exposto dia e noite nas igrejas de Paris. As grandes orações públicas marcavam o princípio de uma espera que os médicos calculavam ser de oito ou dez dias.
Não ocorria o mesmo no Château-Neuf de Saint-Germain, que Ana de Áustria não mais deixara após o anúncio da gravidez. Em vista do parto, preparavam-se os aposentos para os príncipes e princesas que deviam assistir ao acontecimento. O Rei, se bem que refugiado no Château-Vieux[7], encontrava-se mesmo assim muito próximo de todo aquele bulício, pelo que se isolou durante dois dias no seu solar de Versalhes. O próprio Cardeal partira para Cheaulnes.
No meio desta agitação, Marie de Hautefort velava pela rainha como uma loba pelo seu filhote. Se o Rei se fora embora, fora, em parte, no intuito de escapar à sua atitude de desafio... Efetivamente, ele voltara a sucumbir ao seu charme, depois da entrada para o convento do seu verdadeiro e único amor, Louise de La Fayette, Luís XIII procurara um ombro amigo no qual chorar e, assim, reatara os seus antigos amores. Mas não encontrou nenhum ombro em que se apoiar: inteiramente dedicada à rainha, a jovem altiva abusou cruelmente do seu poder para fazer pagar àquele homem, doente e ferido, todos os vexames por que fizera passar Ana de Áustria[8], sobretudo durante o ano anterior. E era uma guerra desgastante de zangas e reconciliações, tanto mais penosa porquanto os sentidos nunca contavam para nada. Para a jovem açafata estava fora de questão abandonar uma virgindade o que, aliás, ninguém lhe teria pedido para fazer por muito cruéis que fossem, por vezes, os tormentos do desejo.
Nesse dia, Mlle. de Hautefort a quem chamavam simplesmente “Madame”, por causa do cargo que ocupava estava de pé frente a uma janela e observava a chegada, um após outro, dos grandes coches oficiais que transportavam as senhoras nobres aparentadas à família real: a princesa de Conde e a filha, a encantadora Anne-Geneviève, a condessa de Soissons, a duquesa de Bouillon, a pequena filha de Gaston d’Orleans, irmão do Rei e, por fim, a duquesa de Vendôme e a filha, Elisabeth. O pátio principal enchia-se de ruído, de cores realçadas pelos tons dourados e prateados. O espetáculo era deslumbrante: era como se os jardineiros tivessem espalhado subitamente, frente à Grande Escadaria, todo o conteúdo dos canteiros, com música a condizer: a dos pássaros chilreando... As princesas chegavam todas ao mesmo tempo, como se tivessem marcado encontro, mas os únicos homens que as acompanhavam eram os servos, os criados, os cocheiros e outros do gênero...
- Espantoso, não é verdade? - proferiu uma voz divertida, atrás da jovem. - O Rei apenas autorizou a presença de damas: Monsieur, seu irmão, só será autorizado a vir no derradeiro momento. O duque de Bouillon e o conde de Soissons, que se declararam em rebelião aberta, encontram-se fora do reino e o duque de Vendôme continua sempre exilado no seu castelo de Chenonceau, na companhia do filho, Mercosur. Quanto ao outro filho, Beaufort, esse acaba agora mesmo de chegar de Flandres, com uma perna entalada e o Rei não está para recebê-lo...
Marie abandonou o seu posto de observação para pegar no braço de Mme. de Senecey, a fiel dama de honor da Rainha, e observou, com um suspiro:
- De fato, temo que a Corte não esteja muito alegre nestes tempos. O Rei não pára de escrever ao Cardeal para lhe dizer que está cheio de pressa que a Rainha dê à luz a fim de poder sair daqui para fora... e já nem sequer dispomos das canções da nossa pequena Sylvie para aliviar a atmosfera!
- Sentis a falta dela?
- Sinto. Gostava muito dela e estou cheia de raiva por não se ter querido saber mais acerca de uma morte tão estranha. Recuso-me a acreditar que ela se tenha suicidado: não se coaduna nada com ela. Creio antes que...
Calou-se, mordendo os lábios.
- E então, que credes?
- Não... nada! É uma idéia louca...
Confiava na sua companheira, mas não ao ponto de introduzi-la nos segredos do quarto da Rainha, segredos que eram apenas três a partilhar. Pierre de La Porte, sempre exilado desde que saíra da Bastilha, Sylvie e ela própria. Ainda assim era muito estranho que a moça tivesse desaparecido depois de ter comparecido a uma longa reunião com Sua Eminência e Marie não estava muito longe de pensar que os famosos esconderijos de Rueil talvez não fossem apenas uma lenda. Se Richelieu tivesse duvidado, o que quer que fosse, acerca das relações entre a Rainha e Beaufort, não descansaria enquanto não eliminasse os detentores do segredo. Sobretudo se a criança viesse a ser um rapaz. Ora Sylvie morrera. La Porte parecia ter desaparecido. Quanto a ela própria, não estaria apenas na lista de espera? Caso nascesse aquele Delfim tão desejado, o amor daquele rei, que ela tão maltratava, bastaria para defendê-la contra os sequazes do Cardeal? O perigo nunca a amedrontara, mas os palácios reais estavam tão repletos de armadilhas e de servos tão fáceis de comprar! Restava ainda Beaufort, o peão principal. Quanto a esse, com a sua bravura fulgurante, matá-lo-iam nalgum campo de batalha. Também ele sumira na mesma altura que Sylvie. Dizia-se que acostara em Paris algumas semanas depois, mas que uma ordem real o enviara de imediato para a Flandres. Será que ainda lá estaria?
- Onde estais, minha querida? - queixou-se gentilmente a dama de honor. - Estou a falar-vos e vós não me escutais...
Um pajem, que chegava a correr, evitou-lhe ter de recorrer a uma mentira. O médico real reclamava a presença de Mme. de Hautefort. Logo inquieta, esta pegou nas suas saias de cetim cinzento claro com ambas as mãos, revelando uns pés encantadores numas borzeguins de tafetá vermelho, e desatou a correr, sem esperar pela companheira, que a seguiu num andamento mais moderado. Encontrou Bouvard, que andava de um lado para o outro frente às portas dos aposentos da Rainha, vigiadas pela Guarda Suíça. Não gostava muito daquele discípulo de Esculápio, a quem criticava a paixão pelas sangrias e pelos clisteres, mas, desta vez, não teve qualquer dificuldade em adivinhar a causa da sua má-disposição. Através das duas portas magnificamente trabalhadas, ouvia-se um barulho semelhante ao de um viveiro de pássaros enlouquecidos. Ele nem lhe deu tempo para que abrisse a boca:
- Onde diabo estáveis as duas? - exclamou, assestando um último olhar sombrio para Mme. de Senecey - estava ocupado a examinar Sua Majestade, quando fomos verdadeiramente assaltados por todas as coroas das princesas de Paris! Começou pelas senhoras Guéménée e de Conti, continuando por Mademoiselle, que se pôs aos pulos por todo o lado, querendo absolutamente tocar no ventre de Sua Majestade e depois foi a vez de Mme. de Conde...
- Já cá estão? Ainda agora as vi chegar!
- Devem ter galopado escada acima, de tal modo estavam apressadas e eu, ultrapassado, impotente, tive de lhes ceder o meu lugar. Quem sou eu ao pé delas? - acrescentou com azedume. - Escutai-as! Cada uma traz o seu conselho, o seu elixir, e sei lá o que mais!...
Sem lhe responder, Marie começou por barrar o caminho à duquesa de Vendôme, que chegava acompanhada pela filha e pela condessa de Soissons.
- Tereis tempo para verdes a Rainha daqui a pouco - defendeu. - Por ora tenho de abrir caminho para o doutor Bouvard. Senecey, vinde comigo!
As duas mulheres irromperam pelo aposento, onde reinava agora um calor sufocante. Uma boa alma julgara por bem fechar as janelas e a acumulação dos perfumes e das respirações daquelas damas tornava a atmosfera abafada.
No meio daquilo tudo, a pobre Rainha, transpirando e cheia de calor por baixo dos cetins que se lhe colavam ao corpo deformado, esforçava-se por responder a todas, enquanto abafava, sem que ninguém se preocupasse com isso, apesar do leque que uma das suas damas de honor abanava frouxamente. O princípio daquele mês de Setembro permanecia muito quente e, naquele final de dia, o Sol dardejava nos vidros das altas janelas do Grande Gabinete.
Marie começou por fazer uma rápida reverência dirigida àquela ilustre companhia, e correu a abrir as janelas, após o que disse, em voz bem alta:
- Minhas Senhoras, não compreendeis que incomodais a Rainha e que, além disso, impedis o seu médico de lhe dispensar os devidos cuidados?
- Não exagereis, Mme. de Hautefort - interrompeu secamente a princesa de Conde. - Trouxemos presentes destinados a ajudar Sua Majestade...
- Rogo-vos que me perdoeis, Senhora Princesa, mas não vedes que a Rainha sufoca? Poderíeis ser acusadas de regicídio... sobretudo se a criança for um Delfim! Não é altura de regressardes aos vossos aposentos?
Resmungando, barafustando, mas obedecendo, as princesas saíram uma após outra, enquanto Bouvard corria para o pé da sua paciente que estendia uma mão tremente para a açafata:
- Porque me deixastes, Marie? - perguntou, numa voz que desfalecia. Não me sinto bem... mesmo nada bem...
Qualquer pessoa que tivesse passado algum tempo sem ter visto Ana de Áustria, dificilmente a teria reconhecido, de tal forma se transformara na fase terminal da sua gravidez. No seu rosto, sempre esfuziante e cheio de frescura, apesar dos seus trinta e oito anos, surgira a “máscara” que toda a mulher grávida receia. Sofrera muito de náuseas e receando que, como das outras vezes, ela viesse a perder a criança, tinham-na proibido de qualquer exercício, até mesmo o de andar: levavam-na da cama para uma poltrona, e de esta para outra, antes de regressar novamente ao leito. Gulosa, engordara e apresentava agora uma barriga enorme.
- Senhor! - exclamou Marie para si mesma, enquanto levavam a Rainha de volta ao seu quarto. - Pergunto-me o que pensaria esse maluco do François caso a visse neste estado!
Não foi por isso que deixou de oferecer os seus mais ternos cuidados àquela que iria, talvez, dar à luz um Delfim, mesmo que a vida deste pudesse vir a ser o seu decreto de morte.
Foi nessa noite do dia 4 para o dia 5 de Setembro que as dores começaram. Foram prevenir o Rei ao Château-Vieux e acordar todas as pessoas que deviam ser testemunhas do parto. Um correio foi enviado a Paris para transmitir a notícia a Monsieur.
Era aproximadamente meia-noite quando tudo começou mas, três horas mais tarde, o ambiente era insustentável no quarto onde a futura mãe se contorcia de dores, no meio de senhoras muito bem vestidas, tal como se assistissem a um espetáculo e não se manifestando mais do que isso. Por medo do ar fresco da noite, tinham-se fechado outra vez as janelas e abafava-se novamente. O trabalho de parto decorria mal porque a criança não se apresentava na posição devida. Pelas seis, ouviu-se o médico resmungar que as dificuldades aumentavam...
Marie de Hautefort, refugiada no vão de uma janela, como tanto gostava de fazer, desatou a chorar. O Rei, que não se mexera até essa altura, permanecendo quieto e mudo numa poltrona, levantou-se e aproximou-se dela:
- Parai de choramingar! - ordenou-lhe asperamente. - Não há qualquer razão para vos afligirdes. - E, depois, em voz mais baixa, acrescentou: - Quanto a mim ficaria muito satisfeito caso salvassem a criança e, quanto a vós, senhora, teríeis ocasião para poder chorar a mãe...
- Como podeis ser tão cruel e insensível? - zangou-se aquela, revoltada. - É o vosso rebento que tortura a vossa esposa daquela maneira...
- Precisamente. É ele que é o mais importante...
- Merecíeis que fosse uma rapariga! Será o que Deus quiser. Vou falar ao Bouvard! - E recomeçou a espera infindável, cansativa mesmo para aqueles que a ela apenas assistiam. Gaston d’Orleans, dividido entre a esperança e o horror, mostrava-se esgotado, de tez plúmbea... Para acalmar um pouco o seu nervosismo, Marie aproximou-se de Elisabeth de Vendôme, que rezava sem cessar ao pé da mãe, ajoelhando-se a seu lado: - Tendes notícias de vosso irmão Beaufort? - sussurrou-lhe.
- Regressou há três dias com um novo ferimento. Felizmente não muito grave. Escapou à morte por pouco, quando regressava à sua tenda, explodiu uma bomba quase a seus pés.
O coração da açafata parou momentaneamente. Um atentado! Acabara de escapar a um atentado... Escaparia também ao seguinte?
Por volta das onze e meia da manhã, e quando os ataques de dores concediam uma calmaria à Rainha, Bouvard aconselhou o Rei a não atrasar a hora do almoço. Ele apressou-se a aceitar a sugestão, mas mal teve tempo para se sentar, um pajem chegava a correr para anunciar que a Rainha acabara, finalmente, de dar à luz.
- Já se sabe de que sexo é?
- Ainda não, Senhor; enviaram-me logo que apareceu a cabeça... - Deitando fora o guardanapo, Luís XIII corre ao quarto da mulher. À entrada depara com a reverência de Mme. de Senecey, que o informa:
- Senhor, a Rainha acaba de dar à luz Monsenhor, o Delfim...
Ele precipita-se para o leito, onde Péronne, a parteira, segura nos braços um corpo envolvido por roupa fina e que se mexe:
- Senhor, o vosso filho!
Luís XIII cai de joelhos, enquanto explodem à sua volta aclamações frenéticas e enquanto um sinal, emitido do pátio do castelo, envia mensageiros em todas as direções. Finda a sua ação de graças, o Rei ordena que sejam abertas todas as portas da antecâmara. Passando pelo irmão, que não parece nada bem, apresta-se a receber todos os cumprimentos dos gentis-homens, quando Marie de Hautefort vem ter com ele e o obriga a parar, tocando-lhe audaciosamente no braço.
- Não a beijais? - pergunta, indicando a cama em redor da qual as damas se atarefam. - Parece-me que ela bem o merece.
A troca de olhares entre esse estranho casal é desprovida de ternura. Contrariado, Luís deixa-se levar até junto da mulher, meia morta nos lençóis amarrotados e manchados. Debruçando-se para ela, beija-a na testa:
- Muito obrigado, Senhora! - diz apenas, voltando-se depois para receber o Capelão-Mor que acorre logo a fim de embalar o bebê.
A Rainha adormeceu. Marie de Hautefort, também ela esgotada, regressa a casa, despe-se e deita-se com uma curiosa vontade de chorar. É certo que alcançou os seus propósitos: o Rei tem um herdeiro e o fantasma do repúdio que pairava desde há tanto tempo em cima da cabeça da sua querida soberana acaba de desaparecer, mas como esquecer que agora é ela própria que estará doravante em perigo... e que tem apenas vinte e dois anos?
Não foi por isso que deixou de dormir profundamente e o Sol daquele novo dia, que fazia brilhar as gotas de orvalho nos diferentes espaços dos jardins do Château-Neuf, devolveu-lhe toda a coragem de que precisava para enfrentar um dia difícil. Efetivamente, o Sena, onde se tomavam banhos tão agradáveis nos dias quentes de Verão, já estava cheio de barcos vindos de Paris e transportando damas e gentis-homens desejosos de virem cortejar o recém-nascido: o trajeto pelo rio, embora mais lento, era sem dúvida bem mais aprazível que o dos coches oficiais, nos quais se era tão sacudido!
Contudo, o marquês d’Autancourt chegou a cavalo e acompanhado por um só escudeiro. Marie, que o vira chegar, tratou de se cruzar com ele no seu caminho. Passara a gostar dele desde que se declarara, tão apaixonado por Sylvie e, ao vê-lo aproximar-se pela grande galeria, magro e elegante como de costume, vestindo um fato de veludo azul escuro, ela pensou que a vida era injusta: aquele rapaz tão simpático, tão bem constituído e charmoso sob todos os aspectos, rico e destinado a receber um título ducal, tinha tudo o que era preciso neste mundo para ser feliz, mas o Destino levara-o a cruzar com Sylvie e esta já não existia. Deste modo descortinava-se agora um ar de tristeza naquele jovem rosto um pouco severo, mas tão sedutor quando um sorriso o iluminava!...
Marie não o voltara a ver desde que ele fora até ao Roussillon, ao encontro do pai, o marechal-duque de Fontsomme, cujas forças apoiavam as do príncipe de Conde. Ela nem estava ao corrente que ele regressara, mas era evidente que ele já sabia com que contar. Visivelmente satisfeito com o encontro, isso transpareceu na saudação que acompanhou com um esboço de sorriso.
- Senhora, sois a primeira pessoa que encontro... pelo que me sinto extremamente feliz.
- Desconhecia o vosso regresso, mas suponho que o Senhor marechal, vosso pai, vos enviou para prestardes as vossas homenagens à Rainha e a Monsenhor, o Delfim?
- É verdade, senhora, mas, e certamente não o ignorais, o meu pai nunca poderá ajoelhar-se perante o seu príncipe: está a morrer e foi preciso um acontecimento desta natureza para que eu abandonasse a sua cabeceira.
- A morrer? Mas que se passou?
- Foi atingido por estilhaços de metralha, frente a Salses, pois não pusera a sua couraça devido ao calor. Estando as coisas a correr mal para as nossas armas, o Senhor Príncipe mandou-me trazê-lo de volta a Paris. Pelo menos, para tentar fazê-lo, pois na verdade nem pensávamos que ele chegasse vivo a casa. No entanto foi isso que sucedeu e, a esta hora, ele luta contra a morte porque nunca admitiu ser vencido, esperando-a, no entanto, com a resignação mais cristã. O senhor Paul veio ontem visitá-lo, o que lhe agradou imenso...
- Vedes-me desolada, meu amigo - disse Marie com suavidade, colocando a mão no braço do jovem. - Essa grande dor está ainda muito próxima do desaparecimento daquela que tanto amastes... que todos nós amamos!
Ficou à espera de alguma crispação naquele rosto, de eventuais lágrimas mal contidas, mas não aconteceu nada. Para surpresa sua, o olhar que Jean d’Autancourt lhe endereçou era sereno, terno e quase luminoso.
- Estais a falar de Mlle. de L’Isle?
- Com certeza. Que outra pessoa podia ser? Imagino que estais ao corrente...
- Estou. O rumor chegou até mim, nos confins da França, mas recusei-me a acreditar...
- No entanto, tereis de vos convencer! Foi o próprio M. de Beaufort que veio dar a notícia a Suas Majestades. A pobre rapariga repousa agora no castelo de Anet, vítima de um miserável que pagou o crime com a própria vida. A senhora duquesa de Vendôme, que ainda se encontra ao pé da Rainha, poderá confirmar-vos o sucedido. Ela mandou que gravassem uma laje com o seu nome na capela...
Houve um silêncio e, depois, o jovem sorriu outra vez:
- Não lhe perguntarei nada, porque nada do que me disserem poderá abalar a minha convicção. Talvez Mlle. de L’Isle esteja morta, mas Sylvie não o está.
- Que quereis dizer?
- É difícil explicar, sei que não morreu, é tudo!
- Quereis dizer que ela vive dentro de vós, tal como vivem em nós aqueles que amamos e que a morte nos levou?
- Não, de forma alguma. Trago-a dentro de mim desde que trocamos o nosso primeiro olhar no parque de Fontainebleau, de modo tão íntimo que, se ela tivesse deixado de respirar, se o seu coração tivesse parado, o meu também o faria e tê-lo-ia sentido em cada fibra do meu corpo como se tivesse apanhado uma daquelas feridas mortais por onde todo o sangue se esvai.
- Que insensatez!
- Não, isto é amor! Só amei e só a amarei a ela e enquanto não a vir com os meus próprios olhos, continuarei a dizer que ela está viva e que um dia conseguirei reencontrá-la... mas estou aqui a reter-vos, quando sois tão preciosa a Sua Majestade e peço-vos mil desculpas pelo fato. O Rei está cá, ao que me disseram, e vou solicitar o favor de ser admitido à sua presença.
Afastou-se, deixando Marie confusa. E também cheia de admiração perante tão grande amor. Jean d’Autancourt nada tinha de um cabeça no ar. Falava com tanta convicção, com tanta segurança que Marie sentiu que as suas certezas vacilavam. Ele não fornecia nenhuma explicação, não avançava com prova alguma, sabia, simplesmente, Deus sabe como, e o pior era que, contra toda a lógica, Marie tinha agora vontade de lhe dar razão.
Um dia depois daquela gloriosa jornada, Beaufort, instalado no seu hotel de Vendôme, ouvia com certa melancolia o barulho de uma cidade ensandecida. Desde a véspera que os sinos não tinham parado de tocar. Em Notre-Dame cantava-se um solene Te Deum. Nas praças, acendiam-se fogueiras em sinal de regozijo e, naquela que se chamava Dauphine, havia um concerto de gaitas e oboés. Formavam-se cortejos alegóricos, conduzidos por corporações. Dançava-se um pouco por todo o lado e como, nessa noite, seriam instalados tonéis de vinho a espichar frente a todos os hotéis da aristocracia enquanto, ao mesmo tempo, explodiriam os fogos de artifício, os parisienses, em honra do seu futuro Rei, ficariam ébrios como toda a Polônia...
François teria gostado de misturar-se a toda aquela agitação em volta do berço de um rapazinho de quem queria gostar, mas o ferimento que o atingira na perna e que lhe lesionara uma tíbia não lhe permitia de modo algum percorrer as ruas, como gostava tanto de fazer, só pela simples alegria de se juntar a um povo que sempre o acolhia tão bem. As mulheres achavam-no belo e os homens apreciavam a sua simplicidade, generosidade e bravura. É que, afinal, todos gostavam de se recordar que ele era neto desse “Galanteador” que tanto perdurara na memória popular... Foi assim que se sentiu um pouco só nesse dia: a mãe, os irmãos, bem como os melhores amigos, tinham-se deslocado a Saint-Germain para prestarem os seus melhores votos e felicitações. De qualquer modo, e até aleijado da perna, não teria podido acompanhá-los. As ordens da Rainha, transmitidas por Marie de Hautefort eram formais; antes que o autorizassem, estava terminantemente proibido de aparecer na Corte. Retribuição amarga, para aqueles momentos de pura felicidade de cuja existência pareciam ter-se esquecido! Estava prestes a terminar um triste jogo de xadrez com Ganseville. Brillet fora a Notre-Dame celebrar o acontecimento quando um criado lhe veio anunciar que havia uma dama que lhe desejava falar, em privado, uma dama que se recusara a dizer o nome, mas que pretendia vir “da parte de Suas Majestades”. O seu coração pulou então de alegria: finalmente, nesse dia triunfal, Ana pensava nele! Não havia que se enganar quanto ao emprego do plural para “Majestade”! Completamente encoberta por uma capa de seda ligeira, trazendo uma máscara da mesma cor azul no rosto, a visitante entrou sem nada dizer, mas bastou que o capuz deslizasse ligeiramente, revelando uma testa de linhas puras e magníficos cabelos dourados, para que ele a identificasse:
- Madame de Hautefort! Por aqui? Em minha casa... e num dia destes? Mas que grande felicidade!
Com um movimento de ombros, Marie fez deslizar a capa enquanto os seus dedos retiravam a máscara.
- Não ponhais esses ares de galo vencedor, meu caro François. Eu não venho da parte dela, mas sim da minha. Mas, antes de mais, estamos a sós?
- Espero que não duvideis! Pierre de Ganseville, que acaba de sair, está certamente de atalaia a esta porta fechada.
- Vim falar-vos de Sylvie. Onde está?
- Mas que pergunta tão estúpida! Como se não o soubésseis! - ralhou François, logo irritado.
- Não, não sei. Sei onde dizem que ela está: na capela de Anet. Mas, na realidade, não sei de fato onde ela está. Pois está viva, não é verdade?
- Quem é que pôde colocar-vos uma idéia dessas na cabeça?
- Em primeiro lugar, o marquês d’Autancourt, que não acredita minimamente na sua morte, porque o imenso amor que lhe dedica sussurra-lhe que ela ainda existe.
- Que disparate! - exclamou Beaufort, que ficara vermelho de cólera. - Esse fedelho está a sonhar acordado e acredita no que sonha! Deviam mergulhar-lhe a cabeça em água fria!
Marie desatou a rir:
- Esse jovem fedelho, caro duque, só é dois anos mais novo que vós mas, moralmente, é dez anos mais velho. Quando diz que ama, podemos acreditá-lo. E acreditai-me, ele ama Sylvie...
- Loucura! E loucura perigosa para a sua própria sanidade mental. Não pode contentar-se em chorá-la, em vez de se expandir em conversas parvas?
- Foi comigo que ele falou em privado. Não chamo a isso “expandir-se”. Quanto aos perigos dessa loucura, julgo que são menores que os da vossa.
- Então eu sou maluco? Na verdade, senhora, cada vez que nos encontramos tendes sempre o mesmo discurso, mas deveríeis compreender que a minha loucura, neste momento, não pode fazer mal a ninguém. Sobretudo àquela que, apesar de tudo, se esquece de mim!
- Um momento, meu amigo! Não nos estamos a entender! Lembrai-vos de que não estamos a falar da Rainha, mas sim de Sylvie. E digo que, ao declará-la morta, talvez tenhais despachado o mais urgente, mas que, ainda assim, haveis cometido uma loucura... e não sou a única pessoa a pensar deste modo.
Do ramalhete de rendas brancas onde repousavam esplendorosos seios, Marie extraiu um bilhete com o selo quebrado, que se pôs a agitar sob o nariz do seu interlocutor:
- O que é isto? - vociferou este.
- Quanto tempo desperdiçado! Deveríeis ter-me logo perguntado de quem é esta carta! Já vos direi. Entretanto, enquanto a leio, sofrei com a espera... mas, por favor, sentai-vos! Não há nada mais penoso que ver-vos a saltitar num só pé, como uma garça-real!
Em seguida, sem esperar pelas reações de François, pôs-se a ler, assinalando que a carta viera de Lyon:
“Minha querida amiga, antes de prosseguir a minha viagem para a cidade dos Doges, cedo a uma extrema necessidade que sinto em vos conceder um bom parecer, que talvez vos pareça obscuro, mas conheço sobejamente a vossa fineza para saber que não tereis decerto grande dificuldade em encontrar o fio à meada. Dizei a esse imbecil de B. que a sua protegida não está assim tão bem guardada como ele julga, nem tão-pouco ao abrigo do perigo que ele sabe. Para além das sequelas deixadas pelo desespero, que me trouxe a felicidade de lhe poder salvar a vida, quase perdendo a minha pela mesma ocasião, é insensato confiar um ser tão encantador a uma mulher que a detesta naturalmente, por estar secretamente apaixonada por esse mata-mouros...”
- Por todos os demônios do inferno! - gritou François, saltando novamente do seu assento, tão bruscamente que a sua perna entalada escorregou, deitando-o quase ao chão. - Matarei esse pequeno cura logo que ele mostrar o seu imundo focinho em França...
- Porque reconhecestes a vossa própria pessoa? - trauteou Marie com um sorriso ingênuo, o que levou Beaufort ao cúmulo da exasperação. De vermelho, passou a roxo.
- Ele, também o reconheci. Só há um ser no mundo que pode escrever essas infâmias a meu respeito e trata-se desse miserável abade de Gondi, que o diabo o leve...
- Cessai de invocar o senhor Satã, a propósito de tudo e de nada! Quereis inteirar-vos da continuação da carta?
- Se é na mesma veia...
- Não, está repleta de elogios a meu respeito. É-me dito que teria sido preferível, de longe, ter solicitado o meu auxílio e ter-me confiado o assunto. Também é dito que talvez ainda não seja demasiado tarde para colocar a dita pessoa num convento seguro, no qual a sua alma, à falta do corpo, ficaria, ao menos, em segurança...
Desta vez François explodiu:
- Num convento! O meu passarinho gorjeante num convento! Ela morreria abafada!
- Parece - disse Marie, que retomara o seu ar grave - que ela não é mais feliz nesse refúgio onde a pusestes. A carta fala nas sequelas do desespero. Dir-se-ia que a pobre moça tentou acabar com uma vida que...
- Julgais que não percebi? Não sou tão estúpido quanto o vosso amigo pretende... Porquê, meu Deus, mas porquê?
E, deixando-se cair num banco, François escondeu a cara nas mãos e desatou a chorar. Um pouco comovida por aquela explosão de tristeza e pelo desconcerto que ela traduzia, Marie foi colocar-lhe uma mão consoladora no ombro:
- Rogo-vos que vos acalmeis e tentemos encarar as coisas de frente!
- Mas que posso eu fazer, quando nem sequer posso montar a cavalo e correr para lá...?
- No máximo, poderíeis viajar numa carruagem, mas isso não resolveria nada. Em compensação, poderíeis... encomendar um pouco de vinho e alguns maçapães. Não comi nada durante o dia e morro de fome. Depois, ireis contar-me tudo. E, em primeiro lugar, volto a fazer a minha primeira pergunta: onde é que ela está?
- Em Belle-Isle, por Deus! - revelou Beaufort, agitando uma campainha que fez surgir Ganseville. - Manda que nos tragam vinho e bolos.
Acompanhou Marie na sua merenda e o calor do vinho espanhol deu-lhe um pouco de melhor disposição. Além disso, sabia que ia sentir um grande alívio em partilhar o seu segredo que já não o era, ai dele, desde que esse intrometido do Gondi o descobrira com aquela rapariga tão segura de si e tão correta, que amava sinceramente Sylvie e na qual podia depositar toda a confiança. Porque diacho não pensara nisso mais cedo? Mas como teria podido pensar, submerso pela indignação, pela dor e pela revolta?
Marie escutou-o em silêncio, esquecendo-se a maior parte do tempo de trincar a pequena tarte de amêndoa que segurava na ponta dos dedos. Ao ouvir a narração dos sofrimentos por que Sylvie passara, deixou correr as lágrimas, aplaudiu quando do incêndio de La Ferrière e, depois, perguntou:
- E o outro? O verdadeiro criminoso? Que ides fazer dele?
François encolheu os ombros, abatido:
- Cometi a loucura de pedir a cabeça dele ao Cardeal. A “morte” de Sylvie concedia-me esse direito.
- E qual foi a resposta?
- Que o homem em questão, que, ao que parece, é de uma integridade a toda a prova, é muito precioso pelo serviço que presta ao Estado. Tive de dar-lhe a minha palavra de gentil-homem em como não atentaria contra os seus dias enquanto Richelieu fosse vivo...
- Pois bem, meu amigo, é preciso agir de modo a que ele ainda não viva muito tempo! Ao que julgo, não jurastes que não conspiraríeis?
- Não, não jurei. Essa também foi a reação de Pierre de Ganseville, o meu escudeiro...
- Bem vedes! Vamos pensar nisso - acrescentou a jovem, sacudindo as migalhas que tinham caído nas suas rendas. - Tanto mais que ele propôs ao Rei ordens bárbaras, a Rainha não terá o direito de ser ela própria a educar o filho, mesmo quando este já puder vestir uns calções. O Delfim possui uma casa importante, na qual reina soberanamente Mme. de Feansac, uma mulher que foi nomeada por ser a filha de M. de Souvré, antigo governador do Rei! Uma mulher ressequida, unicamente agarrada ao seu estatuto! Pobre criança! Teria sido muito mais feliz e bem tratado com a minha querida avó, Mme. de La Flotte, para quem eu solicitara o lugar...
- E o Rei recusou-se em aceder ao vosso pedido? A vós, de quem é o escravo...?
- Um escravo a quem as correntes não estorvam quando o Cardeal fala; mas deixemos isso e regressemos a Sylvie! Que poderemos fazer se esse doidivanas começar a contar a sua aventura a toda a gente?
- Engano-me, ou ele vai a caminho de Veneza, não é? O que se passa em Belle-Isle não deve interessar as pessoas de Rialto. Isso dá-nos um pouco de tempo. Eu não me posso mexer e, quando tiver sarado, deverei regressar ao exército sem tardar. E vós?
- Eu? Como quereis que me possa afastar numa altura destas? Mas, no fundo, que podemos recear de imediato? O mau humor de Mme. de Gondi, que deve julgar que Sylvie é vossa amante e que lhe pode causar sofrimento?
- Sylvie já não está em casa de Mme. de Gondi. Quando soube que o abade contava ir despedir-se do irmão antes de partir para Itália, apressei-me em enviar Ganseville para lá, que a tirou de casa deles para instalá-la numa outra, afastada, onde não deve recear mais nada da parte da duquesa que, efetivamente, a tratava muito mal. O que nunca pensava é que ela fosse capaz de...
- Como se soubésseis algo sobre mulheres! Ignorais a atração que exerceis sobre essa beata?
- Com aquela cara compungida e com aqueles olhos cabisbaixos? Estava a cem léguas de imaginar...
- O aborrecimento convosco, caro François, é que estais sempre a cem léguas de uma multidão de coisas. Por exemplo, nunca imaginastes que eu pudesse estar apaixonada pela vossa pessoa?
- Vós? Mas que maravilha!
- Devagarinho, meu caro! Se vos falo desse pequeno acesso de delírio, foi porque já passou. Um mau delírio é coisa que acontece a todos nós, mas quanto a Sylvie, ela nunca amará outra pessoa além de vós. Já é altura de vos preocupardes com tais sentimentos. Esquecestes o que o abade escreveu? Ele salvou-a do suicídio.
- Não, não me esqueci - murmurou François, novamente ensombrado. - Porque terá ela chegado a esse extremo?
- Não sei... talvez por julgar que a haveis abandonado para sempre. Quando nos deixam numa ilha meio selvagem no fim do mundo, essa é uma sensação que nos deve acudir rapidamente. Tendes de encontrar um meio para lhe fazer chegar uma carta na qual a confortareis, falando sobre a ternura que sentis por ela, e seria bom que, ao mesmo tempo, a duquesa de Retz ficasse a saber que... que o senhor de Paul se inquieta tanto com aquela jovem perdida, a ponto de gostar de... por exemplo, fazê-la ingressar na vida religiosa, por que não...? expôs Marie, que inventava, à medida que ia falando. Isso deveria acalmar os ardores bélicos da nossa beata! Caso haja visita dos sequazes do Cardeal, ela calar-se-á.
Desta vez foi François que desatou a rir:
- Tendes o gênio da conspiração, querida Aurora. A idéia parece-me boa, tanto mais que, depois do meu encontro com o Cardeal, confessei tudo ao senhor Vincent...
- Ótimo! Pedi que ele venha prestar-vos assistência, dado o triste estado em que vos encontrais, e implorai ajuda. Ele não a recusará. Quanto a conspirar... palavra de honra que me sinto inteiramente disposta a isso. Para além da Rainha já ter sofrido demasiadamente, não se deve deixar a nossa gatinha a definhar, durante anos e anos, no seu rochedo perdido! Vou pensar no assunto...
E, voltando a colocar a máscara no rosto, Marie de Hautefort estendeu uma mão na qual François depôs um beijo, enquanto, com a outra, ela segurava a seda azulada com a qual se cobriria. Na altura em que saía, ele perguntou:
- Estais segura de já não me amar?
- Que presunçoso! - exclamou a jovem, rindo-se. - Não, meu caro, já não vos amo; sois um homem demasiado complicado! E eu preciso de um coração simples...
Alguns dias mais tarde, um pequeno padre corriqueiro, um daqueles que o senhor Vincent enviava em missão para as mais pobres regiões campestres, deixava Saint-Lazare, com uma trouxa ao ombro. Esta partida nada tinha de excepcional e não chamou a atenção de ninguém, mas não havia dúvida que o pequeno padre tinha de efetuar um longo percurso, pois foi à procura da carruagem para Rennes...
No mesmo dia, no castelo de Rueil, ao qual regressara Richelieu, este recebia uma das damas de honor da Rainha, Mlle. de Chémerault, que era ao tempo muito bela e manhosa, qualidades que lhe valiam ser o melhor agente do serviço de informações de que o Cardeal dispunha junto à soberana. Contudo, ao vê-la, Richelieu não parecia lá muito contente:
- Aconselhei-vos a evitardes, tanto quanto possível, de vos encontrardes comigo, tanto aqui como no Palácio do Cardeal...
- Pareceu-me que por este assunto valia a pena deslocar-me ao vosso encontro. Além disso, na Corte ninguém ignora que vos sou dedicada. A Rainha e Mme. de Hautefort não perdem uma oportunidade para me fazerem sentir...
- Que me trazeis?
- Uma cópia que fiz de uma carta que Mme. de Hautefort acaba de receber de Lyon, logo no dia seguinte ao do nascimento de Monsenhor, o Delfim, mas que chegou um pouco antes a Saint-Germain. A reação dela foi deveras interessante, precipitando-se ao hotel de Vendôme, onde M. de Beaufort se encontrava sozinho.
De sobrolho franzido, o Cardeal percorreu o texto que lhe era oferecido e, depois, ergueu a cabeça na direção da sua visitante, muito linda no seu vestido de veludo de um vermelho garrido que realçava apropriadamente a sua beleza trigueira:
- E que conclusão tirastes desta carta? - perguntou, num tom expedito.
- Mas... que o teor dramático do desaparecimento de Mlle. de L’Isle poderia sê-lo muito menos do que aquilo que se pretendeu. Apesar das palavras encobertas que o abade utiliza mas que, afinal de contas, são bem transparentes, não vejo a que outra pessoa da Corte se poderia estar a referir... O que eu gostaria de saber é o que é que isto tudo esconde...
O Cardeal manteve-se calado. Abandonando a secretária de trabalho, dirigiu-se para a alta chaminé onde ardia o forte lume que a sua frágil saúde reclamava. Levou ao colo o seu gato favorito, que estava ali a dormir, enroscado como uma bola numa almofada, e roçou o seu rosto pelo pêlo sedoso do animal. O seu olhar perdia-se no meio do cintilar das chamas.
- Isso tudo não me interessa! - proferiu num tom seco... - E, Mlle. de Chémerault, serei forçado a esquecer-me que haveis lido esta carta...
- Mas, contudo...
- Tenho de vos dizer que é uma ordem? Sei tudo o que diz respeito a Mlle. de L’Isle e estimo que não se deve continuar a efetuar buscas que, de certo modo, contrariam os meus projetos...
Com uma lentidão majestosa, voltou-se para a jovem, que não pensara sequer em dissimular a sua decepção, e o seu olhar imperioso fulminou-a:
- Não é verdade que detestais Mlle. de l’Isle? Será por causa do jovem D’Autancourt?
Uma cólera súbita avermelhou o rosto da dama de honor:
- Parece-me justificado, não? Antes de ele a ter encontrado, era a mim que prestava as suas homenagens e eu ainda não renunciei a tornar-me duquesa.
- Haveis mencionado esta carta a alguém?
- Bem sabeis, monsenhor, que primeiro que todos é a Vossa Eminência que venho falar.
- E é assim que o entendo. Portanto, esquecei-vos desta missiva.
- Mas...
Bastou um olhar para a calar e, depois, calmamente, o Cardeal deitou o papel para o lume. Chamada à ordem, mas furiosa, ela inclinou-se numa reverência à qual ele lhe respondeu com um sinal da testa, antes de voltar a sentar-se à secretária, apoiando a cabeça cansada no espaldar da cadeira.
- Pobre passarinho gorjeante! – murmurou. - Se, na Sua infinita misericórdia, Deus quis que sobrevivesses ao destino terrível por que te fizeram passar os homens, se te livrou do pecado mortal do suicídio, não compete a mim ir contra a sua Santa Vontade. Vive pois em paz... se puderes!
A entrada de um religioso veio interromper as suas cogitações.
- Ele reclama a vossa presença, monsenhor.
- O estado dele piorou?
- Não, ainda está consciente, mas agita-se muito.
Seguindo o hábito de frade em burel cinzento, Richelieu entrou num pequeno aposento do rés-do-chão, ligeiramente afastado, composto por uma biblioteca e por uma cela de monge. Era aí que um velho, de comprida barba cinzenta, passava os seus derradeiros dias. Não que fosse muito idoso mas, com sessenta e um anos, o padre Joseph du Tremblay, que fora cognominado de Eminência Parda, estava a finar-se, não só assolado por uma estranha epidemia de febre, que atacara o próprio Rei assim como uma boa parte dos seus mosqueteiros e dos quadrúpedes que faziam parte da cavalaria ligeira, mas também, simultaneamente, pelas inevitáveis consequências do trabalho incessante de um cérebro implacavelmente ligado aos afazeres do Estado. Esse filho de embaixador, que sonhara com cruzadas e dedicara a vida a lutar contra a casa de Áustria era o conselheiro íntimo e mui precioso do Cardeal.
Quando este entrou no quarto, ele quase saltou para fora do leito, estendendo para o ministro uma mão amarelecida e seca, que tremia:
- Brisach! - arquejou... - Brisach... Qual o ponto da situação?
A conquista daquela importante fortaleza, ponte nevrálgica do Reno que cortava o acesso à Alsácia por parte das forças Imperiais, bem como a comunicação com os Países-Baixos, assombrava os dias e as noites do velho homem. Para ele significava uma espécie de coroa de glória da sua obra política mas, se bem que cercada em nome do rei de França, por um dos seus melhores soldados, o duque Bernard de Saxe-Weimar, acompanhado pelos seus velhos soldados alemães, a fortaleza defendia-se denodadamente.
Richelieu sorriu, pegou na mão que lhe era estendida e colocou-a entre as suas.
- Acalmai-vos, meu querido amigo, as últimas notícias são boas! Pressionada por ambos os lados, Brisach debate-se com falta de víveres e de água e já não nos escapará. A sua queda é apenas uma questão de dias...
- Ah!... Deus Todo Poderoso!... Temos de conquistar Brisach! Um falhanço desmantelaria todos os esforços que investimos nesta guerra interminável. A Espanha voltaria a ganhar coragem...
- Isso está fora de questão. Os nossos exércitos progridem em todas as frentes...
Pegando num banco, o Cardeal sentou-se ao pé da cama do seu velho companheiro que, acometido por uma espécie de febre, passava rapidamente em revista todos os teatros das operações da guerra interminável que ficaria na História como a Guerra dos Trinta Anos e que opunha, desde 1618, a Coroa de França à enorme coligação dos Habsburgos, de Espanha e da Áustria.
É sempre doloroso constatar os estragos que a velhice e o desgaste causam numa grande inteligência e, ao fim de algum tempo, o Cardeal não o pôde mais suportar. Foi-se embora, dizendo que ia ver se tinham chegado mais notícias, levando consigo o médico da confraria religiosa que tratava do padre Joseph:
- De quanto tempo é que ele ainda dispõe? - perguntou-lhe, logo que ficaram fora do alcance da escuta do doente.
- É difícil dizê-lo, monsenhor, pois trata-se de uma constituição robusta e sedenta de vida, mas a consciência, tal como pudestes constatar, começa a mergulhar nas trevas da senilidade. O corpo só resistirá... digamos... um mês, talvez dois!
- Não há hipóteses de cura?
- Não só de cura, mas de qualquer tipo de melhoria... a menos que Deus faça algum milagre...
- Coisa em que nem eu nem vós acreditamos!
Enquanto que desconfiava da ciência dos médicos leigos, Richelieu tinha confiança naquele Capuchinho que, antes de envergar o hábito religioso estudara em vários países quer a medicina árabe, quer a judaica. Raramente se enganava. Com que então, o padre Joseph morreria antes do fim do ano...
Regressado ao silêncio do seu gabinete, Richelieu refletiu durante muito tempo, de olhos fechados e recostado na sua poltrona. Não tinha dificuldade em adivinhar o que se passaria depois da sua morte, caso não tomasse as disposições necessárias para formar um sucessor. E como ainda não sabia de quanto tempo dispunha, precisava de escolher um homem com um espírito a um tempo vivo e profundo.
Já há algum tempo que sabia quem era aquele que melhor respondia a estes requisitos, contudo ainda não se decidira a dar o passo necessário, pois o homem em questão era a antítese do padre Joseph: mundano, sedutor, homem de Igreja forçado - nunca recebera o sacerdócio. Quando do caso Casale, pudera observar como ele atuara enquanto núncio do Papa e ainda se lembrava da espécie de alegria que sentira frente àquele monsignore, tão sorridente quanto ele próprio era circunspecto, e com o qual as conferências se tornavam um verdadeiro prazer. Além disso, tendo descoberto que o jovem amava a França ao ponto de desejar obter a nacionalidade, pensou que era tempo de mandá-lo chamar.
Foi assim que, negligenciando o secretário, escreveu em mão própria ao Papa, pedindo-lhe que enviasse o mais brevemente possível monsignore Giulio Mazarini, de quem pensava fazer o seu sucessor.
A carta era franca e direta. Richelieu sabia que em matéria de política acontece que, por vezes, a verdade bruta pesa mais que as mais hábeis sinuosidades diplomáticas. Urbano VIII veria certamente com bons olhos a chegada ao poder, em França, de uma das suas criaturas. Para o Santo Ofício seria um trunfo a não menosprezar...
Por seu lado, Richelieu estava seguro de que, sob a sua orientação, Mazarini tornar-se-ia francês e dedicar-se-ia à sua obra como um cão a um osso...
Uma hora depois, um mensageiro partia para Roma a toda a brida. Doravante, os dados estavam lançados.
Algumas semanas depois a Eminência Parda morria, de sorriso nos lábios. Para acalmar as aflições que assombravam a sua agonia, a Eminência Vermelha viera anunciar-lhe, com demonstrações da maior alegria, que finalmente Brisach caíra. Na realidade isso aconteceu alguns dias mais tarde, mas o padre Joseph du Tremblay morreu feliz...
No próprio dia em que o correio do Cardeal partira para Roma, um menino depositou um bilhete anônimo, destinado ao tenente civil, na casa da guarda do Grande Châtelet, local onde se situavam os seus serviços. Com uma escrita disfarçada, o misterioso ou misteriosa correspondente informava-o de que “aquela de quem se diz que morreu, não o está, na realidade, encontrando-se escondida num local que só é do conhecimento do duque de Beaufort e do abade de Gondi... Problema interessante, para um homem experiente...” Laffemas, com um gesto nervoso, começou por amarrotar o papel nas mãos para depois o alisar a fim de voltar a lê-lo. Não era possível ter qualquer dúvida. Só se podia tratar dela, da filha de Chiara, dessa menina que desencadeara nele as forças mais devastadoras da paixão mas que, agora, espoletava o seu ódio. Ainda conservava a dura lembrança da descompostura monumental que o Cardeal lhe infligira.
- Deveria mandar-vos enforcar pelos vossos crimes referentes a rapto, casamento forçado e violação, que causaram a perda de uma inocente. Além disso, estou ao corrente que sois o autor desses crimes cometidos sobre as prostitutas, que marcais depois com um sinete de cera vermelha, e foi em vão que tentastes inculpar um inocente. De que lama sois feito, Laffemas?
- Sou feito da mesma argamassa que qualquer homem nascido de uma mulher. Confesso que tenho os meus vícios, mas não sou o seu bom servidor, monsenhor?
- É a razão pela qual ainda não fostes preso.
- E nunca dareis ordem para que me prendam, não é verdade, monsenhor? O dono do molosso ignora ou importa-se pouco com as imundícies com que este se satisfaz ou com a sua ferocidade. O que lhe pede é que seja um guarda seguro, fiel e impiedoso. Eu sou isso tudo e mais ainda! O carrasco do Cardeal? É o que dizem a vosso respeito... Precisais de um e isso não me estorva. Sou cruel e confesso-o, mas que poderia fazer Vossa Eminência com um santo homem?
- Defendeis-vos habilidosamente e admito que preciso de vós. Mas nunca mais ataqueis uma jovem, quer ela seja nobre ou não. A violação ou o assassinato de uma virgem, ou ambas as coisas, só me tornariam implacável. Agora, ide-vos! Eu tinha um certo afeto por essa jovem...
O tenente civil não deixara de notar que apenas lhe eram proibidas as jovens e que as prostitutas não tinham lugar nos discursos do Cardeal-duque. Eram apenas carne para prazer. Que importava o que lhes pudesse acontecer?! É certo que já não estava seguro se desfrutaria ainda dos mesmos prazeres nas suas agressões.. Desde que tinham começado a dizer que Sylvie se afogara no canal de Anet que o corpo dela, tão fresco e tenro, lhe assombrava as noites com horríveis pesadelos. E eis que ela ainda podia estar viva, escondida, inacessível, mas, se calhar, viva! Reencontrá-la, seria uma caça apaixonante, pois ela não se situava mais nos limites impostos pelo Cardeal, pois já não era virgem...
Hesitou. Levam o bilhete ao seu amo? Seria uma viva satisfação para o seu amor-próprio mas, também, uma imprudência. Calando-se, ficaria com as mãos mais libertas para levar a sua pesquisa a bom termo e logo que encontrasse Sylvie ela pertencer-lhe-ia, tanto mais que o Cardeal continuaria a julgá-la morta.
Na verdade, o dia começava bem. Laffemas decidiu prossegui-lo da melhor maneira, indo presidir ao duro interrogatório de um fabricante de moeda falsa, lastimando, ao mesmo tempo, que já não se pudesse, como nos belos tempos da Idade Média, mandá-lo acabar os seus dias num caldeirão de água fervente...
E UMA TÃO GRANDE AMIZADE
Nessa noite, mestre Théophraste Renaudot jantou em casa de seu amigo, o cavaleiro de Raguenel. Entre o pai da Gazette e o antigo escudeiro da duquesa de Vendôme nascera uma grande amizade, cimentada ainda pela terrível aventura por que tinham ambos passado nas imediações do Petit-Arsenal, em consequência da qual um ficara gravemente ferido e o outro se encontrara encarcerado na Bastilha, acusado de assassinato. Gostavam ambos de se juntar à volta dos pratos cozinhados por Nicole Hardouín, a governanta de Perceval, cuja existência parecia ter como única finalidade engordar um amo, cuja magreza obstinada a teria ofendido caso não tivesse sabido que uma tristeza persistente desempenhava um peso considerável nesse seu estado. Às vezes até se sentia menos animada nas suas funções, desde que soubera que a pequena Mlle. de L’Isle e Corentin Bellec, o fiel serviçal do cavaleiro, tinham desaparecido sem que ninguém soubesse do seu paradeiro. Numa certa noite, até mesmo Monsenhor, duque de Beaufort, viera buscar Jeannette, pretextando que o lugar dela era no hotel de Vendôme, e que a duquesa precisava dela. Claro que Nicole teria gostado de receber notícias suas, mas por nada deste mundo se teria permitido ir até ao grande hotel do faubourg de Saint-Honoré, para saber novidades... Era isso que explicava ao seu eterno prometido, o delegado da polícia Désormeaux. Era a ele que devia a chegada de Pierrot, um miúdo de doze ou treze anos, que fora, durante um breve período, o bicho de cozinha nas “Três Colheres”, rua dos Ursos, e que a ajudava agora nos trabalhos pesados e a servir à mesa, matéria em que demonstrava um certo jeito.
Conhecendo os gostos de Raguenel, Nicole servia nessa noite um soberbo lombo de vaca, cozido a preceito, lombo que comprara nos talhos do Petit-Pont e que pusera a grelhar em lume brando, encarregando Pierrot de voltar cuidadosamente o espeto, regando-o de vez em quando com o molho da pingadeira. Na parte final, ela condimentara o molho com um tudo nada de vinagre e um pouco de alho, cortado muito fino. Toda esta preparação, acompanhada por feijões encarnados, fora precedida por um patê de enguias apimentado, que comprara na loja de mestre Ragueneau, perto do Palácio do Cardeal, a que se seguiria um manjar branco com compota.
Em primeiro lugar os dois amigos provaram a refeição em silêncio e, depois, comentaram as últimas notícias da Gazette, em que muito se falava dos tumultos registrados na Normandia, entre os Pés Descalços e os cobradores de impostos. A miséria era muita em numerosos locais e as pessoas enraiveciam-se. Foi assim que, em Rouen, alguns populares tinham agarrado num agente do fisco pregando-lhe pregos pelo corpo abaixo, pelo qual fizeram passar um daqueles caixotes de rodas destinados a despejar as imundícies. Os burgueses viviam fortificados em casa, enquanto os Pés Descalços percorriam os campos. O Rei mandara o marechal de Gassion para os meter na ordem...
- Esta miséria que vítima tantos pobres é uma das pragas da nossa época. Enquanto padre, o Cardeal...
- É sensível à questão, disso podeis estar seguro. Estou ao corrente de certos exemplos - interrompeu Raguenel, - mas ele está tão ocupado pelos afazeres das altas esferas do governo... para se preocupar com aquilo que, para ele, é apenas um incidente de somenos importância. Ele dedica-se por inteiro à França...
- Mas a França não é nenhuma abstração. É feita de terra, sem dúvida, mas, sobretudo, de carne e de sangue. Ora, ele é impiedoso.
- Os homens é que fizeram dele um ser impiedoso. Pensai que se encontra constantemente sob a ameaça do punhal dos assassinos... Contudo, admito que o possam achar terrível. Ao que parece pretende enviar M. de Laffemas, depois de Gassion...
- O carrasco depois dos homens armados! Desgraçada gente! É verdade que para os parisienses isso pode significar uma boa notícia. Esse homem é o diabo em pessoa...
Instalou-se um silêncio que os dois homens empregaram a passar um ao outro um frasco em faiança, com ramagens azuis, repleto de tabaco, com o qual encheram os seus cachimbos, que acenderam com uma acha retirada do fogo aceso na chaminé. Durante um momento o gazeteiro aspirou o seu cachimbo sem dizer nada, seguindo, com um olhar distraído, as espirais do fumo. Depois, como se uma força interior o impelisse a falar, declarou:
- Sabeis que... desde há um mês foram assassinadas mais duas outras mulheres?
Sacudido do suave torpor em que começara a vogar, Raguenel sobressaltou-se:
- Como... como outrora?
- Exatamente. Só o sinete mudou. Desta vez leva a letra sigma... mas o método é o mesmo: violação, decapitação e marca.
- Porque não me haveis dito nada?
- Nem sequer vos devia ter falado no assunto. Quando fui posto ao corrente do primeiro desses crimes pedi uma audiência ao Cardeal e ele não só me proibiu de mencionar o assunto na Gazette, como também de o referir a quem quer que fosse. Se não cumpro a minha palavra ao falar-vos é porque sois meu amigo e porque, na minha opinião, é normal que sejais posto ao corrente, vós que já haveis pago um preço tão elevado ao participardes nesta nossa aventura... ”
- Então, o Cardeal - disse Perceval, tão lentamente como se procurasse as palavras apropriadas - mesmo ao conhecer o assassino, parece ter optado por deixá-lo prosseguir a sua monstruosa carreira?
- Ele precisa do miserável e pensa, com certeza, que dispõe de um executório necessário pois, de certo modo, este assassino é louco. Acrescentaria ainda que a vida de algumas miseráveis nada representa para ele: segundo a sua opinião, essas raparigas escolheram viver de modo perigoso.
- Talvez até ao dia em que ele comece a atacar as senhoras de bem! - disse Raguenel com azedume...
- Uma mulher de bem não é feita de uma massa diferente da de uma prostituta - resmungou subitamente uma voz desconhecida. - Estas sofrem do mesmo modo, com a pequena diferença que a segunda talvez encaixe melhor que a primeira. Diria ainda que ambas possuem uma alma que lhes foi dada por Deus.
Enquanto o seu convidado se voltava, Raguenel levantou-se para fazer frente à personagem que se enquadrava na porta, com uma pistola carregada em cada mão. O recém-chegado era alto e robusto. Vestido com um uniforme de um vermelho desbotado, sob uma capa negra puxada para trás, calçava botas pretas muito bem engraxadas, e luvas de cabedal a condizer e, à maneira de um gentil-homem, trazia a espada de lado e um chapéu de penas pretas, um pouco gastas, mas ainda apresentáveis. Quanto ao rosto, desaparecia sob uma grotesca máscara de carnaval.
- Partilho a vossa opinião - disse Raguenel, com frieza. - Mas, quem sois e que desejais?
O outro roçou a aba do chapéu com a ponta de uma das pistolas, num gesto que podia passar por uma saudação:
- Chamam-me capitão Coragem e sou o rei de todos os ladrões deste reino...
- A minha maior riqueza reside nos livros que aqui vedes - disse Raguenel, mostrando com um gesto amplo as paredes cobertas de livros. - Quanto à minha bolsa...
- Não quero a vossa bolsa para nada... nem a do vosso convidado. Vim à procura de um nome...
- Um nome?
- O do assassino de quem estáveis a falar. Tenho a certeza que sabeis de quem se trata, desde que haveis sido preso em vez dele. Não vos peço mais nada. A última das suas vítimas era minha amante...
- E vós deixastes que ela se prostituísse pelas ruas sombrias, na margem do rio? Parece-me que usurpastes o vosso nome!
- Era uma mulher teimosa. Queria ir ter a todo o custo com uma amiga que precisava de ajuda, na rue do Petit-Musc. Encontrou o criminoso com o sinete de cera. Quero o fulano. E, antes de mais, quero saber como se chama!
- Não. Se eu vos revelasse o nome dele, estaria a prestar-vos o pior dos serviços...
- Parece-me que isso é comigo, não?
E, subitamente, ouviram-no rir por detrás da máscara que tinha um comprido nariz vermelho:
- Se bem ouvi, deve tratar-se de alguém importante pois o homem do Manto Vermelho protege-o e permite-lhe todas as suas... fantasias, mas nem que fosse o seu próprio irmão, não, ele não precisa minimamente do seu próprio irmão, nem que fosse... a sua criatura mais horrível, o próprio tenente civil, eu matá-lo-ia... à minha maneira, quer dizer, devagarinho!
- Sois louco! - exclamou Théophraste Renaudot, subitamente acometido pelo horror. - Sabeis o que isso vos custaria?
O capitão Coragem aproximou-se dele, olhou para o rosto que se tornara, de repente, do mesmo cinzento que a barba, e desatou novamente a rir:
- Então é dele que se trata? A idéia ocorrera-me, mas precisava de uma confirmação. Muito obrigado, senhor!
- Mas eu nada disse! - gemeu Théophraste, angustiado à idéia de ter faltado à palavra dada ao Cardeal.
- A vossa reação foi das mais instrutivas. Jurais, sobre o Evangelho, que não é ele?
Perante o ar aterrorizado do amigo, Perceval decidiu intervir.
- Não haveis dito nada, isso não... mas eu, que nada jurei, digo-o, o assassino é realmente Laffemas!
- Na devida altura! Eis alguém que é franco... mas, dizei-me: tendes razão de queixa da personagem. Por que não tentais vingar-vos?
- Porque uma pessoa que muito estimo poderia vir a sofrer as consequências. Aliás devo prevenir-vos: quem quer que atente à vida desse servente tão precioso, será morto.
- De qualquer modo, um dia acabarei por morrer e não me enforcarão duas vezes - troçou o bandido.
- Decerto, mas tomai cuidado em não envolver outras pessoas e assegurai-vos de que se trata bem do executor. Sabeis que houve um príncipe que teve de dar a sua palavra em como não o atacaria antes do Cardeal morrer?
O silêncio que desceu subitamente deu a medida do espanto, invisível sob aquela máscara. Finalmente, o homem assobiou:
- Vejam só!... Falta saber de que príncipe se trata... Existem alguns pelos quais não tenho a mínima consideração...
- É o duque de Beaufort!
- Ah, isso é outra história! Esse agrada-me... Pois bem, meus senhores, obrigado pela informação e por me terdes avisado! Tenho a honra de vos saudar!
A máscara continuou no mesmo sítio, mas o capitão Coragem varreu o chão com as penas do chapéu, inclinando-se com uma espécie de graciosidade. Ao mesmo tempo, pôs a descoberto uma espessa cabeleira castanha e encaracolada. Findo o que desapareceu, tão silenciosamente como quando chegara.
- Credes que foi uma atitude correta ter-lhe revelado isto tudo? - criticou Renaudot. - Pode vir a ser perigoso!
Perceval sorriu e foi buscar dois copos de vinho, um dos quais ofereceu ao seu convidado:
- Já vos esquecestes que antes da nossa infortunada aventura comum, tínhamos projetado arriscarmo-nos a ir até a um dos pátios dos Milagres, a fim de solicitar a ajuda do Grande Coesre? Não vamos lastimar que ela tenha vindo ter conosco.
- Julgais que este homem é o tal grande chefe lendário?
- Ele apresentou-se como o rei dos ladrões da França. Parece-me ser um título... por ora vamos ver o que é feito de Nicole e Pierrot. Suponho que os vamos encontrar amarrados.
- Era esse o caso. Estavam, efetivamente, bem amarrados, pois o capitão Coragem não viera só, mas ambos concordaram que não tinham sido brutalizados e que os métodos da estranha personagem eram, afinal de contas, bem cívicos.
- Assegurou-se que os nós da corda não me estavam a magoar - disse Nicole e deu-me uma palmadinha na cara, chamando-me “minha linda”!
- Dizei logo que se trata de um gentil-homem... - troçou Renaudot.
- Já conheci alguns que davam muito menos provas de cortesia! Quanto aos servidores da lei, é melhor nem falar deles! - retorquiu Nicole, que nem sempre tinha motivos para se orgulhar do seu bom amigo, o delegado da polícia Desormeaux...
Perceval contentou-se em pedir a Pierrot que fosse buscar mais madeira para alimentar o lume e guardou para si as suas reflexões. Um gentil-homem? Porque não? Aquela voz e aquela entoação tinham-lhe dado que pensar e, no fim de contas, só Deus sabia quem podia ter interesse em esconder-se na cloaca dos milagres!
Três dias mais tarde, numa quinta-feira, dia de publicação da Gazette, os parisienses foram informados que o seu tenente civil, que fora agredido quando se encaminhava tardiamente para casa, só devia a vida a uma inesperada intervenção da ronda. Escapara com um ligeiro ferimento, que não teria tempo para tratar, visto ter sido imediatamente encarregue de uma missão pacificadora na Normandia, junto ao marechal de Gassion.
- O palerma! Falhou o atentado - resmungou Perceval, que esteve prestes a amarrotar o precioso jornal que o seu amigo Théophraste lhe trazia em mão própria.
- Quis acabar tudo à pressa! Queira o Céu que M. de Beaufort não tenha de sofrer as consequências deste passo em falso!
- Não o creio. O Cardeal recebeu uma carta grandiloquente da parte do capitão Coragem, um autêntico convênio destinado a Laffemas, no qual afirmava que o seu autor não conheceria nem trégua nem repouso enquanto o tenente civil ainda ousasse respirar o ar do bom Deus!
- Como o soubestes?
- Foi Sua Eminência que me disse. Aproveitou até a ocasião para me proibir formalmente de falar do assunto na Gazette. Tem muito receio que o dito capitão conquiste o coração das gentes e se torne uma lenda.
- Pois bem, eis-nos mais tranquilos! Monsenhor François não tem nada a temer...
- Estou menos seguro que vós. Não tenho a certeza de que não desconfiem de que seja ele que se esconde sob a máscara do capitão Coragem. É o estilo de loucura que lhe assenta bem... Oh, não será atacado frontalmente, mas o Cardeal poderá tecer-lhe uma armadilha à sua maneira. É notório que não aprecia os Vendôme e este membro da família ainda menos que os outros. François seduz muita gente...
- Vós, que frequentais a cidade e a Côrte, podeis dizer-me se ele se tornou o amante de Mme. de Montbazon, cujo nome é associado ao dele desde há já algum tempo?
- Nesse domínio é sempre difícil saber o que se passa realmente, mas é possível que seja verdade. Mlle. de Bourbon-Condé, com quem o duque procurava casar-se, acaba de desposar o duque de Longueville, que era precisamente o amante de Mme. de Montbazon. Esta jigajoga é muito ao seu estilo. Claro que se diz por todo o lado que ele está louco por ela, mas pergunto-me se ele não alimenta estes rumores apenas para que a Rainha fique cheia de ciúmes...
Uma vez só, Raguenel meditou durante muito tempo sobre as últimas palavras pronunciadas pelo amigo. Pensava que uma nova paixão expulsa a outra e que, num certo sentido, era uma boa coisa que François esquecesse as suas paixões demasiado perigosas mas, por outro lado, ao pensar na sua pequena Sylvie, pela primeira vez regozijou-se que ela estivesse naquela ilha situada no fim do mundo. De outro modo, aquilo que poderia vir a saber, poderia magoá-la demais...
Conhecia Belle-Isle por lá ter ido, outrora, na companhia da duquesa e de seus filhos. Conhecia o esplendor das suas paisagens e o Porto do Bom Socorro, com o seu velho priorado, recordava-lhe algo. Um breve bilhete de Ganseville, quando o escudeiro atravessara Paris ao encontro do seu amo, dissera-lhe que este arranjara uma residência na ilha para Sylvie, Jeannette e Corentin, e que tudo parecia correr pelo melhor. É claro que, na ilha, a época das férias e a época Invernal deviam ser muito diferentes mas, bem protegida e afastada das intrigas da Corte nas quais ela já se implicara demasiado, talvez Sylvie pudesse reencontrar por lá um pouco da sua antiga alegria de viver. Tudo o que podia fazer era esperar e rezar por ela, colocando nas mãos do Senhor a dor dessa separação, que não lhe permitia receber notícias dela...
As notícias que poderia ter recebido ter-lhe-iam agradado, Sylvie ia bem. Depois do acidente que tivera na companhia do abade de Gondi, até retomara gosto à vida. Tal como lhe dissera o seu companheiro de infortúnio, mais valia que renunciasse em atentar contra a vida, pois era evidente que o Senhor não queria que ela deixasse a terra. Assim, mais valia conformar-se. Efetivamente, caso se tivesse atirado do pico de que caíra, não havia a mínima dúvida em como não teria falhado o seu suicídio, mesmo que tivesse caído em cima dos rochedos, mal cobertos de água; ao invés, ambos tinham rebolado, estreitamente enlaçados, sem nunca perderem o contato com o solo, até que uma saliência rochosa, encoberta por uma moita, lhes reteve a queda. Alertado pelo grito do abade, um pescador apressara-se a ir buscar socorro e, menos de uma hora mais tarde, tiravam-nos daquela posição desconfortável, tendo Jeannette e Corentin chegado em primeiro lugar. Sylvie não se lembrava de nada, porque sofrera um choque na cabeça ao aterrar, desmaiando em seguida. Acordara na sua cama, debatendo-se com dores que desapareceram depressa, expulsando-lhe do corpo jovem o último vestígio da violação. De joelhos, Jeannette louvara o Céu e até chorara de contentamento pela primeira vez há muito tempo e, sobretudo, de alívio... Só Jeannette e Corentin eram depositários daquele triste segredo.
- Enquanto éreis transportada, apercebi-me subitamente que perdíeis muito sangue e arranjei-me para que fosse a única pessoa a dar por isso, pois compreendi logo o que se passava... graças a Deus - explicou Jeannette. - E, aqui, exigi ficar a sós convosco. Além disso foi muito mais divertido ter de levar o senhor abade até à casa do senhor duque, de quem se poderia esperar uma recompensa: ele gritava como um gato esfolado, devido a todos os espinhos que o picavam. Também tínheis alguns espetados no vosso corpo, mas em muito menor quantidade!... Oh, Mlle. Sylvie, Deus teve piedade de vós! Não era justo que, sendo inocente, tivésseis de ser vós a pagar o preço horrível do crime que um outro cometera. Agora, ireis poder esquecer-vos de tudo...
Subsistia, no entanto, a sensação de ter sido conspurcada. Mesmo que o corpo se tivesse limpo, os sonhos iriam permanecer indefinidamente ensombrados. O amor que tinha por François, estava matizado pelo desespero: admitindo que conseguisse um dia conquistá-lo, como ousaria oferecer-lhe então os restos deixados por um Laffemas?
É certo que o pequeno padre Lê Floch, que o senhor Vincent enviara a Mme. de Gondi para lhe dar conta de todo o interesse que tinha por Mlle. de Valaines, e que a viera visitar, sugerira-lhe uma solução: entregar a sua pessoa e alma a Deus, lançando-se em dissertações em torno de uma idéia geral segundo a qual só Deus é digno do maior amor e que as Suas esposas são possuídas por uma felicidade serena. Mas Sylvie não conseguira imaginar-se fechada num claustro para sempre: as belezas da natureza e, sobretudo, a liberdade dos grandes espaços são muito rigorosamente medidas dentro desses locais...
- Moro numa destas antigas residências - disse-lhe - e à minha volta só há o céu, o mar e o campo. As nossas orações não deparam com qualquer obstáculo e estamos em paz. Mesmo que o senhor Vincent assim o deseje, não tenho nenhuma vontade de ser freira...
Ele despediu-se, sem conseguir mais nada. Em compensação foi a duquesa de Retz que começou a honrá-la com as suas visitas à pequena casa que dava para o mar. A intervenção do senhor Vincent fora útil, na medida em que, doravante, a nobre senhora jamais procuraria prejudicar aquela que julgava ser a amante de Beaufort. Por outro lado parecia ter-se investido da tarefa de atraí-la para a vida monacal que era, na sua opinião, a melhor maneira de escapar a todas as feridas deste mundo.
Sylvie começou por escutá-la educadamente, mas as preces dela não tardaram a fartá-la. Por isso estabeleceu um acordo com o jovem Gwendal, o miúdo do moinho de Tanguy Dru, cujas asas rodavam no outro extremo do Porto do Bom Socorro. Quando este avistasse a carruagem ducal, correria a preveni-la, o que lhe permitiria procurar refúgio no campo ou nalgum buraco de rochedo, deixando Jeannette incumbida de explicar, por meio de muitas reverências, que a sua jovem senhora gostava muito de isolar-se no meio da natureza, obra do Criador, para se entregar à meditação e para captar, talvez, o Apelo Divino...
O mais incrível é que, afinal, ela não estava a mentir assim tanto. A beleza da ilha agia sobre Sylvie. Ela deleitava-se ao descobrir as suas diversas facetas durante os longos passeios que empreendia, mas era sobretudo o mar que a atraía e do qual nunca se fartava. Deitada na relva, nalgum ponto mais elevado do campo, através das extremidades musgosas dos gramíneos ou das odoríferas cabeças de fungos, ela contemplava o vaivém das vagas, ora ligeiro e suave, ora barulhento, espumoso e soberbo. Se não fosse tão duro para os pescadores alguns dos quais se tinham tornado amigos seus teria tido uma preferência pelo mar bravio, pois era ele que exprimia tão bem o poder absoluto do oceano. Sabia que outrora François sentira o mesmo que ela e a felicidade de poder colocar os seus passos nas pegadas do seu amigo reconfortava-a e quase a tornava feliz.
Ela nunca se deslocava até ao Palácio e, se fosse possível, ainda menos à residência dos Gondi. Para ela a reentrância terrestre que se estendia depois do Porto constituía uma fronteira que não desejava transpor. Os seus deveres de cristã, desempenhava-os plenamente na pequena igreja de Roserières, uma aldeola ao pé de sua casa, cujo reitor, de idade, ficara amigo de Corentin com o qual ia pescar. A pouco e pouco as pessoas tinham acabado por adotar aquela jovem, sempre vestida de negro, da qual se dizia que trazia um luto pesado, sem nunca precisar o seu objeto e não sem motivo! Além disso, ela adorava as crianças, das quais se sentia ainda tão próxima e as pessoas das imediações não demoraram a aperceber-se disso. Em compensação, os oficiais da cidadela que tentaram fazer-se convidar, foram afastados com tanta cortesia quanto firmeza. As pessoas da casa que dava para o mar conheciam sobejamente a fragilidade de uma reputação feminina...
Assim se passaram dois Invernos que, em Belle-Isle, eram muito amenos. A neve só raramente fazia a sua aparição e, apesar do fato do antigo priorado estar exposto para nordeste, suportavam-se bem as tempestades e as borrascas, de tal modo as cores do céu e do mar eram sempre fascinantes. A morrinha de Dezembro ou os aguaceiros de Março não impediam Sylvie de sair. Até afirmava que aquela água vinda do céu só fazia bem à tez e aos cabelos.
- Dentro em pouco faz dezoito anos e é bonita como um amor - confessava Jeannette a Corentin, que começava a achar que as coisas se arrastavam. - Até quando deverá ela permanecer neste pedaço de terra no fim do mundo? Se ainda tivéssemos notícias... mas dir-se-ia que o mundo inteiro se esqueceu de nós!...
- Ela foi dada como morta no continente, e nós também. Não se escreve aos defuntos.
- Mas até no próprio castelo ou na aldeia, eles ignoram o que se passa em Paris ou noutro sítio. Julgava, contudo, que o senhor duque gostava de receber visitas.
- Sem dúvida, mas isso sai caro e ouvi dizer que a fortuna dele se esvai cada vez mais. À menor oportunidade, a duquesa aproveita para ir reduzindo as suas despesas.
- Nem sequer o abade voltou! Ao menos, esse era divertido.
- Com certeza que deve ter outras coisas para fazer!
E Corentin que como bom bretão que era não detestava assim tanto aquela existência, mesmo que ela lhe parecesse um pouco monótona, deixou Jeannette a suspirar sozinha ao canto da lareira, para ir colocar algumas linhas de pesca e ir, depois, beber um pouco de cidra a casa do seu amigo, o moleiro...
Numa manhã de Primavera, em que a ilha parecia pintada de fresco, Corentin descera até ao porto para assistir ao regresso dos barcos, após a pesca noturna. Dir-se-ia que se estava no mais belo dia de Verão, com o tempo ameno e o mar liso como cetim. Deparou com uma atividade intensa. Não só as barcas despejavam no cais um montão de sardinhas com sensacionais reflexos de prata azulada, como havia também duas outras, à vela, que descarregavam pedras destinadas aos consertos da torre norte da cidadela. Efetivamente, se o duque de Retz era o único mestre a bordo, devia zelar pela sua segurança e pelo bom estado das fortificações que o seu antepassado outrora construíra. Essas eram despesas que não podia evitar, mesmo que a sua fortuna em queda lhe tornasse as coisas cada vez mais difíceis...
Outra embarcação chamou a atenção de Corentin, um navio alongado, de tara fraca, arvorando as cores do bispo de Vannes, manobrava para acostar. Conhecia-o bem, por tê-lo visto trazer muitas vezes o próprio prelado, com alguns convidados, em visita pastoral ou, ainda, por ter vindo buscar, para as cozinhas episcopais, certos legumes que em Belle-Isle tinham uma qualidade peculiar. Nessa manhã, Corentin viu desembarcar uma dama, ladeada por uma camareira e por quatro criados armados, como é conveniente para uma viagem. Ora, essa dama que puxara para trás o capuz de veludo para pôr a descoberto um rosto jovem de uma grande beleza, e uma esplendorosa cabeleira loira, reconheceu-a de imediato com um arrepio de alegria, não conseguindo impedir-se de correr ao seu encontro: era Marie de Hautefort!
Ia abordá-la, esquecendo-se de qualquer prudência, pensando unicamente na alegria que aquela chegada podia dar a Sylvie, quando um pensamento brusco o reteve, a açafata da Rainha pertencia a um mundo ao qual Sylvie já não tinha acesso, em que se tornara apenas uma sombra, mas onde os Gondi ainda desempenhavam um certo papel.
Não foi sem desconsolo que se voltou, desatando a correr, mas ela já o vira e mandara um dos seus criados correr atrás dele. Este não teve qualquer dificuldade em apanhar um homem que se afastava contrariado.
- Por favor - pediu o jovem de pernas robustas - a minha senhora deseja ver-vos!
Corentin afastou as dúvidas do seu espírito. Era uma carta demasiado boa para não ser jogada e, um momento depois, inclinava-se perante a jovem, que lhe sorria:
- Ela vai bem? - perguntou de rompante.
- Muito... muito bem, senhora - conseguiu proferir, um pouco atrapalhado.
- Dizei-lhe que irei visitá-la depois do almoço. O protocolo obriga-me a ficar em casa da duquesa de Retz mas, depois, vou mandar que me levem até sua casa. Estou aqui por causa dela...
- Ela vai ficar muito feliz mas... pelo menos não lhe trazeis más notícias?
- Quando já não vemos alguém há mais de dois anos há forçosamente um pouco de tudo, mas não penso que seja o mau lado a levar a melhor! Vamos, amigo!
Não foi preciso repetir a ordem. Corentin subiu a comprida rue de Haute-Boulogne e percorreu o trajeto até ao Porto do Bom Socorro a tal velocidade que, ao chegar, perdera completamente a respiração, afundando-se num banco, ao pé da chaminé, na qual Jeannette cozinhava a sopa. O tempo de recuperar o fôlego e a sua notícia explodia como um toque de clarim.
- Mlle. de Hautefort! Está cá e veio de certeza para ver Mlle. Sylvie.
- Vai preveni-la! Ela está lá em baixo, a pescar camarões, de pés na água. Meu Deus! Estou em pulgas para saber que notícias ela traz! Mas, entretanto, tenho de arrumar a casa! Isto parece uma pocilga!
Era muito exagerado, mas mal Corentin começara a atravessar a praia, já Jeannette revirava tudo de pernas para o ar. Movia-se com tanta energia que não ouviu o grito de alegria de Sylvie. Para a exilada, a chegada da amiga era uma resposta do Céu às preces que não parara de lhe dirigir, para ter ao menos notícias de François. Aquele silêncio, que tanto se arrastava, tornava-se insuportável.
Quando Marie apareceu, caíram nos braços uma da outra, sem pronunciar uma palavra, demasiado comovidas para falar, mas não eram mulheres para se quedarem muito tempo nos arrebatamentos do coração. Pegaram na mão uma da outra para se irem sentar no banco de pedra que Corentin colocara de encontro à casa e junto a um ramo de giestas. Sylvie estava tão feliz que não conseguia encontrar palavras para falar, contentando-se em olhar para a amiga com um grande sorriso e com olhos tão brilhantes que as lágrimas não deviam estar muito longe. Marie sentiu que as mãos dela estremeciam nas suas:
- Vim para vos vir buscar - disse, num tom de uma suavidade que não lhe era usual. - Já está na altura de regressardes ao mundo dos vivos.
- Foi François que vos enviou?
- Não, meu Deus! Vim por iniciativa própria. O vosso herói está no exército, na companhia do Rei, que vai cercar Arras. A Corte encontra-se em Amiens. Acrescento que o abade de Gondi vos envia os seus cumprimentos e aconselhou-me vivamente a que viesse. Ambos pensamos que não estais mais em segurança neste lugar.
O sorriso de Sylvie desvaneceu-se sob a decepção sofrida.
