Capítulo 10
O saxão não ouviu nada. Não viu nada, mas em um momento não havia ninguém e no seguinte sim, havia. Estava movendo seu fogo meio consumido com um pau enquanto se perguntava se deveria incomodar em acrescentar mais combustível, já que estava a ponto de se enrolar na pele de urso para dormir, quando sentiu olhos sobre ele. Olhou para cima e viu a loba negra. Ela estava sentada sobre suas patas traseiras e o observava do outro lado do fogo.
—Matrona?
Um segundo depois ela se convertia em mulher, com sua voluptuosa carne iluminada pelos mutantes desenhos do fogo. Ele afastou o olhar e tirou seu manto.
Matrona sorriu. – Um bom olhar?
—Vocês humanos se preocupam muito por um pouquinho de pele. Por que não dá uma boa olhada? O que acontece? Resulto-te repulsiva?
—Não! — Ele respondeu imediatamente. - Justamente o contrário, mas não me deixaria envergonhar ou deixar que minha virilidade se mostre sem nenhum propósito.
Matrona soltou uma gargalhada rouca.
—Como sabe que não servirá a nenhum propósito?
Desta vez se ruborizou.
—Eu não gostaria que me pilhassem com a querida do rei.
A mulher, a loba negra, que usava um colar com um magnífico dragão de com escamas de rubi, âmbar, topázio e safira. Ela soltou outra gargalhada gutural. Agora se envolvia em seu melhor manto de lã bordada, então podia fitá-la. Ela rodeou o fogo e acariciou sua hirsuta face com a mão de longos dedos.
—Ouça, formoso bruto, não sou a querida de nenhum homem e tampouco sou posse de ninguém, sequer de um rei. Faço o que quero e quando quero. Sempre tenho feito e sempre farei. Sim, deitei-me com Carlos; o senhor Maeniel me pediu. O rei desfrutou da experiência e eu obtive seu favor. E ele me abriu sua mente. Por isso estou aqui. Onde estão? Carlos já está em marcha Através das montanhas, mas confiou ao senhor Maeniel uma tarefa importante. Se tiver falhado, eu devo lhe substituir e, se eu falhar, você deve terminá-la.
—Qual é?
Matrona pegou um pedaço de pau e desenhou um rudimentar mapa.
—Carlos vem por aqui, - ela disse, enquanto fazia uma linha indicando um passo através das montanhas. - Seu tio Bernard segue outra rota. Por aqui!
—Ele dividiu suas forças?
—Sim, mas também Desidério o fez. Uma metade tem sua base em Ivrea e a outra em Suas. Se Carlos atacar qualquer dos dois lugares, sabe que Desidério chamará suas forças do outro. Diga-me o resultado. Você mandou homens. Poderá ver o plano de Carlos.
—Sim. - Respondeu o saxão. - Quando chegar o ataque, Desidério acreditará que se trata do grosso das forças de Carlos. Por exemplo, se Carlos atacar Suas, porque se eu fosse ele, é aonde iria, Desidério tirará de Ivrea seus melhores guerreiros. Então o tio de Carlos, dirigindo as forças de Ivrea poderá atacar a debilitada guarnição, abrir passo e atacar Suas pelo flanco. Atacadas por diante e por trás, as forças de Desidério fugirão para a Pavia. Ele não se atreverá a perder seu exército para Carlos, mas alimentará a esperança de resistir um assédio.
Matrona assentiu.
—Mas, - ela disse, - não há mapas do terreno entre Ivrea e Suas. Quando o tio de Carlos chegar até a guarnição, as forças de Ivrea devem cavalgar rapidamente até Suas. Trata-se de uma zona de bosques, silvestre, sem caminhos ou atalhos definidos. O lobo tinha que encontrar a rota mais rápida desde Ivrea até um ponto do flanco de Desidério em Suas. Agora, pergunto-lhe, onde eles estão? Ambos deveriam já ter retornado.
—Não sei. Tiveram uma briga.
Matrona suspirou fundo.
—Ele teme por ela.
—Sim. Mas ela o seguiu, viajando de uma forma que não posso compreender.
—O Espelho da Dama?
—Sim. Prometi esperá-la. Como vê, aqui estou.
—Sim. - Disse Matrona. - Sei onde é. Viajei até aqui com minha gente há muito tempo, mas não me servirá para nada. Pelo menos, não antes que amanheça. Esse lugar é perigoso à luz das estrelas.
O saxão desviou o olhar para o escuro bosque. Sua imaginação não deixava de lhe mostrar uma imagem do que tinha visto antes que ela se envolvesse com o manto. De repente, deu-se conta de que não estava absolutamente cansado. Mas que sentia a necessidade de se afastar dela antes de ficar como um idiota.
— Eu o levarei lá pela manhã. A paisagem por aqui mudou com o tempo e eu seguirei...
Matrona voltou a lhe acariciar a face.
—Não está cansado de esperar? Quanto faz?
—Desde que cheguei aqui?
—Não. - Disse Matrona enquanto o beijava.
Lucila fora apanhada e sabia. Um segundo mais tarde, o filho de Ansgar fechou as portas e ficou de costas para elas.
—Fique aí, Ludolf. - Ordenou Ansgar. Quero que averigúe o que acontece aqui. Lucila? —Ele perguntou a sua esposa.
Ela voltou a espirrar.
—Oh, Deus! Sim, é Lucila. A... Amiga do Papa Adriano. Maldita seja, Lucila. Diga-me o que está fazendo aqui e não fique aí tentando ficar cara de não ter quebrado nunca um prato. Conheço-a. Não estaria aqui se não tramasse algo.
—Lucila? —Repetiu Ansgar. - O nome é bem conhecido. E não, não me diga o que maquina. Não quero saber. Stella, - ele se dirigiu a sua esposa, - nada de mais perguntas.
Stella parecia meio doente, mas indignada.
—Não importa... Marido. Digo-te que...
—Não, já me disse o suficiente. Não diga mais nada. Não quero ter conhecimento de nenhum complô. Não quero saber nada que me obrigue a tomar medidas drásticas. Minha senhora Dulcínia, como pudeste permitir ser usada para criar uma situação tão embaraçosa? Sou um homem leal a Desidério, o rei lombardo. Governo minhas terras por sua designação, tal como o fez meu pai antes que eu, e devo boa fé e lealdade a meu senhor. Agora, Lucila. – Ele seguiu com severidade. - Lhe devem esses homens, a escolta com a que veio, eles lhe devem lealdade?
Lucila se recompôs.
—Não. – Ela disse. – Não. Eles pertencem ao conde Rufus de Nepi. Por favor, por favor, Ansgar, que não haja derramamento de sangue. Permita-me pagá-los por seus serviços e deixá-los em paz.
—Muito bem, mas sem truques. E não acontecerá nada entre vocês que meu filho não possa ouvir ou ver. E sua amiga, Dulcínia, ficará aqui como garantia de seu bom comportamento enquanto leve a cabo este assunto. Filho, acompanhe-a. Alerte seu tio, mas não faça nada que alarme ao povoado.
Lucila se retirou do braço de Ludolf.
—Dulcínia, me conte o que está ocorrendo. - Disse Stella severamente.
—Não, Dulcínia. Não o faça e, Stella, fique calada.
Stella espirrou três vezes e assuou o nariz com seu lenço.
—Oh, Deus, sinto-me fatal e ainda por cima isto. Marido, ela trama algo e deveria averiguar o que...
—Sh! Querida - Disse ele enquanto abraçava Stella. – Volte para cima. Falaremos durante o jantar. Está doente e precisa descansar.
—Meu amor. - Disse ela. - Não me beije. Pegará o que eu tenho.
Ele sacudiu a cabeça.
—Não, eu não acredito. Cada primavera é como um relógio e às vezes no outono acontece-te o mesmo. Só Ludolf parece sofrer de vez em quando como você, embora nem tanto, graças ao céu. E, dado que é seu filho, não acredito que seja contagioso. Agora faça como sempre. Seja uma esposa obediente e sensata. Vá descansar e conversaremos mais tarde no jantar.
Stella subiu as escadas, ainda murmurando para si.
—Obediente e sensata, nada menos.
Ansgar podia resultar exasperante. A presença de Lucila a tinha alarmado e seu querido marido não parecia ter a mais remota idéia de quão inquietante era este giro dos acontecimentos. Para falar a verdade, pensou Stella, estava assustada. Em vez de ir para seu quarto, ela se dirigiu para o de seu marido. Dele se podia ver a praça.
Um grupo de criados estava junto à janela quando ela entrou. Todos exceto sua donzela, Avernia, se dispersaram. Avernia era uma personagem privilegiada. Estava com s Stella desde que ela tomara seu primeiro amante em Roma, a pedido de Lucila. Stella se uniu a ela na janela.
—É quem acredito que seja? — Perguntou Avernia.
—Sim. - Disse Stella.
—Por minha vida. Lucila. Ah, bem! Não tem nada a temer. Ele sabe tudo sobre ti.
Stella lhe dirigiu um olhar vacilante.
—A mulher que deixa um homem saber tudo sobre ela é uma idiota. Quando o conheci lhe disse que era virtualmente virgem... Que Aldric era meu primeiro amante.
Avernia ergueu os olhos para o alto.
—Não! Você nunca me contou isso.
—Eu era a atração estrela de um bordel e grávida ou não, nunca teria casado comigo se não pensasse que eu era uma mulher ofendida.
—O que vai fazer? —Avernia parecia assustada.
Stella lambeu os lábios.
—Não sei, mas ela não pode ficar aqui. Cedo ou tarde se vingará por eu tê-la descoberto ante meu marido e lhe contará tudo sobre minhas pequenas aventuras em Roma.
