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O REI DOS CIGANOS / Peter Maas
O REI DOS CIGANOS / Peter Maas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

 

                                                   O LEGADO

 

Ele nunca pôde esquecê-lo e na primavera de 1974, ao voar de Los Angeles para Nova Iorque no vôo TWA 840, tudo tornou a voltar-lhe à mente, como sempre ocorre cada vez que se relembra do passado - a primeira lembrança de ser cigano. Tinha, então, quatro anos quando naquela joalheria com sua mãe escutava o que se tornaria uma ladainha tão familiar. Contava ela arrogantemente estar de volta de sua plantação de café no Brasil realizando compras, zombando das pedras preciosas espalhadas defronte dela em suas bandejas de veludo, pedindo para ver algo melhor e, bruscamente, dando-lhe um golpe vigoroso nas costas quando o joalheiro voltou-se à procura do que ela pedia e, quando ele começou, num reflexo, a tossir, gritando, "Oh, meu querido, o que aconteceu? Rápido, um copo dágua para o meu menino!" e, enquanto iam procurar a água, ela apertou um lenço em seus lábios e, antes que ele se desse conta do que estava acontecendo, o diamante estava na sua boca e em seguida a água, e ele o havia engolido. Mais tarde, depois de ter sido chamada a polícia e de terem ambos sido revistados e liberados, com sua mãe tão soberbamente indignada que até mesmo o joalheiro começou a balbuciar confusas desculpas, ele foi levado de volta ao cortiço na Henry Street no Lower East Side de Manhattan e colocado nú sobre uma pilha de jornais. Fizeram-no engolir fatia após fatia de pão para empurrar o diamante pelo aparelho digestivo, cercado pelas caras atentas e impacientes de sua mãe e de seu pai, tias e tios e primos mais velhos, todos eles estimulando-o e dizendo "Vamos Steve", até que houve um grito jubilante quando, finalmente, devolveu a pedra. Enquanto a pedra era limpa, admirada e avaliada, lembra-se de como ficou perambulando sozinho mascando o que restara do pão.

Ele tem atualmente vinte e seis anos e se fosse tãosomente mais um rapaz cigano, teria sido, afinal de contas, muito mais fácil não só para ele como para todo o mundo. Mas ele não o é. O seu nome é Steve Tene e é neto do Rei Tene Bimbo que., antes de sua morte em Outubro de 1969, era o mais poderoso chefe cigano neste país - o "Rei dos Reis", assim costumavam chamá-lo, uma espécie de "Chefe de todos os Chefes", à maneira da Mafia. Não obstante seus modos desordenados, os ciganos têm um senso profundo de sua própria mística, do fato de serem ciganos e, acima de tudo isto, uma apaixonada percepção de sua identidade tribal. Cada uma das tribos ciganas - ou vitsas como são conhecidas no Romani, a língua cigana tem um baro, ou líder tribal; eles são, na maioria das vezes, criaturas amáveis embora astutas, dados a filosofarem -"Existem mentiras que são mais verosímeis do que a verdade" - praticam com grande habilidade a abordagem da vida e seus complexos problemas de maneira tolerante.

O Rei Tene Bimbo era diferente. Buscava o poder numa luta sem tréguas, não só por seu próprio valor mas também pelo tributo que podia extorquir de seus súditos. A partir de 1905, quando jovem esbelto e janota recém-saído da adolescência, até sua idade madura cheia de vigor e com grandes bigodes e a corpulência que adquirira, quando finalmente expirou com a idade de oitenta e cinco anos, construíra uma carreira singular que está registrada numa série de velhos recortes de jornais, em gordas pastas das organizações locais e federal de cumprimento da lei e nas constantes conversas entre ciganos sempre que se reúnem. "Se existem acusações que não tenham sido feitas contra Tene Bimbo, o Rei Cigano, dizia o Chicago Daily News já em 1930, "é provavelmente devido a algum lapso."

Para um gadjo - alguém que não é um cigano - Tene Bimbo dava qualquer explicação que achasse conveniente ou que pensasse poderia dar resultado num determinado momento quanto à sua condição real. Numa ocasião ele proclamou ter sido oficialmente reconhecido pelo governo americano como o "Rei de todos os Ciganos" porque havia pessoalmente recrutado praticamente toda uma divisão de seus companheiros de tribo para o Exército durante a Primeira Guerra Mundial, ato de patriotismo, afirmava ele, que tinha na verdade feito mudar as coisas a favor dos aliados. Noutra ocasião, jurou numa deposição num tribunal que o "meu direito ao título e à elevada posição de Rei dos Ciganos baseia-se num antigo ritual e em reivindicações estabelecidas por herança cobrindo um período de centenas de anos". Esta era uma piada que provocava risos entre os ciganos porque não é verdade, uma vez que não existe direito divino ou formal à sucessão por parte dos reis ciganos, mas ainda mais porque era a espécie de coisa que os ciganos crêem que qualquer gadjo aceita com facilidade.

Até mesmo os ciganos não estão imunes às fantásticas lendas de como Tene Bimbo veio a se tornar seu rei -como quando ainda criança a sua sabedoria era tal que ciganos cinco vezes mais velhos do que ele pediam seus conselhos, como nos velhos tempos das caravanas ele ia todas as noites por todo o acampamento recolher madeira e trazer água para aqueles que não podiam fazê-lo, como à medida que chegava à maturidade, desinteressadamente, tirava dos ricos e dava aos pobres. Mas na realidade, o poder de Tene Bimbo era muito menos poético. Baseava-se no medo. De um modo geral, os ciganos nunca foram notavelmente violentos. Se um cigano, transgredia o código Romani, era julgado por um conselho constituído pelos mais velhos da tribo chamado de kris e, se julgado culpado, a sua punição era em geral uma multa. O Rei Tene Bimbo, no entanto, preferia uma ação mais direta. Tinha a reputação de ser um matador sem piedade e essa reputação foi aumentada pela sua alegada associação com Al Capone. Supõe-se que esta aliança foi cimentada quando cumpriu um contrato com Al Capone para assassinar um policial em Chicago. Segundo o detetive Eddie Coyne do Departamento de Polícia de Nova Iorque, que vem se especializando nos assuntos ciganos nestes últimos doze anos, "Temos essas informações em nossos arquivos. Não sei se é verdade ou não, mas os ciganos crêem nisso e isso é o que conta."

Afora a ligação com Capone, mítica ou não, existem vários exemplos verificáveis da tendência assassina de Tene Bimbo. Ele viveu em Chicago durante muitos anos e quando um de seus primeiros rivais lá incorreu na sua ira, ele prontamente procurou um capanga e contratou-o para eliminá-lo. Como a maioria dos ciganos, ele habitualmente percorria as estradas e uma vez, ao dirigir-se a Boston, insatisfeito com o que considerou como falta da devida homenagem por parte de dois outros chefes de tribo que encontrou, o Rei Tene desencadeou um tiroteio que exigiu a presença de mais de cem policiais para dominá-lo e que fez com que a população de Massachusetts ficasse à beira da histeria coletiva. Sem nenhuma hesitação procurou desembaraçar-se de um outro pretendente ao seu trono em Nova Iorque reunindo acusações que fizeram com que o homem recebesse uma pena de quinze a vinte e um anos na prisão de Sing Sing. Na Filadélfia, enraivecido quando ciganos nela residentes recusaram suas exigências de extorsão e ainda o ridicularizaram como embusteiro, fez com que o seu séquito realizasse um tumulto que matou dois e deixou um terceiro paralisado para o resto da vida. Tendo feito a sua demonstração, dirigiu-se então para a Califórnia e continuou o seu reino de terror em todo o percurso da Costa Oeste. Conquanto a maioria dos ciganos gatunos possam se abster de tais táticas pesadas, o Rei Tene podia, por vezes, demonstrar um faro épico de audácia e imaginação; nada faz bater tanto o coração Romani do que um ardilosamente contrito cabriolador, sobretudo quando às custas de um gadjo, e há poucos exemplos mais surpreendentes do que a fuga da custódia de sua esposa fumadora de cachimbo Rainha Mary Bimbo após ter sido encarcerada num reformatório estadual em Illinois - não somente ele planejou todos os detalhes da própria fuga como conseguiu que, apesar do habitual alarme nos treze Estados e da circular do FBI de "procurada", permanecesse ela em liberdade nos onze anos seguintes até à sua morte com a idade de sessenta e dois anos.

Para Steve Tene, seu neto, o velho homem permaneceu basicamente uma abstração. Ouviu, por certo, a maioria das histórias a respeito dele, mas era difícil reconciliá-las com as suas lembranças infantis de seu avô. Lembra-se de sentar em seu colo, aconchegado de encontro à sua enorme barriga, brincando com a sua corrente de relógio, sendo tratado, relembra, com excepcional meiguice, mas sentindo, no entanto, a força maçiça da presença do velho, a deferência que chegava às raias da obsequiosidade por parte dos que dele se aproximavam. Mais tarde, quando nos seus primeiros dez anos encontrou-se em dificuldades, Steve procurou-o e ainda então foi recebido bondosamente, muito embora nessa ocasião o seu relacionamento tenha sido mais rijo, sem rodeios. Mas, no final de contas, ser neto do Rei Tene Bimbo não teve para ele qualquer outro significado senão um certo prestígio, na verdade, um reflexo de glória. Isto ou um centavo, como costumavam dizer, daria tão-somente para andar no subterrâneo de Nova Iorque. Existiam, afinal, uns cinquenta outros netos volteando em torno do velho, sem falar em sete filhos todos eles bastante vivos. Mas o velho ainda saiu-se com uma última surpresa quando em seu leito de morte determinou que, pondo de lado todos esses filhos e netos, legava a Steve os dois objetos pessoais que mais prezava - o medalhão de ouro que sempre usara, aquele com que Steve brincara quando criança e que lhe havia sido dado pelo seu pai, e o enorme anel martelado engrinaldado de pesos mexicanos de ouro com a inscrição "Bimbo 1913".

No mundo Romani, cheio de tradições, emaranhado de intrigas e elaboradamente ritualizado, em que a norma é de que nada é o que aparenta ser, o legado de Tene Bimbo era evidentemente claro. Por si mesmo o anel e o medalhão não tinham um significado formal, mas significavam tudo, ainda assim. Através dessa doação o Rei Tene estava concedendo a Steve o direito de sucedê-lo, de tornar-se o próximo Rei. Aos ciganos em toda a parte, mas particularmente para os da tribo Bimbo - temidos, impiedosos e, conforme consta dos arquivos da polícia, os mais "traiçoeiros" das sessenta diferentes clãs vagueando pelos Estados Unidos atualmente - causou estranheza. Nos anos que precederam o desaparecimento do velho, Steve Tene havia se tornado um virtual proscrito entre os da sua própria espécie. Não somente havia rejeitado, tanto quanto um cigano pode fazê-lo, o codificado estilo de vida que havia permitido ao seu povo preservar uma sociedade única, centenária em qualquer país em que viajassem ou se estabelecessem, como havia, na verdade, cometido não somente o imperdoável ato de "americanizar-se", mas havia instado outros jovens ciganos a fazerem o mesmo.

A ironia é que Steve não teria feito nada disso não fosse a brutalidade do seu pai e esse foi o segundo impacto espantoso do legado do velho. Sempre existira animosidade entre Steve e o pai - um atarracado homem belicoso cercado por camadas cada vez maiores de gordura, que aparentemente herdara toda a viciosidade do Rei Tene e nada da sua inteligência. Qualquer remota possibilidade de uma coexistência pacífica entre eles evaporou-se finalmente com a raiva e humilhação do pai ao saber que Steve herdava o medalhão e o anel. Em consequência disso, até agora, o negócio de móveis que Steve iniciou na Califórnia do Sul foi destruído por bombas explosivas e houve uma explosão misteriosa na casa dos pais adotivos americanos de Steve, onde ele tem vivido intermitentemente em sua luta para escapar ao modo de vida cigano. O próprio Steve, num momento de furor, disparou uma bala de calibre 38 em seu pai, alvejando-lhe o coração mas sem conseguir acertar. Por sua vez, agentes do pai investiram contra Steve com uma faca que, miraculosamente, não o cegou mas que deixou-lhe uma feia cicatriz embaixo do canto do olho esquerdo, onde uma navalhada escorregou pelo olho indo atingi-lo na face. Todos os ciganos dizem que se trata somente de uma questão de tempo para que um deles mate o outro e as apostas favorecem o pai.

O que é de admirar é que essa sangrenta luta não tenha ocorrido antes, mas Steve, como toda criança cigana, teve uma palavra insistentemente martelada em sua cabeça e essa palavra era "respeito" - respeito incondicional para todos os mais velhos e especialmente para com o chefe da família, o pai. Por trás disso havia o peso esmagador da tradição centenária que se exprimia em admoestações tais como "Essa é a maneira que nos comportamos" ou "Esse é o nosso costume". Além disso, como a quase maioria das crianças ciganas, não lhe foi permitido frequentar escola, nem teve contato com não ciganos até a idade de doze anos, quando finalmente fugiu de sua família pela primeira vez. Seu pai, dado a bruscas e inexplicáveis raivas, uma vez para dar uma "lição" a Steve, como disse, deixou-o sozinho durante dois dias num apartamento - amarrado a um radiador, sem comida e um copo d'água fora do seu alcance. Steve, que então tinha nove anos, não tinha ninguém com quem pudesse comparar essa maneira e, embora percebesse não ser boa a sua situação, só podia concluir que essa era a maneira de ser da vida. Mesmo depois, quando já conhecia melhor as coisas, depois de ter fugido, continuou ambivalente com respeito a seu pai, sentindo um profundo sentimento de culpa que o fazia julgar-se um traidor à sua herança racial. Durante toda a sua infância houve esse padrão periódico de fugas e de voltas forçadas ou por expontânea vontade, procurando aderir para fugir mais tarde, uma vez mais. Quando tinha dezoito anos e estava certo de já estar livre de todas aquelas velhas tramas, recebeu um chamado de uma de suas irmãs dizendo-lhe que devia voltar imediatamente porque o pai estava gravemente doente, morrendo, em Columbos, Ohio, num hospital. Lembra-se ter-lhe gritado "Todos os ciganos são loucos - odeiam alguém e quando esse alguém está morrendo esquecem tudo que ele fez!" e sua irmã chorando dizer-lhe "Steve, ele é seu pai". Nessa noite viajou para Columbus. Entrou no quarto do hospital cheio de parentes e seu pai, deitado, disse-lhe "Veja, você me matou. Você esteve fora todo esse tempo e você me pôs aqui com todo o desgosto que me deu. Estou morrendo". Fechou então os olhos e.gemeu como se fosse esse o seu último suspiro, dizendo "Eu vou..." A mãe de Steve e suas tias e irmãs começaram a dar gritos de dor e, mais tarde, na casa em que se encontravam hospedados começaram a falar como o pai era um bom homem e como Steve era um filho desprezível. O fato de que o pai tinha tão-somente uma hérnia estrangulada e que a família havia inicialmente interpretado como um ataque cardíaco parecia fazer pouca diferença. E então, bruscamente, duas de suas tias e sua irmã mais velha ficaram fora de si e saltaram sobre Steve, arranhando-o e surrando-o. Ele cobriu o rosto até que elas parassem exaustas, terminando por ficar submissamente com seus pais durante um mês mais ou menos, levando sua mãe no carro enquanto ela fazia os seus jogos sujos e conduzindo o pai às corridas de cavalos mais próximas. até que as zombarias e os insultos de seu pai se tornassem, uma vez mais, impossíveis de suportar.

Ao todo eram oito filhos, seis mulheres e dois homens. Steve era o segundo filho e o primeiro rapaz, nascido em 29 de abril de 1949. Acha que foi na cidade de Nova Iorque, mas somente porque assim lhe disseram, e uma vez que os ciganos raramente se preocupam com certidões de nascimentos, pode bem ter sido em qualquer lugar da estrada. Nas suas andanças anuais, muitos ciganos, incluindo um certo número de Bimbos, dão inicio a um circuito bem cedo na primavera começando pelo meio oeste para dirigirem-se, então para o oeste, com muitas paradas obrigatórias em cidades como Hoboken e Hackensack, New Jersey, próximo a dois cemitérios que são de sua preferência para os enterros, antes de dirigirem-se ao Sul para o inverno na Flórida. Nada disso, no entanto, é fixo. Algumas tribos ciganas vagueiam quase que exclusivamente pelo Sudoeste e ao longo de costa Oeste. Outros têm a tendência de permanecerem numa localidade, com incursões ocasionais em outras partes do pais ou passam a fronteira em direção ao Canadá.

Steve tinha cerca de sete anos quando sua mãe começou a servir-se dele regularmente como ponto de apoio em suas próprias trapalhadas. Conquanto em sua maioria os ciganos prefiram o seu trabalho de burla de ler a sorte, Ana Tene, também conhecida como Ana Bimbo, preferia uma abordagem diferente. Bastante esbelta, ao contrário da maioria das mulheres Romani, e adepta de tomar ares aristocráticos, abandonava qualquer indumentária que pudesse alguém fazê-la crer uma "cigana" - pesados ornamentos de ouro, a tradicional saia longa e rodopiante, a blusa curta - vestida na última moda, punha-se a caminho como uma rica senhora brasileira que ou era a proprietária ou a herdeira prospectiva de uma enorme plantação de café. O seu alvo eram as grandes casas atacadistas de brinquedos remarcados e de aparelhos domésticos, as lojas de peles, couro e joalherias; as casas atacadistas de vestuário e de fazendas, exposições de automóveis - qualquer lugar que pudesse. razoavelmente atrair o interesse de uma mulher rica ostensivamente vivendo isolada a maioria do tempo no meio da floresta da América do Sul e que podia-se esperar possuir nesse local de quantias substanciais de dinheiro. Ela insistia em falar ao gerente ou ao proprietário no seu escritório. Se esse era jovem, abreviava sua visita. "Nunca trate com os rapazes moços", advertia ela às irmãs de Steve quando estas atingiram a idade de serem treinadas. "Eles procurarão aproveitarem-se de vocês e marcar encontros e, de todo jeito, não têm nenhum dinheiro. Procurem os que têm mais idade, quanto mais velhos e mais carecas melhor, grudem-se a eles, peguem-lhes as mãos e eles ficarão tão excitados que acabarão por não saber que diabo estão fazendo".

O papel de Steve, para afastar ainda mais as suspeitas, consistia em ser um insistente sedutor - "Este é o meu caçula", diria ela orgulhosamente - e ele em geral permanecia do lado de fora do escritório em que sua mãe entrara com a sua vítima, montando guarda para qualquer olhar suspeito ou movimento por parte dos empregados que o cercavam e que podiam ser alertados por um alarme escondido ou, pior ainda, pela súbita aparição de algum guarda. Ele também constituía a desculpa para uma saída brusca caso o seu jogo tivesse dado bom resultado; ela apareceria à porta com o pretexto de ver se ele estava bem e esse era o sinal para que ele começasse a chorar dizendo que tinha de ir ao banheiro. Se acontecia ele estar no próprio escritório, o sinal para que desse início à sua representação era ela coçar a cabeça. Ele estava sempre ao lado dela quando, por exemplo, começava o seu embuste com um advogado, apresentando-se não somente como proprietária de uma plantação mas como uma viúva recente. Ela diria que esse triste acontecimento fizera-a perceber ser mais do que tempo de tomar medidas quanto ao futuro, especialmente para o "pequeno" - sacudindo a cabeça tristemente em direção a Steve - e que estava aproveitando essa oportunidade para fazer um testamento. Não era simplesmente o fato de ter bens nos Estados Unidos e no Brasil o que a levara a procurar um advogado americano, confiava ela em voz baixa, hesitante, era que, por mais que detestasse admiti-lo, não se podia confiar nos advogados brasileiros. Dependendo de como julgasse estarem correndo as coisas fazia um esboço das dimensões da sua propriedade e de como desejava dela dispor, perguntando em seguida quanto tempo levaria para ter os papéis prontos e - antes que o advogado pudesse responder - quanto custaria? Qualquer que fosse o preço pedido, manifestava surpresa quanto ao baixo preço. Era fixada uma data para a sua volta, quando o testamento estaria pronto, e ela pagaria quer em cheque ou, como dizia preferir, em dinheiro.

Após esse preâmbulo, começava a sua estereotipada rotina. Levantando-se diria como apreciara a maneira gentil pela qual fora recebida e que gostaria de mandar à vítima um saco de cinquenta libras de grãos de café da sua plantação, ao que a pessoa diria geralmente não ser necessário, ao que ela se mostraria ligeiramente ofendida exclamando: "Mas eu o desejo! É um presente, compreenda, não é nada por que tenha de pagar". Na maioria das vezes ele se desculparia, balbuciando qualquer coisa apologeticamente, afirmando que, por certo, os grãos de café seriam bem-vindos e ela, abandando, daria alguns passos em direção à porta, parando então novamente para dizer, "Sim, o senhor foi muito amável e eu decidi dar-lhe a minha boa sorte espanhola. No meu país temos uma bênção especial e eu nasci com o dom de concedê-la.

A sua esperança era de que a vítima dissesse algo como "Oh, na verdade, que interessante, como é fascinante" ou, pelo menos, demonstrasse uma divertida descrença. Em qualquer caso, nada a não ser arremessá-la para fora da sala faria com que a mãe de Steve saísse. Quer ele tivesse dito alguma coisa ou não ela já estava se aproximando da vítima, numa atitude diferente, controlando agora a situação, pedindo uma moeda ou, antes, exigindo-a para fazer a sua mágica, - e um lenço, apresentando o seu, caso ele não o possuísse, e embrulhando a moeda no lenço fazia o sinal da cruz na sua testa, nos lábios, sobre o coração, apertando-lhe ligeiramente o braço com a outra mão, dizendo, "Desculpe-me por tocá-lo dessa maneira, mas é dessa maneira que devo abençoá-lo", fazendo com que se habituasse à distração de seus dedos palpitantes.

A moeda, dizia ela, faria com que se multiplicasse a sua riqueza e a sua saúde e invocava a Deus para que desse à sua vítima boa sorte em todas as suas iniciativas, dizendo-lhe então para retirar dos bolsos do paletó tudo, exceto dinheiro - dinheiro não interessava a ela, dizia - e ficar com tudo isso em suas mãos estendidas para que ela pudesse benzê-las também, as chaves do carro para que dirigisse sempre em segurança, o pacote de cigarros para que nunca tivesse câncer, o livro de endereços para que nenhum dos nomes nele o prejudicassem, tudo o que tivesse nos bolsos exceto os fósforos. "Os fósforos não abençôo", diria ela. "Não abençôo o fogo, ele é o diabo, compreende?"

Nesse momento estaria bem próxima da sua vítima, seus olhos pretos fixos nos seus, o tom de sua voz ritmado, hipnótico, as palavras repetindo-se, pedindo a Deus e aos espíritos para abençoar esse homem, "para que nada lhe aconteça" ou aos seus negócios ou sua família e, então, como se o pensamento lhe ocorresse, pedir-lhe-ia para mostrar os retratos de sua família, quando chegava o momento crítico em que ele pegaria sua carteira para mostrar os retratos. Pegaria o pulso da mão em que ele segurava a carteira e abençoaria com o lenço e a moeda, enquanto verificava se havia um maço de notas na carteira e, no caso positivo, bruscamente estenderia a mão e extrairia as notas, tomando a precaução de mantê-las à vista, balançando-as desdenhosamente defronte da vítima para tranquilizá-lo de que elas estavam a salvo. Pegaria então a outra extremidade das notas com a mão que segurava o lenço e as suspenderia de modo a que ele as pudesse ver ainda, ou antes, tivesse a ilusão de que podia, uma vez que cuidadosamente as colocava logo abaixo do queixo dele. "O senhor tem aqui um dólar", diria ela, isto é, cem pennies para que faça cem dólares, compreende o que eu digo?

Aqui estão dez dólares, isto é, mil pennies para que faça mil dólares, compreende? Continuaria a enumerar o valor das notas, traduzindo-as numa confusa conta de pennies e de crescimento futuro e, ao fazê-lo, seus dedos mover-se-iam ligeiramente mais rápidos do que as suas palavras, retirando com grande destreza primeiro uma nota e depois outra com a ponta da unha e pegando-as com a mão que segurava o lenço.

Ao terminar, lhe devolveria calmamente as notas que haviam sobrado de modo que a própria vítima ficasse ocupada recolocando-as na carteira enquanto ela escondia as que haviam ficado no lenço nas suas roupas. Se tudo havia corrido bem até aí - e confiava no seu instinto para julgar se a vítima havia colaborado de boa vontade ou se havia na verdade sido engabelado - tentaria apoderar-se de qualquer dinheiro que pudesse ter num cofre ou caixa dizendo-lhe que embora tivesse abençoado seu dinheiro pessoal, necessitava de um novo dólar, um que estivesse diretamente relacionado aos seus negócios, para fazê-lo não só multiplicar como afastar o mau olhado de seus competidores e de quaisquer outros inimigos. A soma maior que Steve lembra-se ter visto sua mãe surrupiar foram 9 mil dólares que roubou de um perturbado comerciante de vestuário cuja mulher e filha haviam morrido há pouco num desastre de automóvel.

Conquanto nunca perdesse de vista a possibilidade de fazer uma féria alta, a mãe de Steve nunca forçava-a, satisfazendo-se com o que pudesse conseguir. E diariamente, durante mais de 30 anos, praticou sua trapaça com consumada habilidade. Durante todo esse tempo, de acordo com os arquivos policiais, só foi presa uma meia dúzia de vezes. Por duas vezes - em Minneapolis, Minnesota, e em Little Rock, Arkansas - foi levada escoltada para fora da cidade com a recomendação de nunca mais voltar. Essa foi a pior punição com que se defrontou. Invariavelmente livrava-se de uma prisão quando condenada por acusação de "furto por má fé", escapando tão-somente com um período de probação ou suspensão de sentença se, na verdade, as acusações contra ela não eram simplesmente afastadas. Algumas vezes, quando chegava à "boa sorte espanhola" do seu truque, a vítima perguntaria por que espanhola, uma vez que a língua do Brasil, supostamente seu país nativo, era o português, e ela lançava-se a uma torrente de insultos incompreensíveis em Romani e saía porta afora.

Uma vez ele perguntou-lhe por que não dizia simplesmente boa sorte brasileira, ao que ela disse: "O que é isso?"

Noutras ocasiões a vítima contaria as notas antes de colocá-las na carteira e a acusaria de furtá-la. Caso isso acontecesse, ela mostraria o dinheiro espalhado pelo chão, acusando o homem de ser desastrado ao pegá-lo e sairia com indignação. Abordava cada potencial da vítima com o agudo senso de fatalismo cigano de que o que tem de ser será.

Quando repelida por uma vítima, voltar-se-ia para outra e se repelida uma vez mais, haveria ainda uma terceira tentativa e mais outra e outra até conseguir o seu objetivo.

A média de um dia seu de trabalho era por volta de 200 dólares e raramente voltava para casa com menos de 100 dólares. Se a sua própria persistência enfraquecia uma vez por outra, o pensamento do seu marido, pai de Steve, esperando-a com suas imprevisíveis raivas, estimulava-a a prosseguir.

O pai, exceto esporádicas maquinacões para extorquir dinheiro de outros ciganos, gostava de passar seus dias jogando, em geral nas corridas de cavalos. Nas fichas de identificação da polícia ele consta como sendo Ephrem Tene, juntamente com alguns outros 10 apelidos. Entre os ciganos é chamado de "Al" ou o "Grande A l", mas com mais frequência de "Carranza". Invariavelmente Steve o chama de Carranza e eu uma vez perguntei-lhe se o nome tinha algum significado especial, ao que ele respondeu: "Sim, significa filho da puta". Quando verifiquei isso com vários outros ciganos, disseram a mesma coisa. Mais tarde descobri que não significava nada disso, que em geral os nomes são uma questão sem importância entre os ciganos, que os ciganos têm como regra um ou mais nomes destinados ao mundo dos gadjos e ainda outros reservados exclusivamente ao uso por parte dos ciganos e que, na verdade, sua avó havia decidido chamar assim esse filho por puro acaso. Ela havia visto um filme que apresentava um bandido mexicano especialmente mau chamado Carranza e ao voltar para casa disse ao filho, que aparentemente já exibia sinais de truculência em sua juventude, "você é como ele, você é Carranza" e o nome pegou.

Dá uma idéia do espírito cigano o fato de que quando perguntei por que me havia dito que Carranza significava "filho da puta", quando não era verdade, ele disse: "Ora, ele é "um filho da puta". Lancei-me numa laboriosa explicação sobre a diferença entre o significar alguma coisa e ser alguma coisa e, enquanto eu o fazia, surpreendi-o olhando para mim como se eu tivesse perdido o juizo.

E agora, devido a Carranza, Steve Tene encontrava-se voando de Los Angeles para Nova Iorque para ajudar uma irmã mais moça, Sônia, que tendo sido casada contra a sua vontade mediante o pagamento de 5,750 dólares quando tinha 14 anos e que aos 17 era mãe de uma menina de dois anos e que estava no terceiro mês de gravidez, havia tentado suicídio após ter levado uma surra do pai de Steve, tanto física como psiquicamente.

A irrealidade de tudo isto é esmagadora. Estamos no ano de 1974 e as pessoas estão vendo em televisores a cor acontecimentos que estão ocorrendo na outra metade do mundo e tornaram-se tão "blasés" que não podem se lembrar do nome do último homem que caminhou na lua e as ruas com anúncios luminosos estão cheias de automóveis buzinando e os jornais relatam o último comício do movimento de liberação das mulheres. E no entanto, para os ciganos, o tempo permanece parado, o relógio não andou nunca e o que aconteceu a Sônia poderia facilmente ter acontecido há mil anos atrás e Steve, ao invés de chegar num jato poderia vir galopando num cavalo através de alguma escura e silenciosa floresta na Europa Central, para salvar sua irmã.

Mas é aqui e agora, no meio de Nova Iorque, e apesar do desejo de seu avô de que Steve o sucedesse, que a velha linha de estrutura do poder, especialmente na tribo Bimbo, permanece emocionalmente a favor do pai, Carranza, devendo Steve tomar muito cuidado onde quer que vá. Assim, foi que hospedou-se num hotel na East Side, na Avenida Lexington, o Summit, ao invés de num West Side de Manhathan, onde achava que o risco de ser encontrado pelos aliados de seu pai eram maiores, sobretudo em torno da área do Times Square. Como precaução suplementar registrou-se sob o nome de Tom Day. Nomes como esse ocorrem-lhe naturalmente. Já usou tantos deles, em tantos atropelos e dificuldades, em lugares os mais diversos, que há momentos em que tem de parar e pensar quem é ele na ocasião. Sempre escolhe nomes de uma única sílaba, que possa aprender a assinar mecanicamente uma vez que, como a maioria dos ciganos, é analfabeto, exceto de ser capaz de reconhecer, digamos, a grafia do nome de uma cidade ou de anotar o número de um telefone.

No hotel Summit, Steve só podia pensar em seu pai e, por isso, telefonou a um conhecido seu da Máfia e explicou por que estava em Nova Iorque e pediu-lhe uma arma. "Eu devia acabar com ele enquanto tinha uma chance", disse Steve. "Vou arrancar seu miserável coração e colocá-lo nas mãos de minha mãe."

"Olhe, ouça", lembra-se do rapaz da Máfia ter-lhe dito, "você o estoura e fica então numa encrenca. De que isso adianta para a sua irmã?"

"Não me incomodo. O homem não merece viver e se você não me faz esse favor, conseguirei a arma em outro lugar qualquer."

"Então consiga-a, mas não de mim. Este é o favor que lhe estou fazendo."

Os dois discutiram ainda durante algum tempo e finalmente Steve acabou dizendo, "Está bem, acho que você tem razão."

Não tinha uma idéia exata de onde se encontrava sua irmã Sônia no momento, mas não tinha dúvida de que a encontraria. A mesma rede de ciganos que o havia informado da tentativa de suicídio funcionaria uma vez mais. Faria algumas chamadas telefônicas, procuraria um pouco e então esperaria e alguma coisa haveria de acontecer. Faz parte integrante do ser cigano de que não possa ele nunca fugir ao fatalismo do dia a dia que ajudou sua raça a se manter sem uma bandeira, sem uma pátria ou igreja em país após país, desde que inicialmente começou a migrar penosamente em seus carros em direção ao Oeste através da Ásia Menor há 12 séculos atrás.

Conquanto Steve zombe da lenda cuidadosamente alimentada da capacidade dos ciganos afastarem as pragas, de leitura em folhas de chá, de interpretação dos astros e semelhantes poderes mágicos como sendo "um monte de engodos", ainda insiste em que existem alguns poucos entre eles, entre os quais se inclui, que possuem um agudo senso extra sensorial, que nasceram com um "véu em suas testas", que possuem um "dom". Pouco tempo após sua chegada em Nova Iorque encontrou na rua 51, próximo à Segunda Avenida, o que considerou um presságio altamente propício. Estava passando por um bazar de coisas velhas que exibia um tapete enrolado, objeto de irresistível curiosidade para qualquer cigano. Estava começando a examiná-lo quando ouviu, partindo de dentro do tapete, um choramingueiro e descobriu que ocultava um pequeno e sujo cachorrinho branco que avaliou ter umas três semanas. Tradicionalmente, os ciganos têm uma grande afinidade com os animais - e o próprio Steve tem dois pastores alemães bem treinados, na Califórnia - imediatamente embrulhou o animalzinho num jornal e levou-o para o seu hotel, parando no caminho para comprar uma combuca, leite, shampoo para cachorro e pó contra pulgas. Lavou o cachorro com um pano molhado, fez com que a camareira arranjasse uma caixa para ele dormir e utilizou-a para que conseguisse na cozinha comida e logo começou a chegar regularmente filé mignon às escondidas para ele comer. Com os seus cuidados o cachorrinho começou a melhorar e imediatamente Steve fez um paralelo com sua irmã desaparecida.

Sônia, na idade em que a maioria das moças americanas começam seus estudos secundários, havia sido vendida numa servitude matrimonial a uma família de ciganos de Jacksonville, Flórida, que viajava no circuito dos parques de diversões no Sul. Ela era a sétima de oito irmãos e irmãs. Nessa ocasião, Steve já havia deixado o lar definitivamente e suas quatro irmãs mais velhas estavam também casadas e longe. Permaneciam em casa um irmão, Tommy, que conduzia sua mãe no carro em suas andanças, e uma outra irmã, quatro anos mais moça. Quando muito, a infância de Sônia tinha sido efêmera. Ela lembra-se de uma boneca e de um ocasional jogo de amarelinha, mas, como Steve, não lhe foi permitido brincar com crianças americanas nem a deixaram ir à escola, exceto durante um breve período de dois meses em Cleveland quando tinha cerca de 10 anos. Mas mesmo isso só fora possível com a relutante conivência de sua mãe e depois de muitas súplicas chorosas de Sônia. Saía de casa às ocultas às seis e meia da manhã antes que seu pai acordasse e então sentava-se defronte da escola pública do bairro até que abrissem as portas. Seu pai pensava que ela estava desde cedo vendendo flores ou esmolando, tarefa diária que começara a ter aos 8 anos de idade. Ele começou a resmungar quando a quantia de dinheiro que ela trazia para casa de noite começou a diminuir apesar de seus frenéticos esforços para compensar o tempo perdido, depois de teriminadas as aulas, mas sua educação foi abruptamente interrompida, completada por uma surra, quando o pai finalmente a surpreendeu a fazer seus deveres. Depois disso ficou sob estrita supervisão. Uma irmã mais velha e alguns primos foram encarregados de ensinar-lhe roubos mais sofisticados. Sônia nunca foi capaz de desenvolver uma acentuada queda pela prática de bater carteiras, mas demonstrou um talento instintivo para ler a sorte, o que fez dela uma compra atrativa para a família de caravanas.

Ao tentar ajudá-la agora, Steve era movido por um especial sentimento de culpa. Duas semanas antes do seu casamento Sônia havia apelado para que fizesse alguma coisa para impedi-lo e ele, na verdade, nada fizera, Estava vivendo então em Los Angeles e limitou-se a dizer-lhe que se ela quisesse poderia vir a ficar com ele. Mas ela era por demais jovem e temerosa do pai, do que pudesse fazer a ela e a Steve caso não atendesse aos desejos dele. "Case-se com o rapaz", aconselhou a mãe. "Você terá uma boa casa e será feliz. Você aprenderá a amá-lo."

Ela não podia suportar o rapaz, dois anos mais velho, nem seus sogros, mas, finalmente, não teve outro recurso. O fato de que era menor não significava nada. Os casamentos ciganos são realizados somente dentro da comunidade Romani, sem nenhum dos benefícios de qualquer religião ou sanções civis. Mas o que era pior para ela era a vida na caravana, que não suportava. Viajar não era nenhuma novidade para ela, sua própria família estava constantemente mudando-se, mas sempre havia sido de uma cidade para outra. Era uma cigana urbana, habituada a viver em apartamentos ou casas de cômodos e, bruscamente, via-se vivendo nas imediações de pequenas cidades sulinas em reboques superabitados e decrépitos, cozinhando em fogareiros portáteis de querosene ou em fogo ao ar livre, lavando roupa e tomando banho em bacias plásticas, a água quente consistindo num prêmio e as facilidades de toilette onde as encontrasse. Como a mulher mais moça da família, apesar de sua imediata gravidez, tinha de cozinhar, fazer a limpeza e lavar roupa para seu marido, seus dois irmãos, sua mãe e seu pai e uma cunhada, mas também lhe era exigido, naturalmente, trabalhar numa tenda de ler a sorte.

Quando não aguentou mais fugiu para casa com sua filhinha. "Se tenho de me casar", disse ela a seu pai, "quero o meu próprio canto. Quero viver ao meu jeito." Mas Carranza, ante a perspectiva de ter, segundo a lei cigana, dedevolver pelo menos a metade do preço da compra, juntamente com a perda de respeito"por não ser capaz de controlar sua filha, forçou Sônia a voltar depois de ter conseguido a promessa de que os ciganos da caravana a tratariam bem."

Nada mudou realmente no entanto, e Sônia, eventualmente, fugiu novamente, desta vez com outro rapaz cigano de quem estava novamente grávida. Foram viver com os pais do rapaz que foram uma revelação para ela, um casal pobre assustadiço que a tratou com uma bondade que nunca conhecera. Pela primeira vez na vida foi para a rua à procura de dinheiro, não porque fosse a isso obrigada mas porque o desejava, para contar com algum dinheiro, uma vez que sua gravidez avançava. O rapaz conseguiu trabalho como guarda-costas.

O pai dela finalmente descobriu-os em Philadelphia, Sônia recebeu um telefonema de uma amiga avisando-a, ela e o rapaz fugiram apressadamente, deixando a filha com os pais dele. Quando Carranza invadiu o apartamento deles, exigiu 10 mil dólares ou a volta de Sônia. Eles responderam que o máximo que poderiam conseguir eram mil dólares e, talvez mais tarde, outros 500. Carranza zombou da oferta e levou com ele a filha de Sônia - após haver aterrorizado os pais do rapaz, ameaçando "enjaulá-los" sob a acusação de seqüestro, de tal modo que também eles deixariam a cidade. Sônia e o rapaz estavam escondidos em Baltimore quando souberam o que acontecera e ela telefonou-lhe pedindo-lhe para deixá-la levar sua própria vida. "Não vou deixar que esse rapazola "abocanhe" você por nada", berrou ele. "Você não vai conseguir o que quer. Vou gastar o que quer que seja necessário para apanhar vocês dois e vou quebrar as pernas desse bastardo e vou fazer com que seu pai e sua mãe sejam presos. Farei com que todos os que se envolverem com vocês, que os ajudarem, sejam presos. Juro por minha mãe e por meu pai mortos que o farei".

Foi a última ameaça, tão séria quanto um juramento que um cigano possa fazer, que fez com que o rapaz se amedrontasse e abandonasse Sônia. "O pai era temido", explicou ele mais tarde. "Ele não estava brincando, você sabe o que quero dizer, e era por demais poderoso. Ele tinha a reputação de fazer com que as pessoas fossem presas e com que fossem espancadas, contratando pessoas para batê-las até sangrarem, e eu tinha medo, você sabe, por meu pai e minha mãe. Eles não tinham boa saúde mesmo."

Sônia fez uma tentativa final para aplacar Carranza. Sabia que o que estava enfurecendo-o agora não era tanto o ter de devolver parte do preço do casamento à família da caravana - poderia negar quaisquer pretensões sob a alegação de que ela havia sido tão maltratada por eles - mas que, dadas as condições atuais, não podia conseguir uma decente revenda a outra família cigana. Assim, ela foi à casa alugada em que ele morava em New Jersey, perto de Hackensack, onde então vivia, e disse: "Deixe minha vida de lado. É verdade que não tenho dinheiro agora para dar-lhe hoje. Mas receba os mil e quinhentos dólares que o pessoal dele ofereceu e espere até que ele e eu tenhamos feito algum dinheiro e então lhe daremos o quanto quiser. Dê-nos um pouco de tempo". No princípio o pai concordou, com a condição de que a filha de Sônia ficasse com ele como refém. Quando ela protestou, ele bruscamente mudou de idéia e avisou-a que, se necessário, a devolveria ao marido dela. "Se você acha que ele é tão bom assim, viva você com ele, gritou ela, "coma você os excrementos dele!" Durante mais ou menos uma semana, esperando conseguir alguma mudança, ela ficou em New Jersey com Carranza e submeteu-se a uma barragem sem fim de pragas e de maus tratos cada vez piores até que, desesperada, pegou, um vidro de tranqüilizantes e engoliu-os todos. Sua mãe chamou a polícia e ela foi levada inconsciente para um hospital onde lhe fizeram uma lavagem de estômago e onde, aparentemente, ainda está sendo mantida.

Steve conseguira agora saber a maior parte disso, mas ainda ignorava o nome do hospital.