- Então o abade regressou de Itália?
- Há muito tempo! É um homem que não pode ficar a viver muito tempo longe da Praça Real. Além disso, como é do tipo mais curioso e intriguista que existe, acaba por ficar ao corrente de coisas extraordinárias. Por exemplo, que o tenente civil, que é originário de Dauphiné, teria família para os lados de La Roche-Bernard e que pensa lá regressar quando estiver completamente recuperado. O que não deve tardar, pois acaba de escapar a dois atentados, sentindo vontade de mudar de ares.
A silhueta sinistra do seu carrasco, subitamente evocada sob o céu da sua ilha, fez estremecer Sylvie, que empalideceu bastante.
- E onde fica La Roche-Bernard?
- Não muito longe daqui. Tem de se passar por lá para embarcar em Piriac. Portanto, repito-vos, vim para vos levar...
- Se for para me enterrardes no fundo de um convento, como o desejam o senhor Vincent de Paul... e M. de Beaufort, como o sonha aliás Mme. de Gondi, então prefiro ficar aqui e correr o risco. Não estou só; velam por mim e devo poder defender-me...
Marie desatou a rir:
- Mas quem vos falou de conventos? Conheço-vos sobejamente para ignorar o desprazer que eles vos inspiram. Venho levar-vos de volta...
- Até Paris? - exclamou Sylvie, novamente cheia de esperança. - A Rainha reclama a minha presença?
Foi a vez de Marie ficar acabrunhada.
- A Rainha julga-vos morta, querida gatinha. Acrescento que ela não derramou uma lágrima por vós. Tenho sempre um grande afeto por ela, mas devo reconhecer que é uma mulher que se esquece facilmente... que é egoísta... e nada inteligente!
Houve um silêncio que permitiu a Sylvie ponderar aquelas últimas palavras:
- Nunca pensei que vos ouviria dizer tais coisas - comentou finalmente. - Mas, agora penso, se a Corte se encontra em Amiens, como é possível que vos encontreis aqui?
- Porque já não faço parte dela, Sylvie.
- Já não sois açafata?
- Pois não! Diria até que sou uma exilada... para agradar a M. de Cinq-Mars! Recordai-vos de M. de Cinq-Mars, aquele oficial encantador da Guarda que era protegido do Cardeal, que vos acompanhava até casa e que recusava tão peremptoriamente o lugar de mestre do guarda-roupa do Rei?
- É difícil esquecermo-nos dele. Sempre se mostrou charmoso...
- Já o é muito menos. Deveis recordar-vos... até ao ano passado eu tinha tomado o lugar de... Mlle. de La Fayette. O Rei cortejava-me assiduamente e só jurava pelos meus olhos, quando eu não o maltratava muito e, ainda mais, quando eu o fazia. Deu festas em minha honra, compôs bailados para que dançássemos juntos. Após o nascimento de Monsenhor, o Delfim, a Corte era extremamente alegre...
- Mas nunca haveis...?
- O quê? Cedido ao Rei?... Quem julgais que sou? Ele era livre de se apaixonar por mim, sabia em que riscos e perigos se estava a meter. Aliás, nunca lhe pedi nada, nem um favor nem um lugar, exceto uma vez, quando lhe pedi para que nomeasse a minha avó governanta da criança e, depois, dama de honor, para substituir Mme. de Senecey. Ele recusou o pedido e compreendi porquê...
- Mas que tem a ver M. de Cinq-Mars com isto tudo?
- O que tem a ver? Ora essa, apenas que ele é hoje o favorito do Rei. O Cardeal, que me detesta, conseguiu desferir um belo golpe. Aquele fedelho controla o Rei como quer! Enriquece a olhos vistos e até pediu o posto de Grande-Escudeiro, que conseguirá seguramente. Chamar-se-á Monsieur, o Grande... o que não o impedirá de ir todas as noites a correr para o Marais logo que o Rei estiver deitado, a fim de encontrar a sua amante, a bela Marion de Lorme.
- Então foi ele quem vos substituiu nas preferências afetivas do Rei?
- Claro! Mas isso não lhe bastou. Para melhor assegurar o seu poder sobre o nosso amo, quis reinar sozinho e exigiu que eu me fosse embora! Suponho que o Cardeal meteu o nariz nesta história... Então fizeram-me saber que a minha presença já não era desejada. E, numa bela manhã, como aconteceu outrora a Louise de La Fayette, havia um coche à minha espera, na presença de toda a Corte, para “me levar de regresso ao seio da família”.
A voz quebrou-se, retendo a custo um soluço. Sylvie imaginava o que poderia ter sido aquela humilhação pública para a altiva Hautefort.
- Mas, que vos criticam?
- De não mais agradar... e, até, de incomodar! - respondeu raivosamente. - O Rei deve ter captado o que eu sentia, pois na altura em que me despedia dele com uma reverência, estendeu-me a mão e disse-me: “Casai-vos! Conceder-vos-ei favores...”
- E, entretanto, exilava-vos sem nenhum verdadeiro motivo. E a Rainha, no meio disso tudo?
Marie encolheu os ombros, com um resto de tristeza.
- Abraçou-me em particular, mas nada fez para me guardar. Além disso ela... está novamente grávida!
Sylvie esbugalhou os olhos:
- Mas... como haveis feito? François...
- Oh, ele já nada tem a ver com o assunto. Aliás pergunto a mim mesmo o que pensa desta história...
- Então quem foi?
Desta vez Marie desatou a rir e Sylvie, ao reencontrar aquela alegria esfuziante, disse a si mesma que o mal talvez fosse menos grave do que imaginara.
- Dir-se-ia que não acreditais minimamente na virtude de vossa rainha? Mas, minha filha, trata-se do Rei! O Rei, que Cinq-Mars arrastou, por assim dizer, até à cama da esposa, ameaçando-o de que, caso não lhe satisfizesse a vontade, deixaria de vê-lo durante um mês! Oh, o favorito tem grandes poderes: pretendia que era preciso assegurar a descendência antes que a Rainha deixasse de poder procriar. A criança é esperada para Setembro... O que não significa que o Rei goste mais da sua mulher! Desconfia cada vez mais dela. É por isso que não lhe tenho muito rancor. Tanto mais que a nova dama de honor, Mme. de Bressac, pertence por inteiro ao Cardeal, bem como o marido, nomeado, como que por acaso, superintendente da casa da Rainha. Ah! A época das belas aventuras amorosas parece-me bem acabada...
- Nada está acabado caso ela ame ainda François, tanto quanto ele a ama a ela!
- Esse era efetivamente o seu sentimento quando me fui embora, se bem que...
- Se bem que...?
- Ainda vos lembrais de todos aqueles lindos objetos que a Rainha recebera de Itália, na altura da concepção do Delfim?
- Claro. Tinham sido enviados por um tal monsignore Maz... Maz...
- Mazarini! Pois bem, ele regressou à nossa presença no mês de Janeiro, para substituir o padre Joseph enquanto homem de confiança de Richelieu. Obteve a nacionalidade francesa e agora chama-se Mazarin. A Rainha recebe-o com prazer... - E, de repente, a altiva Hautefort explodiu de novo. - O velhaco! Esse falso padre é um autêntico intriguista, oriundo de um criado do príncipe Colonna! Pensar que tem o descaramento de se pôr com floreados perante a Rainha de França!
- Também me lembro que o detestáveis. Dir-se-ia que não subiu nada na vossa estima...?
- Execro-o. Tanto mais que, segundo a minha avó, ele se parece com o defunto mylord Buckingham! Semelhança bem perigosa!
- Pobre François! - murmurou Sylvie, já disposta a condoer-se daquele que tanto amava e que, contudo, parecia esquecer-se dela...
Marie mordeu a língua. Ia para dizer que a sorte de François não era assim tanto para lastimar, mas lembrou-se a tempo que Sylvie já sabia quanto bastasse pelo momento. Levantou-se, sacudindo o vestido no qual se tinham depositado algumas flores de giesta.
- Por hoje, basta de conversa! Deveis preparar-vos, Sylvie, partiremos amanhã, aproveitando a maré da madrugada...
- Mas... para onde me levais? Estou bem aqui... quase me sinto feliz - confessou Sylvie, com um gesto amplo dos braços que abrangia toda a paisagem marítima.
- Se Laffemas vos descobre, a vossa felicidade não durará nada. Arriscai-vos a ser raptada com todas as implicações que daí decorrem. Vou levar-vos para casa da minha avó, no castelo de La Flotte. É para aí que fui destacada e mais vale que volte para lá o mais depressa possível...
- Ficaria contente de vos acompanhar, bem como os meus companheiros, mas que dirá M. de Beaufort, que teve tanto trabalho para me esconder?
- Penso que tereis oportunidade para lhe perguntar, a distância entre La Flotte e Vendôme é só de uma dezena de léguas.
O rosto de Sylvie corou, enquanto que os seus olhos fulgiam.
- É verdade?
- Alguma vez vos menti, minha gatinha? Acrescento que a minha avó é uma du Bellay, contando ainda com Bertrand de Born, que foi visconde de Hautefort, bem podeis constatar que não faltam poetas na família, e que o seu sobrinho, Claude, é o atual governador de Vendôme...
Desta vez, Sylvie pendurou-se-lhe ao pescoço:
- Vou dar ordens para que comecem os preparativos para a nossa partida... - Já se dispunha a entrar em casa mas, subitamente, reconsiderou e regressou devagar para junto da companheira, com o olhar carregado:
- Sem dúvida que terei de ir fazer as reverências de despedida à duquesa de Retz - murmurou.
- E isso não vos agrada. Descansai, está fora de questão. A vossa partida deve decorrer com a máxima discrição e a maré é às cinco da manhã. Além disso, esta casa pertence-vos e tendes perfeitamente o direito de fazer uma pequena viagem sem ter de solicitar a sua opinião. Agora despeço-me: tendes que fazer e eu também. Dois criados meus virão esta noite buscar as vossas bagagens...
- Não temos qualquer espécie de bagagens!
- Então tudo será ainda mais fácil. Quanto à vossa pessoa, tendes coragem de descer a pé até ao porto antes do nascer do dia?
- Com certeza. Não fica assim tão longe.
- Comparecei às quatro e meia da manhã. O barco chama-se Saint-Cornelye o dono vai ser prevenido.
- Se fazeis questão em ser discreta não me envieis os vossos criados. Volto a dizer-vos que temos pouca coisa: apenas simples sacos, fáceis de levar. E Corentin é robusto.
- Tendes razão. Na verdade, sou uma pobre conspiradora.
- Sempre julguei o contrário. Mas iremos verdadeiramente conspirar?
- Só faremos isso! Claro que não será nem contra o Rei nem contra a Rainha, mas sim contra esse malfadado ministro, contra a sua alma danada e o seu carrasco!
Ainda era noite quando o Saint-Cornely abandonou o porto do Palácio. A torre de vigia que assinalava a entrada ainda estava acesa e os seus reflexos vermelhos dançavam sobre o mar que, naquela manhã, estava um pouco encrespado. Ao dobrarem a ponta noroeste da ilha d’Houat, cruzaram-se com outro navio, vindo de Piriac, e que transportava apenas um passageiro. Tratava-se de um certo Nicolas Hardy, indubitavelmente o melhor espião de Laffemas, que o enviava como posto de vigia avançado, disfarçado de mercador retroseiro, encarregue de visitar os habitantes de Belle-Isle a fim de examinar se seria interessante para que o seu patrão se deslocasse ali, pessoalmente. Os pescadores saudaram-se mutuamente, mas os respectivos passageiros, sentados no fundo das barcas, não tinham a menor idéia do que eles transportavam. Para mais, abrigadas sob enormes capas de capuzes baixados, as duas mulheres estavam irreconhecíveis...
Feliz por se ir aproximar de François, Sylvie deixava-se embalar pela ondulação. Sabia que o mar era seu amigo e que não lhe causaria qualquer mal-estar, por já ter várias vezes acompanhado Corentin num barco de pescadores.
Quando o dia surgiu, já a ilha ia longe. As suas altas falésias eram apenas uma indistinta massa acinzentada, que se desvanecia no horizonte. Então, Sylvie pôs-se a pensar em voz alta:
- Gostaria de cá voltar! Não se imagina como esta ilha é bonita!
- O vosso caro François massacrou-me mais de uma vez os ouvidos a esse respeito - disse Marie. - Pelo que pude ver, não deixa de ter razão...
- Se não morassem aqui certas pessoas, seria possível viver por cá muito feliz...
- Isso, minha querida, é válido para muitos locais por esse mundo fora! Só espero que vos ireis sentir bem, lá para onde vos levo...
UM CAMINHO PLENO DE CARREIROS
UMA TERRA DE POETAS
Tanto Marie de Hautefort como Théophraste Renaudot enganavam-se ao pensar que o duque de Beaufort já não amava a Rainha. O brilho dos seus novos amores com a muito bela Marie de Montbazon traduzia sobretudo a necessidade de que dele se falasse de uma forma suficientemente gritante para que chegasse aos ouvidos reais e de exibir uma amante capaz de provocar o ciúme a qualquer mulher.
Ele lançara-se nesta nova aventura depois da Gazette ter anunciado a nova gravidez de Ana de Áustria. Sabendo que desta vez nada tinha a ver com o assunto, a sua raiva levara-o direitinho a Saint-Germain, onde a Corte se instalara, preterindo o velho Louvre em obras, após o anúncio triunfal de um nascimento que já ninguém esperava. O ar era muito mais agradável que em Paris e os jardins, em terraços, com os seus suaves perfumes, quando regressavam os belos dias, substituíam vantajosamente o bulício e os maus cheiros da capital. François apenas tirava uma conclusão destas novas instalações: aquela que amava vivia muito longe do hotel de Vendôme e, num edifício envidraçado como era Saint-Germain, era impossível vê-la em privado. Contudo fora até lá, a cavalo e sem ser escoltado por nenhum escudeiro, consumido pela febre do seu furioso ciúme, com a idéia fixa de que lhe bastaria um simples olhar para detectar qual o homem que tomara o seu lugar no coração e no leito da sua bem-amada pois recusava-se a crer que fosse o Rei.
Naquele princípio de ano, os caminhos estavam num estado detestável: uma repentina descida de temperatura transformara a neve em lama e as placas de gelo em atoleiros. Contudo, uma longa fila de coches progredia na direção do castelo, em andamento refreado. O cavaleiro furioso ultrapassou-os, não sem desencadear alguns protestos, mas quando saltou finalmente do cavalo frente às escadas do Château-Neuf, apercebeu-se que as suas botas e a grande capa que usava para montar se encontravam com mais lama do que seria conveniente para se poder apresentar num salão. A capa ficou nas mãos de um criado que chegou mesmo a limpar-lhe as botas ao de leve para que não sujasse demasiadamente os tapetes dos aposentos. Mas nem por isso Beaufort deixou de estar enlameado quando chegou ao Grande Gabinete em que a Rainha recebia.
Encontrava-se lá muita gente, muito mais pessoas que teria desejado encontrar, tanto mais que a apresentação da Corte lhe pareceu diferente. A amável Mme. de Senecey cedera o seu lugar a uma virago, linda, é verdade, mas que arvorava ares de aia espanhola; Aurora já não animava a assembléia com o seu esplendor e as suas respostas cáusticas e, finalmente, mesmo que o batalhão das damas de honor, reunido a um canto, continuasse aparentemente igual a sempre, o visitante deu por si a procurar debalde uma guitarra, uma carinha viva sob cabelos brilhantes presos por fitas amarelas... A atmosfera também mudara. A sua presença na Corte não era desejada, nem pelo Rei, nem pelo Cardeal, mas não pensava que o encarassem com tanta curiosidade, sussurrando à sua passagem. Houve alguém que tentou segurar-lhe o braço, mas ele desembaraçou-se com brusquidão e sem olhar para ver de quem se tratava. Só tinha olhos para a Rainha, inteiramente vestida de cetim cor-de-rosa e de rendas brancas que formavam um lindíssimo adorno para o seu peito. Ela sorria ao falar com um homem moreno, magro e de lindo porte, que trazia o traje negro dos abades da corte realçado por bainhas violetas e que dialogava junto a ela.
Pareceu-lhe ainda mais bela e desejável que nas suas recordações e estava ali especado, sem ousar avançar, quando ela o vislumbrou com um estremecimento:
- Ah, M. de Beaufort! Vinde aqui, para que vos descomponha! Fazei-vos raro nestes tempos...
Estas palavras aprazíveis deviam ter constituído um bálsamo para o sofrimento de François, mas o tom com que foram proferidas, mundano e indiferente, tirava-lhes qualquer valor. Além disso, o abade voltara-se e um rasgo de cólera varreu a decepção: desde que o cruzara há alguns anos, quando ele era ainda núncio papal, Beaufort compreendera que haveria sempre de detestar monsignore Mazarini.
Todavia, este cumprimentava-o com um daqueles sorrisos feitos para agradar, enquanto Ana de Áustria esboçava uma apresentação:
- Talvez ainda não conheceis...
Não teve tempo para pronunciar o nome. Beaufort já ripostava, de chispas nos olhos e inclinando ligeiramente o busto:
- Oh, já me encontrei com o senhor abade, mas não pensava que ele regressasse...
Foi o interessado quem se encarregou da resposta. Com uma reverência graciosa do corpo e com um sorriso ainda mais gracioso sob um fino bigode com as pontas galantemente levantadas, fez ouvir uma voz sedosa, com uma melodiosa pronúncia afrancesada:
- Sua Eminência, o cardeal de Richelieu, convocou-me para junto dele, a fim de o ajudar na sua tão pesada tarefa.
- Não gosto do Cardeal, mas ele é francês. Porque diabo precisaria ele de um italiano?
- Beaufort! - repreendeu a Rainha. - Perdeis a cabeça e isso começa a acontecer com uma frequência que não me agrada...
- Deixai, Senhora, deixai! O senhor duque ignora que agora tenho nacionalidade francesa e que estou pronto a dedicar-me por inteiro à minha nova pátria. Deste modo, Mazarini já não existe. Bastou uma ordem de Sua Majestade, o Rei, para que nascesse Mazarin. Ao vosso inteiro dispor...
- Ao do Estado deveria chegar-vos, senhor. Eu não preciso de vós! - proferiu Beaufort, com uma dureza que lhe valeu que Ana de Áustria o chamasse novamente à ordem.
- Julgava - disse esta, com secura - que tivésseis vindo, como todos os presentes, para me prestardes os melhores votos para a criança que espero, mas dir-se-ia que apenas vos incomodais em procurar disputas com os meus amigos.
- Porque agora esse senhor conta-se entre os vossos amigos? É verdade que vos cobria de presentes mais miríficos uns que os outros, vindos de Roma. Mas quando se é Rainha da França, este tipo de personagem chama-se um fornecedor e não um amigo...
Vermelha de cólera, Ana de Áustria erguera já o seu leque para bater no insolente quando, vindo do solo, se ouviu um chilrear raivoso ao lado de Beaufort, uma criança vestida em cetim branco e com uma touca a condizer, debatia-se com a governanta, fazendo esforços para se lançar para a frente e para bater-lhe com os seus pequenos punhos crispados:
- Mamã... mamã! - gritava, fulminando com os olhos azuis o intruso muito desagradável que parecia querer incomodá-la.
- O Delfim Luís!
Acometido por uma emoção demasiado forte para a dominar, François pôs um joelho no chão, em sinal de respeito, mas sobretudo para poder observar melhor aquele bebê de dezoito meses, que não estava preparado para encontrar e que lhe punha o coração a bater a uma cadência inabitual.
- Monsenhor! - murmurou, com uma infinita doçura na voz, sem conseguir acrescentar mais nada, dividido que estava entre a vontade de chorar e a de pôr o miúdo nos braços: ele era tão bonito com aquela carinha redonda e com aquelas grandes madeixas de cabelo, do mesmo loiro que o da mãe, e que saltavam para fora da touca... Mas a criança não teria gostado desse desrespeito protocolar pois continuava a gritar o que, na sua linguagem, só podiam ser injúrias, entrecortadas por “Mamã” frenéticos. A Rainha ria, estendendo as mãos para o pequeno, quando se ouviu uma nova voz:
- Dir-se-ia que o meu filho não gosta nada de vós, sobrinho! Se isso vos pode servir de consolo eu também não lhe agrado mais do que a vós. Logo que me vê, grita como se tivesse visto o diabo, chamando pela mãe.
Efetivamente, o Rei segurou no bebê que, na esperança de lhe escapar, se dobrou em arco, desatando a berrar a plenos pulmões. Nem sequer tentou beijá-lo, colocando-o nos joelhos da Rainha, sem grandes delicadezas. O seu rosto anguloso ainda ficara mais carregado, se é que isso era possível.
- Que vos dizia? - resmungou. - Que bela família teremos caso a próxima criança se pareça com esta! Vinde, M. Le Grand! Vamo-nos!
As últimas palavras dirigiam-se ao magnífico jovem, vestido de brocado cinzento e de cetim dourado que se afastara alguns passos depois de ter saudado a Rainha. Beaufort, que não o via desde há bastante tempo, pensou que o jovem Henri d’Effiat de Cinq-Mars tinha desde então percorrido um longo caminho e que estava ainda mais belo que outrora. Talvez isso se devesse ao ar de triunfo que irradiava da sua pessoa. Aquele jovem de vinte anos tinha o Rei na palma da mão sem que, todavia, o pudessem acusar de vício contra natura. Era conhecida a sua paixão por Marion de Lorme, a mais bela das cortesãs, dizendo-se até que a desejava desposar e, por outro lado, o horror que o Rei demonstrava pelas manifestações carnais não deixava pairar qualquer dúvida sobre a natureza das suas relações. Luís XIII encontrava-se cativo de um milagre de beleza como Pigmaleão com a sua estátua, com a diferença que Cinq-Mars atormentava o seu amo a seu bel-prazer, o que uma escultura seria Incapaz de fazer...
Deste modo, em vez de deixar que o levassem, resistiu:
- Senhor, permiti-me ao menos que saúde o senhor duque de Beaufort! Sabeis até que ponto aprecio a bravura e o desempenho militar e, nessa matéria, o senhor duque pode dar cartas! É um raro prazer encontrar-vos, senhor duque! Permiti que me aproveite para vos declarar que me considero vosso amigo...
- Como é possível que nunca vos encontreis? - resmungou o Rei. - Não sois ambos frequentadores habituais da Praça Real ou das suas imediações?
- Eu frequento sobretudo a taberna da Blondeau, Senhor - disse Beaufort, com um sorriso trocista. - Mlle. de Lorme mora no outro lado. Não há qualquer hipótese de nos encontrarmos!
- Dentro em breve dar-vos-ei oportunidade para tal. Precisamente em Artois, que iremos trazer de volta para o reino! Duzentos mil homens sob o comando dos marechais de Châtillon, de Chaulnes e de La Meilleraye, que receberam ordens para conquistar Arras. Terão de responder pelas suas cabeças!
Um arrepio desagradável percorreu a assembléia. Luís XIII ainda tinha algo para dizer e voltou-se na direção da esposa, que empalidecera, apertando furiosamente a criança de encontro a si:
- Decidi, Senhora, que haveria de extirpar a peste espanhola do meu reino a qualquer preço que fosse. Esta criança não reinará sobre uma França amputada graças aos esforços dos vossos.
O ataque era brutal. Beaufort percebeu o desconcerto de Ana e lançou-se corajosamente na peleja:
- Senhor, sabei que todos os que aqui estão, assim como eu próprio, combateremos com o necessário empenho, a fim de que as cabeças dos nossos marechais permaneçam nos respectivos lugares. Eles vertem o seu sangue com demasiada generosidade para que lhes tirem no cadafalso aquele que ainda lhes sobra!
Dito isto, saudou e saiu, levando consigo um gosto amargo na boca. Aquela ordem bárbara que Luís XIII acabara de anunciar enchia-o de ódio e de horror, não pelo Rei, mas pelo autor que claramente designava, aquele que se encarregava de abater todos os grandes daquele reino. O Cardeal! Talvez tivesse chegado a altura de pensar seriamente em eliminá-lo antes que ocorresse uma sangria na alta nobreza!...
Contudo, da visita a Saint-Germain, François iria guardar uma certa simpatia pelo jovem favorito, devido àquela atração que ele manifestara pela sua pessoa, numa altura em que acabara de encaixar uma dupla ferida: a mulher que amava estava grávida de outro, sorria a um velhaco, e a criança que seduzira o seu coração detestara-o imediatamente. Era pior que uma derrota, era um verdadeiro desastre e François pensou que enquanto esperava pela embriaguez dos combates, precisava de um outro tipo de embriaguez. Até de várias! Nessa noite, na taberna da Blondeau, ganhou ao jogo mas embebedou-se como toda a Polônia e, na manhã seguinte, quase que tomava de assalto Marie de Montbazon, que encontrara num baile em casa da princesa de Guiménée, talvez o último, pois murmurava-se que após uma vida de amores intempestivos, dos quais um dos últimos fora o abade de Gondi, a princesa, chegada aos cinquenta, pensava abraçar o serviço religioso.
Na realidade, a bela duquesa ofereceu muito pouca resistência. Há anos que ela e François travavam escaramuças de floretes embotados. Tantas vezes que lhes fora frequentemente atribuída uma aventura que tinha sido, até então, puramente imaginária. Nessa noite passou-se algo: depois de terem dançado juntos uma dessas pavanas lentas e graciosas, que costumam evocar a dança amorosa do pavão, François levou o seu par para uma pequena sala afastada onde a dona da casa escrevia a sua correspondência e, mal entraram, pegou-a nos braços para a cobrir de beijos, antes de lançá-la, sem cerimônias, em cima de um divã sobre o qual o vestido dela desabrochou como uma flor.
A duquesa não se defendeu dos beijos e até os devolveu, mas quando ele quis ir mais longe, ela fixou o seu par de magníficos olhos azuis nos dele, que chispavam chamas, ergueu uma barreira ao colocar a mão dela entre a sua boca e a do pretendente e disse com grande calma:
- Aqui não!
- Então, onde? Desejo-vos! E já!
- Apre! Eis uma pressa lisonjeadora, se bem que um pouco repentina, não...? Teríeis descoberto...
- Que vos amo? Palavra que não sei, mas aquilo que sei bem é que se não quiserdes ser minha, desafio o primeiro a chegar para um duelo e deixo que me matem... ou então matá-lo-ei eu, o que iria dar ao mesmo pois seria enviado para o cadafalso.
- Cada vez mais lisonjeador! Mas ireis ter de esperar, querido amigo. Digamos... até à meia-noite? Em minha casa.
- E o vosso marido?
- Não está lá. O governador de Paris foi para o seu castelo de Rochefort-en-Yvelines. De qualquer modo, com mais de setenta e dois anos, Hercule preocupa-se muito pouco com aquilo que eu possa fazer.
Mais tarde, no grande hotel da rue dês Fossés-Saint-Germain, ainda assombrado pelo fantasma do almirante de Coligny assassinado na noite de Saint-Barthélemy, François viveu a noite mais ardente que até então conhecera e, de manhã, descobriu que estava apaixonado pelo menos, fisicamente por uma mulher cuja incrível beleza descobrira, deliciado. O corpo de Marie, de uma alvura quase desprovida de tons rosa e engastado numa massa brilhante de cabelos quase negros, era a própria perfeição, mas uma perfeição que era animada pela paixão e que conhecia a arte do amor melhor do que uma cortesã. O que François ignorava era que Marie há muito o amava e que, dispondo finalmente dele, tencionava guardá-lo para si. Quanto a ele se a sua intenção fora a de encontrar um paliativo para o seu furor ciumento, na realidade acabara por se encontrar apanhado numa armadilha que se ia fechar sobre ele durante mais tempo do que teria imaginado.
Quando deixou o hotel de Rohan-Montbazon, antes do nascer do dia, levava consigo a impressão de ter feito uma paragem refrescante nalgum delicioso oásis, depois de ter marchado dias a fio num deserto escaldante e, enquanto Ana suportava as agruras da gravidez, ele preparava-se para fazer eclodir a seus olhos a imagem de uma felicidade talvez um pouco factício, mas totalmente convincente para uma mulher com mais quinze anos que ele. Sabia que o seu amor não morrera mas, graças a Marie, ia poder vivê-lo de modo menos doloroso...
É claro que arranjara as coisas de modo a que a notícia se espalhasse o mais depressa possível por toda a cidade, chegando a Château-Neuf antes de ser divulgada junto a todos aqueles a quem, através da França, ela poderia interessar. Mlle. de Hautefort ficou ao corrente antes de abandonar a Corte, mas guardou-a bem dentro de si, decidida a nunca a mencionar perante Sylvie.
Mlle. de Hautefort ainda pensava no assunto ao trazer Sylvie para o domínio campestre da avó. O vale do Loire não ficava assim tão longe de Paris. Os rumores da capital chegavam lá mas, contudo, tranquilizou-se, afinal já havia anos que ligavam o nome de François ao da bela duquesa. Sylvie não o ignorava e havia grandes hipóteses de que ela não atribuísse mais importância a esses ecos que aos de outrora...
Mesmo que o cenário que o rodeava em nada se parecesse com o das grandezas oceânicas, o castelo de La Flotte seduziu Sylvie. Situado no alto de uma colina, na confluência do Loire e do Braye, possuía o charme das antigas residências onde ainda soprava um certo espírito de outras épocas. O que sobrava do seu aspecto medieval parecia-se com uma capa pousada negligenciadamente sobre uma casa encantadora, com janelas de travessas esculpidas como jóias, por baixo de elevadas lucarnas guarnecidas de flores. Um jardim, disposto em terraços, estendia os seus adornos face à fachada principal, enfeites formados por pequenos buxos e canteiros floridos, enquanto, nas traseiras, um parque com árvores centenárias conferia-lhe o fundo verde ideal para as suas pedras brancas e para as ardósias azuis.
Para Marie, aquela era a casa da sua infância muito mais do que a de Hautefort, situada no Périgord, porque era a de sua mãe, Renée du Bellay, que morrera ao pari-la, algumas semanas depois do seu esposo, Charles de Hautefort, ter sido morto numa escaramuça em Poitiers. Aquele casal exemplar deixara quatro filhos: Jacques, nascido em 1610, Gilles, nascido em 1612, Renée, em 1614 e Marie, em 1616. A avó deles, Mme. de La Flotte, educara o seu pequenino mundo naquele canto encantador do Vendômois, bem como em Paris, onde a família, muito rica, possuía um magnífico hotel.
Quando chegaram, após uma viagem sem história, apenas a castelã se encontrava em La Flotte. Dos dois irmãos de Marie, o mais novo, Gilles, fora juntar-se ao marechal de La Meilleraye em Artois e o mais velho estava no Périgord. Era lá que o marquês de Montignac se dedicava aos domínios senhoriais dos Hautefort, onde construía, em redor de uma bela residência renascentista, um magnífico castelo que desejava à altura das glórias da família. Acometido pela paixão pelos edifícios, numa época em que Richelieu arrasava tantas torres senhoriais, descobrira nessa atividade um modo elegante de resistir a uma tirania francamente revoltante. Quanto a Renée, que se tornara duquesa d’Escars por casamento, encontrava-se ocupada nas suas terras a dar uma descendência ao esposo, contrariamente ao filho mais velho que não queria ouvir falar em tal coisa.
- Nada de mulher, nem de filhos, mas sim o mais belo castelo do mundo, eis o seu lema! - explicou Mme. de La Flotte, ao conduzir Sylvie e Jeannette para os seus aposentos. - Nem é preciso dizer que o vemos raras vezes. Conta com o irmão para perpetuar o nome da família...
Sylvie já conhecia a avó de Marie por tê-la encontrado várias vezes no Louvre ou em Saint-Germain. Era uma mulher idosa e sábia, que a natureza dotara de uma tão grande beleza que não era possível que todos os vestígios se tivessem sumido: era a ela que a Aurora devia a sua tez cor-de-rosa e os tons alourados. Ao seu nascimento ela chamava-se Catherine le Vayer de La Barre, oriunda de uma família das terras da região local; desposara, por amor, René II du Bellay, que fizera dela a dama La Flotte, oferecendo-lhe o título. Mulher de coração e de cabeça, adorava a filha, adorava os netos e teria sido certamente uma melhor governanta para o Delfim do que a ressequida marquesa de Lansac, cujo único trunfo para desempenhar essa função eminente consistia no fato de ser uma criatura do Cardeal. Como prova, bastava observar com que autoridade, plena de bonomia, ela dirigia a sua importante casa.
Além disso, dotada de um sentido muito vivo de hospitalidade e dotada também de grande generosidade, ela recebeu Sylvie com um calor reconfortante, sem se espantar por receber uma Mlle. de Valaines que conhecera outrora como Mlle. de L’Isle. Claro que fora Marie que a informara e dir-se-ia que essa mudança de identidade lhe dava prazer.
- É tão mais agradável saber com quem devemos contar! - declarou com jovialidade. - Outrora fiz parte das damas de companhia da rainha Maria e recordo-me muito bem de vossa mãe, quando chegou de Florença em 1009, conduzida pelo irmão mais velho. Tinha apenas doze anos, mas era encantadora: uma autêntica pequena madona. Pareceis-vos um pouco com ela... mas sois diferente e também é bom que assim seja. Teremos todo o tempo para falarmos disso...
Aquelas palavras, para além de terem aquecido o coração de Sylvie, abriram-lhe também uma inesperada perspectiva: ao ouvir Mme. de La Flotte evocar o irmão mais velho que levara Chiara Albizzi até Paris, apercebera-se que ignorava tudo acerca da sua família florentina, onde a mãe nascera. Nunca ninguém mencionara o assunto, e com razão, dado que, desde que chegara a Anet, Mme. de Vendôme esforçara-se por lhe apagar todas as lembranças. Mlle. de L’Isle não tinha qualquer ponto comum com Florença e com os seus habitantes mas, ao voltar a ser ela própria, Sylvie prometeu a si mesma procurar de novo saber mais. E, enquanto esperava poder interrogar a sua hospedeira, começou por fazer algumas perguntas a Corentin. Este confessou a sua ignorância num tom triste que não escapou a Sylvie.
- O senhor cavaleiro é que conhecia bem a vossa família, Mlle. Sylvie e ele é pouco tagarela. Nunca me disse nada... Desejais deixar a França? - acrescentou, com uma inquietação que não tentou disfarçar.
- Não tenciono nem deixá-la, nem levar-vos comigo. Não receeis nada!
- Não tenho medo...
- Tendes, sim! E também vos interrogais, tal como eu, por quanto tempo vamos ainda estar separados do meu caro padrinho! Deveis sentir a sua falta tanto como eu a sinto...
Ela deixou que passasse aquele momento de emoção e, de repente, desferiu:
- Por que não regressais para o pé dele, Corentin? Ele deve sentir-se muito infeliz sem a vossa companhia e julgo que o contrário também é verdade.
- Sem dúvida, mas ele não me perdoaria caso eu faltasse ao meu dever, que é o de vos proteger. Foi a minha opção a partir daquela noite em que me lancei no encalço do rasto de Laffemas...
- Nunca vos agradecerei quanto chegue, mas acho que podereis considerar que Mlle. de Hautefort vos pode revezar nessa tarefa. Já não me encontro sozinha no fim do mundo...
Pelo olhar que ele revelou, ela viu que se sentia tentado. Contudo, ainda objetou:
- Mas como regressar, se a casa está vigiada?
- Desde há dois anos? Os vigias já se devem ter cansado. Além disso podeis modificar o vosso aspecto... e ainda jogar a carta do regresso do grande ferido. É certo que eu estou dada como morta - acrescentou com um azedume que não pôde evitar - mas vós? Porque não pretender que haveis ficado gravemente ferido ao tentardes salvar-me? O que explicaria a vossa longa ausência...
- Por que não, efetivamente? - exclamou Marie, que ouvira tudo. - Parabéns, minha cara, não vos falta imaginação! Quanto a vós, Corentin, podeis regressar sem receio para junto de vosso amo. Ele ficará duplamente feliz, pois levar-lhe-eis notícias da sua afilhada. E tranquilizai-vos, que aqui saberemos montar boa guarda.
Não acrescentou que, pelo seu lado, ela estava a urdir um plano capaz de pôr Sylvie definitivamente a salvo, mas Corentin não precisava de novos argumentos. Logo no dia seguinte deixava La Flotte, levando consigo uma longa carta escrita por Sylvie... e o pesar da pobre Jeannette que assistia, uma vez mais, ao adiamento do casamento do qual já falavam há anos.
Com os dias de Verão, Sylvie abandonou-se ao prazer da vida no castelo quando só nele residiam amigos. Os jardins abarrotavam de flores. Mme. de La Flotte era companhia aprazível e enquanto Marie passava o tempo a elaborar planos mais bélicos uns que os outros, Sylvie conversava com a avó dela, ouvindo-a evocar a sua primeira infância, ela nascera sob o reinado de Carlos IX, a meio caminho entre a Saint-Barthélemy e a morte do Rei e, sobretudo, falar-lhe de poesia. Ao primo angevino, Joachim du Bellay, tão ligado à sua aldeia em Liré, a Bertrand de Born, o intempestivo antepassado dos Hautefort, podia acrescentar-se ainda o querido Pierre de Ronsard[9]; da outra margem do Loire, era possível avistar os cataventos e as elevadas frondescências do seu solar natal. Mme. de La Flotte adorava Ronsard e gostava muito da viúva e das irmãs do último membro daquela família Jean, que morrera em Junho de 1626, precisamente na altura em que os Valaines eram massacrados. Várias vezes levou consigo Sylvie até La Poissonnière. Marie não se juntava a essas excursões: não gostava dos versos muito floreados, preferindo-lhes as fulminantes poesias de sirventês do seu antepassado do Périgord. Além disso encontrava-se muito absorvida, mantendo uma assídua correspondência com algumas pessoas cujo nome nunca mencionava, mas algumas das quais se manifestaram em intervalos muito próximos.
A primeira foi, nos finais de Agosto, o velho governador de Vendôme, Claude du Bellay, primo e amigo muito estimado da castelã. Quase caiu da carruagem para os braços de Mme. de La Flotte, rindo e chorando ao mesmo tempo.
- Oh, querida prima! - exclamou. - Tinha que vir partilhar convosco a minha felicidade e a de todos os habitantes de Vendôme... O Rei obteve uma grande vitória em Arras e os nossos jovens senhores desempenharam um tal papel que todos lhes cantam louvores...
Depois desta bela entrada, desatou a chorar copiosamente, soluçando, tal como um corredor que chega extenuado ao fim de uma longa etapa e foi preciso que bebesse pelo menos dois copos de vinho de Vouvray para recobrar a respiração e falar inteligivelmente. Arras caíra a 9 de Agosto, após uma batalha de quatro horas, durante a qual os dois filhos de César de Vendôme, Louis de Mercosur e François de Beaufort, tinham feito “maravilhas, continuamente expostos a milhares de tiros de canhão, matando todos os que encontravam pelo caminho e animando as tropas com a sua bravura”. Por ordem de Richelieu, Louis de Mercosur, que fora primeiramente destacado à cabeça dos voluntários, acabara por ser substituído no derradeiro momento por Cinq-Mars. Profundamente indignado e com razão combatera nas fileiras dos soldados, jurando que havia de mostrar quem daria maiores provas de bravura e destacou-se por entre os primeiros, saindo da contenda com um ferimento sem gravidade. Quanto a Beaufort, depois de ter atravessado a nado, completamente armado, o rio Scarpe, lançara-se ao assalto dos redutos espanhóis a ponto de ter quase conquistado um reduto inteiro só à sua conta.
- De regresso a Amiens, disseram-me que o Rei os abraçou e que lhes confiou, em seguida, um grande trem de carroças destinado a reabastecer as tropas através das linhas inimigas. E, também aí se cobriram de glória, levando o dito trem a bom porto, sem perderem um único homem! Ah, na verdade Monsenhor César pode ficar orgulhoso dos filhos que tem. E o bom rei Henrique deve estar a benzê-los, lá do alto do céu!
- Já contaram isso tudo ao duque César? - perguntou Marie, que vigiava Sylvie pelo canto dos olhos.
- Como decerto deveis imaginar, enviei-lhe mensagens, logo que fui posto ao corrente, mas no que vos diz respeito, vós que sois tão ligada a eles, quis vir eu próprio em pessoa. Suponho que a esta hora se preparam para receber a recepção que merecem em Paris. E talvez da própria Rainha! O que seria precioso para Monsenhor François, que ela tão maltratado tem nestes últimos tempos. É verdade - acrescentou o velho palrador, baixando a voz com um sorriso conivente - que ele encontrou ao pé de uma linda dama o mais terno dos consolos. Mme. de...
- Um pouco mais de vinho? - apressou-se Marie a propor. - Com este tempo quente é um refresco que cai muito bem... E, se calhar, desejais ir até aos vossos aposentos a fim de sacudir toda essa poeira?
De nada valeu, Sylvie já queria inteirar-se do resto. Foi ela quem ofereceu o copo que a sua amiga acabara de encher:
- Oh, só mais um momento! É tão interessante o que o senhor governador nos conta! Íeis, senhor, falar acerca de uma dama? Quem é que consola tão bem M. de Beaufort?
- A duquesa de Montbazon, menina. Toda a gente diz...
- Montbazon - interrompeu Marie - outra vez. Velhos ossos!
- Eu sei que desde há algum tempo que se fala de uma aventura entre ambos, mas desta vez é a sério. Asseguraram-me que se trata de uma paixão que provoca o deslumbramento um pouco ciumento das damas...Tal como um cavaleiro da Idade Média, arvorando uma vaga de fitas presas ao ombro, o duque defendeu em combate as cores da sua bela amiga...
Desta vez Mlle. de Hautefort desistiu. O mal estava feito e bem feito. O lindo rosto de Sylvie, subitamente crispado, os seus olhos repletos de lágrimas, eram disso testemunho. Ela aproveitou o primeiro pretexto que conseguiu arranjar para deixar a sala e subir para o seu quarto. Marie não foi no seu encalço, preferindo deixá-la chorar em paz mas, enquanto os hóspedes do castelo se preparavam para o jantar, foi postar-se à sua escrivaninha, preenchendo rapidamente uma página com a sua grande caligrafia voluntariosa e, depois, saibrou-a, dobrou-a e selou-a com as suas insígnias, tocando para chamar a camareira a fim de que ela mandasse subir o mordomo, a quem estendeu a carta:
- Um correio a cavalo e esta mensagem para Paris o mais depressa possível!
Em seguida, depois de refletir, foi até ao quarto de Sylvie, próximo do seu, e entrou sem bater à porta. Esperava vir encontrá-la estendida na cama e vertendo todas as lágrimas possíveis mas aquilo com que deparou, se bem que menos dramático, não deixava de ser mais comovente: sentada no vão de uma janela, de mãos pousadas sobre os joelhos, Sylvie olhava para o exterior, enquanto deixava que lhe escorressem grandes lágrimas pelo rosto, como um riacho sensato que deixasse pingar o seu caudal. Não ouviu a amiga entrar e não voltou a cabeça quando ela se lhe juntou, sentando-se no banco de pedra.
- É apenas um homem, Sylvie... - murmurou Marie. - E um homem jovem e fogoso. Isso implica necessidades. O vosso erro é o de terdes feito dele um deus, no vosso coração...
- Bem sabeis que não podemos impedir que o nosso coração bata por aquele que amamos. Eu sei desde há muito tempo que nasci para amá-lo. Vós mesma...
- É verdade! Ele agradava-me, mas creio que isso não ia muito longe. Aliás, disse-lhe! A reação que teve foi plena de ilações e quão masculina! Não imaginava que eu pudesse sentir-me atraída por ele, mas ao ser posto ao corrente dessa atração e ao aprender simultaneamente que ela tinha desaparecido, achou-me logo muito mais interessante. Deveríeis tentar algo semelhante!
- Quereis que ame outra pessoa? Mas isso é impossível!
- É melhor que um dia isso seja possível. Quereis permanecer o resto da vossa vida sentada à beira da estrada, sofrendo tanto com as suas alegrias como com as suas desventuras? Seja o que for que penseis, não me parece que o caso Montbazon seja assim tão grave. Tal como o conheço, veria antes nisso um desafio à Rainha pela sua nova gravidez, da qual ele não é, desta vez, o autor.
- É isso o que pensais? - exclamou Sylvie.
- É uma hipótese e não é destinada a reacender-vos qualquer centelha de esperança. Que direis, que fareis, caso ele se case? Ainda há bem pouco tempo ele exibia-se como pretendente de Mlle. de Bourbon-Condé, que era muito bela. O Cardeal opôs-se ao casamento para evitar ver reunidas duas facções que considerava perigosas, mas existem outros partidos dignos do duque de Beaufort. E trata-se de um príncipe de sangue.
Sylvie desviou os olhos:
- É inútil lembrar-me que ele ocupará sempre uma posição muito elevada para mim; já era esse o caso, quando eu era pequena, em relação à torre de Poitiers, no castelo de Vendôme. Ele deixava-me no baixo das escadas e eu jurava então a mim própria que haveria de crescer, de crescer o suficiente para chegar junto a ele, lá no alto, na luz. E vede em que ponto me encontro agora: mais baixo que nunca pois, para além dos meus fracos títulos de nascença, estou agora irremediavelmente conspurcada e...
Marie levantou-se bruscamente, agarrou Sylvie pelos ombros, obrigando-a também a levantar-se e abanou-a com força:
- Não quero ouvir mais esse discurso!... É ridículo, pois ficai a saber que só o mal que fazemos voluntariamente é que nos pode conspurcar. Fostes vítima de um monstro e de uma ignóbil tramóia. O homem com quem vos obrigaram a desposar está morto e o teatro do crime foi destruído pelo fogo...
- Resta o carrasco! Ele ainda está vivo. Bem protegido pelo Cardeal, pode destruir-me quando bem lhe aprouver...
- Não. A vida dele está muito ligada à do seu amo! No dia em que Richelieu morrer, o criado também morrerá. Esforçai-vos por não pensar mais nisso e por olhardes em frente! Ele pertence a um passado que apagaremos com a ajuda de Deus!
Com um gesto brusco puxou a jovem de encontro a si, apertando-a nos braços:
- E vós, vós voltareis a viver, voltareis a ver o Sol... ou eu não sou mais a Aurora!
Arredou Sylvie, deu-lhe um beijo numa das faces e saiu do quarto, batendo com a porta, o que era sempre sinal de grande determinação.
Afastada da Corte e das suas deslocações, Mlle. de Hautefort ignorava que o Rei acabara de enviar o jovem duque de Fontsomme para junto da irmã, a duquesa de Sabóia, então refugiada em Chambéry, enquanto que o conde d’Harcourt expulsava as tropas Imperiais de Turim. Não estava, portanto, em Paris quando chegou o pedido de socorro que Marie lhe dirigira, não duvidando que ele se apressaria a acorrer. O tempo passou, sem que ele desse qualquer sinal de vida.
Chegou o Outono, e mesmo o nascimento de um segundo filho da França em Setembro, não foi o suficiente para convencer Mme. de La Flotte a deslocar-se até Saint-Germain:
- Quando exilam a minha neta, também me exilam a mim. Isso evitará ao Rei de, ao ver-me, ter de mostrar uma cara de enterro...
- Ridículo! A Rainha gosta de vós e diz-se que o Rei está tão feliz com este novo nascimento... - exclamou Marie.
- A propósito, não achais essa história bem curiosa? Ele, que estava de tão mau-humor quando nasceu o Delfim, eis que quase delira perante este recém-chegado? Talvez por ser de tez tão escura quanto ele, enquanto que o Delfim era loiro como a mãe e...
- Não desvieis a conversa! Acho que o vosso dever é irdes até lá...
- Para defender a vossa causa? Esse tipo de manobras não se parece nada convosco, Marie. Vós, tão orgulhosa como sois?
Um brusco acesso de cólera ruborizou o rosto da Aurora:
- Essa idéia nem sequer devia ter passado pela vossa cabeça! Não faço parte daquelas que pedincham. Regressarei com todas as honras devidas à guerra ou então nunca lá voltarei... mas a nossa família não deve deixar de estar presente nos grandes acontecimentos do reino.
- Ela far-se-á representar convenientemente pela vossa irmã d’Escars e pelo vosso irmão Gilles. Quanto a mim, amuo!
Sabendo que a avó era tão teimosa quanto ela, Marie não insistiu, contente, no fundo, por permanecer no seu caloroso afeto. A ida dela para Paris teria esvaziado em boa parte o grande castelo, deixando a ela e a Sylvie um pouco abandonadas. Até se regozijou quando chegou o Inverno e as intrigas da Corte cuja falta sentia, tinha de confessar... vieram ao seu encontro em estranhas circunstâncias.
Nessa noite as três mulheres preparavam-se para ir para a mesa com a intenção de não prolongar o serão e de se deitarem cedo após um dia desgastante: durante horas, Marie perseguira um colossal javali, enquanto Mme. de La Flotte e Sylvie tinham passado por La Possonnière, onde Mme. de Ronsard e as suas filhas sofriam de uma espécie de intoxicação por terem comido peças de caça que tinham deixado muito tempo de reserva antes de as prepararem. Subitamente, ouviram o galope de um cavalo, vindo do fundo da noite, cujo som aumentou até estancar junto ao patamar de entrada; depois, foi a vez de um batimento rápido de botas nas lajes do grande vestíbulo e, por fim, a abertura intempestiva da dupla porta às mãos do cavaleiro, antes mesmo que o mordomo se pudesse manifestar.
- Minha cara amiga - disse o duque de Vendôme - venho pedir-vos asilo por duas ou três noites, pelo menos! Tive de fugir de Chenonceau, antes que os esbirros de Richelieu me fossem lá buscar...
A surpresa fez levantar as três mulheres, mas a castelã nem teve tempo de deixar o lugar, ele já estava ao pé dela e agarrava-lhe ambas as mãos, beijando-as.
- Vós, em fuga? Mas... que se passou?
- Uma história absurda, louca... que vos vou contar ao jantar, se bem quiserdes oferecer-me de comer. Morro de fome... Ah, Mlle. de Hautefort! Desculpai-me, não vos tinha visto.
Não esperando pela resposta e quando ia deixar-se cair numa cadeira, reteve o movimento para ir ao encontro de Marie. Nessa altura os seus olhos escancararam-se: acabara de reconhecer Sylvie!
- Terei adquirido o dom de ver fantasmas? Ou fazeis parte do pesadelo que estou a viver?
O primeiro impulso de Sylvie fora o de procurar a zona de sombra para nela se esconder, mas o espanto paralisara-a durante muito tempo. Ia ter de enfrentar a situação. Com um gesto reteve Marie, que ia retorquir, avançou para o duque e a mais severa das senhoras de idade nada teria encontrado para criticar a sua reverência:
- Senhor duque, não sou um fantasma e não sou suficientemente importante para vir assombrar os vossos pesadelos. Sou, simplesmente, uma outra pessoa...
- Que quereis dizer? Que estivestes morta e que haveis ressuscitado?
- De certo modo. Graças àqueles que me salvaram. Eu também me escondo, monsenhor...
- E quem vos salvou?
Marie encarregou-se da resposta. Não queria deixar Sylvie enfrentar sozinha o temível filho de Henrique IV e de Gabrielle d’Estrees, decidindo não entrar em detalhes:
- Em primeiro lugar foi o vosso filho, François e, depois, eu e a minha avó. Sylvie está aqui salvaguardada pelo nosso afeto.
Mas César apenas retivera o começo da frase:
- Com que então, François? Sempre ele! - proferiu, com um riso maldoso. -Tereis pois de permanecer sempre colada a ele como um molusco à sua concha? Se tivésseis sabido...
- Basta, César! - interrompeu rispidamente Mme. de La Flotte. -Cai muito mal, quando viestes pedir auxílio, atacar esta jovem que amamos e que está aqui como em sua casa.
- Como em sua casa? Então o domínio senhorial de L’Isle, que a minha mulher me obrigou a dar-lhe, já não lhe chega?
- Não vos esqueçais que morri! - exclamou Sylvie, que o tom de desprezo do duque pusera fora de si. - O dito domínio ser-vos-á naturalmente devolvido. A minha segunda vida decorre sob o nome de Valaines...
- Não deixastes de ser minha vassala... Aquilo era mais do que Marie suportava ouvir:
- Se continuardes nessa veia, senhor duque, eu deixarei esta casa, arriscando-me a ser presa, dado que estou exilada, e levarei comigo Mlle. de Valaines...
- E se todos parássemos de dizer disparates? - disse subitamente Mme. de La Flotte, com uma jovialidade inesperada. - As nossas desavenças não são feitas para serem ouvidas pelos criados. Jantemos e, em seguida, dir-nos-eis até que ponto precisais de nós!
Apesar do sorriso, as últimas palavras foram realçadas de modo a fazer sentir ao duque que ele não se encontrava em posição de julgar e de dar ordens. Ele acabou por compreender e deixou-se conduzir até à mesa, onde reinou o silêncio enquanto esteve ocupado a restaurar-se. No lugar a que regressara, Sylvie, que nada comia, observava-o. Não o voltara a ver desde o dramático encontro que tinham tido no pequeno hotel deserto do Marais, onde, certa noite, ele a mandara vir para lhe dar um frasco de veneno destinado ao Cardeal[10]. Desde então tinham decorrido quatro anos. Se contasse bem, César devia ter agora quarenta e sete anos e estava ainda mais feio que da última vez, como pôde constatar horrorizada, pensando na semelhança entre ele e o filho mais novo. O exílio campestre no seu castelo de Chenonceau, onde o Rei e Richelieu o tinham forçado a ficar desde há vinte anos, tinha, pelo menos, a vantagem de conservar-lhe os músculos de caçador sob uma pele tisnada, mas os excessos sexuais que o levavam a perseguir todos os rapazes susceptíveis de saciar o seu apetite vincavam-se cada vez mais no seu rosto outrora uma das mais belas fisionomias do país onde se acrescentavam ainda os estigmas da intemperança, o que não melhorava em nada o aspecto do conjunto. Naquele preciso momento César dava provas disso mesmo: o criado escanção não parava de lhe encher o copo, que o duque esvaziava logo de seguida num só trago. Também comia muito, com o apetite aguçado pela longa cavalgada desde Chenonceau.
- Como é possível terdes vindo sozinho? - perguntou a sua hospedeira, logo que ele se recostou no assento, soltando um suspiro de satisfação.
- Já vos disse, estou em fuga. O meu filho Mercosur escreveu-me um curto bilhete para me informar que Richelieu enviara alguém para me prender e larguei toda a casa, no estado em que se encontrava, escapando-me. Peço desculpa por invadir-vos desta maneira, mas limitei-me a seguir o conselho de meu filho. Ficou de vir ter comigo aqui para me levar até Inglaterra...
- Inglaterra? - espantou-se Marie. - Há um longo caminho a percorrer. Porque não a Bretanha, onde ainda tendes amigos?
- ... que o maldito Homem de Vermelho conhece muito bem! Podeis ter a certeza que é lá que me irão procurar, depois de o fazerem em Vendôme, em Anet, etc. E o caminho para chegar à costa normanda, partindo da baía do Sena não é assim tão longo: creio que cinquenta léguas, aproximadamente...
- Mas, finalmente, porque haveis fugido?
César esvaziou o copo e estendeu-o logo a seguir. O seu rosto tornara-se muito vermelho e tinha os olhos injetados de sangue:
- Uma história de loucos! - escarneceu. Dois aventureiros do Vendômois, que se faziam passar por santos eremitas, Guillaume Poiriers e Louis Aliais, que encontrei frequentemente devido ao gosto que manifestavam pela peleja, foram presos no último mês de Dezembro por fabricarem moeda falsa. A fim de ganharem tempo e de tentarem obter a indulgência dos juizes, declararam ter tido um encontro comigo, durante o qual eu lhes teria entregue veneno para executar o maldito Cardeal...
Sylvie não estava à espera daquilo. Largou a colher e ergueu um olhar aterrorizado na direção do duque. Ele próprio, apesar da embriaguez que começava a manifestar-se, teve consciência do que acabara de dizer, e diante de quem o dissera. O seu olhar cruzou com o dela. O que Sylvie detectou, aterrorizou-a: viu o ódio, mas também o medo. Felizmente isto durou pouco. Mme. de La Flotte e Marie soltavam gritos de indignação, incapazes de imaginar que o vil veneno pudesse ser considerado como uma arma aceitável para ser usada da parte de um príncipe da casa de França.
A partir dessa altura César parou de beber e o jantar acabou depressa. Rezaram todos juntos e, depois, cada um foi para o seu quarto. Sylvie fez o mesmo, mas não se deitou logo. Algo lhe dizia que, nessa noite, ainda não terminara a sua história com M. de Vendôme...
E, efetivamente, não decorrera ainda uma hora quando, à luz de duas velas, uma colocada à cabeceira e a outra na mesa junto à qual se sentara, viu que a porta se abria, sem conseguir reprimir a angústia que tal fato sempre provoca, mesmo quando o esperamos...
- Onde o haveis posto? - perguntou o duque, sem preâmbulos.
- De que falais?
- Não vos façais de parva! Falo-vos do frasco que vos entreguei numa dada noite, para vos obrigar a salvar o meu filho, caso ele fosse preso depois daquela história ridícula do duelo.
- Já não o tenho.
Ele agarrou-lhe no pulso para a obrigar a levantar-se:
- Tendes muitos defeitos, pequena, mas mentis mal. Onde está?
- Quando vos digo que já não o tenho, não estou a mentir-vos.
- Deitaste-lo fora? Não - emendou, mal fizera a pergunta. - Quando este cai nas nossas mãos, não se deita fora um meio de deixar rapidamente esta vida. Apostaria que o haveis guardado. Nem que fosse... para vós própria, em caso de desespero. Engano-me?
Ela olhou-o sinceramente abismada. Havia algo de profundamente perturbante no fato daquele homem, que ela considerara frequentemente um rústico, apesar dos seus grandes ares, poder desvendar, com aquela exatidão, o fio dos seus pensamentos.
- Não... não vos haveis enganado, é verdade que pensei nisso. Até pensei em... partilhá-lo com o Cardeal a fim de evitar o que iria certamente suceder-me:...a...a tortura e a morte no cadafalso, mas, mais uma vez já não o tenho comigo. Ficai sabendo que fui raptada ao sair do castelo de Rueil e quando somos convidados para esse tipo de viagem não nos deixam o mínimo de tempo para fazer as malas...
- Então, onde está?
- No Louvre.
César arregalou os olhos.
- No... Louvre...?
- No quarto que eu ocupava enquanto dama de honor da Rainha. Primeiro tinha-o dissimulado na dobra do dossel por cima da minha cama mas, depois, pensei que podia acontecer que abanassem as cortinas, mesmo involuntariamente. Então pus-me em busca de outro sítio e coloquei-o por detrás de uma tapeçaria que representa o pobre Jonas na altura em que a baleia o traga: havia aí uma pequena fenda entre duas pedras que parecia talhada à medida do frasquinho. Encontra-se, mais ou menos, situada ao nível das ventas do animal...
- Obrigado por esse luxo de detalhes! - resmungou César. - Não imaginais, decerto, que vou arriscar-me a ir buscá-lo? Lembrai-vos: sou forçado a fugir...
- E eu estou dada como morta! Digo-vos isto para o caso de desejardes enviar alguém de confiança.
- As únicas pessoas em que confio estão-me muito próximas. Ora, já desconfiam de mim, por tentativa de envenenamento. Que diriam se algum dos meus fosse preso? Não só eu seria condenado sem qualquer esperança, mas possivelmente eles também.
- Ai, não! - suspirou Sylvie, com lassidão. - Não ireis recomeçar a vossa imunda chantagem com Monsenhor François!... Além disso, caso estejais a pensar em obrigar-me a ressuscitar, se eu viesse a ser apanhada, também seria estabelecida uma ligação convosco. Não achais que para todos nós, o melhor é deixar o frasco onde está? Asseguro-vos que não é nada fácil encontrá-lo... Além disso, eu não fui a única dama de honor que residiu naquele quarto e, ao que reparei, o frasco não apresenta as vossas insígnias...
Ele não respondeu imediatamente. Apoiando um cotovelo no bordo da chaminé, enquanto refletia, deslocava alternadamente um e outro pé, frente às chamas.
- Talvez tenhais razão! Nenhum de nós tem os meios para se reapoderar do frasco... Pois bem, desejo-vos uma boa noite, menina... como vos chamais agora?
- Valaines - respondeu Sylvie, com tristeza. - Dir-se-ia que a vossa memória vos prega menos partidas para com os vossos infelizes vassalos do que para com as vossas más ações, senhor duque! Também vos desejo uma boa noite... e uma boa viagem para Inglaterra.
- Tereis de me suportar até que chegue Mercceur. Quanto a Beaufort, tratai de manterdes as distâncias! Ficai sabendo que empregarei todos os meios até os mais vis... tal como uma denúncia anônima, para desembaraçá-lo de vós!
- Uma denúncia? A que propósito?
Ele soltou um riso maldoso que provocou em Sylvie o efeito de uma raspadeira a passar-lhe pelos nervos.
- Logo que estiver em Inglaterra, já não terei grande coisa a recear do Homem de Vermelho... e então poderei dar a conhecer onde se encontra o famoso frasco... Pensai nisso, minha cara!
Marie de Hautefort, à escuta na galeria, em camisa de noite e de pés descalços sobre as lajes, achou que era altura de regressar ao seu quarto. Aquilo que acabara de ouvir só confirmava a opinião que sempre tivera sobre o “grande” bastardo do “Galanteador”, mesmo que até essa altura o diagnóstico não tivesse sido tão desastroso: tratava-se, efetivamente, de um belo miserável!..
Quando César saiu, avistou uma mancha branca que ondulava nas sombras do longo corredor e benzeu-se precipitadamente: era supersticioso e acreditava em fantasmas!
A ameaça que acabara de proferir contra Sylvie iria perder estranhamente a sua razão de ser nas horas seguintes. Efetivamente, Louis de Mercceur fazia parte dos três cavaleiros que transpuseram a entrada do castelo no dia seguinte, mas também chegaram o duque de Beaufort e o seu escudeiro, Pierre de Ganseville.
Sylvie viu-os chegar da janela do seu quarto, onde escolhera ficar até que os Vendôme se fossem embora; ouvindo apenas os apelos do seu coração e esquecendo-se de qualquer prudência após as ameaças de César, correu, agarrando nas saias, precipitou-se pela grande escadaria e alcançou o vestíbulo na precisa altura em que François transpunha a entrada. Os seus lindos olhos cor de avelã, radiantes de felicidade, cruzaram os olhos azuis do jovem, que se tornaram verde-acinzentados, enquanto o seu sorriso se desvanecia. Esquecendo-se até de saudar Mme. de la Flotte, que vinha dos salões, flanqueada por Marie, irrompeu em direção a Sylvie:
- Por todos os diabos do inferno! Que fazeis aqui? Ao regressar, o padre Lê Floch, enviado pelo senhor Paul, deu-me a entender que havia a possibilidade de ingressardes brevemente nalgum convento... E encontro-vos aqui, regressando ao mundo como se nada tivesse ocorrido?... Mas, palavra, estais louca!
A filípica atingiu Sylvie em pleno coração, arrefecendo cruelmente a alegria de voltar a vê-lo.
- Assim, desejáveis realmente atirar-me para o fundo de um convento? Para não mais ouvirdes falar de mim, sem dúvida!
- Com efeito, era tudo o que queria para vós! Tenho mais coisas com que me ocupar! Não estais ao corrente do perigo que corre o meu pai? E, para cúmulo da desgraça, vindes atravessar-vos no meio do caminho!
- Um momento! - interrompeu Marie. - Sylvie não tem nada com que se culpar. Fui eu que a fui buscar porque ela já não estava em segurança naquela ilha do fim do mundo, para onde a tínheis enviado, sem dúvida até ao fim dos tempos...
- Só até que Richelieu morresse... e Belle-Isle é o local mais bonito que conheço. Quanto à sua segurança, se ela tivesse acarretado os conselhos do abade Lê Floch, nenhum perigo a poderia ter alcançado no convento para onde...
- De onde Richelieu a teria podido tirar quando bem o quisesse! As coisas mudaram desde o nosso último encontro!
- Talvez, mas tendes consciência que ao recebê-la aqui estais a colocar em perigo os vossos e...
- Perigo que não vos preocupa minimamente logo que se trate de vosso pai. Que eu saiba, Sylvie não é acusada de tentativa de envenenamento...
Era mais do que a infeliz podia suportar:
- Por piedade, Marie, não digais mais nada! Ainda não compreendestes que o senhor duque deseja, sobretudo, desembaraçar-se de mim para sempre...?
Rebentando em soluços, fugiu para a escadaria, que subiu a correr.
- Ora bem! - aprovou César de Vendôme, que entrara e seguia a tresloucada correria da rapariga. - Aqui está uma boa coisa resolvida! Meu filho, já era altura de perceberdes a necessidade de afastá-la, pois ela não presta para vós! Mas, a propósito, que estais aqui a fazer, Beaufort? Não era só Mercceur que deveria vir ter comigo?
O irmão mais velho, que até essa altura julgara ser útil não se meter naquilo que não lhe dizia respeito, encarregou-se da explicação:
- Oh, é muito simples, pai! Trouxe-o comigo para evitar que cometesse ainda mais asneiras. Ao saber que os agentes da polícia vos procuravam, o nosso paladino propôs a Richelieu ir para a Bastilha no vosso lugar, a fim de proclamar, alto e em bom tom, a sua convicção quanto à vossa inocência!
O rosto trocista do duque suavizou-se subitamente e foi com verdadeira emoção que veio dar uma palmada no ombro do filho cadete:
- Obrigado, filho! Só que não haveis pensado que, nesse caso, teria sido eu que não teria podido suportar saber-vos prisioneiro. Richelieu odeia-nos demais! Teríeis arriscado a vossa cabeça... como arrisco a minha se me demorar. Não estais muito cansado?
- De forma alguma!
- Nesse caso, se a nossa estimada hospedeira tiver a amabilidade de nos servir qualquer coisa, partiremos logo a seguir...
Enquanto ele e Mercceur ganhavam novas forças, François despachou a sua refeição em três garfadas e depois, levantando-se da mesa, foi buscar Marie que levou pelo braço até um salão afastado.
- Ainda precisais de ouvir algumas verdades? - zombou esta última.
- Preciso, sobretudo, de saber um pouco mais sobre aquilo que está escondido no fundo da vossa linda cabecinha. Não sei ao certo porque motivo fostes buscar Sylvie.
- Já vos disse, havia o risco de Laffemas voltar a pôr-lhe as mãos em cima.
- Disparate! Já vos esquecestes daquela grande paixão do jovem Fontsone da que me haveis outrora falado? Foi para ele que a fostes buscar? Para a entregar nas suas mãos?
- Não. Quer acrediteis ou não, ela corria um grande perigo, mas confesso que depois cheguei a pensar em reuni-los...
- A ela e a esse fedelho peneirento?
- É o rapaz mais charmoso que conheço e ele adora-a. Preferis imaginá-la a gastar toda a sua vida pensando em vós e chorando-vos? Ela tem direito a uma felicidade que sois incapaz de lhe dar.
- Então porque é que ele ainda não está aqui? - perguntou François, trocista.
- Não sei e não faço a mínima idéia do sítio em que se encontra.
- Haveis-lhe escrito e a vossa carta ficou sem resposta, não é verdade?
- Assim o confesso, mas não vos arrogueis esses ares de gato que se prepara para comer um rato. Receio apenas que tenha sucedido alguma coisa...
- Aconteceram coisas agradáveis, minha cara! Ele está no Piemonte, ao pé da duquesa de Sabóia. Uma embaixada que acaba de se juntar a esse palerma que agora chamam Mazarin. Esse corre atrás de um chapéu de cardeal! Quanto ao vosso herói, aposto que encontrou por lá alguma bela dama com muito mais atrativos que aqueles que tem a nossa pobre gatinha. Eles possuem magníficas mulheres...
- É possível, mas elas ser-lhe-ão completamente indiferentes! Não é culpa vossa, pobre François, mas sois completamente incapaz de ter um sentimento dessa qualidade. Creio que isso se deve aos apetites um tudo nada vulgares que a vossa linguagem trai! Quanto a mim, só tenho mais uma palavra a dizer-vos, farei tudo o que estiver ao meu alcance para expulsar da cabeça de Sylvie essa imagem vossa de herói de romance de cordel!
E com um ar de soberba, Mlle. de Hautefort foi ter com Mme. de La Flotte...
Assim que os Vendôme se foram embora, no meio do bulício costumeiro que acompanhava sempre as suas deslocações, até as mais secretas, o castelo de La Flotte mergulhou novamente no seu silêncio usual... mas não por muito tempo: no dia seguinte chegava um correio do Rei, sob o olhar inquieto de Marie, que se perguntava se aquele homem não traria alguma ordem para a levar até à prisão; todavia, tranquilizou-se ao pensar que ele vinha só. Para mais a carta era endereçada a Mme. de La Flotte... Na realidade, era portadora de uma ordem inesperada: pedia à amável dama para ir ter com o Rei, tão discretamente quanto possível, ao seu pequeno castelo em Versalhes.
Os olhos de Marie brilharam: estaria o seu antigo pinga-amor a começar a arrepender-se de a ter mandado embora e, ao dirigir a carta a sua avó, estaria entabulando as primícias de um diálogo destinado a perdoar-lhe e a pedir-lhe que regressasse? Não que fosse petulante, mas não discernia outro motivo para um encontro tão pouco conforme aos costumes da Corte.
- Talvez se trate de um dos vossos irmãos...? - prognosticou a velha senhora, para arrefecer um pouco aquele entusiasmo que lhe parecia um tudo nada presunçoso; mas Marie limitou-se a rir:
- Nesse caso não faria tanto mistério! Acreditai-me, senhora, eu tenho razão. Caso contrário, parto para Espanha ao encontro da duquesa de Chevreuse.
- Não seríeis capaz, sois boa francesa demais para tal! Pois bem, julgo que tenho de apressar os meus preparativos, se quiser chegar a tempo à audiência do Rei.
Ia sair, quando Sylvie a reteve:
- Por favor, senhora, levai-me convosco!
- À residência do Rei?
- O quê, Sylvie, quereis deixar-nos? - exclamou Marie.
Sylvie olhou, uma após outra, para aquelas duas mulheres de quem tanto gostava e sorriu:
- Nem uma coisa nem outra, mas creio tratar-se da melhor solução. A senhora poderia deixar-me num convento, tal como o deseja M. de Beaufort e vós, Marie, lembrai-vos que não vos poderei acompanhar caso o Rei vos chame de volta. Tornar-me-ia um estorvo para vós, além de uma preocupação acrescida, pois julgo que gostais de mim. Só quero que o convento fique situado em Paris para poder voltar a ver o meu querido padrinho.
Aquele pequeno discurso produziu os seus efeitos:
- Ela não deixa de ter razão, Marie! - disse a condessa. - Se fordes chamada de volta ela ficará aqui sozinha e, portanto, exposta. No convento da Visitação de Santa Maria ela estará em segurança. Mme. de Maupeou, a superiora, é uma amiga minha.
- E temos ainda outra, Louise de La Fayette. Pode ser que ambas tenham razão... mas só por algum tempo! Não ides pensar sequer em envergar o hábito de freira, Sylvie! Sereis apenas uma dama em regime de pensionato... e eu poderei visitar-vos quantas vezes quiser, à vista e sob as barbas dos espiões do Cardeal! - concluiu, com uma grande gargalhada. - O convento da Visitação é inviolável.
- Não era também o caso de Val-de-Grâce?
- Não, porque pertencia à Rainha. Este encontra-se sob a proteção da irmã Louise-Angélique e, portanto, do próprio Rei. Ele nunca toleraria qualquer intrusão. Tenho dito! Vamos preparar as bagagens, minha pequena Sylvie! E que Deus nos ajude!
Na madrugada do dia seguinte, Mme. de La Flotte deixava a sua residência ancestral ladeada por duas acompanhantes: uma era a sua verdadeira criada de quarto e a outra era Sylvie, modestamente vestida. A tristeza que sentia por deixar a sua amiga era compensada pela idéia de poder voltar a ver muito em breve o caro Perceval de Raguenel, que conservava uma posição bem privilegiada no seu coração!
AS LÁGRIMAS DE UM REI
Isaac de Laffemas vivia horas difíceis na sua bela casa da rua Saint-Julien-le-Pauvre: só podia sair acompanhado por forte escolta. Tinham-se acabado as escapadelas noturnas, durante as quais ia saciar os seus secretos impulsos sem correr qualquer risco, sobre mulheres que eram, para ele, desprovidas de rosto pois, na sua mente, aplicava a todas uma máscara, sempre idêntica, que reproduzia a imagem de Chiara de Valaines, a paixão de sua vida, uma paixão que nunca fora saciada, mesmo quando o seu mau gênio lhe pusera a filha à sua disposição! Contudo, ao possuir aquele corpo jovem, tão fresco e terno, experimentara um tal bem-estar, uma tal alegria, que deixara La Ferrière muito contrariado, amaldiçoando-se por a ter entregue àquele burro do Justin, que fizera seu escravo. Devia tê-la guardado, escondendo-a num quarto fechado, para poder dispor sempre dela. Após o anúncio da sua morte, ainda se podia dar por muito feliz que o Cardeal tivesse impedido aquele louco furioso, que o deitara ao chão na escadaria do castelo de Rueil, de exercer represálias mais graves!
- Enquanto precisar de vós! - dissera o Cardeal - Mas, se por qualquer milagre essa infeliz ainda estiver viva, é a vossa cabeça que colocareis em risco se ainda tiverdes a ousadia de atacá-la!
Na altura a ameaça não o impressionara minimamente. Não havia motivo para tal, pois não estava ela morta? E, muito naturalmente, regressara aos seus prazeres noturnos a que se entregava desde a morte da mulher, uma jovem desmiolada que morrera devido à insistência com que a submetera aos seus piores desejos, assim que compreendera que ela era estéril. Madeleine fora apenas uma pálida cópia de Chiara, um mal menor...
Ora, pelo meio que já conhecemos, ele tomou conhecimento da carta imprudente que Gondi escrevera a Mlle. de Hautefort e a sua esperança reavivara-se.
Assim, se ela ainda vivia, sem dúvida bem escondida, para ele isso significava que, mais dia menos dia, ela voltaria a ir parar-lhe às mãos. Mãos que tremiam só de pensar nisso...! Voltar a encontrá-la, a possuí-la, uma e outra vez! E... malditas fossem as ameaças do Cardeal! Bastaria desposá-la!
A partir daí Sylvie ocupou o lugar da mãe. Tornou-se a única paixão daquele homem quase velho, que sentia tanto prazer nas torturas que infligia. Para descobrir o seu paradeiro, enviara Nicolas Hardy o agente mais arguto de que dispunha, um malfeitor que arrancara das galés logo que percebera que, debaixo daquela enorme carcaça, ele era dotado de um espírito tão manhoso quanto o seu. E Nicolas Hardy partira para Belle-Isle, pois esta pertencia aos Gondi, que sempre tinham mantido laços de amizade com os Vendôme. Porém, regressara de mãos vazias...
Na ilha, as suas manhas e astúcias de nada lhe tinham servido: esbarrara contra blocos surdos e cegos. Os bretões, duros, altivos e independentes, detectaram imediatamente um espião naquela personagem demasiado amável que distribuía dinheiro sem parcimônia. Quase toda a ilha ficara ao corrente de que uma jovem, uma vítima do Cardeal, protegida pelo senhor Vincent, se escondera ou ainda se escondia ali, mas Sylvie já entrara na lenda, tão prezada por qualquer verdadeiro celta. E, até no meio dos mais pobres, ninguém abriu a boca... Quanto a interrogar o duque de Retz e os seus, isso estava fora de questão. Tudo o que conseguiu descobrir e isso ainda foi devido ao acaso, ao surpreender no cabaré local uma conversa entre dois soldados da guarnição fora que uma grande dama da Corte, de uma beleza fora do comum, fizera uma breve visita. Os soldados não pronunciaram qualquer nome, mas um deles, ao dizer, suspirando, que ela “era bela como uma aurora”, pusera-o na boa pista. O seu faro e algumas perguntas, aparentemente anódinas, tinham feito o resto. Mlle. de Hautefort viera até Belle-Isle e, na viagem de regresso, talvez estivesse acompanhada...?
Foi ao lançar-se no encalço desta nova pista que Nicolas Hardy teve um acidente: os ossos dos espiões, que não beneficiam certamente de maior solidez do que os das pessoas de bem, levaram a sua rótula a estilhaçar-se em mil pedaços, depois de um contato brutal com o casco de uma mula atrabiliária. Imobilizado durante dias infindáveis no albergue de La Roche-Bernard e doravante coxo, o enviado de Laffemas apenas pôde avisar o seu amo por carta mas, quando esta chegou, o pau para toda a obra de Richelieu voltara a partir para uma expedição punitiva contra uma última revolta dos Pés Descalços, nos confins do Vexin normando.
Ao regressar finalmente a casa, Laffemas encontrou a carta e ficou encolerizado com aquele desastrado imbecil que deixara escapar uma pista ainda quente. Como procurar a direção da antiga açafata da Rainha? Exilada e, portanto, consignada à sua residência, ela nunca poderia ter ido a Belle-Isle mas, aparentemente, fazia o que bem lhe apetecia, aliás como todos os seus pares que, logo que se viam fora de Paris, pareciam agitados pelo bicho carpinteiro das deslocações. A única coisa que havia a fazer era mandar vigiar o castelo de La Flotte mas, na ausência de Nicolas Hardy, Laffemas não depositava confiança em quase ninguém, tanto mais que precisava da presença, em Paris, daqueles que conseguira fazer aderir à sua causa, para zelarem pela sua própria vida, continuamente ameaçada por aquela espécie de fantasma impossível de apanhar e que se fazia chamar de capitão Coragem!
Por duas vezes, graças sobretudo a Nicolas Hardy, o tenente civil conseguira escapar a um rapto mas, desde então, o seu inimigo mudara de tática como se desejasse fazê-lo morrer de medo. Mal Laffemas abria uma janela e eis que uma flecha disparada de nenhures pregava uma mensagem na parede do seu quarto, ameaçando-o de uma morte horrível, enquanto não chegasse a hora de se debater no meio das chamas eternas.
Oh! Aquelas mensagens que pareciam chegar até ele como por magia! Tinham-lhe causado um terror crescente porque lhe davam a impressão que era observado por um olho invisível e que, contra tal inimigo, o seu poder era de pés de barro...