—De toda forma, ele não a repudiará. - Disse Avernia. - É a mãe de seus filhos. Claro que não o fará. Não. Seria impossível...
—Feche a porta. - Disse Stella entre dentes. - O que acontece? Quer dizer para toda a casa?
Avernia foi correndo fechar a pesada porta de carvalho e correu um grande fecho de ferro.
Stella se sentou na cama, abrindo e fechando os punhos sobre o vestido de seda.
—Maldita Lucila! – Ela sussurrou. - Maldita puta intrigante. O que faz aqui? Como se atreve a interferir em minha vida outra vez? Como se atreve a colocar Ansgar em problemas?
Avernia se encolheu os ombros.
—Não acredito que importe o que esteja fazendo aqui. O problema é como se desfazer dela.
—Deus! - Sussurrou Stella. - Deus. Ansgar é o melhor que me aconteceu alguma vez. Por que ela vem aqui arruinar tudo? Eu a matarei se me faz parecer uma vulgar rameira perante ele.
—Bem, isso é o que foi.
O impacto da bofetada ressoou no aposento. Avernia gritou tão forte que Stella estava segura de que teriam ouvido na rua. Avernia rompeu a chorar e correu para a porta. Stella saltou da cama e a pegou entre seus braços.
—Não, não, não o faça. Não saia daqui fazendo uma cena. Tem tanto a perder como eu com tudo isto. Deve ficar aqui e me ajudar a pensar em uma saída.
Avernia quase estava histérica, mas o que Stella dizia era tão certo que ela procurou controlar imediatamente sua cólera e sua dor. Ela também tinha um marido, o ferreiro do povoado. Havia lhe dado cinco filhos e todos viviam e prosperavam na nova cidade. Tampouco podia permitir um escândalo sobre seu passado.
—De acordo, mas não esbofeteie quem só está dizendo a verdade. Dedique seus esforços a resolver isto. Perder a calma comigo não nos ajudará.
—Sim, sim. Cale-se e me deixe pensar. —Stella começou a andar de um lado a outro. Sua segunda percorrida pelo aposento a levou até a janela. Olhou Lucila, que estava na rua. Deteve-se, depois caminhou até a mesa de seu marido, situada na parede oposta da cama, sentou-se, encontrou uma tabuleta de cera e começou a escrever trabalhosamente.
—O que faz?
—Não acredito que Lucila queira interferir em minha vida, se eu lhe der uns quantos problemas para se preocupar.
—Como fará?
Stella não respondeu, mas perguntou por sua vez.
—Seus filhos ainda vão a Florença para comprar aparas de ferro?
—Sim.
—Então poderão levar uma carta.
—Levarão se eu pedir.
—Será melhor que o faça. E não lhe diga nenhuma palavra a Ansgar, ouve-me? Nenhuma palavra.
—Não...
—Eu sim. — Stella levantou os olhos da mesa. - Procure manter a boca fechada. Pelo bem de nós duas. Ou esse grande, forte e mal-humorado do teu marido averiguará como você ganhou seu dote.
Avernia tragou saliva.
—Não. – Ela disse enquanto se fazia o sinal da cruz. - Ficarei calada como uma tumba e meus filhos também. Juro.
Em algum momento anterior à alvorada, o saxão perguntou a Matrona: — Como soube que não era um camponês?
Ela riu.
—Que camponês sabe limpar o óxido de uma cota de malha, escolher um bom cavalo de guerra e treiná-lo para a batalha, afiar uma espada de forma tão perita que barbearia os pelos de um javali mantendo a folha polida como um espelho? No que diz respeito a espada, observei-o com a arma que pegou nesse horrendo lugar no qual Regeane e você tentaram se refugiar. Essa coisa parecia um atiçador para a lareira e de fato, acredito que provavelmente alguém o usaria para tal efeito, mas em uma semana você a tinha limpa, afiada e brilhante como a luz da lua.
O saxão concordou.
—Mesmo maltratada é uma boa arma. Tive que sacrificar um pouco de aço para eliminar a corrosão e o óxido da lamina, mas como a esculpiram com muita precisão não foi machucada no processo. Sempre que se afia se perde um pouco de aço na lamina; um bom ferreiro sempre tem isso em conta.
—Assim fala um verdadeiro granjeiro. - Disse Matrona. - Sempre se preocupam muito por seus brinquedos com fios.
—Em meu país, às vezes o fazem. - Respondeu o saxão. - Não posso lamentar ser tomado por um filho do campo.
—Sim! É por isso que deixou que o usassem como mula de carga quando o venderam ao outro lado das montanhas?
—Como soube?
Ele devia ter se ruborizado; Matrona sentiu o calor em sua pele.
—Seu corpo leva as marcas dos arreios e do látego. - Disse ela. - Por que não deixou que sua família pagasse um resgate?
Ele permaneceu em silêncio.
—Por quê? — Voltou a perguntar Matrona.
—Estou eu compartilhando sua cama ou você a minha?
—Estamos no bosque, não há camas. - Respondeu Matrona.
Ele demorou um momento para absorver a informação.
—Não há promessas entre nós.
—Nenhuma. Prazer mútuo, isso é tudo.
—Eu era muito orgulhoso. Minha mãe estava morta. Não queria que os homens me assinalassem e dissessem, aí vai um homem com um preço, e depois ouvir as risadas das mulheres. Preferiria fazer o trabalho de uma mula.
Matrona suspirou.
—Homens e as coisas que fazem em nome da honra.
—Acredito que não pode imaginar. Confesso que muitas noites eu chorava deitado no miserável estábulo no qual nos acorrentaram, desejando desesperadamente estar em casa, com meus cavalos, falcões e sabujos. Teriam me matado com alguma forma lenta se me tivessem recapturado. Matei dois homens quando escapei, mas prefiro a morte a uma escravidão perpétua, a um exílio perpétuo.
—Sim. - Respondeu Matrona.
—Também você?
—Sim. Há muito tempo, por uma ou duas vezes, tomei essa decisão, mas estou ficando com sono.
Ele respondeu abraçando-a com mais força. Não sabia se era ele que se aferrava a ela ou ela a ele, mas depois de tanto tempo sozinho, sentir o corpo de uma mulher ao lado do seu era reconfortante.
Devia tudo a Regeane e sua gente. Sonhara com eles, com os lobos da névoa. Elegantes, seguros de si, movendo-se como fantasmas através das árvores ao cair a noite. No céu, o sol se deslizava entre as sombras enquanto as nuvens baixavam das montanhas. Ele descia para seu acampamento. Além disso, carregava sobre o ombro o corpo estripado de um cervo. Perguntava se o atacariam. Se tentariam lhe tirar o cervo. Mas eles não o fizeram.
Um a um, eles apareceram, tão semelhantes nos recortes de neve sobre a terra do bosque, branco cinzento com olhos brilhantes, que não foi consciente de sua presença até que o movimento lhes descobriu. Saudou-os e os viu passar. Seu enorme líder e sua companheira no fim do grupo. E ele sabia, sem saber como, que haviam estado lhe observando, capazes de atacar e matá-lo facilmente se tivesse feito algum movimento contra o resto, mas que respeitavam o poder interior que via nele, como ele neles. Assim tinham uma trégua, de um predador perigoso a outro.
E quando se encontrou na situação mais comprometida de sua vida, eles foram lhe oferecer amparo e consolo, proporcionaram-lhe proteção e o liberaram.
Quando Matrona despertou, o sol projetava raios de luz entre os pinheiros. Ele já estava em pé. Cheirava pão recém feito. Ela se levantou e afastou as mantas. Ele afastou os olhos e lhe ofereceu seu manto. Matrona riu.
—O que? Ainda não está curado?
—Olhar para você faz com que deseje começar novamente.
—Se assegure de que sua esposa seja uma mulher ardente, do contrário sinto lástima por ela. Não há nada melhor ou pior que ser constantemente perseguida pela casa por um marido ofegante.
—Melhor ou pior? — Ele não obteve resposta e, quando se voltou, ela já não estava.
O dragão de ouro jazia entre as dobras de seu manto sobre a terra do bosque.
A loba virgem é a mais rápida, a mais perigosa. O vento e a chuva que levava açoitavam a o rosto de Regeane, mas a chuva não a incomodava. O lobo é um animal estupendo para o mau tempo e o vento lhe dizia em que direção fugia os assassinos entre as ruas estreitas e retorcidas da cidade. O desenho em forma de quadriculado dos romanos tinha sido rechaçado há tempo, em favor da abundância medieval de caminhos misturados que levavam a lugares em miniatura.
A perseguição se via entorpecia pelo fato de que, em seu terror, os fugitivos ignoravam os muros, cercas e inclusive moradias que lhes bloqueavam o caminho para a liberdade. Conduzidos pelo guerreiro com a cara arranhada, eles derrubaram com um chute a porta de uma casa, saíram a um jardim amuralhado e estavam saltando o muro, que estava coberto de lanças, quando Regeane, em seus calcanhares, saiu da casa. Tinha dois segundos para decidir se os seguia. Dado que não tinha tido ocasião de comprovar quão alto podia saltar como loba, agradou-lhe comprovar que podia superar os dois metros; mas uma das lanças lhe roçou o estômago, produzindo um arrepio de medo que lhe percorreu o corpo. Assim que aterrissou no chão de pedra do outro lado, ela compreendeu por que tinham empreendido uma manobra tão perigosa, inclusive para um humano. A consternação em seus rostos era quase cômica. Quase. Ela podia ter ficado empalada e morta em uma das lanças.