Em conseqüência de sua vida cheia de tensões, Steve Tene vem há vários anos sofrendo periódicos ataques de uma dolorosa úlcera e em Nova Iorque, preocupado com Sônia e bebendo demais devido a isso, sentiu sua úlcera começar a espernear. Vendo-o, no entanto, não se diria. Movimenta-se com uma graça animal, suas maneiras são enganosamente descontraídas e sua voz é sempre suave. Tem grande confiança em seu aspecto físico e conta com desarmante inocência como uma moça que encontrou disse-lhe: "Opa, você é um bonito rapaz." Bem proporcionado, com um metro e noventa, tem cabelo preto abundante, pele clara, olhos pretos luminosos e um bigode opulento. Parece-se tremendamente com o ator Omar Sharif e freqüentemente alguma moça lhe observará isso e Steve, para dar mais força, dirá, "Oh, você acha realmente? Acho que é porque sou o filho dele."

Uma noite, em suas caminhadas sem fim pela cidade esperando uma pista definitiva sobre o paradeiro de sua irmã, defrontou-se com uma lembrança suja do seu passado. Não longe do hotel Summit, na Terceira Avenida entre as Ruas 54 e 53, existe uma faixa na calçada da rua que é chamada de "exploração da carne", em que rapazes, na maioria nos seus dez primeiros anos, enfileiram-se à espera do comércio do East Side. Um grande número deles começa como "frangos", vagabundos fugitivos cobiçados pelos gaviões homossexuais. Steve foi uma vez um frango. Começou numa experiência horripilante em Philadelphia quando tinha 12 anos e que ainda faz com que a sua voz trema quando fala nisso. Após toda uma manhã engraxando sapatos, havia voltado para casa para encontrar Carranza em uma de suas raivas tronituantes pelo apartamento. Ele acabara de colocar numa mesa o dinheiro que ganhara quando o seu pai, subitamente, voltou-se para ele e exigiu que ele tivesse relações sexuais com sua mãe. "Ande", gritou ele, "isso o fará um homem". Horrorizado quando percebeu que seu pai falava seriamente, Steve pulou pela janela do segundo andar, tendo sua queda amortecida pelas cordas de roupas dependuradas na área embaixo. "Era uma loucura, revoltante", diz ele. "Minha mãe estava parada, em pé, sem dizer nada, como se fosse concordar. Eles tinham brigado durante toda a semana e, não sei, talvez ela estivesse cheia daquilo tudo, até mesmo com ele, por tudo que ele procurava retirar dela e teria isso como uma ameaça sobre a cabeça dele para envergonhá-lo diante dos outros ciganos."

Steve esgueirou-se para fora da área e mendigou até ter dinheiro suficiente para comprar jornais a atacado e vendê-los depois nos bares e restaurantes, filando um dinheiro extra onde quer que pudesse, até ter o suficiente para uma passagem de ônibus para Nova Iorque, onde supunha estar seu avô vivendo em alguma parte das ruas 80 do lado Oeste. Chegou em Manhattan tarde daquela noite e começou a caminhar pela Broadway. Foi até a rua 72, quando um rapaz jovem acercou-se dele e perguntou-lhe onde ia. Steve explicou que estava procurando seu avô e o jovem perguntou-lhe: "De onde é você?"

"De Philadelphia, fugi de casa,"

"Ah é! que idade tem você?"

"Dezesseis", mentiu Steve,

O rapaz perguntou-lhe se tinha fome e ofereceu-se para comprar algo para comer. Steve, que só tinha um quarto de dólar, aceitou. Comendo hamburgers numa cafeteria, o jovem disse que o seu nome era José. Enquanto comiam, dois outros homens juntaram-se a eles. Um chamava-se Eddie e o outro Chuck. Então José perguntou a Steve se ele era "gay" (*"Gay", além de alegre, significa na gíria americana homossexual. (Nota do T.) e Steve, pensando que "gay" queria dizer alegre, jovial, disse sim e José disse que havia uma festa de que Steve gostaria e que depois o ajudaria a procurar o seu avô.

A festa, ele se recorda, era no andar térreo de um apartamento. Havia lá um certo número de homens e algumas mulheres. O homem que conhecia como Eddie ofereceu-lhe um cigarro, que Steve recusou. "Vamos, pegue um", disse Eddie. "Você já tem idade". E Steve disse: "Bem, é que não estou acostumado. Se eu fumasse em casa seria morto". Finalmente, aceitou o cigarro e também o seu primeiro copo de bebida misturada com Coca-Cola. A música tocava alto, José e Eddie estavam sentados de cada lado dele e Chuck deu-lhe outro copo de bebida e alguns homens e mulheres estavam dançando, ele ficou tonto, e a última coisa de que se lembra é que uma dasmulheres começou a tirar suas roupas e então viu que era um homem.

Não sabe quanto tempo ficou prisioneiro, talvez uma semana. Um dia, bruscamente, percebeu que poderia ir-se embora e o fez. Quando saía, o homem chamado Eddie riu e disse, "adeus, cigano." Saiu com a descoberta de que tinha algo a vender a homens que compravam e durante o ano e meio seguinte foi como viveu basicamente. Passou alguns dias abordando as pessoas para mendigar e à noite dormindo nas entradas dos edifícios, gravitando em torno da rua 42, onde outros "frangos" explicaram-lhe onde o como ficar e qual era o preço cobrado. "Não tenha medo", disseram-lhe. "Diga ao camarada que você quer 20 e se ele não tem 20, peça 10, mas não aceite menos do que 10." Steve não procurou mais seu avô, certo de que seu pai tinha, nessa altura. entrado em contato com o velho e envenenado-o contra ele. Ocasionalmente, procurou acabar com a vida de rua. No seu décimo terceiro aniversário entrou numa igreja católica e, no confessionário, contou ao padre a situação em que se encontrava e perguntou-lhe o que devia fazer, o padre aconselhou-o a voltar para casa. que era a única coisa que não faria. Durante algum tempo trabalhou como lavador de pratos numa estragada rua de Greenwich Village, mas foi despedido quando se recusou a ser o agressor num caso homossexual com o gerente. Vinha vivendo numa série de quartos alugados, mas havia feito amizade com uma lésbica que trabalhava como prostituta e que costumava passar pelo restaurante à noite e que o convidou a vir morar com ela. Por meio dela, travou conhecimento com as pílulas e as "subidas" e "descidas". Mas isso acabou quando a lésbica trouxe para casa uma amiga permanente, secretária numa firma jurídica, e numa noite enquanto dormia na sala Steve ouviu-as lutando no quarto e a secretária dizer, "você, sabe, podemos nos ver numa embrulhada com esse danado cigano, ele é um fugitivo e se seus pais nos apanham, estamos em maus lençóis, menina, você sabe", e assim, no dia seguinte ele partiu.

Ele também procurou roubar, mas não era bom nisso. Uma tarde bateu alguns anéis numa joalheria, mas antes que pudesse sair foi perseguido por uma jovem que trabalhava lá, uma morena "sexy", ligeiramente gorducha, com quase 30 anos e que estava estudando para ser pintora. Steve olhou-a com seus olhos escuros e despejou toda a sua história traumática em cima dela, as dificuldades em que se encontrava, falando tão rápido quanto o conseguia, finalizando por revelar-lhe ser um cigano. Quer tivesse percebido ou não, não poderia ter escolhido melhor ouvinte. A mulher era uma incurável romântica que acabou por convidá-lo a ficar em sua casa durante alguns dias. Na segunda noite foi para a cama com ela e ela lhe propôs um arranjo segundo o qual ele poderia ficar enquanto quisesse sob a condição de limpar o apartamento e posar para ela como modelo. Enquanto estava com ela, encontrou outro trabalho como aprendiz de acabamentos numa loja de antiguidades na Terceira Avenida. Gostava do trabalho, mas este só durou um pouco mais de dois meses. Lembra-se bem do dia em que o deixou - o dia em que o Presidente Kennedy foi assassinado. A velha senhora dona da loja, quando ouviu as notícias no rádio teve um ataque cardíaco e morreu e seu filho acabou com o negócio. Depois disso, Steve voltou cada vez mais aos seus hábitos homossexuais. Tornou-se incômodo viver no apartamento da mulher - ela tinha sua própria vida e seus amantes - e ele passou a desaparecer durante dias sem fim, cada vez mais freqüentemente, até que, inevitavelmente, foi encontrado parado à porta de um imóvel na rua 42 por um dos membros da família Bimbo e despachado para a sua família.

No decorrer dos anos, no entanto, permaneceu em contato com a mulher e quando eu a fui ver, no mesmo apartamento, solteira, beirando os 40 anos, mais pesada mas ainda bonita e ainda pintando, contou-me que quando viu Steve pela primeira vez ele a lembrou um animal selvagem. Enquanto ela falava, dois cães enormes insistiam em pular em cima de mim. Eram cachorros sem dono que ela encontrara na rua e levara para casa. Riu nervosamente dizendo, "Chega uma semana atrasado". "Eu tinha um gato para o qual procurava uma casa, mas acheia-a." Dos fundos vinha um rumor abafado. Era um pombo no seu quarto. Ela o havia visto girando pela calçada, desamparado, uma asa quebrada e trouxera-o para casa. Nas paredes do apartamento, juntamente com outros quadros, estavam vários retratos de Steve aos 13 anos, bustos e nus de tamanho natural. Sim, eles haviam dormido juntos, mas só uma vez. "Toda a história era maluca", disse ela. "Eu o sabia. Ora ele estava aqui e logo depois não estava. Fazia muita questão de dinheiro, tinha de tê-lo. Em que gastava? Não sei, mas sobretudo em roupas e sabe Deus em que mais." Contou que depois que seus parentes o pegaram ele a chamava e pedia dinheiro e nas primeiras duas ou três vezes ela lhe mandara, mas finalmente deixou de fazê-lo. Ele continuaria a chamá-la volta e meia e quando o dinheiro lhe fosse negado deixaria morrer o assunto, como se nunca o tivesse mencionado, e passava a tagarelar sobre o que estava fazendo. "Ele é um cigano", disse ela. "O que mais posso dizer?"

Steve fala desse seu tempo como homossexual nos batentes das portas de Nova Iorque com um encolher de ombros, de maneira desapaixonada. "Eu não gostava daquilo", diz ele, "mas tinha de sobreviver. Eu não fazia nada. Eu era, o senhor sabe, passivo. Eu limitava-me a fechar os olhos."

Agora, 12 anos mais tarde, enquanto Steve estava ali em pé na Terceira Avenida lembrando-se de tudo, vestido com um flamejante lenço no pescoço, camisa aberta e casaco de veludo com franjas, seu bronzeado da Califórnia contrastando vivamente com as caras brancas, pálidas dos rapazes encostados nas janelas das lojas em todo o quarteirão, um homem dirigiu-se a ele. O homem era da classe média. Estava com um terno cinza de talhe conservador, carregava uma pasta e estava usando uma aliança. Era a espécie de homem que se vê caminhando apressadamente pelo Terminal do Grand Central no fim de um dia de negócios, a caminho de casa, para pegar o trem suburbano de 5,19. "Você é normal ou "gay"? perguntou o homem.

"Normal".

O homem pareceu desapontado. Olhou para a fila de rapazes que esperavam e depois passou e tornou a passar diante de Steve, para finalmente dizer: "Eu lhe darei 10 dólares por cada bocado do que você tem."

"Você não tem bastante dinheiro", disse Steve, voltando-lhe as costas e caminhando enquanto o homem o seguiu por meia quadra ainda, procurando negociar mais, antes de desistir.

A vida de Steve estava tão marcada pelo paradoxo que para ele foi quase sem nenhuma surpresa que uma hora após o incidente da Terceira Avenida, viu uma mulher loura de cara atormentada e cansada numa mesa ao lado no bar do hotel Summit começar a falar-lhe. Ela estava com um vestido vermelho cheio de excessivos babados. Disse ser uma turista alemã da cidade Frankfurt. Disse-lhe quanto se sentia sozinha em Nova Iorque e, depois de ter pago a Steve alguns copos de bebida, convidou-o a ir ao seu quarto.

"Não, tenho coisas demais na cabeça". disse ele, mas, como ela insistisse e dissesse "dar-lhe-ei 50 dólares", deu de ombros e disse: "Está bem".

Steve errara, ao pensar que podia evitar os ciganos no East Side. Eles estavam por toda a parte. A poucos minutos do seu hotel, nas redondezas da Primeira e Segunda Avenida, ele observou seis diferentes ofisas - espeluncas de ciganos ledores da sorte em que o boojo, ou a velha trapaça da troca de dinheiro das mãos de uns para a de outros é praticada em pessoas crédulas que foram convencidas de serem amaldiçoadas por dinheiro pouco limpo. Cada ofisa estava marcada por um anúncio luminoso verde e vermelho dizendo "Leitura de Mão e Aconselhamento", em geral na janela do segundo andar. Anos atrás, em Nova Iorque, elas eram todas em lojas de frente de rua no andar térreo e, ocasionalmente, ainda se vê uma ou outra ainda o é apesar da determinação municipal que especificamente proíbe que as lojas de frente sirvam ao mesmo tempo como residência. A legislação foi aprovada nos primeiros anos da década de 40, por ordem do Prefeito Fiorello La Guardia. Quando um dos auxiliares do Prefeito observou que tal lei seria particularmente dura com os ciganos, La Guardia respondeu, "ótimo!" O Prefeito tinha uma razão pessoal para a sua acrimonia. Sua mulher, estando grávida, tinha penetrado numa tenda de uma cigana que lia a sorte numa quermesse. A sessão não terminara bem, com a cigana lançando a predição de que tanto a senhora La Guardia como seu filho estavam destinados a morrer cedo. A senhora La Guardia ficou muito impressionada com o encontro e, como mais tarde ocorreria, a criança, doentia desde o nascimento, contraiu tuberculose e viveu menos de um ano. A senhora La Guardia também teve a doença e morreu vários meses depois e o Prefeito La Guardia estava convencido -de que sua mulher tivera a sua vontade de viver enfraquecida pelo que a cigana dissera.

O que permaneceu inviolado, no entanto, qualquer que seja o andar em que um ofisa esteja localizado, é que, de acordo com a lei cigana, uma dista da outra pelo menos três quarteirões. Anualmente a polícia de Nova Iorque conduz uma pesquisa, prédio por prédio, dessas ofisas com o fim de controlar as atividades ciganas na cidade, mas, na verdade, ninguém sabe exatamente quantas existem num dado momento. O que é surpreendente é que, a não ser por alguns arquivos da polícia e dos pagamentos da Previdência Social, os ciganos não existem oficialmente nos Estados Unidos. Eles não constam, por exemplo, dos censos ou das estatísticas de imigração, conquanto os números aproximativos da atual população cigana na América esteja por volta de, pelo menos, 250.000 até 1 milhão ou mais.

Quase não se ouve falar em controle de natalidade ou em abortos entre os ciganos, sendo que se pode ter uma idéia de sua proliferação começando-se simplesmente pelos avós paternos de Steve. O Rei Tene Bimbo e sua mulher Rainha Mary tiveram 14 filhos. Esses, por sua vez, reproduziram 76 netos. Os netos, muitos deles ainda nos seus primeiros 10 e 20 anos, já produziram 183 descendentes e ainda os estão contando.

Para complicar ainda mais as coisas, existe o fato de estarem os ciganos sempre mudando-se. Perguntar a um cigano onde ele esteve durante o último ano é como ir a um movimentado aeroporto de uma grande metrópole e passar lá algumas horas ouvindo os anúncios das partidas dos vôos. Numa era em que a invasão de nossa privacidade está atingindo proporções épicas e se tornou um dos maiores temas políticos neste país, com computadores rotineiramente envolvendo, alongando seus braços e mutilando o cidadão médio, com bancos de dados cheios de detalhes sobre seu "status" financeiro, história médica, hábitos sexuais e de seus pensamentos, enquanto se barbeia os ciganos permanecem totalmente intocados, tão invisíveis nas velhas edições de livros esgotados quanto a brisa que serpenteia pela paisagem.

Nenhum cigano gosta de estar seguro a qualquer coisa. Os certificados de nascimento, por exemplo, são um anátema para ele. Caso precise de um passaporte ou, em outras circunstâncias, necessite de prova de data e local de nascimento, obterá um depoimento fornecido e jurado por outros ciganos, ou obterá um certificado "provisório", de uma maneira ou de outra de um médico complascente ou de uma parteira. O mais importante é ser flexível acerca de tais assuntos, uma vez que nunca sabe que espécie de armadilha burocrática potencial o espera e age sempre na presunção de que é melhor esperar o pior. Ser convocado para o serviço militar era uma coisa a ser evitada a todo custo e geralmente o era, a não ser que uma investigação massiva e altamente motivada se realizasse. De vez em quando isso acontecia e um dos infelizes alvos foi um primo mais velho de Steve chamado John Tene Bimbo, que foi acusado em Nova Iorque no fim da Segunda Guerra por ter deixado de se inscrever para a convocação. A defesa de que lançou mão foi a de que era menor da ocasião. Infelizmente para John Tene, o promotor público no caso era Florence Shientang, um advogado auxiliar do governo americano que também havia sido auxiliar legal do Prefeito La Guardia a quem este havia contado a experiência amarga de sua primeira mulher com a cigana ledora de mão. A senhora Shientang passou semanas em Chicago, onde John Tene afirmava ter nascido, e em outros lugares, verificando obscuros registros e descobrindo uma quantidade enorme de material contraditório referente ao acusado. O próprio Rei Tene Bimbo compareceu ao julgamento em Nova Iorque em 1946. A afirmação do seu neto era de que tinha nascido na verdade em 20 de outubro de 1928, quatro anos mais tarde do que o governo declarava, apresentando um certificado de nascimento provisório assinado por um médico de Chicago para apoiá-lo. A senhora Shientang apresentou provas, baseada em parte em registros da Presidência Social de Chicago, que ele nascera verdadeiramente em 1924 no Tennesse. Sua mãe, Bessie Bimbo, conhecida como Pearsa entre os ciganos, trajada numa ondulante saia azul e ouro e lenço na cabeça, completada por compridos brincos de ouro, testemunhou em defesa do filho. "Da mesma maneira que sei que tenho cinco dedos", declarou ela, "sei que meu filho nasceu em 20 de Outubro, numa noite de sábado, em 1828, em Chicago." A razão por que dera às autoridades de bem-estar de Chicago uma data anterior de nascimento, explicou ela, era uma mentira total para obter um auxílio maior. Quando a senhora Shientang, a reinquirindo, sugeriu que tendo em vista algumas afirmações vagas em seu testemunho ela poderia não estar em condições de completo "controle" de suas faculdades, Bessie Bimbo sacudiu o punho dizendo: "Quer dizer que sou louca? Meu marido chama-me sempre de louca. Não sei por quê. Tenho uma cabeça muito boa em cima dos meus ombros". Mas o que pegou John Tene foi a afirmação do médico de que havia sido "iludido" ao assinar a certidão de nascimento dele. O júri deliberou 15 minutos antes de dar o veredito e ele foi sentenciado a dois anos de prisão. Cumpriu cerca de um terço da pena e mais tarde procurou a senhora Shientang e bem humoradamente contou-lhe que essa tinha sido a melhor coisa que poderia lhe acontecer, que enquanto estava atrás das grades aprendera a ler e escrever.

A confundir o grande jogo dos números dos computadores que classificam a todos nós, todo cigano que se respeite carrega pelo menos três cartões da Previdência Social, um punhado de licenças para dirigir e uma coleção rotativa de cartões de crédito numa variedade de nomes. Se um cigano é preso, o que é freqüentemente o caso, raramente passa muito tempo na prisão; se necessário, paga fiança e desaparece. Cadillacs e Lincolns, de qualquer maneira que tenham sido adquiridos, são a sua maneira preferida de locomover-se por terra e Estados complacentes e pouco inquiridores como a Alabama enviam-lhes pelo correio suas placas e documentos mediante o recebimento de uma ordem de pagamento. Se, por alguma razão, um cigano deseja viajar de avião, chama uma companhia de aviação, escolhe uma data de partida para uma semana ou mais, depois dá um número de telefone e seu endereço, pede que o bilhete lhe seja enviado pelo correio e avisa que enviará o cheque também pelo correio. Quando o bilhete chega com o carimbo, protetor mas inadequado, de "não pago", imediatamente o cigano dirige-se ao aeroporto. Explica no balcão que mudou subitamente de idéia, consegue mudar a reserva e parte. Como em todo encontrão cigano, a execução é da máxima importância. Para afastar suspeitas ao pedir bilhetes aéreos, é sempre necessário uma viagem de ida e volta. O cigano examina atentamente com o agente de reservas aéreas as várias taxas de excursão, planos familiares e preços de vôos diurnos versus vôos noturnos antes de, com aparente resignação, decidir-se por acomodações regulares de primeira classe.

Steve mostrou-me quanto era fácil. Do meu telefone chamou uma companhia aérea e disse desejar uma reserva para duas pessoas - ele próprio e sua mulher - para o Havaí. O agente das reservas perguntou quando desejava partir.

"A 10 de Maio", disse Steve. "De manhã".

"Que classe, por favor?"

"Primeira, por favor".

Após um momento de hesitação a moça disse que a primeira classe estava completa naquele dia. "Que tal no dia 11? A primeira classe tem lugar no dia 11".

Ele hesitou, como se isso fosse algo importante a decidir, e então disse, "Está bem" e ela deu detalhes do vôo e pediu o nome e o número de telefone e após tê-los dadn ele disse que, afinal, era melhor fazer reservas para a volta e que queria saber quanto os bilhetes custariam.

Ela perguntou quanto tempo ele ficaria e ele respondeu, "Cerca de um mês", e ela disse, "Menos de 30 dias?" e ele disse, "Sim" e ela disse que nesse caso fazia jus à taxa de excursão. Então ela voltou ao telefone e, desculpando-se, disse que a taxa de excursão aplicava-se somente aos bilhetes turísticos. "Por que não vai como turista?", disse ela. "Economizará muito dinheiro."

Era o tipo de "entrada" que Steve estava esperando. "Você sabe", suspirou ele, "eu deveria ter me casado com uma moça como você" e ela riu satisfeita. Ele fez uma pausa, como se estivesse pensando com pena no que poderia ter sido, antes de dizer, "Não, é melhor reservar em primeira. Você tem razão, mas é por causa da minha mulher. Realmente ela não viajaria de outra maneira."

A voz da agente estava cheia de calor e de compreensão enquanto tomava as providências de rotina. Iria ele buscar os bilhetes? Ele disse que não, que os desejava pelo correio e deu meu endereço, e quando ela perguntou qual a forma de pagamento que usaria - cartão de crédito ou cheque - ele disse que enviaria um cheque e isso foi tudo. Os bilhetes chegaram no dia seguinte e antes que eu os devolvesse, Steve olhou-os desconsoladamente e disse, "é pena. Nunca estive no Havaí."

Uma vez que na maioria das vezes os ciganos são analfabetos, o telefone é um crucial meio de comunicação quando se mudam para uma nova cidade. Para terem um telefone instalado prontamente, eles alegarão uma situação de emergência qualquer, como uma doença grave em um filho e, se necessário, apresentarão uma carta "a quem possa interessar" de um médico a quem subornaram no caminho. Um depósito deve, por certo, ser evitado em qualquer circunstâncias e para se atribuírem uma sólida posição social os ciganos, invariavelmente, dizem ao representante da companhia que são proprietários da casa ou apartamento em que o telefone deve ser instalado. Quando lhes pedem os números de telefone de um parente próximo e de um amigo pessoal como referência eles, sem pestanejar, ou inventam um número ou escolhem alguns ao acaso no catálogo. Ocasionalmente, a companhia telefónica realiza uma sindicância séria e, então, a solicitação é negada. Quando isso acontece, um cigano apenas considera isso como uma momentânea falta de sorte e recomeça o processo todo mais uma vez usando um nome diferente. Um outro estratagema é fazer com que o telefone conste em nome de um cabeçalho comercial como "Companhia John Roofing, lnc." ou "Loja Mary de Vestidos". Isso não somente reforça a áurea de respeitabilidade como também permite que o cigano obtenha crédito local durante a sua permanência na cidade. E uma vez mais Steve demonstrou como a coisa era simples. Apanhou um catálogo telefônico para ter um nome falso de uma companhia. Então solicitou várias contas de crédito, apresentando-se como empregado da firma onde ganhava no momento duzentos e cinqüenta dólares por semana. O fato de que não sabia escrever só contribuía para dar-lhe mais credibilidade. Como me disse, "Eles ficam ali sentados anotando o que eu lhes digo e ficam pensando, bem, o que se pode esperar, o pobre sujeito é só um operário, mas tem um emprego regular". E nos dias seguintes ele saiu recolhendo cartões de crédito de agências e de firmas individuais, solenemente verificando toda a informação que ele mesmo havia fornecido.

Numa tarde enquanto Steve estava ainda esperando maiores informações sobre sua irmã Sônia, ele e eu íamos andando pela Quinta Avenida. Defronte da Tiffany estavam duas lindas crianças de pele morena, grandes olhos, um menino e uma menina, com possivelmente dez e onze anos, cada uma segurando cravos e oferecendo-os aos passantes, "Por favor, comprem uma flor para os índios americanos". Já me acontecera passar antes por crianças fazendo isto e sem realmente pensar no assunto, suponho, presumira serem elas realmente índios.

Quando Steve dirigiu-se a elas e falou-lhes em Romani soube algo diferente. Depois que ele voltou, perguntei "O que são eles, irmão e irmã?"

"Não", disse ele, "são casados. Ainda não fizeram o amor, mas são casados. Ela me contou que o pessoal dele pagou quatro mil dólares por ela. Ela está muito orgulhosa".

Eu sabia que, com raras exceções, eram as mulheres que traziam todo o dinheiro e que o preço de uma mulher dependia não do seu aspecto mas de seu potencial de ganho. Assim eu perguntei-lhe como eles podiam saber qual o valor de uma menina que era tão jovem.

"Ora, eles provavelmente sabem que ela vem de uma boa estirpe de ladrões. É assim que as coisas acontecem em geral. Olhe, ela é boa. Vê aquele sujeito de quem ela acaba de receber um dólar? Ela conseguiu o dólar e convenceu-o a devolver-lhe a flor também para que ela a use novamente. Ela me disse que já fez trinta e oito dólares hoje".

"Acontece com freqüência casá-los assim nessa idade?"

"Certamente", disse ele. "Acontece sempre. É triste, não é? É uma vida dura a que essas crianças terão".

Steve pediu que eu continuasse a caminhar um pouco mais com ele. "São os meus nervos", disse ele. "Se não sei breve alguma coisa sobre Sônia, com os diabos, irei atrás do Carranza eu mesmo".

Quase sem o percebermos, estávamos no West Side de Manhattan, passando por um ponto terminal de ônibus na Rua Quarenta e Um, quando uma voz gritou, "Steve, oh Steve! Ele voltou-se e foi excitadamente beijado por uma jovem bastante "sexy" que estava usando sapatos plataforma, calças de brim apertadas e um paletó de brim. Era uma cigana de vinte e um anos chamada Yana que conhecia Steve há muito tempo. "O que você está fazendo aqui?" perguntou ela. "Pensei que estava na Califórnia".

"Sônia. Você soube o que Carranza fez a Sônia?"

"Sim, ouvi falar sobre isso".

"Levaram-na para um hospital, não sei, algum lugar pelo Jersey. Você pode me ajudar a descobrir onde?"

"Vou saber. Odeio todos esses danados Bimbos, exceto você".

Fomos com ela ao apartamento de dois quartos mobiliado que ela tinha numa transversal da rua Cinqüenta e Quatro além da Oitava Avenida. Pegou seus filhos, um menino de cinco e uma menina de três, que deixara aos cuidados de uma vizinha, e então preparou-nos copos de chá tão sazonados com aromas e frutas que tinha o gosto de um ponche. Embora já fosse bastante tarde agora, o menino e a menina estavam sentados vendo televisão e não davam sinais de quererem ir para a cama. "Bem, você sabe", disse Steve, "são crianças ciganas".

Yana tinha sido casada com um da tribo Bimbo. Mas se cansara das constantes surras. A gota dágua foi quando seu sogro bêbado tentou dormir com ela e ela saiu de casa com seus filhos. "Que eles tentem fazer alguma coisa", disse ela.

Quando eles eram crianças, Steve costumava conduzir Yana e uma de suas irmãs. As meninas ciganas começam a roubar cedo. Para esse fim, Steve começou a dirigir quando tinha apenas onze anos. Em Chicago, onde estavam vivendo na ocasião, seu pai subornou um funcionário estadual de automóveis e um dia chegou em casa com uma licença de Illinóis certificando que Steve tinha dezesseis anos. O pai amarrou blocos à embreagem e ao freio e disse a Steve para ir para trás da direção. Embora já tivesse observado toda a mecânica da direção, essa foi a sua experiência inicial de fazê-lo. Sua primeira e única lição começou na rua e como Steve saísse da curva com um arrancão, chocou-se contra o automóvel que estava estacionado na frente dele. Havia um homem nele, mas Carranza pulou do carro e despejou uma tal torrente de obscenidades em cima dele que, aparentemente acovardado, este saiu sem dizer nada. Steve lembra-se como seu pai estava sentado ao seu lado mastigando um enorme sanduíche numa das mãos enquanto que com a outra dava tapas em Steve cada vez que ele cometia um erro até que, em autodefesa, Steve conseguiu obter sua aprovação relutante.

Quando as meninas estavam roubando, elas geralmente trabalhavam aos pares. Steve passaria pelos jardins de um bairro residencial à procura, para tal fim, preferentemente de um homem idoso. Caso tudo falhasse, as meninas batiam ao acaso nas portas até que uma se abrisse. A idéia era penetrar na casa ou apartamento. Cheias de um ar inocente, mostravam ao homem uma garrafinha dizendo-lhe que um padre mandara-as entregar água benta a todos os paroquianos doentes, mas que haviam perdido o endereço e se podiam, por favor, consultar o catálogo de telefones. Algumas vezes, para avaliar a impressionabilidade de sua vítima e para conquistarem mais sua confiança, descreveriam vagamente a pessoa mítica que estavam procurando e freqüentemente a vítima diria, "Ah, sim. Creio que sei de quem fala. Eu o tenho visto por aí." Uma vez dentro, uma das meninas ocupar-se-ia do homem, flertando com ele se isso lhe parecesse indicado, ou tagarelando sobre toda a maldade e doenças existentes no mundo, enquanto sua companheira, com o pretexto de usar o banheiro, corria pelos quartos à procura de dinheiro. As pessoas sempre guardavam o dinheiro nos mesmos lugares - embaixo dos potes de café, nas caixas de chapéus, embaixo das camas, por baixo das roupas nas gavetas. Uma vez em Boston Yana estava sem saber onde procurar num quarto do segundo andar quando, por nenhuma razão que ela possa explicar, enfiou a mão numa cesta de papéis cheia de lixo e no fundo descobriu uma caixa de metal. A caixa estava fechada, o que a fez hesitar por um segundo, mas estava usando uma saia comprida e assim finalmente enfiou a caixa entre suas pernas e saiu bamboleando com ela. Quando a abriram no carro, havia mais de cinco mil dólares dentro.

Dando gargalhadas sobre isto, Yana encenou o seu caminhar arrastado ao sair da casa com a caixa e então começou a lembrar-se de um antigo caso de acidente que Steve "fizera" num supermercado no Mildwest. Ele já estava procurando libertar-se da tradicional maneira de vida dos ciganos quando ele e Yana entraram no armazém e Yana viu o caixão quebrado de ovos no chão e disse, "Vá" e ele disse, "Não, não quero".

"Ouça", disse ela. "Deus pôs esses ovos aí. Se você não fizer, eu mesma o jogarei", e finalmente ele disse, "Está bem, mas espere, deixe eu tirar o meu casaco. Acabo de comprá-lo". Ele prosseguiu com a sua rotina, ela gritou e tornou-se uma testemunha e ele foi levado numa ambulância para o hospital. Passou três semanas lá, fingindo com tanto sucesso loucura em conseqüência de um ferimento na cabeça, uma vez jogando uma bandeja cheia de comida numa enfermeira durante a visita de um fiscal de seguros, que a companhia ficou satisfeitíssima em resolver o caso com vinte e três mil dólares.

Os ciganos estão constantemente envolvidos em falsos casos de acidentes, mas Steve era um reconhecido mestre na arte. A pedido de Yana demonstrou sua técnica jogando um lápis no chão como ponto de apoio, escorregando nele e voando para o ar. Voltou ao chão com um tremendo baque surdo e ficou tão imóvel, exceto por uma perna que tremia, que fiquei convencido de que exagerara e se ferira gravemente. Bruscamente, quando eu me dirigia a ele, sentou-se, radiante; eu havia reagido exatamente como o agente do supermercado o faria.

Com a maioria dos ciganos, deu início a essa fase de sua carreira com um treinamento prático. Tinha cerca de dezesseis anos, estava por sua própria conta, quando um primo procurou-o e disse-lhe, "Quer ganhar algum dinheiro rápido?"

"Certamente. Como?"

"É uma canja".

"Pode-se ser preso?"

"Não. Eu estou lhe dizendo que é fácil. Não se preocupe. De toda a maneira você está sem a sua família e precisa de dinheiro.

"O que é que eu faço?"

"Basta que você entre naquela loja que eu conheço e caia em cima de alguma coisa e não se mexa. Diga só que está ferido e gema. Dividimos o resultado cinqüenta por cento porque a loja é minha, eu a descobri, conheço a companhia de seguro e como eles operam porque já fiz negócios com eles antes. Você limita-se a ficar lá e eles chamarão uma ambulância. Lembre-se somente de dizer ao fiscal do seguro quando ele vier que um advogado quer que você o contrate. E o fiscal dirá para você não assinar com ninguém porque eles ficarão com um terço daquilo que você conseguir. O fiscal dirá que se você não assinar, ele lhe fará uma oferta e você reluta um pouquinho mais. Em todo o caso eu estarei lá ajudando-o.

O primo foi com ele à loja. Steve encheu um carrinho com guloseimas e então o primo apontou para um lugar úmido no chão e disse, "Aí está o lugar". Uma ambulância levou Steve para o hospital Roosevelt em Nova Iorque. O acordo, conforme ele se lembra, com a companhia Travelers de Seguros era duzentos e cinqüenta dólares. Nessa primeira vez, não sabendo ainda como cair havia feito um grande galo na cabeça e, na verdade, sofrera uma contusão leve.

A parte a excelência da acrobacia e a habilidade de representação nos casos de acidentes que posteriormente adquiriu, Steve tinha uma outra vantagem. Nos seus tempos como "frango" havia encontrado um médico homossexual e agora o procurou para ser orientado como proceder e o que esperar durante os exames de seus supostos ferimentos. As suas melhores chances, disse o médico, eram dores de cabeça, perda de equilíbrio e fortes dores nas costas.

Uma das primeiras coisas que lhe aconteceria, Steve foi advertido, é que lhe pediriam para estender os braços, fechar os olhos e tocar o nariz com as pontas dos dedos da mão direita e da esquerda. Quando tentasse isso, devia começar a cair para a frente, sempre do mesmo lado. Então, provavelmente, dir-lhe-iam para inclinar-se ligeiramente para a frente, relaxar o corpo e procurar tocar o pé esquerdo com a mão direita e o pé direito com a mão esquerda. Desde o inicio, Steve devia simular dor e então gritar agudamente no momento em que realmente começasse a curvar-se. Em determinado momento, o médico disse, pediriam-lhe para deitar-se na mesa de exames e quando fizesse isso devia lembrar-se sempre de subir e descer da mesa vagarosamente e com cuidado e de manter sempre a mão contra a parte de baixo das costas para mostrar como esse movimento lhe era doloroso. Uma vez na mesa, pedir-lhe-iam para encolher, digamos, a perna direita e esticá-la. Quando tentasse isso, devia gritar em agonia. Caso o médico examinador procurasse curvá-la para ele, deveria gritar novamente. O médico seu amigo avisou Steve que num real ferimento nas costas a dor se localiza após alguns dias, assim devia estar preparado para escolher um determinado ponto em vez de dizer que doía por toda a parte. Se, por exemplo, escolhesse o lado direito como o ponto da dor, devia permitir que sua perna esquerda fosse curvada quase totalmente antes de gritar. Steve foi instruído sobre outros testes de movimentos rotativos e de ângulo e também como as solas dos seus pés e suas pernas seriam arranhados ou como lhe espetariam alfinetes para medir seus reflexos. Nesses casos, devia simplesmente retesar seu corpo e agüentar, mas ele descobriu ser isso extraordinariamente fácil uma vez que sabia que a coisa ia acontecer. Com referência aos raios X e exames de espinha, o médico mostrou-lhe como reagir com dores tais que não pudesse ser adequadamente colocado em posição para as fotografias e disse a Steve, "Se eles tentarem lhe dar uma injeção na espinha, faça-se de bobo e pergunte o que é. Eles lhe dirão que é uma agulha. Você pergunta se é uma agulha grande e se doerá e eles terão de dizer que sim. Você diz que já não aguenta mais dor alguma e eles não ousarão tentar".

Steve praticou seus gemidos e gritos e movimentos do corpo durante horas e tornou-se tão adepto de fingir ferimentos que em São Francisco um médico chamado pela companhia de seguro na verdade aconselhou-o a não chegar a um acordo. "Você está realmente machucado, disse o médico: "Espere seis meses e espere para ver o que acontece. Nós pagaremos a conta. Você pode ficar permanentemente prejudicado".

Agora, no chão do apartamento de Yana onde ainda estava sentado depois de seu espetacular rodopio no ar, Steve abruptamente deixou de sorrir como que embaraçado por sua impulsiva volta à sua velha maneira de viver. Calmamente, perguntou-lhe o que ela estava fazendo. Ela hesitou, afetada pela sua mudança de humor, antes de dizer que estava por conta do bem-estar. Na verdade ela estava sendo bastante modesta. Estava simultaneamente nas listas de pagamento de cinco departamentos de bem-estar - em Boston, Nova Iorque, Philadelphia, cidade de Jersey e Newark. Por vezes a sua escala de recebimento tornava-se tão confusa e febril que ela tinha de voar de Nova Iorque a Boston e daí para Philadelphia. Quando demos com ela fora da estação terminal do ônibus, estava voltando de Newark, onde havia embolsado um cheque de trezentos e vinte e cinco dólares. Nem tudo era lucro líquido. Para provar sua residência, "aluga" apartamentos que nunca viu numa casa que está convenientemente ao lado da agência onde recebe seu cheque. Telefona ao proprietário para certificar-se de que o cheque chegou. Então salta num ônibus. O proprietário passa-lhe o cheque e ela paga a ele oitenta dólares. O proprietário é um policial de Newark.

Em Boston, onde declarou ter cinco dependentes, Yana conseguiu evitar essa divisão de riqueza colocando meramente uma caixa coletora com o seu nome dentro da entrada do edifício dilapidado que ela havia dado como seu endereço. Uma vez, quando estava em pé no hall esperando pela entrega do cheque, o carteiro disse-lhe que sabia o que estava tramando, que não vivia lá e que daria parte caso não recebesse uma parte. "Faça-o", disse ela, "e eu farei com que seja preso por estupro". Essa foi o última vez que o viu.

Nos intervalos das suas coletas do bem-estar ela saía agindo ativamente - fazendo de conta ser uma prostituta, por perto do Times Square. Atrairia um homem numa passagem de uma rua para negociar um preço, murmurando tudo o que faria por ele, mexendo com o pelve e esfregando o seu ventre e seios contra ele e passando-lhe a mão pelo corpo, para cima e para baixo. Mas pode-se dizer que raramente se ouviu dizer que uma moça cigana seja uma prostituta, e o que suas mãos estavam procurando era a carteira do homem. Yana é uma ótima batedoura de carteira e, uma vez extraída a carteira retirou só algumas notas, as do meio, e então pôs a carteira de volta no bolso do homem e interrompeu a barganha estabelecendo um preço excessivo para os seus serviços. Nas raras ocasiões em que um homem, de certa forma, percebia que havia sido enganado e a impedia de sair enquanto contava o dinheiro, recorreria à tradicional válvula de escape das ciganas de deixar cair as notas no chão, acusando-o de não ser capaz de guardar seu dinheiro e partir ofendida.

Uma irmã mais velha introduziu-a na arte de bater carteiras. "Levou-me um dia com ela", disse Yana. Isso aconteceu em Nova Iorque quando eu tinha talvez dez, onze anos, acho, e fomos ao Chinatown e numa lavanderia chinesa onde trabalham com saias e coisas e ela sussurrou-me, "Comece!" Eu sabia o que ela queria dizer porque fora muitas vezes com ela quando estava roubando, mas eu mesma não procurava fazê-lo, tinha medo demais. Esse chinês na lavanderia, ele deve ter sessenta ou setenta anos, um homem velho, e minha irmã me diz para ir enfrente e empurrou-me para ele. "Experimente", diz ela, "de qualquer jeito ele não tem nenhum dinheiro, cinco dólares no máximo". Assim, no princípio eu disse não, eu não queria, estava com medo demais. E ela diz: "Não há nada a temer, veja como ele é velho e como são grandes e frouxas as suas calças. Vá em frente". Assim eu aproximei-me dele e aos poucos falei com ele e eu tinha medo, você sabe, apavorada, e toda a minha mão entrou no seu bolso, compreende? Ele segurou-me pelo pulso e começou a berrar e a dar-me bofetadas, e eu tive sorte de sair dali". Yana riu ao lembrar-se. "Pois é, foi o diabo", disse ela, "toda a danada da minha mão estava no seu bolso e é assim que se aprende, pelos erros que se comete, e se melhora".

Havia, ela descobriu, muito mais a aprender. Quando tinha quatorze anos e em Los Angeles, fez uma féria de cinqüenta dólares próximo ao "The Strip" - o que tinha se tornado o setor vulgar do Sunset Boulevard - e em vez de voltar imediatamente para casa e trocar de roupa, continuou a flanar em torno, por fora dos bares e boates, à procura de outra vítima. Enquanto isso o homem de quem havia tirado os cinqüenta dólares havia dado pela sua falta e dado queixa juntamente com a descrição de Yana e de como estava vestida, e ela foi presa pela polícia. Ela foi arrastada para a Corte Juvenil de Los Angeles e acabou cumprindo nove meses na Escola Ventura para Moças.

Embora fosse agora uma veterana tarimbada, defrontou-se com outros momentos inesperados de perigo. Havia apenas alguns dias, disse ela, "aliviara" um homem de trezentos dólares. "Fui generosa, deixei-lhe seiscentos. Deve haver uns homens como ele, por aí, carregando tanto dinheiro". Cinco minutos depois tocaram na sua campainha e o homem segurou-a pela garganta. "Baratinei-o", disse ela. Fi-lo crer que havia deixado cair o dinheiro no hall em baixo e quando chegamos lá eu disse aí está ele, você o deixou cair, deixe-me em paz! Se ele não o fizesse, eu lhe teria dado um pontapé, você sabe, onde dói".