... O que era, efetivamente, o caso, o seu poder residia inteiramente na pessoa do Cardeal e era cada vez mais evidente que o dito Cardeal não viveria por muito mais tempo. Se Laffemas ainda pudesse dispor do conjunto das forças policiais da capital...[11] Mas nunca tivera o tempo, os meios ou, sequer, a possibilidade de reunir sob uma mesma autoridade todos os que as compunham.
A polícia, enquanto tal, já existia desde há séculos sob a autoridade geral do Châtelet e sempre fora considerada como um anexo da Justiça, funcionando sem regras definidas e que eram aplicadas, de modo concorrencial, pelo tenente civil, para os assuntos municipais, pelo tenente do foro criminal, para os assassinatos embora Laffemas acumulasse ambas as funções sem contar com o preboste dos mercadores, para a vida do rio e para o comércio, e com o preboste de L’lIe, para a “segurança pública”, a meias com o cavaleiro encarregue das sentinelas e dos serviços da ronda. Com o correr dos tempos, resultaram frequentes contestações que degeneravam por vezes em batalha campal e numa considerável desordem, cujos beneficiários eram os bandidos de toda a espécie e os seus esconderijos os pátios dos Milagres, espalhados pelos diversos quarteirões da cidade. A tudo isto devemos acrescentar ainda o fato dos comissários do Châtelet não levarem as suas funções a peito, pois elas nada lhes rendiam. Aliás, a maioria nem sequer morava nos quarteirões da sua jurisdição.
Ora Laffemas sabia que a maioria dos seus camaradas da ordem pública o detestavam cordialmente.
Nessa noite, porém, era preciso que saísse e do modo mais discreto possível. Efetivamente, impelido pelas suas angústias, decidira pedir o seu horóscopo ao astrólogo real, Jean-Baptiste Morin de Villefranche, que lhe fez saber, durante o dia, que o esperaria, caso viesse ele próprio à sua procura quando a noite já tivesse caído.
Curiosa personagem esse Morin, que nascera em Villefranche de Beaujolais no século precedente e que não teria destoado na Corte do Imperador Rodolfo II, o mestre dos mistérios. Médico, filósofo, matemático, astrônomo e astrólogo, desde que previra a cura do Rei na altura em que o julgaram moribundo em Lyon, ele tornara-se titular da cadeira de matemáticas no Colégio Real[12]. Morin afirmara peremptoriamente que o Rei havia de recuperar e Luís XIII, reconhecido, outorgara-lhe esse posto, ligando-o de certo modo à sua pessoa enquanto astrólogo real, lugar que seria o último a ocupar.
Mesmo assim nunca aparecia na Corte porque Richelieu, que desconfiava dele, também não o apreciava. Quanto à Rainha, fechada que estava na sua estreita piedade enquanto espanhola, aquele homem magro e de alta estatura, com um ar severo, metia-lhe medo, tinha sempre o ar de alguém que descobria algo pairando sobre a sua cabeça. Deste modo, se bem que morresse de desejo, nunca ousara pedir-lhe que lhe lesse o futuro, talvez por temor daquilo que poderia ser revelado a um esposo que ela traía de muitas maneiras.
Não era isso que o tenente civil temia, mas sim o ridículo: que lindo efeito não deixaria de ter, sobre todos aqueles que aterrorizava e, também, sobre aqueles que o menosprezavam ao odiá-lo, caso vissem o seu coche ou o seu cavalo e, de qualquer modo, a sua escolta, frente à casa onde residia Morin, na rue Saint-Jacques! Uma coisa era enviar uma carta por um criado, outra era deslocar-se ao local, em pessoa. Contudo, se Laffemas queria saber o que lhe reservavam os astros, era preciso deslocar-se; bem protegido pelo Rei, Morin não tinha qualquer motivo para se incomodar por causa de um vulgar tenente civil que não o amedrontava minimamente...
Para se tranquilizar, Laffemas pensou que o trajeto não era muito longo, que as traseiras de sua casa davam para a rue du Petit-Pont, através de uma porta que os criados utilizavam e que lhe bastava pedir emprestados uma libré, uma capa e um chapéu, para se encontrar disfarçado, sobretudo, em plena noite.
O tempo passava e, com ele, o das hesitações. Quando o relógio do Petit-Châtelet bateu as nove horas, decidiu-se: mudou de roupa, pôs um chapéu redondo na cabeça e saiu pela porta das traseiras. Enquanto explorava as imediações, antes de abandonar o refúgio do patamar, a noite, fria, pareceu-lhe calma. Como os seus olhos amarelos possuíam, como os dos gatos, a faculdade de ver no escuro, acabou por se tranquilizar. Não havia nada que se mexesse. Começou a andar, alcançando com largas passadas a rue Saint-Jacques, que foi subindo com um ritmo mais apressado à medida que se afastava de casa.
Já tinha quase chegado ao seu destino quando ouviu o barulho de uma carruagem, rodando a boa velocidade. Pouco depois, avistou-a, era precedida por dois batedores que transportavam tochas, tal como os viajantes atrasados podiam encontrar nas portas principais à entrada da cidade. Tratava-se de um coche maciço puxado por quatro cavalos, transportando um cocheiro e um criado bem agasalhados.
Subitamente, um dos batedores caiu, ao escorregar nalguma imundície, deixando escapar a tocha, cuja chama assustou um dos cavalos da frente. Soltando um relincho de terror, o animal travou com as quatro patas e empinou-se, desequilibrando a atrelagem. A carruagem inclinou-se, quase embateu na fachada de uma casa mas, finalmente, estabilizou-se, enquanto se ouviam gritos femininos provenientes do interior. Enquanto o cocheiro se ocupava dos animais, o outro batedor, que voltara atrás, aproximou-se da portinhola.
- Não é nada, minhas senhoras! Foi maior o susto que o mal. A culpa é do meu colega que escorregou e deixou cair a sua tocha.
- Então, despachemo-nos! - disse Mme. de La Flotte, cujo amável rosto acabara de surgir à luz da tocha.
Laffemas, que se refugiara na reentrância de uma casa, nada perdera daquela cena que julgava estúpida, mas, de repente, ficou paralisado: ao lado do rosto da condessa, surgira um outro, sob um capuz preto e enquadrado por uma touca branca; e esse rosto era aquele que assombrava as suas noites e os seus sonhos que, para outros, teriam sido pesadelos, era o rosto de Sylvie! Estava disposto a jurá-lo, poria a mão no fogo e a cabeça a cortar! Ninguém tinha tão belos olhos cor de avelã! Quanto à velha senhora... claro, por Deus!, era Mme. de La Flotte, a avó da bela Hautefort.
Invadido por uma alegria soturna que lhe fez esquecer os perigos em que incorria e até o horóscopo do senhor Morin, decidiu seguir no encalço da carruagem, para onde quer que ela se dirigisse. Até ao inferno, se fosse caso disso, onde ficariam certamente muito felizes em acolhê-lo como a um irmão.
Após o acidente a que escapara, a carruagem rodava mais devagar e Laffemas pôde segui-la sem se fazer notar. Já não era jovem, mas herdara dos seus antepassados das montanhas autênticas pernas em aço e uma extraordinária capacidade de resistência. Apesar do trajeto ter sido longo ele não pensou, nem por um momento, que teria de regressar sozinho a casa, assim que a viatura e os seus ocupantes chegassem ao seu destino.
Atravessaram os dois braços do Sena e, depois, passando pela Greve, chegaram à rue Saint-Antoine, mas quando o pórtico do convento da Visitação de Santa Maria se abriu para dar passagem à carruagem, o perseguidor fez uma careta: se aquela que desejava decidisse ali permanecer, ser-lhe-ia impossível voltar a pôr-lhe as mãos em cima! Uma mulher que decidisse ingressar ali e as portas escancaradas para deixar entrar a viatura em plena noite provavam que ela era esperada ficaria tão bem defendida quanto por detrás dos muros da Bastilha, cujas enormes torres redondas, na vizinhança, constituíam uma guarda temível e significativa. Mais ainda, porque na velha fortaleza o tenente civil ainda dispunha de poderes, enquanto que ali, naquele convento, não tinha nenhum.
Fundada em 1610, em Annecy, por François de Sales e pela baronesa de Chantal que, viúva, desejava voltar-se para Deus, a Ordem da Visitação, da qual fora a primeira superiora, expandiu-se muito rapidamente. Sob o impulso da Contra-Reforma, numa trintena de anos abriram-se outros conventos numa boa parte da França. O primeiro convento da Ordem, o da rue de Saint-Antoine, alargou-se e tornou-se, nalguns anos, o mais nobre e melhor frequentado em Paris e, também, aquele que era melhor dirigido: o senhor Vincent fora seu capelão durante dezoito anos. Quanto a Mme. de Maupeou, a superiora, ela em nada lhe ficava atrás quanto à piedade, à austeridade dos costumes e à energia. Oriunda de uma poderosa família parlamentar, ela dirigia o seu mundo com mão de mestre, rodeada pelo respeito de todos. E, sobretudo, o próprio Rei mantinha o convento sob a sua proteção, desde que a irmã Louise-Angélique ingressara na Ordem, ela que fora, outrora, Louise de La Fayette na vida civil[13]. O próprio cardeal de Richelieu nunca teria ousado atacar aquela fortaleza celeste, tendo decidido talvez à falta de outra solução inscrevê-la na lista das suas beneficências.
Isto era o suficiente para que qualquer tenente civil se sentisse derrotado caso quisesse transpor os elevados muros da Visitação de Santa-Maria; contudo, era preciso mais do que isto para que ele desistisse por dar com um pórtico fechado. Sentado num apeadouro do outro lado da rua, Laffemas refletia intensamente. A carruagem que vira entrar teria de acabar por sair dali, pois havia poucas hipóteses de que Mme. de La Flotte tivesse escolhido pronunciar os seus votos. Restava saber se naquela noite se tratava de uma simples paragem para evitar ter de abrir o seu hotel ou se a velha senhora só ali fora para acompanhar Sylvie, em cujo caso...
Habituado a fasear as suas perguntas, não foi mais longe nas suas cogitações. Depois de ter vigiado durante algum tempo o convento silencioso, Laffemas abandonou o posto de sentinela que o repousara ligeiramente e correu até ao Grand Châtelet, onde encontrou um dos guardas de serviço, mandando-o para o convento:
- Ficarás de atalaia até veres sair uma carruagem que entrou lá esta noite (seguiu-se a sua descrição). Quando se for embora, arranja-te para saberes quantas pessoas vão nela e com quem se parecem. Se sair de Paris, manda que a guarda das portas te disponibilize um cavalo e vai atrás dela.
- Até onde? - perguntou o homem que era, afinal, Desormeaux, o terno amigo de Nicole Hardouin, fato ignorado pelo tenente civil, para grande bem da casa Raguenel.
- Até ao primeiro posto de muda dos correios, onde tratarás de saber para onde se dirige. Se te disserem que irá regressar ao seu ponto de partida, no vale do Loir, deixa-a continuar e volta para me dares o recado.
Este tipo de missão não agradava a Desormeaux, que era mais do gênero contemplativo. As cavalgadas cansavam-no e agitavam a sua barriga arredondada pela boa cozinha de Nicole. Contudo, visto que tinha um santo terror do tenente civil, tal como os seus colegas, não foi capaz de sugerir a Laffemas que se dirigisse a alguém mais esbelto, tanto mais que havia urgência...
Foi, indiscutivelmente, a missão mais desgastante da sua vida. Quando se deixou praticamente cair do cavalo na noite seguinte, estava meio morto e as notícias que trazia lançaram o seu chefe num mundo de perplexidade e de inquietação:
- A carruagem foi até Versalhes - declarou. - A passageira era uma senhora de idade... uma verdadeira dama. Demorou-se lá mais de duas horas e depois regressou à rue de Saint-Antoine.
- Versalhes? Mas onde, em Versalhes? Não me digas...
- Sim. Foi ao castelo. E o Rei estava lá, visto que uma companhia de mosqueteiros encontrava-se de guarda... Agora, posso... ir deitar-me, ou tenho de... regressar ao convento?
Mergulhado num abismo de reflexão, Laffemas contentou-se em despedir Desormeaux com um gesto de impaciência e resmungando:
- Vai deitar-te!
Que poderia querer o Rei da avó da Hautefort, pois que ninguém entrava em Versalhes sem ser convidado por Luís XIII?
Também era essa a questão com que se debatia a velha senhora, desde que deixara o seu castelo nas margens do Loire mas, porque pensava acertadamente que lhe seria dada uma resposta, foi com certa tranquilidade que transpôs a entrada do pequeno castelo de tijolos cor-de-rosa e de pedras brancas, coberto por telhas de ardósia azulada, que Luís XIII mandara construir em 1624, no lugar onde antes existira a antiga casa senhorial pertencente aos Gondi. Quando se dedicava à caça do veado, até ao cair da noite, nos bosques das imediações, era lá que ele ia dormir com os seus companheiros, deitando-se em cima da palha com as botas calçadas e envolto na sua capa. Apesar de estar plenamente acostumada aos hábitos da Corte, a excelente senhora apenas conseguiu fazer uma reverência um pouco vacilante, de tal modo o Rei estava irreconhecível... O seu aspecto era tão assustador como quando estivera doente em Lyon.
Na realidade, Luís XIII sofria de uma enterite crônica desde a infância, dando-se mal com os tratamentos sangrias e clisteres que lhe aplicavam. Além disso, era uma pessoa muito nervosa, sujeita a angústias e períodos depressivos. Na verdade, a ignorância dos médicos era, em boa parte, responsável pelo descalabro de uma saúde que, à parte a quota de sangue dos Médicis, ter-se-ia assemelhado à do seco e vigoroso Henrique IV: num só ano tinham-lhe dado cento e quinze clisteres e duzentos e doze purgas, sem contar com as quarenta e sete sangrias distribuídas com toda a liberalidade pelo seu médico, Bouvard. Com o tempo todos se tinham acostumado à sua magreza e à sua tez, que as intempéries acumuladas por aquele caçador obstinado bronzeavam ligeiramente, sem, no entanto, dissimular verdadeiramente a sua palidez. Todavia, desta vez Mme. de La Flotte ficou assustada: a magreza era tal que os músculos pareciam ter-se dissolvido, a tez acinzentara-se e os olhos estavam encovados: Luís XIII parecia-se de tal modo com uma personagem pintada por El Greco que a condessa quase se benzeu; certamente que a morte não iria esperar muitos anos mais...
O Rei recebeu a sua visitante no grande gabinete contíguo ao seu quarto. Sentou-se ao canto da lareira; a decoração, feita de tapeçarias consagradas à caça era tão fresca, tão evocadora, que se tinha a sensação de estar no âmago de alguma floresta mágica na qual um gênio se teria divertido a instalar uma chaminé. Sobre o veludo cinzento e sem bordados das suas roupas, a brancura do grande colarinho voltado e os altos punhos de renda engomada realçavam ainda mais o aspecto dramático do rosto, de olhos avermelhados, e as belas mãos, outrora tão pujantes e, agora, de uma brancura diáfana. Com uma delas indicou-lhe um assento, enquanto que um sorriso devolvia, repentinamente, a verdadeira idade àquele homem de quarenta anos, mas que parecia ter mais de sessenta.
- Mal esperava que viésseis - disse. - É um pecado impor-vos um trajeto tão longo com este tempo invernal e na vossa idade.
- De modo algum, Senhor! Sempre gostei de viajar, apesar dos inconvenientes mas, sobretudo, foi o apelo de Vossa Majestade que me deu uma grande alegria... Então apressei-me a chegar na hora devida...
As sobrancelhas de Luís subiram até ao meio da testa:
- Uma grande alegria?! É muito raro que as minhas ordens produzam tal efeito, tanto mais que há mais de um ano que não tendes motivos para estardes contente com a minha pessoa, recusei-me a conceder-vos o posto de governanta do Delfim e, depois, o de dama de honor da Rainha...
- Se o Rei não me considerava à altura do desempenho dessas funções, quem sou eu para o criticar? - respondeu Mme. de La Flotte, com uma boa disposição que provocou novo sorriso.
- Sois boa pessoa, senhora de La Flotte. Enfim... também exilei a vossa neta.
- O que me espantou muitas vezes foi que Vossa Majestade não o tivesse feito mais cedo. Marie consegue tornar-se tão insuportável!...
A figura sombria de Luís iluminou-se subitamente, como se tivesse acabado de sair de debaixo de uma nuvem escura para se expor à luz do Sol.
- Tanto mais que não era essa a minha intenção. Tinha-lhe pedido que se afastasse durante algum tempo... quinze dias, no máximo!
- E ela respondeu que não regressaria se tivesse de se afastar por quinze dias. Aliás, Senhor, dado que nos encontramos aqui os dois a falar... será que posso dizer “com toda a confiança”...?
- Certamente, certamente...
- Será que ela teria sido chamada de volta passados esses quinze dias? Aquele, ou antes, aqueles que desejavam a sua partida são... tão estimados pelo Rei!
- De quem falais?
- Mas... do senhor Cardeal... e, também, de M. de Cinq-Mars.
Uma súbita expressão de dor transfigurou o rosto do Rei, enquanto as lágrimas lhe subiam aos olhos:
- O senhor Lê Grand é cem vezes, mil vezes mais insuportável que Marie jamais o foi! Não pára de me atormentar para lhe conceder novos favores...
- Novos favores? Quando é Grande Escudeiro de França aos vinte anos? - perguntou Mme. de La Flotte, literalmente sufocada.
- Decerto, decerto... mas mereceu-o. Daí a fazê-lo entrar no Conselho, tal como me pede...
- No Conselho? Mas a que título?
- Não sei lá muito bem! Talvez como Guarda dos Selos... Quer que o faça duque, par do reino...
- E já agora, porque não Primeiro Ministro?
- Sim, porque não? Claro que o senhor Cardeal não poderia estar de acordo, mas ele está muito doente. Será preciso, sem dúvida, que um dia o faça substituir...
- Por M. de Cinq-Mars?
Luís XIII lançou um olhar inquieto à sua visitante:
- Talvez seja um pouco cedo, não? Ele ainda é muito novo...
A condessa olhou para o seu rei com um espanto que não procurou dissimular. Os rumores da ligação quase amorosa que unia Luís XIII ao belo jovem saíam de Paris e de Saint-Germain e percorriam o resto da França. Alguns riam, outros franziam o sobrolho, mas à exceção, certamente, de Richelieu, no fundo ninguém media propriamente a extensão e a profundidade do mal. E este só iria aumentar, se Luís XIII encarasse realmente a hipótese de substituir Richelieu um homem de Estado fora de série, independentemente do que pudessem pensar a seu respeito por um janota da corte...
- Mas... que o Rei me permita espantar-me! Porque está M. Lê Grand com tanta pressa? Como Vossa Majestade acaba de dizer, ele é novo e tem a vida inteira à sua frente. Além disso, ocupar o lugar do Cardeal...
- Suceder-lhe, minha cara, suceder-lhe... é verdade que é demais, não é? Sua Eminência serve bem os interesses do reino: reconquistamos Artois; vamos anexar a Lorraine e, no Roussillon, as nossas armas estão em condições que nos permitem esperar um desfecho favorável... É preciso dar tempo ao Cardeal para que ele acabe a sua obra... É o que não paro de dizer a esse jovem impaciente.
- Mas, uma vez mais, se Vossa Majestade me permite, qual o motivo dessa impaciência? Esse jovem não obteve até agora tudo o que desejava?
- Não lhe recuso nada. É um tal espetáculo vê-lo feliz! Quanto à sua pressa... reside inteiramente no nome de uma certa mulher...
- Marion de Lorme, a cortesã que é sua amante, ao ponto de já a chamarem de Mme. La Grande?
- Não. Isso sempre me aborreceu, mas, no fundo, não se trata lá de grande coisa. Se Cinq-Mars quer tudo e já de seguida, é para ascender a um lugar assaz elevado a fim de desposar uma princesa. Apaixonou-se por Marie de Gonzague...
Mme. de La Flotte escancarou novamente os olhos. Ora ali estava uma novidade! Princesa de Mantoue, duquesa de Nevers, Marie de Gonzague, que chamavam Mlle. de Nevers, era uma das mulheres mais ambiciosas da Corte. Intrigara durante muito tempo para desposar Monsieur, tornando-se, desse modo, cunhada do Rei. Naturalmente, fora o Cardeal que se lhe atravessara no caminho e, desde então, a bela votava-lhe um ódio feroz. Bela, ela era realmente, um pouco no gênero de Junot[14], majestosa e glacial, mas de indiscutível beleza...
- Mas... ela não é mais velha do que ele?
- Dez anos! Aparentemente, isso não tem importância. Desde que a encontrou no baile de Saint-Germain, na altura da cerimônia de purificação da Rainha, depois de esta ter dado à luz o meu filho Filipe, Cinq-Mars só sonha com ela...
- E ela? Fez dele o seu amante?
- Como podeis pensar tal coisa? Quando uma mulher desse calibre deseja um homem, só se entrega a ele depois de obter a vitória. Estão na fase do amor cortês - troçou o Rei, com uma risada seca. - Ela faz de Dama, e ele de cavaleiro disposto a enfrentar os gigantes para obter a sua mão. Quer o estatuto de par, um domínio ducal, um posto elevado...
- Senhor, um casamento desses não é impossível sem o acordo do Rei?
- E... eu nunca o darei, nunca, nunca, haveis-me entendido? Pelo menos... enquanto o Cardeal... Oh, gostaria tanto que ele fosse feliz a menor custo!
Luís XIII escondeu o rosto entre as mãos para que a sua visitante não pudesse ver as lágrimas que derramava de novo. Esta achou que estava na altura de mudar de conversa. Os reis também são personagens capazes de fazer pagar bem caro aqueles que foram testemunhas de um momento de fraqueza.
- Senhor - disse a condessa com brandura - o Rei consentirá em confiar-me o motivo por que me mandou chamar?
As mãos regressaram imediatamente à sua anterior posição, depois de enxugarem as lágrimas, que a vermelhidão dos olhos ainda traía.
- Com certeza! Queria saber como vai Marie.
- Muito bem, Senhor.
- Estou muito feliz por isso... Eu... oh, mas para quê andar com rodeios? Senhora, sinto a sua falta. Por muito dura que ela fosse, transmitia-me um pouco da sua coragem, da sua capacidade de resistência...
- E foi por isso que desejaram que ela se fosse embora. Era um obstáculo perante grandes ambições...
- Sem dúvida, mas ela nem sequer tentou dobrar a minha vontade... Oh, não me faleis do seu orgulho, conheço-o sobejamente, mas esperava que ela me amasse um pouco. Infelizmente, só gosta da Rainha... uma ingrata que nada fez para a conservar junto a ela!...
O Rei levantou-se, deu duas ou três voltas pelo gabinete e, depois, veio postar-se frente à chaminé, estendendo as mãos.
- Não lhe teria sido possível amar a sua Rainha e o seu Rei ao mesmo tempo? - suspirou, falando mais para consigo mesmo do que para a visitante. - Ela sabia muito bem que nunca lhe teria pedido nada que fosse contrário aos códigos de honra. Em certas alturas, julguei que me amasse um pouco... tinha impulsos, que recalcava sem dúvida bem depressa, e lançava olhares que por vezes se enchiam de ternura...
De repente, voltou-se:
- Quero voltar a vê-la! Falar-lhe como o fazíamos outrora! É uma guerreira. Também sei isso, mas ela tem mais força do que eu. Não poderá regressar?
- Não, caso o Rei não anule a ordem de exílio! E o Rei não o fará...
- Não, sem dúvida! Haveria muita gritaria! Mas aconselhei-a a casar-se, talvez pudesse encontrar-lhe um partido digno dela?
- Marie só aceitará casar-se por amor e ela não ama ninguém..
- Nem sequer o marquês de Gesvres, que proibi que a desposasse?
- Nem mesmo ele, Senhor, pois se o amasse ela já seria sua esposa, quer isso agradasse ou não a Vossa Majestade!
Luís XIII desatou a rir, com a facilidade das crianças que passam num ápice da tristeza à alegria. Talvez fosse o alívio ao saber que Marie não estava apaixonada por outra pessoa... Em seguida, depois de coçar duas ou três vezes a garganta, ousou dizer:
- E... se eu lhe escrevesse uma carta? Uma carta muito simples, estais-me a entender? Que vos entregaria e que lhe permitiria vir morar para mais perto de Paris, sem ter de regressar à Corte. Em Créteil, por exemplo?
- Em Créteil?
- Ora vamos! Não façais de conta que não entendeis. Os du Bellay não possuíam por lá um domínio, na altura em que eram bispos de Paris? O castelo de Mesches, se a memória não me falha.
- Ela é excelente, Senhor! Mas pertencia aos bispos de Paris, bem como ao domínio senhorial de Créteil.
- Claro, claro, mas isso não impede que a vossa família por lá tenha conservado a posse de um solar, próximo da antiga quinta dos Templários, uma casa bem bonita que pertenceu outrora a Odette de Champdivers, a favorita de Carlos VI, o pobre rei louco. Já não vos pertence?
Mme. de La Flotte, que via muito bem onde queria chegar o Rei, não achou útil nem prudente, mentir-lhe: ele estava muito bem informado.
- Oh sim! Mas vamos lá muito raramente e há certas obras...
- Mandai fazê-las! Vou oferecer-vos um vale da minha bolsa particular, mas agi discretamente. Nada que atraia muito as atenções. Afinal, é plausível que vos tenhais interessado novamente por essa residência, a ponto de desejardes ir para lá morar à luz do dia...
- ...e Marie a coberto da escuridão? Entendamo-nos,Senhor! Além de eu ignorar como é que ela receberá a vossa carta, ela nunca aceitará o lugar de Odette de Champdivers!
O punho do Rei esmurrou uma mesa onde estavam espalhadas algumas armas:
- Senhora, não desejo dormir com ela mas sim falar-lhe! Devíeis conhecer-me melhor!
- Rogo ao Rei que me perdoe mas, admitindo que Marie aceite, o Cardeal não demoraria a ser posto ao corrente, não se lhe pode esconder nada!
- Salvo quando eu o quero! Aliás ele tem mais em que pensar neste momento. Sabeis que dentro de dois dias vai dar a mão da sua sobrinha ao filho do príncipe de Conde, que se baba de gratidão? Lindo casamento, não há dúvida! Claire-Clémence de Brézé só tem doze anos e está muito longe de ser bela. Enghien também o não é, mas tem aquela feieza que não atrai as mulheres. Além disso está apaixonado por uma outra, que é encantadora. Só que o senhor seu pai pisca os olhos ao dote e às vantagens que há em entrar para a família do meu ministro. E eu terei de estar presente com a Rainha no Palácio do Cardeal, para assinar o contrato...
Era óbvio que aquele casamento não lhe agradava, mas a sua visitante aproveitou para tatear o terreno noutra direção:
- Poderei pedir notícias sobre a Rainha a Sua Majestade?
O Rei, que se instalara à mesa enquanto estava ocupado a falar, e que pegara numa folha de papel e numa pena de escrever, levantou a cabeça:
- Porque não lhe perguntais vós própria? Pelo que julgo, não estais exilada! Ao regressardes a Paris, passai por Saint-Germain e ide saudá-la! Aqui está um salvo-conduto para Marie caso ela esteja de acordo em ir para Créteil... e eis a carta de que vos falei - acrescentou, tirando do bolso um bilhete já preparado. - Dizei-lhe que se ela vier não terei qualquer dificuldade em ir ter com ela. Sabeis que quando estou em Saint-Maur, gosto sempre de ir caçar para o vale do Marne!
Ele calou-se durante um momento e, depois acrescentou ainda, com aquele estranho sorriso que, apesar das sequelas da doença, lhe devolvia um ar de infância:
- Não se trata de mais um castelo que foi construído pelos du Bellay, antes que Catarina de Médícis o tivesse adquirido? Decididamente, a vossa família era muito poderosa na região. Porque não voltaria a sê-lo?
Mme. de La Flotte percebeu muito bem o que o Rei queria dizer e a sua reverência foi disso testemunho, pois estava cheia de esperança e de alegria ao pensar nos seus queridos netos. Desse modo foi-se embora, decidida a combater com todas as suas forças os maus motivos que Marie lhe poderia dar para permanecer enclausurada em La Flotte. Na verdade apostava em que ela iria agarrar a oportunidade com as duas mãos! No Inverno, a vida campestre nunca era muito divertida... E, depois, a Rainha, que devia ter muitas saudades da sua fiel açafata, talvez lhe entregasse também algum bilhetinho...
Desgraçadamente, se esperava um acolhimento caloroso da parte da Rainha, ficou decepcionada. A sua chegada ao Grande Gabinete de Ana de Áustria pareceu-se mais com um pedregulho lançado no meio de um pântano de rãs do que com uma entrada bem-vinda, apesar do fato da sala, ampla e suntuosa, se parecer mais com um aviário naquela altura, devido ao grande número de damas de honor que cacarejava a um canto, como se quisessem erguer uma barreira entre o pequeno grupo formado por Ana de Áustria e por dois visitantes e aquele que rodeava Mme. de Brassac, a dama de honor. Ora, esses dois visitantes eram precisamente Marie de Gonzague e o favorito do Rei, o jovem Cinq-Mars, que se parecia mais do que nunca com Adônis, ao lado de uma altiva “Juno” para a qual não parava de olhar amorosamente.
Quando anunciaram Mme. de La Flotte, instalou-se um súbito silêncio e todos os presentes puseram aquele ar constrangido que se costuma ter perante um objeto, vagamente escandaloso, que fere a vista. Cinq-Mars franziu as suas lindas sobrancelhas. A Rainha tomou rapidamente conta da situação:
- Pois bem, condessa? É bem de vós que se trata? Mas que agradável surpresa! Decidiste-vos, finalmente, a abandonar o vosso pouso campestre?
O orgulho de Mme. de La Flotte, se bem que não fosse tão abrupto quanto o da neta, nem por isso era menos sensível:
- O desejo de saudar Vossa Majestade ter-me-ia trazido de bem mais longe do que... a minha residência em Paris? Posso recordar à Rainha que, até agora, ninguém me exilou?
Para sua surpresa, foi Cinq-Mars quem lhe respondeu, com a audácia daquele que se sente todo poderoso:
- Todos nós pensávamos que teríeis grande empenho em permanecer junto a Mlle. de Hautefort para a apoiar na sua experiência...
Ele teria feito melhor se tivesse ficado calado...
- Experiência imerecida, senhor Grande Escudeiro e sabemos perfeitamente quem lhe infligiu. De qualquer modo, não é convosco que estou a falar... Na realidade, Senhora - acrescentou, voltando-se para a Rainha - eu desejava sobretudo transmitir à Nossa Soberana um testemunho do nosso obediente respeito e dizer-lhe...
- Ela está inteiramente convencida disso - interrompeu a Rainha. - Gostava muito de Mlle. de Hautefort e ela bem o sabe...
- Vossa Majestade quer dizer que já não é o caso?
- Mas que idéia! Vejamos! Obrigada pela vossa visita, condessa. Fiquei muito feliz por ver-vos - acrescentou, com um nervosismo evidente. - Mme. de Motteville! Tereis a amabilidade de acompanhar Mme. de La Flotte até à sua carruagem? Ela parece-me muito cansada e penso que tem pressa de voltar a casa!
Foi com indignada estupefação que a condessa viu dirigir-se ao seu encontro uma jovem dos seus vinte anos, loura e sorridente, mas com os olhos mais vivos e escrutinadores que pudessem existir. Reconheceu-a, apesar do tempo que já passara, pois conhecera-a em criança, quando ela se encontrava ao serviço da Rainha e fora integrada naquela espécie de comboio destinado ao exílio, do qual também faziam parte integrante a duquesa de Chevreuse e o embaixador espanhol Mirabel. Nessa altura, ela chamava-se Françoise Bertaut e era sobrinha do poeta do mesmo nome. Quanto àquele novo nome, Motteville, Mme. de La Flotte tomaria conhecimento disso mais tarde, adviera-lhe devido a um presidente no parlamento da Normandia, de tal forma mais velho do que ela, que acabara por enviuvá-la. Daí o ter sido recentemente chamada de volta à Corte, onde ocupava agora o posto privilegiado de criada de quarto da Rainha.
Com um gesto decidido, a avó de Marie recusou a mão àquela que lhe era oferecida:
- Agradeço a Vossa Majestade a vossa solicitude, mas as minhas pernas ainda andam muito bem. Trouxeram-me até aqui e podem perfeitamente levar-me de volta à minha carruagem! Sou a modesta serviçal de Vossa Majestade!
E, com uma reverência impecável, deixou o local com inteira dignidade, sem parecer dar pelo gesto de mão que a Rainha esboçara. Sentia-se, ao mesmo tempo, furiosa e agastada. Que o Rei se tivesse deixado apanhar pelo jogo de charme do jovem demasiadamente belo, isso podia ser explicado, se bem que a sua tentativa para se aproximar de Marie se parecesse demasiado com um pedido de socorro, mas que a Rainha tivesse, ela também, caído na armadilha urdida pelo Cardeal, isso era demais!
O Rei tem razão, murmurava consigo mesma, enquanto a sua carruagem deixava o castelo. É uma ingrata, nada mais que uma ingrata! Vai ser necessário ensinar Marie a seguir a linha de conduta dos seus antepassados: antes de mais, servir o Rei! E, para começar, tentar reconciliar-se com ele...
Deste modo, mal chegou à Visitação de Santa Maria, se bem que já fosse tarde e estivesse a morrer de fome, pois desde a manhã que não comera nada, começou, contudo, a escrever, de imediato, ao seu intendente em Créteil, a fim de lhe fornecer instruções com vista às obras de restauro na casa para onde contava ir viver durante algumas semanas, dali a um mês. Depois foi à procura de Sylvie.
Encontrou-a na grande capela nova, dedicada à Nossa Senhora dos Anjos. Sentada na parte da nave reservada aos visitantes e aos raros pensionistas, ela escutava, de lágrimas nos olhos, as freiras agrupadas no coro, para lá do gradeamento, cantando a meia voz um Sabat Mater, que ela própria entoara com as religiosas do Val-de-Grâce, numa época em que sabia-o agora fora tão feliz: nessa altura amava François e este amava a Rainha, mas dedicava-lhe uma grande ternura. Presentemente, François não amava nem uma nem outra. Afastara-se, para se ligar a uma mulher demasiado bela para não ser temível. E, caso o tivesse perdido para sempre e Sylvie temia ter de o confessar a si própria, sem ele, a sua vida não teria mais sentido, nem sabor...
Contudo, o momento presente trazia-lhe uma paz inesperada, talvez por ser um momento de pura beleza. As chamas das velas projetavam reflexos nas cruzes prateadas que as religiosas traziam sobre as suas severas indumentárias pretas e aureolavam, com uma delicadeza dourada, os perfis enquadrados pelo véu de estamenha branca e a fita preta, iluminando, ao mesmo tempo, o grupo branco das noviças.
Era sobretudo para elas que Sylvie olhava, sabendo que bastaria uma palavra sua para se lhes juntar. Uma simples palavra que poderia proferir, apesar de se sentir pouco atraída pelos conventos... Tratava-se de uma indumentária como outra qualquer e estava tão farta da sua vida desenraizada! Nem sequer tinha o direito de regressar a Belle-Isle, para a casa que aprendera a amar pois, segundo Marie, os esbirros de Laffemas já tinham estragado a maravilhosa paisagem com a sua indesejável presença. O pior seria, talvez, encontrar-se tão perto do pequeno hotel da rue dês Tournelles, onde vivia Perceval de Raguenel e nem sequer poder ir lá visitá-lo! Era esse o seu verdadeiro refúgio, o único onde desejava encontrar-se, após tantos meses passados ao longe, mas isso era-lhe proibido, para não o pôr em risco... Afinal, talvez proferisse aquela palavra que esperavam da sua parte... François não lhe dissera, com tanta brutalidade, que não via outro destino possível para ela? Além disso, caso aceitasse envergar o véu, tornar-se-ia uma intocável... e, pelo menos, o seu padrinho poderia ir vê-la à sala de visitas...
Levantou a cabeça para contemplar a alta cúpula invadida pelas sombras da noite, na direção das quais a Virgem cuja radiosa Assunção pairava sobre o altar-mor parecia querer elevar-se. Pensou que o Céu se encontrava verdadeiramente acima das suas forças, como estivera outrora a torre de Poitiers, quando era ainda uma miúda... e que antes de pôr o pé no primeiro degrau da escada de Jacob, ainda precisava de refletir. Dispunha-se a sair, quando Mme. de La Flotte veio ter com ela, sentando-se a seu lado e pegando-lhe na mão.
- Os nossos assuntos parecem correr melhor do que esperava - sussurrou a velha senhora. - Se bem que se encaminhem numa estranha direção, bem inesperada devo dizer, mas, falemos de vós: que pensais deste local?
- Que aquelas que aqui estão se encontram animadas pelo sopro divino... o que não é o meu caso!
- Também não é o meu, mas não é isso que vos pergunto, julgais poder aqui ficar durante algum tempo, sem morrerdes de tédio, a ponto da inação vos levar a proferirdes os votos perpétuos?
- Queria, sobretudo, voltar a ver o meu padrinho. Foi por isso que vos acompanhei até aqui. De outra forma, qualquer convento teria servido para obedecer às ordens do senhor duque de Beaufort.
- Deixai de dizer disparates e escutai-me! Há muitas possibilidades que Marie venha morar proximamente na casa que temos em Créteil. Não me pergunteis mais pormenores...
- O Rei quer voltar a vê-la! - disse Sylvie, de modo afirmativo. - Deve ser difícil esquecer-se dela.
- É um pouco isso mas, aparentemente, não é esse o caso da Rainha. Dito isto, deixai-me concluir: vereis o vosso padrinho nos dias que se seguem, e certamente também Mme. de Vendôme, em casa de quem irei amanhã antes de partir mas, para tal e para assegurar a vossa proteção, tereis de pedir para ingressar no noviciado... Não é nenhum compromisso irrevogável e podereis abandoná-lo quando quiserdes antes de perfazer dois anos - acrescentou, perante o gesto de protesto de Sylvie. - Deste modo, regressarei mais tranquila, o que não seria o caso se permanecerdes como pensionista... Aceitais?
- Não tenho qualquer alternativa, não é verdade?
- Tendes. Podereis sair imediatamente e dirigir-vos à rue dês Tournelles... com todas as consequências que isso poderá acarretar para vós e para aqueles que ameis.
Sylvie não respondeu logo. Naquela altura o coro das religiosas iniciou um cântico que conhecia, da autoria de Eustache du Caurroy e, depois de uma ligeira hesitação, principiou também a cantá-lo. De repente, a sua voz elevou-se, tão pura, tão fresca, que, no coro, todos os rostos se voltaram na sua direção enquanto ela subia pela nave, sentindo pulsar no fundo do coração uma vibração que se assemelhava à alegria. Acabara de pensar que, pelo menos, poderia cantar tanto quanto quisesse.
No dia seguinte, Marie-Madeleine entregava a Mlle. de Valaines o vestido, o escapulário e o véu brancos. Uma hora depois, Mme. de La Flotte, aliviada de um grande peso, retomava o caminho para o Vendômois, perguntando a si própria como é que Marie acolheria a carta escrita pelo Rei. Ela era capaz de rasgá-la sem mesmo a querer ler.
Foi assim que ficou agradavelmente surpreendida quando Aurora, após uma leitura que não pareceu provocar qualquer sinal de reação no seu rosto, dobrou o papel para se abanar com ele, de ar distraído, antes de deslizá-lo para dentro de um bolso no qual deu em seguida umas pancadinhas de satisfação.
- Preciso de pensar no assunto! Digamos... até à Primavera. Como são mais agradáveis as viagens, quando as macieiras estão novamente em flor...
- Não será abusar da paciência do Rei? Ele pareceu-me... desamparado.
- Fazer-se desejar nunca fez mal a ninguém. E, depois, tranquilizai-vos, avó, enviar-lhe-ei uma mensagem. Por ora, devo ficar aqui. A ordem de prisão emitida contra o duque César pôs a região em alvoroço. O vosso primo du Bellay, prepara-se até para colocar Vendôme em estado de defesa. A propósito, o Rei nada vos disse sobre este assunto?
- Tínhamos outros assuntos a tratar e confesso-vos que, dada a vossa atual situação, não tinha vontade alguma de acrescentar às nossas preocupações o tema sempre escaldante de César e dos seus filhos. Todavia, antes de regressar, passei pelo hotel de Vendôme. A duquesa e a filha não têm qualquer notícia e fazem-se tão pequenas quanto possível. Rezam muito, mas não estão em situação de serem lamentadas. O bispo de Lisieux, o abade de Gondi e o seu tio, o arcebispo de Paris e até o senhor Vincent rodeiam-nas das maiores atenções, pois é óbvio que ninguém deseja ver um envenenador na pessoa do filho de Henrique, o Grande. Penso que tantas influências santas deveriam jogar em favor dos fugitivos. O Cardeal terá de contar com eles... - Um arranhar na porta interrompeu-a. Jeannette, que ouvira a chegada da carruagem na peça que servia de lavandaria, onde prestava ajuda, vinha, timidamente, em busca de novidades. Perante a sua cara roída de angústia, Marie, habitualmente tão distante, teve um impulso e passou-lhe um braço em volta dos ombros:
- Pára de te afligir, Jeannette. Corre tudo bem. O convento da Visitação conta com mais uma noviça e eis tudo!
- Uma noviça? Mas ela nunca quis ouvir falar em conventos e Monsenhor François foi muito cruel ao enviá-la para lá!
- Fica descansada que ela não permanecerá lá, mas pensa que não há lugar em que ela possa estar melhor protegida. Além disso, verá finalmente o seu querido padrinho, que irá visitá-la. Sem contar com Mme. de Vendôme e a filha, assim que tiverem coragem para sair...
Na realidade, Marie estava menos segura do que queria fazer crer. Teria cem vezes preferido que Sylvie tivesse ficado com ela. Paris e, sobretudo, a proximidade do tenente civil, pareciam-lhe inquietantes, mesmo que existisse entre eles uma barreira suficientemente alta para fazer recuar um rei e um cardeal. E o caso Vendôme não era de molde a arranjar as coisas. Marie conhecia muito bem o caráter impulsivo de Sylvie, capaz de transpor o muro do seu convento para se ir ajoelhar aos pés da Rainha, do Cardeal ou de qualquer outra pessoa, caso os Vendôme fossem presos ou caso chegasse aos seus ouvidos um rumor nesse sentido. Enfim!... era preciso esperar que não acontecesse nada de mau durante um mês, período findo o qual mudariam para a casa em Créteil.
Mas foi de Vendôme que chegaram as primeiras notícias e quão surpreendentes! Depois de instalarem o pai em Inglaterra, onde o esperava sempre o melhor acolhimento junto à rainha Henrieta, sua meia irmã, Mercceur e Beaufort tinham acabado de regressar à região, após uma breve passagem por Paris, onde os esperava precisamente uma ordem que os exilava nas suas terras, com interdição de delas saírem antes do processo de César se encontrar instruído. De volta ao Vendômois, separaram-se: enquanto o mais velho se instalava em Chenonceau, François optava por se fechar em Vendôme, onde a população lhe reservara uma recepção entusiasta.
Era demais para a curiosidade e a impaciência de Marie. Após ter mandado preparar uma mala ligeira mas, mesmo assim, suficiente para conter dois vestidos de muda, saltou a cavalo e acompanhada por Jeannette, que substituía a criada de quarto que se queimara com o ferro de engomar, e por dois moços de cavalariça, pôs-se a caminho de Vendôme.
Se pensara encontrar François deambulando pela cidade ou inspecionando as fortificações, ficou desiludida: o senhor duque encontrava-se no castelo, onde recebia amigos, entre os quais se contava, aparentemente, Mme. de Montbazon, pois o coche arvorando o seu brasão foi a primeira coisa que Marie viu ao entrar no pátio principal. Era pouco provável que o governador de Paris tivesse acompanhado a esposa e a disposição da visitante ensombrou-se. Aquele amor, que se exibia com tanto impudor, adquiria as proporções de uma paixão e isso desagradava-lhe, não por causa dela ou da Rainha, que parecia ter mais com que se ocupar, mas por causa de Sylvie, que François enviara para o convento com um simples estalido de dedos..
Esteve para regressar de imediato, mas já fora anunciada, dado que transpusera os pórticos de Vendôme, e foi Beaufort em pessoa que acorreu ao seu encontro, com um enorme sorriso e segurando o estribo.
- Sois vós, minha amiga? Mas que grande prazer inesperado!
- Tão inesperado quanto aquele? - perguntou Marie com ar ambíguo, indicando a carruagem da Montbazon, enquanto François lhe beijava a outra mão.
- Não. Esse era esperado. Estão cá alguns amigos que vieram festejar comigo o nosso regresso à região. Alguns vieram de Inglaterra, mas como não tenho dúvidas que fazem parte dos vossos numerosos admiradores, esta pequena reunião ainda será mais agradável. Vinde! Já dei ordens para que vos preparassem os vossos aposentos.
De repente, apercebeu-se da presença da camareira de Sylvie.
- Jeannette? Como é possível?
- Quando se entra para um convento - retorquiu Marie - deixam-se os criados e até as roupas à entrada.
O sorriso desapareceu do rosto de Beaufort, cujas sobrancelhas se juntaram.
- Sylvie está num convento?
- Sim, no da Visitação de Santa Maria. Havei-la enviado para lá com tanta desenvoltura que ela não achou por bem recusar-vos esse prazer.
- Mas que insensatez! Fiquei furioso por vê-la fora de Belle-Isle mas nunca quis...
- Digamos que estáveis fingindo muito bem e ela acreditou em vós. Sem grande entusiasmo, devo confessar, mas, pelo menos, terá a felicidade de poder receber a visita do cavaleiro de Raguenel, de quem tanto gosta. Além disso não vejo quem poderá incomodá-la num refúgio daqueles... mas falaremos disso mais tarde! Gostaria de refrescar-me.
- Com certeza. Desde que ela não se comprometa a pronunciar os votos perpétuos...
- Isso é assunto entre ela e Deus mas, caro duque, admiro o à-vontade com que vos acomodais aos pequenos problemas que engendrais.
Dado que Beaufort não teve a ousadia de instalar a amante no aposento que ocupava a sua mãe quando esta se deslocava a Vendôme, essa honra coube a Mlle. de Hautefort, o que lhe deu certa satisfação e a incitou a uma certa cortesia quando se encontrou frente a Mme. de Montbazon. Aliás, ambas eram perfeccionistas exímias daquele maneirismo próprio da Corte, que é de tão grande auxílio nas negociações diplomáticas. Além disso, não existia nenhuma antipatia pessoal entre elas e, se Marie, a morena, era a amante declarada de François, Marie, a loura, não podia censurá-la por isso. Tudo decorreu, portanto, da melhor maneira.
Em compensação, os restantes “amigos” que Beaufort anunciara, não deixaram de surpreendê-la pela sua componente heteróclita: dois irmãos normandos, Alexandre e Henri de Champion, que tinham servido o conde de Soissons até à sua morte triunfal na batalha de La Marfée; o padre La Boulaye, confidente de César, que o nomeara recentemente prior da colegiada de S. Jorge, incorporada ao castelo, e o conde de Vaumorin, que Marie veio logo a saber que servia de correio entre Londres e Vendôme. Todas estas personagens pareciam gravitar em torno de um outro, bem curioso, um pequeno corcunda de tez escura, Louis d’Astarac de Frontailles, senescal de Armagnac e, sobretudo, confidente de Monsieur, de quem era porta-voz. Também chegara de Londres onde, em princípio, devia permanecer exilado. Finalmente, havia ainda um belo jovem que Marie bem conhecia por tê-lo encontrado em múltiplas ocasiões no meio que frequentava a Rainha, de quem era um fervoroso admirador e que, por assim dizer, substituíra Beaufort no seu papel de cavaleiro ao serviço daquela. Chamava-se François de Thou, e provinha de uma grande família parlamentar, amigo chegado de Cinq-Mars, que o chamava prazenteiramente de “Vossa Inquietude”, espírito profundo e sério, que poderia surpreender qualquer um por se encontrar no meio de todos aqueles expoentes de guerra, pois desempenhava a função de bibliotecário do Rei, depois de ter galhardamente combatido em Arras. Entre eles existia um laço comum: o ódio por Richelieu, de quem todos tinham uma ou outra razão de queixa: Frontailles porque ousara um dia troçar da sua enfermidade, de Thou por causa daquele posto de rato de biblioteca que achava ridículo, e os outros pelos mais diversos motivos, mas que a dedicação que tinham pela casa de Vendôme acabava por juntá-los. Mlle. de Hautefort, outrora açafata da Rainha, exilada sem razão plausível, foi calorosamente acolhida por aqueles homens, quer pela sua esfuziante beleza, quer pela “desgraça” em que incorrera.
No entanto, ela apercebeu-se depressa que o seu presente papel, assim como o de Mme. de Montbazon, devia ser meramente decorativo. Exceto Frontailles, que representava Monsieur, todos aqueles homens eram portadores das vontades de César de Vendôme, que as ditava aos filhos a partir da Corte de Saint James.
Após uma refeição que decorreu segundo os costumes, aprazível a todos os títulos, e no decurso da qual se procurou sobretudo agradar às damas, os criados retiraram-se, enquanto Ganseville e Brillet, os escudeiros de Beaufort, montavam guarda às portas do grande salão. O primeiro a falar foi Frontailles, que começou por saudar as duas senhoras:
- Minhas senhoras e meus senhores, estamos aqui para nos pormos de acordo quanto ao grande projeto destinado a desembaraçar o reino, finalmente e para todo o sempre, do homem que o estrangula desde há tantos anos...
Se bem que feio e disforme, a natureza dotara-o contudo de um charme surpreendente: uma voz de violoncelo, deslizando como sobre a seda, com o curioso poder de enfeitiçar os ouvintes. Logo que pronunciou as primeiras palavras, ficaram todos enredados no seu charme.
- Apenas estou aqui de passagem, de viagem a Espanha, indo ao encontro da nossa amiga a duquesa de Chevreuse, há muito tempo de nós afastada, para lhe transmitir a amizade e a confiança do senhor duque de Vendôme. Graças à sua intervenção, tenho a certeza de poder iniciar rapidamente um diálogo com o duque de Clivares, Primeiro Ministro de Sua Majestade, o rei Filipe IV.
Tal como os outros, Marie escutava a música daquela voz excepcional; no entanto, não tardou a concentrar a sua atenção no que ela dizia. Descobriu, sem surpresa, que se tratava de uma conspiração destinada a abater Richelieu com a ajuda da Espanha. O que a confundiu foi ficar a saber que o chefe daquela vasta conspiração, da qual faziam parte a Rainha e Monsieur poderia alguma vez existir conspiração em que este não figurasse? era, nem mais, nem menos, o Grande Escudeiro, o supremo favorito de Luís XIII, o grande sedutor Cinq-Mars! Estando contudo ao corrente das ambições do jovem por intermediário da sua avó, não hesitou em entrar no debate:
- Nada há de surpreendente no fato de M. de Cinq-Mars desejar desembaraçar-se do Cardeal, que o impede de ascender à posição que ele almeja, a fim de poder desposar Mlle. de Nevers; mas... quanto ao Rei? Meus senhores, também contais desembaraçar-vos dele?
- Isso está fora de questão! Somos seus súditos fiéis, mas como ele já anda arredado da Corte desde há algum tempo, ignorais certamente que os seus sentimentos para com o ministro evoluíram muito nos últimos tempos. O Rei está farto de ser vítima de uma insuportável tutela...
- Foi ele quem vo-lo disse?
- Não a mim, mas a M. Lê Grand. Quando este lhe suplicou que se libertasse de uma autoridade odiosa, “agradecendo” a Sua Eminência, o Rei recusou-se, dando mostras de grande medo. Foi então que o nosso amigo lhe sugeriu algo de mais... definitivo.
- E que disse o Rei? Continuou morto de medo?
- Não. Refletiu um pouco, e depois murmurou, como se falasse consigo próprio: “Ele é padre e cardeal; serei excomungado”. É preciso acrescentar que o nosso Senhor está muito doente... e, aliás, Richelieu também!
- Então para quê envolver a Espanha num assunto francês? - interveio Beaufort. - Talvez baste aguardar...
- Precisamente por o Rei estar muito doente é que Monsieur e Cinq-Mars não podem esperar mais tempo. Monsieur quer a regência e Cinq-Mars...
- ... quer Mlle. de Nevers, de quem se diz que vai ser dada como esposa ao rei da Polônia. Continuo de acordo, mas quanto à Espanha...
- Caro duque, haveis combatido muitas vezes contra ela para poderdes amá-la - reatou o corcunda - mas ela fornecer-nos-á o meio para não sermos acusados de nada quando o Cardeal falecer. Conceder-nos-á a arma e o executor, logo que o Rei e o seu ministro enfermo descerem até ao Roussillon e à Catalunha, como tencionam fazer.
- E se o Rei, meu tio, morrer antes do Cardeal?
- Monsieur talvez ficasse com a regência... mas o Cardeal dispõe de homens por todo o lado e ele não teria muito tempo de vida. Toda a nobreza de França ficaria igualmente em perigo. É por isso que devemos desembaraçar-nos dele.
Beaufort voltou-se para o jovem de Thou, que escutava sem proferir palavra:
- Que pensa o nosso jurista?
Este corou, mas concedeu um encantador sorriso ao seu hospedeiro:
- Penso que os riscos são demasiadamente grandes para que não tomemos todas as precauções necessárias. Se M. de Frontailles for a Espanha, isso poderá revelar-se positivo. Resta saber o que ela nos irá oferecer... e a que preço...
Ficou-se por ali e a conferência terminou, visto que o corcunda partia na manhã seguinte. François pegou na mão de Mme. de Montbazon, que não abrira a boca, e beijou-a antes de a entregar ao cuidado de Pierre de Ganseville, encarregue de a levar até aos seus aposentos:
- Irei saudá-la daqui a pouco, doce amiga... Por ora permiti-me que trate de certos afazeres...
Como não procedeu do mesmo modo para com Mlle. de Hautefort, esta pensou que devia estar incluída nos ditos afazeres e aproximou-se da chaminé onde ardia uma árvore inteira. Os outros perceberam e vieram saudá-la antes de saírem.
- Então? - perguntou François, de regresso. - Que pensais disto tudo?
- Que qualquer caso em que Monsieur se encontre metido, é perigoso, por princípio. Deus sabe como odeio Richelieu e admito de bom grado que seria uma boa coisa se ele desaparecesse. Mas Cinq-Mars é um jovem estouvado, embriagado pela ambição e a quem a sua elevada posição causa vertigens. Se me quiserdes acreditar, François, permanecei fora disto tudo!
- Mas, e meu pai?
- O duque César está muito longe e caso a conspiração aborte, como sucedeu com todas as precedentes, não irão procurar a sua cabeça do outro lado da Mancha. Se estimais a vossa, como o espero, ficai tranquilo! Sorri, aprovai, mas, sobretudo, não assineis nada e se tiver um conselho a dar-vos...
Com um gesto vivo, inclinou-se para ela e deu-lhe um ligeiro beijo nos lábios...
- Não me deis, minha linda sabichona! Logo que vir a Espanha intrometida no assunto, nunca aceitarei de participar em qualquer conspiração! Sou príncipe francês, senhora, e, antes de mais, um soldado. A Espanha faz-me ver tudo em vermelho...
- Contudo, julgava que, pelo menos... amásseis uma espanhola, não...?
- E não mudei, Marie! Se por acaso vierdes a encontrá-la dizei-lhe que agora que ela tem um filho, até dois, as coisas já não são como dantes. Tenho grande dificuldade em crer que a Rainha de França possa contribuir para uma conspiração que poderá vir a custar o trono ao jovem Luís.
Marie fixou o olhar azul no do seu hospedeiro, tentando ler no fundo dos seus pensamentos:
- Continuais a amá-la?
- Sempre.
- E então? - perguntou, indicando com a cabeça a porta por onde saíra a divina duquesa. François sorriu:
- Meu Deus, como sois jovem! Minha bela Aurora, tenho vinte e cinco anos e nunca jurei que iria viver como um monge. Aquela que espera por mim lá em cima, na torre dos Quatro Ventos, dá-me mais do que eu ousaria esperar. Talvez seja graças a ela que consigo ficar de cabeça fria perante as tempestades que se erguem a meus pés.
- Só a cabeça?
- Claro... também me faz apreciar a felicidade que há em nos sentirmos vivos.
- Haveis esquecido que a morte de Richelieu vos permitiria abater Laffemas, libertando finalmente alguém que é, pelo menos, uma criatura tão deliciosa quanto a vossa duquesa?
- Porque julgais que dou ouvidos a estes senhores e os recebo em minha casa? Desejo que tenham o maior sucesso, mas sem mim. E na condição de não tocarem no Rei, coisa acerca da qual ainda não estou seguro...
- Não ousariam...
- Abatê-lo? Não, mas... por que não antecipar a morte de um homem que já se encontra tão debilitado? Tenho a certeza que um de Thou não pensará nisso, mas quanto a um Frontailles... Ide dormir, minha amiga, e ficai descansada que não me envolverei mais ainda neste assunto. Dou-vos a minha palavra.
Ao subir para o seu quarto, Marie pensou que já era demais o fato daquela reunião “preambular” ter ocorrido em Vendôme. Antes de se deitar aproximou-se da janela, fustigada por uma chuva fria e raivosa. Ficou a contemplá-la, dizendo a si própria que estava um tempo péssimo para viajar; contudo sabia que mal regressasse a La Flotte apressar-se-ia a partir para Créteil, mesmo que fosse preciso gelar alguns dias numa casa mal preparada para acolhê-la, a ela e à avó. Não que a idéia de ver morrer o Cardeal lhe causasse grande desgosto: detestava-o demasiado mas, tal como Beaufort, a idéia de pedir auxílio à Espanha desagradava-lhe e, sobretudo, causava-lhe horror pensar que o jovem Cinq-Mars, que alcançara todas as honrarias graças ao Cardeal, e obtivera todos os favores graças a um rei demasiado enfraquecido, só pensasse agora em morder, ou mesmo, em arrancar a mão daqueles que o tinham alimentado.
Apesar de tudo, sorriu a Jeannette, que viera ajudá-la a despir-se:
- Jeannette, dentro em breve voltaremos a ver Paris.
- A menina foi chamada?
- Sim e não. Eu permanecerei fora da cidade, mas a ti ninguém te impedirá de ir dar uma volta pela rua das Tournelles, ou até, de regressar ao hotel de Vendôme. Neste momento devem precisar por lá de fiéis servidores...
O raio de sol que iluminou subitamente o rosto da jovem criada de quarto, tão triste momentos antes, veio contrabalançar os sombrios pensamentos que assolavam Marie, permitindo-lhe mergulhar no seu sono.
UM FRASCO DE VENENO
Desde que descobrira que Sylvie residia no convento da rua Saint-Antoine, Laffemas vivia num tal estado de excitação que quase se esquecia da ameaça constante de que era alvo. O fato de Sylvie se encontrar tão próximo e estar simultaneamente tão inacessível exacerbava-lhe um desejo que alimentava, acordado, durante longas horas da noite. Não podendo ficar ele próprio a vigiar o convento a sua posição não o permitia mandava que outros o fizessem dia e noite, sob o falacioso pretexto que uma conspiradora de alta linhagem se tinha lá refugiado com uma acompanhante. Chegara mesmo ao ponto de insinuar que se poderia tratar da duquesa de Chevreuse. Os seus esbirros estavam encarregues de seguir no encalço de qualquer das duas mulheres que saísse do convento. Sabendo que não havia qualquer hipótese para que a “cabrita”[15] bem conhecida pela polícia, mas que se encontrava sempre em Madrid pudesse porventura aparecer na rua de Saint-Antoine, empenhara-se em rabiscar um desenho da pretensa acompanhante, que era a cópia perfeita, executada com uma exatidão maníaca, do rosto e da silhueta de Sylvie. É óbvio que Nicolas Hardy que conhecia a verdade era aquele que mais frequentemente era incumbido da vigília, o que não o encantava: não tinha nenhum apreço por aquela rapariga, atrás da qual o tinham mandado correr até ao fim do mundo, para depois regressar de lá ferido. Não havia qualquer hipótese que ela lhe pudesse escapar, mas como estava longe de ser estúpido e queria pôr todas as chances do seu lado, contratara dois meninos que iam por vezes entregar sebo de vela ao convento. Foi por intermediário deles que soube que uma tal Mlle. de Valaines fora recentemente admitida no grupo das noviças, informação que levou ao cúmulo o exaspero do seu amo, era sempre possível obrigar a sair uma Sylvie refugiada, mas uma Sylvie envergando o véu de uma futura religiosa tornava-se inatingível.
Tendo decorrido semanas sem que nada se mexesse por detrás daquele pórtico de postigo gradeado, o miserável sentiu-se acometido por uma espécie de desespero. Não tinha sequer a possibilidade de a enxergar através do gradeamento da sala de visitas, visto que todas as casas de religião lhe vedaram o acesso, à exceção do senhor Vincent que até acolheria o próprio diabo, caso este desse provas de arrependimento... mas Mme. de Maupéou não partilhava as razões evangélicas do homenzinho, imbuído de santidade e de amor pelo próximo. Além disso, entre a família dela e a de Laffemas existia um antigo ódio que datava das guerras de Religião e que as atividades do carrasco de Richelieu em nada tinham ajudado a aplanar. Ora, este último não podia aceitar a idéia de que perdera a filha de Chiara para sempre... Estava disposto a ir atrás de qualquer réstia de esperança, nem que esta fosse infame...
- Foi então que recebeu a visita de Mlle. de Chémerault.
Por vezes as suas relações com o Cardeal tinham-no levado a encontrar-se com esta dama de honor da Rainha, fato que agradava a ambos e que não tinha nada a ver com qualquer conivência física, mas sendo a Bela Guetisé[16], como lhe chamavam, muito bela e coquette, mas muito gastadora embora dispusesse de pouco dinheiro ela apreciava os pequenos suplementos em líquido que Laffemas lhe oferecia, em troca de informações que não interessassem a Richelieu. Preocupada com a sua reputação, nunca visitava o Grand Châtelet, preferindo, de longe, a tranquilidade da rue Saint-Julien-le-Pauvre e a obscuridade à luz do dia, o que não impedia que se tivesse travado uma espécie de amizade entre eles.
Depois de ter baixado o espesso capuz em seda acolchoada com que cobria a cabeça e depois de ter deixado cair a máscara acetinada que colocara no rosto, instalou-se perante o seu hospedeiro e aceitou o copo de vinho de Espanha que este lhe oferecia, para a aquecer:
- Tive conhecimento de outras notícias referentes a essa pequena tola de L’Isle, que todos julgavam morta - declarou, à laia de preâmbulo, soltando um suspiro de satisfação.
- Oh! Mas há cada vez menos gente com dúvidas quanto ao que lhe aconteceu!
- De qualquer modo, a verdade é que ela acaba de ressuscitar aqui mesmo, em Paris, muito discretamente, aliás, sob as augustas abóbadas do convento da Visitação de Santa Maria. Entrou para lá enquanto Mlle. de Valaines, para se juntar ao grupo de noviças...
Em virtude do princípio segundo o qual não se deve cortar vasas às más intenções, Laffemas teve o cuidado de não lhe revelar que já estava ao corrente, fingindo-se admirado:
- Mas que habilidosa vos haveis mostrado! E tão nova ainda... mas que extraordinário! Como haveis descoberto isso tudo?
- Vós tendes os vossos segredos e eu os meus. Deixai que os guarde para mim... Não, eu vim informar-vos porque, quer em traje civil, quer em hábito religioso, eu não suporto a doce Sylvie, a preciosa “gatinha” da Rainha. É uma insolente, uma intriguista, que tirou, de debaixo do meu nariz, o lugar que tinha direito de esperar vir a ocupar nas confidências de Sua Majestade. Além disso, até chegou a seduzir o Cardeal. Quando lhe fui trazer o bilhete de de Gondi que já conheceis, pois eu fizera uma cópia, mandou-me esquecer a sua existência. É isso que nunca lhe perdoarei!
Deliciado, com os olhos semicerrados, Laffemas assistia ao eclodir do abcesso de ódio que a jovem trazia dentro de si. Sentira que em nome desse ódio lhe podia pedir o que quer que fosse.
- É tudo?
- Isto não vos chega? Contudo, não, não é tudo. Não sei se haveis conhecido o jovem marquês d’Autancourt...
- Aquele que, após a morte do pai, se tornou duque de Fontsomme?
- Exatamente. Tinha intenções a respeito dele, mas bastou essa estúpida aparecer para que ele deixasse até de me olhar...
- Mas, dado que ela agora está dada como morta, ides desfrutar de novas oportunidades...
- Não, porque ele não acredita, nem nunca acreditou, na sua morte. Pretende que, caso ela tivesse ocorrido, o seu coração tê-lo-ia alertado...
- Quão belo é um amor desses!... mas não percebo lá muito bem o que esperais de mim... No convento da Visitação, não é possível ter acesso a Mlle. de L’Isle ou de Valaines, ou seja como for que a chamem...
- Já não seria bem assim se fosse acusada de crime de lesa-majestade ou quase...
O tenente civil encolheu os ombros.
- Ela nunca resvalou por essa via. A quem faríeis acreditar numa coisa dessas? Até eu teria dificuldade em seguir-vos por esse trilho...
O gesto desdenhoso de Mlle. de Chémerault deixava supor que isso não tinha qualquer importância, porque dispunha de melhor:
- Mas... para com o Cardeal e o Rei!...
- Estais a sonhar!
- Por nada deste mundo. À idéia ocorreu-me desde que perseguem César de Vendôme por tentativa de envenenamento. Por que raio é que a fiel serviçal da família não teria entrado nos planos do seu chefe? Seria melhor para todos nós que se encontrasse o veneno em sua posse ou escondido num local onde ela tivesse residido, pois isso confirmaria a acusação forjada contra César. E, para as dores do Cardeal, seria um bom remédio ficar finalmente desembaraçado dos Vendôme. Há tanto tempo que ele os odeia!
- Menina, continuo a pensar que tendes visões e que o ódio vos leva a perder o tino! Penso que podereis deitar abaixo o Louvre, Saint-Germain, Fontainebleau, Chantilly, Madrid e todos os domínios reais, sem nunca encontrardes uma única prova que faça dela uma envenenadora.
- Senhor tenente civil, estou desolada por vos contrariar, mas quando se persegue algo denodadamente, sempre acabamos por encontrar alguma coisa...
E, da manga debruada de pele, ela extraiu um pequeno frasco de vidro azul e espesso, que pôs a tremeluzir entre os seus dedos enluvados, à luz das velas. Laffemas sobressaltou-se e as suas pupilas contraíram-se enquanto estendia a mão para o objeto que lhe foi recusado:
- De onde vem isto?
- Isso não interessa! O que importa é que este frasco seja descoberto por certa pessoa e no local apropriado! Depois, bastar-vos-á enviar os vossos homens ao convento da Visitação com um mandato de prisão, contra a qual Mme. de Maupeou ou até o senhor Vincent, caso passasse por lá, nada poderão fazer!
O tenente de polícia levantou-se e percorreu o gabinete com passos agitados, após o que esmurrou a mesa:
- Não conteis comigo para vos ajudar! Talvez seja o projeto ideal para saciar a vossa vingança, mas isso conduziria imediatamente Sylvie à tortura e ao cadafalso. E eu, que a desejo, nada posso fazer com um cadáver sem cabeça ou com um corpo quebrado pelo carrasco.
- Não digais asneiras! Obrigar-me-eis a duvidar da vossa inteligência! Logo que a rapariga se encontre fechada a sete chaves na Bastilha, sereis inteiramente livre para saciar a vossa... paixão!
- Sob o olhar do governador, M. du Tremblay, que me detesta?
- Nesse caso tratareis de vos encarregar da sua evasão e bastar-vos-á escondê-la num canto tranquilo. Ela pertencer-vos-á inteiramente e como a tereis salvo de um destino horrível, ela ficar-vos-á eternamente grata!
O quadro era idílico, mas Laffemas tinha bons motivos para duvidar que viesse algum dia a obter os agradecimentos de Sylvie. Ia para dizer qualquer coisa quando a sua visitante se levantou, voltando a colocar o frasquinho na manga e preparando-se para sair. Ele protestou:
- Ainda não acabamos de debater este assunto, menina!
- Eu, sim!... Ah, quase me ia esquecendo: vai haver um baile na Corte, em honra do marechal de La Meilleraye, que tão belas vitórias nos trouxe e, no meu guarda-roupa, não tenho nada que possa vestir para uma festa dessas. As minhas roupas já foram vistas e revistas e estão mais que fora de moda. E eu quero estar bonita!
- O que significa que precisais de dinheiro? Está bem, mas eu quero esse frasquinho!
- Para que o deiteis fora e deixeis essa pequena parva continuar a obcecar-me? Nunca!
- É isso ou nada! Não recebereis mais nada da minha parte se não me derdes esse frasquinho. Juro-vos que não é com o intuito de o deitar fora e que tenho realmente a intenção de me servir dele... mas à minha maneira! Onde haveis dito que foi encontrado?
- No quarto em que ela dormia, no castelo de Saint-Germain, entre duas pedras da parede, escondido atrás da tapeçaria, mas...
- Disse que me entregásseis!
Ela só consentiu em obedecer quando apareceu uma bolsa recheada na mão de Laffemas. Mesmo assim fê-lo contrariada e sem conseguir impedir-se de perguntar:
- Que ides fazer com ele?
- Será entregue ao Cardeal, mas não por nenhum de nós, de quem ele muito desconfia quando se trata dessa rapariga. Ou muito me engano, ou ele fará saber a Mme. de Maupeou que deseja falar de um caso muito grave com a noviça e, como tem cada vez maiores dificuldades em deslocar-se, fará com que ela lhe seja trazida sob boa escolta. Eu agirei consoante o rumo que tomar o encontro...
- E que fareis?
- Ainda não sei, mas o percurso é o mesmo, quer tragam Mlle. de Valaines de volta ao convento ou quer ela seja levada para a Bastilha, pois a distância é ínfima entre os dois locais. E ainda vos posso dizer em exclusivo que possuo uma casa bem bonita em Nogent, com a qual ela deverá conformar-se.
- Se imaginais tal coisa é porque ainda sois mais louco do que eu pensava, mas atuai como vos parecer conveniente... senão, eu agirei como muito bem entender...
Ele reteve-a na altura em que ela transpunha a porta:
- Só mais uma pergunta. Em que circunstâncias haveis encontrado o frasco?
- Oh, é muito simples: há muito que estava descontente com o quarto que me fora reservado no castelo e, finalmente, consegui que me dessem outro: precisamente aquele que a “gatinha” ocupara outrora. Claro que mandei fazer algumas alterações... e encontrei o frasquinho. Como vedes, foi muito simples.
Quando o rodar da sua carruagem se calou pela noite dentro, Laffemas ficou pensativo, com o olhar preso no frasco que pousara à sua frente, em cima da mesinha de escrever. Não tinha dúvidas de que se tratava de um romance que a ávida Chémerault inventara até aos mínimos detalhes e que o veneno devia ter alguma misteriosa proveniência, o que não deixava de ser inquietante, dado que aquela menina parecia obter dele a quantidade que lhe aprouvesse. Não fora isso que ela lhe sugerira ao preveni-lo que, se o seu projeto falhasse, ela retomá-lo-ia à conta de outrem? Nesse caso, nos próximos tempos, seria preferível abster-se de partilhar com ela o que quer que fosse de comestível...
Entretanto acabou por pensar, em voz alta tenho de tratar de descobrir onde é que ela vai buscar a droga. E isso faz parte da minha profissão!
Entretanto, no convento da Visitação de Santa Maria, Sylvie levava uma existência muito mais agradável do que receara. É certo que as regras e a Madre Superiora eram severas mas, no meio da sua ilha, Sylvie habituara-se a uma vida bastante austera e os frequentes jejuns em nada a faziam sofrer. Em compensação, custava-lhe suportar a falta de sono devida aos ofícios noturnos, bem como os longos períodos que devia passar ajoelhada nas lajes da capela, mas esses pequenos inconvenientes eram compensados pelo ambiente calmo e sereno que a rodeava. As mulheres que passavam ali o seu dia a dia, estavam lá por livre escolha e não por imposição. Assim, para ela, foi uma alegria rever a irmã Louise-Angélique.
Tão doce e bela como outrora mas com uma beleza mais etérea, devido ao severo hábito preto, a irmã Louise manifestou um verdadeiro prazer no inesperado encontro com aquela que era conhecida no convento apenas pelo nome de Marie-Sylvie. Graças a ela, que era então a mestra das noviças, Sylvie foi depressa apreciada pelas suas colegas, sobretudo por três de entre elas, Anne, Elisabeth e Marie Fouquet, que eram sobrinhas da Superiora, filhas da irmã desta, casada com um conselheiro de Estado, François Fouquet, o qual chegara à magistratura através do comércio de alta gama. Esse casal verdadeiro modelo de gente cristã ligada ao senhor Vincent, aos Arnauld e a todas essas pessoas de boas virtudes que a Contra-Reforma revelara e que estavam sob a proteção de Richelieu contava com uma dezena de filhos, seis ou sete raparigas e três rapazes, tendo todos aderido ao serviço de Deus: as raparigas em diversos conventos e os rapazes nas ordens religiosas. Isto à exceção de um deles, o mais dotado, o mais brilhante de todos, destinado a, perpetuar a família, distinguindo-a da melhor maneira possível. Como o patriarca falecera entretanto, o chefe de família era oficialmente o filho varão, o bispo de Bayonne. Mas quem desempenhava na realidade esse papel era o jovem Nicolas, encarregue das petições no Parlamento de Paris, já detentor de grande fortuna, ainda acrescida por um rico casamento e que, por vezes, ia à sala de visitas da Visitação a fim de saudar as suas “noviças” ou até à capela, para se recolher perante o túmulo do pai ou da mãe, ainda jovem quando falecera durante um parto.
Sylvie cruzou-se várias vezes com Nicolas Fouquet, e uma certa simpatia despontou entre ambos, prolongamento de uma outra, completamente espontânea, que já unia Sylvie a Anne, irmã de Nicolas. Este era um jovem com um rosto de traços finos e um ar inteligente, animado por belos olhos cinzentos e por um sorriso que muito raramente não cativava. Este jovem trigueiro, não muito alto, mas com um porte elegante e bem cuidado, sempre muito bem vestido e desempenhando funções junto ao Parlamento, ainda não devia ter tomado contato com a crueldade feminina, a julgar pelos olhares insistentes que lhe lançavam algumas das visitantes quando o cruzavam na sala. As suas irmãs adoravam-no e até a própria Sylvie ficou surpreendida ao sentir que se o seu coração não pertencesse a François, talvez se tivesse mostrado sensível ao charme daquele rapaz sedutor, que não conseguia perceber o que fazia ela num convento, repetindo-lhe esta observação de cada vez que a encontrava. Mas a grande alegria de Sylvie foi a de reencontrar o padrinho. Puderam ver-se graças a um favor especial, devida à sua situação um tudo nada excepcional, não na sala de visitas habitual, mas na que era reservada à Madre Superiora e que era desprovida de grades. Aí puderam, à vontade, cair nos braços um do outro, com uma tal emoção, que ficaram momentaneamente sem palavras. Só depois de muitos abraços, os de um pai que reencontra a filha perdida e os de uma filha novamente reunida a seu pai, é que Perceval afastou Sylvie com um braço, para poder olhar melhor para ela:
- Nunca pensei que pudesse viver tanto tempo longe de vós! - suspirou Raguenel - E é um verdadeiro teste voltar a ver-vos envergando esse hábito.
- Não me fica bem? - perguntou Sylvie, rodopiando, num movimento que felizmente confirmava que conservava a sua antiga coquetterie.
- Fica-vos bem, lá isso sim, mas esconde os vossos lindos cabelos, o que é uma pena. Além disso, pareceis mais crescida... Mas, se calhar, foi o que vos aconteceu durante todo este tempo...
- Penso que sim - sorriu Sylvie. - Parece-me ver as coisas de um ponto de vista um pouco mais elevado... mas não a ponto de ficar com vertigens! Oh, querido padrinho! Pensei tantas vezes em vós! Julgais que será possível vivermos um dia, de novo, juntos? Atualmente é tudo o que peço à existência...
Raguenel desatou a rir:
- Mas tendes de exigir mais! Tendes a vida à vossa frente e espero bem que sabereis dar-lhe outro emprego que não seja o de preparar tisanas ou de passar o tempo a ler para um velhote.
O rosto de Sylvie ensombrou-se:
- No entanto, esse é meu maior desejo. Reparai que mesmo que François começasse a amar-me, não sei por que ironia do destino, haveria sempre entre nós esse peso horrível ao qual me encontro acorrentada. Além disso, os seus amores vogam por outras bandas e ele desfruta de uma posição bem mais superior à minha!
- Não existe apenas ele neste mundo! - enervou-se Perceval. - Minha querida, sei quanto o amais, mas tendes direito a uma vida própria, que só a vós pertence, uma vida que não seja a sombra da dele. Não desejaríeis ter filhos?
- Oh! sim! Mas para ter filhos é preciso ter um esposo... e creio que prefiro, mesmo assim, desposar o Senhor!
- Não é nada abonatório para Ele, fazê-lo desempenhar o papel do menor dos males!
- Oh, Ele dispõe de tantas noivas dedicadas, que eu serei apenas uma entre muitas outras! Ao menos, Ele sabe aquilo por que tenho passado. Morreria de vergonha se tivesse de confessá-lo a outrem. E, além disso, quem me poderá agora desejar?
- Calai-vos! Proíbo-vos de continuar com esse gênero de discurso, que é de tom blasfemo. Quando pudermos tirar-vos daqui e caso o desejardes, não tereis qualquer dificuldade em arranjar alguém para desposar...
Perceval voltou várias vezes depois deste encontro, mas agora à mistura com outros visitantes, numa sala que era, sem dúvida, a sala de visitas mais elegante e a melhor frequentada em toda a cidade.
Certo dia não veio só. Subitamente perturbada, Sylvie avistou, por detrás do gradeamento, a silhueta alta e magra do seu apaixonado de outrora, que se mostrara então um tão grande amigo, aquele a quem ainda chamava Jean d’Autancourt. Mas o prazer depressa demoveu a perturbação e, espontaneamente, Sylvie estendeu-lhe duas mãos tão franzinas que puderam passar sem custo através das barras de madeira:
- Caro marquês! Que alegria voltar a ver-vos!...