O líder pegou uma pedra; lançada pelo braço de um homem era quase tão perigosa como uma flecha. Ela saltou, girando para a esquerda com a sinuosa elegância de uma serpente. Mas a acertou na parte esquerda do peito, paralisando sua pata dianteira na altura do ombro. Ela deixou escapar um uivo de agonia. Meio uivo, meio grito, enquanto caía sobre o chão de pedra. Mas suas patas já estavam em movimento e suas garras se pegaram as gretas dos paralelepípedos. A dor, então ela se deu conta de que o único ferimento era a dor intensa que sentia, cedeu e ela conseguiu manter em pé.
O homem do rosto arranhado estava virtualmente em cima dela. Garganta: muito perto. No meio das pernas: ele era um soldado, provavelmente usava amparo. A sensível parte interior da coxa: perfeito... Agora lhe tocava gritar com ele. Mas ele estava com uma pedra maior. Raspou-lhe um lado do rosto e esteve a ponto de lhe amputar uma orelha. Ela viu-se obrigada a saltar e ele conseguiu ficar em pé e afastar, mas agora deixava atrás de si um rastro de sangue.
Para um lobo, bem podia ser um rastro de breu ardente. Ela deixou escapar um grito, em linguagem lupina. A presa está aqui ao lado, e escutou e cheirou mais que viu Maeniel e o resto do pessoal no fim da rua. A corrente fazia um ruído temível ao se chocar contra as pedras. Depois ela voltou para sua perseguição.
A rua se tornou bastante mais íngreme até se converter em umas escadas. Quando saiu da curva, ela notou que o que homem que havia marcado se retorcia em uma poça de sangue. Sabia que devia ter acertado a grande artéria da coxa. Quase se compadeceu, mas então recordou os olhos de Itta olhando-a através da água cristalina, abertos e vazios na morte e soube que ele devia ser quem empurrou a mulher sob a água e lhe atravessou as costelas com sua faca, sujeitando-a no lamacento fundo do baixio até que ela se afogara.
Sua compaixão se evaporou. Saltou por cima de seu corpo e continuou atrás do restante. Graças ao seu olfato, ela soube que Maeniel, Robert e seus amigos estavam atrás dela. Essa maldita corrente, que estrondo tão espantoso. O que iriam fazer com essa maldita corrente?
A rua já era uma rampa curvada para fora, que ficava sobre a cidade. A lança parecia não ter pressa enquanto voava para ela. Durante um instante Regeane freou e todos seus músculos se enrijeceram. Pensava que podia estar dirigida a ela, mas não estava. Ela pôde notar claramente uma vez que a ultrapassou.
Um tiro precioso. Precioso. Ela e Maeniel caçavam juntas à maneira dos humanos e ela sabia como devia dirigir uma lança. Dos quatro criminosos que restavam, os dois maiores começavam a fraquejar. Os jovens levavam vantagem.
A lança, no ponto mais elevado de seu arco, deteve-se e caiu, alcançando o mais lento dos fugitivos no ponto de união entre os ombros e o pescoço, atravessando a coluna vertebral. O homem morreu mesmo antes de golpear o chão. Restavam três. Os lobos matam, os gatos matam, mas o fazem de formas diferentes. O lobo cai sobre sua vítima e a reduz no chão. O gato é ágil, a mordida é um golpe mortal que acaba com sua vítima instantaneamente. Mas para a fera de carne mutável e luz de lua tangível, ambas as formas eram possíveis.
Morte de lobo, pensou Regeane e apressou a marcha. Mortal, quase tão rápida como um guepardo, mais rápida que a maioria das feras com pernas, ela se aproximava, cortando a distância entre ela e o outro atrasado. Ele havia matado o menino e desfrutara do ato. O menino com sua constituição franzina era virtualmente indefeso. Uma presa fácil.
A longa e íngreme rua se torcia sobre o povoado embaixo. Somente um muro de amparo não muito alto separava a rua de uma queda sobre os tetos de telhas. Atrás, ao melhor ritmo de que era capaz, Maeniel sentiu como seu coração lhe subia a garganta. Voltou-se, disposto a se encarregar de qualquer dos amigos de Robert que deixasse escapar outra lança, mas nenhum deles parecia muito disposto a tentar. Eles, tanto como o lobo, cheiravam o sangue e estavam preparados para enfrentar mão a mão os sobreviventes.
Mais adiante, Regeane se aproximava de sua presa escolhida. Ele a notou pela extremidade do olho. Corria pelo lado exterior da rua, no qual o sulco de segurança chegava à meia perna. Desviou-se bruscamente para e golpeou o joelho dolorosamente contra o freio de pedra, mas poderia ter saltado, se o tronco e as mandíbulas de Regeane não lhe tivessem empurrado pela esquerda. Ele perdeu o equilíbrio e caiu. O grito foi terrível, arrepiante, mas breve. Ele caiu de cabeça contra um telhado de terracota. Rompeu-lhe o pescoço e esmagou o crânio.
Regeane se freou um pouco, para o esforço final. A rua tinha chegado até a cúpula da colina e os dois que restavam contavam ser mais rápidos na baixada, que os lobos, Robert e seus amigos. A chuva havia diminuído, mas a loba advertiu Regeane que a tormenta ainda não tinha terminado, já que escurecia por momentos. A luz desaparecia e um crepúsculo esverdeado de pesadelo espreitava a cidade. Relâmpagos brilharam no céu e caíram perto dali; a quase simultânea explosão do trovão encheu a loba de terror. Ela quase escapa ao controle da mulher. Regeane reduziu a marcha drasticamente. Arrepiou-lhe o pêlo enquanto a eletricidade estática dançava como fogo sobre sua pele, mas a mulher dirigia a loba. Inexoravelmente, ela sacudiu o medo e sua vista, deslumbrada pelo brilho, esclareceu. Mas quando foi capaz de ver novamente, se deu conta de que os dois fugitivos restantes haviam desaparecido.
Na praça, Chiara observou com os olhos totalmente abertos como a multidão iniciava a perseguição.
—Adverti-lhe, maldita. Eu lhe adverti. - Rugiu isso o hóspede de Hugo.
Durante uns instantes Chiara não respondeu, depois disse:
—Pelo menos, graças a Deus, eles se foram.
—Não te incomode em agradecer a Deus. Agradeça-lhe ao bispo. Se não tivesse falado...
—Poderíamos estar todos pendurando das vigas. A multidão estava desejando pendurar alguém e pode ser que tivessem aceitado substitutos.
O bispo estava se levantando.
—Não - Disse A Chiara. - Não se foram todos.
As armas da guarda de Desidério tiveram algum efeito. Havia cinco montes empapados e sangrando abandonados sobre os paralelepípedos. Pelo menos três deles ainda se moviam. Embora o céu se estivesse mais escuro, a chuva diminuía; o bispo tirou a capa e a toga dourada. Usava uma túnica de linho gasta e calças. Saltou torpemente do alpendre e começou sua ronda entre os feridos. Enquanto absorvia da melhor forma possível os pecados dos vivos e dos mortos, começou a dar ordens.
—Vocês, os homens, vão buscar macas. Há algumas na igreja. Os feridos devem ser transladados a um lugar mais seguro. E recolham os mortos... — Os cadáveres seguiam no lugar onde haviam sido colocados, para a inspeção do rei. – Coloquem-os no alpendre, protegidos da chuva até que possam receber um enterro cristão.
Gimp, seguindo as instruções do hóspede de Hugo, e um par de homens mais ajudaram a mover os corpos, enquanto outro grupo, composto em parte por mulheres correu para a igreja.
Armine continuava sustentando uma ainda trêmula Chiara.
—Menina. – Ele disse. - Neste dia você viu coisas capaz de perturbar a alma de homens adultos. De fato, eu não esquecerei.
O bispo retornou ao alpendre do palácio. Armine lhe deu uma mão para subir. Ele estava com a roupa molhada, com o escasso cabelo grudado no crânio, mas parecia estranhamente mais jovem que quando usava o peso da capa e a toga cerimoniosa.
—A dois deles já não é possível ajudar. O outro, não sei. Está ferido gravemente. É provável que os outros dois sobrevivam se forem acomodados imediatamente.
Justo então chegaram dois homens com uma maca. O bispo os dirigiu no traslado dos feridos a igreja. Chiara se liberou dos braços de Armine e correu ao outro extremo do alpendre, onde agora estavam os cadáveres. Os dois mais jovens estavam juntos em um extremo da fila. Estavam perto da porta do palácio. Chiara olhou para Mona e seu primo. A chuva e havia lavado o ferimento que fendia a cabeça do menino. Estava em carne viva, um corte vermelho em seu lívido couro cabeludo e parte do rosto. Haviam costurado o pescoço de Mona, mas sua mão mostrava o coto do dedo que haviam cortado para lhe roubar o anel.
—Não são mais que crianças. - Sussurrou Chiara, estendendo a mão para tocar a face de Mona.
—Ela tinha quatorze anos e ele doze. - Disse o hóspede de Hugo.
—Como sabe?
—Ouvi dizer. Ouço muitas coisas. Agora saia daqui comigo. Adverti-lhe isso.
Chiara rilhou os dentes.
—Cale-se, sou... Sou... Sou...
—O que devo fazer agora? - Disse o espírito e depois riu. - Ensinar a você alguns bons insultos?
—Oxalá você tivesse um rosto para poder esbofetear-lhe. - Disse Chiara. - E, por certo, o que quis dizer dessa farsa que montou em meu aposento ontem à noite?
Antes que ele pudesse responder, chegou Armine.
—Minha queridíssima filha, com quem falas?
Chiara olhou ao seu redor freneticamente.
—Com Gimp. - Sugeriu mais ou menos.