Steve olhou para ela surpreso. "Como ele sabia onde você morava?" disse ele. "Você devia ter mais cuidado".

"Ora, eu estava acabando de chegar à rua, e ele veio na minha direção, e eu achei, bem, aproveite enquanto está aí".

Perguntei a Yana se as prostitutas da zona, muitas das quais são sindicalizadas, ressentiam a sua presença e ela respondeu não, que freqüentemente uma viria a ela diria: "Ei, irmã, você o conseguiu. Você consegue o seu pão e você não faz nada. Ensine-me como fazê-lo".

"Yana", exclamou Steve, "você tem de deixar de roubar".

Ela voltou-se para ele, mãos na cintura, e disse: "Bem, você é o Rei. Você tem o medalhão e o anel. Supõe-se que você nos está conduzindo para fora disso". Yana bateu com a mão na cabeça. "O que mais posso fazer? Sou uma cigana. Está no nosso sangue".

"Sua cabeçuda! Não é o seu sangue. É a maneira como eles criaram você. Eles a criaram para roubar".

"Ora, esqueça ser Rei e leve-me a passear".

"Tenho de encontrar Sônia".

No dia seguinte Steve telefonou-me. Yana tinha sabido que sua irmã estava num hospital chamado Bergen Pines, a alguns minutos de carro após a via New Jersey da ponte George Washington. Mas ele tinha de agir rápido. Seu pai, servindo-se da sua tentativa de suicídio, ia interná-la num sanatório até que ela cedesse ao desejo dele. Steve queria que eu o conduzisse até lá.

"Por que eu?", perguntei.

"Você tem sorte", disse ele. "Dei-lhe boas "deixas". Eu realmente apreciaria". Ele insistiu e de certo modo conseguiu fazer-me sentir culpado se não fosse, e assim concordei.

Essa tarde, ao irmos para o hospital, ele falou-me, como já o havia feito antes, sobre a carreira de cantor que estava procurando iniciar. Disse que o negócio de acabamento de móveis que havia iniciado na Califórnia - do qual estava fazendo uma retirada de cerca de mil e quinhentos dólares mensais, demonstrando aos outros ciganos que era possível conseguir resultados legalmente - não era o bastante. Era por isso que a sua carreira de cantor era tão importante. Tinha que realizar alguma coisa dramática, algo que realmente os impressionasse. Vinha aparecendo intermitentemente em pequenos clubes em Los Angeles e se algum dia conseguisse ter sucesso, o dinheiro iria para uma fundação cigana para educar crianças ciganas. É por não deixarem seus filhos irem à escola e não permitirem-lhes brincar com crianças americanas, disse ele, que os ciganos conseguiam manter controle sobre eles, Quando as crianças atingiam onze ou doze anos, muitas delas percebiam qual seria o seu futuro e iam sorrateiramente à escola de modo próprio.

"Bem, isto é uma reviravolta", disse eu. "A maioria das crianças esgueiram-se para fora da escola".

"Sim", disse ele, "mas não tem graça. As crianças ciganas não sabem ler nem escrever, você sabe, e são colocadas em turmas com crianças com a metade da sua idade, agüentam durante algumas semanas e depois desertam. Depois disso estão soltas na vida definitivamente". Olhou sombriamente pela janela do carro. "Além disso, eles sabem que têm o direito de roubar. Está na Bíblia".

"O que você quer dizer, está na Bíblia?"

Ele então contou-me uma história que eu iria ouvir de todos os ciganos que encontrei. Alguns detalhes variavam, mas a mensagem era sempre a mesma. Segundo a versão de Steve, os soldados romanos ao crucificarem Cristo tencionaram usar quatro pregos, mas um cigano roubou o quarto, o que estava destinado ao Seu coração, e, em gratidão, Cristo na cruz declarou que os ciganos podiam continuar a roubar.

"Você está louco", disse eu. "Isto não está na Bíblia".

Como todos os ciganos, se recusou a admitir erro.

- Que Bíblia você leu?", perguntou. "Quem a escreveu?"

Desde o início havia pensado que a missão em que nos encontrávamos era simplesmente ridícula - que Steve não podia aparecer de súbito na cena e retirar sua irmã de um hospital onde não somente estava sendo mantida em observação por tentativa de suicídio, mas também porque era uma menor sob a proteção da lei. Ao nos aproximarmos do nosso destino, finalmente expressei minhas dúvidas de que pudesse consegui-lo. "Não se preocupe", disse ele, "alguma coisa acontecerá".

Eu o deixei na porta da frente e então estacionei o carro. Quando cheguei à portaria, ele não estava em lugar algum. Esperei talvez uma meia hora antes que o visse sair de um elevador e dissesse: "Acho que está tudo O.K. Venha. A enfermeira disse não poder fazer nada, mas fiz com que ela chamasse o médico e estive falando com ele. É uma mulher, quero dizer, o médico".

No quinto andar Steve conduziu-me por um corredor e fez-me virar à esquerda e vi a moça que logo soube ser Sônia, amarrada a uma cadeira de rodas, curvada para a frente, rosto descorado, olhar vago. Mas Steve levou-me diretamente a dois homens parados diante de uma porta. A porta estava parcialmente aberta e pude ver dentro um homem numa cama.

Um dos homens parados no corredor disse: "Bem, é você ou não é você?"

"Sou o quê?"

"É você o fulano que escreveu Serpico?"

Os dois homens eram na verdade detetives municipais montando guarda a uma testemunha material de um próximo julgamento de um bando organizado. Steve os havia reconhecido como policiais quando subira pela primeira vez e falou-lhes a meu respeito. Bruscamente percebi que estava no meio de uma outra manobra cigana. Todo o tempo ele havia planejado servir-se de mim para apresentar suas credenciais na tentativa de retirar Sônia do hospital e a presença dos policiais era uma dádiva.

Um dos detetives pediu meu autógrafo e o seu companheiro queria saber se havia alguma possibilidade de serem obtidos alguns exemplares do Serpico e o primeiro disse que seria gentil, mandar uma cópia para o "sheriff" também. Ambos deram-me seus cartões de visita e o primeiro escreveu o nome do "sheriff" nas costas do seu cartão.

Enquanto estávamos os quatro conversando, vi a enfermeira do andar e a médica observando-nos. Steve esperou alguns minutos e então dirigiu-se a elas e o ouvi dizer: "Estou lhes dizendo, se não a deixarem ir ela tentará se matar novamente e vocês serão responsáveis". A médica dirigiu-se a Sônia, que suplicou: "Por favor, quero ir com o meu irmão". Finalmente a médica disse à enfermeira: "Está bem, deixe-a ir".

Enquanto os papéis de alta estavam sendo preenchidos e Steve os assinava, descobriu-se que o pai tinha levado todas as roupas de Sônia. Tudo que ela tinha era o que estava usando, uma camisa branca do hospital e chinelos de algodão. "Não tem importância", disse Steve, "ela pode ir como está", pegando minha capa de chuva para pôr em volta dela.

Fui buscar o carro e peguei-o na porta de entrada. O caminho de acesso ao hospital Bergen Pines é bastante longo e ao estarmos nos afastando Steve bruscamente empurrou a cabeça de Sônia para o assento e escondeu a cara. Um carro passou por nós dirigindo-se ao hospital. "Era Carranza", disse ele.

O telefonema do pai veio mais tarde naquela noite. Havia obtido o número do telefone quer através do hospital ou de algum outro cigano que Steve procurara para tentar localizar Sônia. Aparentemente, no entanto, não percebera que se tratava de um hotel quando a telefonista respondera porque a primeira coisa que queria saber era o endereço de Steve. Quando Steve recusou dá-lo, lançou-se numa incrível, quase louca torrente de obscenidades. "Seu filho de uma puta", gritou ele. "Eu sei porque você pegou Sônia, seu bastardo fornicador. Você quer fazer dela a sua puta". E então disse: "Eu vou encontrá-lo, filho meu. o meu pessoal vai pegá-lo".

Steve bateu o telefone na cara dele. Depois Sônia começou a tremer incontroladamente e Steve garantiu-lhe que tudo estaria bem, que eles se mudariam na manhã seguinte. Ele me disse que já havia planejado deixar o hotel de toda a maneira. A direção havia descoberto sobre o cachorrinho que tinha no quarto e naquele dia pela manhã o auxiliar do gerente viera vê-lo e dissera: "O que é que você acha que é isso aqui, alguma espécie de canil? Ou o cachorro vai embora ou vai você".

 

                                            A TRAPAÇA

 

Mesmo que Steve pudesse ler, não existem registros escritos ciganos em que pudesse seguir a trilha da sua herança. A maioria dos antropologistas acreditam que os ciganos provêm do Norte da India. A melhor pista que têm para isso é o Romani, que foi classificado como pertencendo ao grupo indo-ariano da linguagem. Até recentemente tentativas e esforços para codificá-lo em papel foram feitas, mas, o Romani era somente falado e qualquer que tenha sido a antiga catástrofe provocada pelo homem ou de ordem natural, permanecem desconhecidas as causas que fizeram com que as tribos ciganas emigrassem.

O que é certo acerca dos ciganos é que estão em toda a parte no mundo hoje em dia, exceto, possivelmente, no Extremo Oriente, e em todos os lugares em que foram e mantiveram zelosamente uma entidade racial e cultural resguardada por um espelho com virtualmente uma infalível visão unilateral através do qual olham tudo, a não ser que decidam em contrário. E é essa fórmula obstinada de:

agora vocês nos vêem e agora voces não nos vêem que os ajudou a manterem-se unidos durante tanto tempo e, ainda assim, fez deles uma minoria constante e freqüentemente hostilizada onde quer que tenham surgido. "Ferozes párias da sociedade", chamou-os Wordsworth.

Existem algumas provas de que vaguearam pelo Oriente Médio por volta do ano 800 da era cristã. Mesmo nessa ocasião eram objeto de grande hostilidade, e continuaram viajando - em grupos esparços, fazendo pequenos percursos ao invés de numa massa única. Uns poucos, pensa-se, circularam em torno do Mediterrâneo ao longo da costa africana. Um maior número deles deixou a Ásia cruzando o Bósforo e outros, aparentemente, utilizaram-se do arquipélago grego, inclusive Creta como pedras no caminho para a Europa continental. Vaguearam através dos Balcãs, muitos parando no caminho para uma existência mais circunscritamente nómada, enquanto o resto prosseguia. Seu primeiro aparecimento confirmado na Europa ocidental data do início do século XV. Uma vez dentro da jurisdição do Santo Império Romano, não tendo uma religião própria organizada, rapidamente certificaram-se onde se encontrava o poder, e adquiriram o nome de "gypsy", uma corruptela de egípcio, em conseqüência de sua primeira grande tratantada lá - apresentando-se como refugiados cristãos que tinham sido expulsos das margens do Nilo pelos bárbaros mulçumanos.

Existiram variações a esse tema. Para facilitar o seu caminho através das fronteiras nacionais e para explicar seu movimento contínuo, um bando de ciganos pode deixar de lado a parte que os mulçumanos pretensamente desempenharam em seu êxodo do Egito e dizer terem ido a Roma confessar seus pecados e que o Papa decretara sete anos de peregrinação como penitência. Não sendo daqueles que desprezam uma pequena ajuda, também vieram armados de "cartas" que alegavam terem sido fornecidas por Sua Santidade instruindo a todos os abades e bispos que encontrassem a benzerem suas palmas com ouro para ajudá-los a prosseguir. Os primeiros ciganos de Paris chegaram em 1427 com tais cartas e, de acordo com um anônimo companheiro parisiense de Samuel Pepys, puseram a cidade inteira em polvorosa. Ele descreveu o contingente como um grupo licencioso totalizando cerca de cento e vinte homens, mulheres e crianças a pé, conduzidos por "doze lordes penitentes, um duque, um conde e doze cavalheiros" montados a cavalo. Os recém-chegados, escreveu ele, tinham orelhas furadas e usavam brincos de prata. Os homens tinham a pele escura e cabelos crespos; as mulheres eram feias e morenas e tinham cabelos "tão pretos como as crinas dos cavalos". As pessoas vinham aos montes vê-los, não só devido ao seu estranho aspecto e maneiras exóticas, mas também porque os ciganos tinham trazido com eles da Índia as artes de ler a mão e de prever o futuro. Provocaram brigas entre os casais dizendo que maridos e mulheres haviam sido infiéis uns aos outros, continuava o jornal parisiense, e "eles esvaziavam as bolsas de todos nas ruas", embora acrescentasse que ele mesmo não tinha testemunhado tal coisa.

A recepção cheia de pasmo foi, de toda maneira, de pouca duração. A história de onde vinham e do que estavam fazendo não foi acreditada, até mesmo no Paris do século XV. A sua cor escura fez com que, eventualmente, fossem equiparados aos mouros, seus costumes exóticos levantaram crescentes suspeitas e o bispo de Paris pôs tudo por terra com um edito que declarava que qualquer um que fosse apanhado fazendo ler a palma da mão seria excomungado. Mas por essa altura essa vanguarda de ciganos já havia fincado estacas. Uma perspectiva geral da migração cigana inicial no continente parece indicar uma penetração através do Sul da Europa para a França e o Atlântico, seguida por uma ondulação em direção ao Norte para os Países Baixos, de volta à Alemanha, na Polônia e Lituânia e finalmente Rússia. Grupos minoritários ficaram pelo caminho, cruzaram o canal para a Inglaterra e para a Escandinávia. Por volta de 1470 estavam na Espanha, junto a tempo para a Inquisição, tendo cruzado os Pirinéus na França ou o estreito de Gilbraltar do Norte da África, ou ambos.

A dificuldade é que a maior parte da literatura existente sobre os ciganos cai dentro de uma das duas categorias. Escrita por gadje - o plural Romani de gadjo - isto é, não ciganos que, empolgados pela sede de viajar, aderiram aos ciganos durante algum tempo e escreveram então memórias românticas do tipo posteriormente popularizado pelo cinema de 1930, em que as mulheres eram selvagemente passionais e os homens velhacos, basicamente de bom humor, prontos a cantar ao primeiro arpejo de um violino.

Ou os dados foram compilados de uma maneira aparentemente erudita cheia de notas de rodapé por cientistas sociais que, invariavelmente, tomaram a defesa dos ciganos, apresentando-os como uma raça vilipendiada, miserável e injustamente tratada pelo resto da humanidade. Em ambos os casos, ninguém consegue se pôr de acordo quanto ao que deva ser simples fato histórico. Talvez porque o assunto seja ciganos. Um trabalho aparentemente de peso e indulgente, por exemplo, afirma categoricamente que durante a Inquisição espanhola considerou-se não merecerem os ciganos que com eles se preocupassem. No entanto, outro tratado igualmente de peso e indulgente, os retrata como tendo sido lá, juntamente com os judeus e os mouros, os alvos prediletos da Inquisição.

A última versão parece ser mais provável, uma vez que os ciganos viajantes - mulheres contando a sorte; homens negociando ocasionalmente com cavalos, trabalhando em metal, especialmente cobre, ou com couro; homens, mulheres e crianças roubando qualquer coisa que não estivesse pregada - causavam por certo o mesmo efeito por onde quer que passassem. No início eram recebidos com fascínio, se não com amizade, após o que vinha uma pletora de julgamentos, todos ruins. Na Inglaterra, Henrique VIII, desviando-se de suas querelas com o Vaticano, proclamou-os "povo desclassificado que se diz egípcio" e sua filha Elizabeth I ordenou que todos os ciganos fossem sumariamente expulsos da Inglaterra e nenhum, naturalmente, admitido a entrar devido às suas "práticas diabólicas e marotas". As palavras podem parecer estranhas, mas a punição por ser cigano ou associar-se a um deles era a morte. Ainda assim, a Rainha Elizabeth fracassou tanto na sua política de deportação como de imigração, como foi o caso em outros lugares. Os ciganos, sempre elásticos, podem perder uma batalha após outra mas nunca a guerra. Os holandeses proibiram que qualquer Romani cruzasse suas fronteiras e conseguiram-no durante cerca de trinta anos até que o seu fervor diminuiu, com o que os ciganos prontamente reapareceram como se nada tivesse acontecido. Os suíços, apesar de toda a sua lendária dureza, tentaram a mesma tática sem resultado. No que eram então os estados romanos e papal, pressões policiais violentas foram aplicadas contra os ciganos; mas tudo o que conseguiram foi fazer com que se deslocassem, o que teriam feito de toda a maneira. Por vezes os ciganos estabeleciam acampamentos que se esparramavam pelos dois lados de uma fronteira, com isso assegurando uma passagem livre de um lado para o outro no caso de surgir uma emergência.

Até mesmo em nações conhecidas por sua liberalidade, os ciganos foram rapidamente reprimidos; na Suécia, desde 1637, a penalidade para um cigano do sexo masculino encontrado solto era a forca e na Noruega, qualquer um surpreendido atravessando um cigano no rio tinha o seu barco apreendido. Na Alemanha, com a típica dureza teutônica, os governos municipais e estaduais punham quadros mostrando homens sendo enforcados e mulheres seminuas sendo chicoteadas, juntamente com avisos impressos de que tal seria a sorte de qualquer cigano que entrasse na área. os franceses não eram muito mais sutis. A polícia recebia carta branca, com freqüentes resultados de assassinatos de homens enquanto as mulheres ciganas e as crianças eram confinadas a locais de trabalho e suas cabeças raspadas.

Foi só no século XIX que essa espécie monstruosa de comportamento contra os ciganos começou a diminuir, embora permanecessem objeto de grande discriminação legal. Tendo desistido da expulsão como uma resposta a seus visitantes indesejáveis, os países agora procuram "dar um jeito". Num esforço de controlá-los, uma nova abordagem foi a proibição do nomadismo, lei essa que se tornou imediatamente impraticável uma vez que os ciganos, aos milhares, continuaram a perambular à vontade, deixando mensagens tradicionais para os outros que lhes seguem - um pedaço de fazenda esvoejando numa árvore, um galho quebrado, linhas traçadas na sujeira de uma encruzilhada - o que fornecia informações básicas sobre o caminho que estava sendo tomado por uma determinada caravana, a disposição de ânimo da região, nascimentos e mortes recentes etc. Em seguida veio a tentativa, igualmente sem resultado, de acabar com a identidade cigana; a mais grandiosa foi a no antigo império austro-húngaro, onde foram criados alojamentos especiais em que as crianças ciganas supostamente freqüentam escolas e vão à igreja de maneira regular. Os ingleses tentaram uma tática diferente. A primeira coisa a fazer, decidiram, era descobrir exatamente quais as dimensões do problema e foi realizado um censo. Isso não deu melhores resultados do que qualquer outra coisa. Os ciganos ou não podiam compreender os formulários ou, através de intermediários, forneceram informações errôneas; alguns foram recenseados várias vezes à medida que passavam de uma região para outra, outros não chegaram a ser recenseados de todo. Na França, em 1912, devido ao desespero oficial, os ciganos deviam ter cartões de identidade que mencionavam, entre outras coisas, o comprimento da orelha direita do portador, a distância entre o cotovelo esquerdo e o dedo médio esquerdo e o comprimento do pé esquerdo. Só a complexidade de tais cartões era por si só destinada ao fracasso e os ciganos rapidamente aprenderam quais os distritos que cumpriam rigidamente essas determinações e os que não o faziam.

Tendo em vista as suas circunstâncias, era inevitável que a ascensão de Hitler na Alemanha fosse desastrosa para os ciganos. Qualquer esperança que alguns deles entretivessem de que escapariam devido à sua descendência ariana foi efêmera quando os teóricos nazistas começaram a declarar: "Os judeus e os ciganos estão hoje em dia muito distanciados de nós (racialmente) porque as suas origens asiáticas são completamente diferentes de nossos antepassados nórdicos. Uns poucos acadêmicos germânicos não conseguiam se convencer em afastar totalmente a ascendência ariana dos ciganos, mas observaram serem eles de um nível inferior e que tinham permitido a mestiçagem da qual era prova viva sua habitual peregrinação. Os nazistas, ignorando a história, primeiro procuraram se ver livres dos ciganos por meio da expulsão. Fracassando nisso como todos antes deles, carrascos ilustres da humanidade como Heinrich Himmler, Reinhard Heydrich e Adolf Eichman substituíram-nos e a exterminação tornou-se a nova solução e os ciganos foram empilhados em grandes lotes e encaminhados para a morte em campos de concentração como Dachau, Buchenwald, Belsen e Auschwitz. No final da Segunda Guerra cerca de 1 milhão e 400 mil ciganos haviam perecido nas câmaras de gás e outras formas de genocídio que a era hitlerista havia inventado.

No entanto, apesar de sua recusa em se deixarem assimilar, a qual deveria ter tornado a sua destruição ainda mais fácil, sobreviveram. E entre todos aqueles que conseguiram viver através do holocausto nazista, nenhuma raça permaneceu mais sacrificada. Isso foi parcialmente devido a que alguns porta-vozes dos ciganos que, não satisfeitos com o real declínio do seu número, exageraram excessivamente o total das mortes, elevando-o para 3 a 4 milhões. O número era tão evidentemente absurdo que teve, de início, a conseqüência de pôr em dúvida a realidade do que acontecera, que foi suficientemente horrível, e, pior ainda, uma vez documentados os fatos, de tal maneira amortizaram o impacto que quase não afetaram a consciência do mundo civilizado.

Na França de pós-guerra exigia-se ainda que os ciganos tivessem cartões de identidade diferentes e se apresentassem constantemente à polícia e por onde quer que fossem defrontavam-se com sinais municipais dizendo "Stationnement Interdit aos Nómades", o que traduzido livremente significa "proibido aos ciganos". Em certa ocasião o governo procurou arrebanhar os ciganos em conjuntos residenciais, obrigando-os a freqüentar cursos de leitura e escrita e higiene ocidental. Parecia uma excelente idéia até que funcionários vieram e encontraram portas queimadas como lenha, encanamentos vendidos como sucata e os ciganos ausentes. Recentemente, têm sido feitas tentativas mais diplomáticas no sentido de levar os ciganos a fixarem-se convidando-os a opinarem nos novos planejamentos e fazendo com que participem no trabalho de construção. Os resultados de tais experiências permanecem duvidosos. "Sim, a vida é melhor aqui", disse uma mulher cigana a um repórter, "mas não somos mais felizes." Na Espanha, desde a Inquisição, salvo algum toureiro ou cantor de flamenco que tenham conseguido fama tão-somente devido ao seu talento, os ciganos continuaram um povo desprezado, os "que não prestam para nada", fechados em guetos miseráveis, alguns ainda vivendo em cavernas. Isolados pelos Pirineus, sujeitos infindavelmente a uma feroz tirania, os ciganos da Espanha são diferentes dos outros ciganos, mais encurralados do que livres, muitos deles incapazes de falar sua antiga língua, com somente um ténue domínio de sua herança. Mas de sua existência torturada surgiu o flamenco que, embora nativo da Espanha, atingiu seus momentos mais profundos nas gargantas ciganas gritando quase que num grito primitivo:

"Não sou dessas bandas; Não nasci aqui. A roda da fortuna, girando, girando, Trouxe-me para aqui."

Na Itália, talvez uma centena de milhares de ciganos permanecem fora da consciência pública, com exceção de um ou outro cabriolador clássico, vez por outra. Fato sensacional, aparentemente cheio de romantismo, ocorreu durante a Segunda Guerra quando um membro da nobreza italiana deu parte do roubo de algumas jóias - um colar de pérolas de cinco voltas, dois anéis com grandes esmeraldas, uma pulseira de prata cravejada de rubis e uma tiara de diamantes, tudo avaliado em cerca de 1 milhão de dólares. Eventualmente, através de informantes, a polícia soube que um certo cigano havia cometido o furto. Ele foi interrogado e finalmente confessou e então reconstituiu o crime em seus detalhes, incluindo a escalação de um muro e a abertura de umas janelas com um grampo.

O cigano, cujo nome era Guglielmo foi julgado e condenado e passou oito anos na prisão, mas a não ser dizer enigmaticamente não haver vendido as jóias, recusou-se a dizer algo sobre o seu crime e o mistério sobre o que acontecera às pedras preciosas nunca foi esclarecido. Dezesseis anos mais tarde os Carabinieri receberam outra informação dizendo que uma bonita mulher cigana havia sido vista usando algumas das jóias desaparecidas. Guglielmo foi procurado e interrogado novamente, sem nenhum resultado. "Eu roubei as jóias e paguei pelo meu crime", disse ele com toda dignidade. "Nada mais importa."

Enquanto isso, na Suécia a imigração está limitada a umas 50 famílias selecionadas cada ano e lá os ciganos em geral permanecem num só lugar devido à dureza do clima. Na Inglaterra, no entanto, continuam a viajar em caravanas. Com a expansão urbana e o crescimento populacional os lugares favoritos para parada durante a noite - num determinado campo ao lado de um rio, à borda de uma represa na mata - tornaram-se cada vez mais inacessíveis aos ciganos, que se encontram expulsos por autoridades locais pouco amistosas. Funcionários puderam mesmo revogar a permissão dada por um agricultor amigável que lhes franqueara um local de estacionamento e parece que a tradicional tolerância inglesa deixou de existir tão-somente para os ciganos. Finalmente, em 1970, após anos de campanha política, alguns cidadãos que haviam esposado a causa cigana conseguiram a aprovação pelo Parlamento da Lei dos Locais de Acampamento. Essa lei exigia que as várias localidades regularmente visitadas pelos ciganos construíssem locais para eles com água, esgotos e luz elétrica. Essa batalha, no entanto, só começou. Somente uma parcela de tais locais foram preparados e os ciganos ainda vão onde bem entendem e ainda são perseguidos. Em cada local que foi terminado há protestos contra "excesso" de ciganos, isto é, o número que excede a quota especificada. O presidente de um comitê de proprietários interessados no assunto preveniu contra os riscos que estes corriam caso os ciganos não fossem mantidos sob controle. "Eles podem esperar que seus filhos serão violentamente roubados de suas roupas e brinquedos, suas árvores e suas cercas sistematicamente derrubadas para se transformarem em lenha e para darem acesso a seus veículos em propriedades privadas e cavalos mal controlados serem soltos a pastar nos parques e jardins particulares", disse ele com grande indignação.

Os russos decidiram deixar de lado toda essa bobagem capitalista e lidar com os ciganos com sólidos princípios marxistas racionais. Revelaram que os ciganos estavam recebendo uma versão escrita da língua Romani, notando intencionalmente ser isso algo que os ciganos "não tinham em outros países." Além disso, foi acrescentado, os ciganos iam ter suas próprias escolas; uma imprensa, sem falar em literatura e teatro, estava sendo rapidamente formada. Em seguida veio de Moscou o fátuo anúncio de que os ciganos na União Soviética haviam abandonado seus hábitos migratórios e estavam "tomando parte na construção de fazendas coletivas" e "trabalhando como membros das cooperativas." É de se perguntar. Saberão os russos alguma coisa que ninguém mais sabe? A resposta, alguns anos mais tarde, veio em outro comentário oriundo de Moscou, agora marcantemente muito menos efusivo, que declarava que todos os ciganos que recusassem se dedicar a um "trabalho socialmente útil" estavam agora sujeitos a prisão por cinco anos em campos "corretivos" de trabalho. Havia nesse decreto um tom magoado, irascível. Os ciganos, parece, haviam insistido em prosseguir com a "sua maneira de vida errante, parasitária" e, além disso, freqüentemente cometiam crimes apesar dos esforços governamentais de dar-lhes alojamentos. Um desses alojamentos deve ter abrigado os mesmos ciganos que estiveram no malfadado projeto habitacional francês. Os ciganos russos, nesse caso, foram conduzidos às suas novas instalações pouco antes do início do inverno. Na primavera, quando as autoridades foram ao alojamento talvez para sugerir a mudança para uma fazenda coletiva durante o verão, tudo o que encontraram foram os muros exteriores e parte do assoalho. Tudo o mais, movível ou combustível, estava faltando, assim como os ciganos. Durante décadas os soviéticos têm tido leis severas nos livros que condenam o nomadismo; segundo as últimas notícias, desistiram de fazê-las cumprir.

Somente em partes da Iugoslávia e Tcheco-Eslováquia, onde os ciganos têm possivelmente residido há mais tempo e onde o seu estilo de vida e suas antigas ocupações como ferreiros e comerciantes de cavalos não são tão diferentes das dos habitantes das áreas circunvizinhas, foram eles capazes de manter a sua própria identidade participando até certo ponto dos assuntos políticos e sociais da comunidade. Alguns observadores da vida dos ciganos crêem ver um novo espírito nacional Romani, o despertar de uma alma coletiva, organizada. Entre eles encontra-se o inglês Grattan Puxo, que tomou a iniciativa na luta pela concessão de locais de acampamento na Inglaterra, e seu colega Donald Kenrick. Pedra angular nesse movimento nacionalista, citada por Puxo e Kenrick, foi a coroação em 1937, com muita pompa e circunstância, do "influente" chefe cigano polonês chamado Janusz Kwiek como Rei dos Ciganos pelo próprio arcebispo de Varsóvia. No seu discurso de coroação, "Janos I", como ele foi chamado, declarou que a restauração da dinastia cigana havia se realizado após um lapso de mil anos. Um dos pontos principais de sua futura plataforma era o estabelecimento de uma pátria cigana independente. Janos I disse que tinha em mente pedir a Mussolini a concessão de um território na África entre o que era então a Somália e a recentemente conquistada Etiópia, uma região que não é especialmente relacionada aos ciganos. No entanto, dizem Puxo e Kenrick, quem sabe o que poderia ter acontecido se as legiões de Hitler não tivessem invadido a região? A dificuldade é que nem reconhecidos técnicos sobre os ciganos podem estar de acordo quanto a isso ou outros assuntos. De acordo com outra autoridade amplamente respeitada, Jan Yoors, um tranqüilo artista nascido na Bélgica e atualmente vivendo em Nova Iorque, que fugiu de casa com a idade de 12 anos e viveu com os ciganos durante muitos anos e que tem uma profunda amizade por eles, os ciganos são essencialmente permeáveis à organização, quer por eles próprios ou por outros e que o rei Janos 1, longe de ser "influente", era considerado uma pomposa piada pela maioria dos membros ciganos.

Alguns ciganólogos dizem que existem quatro tribos ou "raças" básicas do verdadeiro rom - que é a palavra cigana para cigano - os Lowara, os Tashurara, os Kalderasha e os Muchwaya. Mas ainda ai, outros técnicos dizem existir somente três e ainda outros que, num passe de mágica, determinam seis ou mais. Os próprios ciganos pouco se importam com tais distinções. São os cientistas sociais que se acham na obrigação de colocá-los num mosaico, mas com os ciganos as peças nunca se encaixam. Há talvez um fosso intransponível quanto a valores entre os ciganos e os gadje. Jan Yoors lembra-se que durante sua vida com os ciganos ouvira falar sobre um que era "milionário". Finalmente encontrou-o e descobriu um cidadão tão sujo quanto os demais que encontrara. Quando Yoors manifestou surpresa sobre tudo o que ouvira dizer quão rico o homem era, um amigo Romani pacientemente explicou que o cigano em questão era considerado um milionário não devido a que ele realmente possuísse tanto dinheiro mas porque o havia gasto.

Da mesma maneira, quando se pergunta a um cigano sobre as "raças" ou "nacionalidades" Romani, elè em geral fala delas não como elas podem ter sido no passado mas sempre no tempo -presente, como ciganos argentinos, por exemplo, ou mexicanos, canadenses, franceses, espanhóis, sérbios ou gregos. As nomenclaturas não significam essencialmente nada para um cigano. Na verdade, se você pergunta a ele o que é ele responderá com maior freqüência que é um "cigano húngaro" e é tudo, certo de haver instilado na mente do gadjo a imagem tranqüilizadora e inofensiva de um personagem de calças largas e botas tocando um violino loucamente. O cigano está filosoficamente satisfeito de existir num perpétuo presente. "Uma vela não é feita de cera", diz ele, mas é toda chama" - e é esse sentido de perpetuidade que o capacita a preservar sua identidade. É raro o cigano que possa falar de acontecimentos que ocorreram há até mesmo três gerações e, no entanto, está agudamente consciente de séculos de tradição, de ser um cigano. A sua lealdade mais intensa é para com o seu clã particular e, também aqui, os nomes em geral pouco significam. Os sobrenomes eram alguma coisa exigida pelas leis dos gadjos e muitos deles foram adquiridos ao acaso durante viagens migratórias, inicialmente adquiridos e depois modificados quer por questões de proteção ou talvez como conseqüência de pronúncia errada por algum guarda de fronteira quando uma tribo ia de um país a outro. Assim, Mihailovich na Rússia eventualmente tornou-se Mitchell na América. Algumas vezes o derivativo Romani será mantido. Uma tribo tomará o nome de um líder especialmente sábio ou poderoso. Nas sucessivas gerações tribais o nome original do líder seria simplesmente pluralizado e assim permaneceria até o aparecimento de outro líder poderoso que assumisse o seu lugar e que desse o seu nome à tribo. A tribo Frinkuleschti, que se estabeleceu em Nova Iorque e nos arredores durante alguns anos, foi assim chamada por causa do chefe cigano de nome Frinkulo. Quando perguntaram a um membro da tribo quem era Frinkulo, ele disse, "tudo o que sei é que era o avô do meu pai ou algo semelhante e meu pai disse-me que seu pai dissera que ele era o mais danado dos ciganos da Rússia."

O clã de Steve Tene, os Bimbos, foi em certa época chamado Bimbai, cujo significado perdeu-se no tempo. Quando hoje em dia se pergunta a ciganos o que significa "Bimbo", a resposta é, no entanto, sempre "durão" ou "temido" e uma vez que bimbo é uma palavra da gíria americana que esteve em voga há várias décadas e que significa um homem durão, é provável que ou o próprio avô de Steve, o Rei Tene Bimbo, que nasceu George Tene, o tenha adotado como nome de tribo, ou então um policial tendo-o prendido e tido dificuldade em pronunciar Bimbai, escreveu Bimbo e o avô, seguindo suas táticas terroristas, decidiu mantê-lo de modo a que todos compreendessem a mensagem,

Das quatro tribos ou nacionalidades, se de fato quatro é o número correto, pelo menos duas - os Kalderasha, que significa trabalhadores de cobre, e os Muchwava, de uma seção da Sérbia - são as predominantes nos Estados Unidos. Há os que pretendam estarem eles aqui desde os tempos coloniais. Mas a maioria deles começaram a penetrar no país nas décadas de 1860 e 70. A teoria geralmente aceita de sua chegada no hemisfério ocidental é de que a Espanha e Portugal, como parte de seus programas de deportação, os embarcaram nos séculos XVI e XVII para as colônias na América Latina, de onde eles encontraram seu caminho em direção ao Norte através da América Central e México. Há, por certo, muitas exceções. A mulher do Rei Tene, a Rainha Mary Bimbo, nasceu em Buenos Aires, Argentina, enquanto ele declarou seu local de nascimento como New Jersey numa grande quantidade de documentos, o que lhe dá uma certa credibilidade, mas a sua família era do Canadá, mas como chegaram lá é coisa que nenhum dos Bimbos parece saber.

Desde que os ciganos apareceram nos Estados Unidos, a única mudança identificável em seu modo de vida foi a de passarem a viajar de carro e "trailer" em vez de a cavalo e estrada de ferro e, embora a maioria deles movimente-se tão incessantemente quanto antes, atualmente o fazem em unidades familiares individuais e não mais em caravanas tribais. Praticamente, os ciganos ajustaram-se facilmente à América moderna, mas, ainda assim, observam antigos costumes como o marimay, em que um homem e sua família podem ser instantaneamente declarados "impuros", completos párias dentro da subcultura cigana, por uma mulher que rancorosamente levanta sua saia e mostra seus

órgãos genitais, devido a alguma ofensa, real ou imaginária, ou alguma rivalidade.

Existem inúmeras formas de marimay, com vários graus de gravidade, e os ciganos as encaram todas muito seriamente. Numa casa, uma mulher nunca pode passar diante de um homem ou entre dois homens, mas somente em torno deles. Ela deve sempre servir um homem por detrás, não podendo nunca debruçar-se sobre ele para passar um prato. Quando sentada, se estiver usando um vestido comum, deve cobrir as pernas com um casaco ou um cobertor. Se um cigano vai ao banheiro, deve ser acompanhado por outro cigano que permanece do lado de fora, quer haja ou não fechadura, para impedir a entrada, acidental ou proposital, de um membro do sexo oposto. Uma mulher é considerada impura da cintura para baixo e, no caso de um cigano tocar: a saia da mulher e depois comer sem antes lavar as mãos, ele se torna marimay. Do mesmo modo, se um cigano, por exemplo, assoa o nariz e come sem lavar as mãos, ele ou ela é marimay. Os utensílios de cozinhar e comer também devem ser limpos num lugar diferente daquele em que as pessoas se lavam. Se um cigano, inadvertidamente, lava as mãos numa pia destinada a roupa e panelas, ele é marimay. E inversamente, se uma jovem distraidamente lava uma colher numa bacia usada para abluções corporais e, pior ainda, se coloca a colher numa gaveta com outros utensílios, tudo o que se encontra na gaveta deve ser jogado fora imediatamente. O marimay, dependendo da sua gravidade, só pode ser removido por meio de um processo complicado e demorado, com uma possível convocação de um conselho, o kris, para examinar o assunto e o perdão dos que estiveram presentes à transgressão e frequentemente uma visita a uma igreja pelo grupo contrito, o qual deve acender velas, rezar e jurar que, qualquer que tenha sido o delito, foi feito sem intenção maliciosa.

Embora pareçam bobos, a maioria das formas de marimay, que invariavelmente centralizam-se em sexo e higiene, datam da época centenária da vida dos ciganos nas caravanas e são oriundas da necessidade e desejo de preservar alguma aparência de ordem social. Toda a trapalhada sobre a limpeza dos utensílios de cozinha e de higiene pessoal originam-se do tempo em que uma caravana, acampando próximo a um rio, determinaria vários de seus trechos para utilização específica. A área mais próxima da fonte seria reservada para beber e cozinhar; em seguida vinha o local de banho, um para a lavagem dos pratos e, então, sucessivamente, lugares para retirar água para os cavalos, para a lavagem geral e finalmente para a limpeza das roupas das mulheres menstruadas. A promiscuidade sexual em aposentos tão próximos era um perigo sempre existente e as proibições referentes às mulheres eram destinadas a determinar em torno delas um círculo que previa os mínimos detalhes da vida diária. Quanto ao marimay de levantarem suas saias, tinha por fim dar-lhes uma proteção adicional no caso de serem atacadas, uma vez que então, como agora, a pior punição que um cigano pode imaginar é o ser posto no ostracismo pela sua própria tribo.

Existem ainda outros tabus. Quando uma cigana tem filhos gêmeos, um deles será imediatamente vendido a outra família devido ao mau olhar que recairia sobre ela no caso de criar os dois. Caso isso pareça irracional num povo que explora as superstições dos outros, a única coisa realmente contraditória acerca dos ciganos seria uma falta de contradição. Conquanto aparentem uma existência romântica, despreocupada, ela é na verdade freqüentemente cruel com uma disciplina rigidamente imposta. De um lado, os ciganos reclamam com razão o fato de serem um povo perseguido; do outro lado, permanecem obstinadamente apartados do resto da comunidade e são eles mesmos cheios de preconceitos, sobretudo contra pretos. O domínio masculino é absoluto, no entanto as mulheres realizam praticamente todo o trabalho e ganham a maior parte do dinheiro. Os ciganos dizem invejar o mundo dos gadjo, mas secretamente o desprezam.

Afinal de contas, eles parecem ter razão na sua opinião. Não somente ignoram as coações, legais ou outras, que pesam sobre os cidadãos comuns, mas saem-se muito bem. Após um sem número de anos, uma das maiores fraudes ciganas, o boojo (também pronunciado incorretamente boujour) continua a dar resultado com os crédulos gadje) na verdade, com o advento de filmes e livros como O Exorcista e outras formas de revivicação que o diabo vem experimentando recentemente, os negócios vão melhores do que nunca.

Um boojo tem uma estrutura tão formal quanto uma tragédia grega. Ele começa habitualmente num local de prever o futuro, a ofisa. Qualquer pessoa que vai numa ofisa, no entanto, consegue uma dose muito pequena de futuro pelos dois ou cinco dólares que são automaticamente cobrados hoje em dia. O que a mulher boojo está à procura é aquela pessoa, uma entre cem ou quinhentas a quem possa explorar. Ela pode dar-se ao luxo de ser paciente. Os arquivos policiais estão repletos de registros de queixas de milhares de dólares, mas a evidência sugere que na grande maioria dos casos não são apresentadas queixas porque a vítima tem vergonha ou, inacreditavelmente, permanece acreditando. Uma senhora profundamente perturbada foi finalmente à polícia após lhe estorquirem 32 mil dólares, não para se queixar de que havia sido lograda mas porque a maldição pela qual havia pago para ser afastada ainda pairava sobre a sua cabeça.

A mulher boojo procura investigar o mais rapidamente possível qual a razão que levou a vítima em potencial a penetrar em seu estabelecimento, "Vejo que é uma boa pessoa", dirá ela talvez. "É, honesta e sorri exteriormente, mas no fundo de você mesma não sorri como deveria. Talvez não consiga dormir à noite, virando de um lado para o outro. Alguma coisa a está preocupando, é certo." Poucas pessoas, como ela bem o sabe, a contradirão. A mulher boojo suspira com um suspiro de alguém que já viu tudo e que sabe tudo e então dirá: "Ouça-me. Faça dois pedidos. Um deles guarde para você e diga-me o outro. Mas não deseje dinheiro porque dinheiro não é importante. É a saúde e a felicidade que importam."