- Sylvie, agora deveis dizer “senhor duque” - corrigiu Raguenel, com um sorriso. - O nosso amigo teve a infelicidade de perder o pai, o marechal...
- Nem uma coisa nem outra! - interrompeu o jovem. - Para vós, outrora eu era simplesmente Jean, e gostaria que continuásseis a tratar-me da mesma maneira...
- Não peço melhor. Também soube que agora sois diplomata e que vos enviaram em missão junto à marquesa de Sabóia...
- Foi muito interessante, mas, graças a Deus, não fiquei por lá. Nunca me teria perdoado: ao regressar a casa dei com uma carta de Mlle. de Hautefort que reclamava a minha presença no Vendômois. Quando lá cheguei, infelizmente já não estava lá ninguém. Mme. de la Flotte e a neta tinham partido sem deixar paradeiro. Soube que tinham albergado durante algum tempo uma jovem chamada Sylvie, com uma acompanhante que chamavam Jeannette. Então, regressei a Paris, a fim de me encontrar com o senhor cavaleiro de Raguenel que tinha...
- ... muitas coisas a contar-lhe - completou Perceval, com um olhar sugestivo, que fez corar Sylvie.
- O quê, haveis-lhe dito?
- Disse-lhe tudo o que um homem deve saber quando pensa numa dada mulher para casar - respondeu o cavaleiro, com ar sério. - Disse-lhe tudo, exceto o nome do monstro. Revelá-lo-emos quando ele deixar de constituir um perigo para quem quer que seja...
- É ridículo - protestou o jovem. - Estou em estado de poder enfrentar qualquer perigo e sou favorito do Rei.
- Não tenho dúvidas a esse respeito, mas arriscaríeis a vossa cabeça, sem que isso beneficiasse quem quer que fosse. Acreditai-me! É melhor esperardes! Contar-vos-ei tudo na altura apropriada.
Nessa altura aproximou-se uma religiosa, de mãos metidas nas mangas, que se inclinou para Sylvie para lhe cochichar ao ouvido. Esta levantou-se imediatamente:
- Rogo-vos que me perdoeis - disse para as suas visitas - mas a Madre Superiora reclama a minha presença, em privado, e tenho de...
- Vamo-nos embora! - disse logo Perceval. - Não deveis fazer-vos esperar...
- Mas poderemos voltar, não é verdade? Não quereis que eu regresse? - implorou o jovem duque.
- Ficarei sempre feliz em ver-vos - lançou-lhe Sylvie, enquanto se afastava atrás da freira.
A sala na qual a madre Marguerite recebia as visitas em nada se parecia com o salão de uma nobre dama: continha apenas uma mesa de carvalho de pés retorcidos, duas cadeiras de palha, um candelabro e um genuflexório; mas, pendurada na parede, uma grande cruz de Cristo, oferta de Philippe de Champaigne a Sua Majestade, fazia ecoar uma nota de esplendor doloroso. De pé, frente à cruz, esperava um homem vestido de preto, cuja solenidade era atenuada pela elegância da gola e dos punhos de renda, muito belos. Desviou-se quando Sylvie entrou, mas esta ficou com a impressão de já o ter visto antes.
- Aqui está Mlle. de Valaines - anunciou a Superiora, ao ir ao seu encontro. - Filha, este é M. de Chavigny, secretário de Estado e próximo de Sua Eminência, a qual reclama a vossa presença. Veio buscar-vos para vos levar até ao Palácio do Cardeal...
- A mim? Mas... julgava que o Cardeal ignorava que eu estivesse em Paris!
- Menina, o Cardeal está sempre ao corrente de tudo! Preparai-vos para me seguir!
E como Sylvie persistisse em manifestar a sua incompreensão, madre Marguerite adiantou:
- Seria melhor que pusésseis as vossas roupas civis para irdes a este encontro. Não seria conveniente que vissem sair daqui uma freira com a sua indumentária religiosa. Aliás, ainda não o sois oficialmente - acrescentou, com um lindo sorriso.
- Como desejardes, mas... tinha visitas; poderei despedir-me delas antes de acompanhar este senhor?
Com um gesto brusco, Chavigny manifestou o seu desacordo:
- Não. Ficariam a saber que tendes uma tarefa a desempenhar e que, dentro em breve... esperais voltar a vê-los. Vamos! Depressa! Sua Eminência não gosta de esperar!
Isso já Sylvie sabia desde há muito tempo e, portanto, apressou-se a mudar de roupas. Minutos depois subia para uma carruagem com o brasão do Cardeal, cujas janelas tinham os revestimentos abaixados. M. de Chavigny sentou-se a seu lado e a carruagem partiu com destino ao Louvre e ao palácio do Cardeal, seguindo pela rue de Saint-Antoine mas, para além do fato do percurso lhe parecer excessivamente longo, Sylvie apercebeu-se que viravam muitas vezes à esquerda e à direita. Inclinou-se, a fim de levantar uma das portas da janela, mas esbarrou com a oposição do seu companheiro, que até então permanecera silencioso.
- Quieta!
- Haveis dito que íamos para...
- Para onde Sua Eminência quer que vos conduzam! Portanto, ficai quieta. Aliás, estamos a chegar!
A inquietação de Sylvie aumentou ao constatar que, após terem atravessado uma ponte de madeira, estavam agora a transpor uma casa de guarda e, depois, uma outra ainda. Um sino tocou cinco vezes, ouviram-se ordens e, por fim, quando a portinhola se abriu e se baixaram as escadinhas para ela descer, ficou com a sensação de ter chegado ao fundo de um poço formado por edifícios escuros e por grandes torres arredondadas, pelas aberturas das quais saíam as bocas dos canhões. A Bastilha! Tinham-na obrigado a percorrer todo aquele trajeto para levá-la até à Bastilha, que ficava a dois passos da Visitação!
Chavigny deixou-a saborear a surpresa que lhe reservara, esperando talvez por gritos, lágrimas, protestos, mas Sylvie já encaixara demasiados reveses do destino para não preservar o seu orgulho e dignidade. O olhar que lhe desferiu era gélido:
- Então é aqui que Sua Eminência me espera?
- Não. Talvez possais encontrá-la mais tarde... talvez.
- Então, qual o motivo para esta comédia? Pois é disso que se trata, não é verdade? Mme de Maupeou nunca teria autorizado a minha saída caso soubesse que era para aqui que eu seria trazida...
- Decerto, mas por vezes somos levados a mentir, quando estamos ao serviço do Cardeal ou do Estado, o que vem a dar ao mesmo.
Sylvie deu-se ao luxo de erguer umas sobrancelhas insolentes:
- Meteis o Cardeal e o Estado no mesmo saco? E que fazeis do Rei, senhor?
O outro encolheu os ombros, enfastiado:
- Exprimi-me mal. Agora, entremos. Sereis conduzida até aos vossos aposentos.
Foi ao passar pelo registro, à entrada, que Sylvie ficou a saber por que motivo estava presa, era acusada, em parceria com o duque César de Vendôme, de ter intentado envenenar o cardeal de Richelieu e, até, o próprio Luís XIII.
Desta vez ficou mesmo cheia de medo e foi de dentes apertados para suster o terror que dela se apoderava que se deixou levar por uma escada de caracol acima, suficientemente larga para caberem três pessoas lado a lado, e que a deixou no segundo andar de uma das torres. Mas em vez da sórdida masmorra em que julgava que a iam pôr, foi abandonada num grande quarto, com chaminé, uma cama com cortinas de sarja verde, uma mesa, dois bancos e alguns apetrechos de toilette. Só viu a cama, em cima da qual se deixou cair, sacudida por soluços que retivera tanto tempo, enquanto que, sob a pesada mão que segurava o molho de chaves, soava o rangido provocado pelo ferro velho das trancas que se fechavam atrás dela.
Foi no dia a seguir que Jean de Fontsomme regressou ao convento. Não lhe agradara a forma como se eclipsara a sua estrela e ainda menos a explicação que lhe fora dada: a irmã Marie-Sylvie fora retida por uma tarefa urgente. O profundo amor que lhe dedicava mantivera-o acordado durante toda a noite, soprando-lhe ao ouvido que acontecera algo de inusitado ou, até, algo de anormal. E, realmente, quando foi solicitar uma visita à noviça, a irmã encarregue da portaria respondeu-lhe imediatamente que tal não era possível e que, até nova ordem, seria preferível que não renovasse o seu pedido. Era óbvio que lhe escondiam qualquer coisa. Não insistiu, sabendo desde há muito tempo que era preciso um verdadeiro milagre para conseguir fazer falar uma religiosa sem a aprovação da sua superiora; voltou ao seu cavalo e foi até casa de Perceval, que encontrou na sua “livraria” congeminando pensamentos cujo ponto fulcral era Sylvie. Por isso escutou com grande interesse o que o seu jovem amigo tinha para lhe dizer.
- Vou até lá! – decidiu. - E solicitarei uma entrevista com a Madre Superiora. Sou padrinho e tutor de Sylvie: ela terá de me dar uma resposta.
Ora a resposta que ela lhe deu foi uma recusa cortês, mas firme, em recebê-lo. Isso não fez desanimar o visitante que se preparava para se lançar numa ardente argumentação quando um belo jovem que acabava de entrar e que ouvira a resposta da religiosa saudou Perceval com perfeita graciosidade e, depois, dirigindo-se à porteira, disse:
- Como é possível que a minha tia se recuse a receber este gentil-homem? Estará doente? Nesse caso deve ser algo de grave...
- Não... mas...
A última palavra, proferida como uma espécie de balido, provocou um sorriso sob o fino bigode do desconhecido:
- Fazei o favor de lhe irdes dizer que estou acompanhado pelo senhor...
- ... cavaleiro Perceval de Raguenel, escudeiro honorário da senhora duquesa de Vendôme completou este, com uma saudação.
O cavaleiro de Raguenel que é um dos meus bons amigos! Peço-lhe que nos dispense uns momentos.
E, depois, olhando para o rosto atormentado do visitante:
- Dizei-lhe ainda quanto tudo isto é lastimável e que nunca a vi fechar a porta a alguém que precisa de auxílio! Chamo-me Nicolas Fouquet, - acrescentou quando a freira desapareceu - encarregue das petições no Parlamento de Paris. A Madre Marguerite é irmã de minha mãe.
Em todo o caso, esta devia gostar muito do sobrinho e ter inteira confiança nele, pois os dois homens transpuseram depressa a entrada do seu austero gabinete, que ela percorria de lés a lés, com as mãos escondidas nas mangas e denotando uma agitação que não lhe era habitual. Ao vê-los entrar, estancou e disse imediatamente:
- Ao forçardes a entrada desta maneira, caro Nicolas, colocais-me numa cruel situação. E não estou certa se não me haveis mentido, monsenhor é realmente um dos vossos amigos?
- Confesso que o é desde há bem pouco mas, senhora, decerto não ignorais que não suporto ver alguém infeliz. Agora, deixo-vos a sós com ele...
- Não - interrompeu Perceval. - Senhor, adquiristes o direito de saber o que me trouxe aqui. Madre, por favor, podereis dizer-me o que aconteceu à minha pupila, Mlle. de Valaines...?
- Se ao menos eu o soubesse! - confessou esta, lançando-lhe um olhar onde se podia detectar uma verdadeira angústia.
- O quê? - exclamou Fouquet. - Essa charmosa jovem de quem a minha irmã Anne se tornou amiga? Que lhe sucedeu?
Mme. de Maupeou manteve-se calada, mas era notório que estava em pulgas para libertar o coração de um grave peso e a resposta não se fez esperar:
- Ontem, depois do jantar, recebi a visita de M. de Chavigny, secretário de Estado afeto ao cardeal de Richelieu, que trazia uma carta da parte deste, carta segundo a qual Sua Eminência me pedia para ter a amabilidade de confiar Mlle. de Valaines aos cuidados do dito Chavigny, a fim de levá-la a um encontro confidencial com ele... Não podia recusar aquilo que o Cardeal pedia, sobretudo quando a missiva era entregue por uma personagem daquela importância. Além disso, Mlle. de Valaines é apenas uma noviça... e, mesmo assim! Ela foi pois trocar o hábito pelas suas roupas de civil, para seguir na companhia de M.de Chavigny, encarregue de trazê-la de volta. E...
- E não regressou? - concluiu Perceval, acometido por uma angústia crescente que lhe apertava o coração, pensando naquilo por que Sylvie já passara depois de ter comparecido a um encontro no castelo de Rueil.
- Já haveis enviado alguém a casa de Sua Eminência? - perguntou o jovem Fouquet.
- Já. Não sei porquê, fui acometida por uma sensação de dúvida... Como o tempo passava sem que ela regressasse, pedi ao nosso capelão que levasse uma mensagem ao Palácio do Cardeal e ele trouxe-me isto de volta.
Entregou a Perceval um pequeno bilhete escrito pelo próprio Richelieu e que lhe pôs os cabelos em pé:
“Por ordem minha, Mlle. de Valaines, suspeita de conluio com o duque César de Vendôme na tentativa de envenenamento de que este é acusado, foi encarcerada na fortaleza da Bastilha até que seja esclarecido este assunto.
Assinado: Richelieu.”
- Leia, senhor - disse Perceval, estendendo o bilhete para o seu novo amigo - tendes o direito de ficar ao corrente...
A reação do jovem foi espontânea:
- Grotesco! Uma envenenadora, esta moça? Para acreditar numa coisa dessas é preciso nunca a ter visto olhos nos olhos! O seu olhar é transparente. Podemos ler no fundo da sua alma...
- Contudo, o Cardeal conhece-a bem. Quando era dama de honor da Rainha, ela foi cantar para ele várias vezes.
- Ai, ai, tudo isto não augura nada de bom. Se Richelieu desconfiar que ela o enganou, ele será impiedoso, aliás como sempre o é, mas se estiver em jogo o seu amor-próprio...
- Senhor, senhor, meteis-me medo! - gemeu Perceval.
Fouquet sorriu-lhe:
- Perdoai-me este hábito de ver sempre as coisas pelo seu lado mais negro! Sou advogado de formação... e, aliás, proponho-me a tomar a defesa da vossa afilhada caso este assunto chegue às mãos da justiça! Acreditai-me, sou hábil na matéria...
- Não duvido... e estou-vos muito agradecido. Também vos devo agradecer, senhora, por me haverdes revelado a verdade.
-Teria preferido evitá-lo mas concordo com o meu sobrinho, não consigo acreditar que ela seja culpada. É uma moça encantadora... e tão espontânea! Fico cheia de pena ao saber que se encontra na Bastilha! Isto, sem contar ainda naquilo que terei de dizer a Mme. de La Flotte, que a confiou aos meus cuidados...
- A cada dia dá Deus a dor e a alegria, tia! Beijo as vossas mãos. Vinde, cavaleiro, vamos até minha casa discutir esta incrível acusação...
- Quanta bondade a vossa! Mas, rogo-vos que seja mais tarde pois, primeiro, tenho de voltar a casa onde me espera um jovem que...
- Não digais mais! Ide depressa ter com ele. Logo que puderdes, ireis ter comigo. Moro na rua de la Verrerie.
Ao voltar a casa, Perceval não parou de olhar para a Bastilha, cujas enormes torres formavam uma muralha ao fundo da rue de Saint-Antoine. A sua pequena Sylvie, tão encantadora, tão delicada, dentro daquele monstro de pedra! Contudo, apesar da terrível ameaça que pairava sobre ela, Raguenel não pôde deixar de sentir um grande alívio. Tivera tanto medo que pudesse recomeçar aquela horrível aventura e que a moça fosse novamente entregue às mãos do sádico assassino de sua mãe! É certo que era de recear que o tenente civil pudesse chegar agora ao pé dela, mas era conhecido o rigor empregue pelo irmão da falecida Eminência Parda, Charles du Tremblay, e pelos seus oficiais, na administração da fortaleza. Tratava-se de um homem de uma piedade austera e era impossível perpetrar qualquer atentado num castelo que ele guardava em nome do Rei.
Foi o que tentou explicar a Jean quando o encontrou na sua biblioteca. O jovem duque escutou a sua narração sem proferir palavra, mas mal Perceval a deu por concluída, pegou nas luvas e no chapéu e disse que ia ter com o Rei. Como Perceval lhe respondeu que era um ato prematuro e que talvez fosse melhor discutir do assunto antes de tomar qualquer decisão nesse sentido, ele declarou num tom de voz que ainda não lhe conheciam:
- Não se discute a inocência de Mlle. de Valaines! Nem dos meios a empregar para a arrancar a um destino tão atroz, tão injusto!
- Mas, que ireis dizer ao Rei?
- Que pretendo que a futura duquesa de Fontsomme seja entregue à sua família antes de me juntar, em Perpignan, ao senhor marechal de Brézé, que comanda o exército!
- Continuais a querer desposá-la? Apesar daquilo que... vos contei?
- Mais do que nunca, porque, precisamente, pretendo que ela se venha a esquecer até do nome do seu carrasco. Não se rejeita uma mártir, cavaleiro; pelo contrário, amamo-la ainda mais!
Mas quando Jean de Fontsomme chegou a Saint-Germain, o Rei já partira para Fontainebleau com todo o pessoal, de onde seguiria caminho até ao Roussillon.
Cinq-Mars acompanhava-o...
Jean nem sequer tentou visitar a Rainha, cujo poder era nulo e da qual desconfiava um pouco. O caminho pareceu-lhe traçado, voltou a casa, mandou que efetivassem os preparativos para a sua partida e, depois, foi despedir-se de Perceval de Raguenel:
- Voltarei com o que pretendo ou então não voltarei mais! - declarou.
- O que, meu amigo, seria bem estúpido da vossa parte! Sylvie precisa de vós vivo! Que lindo socorro lhe prestaríeis no outro mundo!
O jovem desatou a rir:
- Tendes razão! Eis-me inchado de presunção grandiloquente! Prometo-vos que tudo farei para me proteger... salvo num caso!
- Eu sei! Nesse caso eu também não gostaria de andar por aí assombrando a terra. Deus vos guarde!
- Sobretudo, que Deus a guarde a ela!
Decorreram vários dias durante os quais Sylvie só recebeu a visita do carcereiro. Excetuando a privação de liberdade e a semi-obscuridade em que a colocava o respiradouro gradeado, aberto no alto de uma muralha com a espessura aproximada de dois metros, o regime prisional não era penoso, a comida era excelente e muito abundante para uma pessoa como ela. Não a deixavam ficar sem sabão ou sem roupa limpa. Isso não a impedia de viver acossada pela terrível acusação de que era objeto, cumplicidade de envenenamento de parceria com o duque César! A desgraça é que esta acusação era parcialmente verdadeira, depois daquela famosa noite que passara no hotel deserto do Marais, na qual o duque lhe entregara um frasco cujo conteúdo seria destinado ao Cardeal, caso este decidisse prender François por ter morto um homem em duelo.[17] Frasco que ela aceitara por não ter outra alternativa, mas que jurara a si mesma que nunca utilizaria, a não ser para si própria, caso fosse necessário, escondendo-o da maneira que sabemos. Quem poderia tê-lo encontrado, naquela fenda da parede, dissimulada atrás de uma tapeçaria? Sobretudo, quem pudera relacioná-lo com ela quando já tinham decorrido tantos meses, anos, até, desde que deixara o Louvre?
Não parava de remoer estas perguntas na cabeça. Elas tiravam-lhe o sono e o apetite e tinha de esforçar-se para absorver os alimentos necessários para bem conservar as suas faculdades intactas, quando chegasse a altura de ser levada perante os seus juizes, não queria dar a imagem de um frangalho humano apenas sustentado pela força de vontade. Mas como lhe custava passar o tempo!
Para se distrair, contava apenas com os ruídos característicos da fortaleza, o sino do relógio que tocava todos os quartos de hora, o tinido das chaves, o barulho das trancas que se abriam e se fechavam, os passos das sentinelas que faziam a ronda, as idas e vindas no pátio, por vezes os queixumes e, também, o eco de uma canção entoada a alta voz, não muito longe dela:
- Viva Henrique IV, viva o intrépido rei
Endiabrado como o demônio,
Desfruta de um triplo talento,
Bebe, combate e é galante...
Espantada pois esse prisioneiro parecia feliz perguntou ao carcereiro se podia saber como ele se chamava. O homem desatou a rir:
- Com certeza! Trata-se do marechal de Bassompierre, menina! Também é um duro e se canta tão alto é porque lhe disse que havia uma linda dama mesmo por cima da sua cela. Foi a maneira que ele encontrou para vos cortejar...
- E... ele já cá está há muito tempo?
- Vai fazer em breve doze anos, mas não parece aborrecer-se: come bem, bebe ainda melhor e redige as suas memórias. Talvez venha a falecer aqui. Já não é muito novo...
- E que foi que fez para aqui estar?
- Isso não faço idéia. E mesmo que o soubesse, não vos diria, pois não tenho esse direito. Mas dir-lhe-ei que apreciais a sua canção. Ficará satisfeito!
Efetivamente o marechal desatou a cantar com mais ânimo, variando o repertório. Sylvie ficou-lhe agradecida, aquela voz sem rosto dava-lhe a sensação de ter um amigo e, ao ouvi-lo, o seu medo esmorecia ligeiramente. Contudo, numa noite em que acabara de se deitar, a porta abriu-se e o carcereiro apareceu. Não vinha só: estava acompanhado por um dos oficiais e, também, por quatro soldados. Sylvie foi obrigada a vestir-se sob o seu olhar, mas renunciou a pentear-se, de tal forma os dedos lhe tremiam...
Desceu, ladeada pelos soldados, atravessou uma parte do pátio, mal-iluminada pelos archotes colocados no recinto da fortaleza, passou sob uma porta baixa e, finalmente, entrou numa sala, também baixa, mas comprida, e cujas abóbadas eram sustentadas por enormes pilares. Voltada contra a parede do fundo, na qual havia uma janela estreita com grades de ferro pontiagudas, viu uma mesa iluminada por candelabros, atrás da qual se encontravam sentados três homens, dois deles com o cabelo à escovinha e ladeando um terceiro de cabelo mais comprido e grisalho. Ao lado, sentado a uma mesa mais pequena, um quarto homem tomava apontamentos. Os guardas levaram Sylvie até junto dos juizes só podia ser isso e regressaram para a entrada da sala. Apesar do medo que sentia, a prisioneira soltou um ligeiro suspiro de alívio pois, durante um breve instante, receara ser levada à presença do tenente civil que assombrava as suas noites.
O homem do meio era um comissário do Châtelet. Ergueu a vista dos papéis que consultava e olhou para a prisioneira com uns olhos tão frios quanto um basilicão.
- Chamai-vos Sylvie de Valaines e fostes recolhida e educada pela senhora duquesa de Vendôme que vos introduziu na Corte sob um falso nome, para que vos tornásseis dama de honor da Rainha.
Estando Richelieu ao corrente de tudo o que lhe dizia respeito, Sylvie não ficou surpreendida ao ver aquele homem tão bem informado. Curiosamente, isso deu-lhe um assomo de forças para se defender taco a taco:
- Não é um nome falso - respondeu, aparentando mais calma do que a que sentia. - A pedido da duquesa, o duque César concedeu-me realmente o feudo de L’Isle, no Vendômois.
- Era preciso que vos estimassem muito, para se terem mostrado tão generosos. É óbvio que isso implica uma certa gratidão da vossa parte e, sem dúvida, também, uma certa estima...
- É verdade. Amo e respeito infinitamente a duquesa...
- E o duque César?
- Menos. Ele sempre me considerou como uma intrusa e criticava a amizade que os seus filhos tinham por mim.
- Ah! Criticava? Nesse caso, podemos supor que haveis aceitado ajudá-lo, a fim de ficardes nas suas boas graças...
- Ajudá-lo a quê?
- Mas... a envenenar Monsenhor o Cardeal, que vos honrava ao outorgar-vos um certo favor!?...
Um brusco assomo de cólera ruborizou as faces de Sylvie.
- Efetivamente, Sua Eminência concedia-me a honra de me chamar por vezes, para que eu lhe interpretasse algumas canções... e não está nos meus hábitos envenenar as pessoas que me recebem com amabilidade!
- Ousais pretender que o duque César nunca vos entregou o frasco de veneno que foi encontrado no vosso quarto?
- No meu quarto? Mas, senhor, deveríeis saber que às damas de honor da Rainha não é atribuído um quarto em particular, podendo elas passar de um para outro. Foi assim que, quando estava no Louvre, residia num aposento onde antes estivera Mlle. de Châteauneuf, que veio a casar-se e suponho que o deram a outra pessoa depois de eu me ter ido embora. Ora, há muito tempo que já não sou dama de honor; caso tenham descoberto um frasco suspeito, gostaria de saber por que motivo ele seria meu e não de qualquer outra pessoa.
- Porque estais ligada a pessoas que manejam o veneno com certo à-vontade. Falai-me do vosso quarto em Saint-Germain.
Uma grande interrogação invadiu o espírito de Sylvie. Por que diabo lhe falavam de Saint-Germain, para onde nunca levara o maldito frasco?
- O que vos disse ainda se aplica mais a Château-Neuf de Saint-Germain, pois sendo aí os edifícios menos amplos, quando havia muito serviço éramos por vezes duas ou três a permanecer no mesmo quarto. Eu partilhava o de Mlle. de Pons.
- Pensais acusá-la de alguma coisa?
- Que Deus me livre! Mlle. de Pons não fez certamente nada que possa ser criticado! Se encontraram um frasco, ele poderia estar no seu esconderijo desde há dezenas de anos. E, por que não, desde a época da rainha Maria? Parece-me que o veneno era de uso corrente com os Médícis, não era?
- Estamos a desviar-nos do assunto e aconselho-vos a não o fazerdes. Negais, portanto, ter tido esse frasco em vossa posse?
- Mas que frasco? Ao menos, mostrai-me-lo!
- Não o temos aqui conosco. Em compensação, dispomos de alguns meios capazes de desatar as línguas que se recusam a dizer a verdade...
Sylvie empalideceu e sentiu que os seus joelhos fraquejavam. Por Deus Todo Poderoso, se a levassem a interrogatório, até que ponto seria capaz de suportá-lo sem ter de confessar o que quer que fosse para parar com o sofrimento? Ainda assim encontrou coragem para responder:
- Não tenho dúvidas, mas do que duvido é que a verdade, a autêntica verdade, possa ser obtida empregando esses meios.
- Há exemplos que bastem e bem convincentes... Mas, antes de mais, respondei a uma última pergunta: negais ter algum dia recebido da parte do duque de César um frasco de veneno destinado ao Cardeal... ou ao Rei?
O coração de Sylvie parou de bater durante um instante. Sempre detestara a mentira mas, desta vez era dela que dependiam não só a sua vida e a de César, mas talvez outras que o seu coração estimava ainda mais. Levantou-se, conservou-se bem direita, fixou os seus olhos nos do juiz e afirmou:
- Nego peremptoriamente.
- Muito bem!
O juiz fez um sinal e os dois soldados seguraram os braços de Sylvie, levando-a até uma sala vizinha. Adivinhando o que a esperava, tentou resistir, mas debalde. Encontrou-se perante uma terrível aparelhagem, disposta à volta de um leito em madeira grosseira, provido de um colchão de cabedal manchado, com algumas partes chamuscadas e dois guinchos, um aos pés e outro à cabeceira, munidos de cordas que permitiam esticar os membros do paciente. Ao lado, frente a um cadeirão com correias de cabedal, estavam dispostas as pranchas de madeira destinadas à tortura dos pés, com o martelo e os cantos em madeira que eram apertados no meio das pranchas de modo a rebentar com os joelhos e as pernas. Havia também longas barras de ferro, mergulhadas num caldeirão a ferver e, junto às sombras do fundo da sala, havia ainda uma grande roda armada de pontas de ferro. Um homem, de braços nus e musculosos, que sobressaiam de um colete de couro apertado, manchado e chamuscado como o colchão, vigiava tudo como se fosse o gênio do mal. Enjoada, a infeliz sentiu que as pernas lhe fraquejavam, enquanto o juiz se deleitava em explicações minuciosas acerca do modo de funcionamento daqueles abomináveis instrumentos. Ela fechou os olhos, à espera do momento em que a estenderiam naquele leito, à espera de um desmaio que não chegaria e que nunca haveria de chegar, a sua juventude e a sua boa saúde roubavam-lhe essa escapatória, tão prezada entre as damas da alta sociedade. Apelou ao Céu com todas as suas forças, numa prece tão fervorosa quanto desordenada. E, subitamente, ouviu:
- Agora que já haveis percebido o que vos espera, vamos levar-vos de volta ao vosso quarto, a fim de que possais refletir; mas ficai a saber que sereis novamente ouvida numa destas próximas noites e que, se vos obstinardes no vosso silêncio culpado, conhecereis os talentos do nosso carrasco... Acreditai-me: haveis de falar! Não há caso nenhum...
Sylvie regressou ao quarto, mais morta que viva. O coração explodia-lhe no peito, de tal modo que julgou que iria sufocá-la. Sentia-se tão mal que se deixou cair em cima da cama, sem sequer sentir forças para voltar a despir as roupas e, então, tal como na noite em que chegara, desatou a soluçar, com soluços desesperados que a sacudiram durante um bom período de tempo, antes de mergulhar num sono repleto de pesadelos.
Depois do dia regressar e, com ele, uma maior lucidez, Sylvie tentou encontrar uma saída para a situação horrível em que se encontrava. Era verdade que o duque César vivia em Inglaterra, de onde não encarava decerto a hipótese de regressar e, além disso, ele nada tinha a recear das confissões que pudessem ser arrancadas a Sylvie, mas esta pensava nos restantes membros da família: na duquesa, em Elisabeth e, sobretudo, em François. Por um momento chegou a acalentar a idéia de um cadafalso para o qual todos poderiam subir em conjunto e morrer de mãos dadas, mas sabia que isso era pura loucura e que só ela estava destinada a subir os degraus fatais. A não ser o seu próprio suicídio, nada a poderia salvar da lâmina do carrasco.
Durante algum tempo esqueceu-se dos muros que a enclausuravam e reviu os rochedos e o mar de Belle-Isle, toda aquela vastidão percorrida pelas gaivotas e pelos alcatrazes prateados, reviu as madrugadas irisadas de nevoeiro, os esplendorosos ocasos e a angra onde se quisera matar. Descobria que, à exceção da alegria que sentira ao ter voltado a ver Marie e ao ter reencontrado o terno e bondoso sorriso do padrinho, todos aqueles meses passados a tentar reintegrá-la numa vida normal só tinham servido para a deitar ainda mais abaixo.
- Não só não nasci para saber o que é a felicidade - pensou em voz alta - como não estou certa de dá-la àqueles que me amam verdadeiramente...
Por ora, o futuro estava bloqueado pela silhueta sinistra de um leito de tortura que prefigurava o cadafalso que viria a seguir e isso era algo que ela não desejava a nenhum preço. Como supusera outrora no seu refúgio bretão, Deus não podia zangar-se com aqueles que decidissem abandonar a vida de um modo mais suave que aquele que os homens escolhiam... Fato que ali, na Bastilha, seria mais difícil do que frente ao oceano, pois o próprio local já era, por si só, um túmulo; mas, afinal, que importância podia ter o cenário da morte? O que era preciso era arranjar maneira de acabar com aquilo tudo e depressa...
Esperou pela passagem do carcereiro com a refeição do meio-dia, da qual comeu uma parte como era seu hábito, mas, desta vez, quase esvaziou o pichel de Borgonha: mesmo acossada pelo medo, precisava de certa coragem para se matar.
Quando o homem regressou para recuperar a bandeja, sem esconder o seu desalento perante a ausência de qualquer vestígio da bebida no recipiente que costumava ele próprio esvaziar ao sair do quarto, ela pôs mãos à obra: pegou num dos lençóis, do qual rasgou, com os dentes, uma tira suficientemente sólida para poder servir de corda; depois, subiu para o banco, a fim de poder atá-la na armação de carvalho que sustinha as cortinas por cima da sua cama. Em seguida fez um nó corredio, certificou-se que aquele dispositivo rudimentar iria funcionar e, então, deixando o banco ao pé da cama, ajoelhou-se para pedir perdão a Deus, lamentando não poder escrever nem sequer um mínimo de palavras de ternura ao seu padrinho. Em relação a François, nem valia a pena, ele já se esquecera dela.
- Basta de demoras! - murmurou. - Está na hora de me decidir.
E, subindo novamente para o banco, estava a passar a cabeça pelo nó corredio que fizera quando soou o ruído dos ferrolhos a abrirem-se. Apesar de ter tentado afastar o banco com um pé enfurecido, nem sequer teve o tempo de sentir, no pescoço, o nó apertado do pano. O oficial que viera buscá-la nessa noite já a alcançara e levantava-a com os braços.
- Acudam, aqui d’El Rei! - gritou para os soldados. - Cortem-me isto!
Depois, deixou-a cair pesadamente no chão, enquanto resmungava:
- Aqui não se permite o suicídio! Deviam ter-vos metido numa masmorra! Lá, pelo menos, não descobriríeis nada com que vos pudésseis matar...
- Nem sequer com que pudesse viver! - exclamou Sylvie, cuja decepção se transformara em ira. - Que vos importa que as pessoas se suicidem ou não? É trabalho a menos para o carrasco...
- Precisamente, estais a tirar-lhe o pão da boca - disse o homem, desfiando uma lógica horrível. - Agora, vinde! Sois esperada!
Ela quis debater-se, mas foi rapidamente dominada:
- Piedade, deixai-me aqui, deixai-me morrer! Não quero voltar... lá abaixo!
- Ireis onde deveis! Vamos, toca a andar!
Com a morte na alma, visto que não conseguira a do corpo, Sylvie seguiu os seus guardas escada abaixo, rezando desarrazoadamente para que algo acontecesse, para que se quebrasse um degrau da escada, ou para que lhe caísse em cima uma das pedras da abóbada, para lhe poupar o horror do sofrimento que se perfilava no seu horizonte.
Ao chegar ao pátio, já se estava a voltar na direção da porta baixa que tanto temia, quando o oficial lhe pegou no braço:
- Desta vez não é por aí! Ireis fazer uma pequena viagem...
O alívio foi tal que Sylvie teria podido desatar a rir, mas as suas pernas ainda tremiam quando a obrigaram a subir para uma carruagem muito semelhante àquela que a esperara frente ao convento da Visitação e por isso caiu, mais do que se sentou, nas almofadas de tecido cinzento. Apercebeu-se que estava ali um homem vestido de preto, e teve um gesto de recuo ao lembrar-se da sua aventura em Rueil, mas tratava-se apenas do juiz que a interrogara na noite precedente e deu por si própria a agradecer a Deus, que parecia ter tirado Laffemas do seu caminho. Teria sido bem pior se tivesse de passar por mais aquela experiência sob o olhar desumano daquele miserável.
- Já sei que não me respondereis mas, mesmo assim, pergunto-vos, para onde vamos?
- Não é nenhum segredo: para o Palácio do Cardeal.
Os suportes de madeira da ponte levadiça da Bastilha rangeram novamente quando a carruagem passou...
ENTRE CILA E CARIBDE
Ao descer da carruagem no pátio do palácio, Sylvie apercebeu-se que alguém se preparava para partir. À volta de uma estranha máquina de cor púrpura ostentando os brasões do Cardeal estampados, e que mais se parecia com um enorme leito de barras, afadigava-se um enxame de criados e de guardas, uns amontoando cofres e malas em carroças, outros verificando o equipamento e examinando minuciosamente os apetrechos dos animais e o estado das armas.
- Sua Eminência deixa Paris? murmurou Sylvie, que conseguira readquirir suficiente presença de espírito para fazer uma pergunta.
- Vai ao encontro do Rei, na região do Midi, para festejar a glória que nos trouxeram as últimas conquistas. Cuidai, sobretudo, de não o irritardes ainda mais! Ele está muito doente e é à custa de um grande esforço que empreende esta viagem.
- Muito doente? - Sylvie deixou de ter dúvidas a esse respeito quando a introduziram no quarto onde estavam a acabar de vestir Richelieu.
Um calor infernal combatia vitoriosamente o frio exterior. Quase se sufocava mas, mesmo assim, o Cardeal estava pálido como um morto. De magro passara a macilento, e o seu rosto, que a barbicha ainda alongava, não era agora mais espesso que uma lâmina afiada... Os olhos estavam encovados e debaixo da comprida sotaina vermelha ondulante, na qual contrastava a fita azul da Ordem do Espírito Santo, sobressaíam, no pescoço e nos punhos, roupas brancas destinadas a proteger as úlceras que, dizia-se, lhe cobriam o corpo. No entanto, a espinha dorsal continuava direita e o olhar imperioso. Com passos de autômato, o Cardeal dirigiu-se até um cadeirão colocado ao pé de uma pequena mesa na qual se amontoavam frascos e canecas e, depois, com um gesto autoritário, despediu os criados.
Era a primeira vez que Sylvie o via sem estar na companhia dos gatos, mas a sua surpresa não durou muito: subitamente surgiu um soberbo exemplar felino de Chartreux, de abundante pelugem cinzento-escura, que saltou para os joelhos magros de Richelieu, que o acolheram com um estremecimento de dor. Logo a seguir, a sua comprida mão pálida perdeu-se no meio dos pêlos sedosos, enquanto entoava numa voz cava, um pouco enrouquecida:
- Então de novo por cá, Mlle. de...Valaines? É este o vosso nome?
- Já tive a honra de o dizer, há muito tempo, a Vossa Eminência...
- É verdade, foi há muito tempo, mas não haveis mudado. Talvez tenhais crescido um pouco, não? E, mesmo assim! Que idade tendes agora?
- Faço vinte anos dentro de pouco tempo, monsenhor.
- Não vos irei perguntar o que haveis feito durante todos estes anos. Primeiro, porque já o sei em grande parte e, depois, porque não disponho de muito tempo. Continuais a cantar?
- Na capela da Visitação recomecei a cantar, após uma interrupção de vários meses. Para poder cantar bem é preciso ter o coração ligeiro...
- ... ou incrivelmente pesado. Diz-se que quando sente chegada a hora da sua morte, o cisne entoa sons de grande beleza. Gostaria que cantásseis para mim uma última vez... Procurai no pequeno gabinete florentino, deve haver por lá uma guitarra!
- Não posso, monsenhor - murmurou Sylvie, sem se mexer.
- Porquê?
- Porque não sou um cisne e além disso... se é possível que a chegada da morte melhore a voz, o medo, porém, estrangula-a...
- E estais com medo? Parece-me, contudo, já vos ter ouvido dizer que não me receáveis...
- Os tempos mudaram, monsenhor! Nessa altura eu encontrava-me junto da Rainha, e era livre, dentro dos limites que as suas diretivas me impunham. Hoje venho da Bastilha, onde me encarceraram sob o pretexto de ter querido envenenar Vossa Eminência...
Um violento ataque de tosse, seca e cavernosa, sacudiu o magro corpo do Cardeal, fazendo aparecer duas manchas vermelhas nas faces pálidas do rosto. Ele inclinou-se, pegou num copo meio cheio que estava em cima da mesa e bebeu-o lentamente.
- E... claro... nunca o haveis tentado?
- Eu? Nunca! - afirmou Sylvie, com firmeza.
- Vós talvez não, mas, provavelmente, outros que entram na vossa estima? O duque César...
- Nunca o incluí nas pessoas que estimo. Se não fosse a senhora duquesa, nunca teria feito nada por mim. Estou-lhe grata, é tudo!
- Admitamos! Quero acreditar-vos, mas tendes os melhores motivos para desejar a minha morte pois, enquanto eu for vivo, o vosso amigo Beaufort deverá respeitar Issac de Laffemas, que está ao meu serviço! Não acredito que também não desejeis, mil vezes, que ele morra?
- Uma só bastar-me-ia, monsenhor. Pois as recordações abomináveis que guardo dentro de mim talvez desvanecessem um pouco e, sobretudo, poderia finalmente voltar a viver sem ter de sentir o terror de vê-lo aparecer à minha frente...tal como o receei em cada dia que passei na Bastilha!
- Ridículo! Foram-lhe dadas ordens para que não vos incomodasse mais...
- É um termo demasiado brando para designar um casamento forçado e uma violação!
- Admito-o, mas quando dou uma ordem, ela é respeitada!
- Até quando? Quem diz que também ele não estará à espera do desaparecimento de Vossa Eminência para acabar comigo?
- Não digais disparates! Ele tem inúmeros inimigos e eu sou a única barreira com que pode contar. E, mesmo assim! Já por duas vezes que esteve prestes a cair numa emboscada urdida por um bandido, um homem de baixa condição, que se faz chamar de capitão Coragem e que jurou matá-lo!
- Porque não o fez? Abençoaria o seu nome!
- Nem sonheis! Laffemas está agora muito bem guardado! Atacá-lo seria incorrer numa morte certa... mas, estais a ver que tendes os melhores motivos para desejardes a minha morte?
Sylvie ficou calada durante um momento. Estar a ouvir elogios sobre o seu carrasco era mais do que podia suportar e então deu largas à cólera que fervia dentro de si:
- É verdade que tenho os melhores motivos, mas nunca gostei dos caminhos esconsos... e nunca deixei de acalentar a esperança de ser eu mesma a vingar-me desse...
- Daí o veneno, essa arma tão querida das mulheres! - exclamou o Cardeal, num tom de triunfo que acabou por exasperar ainda mais a sua prisioneira. - O veneno que César de Vendôme vos entregou e que foi descoberto no vosso quarto de Saint-Germain...
A surpresa interrompeu bruscamente a fúria da jovem.
- Em Saint-Germain? - balbuciou, perfeitamente consciente de nunca ter levado o malfadado frasco para a residência estival dos reis.
- Não vos disseram?
- Disseram-me que fora encontrado no meu quarto e não me deram mais explicações. Aliás, fiz notar que várias damas de honor tinham ocupado o local antes de mim e que não entendia por que era eu a acusada.
- Talvez por serdes a única a estar ligada a César de Vendôme, esse mestre na arte do veneno! - vociferou o Cardeal. - Jurais que isto nunca esteve na vossa posse?
Do meio da massa de objetos espalhada pela mesa, Richelieu retirou então um pequeno frasco que estendeu a Sylvie, com a mão espalmada e tremendo de cólera, procurando desse modo vergá-la; mas, contrariamente ao que pensava, esta julgou ver abrirem-se as portas do céu e ouvir cantar os anjos. A angústia que a sufocava, o medo medonho de comprometer a salvação da sua alma ao cometer perjúrio, isso tudo desapareceu num instante. Caiu de joelhos e estendeu a mão na direção da cruz artisticamente talhada, que palpitava no peito do Cardeal:
- Pela salvação da minha alma e pela memória de minha mãe, juro que nunca vi este frasco. Que Deus seja testemunha do meu juramento!
Não sabia lá muito bem de onde vinha aquele milagre, mas era bem disso que se tratava: o frasco que brilhava à sua frente era de um vidro espesso, mas azul, enquanto que o de César era de um verde escuro e envolto por uma pequena grade prateada. Isso talvez explicasse por que lhe falavam de Saint-Germain, quando o seu verdadeiro esconderijo era no Louvre mas, nesse caso, qual a proveniência daquele objeto?
Se bem que surpreendido inicialmente pela reação espontânea da jovem, o Cardeal não se deu por vencido:
- Também jurais que o duque César nunca vos entregou isto?
- Sobre tudo o que me é mais sagrado, monsenhor... sobre o amor que tenho pelo filho dele!
Richelieu, de expressão pensativa, pousou o frasco minúsculo. Naquelas condições tornava-se impossível descrer da sinceridade da rapariga, pois se jamais houvera um olhar tão verdadeiro e transparente, fora bem aquele. Aliás, graças ao seu conhecimento da alma humana, tinha de confessar a si mesmo que dificilmente a poderia julgar culpada. Se ela tivesse desejado fazê-lo, não lhe tinham faltado oportunidades para isso.
- Teriam ousado enganar-me? - murmurou, pensando em voz alta.
- Quando se deseja a perda de alguém, monsenhor, todos os estratagemas são bons - disse Sylvie, com brandura. - Ignoro o que se passa quanto à acusação formulada contra o duque César, mas talvez fosse normal que para lhe darem mais consistência tivessem pensado em mim, que sou sua devedora. Os senhores de Vendôme...
- Não pronunciai mais esse nome na minha presença! - resmungou o Cardeal. - Podeis salvar a vossa cabeça, minha pequena, mas as deles ainda estão em perigo...
- Ainda? - perguntou Sylvie, sem se conter, à medida que a angústia a invadia de novo. - Mas eles estão em Inglaterra...
- O pai está em Inglaterra, mas os filhos regressaram e o Rei exilou-os nas suas terras, levando em conta os serviços que prestaram em Arras. Podeis estar certa que, em Vendôme, em Chenonceau ou em Anet, não perdem tempo... - Em seguida, submerso pela cólera e esquecendo a sua jovem visita, acrescentou: - Eu sei que estão a fomentar uma conspiração e, dentro em breve, terei provas disso! Conspiram com M. Lê Grand, que só é “grande” porque eu assim o deixei, mas que não o será por ainda muito mais tempo; conluíram-se com Monsieur, esse eterno conspirador, e com a Rainha... enfim, com Espanha!
- Beaufort, de conluio com a Espanha?! Mas isso é impossível! Ele combate-a de todo o coração! Quanto a M. de Cinq-Mars...
- Quer desposar uma princesa e eu oponho-me a esse casamento! Quer o meu lugar... e é óbvio, que não estou de acordo! Mas que estou eu aqui a fazer, a discutir estes assuntos com uma menina...!
Também devia ser o parecer daqueles que se reuniam no pátio, pois surgiu um oficial, que ousou uma tímida intervenção:
- Monsenhor... não vos esqueçais de que o tempo passa e que...
O olhar cheio de chispas acalmou-se, enquanto a tosse regressava.
- Sim, tendes razão!... Mlle. de Chémerault ainda está à espera?
- Com certeza...
- Trazei-la aqui!
Uma lufada de perfume ambarado assinalou a sua entrada no quarto e fez espirrar Sylvie, que detestava aquele odor quase tanto quanto detestava a sua proprietária. Elegante como era seu hábito, a dama de honor da Rainha oferecia uma impressionante sinfonia de peles e de veludo em tons ruivos. O cardeal não lhe deu tempo para terminar a reverência.
- Já sei o que queria. Como combinamos, ides levar Mlle de Valaines de volta ao convento da Visitação de Santa Maria, na carruagem que vos espera. Ao sair, dizei ao decano que me venha ver antes de regressar à Bastilha.
Em seguida, voltou-se para Sylvie, cujo alívio ao saber que iria regressar à Visitação era contrariado pela perspectiva de fazer o caminho com a Chémerault:
- Adeus, Mlle. de Valaines! Mas, antes de irdes, aceitai um conselho, ingressai na ordem religiosa da Visitação. Só aí podereis encontrar a paz...
- Não possuo a vocação, monsenhor.
- Não seríeis a primeira nessa situação e, se Deus vos ama, dar-vos-á um sinal...
- Então, esperá-lo-ei.
Sabia que um desejo expresso pelo ministro todo poderoso equivalia a uma ordem e que, ao responder daquela maneira estava a desafiá-lo, mas Deus libertara-a da mentira e não queria voltar a cair nela. O seu olhar, sempre intensamente límpido, cruzou-se com o do Cardeal, sempre furioso debaixo daquela massa cinzenta das suas sobrancelhas, mas este renunciou à sua cólera e contentou-se em encolher os ombros:
- Ficai por lá até que eu vos autorize a sair. Posso contar com a vossa promessa?
- Sim, tendes a minha promessa. Que Deus vos guarde!
- Pois bem, ora aí está um voto que não me é dado ouvir muitas vezes...
As duas mulheres mantiveram-se caladas no interior da carruagem cuja atmosfera estava repleta do odor a âmbar. Ansiosa por chegar ao seu destino, Sylvie via desfilar as casas. Quanto à sua companheira, conservava os olhos fechados desde o início. Contudo, quando passaram sem parar pela capela do convento, Sylvie protestou:
- Porque continuamos? Sua Eminência ordenou que me trouxessem de volta ao convento...
Do fundo das suas peles, a Bela Gueuse abriu desmesuradamente os olhos com ar aborrecido.
- Não há pressa! Quero despedir-me do meu irmão, que vai para a guerra dentro de uma hora. Não estava previsto que me tivesse de ocupar da vossa pessoa. Estais assim com tanta pressa de me deixar?
- Nunca fomos amigas e não entendo como podeis desejar a minha presença num momento de tão grande intimidade... seria preferível que me deixásseis aqui...
- Não é possível, nem é assim tão simples, pois estou encarregue de transmitir longas instruções a Madre Marguerite e, se me demorar, arrisco-me a não encontrar o meu irmão. Não demorarei muito e o importante é que possais chegar a tempo à Visitação, à hora de jantar.
- Como o desejardes!
Foi assim que transpuseram a muralha de Paris. Depois da abadia de Santo Antônio[18], penetraram pela floresta, que se fechava como uma enorme mão esverdeada em redor do castelo de Vincennes, com as suas torres quadrangulares, com o torreão gigantesco e todo o seu arsenal de guerra, e cuja imponência mal conseguia ser atenuada pelo fino campanário da Santa Capela, quase irmã gêmea da maravilha que era o orgulho do palácio da cidade de Paris. A carruagem contornou os fossos do castelo e Mlle. de Chémerault soltou um risinho:
- Pode perceber-se que o duque César tenha optado por colocar o mar entre a sua pessoa e este torreão. Foi aqui que definhou durante cinco anos intermináveis e o seu irmão, o Grande Prior de Malta, morreu aqui ao fim de dois, em circunstâncias deveras estranhas. Aliás, foi a única decisão inteligente que ele tomou durante toda a sua vida.
- Que quereis dizer?
- Que é ridículo pensar que César pudesse ter tentado envenenar o Cardeal nestes últimos tempos. Há quatro ou cinco anos ainda vai, mas agora...! Richelieu morrerá decerto nos próximos seis meses. Talvez mesmo antes...
- Julgava que o estimásseis!? É óbvio que o seu estado de saúde não é dos melhores, mas tenho dificuldade em ver um moribundo a percorrer as estradas da França até aos confins do reino.
- Não se trata de estradas, mas de rios. A sua liteira vai descer até Lyon e, depois, dirigir-se-á a Tarascon por via marítima. Ele já nem sequer suporta o andamento das mulas e, quando desembarca, a liteira tem de ser transportada às costas.
- Aquela máquina enorme? Mas, não pode passar por todo o lado.
- Aquilo que estorva deita-se abaixo, nem que se trate da muralha de uma cidade. Isso já aconteceu mas, mesmo nessas condições, o Cardeal tem de suportar mil mortes a cada solavanco. Só que é um homem de ferro e o seu desmesurado orgulho serve-lhe de ponto de apoio. É por isso que sempre o admirei.
- Isso é sabido. Que fareis, quando ele já cá não estiver? Ireis à procura de outra pessoa para... admirar?
- Penso que não tendes nada com isso!
A viagem prosseguiu através de uma estrada mais transitável do que se poderia esperar, sobretudo com o tempo frio que fazia. O campo, onde se estendiam pequenos vales, estava belo e muito bem tratado, até mesmo nas imediações da floresta, que era a menos perigosa dos arrabaldes de Paris graças à presença da importante guarnição de Vincennes. Por esse motivo, a grande maioria das aldeias disseminadas nas proximidades pertenciam a grandes propriedades: Conflans, Charenton, Saint-Mandé, que pertencia aos Bérulle, Nogent, a poderosa abadia de Saint-Maur, Créteil e Saint-Maurice.
Achando que o trajeto se estava a tornar muito longo, Sylvie perguntou:
- Mas, afinal, onde vamos?
A Nogent respondeu a companheira de modo impaciente.
A noite começava a cair e cruzavam cada vez menos carruagens ou cavaleiros mas, minutos depois de Sylvie ter feito a sua pergunta, transpunham o gradeamento de um vasto domínio cujos prados, jardins e hortas desciam, até um rio que Sylvie, daquele local, não podia saber que ainda era o Sena.
No fim de uma larga álea, bordejada de árvores, surgiu uma linda casa que devia datar do século anterior. Fato estranho: apesar do crepúsculo, não havia rastos de qualquer iluminação, nem tão-pouco de quaisquer preparativos para uma saída. O ruído da carruagem a chegar também não fez sair nenhum criado.
- Dir-se-ia que o vosso irmão não ficou à vossa espera. Não está ninguém...
De sobrolho franzido, Françoise de Chémerault considerava a ocorrência com um ar perplexo.
- Efetivamente, tudo isto é muito estranho. Contudo, o bilhete que recebi esta manhã é formal.
Ao ver que ninguém se mexia no interior da carruagem, o cocheiro veio até à portinhola:
- Menina, ter-me-ei enganado no endereço?
- Não! Não! É aqui. Contudo, não vejo nenhuma luz.
- Há uma luz acesa no andar, menina. Avistei-a do meu assento...
- Vou dar uma vista de olhos, mas - acrescentou, com um toque de humor - não se pode dizer que tenham acendido as luzes em minha honra! Quereis vir comigo? - perguntou repentinamente a Sylvie, que ousou arriscar com um sorriso:
- Dir-se-ia que tendes medo?
A Chémerault encolheu arrebatadamente os ombros:
- Grotesco! Nunca tenho medo de nada...
- No entanto as suas mãos tremiam ao agarrar nas peles que eram um grande estorvo para descer da carruagem. Foi então que Sylvie teve vontade de ver mais.
- Eu também não. Acompanho-vos!
O céu cinzento derramava luz suficiente para que se pudessem orientar pela casa, onde deviam ter preparado uma refeição, pois em todo o interior respirava-se um cheiro agradável a pão quente, a caramelo e a carne assada. Também havia sido posta uma mesa na pequena sala da parte das traseiras, de cujas duas altas janelas se avistava o rio, em baixo, quase escondido por um véu de nevoeiro. Um candelabro de prata, de velas acesas, irradiava uma bela luz dourada no serviço de mesa de vermelho acobreado e nos copos de cristal embutidos.
- Não sei se o vosso irmão vai ou não para a guerra - disse Sylvie - mas caso esta mesa esteja à vossa espera, então ele está menos apressado do que dissestes. É do vosso irmão que se trata realmente? Isto parece-se mais com um jantar galante.
- Parai de dizer disparates! - ralhou a outra... - De qualquer modo agora as máscaras deixaram de ter qualquer utilidade... Oh, meu Deus!
Ao dar a volta à mesa para endireitar uma das flores que serviam de decoração, ela acabara de tropeçar num corpo estendido numa poça de sangue. A seus pés encontrava-se um homem, sem sentidos, com um ferimento no peito que ainda sangrava. Ao debruçar-se, Sylvie reconheceu-o, horrorizada: era Laffemas. Percebeu tudo e, ao soerguer-se, o seu olhar cruzou com o da Chémerault, pleno de fúria e decepção.
- O imbecil deixou-se matar - disse esta, enraivecida.
Depois, reagindo com fúria, empurrou Sylvie com brutalidade, a qual caiu para trás, batendo com a cabeça no pé de uma cadeira, o que a deixou, por momentos, atordoada. Foi tempo suficiente para que a sua companheira, desatando a correr, abandonasse o local do crime, fechasse a porta à chave atrás de si e fugisse na carruagem. Quando Sylvie se levantou, ligeiramente combalida, ouviu o ruído da carruagem a afastar-se, deixando-a a sós com um cadáver. Não era grande consolação saber que se tratava do corpo do seu pior inimigo e, com o andar vacilante, deixou-se cair numa poltrona, a fim de tentar pôr as idéias em ordem. Havia algo que não deixava de ser evidente: a Chémerault tinha-a encurralado numa armadilha ignóbil. Tinha querido entregá-la às mãos de Laffemas, e não era difícil perceber que fora por esse motivo que só tinham sido colocados dois pratos na mesa! Ao pensar no que teria podido suceder, Sylvie teve uma náusea que lhe pôs um gosto amargo na boca e a levou a desviar novamente a cabeça. Na mesa havia um frasco de vinho. Verteu um pouco num copo, que bebeu, julgando reconhecer o sabor: era o mesmo vinho espanhol que bebera outrora com o Cardeal. Talvez este o oferecesse ao seu carrasco favorito?
A verdade é que acabou por se sentir melhor, começando a tomar consciência do perigo da situação em que se encontrava. É certo que nada mais tinha a temer da parte de Laffemas, a não ser poder ser acusada de o ter morto. Quem poderia dizer se a infame Chémerault não estaria agora a caminho para alertar as primeiras autoridades que pudesse encontrar, até mesmo as do castelo de Vincennes? Caso viessem a encontrá-la em companhia daquele cadáver, teria as maiores dificuldades em ilibar-se. Era preciso sair dali e depressa!
Enquanto pensava, ouviu uma chave a girar na fechadura: a porta abriu-se e apareceu uma personagem tão estranha que Sylvie soltou um grito de medo.
- Não vos atemorizeis, menina! - pronunciou uma voz agradável e, deixando, até, transparecer uma certa instrução. - Estou mascarado e rogo-vos a permissão de assim continuar...
Efetivamente, por debaixo de um enorme chapéu preto com penas, distinguia-se uma enorme carantonha onde sobressaia um nariz coberto de borbulhas, com traços grotescos que a luz das velas avermelhava.
- Quem sois? - murmurou Sylvie, ainda insegura.
- Chamam-me capitão Coragem! E vós, quem sois e que fazeis aqui?
- Chamam-me Sylvie de Valaines e armaram-me uma cilada para me trazerem aqui e me entregarem a este homem! Juro, porém, que não fui eu que o matei!
- Sei isso muito bem, pois fui eu quem o fez! Não ignoro quem sois e foi uma sorte que, ao ter ouvido chegar a vossa carruagem, me tivesse escondido para ver em que águas iríamos parar! Não nos demoremos! Este local é nocivo, tanto para vós como para mim!
A reboque da personagem, Sylvie atravessou outra vez a casa a correr. Ao chegar ao patamar, o “capitão” assobiou estridentemente e, da obscuridade, surgiu um cavalo já com a sela aprontada:
- É o Sultad explicou a estranha personagem. Como podeis ver obedece-me a qualquer sinal meu e não só...
Enquanto ajudava Sylvie a montar o animal, assobiou outra vez, mas agora três vezes seguidas, após o que surgiram vários cavaleiros, todos mascarados.
- Onde estão os guardas do senhor tenente civil?
- Amarrados, amordaçados, e espalhados pelo bosque. O primeiro que for colher cogumelos encontrá-los-á.
- Esperemos que não gele esta noite, senão a colheita será má - disse uma voz brincalhona. - Mas, capitão, esta é que é a nossa presa? - perguntou, indicando Sylvie.
- Um pouco de respeito. Daqui não se leva nada. A mais pequenina colher que tivesse pertencido ao carrasco do Cardeal só nos traria azar.
- Vingastes Sémiramis?
- Vinguei e, agora, toca a regressar! Cada um para seu lado, como é costume. Eu levo esta rapariga de volta. Dispersai-vos!
Os cavaleiros desapareceram tão depressa quanto tinham aparecido. O capitão Coragem montou no seu cavalo.
- Segurai-vos! - aconselhou. - Gosto de ir depressa!
- Onde pensais levar-me? Devia ter regressado ao convento da Visitação.
- Já não precisais de freiras! Vou levar-vos até casa!
- A casa? Mas...
- A casa de M. de Raguenel se assim preferirdes. Por ora basta de conversa! É escusado chamar a atenção gritando como loucos. E já disse para vós vos segurardes!
Sylvie apertou os braços com mais força em redor do companheiro, não só para evitar uma queda como para se aquecer, pois a noite anunciava-se gélida. Aconchegou-se o suficiente para constatar que aquele ladrão pois era um! Cheirava agradavelmente a verbena, o que era mais um motivo de interrogação a juntar-se àqueles que já se amontoavam na sua cabeça. Em todo o caso foi uma noite de aprendizagem, ficou a saber que era possível entrar em Paris com todas as portas fechadas!
Efetivamente, bem antes de avistarem a porta de Saint-Antoine, desviaram para leste, a fim de atingirem um velho albergue numa aldeia afastada. Aí o homem ajudou Sylvie a descer, levou os cavalos para o estábulo e a sua companheira de viagem para uma cave, que dava para um subterrâneo escondido atrás de montes de palha. Andaram durante algum tempo, antes de subirem por uma escada que dava para outro albergue, à saída do qual se encontraram ao pé das muralhas mas, desta vez, do lado de dentro. Era a primeira vez que Sylvie contemplava as muralhas tão de perto. Precisavam muito de obras de restauro, se bem que tivessem sido reforçadas quando, em 1636, se temera a chegada dos soldados do Cardeal Infante frente à cidade do seu meio-irmão.
- Há muita gente que conheça este caminho? - perguntou Sylvie.
- Alguns! Os que dele precisam. Ainda existem outros caminhos, mas este é o mais escuso porque se encontra próximo do recinto do Templo, onde não se entra facilmente. Também é o mais cômodo para mim...
Efetivamente, alguns momentos mais tarde desembocaram num labirinto de ruas e ruelas, com casas que pareciam prestes a desabar, mas o percurso foi de curta duração: minutos depois puderam enxergar as torres da Bastilha, que sobressaiam no fundo escuro do céu, e chegaram frente ao pequeno hotel da rua das Tournelles, que Sylvie tão bem conhecia e cuja falta tanto sentira.
Ao toque do sino, um jovem desconhecido acorreu para abrir o pórtico, com uma lanterna que passou diante dos rostos dos recém-chegados, após o que soltou uma exclamação de alegria, deixando-os ali plantados, sem mais nem menos, e correndo para dentro de casa:
- Senhor cavaleiro! - gritou ainda no vestíbulo - É Mlle. de Valaines com o capitão Coragem!
Uma notícia daquelas provocou imediatamente uma invasão do vestíbulo: Perceval pulou do primeiro andar escada abaixo, Nicole acorreu da cozinha e Corentin do depósito de madeira, transportando consigo um enorme saco cheio de achas que deixou cair nas lajes, enquanto o cavaleiro já apertava a afilhada nos braços:
- Louvado seja Jesus! Onde a haveis encontrado, amigo?
- Em Nogent, na casa do Laffemas... Não vos inquieteis, não lhe aconteceu nada e vou contar-vos tudo num local menos propício às correntes de ar. Mas, diz-me lá - acrescentou, voltando-se para Pierrot, que o olhava com um sorriso deslumbrado - quem te disse o nome desta jovem?
- Há muito que a conheço. Desde o dia em que levaram o meu pai ao cadafalso. Ela impediu que as patas do cavalo de Laffemas me espezinhassem. Nessa altura chamava-se Mlle. de L’Isle. Oh, nunca me esqueci dela... Foi até por sua causa que quis entrar ao serviço desta casa, como bem o sabeis, aliás. Eu disse-vos, quando larguei o bando...
Ainda incrédula, Sylvie olhava para aquele rapaz, tentando associá-lo à trágica imagem que ele acabara de lhe recordar: a de um rapazinho que suplicara pela vida do pai que ia ser torturado no cadafalso e que Laffemas derrubara, lançando-o na lama gelada, onde se preparava para o espezinhar quando ela acorreu em seu auxílio.
- Então eras tu? - perguntou, com um sorriso. - E volto a encontrar-te em casa do meu padrinho! Será que também te recordas que me roubaste a bolsa?
- Precisava de viver! Aliás, não estava lá muito recheada... - O capitão Coragem desatou a rir às gargalhadas.
- Este maroto já era muito destro com os dedos! Fiquei triste quando me deixou, mas foi por boas razões.
- Com que então és má rês? - exclamou Nicole Hardouin, procurando debalde um objeto com que o pudesse ameaçar. Pierre agarrou-a e imobilizou-lhe os braços:
- Ora, ora, dona Nicole, alguma vez a deixei ficar mal roubando-lhe nem que fosse um céntimo ou um pedaço de açúcar? Tudo o que quero é continuar aqui... porque gosto de vós!
E, dito isto, deu-lhe dois beijos sonoros nas faces avermelhadas pela cólera, cujos traços se desanuviaram, revelando prontamente um sorriso.
- Não. Sempre acreditei que eras um bom rapaz... e espero que assim seja por muito tempo. Se não, põe-te a pau!
- Nicole - interrompeu Perceval, - trazei-nos vinho de ervas quente e algo para comer! Sylvie está a tremer de frio e nós aqui a falar...
Reuniram-se na cozinha, onde fazia mais calor do que em qualquer outro lado da casa e Nicole depressa encheu a mesa com uma torta de enchovas, carnes frias, queijo, maçapães, compotas e algumas garrafas em redor das quais todos se instalaram: criados, bandido e amos, comungando numa atmosfera de estima recíproca que muito se parecia com a amizade. Sylvie viu o capitão Coragem tirar finalmente aquela máscara grotesca que tanto lhe aguçava a curiosidade, pondo a nu um rosto jovem e enérgico, que teria assentado bem em qualquer mosqueteiro, o que mudou imediatamente o rumo da sua curiosidade... Retirado o aparato de feira de que se servira e com um fino bigode moreno e uma pêra que lhe enfeitava o queixo, aquele homem não teria destoado em qualquer reunião de gentis-homens. Entretanto os seus olhos sombrios, vivos e divertidos, gozavam com o efeito da surpresa:
- Não vos enganeis, menina. Não provenho de boas famílias. Os meus eram gente pequena da província, bem comportados, austeros, muito convencionais, temendo Deus, o Diabo, o Cardeal e o Rei, o que não impediu que fossem massacrados quando ocorreu uma revolta camponesa com a qual nada tinham a ver. Depois chegou o carrasco do Cardeal para zelar pelas execuções...
- Matou os vossos pais?
- Não, eles já tinham morrido. Aquela que ele matou, da maneira que nós todos sabemos - disse, lançando um olhar em volta da mesa - era a minha amante: uma linda rapariga da Boêmia, que chamavam Sémiramis. Foi por causa dela que me tornei bandido, sem todavia vos esconder que já acalentava fortes disposições nesse sentido. Eu adorava-a e ela amava-me. Não o suficiente, contudo, para me obedecer e renunciar aos seus hábitos de independência um pouco loucos... e que lhe custaram, afinal, a vida. Exceto vós, menina, todos os presentes aqui reunidos sabem que jurei que mataria Laffemas. Falhei duas vezes e foi por isso que mudei de tática, começando por fazê-lo morrer de medo por todos os meios, que o obrigaram a ficar guardado dia e noite, o que não impediu de lhe atirar com alguns bilhetes ameaçadores através de flechas que ele nunca sabia de onde vinham. Conheci M. de Raguenel graças a Pierrot que, um dia, me veio abrir a porta. Foi até graças ao cavaleiro que soube quem assassinara Sémiramis. Desde essa altura fizemos uma espécie de pacto e, logo que tomamos conhecimento da vossa presença, redobramos a nossa vigilância. Dispondo de numerosos cúmplices, descobrimos a casa em Nogent e, assim que soubemos que estáveis na Bastilha, decidimos que era preciso acabar de uma vez por todas com o tenente civil. Na prisão estáveis muito à mercê... das suas fantasias.
- Mas como soubestes que, nesta noite, eu iria ser levada à sua presença?
Coragem afastou as mãos, que eram belas e fortes, num gesto de ignorância:
- Não o sabíamos! Encontrar-vos lá foi... uma surpresa divina proporcionada por um conjunto de circunstâncias completamente fortuito. Desde há alguns dias que Laffemas, sempre guardado pelos seus esbirros, se decidira a ir respirar o ar do campo. Sem dúvida que desejava dar a entender que nada teria a ver com a vossa prisão mas, mesmo assim, parecia estar à espera de qualquer coisa...
Interrompeu por momentos a sua narração, para beber um grande trago de vinho, limpou o bigode e prosseguiu:
- Um dos homens conseguiu arranjar emprego em casa dele como ajudante cozinheiro, mas havia sempre gente a rondar nas imediações...
- Com este frio? - perguntou Sylvie espantada.
- Estamos habituados a qualquer tipo de tempo, menina, e até mais do que os soldados. No mundo em que vivo, a miséria toma conta dos homens, quando não dá logo cabo deles. Há dois dias o tenente civil recebeu a visita de uma bela dama. Aquela que vos acompanhava há bocado.
- A Chémerault?
- Precisamente. Tinham ares de ser os melhores amigos deste mundo!
- Ela não possui nenhuma fortuna - interrompeu Perceval. - E ele é rico, sem dúvida que lhe pagava.
- É verdade que ela se veste com grande luxo. Claro que o meu moço de cozinha não pôde ouvir nada da conversa que tiveram e que decorreu à porta fechada, mas conseguiu captar algumas palavras quando a bela se despedia. Ela disse: “Ele mandá-la-á decerto de volta ao convento da Visitação e eu tratarei de ficar encarregue dessa missão. Depois, bastar-me-á trazê-la até à vossa presença. De resto, o Cardeal vai-se embora de Paris amanhã. Ficareis à vontade...” Como eu não sabia se estas palavras vos diziam realmente respeito, decidimos vigiar as idas e vindas da Chémerault. Ontem ela não se mexeu mas, esta tarde, foi até ao Palácio do Cardeal e eu pensei que já era tempo de atuar. Forcei a entrada de Nogent com a maioria dos meus homens, raptamos ou matamos os guardas e, finalmente, pude encontrar-me frente a frente com esse monstro, encurralando-o no pequeno salão onde preparara a refeição galante que vos era destinada, menina. Quando me viu, quase se diluiu sob os meus insultos. Com um imundo trejeito, rogou-me que lhe perdoasse e, então, trespassei-o com a minha espada. Depois, subi ao quarto do miserável a fim de examinar os papéis que por lá se encontravam e quem sabe? que pudessem talvez devolver a esperança ou a liberdade a algum infeliz. Estava absorto nessa tarefa, quando ouvi chegar a carruagem. A Chémerault desceu, acompanhada por outra mulher, tão agasalhada que não a pude reconhecer. Não me mexi, à espera do que se seguiria, quando vi a Chémerault fugir, correndo porta fora. Saltou para a carruagem e gritou ao cocheiro para galopar o mais depressa possível até ao castelo de Vincennes. Foi então que percebi que essa galdéria queria que outrém fosse considerado culpado da justiça que eu fizera... e foi assim que vim buscar-vos. O resto já conheceis...
- Nunca vos poderei agradecer devidamente - disse Sylvie, com os olhos cheios de lágrimas. - Não só me haveis salvo a vida, como também graças a vós, agora estou livre... completamente livre, pois Laffemas está morto! Oh, meu Deus, como poderei um dia reembolsar-vos desta dívida?
O capitão concedeu-lhe um dos seus curiosos sorrisos do canto da boca:
- Oferecendo-me uma morte rápida, com veneno ou com uma facada mortal, quando colocarem na roda este ladrão e “assassino” que sou. Creio que é o único tipo de morte que receio, porque nos arriscamos a perder toda a dignidade...
Levantou-se, mas Perceval foi mais lesto, colocando as mãos do jovem entre as suas.
- Se esse dia horroroso tiver de chegar é porque, em primeiro lugar, não terei conseguido salvar-vos e, nesse caso, eu próprio me encarregarei de vos libertar desses tormentos. Entretanto, lembrai-vos que tendes aqui alguns amigos aos quais podereis pedir seja o que for. Seremos um abrigo e um apoio, quaisquer que sejam as vossas necessidades.
- Esqueceis-vos que sou o príncipe dos ladrões?
- Isso é problema vosso. Prefiro um ladrão com a vossa generosidade do que um bom cristão do estilo do Laffemas.
- Estou-vos muito grato. Por ora despeço-me e acho que não voltarei. Sou um homem muito comprometedor e haveis sofrido demasiado nestes últimos tempos. Porém, quando pensardes em mim, cuidai de vos lembrar apenas do meu verdadeiro rosto e do meu verdadeiro nome: chamo-me Alain...
- Alain... quê? - perguntou Sylvie.
O jovem corou intensamente:
- Obrigado, mas já vos disse que não me reconheço o direito a pronunciar o resto do nome.
- Que pena! - sorriu Sylvie. - Tendes todos os atributos de cavaleiro, capitão Coragem!
- Então perdoai-me por não vos poder revelar mais. A profissão que escolhi obriga-me a esquecer um nome, cuja honra devo preservar, principalmente para mim próprio. Adeus, meus amigos...
Foi buscar a capa. Perceval deteve-o outra vez:
- Adeus, porquê? Porque não contais regressar? Percebo que o capitão Coragem não deseje aventurar-se por estas bandas mas, quanto a Alain, ninguém lhe conhece o rosto...
- É muito difícil escapar muitas vezes ao mundo que escolhi. Devo continuar por lá... mas ficarei de olho nesta casa. Que Deus a proteja sempre!...
Apressou-se a sair, pois sentia que a emoção se apoderava dele e Perceval teve de correr para o acompanhar até à porta. Quando regressou, Nicole estava a levantar a mesa, ajudada por Sylvie, enquanto Corentin, de pé junto à chaminé, aspirava o cachimbo que acabara de acender, olhando distraidamente para as espirais de fumo.
- Que lhe terá acontecido? - comentou Nicole. - Está tão esquisito...
- Então, Corentin? - perguntou Raguenel.
- Já descobri quem ele é - desabafou este. - Mentiu-nos ao falar de gentalha da província. É um bretão, e possui um nome bem típico da região. É verdade que os seus pais foram massacrados, mas ainda tem alguma parentela próxima da Corte...
Escusado será dizer que estas palavras caíram no meio do maior silêncio. Suspensos, todos esperavam pela continuação.
- Como o sabes? - perguntou o cavaleiro.
- Ainda vos recordais dos Beneditinos de Jugon, para onde a minha família me enviou outrora?
- E de onde te escapaste... Coisas dessa natureza não se esquecem.
- Ele também lá estava e pelos mesmos motivos que eu. Era o rapaz mais novo de entre muitos irmãos da mesma família e tinham-no enfiado sob uma indumentária de burel como se o tivessem metido num esconderijo. Ficou lá ainda menos tempo do que eu, mas nunca me esqueci da cara dele. Chama-se...
- Não! - interrompeu Perceval. - Cala-te para todo o sempre, mesmo para os meus ouvidos! Esse segredo não te pertence e não tens nenhum direito sobre ele. Nas nossas preces ele será Alain e ponto final!
- Perdão! - murmurou Corentin, inclinando a cabeça. - Quase cometi uma má ação.
- O importante é que não a tenhas cometido! - disse o cavaleiro, dando-lhe uma pancadinha no ombro. - Agora, toca a deitar! Vou levar Sylvie até ao seu quarto.
Foi com intensa alegria que a viajante reencontrou o seu lindo quarto amarelo. Voltou a tocar nos pequenos objetos de toilette prateados e no belo espelho de Veneza, que lhe devolveu uma imagem diferente da de outrora, uma imagem agora desfigurada pelo cansaço e pelas angústias por que passara nos últimos dias. Contudo e isso era um milagre devido à juventude Sylvie teve a impressão que tudo aquilo por que havia passado, sofrimento e até desonra, a abandonava ao mesmo tempo que as roupas que despia. Ali, naquela salinha aconchegada, preservada pela ternura, descobriu que mantivera incólume o que era verdadeiramente importante dentro de si: a sua vitalidade, o seu gosto pela vida e até pela luta e, sobretudo, o amor que sentia por François, apesar do fato de ele a ter rejeitado, como teria feito a qualquer importuno. Agora que a alma negra e vilã de Laffemas fora ao encontro do Criador a não ser que fosse ao do Diabo! tudo decorria pelo melhor, tudo regressara à ordem e a antiga Sylvie de outrora podia, finalmente, renascer.
Esta felicidade durou dois dias...
Precisamente até à chegada um tanto agitada de Théophraste Renaudot, que veio anunciar que Laffemas ainda estava vivo.
- Um mensageiro que lhe levava uma encomenda encontrou-o de manhã, inundado em sangue, mas ainda com vida - explicou aos seus amigos consternados. - Até voltou a recobrar os sentidos e encontrou força para exigir que fossem à procura do astrólogo do Rei, o famoso Jean-Baptiste Morin de Villeneuve, para que ele o tratasse, pois diz-se que este faz milagres quando se prontifica a exercer a sua antiga profissão de médico...
- E conseguirá curá-lo? - perguntou Perceval.
- Ainda está longe de o conseguir. O ferido que apanhou um golpe de espada no peito tem muita febre, e até me afirmaram que delira de tal modo que decidiram que seria mais apropriado isolá-lo, diz coisas terríveis.
- Já se sabe quem o feriu?
Os criados e os guardas que foram encontrados no meio do bosque, amarrados e meio mortos de frio, falaram em cavaleiros mascarados mas, por debaixo do corpo, havia um pedaço de papel que dizia textualmente “Obra do capitão Coragem.”... O que não me espanta mesmo nada - acrescentou o gazeteiro. - Podereis ler tudo isto na Gazette de amanhã...
- Não reveleis demasiadas coisas! Até ordem contrária, os vossos leitores devem ignorar que se o capitão Coragem não chegou a matar Laffemas, por outro lado salvou a vida da minha afilhada, que a Chémerault levara até lá...
Pôs-se então a contar ao detalhe a aventura de Sylvie, que o escutava com os olhos inundados de lágrimas de raiva.
- Tendes razão - concordou Renaudot, quando o cavaleiro acabou de falar - é melhor contar o menos possível. Os leitores ficarão unicamente a saber que Laffemas foi atacado e gravemente ferido em sua própria casa. Depois publicaremos os boletins referentes ao seu estado de saúde, e será tudo! É uma sorte que o Cardeal tenha deixado Paris por um bom período de tempo! As ordens que poderá dar quanto a este caso serão certamente menos bem cumpridas do que se estivesse ainda em Paris. Em primeiro lugar, porque a maioria dos agentes da polícia o detesta, para não dizer que o odeia, e, em seguida, porque todos nós sabemos que o Cardeal já não tem muito tempo de vida. Isso põe cobro às iniciativas que possam vir a revelar-se perigosas...
- Em todo o caso - exclamou Sylvie, à beira de uma crise de nervos - vou ter de regressar ao convento. Acabaram os bons tempos que contava desfrutar aqui! Está escrito que esse miserável levará sempre a melhor!
O gazeteiro colocou uma mão apaziguadora sobre as da rapariga:
- Não há pressa nenhuma. Como vos disse, ele está longe de ficar curado. É possível que até nem o consiga. Se bem compreendi, estais em segurança nesta casa, pelo menos tanto quanto no convento. Podeis contar com gente em número suficiente para vos defender e nada tem maior valor que o afeto. Ficai aqui e esperemos pelo desenrolar dos acontecimentos... Até pode acontecer que não tenhais de ir embora.