—Ele não está aqui. - Disse seu pai com severidade.
—Com Hugo? – Ela disse esperançada.
—Está imerso em um total espasmo de terror, enganchado à cadeira do bispo.
Mais abaixo, no outro extremo do pórtico, o bispo tentava arrancar Hugo de sua cadeira com pouco êxito. A maioria dos outros atravessavam a praça a caminho da catedral. A chuva tinha diminuído, mas o céu estava negro como a noite.
—Vamos, o tempo piora. Vamos - Disse Armine em um tom que não deixava lugar a desobediência. Pegou-a pela mão e começou a empurrá-la para o pórtico.
—Não. - Disse o espírito. - Não o faça.
Chiara se soltou e falou com ar vazio de uma forma que assustou a Armine mais do que o teria feito a tormenta ou a turba.
—Não. – Ela repetiu. - O que vai acontecer?
—Cale-se. - Disse o hóspede de Hugo. - Estou ouvindo. Um...
Chiara olhou ao seu redor com os olhos dilatados de medo.
—Dois... - Disse o hóspede de Hugo. - Abaixe-se. Abaixe-se... – Ele gritava. - Ab... Três!
O raio caiu. Todo o foro ficou iluminado por um brilho azul sobrenatural. A torre da igreja, a estrutura mais alta do foro, desabou e pesadas pedras caíam e furavam como pregos o telhado de telhas da catedral. A armação de madeira se desfez e pegou fogo.
Chiara viu como o bispo saía despedido como se fosse empurrado por uma mão gigante. Hugo olhava para cima, com a boca aberta e meio segundo depois, Chiara se deu conta de que Hugo não podia ver nada. Só lhe via o branco dos olhos. Seguidamente, ele desabou como uma boneca de trapo.
Armine conseguiu de algum modo para manter em pé, aferrado firmemente em sua filha. O bispo girou e girou até que também acabou de algum modo nos braços de Armine. A explosão do trovão foi simplesmente ensurdecedora, o pior som que Armine já ouvira desde quando escapou de uma avalanche nos Alpes alguns anos atrás. De fato, o som era inclusive pior.
A chuva começou a cair com força depois do relâmpago. Cortinas e mais cortinas de chuva selvagem empurrada pelo vento. Chuva tão fechada que resultava impossível ver o outro lado da praça. Chuva que extinguiu o fogo do campanário. Armine era um homem grande e forte. Envolveu Chiara e o bispo nos braços e os protegeu da rajada, até que tanto o vento como a chuva amainaram o bastante para fugirem do alpendre do palácio e entrar na ruída catedral. Era de construção romana, pedra e concreto e exceto por uns quantos buracos no teto, seguia sendo acolhedora, quente e seca.
Um segundo depois, Regeane alcançou também o topo. Os dois homens que estava perseguindo já não estavam. Ela esperara vê-los na costa da baixada que conduzia as portas da cidade. A chuva forte que tinha caído sobre a praça e a golpeou, atrasara novamente a loba.
Aonde tinham ido? De um lado da praça havia um muro que suportava uma vila de uma colina ainda mais alta, mas a direita do que tinha sido um precipício se converteu em um descaído mastreado e íngreme, sem lugar a duvida, mas possível de escalar que conduzia a um pântano pantanoso que o rio alagava em cada primavera.
Regeane reduziu a marcha, o vento e a chuva a açoitavam, empapando sua pelagem e lhe esfriando o corpo. Mas tinha o sangue alterado e desejava matar. Os antigos sonhos das fêmeas nas alcatéias de lobos a reclamavam. Apelavam a seu coração. Pequena irmã, nova irmã, você nasceu para isto. Quando não existiam os humanos, quando nós governávamos e vagávamos pelos lugares mais duros e mais difíceis, por geleiras, por desertos de neve e gelo, por planícies onde a erva morre sob o ardente calor e alimenta fogos selvagens que obscurecem o céu, por bosques, verdes bosques onde a chuva nunca deixa de cair. Houve uma vez que governávamos e prosperávamos em todos estes lugares. Fortes e sem medo. Você, a mais perigosa entre os mortais, conduz sua presa até ti e derrube-a.
Sim eles estavam! Avançando costa abaixo através da malesa, vegetação ruim, amoras, rosas silvestres e abetos vermelhos, tornavam o caminho mais difícil. Mas se alcançassem o rio... Ela notou vários botes pequenos amarrados na margem; se conseguissem pegar um, podiam escapar. E uma vez rio abaixo, eles podiam se perder nas enormes restingas meio domesticadas mesmo em tempos romanos, do vale do Correio.
Sequer os lobos poderiam segui-los através em meio a juncos, espadanas e ilhas disseminadas e diminutas formadas pelo rio. Mais à frente estava a costa e os navios que podiam liberá-los para sempre de qualquer perseguição possível.
Não, pensou Regeane. Não.
Ela saltou sobre o pequeno muro de pedra que separava a rua, da costa. E desceu meio correndo e deslizando através do lodo agitado por correntes de água doce produzidas pela abundante chuva que caía. Deslizou e correu até que a colina se fez menos íngreme e ela pôde encontrar maior segurança na vegetação e nos arbustos altos e recamas douradas dedilhadas pelos caules espinhosos das rosas silvestres.
O golpe a pegou por surpresa. Um deles se voltou para atacá-la com um pedaço de madeira. Ela cambaleou e tentou lhe acertar o rosto, apontando para os olhos. Enfurecida, ela se lançou nos olhos do assassino, falhou, e caiu para trás enquanto um das afiadas pontas da lasca de madeira lhe atravessava o ombro. Ela gritou de dor, tentando se levantar, mas então sentiu o impacto de algo que parecia ser o extremo útil de um aríete.
Maeniel chegou com força, velocidade e instinto assassino. Imobilizou o homem e lhe rasgou a garganta.
Robert que lhe pisava nos calcanhares olhou rapidamente para o trêmulo corpo de seu inimigo e cortou distância até o último dos assassinos, o que havia se confessado na praça.
Encurralado, ele se voltou de costas para um grosso e retorcido tronco de salgueiro. Robert estava já sobre ele.
Os dois lobos se limitaram a olhar. Ao mercenário restava um último truque. Ele elevou os braços e disse: - Não! - Como se estivesse se rendendo. Depois atacou os olhos de Robert os dedos de uma mão e com uma faca na outra, tentou esfaquear o ventre de Robert.
Robert, que ainda descia pela costa, não se deixou enganar nem por um segundo. Pegou-o pelo queixo, voltou-o pela metade e lhe deu uma navalhada ascendente no diafragma, com sua própria faca, passando-a através de um pulmão e cravando-a no pericárdio de seu oponente. Em troca, recebeu um cruel corte nos músculos de seu flanco esquerdo, sob as costelas. Mas então se afastou para trás arrancando a faca das mãos do mercenário, deixando-o com os olhos fixos na adaga de Robert que se sobressaía de suas costelas. Robert deu um passo para trás.
Os olhos dos dois homens se encontraram.
—É mortal. - Disse o rapaz, segurando com as mãos a faca de Robert.
—Viverá até que tire. - Lhe disse Robert.
—Matei a ti também? — Perguntou o rapaz.
Pela primeira vez Robert se deu conta de que estava ferido. Explorou o corte com os dedos da mão direita.
—Não, só cortou carne. – Ele disse.
—Me alegro. - Respondeu o rapaz. - Já fiz o suficiente. Eu o comecei. Eu a vi quando atravessamos o rio para receber o pagamento de Desidério. Trabalhei nas mentes dos outros. Ela me sorriu. Era preciosa. Odiei-o. Sabia que nunca teria algo assim para mim. Não o conheço; mas o odiei.
Robert estendeu a mão e a fechou sobre o punho de sua própria faca.
—Cuidado.
Regeane ouviu o grito atrás dela e viu os outros amigos de Robert em pé no caminho olhando para baixo.
—Não acredito. - Disse Maeniel. Ele já estava humano e tentava desenredar sua corrente de um arbusto.
Robert colocou seu braço esquerdo como uma barra sobre o peito de seu inimigo.
—Perdoa-me? - Disse o menino.
—Não. — Respondeu Robert. - Mas te permitirei rogar o perdão de Deus. Não quero que arda no inferno. Só tem um momento.
—Sei... - Disse o rapaz. - Meu coração vacila. Meu peito está cheio de sangue. Espere... — Ele fechou os olhos.
Esperaram todos. Robert, os homens em pé no caminho, Regeane e Maeniel que era lobo novamente. Então se abriram os olhos do rapaz. Ele pegou a mão de Robert e puxou para fora, liberando a faca. Saiu um horrível jorro de sangue.
Os olhos do rapaz se abriram de par em par. Uma expressão de surpresa dominou sua face.
—Não dói tanto como eu pensava. – Ele disse, e depois desabou no chão e morreu.
Robert cambaleou alguns passos, depois se sentou entre os juncos da água lamacenta e descansou a cabeça sobre os joelhos.
Regeane e Maeniel seguiram descendo pela colina. Regeane temia por Maeniel. Se tentasse nadar no rio com a corrente ao redor do pescoço, ele podia se afogar. Mas quando chegaram Robert pegou o colar e tentou de abri-lo com as mãos. A princípio não teve êxito, mas depois, de repente ajudado por uma impressionante demonstração de força bruta, o colar se retorceu em suas mãos até abrir. Robert não sabia como havia feito. O que tinha feito, mas tanto Regeane como Maeniel ouviram a voz do urso.
—Adiante, fujam! Não posso detê-lo. E obviamente não quero que se afogue. Quero esse teu belo corpo ileso... E sua esposa. Eu a terei também. Esperem e verão se não consigo.