A esperança é de que o desejo manifestado implique em alguma crise pessoal de alguma espécie, preferentemente um parente irremediavelmente doente, um filho retardado, um problema conjugal atormentador, um investimento fracassado. Cercada por todas as armadilhas de um vidente - sala escura, velas, algumas tapeçarias estrategicamente dependuradas, quadros da Sagrada Família nas paredes, um mapa astrológico, cartas Tarot, livros sobre feitiçaria - a mulher boojo ouve com simpatia e, finalmente, quando o momento psicológico adequado foi atingido, sugere que a desventura exposta pode ter ocorrido devido a dinheiro amaldiçoado que a vítima economizou, possivelmente numa conta corrente. Não tem importância, diz ela, se o dinheiro original foi gasto; este é o problema com uma maldição, ela simplesmente passa para qualquer outro o dinheiro que a pessoa tenha em mãos. Em todo caso, deve ser feito um teste e ela diz à vítima para voltar no dia seguinte com um certo número de notas, em geral nove, de diferentes valores. Se o dinheiro não está contaminado, serão feitos outros testes. Se está, ela fará imediatamente o que puder para afastar a maldição.

O único teste, naturalmente, é o de ver se a vítima segue as instruções, uma vez que o dinheiro sempre estará amaldiçoado. Existem vários métodos que uma mulher boojo emprega para prová-lo. Um dos antigos recursos, não mais muito em uso, era o de dizer à vítima para trazer, juntamente com o dinheiro, uma galinha viva. A mulher boojo tomaria a galinha em seus braços e, subrepticiamente, apertaria uma veia veia importante localizada logo abaixo do pescoço, pedindo uma nota de dinheiro. Ela abanaria a nota em círculo em torno da galinha, invocando vários espíritos estranhos, tocando o animal, aqui e ali, com ela. Enquanto isso os seus dedos comprimiriam a veia; haveria um breve grasnar ou um rápido esvoaçar de penas antes que ela e a vítima se encontrassem com uma galinha misteriosa e dramaticamente morta. Devido a dificuldade em ter-se uma galinha viva hoje em dia, especialmente nas cidades, o truque foi em grande parte abandonado. No entanto, foi abandonado relutantemente porque até mesmo no passado exigia considerável esforço por parte da vítima conseguir e carregar uma galinha cacarejante a um ofisa e, se a determinação era executada, a mulher boojo tinha possibilidade de avaliar a influência potencial que poderia aplicar ao seu alvo.

Outro velho ardil, a rotina da "água fervendo", permanece em uso. A mulher boojo pega as notas de dinheiro e as prende com um elástico em torno de um copo a três quartos cheio de água e em cima dele estica um pedaço de fazenda apertada firmemente com um segundo elástico. A presença da maldição se evidenciará, diz ela, caso a água ferva sem emprego de fogo. Ao dizer isso, ela vira rapidamente o copo num prato e o ar deslocado dentro dele impressionantemente fervilha. Outro truque é o de fazer com que a vítima traga um ovo juntamente com o dinheiro. A mulher boojo quebra o ovo num prato e, com rápido e hábil movimento da mão, coloca uma pequena figura de uma cabeça de demônio ou um fio de cabelo na gema, coisas bastante surpreendentes de serem encontradas. Um outro estratagema é o de pedir uma nota de 1 dólar à nervosa vitima, dobrá-la cuidadosamente e fazer de conta que a deixou cair num copo com água. Mas a mulher boojo substituiu a nota por outra, igualmente dobrada, contendo corante. Depois, tanto ela como a vítima contemplam silenciosamente a água que lentamente fica cor de sangue. A mulher então devolve apressadamente o dinheiro como que temerosa de ficar também contaminada. Agora compete à vítima perguntar o que deve ser feito. Toda mulher boojo age intuitivamente, confiando em seu instinto e experiência para decidir o que é possível ou provável. Ela pode perceber que alguém que se transviou em sua ofisa precisa ser ainda mais convencida antes de sucumbir ao seu controle.

Pedirá à vítima uma nota de 5 dólares, fazendo de conta que a pôs dentro de um pedaço de fazenda mas, na realidade, substituindo-a por uma de 10 dólares. Ela cose a fazenda, geralmente um lenço, e reza por um bom futuro da vítima, pedindo que o seu dinheiro duplique como prova. Dá então o lenço à vítima instruindo-a para dormir com ele embaixo do travesseiro durante três noites antes de abri-lo. Existem na polícia fichas de casos após casos de vítimas que foram assim enganadas. Vão para casa, esperam três dias e então olham dentro do lenço. Encontram a nota magicamente duplicada e correm para a casa da mulher boojo com todo o dinheiro em espécie que têm, para descobrir desta vez que o lenço não contém mais nada além de pedaços de papel.

Algumas vezes, se a vítima aparenta ter recursos limitados, a mulher boojo pode decidir-se pela compra de velas "sagradas" - custando 25, 50 ou 100 dólares - que devem ser acesas enquanto reza para que seja afastada a maldição. Ou pode mencionar uma quantia necessária a quebrar o encantamento do diabo, soma essa que sabe não dispor a vítima de uma só vez, mas que ela, num aparente gesto de generosidade, oferece-se para conseguir emprestada em sua "igreja" e que pode ser paga em prestações semanais. Nada a desconcerta. Se a pessoa que vem pagando as prestações queixa-se de continuar sem sorte, responderá que isso é porque a vítima duvidou interiormente do poder dela e que, em conseqüência, tudo vai ficar duplamente mais difícil de arranjar e daí em diante os pagamentos também duplicarão.

Há, por certo, ocasiões em que uma mulher boojo não precisa fazer praticamente nada para dar um grande golpe. Em Boston uma viúva entrou numa ofisa de um membro do clã Bimbo e revelou que seu marido recém-falecido havia deixado uma apólice de seguro de 20 mil dólares, metade dos quais para ela e metade para seu único filho. O problema é que o filho estava metido com uma moça ordinária que não valia nem um minuto do tempo dele, que ela estava era atrás da sua herança. A viúva, de acordo com sua eventual queixa à policia, disse que ela mesma não se incomodava com o dinheiro mas que precisava de conselho para como fazer a fim de terminar o romance do filho. A mulher boojo considerou um pouco o problema e disse que um inimigo do falecido havia, posto uma praga nele e que esta havia passado para o dinheiro do seguro. A única solução era a viúva enterrar o dinheiro no túmulo do marido.

"Quer dizer que eu tenho de ir ao cemitério com uma enxada?", perguntou a viúva.

"Sim, minha cara, e você terá de fazê-lo à meia-noite", disse a mulher boojo. "Ao soar das doze, compreende o que quero dizer? Se quer tirar a maldição e salvar o seu filho, isto é o que você deve fazer. Em geral isso tem de ser feito nua".

"Ó, meu Deus", lembra-se a viúva de ter dito, "não poderia fazer isso."

A mulher boojo replicou solenemente que embora isso fosse uma coisa difícil de se pedir a alguém, nesse caso ela agiria como representante da viúva, e a viúva agradecida deu-lhe o dinheiro.

É a idéia de conseguir que alguém se desfaça de uma quantidade substancial de dinheiro o que aquece o coração de uma mulher boojo. Em geral são necessárias algumas sessões de reza para verificar quanto uma vítima pôs de lado numa contacorrente ou numa caixa de sapatos. Uma boa boojo não se preocupa com o tempo; aplica à sua técnica a mesma perseverança de um surfista à espera de uma crista de onda para nela subir. Em todo o decorrer da coisa, só para ter certeza, a mulher boojo faz com que o trouxa realize algum ato de obediência física, como ajoelhar-se e beijar os pés dela. Isso é, em parte, para reforçar o controle psicológico, mas também para se certificar de que um policial não penetrou no local uma vez que é artigo de fé entre os ciganos que nenhum policial, qualquer que seja o disfarce que tenha ele ou ela dotado, não se submeterá a uma tal indignidade.

Uma vez que foi instilada na vítima a idéia de que é o dinheiro a fonte do seu problema, a coisa imediata é fazer com que o traga à ofisa. Conquanto homens e mulheres tenham sido enganados, a trapaça boojo tem desfrutado de maior sucesso junto às mulheres, principalmente às de meia idade ou mais velhas. Um policial gravou secretamente uma sessão numa ofisa em que uma boojo estava chegando ao estágio final. A vítima era uma mulher de quase 50 anos que estava convencida de que "alguma coisa" estava crescendo dentro dela.

"É como eu pensava", disse a mulher boojo. "Aquele dinheiro que tem no banco tem uma maldição e é por isso que tem essa coisa em você. Tem de ir ao banco e retirar o dinheiro e eu tenho de segurá-lo e pô-lo em contato com os espíritos bons e pedir-lhes para retirarem a praga."

"Mas eu só tenho esse dinheiro. O que acontecerá se não o trouxer?"

"Ouça, disse a mulher boojo, "para mim não faz diferença o que você fizer. Não vou lucrar nada com isso. Não vou perder nada. Estou fazendo o que posso, os espíritos estão se servindo de mim. Você faz a sua parte e os espíritos retirarão a maldição de sobre o dinheiro e isso que você tem aí dentro sairá. Se você não faz o que deve, não sou responsável pelo que aconteça, você sabe. Não tenho nada crescendo dentro de mim. Estou só procurando ajudá-la."

A mulher boojo descreveu vivamente o que aconteceria à vítima se a "coisa" dentro dela continuasse a crescer, como os seus cabelos e dentes cairiam, como o seu corpo ficaria cheio de feridas, como o seu coração começaria a congelar e a respiração se tornaria cada vez mais difícil, como o coração bateria descompassadamente e como começaria a dor, devagar no início e depois cada vez mais depressa até que ela não suportaria mais e suplicaria para morrer, mas a morte não viria rapidamente, seria uma coisa lenta, arrastante, agonizante até o último momento.

"Tenho de retirar todo o dinheiro que possuo?" perguntou a vítima.

"Até o último níquel", disse a mulher boojo. "Se não retira todo o dinheiro, tudo isto é o mesmo que nada. A maldição simplesmente fica com o dinheiro que deixar lá, compreende?" Para facilitar, aconselhou sua vítima a retirar o dinheiro em notas de maior valor - "afinal", disse ela, "você não quer perder algum" - e também preveniu-a para não revelar o motivo da retirada, para dizer ser "confidencial" caso alguém indagasse. "Diga-lhes que está fazendo um investimento. Afinal, quem é que tem de se meter?", disseu à mulher boojo.

Quando o dinheiro é trazido à ofisa, um movimento de mãos e conversa realiza-se ao mesmo tempo. Objeto de suma importância é o lenço em que o dinheiro é colocado. Ou o dinheiro é substituído por notas falsas, o verdadeiro desaparecendo na blusa da mulher ou em um dos bolsos de sua saia, e o lenço é cosido enquanto a vítima observa; ou então o lenço é cosido com o dinheiro real ainda dentro dele e, em momento oportuno substituído por outro que contém dinheiro falso ou pedaços de papel. Tudo isso é acompanhado por muitos movimentos das mãos, dilaceração de roupa e até mesmo rolar pelo chão e encantações de um decibel cada vez mais alto. Freqüentemente, enquanto a mulher boojo está se agitando pela sala, convida sua vítima a juntar-se a ela em suas orações, a ajoelhar-se, a fechar os olhos e a segurar-lhe a mão, dizendo, "reze comigo esta é uma maldição poderosa e precisamos de toda ajuda. Reze com suas próprias palavras, você sabe o que quero dizer, para que tenhamos a resposta desejada. "É então, no meio de toda essa confusão e de quase histérica dança, que a mulher boojo, caso tenha escolhido a técnica da troca de lenços, fará a substituição.

Uma vez feito o exorcismo, a vítima é avisada a não abrir o lenço senão seis meses ou um ano depois porque, no caso contrário, a maldição voltará. O prazo dado freqüentemente depende de quantos outros ingénuos a mulher boojo tem em sua agenda, uma vez que uma ofisa pode ser desmontada e a mulher boojo fugir da cidade dentro de meia hora. Há ainda uma outra maneira de amarrar as coisas. Se a mulher boojo acredita dominar completamente a situação, que o seu domínio sobre a vítima é total, declarará que apesar de tudo que tentou a maldição é por demais forte; o dinheiro no lenço deve ser queimado e ela faz com que a vítima o queime diante dela. Essa "queima", como as ciganas chamam, tem a vantagem de eliminar praticamente a possibilidade da troca ser algum dia descoberta e também permite que a mulher boojo permaneça em contato com a vítima para mais conselho - e mais dinheiro. O tempo recorde conhecido nos Estados Unidos de manter alguém "amarrado" é de 16 anos e, de acordo com o Departamento de Polícia de Nova Iorque, a maior soma jamais registrada foi de 118,273 dólares, que incluiu a queima do dinheiro. Embora desagrade à tribo Bimbo, que gosta de achar serem o máximo no boojo e que insinuam sombria, provável e corretamente que houve somas muito maiores não denunciadas, a mulher boojo deste caso era de outra tribo cigana, os Adams. Seu nome era Volga Adams, também conhecida como Mary Valda, Orga Morgan, Valda Johnson, Olga Adams, Olga Williams e Mary Adamo ou Adams.

A vítima era a Sra. Frances Friedman. Na ocasião, a senhora Friedman tinha 49 anos e vivia em Nova Iorque. Era uma mulher de pequena estatura, de cabelos castanho avermelhados, de aspecto ligeiramente hesitante e inseguro e que estava viúva há quase oito anos. Embora a senhora Friedman tivesse duas filhas, uma casada e com uma filha, ela era, segundo o admitiu, "muito só" e desejava encontrar um homem, preferivelmente mais moço. "Minha filha mais velha e o marido tinham morado comigo", diria ela mais tarde. "A filha deles nasceu na minha casa. Eles haviam se mudado para fora da cidade." Sua outra filha, disse ela, havia acabado seus estudos e queria viver sozinha. "Senti-me quase não necessária e isso é uma coisa ruim para uma mulher."

Por volta de seis horas da tarde do dia 12 de setembro de 1956, como ela rememorou, a senhora Friedman, acompanhada pela sua irmã, deixou o escritório de um médico na rua Seventies East, em Manhattan, e começou a caminhar em direção à Avenida Madison. Na altura do número 994 elas passaram diante de uma casa cigana. A senhora Friedman não vinha se sentindo bem, com um certo número de sintomas vagos que não podia identificar. Outras coisas a estavam também preocupando. Sua netinha tinha uma ferida que não cicatrizava e isso a fazia ficar inquieta, juntamente, com uma grave eczema de que uma de suas filhas padecia desde o nascimento. Conquanto desejasse ardentemente encontrar um homem, nunca conseguia um que "estivesse à altura das qualidades do meu marido" e, mais frustrante ainda e desconcertante, agia de maneira "fria" para com os homens em geral.

Assim, seguindo um impulso e ainda na companhia da sua irmã, entrou na loja para comprar um horóscopo. Estava desejosa de possuir um e embora já tivesse comprado horóscopos ocasionalmente antes, era a primeira vez que entrava numa loja cigana, testemunharia ela. Uma mulher cigana a quem a senhora Friedman mais tarde identificou como Volga Adams, mas que durante todo o seu relacionamento só conheceu como "Lillian" ou "Lil", disse às irmãs não ter horóscopos para vender mas ofereceu-se para ler-lhes a sorte. A sorte foi lida às irmãs separadamente. "Lillian" deu à irmã da senhora Friedman uma pequena penitência. Mas quando chegou a vez da senhora Friedman penetrar na parte posterior da ofisa separada por uma cortina, ela aparentemente, manifestou ansiedade suficiente para suscitar o interesse de "Lillian" que lhe disse para voltar no dia seguinte porque tinha "alguma coisa importante" a dizer-lhe. "Não me lembro de nada especial", disse a senhora Friedman ao tentar reconstituir a cena. "A não ser que o que ela me disse fez com que me lembrasse de coisas importantes, o que fez com que tivesse confiança nela e sentisse compreensão e simpatia".

Quando a senhora Friedman voltou à ofisa na manhã seguinte, revelou tudo o que a vinha atormentando, a sua imensa solidão, a ferida aberta da neta, o eczema da filha, a sua incapacidade de encontrar o homem certo. "Lillian" ouviu e alvitrou uma opinião que confirmou as piores suspeitas da senhora Friedman quanto a ela mesma, que estava possuída por um "demónio" que vinha causando tudo. Em todo o caso, "Lillian" disse-lhe que, como um teste, teria que "chocar o diabo e instruiu-a a pegar um ovo, enrolá-lo num lenço velho do seu marido, colocá-lo na véspera no seu sapato esquerdo e então trazê-lo à ofisa para inspeção dentro de 24 horas. A senhora Friedman procedeu segundo as instruções e ficou ofegante quando viu "Lillian" quebrar o ovo que ela pensava ter trazido e ver dentro dele, no lugar da gema, uma pequena cabeça de demônio de cor verde amarelada, com minúsculos chifres, sobrancelhas e pequeno cavanhaque pretos. Até mesmo ao testemunhar a senhora Friedman, quando recordou esse momento, mostrou-se visivelmente abalada.

"Lillian" deixou bem claro que estava tão preocupada com a situação da senhora Friedman que não lhe ia cobrar nada pelas consultas. Após o episódio com a cabeça do demônio, pegou uma nota de 1 dólar e com um gesto largo e algumas encantações partiu-a ao meio, benzeu as duas metades com um pequeno crucifixo e aparentemente embrulhou-as num lenço que pregou dentro do "soutien' da senhora Friedman. Ordenou-lhe, então, que conservasse o lenço durante três dias e depois voltasse com ele. "Não o tire", avisou ela. "Se o dólar estiver inteiro novamente na próxima visita, Deus está conosco."

Quando a senhora Friedman foi à ofisa pela quarta vez e "Lillian" abriu o lenço, a nota estava naturalmente inteira. Já então "Lillian" não podia fazer nada de ruim, segundo a senhora Friedman, e ela ouviu avidamente a explicação do significado da nota rasgada que "Deus tinha tornado inteira". Significava, disse "Lillian", que todo o mal na senhora Friedman havia sido causado por dinheiro amaldiçoado e ofereceu-se para limpá-lo. A senhora Friedman imediatamente revelou sua situação financeira. Acontece que desfrutava de uma situação relativamente boa. Entre outras coisas, seu falecido marido havia lhe deixado um terço do interesse numa companhia de confecção de roupas e que havia sido subseqüentemente vendida. Sua parte fora investida em ações do governo no valor de 87,500 dólares. Ela também tinha cinco contas correntes de 9 mil, 5 mil, 750, 672 mil dólares, assim como uma sexta conta que usava para suas despesas de manutenção. "Lillian" disse-lhe para retirar o dinheiro de todas as contas, exceto a que usava para as despesas - o problema, disse ela, era somente com o dinheiro "parado lá" - e colocar o dinheiro vivo no seu cofre, mas para empilhar as notas em forma de cruz. Mais uma vez a senhora Friedman procedeu de acordo com as instruções.

Ela continuou a ter consultas com "Lillian" na primeira ofisa e mais tarde noutra mais próxima do centro, no número 1350 da Madison Avenue. Pouco depois a senhora Friedman colocou o dinheiro no cofre. "Lillian" conseguiu uma inesperada recompensa. A ferida aberta da neta da senhora Friedman desapareceu bruscamente. Em gratidão, ela deu a "Lillian" algumas peças de "lingerie" e esta, por sua vez, presenteou-a com um broche de boa-sorte que alegou ter passado de geração em geração na sua tribo. Mas quando nada mais na vida da senhora Friedman melhorou, "Lillian" disse que devia ser o dinheiro investido nas ações e que ela devia se desfazer das mesmas imediatamente e o dinheiro apurado guardado no cofre em forma de outra cruz. Cruzes duplas, disse "Lillian", poderiam dar resultado. A senhora Friedman vendeu as ações pelo seu valor corrente - 78,073 dólares - mas teve de alugar outro cofre para guardar todo o dinheiro.

O número, do primeiro cofre era 1233 e o do novo era 3123 e a senhora Friedman relembraria que pensara que o fato de ambos serem o mesmo número, embora em seqüência diferente, era um bom presságio.

No entanto, a filha da senhora Friedman continuava a sofrer de eczema e o homem dos seus sonhos ainda não se materializara. "Lillian" disse-lhe que era necessário tomar medidas drásticas e que precisava trazer todo o dinheiro à ofisa, juntamente com uma galinha viva, para um exorcismo final. A senhora Friedman, segundo o seu testemunho, nunca questionou acerca do dinheiro mas relutou quanto à galinha e "Lillian" disse que ela mesma forneceria uma.

No dia 17 ou 18 de outubro, a senhora Friedman não podia se lembrar, ela chegou à ofisa com o dinheiro. Nos fundos notou dois novos itens - uma galinha correndo e um incinerador. Ele deu o dinheiro a "Lillian", que o pôs numa bolsa, e essa foi a última vez que a senhora Friedman o viu. "Lillian" pegou a galinha, manteve-a firmemente e enfiou sua cabeça na bolsa. A galinha morreu imediatamente e "Lillian" a jogou aos pés da senhora Friedman estupefata, gritando que o dinheiro amaldiçoado havia matado a galinha e que não havia outra alternativa senão queimá-lo. E ao dizer isso, a senhora Friedman a viu jogar a bolsa, supostamente contendo 108,273 dólares no incinerador. Poucos momentos depois as chamas começaram a sair dele. Apareceu outra cigana que pôs um bastão no incinerador e que começou a mexer vigorosamente. A fumaça volteava por toda a ofisa e "Lillian", ainda gritando que tinha de queimar o dinheiro para acabar com o diabo, começou a abrir as janelas.

A senhora Friedman ficou sem fala, mas a queima do dinheiro não tinha acontecido como uma surpresa total; "Lillian" havia mencionado a possibilidade disso acontecer. "O dinheiro era a causa do mal", disse a senhora Friedman. "Eu havia esperado contra toda esperança, até o dia em que o levei lá, que não tivesse de ser queimado. Talvez fosse uma esperança louca, mas eu esperava". A senhora Friedman tentou explicar: "Eu acreditava na capacidade de "Lil" ajudar-me - contra aquilo que era chamado de mau em mim e que significava estar eu prejudicando minha neta, minha filha, com aquilo que tinham, e que também significava a frieza que eu tinha para com os homens. Foi por isso que eu o dei a ela. O dinheiro era parte do mal... "

Depois que tudo serenou na ofisa, "Lillian" sugeriu que a senhora Friedman saísse um pouco da cidade e fosse para a montanha para "tomar um pouco de ar fresco" e que ela mesma ia para fora durante algum tempo, mas que naturalmente rezaria pela senhora Friedman. Esta aceitou a sugestão e passou cerca de duas semanas em Grossinger, um local muito conhecido em Catskills ao Norte de New York City. Quando de sua volta ao apartamento no Upper West Side de Manhattan, testemunhou a senhora Friedman, recebeu vários telefonemas de "Lillian", inclusive uma de Tueson, Arizona, em meados de dezembro durante a qual ela lhe disse que estava lhe enviando uma carteira como presente de Natal. A senhora Friedman recebeu a carteira, mas não soube mais notícias da mulher boojo até julho de 1957, quando ela telefonou dizendo que estava voltando a Nova Iorque. As duas mulheres encontraram-se no Central Park e quando "Lillian" perguntou como ela estava a senhora Friedman respondeu que ainda estava na mesma. "Lillian" então explicou que a quantia original que a senhora Friedman dera não estava "numericamente correta" e que era por isso que estava tendo tal dificuldade em ajudá-lo. O diabo ainda estava grudado a ela devido ao dinheiro, mas que outros dez mil dólares deveriam resolver tudo. "Lillian" garantiu à senhora Friedman que dessa vez não seria necessário queimar o dinheiro; ela rezaria sobre ele para livrá-la da maldição.

No dia 6 de agosto de 1957 a senhora Friedman levou os dez mil dólares adicionais a um hotel no West Side onde "Lillian" estava hospedada, o Park Plaza. Durante todo o ano de 1958 e nos seis primeiros meses de 1959, "Lillian" telefonou à senhora Friedman. No dia 15 de abril de 1959 "Lillian" telefonou de Los Angeles e disse que não havia nada mais a fazer senão destruir os dez mil dólares que, presumivelmente, vinha carregando com ela. Pela primeira vez a senhora Friedman objetou. Estava ficando sem dinheiro, disse ela, e precisava dos dez mil, amaldiçoados ou não. "Lillian" procurou convencê-la, mas quando a senhora Friedman tornou-se cada vez mais insistente disse que devolveria ao menos parte do dinheiro quando viesse a Nova Iorque em setembro. A visita de setembro nunca se efetuou.

Ao invés disso a senhora Friedman recebeu outra chamada de "Lillian" que lhe disse estar em Birmingham, Alabama, e que queria que a senhora Friedman a fosse encontrar lá. A senhora Friedman respondeu que isso era longe demais para ela. "Lillian" então sugeriu Washington, mas a senhora Friedman insistiu em Nova Iorque e "Lillian" recusou.

Finalmente, a senhora Friedman encarou a verdade que há meses a vinha atormentando. Na verdade, quando entregara os últimos dez mil dólares, havia anotado os números de série das notas, embora isso pouco tenha adiantado. Não somente a senhora Friedman tinha de confrontar o fato de que fora enganada, mas também a humilhação pública que sabia por que teria de passar - a espécie de vergonha com que a mulher boojo conta para manter calada a sua vítima.

No dia 9 de setembro de 1959, a senhora Friedman foi ao seu distrito policial e acabou na presença do detetive Allen Gore, que era então o especialista em ciganos do Departamento de Polícia. A senhora Friedman esclareceu um mistério que há anos o vinha exasperando. Durante todo o outono de 1956 Gore havia ouvido rumores sobre uma mulher boojo que estava dando um grande golpe em Nova Iorque, mas não lhe tinha sido possível reunir os detalhes até que a senhora Friedman sentou-se à sua mesa. Gore ouviu sua história e mostrou-lhe cerca de cem retratos de mulheres boojo antes que ela reconhecesse "Lillian", um novo nome que Gore podia adicionar a outros de Volga Adams, com quarenta e dois anos, que havia sido detida e multada por furto e por acusações de prever o futuro três vezes em Nova York City, uma em Cedar Rapids, lowa, e uma em Salinas, Califórnia, e que havia sido detida mas que tinha vencido acusações semelhantes em Fresno, Califórnia, novamente em Nova Iorque em Worcester, Massachusetts, entre outro lugares. No dia 23 de setembro, Volga Adams começou a ser procurada oficialmente pelo Departamento de Polícia de Nova Iorque por haver subtraído à senhora Friedman $118,273, e Gore, com a ajuda do FBI, localizou-o onde ela havia chamado a senhora Friedman pela última vez, em Birmingham. Volga Adams recusou-se a ser extradiada sob a alegação de que não estava em Nova Iorque quando da alegada extorsão e Gore e a senhora Friedman viajaram para o Alabama para testemunhar.

O processo parecia correr normalmente até que Volga Adams trocou bruscamente para novos advogados que, como o promotor do distrito de Manhattan soube, supostamente tinham altos contatos políticos no Estado, e sua extradição foi negada.

Isso parecia ter encerrado o caso, mas, devido à soma de dinheiro envolvida no caso, juntamente com alguns telefonemas zombeteiros de Birmingham feitos por George Adams, o marido de Volga, dizendo que Gore nunca "pegaria" sua mulher, o detetive continuou a vigiar Volga Adams. Sua tenacidade foi recompensada no início da primavera de 1961, quando recebeu informação de que fora vista na área de Miami. Ela foi presa e uma nova série de audiências com fins de extradição começaram. Arrastaram-se durante mais de cinco meses enquanto Volga Adams permaneceu em custódia. Gore e a senhora Friedman foram à Flórida para testemunhar novamente e a defesa da mulher boojo foi a mesma que em Alabama. Declarou que não havia estado em Nova Iorque quando os crimes de que era acusada ocorreram. Uma mulher cigana que se identificou como Lillian Lee de Roanoke, Virgínia, jurou ser ela a ocupante da ofisa de número 994 da Avenida Madison em que a senhora Friedman entrara pela primeira vez em setembro de 1956 e que "Mary" Adams, como Volga era também conhecida, nunca estivera lá. Testificou ainda haver lido a sorte da senhora Friedman por quinze dólares e nunca mais a ter revisto. Duas outras ciganas, Catherine Uwanowich, que disse ser de Tarboro, North Carolina, e Duda Adams, de Chicago, afirmaram serem elas quem estiveram na ofisa do número 135O da Avenida Madison e que "Volga" nunca tinha estado no local. Estas duas mulheres reconheceram terem feito alguma "leitura" para a senhora Friedman, mas como Duda Adams descreveu-as: "Não era do tipo pessoal ou qualquer outra coisa. Ela costuma vir e provavelmente deu-nos cinco, dez ou quinze dólares para ler para ela. Ela disse sentir-se sozinha e querer encontrar um homem".

Houve uma nova relevação nas audiências de extradição na Flórida. George, o marido de Volga, havia sido o locatário das duas ofisas. A da Avenida Madison havia sido alugada por ele para vendas a atacado, sob o nome de "Presentes, Novidades e Cerâmicas Pan-Americana". A outra, confessou ele, era "do outro lado da rua da Academia de Polícia", como se isso lhe desse legitimidade. Ele referia-se a um depósito de armas, já demolido, em que a tropa de polícia montada aquartelava seus cavalos. George Adams jurou que por ocasião da pretendida queima de dinheiro em outubro de 1956, ele e sua mulher estavam em Arkansas e que em agosto de 1957, quando a senhora Friedman alegara ter entregue os dez mil dólares mais, eles residiam no Mississipi. O fato do seu nome aparecer nos contratos, declarou Adams, não queria dizer nada uma vez que ele ganhava seu sustento como "agente de locação" para ciganos. "Alugo lojas e várias casas de chá para diversos ciganos que não têm suficientes referências para atender às exigências de aluguel na cidade de Nova Iorque", disse ele.

Embora a extradição tenha sido negada no Alabama, foi concedida na Flórida e ela foi levada para Nova Iorque para julgamento. Após vários adiamentos, este iniciou-se no dia 23 de fevereiro de 1962.

O promotor público, Burton Roberts, em determinado momento do julgamento fez com que comparecesse um mágico profissional que repetiria todos os truques que a senhora Friedman achara tão miraculosos. Em preparação à burla da cabeça de demónio no ovo, alegadamente praticada por Volga Adams, o detetive Gore executou a tarefa de esborrachar uma dúzia de ovos e deles retirar as gemas, o que o deixou algo nauseado. "Encontrei uma gema dupla", disse ele aos repórteres, "pensei que ia morrer".

Mas a defesa, preocupada com o efeito que uma real demonstração pudesse produzir no júri, concordou em que esses "truques", como sarcasticamente o disse um advogado da defesa, não tinham origem sobrenatural e assim Roberts foi forçado a descrever ao invés de mostrar dramaticamente que a habilidade manual era responsável pela cabeça de demónio como essa também era responsável pela união da nota rasgada, como a galinha podia ser morta e, também como essa mesma habilidade estava em causa na troca da bolsa com o dinheiro, quer trocando-a por outra com pedaços de papéis no momento de jogar ao fogo ou, ainda, como a bolsa contendo o dinheiro podia na verdade ser jogada no incinerador e a fumaça simulada de um fogo inexistente pela mistura de ácido clorídrato com amonia. A defesa argüiu, como sempre, que conquanto a senhora Friedman pudesse ter sido enganada por uma cigana, Volga não era quem o fizera. Volga Adams, um de seus advogados argumentou, era "simplesmente uma insignificante cigana, uma tiradora de sorte, não tendo a classe de alguém capaz de roubar mais de cem mil dólares". Desde o dia em que a senhora Friedman e sua irmã haviam estado na ofisa, Volga ou "Lillian" havia perdido muitos quilos e a irmã da senhora Friedman foi incapaz de fazer uma identificação positiva. Outro advogado da defesa pôs em dúvida a sanidade mental da senhora Friedman e perguntou se alguma vez ela sofrera algum ferimento na cabeça. Durante todo o decorrer do julgamento os espectadores no tribunal catucavam-se, tendo-se ouvido alguns dizerem "Como pôde ela dar todo aquele dinheiro? Como é possível ter ela caído numa coisa dessas?"

A senhora Friedman era, por certo, a pessoa menos capaz de dar o que é chamado de explicação razoável e o julgamento terminou num impasse. Roberts estava decidido a tentar o caso novamente e pouco antes de começar o novo julgamento, um ano depois, os advogados de defesa de Volga Adams anunciaram que em troca do abandono de todas as outras acusações ela se declararia culpada do furto dos dez mil dólares que a senhora Friedman dera ao Hotel Park Plaza em 1957. Burton Roberts, representando o povo, disse que os vinte e um meses que Volga Adams tinha passado em custódia, inicialmente na Flórida para as audiências de extradição e depois em Nova Iorque, seriam aceitos como punição suficiente.

Volga Adams permaneceu arrogante até o fim. Quando o juiz-presidente perguntou-lhe se declarava-se livremente culpada da reduzida acusação e compreendia o que significava, ela disse impertinentemente, "Sim, eu roubei os dez mil dólares de France Friedman. Satisfeito?"

Volga teve uma palavra especial para Roberts. Disse que estava pondo uma "maldição cigana" nele, que ele nunca se casaria e nunca teria filhos. Ao que Roberts, que tem fama por seu ar teatral, sacudiu os braços em volta um bocado e retorquiu estar pondo uma "maldição judaica" nela. Desde então Roberts, que é atualmente Juiz da Suprema Corte do Estado de Nova Iorque, tem sido vítima de várias anedotas. Continua solteiro e não tem filhos, "pelo menos que o saibamos", diz um de seus amigos brincalhão.

O dinheiro do caso Frances Friedman nunca foi recuperado, embora um informante cigano fenha dito ao detetive Gore que Volga Adams uma vez gabou-se a ele na Flórida de ter dado um grande golpe numa mulher em Nova Iorque por ter curado uma criança. De acordo com o informante, Volga disse ter "feito muito dinheiro e gasto cerca de cinqüenta mil dólares em propriedades na Califórnia".

O detetive Eddie Coyne substituiu Gore como especialista em ciganos no Departamento de Policia de Nova Iorque cerca de um ano após a conclusão do caso Friedman. Ele faz parte de uma série de técnicos em ciganos que o departamento tem tido, todos eles ligados ao esquadrão de batedores de carteira e segurança. Coyne, um irlandês de maxilar quadrado, atualmente com quarenta e dois anos, ainda se lembra do dia em que o oficial superior sob cujas ordens estava o chamou dizendo ter uma atribuição a dar-lhe, mas que não era obrigado a aceitá-la. Consistia em fiscalizar a atividade dos ciganos na cidade e seu superior advertiu-o de que seria um trabalho difícil em que poderia esperar ser constantemente acusado de extorsões, aceitação de suborno, de fornicação com menores e "Sabe Deus o que mais" que um cigano pudesse imaginar.

Coyne aceitou imediatamente o trabalho. É um policial que gosta de um desafio e também de trabalhar nas ruas, o que constituía grande parte do seu dever. Mas muito rapidamente verificou o quanto isso podia estar cheio de ardis. Logo que começou a fiscalizar as ofisas da cidade, entrou numa em que o marido da mulher boojo entabolou uma longa conversa, obviamente procurando cair em suas boas graças. Então o cigano perguntou a Coyne se ele sabia que uma nova ofisa acabara de abrir alguns quarteirões adiante. Coyne disse que não, agradeceu a informação e disse que iria ver o lugar. Quando no dia seguinte Coyne passou na segunda ofisa verificou que o cigano dali não estava nada surpreendido de vê-lo, mas bastante nervoso e aliviado quando o viu partir. Isso aconteceu ainda algumas vezes até que Coyne descobriu estar sendo usado como um peão numa vigarice. O primeiro cigano, após falar a Coyne sobre uma nova ofisa correria para o segundo cigano e o avisaria que um policial que era "homem meu" viria breve mas que as coisas podeiriam ser arranjadas por um preço. O pagamento do segundo cigano ao primeiro era em geral feito em duas prestações, o primeiro de imediato e o segundo quando Coyne, que estava apenas num giro de inspeção, saía sem fazer nada.

Coyne considera os Bimbos a pior de todas as tribos ciganas. Geralmente quando ele entra numa ofisa, por uma razão ou outra, é recebido ao menos amavelmente e a maioria dos ciganos, quando acham estar em alguma espécie de dificuldades, procuram lográ-lo com grandes protestos de inocência. Mas os Bimbos, diz ele, caem em seguida em cima dele, gritando saberem estar ele "subornando", que vem se metendo com suas mulheres e que não vão aguentar mais isso, que irão ao prefeito, ao governador, à Suprema Corte! Ele sabe do caso de um membro da tribo Bimbo que puxou um revólver para um policial de Massachusetts procurando feri-lo.

Conquanto os Bimbos sejam bastante maus, os membros da tribo Adams os batem em capacidade e uma das piores dores de cabeça de Coyne ultimamente foi causada por alguns Adams. Em 1970 as agências encarregadas de fazer cumprir a lei, em todo o país, começaram a receber comunicações em papel timbrado com "Investigadores de Crimes Ciganos Ltda." que trazia um número postal de Baton Rouge, Louisina. As endereçadas à polícia e promotores da cidade de Nova Iorque diziam: "A abaixo assinada é uma organização sob as leis do Estado de Louisina com a finalidade de promover o bem-estar dos ciganos em todo os Estados Unidos e de ajudar os encarregados do cumprimento da lei não só no que se refere às acusações feitas contra os ciganos mas ajudar tais agências a eliminar falsas e ilegais operações de quiromância, aconselhamento espiritual e mediúnico que exploram o público para dele retirar dinheiro".

A carta prosseguia dizendo que a organização estava ansiosa por ajudar a melhorar a sorte dos ciganos, a promover facilidades educacionais para eles e ajudá-los a ajustarem-se às leis das várias localidades em que se estabeleciam. "Estendemos nossas atividades para além da Louisiana", afirmava a carta, "e fomos autorizados a prestar esses serviços no Estado da Geórgia. Estamos agora nos instalando no Estado de Nova Iorque e solicitamos ao Secretário de Estado sermos inscritos como sócios sob a Lei Geral das Corporações".

Entrando em minúcias, a carta anunciava então: "Apreciariamos se nos consultassem em suas investigações e usassem nossa assistência em qualquer atividade ilegal que possa estar acobertada pelo rótulo de "cigana" uma vez que é nosso propósito ajudar a afastar o estigma que pesa sobre o nosso povo". Concluía com uma nota: "Ficamos na expectativa de receber notícias suas e confiamos em que a nossa associação será agradável, proveitosa e cooperativa".

Houve outras, mais sentimentais, que diziam: "Estamos cansados da imagem que a palavra "ciganos projeta" e ainda, "Temos famílias; pessoas trabalhando em empregos respeitáveis, indo à escola... Mas também temos os ciganos pérfidos - aqueles que procuram enganar as pessoas pretendendo terem um dom de Deus para afastar tristeza, doença, dor e má sorte. É por essa razão que temos os Investigadores de Crimes Ciganos, Ltda."

Um exame feito pelo Departamento de Polícia de Nova Iorque e pelas agências de cumprimento da lei de outros lugares mostrou que conquanto incorporada em Louisiana, como pretendia, era uma fraude concebida por membros da família Adams para oprimir seus companheiros ciganos. Algumas agências, no entanto, não eram tão perspicazes e enviaram prontamente informações sobre ciganos procurados por acusações especificas, em conseqüência do que verificou-se que Investigadores de Crimes Ciganos, Ltda. realmente seguia-lhes a pista mas tão somente para extorquir-lhes dinheiro; se os ciganos "procurados" não pagavam diziam-lhes que seriam entregues à lei.

O detetive Coyne havia mais ou menos esquecido toda a história quando as revelações do patrulheiro Frank Serpico, mais tarde detetive, sobre corrupção generalizada no Departamento de Polícia de Nova Iorque levou à formação da chamada Comissão Knapp para investigar tais acusações. O inquérito motivou manchetes diárias, e pôs o departamento de polícia em confusão. Um dia, uma solicitação da Comissão Knapp chegou através dos canais oficiais ao esquadrão de furtos e segurança pedindo, entre outras coisas, uma lista dos casos pendentes relativos a ciganos. Coyne atendeu à solicitação e o material foi entregue à comissão. Embora Coyne negasse a falar sobre o assunto, houve grande consternação no esquadrão quanto ao rumo que tomaram os acontecimentos. Ninguém sabia onde o cutelo ia cair; o que se sabia era que os ciganos estavam sempre fazendo acusações sobre corrupção no cumprimento da lei e perseguição policial e, dada a atmosfera em Nova Iorque na ocasião, todo mundo se indagava até onde os ciganos poderiam ir em suas acusações agora.

No entanto, nada mais se ouviu falar da comissão. Mas então, em julho de 1971, Coyne recebeu outra comunicação dos Investigadores de Crimes Ciganos, Ltda., endereçada a ele pessoalmente, embora com seu nome escrito erradamente "Coin", e que era muito mais violenta do que a que passara por sua mesa um ano antes. Anunciava que a organização vinha trabalhando "em colaboração com a Comissão Knapp". Dizia, "Através de nossas investigações descobrimos haver mais de meio milhão de dólares de prejuízos nas queixas contra ciganos na cidade de Nova Iorque... Sabemos que não foram feitas ainda prisões até o momento e que muitos dos ciganos sob os quais pesam queixas mudaram-se". A organização oferecia, uma vez mais, sua ajuda para achá-los e incluía uma lista de ciganos que estavam sendo procurados e as razões porque o eram.

Mas desta vez os homens da tribo Adams ou quem quer que seja que escrevera a carta, haviam exagerado. A lista era, palavra por palavra, a mesma que Coyne havia fornecido à Comissão Knapp. Evidenciou-se imediatamente o fato de que um novo e sinuoso esquema Romani estava em funcionamento. Como foi observado por um repórter de televisão que revelou a história para embaraço da Comissão Knapp, os ciganos tinham aparentemente ido a investigadores da comissão para obterem a informação desejada do departamento de polícia e então a utilizaram numa renovada tentativa de embaraçar outros ciganos, mas também para intimidar igualmente os policiais.