- Oxalá assim fosse! - suspirou Sylvie quando Renaudot os deixou, depois de lhes declarar que afinal de contas a Gazette esperaria até à semana seguinte para falar sobre Laffemas. - E eu que sonhava viver doravante ao pé de vós, nesta casa que tanto amo, e dedicar-me à vossa pessoa como uma filha deve fazer pelo pai que ama!
- Minha pequena Sylvie, não deveis ter a pretensão de saber o que o futuro nos reserva. Esse futuro, quanto a mim, vejo-o, sinto-o, como sendo muito mais auspicioso. Já vos haveis esquecido do vosso amigo Jean?
- Como esquecer alguém tão encantador? A propósito, onde é que ele está agora? Gostaria de o ver!
- A esta hora deve estar algures entre Lyon e Perpignan, na companhia do Rei.
- Oh! Já se foi embora?
Na sua voz havia uma nota de tristeza que obrigou Perceval a sorrir.
- Já, mas não para combater o inimigo. Foi pedir ao Rei que libertasse a futura duquesa de Fontsomme da Bastilha...
O rosto de Sylvie passou de cor de cor-de-rosa a vermelho.
- Mas... eu não me lembro de ter aceite...
- Não, claro que não, e sempre podeis proclamar mais tarde que voltastes atrás na vossa palavra, mas pensai um pouco no estatuto que vos traria um tão grande título! Laffemas passaria a só poder ver-vos de muito longe e poria a cabeça em risco se tentasse uma aproximação mal-intencionada. E, além disso... minha querida menina... creio que nenhum homem vos amará como esse vos ama. Ele pertence-vos de corpo e alma e não vos reclama nada...
- A não ser a minha mão e a minha pessoa...
- Devíeis ter-me deixado acabar a frase... a não ser aquilo que lhe quiserdes dar. Está ao corrente de tudo por que haveis passado. Tudo, compreendeis-me bem? Como já vos tinha dito, contei-lhe tudo.
- E ainda quer fazer de mim uma duquesa? Que loucura! Eu nunca saberia...
Perceval desatou a rir:
- Isso não exige nenhuns conhecimentos especiais e, além disso, haveis frequentado o meio da Rainha... Tenho a certeza de que ela ficaria muito feliz em voltar a ver a sua “gatinha”, mesmo coroada por um ramo de flores...
- A Rainha! - Desde há algum tempo que Sylvie deixara de pensar nela, talvez por pensar que François, agora todo entregue a Mme. de Montbazon, deixara finalmente de a amar.
- Já há tanto tempo que não a vejo. Como é que ela vai?
- Quem? A Rainha? Pessoalmente, acho-a mais bela que nunca. A segunda maternidade desabrochou-a mais do que se poderia imaginar. Na realidade...
- Estais a tentar dizer-me que não obstante a sua... relação, ele ainda a ama?
- Sylvie, abandonai esse ar enfadado! Sim, penso que ele ainda a ama, atendendo a uma certa pose que deixa transparecer quando fala dela...
- Então, havei-lo encontrado?
- Sim, ele veio dar-me algumas recomendações, antes de ir ter com o pai... Sylvie!: está na hora de encarardes as coisas de frente. Bem sei que sempre o haveis amado, mas já não sois uma rapariguinha e deveis saber que ele nunca será vosso. Portanto, não desperdiceis a vossa vida devido a um sonho!
- Um sonho!... Precisamente, há noites em que sonho que estamos juntos, que ele só me pertence a mim e que nos encontramos a sós num belíssimo local, que conheço tão bem: Belle-Isle! Desde que me fui embora de lá, algo me diz que um dia é aí que esperarei por ele e é aí que ele virá ter comigo...
- Sylvie! Sylvie!... É muito raro que não projetemos em sonhos aquilo que mais ardentemente desejamos, e eu queria tanto ver-vos feliz!...
- Sem ele, é difícil!
- Mas será que é impossível...?! Pensai que um belo dia eu já cá não estarei e que o meu sonho é deixar-vos entre mãos leais e bondosas, senão... o mais belo dos paraísos parecer-me-á um inferno!
Sylvie levantou-se da cadeira, veio colocar-se atrás da de Perceval e passou-lhe os braços em volta do pescoço, para encostar a cara à dele. Ele tinha um ar tão infeliz, que sentiu vergonha por se mostrar tão intransigente, tanto mais que achava que ele tinha razão.
- Padrinho, prometo-vos que pensarei no assunto! De qualquer modo posso dizer-vos o seguinte: um dia forçaram-me a aceitar um esposo abominável. Na altura em que este me obrigava a enfiar o anel no dedo, não era em François que eu pensava, mas sim em Jean! Portanto, prometo-vos que se estiver escrito nas estrelas que eu tenho de me casar um dia, nunca o farei com outro homem!
Perceval sentiu-se então menos triste e ficaram ali os dois, a desfrutar o calor de uma ternura novamente comprovada...
A SOMBRA DO CADAFALSO
As semanas que se seguiram foram muito calmas para os moradores da rua das Tournelles. Laffemas oscilava entre a vida e a morte e o Cardeal, instalado no outro extremo do reino, tinha mais em que pensar. Enquanto o Rei, que ressuscitara verdadeiramente, iniciara com brio o cerco a Perpignan, cujas peripécias podiam ser seguidas diariamente na Gazette graças aos relatos que ele próprio escrevia, por sua vez o Cardeal ficara na retaguarda, em Narbonne, lutando não só contra um recrudescimento de abcessos e de úlceras, como também contra a Rainha. Depois de ter obtido do Rei o chapéu de Cardeal para o seu fiel Mazarin, que o recebeu esfuziante de alegria, os seus espiões vieram informá-lo sobre uns rumores estranhos relativos a uma conspiração, à cabeça da qual se encontravam Ana de Áustria, Cinq-Mars, o rei de Espanha e Monsieur, irmão do Rei. A sua reação foi imediata: uma vez que Ana de Áustria ainda não compreendera que uma rainha de França não conspira contra o reino que o próprio filho vai herdar, iria retirar-lhe a guarda das crianças. O resultado não se fez esperar: perante a ameaça de um grave perigo que podia concretizar-se no repúdio e no exílio e, talvez ainda, na perspectiva de ter de morrer de miséria nalgum canto da Alemanha, como acabara de acontecer a Maria de Médici, que não obstante era mãe de Luís XIII, Ana sentiu-se obrigada a procurar reaproximar-se do Cardeal que, por sua vez, se contentou apenas em enviar-lhe Mazarin “para ser cumprimentado por ela por ocasião do seu cardinalato”.
Que conversa poderiam ter tido? Não se sabe, mas grande era o poder de persuasão daquele homem, cuja capacidade de sedução a Rainha não negava. O resultado dessa longa conferência apareceu, numa bela manhã, na mesa de trabalho de Richelieu, sob a forma de um dos três exemplares do tratado que fora secretamente assinado entre Frontailles e o duque de Clivares no mês de Março e segundo o qual, após o assassinato do Cardeal, se deveria entregar a Espanha todos os locais conquistados a norte, a leste e a sul da França, enquanto a Rainha, que entretanto seria regente, pois suponha-se que Luís XIII não tardaria a seguir o seu ministro a caminho do túmulo, reinaria com o apoio eficaz de Monsieur e receberia chorudas quantias à laia de compensação pela devolução dos ditos locais... M. de Cinq-Mars receberia então o posto de Primeiro Ministro, desposaria Marie de Gonzague e os exilados seriam todos convidados a regressar, festejados sob uma chuva de ouro. Era indiscutivelmente a maior conspiração jamais urdida contra Richelieu mas, sobretudo, contra a própria França. Quando a Rainha entregou o tratado a Mazarin, este sentiu que a sua testa ficava inundada de suor frio:
- Nunca poderei agradecer devidamente a Vossa Majestade por ter compreendido onde estava o vosso dever - murmurou. - Se a Rainha quiser que Monsenhor, o Delfim, venha um dia a reinar, já está na altura de aprender a tornar-se francesa!... Sua Eminência sabe o que ficará a dever a Vossa Majestade.
Pelo seu lado o Cardeal não revelou nenhuma reação. O cerco de Perpignan soldara-se por uma retumbante vitória e o Rei foi ao seu encontro, coberto de glória. Chegaria no dia seguinte a Narbonne, onde dormiria no arcebispado. Richelieu contentou-se em entregar o exemplar do tratado ao seu fiel Chavigny:
- Logo que o Rei se tiver levantado, entregar-lhe-eis isto. Se, mesmo assim, ele não acreditar na culpabilidade de M. Lê Grand, então ireis ter com este e pedir-lhe-eis que vos entregue o seu próprio exemplar.
O Rei sentiu-se tanto mais atingido pela vilania do seu favorito, desse jovem tão belo a quem concedera tão distinta posição, porquanto o seu encontro secreto com Marie de Hautefort acabara mal. Indignado por ela ter tido a audácia de atacar Cinq-Mars e convencido que estava apenas motivada pelo desejo de vingança, ordenou-lhe que voltasse para La Flotte e que não saísse mais de lá. Desta vez a evidência dos fatos dividiu-o. Porém, não hesitou: emitiu imediatamente uma ordem de prisão em nome de Cinq-Mars, de De Thou, de Frontailles e dos restantes conjurados, enquanto Chavigny ia ao encontro de Monsieur para lhe dizer umas quantas verdades.
- Vossa Alteza está de tal forma comprometido que Sua Eminência nada vos pode garantir. É a vossa própria vida que está em jogo...
Gaston d’Orleans, que empalidecera, não perdeu um segundo para começar a defender a sua causa.
- Chavigny, tendes de me tirar da alhada em que estou metido. Já o fizestes por duas vezes junto a Sua Eminência, mas prometo-vos que esta será a última.
- Só vos resta uma alternativa, confessar tudo...
O irmão do Rei, tão cobarde como de costume, não pedia melhor e passou logo às confissões, descarregando as culpas naqueles que o tinham seguido, até no próprio duque de Beaufort que, contudo, se recusara a participar no conluio. O segundo exemplar do tratado acabou pois por juntar-se ao primeiro na mesa do Rei, dissipando as últimas dúvidas, já de si bem tênues, às quais o infeliz ainda se tentava agarrar. Ficou de tal modo desfeito que adoeceu, mas não tentou impedir que a justiça seguisse o seu curso...
A notícia da prisão de Cinq-Mars e de François-Auguste de Thou teve o efeito de uma bomba no castelo de Vendôme, onde Beaufort, depois de um belo dia de caça se decidira a festejá-lo alegremente na companhia dos seus gentis-homens e amigos. A chegada do mensageiro - um dos correios da duquesa que viera de Paris a toda a brida - provocou o efeito de uma ducha gelada no meio daquela juventude exuberante: a duquesa, efetivamente, rogava ao filho que fugisse.
Nela escrevera:
“Sabe-se que decorreu uma reunião em vossa casa, na qual, mesmo que os chefes não tivessem estado presentes, compareceram, pelo menos, os seus mandatários. Mesmo que não tivésseis prestado uma ajuda a essa conspiração, a essa loucura - e disso estou eu certa! - nem por isso deixais de estar gravemente comprometido neste caso. Diz-se que ainda há cabeças que vão rolar e a vossa, meu filho, é-me infinitamente querida! Para o que der e vier tentai também prevenir o vosso irmão Mercceur, que está em Chenonceau mas, suplico-vos, ide-vos embora de Vendôme antes que seja demasiado tarde!”
Eliminada toda a alegria, foi com fúria que François amarrotou a carta da mãe:
- Fugir! Quando a minha honra não está em nada comprometida? Quando me recusei a colaborar com a Espanha, mesmo para acabar com o Cardeal? Nunca!
- Monsenhor - argumentou Ganseville - parece-me que deveríeis pensar duas vezes no assunto. Vossa mãe, a senhora duquesa, não é pessoa para entrar em pânico sem qualquer motivo e também sabeis até que ponto o Cardeal vos odeia a todos. Quaisquer que possam ser os vossos desmentidos, uma falsa denúncia pode enviar-vos para o cadafalso. Se o Rei entrega o próprio favorito à vingança do seu ministro, há tudo a recear... O fato de serdes seu sobrinho nada muda, pois ele nem sequer vos ama metade do que ama a Cinq-Mars. Deixai-me mandar arrumar as bagagens e preparar os cavalos!
Todos os presentes aderiram a este pedido, mas Beaufort persistia:
- Fugir - repetia - é dar-me como culpado e eu nada tenho a confessar...
- Vosso pai, o senhor duque, mostrou-se mais sensato - interrompeu Henri de Campion, antigo gentil-homem do conde de Soissons, que aderira ao partido dos Vendôme. - Porém, estava tão inocente quanto vós. E não podeis negar o fato de haverdes acolhido aqui os emissários dos conjurados...
Contudo, François obstinou-se. Não queria ir-se embora e quando, no dia seguinte, seguia no encalço do rasto deixado por um veado a sul da cidade, viu subitamente chegar um cavaleiro coberto de pó, na figura do qual, sob o chapéu de feltro com penas, descobriu, abismado, Mme. de Montbazon, que nem sequer lhe deu tempo para abrir a boca:
- Desgraçado, que estais aqui a fazer? Sois louco? Tenho apenas duas horas de avanço sobre M. de Neuilly, gentil-homem do Rei, que vos traz uma carta redigida por este. É preciso fugir e depressa!
Beaufort retirou do bolso um lenço de renda que passou delicadamente pelo rosto sujo da sua amiga.
- Mas que cavaleiro encantador! - suspirou, com um sorriso. - Como fazeis para vos conservardes tão bela, mesmo nestas circunstâncias?
Queria pegar-lhe na mão para a beijar, mas ela retirou-a.
- Perdestes o juízo? François, o que digo é muito grave e não só estou aqui para vos prevenir, mas também porque decidi partir convosco...
- O quê? Estais disposta a comprometer-vos a esse ponto?
- Comprometida já eu estou. Não nos escondemos nada um ao outro. Além disso, haveis-vos esquecido que eu também estava presente nessa famosa reunião, mesmo que não tivesse pronunciado nem uma palavra?! Vinde, vamos preparar depressa a nossa partida! Precisamos de cavalos frescos e...
- Não precisamos de nada. Vou voltar a casa, claro... mas para ir para a cama.
- Para a cama? Mas que contais fazer?
- Fingir que estou doente. Acreditai-me que M. de Neuilly me irá encontrar num estado lastimável.
- Vós, doente? Mas já olhastes bem para vós? Estais com ótimo parecer, transbordais de saúde! Até um cego não acreditaria em vós...
- Já vereis. Regressemos. Tendes grande necessidade de tomar banho e de pôr roupas novas.
Pelo caminho explicou-lhe como tencionava recorrer a um certo elixir que lhe fora entregue, juntamente com outros, por um velho médico de Provence que encontrara ao visitar, com o irmão, o seu principado de Martigues. Para sarar as suas feridas, esse velho, que pretendia descender de Michel de Notre-Dame, dera-lhe unguentos que se tinham revelado eficazes e também um certo licor à base de ervas, capaz de “sustentar os ânimos e de revigorá-los quando eles enfraqueciam” e, por fim, um elixir destinado a desencadear uma rápida irrupção cutânea, de manchas e placas vermelhas “bem adequadas para dar a ilusão de estar acometido por um grave mal, sem que a saúde fique afetada”.
- Porque motivo é que ele vos entregou esse elixir? - perguntou Marie de Montbazon. - Parece-me um bem curioso presente...
- Ele disse-me que essa água, ao conferir-me a aparência de um doente contagioso, poderia afastar os meus inimigos e, em certas circunstâncias, salvar-me até a própria vida. Creio que chegou esse momento.
- Isso não me agrada lá muito. E se for um veneno?
- Por que diabo me daria ele um veneno, quando todos os seus outros presentes se revelaram tão benéficos?
Nada o pôde demover deste seu projeto e quando o mensageiro real se apresentou no castelo, fizeram-lhe saber que o senhor duque estava muito doente, o que não pareceu transtorná-lo por aí além:
- A ponto de não poder ler uma carta? - retorquiu. - E tenho de entregá-la em mão própria - acrescentou, perante o rosto circunspecto de Brillet que, entretanto, estendera respeitosamente uma mão a fim de a receber. Este último inclinou-se numa reverência e disse:
- Senhor, nesse caso tereis de assistir a um espetáculo bem triste...
Na realidade, o elixir do médico de Martigues produzira um efeito inesperado. Estendido numa cama em desordem, com a camisa bem aberta no peito, Beaufort parecia debater-se com um ataque de sarampo. Não havia parte nenhuma do seu rosto, pescoço ou corpo, que não estivesse coberta por manchas encarnadas de muito mau aspecto. À cabeceira, Marie de Montbazon soluçava, com o nariz enfiado no lenço.
- Que me deseja o Rei? - perguntou François, com uma voz abatida.
- É o que esta carta vos dirá, monsenhor. Creio que ele requer a vossa presença...
- Nesse caso, senhor, tende a amabilidade de a ler, pois eu não vejo nada! Era isso que causava as lágrimas de desespero da duquesa. O efeito da água milagrosa revelava-se mais espetacular do que se imaginara, salvo para o pretenso doente... que mergulhara numa cegueira total que não parava de aterrorizá-lo. Se aquele estado permanecesse por muito mais tempo, Beaufort acabaria por confessar tudo o que quisessem para que o executassem o mais depressa possível.
O mensageiro real deve ter achado aquilo tudo muito exagerado pois tirou uma faca do cinto e, sem dizer nada, aproximou-a com vivacidade dos olhos de François, que nem sequer pestanejou. Neuilly ficou convencido:
- Perdoai-me, monsenhor, mas as ordens do Rei são estritas. Vou ler-vos a carta que ele escreveu.
A priori esta nada continha de inquietante: “Fomos informados” escrevia Luís XIII “que M. Lê Grand buscou a vossa adesão para um lamentável projeto e que haveis recusado a vossa participação, pelo que vos prometo o esquecimento deste caso, se vierdes o mais depressa possível ao nosso encontro, a fim de nos participar tudo o que sabeis sobre este assunto...” No entanto, para quem soubesse ler nas entrelinhas, tratava-se na verdade de uma séria ameaça. Beaufort suspirou:
- Senhor, como o podeis constatar, por ora não me é possível obedecer às ordens de Sua Majestade mas, logo que me sinta melhor, com a ajuda de Deus irei ter com o Rei. Entretanto, senhora duquesa, rogo-vos que M. de Neuilly seja tratado como é devido a uma pessoa do seu estatuto e ao daquele que representa...
No dia seguinte, o mensageiro, muito desconcertado por tudo o que vira, partiu para Tarascon, onde se encontrava Luís XIII, deixando atrás de si os habitantes de Vendôme que não paravam de assediar Beaufort, que saíra entretanto da cama, mas apenas para se instalar numa poltrona, pois continuava cego. Além de Marie, de Henri de Campion, de Vaumorin e dos seus amigos, os seus escudeiros, Ganseville e Brillet e o próprio M. du Bellay suplicavam-lhe que fugisse:
- Este homem vai voltar argumentava a jovem e da próxima vez virá talvez à cabeça de um grupo armado. Meu amigo, é preciso fugir!
- Fugir, quando estou cego?! Nem me faleis nisso, se não puder recuperar a vista, prefiro morrer...
- Não sejais tolo! Suponho... enfim, quero acreditar que havereis de recuperar a vista logo que esse maldito elixir deixar de fazer efeito. Entretanto permiti que um dos vossos amigos vá preparar os locais de muda até ao Sena, de onde podereis embarcar para vos juntardes ao duque César.
- Vou pôr-me imediatamente a caminho - disse Henri de Champion. - Vou requisitar um navio no Havre e esperar-vos-ei em Jumièges mas, se me permitis, senhora duquesa, deixai-o ir sozinho! O escândalo seria enorme se se ficasse a saber que fostes com ele e isso iria ainda acrescentar mais peso às razões, para além das que possam existir, tendentes a acusá-lo, causando-lhe ainda mais problemas...
- Ainda não decidi se me vou embora - explodiu François. - Afinal, quem dá ordens aqui?
- Vós, monsenhor... enquanto tiverdes capacidade para tal - disse Ganseville - mas nós, que vos amamos, estamos dispostos a combater por vós e a salvar-vos, independentemente da vossa escolha.
- Mas até agora não há nada que me diga que o Rei me queira algum mal!
- Também era esse o caso em 1626, quando ele convocou o duque César a Blois, onde, afinal, acabou por metê-lo na prisão com M., o Grande Prior - lembrou por sua vez Vaumorin. - Deixai partir Campion e pedi à senhora duquesa que regresse a sua casa. Ninguém ficará espantado se estiver em Montbazon, mas se ela se for embora convosco...
- Eles têm razão, meu amigo - disse a jovem, prestes a chorar. - Custa-me muito abandonar-vos, mas amo-vos demasiado para que não deseje, antes de mais, o vosso próprio bem.
- Minha terna amiga - murmurou Beaufort, comovido. - Dizer que não poderei mais ver-vos! Fazei como vos aprouver, mas ficai sabendo que só partirei se Deus permitir que leve comigo a imagem desse rosto maravilhoso...
- Esperemos que Ele se apresse, pois o nosso tempo está contado!
Portanto, Henri de Campion partiu sozinho, enquanto os outros por lá ficaram, revezando-se, à espreita do menor sinal de esperança. O resto do tempo era passado na colegiada de S. Jorge, implorando ao Céu que tivesse piedade daquele homem que todos estimavam. As manchas vermelhas começavam a desaparecer, mas a cegueira parecia querer persistir quando, na noite do quarto dia, depois de Henri se ter ido embora, Beaufort pulou subitamente da cadeira:
- Vejo! - gritou. - Já vejo! Deus Todo Poderoso, tivestes misericórdia, quando eu recorri a uma mentira! Abençoado seja o Vosso Nome!
E caiu de joelhos para rezar uma prece fervorosa, enquanto em redor dele tudo parecia renascer. Uma hora depois, entusiasmado por ter escapado às trevas e por se encontrar entre os vivos, François, acompanhado por Vaumorin, Ganseville, Brillet e pelo seu criado de quarto, transpunha a todo o galope a porta de Vendôme, rumo ao vale do Sena. Das janelas do castelo, Marie viu-o ir desaparecendo por entre as sombras azuladas daquela noite já estival. Quando amanhecesse, ela regressaria a casa, parando primeiro em Montbazon. Sentia-se aliviada ao saber que François fugia rumo à liberdade. Todavia não conseguia deixar de se sentir um pouco triste, ele não insistira muito para conservá-la ao pé dele. Nada mesmo, enquanto ela estava disposta a enfrentar escândalos, a deixar tudo para trás, a fim de lhe consagrar o resto da sua vida; mas também era suficientemente experiente para saber que salvo raras exceções, em matéria de amor há sempre um que ama mais do que o outro. Naquele caso era ela, apesar de nos momentos íntimos ele revelar-se o mais fogoso, o mais ardente dos amantes. E ela esperara-o tanto tempo e numa altura em que Paris inteira dizia que pertenciam um ao outro, não sendo esse o caso! Finalmente, tinham-se unido numa bela noite e ela fora intensamente feliz. Por fim, ele pertencia-lhe! Jurara então que não mais o deixaria escapar mas, para isso, era preciso que durasse o entendimento mágico entre os seus corpos.
- Enquanto eu for bela! - murmurava frequentemente, ao estudar ao espelho o seu rosto encantador e o seu corpo sem defeitos. Enquanto for bela, mas... e depois?
Alguns dias mais tarde, Beaufort voltava finalmente a encontrar a ondulação e a vastidão do mar, de que tanto gostava. Não sem dificuldades, aliás. Ao chegarem ao Havre esperava-os uma decepção: o navio que Campion fretara tivera de se pôr ao largo devido a uma tempestade que arrancara a sua âncora. No entanto, estava fora de questão que permanecessem no mesmo lugar para prepararem nova passagem para Inglaterra, tal como o próprio duque de Longueville, o homem que este encarregara do governo da cidade fazia parte dos inimigos de Beaufort. Vaumorin propôs então que se retirassem até Franqueville, próximo de Yvetot, onde contavam com um amigo, M. de Mémont. Aí tomaram novas disposições e foi em Yport, próximo de Fecamp, que o pequeno grupo pôde finalmente embarcar, com o alívio que se imagina. Continuando a clamar a sua inocência, François deixara atrás de si uma carta endereçada ao Rei, seu tio, na qual explicava, muito respeitosamente, qual a sua posição:
- “Ao ter de negar a acusação de Vossa Majestade, teria perdido o respeito que lhe devo e, ao mesmo tempo, teria incorrido na sua cólera; confessando uma culpabilidade que não reconheço, teria atentado à minha consciência e à minha honra. Estas respeitosas considerações estão na origem da minha ida para Inglaterra onde vou visitar o Senhor, meu pai...”
Contudo, logo que encontrou César em Londres, lastimou a sua fuga. À volta deste agrupavam-se todos os descontentes do reino, verdadeiros e falsos conspiradores, aos quais unia um idêntico pesar por aquilo que tinham abandonado para porem as suas vidas a salvo. Entre ele figurava Fontrailles, o homem que estava na origem do tratado feito em três exemplares e que fazia pairar a sombra do cadafalso sobre tanta gente. Tal como os outros, levava uma bela vida, ganhando ou dissipando ao jogo tudo o que possuía, com uma desenvoltura que irritou Beaufort:
- Não vos havia já prevenido que seria um erro crasso tratar com a Espanha? Vede o resultado: Cinq-Mars está preso, bem como De Thou, que se envolveu por amor à Rainha, que está agora comprometida, a ponto de se encontrar talvez em perigo, e eu e os meus, fomos obrigados a fugir por um disparate que não cometemos...
- Meu caro, isso faz parte do jogo das conspirações. Se elas forem bem sucedidas a nós a glória, se elas falharem é cada qual por si. Confesso ainda não ter percebido como é que Richelieu foi posto ao corrente de cada artigo do tratado. Era preciso que tivesse entrado em posse de um dos exemplares... ora, só havia três. Nesse caso, qual deles? O de Monsieur ou o da Rainha?
- Não disponho de qualquer meio para responder a essa pergunta, mas tremo por aqueles que ficaram à disposição de Richelieu... e do seu carrasco - acrescentou, evocando mentalmente o homem que mais detestava no mundo e cujo ferimento ainda não era do seu conhecimento. Curiosamente houve uma outra imagem que veio varrer a do tenente civil, e essa imagem foi a de Sylvie.
Nos últimos tempos, sempre que lhe acontecia pensar nela, apressava-se em erradicá-la do pensamento, movido pela mesma cólera que sentira em La Flotte, ao descobrir que ela rejeitara o asilo que ele lhe propusera, para se lançar em aventuras com aquela louca da Marie de Hautefort. Nessa altura, jurara a si mesmo afastar-se para todo o sempre daquela pequena ingrata e, até agora, conseguira-o. Então, por que motivo lhe surgia agora aquela imagem que, irrompendo pela neblina do Tamisa, parecia animada pela sua frágil graciosidade e por aqueles grandes olhos dourados, que tanto brilhavam sempre que o encaravam? Mais uma vez quis arredá-la, para evocar o belo rosto da Rainha, o seu amor de sempre e, também, o de Marie, graças a cuja paixão se podia sentir feliz. Contudo, a imagem de Sylvie persistiu e assenhoreou-se do lugar. Então ele deixou de resistir e deixou-se embalar pelo prazer um pouco melancólico das recordações da adolescência e dos dias felizes que descobria agora tão próximos de si, quando os julgava ter enterrado para sempre nas profundezas da sua memória. Quando se pôs a recordar os dias de antanho em Chantilly, onde tanto se esforçara por raptar a Rainha, até se lembrou dos versos de Théophile de Viau:
Ao olhar para Sylvie pescando
Via os peixes entre si lutando
Para saber qual o primeiro
A oferecer sua vida
Em honra de tais anzóis...
François pôs os seus pensamentos melancólicos de lado, chamando-se a si mesmo de imbecil. Não tinha ele de resolver problemas que chegassem, para se pôr ainda à procura dos de uma pequena idiota? E para se certificar que pusera um termo àquele assunto deprimente, foi ter com a alegre banda que gravitava à volta do duque César e embebedou-se copiosamente, depois de ter proposto uma série de brindes à bela duquesa de Montbazon, na qual só se pusera a pensar depois de ter emborcado o primeiro copo. Uma maneira como outra qualquer de fazer descansar a sua consciência!
Jean de Fontsomme regressara à rua das Tournelles com uma mão cheia de boas notícias e de outras menos boas. Quase se esqueceu de tudo quando, ao saltar em andamento do cavalo, avistou no patamar da entrada Perceval de Raguenel, que viera acolhê-lo com uma mão pousada no ombro de Sylvie. Só pensara nela enquanto galopara desenfreadamente pela França fora, nos cavalos dos correios, encarregando depois o seu escudeiro de devolvê-los. Receava que a estadia de Sylvie na Bastilha lhe tivesse deixado graves sequelas.
Ora estava agora a vê-la, não só conforme a imaginara, mas ainda mais deslumbrante. Como se tivesse querido apagar o tempo, ela trazia o mesmo vestido de outrora, de um amarelo cor do Sol bordado com pequenas flores brancas, e as fitas que prendiam a sua brilhante cabeleira eram semelhantes àquela que ela lhe havia um dia entregue e que ele guardava sempre junto ao coração. Ficou tão maravilhado que quando ela lhe estendeu a mão, ajoelhou sobre uma perna para a receber, tal como um cavaleiro o teria feito outrora.
Contudo, desembaraçado da sua antiga timidez, apenas guardou para Perceval as “boas notícias” de que era portador. Era verdade que havia um mundo de diferença entre pedir ao Rei que lhe devolvesse a sua “noiva”, e anunciar a esta a quem não dera por achada no assunto que lhe estava prometida.
Adivinhando o que se passava na cabeça do jovem, Raguenel começou por convidá-lo para jantar e, em seguida, despachou Sylvie para a cozinha a fim de prevenir Nicole e de a ajudar a dar àquela refeição um ar de festa, conseguindo, por último, convencer Jean a que o seguisse para se desembaraçar da poeira que apanhara pela estrada e para se refrescar.
- Então, meu amigo, que é feito da vossa demanda? - perguntou, quando o jovem, barbeado, lavado, penteado, escovado e com um copo de vinho de Voudray na mão se sentou finalmente no gabinete, à sua frente. - O Rei deu-vos satisfação?
- Para lá de todas as esperanças, cavaleiro. Lede!
Tirou do colete uma carta com um pequeno sinete em cera verde, que era a marca privada de Luís XIII. Perceval desdobrou-a e leu-a, passando rapidamente por cima da terminologia oficial do começo: “Pela graça de Deus, nós[19], rei de França, décimo terceiro Luís, etc.” para chegar mais depressa ao âmago do assunto:
“É com grande prazer e por nossa vontade que a nobre menina, até agora conhecida como Mlle de L’Isle, seja liberta da nossa fortaleza da Bastilha e possa encontrar ao pé da nossa esposa bem-amada, Sua Majestade, a Rainha, o lugar que outrora ocupou e que continuará a ocupar até ao seu casamento, etc.”
Sem dizer nada, mas com um brilho de gozo a bailar no canto do olho, Perceval devolveu a carta real ao seu possuidor que, em vez de a guardar, a deixou em cima da mesa, juntamente com uma outra, que era a ordem de libertação dirigida ao governador da Bastilha.
- Oh, agora podeis guardar isso tudo. Já não serve de nada!
- Por Sylvie ter saído de prisão sem a vossa ajuda?
- Com certeza. Tinha pensado...
- ... que, louca de alegria por se ver desse modo liberta, ela cairia imediatamente nos vossos braços, o que seria um auspicioso começo para a segunda parte do programa que o Rei concebeu...?
Fontsomme corou, mas não baixou os olhos.
- É verdade. Fiquei muito feliz ao vê-la convosco... e, também, muito desiludido. O que vos vai dar uma bem pobre idéia do amor que sinto por ela visto que, inconscientemente, eu estava a desejar que ela sofresse durante mais algum tempo... Oh! que coisa tão indigna!
- Mas tão natural! - riu-se Perceval. - Haveis constatado que Sylvie ficou encantada ao encontrar-vos. E o que lhe trazeis não é nada de negligenciar - acrescentou, retomando a sua seriedade. - Ela agora tem a possibilidade de retomar o seu lugar, o seu estatuto, de voltar a ser ela própria, e isto com a aprovação de todos, pois foi o próprio Cardeal que mandou que a libertassem. O que é importante, pois acontece frequentemente que Richelieu venha a corrigir ou, até, por vezes, a anular uma ordem do Rei, deixando as explicações detalhadas para mais tarde...
- É verdade, mas não tenho a impressão que seja este o caso. Enquanto o Rei redigia a carta, fiquei com a impressão que estava a sentir um maligno prazer em contrariar o ministro. O nosso Senhor está muito infeliz por ter sido obrigado a mandar que prendessem Cinq-Mars. As provas da traição eram por demais concludentes, mas não creio que ele se tivesse mostrado tão severo caso se tivesse apenas tratado de uma tentativa para assassinar apenas o Cardeal. Em primeiro lugar, porque isso acontece frequentemente e, em segundo, porque há alturas em que todos nós nos perguntamos se, do fundo do coração, o Rei não desejaria afinal ver-se liberto de um homem cujo gênio político tanto admira, mas que tanto o sufoca.
- De qualquer modo vamos informar Sylvie quanto às boas medidas que o Rei tomou a seu respeito. O melhor seria que fosseis fazer uma visita à Rainha para lhe revelar finalmente toda a verdade acerca daquela a quem esta chamava a sua “gatinha”...
- Não creio que seja uma boa idéia. Não consigo prosseguir com esta farsa acerca do nosso casamento. E, depois, seria um modo muito grosseiro de forçá-la... Além disso... não tenho a certeza de que gostaria de vê-la novamente implicada no meio das intrigas da Corte e presente no meio daquele enxame de damas de honor onde, sem a presença de Mlle. de Hautefort, ela poderia vir a sentir-se muito infeliz.
- Eu também, e quase jurava que Sylvie se inclina para o nosso lado. Ela nunca concordará em voltar para junto das damas de honor. Para bem do seu futuro preferiria, contudo, que ela ficasse novamente sob proteção da Rainha.
- Depois de tudo o que lhe aconteceu?
- Sim. Vou explicar-vos como é que ela voltou para aqui e como escapou à armadilha que lhe teceu Mlle de Chémerault...
Acabada a sua narração, Perceval concluiu:
- Confesso ter pecado por egoísmo ao não enviá-la de volta ao convento, mas estava tão feliz por tê-la de volta! Claro que também teria podido enviá-la de volta a Mme. de Vendôme, mas receio que tal proteção já não lhe seja de grande utilidade...
Jean de Fontsomme, que escutara o seu hospedeiro enquanto caminhava de um lado para outro, para combater a sua indignação, parou subitamente.
- As más notícias que trago dizem precisamente respeito a essa casa infeliz e, estando ao corrente dos sentimentos da vossa afilhada, preferia contá-las apenas a vós.
O jovem duque explicou então que antes de vir ao seu encontro, passara pelo hotel de Vendôme, para oferecer os seus préstimos à duquesa e à filha. Estivera ao pé do Rei quando fora emitida uma ordem de prisão em nome de Beaufort e pusera-se logo à disposição daquelas duas senhoras de quem tanto gostava.
- Se bem que não se sintam ameaçadas pelas ordens do Rei, preferiram retirar-se por uns tempos para o convento das Capuchinhas, onde recebem frequentes visitas de monsenhor de Lisieux, do senhor Vincent, e do abade de Gondi, o novo coadjutor do arcebispo de Paris. Estão calmas e serenas. Disseram-me que M. de Beaufort foi para Inglaterra. Quanto a Mercoeur, que não se encontra implicado nesta história, esse continua em Chenonceau. Deste modo saí de lá mais sossegado.
- Gostais assim tanto do duque François? - perguntou Raguenel, de uma forma um tanto ambígua.
- Eu sei que Sylvie o ama e confesso que se não fosse ela existir, gostaria de poder ser amigo dele. Mostra uma tal franqueza, uma tal bravura! Um pouco estouvado, mas que lealdade! É uma insensatez que possa ser acusado de conluio com a Espanha! Trata-se de um homem que nasceu no século errado: na época das Cruzadas teria, só por si, conquistado a Terra Santa. Espero que não acalente a idéia de regressar a França enquanto Richelieu ainda for vivo, pois tem a cabeça a prêmio.
- Tivestes razão em vir falar primeiro comigo. Sylvie imagina que o seu amigo de infância está em Vendôme, ocupado em desfrutar calmamente a sua paixão com Mme. de Montbazon. Isso entristece-a; tanto melhor! Se ela souber que ele foi proscrito, que corre perigo de morte, isso devolver-lhe-ia todo o ardor de um amor que eu gostaria de ver definitivamente limitado ao papel a que está atualmente restringido.
O jantar que se seguiu foi deveras agradável. Sylvie corou ao saber que o Rei desejava que regressasse à Corte, mas recusou-se a voltar para o pé das damas de honor.
- Tenho muito receio de contar agora com muitas inimigas entre elas e não me iria sentir à-vontade sem a presença de Marie de Hautefort. Mas, caro amigo, contai-me, que haveis feito para interessar o Rei dessa maneira pela minha modesta pessoa?
- Éreis a vítima de uma grave injustiça e...
- É escusado começar com justificações - interrompeu Perceval. - Eu contei-lhe a que título fostes reclamar a sua libertação.
Foi a vez do jovem corar.
- Fiz tudo quanto estava ao meu alcance para obter a vossa liberdade, mas suplico-vos que acrediteis que não existe qualquer compromisso a meu respeito. Se as próprias núpcias oficiais podem ser rompidas, ainda é mais fácil quando elas não existem. Mais tarde poderemos dizer ao Rei que... mudamos de opinião. O importante é que possais esquecer esse vosso pesadelo e que possais reintegrar o grupo que frequenta a Rainha.
A mão de Sylvie veio pousar-se sobre a do jovem:
- Que estais para aí a dizer? Sabeis que muito vos amo e que me sinto tremendamente grata por haverdes recorrido a esses meios para resolver a minha situação. Não antecipemos o futuro. Talvez venha um dia a conceder-vos a minha mão, mas ainda é muito cedo; eu preciso de saber quem sou realmente e vós, vós mereceis um coração que vos pertença por inteiro!
- Um modesto lugar no vosso, mesmo que fosse pequenino, seria preferível a outro qualquer. Apenas vos solicito o privilégio de zelar pela vossa integridade...
Para a Gazette, nesse fim de Verão, não era o número de exemplares impressos que suscitava qualquer problema e o redator ia quase todas as noites a casa do seu amigo Raguenel para comentar as notícias do dia. A execução de Cinq-Mars e a de de Thou em Lyon causara um enorme alarido, que quase relegara para segundo plano a paz assinada em Perpignan, que ligava definitivamente o Roussillon e uma parte da Catalunha à coroa de França. Era como se um gigantesco redemoinho, que principiara ao pé do cadafalso da praça dos Terreaux, se expandisse em círculos concêntricos, cada vez maiores. Foi para ele que Cinq-Mars e o seu amigo De Thou subiram, sorrindo; um, de tecido castanho enfeitado com rendas douradas, meias de seda verde e uma capa escarlate; o outro, de fato de veludo preto muito austero. Mas ambos eram tão jovens e tão belos que a multidão ficara grandemente comovida, desatando a chorar quando os dois rapazes se abraçaram, antes de colocar as respectivas cabeças no cepo.
- Diz-se que o chanceler Séguier, que fora enviado a Lyon para acompanhar o processo observou Renaudot fez tudo o que estava ao seu alcance para tentar salvar a pele do jovem De Thou, agente da Rainha nesta história, e que a sua culpabilidade não chegou a ser comprovada...
- Nesse caso, porquê uma execução capital? - perguntou Perceval.
- Porque ele sempre se recusou a acusar o seu amigo, o duque de Beaufort, mesmo ao jurar pelos Evangelhos. Antes pelo contrário, persistiu em negar que este tivesse participado nessa grande conspiração, afirmando que ele se negara a fazê-lo, assim que tomara conhecimento dela. Foi nessa altura que Richelieu exigiu que ele fosse executado, juntamente com M. Lê Grand.
- O Cardeal quer a morte de F..., de M. de Beaufort - gemeu Sylvie, que tudo ouvira ao ir juntar-se aos dois homens.
- Infelizmente é verdade, menina. Sorte a dele, a de ter conseguido chegar a salvo a Inglaterra, caso contrário estaríamos certamente agora a deplorar a execução de um príncipe francês, enquanto que Monsieur, um dos principais conspiradores, irá safar-se desta história com uma simples ordem de exílio para as suas terras. Caso se arrisque a regressar, e mesmo que esteja inocente, a cabeça de Beaufort terá de rolar.
Repleto de lágrimas, o olhar de Sylvie procurou o do seu padrinho, visivelmente embaraçado:
- Já sabíeis disto tudo?
- Sabia, mas como ele conseguiu fugir para Inglaterra, de que servia falar-vos do assunto? Já haveis sofrido quanto baste.
- Quando não me põem ao corrente de nada ainda sofro mais. Então ele foi ter com o pai... mas desta vez nunca mais poderá regressar!
Os dois homens entreolharam-se e foi Renaudot quem concluiu:
- Assim será enquanto o Cardeal for vivo... e talvez, até, o próprio Rei! - Sem dar qualquer resposta, Sylvie baixou a cabeça e, depois, saudou o gazeteiro e saiu silenciosamente; porém, voltou logo para junto do padrinho assim que Renaudot se foi embora:
- Quereis fazer-me o favor de pedir a M. de Fontsomme para me levar ao pé da Rainha, logo que puder?
- Imediatamente - inquieto, ele tentou ler naquele pequeno rosto fechado.
- Desejais regressar para junto das damas de honor?
- Não, quero apenas encontrá-la e falar-lhe. Quero que ela saiba que eu não me esqueci de nada. M. De Thou morreu por sua causa, por ela ter feito dele o seu representante numa conspiração de homens de espada, com a qual esse jovem jurista nada devia ter a ver. Depois, caso tenha compreendido bem, ao entregar o tratado foi ela própria quem o denunciou, pelo que apenas desejo lembrar-lhe que o homem que amava, o pai do seu filho, corre perigo de morte, dado que não é o estilo de pessoa a ficar muito tempo fora das fronteiras.
Ao escutá-la, Perceval, pálido até aos lábios, levantou-se da poltrona. Era a primeira vez que a jovem mencionava o terrível segredo que partilhava com Marie de Hautefort, La Porte e ele próprio. Percebeu que ela ficara transtornada pelo perigo que espreitava Beaufort e sentiu-se aterrorizado ao pensá-la capaz de tudo:
- Estais a perder a cabeça, Sylvie? Esse segredo não é vosso, é um segredo de Estado; não tendes qualquer direito a servir-vos dele, pois é daqueles que matam tão infalivelmente quanto a espada do carrasco.
- Que me importa, se for a única maneira de salvar François?
- Ele não precisa da vossa ajuda para se salvar e conheço-o suficientemente para vos afiançar que ele nunca vos perdoaria pois, ao atuar dessa forma, estaríeis a assinar a condenação à morte de todos nós, além da de Mlle. de Hautefort, da de alguns outros e talvez, até, a da própria Rainha! Aliás, onde ele está, não há nada que o ameace e incorreríeis num grande ridículo ao defenderdes a causa de um homem que neste momento deve estar a caçar raposas ou a convidar as belas damas para dançar.
Perceval nunca chegara a utilizar aquele tom ríspido com a jovem que tanto amava, mas aquela dureza era consequência do seu amor. Sofria com aquela primeira disputa que os atirava um contra o outro.
De lábios cerrados, de olhos fixos no tapete, ela nada dizia e ele sentia a sua obstinação. Fez nova tentativa, com maior brandura:
- Além disso, quereis transformar esse jovem que vos adora, Jean de Fontsomme, no instrumento da vossa vindicta? Ele declarou que éreis sua noiva, para vos libertar da Bastilha. Julgais realmente que ele poderia sair incólume da catástrofe que pretendeis desencadear? Oh, bem sei que ele até vos acompanharia a caminho do cadafalso, muito feliz por poder morrer a vosso lado...
Rodando bruscamente nos calcanhares, ela fugiu do gabinete, escondendo a cara nas mãos. Na realidade a cólera excedera-a, quando aquilo que desejava, mais do que obrigar a Rainha a conservar o seu amante, era sobretudo poder voltar a desfrutar da sua liberdade de ação no interior dos palácios reais. Desejava poder regressar ao Louvre a qualquer pretexto, a fim de recuperar o frasco de veneno que o duque César lhe entregara no intuito de salvar François de um perigo que era então ilusório e que entretanto se tornara muito real, caso a sua cabeça estivesse a prêmio, ele estaria à mercê de qualquer traidor que desejasse obter uma recompensa. Era por isso que Sylvie sentia que estava finalmente pronta para realizar aquilo que outrora a horrorizara: assassinar Richelieu com as suas próprias mãos! Ele era a única pessoa a temer, pois, caso morresse, e independentemente do que pensava Renaudot, Luís XIII nunca assinaria a ordem de execução do seu sobrinho.
Era essa a sua excelente idéia, pois só a ela colocava em perigo, mas não podia, de modo algum, confessá-la a Raguenel. Contudo, lamentando tê-lo magoado, Sylvie dispunha-se a ir ter com ele para o tranquilizar, quando o rangido do pórtico e o ruído dos cascos de um cavalo impaciente a atraíram a outra janela. Viu Jean de Fontsomme, que parecia de cabeça perdida, saltar da sela e precipitar-se pela casa dentro. Deu-lhe tempo que entrasse e, depois, dirigiu-se para o gabinete do padrinho, onde deparou com os dois homens, frente a frente. Perceval estava a ler um documento que Jean acabara de lhe entregar, mas ambos se voltaram para ela com a mesma expressão, o que a fez sorrir:
- Então? O que é que aconteceu? Parecem ambos transtornados...
- O que aconteceu - exclamou o jovem duque - é que eu sou o último dos néscios e que vos coloquei numa situação impossível. Nesta carta, o secretário encarregue dos mandatos da rainha convida-me a ir apresentar-lhe a minha noiva. É para amanhã e eu não sei como...
- Não vejo nisso nada de terrível - sorriu Sylvie. - Caro Jean, será um prazer acompanhar-vos...
- Não, Sylvie, de modo algum! - protestou Raguenel. - Não quero que...
Ela foi ao seu encontro e abraçou-o com ternura:
- Ora bem, querido padrinho! Não fiqueis tão transtornado! Juro-vos que me irei comportar muito bem... e que nada direi de inconveniente!
- Quem poderia julgar-vos capaz de uma inconveniência? - perguntou Jean que, aliviado, voltara a encontrar a sua boa disposição.
- O meu caro padrinho julga-me capaz das maiores tropelias. Contudo, ele já devia saber que se às vezes fervo em pouca água, também é verdade que recobro o juízo muito depressa. Até amanhã, portanto...
Depois de um afastamento de quatro anos e de umas trezentas léguas, Sylvie, toda vestida de preto, dirigiu-se para o castelo de Saint-Germain. A Corte estava de luto devido ao falecimento da rainha-mãe em Colônia, num estado que confinava a miséria, sem que ela nunca tivesse podido regressar a França, nem tivesse voltado a ver um filho que nunca lhe perdoara o fato de ter provavelmente participado no assassinato de Henrique IV. O protocolo exigia que as visitas estivessem vestidas de acordo com as circunstâncias, o que provocara grande transtorno no hotel de Raguenel: o guarda-roupa de Sylvie estava muito reduzido e não contava com nenhum conjunto preto. Mas Corentin, que fora enviado à pressa até ao hotel de Vendôme, regressara com um vestido de Elisabeth e que Nicole passou uma parte da noite a ajustar à medida da silhueta mais franzina de Sylvie.
O coração desta palpitava com força, enquanto Jean lhe segurava com firmeza a mão enluvada, ajudando-a a subir a Grande Escadaria que conduzia aos aposentos da Rainha. Aparentemente tudo continuava tal como sempre conhecera, com os guardas e os cortesãos continuando a fazer os mesmos gestos familiares ao longo dos mesmos corredores mas, logo que transpôs a dupla porta do Grande Gabinete, as diferenças saltaram-lhe à vista: para começar, eram os novos rostos de damas que não conhecia e, além disso, desaparecera a silhueta familiar de Stefanille, a velha aia espanhola, sempre ocupada a coser qualquer coisa a um canto e que acabara de falecer. Num outro canto estava o habitual enxame de damas de honor, mas tão calmo sob as suas roupagens negras, que a sua presença quase passava despercebida. Aliás, figuravam aí algumas novas caras, tendo outras desaparecido, a começar pela Chémerault, mas era possível que esta talvez tivesse julgado preferível não estar presente na altura em que a sua inimiga (que outro nome lhe poderia dar?) voltava a aparecer. Finalmente, havia ainda a Rainha e Sylvie achou-a transformada. Esplendorosa como de costume, a sua beleza só ficava ainda mais realçada com os véus pretos; também engordara um pouco e os vestígios das lágrimas e dos aborrecimentos começavam a imprimir as suas marcas naquele belo rosto, emprestando-lhe talvez uma maior sensibilidade e tornando-o mais capaz de comover. No entanto, o seu acolhimento foi de uma encantadora espontaneidade.
- Minha querida gatinha! Finalmente, eis-vos de volta - exclamou, estendendo uma mão, que conservara toda a sua imponência na direção da recém-chegada e que esta, ajoelhando-se, se apressou a beijar. - Meu Deus, quantas aventuras! E quantas coisas não temos para nos contarmos uma à outra!... Meu caro duque, nunca saberei como vos agradecer devidamente por terdes conseguido trazê-la de volta a nós.
O discurso era muito agradável de ouvir, mas Sylvie permaneceu de sobreaviso. Como esquecer que aquela mulher, detentora de uma coroa, deixara exilar Marie de Hautefort, a sua confidente, a sua mais fiel amiga? Também era verdade que não soubera outrora tomar a defesa de Mme de Chevreuse que, contudo, contava tanto na sua estima... Presentemente tinha a seu lado uma jovem loura e rechonchuda, de tez leitosa, que parecia estar incumbida de apoiá-la em todos os assuntos... como incumbira antigamente a Marie. No fundo, aquilo era tudo tão triste...
Entretanto Ana de Áustria prosseguia com a sua alocução, depois de ter pedido a Sylvie que se sentasse a seu lado, numa demonstração de favor extraordinário e que suscitou um ligeiro murmúrio:
- Minhas senhoras, ainda há bem poucos anos algumas de vós haveis travado conhecimento com Mlle. de L’Isle, aqui presente, e que foi educada por Mme. de Vendôme sob esse nome, a fim de lhe evitar grandes perigos. Ela volta agora para junto de nós com o seu verdadeiro nome. Minhas senhoras, tenho a honra de apresentar-vos Mlle. de Valaines, que é também noiva do senhor duque de Fontsomme...
Sylvie levantara-se, a fim de saudar todos os presentes com uma bela reverência. Tinha a impressão de atuar como uma comediante que desempenhasse um papel já um pouco visto. Desta vez apenas deu com belos sorrisos naqueles rostos femininos que a rodeavam e, por sua vez, a bela jovem loura acrescentou:
- Senhora, espero que desta vez ela esteja realmente de volta! Temos grande falta de lindas vozes e como Vossa Majestade mandou que guardassem cuidadosamente tanto a guitarra como os objetos pessoais da menina...
- Querida Motteville, esse é o meu desejo mais ardente. Não vedes qualquer inconveniente nisso, meu caro duque, pois não?
Para a Rainha, o olhar inquieto que ele deixou pairar por um momento no grupo silencioso das damas de honor foi o melhor testemunho do seu embaraço, mais do que qualquer declaração oral. Ela voltou a falar:
- Não, ela não regressará ao seu antigo lugar, no qual, Mlle. de Valaines aliás nunca esteve inscrita. Gostaria de guardá-la... como leitora, porque não? Enquanto espera pelo casamento, claro, altura em que ingressará no grupo das minhas damas. Talvez para ocupar um cargo privilegiado - acrescentou, dirigindo um sorriso crispado para Mme. de Brassac, criatura de Richelieu e sua dama de honor obrigatória. - Que pensais, Sylvie?
- Que estou às ordens de Vossa Majestade! - respondeu esta com um sorriso radiante. Visto que escaparia às damas de honor, estava de acordo em reintegrar a Corte. Isso convinha aos seus planos, sobretudo devido ao escasso tempo que a sua função de leitora lhe acarretaria. Ser-lhe-ia muito fácil procurar no Louvre o que nele escondera outrora. Depois, dado que iria de novo cantar, era preciso aguardar que o Cardeal a mandasse chamar. E, nessa altura...
Alguns dias mais tarde, depois de ter escrito a Marie de Hautefort, reclamando-lhe a presença de Jeannette, Sylvie mudava-se para o castelo de Saint-Germain, para se instalar num pequeno quarto só dela, e próximo do da Rainha. Este último fato acabou por dissipar os receios de Jean e também os de Perceval, ambos surpreendidos ao verem o entusiasmo com que Sylvie aderira ao desejo expresso pela Rainha, mas como isso parecia ser do seu agrado, não tiveram coragem para a criticar. Além disso, enquanto noivo, o jovem duque teria todas as possibilidades de velar por aquela que amava...
- Feitas as contas, concluiu este último sorrindo, de modo a fazer desaparecer as últimas rugas da testa do seu amigo, - talvez ela acabe por aceitar tornar-se a minha futura esposa.
Disso duvidava Perceval um tanto e se conseguiu dissimular convenientemente a sua inquietação, esta nem por isso deixou de o massacrar. Algo o atormentava nesta história. Tinha a certeza que Sylvie acalentava um projeto secreto que escondia por detrás de sorrisos e de uma alegria que lhe pareciam fictícios, mas não foi capaz de se inteirar de alguma coisa mais. Sylvie estava só quando, pretextando andar à procura de uma medalha perdida, pediu a um antigo guarda do Louvre que bem conhecia, que lhe abrisse a porta do seu antigo quarto. O frasco de vidro escuro ainda lá estava. Enfiou-o no corpete e, depois de ter fingido que encontrara o pequeno objeto que trouxera, partiu outra vez, rumo ao novo destino que traçara.
A MELHOR PESSOA DE BEM DE TODA A FRANÇA
O que não mudara na residência dos reis de França fora a atmosfera. Continuava a reinar a tensão do costume. Após a conspiração de Cinq-Mars e apesar do nascimento dos seus dois filhos, a Rainha ainda permanecia uma personagem suspeita aos olhos do marido. Outrora fora a ameaça do repúdio que pairara sobre ela; agora, era a de poder vir a ver os seus filhos serem-lhe retirados por dois homens, o Rei e o seu ministro, tão doentes e enfraquecidos, tanto um quanto o outro. Ao reintegrar uma Corte em que o luto reforçava a morosidade, Sylvie sentiu o ambiente com aquela acuidade que os momentos de dificuldade nos concedem. Na sua opinião as coisas ainda estavam piores que antes. Não só não havia mais bailes, comédias ou grandes festas a não ser as religiosas como, além disso, a Rainha vivia em reclusão, no meio de um círculo no qual reinavam os Brassac, marido e mulher, e onde todos os rostos simpáticos escasseavam cada vez mais, pois todos aqueles de quem gostava haviam sido afastados: La Porte, que continuava exilado; a bondosa Mme. de Senecey, que fora enviada para junto da família, além de Marie de Hautefort, claro. Havia grandes mudanças no meio das damas de honor, tal como no das damas do círculo habitualmente afeto à Rainha: a princesa de Guéménée entrara para o convento e Mme. de Montbazon mantinha as suas distâncias, com os seus pensamentos concentrados exclusivamente em Beaufort, tal como a jovem duquesa de Longueville, que achava a Corte tremendamente enfadonha. Em compensação, via-se muitas vezes a antiga Mme. de Combalet, agora duquesa de Aiguillon, por vontade de seu tio, o Cardeal, a qual, segura do seu novo poder, não receava impor-se. Em resumo, apenas Françoise de Motteville, recém-chegada, representava uma verdadeira fonte de calor e Sylvie não teve quaisquer dificuldades em perceber por que motivo a Rainha, no seu desconcerto, se ligara àquela nova normanda, tão serena, tão letrada e dando provas de uma certa filosofia que ultrapassava os limites do círculo real, pois nos salões de Paris era referida como a Socratina. Além disso escrevia na perfeição e ao redigir regularmente um diário servia de historiógrafo à Rainha, que lhe narrava de bom grado os acontecimentos anteriores à sua chegada.
Foi com visível satisfação que Mme. de Motteville recebeu Mlle. de Valaines. Primeiramente, porque simpatizou de imediato com ela e, depois, pela distração que a sua guitarra e as suas canções traziam à soberana. Por outro lado, Sylvie também falava espanhol e, por vezes, a horas avançadas da noite, as três mulheres fechavam-se no quarto da Rainha, para ficarem a conversar horas a fio, na língua daquela que ainda não se conseguira acostumar à idéia de que já não era e de que nunca seria uma infanta de Espanha.
O Rei era visto poucas vezes. Apesar dos males de que padecia, animava-o sempre a paixão pela caça e a necessidade de percorrer grandes espaços livres, pelo que só abandonava o seu pequeno castelo de Versalhes para ir galopar em redor de Paris, parando no convento da Visitação, onde procurava consolar-se do trágico falecimento do seu amigo, junto à sua antiga paixão, a irmã Louise-Angélique. Num dia estava em Chantilly, no dia seguinte estava em Verberie, depois ia visitar os Schomberg em Nanteuil, em seguida partia para Claye, Meaux, Livry, Jossigny, Saint-Maur...
Quanto ao Cardeal procurava um hipotético alívio para as suas dores nas águas de Bourbon-Lancy, e o novo cardeal Mazarin nunca o abandonava, o que aguçava a curiosidade de Sylvie. Claro que ainda não o vira, mas quando a Rainha falava dele, era com um ardor que lhe recordava aquele dia, próximo da data de nascença do Delfim, em que Ana de Áustria se mostrara tão contente ao receber os lindos objetos que ele lhe enviara de Itália e em que Beaufort reagira tão violentamente. Infelizmente Marie já não estava presente para ouvir as confidências reais e aquela que tinha agora esse encargo não contava minimamente em partilhá-las com a nova leitora. Era impossível saber o que subsistira da paixão de outrora.
Sylvie teve contudo a sensação de ter arranjado um amigo, durante aquela estadia um pouco sufocante em Saint-Germain. Num dia em que fora para o seu quarto, enquanto a Rainha estava ocupada no jardim e quando estava absorta na mudança de uma corda da guitarra, viu subitamente o Delfim à sua frente, encarando-a com aquela gravidade que nunca parecia abandoná-lo. Surpreendida, quis levantar-se para saudá-lo, como exigia o protocolo, mas ele parou-a:
- Não. Vim apenas para vos pedir se me podeis ensinar a tocar guitarra.
Não era a primeira vez que ela o via e voltou a sentir aquela emoção que se apoderava dela quando se encontrava na sua presença. Era uma bela criança de quatro anos, que para o observador superficial se parecia muito com a mãe, da qual herdara a boca arredondada mas, naquele rosto infantil, Sylvie sabia discernir outras marcas: por exemplo, a forma do nariz, e o azul brilhante do olhar. Como acontecera ao próprio Beaufort, quando se encontrara pela primeira vez perante o pequeno príncipe, ela sentiu que o seu coração não teria qualquer dificuldade em adotá-lo e ofereceu-lhe o seu mais ardente sorriso.
- Monsenhor, podeis seguramente encontrar melhor mestre que eu...
- Não - respondeu este, com firmeza. - Sois vós que desejo, porque me ensinareis as canções, porque sois bela e cheirais bem!
Esta última observação fê-la rir. Tal como François e contrariamente a muitos dos seus conterrâneos, Sylvie aderira às vantagens da água, de preferência fria. Isso datava daquele dia passado em Vendôme, quando François, que acabara de se banhar no Loir, lhe contara que Diana de Poitiers, sua antepassada quase lendária, preservara toda a beleza até uma idade avançada ao lavar o corpo todos os dias em água fria, quer de Inverno, quer de Verão. Logo que se sentira melhor em Belle-Isle banhara-se quotidianamente no mar e, desde essa altura, esforçara-se por continuar a fazê-lo, o que nem sempre era fácil, sobretudo no convento da Visitação.
- Então, desejais começar? - inquiriu, ao fixar a corda e ao dedilhar algumas notas.
- Oh, sim! - aprovou a criança soltando um ardente suspiro.
Aquele rosto radiante aqueceu o coração de Sylvie, que começou por instalá-lo para dar início à lição, pensando que o tamanho do instrumento talvez viesse a suscitar alguns problemas, inquietação que não demorou muito a dissipar-se, tal foi a vontade férrea que o pequeno Luís demonstrou em aprender a dominar a guitarra. Nos dias seguintes, tendo a Rainha condescendido no prosseguimento das lições, ela desfrutou o seu desenrolar, que o pequeno príncipe achava sempre muito breve, mas que tinham o condão de fazer desabrochar entre eles uma amizade silenciosa, que em Sylvie se transformou numa verdadeira ternura. Luís era um aluno ideal, de ouvido muito apurado, revelava um sentido profundo da música e quando se punha a cantar ninguém podia resistir à sua pequenina voz fresca.
Claro que o jovem Filipe, dois anos mais novo, também quis participar, mas Luís opôs-se com tanta determinação, jurando que ele próprio deixaria de ir às lições caso o irmão quisesse partilhá-las, que ninguém ousou contrariá-lo.
- Mais tarde, Monsenhor, quando Vossa Alteza for mais crescido - explicou Sylvie àquele menino demasiado belo para não ser sedutor, mas que era um pouco enigmático. A jovem não conseguia perceber como era possível que, ao parecer-se tanto com o Rei, Filipe conseguisse ser tão encantador. É verdade que era um bebê irresistível, com os seus caracóis espessos, pretos e brilhantes, com os seus olhos enormes e sombrios, sempre esfuziantes e com aquela carinha cor-de-rosa. A Rainha, que idolatrava de certo modo o seu filho mais velho, ficava enlevada com aquele moço, a quem chamava de “queridinha”, divertindo-se a vesti-lo como se ele fosse destinado a aparecer de saias e com adornos femininos...
Estas novas ocupações agradavam tanto a Sylvie que ela quase se esquecia dos seus dramáticos projetos. E isto era tanto mais fácil porquanto não havia qualquer notícia referente aos emigrados em Londres e o Cardeal continuava ausente. No entanto, certo dia a notícia acabou por chegar: prosseguindo o seu périplo por vias marítimas, Richelieu acabara pôr voltar ao castelo de Rueil, onde a Rainha o foi visitar no dia 30 de Outubro.
Ao regressar, mandou chamar Sylvie:
- Achei por bem prometer a Sua Eminência que esta noite iríeis cantar para ele. Não, não digais nada - acrescentou, perante o gesto instintivo de recusa da jovem. Ele é agora um homem muito doente e dareis provas de caridade...
- Senhora, há tanto tempo que se diz que ele está doente, que mesmo que o seu estado seja muito grave não vejo lá muito bem onde estaria a caridade...? Além disso, a minha última visita ao castelo de Rueil deixou-me uma recordação...
- Horrível, eu sei, mas desta vez ireis numa das minhas carruagens e sereis acompanhada pelo próprio M. de Guitaut. Nada vos poderá acontecer... Vamos, gatinha, fazei um belo gesto! Pensai que sou eu quem vos solicita este esforço, e bem sabeis como sofri com as atitudes dele. Fazê-lo-eis?
Sylvie inclinou-se numa reverência: já mostrara má vontade que bastasse.
- Estou às ordens de Vossa Majestade.
- Muito bem. Ide preparar-vos!
Ao voltar para o quarto, Sylvie começou por sentar-se e por tirar do corpete o frasco de veneno do qual nunca mais se separara. Chegara pois o momento por que tanto ansiara e que, ao mesmo tempo, tanto temera! Talvez lhe fosse dada a oportunidade de acabar de uma vez por todas com o homem que sempre se esforçara por destruir os Vendôme, e François em particular, devido ao amor com que a Rainha respondera à paixão deste! Mas seria capaz de fazê-lo ingerir o veneno? Se Richelieu estava tão doente quanto o dizia a Rainha, era pouco provável que lhe pedisse para que lhe servisse um copo de vinho de Espanha...
De qualquer modo não estava minimamente preparada para o espetáculo que a esperava no quarto do Cardeal.
Contara vir a deparar com um corpo exangue, estendido, mal se distinguindo da brancura dos lençóis; ora foi colocada frente a um homem, de púrpura cardinalícia, no meio da qual contrastava a fita azul do Espírito Santo, que se apoiava numa meia dúzia de grandes almofadas quadradas, bordadas, e de renda. Ali estava, com as mãos cruzadas num terço, a cabeça erguida e com uma cara adelgaçada, que se parecia cada vez mais com a lâmina de uma faca. Teria sido possível julgá-lo maquilado, de tal modo o calor da febre coloria as faces escanzeladas do seu rosto.
Ele olhou para Sylvie enquanto esta, de guitarra pousada no chão, se inclinava, efetuando a grande reverência da Corte. Depois, disse:
- Voltamos a ver-nos, Mlle. de Valaines, e dou graças a Deus pois, deste modo, Ele permite-me que vos apresente certas desculpas. Alguns maus servidores parecem ter adquirido o hábito de vos tecer uma armadilha a cada vez que aqui vindes. A Rainha informou-me a respeito da última e faço questão de vos dizer que não fui eu que a desejei.
- Monsenhor, nunca acreditei que Vossa Eminência pudesse ter participado em tramóias tão vis. De qualquer forma, esta noite nada tenho a recear. É o próprio M. de Guitaut quem me espera...
- De acordo com o meu parecer - precisou o Cardeal. - Estou muito feliz por ter o prazer em vos ouvir novamente. Que ides cantar para mim?
- Se Vossa Eminência me autorizar, posso começar por inquirir do estado da vossa saúde?
- É muita amabilidade vossa. Oh, eu estou doente... talvez mais ainda do que o costume mas, com a ajuda de Deus, espero poder deixar esta cama brevemente. Pelo menos, para passar para uma poltrona...
- Que desejai ouvir, Vossa Eminência?
- O “Lai da Madressilva” e, também, “O Meu Amor”... e tudo o que for do vosso maior agrado. De qualquer modo, sei que me fará grande bem...
Sylvie cantou os dois primeiros poemas que ele pedira. Depois, como se estivesse a pensar no que iria cantar de seguida, ficou silenciosa durante uns momentos. Richelieu esperava, de olhos fechados... O que lhe foi dado ouvir, não era de modo algum aquilo com que contava.
- Monsenhor - murmurou Sylvie - Vossa Eminência nunca permitirá que M. de Beaufort possa um dia regressar a França?
As pálpebras, subitamente apartadas, destilaram uma cólera surda:
- Se viestes para defender uma causa tão má, então é melhor ir-vos embora imediatamente!
- Não se trata de uma má causa e suplico a Vossa Eminência que me escute só um momento, apenas um instante!, pois sei que tem um elevado sentido de justiça e de honra, para que possa permitir que um filho tenha de pagar pelos erros do pai. Não podeis censurar M. de Beaufort por se comportar como um bom filho - acrescentou, rejeitando decididamente o uso da terceira pessoa, que lhe parecia um tratamento muito complicado na elaboração da sua defesa.
- O que lhe censuro é ter conspirado com a Espanha contra a segurança do Estado!
- Bem sabeis que não é verdade. Apesar de ser ainda tão jovem, o duque já verteu o seu sangue umas dez vezes contra as armas espanholas. Ele é fiel ao Rei, leal...
- Mas isso não o impediu de permitir a realização de uma importante reunião em Vendôme, na qual se reuniram os emissários dos conspiradores...
- Ele tinha reunido uns amigos para a caça, é tudo. Se alguns acalentavam maus pensamentos, isso não é culpa dele... Mesmo junto ao cadafalso, e quando acabara de receber a Santa Comunhão, M. De Thou ainda proclamava que M. de Beaufort nada tivera a ver com a conspiração e que, pelo contrário, recusara o seu contributo.
- Dedicação de um fiel amigo que não tinha mais nada a perder...
- Não. Verdade proferida por um homem que não tem o direito de mentir na altura em que tem de comparecer perante Deus! Acreditai-me, monsenhor, François está inocente. Deixai-o regressar e retomar o lugar que melhor lhe convém, que é o comando de um exército armado...
Do fundo do seu leito, o Cardeal teve um riso, cujo som se assemelhava ao rangido de cascas de nozes:
- Minha pequena, que belo advogado não seríeis, mas perdeis o vosso tempo. Se Beaufort ousar pôr nem que seja um pé em França, será imediatamente preso... Agora, cantai ou ide-vos embora!
Sylvie pegou novamente na guitarra, na qual dedilhou umas notas. Como podia ter sido estúpida ao ponto de julgar que ele a escutaria? Ainda hesitava sobre o que iria cantar quando ele lhe pediu:
- Um momento!... Atrás de vós está um armário que contém uma garrafa de elixir de Chartreux... Ide... ide buscar-me um pouco. Não... não me sinto bem...
A jovem sentiu que o seu coração parava. Aquela ocasião inesperada, seria uma dádiva do Destino? É muito fácil formular projetos, por mais terríveis que estes sejam, mas agora descobria que na altura de executá-los, a coragem dá parte de fraca. Desta vez tinha, contudo de fazer alguma coisa. Pensou em todos aqueles que definhavam nas prisões daquele homem impiedoso, em François, que poderia voltar a ver o céu daquele país que tanto amava. Ela própria teria de morrer, mas conquistaria no coração do seu amado um lugar que nunca ninguém lhe poderia tirar e seria sempre com ternura que ele pensaria nela...
- Então? - impacientou-se o doente. - Que esperais? Estou com dores.
Para reunir a coragem que lhe faltava, Sylvie consolou-se ao pensar que ele também ficaria liberto dentro de pouco tempo e, dirigindo-se para o armário, encontrou o elixir e um copo, no qual verteu algumas gotas de veneno, antes de o encher com o belo licor esverdeado que exalava um agradável aroma a plantas. Depois, encaminhou-se para o leito, para entregar a bebida mortífera.
- Vós, em primeiro lugar! - mandou Richelieu.
Ela hesitou um momento e, ao cruzar aquele terrível olhar, percebeu de repente que ele só a mandara chamar no intuito de a pôr à prova.
- Vamos, bebei! - insistiu... - Receais alguma coisa?
Por fim, ela deu-se por vencida. Afinal também não era má idéia acabar agora mesmo com aquilo tudo e caso o veneno não agisse imediatamente sobre ela, talvez ele também acabasse por bebê-lo. Levou o copo aos lábios, mas ele escorregou-lhe das mãos, quando o doente o tocou involuntariamente, num gesto automático, sacudido que fora por um brutal e assustador ataque de tosse. O licor derramou-se pelos lençóis, misturando-se ao fluxo de sangue que o Cardeal começou de repente a vomitar. Sylvie correu para a porta, atrás da qual esperavam os criados e os médicos:
- Depressa! Sua Eminência não se sente bem!
- Ia a entrar quando ouvi o ataque de tosse - disse Bouvard, o médico do Rei. - Meu Deus! Ele vomitou sangue outra vez!
- Não é a primeira vez que isso acontece?
- Não. Os pulmões foram gravemente atingidos...
Contrariamente ao que Sylvie receara, as manchas de licor esverdeado nos lençóis não pareceram surpreendê-lo. Contentou-se em rabujar, encolhendo os ombros:
- Ah, ele voltou a pedir esse licor que não lhe vale de nada. Queria retirar-lho, mas nunca ninguém foi capaz de lhe proibir o que quer que fosse...
O pessoal atarefava-se em redor do doente e, pegando no braço de Sylvie, Bouvard levou-a de volta à antecâmara:
- Menina, regressai ao palácio! Espantar-me-ia muito que Sua Eminência reclamasse um concerto tão depressa...
Sylvie não pedia melhor, aliviada por não se ter tornado uma assassina. Assim, ao chegar a Saint-Germain, foi direito à capela para agradecer a Deus por tê-la retido quando se aprestava a desferir o gesto fatal e, ao mesmo tempo, por tê-la conservado com vida. Vira a morte de tão perto que, apesar do tempo detestável que fazia não parara de chover desde há uma semana!, ela achava a terra soberba e o tempo radioso...
O Cardeal não morreu nessa noite e, no dia seguinte, mandou que o levassem até Paris. Pensou que talvez melhorasse no meio das maravilhas que juntara no seu palácio. Em compensação, o Rei deixou de galopar pelo país fora, fixando-se em Saint-Germain, de onde não mais saiu, à espera da notícia que lhe anunciasse um fim, do qual já não duvidava... e que lhe traria uma espécie de libertação, agora que a vitória, coroando as suas armas, fizera recuar a guerra para além fronteiras.
Sylvie viveu angustiada nos dias seguintes à sua visita a Rueil. Receava que a qualquer momento a chamassem para o pé de Richelieu, sabendo muito bem que nunca mais teria coragem para voltar a fazer o que fizera. O frasco de veneno acabara a sua carreira nas latrinas do castelo. Decididamente, não era nada fácil endossar a pele de uma heroína trágica!
No dia 3 de Dezembro o Rei foi à cabeceira do doente e, ao regressar, declarou aos que o esperavam:
- Não creio que volte a vê-lo vivo. É o fim... mas que fim mais cristão!
Era verdade que desde que regressara a Paris o Cardeal ocupara-se exclusivamente de Deus e da sua alma, aguentando as suas dores mais estoicamente que nunca. Apesar da obstinação que punha em agarrar-se à existência, teve de acabar por admitir que tinha os dias contados. Finalmente, no dia 4 de Dezembro de 1642, Louis-Armand du Plessis, cardeal-duque de Richelieu, entregava a sua alma imperscrutável ao Criador, murmurando:
- In manus tuas, Domine.. E fez-se um grande silêncio...
Teria sido normal esperar por explosões de alegria, manifestações de contentamento, pois o terrível ditador deixara de existir, mas não foi isso que sucedeu: durante quatro dias, ao desfilar perante o despojo mortal, antes da sua ida para a Sorbonne, onde finalmente permaneceria, finda a capela, o povo de Paris nada dizia, mal ousando respirar; coberto pelo esplendor dos reflexos purpúreos que ainda mais o empalideciam, com a coroa ducal pousada a seus pés, sobre uma almofada, os olhares que se fixavam no morto exprimiam decerto a perplexidade, mas traduziam também um grande respeito.
Todos sentiam algo de estranho, era como se se tivesse feito um grande vazio e todos se perguntassem se, na ausência do timoneiro, o navio da França seria ainda capaz de prosseguir a sua rota gloriosa. Às vezes é terrível ver desaparecer alguém que se teme e que até se detesta algumas vezes, mas que, no fundo, admiramos de modo confuso. Apesar dos panfletistas que manifestaram exuberantemente a sua alegria e que eram pagos pelos antigos conspiradores, sentia-se que afinal, após Richelieu, o reino nunca voltaria a ser como dantes. Era muito simples: ele fizera tremer quer a Europa quer a França, de tanto sonhar com a grandeza desta...
Luís XIII não chorou o companheiro a que tinha estado acorrentado, já sofrera muito por causa disso. Mas quem esperasse por uma mudança de regime enganava-se redondamente: nada foi alterado. Toda a engrenagem que o Cardeal montara permaneceu no seu lugar, isto até ao mais modesto funcionário, até Isaac de Laffemas que, depois de uma longa convalescença, podia agora voltar a desempenhar as suas funções. A Rainha bem tentou obter o seu afastamento, mas o Rei recusou. Respondeu-lhe o que Richelieu dissera a Beaufort:
- É um homem íntegro e, graças a ele, a ordem será mantida em Paris...
Logo a partir do dia 5 de Dezembro, o Parlamento registrou duas ocorrências de relevo. A primeira assinalava a queda de Monsieur: o eterno conspirador era obrigado a não mais deixar as suas terras. A segunda era sobretudo de caráter simbólico: o melhor discípulo do desaparecido, o cardeal Mazarin, era admitido no Conselho e podia confiar-se nele para prosseguir a política do mestre. Na realidade, nada mudara...
Nos salões da Rainha, a atmosfera alijava-se sensivelmente, apesar da Corte, que mal acabara de estar de luto pela rainha mãe, tivesse de voltar a usá-lo em honra do Cardeal. O desanuviamento era tal que, certa manhã, depois de ter escutado a missa, até Sylvie se ajoelhou junto a Ana de Áustria, a fim de lhe solicitar o regresso dos exilados. Pelo menos, de dois de entre eles: Marie de Hautefort e o duque de Beaufort...
A Rainha fez-lhe uma festa na cara, levantou-a e beijou-a:
- Ainda é muito cedo. O Rei não aceitaria ir já contra as vontades do Cardeal. E... ele não gosta muito do vosso amigo François. Quanto a Marie, não sei lá muito bem o que pensa. Receio que a penosa recordação de Cinq-Mars o tenha levado a esquecer-se das suas antigas paixões. Acreditai-me: desejaria poder reencontrá-los, tanto quanto vós... assim como à minha querida duquesa de Chevreuse, há tantos anos apartada de mim. Mas... se calhar tudo o que precisamos é de apenas um pouco de paciência...
O diálogo foi interrompido pela chegada de Mme. de Brassac, que vinha perguntar se a Rainha se dignava conceder uma audiência a Sua Eminência, o cardeal Mazarin.
O tom altaneiro da dama de honor diminuíra consideravelmente após a morte de Richelieu. O seu lugar dependia agora da exclusiva boa vontade de Ana de Áustria. Se esta solicitasse ao Rei o seu despedimento, obtê-lo-ia. A Rainha contentou-se em sorrir:
- Vou já...
E depois de Mme. de Brassac ter saído, disse:
- Vejam só!, um cardeal sucede a outro! Parece que neste país a religião está firmemente ancorada nos postos de comando do Estado. Será porque o Rei, meu esposo, prometeu levar a França ao regaço de Nossa Senhora, como agradecimento pelo feliz nascimento do Delfim?
- Mas ele já não era Sua Majestade, Rei de França?
- Sem dúvida, mas pergunto a mim mesma se o meu filho seguirá o exemplo do pai quando estiver em idade de reinar. Vós, que lhe sois muito chegada, bem sabeis que já manifesta uma vontade férrea, apesar da sua tenra idade. Creio que nunca permitirá que um ministro lhe dite ordens! Entretanto - acrescentou, suspirando - não tenho razões de queixa deste novo, que nos traz uma certa mudança. É um homem encantador! Mas, a propósito, ainda não o conheceis?