Maeniel desapareceu entre os juncos e as espessas plantas aquáticas da margem do rio. Robert abraçou Regeane. Durante um momento, ela apoiou o focinho sobre seu ombro; depois ela também se afastou e desapareceu.
Dentro da catedral o bispo se ocupava dos feridos. Estava irritado, resmungão e de muito mau humor. Armine o ajudava. O homem que eles atendiam estava choramingando por causa de uma flecha que lhe sobressaía do antebraço.
—Gangrenará e morrerei. Os arqueiros as molham em veneno. – Gemeu o homem. - Por favor, por favor, me digam que não morrerei.
—Cale-se, Arnold! - Recriminou o bispo. - Não há veneno nestas flechas. Os arqueiros que protegem o rei são muito vagos para se incomodar em fazê-lo.
—Sabe muito do assunto. - Disse Armine.
—Sim. - Lhe respondeu o bispo. - Em minha juventude fui um guerreiro notável. O último rei, que precedeu no trono este retorcido canalha, decidiu que precisava pôr cargo deste bispado a um bispo que soubesse com total segurança que não era um servente do Papa.
Então, o homem que ele examinava deixou escapar um grito de gelar o sangue. Não resultava surpreendente, já que o prelado havia empurrado a flecha através de seu ombro até tirá-la pelo outro lado; depois rompeu o cabo e a tirou de tudo.
O bispo jogou no chão a flecha quebrada enquanto dizia:
—Agora está curado. Cale-se.
Quando Armine tentou conter o sangue que emanava do ombro de seu paciente, o bispo o deteve.
—Não, não. Deixe que se cure sozinha. O sangue levará qualquer veneno que ainda fique no ferimento. Depois lhe coloque uma atadura limpa e mande-o para casa. Ali ele poderá incomodar sua esposa em vez de mim. — Depois de dizer isto, o bispo passou a cuidar do outro ferido.
Este estava pálido e muito quieto. Parecia profundamente inconsciente.
—Oh, Deus! — Sussurrou o bispo. - A única compensação que tive durante meu cargo como bispo do rei é não ter que ver este tipo de coisas muito freqüentemente. Este recebeu o impacto nas tripas e é quase seguro que morra. Tudo o que posso fazer é preparar ópio e dar-lhe. — Ele sacudiu a cabeça e se levantou.
Voltou para o seguinte, mas Armine o afastou para um lado.
—Meu senhor, — sussurrou Armine, - tenho razões para acreditar que minha filha está...
—Está o que? — Grunhiu o bispo. - Cospe-o, homem. O que? Grávida? — Ele falava em voz bastante alta.
—Não. Não! Sh! Silêncio. Não, não acredito que esteja grávida.
—Bem, então o que é? Por todos os Santos, homem, o que é?
—Possuída.
—Possuída? Por Deus... — O bispo cuspiu. - Pelo triplo e santo nome de Deus, o que está balbuciando? Possuída e um corno... E um malicioso. Possuída? E uma merda. É obvio que está possuída. Todos estão nessa idade. Os rapazes, também. São piores que as garotas. Pelo menos as garotas são mais discretas. Estão presos em um lodaçal de ardente desejo e medo de desafogá-lo. Sim, os rapazes também. Têm sexo no cérebro... Todos eles. Casa-a, idiota. E se assegure de que seja um homem, ouve-me? Um homem, não um imbecil amaneirado. E ela ficará bem e você terá netos. Ambos serão felizes. Imbecil, bobo, idiota! Acossa-me uma praga de imbecis. E essa traiçoeira serpente real que ocupa o trono não é o menor deles. Ah, o que daria eu por voltar a ter seu pai... Sim, case-a e não com o bruxo de Hugo, essa pequena aranha viciosa.
—Não. - Disse Armine. - Mas acredito que ninguém terá que voltar a se preocupar com o Hugo. Dei-lhe uma boa olhada antes dele fugir para a catedral. Acredito que está morto.
—Sim. - Disse o bispo. - Estou de acordo. Um final apropriado para o bêbado descarado. Eu também acredito que o raio fez bem seu trabalho.
—Não o bastante bem. - Disse alguém.
Armine, de frente para o bispo, viu como ele abria a boca de par em par. Se voltou e viu Hugo em pé sob o arco do vestíbulo da catedral, justo quando ele entrava na zona iluminada pela hesitante vela.
—Sinto informar, - disse Hugo ao bispo com um gesto meio selvagem e triunfante, - que estou ainda vivo e sequer ferido gravemente.
Chiara que estava do outro lado do corredor ajudando uma das mulheres a fazer ataduras com os farrapos de uma camisa, levantou os olhos e conteve a respiração. Ficou em pé, pareceu ficar paralisada e depois se moveu lentamente para Hugo. Ele sorriu-lhe, mostrando a mesma careta selvagem que lhe tinha dedicado a Armine. Brilhavam-lhe os olhos com malícia e inteligência e ele falou em voz baixa com Chiara que estava, nesse momento, só a alguns centímetros de distância.
Armine sentiu como lhe secava a boca. Engoliu o nó que tinha na garganta. Não! Contra toda lógica, contra a evidência de seus sentidos, sabia que o que estava vendo. Fosse o que fosse não era Hugo.
Só Chiara ouviu o que ele lhe disse. Ela ouviu as palavras saídas da boca, da língua e da garganta de Hugo.
—É fantástica a forma em que estão saindo às coisas. Agora, por fim, tenho um corpo próprio.
Chiara caiu desmaiada, mas não se fez mal porque, com um olhar de profundo desejo e devoção, Hugo a pegou e a depositou com cuidado sobre os ladrilhos de mármore, lhe acariciando o cabelo com incrível ternura.
—Não confio nessa zorra. - Disse Lucila a Dulcínia. - De toda a má sorte possível, ser reconhecida em nossa primeira aparição...
—Eu o chamaria má organização. - Disse Dulcínia. - Deveria imaginar que foi muito proeminente para evitar ser detectada.
—Bom, podíamos ter caído em piores lugares. - Disse Lucila.
Era certo. Ansgar não era um homem cruel ou violento. Lucila enviou a Nepi os homens que Rufus havia lhe emprestado, bem recompensados e com uma compungida nota ao Papa em que admitia que Ansgar havia descoberto suas intenções e que não a ajudaria em posteriores averiguações sobre o paradeiro da rainha franco. Pelo resto, Ansgar era o perfeito anfitrião. Era primavera. A paisagem próxima ao povoado estava em calma. O irmão de Ansgar, o bispo Gerald era um devoto falcoeiro. Seus falcões compartilhavam a igreja aos domingos com seus paroquianos e, depois de missa, ele cavalgava para ar frio da manhã acompanhado pelo que Lucila calculava, de meio povoado a cavalo e a pé, enquanto que ele caçava com seus falcões e sabujos.
Sua contribuição era necessária para a comunidade. Os pássaros migratórios podiam devastar, e de fato devastavam, as semeaduras da primavera. Ele e seus companheiros caçadores reduziam os bandos e assustavam a um número considerável das aves maiores, de tal forma que os cultivos poderiam ser feitos sob o perigoso período de verde, jovem, tenro e suculento, até maturar e se converter em trigo de pão.
A colheita diária de perdizes, pássaros cantores, coelhos e as mais ágeis e esbeltas lebres destacavam-se claramente nos banquetes que culminavam quase todas as noites. Dulcínia cantava nos banquetes e por demanda popular constante, em todas as demais cerimônias que oferecessem a mínima desculpa para celebrar alguma coisa. Aniversário, bodas, batismos, Santos, todas as cerimônias religiosas, missas, bênçãos e até humildes funerais nos que a viúva freqüentemente encontrava consolo em uma magnífica interpretação de Stabat Mater ou Panis Angelicus.
De fato, alguns pagãos recalcitrantes se converteram, simplesmente porque lhes era oferecida a oportunidade de ouvir a voz de Dulcínia durante suas cerimônias batismais.
Gerald, o bispo, estava encantado de que ela cantasse antes, durante e depois de missa. Depois de seus falcões, a arte de Dulcínia constituía seu maior prazer. Ele se sentava em silêncio, apoiado no respaldo de seu trono de madeira no altar, com os olhos fechados e um grande sorriso na face.
Uma bela manhã de primavera, Lucila estava sentada ouvindo a voz de sua amiga alagar a nova catedral e compartilhando a paz quase enlevada que o bispo e de sua congregação irradiavam durante a interpretação de Dulcínia e se perguntava de onde vinha tudo. Embora inacabada, a catedral ainda conseguia ser preciosa. As paredes estavam pintadas com cenas importantes da vida de Cristo, realizadas por um pintor que havia estudado, de entre todos os lugares possíveis, em Atenas. Estavam pintadas com um estilo fantástico e dinâmico em cores brilhantes sobre os muros de estuque branco. As bodas do Caná se celebravam com um cristo de barba rala com cabelo encaracolado e escuro, sentado com sua mãe entre os convidados das bodas e coroada com louro. No outro extremo da igreja, ele estava visitando o templo, sorrindo e instruindo seus aparentemente atônitos e encantados discípulos. Atrás do altar era o Cristo ressuscitado, cujos ferimentos não eram relíquias de dor e tristeza mortais, mas ornamentos de um grande conquistador que se erguia vitorioso sobre o mal e a morte.