Como os que o precederam nesse trabalho Coyne é cínico sobre os ciganos mas, não obstante, por eles fascinado. Ele tem um alfabeto próprio para lembrar-se deles facilmente. "A" para Adams, "B" para Bimbo, "C" é para Costello, "D" para Demetro, "E" para Evans e assim até "U" para Ullanowich, "V" para Valdo, "W" para Wanko e Williams e "Y" para Yonkovich. Grande parte do tempo

dele é gasto em fraudes boojo e ele tem uma admiração oculta pela maneira pela qual as mulheres ciganas são capazes de tirá-los de encrenca. O sucesso, de todo bom caloteador consiste em levar a vítima onde ele quer e, como diz Coyne, "Essas mulheres são muito, muito boas nisso. Você pode ir lá sabendo que há uma máquina montada e em poucos minutos elas deixam você nervoso. Algumas vezes quando estão agindo assim, creio que elas mesmo acreditam".

As mulheres boojo estão perpetuamente melhorando o seu ato e Coyne observou uma modificação na fraude da troca de lenços. Em vez de substituir o lenço com folhas de papel pelo com dinheiro real, algumas das mulheres boojo trocarão, digamos, notas de cem dólares por outras de um dólar. Isso lhes permite dizer à vítima que ela pode, de vez em quando, pegar na bolsa ou lenço, conforme o caso, e certificar-se de que o dinheiro ainda está lá ao pegar naquilo que é obviamente montes de notas mas, em nenhuma circunstância, avisam elas, podem olhar as notas; se a pessoa o fizer ficará cega. O poder que uma mulher boojo possui é enorme. Mesmo quando uma otária procurou Coyne com suspeita de ter sido roubada em suas economias e levou-o ao cofre em que estava o lenço que continha supostamente o dinheiro, receiou abrir o lenço e olhar ela mesma. "Você o faz", disse ela a Coyne. "Você olha".

Embora o detetive Coyne não se surpreenda com nada que diz respeito aos ciganos, há momentos em que é demais. Uma psicóloga procurou-o uma vez para queixar-se de ter ido a uma ofisa com uma amiga para convencê-la que era tudo tapeação e acabou perdendo algumas de suas jóias. Coyne não pôde deixar de perguntar como era possível que uma pessoa de educação universitária, aparentemente sofisticada, que era uma psicóloga pudesse cair numa coisa dessas? O que posso dizer? Aquela cigana era melhor psicóloga do que eu".

A Tia Hazel é uma Bimbo. É também uma mulher boojo aposentada e que, como ela orgulhosamente diz, nunca foi pegada. Embora tenha ouvido falar em maiores golpes, o mais elevado que ela fez foi de trinta e um mil dólares. Foi uma queima de dinheiro que, sob todos os pontos de vista, foi um sucesso mas cuja lembrança ainda a tortura. Sua vítima, uma mulher de descendência nórdica, deveria trazer cinqüenta e cinco mil dólares para afastar a maldição. "Fiz-lhe confiança quanto aos outros dezenove mil", contou-me tia Hazel, "e ela nunca voltou".

"De toda maneira", disse-lhe eu, "você saiu-se bem".

"Naturalmente", disse ela num tom impaciente que indicava não haver possibilidade de ser de outra maneira.

Quando perguntei à tia Hazel qual era o problema da mulher, a sua memória ficou bruscamente falha, como se não quisesse deixar-se pegar por detalhes específicos. "Era uma viúva, você sabe, ela achava que alguma coisa estava errada com ela, mas não sabia dizer o que era. E eu disse-lhe que o que ela não identificava era o diabo porque estava cheia de dinheiro e o dinheiro era um mal, que tinha de queimá-lo e jogar fora a maldição para que tivesse paz de espírito e sentir que não havia mais nada de errado".

Manifestei minha surpresa de que se pudesse levar alguém a permitir que se queimasse tanto dinheiro. Tia Hazel achou graça e fez com que tudo parecesse simples. "Ela tinha duas escolhas. Podia destruir a vida dela ou o dinheiro. Além disso não era o dinheiro o que estava sendo queimado, era papel".

"Mas a mulher pensava que era dinheiro".

"Sim, mas isso mostra como as pessoas são loucas. Não se esqueça que há um otário a cada minuto e que a mão é mais rápida do que o olho".

Agora que está aposentada, tia Hazel passa suas tardes perto da janela de sua casa num subúrbio de Nova Iorque, Queens, olhando o que se passa na rua, hábito de seus tempos numa ofisa. Ela é pequena, extraordinariamente gorda, com talvez sessenta anos, viúva, com cara de pêra e olhos negros. Tem a voz cheia e cadenciada e caso ela viesse a me dizer para queimar dinheiro num lenço, estou certo de que o faria imediatamente.

Ela não se afasta de sua opinião sobre os ciganos. "Está bem", disse ela com um levantar de seus ombros maciços, "é verdade que nós roubamos com as mãos, mas vocês gadje - vocês americanos - roubam com o lápis". Sua voz alteou-se. "E quantos ciganos você vê indo para a prisão por vinte, cinqüenta anos por assassinatos e estupros e agressões?"

A tia Hazel, que diz ter nascido em Detroit, lembra-se de ter viajado pelo país em caravanas de carros puxados a cavalo e relembra o que descreve como sendo a desvantagem em que os ciganos se encontravam. "Nós tínhamos medo, senhor", disse ela. "Como posso explicar isso ao senhor? O que eu sei, de conhecimento próprio e pelo que meus ascendentes contavam, é que nós os ciganos tínhamos medo dos brancos da mesma maneira que os brancos aqui tinham medo dos peles vermelha, dos índios com penas, da mesma forma que vocês aqui ficavam apavorados de que eles os escapelassem".

Ela fez uma pausa para acalmar sua emoção. "Sim senhor", disse ela. "Lembro-me bem desses tempos. Vocês nos detestavam porque nós éramos nômades e amávamos o ar fresco e vivíamos em tendas. Vocês não querem tendas, não querem ar fresco. Vocês querem apartamentos e grandes edifícios e nós, quando olhávamos para esses edifícios, nós tínhamos medo. Sim, eu me lembro que quando chegávamos numa cidade as pessoas gritavam, "Fechem as portas, os ciganos estão chegando! Ponham as crianças para dentro, eles vão roubar nossos filhos". Mas lembro-me também como essas pessoas gritavam também, "Matem os ciganos, expulsem-nos da cidade, queimem-nos, ponham fogo neles". Sim, é disso que me lembro.

"Realmente você ouviu as pessoas falarem assim?"

"Oh, por Deus, gemeu ela, não me faça chorar".

A tia Hazel diz que a razão pela qual os ciganos recusam enviar seus filhos às escolas gadje é muito simples.

"Eles os bateriam, como sempre". E mesmo que esse não fosse o caso, ela tem uma opinião péssima quanto à espécie de educação que receberiam. "Eles aprenderiam sobre narcóticos", disse ela, "e misturarem-se com outros. Senhor, tenho de lhe dizer que nós lutaríamos, que nós morreríamos, que seríamos crucificados como Jesus se víssemos nossas filhas saindo com homens pretos. Vocês vêem isso dia e noite e riem como se não fosse nada. É uma vergonha. Hoje tudo é permitido, mas creia-me, os ciganos ainda têm um pouco de vergonha".

De acordo com tia Hazel, qualquer cigano que pensa em igualar-se com o resto da população - com os gadje -está se enganando. "Nós ciganos temos um ditado, resmungou ela, "que nunca se pode deixar um gadje nas suas costas. Um dentro de cem gadje dirá, "Tenho pena dos ciganos", mas os outros todos dizem, "Que todos os danados ciganos vão para o inferno. Eles são ignorantes. São andarilhos". Vocês até reconheceram os chineses. Vocês os puseram nas Nações Unidas. O que é que vocês fazem pelos pobres ciganos?"

A idéia de todos aqueles orientais vagueando pelos corredores das Nações Unidas pareceu reacender sua fúria. "Sim", disse ela, "A China tem a sua bandeira lá e vocês deixaram. A Rússia vermelha tem o seu homem lá também. Quando se pensa que há mais de centenas de anos estamos sofrendo e que vocês nem pensaram em nos dar um pouco de consideração, uma bandeira, algo, um pouco de gentileza... Ora, existem escolas católicas, protestantes, públicas, privadas, escolas gregas! Por que não nos dão vocês uma pequena escola num vilarejo? Não temos nem ao menos um barracão quebrado".

Tia Hazel pode fazer com que pareça que o mundo gadje é culpado de que ela andasse batendo carteiras quando menina. "Assim eu tirei vinte e dois dólares daquele homem", disse ela relembrando um desses incidentes. "Minha mãe estava muito doente e havia uma porção de bocas para alimentar, você sabe, que estavam morrendo de fome e as coisas estavam ruins, eram tempos duros, não havia carvão para pôr na estufa, não tínhamos doces, com que pagar o aluguel, é assim eu sai e roubei. Mas não bati na cabeça de ninguém".

Ela conserva uma amargura especial pela polícia que, pretende ela, passa todo o seu tempo perseguindo os ciganos e maltratando-os. A sua animosidade vem do tempo em que membros da família Bimbo estavam em Chicago e a polícia cercou todos os adultos, por alguma razão que ela diz não se lembrar, e levou-os deixando as crianças em casa sozinhas. "Éramos crianças, sabe o que quero dizer, que fomos deixadas", disse ela, "e nós estávamos brincando por ali e então uma das menores, a pequena Mitzi, talvez ela tivesse três, quatro anos, foi à cozinha e ela estava brincando com uma bisnaga de pão embrulhada em papel e apertou o botão do forno. O forno era da espécie que não se usa fósforo, tinha um piloto, e ela apertou o botão e veio a chama e pegou no papel e deste para tudo o que estava em cima dela. Nós tentamos apagar as chamas, mas ela ficou toda queimada." A tia Hazel enxugou uma lágrima ao pensar no que ocorrera, embora isso fosse há cinqüenta anos. No entanto, ela diz a verdade sobre os detalhes da morte da criança. Uma notícia no Chicago Tribune datada de 1 de maio de 1923 relatou: "Mitzi Bimbo, 4 anos de idade ... foi fatalmente queimada ontem à noite quando seu vestido pegou fogo de uma chama de um forno em sua casa no número 1411 da Rua South Halsted. Ela morreu no hospital Merecy três horas mais tarde".

Tanto como uma Bimbo, mas também porque sua casa em Queens constituía um centro permanente de fofocas ciganas, tia Hazel sabia de tudo sobre a chegada de Steve Tene da Califórnia e como ele havia retirado sua irmã Sônia do hospital de New Jersey após sua tentativa de suicídio. "Foi uma coisa terrível o que a menina fez", disse ela. "Mas o pai dela é um homem doente, você sabe o que quero dizer, ele não é bom da cabeça. Ele não é como o pai dele que era Rei dos Reis".

Ao pensar no Rei Tene Bimbo, o falecido patriarca da tribo, tia Hazel ficou lírica. "Sim, aquele era um homem", contou-me ela. "Aos quinze anos, creia-me, tinha o cérebro de um homem de cinqüenta anos e quando nossas várias tribos tinham desentendimentos, quando os mais velhos não podiam resolvê-los, vinham procurá-lo e ouvir suas palavras e saber sua opinião e seguiam-na porque ele tinha sempre razão. Quando tinha somente dez anos, talvez onze, todo mundo sabe disso, houve um julgamento entre ciganos e ele ficou ali ouvindo tudo e o julgamento durou três dias e três noites. Havia aquele velho homem sábio dirigindo o julgamento e ele observou o jovem que ficava ali todo o tempo e o velho dirigiu-se a ele e disse, "Qual é o seu nome?" e ele disse, "Meu nome é Tene". E o velho disse, "O que você acha disso? Estive observando você atentamente - você, um jovem rapaz que ficou ouvindo o que acontecia aqui, o que você acha, quem é culpado?" Assim Tene disse, "Bem, eu ouvi essa pessoa dizer tal e tal lugar e tal e tal hora e então a outra pessoa disse tais palavras" - e ele repetiu tudo, tudo o que havia sido dito - e então disse, "Portanto eu acho essa pessoa culpada". O velho pegou a mão dele e disse, "Tene, vejo que você será um homem muito, muito esperto, um rei entre os homens, quando crescer" e o velho disse isso porque a mesma pessoa que o menino achara culpada, o julgamento também achara-a culpada".

Mas não era somente a sabedoria de Tene Bimbo, segundo tia Hazel, o que fez com que fosse aclamado rei, mas também sua generosidade, "a maneira", segundo ela o definiu, "como dava comida aos ciganos com fome, como os levava ao hospital para serem curados, como procurava alugar-lhes casas para viverem ou campos em que pudessem acampar e levava-lhes madeira e água e alimentava seus cavalos.

Perguntei à tia Hazel se ela estava falando de todas as tribos ou só dos Bimbos e ela impertigou-se com indignação. "Todas as tribos ciganas", insistiu ela, "os Stevensons e os Thompsons, os Adams, os da tribo Williams e da tribo Evans e os Greens e os Uwanowiches, os Demetros, todos eles. Quando ouviam o nome do Rei Tene Bimbo, ficavam como mudos, tinham medo desse nome. Não me importo com o que eles dizem. Eles podiam dizer outra coisa por trás das costas dele, mas quando o encaravam, tremiam e perdiam a língua".

Quando sugeri que isso não estava muito de acordo com o retrato que havia feito de um líder universalmente respeitado e admirado, ela respondeu com doçura, "Naturalmente que ele era um durão, era um Bimbo, você sabe, e era severo, um matador também. "Porque tinha que ser. No princípio ele era como eu expliquei, mas o tempo passou e o seu poder aumentou e havia tribos como os Kaslovs e os Mitchell que tinham inveja dele e que procuraram prejudicá-lo junto à policia e destruí-lo, e ele teve de lidar com eles, você sabe o que quero dizer, e ele lidou com eles".

O que achava do neto do King Tene, Steve, perguntei, e das mudanças que estava procurando fazer na vida dos ciganos? Ela disse, "Eu lhe direi honestamente a verdade. Steve é do meu sangue, mas ele é um rapaz jovem, perturbado, que foi criado no medo por causa do pai. E com toda a sua americanização e o que ele me conta do povo americano, que estamos errados sobre eles, que nunca os procuramos para que eles nos entendessem, eu lhe disse, Steve, você é jovem. Você não conhece nossa história, pelo que passamos durante centenas de anos, o que o seu avô, o que o meu pai e o pai dele e o pai deste passaram". Eu disse a Steve que isso é uma coisa que não se pode apagar em dez minutos".

Pela primeira vez faltou firmeza no dogma da tia Hazel quando ela tentou explicar por que o Rei Tene Bimbo havia escolhido Steve para sucedé-lo. "Bem, senhor", disse ela, "Não posso mentir. Muitos na nossa tribo protestaram e ficaram sem compreender quando souberam disso, mas o velho era o Rei dos Reis e talvez ele tenha visto alguma coisa ou sentido alguma coisa do que Steve poderia significar para a nova geração "por que o velho era conhecido pela sua argúcia e raciocínio forte". E como que em testemunho de sua incompreensão da mudança dos tempos, que não compreende de todo, ela bruscamente exclamou: "Essa casa é minha, sabe. Eu até pago impostos dela".

Como a maioria dos ciganos da sua idade, no entanto, tia Hazel está certa de que Steve acabará morrendo nas mãos do pai. "Com Steve falando sobre dar aos nossos filhos instrução e liberdade", disse ela, Carranza acha que Steve está violando a lei cigana. Ele acha que Steve está traindo nossas tribos procurando americanizá-las em benefício do gadje. É o que ele anda falando por ai".

Tia Hazel carregou a sua grande massa para um sofá vermelho coberto por plástico. "Além disso", acrescentou ela pressagamente, "como eu disse, Carranza não é bom da cabeça. Você viu o que ele fez, o que tentou fazer ao olho de Steve com a faca. Steve ficou com o anel e o medalhão e Carranza acha que era uma glória que era dele. Se o velho, nosso rei, não tivesse morrido nada disso teria acontecido".

 

                                             O REI

 

O Rei Tene Bimbo - temido e abominado pelas tribos rivais, venerado e servilmente seguido pelo seu próprio clã - tinha oitenta e cinco anos quando entrou no Park East, um pequeno hospital privado em Manhattan. Uma de suas filhas telefonou, relembra tia Hazel, "e disse não ser nada, ele só vai fazer um checkup, e talvez cinco, seis dias mais tarde ele partia".

Ele foi admitido no Park East às 7,15 do dia 14 de outubro de 1969. Estava então muito diferente da figura aterrorizante daquela que fora para tantos ciganos, tinha agora os cabelos completamente brancos, estava tão curvado que parecia ainda menor do que a sua altura e tão obeso, pesando quase 113 quilos, que no exame inicial do fígado, baço e rins eles quase não eram palpáveis. Há dois meses estava doente e por duas vezes fora ver um médico queixando-se de dores no peito, quando recebera medicação anticongestiva para o coração. Mas no dia 13 de outubro suas condições pioraram tanto que foi necessário hospitalizá-lo. Na noite em que foi internado, no entanto, só tinha os tornozelos inchados. De acordo com sua ficha médica, manifestou preocupação com o fígado porque há anos sem conta vinha tomando um quinto de litro de uísque diariamente. Surpreendentemente, no entanto, quando o fígado foi examinado verificou-se estar pouco aumentado. Não tinha febre e o diagnóstico de admissão foi endurecimento das artérias e possibilidade de parada cardíaca. Ficou em quarto particular e com enfermeiras dia e noite, tudo pago adiantadamente, juntamente com um depósito cobrindo despesas de laboratório e outras eventuais, em dinheiro.

No segundo dia foram feitos os exames e ele continuou mais ou menos na mesma. No terceiro dia houve uma ligeira piora, com dores abdominais e vômitos; um eletrocardiograma revelou que tivera "um prévio enfarte do miocardio" ou ataque cardíaco, embora ele declarasse ignorá-lo. No dia 17 de outubro parecia melhor, ainda sem febre, dizendo não sentir dor e não mais sentindo a dificuldade de respirar que sentira antes.

Por esta altura os Bimbos e seus aliados estavam vindo de todas as partes do país - de Boston, Philadelphia, Baltimore, Chicago e Cleveland, de St. Louis, Kansas City e Dallas, Los Angeles e San Francisco. Vinham aos montes ao Park East. "Nunca vi nada igual antes", disse-me um guarda de segurança. "E não importava a que hora do dia ou da noite, eles apareciam". Vinham, não somente visitar mas para ficar, enchendo os corredores, superlotando as áreas de recepção, alguns instalando-se lá mesmo, outros dormindo em carros estacionados em vários quarteirões nas vizinhanças do hospital. Por fim, foi necessário chamar a polícia para manter, pelo menos, um aspecto de ordem.

Quando tia Hazel viu o Rei Tene, perguntou-lhe como estava e ele disse, "Estou cansado", e ela afugentando as lágrimas, disse, "Você está bom para outros 50 anos", ao que ele respondeu num murmúrio, "Acho que não". Então ,ele disse aos que estavam em volta de sua cama, num tom de voz acentuadamente mais brando de que o que estavam acostumados a ouvir, "Quero que todos compreendam o que vou lhes dizer. Quero que esqueçam o que foi feito contra mim no passado. Perdoem e esqueçam. Quem quer que seja que tenha sido meu inimigo, deixem que Deus o julgue. Não guardem rancores dentro ou fora da nossa tribo. Procurem entenderem-se uns com os outros. Deixem o passado para trás.

Era um pedido bastante estranho por parte do velho, ele que tinha um passado criminal que incluía mais de 120 prisões devido a delitos como grandes roubos, extorsão, tentativa de       aassassinato, seqüestro, assalto e agressão, perjúria, incitamento à revolta e roubo de bancos em, entre outros, os Estados de Illinois, Massachusettes, Michigan, Nova Iorque, Tennesse, Texas, Minnesota, Wisconsin, New Jersey e Califórnia, assim como o Distrito de Colúmbia. Algumas dessas acusações incluíam crimes cometidos, como se diz, contra a sociedade, mas outros, sobretudo os referentes à extorsão e seqüestro, freqüentemente aparecem nas "publicações" ciganas como parte de constantes disputas internas entre muitas tribos Romani. Se um clã, por qualquer razão, sente-se prejudicado por outro, tornou-se habitual não recorrer ao kris mas sim à Justiça com acusações altissonantes que são rebatidas por outras igualmente falsas. Um "seqüestro" pode não ser nada mais do que uma disputa sobre o preço de uma noiva e as acusações de, "extorsão" são um outro método de resolver golpes. Como um juiz uma vez disse há meio século atrás, "Em qualquer caso em que um cigano testemunha contra outro... cada um de nós travou conhecimento com as artimanhas dessa gente e hesitará em acreditá-los a não ser que haja maior evidência corroboradora por parte de outras pessoas".

Tene Bimbo estava sempre envolvido em controvérsias como essas à medida que avançava para o poder. Uma das primeiras ocorreu em 1911 em Kenosha, Wisconsin, onde era conhecido como "Toma Bimble". Havia a acusação de que "roubara mil dólares e os carregara empregando força e violência" de um outro cigano. Tendo apresentado fiança, desapareceu imediatamente. Surgiu novamente em 1914 em St. Cloud, Minnesota, numa acusação semelhante, como "John Poluth", com o mesmo resultado. Até mesmo atualmente, com todos os meios modernos de detecção que possuem as agências encarregadas do cumprimento da lei, é bastante difícil encontrar um cigano que deseje desaparecer; naquela época era praticamente impossível e a maioria das municipalidades ficavam, na verdade, satisfeitas em deixar a coisa ficar esquecida. Um cigano chamado Mike Frank jurou que em Cleveland em 1917 o Rei Tene, juntamente com outros Bimbos armados, invadiu uma casa ocupada por membros do clã Frank e desapareceu com jóias e moedas de ouro. Também em 1917, de acordo com o juramento de outro cigano, Pete Williams, Tene Bimbo perseguiu-o em Detroit e exigiu 500 dólares. Williams disse ter perguntado para que era o dinheiro e que Tene respondera, "Todos os ciganos me dão dinheiro e você também tem que me dar." Williams disse ter recusado a ceder e que então o Rei Tene fizera com que a Rainha Mary, sua mulher, apresentasse queixa dizendo que Williams a havia agredido na cabeça e roubado um colar de ouro. "Soube que Tene Bimbo fez com que alguém agredisse sua mulher de modo a que ela pudesse acusar-me", disse Williams. Os depoimentos de Frank e Williams foram feitos alguns anos após os fatos; ambos alegaram não terem apresentado queixa na ocasião por recearem maior revide por parte dos Bimbos. Dezenas de incidentes semelhantes pontilham a carreira de Tene Bimbo. Theodore Stevenson e Steve Bacho, quando caíram no desagrado dele, disseram que foram por ele acusados de violar e roubar uma de suas filhas; Miller e Ephraim Frank foram supostamente roubados em mil 500 dólares mediante ameaça armada; Tucon Miller teve de pagar mil dólares a Tene Bimbo "ou ele me teria dado uma corrida e matado"; foi alegado que o Rei Tene fazia regularmente reuniões de massa de ciganos para angariar tributos, sendo que a "doação" mínima era de 50 dólares; Joe e John Nicholas afirmaram que quando se recusaram a pagar a Tene mil dólares, ele e vários outros Bimbos entraram em sua casa, forçaram um baú e retiraram 2.500 dólares em dinheiro e jóias; Eli Urich jurou que Tene Bimbo havia ido em sua casa enquanto ele não estava, retirara 200 dólares de sua mulher e que quando "irmão pequeno" de Urich protestara, "ameaçara-o com um atiçador de ferro caso tentasse pedir ajuda ou reclamar". Conquanto algumas dessas deposições tenham sido sem dúvida tão falsas quanto as que o próprio Rei Tene costumava jurar, até mesmo os Bimbos admitem que o velho tinha uma predileção por pedir - e obter - dinheiro. A diferença de opinião é referente aos seus propósitos que, de acordo com os Bimbos, era profundamente nobre. "Apesar de todas as coisas más que fez em sua vida", um deles me disse, "fez sobretudo o bem, como os Rockefeller ou outros gadjes importantes quando vocês precisam de ajuda e lhes pedem dinheiro. Talvez uma tribo dos Greens ou Stokes ou Evans esteja em dificuldade, ou um cigano machucou-se ou teve um desentendimento com a sua mulher ou esta fugiu ou ele não tinha dinheiro para obter uma casa ou uma loja - bem, esse cigano iria procurar o Rei Tene e este faria, você sabe, uma coleta para ele. King Tene procuraria ciganos com dinheiro e se dissessem "é azar dele, que se saia dessa sozinho" o Rei Tene diria, "Você pensa que é um maioral! Eu lhe mostrarei como você é um verme. Dê-me o dinheiro ou lhe corto a língua ou quebro suas malditas pernas! Creia-me, não estava brincando. Se ele tivesse de o fazer, ele o fazia".

Esse ponto de vista benevolente não era partilhado por, entre outros, o advogado municipal de Cook Country, que teve de lutar com o Rei Tene e seus seguidores durante os anos de 1920 e início dos 30. "Os Bimbos e toda a sua família e parentes", referiu ele, "foram uma constante fonte de aborrecimentos para nós e, segundo a nossa experiencia, não podem ser acreditados em nenhuma hipótese".

O Rei Tene Bimbo, juntamente com a Rainha Mary, estabeleceu seu quartel-general em Chicago por Volta de 1920. Ao casar-se com ela em Yonkers, Nova Iorque, em 1905, ele tinha ampliado sua base de poder e alianças potenciais uma vez que ela era de um importante ramo dos ciganos Muchwaya, os quais encaram seus irmãos Kalderash, com os quais os Bimbos são tribalmente filiados, como pertencendo à alta classe. Quando ele chegou em Chicago, o cigano proeminente na cidade era o Rei Eli Miguel, mas dentro de um ano Tene levou a melhor, jurando que o Rei Eli e dois outros haviam assaltado uma indefesa Bimbo e roubado-lhe um colar de ouro formado por 25 moedas de 20 dólares cada uma. Ao sair do julgamento policial, onde havia pedido justiça imediata, Tene disse a um grupo de jornalistas "Eli Miguel não é um rei. Ele é um trouxa! Eu sou o Rei dos Ciganos." Ao dizer isso, como um repórter o descreveu, Tene bateu no peito numa maneira que era majestosa, mas discreta." Foi também dito que o Rei Eli, quando visto pela última vez, dirigia-se "a toda pressa em direção à fronteira indiana."

Ao consolidar sua posição nos meses que se seguiram Tene Bimbo estava constantemente comparecendo aos tribunais. Tinha um senso agudo de relações públicas e os repórteres estavam sempre por perto quando ele comparecia àqueles. Embora a maioria dos ciganos não pudesse ler o que vinha impresso nos jornais, reconheciam seu retrato e podiam identificar o seu nome nos cabeçalhos e que só servia para aumentar o seu prestígio no seio da comunidade Romani. Uma vez, quando de outro seu comparecimento às audiéncias, anunciou ele nos degraus do tribunal que as suas responsabilidades reais eram um grande peso e que até aquele momento as suas multas legais chegavam a quase 200 mil dólares.

"Qual é a acusação desta vez, Rei?", perguntou um repórter.

"Lesões corporais", replicou Tene, acrescentando sorrindo largamente, "Eu nem sei o que isso significa. Não sou bom em inglês. Assim, além de pagar os advogados, tenho de comprar - como é que você dizem? - um dicionário para descobrir por que estou aqui."

O sensacionalismo seguinte provocado pelo Rei Tene na imprensa de Chicago ocorreu em 1924. A queixosa era Amélia "Rainha Millie" Marks, uma das poucas matriarcas ciganas de direito, que chefiava um bando relativamente pequeno mas agressivo de ciganos que haviam permanecido independentes da autoridade dele. Segundo a Rainha Millie, ela havia pago a Tene Bimbo $2,250 dólares para

que a filha dele, Rose, então com 14 anos, se casasse com um de seus filhos, George. Após ter dado a soma combinada, disse ela, realizou-se o casamento mas algumas horas depois da cerimônia sua nova nora havia desaparecido sem dizer palavra e a Rainha Millie acusou o Rei Tene de ter planejado toda a história para roubar-lhe o dinheiro. Ele respondeu imediatamente com a acusação de que George Marks, o suposto noivo, e um irmão haviam na verdade assaltado e violado a pobre Rose. A Rainha Millie, sem dar tréguas, jurou então uma segunda justificação acusando-o de haver batido nela por ter tentado reaver seu dinheiro.

Ocorreu que essa segunda acusação da Rainha Millie foi a julgamento antes da primeira e o Rei Tene foi absolvido. Isso, aparentemente, o encheu de um falso senso de segurança porque no acontecimento principal que se seguiu o julgamento referente ao dinheiro, limitou-se a apresentar uma negativa geral por ele e Rose, confirmada por alguns ciganos que atestaram o seu "bom caráter", enquanto que a Rainha Millie exibiu testemunhas e mais testemunhas que juraram terem estado presentes por ocasião das negociações matrimoniais, quando o dinheiro foi pago, no casamento e na casa em que Rose subitamente desaparecera. Finalmente, percebendo que as coisas não lhe eram favoráveis, o Rei Tene fez com que seus advogados pedissem no último momento novo julgamento devido a novas evidências. Mas era tarde demais. O juiz recusou e mandou o caso para o júri. Durante as sete horas em que o júri esteve reunido, a tensão entre os ciganos que esperavam explodiu e mais de uma centena deles, adeptos do Rei Tene ou da Rainha Millie, agrediram-se nos corredores do tribunal. Várias turmas de policiais foram necessárias para separar os combatentes e 11 ciganos foram hospitalizados com ferimentos causados por objetos de bronze e facas dos Romani e pelos cassetetes da policia.

O Rei Tene, para seu tormento, foi julgado culpado e sentenciado a uma pena de prisão de um a 10 anos. Ele apelou, Quando o apelo chegou à Suprema Corte do Estado de Illinois alguns meses mais tarde, o caso da violação contra os irmãos Marks estava ainda pendente devido a adiamentos provocados pelo advogado de Tene e isso serviu para desacreditar o caso. O Rei Tene apresentou nova evidência - outro pretendente à mão de Rose de quem, jurou ele, havia recebido 2.500 dólares muito tempo antes do aparecimento da Rainha Millie, o que tornava impossível, de acordo com "a antiga tradição cigana, costume e lei" ter ele concluído qualquer negócio matrimonial com ela com referência à sua filha. O verdadeiro noivo de Rose, foi dito, tinha sido mantido encoberto para impedir que fosse publicamente envolvido em assunto tão sórdido. Os augustos juizes consideraram a estonteante exibição de queixas e contra-queixas e deposições totalmente discordantes umas das outras e finalmente levantaram suas mãos coletivas em desespero e ordenaram um segundo julgamento.

A história real, de acordo com membros da tribo Bimbo que estiveram lá na ocasião, era que o Rei Tene, desta vez, não estava completamente em falta. A real culpada era Rose, "a menina dos seus olhos", sua filha mais velha,

mimada, de cabeça dura e bonita. "Até mesmo os gadje, o povo americano, você sabe", disse um deles, "paravam e voltavam-se para vê-la passar na rua". E era por isso, dizem eles, que a Rainha Millie insistira para o que o Rei

Tene desse Rose ao seu filho, argumentando que, além de outras coisas, uma tal aliança acabaria com as disputas de quem dominava sobre os ciganos de Chicago. "Diga o preço que quiser", teria dito a Rainha Millie, "e você o terá."

O problema é que Rose não queria saber de nada com o filho da Rainha Millie e o Rei Tene havia hesitado. Então, foi-me dito, "Millie disse que daria 2, 3 mil dólares por Rose, o que era muito dinheiro naqueles tempos, e o velho pensou e disse, "Está bem", sem pensar que Millie o faria, que ela estava blefando, mas ela o fez e não havia nada que ele pudesse fazer. Assim, eles fizeram o casamento e após este Rose simplesmente saiu de casa com seu vestido de noiva a uma hora da manhã e disse-lhe que estava indo embora e que não se incomodava com o que acontecesse. E o velho que não estava, de todo modo, satisfeito com o que fizera, disse que ficaria ao lado dela e foi assim que tudo começou."

O segundo julgamento nunca se realizou. Aparentemente abalada pela revogação da condenação de Tene Bimbo, a Rainha Millie desistiu de continuar com a acusação em troca dele abandonar as acusações de violação contra seu filho. Como parte do acordo, ele concordou em devolver a metade, do preço que ela pagara por Rose, mas é duvidoso que jamais o tenha feito uma vez que também concordou em não "molestar ou prejudicar a família Marks no futuro", após o que começou a ir atrás de cada um deles e pô-los para fora da cidade de Chicago até que a própria Rainha Millie finalmente abandonou a cidade à procura de um ambiente mais amigável.

Em 1928, o Rei Tene, querendo ampliar seus domínios, voltou suas vistas em direção ao Leste, sobretudo para Boston, onde dois rivais, Joseph Mitchell e Pete Thompson, eram as personagens mais importantes na comunidade cigana. No final de maio, ele deixou Chicago num grande sedan Lincoln preto dirigido por seu filho Pete, então com 20 anos, vestido e parecendo um Al Capone, e que atuava como guarda-costas e motorista do pai. No carro iam também a Rainha Mary, como sempre com seu cachimbo de cano longo, a filha Rose e vários pequenos Bimbos. Outros carros lotados de Bimbos deveriam seguir.

De acordo com a versão Bimbo dos acontecimentos posteriores, estavam inocentemente dirigindo-se ao longo de uma barreira no caminho de Boston quando bruscamente o Rei Tene disse, "Pete, diminua a marcha. Parece haver um acampamento de ciganos por aqui", e Pete respondeu "Sim, você tem razão. Vamos ver o que está acontecendo. Boston não está longe e, de todo modo, estaremos lá esta noite."

Na verdade, o Rei Tene sabia perfeitamente o que havia. O que pretendeu ter avistado com surpresa era um grande acampamento cigano daqueles que não são mais vistos neste país, parados numa fazenda de laticínios de propriedade de uns irmãos chamados Dooley próximo à cidade usineira de Methuen, cerca de 30 milhas ao Norte de Boston e não em qualquer auto-estrada que, de modo algum seria normalmente tomada, então ou agora, a quem viesse de Chicago. Os ciganos estão sempre prontos a aproveitar qualquer dia feriado, seja deles mesmos ou de alguém mais - seja Natal, Páscoa, o 4 de Julho ou até mesmo o Ano Novo judeu, Rosh Hasbana - como motivo para celebrar. Nesse caso, era o dia 29 de maio, véspera do Memorial Day, e mais de 300 deles, incluindo membros de uma meia dúzia de tribos de Boston e seus arredores, já haviam levantado suas tendas em aproximadamente cinco acres de campos alugados aos irmãos Dooley. Era um local idílico, uma volta ao passado cigano, o campo ervado, cheio de árvores ondulando para um claro e corrente tributário do rio Merrimack.

Antes do Rei Tene deixar Chicago, um de seus aliados, um cigano chamado Wasso Wonko tinha avisado-o do acampamento e de sua localização. Wonko estava lá, como também um grupo da tribo John, amiga de Tene, juntamente com confiantes Mitchells, Thompsons, Millers. Williams e Franks, entre outros. O Lincoln do Rei Tene dirigiu-se por uma estrada suja passando pelo que mais tarde os repórteres e a polícia descreveram como dúzias de Lincolns, La Salles, Cadillacs e Pierce-Arrows estacionados, em sua maioria carros de turismo. Segundo contam os Bimbos, o Rei Tene saiu do seu carro e disse expansivamente aos ciganos que o cercaram, "Ah, boa tarde, que tribos são essas?"

Um cigano que os Bimbos disseram ser Joseph Mitchell respondeu, "Que diferença faz quais sejam as tribos? Você não terá tempo de vê-las."

O Rei Tene, de acordo com os Bimbos, fez de conta não ter ouvido. "Vocês sabem quem eu sou?", disse ele. "Estão vocês me prestando uma homenagem? Sabiam que eu vinha ou que passaria?"

"Ouvimos dizer que você poderia vir", Mitchell teria supostamente dito. "Estamos tendo uma grande festa aqui, mas a festa não é para você. Isto vai ser o seu funeral." Tendo dito isso, ele e alguns dos outros ciganos começaram a dirigir-se ameaçadoramente para ele e o Rei Tene voltou ao seu carro e murmurou para a Rainha Mary, "Passe-me a minha arma."

A versão dada por alguns dos ciganos acampados na fazenda Dooley difere consideravelmente. A reunião, pretenderam eles, havia sido, na verdade, marcada por Tene Bimbo e eles haviam vindo por curiosidade. Quando ele chegou em sua Lincoln e dela desceu, anunciou ao grupo que tinha a intenção de estabelecer-se no Leste e imediatamente exigiu um tributo de 400 dólares ou "criaria dificuldades para eles." Quando certos ciganos, sobretudo os Mitchell, Williams e Franks objetaram, Tene, dizem eles, voltou ao seu carro, procurou e retirou um revólver.

Nesse momento, embora continue a haver uma grande variação de histórias, ao menos concordam elas nesse ponto, começou a confusão.

A cidade de Methuen, a uma milha de distância, tinha então uma população de 20 mil pessoas e estava situada entre o vale Merrimack e os centros industriais de Lawrence e Lowell. Embora a grande quebra de 1929 da Bolsa ainda estivesse distante um ano, o desastre econômico já estava subindo pelo vale e as taxas de desemprego aumentando. A temperatura estava bastante quente, justificando o aparecimento dos primeiros chapéus de palha, e, juntamente com a parada anual do Memorial Day, haveria um grande acontecimento para os apreciadores do jogo de bola, uma disputa a se real;zar com um time de Kingston na cidade vizinha de New Hampshire. Como recreação noturna, os clubes Beaver Lake e Bella Vista estavam programando um "baile da pesada".

A reduzida força policial de Methuen consistia em 20 homens, uma vez que um pedido de reforços havia sido negado pelas autoridades no início do ano. Joseph R. Hutchinson, um aposentado capitão da polícia agora com 81 anos ainda residente em Methuen, lembra-se da noite do "pandemônio cigano". Hutchinson estivera de folga e estava "dando uma volta" depois do jantar quando, cerca de 6 horas, soou o chamado de urgência - duas cornetadas, três vezes - no Departamento dos Bombeiros. Ele dirigiu-se apressadamente à sede da polícia e recebeu ordens de permanecer lá para coordenar as comunicações. Quando a polícia de Methuen chegou ao local da cena, o chefe Frank Seiferth verificou que não tinha homens suficientes para enfrentar a situação. Estava começando a ficar escuro, várias tendas estavam por terra, "os ciganos estavam correndo por todos os lados", muitos deles brandindo canivetes e estacas de tendas, alguns estavam empunhando espadas e pensou-se ver o brilho das facas, mulheres e crianças contribuíam para a confusão com seus berros histéricos. Foram pedidos reforços através de Hutchinson em seu posto em Methuen e vieram cerca de 50 policiais de Lawrence juntamente com 30 mais de Lowell.

Na fazenda Dooley, de acordo com os Bimbos, quando o Rei voltou ao seu carro, Joseph Mitchell disse, "Sim, vamos tirar o seu sangue gota a gota e acabar com toda essa história de você ser rei e querer conquistar todas as nossas tribos." Quando Tene pediu à sua mulher para lhe passar a pistola, ela lhe teria dito, "pule para dentro, e nós nos defenderemos, faremos uma volta e procuraremos sair."

A tribo Bimbo encara esse fato como exemplo máximo da coragem do velho. "Ele sabia", um deles nos disse, "que estava encarando a morte, você sabe, mas não se importava, permaneceu e sobreviveu. Foi um milagre que tenha vivido, como é que não morreu ali é um mistério."

Um jovem Bimbo que estava no carro lembra-se que ciganos hostis pularam em cima do Rei Tene, que ele caiu, então, de alguma maneira, levantou-se e entrou na parte da frente do carro enquanto a Rainha Mary gritava, "Entre no carro! A porta está aberta!" e que então ele começara a atirar - "pon, pon, pon!" - e seu filho Pete pôs o Lincoln primeiro para diante e depois para trás, procurando abrir um caminho para escapar, mas que os Mitchell e outros estavam cercando o carro brandindo varas e batendo no teto. O pára-brisas foi quebrado e em seguida as janelas laterais e pedras eram jogadas, assim como panelas e caçarolas, e Pete Bimbo na direção dizia a todos no carro para se abaixarem. Alguns da tribo John estavam lutando do lado de Tene e seu amigo Wasso Wonko estava procurando se aproximar do carro para ajudá-lo quando o velho, sangue escorrendo pelo rosto, finalmente gritou a Pete, "Vamos!

Passe por cima deles" e Pete, obedecendo às instruções, avançou e a Lincoln atingiu alguém - que, afinal se verificou, não era senão o indefeso Wonko e atravessou uma tenda. Com todo o mundo momentaneamente espalhado, Pete fez com que o Lincoln virasse, arrastando pedaços da tenda, e começou a dirigir-se através do campo, procurando encontrar seu caminho para a estrada suja e a auto-estrada, esquivando-se e serpenteando enquanto a maioria do acampamento perseguia, bloqueava sua saída, gritando obscenidades e brandindo quaisquer objetos em que pudessem pôr as mãos.

Os ciganos adversários proclamam ter sido justo o contrário. Que após o Rei Tene ter exigido o seu tributo e ter sido este recusado, dizem eles que houve puramente uma troca de ameaças verbais e escárnios antes de Tene ir ao carro voltar-se bruscamente brandindo uma pistola e começar a atirar, uma bala tendo atingido Joseph Mitchell, que caiu no chão. Tene Bimbo continuou a atirar por trás do pára-brisas e só então eles procuraram fazer alguma coisa para se protegerem. Pete Bimbo - a quem acusam também de ter uma arma e de atirar furiosamente - ficou em pânico e ao tentar dirigir através do acampamento bateu com a Lincoln numa árvore, causando assim os ferimentos que Tene sofreu - uma concussão grave, um grande talho na cabeça, múltiplas escoriações na face, duas manchas roxas nos olhos, o lábio inferior partido, ferimentos no ombro e no peito e quatro costelas fraturadas.

Nunca se soube quem chamou a policia. O campo onde houve a luta pode ser facilmente visto da Estrada 110, a principal, via entre Lowell e Lawrence, podendo ser que um motorista que passava tivesse visto o que estava acontecendo ou que alguém na casa da fazenda Dooley tenha podido ouvir o barulho, embora ela estivesse a considerável distância do campo de batalha. Os Bimbos atribuem a Rose a iniciativa do pedido de ajuda ao ir ela até a estrada, acenar para um carro e gritar, "Socorro, chamem a polícia! Estão matando meu pai e minha mãe, meus irmãozinhos e irmãs lá adiante!" Caso tenha sido assim, ela voltou imediatamente para a rixa, uma vez que era a única mulher entre todos os homens presos naquela noite.