- Ainda não tive essa honra.
- Pois bem, vinde comigo! Assim, podereis julgar por vós própria...
A Rainha tinha razão. Com a sua graça italiana e o olhar aliciador, Mazarin era uma personagem encantadora, na medida em que sabia mostrar-se muito charmoso. No entanto, não agradou a Sylvie. Habituada à estatura de um Richelieu, na qual o desprezo assentava tão facilmente, e cuja elevada figura lhe permitia exibir o manto com tanta nobreza, ela teve a impressão de se encontrar perante uma má cópia, em formato reduzido. Também é verdade que Mazarin, com um sorriso muito charmoso, era bem mais belo do que o seu mestre, mas não conseguia impor a mesma nota de respeito. Isso talvez fosse devido ao fato de, não obstante as suas diversas funções eclesiásticas, nunca ter chegado a completar o sacerdócio e Sylvie não admitia que se se pudesse ser cardeal sem se pertencer primeiro à Igreja. Talvez fosse também devido ao fato de ele gesticular tanto, agitando demasiadamente as mãos. Mãos muito belas, bem tratadas e perfumadas!
Em troca da sua reverência, teve direito a uma saudação, a um belo sorriso e a um cumprimento galante, mas ela não era Marie de Hautefort e, portanto, não procurou impor-se. Foi-se logo embora. Não lhe interessava o que aqueles dois tinham para dizer um ao outro. Todavia, agitada por uma certa inquietude, não conseguiu evitar perguntar a si mesma o que se iria passar quando Beaufort regressasse e encontrasse aquele “filho de um criado italiano” ocupando o lugar do grande Cardeal.
Não tardou que Sylvie recebesse uma resposta a essa pergunta.
No dia 21 de Fevereiro, Luís XIII adoeceu em Saint-Germain e com tanta gravidade que o seu leito foi instalado no Grande Gabinete da Rainha, espaço mais confortável e mais bem aquecido do que os seus aposentos de um conforto espartano. Mesmo assim, o Rei não deixou de se esforçar por manter um pulso firme na condução dos assuntos do Estado. Dir-se-ia que o exemplo de Richelieu lhe proibia de mostrar o seu extremo cansaço.
E, contudo, quantos motivos de inquietação não havia! Na Inglaterra, onde reina a sua irmã Henrieta, a revolução dirigida por Cromwell, um cervejeiro londrino, prossegue a passos largos. A paz com a Espanha, a quem a morte de Richelieu renovara as esperanças, ainda não foi assinada. O Rei debate-se com uma enorme fraqueza. Está minado pela tuberculose. Os remédios, as sangrias e os clisteres dos seus médicos acabam por dar cabo dele...
No entanto, nos dias seguintes, ainda se levanta. Talvez por recusar categoricamente os pretensos remédios de seus médicos e, na realidade, registra-se uma melhoria mas o mal já está muito avançado e, em breve, ele dita os seus últimos desejos. A rainha fica a saber que será regente, mas que o chefe do Conselho será o seu irmão, o indigno Monsieur, duque de Orleans. e, neste caso, podemos interrogar-nos sobre as motivações do Rei... É verdade que também farão parte desse Conselho o príncipe de Conde, Mazarin, o chanceler Séguier, o superintendente das finanças Bouthillier e o senhor de Chavigny. Finalmente, manda que se faça o batizado do Delfim, cuja madrinha será a princesa de Conde e cujo padrinho será Mazarin. Antes das exéquias reais, é a derradeira bela cerimônia de pompa do reino. O pequeno príncipe, vestido com um tecido prateado, recebe o sacramento com um ar grave que é o foco da atenção de todos os que assistem. E, um pouco mais tarde, é com a mesma gravidade que responde à pergunta do pai:
- Meu filho, como vos chamais agora?
- Luís XIV, papá...
- Ainda não, mas, se Deus quiser, não deve faltar muito.
Porém, ainda decorreram algumas semanas, pontuadas por pesadas dores e breves momentos de alívio, os quais o senhor Vincent veio por duas vezes iluminar com a sua fé ardente, com o seu sorriso bondoso e com os seus incitamentos, plenos de bonomia e de simplicidade. A Sylvie, que lhe agradece por ter querido velar por ela, o santo homem responde:
- Enganava-me ao querer enviar-vos para o convento. Casai-vos, pequena! Precisais de um bom esposo.
- Ela já o encontrou - disse Ana de Áustria - mas, nesta altura, as circunstâncias são muito pouco propícias para uma festa.
Os olhos sombrios e vivos do velho homem mergulharam nos da jovem, como se estivesse a decifrar o que havia no fundo daquela alma.
- Contudo, quanto mais cedo, melhor...
Não era essa a opinião de Sylvie. Ela não ignorava e a Rainha confirmava-o frequentemente na sua presença que logo que esta se tornasse regente, o seu primeiro ato seria o de mandar regressar todos os exilados. Sylvie não era a única que desejava fervorosamente voltar a ver François... Ambas sabiam que agora se aproximava a hora do regresso.
Na manhã do dia 13 de Maio, Luís XIII abriu os olhos e, reconhecendo o príncipe de Conde por entre as pessoas que enchiam o quarto, disse-lhe:
- Senhor, o inimigo avança em direção à nossa fronteira com uma grande e poderosa armada...
- Senhor! Que podemos...
- Deixai-me... falar! Eu sei que... dentro de oito dias o vosso filho irá rechaçá-la, humilhando-a... e derrotando-a!
Estranha presciência a dos moribundos! Oito dias mais tarde, em Rocroi, o jovem duque d’Enghien expulsaria os Espanhóis de França por muito tempo...
No dia seguinte, a 14 de Maio, entre as duas e as três horas da tarde, o rei Luís, décimo terceiro do seu nome, exalava o último suspiro pronunciando o nome de Jesus. Exatamente trinta e três anos antes, no mesmo dia, Ravaillac assassinara o seu pai, Henrique IV...
Antes que o esposo morresse e, de acordo com a tradição, a Rainha deixara a residência mortuária, isto é, o Château-Neuf, acompanhada por três das suas damas, de entre as quais Mlle. de Valaines, para se dirigir para o Château-Vieux, onde se encontravam o Delfim e o seu irmão. O som das orações enchia a agradável residência de lazer onde Ana de Áustria se fixara desde há já alguns anos.
Na altura em que o pequeno cortejo chegava ao vestíbulo, Sylvie teve um choque tão violento que deixou cair o missal que segurava. Um homem, suntuosamente vestido com um fato de veludo preto bordado de azeviche e no qual sobressaía o louro dos seus cabelos, e encabeçando três gentis-homens, veio ajoelhar-se perante a Rainha:
- Senhora - disse Beaufort - eis-me de volta, acorrendo ao apelo que me foi enviado por Monsenhor, o bispo de Lisieux, conforme Vossa Majestade solicitou. E estou inteiramente ao vosso dispor!
Ana de Áustria estendeu-lhe uma mão para que ele a beijasse, sem conseguir dissimular a alegria que lhe brilhava nos olhos.
- Levantai-vos, senhor duque, e acompanhai-nos...
Nesse momento, o sino da capela tocou a finados. Todos se ajoelharam e, após um momento de recolhimento, a Rainha terminou a sua frase:
- ...até junto do Rei!
Aquela palavra que consagrava o seu pequeno aluno, fez estremecer Sylvie. O grupo encaminhou-se em silêncio para o velho palácio. François caminhava ao pé da Rainha, um pouco atrás, e não reparara ainda na jovem, cujo regresso à Corte ignorava. Ela só via os seus ombros largos e a parte detrás da sua cabeça. O coração batia-lhe descompassadamente. Pela primeira vez, ia assistir ao encontro entre o Delfim e o seu verdadeiro pai.
No aposento dos filhos, Ana de Áustria abraçou Luís e beijou-o com ternura; depois, recuando, fez-lhe uma profunda reverência, antes de lhe beijar a pequenina mão:
- Senhor - disse, com uma emoção que lhe trouxe de volta a pronúncia espanhola - tendes à vossa frente a vossa mãe e vossa fiel súdita...
Depois de se ter erguido, mandou avançar François, que saudou muito respeitosamente:
- Eis o senhor duque de Beaufort, vosso primo e nosso amigo, a quem sereis confiado, bem como vosso irmão. Ele tomará conta de vós, é a melhor pessoa de bem em todo o reino.
A criança nada disse, mas o sorriso que dirigira à mãe apagou-se, para dar lugar a uma gravidade inesperada. Estendeu a mão, que François, ajoelhado, beijou. As mãos deste tremiam...
Não houve tempo para dizer mais nada: o estrondo de uma cavalgada abanava as escadarias e até as paredes do castelo. Atrás de Monsieur e do príncipe de Conde, abandonando o defunto entregue às preces dos religiosos e aos cuidados dos embalsamadores, toda a Corte acorria ao encontro do novo soberano, tal como acontecia a cada mudança de reinado, estando muito longe de imaginar que aquele rapazinho, que ainda não fizera cinco anos, haveria de queimá-los a todos, fulminando-os com os raios de um sol esplendoroso[20]...
Foi um dia deveras estranho, durante o qual o astro de François chegou ao zênite. Num ápice, os seus poderes tornaram-se imensos: a Rainha só se apoiava nele, para tomar todas as decisões necessárias. A primeira foi que regressariam a Paris logo no dia seguinte, para mostrarem o Rei ao povo e, sobretudo, ao Parlamento, no qual Ana de Áustria contava obter a anulação do testamento de Luís XIII: queria a regência só para ela, sem ter de partilhá-la com mais ninguém, sobretudo com o seu cunhado e o príncipe de Conde.
Estava implícito que lhe bastava a ajuda de Beaufort. Este, sob as aparências exteriores de luto, explodia de felicidade, pensando estouvadamente que iria poder finalmente expor as suas paixões reais à plena luz do dia. A galope nos seus sete cavalos, acabou por ter ainda nessa noite uma altercação com o príncipe de Conde.
Toda a Corte se reunira ao pé da Rainha, a ponto de esta se sentir subitamente cansada. Beaufort decidira então tomar conta do rumo dos acontecimentos:
- Senhores, retirai-vos! - declarou em bom tom. - A Rainha quer descansar.
O príncipe de Conde sentiu-se ofendido:
- Quem fala e quem dá ordens em nome da Rainha, na minha presença?
- Eu – respondeu - François que sempre saberei “executar devidamente tudo o que a Rainha me pedir.
- Verdadeiramente? Folgo muito em saber que se trata de vós, a fim de vos ensinar o respeito que me deveis...
- Perante a Rainha, nada vos devo...
- Meus senhores, meus senhores! - exclamou Ana de Áustria. - Este não é um dia para disputas. - Depois, como Conde, ao despedir-se com uma saudação seca, se ia embora com os seus gentis-homens, ela suspirou. - Meu Deus! Está tudo perdido! Agora é o senhor príncipe de Conde que está furioso.
- Não é grave, Senhora, e não há nada que esteja perdido! Amanhã tereis todos os poderes e eu saberei aconselhar-vos.
Encantara-o o que acabara de ocorrer. Ficara feliz ao ter deitado abaixo a soberba daquele velho papalvo que tivera um dia o desplante de lhe recusar a mão da filha, para não encolerizar o falecido Cardeal...
A multidão escoava-se e, à exceção dos gentis-homens de serviço, em breve ficaram apenas presentes as damas da Rainha, agrupadas em redor da soberana. Só então é que François reparou em Sylvie, esquecendo-se logo do protocolo.
- Sylvie? Mas que fazeis aqui? - exclamou, sem se incomodar com preâmbulos desnecessários.
- Como podeis ver, senhor duque, estou ao serviço da Rainha. Sou a sua leitora... e dou lições de guitarra... ao rei Luís XIV!
- Palavra que o diabo vos possui! Da última vez encontrei-vos...
- Da última vez, haveis-me dado a entender que o meu verdadeiro lugar era num convento. Infelizmente não era esse o meu desejo e nem o do próprio convento. Se acrescentardes que uma personagem muito poderosa me tirou de lá para me levar para a Bastilha, onde talvez ainda me encontrasse neste momento, não fora a ajuda dos meus verdadeiros amigos...
- Dos quais não faço parte, sem dúvida?
- Bem sabeis que sim - respondeu Sylvie, com uma espécie de lassidão. - Haveis-me salvo de um destino pior do que a morte e haveis-me colocado onde pensastes que eu ficaria melhor protegida. Foi graças a vós que conheci Belle-Isle, que conquistou o meu coração, mas não procurastes saber o que me acontecia e, quando de lá saí, tudo o que encontrastes para me oferecer foi um convento. E haveis-me tratado como se eu fosse uma serva indelicada...
Ambos se tinham afastado para um canto da ampla sala, mas as suas vozes, dominadas pela cólera, acabaram por se sobrepor ao ruído das conversas. A Rainha juntou-se-lhes:
- Então... é assim que os velhos amigos se reencontram?
- Mlle. está muito zangada - resmungou Beaufort - quando eu apenas me espantei ao ver Mlle. de L’Isle aqui ressuscitada.
- Já não se trata de Mlle. de L’Isle, mas sim de Mlle. de Valaines... enquanto não mudar de novo de nome, para adquirir um ainda mais nobre - disse Ana de Áustria, sorrindo à idéia da surpresa que iria provocar.
- Um nome mais nobre?
- Pois é... dentro em breve a nossa gatinha será a senhora duquesa de Fontsomme, que terá direito a sentar-se no banco a meu lado e que fará parte integrante das minhas damas...
- A duquesa de...
Surpresa, lá isso foi, mas não no bom sentido. François nem tentou dissimular o seu descontentamento, o que provocou o riso da rainha, que depressa rematou num ar sério:
- Fontsomme! O jovem duque está tão apaixonado por ela que galopou até Tarascon para obter do próprio Rei a ordem de libertação daquela que amava, injustamente presa como cúmplice de vosso pai nessa tenebrosa história de veneno. Não só a obteve, como me trouxe Sylvie de volta. Agora ela é sua noiva...
O rosto de François ficou gelado. Inclinou-se com tanta rigidez que parecia que se ia partir em dois:
- Menina, os meus cumprimentos! Espero que ao menos tenhais solicitado a autorização de minha mãe, Mme de Vendôme, que se encarregou da vossa educação...
- Não é preciso estar a lembrar-me - murmurou Sylvie. - Nunca poderei esquecer o que ela fez por mim...
- Fui eu que transmiti esse pedido logo que ela me veio visitar, depois do Cardeal ter falecido. Ficou muito feliz e vossa irmã também - interrompeu secamente a Rainha.
- Então, está tudo bem! Agora, Senhora, permiti que eu me retire! Tenho de ir inspecionar as diferentes guardas do Rei!
Afastou-se com uma profunda saudação, sem dirigir sequer um olhar a Sylvie, cujos olhos começavam a ser invadidos pelas lágrimas, enquanto a Rainha, sem dar conta de nada, regressava para junto das damas encarregues dos preparativos para a noite. Nessa altura a jovem sentiu que uma mão se lhe pousava no ombro e que uma voz familiar lhe segredava:
- Sempre houve alturas em que a achei verdadeiramente estúpida, mas aqui está uma atitude bem divertida da parte dela...
Enquanto soltava um grito de alegria, Sylvie voltou-se para cair nos braços de Marie de Hautefort que lhe sorria, trazendo ainda a roupa da viagem.
- Marie, até que enfim! Desde a morte do Cardeal que esperava todos os dias pelo vosso regresso...
- O Rei não o teria desejado. Confesso que me apressei quando a Rainha me enviou uma carruagem a La Flotte. Esperava chegar a tempo para prestar um derradeiro gesto de respeito e de verdadeiro afeto. Infelizmente, os caminhos não são compatíveis com grandes pressas...
Foi a vez dos olhos de Marie se encherem de lágrimas:
- Havei-lo amado mais do que pensáveis?
- Só fiquei consciente disso um pouco tarde demais. Foi talvez por senti-lo de modo confuso que me mostrava tão dura para com ele... meu pobre Rei!
Com a sua vivacidade habitual Marie sacudiu a sua tristeza como se esta fosse um simples capote usado:
- Mas regressemos a vós! Não há qualquer motivo para ficardes desconsolada com a dureza das palavras proferidas pelo vosso caro François. Não deixa de ser curioso que isso me faça pensar numa demonstração de ciúme.
- De ciúme, quando todas aquelas que ama se encontram aqui à sua disposição? Mme. de Montbazon e a...
- É possível, mas isso não impede que de há uns tempos para cá ele se tivesse habituado a considerar-vos como propriedade adquirida e posso afiançar-vos que não ficou nada contente. Mas eu estou radiante! Uma vez duquesa, estareis de acordo com o seu estatuto... e não conheço rapaz mais encantador que Jean de Fontsomme...
A cólera de François fora tão real que ele já não percebia nada dos seus sentimentos. Na altura em que atingia a glória suprema, transportado às alturas pelo amor da Rainha, em que tinha ao seu inteiro dispor a amante mais adorável, ao recordar-lhe a sua existência aquela pequena peste acabara de provocar-lhe um aperto no coração que ele não entendia. Pior era talvez ainda o fato da sua inocente candura de macho muito pouco conhecedor dos meandros do espírito feminino o levar a pensar que a horrível experiência de La Ferrière teria servido, se calhar, para erradicar para sempre da mente de Sylvie qualquer idéia a respeito de um eventual casamento...
E, contudo, desde que regressara a França, e até mesmo antes de ir ver a Rainha, andara sempre à procura de como vingá-la. Logo que a noite caíra ele precipitara-se para a rue Saint-Julien-le-Pauvre, acompanhado unicamente por Ganseville. Foi deparar com uma casa esventrada, de janelas partidas e com todos os indícios de ter sido posta de pernas para o ar, gerando uma desordem na direção da qual alguns transeuntes mais atrasados olhavam rapidamente, para logo seguirem em frente. Ali só permanecera um homem, sentado no apeadeiro, fumando cachimbo e olhando para o pórtico, arrancado dos seus gonzos.
- Que se passou? - perguntou Beaufort. - Dir-se-ia que um tufão...
- O pior de todos, o da fúria popular. Logo que soube que Richelieu falecera, houve uma multidão que acorreu para aqui. E estou bem situado para o dizer, pois tinha realmente alguns justos motivos para ter chegado primeiro. Faz alguns meses que cravei a minha espada no peito de Laffemas que, não obstante, conseguiu escapar vivo. Vim aqui acabar o meu trabalho...
- Oh! - exclamou Ganseville, muito ao corrente dos fait-divers parisienses. - Por acaso, não sois o capitão Coragem? De rosto descoberto? Onde metestes a vossa máscara?
- Só a ponho à noite. E vós, monsenhor, sois o duque de Beaufort, o herói dos parisienses...
- Conheceis-me?
- Com certeza. Aqui toda a gente conhece o verdadeiro neto de Henrique IV. Aquele que gostaríamos de ter como rei! Também procurais Laffemas, monsenhor?
- Procuro, temos velhas contas a ajustar. Que lhe aconteceu?
- Ninguém sabe ao certo. Desapareceu, como se a terra se tivesse aberto para o tragar. Acreditai-me, vasculhei por todo o lado. Não encontrei nada nem aqui, nem em Nogent. Deve ter conseguido fugir...
- É disso que nos devemos certificar. Se ainda estiver vivo nalgum lado, tenho de encontrá-lo. Está em jogo a minha honra!
- E a minha também, monsenhor, mesmo que ela vos possa parecer de somenos importância. Era o que congeminava quando chegastes...
- Nesse caso, juntemos os nossos esforços! Se souberdes de algo, fazei-me chegar a notícia ao hotel de Vendôme!
- E se vós necessitardes de mim, ficai sabendo que, fora do Grande Pátio dos Milagres, onde só se entra correndo riscos, também me ocupo de outros assuntos no cabaré Dois Anjos, onde sou conhecido como Garec. Passo todos os dias por lá com o aspecto que aqui vedes...
Dito isto, o bandido saudou e embrenhou-se nas sombras da noite.
- Que homem curioso! - disse Ganseville. - Não o acho nada desagradável.
- Eu também não. De qualquer modo, pode revelar-se um aliado interessante...
Enquanto esperava que encontrassem Laffemas, Beaufort podia inteira e tranquilamente dedicar-se ao serviço da Rainha. A “melhor pessoa de bem de toda a França” acarretava agora com pesadas responsabilidades. Devia tratar de perto do cargo sagrado que lhe confiavam e enveredou todos os seus esforços no sentido de expulsar a imagem dessa Sylvie que, a julgar pelos fatos, não mais precisaria dele. Mesmo que custasse admiti-lo...
Na noite em que o Rei morreu, logo que deu por finda as suas rondas e tendo a Rainha regressado aos seus aposentos na companhia das damas, mais para rezar do que para dormir, François, armado até aos dentes, foi instalar-se na antecâmara do pequeno rei, para velar por aquela criança que descobrira quanto lhe era querida, mesmo mais do que sua mãe. Acabara o tempo das loucas paixões. Na próxima aurora começava o dos homens e o da honra...
Quando a manhã chegou, e enquanto o despojo mortal de Luís XIII ia reinar sozinho nos castelos de Saint-Germain, desertados pela Corte, uma coluna de carroças transportando móveis e cofres desceu rumo a Paris, para reintegrar o velho Louvre. Atrás, no meio de grande multidão, seguia o cortejo do pequeno Rei e de sua mãe. Beaufort, que orquestrou esse verdadeiro espetáculo, encenou tudo na perfeição, sabendo muitíssimo bem quão importante eram para o povo os faustos e a exibição das forças do soberano. O coche real que transportava Ana de Áustria, os seus filhos, Monsieur e a princesa de Conde o príncipe amuara, era precedido pelos guardas franceses e suíços, pelos mosqueteiros, pela cavalaria ligeira do marechal de Schomberg, pelos escudeiros da Rainha e pelos soldados da guarda real e dos portões. Seguiam-se o Grande Escudeiro com a espada real, as damas de honor, a Guarda Escocesa, o regimento dos cem soldados suíços e um outro de guardas franceses, escoltando o coche vazio do falecido rei. Atrás, desfilavam ainda um sem número de carruagens, viaturas, cavaleiros e pessoas a pé. O cortejo, com o esplendor característico de um novo reinado, partira ao meio-dia de Saint-Germain, seis horas depois da mudança, e levou mais de sete horas para chegar ao Louvre no meio de um entusiasmo indescritível. Prontos a adorar o seu pequeno rei, os parisienses tinham receado durante muito tempo que os seus soberanos não mais desejassem residir na capital, preferindo-lhe o encanto dos amplos espaços, do ar puro e da frescura de Saint-Germain. Porém, seria um erro enorme pretender que a Rainha tivesse ficado encantada ao voltar a ver o velho palácio, cujo estado nada melhorara depois de ter sido votado a um abandono de cinco anos, foi com desalento que olhou para os muros sujos, para os tetos cheios de fendas e para as marcas provocadas pelo frio ou pela umidade.
- Será que iremos mesmo conseguir viver aqui? - gemeu, enquanto rodava lentamente, para melhor avaliar os danos.
- Ninguém vos obriga a isso, irmã - respondeu Monsieur, que a ouvira.
- Não contais conceder-nos hospitalidade no vosso suntuoso palácio do Luxemburgo?
- Certamente que não! Ele dá à justa para mim. Mas poderei recordar-vos que o falecido Cardeal legou ao Rei o seu próprio palácio, situado aqui próximo? Teríeis dificuldade em encontrar local mais soberbo e melhor acomodado.
O rosto sombrio de Ana iluminou-se imediatamente, endereçando um sorriso radiante ao cunhado.
- Caro amigo, tendes mil vezes razão! Logo a partir de amanhã vou mandar alguém examinar o estado dos locais e tomarei todas as disposições para que tudo fique conforme as nossas necessidades e, mais tarde, irei eu mesma inspecionar os resultados finais.
Entretanto, era preciso alojar-se nalgum lado. Como todos os membros da alta nobreza dispunham de hotéis na capital, foi para lá que se encaminharam e dado que já não fazia parte das damas de honor e que não podia reduzir ainda mais o espaço dos aposentos da Rainha, já de si exíguos, Sylvie voltou à rua das Tournelles, onde foi alegremente recebida. Deu também com Jeannette, que Mlle. de Hautefort trouxera consigo, e que lhe caiu nos braços, chorando de felicidade. Pela primeira vez desde há cinco anos, a “família” do cavaleiro de Raguenel estava de novo integralmente reunida e festejou-se o acontecimento até altas horas da noite.
A súbita e fulgurante ascensão de Beaufort não deixou de surpreender Perceval:
- Já sabia que os Vendôme haviam regressado. O duque César já cá está desde há alguns dias enchendo o faubourg de Saint-Honoré com o alarido das suas proclamações e com as vozes dos amigos ingleses que trouxe consigo, o que era um pouco prematuro quando o Rei ainda vivia. Já anda por aí a bradar que veio reclamar o seu tão estimado governo da Bretanha. Oh! eu entendo a alegria que ele deve ter por estar de volta após dezessete anos de exílio, mas teria sido mais ajuizado mostrar um pouco de discrição.
- Se Monsenhor François tiver de continuar a dirigir todos os assuntos - disse Corentin, que voltava da cave e que ouvira o seu ama-o - ele não terá mais com que se incomodar, pois obterá tudo o que desejar! Monsenhor François sempre gostou muito do pai. Até se ofereceu para ser encarcerado na Bastilha no seu lugar.
- Os afetos pessoais não são compatíveis com a governação de um grande reino. E, se quereis saber a minha opinião, não estou a ver Beaufort como Primeiro Ministro. Nada tem de um homem culto e não demonstra lá grande sabedoria...
- Ele ainda é muito novo - disse Sylvie, já disposta a defender o seu herói. - Acabará por mudar, amadurecerá com o decorrer dos anos...
Perceval sorriu, deu-lhe uma pancadinha afetuosa na cara e acendeu o cachimbo:
- Isso surpreender-me-ia. Além disso, ainda não foi nomeado e espero que nunca o venha a ser! Que lhe dêem um posto de almirante, de general das galés ou tudo o que quiserem, mas que não lhe confiem a França, seria um verdadeiro desperdício. Aliás, antes de alcançar o lugar de Richelieu, tem de contar com os seus inimigos, os fiéis do falecido Cardeal e, sobretudo, com a herança deste, o cardeal Mazarin não ascendeu ao primeiro plano para ceder o seu lugar ao primeiro que apareça, e receio que ele seja raposa fina.
- E julgais que esse italiano desempenhará melhor o seu papel que Beaufort no seio do governo? - indignou-se Sylvie. - Ele não passa de um comediante!
- Um diplomata! - corrigiu Raguenel. - E é disso que precisa um povo que quer a paz...
Os dias seguintes deram-lhe razão.
Uma vez decorrida a grande sessão parlamentar que anulou o testamento de Luís XIII, a fim de conceder plenos poderes a Ana de Áustria, passadas as suntuosas exéquias que levaram o falecido Rei até à cripta de Saint-Denis, foi altura para o Louvre se tornar palco de um agradável período de reencontros. Depois de Marie de Hautefort, que recuperou o seu posto de açafata, foi a vez do fiel La Porte, exilado depois do caso de Val-de-Grâce; este regressou naturalmente ao seu posto de camareiro-mor da Rainha, que o recebeu de lágrimas nos olhos. Nem um nem outro haviam mudado, tal como Mme. de Senecey, muito feliz por deixar o seu castelo em Conflans, para ocupar o cargo de governanta dos Filhos de França, substituindo a marquesa de Lansac, convidada a partir de visita às suas terras. Quem também apareceu foi o marechal de Bassompierre, liberto da Bastilha, depois de lá ter passado doze anos a redigir as memórias. Envelhecera, mas era sempre o mesmo companheiro agradável, que Perceval de Raguenel se apressou a visitar. Deste modo quase que se reconstituiu o antigo círculo da Rainha, bem como o capítulo do Val-de-Grâce, onde a madre de Saint-Étienne reencontrou a sua mitra abadal. No entanto, continuava a faltar alguém de peso: a duquesa de Chevreuse, uma amiga de vinte anos, exilada por um período de tempo quase idêntico, mas que a Rainha ainda não se decidira a chamar de volta. Talvez por influência de Mazarin: não só conhecia o segredo da aventura com Buckingham, como estava inteirada de outros, ainda mais perigosos, relacionados com incessantes conspirações com a Espanha, cujo cúmulo fora a conspiração que envolvera Cinq-Mars.
Quando ela finalmente regressou, sempre soberba, apesar dos seus quarenta e três anos, sempre arrogante e disposta a trincar alegremente as mais requintadas iguarias da rica França, continuando ligada às chancelarias dos países mais hostis ao reino, apercebeu-se que da sua antiga influência, afinal apenas restava a lembrança dos belos tempos por que passara. A Rainha recebeu-a amistosamente, mas as duas mulheres não ficaram muito tempo sozinhas. Todo sorrisos, Mazarin não tardou a aparecer: vinha oferecer uma bela soma à retornada, para que esta pusesse em bom estado o seu castelo de Dampierre, no vale de Chevreuse, na condição de ser ela própria a tratar do assunto. A duquesa compreendeu logo, não a desejavam na Corte e tinham arranjado uma maneira de a reembolsarem pelos seus serviços. O que ela não recusou, devorada pela voracidade costumeira, mas quando deixou o palácio, levava consigo uma raiva bem dissimulada, um ódio tremendo por Mazarin e um rancor pela Rainha, disposta a obter a sua vingança, mais dia menos dia.
O olhar vivo de Marie de Hautefort seguia isto tudo com interesse apaixonado, enquanto esclarecia Sylvie acerca dos meandros desta grande mudança:
- Ou muito me engano - contou um dia à sua amiga - ou dentro em pouco o nosso François arrisca-se a sofrer uma amarga desilusão. Não me agrada nada os apartes contínuos da nossa Rainha com esse palerma! (subentende-se que para ela “palerma” era apenas um epíteto para designar Mazarin).
Ainda não se chegara a esse ponto. O regresso dos Vendôme provocara um certo alarido, sobretudo o do duque César, que se tornara uma espécie de curiosidade, dado todo o tempo em que se falara dele sem nunca ter estado presente. Apareceu, portanto, rodeado por todo um aparato de gentis-homens, a fim de retomar o seu lugar na Corte mas, mais manhoso que Beaufort, desfez-se em mil cumprimentos para com o novo cardeal, o que não deixou de inquietar os seus, que conheciam a sua atração pelos belos jovens; na realidade, César interessava-se muito mais pela Bretanha que pelo charme de Mazarin. No seu exílio, sonhara demasiado com aquele governo que considerava patrimônio seu, para deixar agora de desejar recuperá-lo ardentemente. A morte de Richelieu que era seu titular e que exercera o respectivo cargo deixara o lugar livre. Infelizmente, os seus sorrisos de nada lhe serviram. O desejado governo já fora atribuído ao marechal de La Meilleraye, que César execrava. Então resolveu retirar-se, como Aquiles para a sua tenda, e foi amuar no meio dos painéis dourados do seu hotel de Vendôme.
Marie de Hautefort não se enganara ao vaticinar uma desilusão a François e, em breve, pai e filho puseram-se de acordo em jurarem ambos um ódio rotundo ao novo cardeal. Na realidade, uma vez dotada de plenos poderes, a regente deixou transcorrer um prazo conveniente antes de desferir uma jogada estrondosa, Mazarin seria doravante Primeiro Ministro! François de Beaufort julgou que ia morrer de raiva, mas teve o cuidado de não protestar. O que devia fazer era endurecer as suas posições e rebaixar o outro ao nível de simples executante, quer das vontades reais, quer dos seus próprios desejos.
Odiava instintivamente aquele homem e não compreendia por que motivo a sua Rainha se voltava para aquela imitação de prelado, a ponto de não tomar qualquer decisão sem escutar primeiro a sua opinião. Talvez ciumento, o esperto italiano ergueu a pouco e pouco uma barreira entre a regente e o homem que tanto a amara. É claro que Beaufort não conseguiu aguentar esta situação durante muito tempo. Decidiu que estava na altura de reafirmar o seu domínio sobre Ana e os seus direitos de amante, mesmo que o luto real não o autorizasse minimamente. A infelicidade quis que, impelido pelo seu caráter fogoso, ele o fizesse de uma forma tão desastrada que chegou a perturbar Sylvie, presente no Grande Salão quando ele entrou certa manhã, clamando que queria ver a Rainha.
- Monsenhor, isso é impossível - disse-lhe La Porte. - Sua Majestade está no quarto e não recebe ninguém.
François contentou-se em sorrir e, depois, afirmou:
- Vamos lá, La Porte, bem sabeis que, a mim, ela me há-de receber!
- Não, senhor duque. A Rainha está no banho.
- Ainda melhor!
E, empurrando o criado, entrou tranquilamente no quarto, sem querer ouvir o grito de Sylvie, para quem nem se dignara a olhar. Não ficou lá muito tempo, uma torrente de injúrias espanholas, proferidas numa pronúncia apropriada, obrigou-o a fugir em retirada, de um modo tão precipitado que Marie de Hautefort, presente ao lado da Rainha, desatou a rir. Sem pedir mais, François deixou o aposento real, tendo por única satisfação o prazer de bater com a porta na cara de um dos guardas suíços.
A ira da Rainha não durou muito. Ainda gostava muito dele para ficar zangada com ele muito tempo, se bem que Mazarin lhe tivesse secamente realçado a inconveniência daquela cena. Mas ocorreu ainda outro incidente, que veio cavar um pouco mais o fosso que separava os dois amantes. A bela Montbazon, amante de Beaufort, que detestava a antiga Mlle. de Conde, entretanto duquesa de Longueville, visto que François fora durante muito tempo um dos seus pretendentes, tentou atacar a sua reputação de jovem esposa. Uma sorte inesperada fez com que, após a saída de algumas visitas, a Montbazon encontrasse no seu salão duas cartas perdidas pelo marquês de Coligny, que eram muito belas e ternas, e obviamente redigidas por uma mulher. Decretou imediatamente que a autora era Mme. de Longueville, convenceu François da justeza da sua análise e fez disso grande chacota, aproveitando-se mesmo da grande reunião da Corte e da alta nobreza, que celebravam as núpcias de Elisabeth de Vendôme com o duque de Nemours.
O casamento o primeiro do reinado de Luís XIV foi celebrado no antigo Palácio do Cardeal, que se tornara o Palácio Real, para onde a Rainha e os filhos tinham acabado de se mudar. Esta residência, verdadeiramente principesca, era muito mais agradável para viver do que o velho Louvre decrépito e sempre em obras.
A princesa de Conde, mãe da duquesa de Longueville, lançou raios e coriscos, dizendo que se tratava de um insulto público e de uma calúnia... e a Rainha deu-lhe razão, a imprudente Montbazon teve de ir ao hotel de Conde apresentar as suas desculpas em público. Claro que estava presente uma enorme quantidade de gente, mas ela fê-lo com uma insolência e uma desenvoltura bem ao estilo de Beaufort, lendo um pequeno texto que pregara ao leque como se fosse uma má comediante e com um sorriso de desprezo, deitando-o depois fora, com desdém...resultado: quando da reunião seguinte, na qual estavam presentes as damas e a princesa de Conde, a regente pediu-lhe que se fosse embora. Louco de raiva, Beaufort precipitou-se até Ana:
- Ela já fez o que lhe mandastes - exclamou, sem se preocupar com as pessoas presentes. - Não tínheis o direito de humilhá-la de novo.
A Rainha, muito bela com aqueles véus pretos que tão bem condiziam com a sua tez alourada, tentou acalmá-lo:
- Há muitas maneiras de fazer as coisas, meu amigo. Teríeis experimentado a mesma sensação que eu, caso a vossa duquesa não vos fosse tão querida.
O azedume que transparecia na voz de Ana nem sequer encontrou caminho nos ouvidos do jovem, que encolheu os ombros. A infelicidade fez com que Mazarín, que há pouco entrara, se aproximasse, armado com o seu sorriso mais meloso. Beaufort arremeteu furiosamente:
- Senhora, dir-se-ia que já passaram os tempos em que sabíeis ouvir a voz dos vossos verdadeiros amigos. Ela foi abafada pelas dos recém-chegados, sem que vos tenhais inteirado do seu pouco valor...
E, rodando os calcanhares sem sequer saudar, esbarrou com Sylvie, que chegava acompanhada por Fontsomme, seguindo as pisadas do cardeal. Na disposição em que se encontrava, foi como se eles lhe tivessem estourado à cara. Os seus olhos cintilantes envolveram o par com um olhar no qual a cólera se esforçava por expulsar a dor, enquanto o rosto empalidecia sob o efeito daquela tempestade.
- Pois bem, - resmungou - eis a coroa de glória desta jornada! Dir-se-ia que haveis escolhido o vosso campo, Mlle. de Valaines: chegais a coberto das saias de Mazarin.
Jean ia retorquir, mas Sylvie não o deixou:
- Não estou debaixo das saias de ninguém. Venho apenas entrar ao serviço, junto a Sua Majestade. O cardeal estava a chegar antes de nós e não havia qualquer motivo para o alcançar. Afinal ele é o Primeiro Ministro e...
- ... não é, em nenhum caso, um homem de Deus! Esquecei-vos que ele é o inimigo de todos quantos vos amaram até agora? E vós, duque? Também vindes prestar algum serviço?
- Se bem que isso não vos diga respeito, monsenhor - respondeu o jovem - trago uma carta para a Rainha...
- Da parte de quem? - perguntou altivamente Beaufort.
- Não abuseis da minha paciência! Ficai apenas a saber - acrescentou, ao ver a expressão de dor que substituía a de cólera no rosto do seu adversário - que Mlle. de Valaines e eu nos encontramos em...
- Que necessidade tendes de vos justificar?! Como se não soubéssemos todos que estais noivos! Agrada-vos a idéia de vos tornardes duquesa, Sylvie? Que desforra sobre o destino!
Foi a vez desta perder a paciência:
- Julgava-vos mais inteligente - exclamou - mas só sois capaz de ver aquilo que melhor vos convém. E o que vos convém, é agirdes como se não me conhecêsseis. Visto que assim é, ficai a saber: ainda não havia nada de definitivo entre mim e M. de Fontsomme. Eu estava livre... até agora.
- O que significa?
- Que já não o estou!
E, depois, voltando-se para o companheiro.
- Meu caro Jean, casar-nos-emos assim que o desejardes. Vamos pedir imediatamente autorização a Sua Majestade!
Mesmo que se tivesse sentido tentada a arrepender-se daquelas súbitas palavras, esqueceu-se disso ao ver a felicidade que irradiava o rosto do jovem duque. Com infinita ternura, este pegou na mão que ela acabara de lhe oferecer.
- Acabais de me fazer infinitamente feliz, Sylvie! Mas, tendes a certeza...
- Absolutamente! Já é tempo de o meu coração aprender a bater a um ritmo diferente do de outrora.
O choque provocado por aquela decisão ainda tornou François mais pálido. Descobriu que sempre amara Sylvie mas que, para ele, esse amor era algo de adquirido no seu inconsciente, um jardim secreto onde sempre se encontrariam. E eis que agora também ela se afastava. Sentiu que a imagem da jovem, tal como a descobria agora que a perdera, não mais se apagaria. Meu Deus, como ela estava bela!
Toda vestida de cetim, de uma cor cinzenta esbatida e atravessada por raios dourados, com reflexos do mesmo tom na massa sedosa da cabeleira, ela estava mais que encantadora, e esse tesouro ia escapar-se-lhe para se entregar a outro! E porque era na sua natureza reagir com violência, foi acometido de um desejo furioso de se lançar sobre ela, de pegá-la nos seus braços, para a levar o mais longe possível daquela falsa corte e das suas feras, até... sim, até Belle-Isle! Aí... e só aí, poderiam ser felizes, separados do resto do mundo!
Teve a impressão de estar só no meio de um grande silêncio, e era esse efetivamente o caso, pois todos seguiam a cena sem dizer nada, e já ia precipitar-se quando se ouviu a voz melodiosa de Mazarin:
- Menina, a Rainha está à vossa espera, e a vós também, senhor duque! Sua Majestade tem pressa em cumprimentar-vos! O vosso casamento enche-a de alegria...
O momento mágico tinha passado. François desatou a correr, como se o inferno fosse atrás dele, pois Mazarin não tinha o direito de se meter naquilo que não lhe dizia respeito. O ódio que tinha por ele decuplicou-se. De um modo perfeitamente injusto, o duque assacou-lhe as culpas da realização daquele casamento que tão cruelmente o magoava. E isso foi o princípio de uma engrenagem fatal. Decidido a desembaraçar-se por todos os meios daquele empecilho, Beaufort, ajudado pelos desiludidos com a regência que mal começara, tramou a conspiração que a História designaria como a “dos Importantes”: o cardeal devia ser morto durante uma viagem até Vincennes...
Mas como todas as conspirações dessa louca época, esta também transpirou. O castigo caiu como um raio...
No dia 1 de Setembro de 1643, na capela do Palácio do Cardeal e na presença do pequeno Rei, da Rainha regente e de toda a Corte, Jean de Fontsomme desposava Sylvie de Valaines, a dama de L’Isle do Vendômois. Faltaram duas pessoas a esse casamento: César de Vendôme, que “estava a banhos em Conflans” e o seu filho François, que o fora visitar para quebrar o seu enfado.
No dia seguinte, seguro de que não iria encontrar o jovem casal que partira para o campo em lua-de-mel, tal como Sylvie o pedira, Beaufort dirigiu-se ao palácio a pedido da Rainha. Esta recebeu-o a sós no seu Grande Gabinete, com muita amabilidade, dirigindo-se em seguida ao quarto, a pretexto de lá ir buscar um objeto que lhe queria confiar. Ele não a viu regressar.
Quem viu chegar foi Guitaut, o capitão dos seus guardas, que vinha prendê-lo em nome do Rei. Nessa mesma noite o duque de Beaufort era encarcerado em Vincennes, na cela em que o seu tio Alexandre, Grande Prior de França pela ordem de Malta, morrera há quinze anos, de um modo tão suspeito que se tinha falado em assassínio...
UM VENTO DE REVOLTA - 1648
ESCAPOU UM PÁSSARO.
O canhão de Vincennes troou três vezes. O cocheiro reteve os cavalos e inclinou-se:
- Senhora duquesa – gritou - dir-se-ia que se passa algo no castelo.
- Pois bem, parai, Grégoire, e vejamos do que se trata - disse Mme. de Fontsomme, subitamente acometida por uma estranha emoção.
Como de cada vez que ia de sua casa em Conflans até ao hotel parisiense ou vice-versa, Sylvie fazia um desvio para passar por um local de onde podia avistar o torreão de Vincennes, alegando que preferia passar pela porta de Saint-Antoine. Isso permitia-lhe contemplar a velha torre, pelo que o seu coração batia mais depressa, ao ritmo de outrora, ritmo tranquilo e amargo, frequentemente doloroso, mas que conservava ainda tanto charme secreto. Lá no alto, perto das nuvens e tão longe da terra, guardado como o mais precioso dos tesouros, vivia sempre aquele que ela ainda chamava François.
Cinco anos! Dentro em breve teriam passado cinco anos desde que ele fora preso, qual fera apanhada na armadilha urdida por um rato envergando a púrpura cardinalícia! Quando pensava no assunto, o que acontecia com frequência, a pequena duquesa de Fontsomme não podia deixar de sentir um certo remorso pois, para ela, esses cinco anos tinham decorrido sob o signo de uma grande doçura, junto a um esposo que se ausentava muitas vezes a guerra lavrava ainda mais do que no tempo de Richelieu mas que era terno, atencioso e que estava ainda mais apaixonado, se isso fosse possível, desde que ela lhe dera, dois anos antes, uma pequena Marie, que era a menina dos seus olhos e cuja madrinha era Mlle. de Hautefort, que se tornara duquesa d’Halluin, após o seu casamento com o marechal de Schomberg, enquanto que o padrinho era o jovem rei Luís XIV.
Acontecia-lhe que essa sua felicidade cor-de-rosa a enganasse acerca do estado real do seu coração, mas logo que avistava os muros de Vincennes, esse coração tão ajuizado parava um momento de bater, tal como acontecia quando encontrava nalgum salão - que frequentava, contudo, tão pouco - Mme. de Montbazon, cuja fidelidade em relação ao prisioneiro passara quase ao estatuto de provérbio, a ponto do povo ter composto uma canção:
Beaufort, no torreão
Do bosque de Vincennes
Para suportar a sua detenção
Com menos aflição
Um nada, um nadinha
Terá a sua Montbazon
Duas vezes por semana.
A altiva duquesa em nada parecia ofender-se por se encontrar assim relegada ao nível das raparigas da vida, que eram admitidas para aliviar os prisioneiros nos cárceres reais, sobretudo aqueles que desfrutavam de um certo estatuto. Antes pelo contrário! Com orgulho e sem se preocupar com um marido com uma idade mais que respeitável e a quem o caso em nada incomodava, ela respondia a todas as perguntas, fornecendo notícias cuja primeira mão era reservada a Mme. de Vendôme e Mme. de Nemours, mas que davam sempre a Sylvie uma vontade selvagem de esganá-la...
No entanto, esta sabia muito bem quanto a sua benfeitora e a sua amiga de infância precisavam de ser reconfortadas pois, após a prisão de François, o destino daquela família não tinha nada de invejável. O duque César, que tivera de fugir do seu castelo de Anet, “visitado” pelos homens do Rei, retomara o caminho do exílio, mas não para Inglaterra, onde, ai dele, as Cabeças Redondas de Cromwell chefiavam a revolta contra o rei Carlos I e contra a rainha Henrieta, o seu cunhado e irmã. Partira rumo à Itália onde, depois de Veneza e de Roma, se fixara em Florença. Acompanhado por alguns fiéis gentis-homens e por um punhado de belos rapazes, levava a sua vida dissoluta de sempre, que contrastava grandemente com a do seu filho mais velho, Mercceur, enclausurado em Chenonceau, onde se perguntava a todo o momento se um ataque qualquer não o obrigaria a procurar refúgio no esconderijo dissimulado num dos pegões da ponte. O contraste também era flagrante em relação à vida de sua esposa, que estava relegada ao seu hotel do faubourg de Saint-Honoré onde, apoiada pelo seu velho amigo Philippe de Cospéan, o bispo de Lísieux, e pela calorosa amizade do senhor Vincent, ela se esforçava para que François tivesse ao menos um julgamento equitável, de tal modo estava convencida que ele seria inocentado. A sua filha também lhe era de grande ajuda e, depois, fiel a si mesma, Françoise de Vendôme encontrava sempre tempo disponível para a sua obra querida, o auxílio que se esforçava por levar até junto das raparigas da vida, fossem livres ou contratadas por bordéis. Naturalmente, Sylvie via ambas, mãe e filha, muito frequentemente.
Entretanto, em Vincennes, o som do bronze continuava a alimentar uma insólita agitação. Sylvie mandou parar a sua carruagem sob as árvores e enviou um dos seus dois criados em busca de notícias mas, quando este regressou ao fim de alguns minutos intermináveis, ela ficou espantada com a sua cara, onde estava estampada a alegria.
- Então? - perguntou.
- É uma grande notícia, senhora duquesa! Monsenhor, o duque de Beaufort, acaba de se evadir...
O coração de Sylvie desatou aos pulos.
- Dir-se-ia que isso vos regozija, meu amigo?
- Oh, sim! Não é à senhora duquesa que recordarei quanto a gente do povo gosta de M. de Beaufort. Paris vai dançar de alegria quando souber que ele escapou a Mazarin.
A festa começava aparentemente com os próprios criados de Sylvie que, muito ligados a uma jovem senhora que eles sabiam ser um tanto não conformista, tinham descido dos seus assentos para se congratularem, antes de regressar para junto dela:
- Não vale a pena perguntar à senhora duquesa se ela também está contente - disse o velho Grégoire, o cocheiro, o último de uma dinastia ligada ao serviço dos Fontsomme desde a Idade Média e que se permitia algumas familiaridades.
- É verdade, estou contente - disse Sylvie. - Já se sabe o que se passou?
- Não muito bem. Ao que consta teria descido por uma corda atada ao alto do torreão, uma corda demasiadamente curta, pelo que teria saltado. Mas que está cá fora, isso é certo!
- Muito bem! Vamos tentar saber mais. Ide para o hotel de Vendôme! Os três homens não esperaram que ela tivesse de repetir a ordem; cada um subiu para seu lugar e a carruagem partiu a trote acelerado, enquanto Sylvie se recostava nas almofadas de veludo. Então, ele estava livre! Finalmente, o vaticínio realizara-se!... Efetivamente, desde há alguns meses que Mazarin passava por horas difíceis por causa de um certo Coysel, que profetizara que Beaufort estaria livre pela altura de Pentecostes. O supersticioso italiano esforçava-se por dar pouca importância a um vaticínio que o angustiava mas, ainda assim, mandara reforçar a guarda ao prisioneiro. E eis que hoje, dia de Pentecostes, a profecia realizara-se! Oh, Sylvie não precisava de um grande esforço de imaginação para, no ecrã escuro das suas pálpebras fechadas ver François de cabelos ao vento, galopando através dos campos, sentindo a embriaguez da liberdade reencontrada, com uma felicidade fácil de adivinhar. Mas quem estaria a galope a seu lado, e para onde se dirigia?
A estas perguntas a jovem via duas respostas. Mme. de Montbazon, que o viera certamente esperar nalgum traje de cavaleiro, e o castelo de Rochefort-en-Yvelines, que pertencia a seu marido, que continuava sendo governador de Paris, e onde Mazarin não se aventuraria...
Efetivamente, a popularidade de Mazarin, se é que alguma vez a tivera, descera ao seu mais baixo nível. O povo, mantido tanto tempo sob o punho de ferro do cardeal de Richelieu, não fazia qualquer distinção entre o Florentine Concini, que tanto peso tivera sobre a regência de Maria de Médici, e “Mazarini”, de origem siciliana, e cujo manto estendia a sua sombra purpúrea sobre o de Ana de Áustria. Ambos deviam ser postos no mesmo cesto, eram favoritos mais preocupados com as curvas graciosas das suas bolsas do que com o bem do Estado! Nessas condições, qualquer que fosse o gênio de Mazarin, ele nunca seria levado em consideração. Deus sabe, contudo, como era difícil a sua tarefa para preservar o essencial da política interior do grande Cardeal e, sobretudo, a exterior, onde as armas continuavam a dar cartas! É certo que as vitórias obtidas pelo antigo duque d’Enghien, que se tornara príncipe de Conde, mantinham o inimigo além fronteiras mas, desde há quase quatro anos, o congresso de Vestefália esforçava-se por pôr cobro a uma guerra que devastava uma parte da Europa, arrastando no conflito os reis de França, da Espanha, o Imperador, o rei e, depois, a rainha da Suécia.
No seu reino Mazarin tinha que contar com Conde, bem empoleirado nas suas vitórias e cuja ambição era desmedida. O apetite também: não parava de reclamar títulos e funções, não escondendo que o lugar de Primeiro Ministro lhe assentaria bem.
Na realidade, neste momento da nossa história, a grande vitória de Mazarin era sobre a regente. Daquela espanhola tão firmemente ligada aos interesses da sua pátria, ele fizera uma verdadeira Rainha de França, disposta a varrer tudo à sua frente pela glória futura do filho e que, fazendo tábua rasa de todos aqueles que a tinham servido, amado, apoiado, só o escutava a ele. Até se dizia que o teria desposado em segredo...
Mas o poder do cardeal continuava frágil. A guerra incessante quando se esperara a paz! As perdas de vidas humanas e o seu corolário, os renovados aumentos de impostos, exasperaram os espíritos, tanto mais que, no ano anterior, o Parlamento de Paris tivera de votar, contrariado, vinte e sete artigos que diziam quase exclusivamente respeito à fiscalidade. Desde essa altura a cólera dos parlamentares ia crescendo, a ponto de os ter levado, quinze dias antes, a 13 de Maio de 1648, a votarem o decreto da União, ato de desobediência formal, que permitia aos deputados das quatro Cortes soberanas reunirem-se sem a autorização do Rei e, portanto, do cardeal para reformarem o Estado. A partir dessa altura os olhares dos parisienses voltavam-se cada vez mais frequentemente na direção do torreão de Vincennes onde o seu príncipe favorito, a vítima mais cotada de Mazarin, vivia o seu injusto cativeiro.
Em todo o caso, a notícia da evasão atravessou Paris mais depressa que os cavalos de Sylvie. Quando chegou ao hotel de Vendôme, teve de passar através de um verdadeiro monte de gente que, ao sair das vésperas, tinha ali acorrido para testemunhar o seu entusiasmo à mãe do herói. Ao reportarem-se à festa do dia, os parisienses não estavam longe de ver um milagre com que o Espírito Santo os presenteara. Fora preciso pelo menos uma ajuda divina para ter adormecido a desconfiança dos guardas o príncipe estava “guardado à vista” e para ter dado asas a François de Beaufort... No entanto, deixaram passar a carruagem de Sylvie que, desde que se casara, adotara as tradições caritativas das duquesas de Fontsomme, com aquele ardor que punha em tudo o que fazia. Qualquer tipo de miséria recebia auxílio e consolo, tanto no seu hotel da rua Quincampoix, como no seu solar em Conflans. Além disso, flanqueada por dois criados munidos de grandes cestos, ela visitava aqueles que a enfermidade pregava às suas tarimbas e cujos endereços lhe eram dados pelo senhor Vincent, que a conhecia desde a infância. Foi deste modo que Grégoire só teve de gritar: “Deixem passar a senhora duquesa de Fontsomme!” para que a multidão se apartasse com um murmúrio de simpatia.
Foi quase mais difícil entrar nos aposentos de Mme. de Vendôme, onde todos se amontoavam, falando ao mesmo tempo. Estavam lá os amigos, e a mãe de François, esmagada por tantos abraços, passava dos braços de um para os de outro, apesar dos esforços do senhor Vincent e do bispo de Lisieux para evitar que sufocasse. Sylvie nem sequer procurou aproximar-se dela e desviou-se na direção de Mme. de Nemours que se encarregava de conseguir que todos pudessem beber à saúde do evadido.
Elisabeth estava radiante de alegria e não parava de repetir qual fora o subterfúgio com que conseguira tirar o irmão da prisão real, com a ajuda de alguns amigos dedicados:
- Um patê. Um simples patê, cujo recheio eu própria ajudei a preparar! Dentro do patê havia uma corda de seda bem sólida, enrolada em torno de um pau, dois punhais e uma mordaça destinada ao delegado Ia Ramée, que M. de Chavigny, o governador de Vincennes, tinha especialmente destacado para vigiar o meu irmão.
- Esse patê devia ser enorme, não?
- Era, mas François pedira-o para umas vinte pessoas, dado que as suas sobremesas iam sempre parar às mãos dos soldados encarregues de o vigiar...
- Mas, mesmo assim, deveis ter-vos assegurado da ajuda de alguém no interior, não? - perguntou uma dama de voz aguda que Sylvie não conhecia. Aliás, foi esta que se encarregou de responder.
- São coisas que não se podem fazer, senhora. Pensai que está em jogo a vida de várias pessoas! O cardeal Mazarin deve estar furioso...
- Oh, querida Sylvie, vós também aqui estais - exclamou Elisabeth, que ainda não a vira. - Meus amigos, permiti que eu fale um momento, em privado, à senhora duquesa de Fontsomme! Volto já.
Pegando no braço da amiga, foi fechar-se com ela na casa de banho da mãe, onde se sentaram ambas no rebordo da pesada dorna de madeira, que mais se parecia com um tonel.
- Minha cara, gostaria que me prestásseis um serviço, indo até ao palácio Real para verdes o que se passa em redor da Rainha...
- É essa a minha intenção. Aliás ia para lá quando, ao passar frente a Vincennes, soube da evasão e foi então que vim até cá.
- Hoje estáveis de serviço?
- Não, não estava, e devia estar em Conflans com a minha pequena Marie, mas ontem recebi uma mensagem da Rainha pedindo-me para ir passar um bocado ao pé do nosso jovem Rei, que está doente e que reclamou a minha presença.
- Regressareis para me dizerdes como estão as coisas por lá?
- Se puder. Depende da hora a que sair. Se já for muito tarde, enviar-vos-ei um bilhete logo que tiver voltado à rue Quincampoix. Esta noite não regressarei a Conflans...
- Sois realmente um amor! Tendes boas notícias do vosso marido?
- Ele nunca escreve, não é um dos seus pontos fortes, mas sei que tudo lhe corre bem. Ainda está com o príncipe de Conde, algures entre Arras e Lens. Às vezes é penoso ser-se a esposa de um homem de guerra: ele está tantas vezes ausente!...
- Gostais muito dele, não é verdade?
- Muito...
Não acrescentou que, às vezes, criticava a si mesma não poder amá-lo ainda mais, por causa daquela parte da sua alma sempre presa a uma imagem e Mme. de Nemours não fez mais perguntas. Acabara de se ouvir uma voz tonitruante vinda do amplo quarto e Elisabeth levantou-se logo. Um pouco, pensou Sylvie, de forma muito pouco condescendente, como um cavalo de batalha que tivesse ouvido o toque de clarim:
- Ah! Chegou o abade de Gondi! Eu... já o esperávamos desde muito cedo... Dai-nos depressa notícias vossas, Sylvie!
E desapareceu, envolta num turbilhão de tafetás azuis, deixando a amiga entregue à descoberta que acabara de fazer. Seria possível que, casada com um dos homens mais encantadores de França, Elisabeth estivesse ainda apaixonada por aquele pequeno padre agitado, nervoso, cheio de tiques, pleno de espírito e que se dizia que fora seu amante? É verdade que Nemours sempre a enganara e que, afinal de contas, era muito raro encontrar a felicidade num casamento entre príncipes...
Deixando para mais tarde o beijo destinado à mãe de François, Sylvie voltou à carruagem e dirigiu-se para o Palácio Real, onde a esperavam. Mas já não sentia o mesmo prazer de outrora. Não fosse o pequeno Luís, que ela amava com um amor quase materno, talvez tivesse renunciado àquele lugar de dama do palácio que, depois do casamento, substituíra o seu posto de leitora, mas que não mudara finalmente grande coisa nas funções que devia desempenhar junto às personagens reais, chegava ainda a ter de ler para a Rainha e, sobretudo, passava longos momentos ao pé do pequeno Rei, com a guitarra à laia de laço de união entre eles.
Esse era um dos melhores momentos do dia, tanto para um como para o outro. Efetivamente, apesar das ocasiões solenes às quais a criança e o seu pequeno irmão Filipe eram obrigados a comparecer, Luís, não obstante a adoração que tinha pela mãe, só a via uma vez por dia, entre as dez e as onze da manhã, altura em que ela se levantava. Era a ocasião em que Ana recebia as suas damas e os principais oficiais da Coroa. Traziam-lhe os filhos e Luís tinha o privilégio de lhe vestir a camisa. Depois as crianças voltavam aos seus respectivos aposentos, onde faziam mais ou menos o que lhes apetecesse, enquanto a mãe, entre o Conselho, as devoções, as visitas à cidade, o círculo, as refeições e as festas, levava uma vida intensa que a conduzia habitualmente para lá da meia-noite. Ela continuava a viver à hora espanhola... Com este regime, a Rainha engordava a olhos vistos e perdia parte da beleza, mas a sua tez ainda conservava uma grande frescura. Ela também cultivava a indolência e, se gostava muito dos seus filhos, contudo, não se ocupava minimamente deles, contentando-se em vê-los belos e bem vestidos quando das presenças oficiais, sem se preocupar com o que lhes pudesse suceder longe da sua vista.
Ora, a maior parte do tempo, Luís e Filipe encontravam-se entregues aos cuidados dos criados, que não se preocupavam nem com o estado das suas roupas, nem com as horas das refeições. Não era raro ver o rei de França e o duque d’Anjou a terem de roubar uma omelete na cozinha para saciarem a fome. Brincavam muito e sem serem vigiados, certo dia o pequeno Rei quase se afogou numa lagoazita, sem que alguém disso se tivesse apercebido, à exceção de um bravo guarda suíço que acudiu ao som dos seus gritos.
Ter-se-ia podido pensar que as coisas iriam mudar quando o pequeno Rei completasse oito anos, altura em que seria entregue aos cuidados dos homens o marquês de Villeroy tornar-se-ia então o seu encarregado de educação e o abade Hardouin de Péréfixe o seu preceptor. Não foi isso que aconteceu e o fiel La Porte, nomeado primeiro criado grave, afligia-se, só podendo confessá-lo, de modo frequente, a Sylvie:
- Está muito ocupado em guardá-lo só para ele! - respondeu a jovem irada que, incapaz de se calar, foi ter com a Rainha para lhe explicar um estado de coisas que lhe parecia incrível. Esbarrou com uma verdadeira apatia e foi Mazarin quem se encarregou de lhe dar a entender que se ela quisesse conservar o privilégio de ensinar música ao Rei, era melhor que não se intrometesse na vida do interior do palácio. O seu esposo disse-lhe o mesmo:
- Mazarin é muito forte para vós, minha querida. Não entreis numa batalha que ireis perder de antemão. A Rainha apoiá-lo-á sempre. Lembrai-vos do que aconteceu à nossa amiga Hautefort...
Efetivamente, pouco tempo após a prisão de Beaufort, Marie não conseguira conter a sua indignação. Numa manhã em que, desempenhando o seu papel de açafata, ajudava a Rainha a escolher os seus sapatos e a calçá-los, tinha tentado explicar com muita calma, o que, no seu caso, era uma proeza que a regente devia mostrar-se mais comedida nas relações que mantinha com o ministro e sobre as quais se começava aliás a falar, mas nem pôde ir muito longe na sua argumentação: Ana entrou logo numa cólera “à espanhola”, atirando um pontapé à jovem ajoelhada à sua frente, dizendo-lhe que abandonasse de imediato o seu serviço e saiu, de seguida, sem querer ouvir mais nada.
Para a orgulhosa Marie, fora uma afronta cruel. Tal como outras antes dela, tal como Mme. de Chevreuse, que se retirara cheia de raiva para o seu castelo em Couzières, ela acabara de descobrir que a ingratidão fazia parte dos defeitos de Ana de Áustria e que, se esta tinha apreciado a amizade nas horas difíceis, uma vez alcançadas as alegrias do poder, achava mais cômodo desembaraçar-se daqueles que sabiam demais. O seu brusco acesso de cólera assemelhava-se muito a um pretexto.
- Tende cuidado que um dia não vos aconteça o mesmo! - aconselhou Marie a Sylvie, enquanto fazia os últimos preparativos da sua partida. - Receio que a Rainha alimente um sentimento um nada demasiado terno por Mazarin. Portanto, cuidai-vos...
Graças a Deus, ao perder uma amizade que estimava, Marie veio a encontrar o amor, o grande amor, aquele que nunca julgara possível encontrar. Perdidamente apaixonado por ela, o marechal de Schomberg não só obteve a sua mão como o seu amor. Tinha mais vinte anos que a esposa, mas era “belo e sombrio como um deus”. Amaram-se apaixonadamente e Marie, desde essa altura, durante as ausências do esposo, nunca saía do seu lindo castelo de Nanteuil, onde Sylvie ia frequentemente visitá-la...
Nessa tarde de Pentecostes, ao entrar no Palácio Real, Sylvie perguntava-se como iria ser recebida, apesar da ordem que lhe tinham enviado. Mas esperava-a uma surpresa: quando entrou nos aposentos da Rainha, Mazarin encontrava-se presente e estavam ambos tão ocupados a rir-se, que nem sequer deram pela sua chegada. Ela aproximou-se de Mme. de Motteville:
- Por que se mostram tão felizes? - inquiriu, num sussurro. - Não pode ser...
- ... a evasão do belo François, mas é mesmo! Sua Eminência acha que é uma história divertidíssima.
- Pois bem, não o imaginava tão desprovido de rancor.
Nesse momento o riso da Rainha acabou numa frase concludente, enquanto o cardeal se inclinava, antes de sair:
- De qualquer modo ele agiu muito bem! Teria sido difícil, para nós, poder libertar esse louco, sem que houvesse logo alguém para encontrar algo a dizer. Ah, Mme. de Fontsomme! O Rei espera-vos com impaciência...
- Sua Majestade está doente?
- Não, não está. Vai bem, mas desde ontem que não pára de gritar que compôs uma canção e que deseja cantá-la convosco. Imagino que estais ao corrente da grande notícia do dia? Eis que o vosso amigo Beaufort corre pelos campos fora. Deveis estar contente, não?
O tom era um pouco afetado, mas era preciso mais para comover Sylvie:
- É verdade, Senhora, estou contente. Cinco anos de prisão é muito tempo, sobretudo para ele!
- Não se devia ter metido nas embrulhadas que o levaram para lá. Contudo, se ele pensa que nos pregou uma linda partida, está muito enganado. O senhor cardeal, que devia ser a sua vítima, não está muito descontente.
- Mas, depois da predição de Coysel, ele não tinha mandado dobrar a guarda ao prisioneiro?
- Reação muito natural mas, desde então, Sua Eminência encontrou um excelente meio para trazer para o seu lado toda a família dos Vendôme. Daí a tranquilidade com que recebeu a notícia da evasão.
E, dado que Sylvie não ousava prosseguir com as suas perguntas e olhava para ela com uma vaga inquietação, a Rainha deu-lhe uma pancadinha no braço com a ponta do leque.
- Nunca adivinhareis! Um casamento, minha cara, um grande e belo casamento, o da mais velha das suas sobrinhas com o duque de Mercceur. Desse modo, o futuro duque de Vendôme tornar-se-á seu sobrinho e o nosso pobre Beaufort só terá interesse em ficar quietinho... Agora, ide ter com o Rei! Daqui a pouco irei ter convosco!
- Senhor! - pensou Sylvie, ainda sob o choque da notícia. Mas esta gente é doida! O duque César, mesmo exilado, nunca aceitará misturar o sangue de Henrique IV com o desse italiano! E nem sequer imagino o que poderá dizer François... Os Mazarin em casa dos Vendôme! Parece um sonho!
Na realidade, desde há alguns meses que Mazarin tratava de partilhar os benefícios da sua fortuna com a sua família[21]. No dia 11 de Setembro do ano anterior, tinham chegado de Itália três sobrinhas e um sobrinho seus: duas morenas, de treze e de dez anos: Laura e Olympe Mancini, e uma pequena loura também com dez anos, Anna-Maria Martinozzi. Quanto ao rapaz, Paul Mancini, tinha doze anos. O mais surpreendente foi o acolhimento que lhes dispensou a Rainha. Essas pequenas raparigas lindas ou que prometiam vir a sê-lo foram imediatamente tratadas como se fossem verdadeiras princesas. E, dado que o cardeal era um vizinho próximo do Palácio, foi lá que foram educadas. Mme. de Senecey, novamente disponível, pois o Rei passara a dispor de um mestre, foi encarregue da sua educação, o que escandalizou muita gente mas, aparentemente, o bom povo e a nobreza ainda não tinham chegado ao fim das suas surpresas quanto aos desígnios do cardeal para com aquelas que já chamavam as “Mazarinetas”. Pretendia casá-las com gente de elevada nobreza e, nesse intuito, não perdia o seu tempo.
Sylvie foi encontrar o jovem Luís XIV meio estendido numa chaise longue, ao pé de uma janela aberta que dava para os canteiros floridos dos jardins. Parecia triste e cansado, e ela ficou logo inquieta:
- Vossa Majestade está doente?
Não era uma questão de conveniências. No mês de Novembro anterior, o jovem Rei contraíra bexigas e o seu estado de saúde fora rapidamente considerado como grave. Na realidade, a criança só estivera doente duas semanas e depois a saúde regressou, deixando no rosto infantil apenas alguns sinais ligeiros daquele mal terrível, mas esses dias Sylvie vivera-os um a um, desesperada com a idéia que o filho de François, que considerava um pouco como o seu, pudesse desaparecer... Daí a angústia que acabava de vibrar na sua voz.
O pequeno Rei, que ia quase nos seus dez anos, sorriu-lhe:
- Porto-me muito bem, duquesa! Não vos atormenteis! Só que estou muito descontente e peço-vos muitas desculpas por ter reclamado a vossa vinda, porque não tenho vontade nenhuma de cantar ou de tocar guitarra.
- O meu Rei está descontente? Posso ousar perguntar-lhe porquê?
- Por causa desta evasão de M. de Beaufort! Aqui todos parecem achar que se trata de algo muito divertido. Uma espécie de piada engraçadíssima!
- E Vossa Majestade não o encara da mesma maneira?
O rosto do rapazinho, frequentemente grave, tornou-se severo:
- Não, senhora! Quando um homem é encarcerado devido a um ato suficientemente grave para ser mantido em prisão, não se pode achar nenhuma piada à sua evasão, pois ele foi para lá enviado em nome do Rei e eu sou o Rei! É de mim que se estão a rir e isso é uma coisa que eu nunca tolerarei, haveis-me compreendido? Nunca!
O olhar da criança flamejava com uma cólera tão augusta que Sylvie inclinou a cabeça como se fosse culpada. Ao mesmo tempo sentia-se um pouco assustada, pois Luís, em poucas palavras, acabara de revelar o fundo do seu caráter. Nascido para ser rei, tinha plena consciência disso, o que fazia supor que talvez viesse a ser um grande soberano... a menos que, uma vez instalado no poder, se tornasse no pior dos tiranos.
No entanto, Sylvie não quis deixar passar a oportunidade de defender a causa de François:
- É Vossa Majestade quem tem razão – disse - e confesso ser a primeira a ficar surpreendida com a maneira como a notícia da evasão foi aqui recebida; mas, Senhor, pensai que se trata do caso de um homem encarcerado desde há cinco anos devido a uma simples suspeita. Nunca ficou provado que M. de Beaufort tivesse atentado contra a vida do cardeal.
- É possível, duquesa, mas ele é bem capaz disso. Não vos surpreenderei ao confiar-vos que não gosto nada de Sua Eminência... mas gosto ainda menos de M. de Beaufort!
- Senhor - repreendeu Sylvie, com brandura - ele é o mais dedicado de todos os vossos súditos. O amor dele pelo seu Rei não pode ser posto em dúvida.
- Talvez deveríeis dizer “o amor pela sua Rainha”, não é? - proferiu a criança com uma amargura que continha muito ciúme escondido, para não ser detectado pela sua interlocutora. Depois, acrescentou, colocando uma mão sobre as de Sylvie: - Não quero causar-lhe nenhuma dor, senhora. Sei que ele é vosso amigo de infância e que o amais imensamente, mas que quereis, não sou mais do que, como vós, dono dos meus sentimentos... Não creio que possa vir um dia a gostar de M. de Beaufort...
Se bem que tivessem abordado outros temas de conversação na hora que se seguiu, foram estas últimas palavras que pairaram no pensamento de Sylvie enquanto percorria o curto trajeto entre o Palácio Real e o seu hotel da rue Quincampoix: elas pareciam-lhe constituir uma ameaça futura, quando a criança, agora de nove anos, e ainda sob a dupla tutela da mãe e do seu ministro, viesse um dia a ascender ao poder. Pressentia que ele seria terrível quanto às suas inimizades. Que poderia augurar dos seus ódios? Que aconteceria, nessa altura, ao pai, escondido sob as aparências talvez um pouco excessivas de um sujeito turbulento?... Pobre François, cujas paixões se viravam sempre contra ele! Como haveria de sofrer, caso viesse um dia a saber que o seu filho não o amava!
Já era tarde quando Sylvie regressou a casa, mas as ruas do Marais denotavam uma agitação inabitual e, ao chegar à rua Quincampoix, avistou uma grande quantidade de gente que transbordava do cabaré l’Épée de Bois. Pelo mais curioso dos acasos, o hotel de Beaufort[22] situava-se mesmo ao lado do dos duques de Fontsomme. Hotel silencioso, cego e surdo, do qual apenas o nome atraía a jovem, pois François nunca o habitara.
Fora um dos presentes de Henrique IV a Gabrielle d’Estrees, quando a fizera duquesa de Beaufort. As suas graciosidades renascentistas convinham perfeitamente a uma mulher bonita, mas um homem também lá se podia sentir bem. Contudo, o atual detentor do título nunca ali residira e isso por uma simples razão: enfrentando, desde há anos, a vindicta cardinalícia ou a real frequentemente as duas os Vendôme, quando estavam em Paris, não queriam separar-se. Agrupavam-se no hotel da família e mesmo que François tivesse chegado a mostrar a vaga intenção de estabelecer casa própria, isso nunca passara de um pensamento fugaz, aliás, desagradável para aquele lado mãe galinha de sua mãe. Era assim que a bela residência tinha um certo ar de abandono. Ninguém lá residira muito tempo mas, no entanto, era na sua direção que o povo se dirigia instintivamente, quando os desejava aplaudir, como se a elevada silhueta de François fosse mostrar-se, repentinamente, à varanda.
Sylvie ficou comovida, desde aquela manhã o hotel tornara-se um símbolo para todas aquelas pessoas, como o era, para ela, desde há cinco anos, a partir da altura em que, recém-casada, entrara no hotel de Fontsomme e olhara pela primeira vez para as janelas descoloridas e para o jardim invadido pelos espinhos e pelas ervas daninhas.
Contrariamente a outras residências da nobreza que se esvaziavam quando chegava o Verão, sendo então ocupados os castelos, o hotel de Fontsomme tinha sempre pessoal em número suficiente para mantê-lo aberto e pronto a receber os seus donos. O mesmo passava-se com o solar de Conflans. A grande fortuna dos duques permitia-lhes esse luxo, tanto mais que o castelo da família, situado entre as fontes do Somme e a pequena cidade de Bohain, sofrera bastantes danos em 1634, quando do avanço espanhol e de uma ocupação que só durara um ano graças às tropas de M. de Turenne. Mas os danos eram de monta e o castelo ainda não estava em condições de ser habitado, apesar das grandes obras empreendidas pelo marechal-duque, pai de Jean, e por este último. Portanto, ao chegar à rue Quincampoix, Sylvie encontrou a sua residência preparada para a receber, como acontecia frequentemente devido às exigências do seu serviço junto à Rainha ou ao pequeno Rei.
Já escurecera completamente quando, depois de ter vestido um roupão e tomado um jantar ligeiro, ela desceu ao jardim para respirar o ar dessa última noite amena de Maio, de uma amenidade plena, mas mais ruidosa do que costume. Por cima dos telhados chegavam-lhe os ecos das canções inventadas durante a jornada, em honra do herói do dia, em consonância com a melodia da do “Rei Henrique”. Uma vez por outra ouvia-se um orador improvisado, incitando os ouvintes a sublevarem-se contra “o Mazarin que esfomeava o povo e que fora o carrasco de Monsenhor François”; em seguida, por entre gritos de alegria, ouviram-se os acordes dos violinos procurando sintonizar-se. Podia-se apostar fortemente que se estava a improvisar um baile... e que, no quarteirão, ninguém iria poder dormir.
Isto não perturbava Sylvie. Estava feliz com aquela espécie de consagração que a gente do povo oferecia a François e nessa noite, aninhada como um pássaro no meio dos ramos e das flores, ela decidiu quedar-se ali, até que o som dos violinos a adormecesse. Sentia-se tão bem e de coração tão aligeirado, ao saber que François estava finalmente livre e que não teria mais de recear que viessem um dia dizer-lhe o que ela mais temia desde há cinco anos que ele morrera na prisão, de uma doença tão súbita como misteriosa!
Meio deitada num banco cheio de almofadas, ela escutava a música, olhando para os canteiros à luz do luar e respirando o aroma das rosas. O jardim, que era menos vasto e luxuriante que o de Conflans, estava cheio destas flores, pois o seu esposo, sabendo que ela tanto gostava delas, dissera aos jardineiros que as plantassem por todo o lado, arriscando-se a mostrar que não seguia por aí além a moda dos canteiros de formas rebuscadas, que Sylvie não apreciava muito...
Deixara o seu espírito vaguear quando, subitamente, estremeceu: além, por detrás das janelas do primeiro andar do hotel deserto, destocava-se uma luz: certamente a de uma tocha. Quem viera ali? Seria possível que...? Oh não, isso seria a última das imprudências, pois não se podia fiar no ar sorridente que Mazarin exibia para agradar à Rainha. Na realidade, o cardeal devia ferver de raiva e podia-se ter a certeza que, logo que a notícia fora sabida, haviam sido dadas ordens para lançar todos os polícias do reino no encalce do fugitivo.
Era estranha aquela luz que se deslocava por toda a extensão do hotel. Dir-se-ia um fantasma, mas Sylvie não acreditava no regresso dos mortos. Quem seria então? Um admirador do proprietário, que se aproveitara da festa no exterior para se introduzir na casa? Era possível, mas pouco provável. O hotel talvez não tivesse estado habitado durante muitos anos, mas nem por isso deixava de estar bem fechado e, até, guardado. A própria Sylvie apercebera-se disso quando, impelida pela curiosidade, tentara um dia lá entrar. Os laços estreitos que a uniam aos Vendôme, bem como o seu título de duquesa, de nada lhe valeram, um guarda, um velho soldado que servira às ordens de Henrique IV, mostrara-se tão bem educado quanto peremptório:
- Enquanto o amo não mandar abrir a porta, ninguém poderá entrar... pelo que peço muitas desculpas à senhora duquesa.
Esta cena decorrera há aproximadamente dois anos, e desde então ela nunca mais procurara voltar a entrar e deixara de se preocupar com o guarda. Será que ele ainda lá estaria? Era tão velho que talvez já tivesse morrido... No andar, a luz continuava a sua deambulação e Sylvie decidiu que tinha de saber o que se passava. Rezando a Deus para que ninguém viesse à sua procura, dirigiu-se para o fundo do jardim, para o local onde sabia que existia um muro desfeito e coberto, em grande parte, por hera, que fazia paredes meias com a casa contígua, e tratou de transpô-lo.
Não sem dificuldade, um amplo roupão em damasco amarelo não era propriamente a roupa ideal para andar aos saltos no meio dos destroços e ainda menos as pequenas pantufas de veludo mas Sylvie, fiel aos seus velhos hábitos, quando queria alguma coisa não se deixava demover por nenhuma dificuldade, e o que ela queria era ver quem passeava pela casa deserta da bela Gabrielle...