Lucila era uma mulher instruída, mas tinha lido as antigas histórias e os antigos filósofos. Falavam de um povo abnegado, cruel, explorador e militarista até a loucura, viciado nas conquistas selvagens, que pisava no pescoço de todo aquele que estivesse perto de seus exércitos. Um povo que eliminava qualquer um que resistisse a suas exigências e condenava os submissos a ser simples peças de mobiliário, submetidos aos castigos mais drásticos e cruéis. Um povo cuja idéia do entretenimento era assassinar de forma imaginativa e selvagem a outros seres humanos; um povo que se banhavam em rios de ouro e de sangue.
E havia chegado isto. A se sentar em uma igreja em uma manhã da primavera fresca e agradável, adorando a um deus que pregava a inocência, o perdão e o amor. Ouvindo a voz de uma garota que tinha sido uma menina abandonada, mas que podia cantar melhor que a cotovia, elevando-se mais e mais para a luz do sol. Até as coisas mais simples são um enigma, pensou Lucila. E o mais velho de todos os dons é saber quão ignorantes somos. Perceber os gigantescos e imprecisos perfis daquilo que desconhecemos e não podemos de nenhuma forma conhecer.
Então, a canção de Dulcínia terminou. Ela deixou a escalinata do altar e fez uma genuflexão ante a eterna presença. Gerald a benzeu, enquanto dizia que a beleza de sua arte contribuía à maior gloria de Deus. Lucila esteve tão perto de orar como nunca antes em sua vida... E não esteve mau, porque no dia seguinte acabou o agradável idílio e os problemas chegaram à cidade.
Ansgar saiu ao amanhecer. O bandido Trudo, que havia obrigado Lucila e Dulcínia a lhe pagar um suborno para atravessar cruzar o rio, estava incomodando os mercadores que viajavam até a cidade com artigos importantes para vender. Ansgar decidiu contra a vontade, que não podia seguir tolerando os estragos causados por Trudo. Entre os artigos transportados pelos mercadores havia sal e Trudo insistia em ser pago com este valioso produto. Os domínios de Ansgar eram interiores e não tinham outra fonte e se Trudo seguisse roubando-a, os cidadãos se encontrariam em uma situação desesperadora.
—Temos que nos desfazer dele de uma vez por todas. - Disse Ansgar a Lucila, nas primeiras horas antes da alvorada, enquanto se preparava para partir.
Stella fez uma cena. Chorando, arranhando o rosto, rasgando-a roupa, tornando pó no cabelo.
Gerald, que tinha trocado seu cajado de pastor por uma espada e uma cota de malha sem maior problema, estava em pé olhando Stella com indulgência enquanto ela se entregava a histeria.
—Apesar de todo o resto que possa ter pensado dela - Disse Lucila misteriosamente—, sempre pensei que Stella era uma pessoa sensata, mas isto...
Gerald encolheu os ombros.
—É assim desde que se conheceram em Rávena. Suponho que ela pensa que Ansgar acreditará que ela não o ama se não se mostrar louca quando ele parte para a batalha.
—Suponho que... Sim. - Disse Dulcínia. - Mas ainda assim... Por Deus!...
Ludolf, a quem a comoção havia tirado da cama tinha herdado de Stella a tendência ao mal da primavera. Ele desceu para consolar a mãe. Stella se deprimiu em uma poltrona estrategicamente colocada e bem provida de almofadas. Ludolf lhe sustentava uma mão e Dulcínia a outra.
Stella gritou.
—Graças a Deus que meu filho fica. Assim se você, querido meu, força de minha alma, luz de meus olhos, perecer, pelo menos o terei para me consolar durante o breve tempo que resistir como um espírito inquieto no crepúsculo de minha tristeza neste vale de lágrimas. Oh, desventurada. Desventurada... Desventurada.
Ansgar se apressou em se despedir, urgido por Gerald.
—Vamos já e ela se acalmará. Quanto mais o atrase, pior ela ficará. Vamos. - Ordenou Gerald.
Ansgar se foi com as lamentações de sua esposa lhe ressoando nos ouvidos.
Quando ele atravessou a porta, Lucila lhe espetou:
—Ora, feche a boca. Reserve sua compaixão para esse piolho do Trudo e o grupo de covardes e mal armados que o rodeia. Seu marido e seus homens provavelmente os destroçarão como o fogo em lascas de madeira. Seu marido é um soldado competente e inteligente e Trudo é um golfo vago que quer viver dos esforços dos outros. Pode ser que nunca saiba o que o atacou.
Stella chamou Lucila de um nome característico do jargão romana que Ludolf não reconheceu, sentou e pediu alimento. Ludolf e Dulcínia saíram correndo para a enorme cozinha do fundo da casa, para procurar algo que para ela comer.
Stella ficou sentada olhando com tristeza para Lucila. Estavam na parte traseira do imponente palácio, em um aposento pequeno que dava ao jardim de ervas. As custosas espécies que se alinhavam os poucos banquetes de estado que Ansgar oferecia era obtida dali. Outras ervas medicinais ou culinárias eram preparadas e armazenadas. Um pequeno lance de escadas levava até a adega de vinhos, um lugar privado onde Stella, a senhora da casa, levava as contas e fiscalizava a múltipla e complexa tarefa de dirigir a grande propriedade.
—O que ele disse sobre mim? — Perguntou Stella a Lucila.
—Nada.
Stella fungou.
—Não acredito.
—Stella, eu não sou tola e não tome por uma. Ele é seu marido. Você é a mãe de seu filho. Não acredito que ele se mostrasse agradecido com alguém o bastante estúpido para desacreditar seu passado ante seus olhos. Acredito que subestima Ansgar. Sim, custa-lhe brigar, mas uma vez que o faz suspeito que seja extremamente perigoso. Não tenho nenhum desejo de ganhar sua inimizade. E te asseguro que não o farei difamando sua esposa e, é obvio, não o farei enquanto for hóspede em sua casa, desfrutando tanto de sua generosidade como de sua hospitalidade.
—Assustou-me quando a vi. - Disse Stella precipitadamente.
—Não tem nada a temer de mim.
Stella franziu o cenho.
—Oxalá soubesse disso quando você chegou - Disse Stella evitando os olhos de Lucila.
Uma terrível suspeita começou a se apropriar da mente de Lucila.
—Stella, o que fez?
—Acredito que não prestou nenhuma atenção...
—Quem?
—Adalgiso... - Disse Stella.
O grito de pura raiva de Lucila fez com que Dulcínia e Ludolf chegassem correndo. Encontraram Stella tentando em vão manter a cadeira entre ela e uma enfurecida Lucila. Mas quando os espectadores entraram no aposento, as duas mulheres pararam, estiraram os vestidos e sorriram.
—Só mantínhamos um pequeno conversa - Disse Stella, batendo as pestanas ante Lucila.
—Completamente certo. - Disse Lucila. - Não nos prestem atenção. Nossa discussão, embora um pouco animada é basicamente amistosa.
Tanto Ludolf como Dulcínia pareciam não acreditar-lhe, mas voltaram para a cozinha.
—Lucila, pode se acalmar, por favor?
—Sim, sim. - Sussurrou Lucila. - Me acalmar. Você sabia isto antes de deixar que Ansgar se fosse?
Stella assentiu.
—Sabia, mas não pensei que Adalgiso se apresentaria depois de todas as semanas que está aqui. Ele está escondido com seu amante em um dos povoados fortificados do norte.
—A quanto está o povoado mais próximo?
—Não muito longe. Pode ser visto dos degraus da catedral, se o dia está espaçoso.
—Está - Disse Lucila. - Pertence aos lombardos?
—Sim, todos estes arredores pertencem ao reino lombardo.
—Sim. - Assentiu Lucila gravemente.
—Estou cansada desta tolice. Cansada e faminta. – Alfinetou Stella.
—A histeria te produz apetite.
Stella abriu a boca, mas não saiu nada. Depois, respirou fundo.
—Deveria estar agradecida de que seja uma dama, - ela disse a Lucila, - e não deseje te insultar.
—Algo sobre uma fêmea de cão? Era isso o que tinha na ponta da língua? — Perguntou Lucila.
—Que perspicaz você é. — Depois disto, Stella saiu com passo majestoso do aposento.
Eles comeram na cozinha. Sim, Ansgar dava banquetes e comia com os principais homens da cidade cada noite e para isso usava o enorme salão de jantas do estado. Mas as refeições familiares se realizavam na cozinha, uma peça ao lado do jardim na parte oriental da casa. A mesa era uma simples tábua sobre cavaletes, com bancos dos dois lados. Graças à lareira situada em um extremo do aposento, sempre estava quente. Uma parede dupla ao fundo, com um ralo embutido, e portas dobradiças que conduziam ao jardim da cozinha, o qual se estendia por toda a parte de trás da casa, estavam abertas durante o bom tempo para deixar entrar a luz e a ventilação. Um alpendre pouco profundo com uma colunata protegia o aposento nas piores horas de calor do verão e das chuvas que alagavam o campo no inverno.
Em resumo, pensou Lucila, era o aposento mais bonito da casa. Da cozinha se observava o jardim e a horta. Verduras, escarolas, nabos e cenouras balançavam sua folhagem como se fossem plumas sobre os sulcos; as últimas cebolas estavam em flor e o alho estava saindo. O robusto romeiro estava coberto de flores azuis e o tomilho perfumava os atalhos entre os maciços de vegetais. As flores das diminutas plantas trepadeiras enchiam o jardim, ainda bastante vazio, com suas cores e fragrâncias. A sálvia ainda não estava formada de tudo, embora alguns de seus caules verdes já mostravam novas espigas violetas. Sobre os muros, casulos de cor laranja se abriam para começar a boa, ácida e suculenta colheita de outono.
Stella estava sentada em um extremo da longa mesa, em meio a uma intensa consulta com a cozinheira sobre o menu do jantar e a futura celebração quando Ansgar retornasse. Dulcínia se sentava ao seu lado. Comiam queijo fresco, pão, cebolas e bacon.