Depois que a polícia cercou o campo e restaurou a ordem, luzes iluminaram a cena e um total de 51 ciganos foram levados à polícia de Methuen por volta das 9 horas da noite. Hutchinson, ainda na direção, teve o encargo de alojá-los. "Foi um pesadelo", relembra ele. "Só tínhamos três celas e quando elas ficaram cheias, começamos a pô-los numa sala sob vigilância." Nem isso foi suficiente e os excedentes foram transferidos para a sede da polícia em Lawrence. Conquanto um certo número de ciganos tivesse cortes e machucados, os únicos que foram levados para o Hospital Geral de Lawrence foram Tene Bimbo; Wasso Wonko, que como resultado de Pete Bimbo ter passado em cima dele, teve uma perna com fratura exposta e um braço quebrado em dois lugares; Adolph Jones, que recebeu um tiro na mão, e Joseph Mitchell. Mitchel teve uma bala alojada no peito tão próxima ao coração que foi considerado inoperável, pelo menos no momento; suas condições sendo críticas, havia pouca esperança de recuperação. Todos os quatro homens foram guardados pela polícia no hospital enquanto era iniciada uma investigação para procurar descobrir o que acontecera, embora o Chefe Seiferth, de Methuen, tenha dito com grande acerto, após ouvir as emaranhadas versões dadas pelos seus prisioneiros Romani, "duvido que algum dia consigamos chegar ao fundo das coisas."

No dia seguinte a mesa telefônica da polícia de Methuen ficou congestionada com chamadas de ciganos de todas as partes do país pedindo informações sobre a sorte de parentes e amigos, o estado de sua saúde e prováveis prazos de encarceramento. Foi incrível, como Hutchinson observa, a rapidez com que souberam das notícias. Na quinta-feira, dia 10 de junho, começaram a chegar na região ciganos, alguns permanecendo no acampamento original e o resto vindo para a própria cidade. Vários carros de Bimbos, que vinham seguindo o Rei Tene, já haviam alugado quartos, apartamentos e lojas num dos bairros de Methuen. Os cidadãos tornaram-se enervados vendo tantos estranhos vagueando pelas suas ruas. O Departamento de Polícia de Methuen ficou de alerta, pedindo policiais a Lawrence e um guarda foi posto na fazenda Dooley. Dizia-se que a polícia estava particularmente preocupada com o "ânimo exaltado das mulheres ciganas" e a cidade estava cheia de rumores de que "hordas de ciganos" como nunca se vira estavam a caminho de Methuen. Alguns dos habitantes começaram a chamar a Guarda Nacional, mas o procurador da cidade, Hugh A. Gregg, procurou tranqüilizá-los. Ele dominava a situação, disse, acrescentando que os Bimbos eram responsáveis pelo início do tumulto. Rose Bimbo estava sendo responsabilizada por perturbar a paz. Pete Bimbo estava sendo mantido sob fiança de 5 mil dólares por assalto com arma perigosa. Tene Bimbo, uma vez com alta do hospital, seria acusado quer por assassinato ou tentativa de morte, dependendo de Joseph Mitchel viver ou morrer.

Na quinta-feira, 27 ciganos estavam ainda sendo mantidos presos dependendo de fiança de 300 dólares, soma bastante pesada naquela época, por perturbação da ordem. Na tarde de sábado, todos menos sete haviam pago a fiança, inclusive Rose Bimbo. "Eles estavam cheios de grana", lembra-se Hutchinson, "e pagavam quer em moedas de ouro ou em dinheiro corrente. Creio que as únicas pessoas satisfeitas na cidade eram os advogados. Eles realmente tiveram lucro". Hutchinson tinha razão. Mais de 12 advogados locais participariam do caso antes de seu término.

No domingo foram tomadas medidas para que os últimos sete ciganos fossem liberados e de tarde os jornalistas tiveram permissão para visitar o acampamento na fazenda Dooley. Embora a coleta de armas feita pela polícia no local inclusive pistolas, facas e espadas, o acampamento estava calmo. Os jornalistas foram acolhidos "afavelmente" por Pete Thompson, que estava no comando devido à hospitalização de Joseph Mitchell, e que disse, 'Jornais? Certamente. Querem fotografias, Tirem quantas quiserem." Thompson levou-os pelo acampamento, onde viram "mulheres debruçadas num riacho lavando roupa", outras "pondo panelões de comida de cheiro picante no fogo", crianças 44 segurando os paletós dos fotógrafos pedindo para ver as fotografias" e homens "deitados no chão formando rodas, fumando e conversando calmamente." Thompson, de acordo com os relatos dos jornais, levou os jornalistas à sua tenda com "o chão coberto de tapeçarias, tapetes de pele de animal, almofadas vistosamente bordadas", quando enfatizou a tranqüilidade que haviam observado, dizendo que teria sido sempre assim não fosse devido a Tene Bimbo.

Na quarta-feira, dia 6 de junho, Adolph Johns teve alta do hospital e Joseph Mitchell foi considerado fora de perigo enquanto Tene continuava hospitalizado e Pete Bimbo permanecia em custódia. E a tensão que tomara conta de Methuen começou a ceder. Os ciganos, exceto aqueles que tinham parentes diretamente implicados em processos legais, começaram a deixar a fazenda Dooley e os inspetores sanitários começaram a encontrar violações nos alojamentos ocupados pelos Bimbos a fim de fazer com que saíssem da cidade. Na sexta-feira houve uma audiência dos autores do delito. Tene Bimbo, que estava em condições bastante boas, pôde comparecer à corte, voltando depois ao hospital. Foi acusado de tentativa de assassinato com uma fiança de 10 mil dólares, mais tarde reduzida a 5 mil. A pedido de seu advogado, a fiança de Pete Bimbo foi reduzida a 1.300 dólares, por ele paga imediatamente, sendo solto. Dezoito ciganos alegaram nolo contendere e o advogado Gregg informou ao juiz-presidente que havia aconselhado seus advogados a que ao receberem tal pedido recomendaria que os casos fossem "arquivados" - na verdade, abandonados - mediante pagamento das custas. Oito dos citados tiveram de pagar fiança de 200 dólares como testemunhas materiais. Com isso, restaram sete acusados a serem julgados: os três Bimbos ativamente implicados na luta - Tene, Pete e Rose - assim como quatro ciganos do outro lado, os quais haviam sido todos contra-acusados por Tene Bimbo de assalto e espancamento. A data fixada para o início do acerto desses assuntos foi 13 de julho.

Mas a "confusão" que o promotor Gregg havia prometido esclarecer imediatamente estava se tornando cada vez mais confusa. Os nomes dos ciganos presos na fazenda haviam sido rotineiramente fornecidos a outros departamentos de polícia em New England. Os resultados foram quase que imediatos. Um era procurado por haver furtado um homem em Dandurry, Connecticut, em 3 mil dólares; outros dois eram procurados pela polícia por trapalhadas em três diferentes cidades de Massachusetts; mais dois eram procurados pela polícia de Hartford, Connecticut, devido a uma acusação de grande fraude de 206 mil dólares; e ainda dois outros estavam sendo perseguidos pela polícia de Boston por roubo de carro. Tene Bimbo, naturalmente, alegou que os tiros que deu haviam sido feitos em defesa própria. Além disso, para complicar ainda mais as coisas, revelou de seu leito de hospital haver chegado de Chicago trazendo três promissórias que havia garantido e que haviam sido assinadas por ciganos que estavam no acampamento, acusando-os de lhe roubarem dinheiro, afirmando ser essa a razão por que fora atacado. Ele fez com que membros da tribo Bimbo entrassem em contato com o Departamento de Polícia de Chicago e dois detetives chegaram a Methuen para extraditarem o trio procurado.

Assim, o que a princípio parecera um simples caso de "bons" ciganos contra "maus" ciganos estava se tornando um embaraço para o promotor da cidade. Joseph Mitchell involuntariamente complicou ainda mais as coisas ao ficar bom do seu ferimento, fazendo com que a situação se tornasse menos nítida, menos dramática. E a prisão de tantas vítimas aparentemente inocentes do ataque Bimbo por policiais de fora da cidade, juntamente com todas as manobras legais do Rei Tene, levaram a outro frustrante impasse para Gregg. Os ciganos estavam reclamando. Como informou à corte mais do que irritado, "Está ficando impossível instaurar processo dessas queixas uma vez que todos os acusados, aparentemente, resolveram as diferenças que deram causa à disputa e agora se recusam a testemunhar."

Só Joseph Mitchell permanecia irredutível, insistindo nas acusações. No final do mês de junho tanto ele como Tene tiveram alta do hospital, mas o que Methuen realmente desejava era ver-se livre dos ciganos uma vez por todas. Isso se refletiu na concordância do promotor, em 13 de julho, em adiar o caso por pelo menos dois meses, usando como pretexto a incapacidade do desventurado Wasso Wenko, o verdadeiro perdedor, cuja perna ficara tão arruinada que se chegara a pensar numa amputação. A fiança do Rei Tene foi reduzida a 2 mil dólares, o que ele não teve dificuldade em cumprir, e finalmente em setembro o assunto foi entregue a um grande júri. Este deliberou com glacial rapidez e outro ano se passou até ser votado acusação - contra ninguém.

Enquanto o grande júri estava reunido, o Rei Tene, após uma rápida permanência em Chicago, estava ocupado em defender-se de uma acusação de extorsão em Detroit e de um indiciamento de perjúria no Tennesee, onde parece que havia falsamente acusado alguns ciganos de Memphis de o haverem roubado. No verão de 1929 dirigiu-se novamente para a Pennsylvania, onde a tribo Miller ocupava uma posição de predomínio. O que Tene queria, além de uma grande soma como tributo, era participação nas operações de leitura da sorte que Miller dirigia em várias cidades, em parques de diversões e mafuás em todos os Estados. Tene teve uma reunião com o chefe da tribo, Tomas Miller, em Philadelphia, e este riu-se em sua cara. Após o que, houve um assalto à meia-noite contra os ciganos Miller durante o qual foram eles batidos, suas tendas queimadas e 2.800 dólares roubados. Num segundo encontro, Miller, com raiva, cometeu o erro de chamar Tene um "usurpador" do trono Romani e "simulador bastardo" King Tene deixou de lado toda a história de dinheiro e desencadeou um furioso assalto de proporções imprecedentes até mesmo dentro dos seus habituais padrões. Em Harrisburg um homem da tribo Miller foi espancado de tal maneira que ficou paralítico da cintura para baixo. Numa rápida sucessão, dois outros foram atocaiados e assassinados por assaltantes não identificados. Mas dessa vez Tene não cometeu o mesmo erro de Methuen - não se envolveu pessoalmente nesses assaltos e nem mesmo se encontrava na cidade. Thomas Miller estava escondido num parque de diversões próximo a Hazelton, cerca de 100 milhas a Noroeste de Philadelphia, quando o que descreveu como "ciganos estranhos" começaram a aparecer em volta da sua concessão. Procurou a polícia pedindo proteção mas estava então tão acovardado que não pôde mencionar Tene Bimbo, caracterizando-o antes como "alguém de Chicago". Diante disso, pouco podiam lazer os policiais embora o parque de diversões concordasse em aumentar sua vigilância. Durante alguns dias Miller observou nervosamente que mais ciganos estranhos faziam perguntas aos outros concessionários a respeito dele e de quanto ele podia estar fazendo e finalmente à 1h30min da noite do dia 10 de agosto, de acordo com a polícia e notícias dos jornais, ele subitamente levantou acampamento com seus seguidores e fugiu não só de Hazelton mas da Pennsylvania.

Satisfeito por ter dado aos Miller um aviso de que estes não se esqueceriam tão cedo, o Rei Tene dirigiu-se em seguida para Methuen, onde soube das boas notícias de que o grande júri não o havia indiciado e então tomou a direção da costa Oeste, onde, segundo os registros oficiais, ainda não estivera. Em Los Angeles continuou com a sua maneira especial de extorsão - onde foi uma vez acusado de roubo por um cigano que, após pensar sobre o assunto, abruptamente decidiu não prosseguir com sua acusação - e então foi para San Francisco. Acabava de chegar quando recebeu notícias inquietantes de Chicago. Uma das rotineiras fontes de renda de Tene Bimbo era o pagamento por parte de todas as ofisas que operavam na cidade, quer ele estivesse nela residindo ou não, e agora vinha a saber que durante sua ausência outro cigano, Angelo Nichols, havia aberto uma cadeia delas e estava abertamente recusando-se a pagar o tributo imposto.

O Rei Tene voltou às pressas para Chicago e cercou Nichols. Além do pagamento imediato das prestações regulares, agora também pedia 5 mil dólares. Nichols disse não e, em conseqüência, três de suas ofisas, uma após outra, foram bombardeadas. Na confrontação que seguiu, Tene disse a Nichols que o alvo seguinte, a não ser que entregasse o dinheiro, não seria uma de suas ofisas mas o próprio Nichols. Pouco tempo depois uma bala penetrou pela janela da casa em que Nichols morava. Nichols, achando que isso era demais, correu para o promotor estadual contando toda a história da extorsão do Rei Tene e de suas ameaças de matá-lo.

Os funcionários da promotoria ficaram mais do que satisfeitos. Havia mais de uma década que vinham procurando prender Tene Bimbo sem o conseguir e, finalmente, vislumbravam a vitória. Com a cooperação de Nichols foi elaborado um esquema para pôr o Rei Tene por trás das grades. Antes de mais nada ele foi inquirido, quando lhe foi dito que não somente Angelo Nichols estava contando o que sabia mas que também seria a principal testemunha do Estado contra ele. Após a soltura de Tene, um informante fez saber que ele estava à procura, como Patrick Roche, o investigador chefe da promotoria estadual o disse, de um "agente vingador" para silenciar Nichols definitivamente. Era exatamente isso o que todos queriam. Roche designou um secreta para abordar o Rei Tene num restaurante que freqüentava. O detetive disfarçado disse ter ouvido dizer que Tene estava à procura de alguém para fazer um trabalho para ele. "Darei 250 para que um homem seja eliminado", Tene Bimbo respondeu sem hesitação.

"Conheço um homem que fará o trabalho", disse o detetive, "mas pode custar um pouco mais."

O Rei Tene sacudiu a mão com desprezo como dizendo que o dinheiro não importava; o importante, disse ele, é que o trabalho seja feito bem e com presteza. O secreta apresentou Tene ao suposto matador, um segundo detetive que trabalhava para o promotor estadual, que, para fazer a conspiração mais plausível, exigiu o preço de 500 dólares. Tene concordou mas estipulou uma condição: devia saber exatamente quando ia ser cometido o assassinato. Alguns dias depois, foi avisado da hora e local para aquela tarde. Durante todo esse tempo havia sido mantido sob rigorosa observação e a razão de desejar ser avisado com antecedência tornou-se evidente. Logo após ter recebido a chamada, ele e dois de seus filhos foram a um distrito policial de Chicago sob um pretexto qualquer e lá permaneceram enquanto o assassinato estava sendo supostamente levado a efeito, dando-lhe assim o que presumia ser um perfeito álibi. A polícia, por sua vez, aproveitou sua presença na delegacia em sua própria vantagem fazendo com que chegasse a comunicação de que Nichols fora encontrado apunhalado.

O Rei Tene encontrou-se então com o assassino contratado para o pagamento mas levou todos ao pânico temporário ao declarar desejar uma prova suplementar; queria ver o corpo. Assim, Angelo Nichols teve de ser levado às pressas para a morgue da cidade e posto numa lousa sob um lencol para uma rápida vistoria.

Finalmente convencido de que o seu usurpador tinha recebido a sua última recompensa, Tene Bimbo começou a regatear o preço, baixando-o para 280 dólares, e foi prontamente preso por conspirar assassinato. Um comunicado interno do escritório do promotor estadual descreveu-o como um "perfeito caso de conspiração" e o investigador chefe Roche disse à imprensa que tudo havia sido cuidadosamente planejado do começo ao fim com testemunhas de todas as conversas importantes, assim como a entrega do dinheiro. Era, disse ele, "irrefutável".

Mas isto não era o fim do Rei Tene. Ele desistiu de um julgamento e o seu advogado argumentou que, no caso de ser defensor nessa acusação, os dois agentes secretos deveriam ser acusados com igual rigor; eles, afinal de contas, é quem tinham abordado o seu cliente. A juiz ouviu, concordou e encerrou o caso. Quando Tene falou aos repórteres, mais tarde, tomou ares de Job, "Desgraça, desgraça e mais desgraça", disse ele com ar cansado, "é só isso o que tenho por parte de Nichols e seu pessoal." Um representante da procuradoria estadual disse com brusquidão, "sem comentários", mas pouco tempo depois Nichols abandonou o negócio das ofisas.

Tendo afirmado o seu domínio sobre os ciganos locais, o Rei Tene decidiu, no entanto, que o irado sistema gadjo de cumprimento da lei, ferido por esta última humilhação, poderia retaliar de alguma maneira e achou mais prudente deixar Chicago por algum tempo. Decidiu estabelecer-se em Nova Iorque, uma cidade pela qual passara volta e meia, mas onde nunca permanecera nenhum tempo. A mais proeminente figura na grande comunidade Romani lá era Steve Kaslov, o autoproclamado "Rei e Juiz de todos os Ciganos Russos na América", antes um homem astuto do que de ação, semelhante ao rei negro "yassuh", líder do então movimento negro.

Tene instalou-se no número 139 de Park Row, a pouca distância do City Hall no baixo Manhattan, e estava residindo na cidade há apenas um mês quando fez a sua primeira investida contra Kaslov. Cerca de 24h30min do dia 18 de janeiro de 1932, sua filha Rose Bimbo, que então usava o nome de MeGinnis, compareceu ao distrito policial próximo chorando incontrolavelmente acompanhada de outra cigana chamada Margareta, a qual tinha um ferimento na cabeça, sangrando. De acordo com a queixa apresentada por Rose entre soluços, Steve Kaslov, juntamente com três outros homens que ela não reconheceu, havia entrado no número 139 de Park Row uma hora antes quando ela e Margareta estavam sozinhas. Dois dos homens permaneceram à porta de entrada enquanto Kaslov e o quarto homem avançavam para ela e Margareta. Kaslov, jurou Rose, tirou um revólver e disse, "Onde está o dinheiro?" Quando não recebeu resposta, Kaslov bateu com a arma na cabeça de Margareta e depois outra vez. Após a segunda Pancada, continuou Rose, Margareta indicou uma mala fechada. Kaslov e um dos outros homens ao serem informados não terem elas a chave da mala, abriram a fechadura com uma machadinha e retiraram dez notas de 10 dólares.

Não satisfeitos com isso, depôs ainda Rose, Kaslov ameaçando-a com a pistola. retirou um colar que ela usava confeccionado de 15 moedas de ouro de 20 dólares.

Steve Kaslov foi preso na mesma noite em seu apartamento no número 211 da Rua East Third e acusado de furto e mantido sob fiança de 500 dólares, a qual foi paga por um afiançador de Nova Iorque utilizado habitualmente pelos ciganos, de nome Louis Berger. No dia 3 de fevereiro Kaslov foi acusado por um grande júri de roubo em primeiro grau, assalto em primeiro grau, grande malícia em primeiro grau e por receber criminosamente objeto roubado. Caso condenado em todas as acusações, Kaslov então com 43 anos podia contar permanecer o resto de sua vida na prisão.

O caso foi a julgamento no dia 28 de março e o Rei Tene, como testemunha de acusação, desempenhou papel de pequena importância. Declarou que estivera no número 139 de Park Row na noite em questão até às 10 horas, quando ele e outros membros de seu clã partiram para visitar um amigo doente, deixando Rose e Margareta sozinhas. A Rainha Mary, no entanto, estendeu-se longamente em suas declarações. Os 10 mil dólares roubados da mala pertenciam-lhe. Havia três anos, explicou ela, seu filho Stevo Bimbo tinha feito um empréstimo bancário de $3.526,22 e dado a ela 350 que guardara cuidadosamente como qualquer boa mulher o faria, retirando uma parte de vez em quando para alguma emergência ou outra para alimentar sua família, abrigada e em boa saúde. Sabia, disse ela, que havia exatamente mil dólares na mala porque naquele mesmo dia contara o dinheiro, verificando haver 1.050, sendo que retirara 50 para pagar ao proprietárIo o aluguel do mês seguinte. Stavo Bimbo então depôs para corroborar a afirmação de que lhe dera o dinheiro. Rose e Margareta reiteraram as afirmações feitas na ocasião da queixa original. Dois policiais atestaram haver inspecionado a mala em questão é encontrado a fechadura quebrada e um interno em serviço numa ambulância disse que Margareta solicitara tratamento médico para um corte na cabeça. Quanto a alguma evidência física, não foi encontrada arma ou dinheiro no apartamento de Kaslov, mas um bilhete de penhora de um colar de ouro foi descoberto, embora datado do dia anterior em que o crime havia sido supostamente cometido.

O Rei Steve Kaslov falou em sua própria defesa, alegando ser tudo uma armadilha. Era fato bastante conhecido, disse ele, que "a tribo Bimbo vinha maquinando contra as pessoas e acusando-as de vários crimes que nunca cometeram, em muitas cidades em todo o país." Acrescentou, com evidente amargura, que "Tene Bimbo vem extorquindo dinheiro dos ciganos há muitos anos" e que era devido à minha insistência que "Bimbo e sua família tinham deixado de perseguir os ciganos de Nova Iorque e extorquir-hes dinheiro mediante diferentes ameaças, que esta acusação havia sido inventada pela família Bimbo contra mim". Como alibi jurou ter estado no momento em que era acusado de estar roubando os Bimbos num restaurante de propriedade de Frank Stravelli no setor da Pequena Itália da cidade. O senhor Stravelli e sua mulher testemunharam a favor de Kaslov dizendo crer ser isso verdade, embora que quando reinquiridos tenham admitido ser ele um freguês habitual e estimado há vários anos. O júri deliberou durante 45 minutos e concluiu pela culpabilidade de Kaslov da acusação de roubo a mão armada. Ele foi subseqüentemente sentenciado a não menos de 15 anos e não mais de 21 anos numa penitenciária estadual em Ossining, mais conhecida como Sing Sing. Pouco tempo antes do sentenciamento, o advogado de Kaslov, alegando nova evidência, deu entrada a um pedido de novo julgamento, o qual foi recusado pelo juiz, que observou, "Segundo sua ficha, o seu cliente não é um anjo."

A nova evidência que na melhor das hipóteses era suspeita, consistia no depoimento de vários ciganos certificando que, por uma razão ou outra, Steve Kaslov não podia realmente ser culpado de roubo e que não o haviam antes declarado durante o julgamento devido ao medo que todos eles tinham de Tene Bimbo. Mas o triunfo do Rei T ene sobre o seu rival não durou muito. O julgamento havia recebido ampla publicidade e, em conseqüência, o seu passado começou a prejudicá-lo. O primeiro a entrar em contato com o advogado de 1(aslov foi um procurador de Chicago que havia representado Angelo Nichols durante um certo momento durante a luta que perdera contra Tene. O promotor estadual de lá também ficou encantado em contribuir com um longo e pouco favorável relato das atividades de Tene Bimbo. De posse desse e outros documentos, o advogado de Kaslov apelou de sua condenação. A Comissão de Crimes de Chicago, por exemplo, escreveu sobre os Bimbos, "Segundo os registros de nossos arquivos, evidencia-se que esse bando de ciganos está constantemente em conflito com a lei, quer como queixosos ou acusados.

Diz-se que esse grupo de ciganos em suas tentativas de extorquir dinheiro das tribos rivais profere acusações criminais contra elas para posteriormente propor-lhes um acordo mediante uma certa soma de dinheiro. No caso da sua proposta não ser aceita, prosseguem com as acusações anteriores." O diretor executivo da Associação Protetora da Juventude de Chicago, que havia tido mais de um choque com os Bimbos em geral e com Rose em particular, declarou, "Creio que não houve família cigana em Chicago, ou nos Estados Unidos, que tenha suscitado tanto descrédito na raça cigana quanto os Bimbos e Rose já em tenra idade foi de grande auxílio ao seu pai nos métodos por ele empregados... Os nossos registros e todos os contatos que tivemos com Rose e sua família mostram que não se pode em absoluto confiar em suas afirmações." Um garçon que havia trabalhado no restaurante Stravelli na noite do roubo, mas que o deixara antes do início do julgamento, foi finalmente localizado e jurou que Kaslov havia estado lá todo o tempo. Testemunhos adicionais de outros ciganos foram apresentados. Alguns atestaram atos passados semelhantes aos de Tene Bimbo; outros declararam que haviam ouvido Margareta declarar que de fato fora um Bimbo quem a ferira na cabeça para fazer crer haver sido atacada; outros ainda falaram das ameaças de Tene a ciganos de Nova Iorque caso tentassem ajudar Kaslov. E conquanto ficassem muitas vezes por demais na moita, muitos deles usando as mesmas palavras para descrever um acidente, só o seu número era impressionante.

Mas os documentos mais reveladores na apelação foram os que mostravam que tanto Stavo Bimbo como sua irmã Rose haviam mentido em seu testemunho. Antes de começar o julgamento, o advogado de Kaslov havia ouvido muitos boatos sobre os Bimbos, especialmente em Chicago, e havia pedido ao Departamento de Polícia daquela cidade quaisquer registros que pudessem ter sobre eles. Recebeu a resposta de que todas as informações disponíveis já haviam sido transmitidas ao Departamento de Polícia de Nova Iorque. Mas quando prosseguiu sua sindicância em Nova Iorque por meio de um subpoema, foi-lhe dito que o departamento não tinha nada sobre os Bimbos implicados no caso a não ser uma prisão de Rose que havia sido cancelada - não podendo assim ser usada no julgamento. Nunca ficou esclarecido se alguma informação havia sido fornecida ou se, de alguma maneira, havia sido desviada. Em todo o caso, enquanto Stavo e Rose Bimbo ocupavam o banco dos réus, o advogado de Kaslov, visando mais além, perguntara a cada um deles se já haviam sido condenados alguma vez e ambos haviam enfaticamente negado. Na ocasião, o advogado não pudera contradizê-los. Mas agora, com toda a documentação que havia reunido, podia mostrar que Rose havia cumprido pena devido a um caso de prisão por furto de carteira e que Stavo Bimbo uma vez declarara-se culpado de assalto a mão armada.

Quase um ano depois, em 15 de fevereiro de 1933, a Divisão de Apelação da Suprema Corte do Estado de Nova Iorque anulou a condenação de Kaslov declarando: "Caso o júri tivesse tido conhecimento das atividades criminais e da folha corrida da família Bimbo cujos membros eram os acusadores que testemunharam e com cujas bases foi o acusado condenado, provavelmente não teria sido emitido o veredito de culpado ... Esses documentos provam suas carreiras de crimes fétidos, que incluem entre outras extorsões, assaltos e particularmente o uso indevido das cortes criminais para fazerem falsas acusações contra indivíduos que incorreram em sua inimizade e cuja prisão procuravam e obtiveram".

Afinal de contas, o Rei Tene obteve uma pequena dose de satisfação. O seu rival, Rei Kaslov, que não estava acima de suspeita de idênticas trapaças, esperou alguns meses e então retaliou fazendo com que um homem que tinha como ocupação declarada padeiro, acusasse Rose e Margareta de terem-lhe extorquido 900 dólares num negócio boojo. Tene Bimbo compareceu ao tribunal quando as duas mulheres foram interrogadas e posteriormente, aparentemente por acaso, encontrou-se com o corretor favorito de Kaslov, Louis Berger. Berger, que tinha tido ele mesmo uma carreira não muito limpa, o que incluía recebimento de mercadorias roubadas assim como assalto e agressão, sugeriu a Tene que por um preço - ou seja, quinhentos dólares - poder arranjar as coisas. Enraivecido por ver-se objeto de uma vigarice, presumivelmente tramada por Kaslov, Tene fez de conta que concordava. Foi dado o sinal de 350 dólares e foi fixado um encontro para o segundo e último pagamento num hotel no East Side do baixo Manhattan. Tene Bimbo então contou toda a história à polícia - usando, de acordo com os Bimbos, o apelido de "Peter Stokes" devido à má reputação de que gozava o nome do clã nos círculos legais de Nova Iorque. Os policiais marcaram o dinheiro, escutaram a transação ser feita de um quarto vizinho no hotel e prenderam Berger. No dia em que ele devia comparecer ao tribunal, no entanto, o corretor foi encontrado morto numa cadeira de sua cozinha, asfixiado pelo gás do fogão. Não havia nota alguma e a polícia supôs que Berger havia acendido o fogo para aquecer uma chaleira dágua e adormecera enquanto isso e que a água tendo fervido apagara a chama. Mas não existe um Bimbo que ao relembrar o acontecimento não acredite que Louis Berger cometeu suicídio por haver traido o Rei Tene.

Apesar disso tudo, não há dúvida de que Tene não conseguiu o mesmo resultado em Nova Iorque que o que obtivera em Chicago e após alguns meses mudou-se, espumando de raiva, para Boston para planejar novos empreendimentos. Seu humor não melhorou quando sua filha Rose permaneceu em Nova Iorque e, para aborrecimento ainda maior do velho, pôs-se a viver com um comerciante gadje - um "filhinho do papai" - chamado Charles Fiske. Enquanto os Bimbos estavam em Boston, a Rainha Mary ficou doente e Rose, com Fiske nos calcanhares, apareceu para visitá-la. No princípio Fiske não queria entrar na casa de Tene no South End de Boston, mas foi-lhe garantido por dois membros da tribo Bimbo, como mais tarde ele testemunharia, que "tudo estava arranjado". Ele entrou com Rose que, após visitar a mãe, saiu para fazer algumas compras. Por uma razão qualquer, possivelmente devido à frustrante raiva que fervia dentro dele, Tene Bimbo subitamente ficou danado e agrediu Fiske na cabeça. Quando Fiske recuperou os sentidos, com sangue pela cara, viu-se amarrado a uma cadeira. Segundo um dos Bimbos que estava na casa na ocasião, Tene disse a Fiske. "Você sabe quem sou eu?" e Fiske respondeu: "Sim, Bimbo, eu sei quem é você" e Tene disse: "Quando se dirigir a mim chame-me de Senhor Bimbo" e deu-lhe um soco na boca. E então começou a bater-lhe com uma corda dobrada. O Bimbo que estava lá relembra, "Foi terrível, horrível, todo mundo gritando. Nunca vimos o velho assim e todos nós nos escondendo".

Até a empedernida Rose desmaiou quando viu o estado de Fiske ao regressar. Rose soltou Fiske, que primeiro se fez tratar por um médico e em seguida apresentou queixa contra Tene, acusando-o não somente de agressão mas também de o haver roubado em cem dólares. Tene foi preso, mantido sob fiança de quinhentos dólares e devido à ferocidade do ataque examinado por psiquiatras indicados pelo tribunal. Em seu relatório os psiquiatras anotaram que o prisioneiro lhes dissera ter sofrido um ferimento na cabeça em 1910, ter sido hospitalizado durante duas semanas e obtido uma "boa" recuperação. Negou quaisquer outras lesões graves e disse ser o seu estado de saúde excelente. Contou aos médicos não haver nunca freqüentado escola e que havia sido "membro de um bando de ciganos nômades até a idade de dezesseis anos". Acrescentou que após deixar o bando de ciganos havia "dedicado-se ao comércio de cavalos com considerável sucesso até o ano de 1923" e desde então "entrara no negócio de caldeireiro" Tene admitiu ter sido previamente preso em Chicago três vezes, mas afirmou ter sido incriminado falsamente. Sob o quesito de adaptação social, os psiquiatras escreveram: "Tem poucos interesses fora da família e seus negócios. É sociável e comunica-se com facilidade". Concluíram, "Conquanto analfabeto, o prisioneiro é ao menos de inteligência média normal. Mentalmente não apresenta sinais de delírio, alucinações ou outras tendências anormais. Em nossa opinião o prisioneiro não é louco nem débil mental".

O Rei Tene foi indicado por um grande júri de Boston e estava para ir a julgamento quando Fiske subitamente declinou de testemunhar contra ele, quer devido ao medo de algo mais que Tene pudesse reservar-lhe, o que é o que a maioria dos Bimbos crêem, ou devido às astúcias de Rose, que poderia tê-lo convencido disso - ou talvez a ambos os motivos. Em todo o caso, Fiske aferrou-se teimosamente à sua nova versão. Disse ter pretendido que Tene o amarrara e feito as outras alegações só para "chateá-lo" e recusou-se a dizer mais alguma coisa.

Se a sua confusão com Steve Kaslov podia ser considerada como um certo revés, a sua boa estrela havia desaparecido completamente por volta de 1936. Ele estava por trás das grades por um longo período pela primeira vez em sua vida - numa penitenciária federal em Lorton, Virginia. Nos seus primeiros tempos, o Rei Tene havia se dedicado a uma proveitosa patuscada que continuou a realizar mais como um passatempo do que outra coisa, algo para ocupar-se e manter-se em forma.

O passatempo consistia em enganar os bancos no troco. Sempre bem vestido, Tene iria a um banco e apresentaria uma nota de valor alto, uma de quinhentos ou mil dólares, pedindo para trocar. Em geral começaria por pedir, digamos, dez notas de cem dólares. Quando o caixa os estivesse contando, Tene faria um novo pedido. Decidira querer quinhentos em notas de cem, trezentos em cinqüenta e duzentos em vinte. O caixa recomeçaria tudo de novo e então havia uma outra interrupção. "Faça uma dessas de dez em cem" diria Tene, "e uma das de vinte em cinco". Escolhia uma hora de movimento e logo haveria uma fila enorme de clientes impacientes atrás dele, o que confundiria ainda mais o caixa. O Rei Tene, no entanto, os ignoraria ascintosamente ao contar o dinheiro que lhe era entregue, recebendo parte dele à medida que ia mudando de idéia, algumas vezes pedindo mesmo abruptamente cinco ou dez dólares em moeda e freqüentemente gaguejaria seus pedidos ao caixa num inglês incompreensível de modo a que este, além de todos os seus outros problemas, ficasse ainda mais distraído por ter de se debruçar para ouvir o que Tene estava dizendo.

Se um caixa excepcionalmente rápido estava no guichet e percebesse a falta antes dele sair, Tene recorreria ao velho truque cigano de deixar o dinheiro cair no chão, afirmando ter caído do balcão. Mas em geral a perda só era descoberta no final do dia, quando o infeliz caixa se lembraria de repente do senhor corpulento e bem vestido com um grande bigode que tivera alguma dificuldade em se fazer entender. Lendas começaram a surgir a respeito dele. Mesmo os funcionários encarregados do cumprimento da lei acreditavam que a média do seu lucro era de quinhentos dólares. Mas na verdade ele era mais modesto em seus objetivos. Um lucro de cento e cinqüenta era tudo o que na verdade esperava conseguir numa transação de uma nota de mil e não mais de cinqüenta ou setenta e cinco numa de quinhentos dólares.

A lei da casualidade finalmente surpreendeu-o em Washington. Apanharam-no roubando cento e cinqüenta de um banco, embora ele tenha pretendido que o dinheiro era na verdade dele e então descobriu-se que a sua descrição ajustava-se à de um homem implicado num roubo semelhante em outro banco naquele mesmo dia num total de cento e trinta dólares. Pior ainda, enquanto era mantido preso para interrogatório, verificou-se estar sendo procurado por muitas outras cidades por idêntico golpe, tendo acabado por ser setenciado de dois a oito anos na prisão de Lorton.

Enquanto o Rei Tene estava cumprindo pena, um segundo desastre pesou sobre a tribo Bimbo. A Rainha Mary, que havia voltado para Chicago, foi presa no dia 26 de abril de 1937 por haver trapaceado um fazendeiro de Wisconsin, chamado Stanley Kozak, num boojo. No início daquele mês, segundo Kozak, ele, sua mulher e filha estando de passagem,por Chicago haviam visto um estabelecimento de quiromancia. Entraram e tiveram o seu futuro previsto por uma mulher cigana que mais tarde foi identificada por Kozak como a Rainha Mary. Durante a sua sessão com ela, Kozak revelou à Rainha Mary não estar se sentindo muito bem e ela o instruiu para voltar sozinho mais tarde naquele dia. Ele o fez e a Rainha Mary confidenciou-lhe que havia tido "muita sorte" em procurá-la uma vez que as pontadas que vinha sentindo eram avisos iniciais de uma doença muito grave causada por um "mal" que pairava sobre ele. Nas duas sucessivas visitas Kozak ficou muito impressionado pelas demonstrações da cabeça de diabo no ovo e pela água fervendo como sinais de seu precário estado. Então a Rainha Mary disse a Kozak haver recebido uma "mensagem". Todos os seus males estavam sendo causados por dinheiro maldito; devia trazer-lhe, ao menos, mil dólares para serem exorcizados, juntamente com um galo vivo. O obediente Kozak comprou o galo, como testemunhou, por $1.05 e também trouxe todo o dinheiro que conseguira reunir seíscentos dólares. A Rainha Mary resmungou um pouco diante da soma, mas disse que ia fazer o que podia. Ela pegou o dinheiro, embrulhou-o num lenço e pareceu dependurá-lo na camisa de Kozak em cima do seu coração. Ela então segurou o galo próximo ao lenço e informou a Kozak de que o momento da verdade chegara. Caso tudo fosse bem, o galo absorveria todo o mal causado pelo dinheiro e morreria e Kozak viveria. Quanto à alternativa inversa, ela limitou-se a levantar os ombros. Ela começou a rezar, passando o galo em torno do lenço preso ao peito de Kozak e imediatamentehouve um breve arquejar e o galo morreu. Kozak lembra-se vivamente como um dos esporões do galo arranhou-o no pescoço antes de morrer. Recebeu ordem de não dizer nada a ninguém e conservar o lenço com ele, sem abri-lo, durante nove dias enquanto ela ia a Nova Iorque. Mas antes que ela pudesse fugir, uma manhã Kozak esqueceu-se de pegar o lenço e a sua mulher o descobriu em baixo do travesseiro, abriu-o e perguntou ao marido o que estava fazendo com um lenço cheio de papel em branco, e ele envergonhadamente procurou a polícia.

Da prisão o Rei Tene mandou dizer à Rainha Mary para adiar o julgamento o máximo, na esperança de serlhe concedida liberdade condicional, para maquinar a defesa dela. Ela pagou uma fiança de quinhentos dólares e conseguiu vários adiamentos mudando de advogados, mas finalmente quando o pedido de soltura de Tene foi recusado no outono de 1939, ela não teve outro recurso senão deixar de pagar a fiança, algo que havia feito com sucesso em três outros casos. Nessa ocasião, no entanto, foi localizada em Nova Iorque e enviada a Chicago. No dia 10 de março de 1938, fez uma última tentativa de adiamento alegando que o seu advogado não havia comparecido ao tribunal, mas o juiz indicou um defensor público para representá-la. Compareceu ao julgamento e foi julgada culpada e setenciada de um a dez anos no Reformatório Estadual para Mulheres em Dwight, lilinois. Em outubro a Suprema Corte Estadual confirmou a condenação. Ela apelou alegando ter sido forçada a aceitar um defensor público contra a sua vontade e ele, por sua vez, convenceu-a a aceitar um julgamento de Júri, o que era exatamente o que ele desejava. A corte, observando que havia obtido doze adiamentos usando quatro diferentes advogados, não aceitou a pretensão do defensor público; disse também que ela compreendera perfeitamente o que estava fazendo quando se negara a um julgamento do júri e acrescentou ser esmagadora a evidência de que obtivera o dinheiro "por meio de abuso de confiança".

A Rainha Mary recebeu mais más noticias quando se tornou elegível para livramento condicional após um ano no reformatório. O Comitê de Perdão e Livramento Condicional determinou que devia cumprir o período máximo para esse tipo de sentença - um total de seis anos e três meses. A decisão do comitê foi altamente influenciada por um exame psiquiátrico da Rainha Mary que a descrevia, em parte, como "uma cigana obscena que tinha modos amigáveis, sorria facilmente, mas que não admitia nada", notando ainda que "ela mente com o maior caradurismo e projeta todas as culpas nos outros". Ao recomendar a não concessão do livramento condicional, o relatório concluiu: "É pouco provável que a prisioneira tenha um bom ajustamento social não somente tendo em vista os seus antecedentes anti-sociais mas também sua recusa em aceitar qualquer culpa".

Nessa altura o Rei Tene havia sido solto de Lorton e foi-lhe permítido reunir-se à sua família em Chicago, onde devia apresentar-se regularmente ao controle do funcionário encarregado do livramento condicional. Foram realizadas várias conferências entre os Bimbos sobre o apuro em que se encontrava a Rainha Mary. Uma vez que tinham sido tentados todos os meios legais, ela tinha de ser libertada de outra maneira, mas como? Conquanto o reformatório não oferecesse condições máximas de segurança, ainda assim era uma prisão em que não se podia entrar e sair à vontade. Não obstante, o Rei Tene foi lá vê-la e observar o lugar. A Rainha Mary falou com amargura sobre a recusa de sua própria libertação condicional e também mencionou os testes "loucos" a que fora submetida e quando Tene chegou em Chicago já tinha uma idéia que levaria à clássica fuga da prisão.

Os Bimbos iam a Dwight todos os dias de visita e através deles o Rei Tene instruiu-a de que "se fizesse de louca". Ele não sabia exatamente quais os resultados disso mas pressupôs que isso, ao menos, seria o primeiro passo para fazer com que fosse transferida para alguma espécie de hospital onde ele poderia fazer o movimento seguinte. Propositadamente não a reviu mais enquanto ela permanecia em custódia porque tinha de se preocupar com o seu comparecimento ao funcionário e para ter certeza de que ninguém o poderia ligar diretamente com o que estava bolando.

A mudança de comportamento da Rainha Mary no reformatório foi notada quase que imediatamente. Um relatório manifestava certa perplexidade: "É difícil determinar o grau de retardo dessa mulher". Outro declarava: "Em suas histórias ela põe uma grande dose de fantasia, mas não há evidência de psicose". "Caso outros testes psicológicos mostrem um categórico retardamento, poderá ser considerada a conveniência de internação numa instituição para débeis mentais".