Depois de transpor o muro sem grandes danos, avançou por aquilo que já fora uma álea e que ainda era localizável, apesar do avanço dos arbustos. Para não cair, era obrigada a olhar onde punha os pés, sem prestar qualquer atenção à luz. Por isso, quando chegou finalmente ao patamar que devia dar acesso aos salões, a fachada estava outra vez às escuras. No entanto, não renunciou; subiu as escadas largas e baixas para chegar a uma porta que, para sua surpresa, se abriu com um rangido. Aí teve mesmo de parar, porque não se via nada no interior. Era preciso esperar que os seus olhos se acostumassem à obscuridade. Pairava um cheiro a mofo, mas também a cera quente. Era ali mesmo que a tocha devia ter sido acesa.
Distinguiu finalmente a parte de baixo de uma escadaria e encaminhava-se para ela, quando uma luz amarelada irrompeu das alturas, passando pelos degraus de pedra empoeirados. Ouviram-se passos prudentes e antes que Sylvie, confusa, tivesse tido tempo para se esconder, estava diante de Mme. de Montbazon que, ao ver aquela sombra clara a sair das trevas, teve primeiro um gesto de recuo para, depois, desatar a rir:
- Não podeis ser o fantasma de Gabrielle d’Estrees, pois sou eu quem está a desempenhar esse papel disse, erguendo o que era afinal um castiçal, o que lhe permitiu reconhecer a recém-chegada. Oh! Mme. de Fontsomme! Havei-vos enganado de porta?
- Não. Estava a apanhar o ar fresco no meu jardim quando avistei a vossa luz. Sabendo que a casa não era habitada desde há muito tempo, senti-me intrigada e transpus aquele muro que está um pouco em ruínas, ao fundo dos dois jardins. Mas vós própria, como haveis feito para entrar? Se tivésseis passado no meio de todo aquele povo que dança lá fora, eu teria certamente ouvido os aplausos...
A duquesa pousou o castiçal num degrau da escadaria e sentou-se ao lado, fazendo sinal a Sylvie para que fizesse o mesmo.
- Bem visto! - respondeu. - Na realidade, vim pelo subterrâneo que serve de comunicação entre este hotel e as caves de uma casa vizinha, que me pertence. Há pois duas saídas possíveis! Assim o quis o rei Henrique IV, que conhecia bem as gentes e sabia com que facilidade elas podem ser amotinadas contra uma favorita. Isso não impediu que a pobre Gabrielle d’Estrees tivesse morrido envenenada no domicílio do banqueiro Zamet...
- Envenenada? Mas ela morreu de convulsões, depois de um parto horrível...
- Isso é a versão oficial que ainda não conseguiu convencer lá muita gente. Pensai um pouco! Ainda mais alguns dias e ela tornava-se rainha de França. O que ninguém, ou quase ninguém, aceitava. Era preciso que ela morresse...
- E terá sido Zamet quem ousou...?
- Não foi obra dele aliás, o rei nem lhe quis qualquer mal mas de outros, que se encontravam ao seu serviço. Já haveis imaginado o que teria significado, para os nossos amigos, a coroação de Gabrielle? A esta hora César de Vendôme seria rei e Mercceur seria o Delfim de França. Quanto ao nosso querido François, seria duque d’Orleans. Isto dá que pensar, não é verdade?
- Mais ainda do que o imagineis! - suspirou Sylvie. - Sabeis que Mazarin pensa em casar a mais velha das suas sobrinhas com Mercceur? Até poderia ser um casamento de amor...
Mme. de Montbazon olhou para Sylvie como se ela tivesse enlouquecido e, depois, desatou a rir.
- Mercceur, sobrinho de Mazarin? Pelas chagas de Cristo! Beaufort é capaz de matar o irmão para impedir esse escândalo!
E pronto! O alto vulto de François acabara de se intrometer entre aquelas duas mulheres, sentadas na escadaria como pássaros empoleirados num ramo.
- Onde é que ele está? - perguntou Sylvie, incapaz de reter por mais tempo a pergunta que lhe queimava a ponta da língua. - Mazarin finge que ri da boa partida que ele lhe pregou, mas tenho a certeza que mandou procurá-lo denodadamente.
- Com certeza! Mas... tranquilizai-vos, ele está em segurança. Só que sabeis como ele é: o problema com ele é que se recusa a enterrar-se nalgum castelo da província, querendo regressar a Paris... e é por isso que aqui me encontro esta noite. Vim cá fazer uma visita, para ver o que é preciso fazer para que este edifício possa ser habitado...
- Regressar a Paris? Não é ajuizado...
- Ele nunca o é, como sabeis. E eu já estou acostumada desde há muito tempo a fazer-lhe as vontades, o que me permite ir tratando das coisas à minha maneira...
- Posso ajudar-vos de alguma maneira?
Marie de Montbazon não respondeu logo. Pôs-se a sondar o rosto da jovem vizinha com um ar meditativo. Finalmente, perguntou.
- Qual é a vossa idade?
- Vinte e cinco anos. Sou seis anos mais nova que François.
- E eu sou quatro anos mais velha... Claro está, vós amai-lo... se não, não estaríeis aqui.
Sylvie desviou os olhos, para escapar àquele olhar esverdeado que parecia querer vasculhar a sua alma, mas levantou-se e pôs um bonito ar de dignidade ofendida:
- Amei-o - disse, com certa secura. - Ele foi o herói da minha infância, mas agora amo o meu marido!
- Não será uma meia verdade? Digamos que gostais muito dele e que, aliás, ele merece-o profusamente. Mas, no fundo, lá bem no fundo do vosso coração, que sentis?
- Por que motivo iria tão longe? De qualquer modo, é a vós que ele ama... - murmurou Sylvie, com um pouco de azedume que não conseguiu conter.
- Não, agora já não, e confesso que até tenho saudades de Vincennes, situação na qual eu tinha a certeza de ser a única! Mas, desde que saiu, tenho a certeza que tem outro amor...
- Sempre a sua velha paixão pela Rainha!
- Ela já tem quase cinquenta anos! Não... há outra coisa. Ele ama-me com o corpo, mas juraria que no seu coração mora outra pessoa...
- Mora mesmo? - perguntou Sylvie, tão brutalmente que foi quase um grito de angústia. A duquesa encolheu os ombros:
- Não é a mim que ele se vai confessar, pois teme os meus ciúmes e, na verdade, não faço a menor idéia. Agora, separemo-nos! - acrescentou, ao levantar-se. - Já vi o que queria e está na altura de me ir embora. Vós também, imagino?
- Com efeito. Contudo, reitero a minha oferta: necessitais da ajuda... de uma vizinha?
- Por ora não, mas agradeço-vos...
Ela ia regressar às profundezas da casa, levando consigo o castiçal, quando mudou de idéias:
- Ah!... Só mais uma palavra, por favor.
- Tende a bondade.
- Não mandeis reconstruir o muro do vosso jardim, para o caso das outras saídas serem fechadas. Se bem que um muro em bom estado nunca lhe tenha feito medo. Os de Vincennes que o digam.
- A propósito da evasão... Ele não se aleijou?
- Ao cair? Sim, no braço: a escada era um bocado curta. Mas um endireita de Charenton já o pôs no seu devido lugar. Até à próxima, minha cara!
- Até à próxima! E ficai tranquila, o muro ficará como está.
Sylvie passou o fim da noite no jardim, desfrutando quer o céu estrelado, quer o ruído da festa em honra de François, que tanto contrastava com o silêncio e a obscuridade do velho hotel da favorita... Quando o dia nasceu, apesar da vontade de ficar, voltou a Conflans. O seu coração ficava seriamente perturbado à idéia que François poderia ali chegar de um momento para o outro, àquela casa ao lado, tão perto da sua, mas, ao pensar em Jean, que combatia ao lado de M. de Conde, achou que não seria nem conveniente nem honesto da sua parte estar ali à espera dele. Além do mais, não gostava de ficar muito tempo separada da sua pequena Marie, tão adorável com os seus caracóis rebeldes e a sua carinha cor-de-rosa, sempre tão sorridente que todos a achavam um amor. Sobretudo Jeannette, promovida à governanta e a quem as outras criadas tratavam por Mlle. Dean pois, apesar das súplicas de Corentin, ela ainda não o desposara.
- Tu não podes deixar o senhor cavaleiro de Raguenel e eu não quero deixar Mlle. Sylvie... enfim, a senhora duquesa. Para nos casarmos, um de nós teria de ir para casa do outro. Ora, admite que, pelo menos por ora, isso é impossível...
- Pensas que poderá chegar o dia em que...?
- Assim o espero, porque nos amamos um ao outro. Vou dizer-te uma coisa, devíamos ter-nos casado quando estávamos em Belle-Isle...
- Sem dúvida, contudo estaríamos agora metidos numa situação tão confusa quanto esta. Bom - concluiu Corentin - vamos esperar mais um pouco...
Para dizer a verdade, desde que Marie nascera, Jeannette “esperava” de melhor boa vontade. Doida pela criança, paparicava-a tanto que Sylvie, por vezes, tinha de sorrir.
Se não tivesse a certeza de ter sido eu quem a pôs neste mundo, estaria a perguntar-me se não estava a sonhar e se não serias tu a verdadeira mãe...
- Santo Deus! Não digais essas coisas na presença do senhor duque. Ele ficaria furioso comigo!
- Como se ele te pudesse criticar um enlevo excessivo... Seria o contrário que lhe desagradaria...
E desatava a rir. Assim fluíam tranquilamente os dias no solar das margens do Sena, que o marechal de Fontsomme tinha mandado construir pouco depois do incêndio no seu castelo da Picardie, para poder dispor de uma agradável residência campestre nos dias de bom tempo. O domínio das Carrières encaixava-se entre o castelo de Conflans, que pertencia a Mme. de Senecey, e um outro domínio que se estendia até Charenton, pertencente à marquesa de Plessis-Bellière, compondo ambos um quadro agradável de contemplar.
A marquesa, que nascera Suzanne de Bruc, de mui nobre família bretã, cuja origem remontava ao tempo das Cruzadas, era dez anos mais velha que Sylvie e vivia permanentemente no seu domínio em Charenton, onde recebia a fina flor do mundo das letras: os dois Sudéry, Benserade, Scarron, Corneille, Loret, o abade de Boisrobert, todos amigos de seu irmão, M. de Montplaisir, que era ele próprio poeta. Ao longo do ano, toda essa gente, um nada louca, enchia a casa e os jardins com as suas declamações, poemas ou outros voos líricos, cujo sujeito era frequentemente a dona da casa, mulher de grande beleza mas de bom senso, fiel a um esposo guerreiro que estava tantas vezes ausente quanto Jean de Fontsomme. Levavam uma vida divertida, à qual Sylvie aderia, tanto mais que era ali que voltava a encontrar as amizades que estabelecera outrora, na altura em que estivera refugiada no convento da Visitação de Santa Maria. A começar por Nicolas Fouquet.
Tendo-se tornado viúvo e intendente da generalidade de Paris, o jovem magistrado ocupava um posto parlamentar importante, sem deixar, ainda assim, de se conservar fiel ao seu Rei. Mantinha excelentes relações com Perceval de Raguenel.
Muito sedutor, com muitos corações femininos a bater por ele, nessa altura Nicolas partilhava os seus suspiros amorosos entre a sua hospedeira e a jovem Mme. de Sévigné, uma gentil novata que escrevia as cartas mais bonitas do mundo. Ambas faziam-no esperar eternamente, a primeira por amor pelo seu esposo, a segunda por pura e simples virtude. Quanto a Sylvie, e se bem que ela lhe agradasse infinitamente, sabia que da parte dela só podia contar com uma amizade e era suficientemente bom psicólogo para não tentar ultrapassar esse quadro. Tendo notado a admiração apaixonada que a pequena Marie de Fontsomme dedicava ao papagaio de Mme. du Plessis-Bellière, um belo dia foi a Conflans levar-lhe um outro, tão belo e palrador quanto o primeiro, o que deixou a pequena encantada e Sylvie perplexa, ao saber que o pássaro, azul como um céu de Verão e vaidoso como um pavão, se chamava Mazarin.
- Tentei pôr-lhe um outro nome - explicou Fouquet à jovem - mas nesse caso ele fecha-se como uma ostra. De outro modo ele é extraordinariamente prolixo e achei-o tão divertido e, ao mesmo tempo, tão lindo, que não resisti. Afinal, se um dia receberdes o cardeal, bastar-vos-á escondê-lo... Espero que não fiqueis zangada...
- Olhai para a expressão de Marie! Ela poderá responder-vos no meu lugar; mas sois demasiado generoso, meu amigo. Uma rapariga tão pequena!
- Se ela se tornar tão encantadora quanto a mãe, ainda receberá muitas outras prendas! - concluiu o jovem parlamentar, beijando-lhe a mão.
A partir desse dia, Zarin tornou-se o companheiro indispensável da criança, acompanhando-a até nos passeios, levado por um criado destacado para o serviço. O grupo constituía um conjunto muito pitoresco, que não deixava de ser garrido e que divertia os jardineiros. Ao voltar de Paris, foi Zarin que Sylvie avistou em primeiro lugar, dando voltas em redor do interior de um tanque, no qual um jato de água provocava a queda de gotas coloridas.
Ao avistar a mãe, Marie parou de regar Zarin, que pretendia batizar à sua maneira, e foi ao seu encontro o mais depressa que pôde, lançando gritinhos de alegria quando Sylvie a ergueu ao colo para cobrir de beijos a sua carinha redonda e, durante um momento assistiu-se a uma partilha, perfeitamente incompreensível para os não-iniciados, de gorjeios, palavras ternas e grandes beijos. Marie ronronava como um gato ao apertar os braços à volta do pescoço da mãe.
- Ela está completamente encharcada - protestou Jeannette - e íamos regressar a casa. Também ireis ficar molhada, senhora duquesa!
- Não tem importância, Jeannette. Faz-me lembrar a época dos patos nas lagoas de Anet. Lembras-te como nos costumávamos divertir? De qualquer modo, tinha de mudar de roupa. Não houve nada de novo enquanto estive fora?
- Uma carta do senhor duque! Está no vosso quarto.
Como de costume era uma carta muito terna, na qual Jean manifestava a sua esperança numa próxima vitória, mas em que avisava a mulher contra a eventualidade de graves desacatos:
“O único rumor de que aqui se fala, diz respeito à má vontade que as Cortes soberanas demonstram em relação à política do Cardeal e, sobretudo, relativamente aos impostos. Isto não é de molde a tranquilizar-nos e, para mim, que me encontro tão longe de vós, é uma verdadeira angústia. Por isso rogo-vos que vos ausenteis o menos possível de Conflans. Paris é uma cidade tão imprevisível e, a acreditar nos relatórios que aqui recebo, já não é preciso grande coisa para acender o rastilho. Tende pois pena de mim, minha Sylvie bem-amada, e não vos exponhais! A Rainha deve poder dispensar-vos por uns tempos...
Querido Jean! Havia mais três folhas escritas neste tom, todas elas testemunhando o seu amor e preocupação pelo destino das suas duas “mulheres”. Era mesmo ao seu estilo, pensar nos outros, quando era ele que não parava de enfrentar a morte ou, pior ainda, a invalidez; mas Sylvie sabia o que representava para ele o lar e aquelas que eram a sua razão de viver. Por sua vez, ela agradecia todos os dias ao Céu por lhe ter dado um esposo daqueles. Não era possível encontrar no mundo homem mais delicado, tal como o comprovara a sua conduta nos primeiros anos do casamento, logo a partir da noite de núpcias.
Nessa ocasião, quando Sylvie, ao recordar-se de uma outra noite, ficara a tremer no grande leito onde as suas criadas a tinham ajudado a acomodar-se, ele viera simplesmente sentar-se a seu lado, pondo aquelas mãos geladas entre as dele:
- Sylvie, nada tendes a recear. Ireis dormir tranquilamente nessa grande cama, enquanto eu irei instalar-me na chaise longue...
E como ela ficara a olhá-lo aliviada, mas sem nada compreender, ele acrescentara:
- Do amor, pelo menos o dos corpos, até agora apenas haveis conhecido os seus trejeitos, uma faceta horrível, mas que não é a sua verdadeira. Fostes ferida e tenho a certeza que neste momento estais morta de medo. Essas pequeninas mãos frias são disso testemunho. Só que eu, Sylvie, amo-vos o suficiente para saber esperar...
- Não ides?...
- Não. Dormireis sozinha enquanto eu velarei o vosso sono. Mais tarde... mas só quando o desejardes, então irei ter convosco...
E durante vários meses ele dormira na chaise longue, até àquela noite em que um frio precoce incitara Sylvie a aconselhá-lo a deitar-se a seu lado. Ele aceitara com alegria, mas mantivera-se afastado, tanto quanto lhe permitira a largura da cama. Tanta prova de amor comoveu a jovem e, certa noite, foi ela mesma que o procurou. A sua aproximação foi, ao mesmo tempo, tão doce, sensível e hábil, que ela se deixou levar pela vaga de prazer e, se acolheu o clímax final com um grito, este fora de alegria, rematado por um suspiro de felicidade... A maternidade veio mais tarde, Jean queria que ela pudesse gozar plenamente a alegria de ser mulher antes de mergulhar no universo das náuseas e dos enjoos que é frequentemente o prelúdio à maior das felicidades...
Devo tentar dar-lhe um filho quando ele regressar, pensou Sylvie, ao dobrar a carta que foi arrumar numa pequena escrivaninha em cobre e lasca de mármore embutidos. Ao mesmo tempo prometeu a si mesma que só iria a Paris quando fosse mesmo necessário. E, mesmo nessas alturas, procuraria regressar à noite a Conflans, onde, ao pé da pequena Marie sentir-se-ia protegida da tentação de transpor novamente o muro em ruínas...
O que conseguiu durante algumas semanas, declarando-se adoentada, mas a estrondosa vitória de Conde sobre as tropas Imperiais em Lens, obrigou-a a sair do seu refúgio. Em Notre-Dame todos se preparavam para entoar um Te Deum, ao qual devia comparecer o marechal de Châtillon, encarregue de trazer uma mão cheia de bandeiras inimigas. O Rei, a Rainha e a Corte deviam comparecer no cortejo e Sylvie foi obrigada a tomar o seu lugar.
Era domingo e estava um tempo esplêndido. Encantados com o espetáculo que lhes iam oferecer, os parisienses tinham posto as suas mais belas roupas, para se juntarem à passagem do cortejo real. Todos os sinos da capital retiniam ao mesmo tempo, em tom de festejo, e todos se sentiam alegres, à exceção, talvez, desses senhores do Parlamento, para quem esta vitória representava um desmentido desagradável, visto que há meses que pretendiam libertar-se de qualquer constrangimento de ordem real, pretextando que o imposto apenas servia para levar a cabo guerras intermináveis que nunca se ganhavam.
Às dez horas ribombou o canhão do Louvre, para anunciar a saída do Rei. Ele surgiu, num coche dourado, suntuosamente vestido de azul e ouro, ao lado da imponente figura de sua mãe, vestida de preto. Foi acolhido com uma enorme ovação, que redobrava de ardor à medida que passavam os cavalos brancos seguindo os mosquetes imóveis dos guardas. Depois vinham os coches das damas e dos oficiais da casa real. Sylvie partilhava o de Mme. de Senecey e de Mme. de Motteville, ambas muito bem vestidas. Ela própria escolhera um vestido de um branco silvestre imaculado, bordado com uma fina renda preta, acompanhado por luvas e pequenos sapatos de cetim vermelho claro. Através da sua mantilha preta e branca, brilhava o magnífico colar de diamantes e rubis que o seu esposo lhe oferecera pelo nascimento de Marie, com brincos a condizer, enfeitados com pedras preciosas, peças que entrechocavam nas suas faces. Sentia-se descontraída, quase feliz. Como acreditar que aquele povo, tão alegre, pudesse alguma vez acalentar maus desígnios? E, depois, se a guerra estava a acabar, Jean em breve regressaria. Por fim, mais ninguém parecia interessar-se por Beaufort e uma coisa era certa, não o tinham apanhado!
A cerimônia decorreu segundo todos os preceitos previstos, à altura da ocorrência. O arcebispo de Paris, Monsenhor de Gondi, e o seu sobrinho, o abade de Gondi, que era também o coadjutor, participaram com toda a pompa e solenidade apropriadas. Foi o sobrinho que proferiu a homília, aliás com muito talento, mas Sylvie não entendeu muito bem por que motivo, ao mesmo tempo que ele agradecia a Deus por ter coroado as armas de França, achava por bem precaver o rei contra os excessos da auto satisfação recordando-lhe, simultaneamente, que era injusto obrigar o povo pagar a guerra duas vezes, quando ele já o fazia com o seu sangue. Resultado, ao deixar a catedral, a Rainha ia furiosa e Mazarin que, ao chegar, recebera mais apupos que benções, mostrava uma cara estranha. Quanto ao jovem Rei, parecia francamente agastado:
- O senhor coadjutor - disse baixinho para a mãe - parece-me demasiado amigo desses senhores do Parlamento, para poder chegar um dia a juntar-se aos meus...
- É um homem perigoso, do qual convém desconfiar - respondeu Ana de Áustria.
O serviço solene de graças a Deus acabou sem mais nenhum percalço, e regressaram todos ao Palácio Real do modo como tinham vindo: no meio do mesmo entusiasmo popular. Porém, o jovem soberano continuava absorto, para não dizer sombrio. Sabendo a amizade que ele lhe tinha, Sylvie, inquieta, ousou perguntar-lhe a razão do seu estado:
- Na verdade não sei, respondeu mas sinto que se prepara alguma coisa. Haveis observado o sorriso ameaçador que arvorava o senhor cardeal ao regressar ao palácio?
- Certamente, Senhor, mas Vossa Majestade sabe como sou estranha a essas coisas da política.
- E é muito bom que assim seja. Todas as mulheres deviam contentar-se em ser belas, e - acrescentou, mudando o tom da voz e pegando na mão da jovem - hoje vós estais deslumbrante, senhora...
Sylvie corou sob aquele olhar de criança, onde já despontava o do homem a devir. Luís recuperou o seu bom humor:
- É um privilégio fazer corar uma linda mulher e é a primeira vez que isso me acontece. Obrigado, minha cara Sylvie. Agora quero dar-vos um conselho, deveríeis regressar o mais depressa possível a Conflans, para junto da vossa pequena Marie. Durante a missa, consegui captar algumas palavras que me fazem crer que a cidade poderá ficar hoje agitada...
- Nada mais normal num dia de festa.
- Preferiria saber que estáveis em vossa casa. Podeis ir tranquila, direi a minha mãe que vos achei um pouco pálida, não estivestes adoentada ultimamente? E que vos mandei de volta para apanhardes o ar do campo...
Sylvie aceitou de bom grado, comovida pela solicitude daquela criança verdadeiramente fora do comum e que, além disso, possuía excelentes dons de audição. Efetivamente, nas ruas de Paris crescia um rumor inabitual, feito de gritos e, até, de disparos, e por aquele som rouco e abafado que provoca a multidão ao juntar-se. Além disso, quando ela deixara o Palácio Real, o coche do coadjutor, Paul de Condi, estava a chegar, escoltado pelo marechal de La Meilleraye, que parecia ter sido molestado, e pelo novo tenente civil Dreux d’Aubray, que tinha um ar assustadíssimo. Gondi saltou do seu coche, em roquete e camalha, e sorriu a Sylvie, dirigindo-lhe uma vaga benção, antes de irromper palácio adentro na companhia dos seus dois acólitos improvisados. Os ruídos pareciam aproximar-se e Sylvie hesitou.
- Que fazemos, senhora duquesa? - perguntou Grégoire.
- Se um pouco de agitação não vos mete medo, continuai, meu amigo...
Como resposta o homem fez estalar o chicote, instigou os cavalos e partiram. Não foram muito longe, ao aproximarem-se da Croix-du-Trahoir encontraram-se presos no meio de uma multidão que, apesar de estar em fato domingueiro, nem por isso deixava de reclamar a cabeça de Mazarin em altos berros. Outros gritavam ”Viva Broussel!” ou ”Liberdade!”. Grégoire tentou parlamentar para negociar a passagem, mas mandaram-no voltar para trás explicando-lhe que, estando as portas de Paris fechadas, quanto mais depressa saísse dali para fora melhor seria para ele. Nessa altura, Sylvie pôs a cabeça fora da portinhola.
- Por favor, deixai-me passar! Tenho de voltar a Conflans.
- Ena, como ela é bonita! - exclamou um rapaz com a camisa toda desabotoada e que devia ser padeiro, a julgar pelas marcas de farinha no corpo.
Foi a vez de Grégoire se zangar e agitar o chicote ameaçadoramente:
- Vejam só que maneiras de falar a uma dama! Está a falar à senhora duquesa de Fontsomme, ó malcriado!
- Não disse nada de mal - respondeu o outro. - Apenas que ela era bonita. Isso não é um insulto!
- Talvez, mas era melhor que nos explicasses a razão de todo este barulho.
Uma pesada comadre, fresca como um molho de rosas e trajando o lindo vestido de festa das damas do Mercado[23], veio intrometer-se:
- É por causa de um tal senhor conselheiro Broussel, que o Mazarin acaba de mandar prender por intermédio de M. de Comminges, que o levou para a prisão. A ele, um homem tão bom! O pai da gente pobre! Na prisão? Não! Era só o que faltava! E tudo isto porque ele tenta impedir o Mazarin de nos sugar ainda mais dinheiro. Então nós vamos encarregar-nos do assunto e faríeis melhor em regressar a rue Quincampoix, sora duquesa.
- Sabeis quem sou?
- Não, mas como o vosso pessoal é a mim que vem comprar os legumes, eu sei onde morais - explicou, dobrando o joelho à laia de reverência... - Chamam-me dona Paquette, ao vosso serviço!
- Muito honrada - sorriu Sylvie - mas nesta época do ano moro sobretudo em Conflans, onde, agora, gostaria de ir ter com a minha filhinha.
Então, dona Paquette veio encostar-se, com familiaridade, à portinhola do coche:
- Não conteis com isso esta noite, sôra duquesa. Isto por aqui está a aquecer e, dentro de um hora, Paris estará em chamas. Foram enviadas pessoas até às portas para impedir a saída dos prisioneiros: Broussel, que querem levar para Saint-Germain e Blancmesnil, para Vincennes. De modo que cá nos vamos amanhar para que o Mazarin no-los devolva e depressinha! Acreditai-me, e regressai ajuizadamente à rue Quincampoix! Se quiserdes, posso escoltar-vos para que não vos aconteça nada de desagradável.
- Irra! - troçou Grégoire. - A senhora é uma potência!
- Pois sou, ó gorducho, e tenho certamente amigos em lugares mais altos que o teu poleiro! Já ouviste falar de monsenhor, o duque de Beaufort? Pois bem, eu só obedeço a ele! Tenho de confessar que é um belo homem! - acrescentou com enlevo.
O admirador de Sylvie deu-lhe uma cotovelada.
- Falais demais, dona Paquette! Como se não soubésseis que o seu paradeiro é desconhecido! Além disso, nunca é bom citar nomes assim à toa! Nunca se sabe quem nos escuta.
- Isso não impede que...
Sylvie estava a arder de curiosidade para saber mais acerca das relações entre a vendedora de legumes e François, mas o padeiro já tomara definitivamente conta das ocorrências:
- Então, vamos até à rue Quincampoix?
- Não, se isso não vos incomodar, vamos antes para a rue das Tournelles.
- De modo algum!
E, colocando-se nos cavalos da frente, pegou-lhes nas rédeas e tratou de guiar o coche através da multidão. Ao chegar, fez uma bela saudação que quase lhe pôs o nariz em cima dos joelhos mas, ao soerguer-se, enviou um beijo na ponta dos dedos:
- Eis-vos de volta, sôra duquesa. Espero ver-vos em breve pois nunca tinha visto uma duquesa tão bonitinha como vós!
Dito isto desatou a fugir a toda a pressa, enquanto Sylvie, lisonjeada, se punha a rir. Infelizmente, em casa do padrinho, foi deparar com uma recepção de pedra e cal ou quase, tendo de esperar muito tempo para que Nicole Hardouin lhe viesse abrir a porta, ficando então a saber que esta estava ali sozinha. O senhor cavaleiro e Corentin tinham partido naquela mesma manhã para Anet, a pedido de Mme. de Vendôme. Por isso Nicole aproveitara a situação para fazer uma grande limpeza à casa, auxiliada por Pierrot, que ela enviara às compras. Apesar do acolhimento amável, Sylvie percebeu depressa que estava ali a mais.
- Quando ele voltar - pediu-lhe - dizei-lhe que gostaria que viesse passar alguns dias em Conflans. Há muito que me prometeu, mas nunca vem.
Era uma constatação um pouco triste e não uma crítica. Efetivamente, ela sabia que, desde que François fora preso, Perceval dedicava-se muito ao serviço dos Vendôme perseguidos e que, além disso, ainda tinha estreitado mais os laços que o uniam ao seu amigo Théophraste Renaudot, também ele maltratado, tanto pelo novo regime como pelos seus filhos, que pretendiam tirar-lhe a direção da Gazette...
- Ele irá!... Prometo-vos que ele irá! - assegurou Nicole, com uma reverência que punha ponto final ao encontro.
Sylvie teve, afinal, de se resignar a voltar à rue Quincampoix...
PASSOS NO JARDIM
Regressada a casa, Sylvie achou-se melhor acomodada do que pensava. Sentia-se como na paz de um porto de abrigo, numa ilha insensível à agitação do mar, se bem que fosse perceptível um certo nervosismo da parte dos criados, mas a solenidade um tanto pontificadora do mestre de hotel Berquin e de dona Javotte, a governanta que era também sua esposa, impunha suficiente respeito aos escalões inferiores de criados e camareiras, para conseguir fazer reinar a ordem. Contentaram-se em enviar um criado e um moço da cozinha em busca de notícias, para não serem apanhados desprevenidos caso houvesse um verdadeiro tumulto.
O dia fora quente e desde o crepúsculo que o céu de Paris era percorrido de lés a lés por nuvens ameaçadoras Por isso, a jovem decidiu trocar os seus adornos por um amplo vestido de cambraia de linho branco enfeitado com rendas e acabado de ser passado a ferro, depois de se ter descontraído um pouco numa tina de água fria. Não sentindo fome, comeu apenas uma refeição ligeira e depois dispensou o serviço das suas criadas, dizendo-lhes que já não precisava mais delas e que se deitaria sozinha. Por fim, desceu até ao jardim com a intenção de lá permanecer o mais tempo possível. A menos que a trovoada a afastasse...
Mas esta não parecia disposta a rebentar e os ruídos inabituais que se faziam ouvir não provinham do firmamento, mas sim do solo parisiense, como se o seu povo estivesse ocupado nalguma gigantesca construção, o que conferia estranhas ressonâncias à noite. À exceção dos ruídos usuais do cabaré vizinho, a rua estava silenciosa. Nessa noite não havia baile e quando Sylvie chegou ao fundo do jardim, encontrou o mesmo silêncio na casa vizinha, completamente às escuras. Mas era melhor assim, a sensação de estar a fazer algo de errado atenuava-se e, aninhada sob a abóbada de rosas de que tanto gostava, pôde desfrutar sem remorsos a frescura do jardim que tinham tido o cuidado de regar ao pôr do Sol. De tal modo se sentia bem que adormeceu enquanto o relógio da vizinha igreja de Saint-Gilles assinalava as dez horas...
Acordou sobressaltada, com um ruído de passos. Apesar das precauções que o caminhante devia ter pois os passos eram ligeiros ouvia-se a sua aproximação, vinda do outro lado do muro.
Depois de ter ficado paralisada por momentos, Sylvie soergueu-se, levantou-se, pôs-se à escuta e pensou em Mme. de Montbazon, mas não distinguiu o som característico provocado pela seda quando alguém se desloca, acompanhando o ruído dos passos que, aliás, parara momentaneamente. Percebeu que se tratava de um homem, e que este devia estar muito perto do muro, pois captou um som de sorvo, depressa seguido pelo cheiro a tabaco: ele devia ter parado para acender o cachimbo. Sylvie pensou que, se calhar, era o porteiro do hotel que decidira fazer uma pausa no seu passeio noturno e voltou a sentar-se no banco. Não por muito tempo: ele escalava agora as ruínas do muro, após o que retomou tranquilamente o seu trajeto, como se não estivesse em propriedade alheia: o visitante comportava-se como se se encontrasse em sua própria casa. Ouviu-o assobiar. Era demais, e ela saiu de debaixo da abóbada no preciso momento em que François se preparava para lá entrar.
A surpresa foi completa, tanto para um como para outro. Ele foi o primeiro a recuperar a presença de espírito: ela ficara com a garganta apertada devido à emoção que lhe provocara aquela súbita aparição.
- Sylvie... mas que fazeis aqui?
A incongruência da pergunta trouxe-a de volta à realidade:
- Não poderíeis mudar um pouco o vosso tipo de abordagem? Cada vez que me encontrais, fazeis-me sempre a mesma pergunta. Esta noite não achais que cabe antes a mim perguntar-vos o que fazeis no meu domínio?
Ele riu silenciosamente, mostrando os dentes brancos.
- É verdade. Perdoai-me! A minha desculpa é que ignorava a vossa presença. Julgava-vos em Conflans, neste Verão.
- A vossa desculpa não é propriamente uma desculpa. Ao que julgo, tendes um jardim. Por que não ficais por lá?
- O vosso é tão mais belo! O meu parece-se com uma savana e, partindo do princípio que vivo escondido, não me estou a ver a contratar jardineiros. Foi por isso que me habituei a vir todas as noites respirar um pouco o aroma das vossas rosas. É um pecado assim tão grave?
Sylvie sentiu-se vexada. Então, o que ele procurava nela era apenas um prazer, uma comodidade suplementar? O tom da sua voz endureceu:
- Não, desde que os amigos mereçam a mesma consideração... e não me parece que seja esse o nosso caso. Da última vez que nos encontramos...
- Pois bem, falemos precisamente disso! Atirastes-me com o vosso casamento à cara e, mais ainda, casaste-vos no próprio dia em que eu fui preso...
- Não, casei-me na véspera - corrigiu Sylvie. - E ignorava que iríeis cair numa armadilha.
- Isso teria mudado alguma coisa?
- Não. Não se volta com a palavra atrás, quando ela é dada a uma pessoa como o meu marido...
- E, ao que parece, sois feliz...? - desferiu François, sarcástico. - Formais o par ideal... e agora também tendes uma filhinha?
- É uma censura?
Afastando-se, ele foi sentar-se no banco e ficou ali a olhá-la, sem dizer nada.
- Então? - insistiu ela. - É uma censura?
Ele encolheu os ombros:
- Com que direito? Não possuo nenhum direito sobre vós e acreditai-me que, em Vincennes, dispus de todo o tempo possível para pensar no assunto, por entre os passeios no alto do torreão, os jogos de xadrez com La Ramée e as orações...
- ... e as visitas de Mme. de Montbazon...?
- Foram menos frequentes do que se dizia, mas é verdade que ela o fez, desafiando desse modo a Corte... Creio que é o que se chama amar...
- E não tendes a certeza disso? Bem, é verdade que me perguntei frequentemente se sabíeis o que é amar. E se não tivesse sido testemunha da vossa paixão pela Rainha...
- Bem mal retribuída, confessai-o! Estava disposto a morrer por ela a qualquer momento, desejava para ela a grandeza e a glória e vede o resultado! Vem um mariola de Itália, insinua-se entre nós, destrói tudo o que nos unia na precisa altura em que o nosso amor ia explodir à vista de todos e ela mete-me na prisão sem a menor intenção de me deixar sair de lá um dia. Aliás, ela é uma ingrata. Vede só como Mazarin a afastou dos amigos de outrora! Mme. de Chevreuse, que é mantida arredada da Corte, Marie de Hautefort...
- ... que regressaria se assim o quisesse, mas não tem a menor vontade de o fazer e compreendo-a muito bem. Ela nunca foi mulher para esmolar uma amizade que lhe foi recusada. Agora ela é marechal de Schomberg, duquesa d’Halluin e isso basta-lhe. Só nutre desprezo pela Corte...
- E vós? Porque ficais? Suponho que Mazarin vos seduziu, não?... A menos que estejais seguindo diretivas de vosso marido...
Magoada por aquele tom de desprezo, Sylvie levantou-se de punhos cerrados.
- O meu esposo serve o Rei antes de qualquer outra pessoa, haveis-me entendido? Nenhum de nós gosta de Mazarin, mas eu sou como ele, estou ao serviço do Rei, porque o amo, imaginai só, como se fosse o meu próprio filho...
- E ele paga-vos da mesma moeda, ao que me disseram. Mas que sorte a vossa! A mim ele detesta-me... e, contudo, ele é...
Sylvie pôs-lhe uma mão à frente da boca, para que a palavra fatal não fosse pronunciada. A sua cólera desvanecera-se e agora estava com pena de François, comovida por aquela dor que acabara de transparecer através do azedume.
- É porque ainda não vos conhece devidamente! Esquecei-vos de Mazarin! Servi essa criança que tanto amais e a qual, penso, virá a ser um grande rei, caso chegue à idade adulta. Nessa altura ela já gostará de vós...
- Por outras palavras, um amor interesseiro...? Como à sua mãe...
François aproximou-se bruscamente de Sylvie e envolveu-a nos braços:
- E vós? À parte essa criança, quem é que amais, Sylvie? Esse tolo ao qual vos entregastes?
- Claro que o amo - exclamou Sylvie, tentando repeli-lo - e proíbo-vos de falardes dele nesse tom depreciativo. Que julgais que sois a mais que ele?
A resistência que Sylvie lhe oferecia pareceu diverti-lo. Ela ouviu-o rir enquanto ele apertava o seu abraço.
- Um imbecil, sem dúvida, pois ele conseguiu tirar-vos de mim...
- Nunca fui vossa...
- Oh sim, que o fostes! Éreis minha, visto que eu era o vosso único amor! Sylvie, Sylvie! Regressai à nossa realidade! E cessai de vos debater! Estais mais do que nunca com o ar de um gato assanhado e eu apenas quero beijar-vos...
- E eu não o quero... Largai-me!
Apoiando as mãos com toda a força contra o peito dele, tentou novamente rechaçá-lo, mas ela não era de calibre a enfrentar um homem que podia dobrar uma ferradura de cavalo com as mãos. Aliás, ele aproximou-a ainda mais dela, de modo a que ela pudesse sentir a sua respiração na boca:
- Não!... Não, meu passarinho chilreador, não te vou largar! Nunca mais... Não queres finalmente compreender que te amo?
As palavras que ela tanto desejara ouvir, mas pelas quais não esperava mais, atingiram-na através da cólera que se esforçava por sentir, para melhor se proteger contra o desejo culpado que sentia ao estar nos seus braços. Contudo, recusou dar-se por vencida...
- Como quereis que vos acredite? Haveis dito isso a tantas outras!
- Só o disse a uma mulher, à Rainha...
- E à Mme. de Montbazon...
- Não. Cumprimento-a, cubro-a de palavras ternas, mas nunca lhe disse que a amava...
- E a mim, dizei-lo?
- Queres que o repita? É muito fácil, gritei tantas vezes estas palavras no fundo de mim mesmo quando estava na prisão!... Esperava perdidamente... que as ouvirias, que me irias visitar, tal como Marie, que saberias finalmente quanto eu lamentava tudo, quanto estava infeliz! Tinha perdido a minha liberdade, mas também te tinha perdido a ti... Então, meu amor, agora que te tenho nos meus braços, não me peças para te largar...
E, de repente, Sylvie sentiu os lábios dele de encontro aos seus... e deixou de lutar. Para quê? O seu coração cantava enquanto se rendia, esquecendo-se por fim de tudo o que não fosse o instante presente, entregando-se finalmente àqueles beijos que a devoravam, que a faziam desfalecer, que procuravam a sua nuca, o pescoço, antes de voltarem aos lábios que, desta vez, responderam com um ardor que surpreendeu François... Ele sentiu que aquela noite lhe pertencia, que seria uma noite inesquecível, a retribuição por todas aquelas que ele passara na solidão de Vincennes, consumido pelo monstro do ciúme, qual prometeu acorrentado ao seu rochedo... Inclinando-se ligeiramente, pegou na jovem ao colo e deitou-a na erva que se estendia como um tapete sob um salgueiro; nessa altura, ouviu-se uma pequena tosse seca:
- Hum!... Hum!
O encanto quebrou-se instantaneamente. François largou automaticamente Sylvie, que vacilou, ainda estonteada, e que teve de se agarrar ao ombro dele para não cair. Depois, ele voltou-se furioso, para o importuno:
- Quem diabo sois e que quereis?
- Sou eu, meu amigo, sou o Gondi!... Oh, estou desolado por ser inconveniente a este ponto, mas já faz uma hora que vos procuro e o vosso criado indicou-me o jardim... Mil desculpas, senhora duquesa! Estais perante o mais desesperado dos vossos criados obedientes...
- Disseram-vos para me procurardes no meu jardim, e não no dos meus vizinhos!
- Eu sei, eu sei, mas ouvi vozes... e a hora é tão importante. Tendes de me seguir...
Sob o tom hipócrita e queixoso, transparecia uma vontade imperiosa.
- Espero que seja verdade - ralhou Beaufort - se não nunca vos perdoarei por esta indiscrição!
- Mas que indiscrição, meu amigo? Oh, a de ter transposto este muro em pedaços?... Isso não é lá muito grave e avistei duas pessoas, isto é, duas sombras, que passeavam pela noite...
- Não vistes nada! E tratai de aprisionar essa víbora que vos faz ofício de língua! E, agora, que se passa?
O tom de voz do coadjutor, ora choramingas, ora inocente, mudou completamente, para se tornar firme:
- Erguem-se barricadas por todos os lados em volta do Palácio Real. O povo de Paris pôs mãos à obra! Retiraram-se as pedras da rua, amontoam-se as carroças, preparam-se as armas. Aqueles que as possuem dão-nas àqueles que não as têm. O clérigo dos quarteirões, que me seguiu, está à minha espera, mas há outras pessoas que esperam por vós!
- Quem?
- Os restantes parisienses, artesãos, operários, gente do comércio, os moços de fretes e, sobretudo, todos os que estão ligados ao Mercado e que querem saber se estais a seu lado...
- Estou, de todo o coração, mas porque haveria de me mostrar? Não tenho vontade nenhuma de apanhar com uma companhia de guardas ou de mosqueteiros que me levem de volta a Vincennes...
- Se eu vos venho buscar é porque nada tendes a recear. O povo quer obrigar Mazarin a libertar Broussel e Blancmesnil e não permitirá que sejais preso. Tanto mais que sois a mais nobre vítima do italiano. Vinde, peço-vos! O Parlamento agradecer-vos-á por esse gesto de solidariedade. Não vos esqueçais que nunca fostes levado à sua presença para enfrentar qualquer tipo de julgamento. Ele pode decretar que vos libertem...
Ainda indeciso, mas tentado, François voltou-se para Sylvie e apertou as mãos dela entre as suas:
- O meu coração exige que vos abandone neste preciso instante, minha amada! Contudo, a noite ainda não acabou. Estarei de volta, antes que o dia se levante...
Um beijo nos dedos subitamente gelados e François afastava-se, sem querer reparar nas lágrimas que subiam aos olhos da jovem.
- Sigo-vos! - disse a Gondi, com aspereza. - Mas despachai-vos!
O coadjutor endereçou um lindo sorriso e uma grande saudação a Sylvie e, depois, os dois homens transpuseram o muro desabado e perderam-se no meio dos arbustos do jardim selvagem. Então, Sylvie regressou ao seu banco, no qual se sentou, esperando assim acalmar as palpitações desordenadas do seu coração e tentando recuperar o domínio sobre si mesma. Nunca sentira tal emoção! Estando a léguas de poder imaginar que se encontrava tão próxima de uma vitória há tanto tempo almejada, ela tinha dificuldade em acreditar que não estivera a sonhar. Porém, fora bem François que a segurara nos braços, fora a sua voz, a sua boca que tinham pronunciado ”amo-te”, e Sylvie ainda se arrepiava ao ouvir a sua musicalidade. Não procurava compreender por que motivo aquele amor parecia ter despertado tão bruscamente na prisão de Vincennes, na altura em que ela acabara de desposar Jean. Não queria acreditar que o seu casamento, ao excitar um ciúme larvar, tivesse agido como um revelador sobre um homem demasiado fogoso, que não sabia resistir a nenhum dos seus impulsos, a nenhuma das suas paixões. Queria apenas saborear a felicidade de ser finalmente amada por aquele que adorava há tantos anos. Como era doce e odorífera aquela noite de Verão, aquele jardim onde tanto sonhara ao olhar para aquelas janelas mergulhadas na escuridão! E François regressaria dali a pouco e a magia recomeçaria...
- Que vais fazer? - sussurrou-lhe de repente uma voz secreta. Ele vai voltar, claro, e recomeçareis o vosso dueto a partir da altura em que Gondi veio interromper-vos. Ele já te tinha embalado e tu estavas toda entregue à tua felicidade, sem pensares que ele se preparava para colocar o irreparável entre ti e o teu marido. Quando ele regressar será para te possuir, para fazer de ti a sua amante... como à Montbazon. E não contes impedi-lo: ele é vento e tempestade, não gosta de esperar e tu entregar-te-ás sem qualquer resistência, não terás força para isso, só porque ele te disse ”amo-te”...
“Não!... não pode ser!” - exclamou Sylvie, levantando-se.
“Sabes muito bem que sim. Deseja-lo tanto quanto ele a ti... Dentro de uma hora, talvez não haja mais nada a esperar...”
Vinda da vizinhança, uma enorme ovação cortou o discurso da pequena voz da razão. Era a ele que aclamavam aos berros, a ele, que já conquistara aquela multidão, tal como conquistaria dentro em pouco a esposa de Jean de Fontsomme. Com um súbito pavor, Sylvie apercebeu-se do abismo que se abria perante ela. Já não estava livre para fazer de si própria o que lhe aprouvesse e quando lhe aprouvesse. O casal que formava com Jean nada tinha a ver com o de uma Montbazon ou com o de uma Longueville, que se tornara a amante do príncipe de Marcillac, depois deste ter morto em duelo o anterior amante dela, Coligny, sem que o marido visse nisso o menor inconveniente... Era um casal unido, sólido, santificado pela troca de um profundo amor mútuo e de uma imensa ternura, selada pela presença da pequena Marie... Uma breve visão revelou subitamente à jovem o seu esposo frente a François, de espada na mão, à luz de uma lanterna da praça Real. Jean não hesitaria em provocar em duelo o homem que lhe roubasse aquela que ele idolatrava... No entanto, Sylvie sabia que logo que François voltasse, não teria forças para lhe resistir...
Então, era preciso fugir! Abandonar aquele jardim cúmplice, cujos aromas a rosa, jasmim e erva fresca brincavam com os seus sentidos. E, sobretudo, não devia esperar por François!... Mas para onde poderia ir, dado que a rua das Tournelles não estava disponível? Para o convento da Visitação, onde se deslocava frequentemente para conversar com a irmã Louise-Angélique ou com as suas amigas Fouquet? À meia-noite, isso exigia uma explicação... e por que não a verdade? Pediria refúgio para não ter de sucumbir ao amor de um homem... E, sem pensar mais, tomou a sua decisão. Regressando a casa a correr, ela mandou Berquin atrelar os cavalos enquanto ia mudar de roupas mas, para sua grande surpresa, ele não se mexeu.
- Então, que esperais? Mexei-vos!
- Estamos verdadeiramente desolados, senhora duquesa, mas é impossível - respondeu o homem, sempre tão solene que falava de si próprio na primeira pessoa do plural.
- Não podemos? - perguntou Sylvie, com acidez. Habitualmente aquela mania divertia-a, mas não era o caso naquela noite.
- Não podemos... pela excelente razão que numa das saídas da rua já há uma barricada em estado muito avançado e a da outra saída começa a impor respeito. Qualquer coche ver-se-ia impedido de passar e um cavalo não tem recuo que chegue... sem contar com a sua largura!
- Mas, por que diabo cortaram a rue de Quincampoix?
- Parece que esta noite se decidiu cortar o acesso a todas as ruas, pelo menos àquelas que não possuem correntes. Podemos perguntar à senhora duquesa onde desejava dirigir-se?
- Ao convento da Visitação. Tendes algo contra?
- N..ao! Não, de modo algum, senhora duquesa, só que o único meio de lá chegar... é a pé... até uma liteira não poderia passar!
- Então iremos a pé! Mandai preparar um carregador de tochas e dois criados para me acompanharem.
Berquin levantou-se, com um ar ofendido, pondo-se muito direito, pelo que atingia uma altura respeitável:
- Numa noite destas, nós próprios acompanharemos a senhora duquesa! Vou transmitir as ordens...
Quando Sylvie saiu, um pouco mais tarde, num vestido de tafetá em gola de pombo, sob uma ligeira capa com capuz a condizer, ficou espantada pelo aspecto inabitual tanto da sua rua como das adjacentes. A atmosfera era estranha, repleta de sombras inquietantes em movimento, no meio das quais, de vez em quando irrompia a luz de uma tocha, logo seguida por um estrépito de armas, enquanto se ouvia um vago rumor, no meio do qual se distinguia por vezes as palavras de uma canção, gritos à morte ou gargalhadas de riso: era o despertar de um povo que se sublevava e que tomava consciência da sua força, ao encontrar-se unido para lutar pela liberdade de dois homens. Acabados o corporativismo, os privilégios, as interdições! Cada um trazia o que tinha para formar a barricada e as mulheres não eram as últimas a chegar.
Habitualmente, logo que escurecia, só os bêbedos e os imprudentes é que se aventuravam sem escolta pelas ruas de Paris. Nessa noite, cada um participava na obra comum sem olhar para o vizinho. Desse modo, o pequeno mestre, o aguadeiro, a peixeira, o jesuíta de boné quadrado as pessoas da Igreja tinham todas respondido ao apelo do pequeno coadjutor! O moço de fretes, o burguês com casa para a rua, todos eles conviviam lado a lado. Até os miseráveis de toda a espécie tinham saído dos seus buracos como se fossem ratos, juntamente com os falsos estropiados, os ladrões de capotes, os verdadeiros e falsos mendigos. No entanto, nem Sylvie, nem o seu pequeno grupo, foram molestados. Todos sorriam para aquela dama elegante que pedia tão delicadamente que a deixassem passar, sem que ninguém se parecesse impressionar pelo título de duquesa que Berquin[24] anunciava. Tal como não ficou impressionado, para seu grande choque, um amassador de pão enfarinhado, de peito a descoberto, que pegou Sylvie pela cintura, para ajudá-la a transpor uma barricada. Todos se sentiam como se estivessem em casa, rindo-se, dizendo piadas, mas no ar pairava um cheiro a pólvora...
Quando chegaram à rue Sainte-Croix-de-la-Bretonnerie, avistaram um cortejo semelhante, que vinha na sua direção: era composto por uma dama inteiramente vestida de cetim azul e de tecido prateado, acompanhada pelos carregadores de tochas e por dois criados, e que caminhava tão tranquilamente como se estivesse acostumada a passear pelas ruas à noite, servindo-se da comprida haste da sua máscara para se abanar. Os olhos vivos de Sylvie identificaram-na logo que ela ficou com o rosto a descoberto e, com um grito de alegria, lançou-se na direção da recém chegada:
- Marie!... Marie! Que alegria encontrar-vos!
Alegria partilhada: foi a vez da antiga Mlle. de Hautefort avançar de braços abertos e as duas mulheres abraçaram-se com um entusiasmo que suscitou aplausos: era muito raro ver damas tão nobres a praticar um costume de simples empregadas de loja. Além disso, a linguagem que utilizavam nada devia à linguagem tão obscura que era empregue pelas Preciosas: toda a gente podia compreendê-las.
- Sylvie? Mas para onde vos dirigis com essa escolta?
- Para o convento da Visitação de Santa Maria... e posso fazer-vos a mesma pergunta?
- Para o convento? Que foi que ainda vos aconteceu?
- Tenciono passar lá o resto da noite. E vós mesma, que fazeis cá fora a esta hora... e a pé, como eu?
- Vou para casa. Tive de deixar o meu coche na rue Saint-Louis, em casa da senhora duquesa de Bouillon que oferecia um jantar aos violinistas. Estamos muito ligadas desde que me casei. É uma boa rapariga alemã, que se dá com o senhor meu esposo mas, hoje à noite, reinava um tal pandemônio em casa dela que nem se ouvia a música e até nos esquecíamos de comer: Mme. de Longueville e o príncipe de Marcillac[25] faziam ambos um barulho de todos os diabos para convencer a assembléia a ir juntar-se ao povo, a fim de cercar Mazarin no seu palácio. Preferi vir-me embora!
- Mas o convite não vos agradou? Ainda detestais mais Mazarin do que eu...
- É verdade, mas o marechal não gostaria que eu me exibisse assim.. Não sei onde ele está neste momento e quando ele não está ao pé de mim sinto-me sempre um pouco perdida. Aliás, acontece-lhe o mesmo a ele!
- Feliz mulher que soube encontrar o grande amor no casamento! - sorriu Sylvie.
- Nesse capítulo, parece-me que vós mesma não sois de lamentar. Mas... a propósito: que idéia é essa de ir dormir para o convento? Precisais de um refúgio?
- De certo modo.
- Então, vinde comigo! Já encontrastes o vosso refúgio, pois eu estou aqui. E, aliás, não vos largo mais!
- Também não me apetece abandonar-vos. Foi uma tal alegria ter-vos encontrado quando julgava que estáveis em Nanteuil.
Não acrescentou que se sentia liberta de um grande peso. Quanto mais fácil seria explicar o motivo da sua busca a Marie, do que à Superiora da Visitação! E lá foram de braço dado, tagarelando alegremente, transpondo as barricadas, nessa noite foram duzentas em Paris, e aplaudidas na maioria das vezes pelos seus defensores, lisonjeados ao verem tão belas damas dispensando-lhes sorrisos de encorajamento.
Fato estranho: foi a barricada mais próxima do hotel de Schomberg que foi a mais difícil de passar. E isso, por duas razões: primeiro porque o hotel, situado na vizinhança do Oratório, na rue de Saint-Honoré, ficava mesmo ao pé do Palácio Real; depois, porque era conhecida a absoluta dedicação do marechal ao seu Rei. Mesmo que, enquanto vice-rei da Catalunha, ele estivesse no outro extremo da França, ninguém duvidava que, caso se encontrasse em Paris, nem sequer teria pestanejado para reduzir a pedaços os senhores do Parlamento e os seus amigos. Mas Marie de Hautefort era uma esposa à sua altura.
- Alguns criados e duas damas, eis na verdade um inimigo digno de vós, valentes como sois! - declarou ao vendedor de carne assada, armado com um espeto, com o qual pretendia impedi-la de passar. - Desejais declarar-me guerra?
- Depende. Sois a favor ou contra Mazarin?
- Quem, na posse das suas faculdades, estaria do lado desse mariola? Já chega de brincadeiras, meu amigo: a senhora duquesa de Fontsomme e eu própria já estamos muito estafadas e gostaríamos de ir descansar um pouco.
- Então, gritai: ”Abaixo Mazarin!”
- Se só isso vos pode satisfazer, então até vamos todos gritar em coro. Vamos, senhores criados! Com a vossa melhor voz!
As duas mulheres e todo aquele grupo bradaram aos céus um ”Abaixo Mazarin!” tão bem orquestrado e tão entusiasta que foram aclamadas e acompanhadas até à porta do hotel, com todas as demonstrações do mais afetuoso respeito. Aí chegadas, foram saudadas.
- Senhoras, se por acaso vos acontecer alguma má aventura nos dias difíceis que se anunciam, dizei que me conheceis: chamo-me Dulaurier e sou merceeiro na rua dos Lombards... e vosso fervoroso admirador.
E regressou à sua barricada.
- Ufa! - suspirou Marie, deixando-se cair em cima da cama em brocatel azul e prateado. - Dir-se-ia que vamos assistir a uma pequena guerra parisiense. Confesso que me diverte imenso! A vós, não?
- Numa guerra há sempre mortos... e confesso que me preocupo muito com o nosso pequeno Rei.
- Enganai-vos redondamente! Toda essa gente preferiria lançar-se no Sena do que levantar a mão contra ele. Não os haveis ouvido? O que eles querem é a pele de Mazarin...
Com um gesto brusco dos tornozelos, desembaraçou-se dos pequenos sapatos em cetim cor de ameixa, a bem dizer muito estragados pelo percurso pouco usual que tinham acabado de fazer e, depois, sorriu para a amiga, que fazia o mesmo:
- Gostais mesmo do pequeno Luís, não é verdade?
- Confesso que sim. Quase o estimo tanto quanto à minha própria filha...
- Aquele que La Porte chama secretamente ”o filho do meu silêncio”! Tendes todos os motivos para isso... Mas, afinal, por que julgáveis indispensável ir dormir no convento da Visitação?
- Para escapar ao mais grave de todos os perigos. Aquele que, no entanto, sempre sonhei encontrar...
O seu olhar fixou-se nas camareiras que entravam para ajudarem a sua senhora a instalar-se para a noite.
- Ireis partilhar o meu leito - disse Marie. - Deste modo estaremos completamente à vontade para falarmos uma com a outra.
As criadas despacharam-se e, em breve, as duas mulheres encontraram-se deitadas lado a lado, no meio de uma profusão de amplas almofadas de um tecido fino enfeitado com rendas, e Sylvie contou fielmente à amiga o que se passara no jardim e como a inesperada chegada de Gondi a salvara de cometer o irreparável...
- Não me restava outra alternativa a não ser fugir - murmurou. - Contudo, Deus é testemunha que tive de me forçar e que não tinha a menor vontade de...
- Mas agistes bem - disse Marie, com gravidade. - A qualquer outra pessoa teria dito que é estúpido deixar passar o grande amor quando este surge dessa maneira ao nosso alcance e que não é lá muito grave ter um amante. Uma boa parte das mulheres que conhecemos dispõem de um, e não é por isso que os seus maridos se portam pior, mas vós e Fontsomme nada tendes a ver com uma Longueville, uma Montbazon ou uma La Meilleraye. Formais um lindo casal e julgo que o amais, não?
- De todo o coração, Marie.
- É de crer que tendes dois, visto que um deles pertence a Beaufort e desde há muito tempo. Minha pobre gatinha! Tendes razão ao pensar que uma traição magoaria cruelmente o vosso esposo, mas será que tereis sempre forças para rejeitar o amor de François? Dado que haveis vivido a meu lado a sua paixão pela Rainha, sabeis a que excessos ele é capaz de chegar. E receio muito que ele vos ame da mesma maneira. Dizei a vós mesma que ele saberá encontrar-vos, onde quer que estejais... e que o amais pois, se não fosse esse metediço do Gondi, vós mesma vos teríeis entregue a ele.
- Vós própria acabais de responder à pergunta. Oh Marie! Que devo fazer?
- Que conselho vos posso dar, eu que tenho a sorte de amar Charles como vós amais, ao mesmo tempo, Jean e François? Sei muito bem como são os arrebatamentos da paixão e cairia muito mal armar em virtuosa convosco.
- E então?
- Então, nada! Tudo o que podemos fazer é rezar, as minhas preces irão para vós!... E, depois, deixar agir o Destino, contra o qual não podemos grande coisa. Creio que o único conselho que tenho para vos dar é este: minha querida Sylvie, se por acaso soçobrardes, fazei-o de modo a que Fontsomme não o venha a saber...
Esgotadas por uma noite tão fértil em acontecimentos, as duas jovens não resistiram muito tempo ao sono e dormiram até uma hora tardia. Quando acordaram, depararam com uma estranha paisagem: havia barricadas por todo o lado, obstruindo todas as ruas que pudessem permitir o acesso ao Palácio Real. Alguns homens estavam de atalaia em cima daqueles amontoados heteróclitos de carroças, garrafas, pedras da rua, escadas e mobília. Só as patrulhas se deslocavam, fazendo parar todos os que queriam passar. Quando se tratava de gentis-homens ou de damas que passeavam à noite não só deviam gritar ”Abaixo Mazarin”, como também ”Viva Broussel!”. O primeiro grito não suscitava nenhum problema, dada que a nobreza francesa detestava o ministro da Rainha. O outro já provocava menos adesão, visto que, para começar, a maioria ignorava de quem se tratava. Como era inútil acabar por ser degolado por causa de um perfeito desconhecido, deixavam-se convencer facilmente. Fosse como fosse, aqueles que pretendiam chegar ao Palácio Real eram obrigados a voltar para trás: a residência real estava duplamente guardada, por um lado pelas barricadas, e, pelo outro, pelas grades fechadas e pelos seus próprios guardas que, dispostos em redor dos edifícios por M. de Guitaut, eram regularmente inspecionados por este, como se podia depreender pelo constante aparecimento das suas penas vermelhas.
Contudo, à medida que o tempo passava as coisas iam piorando. Deixando as barricadas à guarda de alguns homens seguros, o povo acorria de todos os locais da cidade, juntando-se frente ao palácio, reclamando Broussel com cólera crescente. Já tinham ferido o conselheiro Séguier e dois ou três pequenos bandos incontroláveis tinham começado a arrombar as portas de alguns hotéis felizmente vazios para os pilharem. A angústia crescia no meio daquela pesada jornada de Agosto. Marie e Sylvie viam o motim avolumar-se com ansiedade crescente. Esta receava pela criança-Rei, pela sua mãe e por aqueles que os rodeavam. Até quis ir ter com eles, clamando que era lá o seu posto.
- Estais louca? - admoestou-a Marie. - Se não me derdes a vossa palavra em como ficareis quieta, amarrar-vos-ei e, em seguida, fechar-vos-ei.
Teve de acabar por lhe obedecer, mas o seu coração apertava-se cada vez que ouvia o grito de ”à morte” pois, no meio de tantas ameaças dirigidas a Mazarin, algumas visavam a Rainha, ao referirem-se à ”Espanhola”. Ir-se-ia presenciar o assalto ao Palácio Real? Este mal podia ser defendido e Sylvie pensou que Ana de Áustria devia recordar-se das pesadas muralhas daquele velho Louvre ali ao pé, tão desdenhado, e que ela abandonara aos refugiados, à rainha Henrieta de Inglaterra e a seus filhos.
No entanto, sobreveio uma certa acalmia durante o dia. A própria multidão apartou-se para deixar passar um cortejo: o dos membros do Parlamento que, vestindo as suas compridas togas vermelhas, e encabeçados pelos presidentes de Mesme e Mole, vinham, deste modo, mostrar ao cardeal que, ao ter mandado prender Broussel, ele havia feito um mau cálculo: as Cortes soberanas nunca se vergariam quando se tratasse de recuperar a liberdade de um dos seus. Se quisesse evitar uma revolução, cabia ao ministro ceder à vontade popular.
- Não é um valente - riu-se Marie. - Deve estar a morrer de medo!
- Receio que não consiga fazer com que a Rainha ceda. Ela é intrépida e tão orgulhosa! Quaisquer que sejam os sentimentos que tenha por ele, nunca haverá de ceder-lhe!
Efetivamente, um pouco mais tarde, os dois presidentes saiam de mãos a abanar. Corajosamente, bem tentaram acalmar o povo que fervia em seu redor, acusando-os de traição e ameaçando-os de morte. Em vão! Uma onda de fúria empurrou-os de encontro às grades do palácio, que foi preciso abrir para evitar que fossem esmagados.
- Voltem lá para dentro! - gritou uma voz. - E se quiserem ver a luz do próximo dia, não se atrevam a regressar sem a ordem de libertação de Broussel e de Blancmesnil!
- É a voz do de Gondi! - murmurou Marie. - Esse doido perdeu toda a compostura. Já se julga mestre do reino!
- Receio que já seja o mestre de Paris. Mas, em nome de Deus, onde poderá estar François no meio disto tudo?
- É verdade, ontem à noite foram-se embora juntos...
As duas mulheres entreolharam-se em silêncio, assoladas pelo mesmo receio. Uma coisa era andar de barricada em barricada, causar a Mazarin o terror da sua vida, cortejar um pouco o Parlamento para obter uma libertação oficial; outra coisa era insurgir-se contra a Rainha, mesmo que ela já só fosse uma antiga paixão e, sobretudo, contra o Rei, Rei do seu próprio sangue. Nunca ninguém conseguiria levar Beaufort a esse extremo...
Durante todo o dia, Sylvie ora temia, ora ansiava pela chegada de Beaufort, sentindo-se contudo ligeiramente mais aliviada pela sua ausência; mas não havia motivos para receios, Gondi, a raposa, era matreiro demais para lançar no meio da primeira disputa aquele que pretendia tornar o símbolo absoluto do antimazarinismo. Ele sabia muito bem que se deixasse François misturar-se aos populares que cercavam o Palácio Real, ele não conseguiria suportar os gritos de morte dirigidos contra a sua Rainha e seria bem capaz de enfrentar sozinho uma multidão enraivecida, não se importando em ser massacrado ali mesmo. Por isso, logo de manhã, o homenzinho de pernas arqueadas tomara a precaução de fechá-lo no arcebispado, junto a uma assembléia completa de cônegos e jesuítas, pretextando que ele daria muito nas vistas e que o seu aparecimento no meio dos manifestantes poderia comprometer o futuro, cristalizando na sua pessoa os ressentimentos da Corte.
- Arrancar dois homens de lei das garras de Mazarin não é um assunto para vós - disse-lhe. - Ficai sabendo que quanto menos Mazarin vos vir, mais medo terá de vós.
Ele próprio não esteve com meias medidas e puderam vê-lo, a meio do dia, e com grande aparato eclesiástico, a pregar palavras de encorajamento e de compaixão perfeitamente hipócritas, enquanto benzia à esquerda e à direita. A Rainha, que o observava através das janelas do palácio, fez um sorriso azedo. Nunca gostara do abade de Gondi; a partir dessa altura, passou a execrá-lo... tanto mais que teve de ceder às novas instâncias dos dois parlamentares...
Ao chegar a noite, os vidros do palácio e os dos hotéis circundantes vibraram ao som de uma enorme ovação: a Rainha prometera libertar os dois prisioneiros. Mesmo assim, a multidão acampou no local, só dali sairiam quando Broussel, preso em Saint-Germain, lhes fosse entregue. O que aconteceu no dia seguinte, no meio de um entusiasmo indescritível.
- Fizeram uma tempestade num copo de água! - disse Marie desdenhosamente, quando o coche da Corte que transportava o velho homem passou diante da sua porta, levado por um mar de gente. - Olhai para ele, a saudar e a sorrir para todos estes energúmenos! Palavra de honra, julga-se o Rei!
- Isto não vai durar muito - disse Sylvie. - A partir do momento em que deixar de ser uma vítima, perde também a sua importância... Quanto a mim, espero poder agora voltar a casa. Graças a vós, estes dois dias não foram muito dolorosos de suportar.
- Exceto que, com toda esta gente à nossa volta, o calor foi mais insuportável do que nunca. Quanto a mim, vou voltar a Nanteuil. Fazeis-me companhia?
- Se Marie estivesse aqui comigo, seria com todo o prazer, mas estou com pressa de voltar a vê-la. Mas, afinal, por que não me acompanhais a Conflans? Sabeis que ela adora a sua madrinha?
Se bem que Marie tivesse respondido que ela também adorava a sua afilhada, Sylvie não insistiu. Sabia como a amiga se sentia triste por não ter filhos, tanto mais que era provável que nunca viesse a tê-los, dado que o vice-rei da Catalunha não tivera nenhum quando do seu primeiro casamento com a duquesa d’Halluin, cujo título conservara.
- Tanta glória e ninguém a quem a legar! - tinha dito um dia Mme. de Schomberg, num daqueles momentos de melancolia que a assolavam quando se encontrava separada do marido. Por isso, antes de subir para a carruagem que a levaria à rue de Quincampoix, Sylvie abraçou a amiga mais calorosamente que de costume. Perguntou-lhe:
- Por que não ides ter com o marechal a Perpignan? Ele deve sentir a vossa falta, tal como vós sentis a dele.
- Mais ainda do que julgais. Sem dúvida que ficaria contente, mas também muito zangado. Tem tanto medo que me aconteça algo no caminho! E é preciso confessar que é um longo trajeto. Contentar-me-ei com Nanteuil, onde me sinto mais ao pé dele do que em qualquer outro lado...
Ao regressar ao hotel de Fonstsomme, Sylvie não se demorou. Acometida por uma pressa febril de se afastar da casa vizinha, que evitou prudentemente olhar, ela abreviou os preparativos para a partida.
- Quase todas as barricadas não foram ainda removidas - tentou explicar Berquin. - Não temos a certeza que a senhora duquesa possa chegar à porta de Saint-Antoine...
- Tenciono atravessar o Sena, primeiro pelo Pont-Neuf e, depois, pela ponte de Charenton. Será mais longo, mas mais seguro. A margem esquerda não é tão... animada quanto esta! Mandai Grégoire avançar com a carruagem.
- Mas a cidade ainda não se acalmou...
- Não sejais tão pusilânime, Berquin! Tenho a certeza que logo que tivermos saído deste quarteirão, tudo correrá pelo melhor.
Acertara nas suas previsões. A animação na grande ponte, centro da vida popular parisiense, era pouco maior do que o costume e era verdade que à medida que se afastavam do Palácio Real sempre fechado e, desta vez, guardado por dois regimentos de cavalaria ligeira, armados até aos dentes a tranquilidade regressava.
Estava um dia estupendo. Uma chuvada noturna refrescara a atmosfera tão pesada dos últimos dias. Ao atravessar o rio, Sylvie reparou que este não tinha nenhum tráfego. Durante a noite da insurreição, tinham esticado as velhas correntes medievais que a fechavam a montante e a jusante da cidade, e os guardas ainda as vigiavam.
Quando chegaram ao cais da porta de Saint-Bernard deram, contudo, com uma grande quantidade de gente muito excitada, mas de maneira alegre, e que rodeou logo a carruagem, forçando-a a imobilizar-se. Grégoire nunca conseguia suportar muito tempo esta situação. Começou por gritar ”Atenção!” sem obter o mínimo resultado e, depois, ”Afastai-vos! Vamos, deixai passar a carruagem!”. As pessoas nem pareciam ouvi-lo. Todas elas, sobretudo as mulheres, riam e gritavam ”vivas”, que pareciam festejar algum acontecimento que se desenrolava no Sena. Sylvie espreitou à portinhola e avistou na ribeira dois cavalos a serem levados pela rédea, mas havia muita gente para que conseguisse distinguir o que se passava na água. Estendeu o braço e tocou na boina alta de uma dama do Mercado. Elas eram numerosas, tendo decidido unanimemente que não trabalhariam nesse dia. Também estavam presentes algumas raparigas da vida e mulheres do povo de aspecto indefinido. Os homens eram os habituais companheiros: moços de fretes, carregadores e hortelões.
- Por favor - pediu Sylvie - não podeis deixar-me passar?
A mulher voltou-se e desatou a rir:
- Para onde ides com tanta pressa?
- Para casa, em Conflans. De qualquer modo, não vejo o que tendes a ver com isso...
O tom de voz era ríspido mas, no entanto, a mulher não perdeu a sua boa disposição e riu-se ainda mais.
- Minha linda dama, em Conflans não podereis encontrar nada semelhante ao que se passa aqui! Tomai o vosso tempo para admirardes o espetáculo! Acreditai-me que vale a pena...
- De que se trata?
- É Monsenhor, o duque de Beaufort, que está a banhos com os seus gentis-homens. Ele é o homem de melhor constituição neste mundo. Colocai-vos de pé no estribo da vossa carruagem e podereis ver melhor!
Sylvie obedeceu automaticamente, tendo desatado a tremer, como se se aproximasse algum perigo, mas teve de segurar com uma mão no chapéu de veludo negro que exibia com a elegância de um cavaleiro. E, então, pôde efetivamente ver! Uma dúzia de homens chapinhava ou nadava no meio da água clara ou então, como se fossem verdadeiras crianças, fingiam que lutavam, atirando água uns aos outros, para grande regozijo da assistência. Reconheceu François muito depressa, tanto devido à sua cabeleira clara como à sua altura. Estava de pé, com água pela cintura e ria das loucuras dos seus amigos. Subitamente, ouviram-no gritar:
- Meus senhores, já chega! Está na hora de regressar. Encaminhou-se para a calçada adjacente à margem e o delírio atingiu o seu pleno. Estava nu e como avançava à luz do dia, desenvolto e sorridente, qual deus brotando de uma onda, Sylvie, de garganta apertada, pensou que nunca lhe fora dado contemplar nada mais belo que aquele corpo harmonioso. Os homens aclamavam com termos crus e piadas brejeiras, as mulheres lançavam-se a seus pés, que beijavam, abençoando a mãe que o carregara no ventre. Uma delas, uma linda rapariga mais afoita que as outras, pôs-lhe os braços à volta do pescoço e beijou-o longamente nos lábios, encorajada pela mão vigorosa com que ele lhe comprimia as nádegas para apertá-la mais de encontro a si.
Era mais do que Sylvie podia suportar.
- Grégoire! Tratai de sair daqui! - gritou, enquanto voltava ao seu lugar.
O resultado foi incrível. Era como se tivesse acabado de cometer um sacrilégio. Despertas do seu êxtase, todas aquelas pessoas voltaram-se contra ela com gritos de raiva, enquanto o cocheiro brandia o chicote, preparado para qualquer eventualidade. Gritavam:
- Mas que veio ela fazer aqui?... Não deixemos que se mexa! É uma espia de Mazarin!... É isso, é uma ”Mazarina”... Vamos deitá-la à água!
Depois seguiu-se o grito que se tornaria muito frequente nos meses seguintes:
- Morte à Mazarina!
Mas Beaufort ouvira tudo. Empurrando a mulher que se agarrava a ele, viu o que se passava e, sobretudo, reconheceu Sylvie que, apesar dos esforços de Grégoire e de dois criados, já estava a ser puxada para fora da carruagem. Então, arrancou uma toalha das mãos de Ganseville, atou-a em volta do corpo e desatou a correr, abrindo caminho com os punhos e aos encontrões; tirou Sylvie das mãos dos furiosos, voltou a sentá-la na carruagem e disse, saltando para o assento:
- Para trás, todos vós! É uma amiga. Quem quer que a ataque, atacar-me-á!..
- Ah, bem, não sabíamos! - resmungou um dos cabecilhas. - Mas o que sabemos seguramente é que Mazarin tem espias por todo o lado.
- É difícil de acreditar, quando o povo inteiro se ergue contra ele! Quanto a esta dama, trata-se da duquesa de Fontsomme. Tratai de vos recordar. E agora, abram essa danada porta de Saint-Bernard, para que ela possa sair!
De pé no assento, como um cavaleiro romano, François fez estalar o chicote que tirara das mãos de Grégoire, mais morto que vivo, e arremeteu com os cavalos a todo o galope. Mal tiveram tempo de abrir a pesada porta, que transpôs soltando um grito selvagem. Atrás da carruagem, vinha Ganseville, com o cavalo e as roupas do amo. Os monges da abadia de Saint-Victor, que ele ultrapassou a toda a brida, não chegaram a saber se aquele homem quase despido, que conduzia a carruagem a uma velocidade infernal, era o próprio arcanjo S. Miguel ou se era algum demônio.
Passado um bocado, Grégoire, que recobrara a presença de espírito, encheu-se de coragem para perguntar àquele inesperado colega se não se importava de abrandar o andamento, pois ”a senhora duquesa deve estar aos pulos como ameixas num saco”, o que provocou o riso de François.
- Ela já passou por outras!
- Talvez seja verdade, mas também ousaria sugerir que monsenhor parasse para, ao menos, se poder vestir. Penso que se monsenhor continuar a conduzir-nos até Conflans nesse estado, isso produzirá um efeito desastroso na vizinhança!
- Se quiseres que eu me vista, vais ter de me emprestar as tuas roupas, meu bravo!
- Julgo que não é preciso. O escudeiro de monsenhor vem mesmo atrás de nós.
A carruagem parou. François saltou para o chão, foi ao encontro de Ganseville e das suas roupas e depois regressou para o pé de Sylvie, que lhe sorriu de todo o coração.
- Agora que estou apresentável - disse-lhe, ao pegar-lhe na mão para a beijar - autorizais-me a acompanhar-vos até Conflans? Parece-me que bem o mereci.
- Subi! Fizestes mais do que merecê-lo pois, mais uma vez, vos devo a vida.
Enquanto a carruagem voltava a partir, a um ritmo menos desenfreado, os seus dois ocupantes ficaram um bocado sem dizer nada, desfrutando o milagre daquele momento de intimidade. Por fim, François murmurou:
- Ainda vos recordais daquela nossa primeira viagem juntos, quando saímos de Anet, para nos refugiarmos em Vendôme?
- Como poderia esquecê-lo? É uma das minhas mais doces recordações...
- Para mim também. Eu segurava a vossa mão pequenina na minha e acabastes por adormecer encostada a mim...
Enquanto falava, segurara na mão de Sylvie. Ainda abalada por aquilo por que acabara de passar, mas toda feliz por tê-lo ao pé de si, ela não a retirou, mas preveniu-o:
- Não me apetece nada dormir.
- É pena!
Levantou-lhe o pulso esguio até à altura dos seus lábios, acariciou-o suavemente e, depois, perguntou em voz baixa:
- Porque te foste embora na outra noite?... Quando regressei ao teu encontro, ardendo de amor, o jardim estava deserto e o meu belo passarinho tinha-se escapulido. Então fui até ao portão para perguntar por ti e para poder, ao menos, falar contigo, mas disseram-me que te tinhas ido embora... Onde estavas?
- No hotel de Schomberg, onde permaneci até esta manhã.
- Tinhas assim tanto medo de mim?
- Oh não, meu querido amor, não é de vós que tenho medo, mas sim de mim mesma. Se tivesse ficado, teria sido sem dúvida muito feliz... para sentir, logo em seguida, um terrível remorso...
Ele quis envolvê-la nos braços, mas ela manteve-o à distância. Ele suspirou:
- Repete o que acabaste de dizer!... Chama-me outra vez ”meu querido amor”.
- Sempre vos chamei assim nos meus sonhos, mas já não tenho o direito de sonhar. Pensai com quem estou casada!
- Que o diabo o leve, ao vosso esposo, senhora! Por que vindes sempre metê-lo de permeio entre nós? Amamo-nos... apaixonadamente! Pelo menos eu! Não é a única coisa que deve contar?
- Não. Vós que vos preocupeis tanto com a honra, pensai mais seriamente na minha.
- Ides armar-vos em virtuosa? Estou a falar-vos de amor e o amor deve vir à frente de tudo. Sylvie, só serei feliz quando fordes minha... e tenho a certeza que nessa altura também o sereis.