—Preciso falar contigo, Lucila. - Sussurrou Dulcínia. - A sós.
—Nunca vamos estar tão sós como agora. - Disse Lucila de mau humor. - Stella não nos presta nenhuma atenção. O que acontece?
—Ludolf. - Sussurrou Dulcínia.
—Já me dei conta de que ele te pegava como um moscardo. Começa a ser desagradável?
—Não! - Disse Dulcínia ainda em voz baixa, mas tensa. - Justamente o contrário. Sim, justamente o contrário seria apropriado.
Lucila encolheu os ombros .
—Você é uma artista séria. Ele é um homem jovem e bonito. Tenha uma aventura. Porque, não se equivoque. Isso é o que seria... Uma aventura.
Dulcínia sacudiu a cabeça.
—Isso é o que acreditava no princípio, mas... — Ela ainda parecia tensa. – Mas, bem... Verá, tenho um atraso... E... Mas...
—Por favor! Por favor, fale claro. - Disse Lucila entre dentes. - Sabe que tive uma vida dura. O que acontece? Assusta-se em me escandalizar? Se estiver grávida, garota há remédios. Se deseja ter a criança, Ansgar sem dúvida ficará encantado, mesmo com um pequeno ilegítimo. Pode se permitir mantê-lo e dito de passagem, você também pode. Chrispus é muito generoso e não lhe importará absolutamente saber quem é o pai.
Chrispus era o cardeal. Chrispus Mantleck, colecionador de instrumentos musicais e músicos ocasionais, um dos quais era Dulcínia.
—Por certo, ele sabe sobre Chrispus? Espero que não tenha guardado um segredo você também. – Ela acrescentou em voz mais baixa.
—Oh, sim. Ele sabe. Sabe de meu nascimento e sabe que não tenho pais reconhecidos e inclusive sabe sobre meu crescimento prematuro antes que me resgatasse. Não tenho segredos com ele. Sim que acredito estar grávida, mas esse não é o problema.
—E então... —Lucila abriu as mãos em um gesto indefeso. – Me diga qual é o problema?
—Ele está falando de matrimônio. - Respondeu Dulcínia brandamente.
—Meu Deus! Isso sim é um problema. Ele não pode...
Dulcínia assentiu.
—Eu sei.
—Você não...
—Oh sim. Eu faria. - Disse Dulcínia com ardor.
—Oh, maldita! Você está...
—Apaixonada. - Disse Dulcínia. - Selvagem, louca e desesperadamente apaixonada. Sim, estou.
—Deus! Que desastre.
Então Lucila se deu conta que Dulcínia chorava silenciosamente, deixando cair às lágrimas por suas faces. E, sem saber como, Lucila entendeu que Dulcínia era tão filha dela como os outros dois que havia levado em seu ventre e que amava a cantora talvez mais que os filhos de seu próprio sangue e carne. E também estava disposta a amar A Ludolf. Sabia pouco sobre o rapaz, salvo que tinha um rosto atraente e que, quando Dulcínia confessou seu embaraço, ele havia demonstrado o bom gosto em lhe pedir matrimônio. Parecia um jovem honesto.
—Onde ele está agora? — Perguntou Lucila.
—Ele se sente muito mal. - Disse Dulcínia. – Está com um resfriado como o de sua mãe quando chegamos. Acredito que tem febre. Ele foi seu a quarto, mas quer que eu suba e leia um pouco para ele.
Lucila se levantou.
—Venha.
Elas voltaram para seus aposentos no andar superior. Agora Lucila tinha pressa. Começou a recolher sua saia de montar e as botas do armário.
—O que acontece? — Perguntou Dulcínia. - Qual é o problema? Atua como se fosse acontecer algo terrível. O que faz?
—Algo terrível vai ocorrer, mas não tem por que ser terrível para você. - Lucila já vestia a saia calça e colocava os pés nas botas. - Onde é o quarto de Ludolf?
—Na outra asa. Sobre o jardim. É silenciosa.
Lucila pegou Dulcínia pelo braço.
—Vá até lá. – Lucila estava com duas pequenas garrafas na mão, uma envolta em arame dourado. Apertou-as contra a mão de Dulcínia. - A que tem o arame é ópio, a outra valeriana. Vá até ele, feche a porta com fecho, fique lá. Mantenha-o ocupado durante o resto do dia.
—Mas o que...?
As unhas de Lucila lhe cravaram na carne.
—Ama-o?
—Sim. Sim, mas...
—Então faça o que digo.
—Lucila, você está me assustando.
—Mantenha-se assustada. Às vezes é muito inteligente estar assustado. Esta é uma dessas vezes. Ouve-me?
—S-sim.
—Mesmo se tiver que drogá-lo, mantenha-o calado durante o que resta do dia. Agora, vá.
Dulcínia saiu correndo.
Lucila já estava vestida. Jogou uma bolsa de couro no ombro e correu escada abaixo. Viu como Stella a olhava do pé das escadas e ouviu a comoção na rua.
Chuva. A chuva ainda estava forte enquanto os dois lobos nadavam pelo rio em direção a Pavia. O rio estava para transbordar de água do degelo. O lugar onde Mona e sua família foram assassinados devia estar já sob a água, pensou Regeane. Esperava que a chuva desencardisse a terra e que os espíritos dos mortos encontrassem a paz. Todos os mortos, não só as vítimas.
O céu começava a se iluminar enquanto passava a pior parte da tormenta. Raios de sol de mostravam através da rede de nuvens de tormenta e conduziam a luminosidade às terras pantanosas onde eles nadavam. Haviam fugido. Estavam livres. O povoado, com seu terror claustrofóbico ficava para trás; a prisão e a morte eram já só uma lembrança e a água fresca e limpa levava a tristeza, o medo, os rastros e o mau cheiro, e inclusive fazia com que a lembrança da dor fosse mais imprecisa.
Ele dirigia. Ela o seguia. O velho padrão voltava a se reafirmar, estranhamente reconfortante para ambos.
Maeniel parecia ter pressa. Odiava o confinamento das cidades. Ela havia temido um pouco por ele depois de deixar Roma. Cada noite, inclusive quando ela se sentia terrivelmente cansada, ele se convertia em lobo para sair a percorrer paragens escuras e às vezes perigosas. A princípio ela o acompanhava, mas depois o esgotamento de passar os dias a cavalo ou em carros por caminhos que não tinham recebido manutenção em várias centenas de anos, a cansara. Isso e o longo terror de suas lutas, tanto com os lombardos como com seus rapaces parentes. O cansaço começou a lhe fazer rachaduras e sua pressa em retornar ao forte parecia ter cada vez menos sentido.
O assunto havia chegado a uma crise quando em uma tarde, ela se mostrara cansada ao seu lado depois de um dia de vento e chuva. Estava gelada e tão cansada que quase não tinha vontade de jantar. Esteve mordendo a língua todo o dia para reprimir as queixas. Necessitava quase desesperadamente do calor de seus braços e que seu musculoso corpo a abraçasse, fizesse-a sentir segura, a salvo e, sobretudo, amada. Uma segurança que lhe permitisse passar a noite em um sono profundo e reparador, sem pesadelos.
Mas em vez do homem, ela sentiu o lobo, que saiu da cama e se dirigiu tão silenciosamente como a luz das estrelas, para a porta da casa e a noite ao outro lado. Ela se sentou enfurecida, mas tão enfurecida que deu medo a si mesma. Começou a gritar e a lhe atirar coisas. Quando ele se tornou humano, desconcertado e assustado ao ver sua antes complacente esposa convertida em uma harpia, ela se desfez em uma tormenta de lágrimas.
Em menos de um segundo, o lugar se encheu de lobos. Todos culpavam Maeniel de ter feito algo terrível a Regeane ou tentavam consolá-la e acalmar sua histeria. Foi então quando entrou Matrona com uma garrafa. Ela persuadiu Regeane para que tomasse uns goles. A beberagem era fatal, mas a esquentou e a acalmou grandemente.
—O que é? — Perguntou Regeane quando pôde voltar a falar.
—Uma coisinha que peguei entre as ilhas, depois do vento do norte.
Ninguém disse nada. Ninguém sabia onde era o local.
—Cura os arrepios. - Disse Matrona. - Ali eles o necessitam porque sempre faz frio.
—O que fez a ela? — Perguntou Gavin a Maeniel em tom acusador.
A maioria deles eram agora humanos, porque desejavam falar e a linguagem lupina era muito lacônica para a gama de emoções que fluía pelo aposento nesse momento. Gavin estava respeitosamente envolto em uma manta, Gordo usava sua capa como um sarong, Matrona vestia uma camiseta de Maeniel e Silvia só usava sua própria pele.
—Deve ter feito algo a ela. - Disse Silvia. Nunca antes a ouvi ouvido gritar assim. O que fez? — Ela lançou um feroz olhar para um perplexo Maeniel, que havia tornado a se converter em lobo.
—Sim, o que fez, meu líder? — Perguntou Gordo, um pouco horrorizado.
—Tem que ter sido algo terrível. - Disse Silvia. - Matrona, leve isso para seus aposentos. Eu ficarei com ela. Não tenha medo, pequena. Nós a protegeremos.
—Esperem um momento! - Disse Gavin. – Conheço-a desde que... Quando eu tinha treze anos, encontramo-nos naquele bosque irlandês e nunca vi que...
Maeniel se tornou humano e Matrona lhe passou uma túnica pela cabeça.
—Cale-se – Ele ordenou e foi obedecido.
Fez-se silêncio.
—Regeane, o que acontece?