Os Bimbos esperaram com impaciência que algo acontecesse e foi então que ocorreu um golpe de sorte. No dia 10 de outubro de 1939, a melhor amiga da Rainha Mary no reformatório, outra interna chamada Christine Sedivry morreu. A Rainha Mary foi mantida sob observação para ver quais seriam os efeitos maléficos da morte sobre ela e aproveitou a oportunidade para entrar num rápido declínio. "Mostra-se desorientada quanto ao lugar, não reconhece o pessoal e não responde a perguntas referentes a orientação ou tempo", revelou uma nova análise. "Vem tendo alucinações visuais e auditivas e deve ser observada de perto devido a possível tentativa de suicídio. Essa paciente está agudamente psicótica e há indicação de sedativos e de hidroterapia. Se continuar perturbada, é recomendável uma transferência para o Hospital Estadual Kankakee".

Era a maior trapaça em que jamais se lançara e a Rainha Mary a desempenhou com perfeição. Os supervisores observavam-na correndo por todos os lados, ameaçando alvos invisíveis. Quando lhe perguntavam o que estava fazendo, ela dizia: "Vocês não os vêem? Eu os estou matando. Estou matando os ratos! Então um dia encontraram-na sentada numa cadeira embalando um objeto embrulhado numa toalha, cantarolando suavemente. Perguntaram-lhe ainda o que estava fazendo e ela respondeu: "Estou cuidando do bebé.

Ele está doente". A toalha foi desdobrada e viu-se que ela continha um rolo de papel higiênico.

Isso parecia resolver as coisas. No dia 6 de outubro ela foi considerada louca e transferida para o Hospital KanKakee, uma instituição para tratamento mental situada a cerca de sessenta e cinco milhas ao Sul de Chicago. A maioria dos pacientes nessa ocasião estava sob tutela do tribunal. Só uma pequena percentagem vinha de instituições correcionais e, como a Rainha Mary, estavam lá para reabilitação mediante um acordo com a administração da prisão de que voltariam unia vez tendo melhorado. As pacientes que haviam sido julgadas criminalmente insanas e perigosas, o que não era o caso dela, ficavam isoladas numa enfermaria fechada e não lhes era permitido nenhuma liberdade de movimentos sem supervisão. As pacientes que haviam sido presas tinham os mesmos privilégios que as demais e podiam andar pelos jardins e viviam em "enfermarias abertas", as quais consistiam em edifícios de dois andares de cimento algo parecidos com mansões rurais. No andar superior de cada um deles havia uma grande sala com cerca de 300 por 100 pés com fileiras e mais fileiras de camas, ocasionalmente separadas por biombos, que podiam abrigar perto de cento e oitenta internas. O andar térreo era destinado à recreação e visitantes, dividido em quatro salas com vários conjuntos de sofá, mesa e algumas cadeiras e no porão havia uma lanchonete e uma cozinha.

Além do pessoal hospitalar havia cerca de vinte guardas. Os passes para as visitas eram apanhados no edifício da administração. Os nomes de todos os visitantes eram registrados, sendo-lhes dado um cartão. Com esse passe, normalmente, só dois visitantes podiam ver um determinado paciente ao mesmo tempo, enquanto os outros esperavam sua vez. Mas quando o Rei Tene iniciou a fase seguinte do seu plano, os Bimbos vinham de Chicago e de outros lugares para passar o dia com ela, jovialmente ignorando o regulamento de um passe para dois visitantes, alguns fazendo de conta não entenderem o inglês, bajulando os guardas, as jovens flertando com eles, outros despejando uma torrente de gracejos, prometendo dizer-lhes o futuro, gritando alegremente, "Estamos aqui para ver nossa mãe!" ou "Estamos aqui para ver nossa Rainha". No princípio houve alguma resistência por parte das forças de segurança do hospital, mas gradualmente habituaram-se com a invasão de ciganos que sobre eles caía e começaram a encarar a sua chegada com resignado divertimento.

Nas primeiras horas da tarde do dia 18 de março de 1940, doze Bimbos - quatro homens e oito mulheres - vieram ver a Rainha Mary. As mulheres, como sempre, estavam com blusas e saias rodopiantes, com lenços na cabeça. Uma delas estava usando uma segunda saia, outra tinha uma blusa extra, a terceira havia escondido outro lenço e, ao se agruparem excitadamente em torno dela, a Rainha Mary rapidamente trocou suas roupas do hospital pelas novas vestimentas e pouco tempo depois saíu no meio delas, rindo e conversando. Para ter a certeza de haverem enganado o último guarda que passaram, um dos homens de tribo Bimbo deu-lhe uma gorgeta de vinte dólares, pedindo-lhe para tomar conta da senhora cigana.

O plano original era fazer com que uma das mulheres Bimbo esgueirasse-se escada acima e entrasse na cama da Rainha Mary, puxar as cobertas sobre a cabeça e ali ficar até ser descoberta e então pretender que havia simplesmente decidido tirar uma soneca e que não tinha nenhuma idéia da confusão. Mas a Rainha Mary informou aos seus salvadores não haver realmente nenhuma necessidade de pôr alguém em perigo uma vez que o hospital se tornara tão descuidado na contagem das pessoas na hora do jantar que somente à noite se preocupariam em fazer a verificação na hora de dormir, várias horas mais tarde.

Os Bimbos, juntamente com a Rainha Mary, partiram em dois carros. Nesse momento ninguém sentiu qualquer alegria. "Temiamos" um dos implicados na grande fuga disse, "Temíamos que a qualquer momento ouvíssemos as sirenas e fôssemos apanhados e a perdêssemos novamente". Fizeram com que ela trocasse novamente de roupa e após terem viajado aproximadamente dez milhas, os dois carros pararam e ela foi transferida para um terceiro carro parado perto da estrada. O terceiro carro tomou a direção leste para a fronteira de Indiana enquanto que os dois carros com os Bimbos que haviam deixado seus nomes no hospital dirigiram-se de volta a Chicago. No carro que levava a Rainha Mary, duas mulheres Bimbo aplicaram-se a tingir o cabelo dela em vermelho e aplicar-lhe cosméticos. "Você nunca a teria reconhecido", disseram-me. "Ela parecia dez, quinze anos mais moça". O único problema era a própria Rainha Mary que resmungava continuamente por não lhe permitirem saborear seu cachimbo.

Pouco antes de atingirem Indiana ela foi transferida para um quarto carro e eventualmente passou o que restava da noite num hotel em Detroit. Ela foi então conduzida a Nova Iorque, onde durante cerca de um ano permaneceu num apartamento em East Harlem. O boletim de "procurada" dizia: "Mary Bimbo, também conhecida como Mary Tene, Mary Pulitch, Margaret Puloch e Margaretta Polish. Cigana, com 51 anos, cinco pés de altura, cerca de 171 libras, cabelo preto, olhos marrons, gorda, casada. Muito conhecida realizadora de todos os tipos de trapaças ciganas. Acompanhada em geral por vários membros da sua família". Uma péssima fotografia que a mostrava sorrindo amplamente, também foi distribuída.

Ela não foi nunca encontrada.

Por volta das dez horas da noite no dia da fuga, como os Bimbos esperavam, a polícia chegou às suas residências que sabidamente tinham em Chicago, uma na Rua South Halsted e a outra na Avenida Blue Island. Pretendendo terem sido acordados de um sono profundo, os Bimbos perguntaram aos policiais o que estava acontecendo e foram informados do desaparecimento da Rainha Mary. Responderam terem-na visto pela última vez no hospital algumas horas antes, quando lhes tinha dado adeus animadamente. Coube ao Rei Tene tomar a iniciativa. Subitamente começou a brigar com a polícia dizendo querer saber o que acontecera à sua mulher, ameaçando responsabilizar a cidade e o Estado. "Vocês a tiraram de nossas mãos", berrou ele. "Ela estava confiada a vocês! O que fizeram com ela?" Os policiais, tomados de surpresa, prometeram investigar mais o assunto.

Tene, que havia sido obrigado a permanecer em Chicago devido às exigências do seu livramento condicional, continuou seu ataque contra a polícia, os funcionários da prisão, a administração do hospital. Deu particular atenção ao funcionário a quem devia se apresentar, exigindo que ele lhe dissesse como uma coisa dessas podia acontecer. Mas lentamente, sobretudo com este último, começou a mudar de tom. Ao invés de deixar crer que o Estado estava implicado de certa maneira num plano nefasto contra sua mulher, caiu num sentido desespero. "Como eles puderam deixar ela fazer isso?" diria ele, caindo em lágrimas, enquanto o funcionário procurava consolá-lo. "Sabe o que estou dizendo, como puderam eles deixá-la fugir assim? Talvez ele esteja caída numa vala em algum lugar qualquer ou num rio sem um enterro decente e nada". Finalmente levantou a questão de que devido a todas as "más lembranças", não podia suportar permanecer em Chicago mais tempo e foi-lhe permitido, um ano após a fuga, mudar-se para Nova Iorque.

Uma vez lá, sua preocupação máxima foi o seu antigo rival, Steve Kaslov, que estava então recebendo considerável cobertura da imprensa por conseguir que seus seguidores freqüentassem um curso de leitura e escrita, patrocinado pelo governo, para os ciganos residentes na cidade - curso esse que foi de curta duração. O receio de Tene era que Kaslov pudesse vir a saber da presença da Rainha Mary em Nova Iorque e informasse à polícia. Assim, a altas horas da noite ele, juntamente com três homens da tribo Bimbo, abordaram Kaslov num restaurante italiano no número 117 da Rua Mott no Baixo Manhattan. O restaurante era chamado Puglia - nome de uma província italiana - e que tinha pratos regionais como tripa e outras entranhas animais e uma variedade de ragús assim como cabeça de carneiro assada, todas elas iguarias apreciadas pelos ciganos. Kaslov estava justamente saindo quando Tene Bimbo chegou e foi levado sob a ameaça de um revólver ao refrigerador do restaurante nos fundos. Ainda sob a ameaça do revólver, Kaslov foi dependurado num dos ganchos de carne de modo que esse penetrasse em seu casaco e sobretudo, o que não foi coisa fácil uma vez que na ocasião ele pesava duzentas libras. Antes do gancho arrebentar suas roupas e ele cair no chão, o Rei Tene aproveitou para dizer-lhe que estava de volta a Nova Iorque mas que não tentaria se envolver em nenhuma das atividades de Kaslov. Em retribuição esperava que ele e sua tribo fossem deixados em paz.

De outra maneira, avisou, na próxima vez em que, Kaslov estivesse num gancho de carne este estaria nele e não no seu sobretudo.

Aparentemente, isso deu resultado e a Rainha Mary permaneceu nos arredores de Nova Iorque até sua morte em 17 de maio de 1951. No último momento ela foi levada ao Hospital Gouverneur como Susie Jolinson. Os ciganos queriam que no atestado de óbito constasse o nome de Mary Tene, mas o médico que o assinou recusou qualquer outro nome que não aquele sob o qual fora internada. No fim, no entanto, conseguiram o que queriam onde era importante e o seu túmulo no cemitério Hollywood em Union, New Jersey, diz "Mary Tene".

Após ter conseguido a fuga da Rainha Mary, o Rei Tene continuou envolvido numa briga após outra, mas em geral conseguia ficar limpo perante a lei, suas confrontações com a polícia e seus aparecimentos nos tribunais limitando-se a depoimentos em favor de vários membros da sua tribo. Numa ocasião, quando alguns Bimbos foram presos, gritou ele para os policiais: "Por que vocês escolhem sempre o meu pessoal? Por que não as outras tribos? Quanto eles estão pagando a vocês?" Quando lhe disseram que caso tivesse informação de tal suborno era sua obrigação como cidadão americano comunicá-la, ele respondeu: "Para o diabo com a América. Não sou nenhum pombo de poleiro". Até o fim de sua vida continuou tão intratável quanto antes. Com a idade de setenta e cinco anos, quando um jornal de Nova Iorque, o Daily Mirror fez uma série de reportagens sobre os ciganos e na primeira delas apresentou fotografias de alguns Bimbos, ele prontamente invadiu a redação do jornal juntamente com trinta membros da sua tribo e fez uma tal balburdia que os editores, embora continuassem a série, concordaram em não colocar mais qualquer fotografia de um Bimbo.

Agora, em 1969, no Hospital Park East, onde tudo terminaria, o Rei Tene ainda provocou uma batalha. A partir do dia de sua internação em 14 de outubro as suas condições melhoraram acentuadamente durante três dias. Somente ele entre todos os ciganos que se encontravam então no hospital parecia preparado para encarar a realidade da sua situação e foi no dia 17 que largou a bomba de que desejava que aquilo de mais precioso e simbólico que possuía fosse de seu neto, Steve Tene. "Quero que o Steve", disse ele, "fique com o anel e o medalhão de modo a que se torne alguém".

Como um dos Bimbos que estava presente disse-me: "Nós não dissemos, nenhum de nós disse qualquer coisa sobre isso na ocasião. Porque naquele momento só pensávamos no velho. Não pensávamos que fosse morrer, você sabe, e pénsávamos que poderíamos fazê-lo voltar atrás quando ficasse bom". Mas no décimo oitavo dia ele começou a declinar. "O paciente estava então com ataque cardíaco", diz o sumário da sua ficha médica. Durante os três dias que se seguiram ele teve melhoras e pioras, lutando, mas perdendo forças a cada nova crise. No dia 22 de outubro parecia ainda mais fraco. Pela primeira vez tinha febre e recebeu medicação intravenosa e conquanto seus pulmões estivessem limpos, queixou-se de sentir frio nos pés e nas mãos. "Às treze horas e quarenta da tarde", continua o relatório médico, "o paciente expirou, subitamente".

Um de seus últimos pedidos foi que as bandeiras americana e russa tremulassem no seu funeral. A última provocou considerável debate até que um dos mais velhos observou: "Toda a nossa tribo será amaldiçoada se não satisfizermos o seu desejo". Uma bandeira soviética foi facilmente obtida no consulado russo, mas então ocorreu a todos a idéia de que alguma coisa desagradável poderia ocorrer num cortejo que exibisse uma bandeira com a foice e o martelo. Assim, uma delegação de Bimbos foi à Prefeitura pedir uma escolta policial, o que conseguiram. O prefeito John Lindsay também enviou um telegrama expressando suas condolências. Isto enfureceu os Bimbos, que achavam que o prefeito deveria ter comparecido pessoalmente.

Como um repórter da televisão local que cobriu o acontecimento relembrou: "Não foi um funeral usual, ordenado". O velório realizado na Casa Funerária Walter B. Cooke na Rua Oitenta e Oito e Terceira Avenida, durou três dias e três noites. Para atender à multidão, a funerária abriu inicialmente uma e depois outra de suas maiores salas no andar térreo. Pelo menos mil ciganos compareceram para prestar suas homenagens. O caixão de bronze, que custa trezentos dólares, foi deixado aberto, segundo o costume cigano, o corpo coberto por um véu de gaze branca. Os visitantes jogaram dinheiro e, ocasionalmente, unia garrafa de uísque no caixão tanto para dar ao que partia meios de Pagar suas despesas na vida futura como para saciar sua sede. Havia dúzias de coroas, muitas delas com símbolos de jogo - a cabeça de um cavalo, um bilhete de apostas, um cartão de Bingo, um par de dados com os números três e quatro - tudo dominado: por um grande arco de flores simbolizando um portão. Embora seja contra lei, comida - perus, pernis e coisas semelhantes - e bebidas entravam pelas janelas da funerária e os ciganos reunidos dividiam isso, conversavam, cochilavam, jogavam cartas e punham-se a par do que uns e outros vinham fazendo.

A procissão fúnebre iniciou-se pelos portadores das bandeiras americana e russa e uma banda de oito instrumentos que tocavam músicas como "Deus Abençoe a América", "Para a Frente, Soldados Cristãos", "Quando os Santos Marcham", o "Hino de Batalha da República" e "Adeus, Foi Bom Conhecê-lo". O cortejo causou um memorável engarrafamento do trânsito ao dirigir-se solenemente para o centro da cidade, para a Catedral da Santíssima Virgem, uma Igreja russa ortodoxa no baixo East Side. Houve um momento de tensão quando o prelado oficiante objetou contra a presença de um pavilhão comunista no seu altar, mas isso foi resolvido por uma adicional contribuição em dinheiro para as obras sociais da Igreja em nome do rei morto.

Após a cerimônia, um desfile de carros seguiu os restos do Rei Tene para o cemitério Hollywood em New Jersey, onde ele foi posto ao lado da Rainha Mary e cercado por outros ciganos que haviam comprado sepulturas ali. O caixão foi mais uma vez aberto e mais dinheiro - notas e moedas de ouro - jogado dentro, juntamente com algumas garrafas de bebida, e foi então, quando a cara do velho foi definitivamente coberta e seu corpo baixado à sepultura, que começaram o choro e os gritos de dor.

Ao tentar controlar os ciganos, o Departamento de Polícia de Nova Iorque mantém gráficos cheios de círculos e quadrados e setas indicando as várias tribos e seus relacionamentos, de modo semelhante ao que faz com as famílias da Máfia. Só isso basta para fazer com que os sucessivos encarregados desses diagramas mereçam elogios. Para enfrentar o enorme volume de mudanças de nomes Romani e seus constantes movimentos, o departamento depende, em grande parte, de fotografias que determinem quem é quem e quem está aonde. Assim, por ocasião da morte do Rei Tene o detetive Eddie Coyne, juntamente com um companheiro, ficou ocupado tirando retratos. Quando aquele que o acompanhava manifestou surpresa diante da multidão que comparecera, Coyne disse: "Não estão aqui para prestar-lhe homenagem. Eles somente querem estar certos de que está morto".

 

                                          O CIRCULO

 

Steve Tene já havia abandonado a vida cigana e estava em Los Angeles quando seu avô morreu. Quando menino, no entanto, sempre tivera um relacionamento especial com o velho e estava se preparando para ir ao funeral quando um tio, Adolph Bimbo, telefonou-lhe "Não apareça", disse o tio, "ou farei com que o matem".

"Foi por causa de Steve e seu pai", disse-me uma das filhas de Tene Bimbo. "Havia aquela rixa entre eles e nós não queríamos barulho no funeral, compreende?"

O período de luto pelo velho, como é habitual após mortes de ciganos, durou doze meses, cortado por uma festa em sua honra seis semanas após seu passamento e outra próxima ao fim do ano. Nessa ocasião as roupas do morto são dadas a amigos íntimos em seu nome e no caso de Tene foram para dois de seus velhos companheiros de bebida em Nova Iorque, um cigano espanhol chamado Stefano e um cigano russo conhecido como "O Coronel". "Eram somente amigos", disse a filha. "Nunca fizera negócios com eles, assim estava certo que ficassem com as roupas. Haviam sido compradas nas melhores lojas".

Quando terminou esse período de luto, Steve recebeu o medalhão e o anel de seu avô. Chegaram simplesmente pelo correio. Uma vez que havia uma tal hostilidade para com ele que era encarado como um renegado, disse à irmã que teria sido relativamente fácil não cumprir o legado.

Um ar horrorizado passou pela cara dela. "Não podíamos deixar de cumprir os desejos do meu pai", exclamou ela, "Ninguém ousaria fazer isso!" No entanto ela, assim como qualquer um dos ciganos mais velhos que encontrei, estava apavorada com o próprio legado e procurava uma explicação. "Meu pai era um líder", disse a filha, "e talvez ele tenha visto em Steve algumas das suas qualidades. Os tempos estavam mudando e talvez que os velhos hábitos não eram mais indicados e seus próprios filhos estavam velhos demais e fixados em suas vidas para fazerem alguma coisa a respeito. Sabe, meu pai fez coisas que não estavam dentro de nossas tradições no seu próprio tempo. Quando ainda moço e um dos nossos ficava doente, costumava dizer: "Não podemos ajudá-lo com nossas orações e nossa folhas e raizes. Precisamos levá-lo ao hospital gadjo". "E ele mesmo falava com os médicos e arrumava tudo, da mesma maneira que o fazia com o "sheriff" e a policia quando um dos nossos estava na prisão. Ele era temido, você sabe, era um matador, mas também era sábio e havia alguma coisa entre ele e Steve e este costumava falar com ele que precisávamos nos americanizar e não sermos mais diferentes. E por ocasião de cada umas das festas, Natal e Páscoa e feriados semelhantes, depois que Steve fugiu, o velho estava sempre mencionando o nome dele e diria que guardassem alguma comida para Steve porque poderia aparecer".

Quando Steve havia fugido do pai ainda menino e estava sobrevivendo em Nova Iorque como pederasta e fora então encontrado por membros da tribo Bimbo parado à porta de um imóvel na Rua Quarenta e Dois, foi inicialmente levado ao seu avô. Passaram-se vários dias antes do Rei Tene referir-se à sua longa ausência e às circunstâncias em que fora encontrado. "Foi uma coisa horrível o que você fez", observou ele finalmente, "mas agora você vai voltar para junto do seu pai e tudo vai ficar bem".

Steve não conseguia decidir-se a contar ao seu avô a razão pela qual fugira do apartamento em Philadelphia, como o pai tentara forçá-lo a ir para a cama com sua mãe. Em vez disso, começou a chorar. "Não vou voltar para Carranza", soluçou. "Você não sabe o que aconteceu! Tudo que passei foi por culpa dele. Tomei drogas. Tive de ver-me com os homens. E não basta que eu tenha tido essa vida nojenta nas ruas?"

Mas o velho pôs as coisas em bases pessoais e Steve não pôde negar-se. "Faça esse favor por mim", disse o Rei Tene Bimbo, "não pelo seu pai. Falei com ele e ele me deu sua palavra de que não lhe baterá. Assim, procure-o e seja um bom filho e você terá uma boa surpresa".

A surpresa era uma mulher comprada para Steve por seu pai por ordem do avô. Seu nome era Dina. Era uma bonita moça de cabelos de cor castanha que era cinco anos mais velha do que Steve e que pertencia à tribo Demetro, outro importante clã dos ciganos Kalderasti. Ela era tida como virgem. Após sua primeira noite juntos ele viu, fascinado, como ela fazia um corte na veia do pulso e colocava o sangue no lençol. "É o nosso segredo", disse ela. "A outra vez não tem importância". A mãe de Steve examinou o lençol e percebeu o que acontecera. Mas aparentemente preferiu não falar de sua suspeita ao pai com receio do que pudesse fazer.

Mas isso, no fim, não fez diferença alguma. Carranza portou-se razoavelmente bem durante o primeiro mês que se seguiu ao casamento até que um dia, sem qualquer coisa que pudesse fazer prevê-lo, toda a sua latente crueldade explodiu novamente. Sua nova nora estava preparando seu café da manhã. Ele gostava dos ovos fritos mal passados e ao prepará-los uma das gemas quebrou-se. Ela cometeu o erro de servi-los assim e ele começou a amaldiçoá-la, com um crescendo de obscenidades cada vez aumentando mais. Subitamente cuspiu nos ovos, enviando uma porção de catarro neles e gritando para a moça: "Sente-se! Você os come".

Houve um tempo em que o pai de Steve fora um homem magro, quase que bonito e elegante, mas se tornara um homem gordo, careca, grosseiro, com pescoço de touro, cheio de ameaças, com costas musculosas ainda perceptíveis sob a camada de gordura que havia se acumulado durante anos de dissipação, dado ao hábito de andar descalço dia e noite, uma camisa esporte flutuando sobre sua pança enorme. A pobre moça, aterrorizada, fez como ele mandava e imediatamente ficou sujeita ao código cigano do marimay. Tornara-se impura. Não podia mais fazer suas refeições na mesma mesa que o resto da família, tinha que ter seu prato, copo e demais utensílios separados e tornou-se virtualmente intocável não somente na casa dos seus sogros, mas também na de qualquer cigano que visitasse.

Quando Steve soube o que acontecera isso foi o fim do seu casamento. "Não podia mais dormir com ela", disse-me ele. "Não podia correr o risco porque se tivéssemos um filho ele poderia nascer cego ou surdo ou qualquer outra coisa porque meu pai assim o desejara para ela, para nós.

Perguntei-lhe como ele, pretensamente tão evoluído, podia acreditar numa tal bobagem e ele disse: "Não é bobagem. Não sei o que é, mas uma praga como essa do meu pai entra na cabeça de uma moça. Psicologicamente a moça põe isso na sua cabeça, ela o crê, e isso acaba por fazer-lhe mal. É um fato. Talvez não seja culpa da moça realmente, mas ela passa por uma espécie de lavagem cerebral e crê estar assim mesmo que não o esteja.

Ele procurou seu avô para pedir sua ajuda, mas este recusou-se a intervir. "Você tem que resolver isso com seu pai, você mesmo", disse ele. A mulher de Steve agüentou a tensão durante talvez duas semanas e então desapareceu. Ele não procurou encontrá-la. "Se quer saber a verdade", disse ele: "Eu tinha pena dela e achava que era melhor para ela começar uma vida nova em outro lugar. Eu não a amava. Quase não a conhecia. Os casamentos ciganos não são feitos para serem felizes. Pensa-se que os dois devem lutar juntos e depois então amarem-se".

Poucos dias mais tarde o próprio Steve fugiu uma vez mais, embora dessa vez permanecesse de um modo geral dentro da vida cigana, indo e vindo de um lado para o outro, unindo-se a um bando Romani e depois a outro. Ele agora estava mais velho e não teve dificuldade em encontrar aceitação porque era bom motorista e, ao contrário da maioria dos ciganos do sexo masculino, não se importava de trabalhar. Durante a maior parte dos cinco anos seguintes dirigiu o carro para moças que assaltavam bairro após bairro, encenou casos de acidentes em supermercados, cinemas e lojas, conduziu mulheres boojo para ofisas de Miami para Seattle, de Boston a Los Angeles mediante uma porcentagem em seus lucros.

Quando uma mulher boojo alugava uma loja. Steve ajudava a carregar as cadeiras e as mesas desmontáveis. sacos de dormir, cobertas e um fogão portátil e dependurava as cortinas para dividir a ofisa. Depois passava os impressos que anunciavam "Irmã Armie" ou "Senhora Reed" ou "Mãe Sophia" estarem na cidade, prontas a ajudar as almas inquietas. Esses impressos, muitas vezes decorados com desenhos de Jesus, o bom Pastor, ou a Virgem e a Criança, davam instruções precisas como "O ônibus 42 deixa-o na porta". Para a mulher boojo não havia situação angustiosa que ela não resolvesse. O anúncio da Irmã Annie, por exemplo, proclamava, "Ajuda em todos os problemas. Se estiver doente, preocupada ou em dificuldade, ela o ajudará. Se perdeu alguém que ama ou não tem tranqüilidade de espírito, venha que ela o ajuda". A Mãe Sophia parecia ter o mesmo autor. "Qualquer que seja o seu problema, ela o aliviará do seu peso", dizia o seu bilhete. "Conselho sobre todos os problemas da vida como amor, namoro, casamento, divórcio, separação, saúde, dificuldades financeiras. Se doente, preocupada, se a vida lhe é adversa, não deixe de procurá-la hoje. Não há piedade para aqueles que estando em dificuldade não se ajudam". O folheto da Sra. Reed tinha uma nota mais positiva: "Ela lhe contará o que você quer saber sobre amigos, inimigos ou rivais, se seu marido, mulher ou namorado são sinceros ou falsos, como conseguir o amor que mais deseja e como livrar-se de más influências e maus olhados". Como atração especial "somente esta semana" ela também oferecia óleo bento e velas grátis para cada leitura.

Quando Steve conduzia as moças nas zonas residenciais à procura de possíveis vitimas para roubar, na maioria das vezes penetravam nas casas ou apartamentos usando o pretexto de alguma água benta para uma certa pessoa cujo endereço pretendiam haver perdido. Mas de vez em quando as moças procuravam vender o que chamavam de "flores mágicas" por alguns níqueis, como meio para penetrarem. São as chamadas flores de Jericó ou plantas da ressureição, que foram descobertas pela primeira vez perto do Mar Vermelho. Quando em estado de adormecimento parecem mortas, com suas folhas marrons enroscadas e raizes secas igualmente sem aparência de vida, mas que, quando colocadas na água, as folhas se desdobram e tornam-se de um verde vivo. Se você possuísse uma, diziam as moças, qualquer problema que pudesse ter modificar-se-ia para melhor da mesma maneira milagrosa, especialmente, acrescentavam com malícia, aqueles de natureza sexual.

Por vezes Steve encontrava outro rapaz pronto a exercitar-se e eles iriam juntos "dar um jeito". Numa camioneta dariam voltas nos quarteirões à procura de entradas de garagem necessitando de conserto. Quando encontravam uma, abordavam o dono da casa dizendo, que embora empregados regularmente por uma companhia de pavimentação, gostavam de fazer um serviço extra e propunham fazer o trabalho pela metade do preço da tabela. Quem quer que aceitasse a oferta ficava com uma brilhante superfície de óleo lubrificante e pintura tão fina que ela desaparecia com a primeira chuva.

Durante esse período Steve voltou para junto de sua família por três vezes. Seis meses depois de ter partido por causa da visita marimay à sua mulher, foi levado à força por um dos irmãos do seu pai. A outra vez foi quando Carranza estava supostamente em seu leito de morte em Columbus, Ohio, num hospital. Voltou a terceira vez após sua mãe lhe ter telefonado queixando-se chorosamente de que a vida estava impossível sem alguém para a conduzir em suas velhacarias, que estava então realizando em Philadelphia. Uma semana mais ou menos após a volta de Steve, Carranza acordou mal-humorado e mais uma vez entrou em uma de suas bruscas e imprevisíveis raivas, pegou um revólver calibre 38 de cabo de marfim que usava habitualmente em suas viagens e disparou dois tiros num velho sofá, anunciando que o terceiro seria em Steve. Sua mãe interferiu e acalmou a situação, mas Steve partiu naquela mesma manhã. Após isso, Steve conseguiu manter-se afastado de Carranza, embora uma vez em Nova Iorque tenha sido surpreendido na Avenida Columbus por ciganos Bimbo ligados ao seu pai e batido selvagemente.

Exceto por essa violência, que atribuía a seu pai, a vida vagabunda de Steve foi bastante tranqüila. Conhecia, por certo, a reputação do seu avô, mas não os detalhes. Também havia ouvido falar dos crimes cada vez mais violentos cometidos pelos ciganos. Um de seus primos, também chamado Steve, havia sido preso no Aeroporto Logon de Boston quando um agente da companhia aérea suspeitou de um cheque que usara para pagar a passagem. Um guarda estadual de Massachusetts estava interrocrando-o quando ele retirou uma arma de uma mala e começou a apertar o gatilho à queima-roupa. Os dois primeiros erraram o alvo e na luta que se travou em seguida a arma finalmente disparou mas não acertou o guarda. Enquanto preso para julgamento, o primo foi um dos participantes de uma dramática tentativa de fuga da prisão local que fracassou porque foram surpreendidos quando desciam por uma corda de quarenta pés e ele acabou tendo uma pena de prisão bastante longa. Havia outros exemplos da mudança dos tempos. Um rapaz Bimbo de dezessete anos foi preso por haver jogado no chão uma velha senhora de oitenta e cinco anos e fugido com a sua bolsa contendo cento e setenta dólares e um anel de diamante. Os jovens ciganos estavam também se voltando para os narcóticos cada vez mais - resultado direto da influência gadjo, como diria a cigana Tia Hazel - e jovens ciganos fazendo-se passar por consertadores de telefone ou equipes de conservação de luz e gás invadiam residências e, se necessário, agrediam os ocupantes para obter o dinheiro que precisavam para manter seu vícios de drogas.

Em 1968 esse tipo de violência tomou conta de Steve, quando chegou a New Orleans com um bando de ciganos para assaltar a multidão num dia de carnaval. Após o término da festa - com carteiras batidas e realizadas as trapaças boojo - alguns ciganos permaneceram na cidade e Steve com eles. Uma noite ele estava passeando pelas ruas num carro com três moças ciganas, a mais velha delas com dezoito anos. Viram um vagabundo mexendo numa lata de lixo que estava na calçada. A olho nu parecia mais um vagabundo, mas a menina de dezoito anos disse "Para Steve, sinto cheiro de dinheiro". Saiu e pegou o braço do homem como se estivesse procurando levantá-lo. Ele a empurrou e os dois começaram a lutar. Steve buzinou para dizer-lhe que parasse. "Não, não", gritou ela, "ele está cheio de dinheiro".

O homem desvencilhou-se e correu para um canto da rua. A moça, cujo nome era Lenka, voltou correndo para o carro. "Eu apalpei a carteira dele, está cheia de dinheiro, estou lhe dizendo". Quando Steve deu a volta na esquina o homem estava tomando um ônibus. "Siga o ônibus", insistiu Lenka. "Nós o pegaremos quando ele saltar. Oh, o meu pulso! Aquele velho porco machucou o meu pulso".

Até mesmo Steve achou impossível que aquele homem sujo pudesse ter algum dinheiro, mas havia visto muitos casos de ciganas que eram capazes de perceber a existência de dinheiro nas pessoas em que menos se esperava que o tivessem. Quando finalmente esse aparente vagabundo desceu do ônibus num subúrbio da cidade, percebeu que elas tinham razão mais uma vez. "Você nunca imaginaria", comentou ele, "que pudesse viver naquela casa com um grande muro e um portão fechado. Você o teria suposto dormindo em algum pátio".

Lena disse a uma das outras moças: "Dê-me aquela chave inglesa" e todas as três saíram do carro antes que Steve pudesse impedi-las e logo estavam em cima do homem enquanto ele ainda procurava as suas chaves no escuro. Ele gritou por socorro e então Lenka brandiu a chave inglêsa e ele caiu. Steve começara a sair do carro, mas as moças já estavam de volta e as luzes numa casa do outro lado da rua acenderam-se e então um carro se aproximou. Assim, Steve apertou o acelerador e fugiu, gritando para as moças no assento de trás: "O que há com vocês, vocês estão loucas? Aquele homem podia morrer!" As moças, contando vorazmente o dinheiro na carteira, não responderam. Finalmente Lenka exclamou: "Há sete, oito mil dólares aqui. E você queria que nós o deixássemos?

A perfídia cigana de roubar era uma coisa, mas um ataque brutal como esse era coisa diferente e Steve ficou acordado toda a noite imaginando se o velho havia sido seriamente ferido, preocupando-se com a idéia de que alguém pudesse dar a descrição do carro, esperando que a polícia chegasse a qualquer momento. Pior de tudo, as moças estavam completamente despreocupadas com o que tinha acontecido. Só o dinheiro tinha importância. E, de certo modo, ele tinha colaborado no assalto, não tinha feito realmente nada para impedi-lo e se via sendo levado a atos violentos como esse, repetidamente.

Tinha que sair disso. Estava aborrecido com essa irrequieta maneira de viver. Devia haver uma maneira de acabá-la e, ainda assim, parecia que tudo o que fazia era mover-se em círculos, limitando-se a viver e, pensou ele, aonde, pelos diabos, vou eu? Esse mal-estar tinha se refletido numa das canções que compusera e cuja letra descrevia "um jovem cigano solitário" andando pelas ruas dia e noite, sem saber o que fazer e suplicando que alguém o ajudasse. Assim, na manhã seguinte ao assalto ao velho partiu para Los Angeles. Tinha cerca de mil dólares e enquanto procurava planejar o que fazer em seguida, alugou um quarto em Hollywood e passava suas noites vagueando nas proximidades dos clubes "The Strip". Uma tarde em que pedia carona para ir a Burbank visitar um amigo, um casal de uns quarenta anos apanhou-o. Soube que acabavam de comprar uma casa no San Fernando Valley e que o marido era técnico num dos grandes estúdios. Imediatamente Steve começou a fazer perguntas sobre filmagens. Então, quando lhes disse ser cigano, eles, por sua vez, encheram-no de perguntas. O desfecho foi ser convidado para uma xícara de café. Ele acabou ficando para jantar e esquecida a visita ao amigo. O casal tinha duas meninas, sete e onze anos, a quem Steve imediatamente encantou. O marido mostrou-lhe a casa, que precisava de pintura, e falou pesarosamente sobre a mobília que nunca tinha tempo de consertar.

Era a primeira vez que Steve passava uma tarde com uma família gadje em sua casa. Gostou do que viu. De repente, disse que rasparia, pintaria e repararia tudo em troca de casa e comida. Sempre havia gostado de trabalho manual e lembrava-se com prazer o breve período em que terminava objetos antigos quando era um fugitivo em Nova Iorque. O casal, cativado por suas maneiras tranqüilas e pachorrentas, aceitou sua oferta. Após ter terminado o trabalho na casa deles, começou a fazer pequenos serviços nas redondezas e então foi contratado como polidor numa loja de antigüidades na Avenida Melrose de Los Angeles. Continuou a morar com o casal, pagando-lhes vinte dólares por semana e encarando-os como seus pais, os únicos que na verdade jamais teve. Não achava que isso fosse estranho. Para Steve Tene, cigano, a vida era assim. As coisas simplesmente aconteciam e se não davam certo então ia mais adiante.

Dentro de um ano dava início ao seu próprio negócio de polimento; também vendia antigüidades sob consignação e conseguira seu primeiro freguês dentre os astros de Hollywood, Ricardo Montalban. Embora continuasse a arranjar dinheiro extra na tradicional maneira cigana - comprando carros quebrados de vendedores de automóveis usados e, após fazer reparos mínimos, anunciava-os como sendo de particulares que os haviam cuidado com carinho e os revendia com lucros - precisava mais do que isso para fazer funcionar o seu negócio e acabou por financiá-lo mediante um acordo num falso acidente de carro em que alegou contusão, perda de equilíbrio e deslocamento de uma vértebra após uma queda espetacular de uma escada num cinema.

Ocasionalmente, via e tinha contato com ciganos da área de Los Angeles, e uma vez que pouca coisa permanece em segredo durante muito tempo no mundo Romani, o

número do seu telefone foi conhecido e uma noite um primo chamou-o de Nova Iorque e contou-lhe que seu avô, o Rei Tene Bimbo, havia morrido. Steve imediatamente lembrou-se de como havia procurado o velho quando aos 12 anos fugira de Carranza e perguntou-se se sua vida não teria sido diferente se tivesse encontrado seu avô no fim da caminhada naquela noite na Broadway há tanto tempo.

Quando recebeu o aviso de não comparecer ao funeral, enviou uma dúzia de rosas vermelhas sem se identificar.

Então, quase um ano depois, o anel e o medalhão chegaram com uma nota sucinta dizendo que o avô havia desejado que os recebesse. Steve colocou-os num cofre e continuou a dedicar-se ao seu trabalho. Mas a notícia do legado do Rei Tene espalhou-se rapidamente e os ciganos mais jovens começaram a procurá-lo, perguntando-lhe o que pretendia fazer.

"Nada".

"Mas você sabe o que o anel e o medalhão significam, não?"

"Não", respondia ele sarcasticamente. "Diga-me".

"O seu avô quis que você lhe seguisse os passos."

No entanto tudo isso mudou quando seu pai, então em Chicago, chamou-o ao telefone intimando-o a voltar como um filho pródigo, pedindo perdão por seus erros passados. Vieram as usuais ameaças, as recriminações choveram de um lado para o outro e finalmente Steve desligou batendo com o telefone.

Uma semana mais tarde, quando a mãe "adotiva" de Steve estava em casa sozinha, um homem bateu à porta e disse ser da companhia de luz e gás que viera para a medição. Após a saída dele, ela foi ao quintal nos fundos da casa por um momento. Houve uma explosão. Ela correu para a casa e encontrou a cozinha destruída.

A explosão se originara no fogão e os bombeiros inicialmente pensaram que algum defeito a causara. Mas então foram descobertos traços de dinamite.

Seus pais adotivos, que estavam conscientes do que estava ocorrendo, mostraram-se muito nervosos, receosos do que poderia vir a acontecer, especialmente às duas meninas, e para evitar-lhes mais aborrecimentos Steve mudou-se, alugando um chalé na praia Hermosa ao longo da costa Sul de Los Angeles. Sentia agora que, mesmo que o quisesse, não podia ignorar o testamento do seu avô e a primeira oportunidade dele afirmar-se ocorreu junto aos Bimbos de San Francisco, onde fora visitar sua irmã mais velha, que estava gravemente doente. Sim, disse-lhe ele, estava decidido a honrar o desejo do falecido líder da tribo e continuar em seu lugar. Mas a mensagem que trazia era herética. Os ciganos tinham de se educar. Tinham de aprender a ler e escrever. Tinham de se tornar cidadãos obedientes das leis. Tinham de abandonar seus hábitos de enclausuramento e tornarem-se parte da comunidade. Onde estavam, perguntou ele, o cigano médico, advogado, cientista? Podia ser tarde demais para os ciganos da idade dele, mas não o era para os seus filhos. "Vocês querem que eles cresçam", disse ele, "como você ou eu?"

É de admirar que na América de hoje o que Steve Tene estivesse dizendo pudesse ser considerado revolucionário, mas para a maioria dos ciganos foi exatamente isso o que aconteceu e, para outros, isso sôou como uma nova vigarice. No entanto, nem todos reagiram assim. Uma das convertidas por Steve é uma bonita jovem de 20 anos chamada Lulu, que foi duas vezes vendida em casamentos desastrosos e que tem uma filha de 7 anos. Ela vive em Nova Iorque e após ouvir Steve passou a enviar sua filha à escola e ela mesma tem um trabalho numa fábrica. Duas vezes por semana ela freqüenta uma classe para adultos. A maioria das suas amigas são gadje e aos sábados, ao invés de ir roubar como fazia antes, vai jogar "bowls". Ela diz que não se casará novamente a não ser por amor. Se o fizer, prefere que seu marido seja cigano, mas ele deve trabalhar. Perguntei-lhe por que mudara tão completamente seu modo de vida. "Nós respeitávamos o avô de Steve", disse-me ela, "e sabemos o que ele lhe deu e se o fez é porque tinha uma razão para isso. Steve está procurando civilizar-nos."

Não existem ainda muitas Lulus, mas cada uma dessas brechas na antiqüíssima estrutura social Romani provocou frenesi na comunidade cigana. E uma noite em que Steve estava dormindo em sua casa na praia Hermosa, a garagem onde guardava o seu carro, uma Pick-up, seu equipamento de trabalho e a mobília que estava consertando, tudo pegou fogo. Ele tinha seguro mas, ironicamente, devido à natureza suspeita do fogo, teve mais dificuldade em receber o dinheiro do que em qualquer um dos seus falsos processos de acidente. Mudou-se mais uma vez - dessa vez para uma outra cidade mais abaixo na costa - e comprou dois pastores alemães que treinou como vigias.