- Como sois presumido! Chegais muito tarde, meu amigo. Não por vos amar menos que outrora, Deus é testemunha que sois o único que amarei desta forma tão apaixonada, mas por que não viestes mais cedo? Por que não me amastes mais cedo...? Agora existe entre nós um homem com direitos, boa pessoa e pleno de amor e por nada deste mundo quereria vê-lo magoado...
- Mas que feliz mortal! - disse Beaufort com amargura. - Há pessoas que têm mesmo sorte! Esse só teve de inclinar-se para obter tudo, físico agradável, fortuna, título e, finalmente, a única mulher que amo! Não é justo!
- Vós é que não o sois. Dizei-me que motivos tendes para o invejar, sois príncipe, e até pelo sangue, não sois propriamente feio, por assim dizer, sois suficientemente rico para frequentar casas de jogo, não protesteis, eu bem o sei!, e, por fim, possuístes todas as mulheres que haveis desejado.
-Exceto a única que é importante!
- Não renegai aquelas que amastes, não seria digno de vós.
- Não me podereis impedir de acalentar esperanças!
- Não tenho meio algum para o impedir.... mas não conteis comigo para as alimentar!
Estavam a chegar e para Sylvie já não era sem tempo. Fechada naquele reduzido espaço com um homem cujo ardor sentia que a envolvia como uma chama, morria de desejos para se lançar nos seus braços, esquecendo todos os belos princípios que acabara de enunciar, apenas em troca de um simples abraço divino mas, depois de ter transposto a ponte de Charenton, a carruagem metera por uma pequena estrada que acabava no castelo de Conflans.
- Sylvie mal teve tempo de pôr um pé no chão e já tinha a seu lado Jeannette e a pequena Marie.
- Dizem que houve barulho em Paris! - exclamou a primeira, depois de ter saudado Beaufort. - Estávamos preocupadas com a senhora...
- Não houve motivo para isso. Não corri nenhum perigo.
- Meu Deus!... - A última exclamação fora provocada por Marie que, estendendo os bracinhos, se esforçava por passar dos de Jeannette aos de François. Ele sorriu-lhe e pegou nela, levantando-a no ar, enquanto os pés e mãos da criança, que ria, se agitavam alegremente
- Ora aqui está alguém que sabe reconhecer os seus amigos! - disse o jovem duque. - Meu Deus, como ela é tão querida!... Parece-se com a mãe!
- É isso mesmo! - disse Jeannette, com satisfação. - É exatamente o mesmo diabrete, com as mesmíssimas fúrias... e, monsenhor, dir-se-ia que ela vos adotou... tal como a mãe!
Ao ver a filha dando beijos ruidosos na cara de François, que então a apertava de encontro a si, Sylvie sentiu uma viva emoção. Outrora ela também se agachara de encontro àquele que chamava então ”Senhor Anjo”. Nesse dia ela tivera medo e frio, tremendo por debaixo da sua camisa manchada de sangue. Graças a Deus, não era o caso de Marie, que trajava naquele momento um lindo vestido cor-de-rosa por cima de saiotes muito brancos, debaixo dos quais apareciam os seus pézinhos minúsculos, calçados com pequenas pantufas de veludo. A sua atração por François era tanto mais significativa porquanto tal como ela própria o fizera há muito tempo se recusava a separar-se dele.
- Vou levá-la até em casa - disse François, rindo. - Talvez a vossa hospitalidade chegue ao ponto de me oferecerdes um pouco de vinho fresco? Morro de sede...
Que pretexto poderia ter para recusar? Aliás, Sylvie não o desejava e, no fundo, não estava descontente por lhe poder mostrar a sua linda casa de campo. Instalaram-se num salão cujas janelas altas davam para terraços cheios de rosas e para o Sena, que cintilava. Continuando a segurar Marie, François aproximou-se:
- É lindíssima... ”A casa de Sylvie”[26]? - acrescentou, voltando o seu sorriso na direção da jovem. - Ela recorda-me outra, não mais bonita que esta...
A chegada do mordomo, que trazia uma carta na bandeja, acabou por quebrar o encanto:
- Quando se dirigia para Saint-Maur, para servir Monsenhor, príncipe de Conde, o senhor conde de Laigues veio trazê-la em mão própria há cerca de uma hora. É uma carta da parte do Senhor Príncipe... e não foi solicitada nenhuma resposta.
Debatendo-se com uma vaga inquietação, Sylvie pegou na carta, enquanto olhava para François que, de sobrolho subitamente franzido, pousava a pequena no chão. Sylvie partiu o selo e leu-a rapidamente, o que era uma espécie de proeza pois a letra do vencedor de Rocroi era tão extravagante quanto ilegível. Finalmente, soltou um ligeiro suspiro:
- O Senhor Príncipe escreveu-me de Chantilly.[27] Diz que tendo sido ferido frente a Furnes, foi socorrido e levado pelo meu marido. Este ato... heróico, valeu-lhe, por sua vez, ser atingido e até capturado... Contudo, o governador da cidade espanhola cercada fez saber que a sua vida não estava em perigo e que seria tratado de acordo com o seu estatuto de gentil-homem...e que serviria de objeto de troca... O Senhor Príncipe diz-me para não me atormentar pois ele fará da libertação do melhor dos seus oficiais um assunto exclusivamente seu...
- Estando em Chantilly? - troçou ironicamente Beaufort. - O Senhor Príncipe é certamente um grande capitão, mas às vezes raciocina como um tambor furado!
- Tendes uma proposta melhor? - perguntou Sylvie com aspereza.
- Tenho, senhora duquesa! Eu, o proscrito, eu, o prisioneiro a monte, vou até Furnes para ver se consigo descobrir um meio de vos devolver um esposo tão precioso!
Saudou profundamente e, depois, saiu a correr.
- François! - chamou a jovem. Mas ele já se fora embora.
MANTIMENTOS PARA PARIS!
Passaram-se semanas, sem que elas trouxessem de volta quer Beaufort, quer Fontsomme, e ninguém podia dizer o que lhes estava a acontecer.
O príncipe de Conde fora a banhos para Bourbon, a fim de sarar mais depressa a sua ferida na anca. Paris estava quase calma, com aquela calmaria frágil que a expectativa traz consigo. Encorajado pelos seus recentes êxitos, o Parlamento mantinha as suas posições, sem renunciar a obter as ”reformas” que julgava indispensáveis. Contudo, seria impossível recomeçar as barricadas. Tiveram de acabar por deixar que a pequena Corte emigrasse para Rueil. Efetivamente, a sorte bafejara Mazarin, pois o príncipe Filipe, duque d’Anjou apanhou, por sua vez, bexigas. Ótimo pretexto para afastar o Rei e sua mãe! Teria sido um ato de regicídio impedir Luís de fugir ao contágio. A contrapartida, muito dolorosa para o pequeno doente e para o coração de sua mãe, foi que o pequeno teve de ficar no Palácio Real, lamentável refém da política, mas chegando para acalmar a desconfiança das Cortes soberanas... pelo menos durante alguns dias.
Dado que a Rainha suportava mal a sua ansiedade, o seu primeiro escudeiro, M. de Beringhen, regressou discretamente a Paris, e envolveu o pequeno rapaz, ainda cheio de febre, num monte de cobertores, escondendo-o no cofre da sua carruagem e trazendo-o triunfalmente de volta para junto de sua mãe. O Parlamento arreganhou os dentes, mas alguns dias mais tarde iam principiar as conferências de Saint-Germain, nas quais se tentou chegar a uma espécie de compromisso. Aliás, não era boa altura para recomeçar outra revolução: a algumas centenas de quilômetros dali, na Alemanha, os representantes da França, da Suécia e do Império, discutiam os últimos artigos dos tratados de Vestefália que iriam pôr cobro à guerra dos Trinta Anos. O resultado final ocorreu a 24 de Outubro, consagrando os plenos direitos da França sobre a Alsácia, sobre os Três Arcebispados (Metz, Toul e Verdun) e sobre Philippsburg e Brisach, na margem direita do Reno. Algumas centenas de príncipes alemães conquistaram a sua autonomia sob domínio, teórico, do Imperador. Um só ausente, mas de peso: a Espanha, com a qual parecia ter sempre de haver desentendimentos... A Corte regressou a Paris para mais um TeDeum.
Em Conflans, Sylvie ouviu tocar os sinos de todas as igrejas, anunciando a paz há tanto tempo esperada e regozijou-se, pois via nisso uma promessa para o regresso de Jean. Passara aqueles dois últimos meses bastante calma, desfrutando longas horas em companhia da pequena Marie e assistindo ao amarelecimento das folhas do seu jardim. Dado o estado de saúde do filho, a Rainha não lhe permitira que se juntasse a ela em Rueil, pelo que lhe ficou muito grata, mas Sylvie também não ignorava que o alegre carrilhão assinalava igualmente o fim dos belos dias e o regresso à rue Quincampoix, que ela adiava de dia para dia, tornava-se inevitável.
A sua renitência em regressar à casa na cidade não escapou a Perceval de Raguenel, que viera passar um mês na sua companhia.
- Eu sei que gostais do campo, coração meu, mas não exagerais um pouco? Este vale é muito úmido durante a má estação e o hotel de Fontsomme é, nessa altura, bem mais acolhedor...
- Não sei porquê, mas este ano não sinto vontade nenhuma de voltar para lá.
- Contudo, tendes de o fazer, a não ser que desejeis ver a Rainha pôr-vos na ordem! Pensai também no pequeno Rei que gosta tanto de vós!
- Tal como eu gosto infinitamente dele...
- E então?
Como Sylvie não respondia, Perceval pôs em cima da mesa de jantar o copo que acabara de beber, reclinou-se na sua poltrona, soltou um suspiro e disse, com brandura:
- Por que não ides esperar pelo regresso de vosso marido em minha casa? Seria uma alegria para todos e talvez vos sentísseis... menos só e, portanto, menos exposta que na rue Quincampoix.
A última palavra fez estremecer Sylvie:
- Menos exposta? Que quereis dizer?
- Penso na vossa vizinhança e, para vos confessar, meu anjo, receio que esta seja demasiado turbulenta para vós... reparai que a rua das Tournelles já perdeu muito da sua tranquilidade, desde que a encantadora Ninon de Lenclos[28] se mudou para lá de armas e bagagens; no entanto, os vossos vizinhos não a frequentam.
Desta vez Sylvie compreendeu. Apoiando os cotovelos na mesa, ela sorriu ao fitar o padrinho nos olhos.
- Que vos faz supor que a minha vizinhança me seja adversa?
- Não empregaria essa palavra. Antes preferiria o termo perturbante, ou... atrativa? De qualquer modo, poderia dar azo a certos rumores...
- Mas que rumores? - perguntou Sylvie, já na defensiva. Perceval estendeu a mão através da mesa para agarrar na da afilhada:
- Vamos lá! Não vos zangueis, procurai antes entender que quando, por assim dizer, se é raptada nas margens do Sena por um príncipe vestido apenas com uma toalha, isso acarreta uma certa imagem... e dá azo a muito falatório. Acontece que houve uma pessoa de má língua, que pertencia infelizmente às pessoas de bem, que também assistiu à cena, com a qual encontrou um motivo para grande chacota...
Com a boca subitamente seca, Sylvie engoliu em seco com alguma dificuldade, antes de perguntar:
- Quem?
- Mme. de la Bazinière. Se bem compreendi, a sua carruagem estava a chegar na altura em que a vossa se ia embora.
- A Chémerault[29]?! Ela, outra vez! Mas que lhe fiz eu? Agora que se casou, devia estar tranquila, não?
- Até enviuvou e diz-se que ela se consola com Particelli d’Emery, aquele banqueiro italiano tão rico. O que não impede de dizer que voltaria a casar-se, caso acabásseis por desaparecer.
- Eu?
- Sim, vós! Certamente que sois a única pessoa que ainda ignora que desde a sua adolescência ela está apaixonada pelo vosso esposo... Contudo, não vos afligis: o mal ainda não é grande. Isso não impede que prefira guardar-vos ao pé de mim até que Jean regresse...
- Sim... sim, tendes razão! Obrigada por me terdes prevenido! A vosso lado, não correrei riscos... Meu Deus! Mas que mundo tão mau!
- Só agora destes por isso, minha querida? No entanto, até à data do vosso casamento, deram-vos razões de sobra para que o soubésseis.
E foi assim que Sylvie, Jeannette e a pequena Marie se foram instalar na rue das Tournelles...
Com vista ao Dia de Todos os Santos, a Rainha regressou a Paris com os seus, depois de ter chegado, com o Parlamento, a uma espécie de compromisso que a orgulhosa espanhola assinara chorando, julgando-o particularmente ofensivo. Só sonhava em desforrar-se a valer e a sua disposição ressentia-se disso.
Quando voltou ao Palácio Real, Sylvie não recebeu o habitual acolhimento familiar e bem disposto a que Ana de Áustria a habituara. Num tom de voz amargo, pediram-lhe notícias de M. de Beaufort, como se ela estivesse quotidianamente em contato com ele.
- Como poderia ter notícias a dar à Rainha? - respondeu a jovem, no meio da sua reverência. - Já faz mais de dois meses que estou sem o ver e ignoro completamente onde ele está. O que, aliás, pouco me interessa...
- Realmente? Julgava que fosse o contrário, dizem que estais muito ligados...
- Como, acontece com os amigos de infância, Senhora. Ele tem a vida dele, eu tenho a minha, e se nem sempre estou de acordo com as ações que dele me contam, não me posso esquecer que já salvou a minha vida por duas vezes.
- Bem sei, bem sei! Mas isso tudo são velhas histórias! Aliás, todos nós mudamos com o decorrer do tempo. A amizade pode transformar-se noutra coisa.
Sob aquele tom de contínua aspereza, Sylvie sentiu que despontava uma espécie de ciúme bem feminino. As coscuvilhices da antiga Chémerault deviam ter chegado até aos ouvidos da Rainha. Então, ousou olhar para o fundo dos olhos daquela mulher coroada, que podia quebrá-la a um sinal:
- Eu não mudei. E Monsenhor de Beaufort também não, Senhora. Continua fiel, sempre disposto a morrer pela Rainha!
Ana de Áustria corou ao ouvir a crítica velada e, depois, voltou-se para chamar alguém:
- Minha cara Cateau, passai-me um leque. Isto aqui está um braseiro...
A camareira principal apresentou-se rapidamente, com um sorriso que se tornou trocista ao encarar a pequena duquesa que detestava cordialmente aquela Catherine Beauvais, casada com um antigo comerciante de fitas que enriquecera, tinha conseguido infiltrar-se nas boas graças da Rainha devido à delicadeza de suas mãos e à habilidade que demonstrava ao administrar os cuidados mais íntimos, tais como os clisteres. Era feia, impudica e como usava sempre uma venda de tafetá preta chamavam-lhe Cateau, a Zarolha. Apesar da sua desgraça e feieza, colecionava amantes e como partilhava as confidências da Rainha com Mme. de Motteville, escusado será dizer que as duas mulheres não gostavam uma da outra.
Sylvie fez de conta que não a vira. Aliás, a entrada súbita de Mazarin salvou a assembléia da situação incômoda que se estava a criar e a jovem fez uma nova reverência.
Como era seu costume, o cardeal foi todo açúcar, mel e amabilidades. Tinha envelhecido. É verdade que dificuldades não era o que lhe faltava. Dia após dia, choviam em Paris panfletos mais insultuosos uns que os outros, chamando-o tirano, opressor e ”Sicíliano de origem sórdida”, o que era falso. Nessa altura havia um poste no Pont-Neuf[30], no qual todas as manhãs se pregava um novo libelo insultando sempre Mazarin mas também, por vezes, a própria Rainha. Quanto ao Parlamento, insatisfeito com as medidas financeiras que obtivera, não estava com rodeios e exigia o regresso do ministro à sua Itália natal.
Ainda assim, este encontrou maneira de dirigir um belo sorriso a Sylvie, pedindo-lhe notícias do seu esposo e a jovem teve de reconhecer que desde a carta do príncipe de Conde, cujo teor revelou, ela nada mais sabia quanto ao seu paradeiro, o que não deixava de a inquietar.
- É estranho, mas não deveis temer o pior, senão já teríeis sido prevenida. Contudo, se estivesse no vosso lugar, iria visitar o Senhor Príncipe.
- Ele ainda está em Chantilly?
- Não, a meu pedido acaba de regressar a Paris. Nada mais natural que ir visitá-lo em busca de notícias...
- Irei certamente, monsenhor. Obrigada por esse precioso parecer... - disse Sylvie, verdadeiramente grata.
Impelida por uma brusca pressa, não se demorou no Palácio Real onde, aliás, a Rainha não parecia desejar especialmente a sua presença. Efetivamente, à ordem do Rei, La Porte veio pedir que Mme. de Fontsomme fosse ter com Sua Majestade à sua sala de jogos. Ana de Áustria interpôs-se:
- Dizei a meu filho que ele não tem tempo nem para visitas, nem para a guitarra, tem de se preparar para a apresentação desta noite...
Não se podia ser mais claro, a Rainha não queria que Sylvie visse o seu filho. Com o coração subitamente apertado, Mme. de Fontsomme pediu autorização para se ir embora, o que foi concedido com um gesto desenvolto que encantou aquelas que não gostavam dela e deixou o Grande Gabinete com a nítida impressão de ter caído em desgraça. Por isso, prometeu a si mesma que só lá voltaria caso solicitassem a sua presença...
Entretanto ordenou a Grégoire que a levasse ao hotel de Conde.
O antigo hotel de Ventadour, situado próximo do Luxembourg, onde ocupava um vasto quadrilátero, devia uma parte da disparidade dos seus edifícios a um dos inevitáveis Gondi, não sendo, portanto, um modelo de arquitetura mas, por outro lado, ostentava uma fabulosa decoração interior e possuía jardins maravilhosos, que eram dos mais belos de Paris. Um deles exibia todo o rigor solene de um jardim rendilhado, e o outro, disposto em terraços, era sobretudo constituído por boulingrin[31], cercados por arbustos e fileiras de árvores. Foi aí que Sylvie encontrou o herói de Rocroi e de Lens, ocupado a fustigar, com a sua cana, as folhas mortas que caíam das árvores. Quando um criado lhe veio anunciar o nome da visita, parou o jogo e foi ao seu encontro:
- Mme. de Fontsomme! Meu Deus, que alegria... e que remorso!
- Remorso, monsenhor? Mas que palavra mais feia!
- Mas tão apropriada! Ao chegar a Paris devia ter ido imediatamente visitar-vos, mas fui tolhido por um monte de preocupações, e como esta malfadada chuva não pára de cair, confesso que fizestes bem em vir aqui. Quereis saber notícias do vosso esposo?
- Depois da vossa carta fiquei, efetivamente, sem saber mais nada.
- Eu também... ou, antes, sei muito pouco, mas devo tranquilizar-vos: o seu ferimento sarou e já não se encontra nas mãos do inimigo! E isso não se deveu a esse doido do Beaufort que, certa manhã, surgiu como um raio frente a Furnes, que pretendia tomar sozinho de assalto, ao que me contaram. Pouca sorte a dele, era coisa já feita... mas é melhor que nos abriguemos e que bebamos algo quente. Estais toda a tremer e eu estou a manter-vos no meio de uma corrente de ar...
Pegou-lhe numa mão para a levar até ao hotel, com uma tal rapidez que ela pediu tréguas em nome do estado dos seus sapatinhos. Ele parou, desatou a rir e prosseguiu mais devagar. Era a primeira vez que Sylvie o via na sua privacidade e pensou que ele era francamente feio, com um rosto que parecia ter sido podado, com aquele enorme nariz proeminente mas, também, que aquela poderosa feieza possuía, simultaneamente, muito mais charme que certas figuras mais delicadas. E que vitalidade! Ele só tinha um ano a mais do que ela, mas era tão atrevido como um menino de dez anos...
Ele mandou-a sentar-se num suntuoso salão repleto de enfeites dourados e de admiráveis quadros antigos, gritou que lhe trouxessem vinho quente, obrigou-a a bebê-lo e, por fim, instalou-se à sua frente, retomando o fio à meada:
- Não espero vir a ter notícias de Fontsomme antes de um certo tempo e vós ainda menos: seria muito perigoso. Acedendo, mais ou menos, aos seus pedidos, encarreguei-o de uma missão relacionada com a política e sobre a qual nada vos posso dizer. Ficai apenas a saber que ela o levará para muito longe e que poderá durar... alguns meses.
- Haveis confiado uma missão importante e longínqua a um convalescente?
- O seu ferimento não foi grave e quando nos despedimos em Chantilly, acreditai-me que já se recompusera integralmente...
- E ele esteve aqui tão próximo e eu não o vi?
- Em certos casos uma dezena de léguas são ainda uma grande distância. Parai de vos atormentar, minha cara, e confiai um pouco em mim, em breve ele irá ter convosco....
Que fazer depois desta exposição destinada a tranquilizá-la, a não ser agradecer e ir-se embora? Foi o que Sylvie fez graciosamente, acompanhada até à carruagem por um homem que parecia achá-la cada vez mais a seu gosto e que nada fazia para o esconder, o que acabou por desagradar-lhe, quando se confia ao esposo de uma dama uma missão secreta e, sem dúvida, perigosa, é dar provas do maior mau gosto cortejar a dita dama; no entanto, já não era a primeira vez que constatava a deplorável tendência dos príncipes em cultivar o mau gosto. Foi o que disse a Perceval, o que o fez rir:
- Não julgueis o príncipe um rei Salomão, nem o nosso caro duque um capitão Uriel. Pelo contrário, penso que esse atrevimento é a melhor prova em como podeis estar descansada a respeito do vosso esposo. Ele não é o gênero de homem a quem pudessem pregar uma brincadeira dessas e até um Conde não se atreveria a fazê-lo.
Tranquilizada quanto a este assunto, Sylvie pôde pensar então, divertida, em François. Era mesmo ao seu estilo, querer conquistar sozinho uma cidade inteira para de lá tirar um prisioneiro! Uma verdadeira loucura mas, dado que ele a queria realizar em nome do amor que tinha por ela, isso conferia-lhe um elevado preço...
Enganava-se contudo, se contava ter acabado com o Palácio Real. Numa manhã de Janeiro recebeu uma mensagem de Mme. de Motteville, a Rainha inquietava-se com a sua ausência e temia que ela estivesse doente. Se não fosse esse o caso, desejava vê-la já no dia dos Reis, o jovem monarca reclamava-a para que participasse na ceia em que se comeria o tradicional bolo-rei[32]...
Fazia muito frio nesse dia e Sylvie não tinha vontade nenhuma de deixar a casa aconchegada do seu padrinho. Se contasse apenas com a recordação da sua última visita, talvez tivesse mandado dizer que estava adoentada, mas Mme. de Motteville pretendia que o seu “amigo” Luís a reclamava e ela era incapaz de recusar àquela criança, que tanto amava, um prazer do qual ela faria parte integrante.
Enquanto a carruagem a levava para a Corte, não pôde impedir-se de evocar, aquele dia faria em breve doze anos, em que Mme. de Vendôme conduzira uma pequena Sylvie de quinze anos ao posto de dama de honor de uma grande rainha. O tempo invernal era quase o mesmo mas, entretanto, a cidade mudara completamente Até mesmo as festas do Natal e do Ano Novo, que ainda se celebravam, pareciam incapazes de devolver a Paris a sua fisionomia de outrora, quando reinava a ordem impiedosa de Richelieu. Agora já não se viam pessoas serenas, mas muitos homens e mulheres de má cara, que a calmaria relativa que se seguira às barricadas de Agosto ainda não convencera a regressar às suas ruelas. Apesar do frio, havia grupos de pessoas que conversavam em voz baixa e os cabarés tresandavam de bêbedos descompostos que se metiam com os transeuntes, para que eles gritassem “Abaixo Mazarin!”. Ninguém se fazia rogado!
Entretanto, Grégoire segurava firmemente os cavalos, sabendo que um ligeiro encontrão poderia desencadear um grave incidente. Na véspera, a carruagem de Mme. d’Elbeuf, cuja atrelagem tinha embatido num escriturário notarial, fora tomada de assalto, virada de pernas para o ar e só a intervenção de um pelotão de mosqueteiros que por ali passava casualmente é que pudera salvar os seus ocupantes. No Palácio Real, de ora em diante guardado como uma fortaleza, a atmosfera era mais pesada do que o costume e era, sobretudo, menos frívola. Falava-se, com uma certa angústia, das últimas notícias provenientes de Inglaterra, onde o rei Carlos I acabará de ser levado a julgamento pelos seus súditos revoltados. Quem falava era sobretudo a sobrinha da Rainha, Marie-Louise de Montpensier, filha de Monsieur e a quem chamavam simplesmente Mademoiselle. Era uma espécie de amazona de vinte e um anos, não muito bela, um tanto avantajada de formas e cujas ambições, à medida do seu dote colossal, sonhavam com impérios. As suas insolências, proferidas em voz alta, e a sua língua desabrida, não poupavam ninguém, nem sequer a própria Rainha.
Naquela altura estava a contar a visita que fizera nesse dia ao Louvre, para ver a rainha Henrieta de Inglaterra, que também era sua tia, referindo-se ao estado lastimável a que esta estava votada:
- O caro Mazarin nada faz e ela está privada de tudo. O frio é tanto que a sua filha, a pequena Henriette, não sai da cama para poder manter-se um pouco quente! Já deixaram de lhe dar a pensão que lhe tinham outorgado quando chegou. O cardeal deseja certamente comprar mais alguns diamantes...
- Paz, sobrinha! - interveio a Rainha. - Se vindes aqui apenas para dizer mal do nosso ministro, não sereis bem vinda muito tempo.
- Senhora, seria a única em Paris inteiro a não dizer mal dele! E a triste situação em que ele deixa essas pobres mulheres...
- Por que não vos ocupais vós delas, vós que sois tão rica?
- Foi o que fiz! Dei ao senhor Jermyn, que zela por elas, com que comprar madeira, mas o Inverno ainda agora começou...
A entrada de Sylvie no Grande Gabinete trouxe um motivo de distração. Ao vê-la, o pequeno Rei que, sob o olhar embevecido da mãe, jogava aos soldadinhos com o irmão e duas crianças de boas famílias, abandonou imediatamente o jogo para correr para ela, mas parou a alguns passos de distância, enquanto Sylvie fazia a sua reverência:
- Eis-vos finalmente de volta! Porque motivo não vos vemos mais vezes, duquesa? Quereis mesmo abandonar-me?
- Senhor, quem ousasse abandonar o seu rei seria um traidor merecedor da morte - respondeu, sorrindo - e o meu rei sabe bem quanto gosto dele...
Ele continuou a olhá-la sem dizer nada e também sem lhe dar autorização para se soerguer. Aquele olhar penetrante parecia querer ir diretamente até ao fundo do seu coração. Em seguida, estendeu-lhe a mão:
- Lembrai-vos sempre do que acabastes de dizer, senhora, pois eu nunca me esquecerei.
Sylvie avançou então na direção de Ana de Áustria e viu que as duas mulheres sentadas ao pé dela eram Mme. de Vendôme e Mme. de Nemours. As três receberam-na calorosamente, parecendo que a Rainha se tinha esquecido da sua má-disposição anterior. Deixando a sobrinha continuar os seus discursos, ela mandou que trouxessem os bolos para que tirassem à sorte as favas. Como lhe calhou uma, pediu um licor de canela e cravo-da-índia e bebeu-o no meio dos aplausos da Corte que gritava “a Rainha bebe!”. As crianças foram depois enviadas de volta aos seus aposentos e preparou-se o jantar da Rainha e das suas damas, enquanto a maioria da assistência se retirava para ir ao festim que o marechal de Gramont oferecia nessa noite. O próprio Mazarin devia aparecer lá. Enquanto decorriam estas movimentações, Sylvie e Elisabeth de Nemours isolaram-se.
- Sabeis onde está o vosso irmão François? - perguntou a primeira.
- Foi exactamente a pergunta que me fizeram, a mim e à minha mãe. A Rainha parece desejar imensamente voltar a vê-lo, mas não lhe diria mesmo que soubesse onde ele se encontra. Creio que é sobretudo Mazarin que lhe quer pôr a mão em cima. De qualquer modo, não tenho a menor idéia...
- Também não é mau que assim seja...
Já era tarde quando as convidadas da Rainha se foram embora. A maioria estava com sono e, no pátio do Palácio Real, o bailado dos coches e dos carregadores de tochas foi desempenhado a preceito. Tanto Sylvie como os outros, tinham todos pressa de voltar a casa.
Foi encontrar Perceval na sua biblioteca, como era normal, porém ele não estava sentado numa poltrona a ler, mas a andar de um lado para o outro, tão preocupado que não ouvira a chegada da carruagem.
- Graças a Deus, eis-vos de volta! Começava a recear só voltar a ver-vos daqui a umas semanas...
Sylvie escancarou os olhos:
- Daqui a umas semanas? Mas, por que motivo?
- Não haveis notado nada de estranho no comportamento da rainha ou de Mazarin? Algo fora do normal?
- Não, meu Deus! A Rainha mostrou-se encantadora e passamos uma noite excelente, sem ter de suportar a companhia de Mazarin, que jantava no hotel de Gramont. Mas porque fazeis todas essas perguntas?
- Théophraste Renaudot acaba de sair daqui. Está convencido que, esta noite, a família real e o cardeal vão deixar Paris, acompanhados pelos seus apoiantes mais fiéis. Daí o meu receio que eles vos levassem. O nosso amigo acha que se vão refugiar em Saint-Germain ou noutro sítio, para que Conde possa isolar Paris e subjugá-la pela fome. Parece que há curiosas movimentações de tropas nas proximidades da capital...
- Isso não faz sentido! Para tal seria preciso que fugissem sem nada levarem com eles e, em pleno Inverno, custa muito a acreditar que o façam. Além disso, a Rainha não partiria sem a sua querida Motteville - acrescentou Sylvie, com certo azedume. - E Motteville deixou o palácio ao mesmo tempo que eu.
Contudo, o homem da Gazette tinha razão. De manhã, Mme. de Motteville, toda em alvoroço, desembarcou na rua das Tournelles para saber se a duquesa de Fontsomme partira com os outros.
- Bem vedes que não - disse Sylvie, instalando-a junto à lareira, antes de lhe trazer leite com mel e uns bolinhos para a aquecer. - Aliás, não vos lembrais que saímos do palácio ao mesmo tempo?
- Com certeza, mas teríeis podido regressar, se vos tivessem dado indicações nesse sentido...
Era uma amostra de ciúme retrospectivo, pois a confidente de Ana de Áustria estava aliviada por encontrá-la ali.
- Teríeis sido avisada antes de mim - disse Sylvie, com gentileza. - E é isso o mais surpreendente, que “vós” não tenhais sido prevenida... Sabe-se como foi dada a partida e quem participou nela?
- Foi essa horrível Mme. de Beauvais! - resmungou Mme. de Motteville, sentindo-se verdadeiramente ultrajada. - Quando cheguei para entrar ao meu serviço contaram-me, grosso modo, o que se passara: a Rainha mandou acordar os filhos às duas da manhã. Um coche esperava-os no jardim, ao pé da pequena porta. A família subiu para o veículo com essa mulher e com o responsável da educação do Rei, M. de Villeroy. Os senhores de Villequier e de Guitaut acompanhavam-nos. Foi tudo o que soube.
- Aqui está M. de Renaudot que nos vai dar mais algumas informações - disse Raguenel, que vinha ao encontro das duas mulheres na companhia do publicista. - Ele acabou de encontrar em casa uma ordem para ir ter com o cardeal a Saint-Germain a fim de poder comunicar aos seus filhos as notícias que querem ver impressas na Gazette.
- Posso acrescentar que não está ninguém no Luxembourg - disse Renaudot. - Monsieur, Mademoiselle e a restante família foram-se embora, tal como os habitantes do hotel de Conde. O Senhor Príncipe levou a mãe com ele, bem como a mulher, o filho, o irmão Conti e o seu cunhado Longueville, que governa a Normandia e que tem por isso uma importância extrema...
- E a duquesa? - perguntou Mme. de Motteville. - Ela também se foi embora, grávida como está, quase a parir o filho do seu amante La Rochefoucauld?
- Não, ela ainda cá está. Já agora acabo o que tenho para dizer senhora duquesa, se quiserdes deixar a cidade para vos refugiardes em Conflans, ide-vos agora mesmo, tal como eu o vou fazer! As portas estarão fechadas dentro de uma hora e mais ninguém poderá sair. Despachai-vos! A cólera vai crescendo entre o povo...
- Não, palavra de honra, prefiro ficar aqui - disse Sylvie. - Acontece que durante o Inverno, Conflans fica às vezes inundado e eu não quero expor a minha pequena Marie. Mas vós, Mme. de Motteville, devíeis ir ter com a Rainha a Saint-Germain...
- Não, eu também fico. Se a Rainha tivesse querido que eu fosse com ela, ter-me-ia avisado...
Théophraste Renaudot fora decididamente muito bem informado. A fuga para Saint-Germain fazia parte de um plano estudado antecipadamente por Mazarin para subjugar finalmente a cidade e o Parlamento rebeldes. A única coisa em que o ministro não pensara fora em remobilar Saint-Germain onde, para dormir, os fugitivos apenas encontraram três leitos de campanha e alguns montes de palha nas grandes salas desertas e geladas. Entretanto apertava-se um círculo de ferro em volta da capital. A oeste, do lado de Saint-Cloud, as tropas de Monsieur tomavam posição. A norte, estavam as do marechal de Grã-mont.
A sul, encontrava-se o marechal de La Meilleraye e o conde d’Harcourt. Por fim, o próprio príncipe de Conde ocupava o seu feudo de Saint-Maur com dez mil homens e, tapando a passagem pelo Marne e pelo Sena, isolava desse modo Paris das principais aldeias que a abasteciam. Estavam todos a postos quando, às seis da manhã, Paris descobriu a fuga real e explodiu novamente de fúria e de raiva. O povo afluiu em massa ao palácio Real, sabendo que se ia efetuar uma mudança e, de fato, quando as carroças que transportavam o mobiliário do Rei e da Regente quiseram sair, foram tomadas de assalto e alegremente pilhadas. O mesmo ocorreu, no meio de um entusiasmo ainda maior, às de Mazarin.
Principalmente muito aborrecido e com a vaga impressão de ter ido muito longe, o Parlamento enviou uma delegação à Regente, encarregue de saber os motivos da sua partida. Ela nem sequer foi recebida, tendo-se Ana de Áustria contentado em mandar o Parlamento sair de Paris e instalar-se em Montargis. Então, logo que chegaram os seus emissários, as Cortes soberanas emitiram uma ordem de expulsão em nome de Mazarin, o que equivalia a declará-lo inimigo público e a autorizar que ele fosse perseguido em todo o lado e em qualquer circunstância. Depois, organizou-se a resistência. Eram precisas tropas: arranjou-se um exército de voluntários. Eram precisos chefes: encontraram-se mais do que aqueles que eram necessários, mas o verdadeiro maestro daquela loucura heróica, que embriagava Paris, era o pequeno coadjutor de pernas arqueadas e de língua solta, que se via a si próprio a desempenhar em França o papel de um Cromwell... e que não hesitou em pedir dinheiro à Espanha.
A ”Fronde” foi assim que foi designada a revolta teve, portanto, uma alma e teve também o seu anjo maléfico na pessoa daquela que era talvez a mais bela mulher de França: a duquesa de Longueville, que entrou em rebelião declarada, enfurecida ao ver o seu bem amado irmão Conde abraçar o partido real e entrar em guerra contra Paris. Para que não houvesse dúvidas quanto ao partido por que optara, ela foi instalar-se, com toda a solenidade, nos Paços do Conselho, na companhia da duquesa de Bouillon e de seus filhos.. Foi um momento grandioso. A praça de Greve estava cheia até aos telhados, os homens gritavam o seu entusiasmo, as mulheres choravam comovidas. A partir dali, ela e Gondi iriam reunir os chefes guerreiros de que precisariam. O general designado foi o duque d’Elbeuf, tio de Beaufort, um incapaz; havia também o duque de Bouillon, que esperava recuperar o seu principado de Sedan, o príncipe de Condi, que regressara precipitadamente de Saint-Germain a pedido da sua irmã Longueville, que ele amava de forma algo conturbada e, ainda, o amante da dama, François de La Rochefoucauld, príncipe de Marcillac. Finalmente, dois dias depois da instalação nos Paços do Conselho, as portas de Paris abriram-se para deixar entrar François de Beaufort, que ninguém sabia dizer de onde vinha. Aí, foi o delírio. A cidade recebeu-o com gritos de amor e com uma canção:
Ele é destemido, valoroso
E mais intrépido que sua espada
Bem-vinda a sua chegada
Para bem da nossa felicidade
A vaga de multidão apaixonada levou-o até aos Paços do Conselho onde Gondi, muito descontente ao ver que perdia o lugar de destaque, foi obrigado a recebê-lo e a levá-lo até junto de Mme. de Longueville, que dispensou os seus mais belos sorrisos àquele seu antigo pretendente. Apesar do frio cortante, da neve e dos pedaços de gelo que o Sena transportava, foi um dia de festa após o qual foi preciso regressar às duras realidades da vida e à sua primeira exigência: começavam a faltar mantimentos em Paris. Os carregamentos eram interceptados e o preço do pão subiu em flecha, o que aumentou o nervosismo geral.
Na realidade, quem sofria mais eram sobretudo as classes mais desfavorecidas. Os hotéis dos aristocratas e as ricas residências dispunham de reservas. Começou-se por assaltar a Bastilha, cujo governador, du Tremblay, teve a sensatez de a entregar sem se fazer demasiado rogado. Era um bom ponto de apoio caso as tropas reais passassem ao assalto, mas sabia-se muito bem que o plano de Mazarin era muito simples: deixar à fome Paris e as suas Cortes soberanas, para os obrigar a ceder.
Depois de se ter devidamente pilhado a Bastilha, foi a vez das casas ”reais”, pelo menos àquelas que não davam mostras de praticarem a esmola de modo satisfatório. Foi nessa altura que o duque de Beaufort tomou conta da situação, o que lhe valeu um acréscimo de adoração. Começou por mandar fundir o seu serviço de prata e os seus objetos preciosos, com o dinheiro dos quais pôde comprar esse pão que se tornara tão caro, para mandá-lo distribuir pelos pobres. Abriu as portas da sua grande casa para nela acolher as crianças e até comprou outra, que confiou à guarda do cura de Saint-Nicolas-des-Champs, um santo homem, um pouco simples, mas de coração generoso. Claro que o hotel de Vendôme também foi posto à disposição, o que deu claros frutos, enquanto que em Saint-Lazare o senhor Vincent parecia desdobrar-se em cem para ir em auxílio dos infelizes.
Sylvie não saía de casa, mas Corentin e Perceval percorriam a cidade para auscultarem o seu pulso. Era por intermédio deles que Sylvie era posta ao corrente das proezas caritativas daquele que chamavam agora “o Rei do Mercado”, de tal modo era identificado com aquele ventre que alimentava a capital. Sempre flanqueado pelas suas mais ferventes admiradoras, dona Alison e dona Paquette, ele acorria a todos os lados ao mesmo tempo, procurando, vasculhando nas casas, para de lá retirar com que alimentar os seus protegidos.
- Lamento informar-vos que o vosso hotel foi pilhado, minha querida Sylvie disse-lhe certa noite Perceval. O vosso esposo foi considerado como ”mazarinista” e devo assinalar-vos que o duque François nada fez para impedir a pilhagem. Contentou-se em proteger os vossos criados, que estão sãos e salvos em casa dele.
- Louvado seja Deus! Mas... havei-lo visto?
- Viu-o. Até lhe fiz notar que se tratava de vossa casa. Respondeu-me que dado que ali não estáveis, pela excelente razão de vos encontrardes na minha e que, de qualquer modo, a fortuna dos Fontsomme não iria sofrer muito com isso, ele podia servir-se à vontade. Tudo isto empregando uma linguagem capaz de fazer corar um jogador de má fama!
- Uma linguagem?
- Sim, recorrendo ao pior dos calões dos moços de fretes. Tentava certamente agradar à multidão andrajosa e miserável que se colava a ele, mas se tivesse passado toda a vida no Mercado não se teria exprimido de outra forma. Ao ouvi-lo, M. de Ganseville ria-se imenso ao ver a cara que eu fazia. Apesar de tudo, isolou-se comigo para me dar a entender, já noutro tom, que sempre haveria de proteger a minha casa, nem que tivesse de pagar com a vida... e para me encarregar de vos dizer que é sempre vosso, inteiramente vosso!
- E ousais repeti-lo?
- Ouso, porque tenho a sensação que isso vos fará feliz. Não tenho o direito de vos privar de uma pequena alegria, vós que tendes tão poucas.
Entretanto o exército de parisienses se tal se pudesse chamar a um conjunto tão heteróclito!, tentava mostrar-se digno, quer das armas de que dispunha, quer dos seus chefes. Enquanto Mme. de Longueville dava à luz um filho em plena sala do Conselho, perante os almotacés abismados e as donas do Mercado entusiasmadas, enquanto o preboste dos mercadores era improvisado padrinho e o coadjutor batizava solenemente o filho daquele adultério público com o estranho nome de Charles-Paris, tentavam-se efetuar algumas saídas a fim de trazer couves, rabanetes ou animais comestíveis, mas sem qualquer êxito. O coadjutor insinuou então, perfidamente, que as coisas talvez corressem melhor se o universal Beaufort quisesse ocupar-se delas em vez de vagabundear pelas ruelas. Claro que foi ouvido.
- Excelente idéia! - declarou o duque. - Vou preparar uma expedição a sério para trazer mantimentos antes que se comece a comer os cavalos e, depois, os cães, os gatos e... o resto!
No dia seguinte Sylvie recebeu uma carta[33] do seu esposo, carta essa que lhe causou grande transtorno.
”Minha querida Sylvie, ao chegar hoje a Saint-Maur soube pelo Senhor Príncipe quanto vos inquietais a meu respeito, inquietação que me é mui querida mas que não tem razão de ser dado que não corri grande perigo. Em compensação, a minha inquietação é-me infinitamente mais cruel, pois vós e a nossa filha estais numa cidade cercada, onde tantos perigos vos espreitam, sem que me seja possível partilhá-los convosco. Espero, no entanto, que M. de Beaufort, que comanda em Paris, terá a gentileza de zelar pela vossa salvaguarda sem vos comprometer ainda mais do que já o fez até agora, o que já é demasiado para um esposo apaixonado como eu. Sei que sois uma mulher de bem e corajosa. Também sei que sempre o haveis amado. Não aumentai mais ainda o tormento que me devora...”
Incrédula, Sylvie teve de sentar para voltar a ler aquela carta que a aterrorizava, mas os seus olhos cheios de lágrimas não conseguiram decifrar outra vez os caracteres. Com a mão a tremer, estendeu-a a Perceval, que a observava cada vez mais inquieto.
- Meu Deus! Ele julga que lhe estou a ser infiel! Mas quem é que poderá ter-lhe metido essa idéia na cabeça? Não foi certamente o Senhor Príncipe? Quando o vi, não me disse nada...
- Mas mostrou-se demasiado galante, como se tivesse pensado que isso lhe conviria... Acalmai-vos, minha pequena! Inclino-me muito mais para a hipótese de uma mão feminina. A antiga Mlle. de Chémerault seria capaz de fazer fosse o que fosse para lançar a confusão no espírito de vosso marido. Pode ter... escrito a algum dos seus amigos que servem nas tropas e se calhar o Senhor Príncipe não insistiu suficientemente para o desmentir. É um homem sem escrúpulos e que não suporta que lhe resistam...
- Mas que devo fazer? Que vai ser de mim?
- Ides ficar bem tranquila e eu vou escrever a vosso esposo para lhe contar a verdade sobre toda esta agitação! Em mim, ele acreditará!
- Ele sabe a ternura que tendes por mim... e sou eu quem tem de comparecer perante o meu juiz, pois é nisso que ele aparentemente se tornou...
Ela levantara-se e puxava pela corda da campainha. Pierrot apareceu.
- Preciso de ver o capitão Coragem! Ide buscá-lo! Tenho de lhe falar...
- Sylvie, sinto que ides cometer um disparate! Não decidais nada a coberto da emoção. Qual é a vossa idéia?
- Vou,ver o meu esposo onde ele se encontra!
- Em Saint-Maur? Mas é impossível sair de Paris!
- O capitão Coragem conseguiu fazer-me entrar certa noite na cidade, sem ter de passar pelas portas. Saberá indicar-me o caminho...
- E estais a imaginar que vos vou deixar cometer essa loucura?
- Não, me impeçais! Nunca vos poderia perdoar!
- Mas,não ides lançar-vos assim no meio de um exército, não? Não sabeis como são os homens quando estão possuídos pela febre da guerra?
- Faço idéia e aliás só pretendo ir até à minha casa em Conflans. Daí, escreverei a Jean para lhe dizer que o espero!
- Está, bem, nesse caso vou convosco!
- Não, vós ides ficar aqui a tomar conta de Marie!... Mas não me importo que me empresteis Corentin. Ele sempre me soube proteger. Logo que tivermos transposto os muros, poderá encontrar-me cavalos...Vamos lá, padrinho, tendes de vos habituar à idéia que já não sou uma rapariguita mas sim uma mulher... cuja determinação não podeis infletir...
- Que remédio tenho se não acreditar em vós... mas há meses que não vemos o capitão. Talvez ele já nem esteja em Paris...
- Oh sim, está! Não haveis visto que Pierrot disparou como uma flecha logo que recebeu a minha ordem? Ele conhece certamente o seu paradeiro.
Efetivamente, ao cair da tarde Pierrot regressou com o chefe do bando, que ouviu o que lhe era pedido sem levantar quaisquer objeções, aceitando conduzir Sylvie até fora dos muros.
- Não receeis nada! - disse a Perceval. - Entre eu e Corentin, Mme. de Fontsomme estará em segurança. Sei onde encontrar cavalos e levá-la-ei até às imediações de Conflans.
Teve o tal sorriso de esguelha que lhe conferia um certo charme.
- Lembrai-vos! Há muito tempo que firmamos um contrato. Se ele ainda estiver em vigor, podeis pedir-me o que quiserdes desde que me assegureis de não me deixardes um dia na agonia, com todos os meus ossos quebrados... Se estiverdes pronta, podemos partir - acrescentou, voltando-se para Sylvie que, para aquela ocasião, pedira emprestado a Jeannette roupas simples, confortáveis e cômodas, que lhe davam o aspecto de uma pequena burguesa.
Um pouco mais tarde, ela e os seus companheiros imiscuíam-se nas ruas sombrias. Durante a noite, uma cidade cercada está repleta de respirações contidas, de escutas solitárias, de medos difusos. Exceto ladrões e bandidos de todo o gabarito, só se viam habitualmente alguns retardatários imprudentes que constituíam as presas dessa gente. Desta vez captava-se o eco dos passos pesados de uma patrulha, de um canto religioso entoado nalgum convento, onde se rezava sem interrupção. O pequeno grupo foi mandado parar três vezes, mas a barragem cedia, sem discussões, assim que o capitão Coragem falava ao ouvido de um dos homens. Finalmente, chegaram à última muralha de onde se avistava, de longe em longe, os fogos dos acampamentos das tropas, e a porta da casa que Sylvie teria sido incapaz de reconhecer abriu-se silenciosamente ao dar o sinal combinado. Alguns minutos depois saíam para o exterior, no meio de destroços espalhados por entre pequenos arbustos selvagens.
- Encontraremos cavalos na aldeia de Charonne - disse Coragem. - O patrão do albergue “Caça-Real”, próximo da abadia das Damas, tem sempre alguns à disposição dos amigos...
Assim aconteceu e puderam então embrenhar-se pelas matas de Vincennes que o guia conhecia perfeitamente. Estava fora de questão começarem a galopar, sendo os cavalos destinados sobretudo a poupar as pernas da jovem e a permitirem uma rápida fuga em caso de maus encontros. Além disso, era preciso evitar os postos avançados da fortaleza real. Demoraram portanto duas horas para chegar a Conflans e o sino da aldeia já tocava as três quando Corentin agitou vigorosamente o sino do domínio.
- Eis-vos bem entregue - disse o capitão. - Agora descei; vou-me embora com os cavalos...
- Não quereis entrar para descansar um bocado e recuperar forças?
- Não, senhora duquesa, não deveis ser vista nesta companhia - respondeu, indicando a máscara. - E tenho de estar de volta a Paris antes que o dia desponte. Que Deus vos proteja!
Após uma bela saudação, uma pirueta ágil para montar na sela e um estalido da língua, desapareceu de imediato, enquanto Corentin continuava a tocar. Foi preciso esperar um certo tempo até que Jérôme se decidisse a abrir no meio daquela noite gélida. O mordomo não conseguia admitir que uma duquesa pudesse errar pelos caminhos com um tempo daqueles. Foi preciso que Sylvie desatasse a gritar para que ele condescendesse em ir, pelo menos, até ao portão. Já não era sem tempo: Corentin começara a trepá-lo. Lá do alto gritou:
- Então, despachas-te ou quê? Se a tua senhora ficar doente por tua causa, faço-te em pedaços... Abre e depressa! Ela está transida de frio.
A luz amarela da lanterna em que Jérôme pegara revelou o pasmo estampado no seu rosto:
- A senhora duquesa aqui... a pé... e vestida como uma criada! Não posso crer...
- Contudo é verdade, meu amigo - disse Sylvie. - Vou até à cozinha aquecer-me. Entretanto pedi a vossa esposa que ponha lençóis novos na cama e que acenda a lareira no meu quarto... Ah, já agora: tendes notícias do senhor duque?
Enquanto cilindrava o infeliz com todos estes pedidos, Sylvie corria pelo jardim. Só parou frente à enorme chaminé onde Mathurine, a mulher de Jérôme, ativava as brasas separadas da cinza com a ajuda de um fole de cabedal. Nessa altura deixou-se cair num banco, estendeu as mãos para a chama que se acendera e repetiu a sua pergunta:
- Tendes notícias do senhor duque? Deve estar em Saint-Maur, com o príncipe de Conde.
Enquanto colocava na lareira um monte de raminhos secos, seguidos de pequenas achas, Mathurine voltou-se para ela, com um olhar ainda cheio de sono.
- Notícias? Como poderíamos tê-las? Ninguém consegue vir de Saint-Maur até aqui! Os caminhos estão todos vigiados pelas tropas de M. de Conde...
- Mas como o meu marido se encontra precisamente com ele, deve poder passar quando quiser, não?
- Seria preciso saber falar com essa gente - disse Jérôme, que chegava.
- Eles não falam francês... Nem sequer nos deixam entrar em Charenton...
- Devem ser antigos cavaleiros alemães - disse Corentin. - O Senhor Príncipe já os tinha alistado depois dos tratados terem sido assinados. Se os utilizou aqui, isso deve ter assustado as pessoas da região. Está alguém no castelo de Conflans ou nas casas das imediações?
- Não, não há ninguém. A senhora marquesa de Senecey...
- ... está em companhia do Rei, em Saint-Germain - interrompeu Sylvie.
- E Mme. du Plessis-Bellière?
- Abalou para a província, para se juntar à família - respondeu o mordomo. - Levou todo o pessoal; só cá ficaram os guardas. Tal como nós...
- Como vós? Como assim? - perguntou Sylvie. - Onde estão os criados e as camareiras?
- Passaram por aqui soldados à procura de forragens para os cavalos, como aconteceu aliás no domínio de Mme. du Pleussis. Eles amedrontaram-se e foram-se embora... Foi por isso que demorei tanto tempo a abrir murmurou o pobre homem, inclinando a cabeça. À noite... com este tempo invernal e a horas de grande escuridão nunca se sabe quem iremos encontrar no outro extremo do fio do sino.
- E ficastes aqui sozinhos? - perguntou Sylvie, apiedada. - Devíeis ter ido embora...
Foi Mathurine quem respondeu:
- Na nossa idade? E para onde iríamos?
- Mas... para a rua Quincampoix, em Paris. Teria muito bem percebido...
No rosto cheio, as rugas desenharam um sorriso melancólico mas não desprovido de orgulho.
- Abandonar esta casa? Oh não, senhora duquesa! Salvo o devido respeito, tanto eu como Jérôme há muito a consideramos como nossa; já cá estamos há tanto tempo! E se tiver de nos acontecer uma desgraça, preferimos que seja aqui.
Sylvie levantou-se, impelida pela sua habitual espontaneidade, abraçando-a para a beijar.
- Perdoai-me! Sois vós quem tendes razão. Compreendam... quando temos muita gente ao nosso serviço nem sempre nos damos ao trabalho de aprender a conhecer aqueles que o compõem. Nem eu nem o meu esposo nos esqueceremos da vossa conduta durante estes dias terríveis...
- Entretanto - interrompeu Corentin - encontrai-nos algo para comer e leite quente para a senhora duquesa! Depois iremos todos dormir. Amanhã será outro dia e logo veremos o que poderemos fazer...
- Está-se mesmo a ver! Eu vim aqui para tentar ir ter com o meu esposo e ninguém me impedirá.
- Sim... eu! Porque isso seria uma loucura e porque prometi ao senhor cavaleiro que primeiro iria eu!... Vamos lá, tentai ser mais sensata e procuremos descansar um pouco. Todos nós precisamos...
Sylvie sentia-se demasiado cansada para discutir. Depois de ter bebido um pouco de leite, subiu para o quarto, onde Jérôme acendera o fogo e deitou-se. Mal tinha posto a cabeça no travesseiro e já adormecia como um bloco...
Quando acordou, já a manhã ia avançada e o campo estava coberto de branco. Ao nascer o dia caíra uma neve ligeira. O manto delicado que formara não conseguia esconder os estragos provocados no domínio depois da visita dos soldados. No entanto, a jovem castelã tinha preocupações mais graves. Estava menos frio. As neblinas matinais tinham-se dissipado e, na outra margem do Sena, avistavam-se os telhados da aldeia d’Alfort bem como os acantonamentos em seu redor. No ar calmo da manhã elevavam-se os fumos das chaminés e dos fogos de acampamento.
Ao descer à cozinha para tomar o pequeno-almoço (proibira que se abrisse qualquer salão: dois quartos e a cozinha chegariam para uma estadia que esperava breve e discreta), não encontrou Corentin, que partira durante a alvorada para tentar aproximar-se de Saint-Maur e trazer Fontsomme de volta, o que lhe parecia uma muito melhor solução do que ter de guiar Sylvie pelo meio das ciladas e dos perigos característicos de um exército em guerra. Ela ficou desiludida: arriscar a sua vida para ir ao encontro do marido parecia-lhe uma prova de amor suficiente para conseguir acalmar as suspeitas nitidamente expressas e que a ofendiam. Como fora possível que um esposo tão apaixonado tivesse posto em dúvida a fidelidade que lhe jurara, dando ouvidos a simples coscuvilhices?
Ao ver o seu rosto ensombrado, Mathurine tentou animá-la:
- Eu bem sinto que a senhora teria querido ir com ele, mas isso não teria sido sensato e estou certa que o senhor duque teria ficado muito zangado.
- Talvez tenhais razão, Mathurine. Pensais que devo contentar-me em esperar?
- Penso que sim. Corentin é fino como coral e bravo como o leão. Descobrirá certamente uma maneira de passar.
Mesmo assim o dia custou a passar. Sylvie devorava-se de impaciência mas, ao cair da noite Corentin ainda não regressara. Tentou levantar o moral, pensando que a obscuridade chegava cedo pelo inverno e que o seu mensageiro podia ter encontrado algumas dificuldades pelo caminho. Vestida com uma capa e calçando tamancos, não se resolvia a ir para dentro de casa, calcorreando nervosamente o percurso do jardim entre o pórtico e a casa, ouvindo o relógio da igreja marcando os quartos de hora.
De repente eclodiu um tumulto na ponte próxima de Charenton, ouviram-se disparos, gritos, carroças pesadas a serem arrastadas, tudo isto no meio de rugidos furiosos, como se se tratasse de um exército de porcos enraivecidos. Charenton, pelo seu lado, despertava e reagia. Jérôme acorreu para junto de sua senhora:
- Ide para dentro, senhora duquesa, será mais prudente! Eu vou em busca de notícias.
Regressou pouco depois para anunciar que se disputava um carregamento de porcos e de rabanetes, conduzido por cavaleiros, o que não correspondia certamente às suas funções habituais.
- Conseguiram franquear os postos de guarda d’Alfort e neste momento destroçam as pessoas da região que pretendem impedi-los de passar.
- Pensais que este carregamento esteja destinado a abastecer Paris?
- Tem que ser isso, para que os homens de M. de Conde corram atrás deles desta maneira. Só que eles ainda não se renderam. Na realidade, apenas dispõem de duas vias: a que vai até às muralhas de Charenton, defendida pelas armas e onde seriam trespassados, ou então as ribanceiras. Contudo, também há gente em Bercy e por aí arriscam-se a ser encurralados.
Foi por esta via que optaram e Sylvie correu para um dos salões para ver o que se ia passar. O ruído aproximava-se e, subitamente, estrondou frente aos jardins de Fontsomme que, junto ao rio, delimitavam um pequeno muro que ligava um gradeamento largo e baixo a dois pavilhões nos respectivos cantos, obstáculo fácil de abrir ou de transpor. Num ápice uma vaga de gente acometeu pelas áleas e pelas guarnições dos canteiros, onde os vestígios de neve desapareceram de imediato. Uma voz autoritária gritou:
- Coloquem dois atiradores nos pavilhões! E tratai de erguer barricadas com os barcos, as carroças e tudo o que possam encontrar nesta casa e que sirva para o efeito. Ganseville e Brillet! Ocupai-vos da defesa! Eu vou ver se é possível encontrar um caminho que dê para a estrada de Charenton, que é paralela ao rio... Também são precisos homens para guardar o portão das traseiras!
Logo após as primeiras palavras, Sylvie reconhecera a voz. Tê-la-ia reconhecido no meio do fragor de uma batalha. Aliás, François surgiu do meio da noite com os seus cabelos claros, tão facilmente identificáveis que nenhum chapéu conseguia dissimular. Esta aparição, que noutras circunstâncias a teria enchido de alegria, aterrorizou-a e, abrindo uma das portas envidraçadas, pegou na lanterna que Jérôme deixara ao pé dela e dirigiu-se para o patamar de três escadas que ladeava todo o comprimento da casa:
- Onde pretendeis ir, senhor duque de Beaufort? Proíbo-vos de invadirdes a minha casa...
- Sylvie! - exclamou François, como se não acreditasse nos seus olhos. - Sois vós?
- E, uma vez mais, ides perguntar-me o que estou aqui a fazer? Pois bem, meu caro, estou à espera do meu marido.
- Isso é assunto vosso! Eu preciso de atravessar este domínio. Os outros estão protegidos por muros que seria preciso deitar abaixo para fazer passar as nossas carroças e parece que há um posto de guarda no parque de Mme. de Senecey. Sois o nosso único recurso. Isso vai permitir-nos respirar um pouco e desbravar um caminho que, ora pelos velhos carreiros, ora pela floresta, nos levará até à estrada onde nos esperam...
- Ide por outro lado! Esta casa não é a de um amigo vosso e não tenho o direito de vos acolher!
- Ah, sim, eu sei! - troçou Beaufort. - O vosso marido pertence a Mazarin, tal como Conde e vós mesma.
- Pertencemos ao Rei! Ao Rei que estais combatendo, o que eu nunca teria julgado possível. Sois demasiado parvo para não verdes a diferença?
- Quando o Rei reinar ajoelhar-me-ei perante ele, mas hoje é o Italiano que ocupa o trono! Quando à Regente, come na palma da sua mão. Até se diz que ela é sua amante!
E para melhor sublinhar quais os seus sentimentos a respeito do par, Beaufort cuspiu desdenhosamente para o chão.
- Peço-vos novamente para vos irdes embora - implorou Sylvie. - Podeis causar-me grande mal.
- Penso que não. Minha cara, estamos em guerra e é em virtude das suas próprias leis que requisito o vosso domínio. Aliás não tenho outra alternativa e não posso voltar para trás.
Efetivamente, as pesadas carroças transportando uma centena de porcos instalados no meio da palha para que não fossem muito sacudidos durante o percurso e para não ficarem demasiado expostos ao frio, já subiam lentamente aquilo que até então tinham sido belas áleas arenosas.
- Ponham-nos nas arrecadações! - gritou o duque. - Quanto a vós, minha cara, faríeis melhor em voltar para dentro! Acho que precisam de mim lá em baixo. Se isso for de molde a tranquilizar-vos, ficai sabendo que, caso o vosso esposo querido apareça por aí mostrar-me-ei muito cortês para com ele! Mas se tentar expulsar-me daqui, terá de assumir os riscos e os perigos em que se vai meter!
As últimas palavras perderam-se no meio do frio cortante que começara a soprar, gelando as mãos e as orelhas. Sylvie ficou a ver afastar-se a alta silhueta, vestida de camurça preta, sem capa nem chapéu, como se o Inverno nada pudesse contra aquele homem, no qual pareciam ter encarnado os antigos guerreiros vindos do norte. Ainda o ouviu gritar no meio do vento:
- Voltai para dentro! Podeis ser apanhada por uma bala perdida...
Ela obedeceu e foi até à cozinha, onde Mathurine rezava, enquanto Jérôme vigiava o desenrolar dos acontecimentos e, em seguida, decidiu subir ao quarto de onde, ao menos, poderia observar o que se passava. No seu coração, repleto de tristeza e angústia, não havia mais lugar para a cólera; tinha a sensação que a sua vida ia parar ali. Estava efetivamente metida numa situação horrorosa, se Jean chegasse e desse com Beaufort ali instalado, a sua ira jamais lhe permitiria perdoar e, se tal não acontecesse, talvez por François ter sido morto em combate, Sylvie sabia que isso daria cabo dela...
Foi sentar-se perto da chaminé que, pelo menos, lhe dava um pouco de calor. Aconchegada numa poltrona, contemplava as chamas, tentando não ouvir a crepitação dos mosquetes, que aliás diminuía de intensidade e, pouco a pouco, como um gato enrolado numa almofada, que se deixa envolver pelo seu bem-estar corporal, ela fechou os olhos e adormeceu...
Foi acordada por um grito furioso:
- Posso contar ao menos com uma pequena ajuda? Quando entrei na cozinha, a vossa velha criada fugiu como se tivesse visto o diabo...
Apoiado na ombreira e comprimindo com uma mão o braço de onde escorria sangue, François estava ali especado, à entrada da porta que acabara de abrir. Recobrando um pouco a sua presença de espírito, Sylvie correu para ele.
- Meu Deus! Estais ferido!
- É a própria evidência - sorriu François. - e é por culpa minha. Ambos os lados tinham parado de disparar, sobretudo porque já não se enxerga mais nada. Agora o vento varre a chuva e até apaga as tochas. Fui até à frente de uma barricada para observar as posições inimigas e um desses raivosos espetou-me com o cano da baioneta. Vou acabar por cortar o cabelo, a minha cabeleira é tão visível quanto o penacho branco de Henrique IV, meu antepassado!
- Vou cuidar de vós. Tenho aqui o que é preciso. Ide sentar-vos ao pé do lume! - disse Sylvie, dirigindo-se para a casa de banho, de onde retirou fio de linho, ligaduras e um frasco de aguardente para limpar a ferida.
Quando voltou, ele sentara-se no estrado da cama.
- Ide para o pé da chaminé! Lá, verei melhor.
- Vereis quanto baste com a vossa vela... e tenho a cabeça a andar um bocado à roda, estou há horas sem comer nada.
Ela ajudou-o a tirar a espessa malha, a camisa, e começou a tratar da ferida com mãos que tremiam tanto que ele praguejou quando ela lhe pôs o álcool em cima da ferida.
- Tornaste-vos desajeitada? Passai para cá esse frasco. Deita um cheirinho agradável a ameixas e far-me-á muito melhor efeito interiormente que aplicado no exterior.
Ela passou-lhe o frasco do qual ele bebeu um bom gole, soltando depois um suspiro de êxtase.
- Meu Deus, que bem que isto faz! Se também me pudésseis encontrar algo de comer, então ficaria no paraíso...
- Primeiro vou acabar este penso - disse Sylvie, sem olhar. Talvez as suas mãos tremessem menos, mas defendia-se o melhor que podia contra a emoção que se apoderava dela ao estarem os dois a sós naquela sala. Consciente de que ele não parava de a fitar, ela continuou a falar, tentando preencher um silêncio que sabia perigoso:
- Em que pé estão os vossos assuntos?
- Parece que os nossos inimigos se cansaram de disparar no escuro. Já há um momento que não se ouvem disparos, pois não?
- Com efeito. Ter-se-ão ido embora?
- Não. Estão à espera que nasça o dia, aproveitando certamente a ocasião para se reagrupar mas, nessa altura, já lhes teremos escapado. Alguns dos meus homens estão a deitar abaixo um dos muros no fundo da vossa propriedade, a fim de abrirem caminho às nossas carroças até à floresta e à estrada de Charenton. Acreditai-me que estou desolado pelo que acontece! - acrescentou com um dos seus sorrisos trocistas, que desde há muito davam vontade a Sylvíe ora de esbofeteá-lo... ora de beijá-lo.
- O jardim está devastado. Um muro a mais ou um a menos já não faz qualquer diferença. Vou buscar-vos um pouco de comida. Vesti-vos!
Mas quando ela voltou, não só ele não se vestira a sua camisa manchada de sangue secava ao pé do lume como se estendera em cima da cama.
- Tenho a vossa permissão, não é verdade? Sinto-me tão estafado!
- Vós, o indestrutível, estais cansado? É bem a primeira vez que vos ouço confessar...
- Seja o que for que penseis, eu não sou de ferro, e se quereis saber tudo, é sobretudo o meu coração que está farto. É muito duro encontrarmo-nos como adversários. Enquanto estáveis em Paris, não me preocupava com isso, mas dir-se-ia que agora haveis escolhido o vosso lado...
- Não tive de escolher; estou do lado do direito e do Rei. Além disso, foi o lado que o meu esposo escolheu...
- Vinde sentar-vos a meu lado e passai-me essa fatia de pão com fiambre que trazeis como se fosse o Santo Sacramento!
Ela colocou cuidadosamente a pequena bandeja ao pé dele, devido ao copo de vinho que continha. Sentada do outro lado, ficou a vê-lo a devorar o pão e o fiambre. Que força da natureza! Ali estava ele, ferido, tendo perdido sangue, e ocupado a comer e a beber com tanto à vontade e prazer como se se tratasse de um piquenique na relva do pomar de Vendôme ou nos jardins de Chenonceau e quando daqui a um par de horas, se calhar, poderia estar morto.
Quando acabou, ele afastou a bandeja e, em seguida, agarrou a mão de Sylvie, que se preparava para se levantar.
- Não, ficai ainda mais um bocado!
- Gostava de ver em que pé estão as coisas. Aproveitai para descansar...
- Já descansei... Sylvie, ignoro completamente como é que sairemos desta aventura, de cujos perigos estou perfeitamente consciente. É possível que deixe ficar aqui os meus ossos, mas dado que neste preciso momento os mosquetes estão de tréguas, não poderíamos fazer o mesmo?
- Que quereis dizer?
Ele abandonou a sua posição estendida para se ir sentar ao pé dela, retendo-a quando ela se tentou afastar:
- Deixai de tentar escapar e escutai-me! Já nos tratamos mal desde há alguns meses, e sempre que nos encontramos disputamo-nos, quando na realidade nos amamos... Não protesteis! Isto é tão estúpido quanto a avestruz que se imagina escondida lá por ter enfiado a cabeça debaixo de terra... Lembrai-vos do jardim, Sylvie... do jardim em que, se não fosse esse imbecil do Gondi, teríamos sido tão felizes porque teríamos pertencido um ao outro...
Ele murmurara aquelas últimas palavras ao seu ouvido, pelo que ela estremeceu, mas recobrou a presença de espírito:
- É verdade - disse com uma voz que esperava calma. - O abade de Gondi salvou-me.
- É um salvamento que lhe custará a vida, a esse imbecil - resmungou François que, subitamente furioso, envolveu-a nos seus braços. - Não me deu tempo para te dizer a que ponto te amo...
- Largai-me! Largai-me ou desato aos gritos!
- Não faz mal, estou disposto a correr esse risco. É preciso que me ouças Sylvie, porque talvez seja esta a última oportunidade... Sylvie, Sylvie, escuta-me, por favor! Tenta esquecer-te de quem somos e lembra-te apenas dos dias felizes de outrora...
- Nessa altura não me amáveis! - respondeu, tentando libertar-se. Em vão, pois ele tinha-a agora bem segura.
- Nessa altura eu não sabia que te amava - corrigiu François - pois penso que sempre te amei, desde aquele primeiro dia em que encontrei uma linda rapariguinha que deambulava de pés descalços pela floresta de Anet. Lembra-te... peguei em ti ao colo, para te levar até ao castelo e tu não estrebuchavas. Pelo contrário, tinhas posto o teu braço à volta do meu pescoço e cingias-te de encontro a mim...
Ah, quão deliciosa recordação! Aquele deslumbramento do primeiro encontro que ocorrera entre eles! Sylvie fechou os olhos para melhor se recordar, enquanto as palavras que François lhe murmurava ao ouvido se transformavam num sopro. Ela teve consciência da infinita doçura que a invadia. Contudo, tentou ainda debater-se, desprendendo-se daquele aperto de que estava prisioneira:
- Calai-vos, por favor! Vou gritar...
- Grita, meu amor!
Mas ele já lhe aprisionara os lábios num beijo tão ardente, tão apaixonado, que Sylvie julgou que ia desfalecer. Tudo desapareceu num ápice, o local, a hora, a consciência de si mesma e, por fim, a própria consciência. Nos minutos seguintes ela expulsou finalmente do espírito tudo o que não fosse aquele homem, que adorava desde há tanto tempo. Talvez ainda tivesse tentado oferecer resistência se ele se tivesse mostrado bruto, apressado, mas se bem que François fosse mestre na arte de amar, tinha tanto medo de estragar aquele instante frágil que a cobriu com carícias tão suaves, tão ternas, que ela nem sequer pensou em resistir quando ele lhe retirou as últimas peças de roupa. A união deles, total e sincronizada, foi um verdadeiro instante de eternidade onde sentiram que tinham deixado a terra para voarem através de um céu pleno de luz, um daqueles momentos só conhecidos por todos aqueles que foram criados para pertencerem fatalmente um ao outro. Quando aquele esplendoroso arrebatamento os deixou numa cama em desordem, encostaram-se um ao outro para retomarem o dueto de palavras amorosas sussurradas de boca a boca, e o tempo pareceu esquecer-se deles, como se estivessem numa ilha deserta...
Até que, por detrás da porta, eclodiu a voz de Ganseville:
- Está tudo a postos, monsenhor. É preciso partir... e depressa! A noite está prestes a findar e há um ajuntamento de tropas no pórtico...
- Expulsa-os! Já vou ter convosco!
Beaufort saltou para agarrar nas roupas que vestiu desajeitadamente, devido ao estorvo que lhe era causado pelo braço ferido. Sylvie, com os olhos abertos de medo, fez automaticamente o mesmo, sem que pronunciassem uma só palavra. Mas quando ficaram prontos ao mesmo tempo, o mesmo impulso impeliu-os para os braços um do outro, para um derradeiro beijo e, depois, François desprendeu-se e partiu a correr. No exterior ecoava o estrondo de um aríete embatendo contra o pórtico de carvalho... Ela desceu atrás dele, enquanto o ruído do rolar das carroças se afastava ao longe.
Na altura em que chegavam ao patamar, a porta foi deitada abaixo estatelando os soldados que manejavam a pesada viga. Surgiu um homem, que passou por cima deles e, com um grito de horror, Sylvie reconheceu o seu esposo, ou antes, adivinhou que era ele, apesar da cólera desvairada que lhe congestionava o rosto a ponto de desfigurá-lo, ao ver que Beauforf saía de sua casa. Ergueu a espada e arremeteu contra o intruso de lâmina em riste:
- Desta vez vou matar-te, homem desonrado!
Sem responder, François desembainhou a sua espada e empurrou brutalmente Sylvie para trás, a qual tentava interpor-se entre os dois. Corentin, que chegara atrás de Fontsomme, aparou-lhe uma nova investida e segurou-a com firmeza.
- É assunto entre eles, senhora Sylvie! Não deveis meter-vos de permeio. - Os soldados que tinham derrubado a porta deviam pensar o mesmo pois tinham parado, fascinados pela perspectiva de um belo duelo, espetáculo privilegiado para homens em guerra.
Pois foi um belo duelo. Os dois adversários tinham aproximadamente a mesma força. Sem dizerem palavra, concentravam a fúria na fina lâmina de aço que prolongava os seus braços. Simulações, desvios, avanços temerosos, assaltos fogosos, assistiu-se a toda a gama mortal de um combate de esgrima, de forma tão brilhante que até se ouviram alguns aplausos. Ajoelhada no patamar, Sylvie rezava de cabeça perdida, sem saber ao certo para quem endereçava as suas preces. Subitamente, foi o drama. Ouviu-se um grito abafado, enquanto a espada de Beaufort se cravava no peito do adversário. Fontsomme caiu como um bloco.
O grito de Sylvie serviu de eco ao do seu marido. Levantando-se a toda a pressa, correu para ele, inclinando-se para o seu corpo:
- Jean!... Não é possível!... Tendes de viver... para mim... que vos ama e para a nossa Marie... Jean, falai-me!
Os olhos fechados voltaram a abrir-se e o moribundo sorriu:
- Meu coração... Vou amar-vos... no além!
A cabeça, que se soerguera num derradeiro esforço, voltou a cair...
Sempre de pé, mas como que atingido pela sua própria força, François inclinou-se e tocou no ombro de Sylvie. Ela estremeceu e, através das lágrimas, ele pôde ver o seu olhar flamejante de cólera:
- Nunca mais vos quero ver! - bramou Sylvie, antes de cair novamente sobre o corpo sem vida do marido.
Ganseville, que regressara com os cavalos enquanto durara o duelo, agarrou o seu amo pela manga e levou-o dali quase à força enquanto que, junto ao portão, os soldados, despertos do seu fascínio, lançavam gritos selvagens...
Nesse dia, Paris foi reabastecida.
Nove meses mais tarde, Sylvie dava à luz uma criança do sexo masculino.
Saint-Mandé, 5 de Novembro de 1997, dia de Santa Sylvie!
[1] Dizia-se que o Cardeal mandara construir alguns calabouços e até algumas masmorras, bem escondidas, nos subterrâneos do castelo de Rueil.
[2] Dialeto da “langue d’oc falado no sudeste da região de Garonne.
[3] Ver o Vol 1, O Quarto da Rainha
[4] Nessa época o burgo do Palácio estendia-se até à parte de trás da cidadela, frente ao burgo atual, no local que se chama Haute-Boulogne, ocupando o lugar do declive que Vauban mandara construir. Progressivamente, durante o séc. VXII, a aglomeração estendeu-se para sul, sobre a Basse-Boulogne, e a própria igreja foi transferida de lugar na época dos Fouquet.
[5] Só os prelados e os príncipes de famílias soberanas têm o direito de serem chamados de monsenhor.
[6] De fato, ainda hoje este aspecto é realçado nos anais históricos da ilha.
[7] Aquele que atualmente conhecemos. Do Château-Neuf apenas sobra o pavilhão Henrique IV.
[8] Ver o Vol. I, O Quarto da Rainha.
[9] Pierre de Ronsard, conhecido poeta francês (1524-1585) Foi um dos instigadores do renovamento da inspiração e da forma da poesia francesa da época Fez parte daqueles que tomaram partido contra a Reforma (Discours 1562-1563)
[10] Ver o Vol. 1, O Quarto da Rainha.
[11] Destruir este conjunto heteróclito e criar uma verdadeira polícia será obra de Nicolas de La Reynie, o tenente de polícia de Luís XIV.
[12] Que é hoje o Colégio de França.
[13] Ver o Vol 1, O Quarto da Rainha
[14] Divindade itálica e, depois, romana, esposa de Júpiter e rainha do Céu, deusa da Mulher e do Casamento. Na tríade do Capitólio, é associada a Júpiter e a Minerva.
[15] Jogo de palavras da autora utilização do diminutivo de (Mme de) -Chevreuse- fem de cabrito-montês recuperando, pela mesma ocasião, o sentido pejorativo do termo.
[16] Fem. de Gueux pobre, indigente.
[17] Ver o Vol. 1, O Quarto da Rainha.
[18] A capela ainda existe. Atualmente é um templo protestante.
[19] No discurso oficial o sujeito é utilizado na forma do plural pois, além do próprio Rei, também Deus é titular do trono.
[20] Alusão a um dos nomes mais célebres com que Luís XIV passou à História o - Rei Sol -
[21] A segunda vaga, com a famosa Marie Mancini, só chegou seis anos depois, nas pessoas das duas irmãs do cardeal.
[22] O hotel de Beaufort foi destruído por Hausmann para abrir a via para a rue Rambuteau.
[23] ”La Halle” (originariamente no texto) designava o mercado, mais ou menos aberto para o exterior, onde os grossistas expunham as suas mercadorias. Posteriormente, será empregue no plural para designar qualquer edifício, ou praça coberta, onde decorre o principal mercado de gêneros alimentícios da cidade. Atualmente designa também um centro de grande atividade comercial da capital.
[24] O seu nome de nascimento era Léonor de Berg.
[25] Trata-se de François de La Rochefoucauld, aquele que viria a tornar-se o célebre autor das Máximas.
[26] Ver Vol 1, O Quarto da Rainha
[27] Logo após o falecimento de Luís XIII, Chantilly fora devolvido à princesa de Conde, cujo nome de nascimento era Charlotte de Montmorecy.
[28] Famosa escritora francesa (Paris, 1620-1705), cujo salão foi frequentado por livres-pensadores.
[29] Caída em desgraça quando Richelieu faleceu, ela desposou Claude de la Bazinière em 1644
[30] Este quadrilátero está atualmente delimitado, aproximadamente, pela rue de Conde, pela rue Monsieur-le-Prince e pela rue Vaugirard.
[31] Autênticos “tabuleiros de relva”, os boulingrins estavam outrora destinados aos jogos de bola em cima da relva. É um pouco o antepassado dos nossos atuais relvados.
[32] Segundo o costume da época, quem tirasse a fava seria designado simbolicamente rei
[33] Sendo insuficiente o número das tropas reais para poder cercar completamente a cidade, o correio passava nos dois sentidos. Desse modo, Mme de Sévigné correspondia-se com o primo Bussy-Rabutin, que estava acampado em Saint-Dems, com os homens do marechal de Gramont
Juliette Benzoni
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