Até então Steve saíra quase que exclusivamente com moças ciganas, sendo que a última, uma morena sexy, de boca sensual, chamada Linda, um ou dois anos mais velha do que ele, pertencente a uma tribo Kalderash aliada íntima dos Bimbos. Todas as noites iam dançar, do que ela gostava muito, e ela lhe dizia, "Casemo-nos. Nós devíamos estar juntos. Você foi feito para mim. Eu fui feita para você." A dificuldade era que ela estava firmemente unida à iradição cigana. "Eu sei como fazer dinheiro", disse ela. "Eu farei o boojo e arranjarei as coisas com o seu pai. Já falei com ele, com sua mãe também. Eles me desejam na família. Iremos passar umas duas semanas com eles, que estão na Flórida, e você será". Ela até fez com que ciganos mais velhos falassem com ele.

"Se tornar a ver Carranza, eu o mato", Steve lembra-se de ter dito.

"Ouça-nos", disse um deles, "se ele o tratar como antes, você o faz prender".

"Não, ele sempre consegue sair."

"Mas se você continua a falar como faz, será você quem será preso."

"Não me incomodo. Terá valido a pena."

"Você está louco, rapaz", disseram-lhe. "Você pensa como um gadje. Você tem os hábitos deles".

"Eu sou um gadje, replicou Steve, e ao dizer isso viu o ar chocado em suas caras, quase como se tivesse proferido uma maldição irreversível. Assim, ele acrescentou, "seja o que eu for, Carranza me fez assim. É com ele que vocés deviam estar falando."

Não muito tempo depois, cometeu o mais grave ato de desafio à cultura cigana ao casar-se com uma moça gadje. Havia começado a ter lições de canto e então ganhara um concurso cantando num clube em Sunset Boulevard. Aplicava todo dólar e todo tempo disponíveis às lições de canto e estava noutro clube procurando obter um contrato quando encontrou uma jovem esbelta e de cabelos vermelhos chamada Ellen. Ela estava sentada com um grupo de moças quando Steve se aproximou dela. "Eu comecei a sorrir para ela, a olhá-la e ela virou a cara e então eu dirigi-me a ela e perguntei-lhe o que estava bebendo", contou ele.

"Nada".

"Bem, acho você bonita. Espero que não seja convencida."

"Eu o chamei?", respondeu ela.

"Não, mas deixe-me oferecer-lhe uma bebida. Talvez eu esteja sendo indelicado, mas tem de desculpar-me. São os meus modos ciganos. Porque sou cigano."

Ela riu sem acreditar e ele aproveitou essa "deixa" e disse, "É verdade. Meu nome é Steve. Como você se chama? Não vou mordê-la."

"Eu sei, mas por favor vá embora. O que é preciso fazer para que você vá embora?"

Ele insistiu. "Ouça, se dançar comigo eu lhe direi a sorte" e novamente ela riu e desta vez levantou-se e dançou com ele.

Ele saiu com ela durante mais de um mês, tentando fazer que dormisse com ele, sem o conseguir. Ela era pouco expansiva. Tudo o que dizia era que nascera no Arizona e que trabalhava numa loja. Ele ia buscá-la na esquina de uma rua que ela indicara e eles iam jantar e dançar ou a um cinema e ele a trazia de volta à mesma esquina, onde ela saltava e caminhava até um estacionamento e entrava no seu próprio carro. Ele não procurou pressioná-la, achando que não fazia diferença, que tudo se resolveria com o tempo. Embora não soubesse onde ela morava e nem mesmo o seu sobrenome, ela tinha o número do telefone dele e após uma discussão sobre se algum dia o deixaria dormir com ela, vários dias mais tarde ela lhe telefonou e nessa noite foram para um motel. Foi bastante insatisfatório; ela estava tensa e tremia toda e disse-lhe depois. "Bom, você conseguiu o que queria" e ele disse, "Você não compreende, eu a amo. Quero casar-me com você."

Eles atravessaram a fronteira para o México para a cerimônia de casamento e ela mudou-se para a casa dele.

Todos os dias ela saía para o trabalho na loja e ele continuou com seu negócio e de noite, quando conseguia um contrato para cantar, ela ficava sentada ouvindo-o Uma vez ele pediu para conhecer seus pais em Los Angeles, no Arizona, ou onde quer que estivessem e quando ela recusou ele acusou-a de estar envergonhada dele, o que ela negou dizendo que um dia explicaria a ele.

Em julho de 1973 ela disse-lhe estar grávida. Ele ficou radiante com a notícia. Imediatamente preocupou-se com a saúde dela e, quis que deixasse o trabalho na loja. Ela disse que não, que agora precisava ainda mais de dinheiro.

Então, em agosto, a felicidade dele ruiu quando recebeu um angustiado chamado telefônico de sua irmã mais moça. Ela se chamava Susie Tene e tinha 13 anos. Disse que o pai deles a estava vendendo por 8 mil dólares e suplicava a Steve para fazer alguma coisa para impedi-lo. Ele sentiu-se cheio de culpa. Vinha dedicando sua energia ao seu negócio, ao canto e sua mulher e este era seu primeiro contato com sua família cigana há muito tempo. Toda sua raiva adormecida veio à tona novamente e ele prometeu que a ajudaria.

Sua mulher disse, "Você vai deixar-me para voltar para eles?"

"É somente por alguns dias."

"Não", disse ela. "Se você for, eu o deixo. Fique longe deles."

"Mas é minha irmã, a mais moça", disse ele. "Tenho de ir."

A não ser um funeral, não há acontecimento social na cultura Romani que se assemelhe a um grande casamento. Em geral é alugado um salão e quantidades enormes de comida e bebida são levadas para lá. Um dos pontos altos do ritual é passarem um grande pão rom buracos em que os convidados introduzem dinheiro como presente; embora esse dinheiro pertença aos sogros da noiva, espera-se que ela tire parte dele furtivamente como um prenúncio daquilo que fará o resto da sua vida. O casamento realiza-se quando a noiva, coberta com um véu, aparece com seu vestido branco de casamento. Ela usará talvez uma tiara encrustada de diamante e jóias de ouro de qualquer espécie, emprestadas por sua sogra para impressionar os convidados. Então ela começa uma dança elaborada, provocativa com o noivo, cada um deles segurando a ponta de uma mantilha, em geral vermelha, que significa seu status de casada. Antes da dança, um canto é tradicionalmente entoado pela noiva que perversamente relata todas as contradições da vida cigana, Nessa ocasião, teoricamente alegre, a noiva canta para sua mãe dizendo-lhe ter sido vendida em casamento, que preferiria morrer, terminando com um apelo pungente sobre o que deve ela fazer? Os ciganos consideram-no emocionante e bonito.

No dia 22 de agosto de 1973, dia do casamento de sua irmã Susie, Steve Tene chegou no salão em Boston em que o casamento ia se realizar. Havia, avaliou ele, cerca de 200 Bimbos e membros de tribos aliadas. Ele foi recebido friamente pelos ciganos mais velhos, mas muitos dos mais moços o acolheram com palavras amigáveis e olhares curiosos. Olhando de soslaio, viu Carranza numa mesa, bebendo e o ignorou. Steve perguntou pela mãe e disseram-lhe que estava ajudando Susie a se vestir. Ele trazia uma mala e alguém perguntou-lhe o que havia nela. "Minhas músicas", disse ele: "Minha irmã quer que eu cante." Então Susie apareceu em seu vestido de noiva e abraçou-o.

Segurando sua mão, Steve, em vez de Susie, cantou o lamento sobre a noiva desejar morrer e as lágrimas corriam pelo rosto dele. No silêncio que se seguiu, abriu a mala e tirou uma pistola 22. Disse a Susie para retirar a tiara e as jóias que estava usando, que não ia se casar, que ia com ele.

Todos os que estavam na sala ficaram gelados, exceto seu pai, aparentemente bêbado demais para perceber o que estava acontecendo. Alguém disse, "Ora, seja um bom rapaz e abaixe isso." Sua mãe apareceu bruscamente diante dele. Ele não a via há muito tempo e ela lhe pareceu cansada e nervosa. Ela o esbofeteou.

Apontou a arma para ela. "Puta!", disse ele. "Como você pôde fazer isso, vender a mais moça assim?"

Viu alguns ciganos aproximarem-se fazendo um círculo em volta dele. "Fiquem longe de mim", disse ele, "ou vocês levam uma." Eles pararam. Atrás deles, sem ser visto, podia-se ouvir Carranza praguejando. "Vamos", disse ele à irmã, mas ela agarrou-se a ele e disse, "Por favor, Steve, é tarde demais. Deixe que eu passe por isso. Ele é um bom rapaz, ele é bom, acho, e se não acontecer com ele acontecerá com algum outro. Por favor, Steve, por favor!" Mais tarde ela diria que fora porque tivera medo que ele fosse machucado, talvez morto.

A tensão na sala cedeu. "Você a ouviu", disse um de seus tios. "Sua irmã quer que você parta, portanto vá de boa vontade." Steve dirigiu-se de costas para a porta, ainda segurando a arma. Ainda tentou uma última vez. "Susie", chamou ele. Não houve resposta e ele saiu e saltou no carro que o estava esperando.

Ê costume cigano que se passem três dias para que o casamento seja consumado e durante esse tempo há festas menores adicionais em honra da noiva e do noivo. Steve permaneceu em Boston e no quarto dia foi à casa em que Susie estava, encontrou-a sozinha com sua sogra e pediu e obteve o lençol em que ela dormira na noite anterior, manchado de sangue. Cheio de frustração e de raiva, tinha a intenção de levá-lo ao apartamento que seus pais tinham então em Philadelphia. Jogaria o lençol na cara do pai. Ele se vingaria dele, finalmente.

Quando entrou no apartamento foi como se nunca o tivesse deixado. Nada havia mudado e lamentou não ter trazido sua 22 com ele. Seu pai estava batendo em Tommy, o irmão mais moço de Steve, devido a alguma transgressão. O irmão estava parado sem reagir. Havia um corte sangrando na sua testa. De certo modo, pensou Steve, era ainda pior do que antes; Tommy sempre parecera ser o filho mimado por Carranza. Sua mãe e uma outra irmã, Mary, procuravam afastar o pai. Então Steve viu o revólver de punho de madrepérola de seu pai em cima da mesa. Ele o pegou e disse, "Deixe-o em paz!"

Na sua fúria, Carranza não o havia visto chegar ao apartamento. Voltou-se para Steve e disse, "O que você quer, seu filho da puta?"

"Você", disse Steve, e pensou, é isso mesmo. Vou acabar com ele de uma vez.

Bruscamente, Carranza percebeu o que estava por acontecer e recuou. Quando chegou perto da mãe de Steve, caiu bruscamente de joelhos atrás dela, escondendo-se literalmente em suas saias. "Você pode ter o que quiser", gritou ele roucamente. "Não atire. Não o amolarei mais. Eu o deixarei em paz. Eu deixarei todo mundo em paz!"

Parte do imenso corpo do pai de Steve ainda era visível e ele colocou-se de lado para ter uma melhor mira. Disparou. O pai gritou. Steve fazia novamente mira quando sua mãe, irmão e irmã caíram sobre ele segurando seu pulso e a mão que tinha o revólver. Viu seu pai caído, segurando a perna e gemendo. Steve bruscamente sentiu-se com vontade de vomitar. Largou o revólver e saiu correndo do apartamento.

Voltou a Boston. Os dias e as noites encaixavam-se um no outro repugnantemente. Ele bebia muito. Estava continuamente embriagado, de cabeça vazia. Não podia concentrar-se, não atinava o que estava fazendo ali. Pensou que ia ficar maluco. Então se lembrava. Estava tomando conta de Susie. Lembra-se de ter telefonado um dia para sua mulher na Califórnia para dizer-lhe que tardaria ainda alguns dias e ela disse, "Estou indo embora, já fiz minhas malas", é ele respondeu, "Não me minta assim", e ela disse, "Você é um cigano, você voltou para sua família, você nunca vai mudar" e desligou.

Na noite de 7 de setembro, estava ele bebendo num bar depois da Rua Tremont nos arrebaldes de Boston. Um pouco antes, de tarde, fora na casa de um cigano saber notícias de Susie. O bar em que estava era escuro, cheio de gente, a caixa de música tocando alto. Alguém esbarrou nele e quando ele se voltou um soco atingiu-o no olho direito. Ao bater no balcão do bar pôde ver com o outro olho dois homens desconhecidos, e então percebeu seu pai de pé na porta de entrada, olhando. Um outro soco atingiu-o na boca e outro no estômago. Levantou-se revidando, quando viu algo brilhando, uma faca, e em seguida não pôde ver mais nada também com o olho esquerdo. Ao cair sentiu o que lhe pareceu serem picadas nas costas e ouviu vagamente um tumulto por cima dele, misturado à música, soando muito longe. Após o que perdeu os sentidos.

Steve foi levado ao Centro Médico da Universidade Northeastern. Foram suturadas suas feridas de punhal no ombro esquerdo, assim como duas outras feridas, uma onde a faca havia feito um corte na testa e uma outra acima do lábio, à esquerda, onde havia quase penetrado no próprio olho. Seu olho direito, onde havia sido inicialmente atingido, estava completamente fechado e ele estava totalmente, embora temporariamente, cego. Disse às autoridades não ter nenhuma idéia do motivo da agressão, que devia ter sido engano de identidade. Deu ao hospital o número do telefone do amigo com quem estava hospedado e este veio buscá-lo. Três dias depois seu olho direito já se abrira o suficiente para deixá-lo ver. O olho que havia sido apunhalado estava constantemente lacrimejando e ele foi à enfermaria de oftalmologia do Hospital Massachusetts para tratamento. Foi-lhe dada uma medicação e informaram-lhe que continuaria a ter dificuldade com o olho até a remoção do tecido da ferida.

No dia seguinte voltou para a Califórnia. Quando chegou à sua casa da praia ela estava vazia. Não havia sinal de sua mulher, nenhum bilhete, nem mesmo um grampo que mostrasse haver ela estado lá algum dia. Com a total despreocupação cigana quanto a nomes, ele sabia somente seu primeiro nome, "Ellen", do tempo em que a namorara, com ela casara e com ela vivera. No entanto, sabia onde era a loja em que ela trabalhava, perto da esquina onde costumava esperá-la. Durante três tardes Steve esperou do lado de fora que ela aparecesse. Ela nunca apareceu. Um obstinado orgulho impediu-o de entrar para perguntar. Embora não soubesse ler, tinha duas malas cheias de papéis - indenizações de seguro, comunicações de dúzias de irados credores referentes a vários anos, bilhetes de várias pessoas encontradas em suas viagens, recibos de guarda de objetos, velhos bilhetes aéreos e coisas semelhantes - e seu pai adotivo, procurando entre eles, finalmente encontrou o nome dela e seu telefone. Mas quando foi feita a chamada, a telefonista disse que o telefone havia sido desligado. Steve não procurou mais encontrá-la e nunca viu seu filho.

E agora, na primavera de 1974, cerca de sete meses após a seqüência de acontecimentos semelhantes a pesadelos que se seguiram ao casamento de sua irmã Susie, Steve tinha novamente vindo ao Leste para ajudar uma outra irmã, Sônia, a quase suicida devido a Carranza.

Após haver retirado Sônia do Hospital Bergen Pines, em New Jersey, e do pai haver jurado persegui-los, Steve deixou o Hotel Summit. Alugou um apartamento mobiliado em Manhattan na Rua East Fifties e cuidou de sua irmã, que estava com a saúde abalada.

Ela contou-lhe como havia suplicado ao pai a não fazê-la voltar ao marido com quem fora obrigada a casar, para deixá-la ficar com o rapaz cigano com quem fugira e como, em desespero, havia engulido uma quantidade de tranqüilizantes. Durante cinco dias ficou abatida e inquieta; mas no sexto dia, entretanto, já estava se comportando como se nada tivesse acontecido. Quando vim visitá-los, Sónia estava debruçada na janela do segundo andar, rindo e apontando um dedo para mim e brincando, "Hei, você aí, quer que lhe tire a sorte?" Quando manifestei minha surpresa a Steve de tão brusca transformação, ele me disse,

"O que você quer? Ela é uma cigana."

Através da rede Romani que parece funcionar como os tambores da selva, ele mandou procurar o rapaz que ela amava e que, aterrorizado, havia desaparecido. Steve não estava especialmente entusiasmado por ele, mas deu de ombros e disse, "Se Sônia o quer, a escolha deve ser dela." Mas permanecia, no entanto, o problema da filhinha que ela tivera de seu primeiro casamento e que estava com Carranza e a mãe de Steve. "Ele nunca a devolverá", disse Sônia. "Ele a guardará até que eu volte". Então no fim da tarde do dia 2 de maio Carranza telefonou, embora o número de Steve não constasse do catálogo. Estava na cidade, disse, sabia onde Steve e Sônia estavam e viria aquela noite para "pegá-lo" e levá-la.

"Está bem", disse Steve. "Estarei aqui."

Ele não apareceu. Por volta das 10 horas daquela noite os detetives Ray Drago e Frank Bauer do 1020 Distrito prenderam Carranza devido a um mandado expedido em março em Camden, New Jersey, em conseqüência de uma queixa apresentada por membros de outra tribo cigana a quem os Bimbos ameaçavam constantemente. Ao ser preso, o pai tentou tirar o corpo fora. "Por que", perguntou ele ao oficial de plantão, "está fazendo isto a um homem velho como eu?"

No dia seguinte houve uma audiência na Corte Criminal de Queens e como era uma sexta-feira Carranza foi mantido preso durante o fim de semana para ser depois extraditado. Após a prisão, Steve foi à casa em Queens em que sua mãe ainda estava hospedada, pegou a menininha e levou-a para Sônia. Quando Sônia, sua filha e seu namorado - realmente seu "marido" agora - partiram juntos, Steve disse ao rapaz, "Tome conta delas. Se não o fizer, você amaldiçoará o dia em que me encontrar."

Havia ainda um último laço solto a apertar - o pequenino cachorro que encontrara pouco após sua chegada em nova Iorque. Resolveu esse problema através de uma secretária que encontrara numa tarde em que estava procurando Sônia. Os pais dela haviam acabado de perder seu cachorro e queriam outro. Ficaram encantados com o cachorrinho logo à primeira vista. Ela disse a Steve que eles o haviam chamado de "Cigano". Então ele partiu para Los Angeles. Sabia que a trégua era tão-somente temporária. Que outra dificuldade apareceria cedo ou tarde.

Durante todo o verão pai e filho continuaram num jogo de gato e rato. Carranza após ter sido extraditado para New Jersey deu fiança e nem ele nem seus acusadores compareceram ao julgamento e o caso foi retirado do tribunal. Soube-se que Carranza esteve em Cincinnati e Cleveland, de volta a Nova Iorque, Chicago, em seguida em San Francisco e Los Angeles e novamente em Nova Iorque. Periodicamente telefonava a Steve com renovadas ameaças de vingança. Antes da chegada de Carranza a Los Angeles, Steve voltou a Nova Iorque para falar com um grupo de jovens ciganos e quando seu pai o seguiu ele foi para Atlantic City, tendo compreendido então que outro confronto com seu pai, em que poderia fazer alguma violência, não podia, no final das contas, senão prejudicá-lo. Fugiu novamente para Nova Iorque após saber que Carranza havia deixado a Flórida e Steve estava ainda em Nova Iorque quando o "estabelecimento" Romani abateu-se sobre ele.

Por volta das 10 horas da noite do dia 28 de setembro de 1974, Steve telefonou-me de um apartamento em Manhattan. Havia lá, disse ele, três detetives que iam prendê-lo. Disse estar sendo acusado de ter invadido a casa de uma velha mulher cigana e procurado roubá-la e matá-la.

Os detetives eram no 680 Distrito de Brooklyn. Falei com um deles, Nels Nilsen. Disse-lhe que vinha entrevistando Steve sobre a vida cigana, que vários ciganos meus conhecidos sabiam disso e estavam muito preocupados - na verdade, alguns deles haviam-me procurado para externar sua indignação em palavras violentas - e que, além disso, Steve estava envolvido numa complicada luta pelo poder com determinados elementos da sua tribo. O resultado, disse eu, era que acreditava que essas acusações eram meramente para molestá-lo.

"Trata-se aqui não de hostilização", disse o detetive Nilsen, mas de delitos muito graves."

"Bem", disse eu, "para os ciganos isso é molestação." O fato de Nilsen conhecer dois livros meus, The Valachi Papers e Serpico, ajudou. Disse-lhe que quaisquer que fossem os fatos, estava certo de que Steve não fugiria da cidade até que o assunto ficasse resolvido, de uma maneira ou de outra. Nilsen decidiu deixar que Steve comparecesse à polícia na semana seguinte. De outra maneira, teria sido preso imediatamente, fechado e mantido sob custódia durante o resto da semana; teria sido interrogado e, à luz das acusações feitas contra ele, mantido sob uma elevada fiança de, talvez, 5 mil dólares. No caso de não poder apresentar a fiança, teria de ser enviado para a Casa de Detenção de Brooklyn para uma audiência preliminar durante pelo menos três dias. No caso de se verificar haver causa razoável de se acreditar que havia cometido os crimes de que era acusado, estava sujeito a comparecer diante de um grande júri. E, caso indiciado, um novo mandado seria expedido e seria mantido preso para julgamento.

Eu estava sendo envolvido nos negócios ciganos muito mais do que havia antecipado, mas também estava tendo oportunidade de verificar por experiência própria a maneira pela qual os ciganos se servem do sistema de justiça criminal para seus próprios fins. Logo soube que o detetive Nilsen, considerado um policial excepcionalmente bom, havia ficado intrigado desde o princípio com algo no caso, independentemente da minha conversa com ele. Quando foi pela primeira vez ver a queixosa, a Senhora Rosanna Lohr, em sua casa, verificou que ela tinha um cão, um animal bravo que até ser dominado quase arrancou-lhe a perna enquanto ele a interrogava e ela não tivera uma explicação aceitável de como o animal permanecera quieto na noite da alegada entrada de Steve em sua casa.

Segundo Rosanna Lohr, ela estava dormindo em seu quarto por volta das 11h30min da noite de 20 de setembro, uma sexta-feira, quando foi acordada por Steve que estava "remexendo na sua arca". Com ele estavam dois homens que ela não conhecia, um branco, 25 a 30 anos, cabelos escuros, e outro, também branco, de 19 a 20 anos, com cabelos vermelhos. A Senhora Lohr declarou que começara a gritar e que dissera a Steve para parar. Jurou que Steve queria saber onde estava o dinheiro de seu falecido marido. Disse não saber o que ele queria dizer com isso. Acrescentou estar gravemente doente, vítima de câncer, e que devido a isso tinha uma companheira no apartamento que cuidava dela e que estava dormindo noutro quarto. Pediu socorro à companheira e que diante disso Steve e seus companheiros fugiram. A companheira da Senhora Lohr, Anne Vlahor, incialmente corroborou seu depoimento declarando que estava dormindo na sala de jantar quando um homem de cabelo vermelho apontou-lhe uma arma e disse-lhe para não se mexer. Ela ouviu a Senhora Lohr gritar e dizer "Steve!" e que o homem de cabelo vermelho saíra imediatamente. O apartamento em que o suposto assalto ocorrera era no primeiro andar de um edifício de dois andares; as portas exteriores estavam fechadas mas uma janela na cozinha, nos fundos, de aproximadamente seis pés de altura, estava aberta.

O delito de que Steve era acusado enquadrava-se nos crimes "atrozes" em grau justo abaixo de assassinato e incêndio. Um era roubo em primeiro grau; difere do simples roubo por implicar em entrada em domicílio alheio sem permissão ou autorização com a intenção de cometer um crime e devido ao fato de ter ocorrido à noite quando era provável a presença de seus moradores e, ainda, por estar o assaltante, como disseram, armado. A segunda acusação era de tentativa de roubo em primeiro grau por haver Steve alegadamente ameaçado a Senhora Lohr de ofensas físicas ao exigir-lhe o dinheiro. O terceiro, que fala por si só, era a posse de uma arma com o intuito de usá-lo, no caso um revólver. Dava a impressão de que tudo havia sido planejado com antecedência. Steve, caso condenado, estava sujeito a 25 anos de prisão e a possibilidade de ele suceder ao Rei Tene como chefe da tribo estaria terminada dramaticamente.

Falei com Steve ao telefone no dia seguinte ao em que os detetives o visitaram. Perguntei-lhe onde estivera na noite em que supostamente assaltara a casa da Senhora Lohr e ele disse num tom resignado que não podia se lembrar, que achava que estivera indo de um bar a outro, mas que realmente não podia retraçar seus movimentos. Ralhei com ele por sua falta de memória e disse-lhe que devia lembrar-se da noite detalhadamente, que era importante. O fato dele não poder relembrar-se onde estivera reforçava, no entanto, a minha crença de ser inocente; se tivesse realmente feito alguma coisa como essa, estava certo de que já haveria de ter um álibi bem ensaiado. Chamei então Charles J. Hynes, naquela ocasião um dos homens mais importantes no escritório do procurador do distrito de Brooklyn. Embora conhecesse ligeiramente Hynes, a sua reputação entre os repórteres e funcionários encarregados do cumprimento da lei era a de um promotor público durão, mas justo. Fiz-lhe um resumo da situação, como o fizera ao detetive Nilsen, e disse-lhe que embora não pudesse, obviamente, jurar acreditava fortemente que Steve estava sendo perseguido. Pedi-lhe para designar um de seus mais capazes procuradores auxiliar para o caso e ele concordou em fazê-lo. Mas quando levantei a teoria de que Steve provavelmente não era culpado porque não tinha um álibi, tudo o que consegui foi um resmungo não comprometedor. Em seguida entrei em contato com Eddie Coyne, o técnico em ciganos do departamento de Polícia e perguntei-lhe se já ouvira falar em Rosanna Lohr. Disse-me que sim e que por duas ou três vezes nos últimos anos ela apresentara queixas a que nunca dera andamento. Essas queixas, disse Coyne, eram típicas da maneira pela qual os ciganos procuravam causar dificuldades a outro. Transmiti essa informação a Hynes.

As coisas melhoraram quando alguns dias mais tarde Steve telefonou para dizer triunfantemente que finalmente se lembrara onde estivera na noite em questão. Ele tinha estado, disse, num bar em Manhattan na Rua 53, depois da Primeira Avenida. Já entrara em contato com o "barman" para confirmar sua presença e estava seguindo ativamente outros donos de bares com quem falara naquela noite. Lembrara-se da noite porque chovera muito.

Possivelmente devido à inesperada investigação das acusações por um jovem assistente do procurador distrital designado para o caso, Alex Spizz, a companheira e corroboradora da Senhora Lohr recuou em parte de seu prévio depoimento específico e agora não podia mais se lembrar senão que algo acontecera no apartamento naquela noite, mas sem saber dizer o quê. A Senhora Lohr, no entanto, apegou-se à sua história e depois que Steve foi registrado e interrogado, apareceu como testemunha na audiência preliminar. Evidentemente, tencionava manter a queixa.

A sua determinação, no entanto, não estava de acordo com as queixas que Coyne lembrava-se dela haver feito no passado e eu insisti uma vez mais para que Steve dissesse quem era ela. Até esse momento Steve a havia descrito meramente como uma "velha mesquinha", mas agora acrescentava, como se fosse do conhecimento geral, que ela era a sua "Tia Rose Bimbo" - a mesma Rose Bimbo, verificar-se-ia depois, que tomara parte na rixa com a Rainha Millie Marks em Chicago há uns 50 anos atrás, que estivera envolvida na confusão de Methuen e que fora a testemunha principal nas acusações falsas que Tene engendrara contra o Rei Steve Kaslov em Nova Iorque em 1932.

Na audiência preliminar, como Rossana Lohr, ela declarou ter 64 anos, mas aparentava ter pelo menos 10 anos mais e era praticamente impossivel concebê-la como a voluntariosa beleza de cabelos negros que um dia fora. Era baixa e gorda, seu rosto descorado e enrugado. arrastava os pés como se cada passo fosse ser o último e falava com voz fraca e trémula que mal se podia ouvir. Ela era, pensei, a última espécie de testemunha que eu gostaria de ter testemunhando contra mim.

Na tribuna, após explicar como havia sido acordada por Steve, arma na mão, declarou, "E eu continuei dizendo, por favor, não me bata, você sabe que estou morrendo. O que você quer de mim?"

Ao lhe perguntarem a quem falara, respondeu, "Steve. Havia outros homens com ele, três homens ao todo."

"Steve disse-lhe alguma coisa?"

"Ele disse, dê-me o dinheiro do seu marido." Pedi-lhe para não tirá-lo. Ele disse, "Dê-me o dinheiro do seu marido."

Quase chorando sempre, contou como Steve dera-lhe socos no estômago e no peito apesar dela estar sofrendo de câncer e de estar no seu "leito de morte." Adicionou mais alguns detalhes imaginosos. "Ele estava dançando e cantando enquanto me batia", testemunhou ela, "e tinha a arma na outra mão."

Steve foi solto sob palavra, seu caso ficando pendente de ação judicial. Mas quase que imediatamente as coisas ficaram pretas para ele. As queixas anteriormente feitas por sua tia haviam sido destruídas uma vez que ela não tinha-lhes dado prosseguimento, de modo que não havia evidência que comprovasse seu modo de agir. Havia, por certo, alguns pontos fracos na sua história - o inexplicavelmente dócil cachorro na noite do assalto e também a alegação de que Steve lhe dera vários telefonemas ameaçadores antes de vir à sua casa e que ela instalara um gravador, mas não pode apçesentar nenhum "tape" com a voz dele.

No entanto, tudo isso perdeu importância quando o auxiliar do procurador distrital Spizz descobriu que o álibi de Steve não era válido. Steve havia descoberto não só o "barman" mas também três donos de bares que haviam garantido tê-lo visto naquela noite de sexta-feira de setembro quando houvera uma forte chuva. O único problema, como Spizz verificou junto ao serviço de meteorologia, é que naquela noite de 20 de setembro não havia chovido em Nova Iorque. Não há nada mais irresistível, ou convincente, para um procurador do que um acusado que oferece um falso álibi e, como Spizz me diria mais tarde, baseado nisso ele estava determinado a insistir numa acusação.

Senti-me em grande parte responsável pela situação incerta e perigosa de Steve. Eu o havia, tão severamente, repreendido por não se lembrar o que estivera fazendo na noite do suposto assalto que talvez o tivesse forçado a uma explicação, qualquer explicação. Na verdade, havia chovido numa sexta-feira à noite, em setembro, mas fora no dia 13 e não no dia 20; e no pé em que estavam as coisas, parecia que teria sido melhor que tivesse dito não se lembrar onde estava e deixar as coisas ficarem assim.

Os Bimbos mais velhos, no entanto, em sua ansiedade de darem uma lição a Steve e colocá-lo por trás das grades, foram longe demais quando chamaram-me ao telefone de San Francisco. Um Tom Tene, que se identificou como parente de Pete Bimbo, disse saber que eu estava entrevistando Steve, a quem ele descreveu como um "filho da puta" e um "viciado em drogas", e que ele e outros membros da tribo estavam prontos a me darem uma verdadeira versão da vida cigana. Tom Tene então mencionou o nome de um certo número de ciganos que disse estarem "muito aborrecidos" que Steve estivesse falando comigo. Entre eles mencionou o de Rosanna Lohr. O que me interessou nisso foi que não mencionou nada sobre o assalto ser a razão da sua raiva.

Relatei essa conversa a Charles Hynes, com quem entrara inicialmente em contato no escritório do departamento de polícia de Brooklyn, perguntando-lhe se Steve e Rosanna Lohr não podiam ser submetidos a testes de detector de mentiras que, embora não passíveis de serem ouvidos no tribunal, podiam ao menos dar à promotoria uma idéia de quem estava falando a verdade. Hynes levou-me para ver o próprio procurador do distrito. Eugene Gold. Relatei a conversa que tivera com Ton Tene e este disse que se eu conseguisse que Tene repetisse o que me dissera de modo a poder fazer uma gravação, seria indicado um detector de mentira "no interesse da justiça". O departamento de polícia forneceu o gravador e Tom Tene, numa outra conversa comigo, repetiu o que dissera na chamada anterior e, embora eu lhe desse toda oportunidade para referir-se ao assalto, não tocou absolutamente no assunto.

Em conseqüência, Steve foi submetido a três testes pelo técnico poligráfico e, como mais tarde vim a saber, passou "com nota 10". Quando Alex Spizz, o assistente encarregado do caso, pediu a Rosanna Lohr para submeter-se ao teste ela recusou. E pela primeira vez Spizz notou um tom de asperidade em sua voz normalmente fraca e triste. Disse estar doente demais para ir ao seu escritório e quando ele ofereceu mandar um carro do esquadrão, declinou acrescentando estar tão doente que estava pensando em suspender a acusação. Mas nada disto era conclusivo e Spizz, embora não mais insistindo numa denúncia, achava que o assunto devia ser levado ao grande júri com o procurador distrital adotando uma posição neutra.

Cerca de dois meses haviam se passado desde que fora feita a acusação original contra Steve e alguns dos ciganos a ele hostis, aparentemente achando que o caso não estava andando bastante depressa, decidiram agir mais diretamente. Ele estava convencido de que fora seguido naquela noite do alegado assalto para terem certeza de que não estava na companhia de amigos que pudessem atestar terem estado com ele. Pouco depois da meia-noite de 2 de dezembro, estando também sozinho, saiu de um bar e estava caminhando em direção a um carro de segunda mão que havia comprado quando ouviu alguém num outro carro, um Cadillac branco, parado na rua, chamar, "Hei Bimbo, venha cá."

Ele podia ver que havia várias pessoas no Cadillac e o emprego do nome Bimbo só podia significar serem eles ciganos. Steve estava morando com alguns amigos em Queens. Correu para o seu carro, o pôs em movimento e saiu ao longo da Primeira Avenida no East Side de Manhattan com o Cadillac seguindo-o. Quando atingiu a rua 59, virou na direção Oeste. Desta vez estava chovendo pesadamente e após prosseguir por meia quadra, esperando perder de vista o Cadillac, entrou numa estrada lateral que levava à parte inferior da Ponte Queensboro. Ao se encontrar na ponte, o Cadillac ainda o estava seguindo e aproximando-se. Naquela hora não havia muito tráfego e de repente o Cadillac estava bem atrás dele e então chocando-se contra ele. A cada choque o carro de Steve escorregava na grade de ferro que constitui grande parte da pista e ele lutou para controlar o carro. Mas quando conseguia fazê-lo, vinha outro choque, e outra derrapagem,

cada uma pior do que a última. O Cadillac era muito mais possante do que o seu carro e após cada choque ele o alcançava novamente. A ponte, no lado Queens, tem várias saídas separadas por pilares de aço que sustentam a pista superior e quando Steve estava se aproximando delas, o Cadillac novamente chocou-se com ele e depois colocou-se ao seu lado e bateu contra a parte dianteira à esquerda do seu carro. Novamente ele escorregou. O carro estava fora de controle e foi bater contra um dos pilares de aço.

Uma testemunha assistiu ao que aconteceu, um chofer de táxi que deixara seu trabalho na garage da companhia em Queens, perto da ponte. Ele vira que o carro era branco, mas com a chuva não pudera enxergar o número da placa embora estivesse certo tratar-se de placa de Nova Iorque. O chofer retirou Steve, tonto e sangrando, e queria levá-lo a um hospital. Mas Steve insistiu em dizer que estava, bem, deu-lhe o endereço para onde estava indo e pediu-lhe se o podia levar lá.

Ao ajudarem-no a subir ao apartamento, Steve percebeu que havia perdido sua carteira com uma lista importante de números de telefone. Um de seus amigos foi até a ponte para ver se estava no carro. Quando o amigo de Steve chegou ao lugar da batida, um carro do 1080 Distrito Policial estava no local com as luzes acesas. Ele deu aos policiais um número onde podiam encontrar Steve, assim como o nome do motorista de táxi e encontrou a carteira no carro antes desse ser jogado da ponte. O carro estava totalmente amassado e era realmente milagroso que Steve tivesse sobrevivido. O único ferimento que tinha era um talho na testa, na altura do couro cabeludo, que exigiu 18 pontos, e um ombro deslocado. Havendo tão pouca coisa, não havia muito que a polícia pudesse fazer.

Após ficar bom, Steve ainda teve de comparecer a um grande júri em Brooklyn para responder às acusações a ele feitas por Rosanne Lohr, também conhecida em várias fichas policiais como Rose Bimbo, Rose McGinnis, Peggy Fisk, Dorothy Fiske e Anna Pienton. Nessa altura eu já tomara conhecimento do seu envolvimento passado

nos negócios da tribo Bimbo e descobrira que ela havia sido sentenciada em 1937 a 15 anos no Reformatório para Mulheres de Framingham, Massachusetts, tendo, na realidade, cumprido 13 anos de pena. A acusação pela qual fora condenada era "furto malicioso" e eu achei que era uma sentença bastante severa para tal crime e que devia haver alguma razão para isso. Havia. Rose havia atraído uma mulher caucasiana chamada Linda Cheng, mulher de um médico chinês residente num subúrbio de Boston para uma fraude boojo. Justo no momento em que a Senhora Cheng estava para entregar os 3,580 dólares, mudou de idéia e procurou guardar o dinheiro. Rose e um homem com quem ela estava vivendo, Charles Pienton, bateram nela com selvageria e tiraram-lhe o dinheiro à força. A surra foi tão brutal que a polícia de Boston decidiu que o caso era de suma prioridade e conseguiu descobrir o casal em Indiana, quatro meses mais tarde.

Passei essas informações, juntamente com os documentos pertinentes, ao assistente do promotor distrital Spizz, que informou que o grande júri os examinaria. Rosanna Lohr então testemunhou sem ter nenhuma idéia de que suas atividades passadas pudessem ser invocadas. Não havia nenhuma razão para que suspeitasse que o pudessem ser. Como os ciganos bem o sabem, quando uma acusação é feito o promotor, em regra geral, não verifica os antecedentes do queixoso. Isso é algo que o réu ou seu advogado pode fazer por ocasião do julgamento e no caso de Steve era questionável que isso viesse a ocorrer uma vez que ele não sabia nada de específico sobre a sua ficha. O grande júri, após ouvir a evidência, votou pelo não pronunciamento de Steve. Uma vez que esses trâmites são secretos, Spizz não me contou o que houve, mas revelou que Rosanna Lohr na sala de testemunhas antes de depor deixou escapar a verdade sobre o significado de tudo quando disse, referindo-se a Carranza, "meu irmão devia ser o rei legítimo."

Com a justificação de Steve, pensei que isso seria o fim da questão. Mas havia-me iludido. Ainda pensava como um gadjo - que existe um começo, um meio e um fim para as coisas. Para os ciganos, no entanto, não existe essa progressão, a vida é circular, dobrando-se sempre sobre si mesma e não há, na verdade, fim. Imerso como eu estivera em ajudar Steve a fazer abortar a tentativa de incriminá-lo - juntamente com minha preocupação pela quase bem sucedida tentativa de matá-lo - eu havia esquecido essa essencial verdade Romani de que enquanto a maioria da humanidade está ao menos sob a impressão de mover-se para a frente, possivelmente para a sua própria destruição, o cigano permanece preso a um ciclo constantemente repetitivo, não como algumas sociedades primitivas que os antropologistas encontram, digamos, em algum vale remoto da selva da Nova Guiné, mas nos modernos, movimentados e teoricamente civilizados centros metropolitanos e em torno deles.

Eu havia esquecido não só que os ciganos de hoje estão ainda rodeados pelos mesmos costumes, tabus, contendas e atitude que trouxeram com eles na sua grande migração inicial através do Oriente Médio há séculos, mas também que o meu próprio envolvimento pessoal com eles tinha um idêntico fluxo e refluxo rítmico - que a venda de Sônia num casamento forçado, sua tentativa de suicídio e a sua libertação por Steve poderia facilmente ter se passado na Idade Média; que Rose Bimbo podia procurar comprometer Steve Tene praticamente da mesma maneira como havia tentado fazê-lo com o Rei Steve Kaslov 44 anos antes; que a luta entre Steve e seu pai Carranza refletia perfeitamente a violência, que era o verdadeiro legado do Rei Tene.

Senti que havia completado o círculo quando, quase um ano após haver ajudado Steve a tirar Sônia de um hospital em New Jersey, Steve telefonou-me para dizer que Carranza havia, uma vez mais, conseguido a pista dela, desta vez em Los Angeles, e que necessitava de dinheiro para fazê-la sair da cidade. Eu havia até mesmo esquecido que, apesar de todos os seus esforços de emancipação, ele também era um cigano. Primeiro havia pedido emprestado a minha capa de chuva para salvá-la; agora estava pedindo 700 dólares emprestados. Ocorreu-me então que essa tensão autoperpetuante e totalmente auto-absorvente era o visco que fazia com que o mundo Romani permanecesse unido e separado do resto de nós.

Após seu telefonema, fui ver a velha mulher boojo, a Tia Hazel. Encontrei-a sentada à janela da frente da sua casa, atenta ao que se passava na vizinhança. Como sempre, estava ciente de tudo o que acontecera. Eu lhe perguntei o que achava que finalmente aconteceria entre Steve e seu pai. "Bem", disse ela num tom de um filósofo profético, "ver é crer". Se Steve pode fazer o que diz, sendo o Rei, dando instrução ao nosso povo, educando-o e fazendo com que as coisas melhorem, então o sacrifício de uma vida não é demais."

A vida de que estava falando, naturalmente, era a de Steve.

Ela suspirou profundamente, seus olhos focalizando algum ponto oculto na distância, como que ponderando melancolicamente sobre a inevitabilidade de tudo.

Finalmente quebrei o silêncio. "Tia Hazel", disse eu, "o que me diz sobre os ciganos? O que vai acontecer a eles?"

Ela pareceu assustar-se com a pergunta. "Os ciganos?", disse ela. "Oh!, bem, nós continuaremos, você sabe, como sempre".

 

                                                                                Peter Maas  

 

                      

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