Regeane, agora envergonhada, abriu a boca para dizer nada, mas Matrona a fitou nos olhos.
—Diga a ele. – Ela pediu.
—Estou tão cansada... — Sussurrou Regeane.
—Ah, já sei. - Disse Matrona. - Fora... Todo mundo para fora. Deixem os recém casados a sós, para que resolvam isto.
Maeniel se sentou junto a ela sobre o colchão e a pegou nos braços. Com um suspiro de esgotamento, ela apoiou a cabeça sobre seus ombros.
— Da próxima vez... - Disse ele, com os lábios sobre seu cabelo. - Na próxima vez não se esforce tanto em me agradar. —Ela assentiu e, enquanto ambos se deitavam, ele perguntou: - Promete?
Ela estava quase adormecida quando respondeu.
—Prometo.
Sim, havia prometido, confiando nele então como devia fazer agora. Dizer-lhe a verdade.
Ela comprovou a profundidade da água que a rodeava tornando-se humana e levantando-se. Era pouco profunda, chegava-lhe até a cintura. O bosque de juncos murmurava entre as moribundas rajadas de vento. Estranho, eles não se apoiavam sobre lama, mas sobre a pedra.
Maeniel se deteve. Também se converteu em humano, mas seus pés deram com lodo e lhe custou chegar até ela e poder assentar por fim seus pés sobre a mesma plataforma.
—Onde estamos? — Perguntou Regeane.
—Como se preocupa... - Respondeu ele. - Em algum lugar do vale do Correio.
—Como não vou me preocupar? Não posso ver terra firme em parte nenhuma. Nada, nem sequer uma árvore, só planta aquáticas, juncos e outras plantas. - Disse ela enquanto se olhava um corte superficial que acabava de fazer na palma da mão.
—Sh! - Disse ele e rodeou-a com seus braços.
Ela deixou que a beijasse. Enquanto isso, uma rajada de vento particularmente forte os golpeou, congelando-a. Um segundo mais tarde ela estava com a pele arrepiada. Afastou-o.
—Tenho frio. A noite se aproxima. Não sabemos onde estamos. Perdemo-nos e você quer...
Ele voltou a beijá-la.
—Pelo menos, poderia se desculpar.
—Sim. - Disse ele. - Minhas desculpas.
—Se desculpar e sentir.
—Não. – Ele lhe disse e voltou a beijá-la. - Ainda acredito que tinha razão. Mas teve sorte, ao igual a mim. Se o traiçoeiro rei lombardo não tivesse sido um imbecil teimoso, poderíamos ter perecido, mas não o perecemos. Então não seguirei me preocupando com algo que quase aconteceu. Entretanto, é certo que a subestimei. E deverá te dar por satisfeita com esta admissão e não me pedir mais.
Regeane soltou um pequeno grito de exasperação.
Mas depois ele voltou a beijá-la e ela descobriu que já não tinha frio.
—Oh! – Ela disse. - Parece como se não o via há anos, mas a água é muito profunda.
—Muito profunda para que? — Perguntou ele.
—Deixe... Deixe de se fazer do bobo.
—Sh! Olhe.
Uma nuvem cobriu o céu durante alguns instantes e, ao oeste, uma vila abandonada surgiu sob o faiscante reflexo do sol e a água.
—Vê - Disse ele. – Eu sabia que aconteceria alguma coisa. Sempre acontece quando se relaxa.
—Eu não gosto disso... - Disse ela. – Me lembra o urso.
—O que? Vais perder fé em seus sentidos porque uma vez eles o traíram?
—Traíram a você. – Alfinetou ela. - Não a mim.
—Sim. - Disse ele tristemente. - E em Roma... Certa tumba...
—Está bem... Lembro-me... - Disse ela.
—Nademos até lá.
Eles nadaram, abrindo caminho entre as redes de espadana e juncos até que alcançaram um lance longo e reto de água limpa limitado por muros de pedra que antes formavam um canal construído para levar água aos campos da margem do rio. Toda a terra a estava sob a água. De vez em quando apareciam o que uma vez deviam ter sido magníficos mosaicos, nas regiões onde não tinham ficado cobertas por nervuras de sedimentos. Dois gladiadores lutavam até morte em um mural, com seus nomes belamente gravados junto a cada um deles. Mirmillo enfrentava um tal de Retiarius e a pintura mostrava Mirmillo enredado em uma rede de Retiarius, enquanto sua espada afundava profundamente no corpo de seu oponente.
Regeane se deteve para observá-lo, ganhando assim um olhar enojado de Maeniel. Mais à frente, um jardim de peristilos olhava o céu junto a um lago azul cheio de peixes. As verdadeiras árvores e flores do jardim se extinguiram a tempo por causa das enchentes, enquanto suas falsificações brilhavam no alagado pavimento. Mais à frente, os canteiros de uma horta. Berinjelas, cebolas, aipo, salsinha, couve, sálvia e tomilho falavam sobre uma época de prosperidade perdida para o rio tempo atrás, os peixes mordiscavam as tesseraes que formavam as imagens.
Umas quantas casas de dois pisos, a maior parte delas sem cobertura e com paredes sujas que só se elevavam uns quantos centímetros, ofereceram-lhes o único refúgio que haviam encontrado até o momento. Eles mergulharam na borda do canal e nadaram até onde as paredes se sobressaíam alguns centímetros acima da água. Alguém mais devia ter se refugiado ali há tempo, porque um montículo de palha seca cobria o chão.
Regeane se tornou humana e um segundo depois Maeniel estava em pé junto a ela.
—Vejo que conheceu urso. - Disse Regeane. - O que ele queria de ti?
—O mesmo de você. Controle.
—Não. - Disse Regeane.
—Ele sonha devolvendo ao mundo seu antigo esplendor, como era antes que chegasse o homem com cidades, granjas e reinos que lutam entre si e destroçasse a terra. Um mundo no qual só havia animais.
Regeane franziu o cenho.
—De verdade?
—Sim. Acredita que se combinarmos nossos poderes ele poderia varrer a humanidade. Acredito que, embora não esteja errado, digamos que é ambicioso em excesso. Pelo que a mim diz? Ah, se fosse possível... Mas tive uma associação bastante prolongada com a humanidade e a acho bem mais dura do que ele pensa.
—Isso seria terrível, destruir um dos grandes reinos.
—Grandes reinos? — Perguntou ele.
—É como os chama Matrona. — Respondeu ela. - Pássaros, o reino do ar; peixes, o reino das águas e o mar. Plantas, o reino do silêncio.
Ele estava junto a ela; os raios do sol da tarde a aqueceram e ele a tinha entre os braços e lhe acariciava o pescoço com o nariz.
—Fique quieto. – Ela lhe disse, entre risos.
—Não acontece nada. Estamos casados. Todos, inclusive na igreja, sabem.
—Duvido que a igreja aprove nada que tenha a ver conosco.
—Ainda assim. - Disse ele. - O bispo é a prova de que até as instituições mais absurdas são incapazes de silenciar as pessoas de bom coração. Só você gosta, porque ficou de minha parte no assunto do resgate. Mas meu amor, o pior momento de meu cativeiro foi quando você tirou o véu e se revelou. Desidério tentou me afogar. Hugo me enganou para que me revelasse ante o grande altar da catedral e o urso me ameaçou com a morte se não me rendesse diante dele. Mas nenhuma dessas más experiências me assustou tanto, como me dar conta de sua vulnerabilidade. Amo-a. Se te acontecesse alguma desgraça, acredito firmemente que isso me mataria. Sim, é certo. Subestimei suas habilidades, mas você deve recordar os sentimentos daquele que a ama até a loucura, quando correr algum risco.
—Gundabald queria me encerrar em uma jaula com um colar e uma corrente. - Lhe respondeu Regeane por sua vez. - É isso o que significa seu amor? Um colar e uma corrente?
Ela se voltou entre seus braços e o fitou, lhe dirigindo o olhar direto que ele tão freqüentemente usava com outros. O olhar do lobo, o exame de uma criatura que não sabe mentir. Ele descobriu que tinha que afastar o olhar e recordou que a mãe da alcatéia é uma líder por direito próprio e não simplesmente a consorte do líder. Então Regeane se fez loba. Saltou de seu ninho. Perto dali se sobressaíam da água como pequenas ilhas, as partes superiores de algumas colunas que antes suportavam o alpendre de peristilos. Ela escolheu uma e se manteve quieta para a caça. Pescado, ela pensou.
De sua posição ela explorou silenciosamente as águas. O momento, quando chegou foi veloz como o raio. O peixe se agitou muito pouco ou nada. Ela havia lhe quebrado espinhaço com as presas. Depositou o corpo a seus pés, sobre o topo da coluna e seus olhos o convidaram a acompanhá-la.
E ele aceitou.
Depois voltaram para ninho e fizeram o amor, como homem e mulher. Maeniel lhe contou as experiências de seu cativeiro e ela lhe narrou sua viagem.
—Encontrei lobos, lobos de verdade. – Ela disse. - Mas pelo que diz Matrona, não deveram ter me atacado. Estava perplexa e zangada. Acreditava que existiam regras.
Ele assentiu.
—Há, mas é bem provável que a mãe da alcatéia visse e sentisse algo estranho. Temia que você pudesse se converter em uma rival. Como todas as regras, não são inamovíveis e alguns as romperão se os convém.
Regeane digeriu estas palavras e depois falou.
—Por alguma razão, não me vejo como a mãe de uma alcatéia das terras baixas, parindo filhotes a cada ano.
—Poderia ser se quisesse. Disse ele.
Jaziam enroscados comodamente. Ele notou como lhe abriam os olhos à avermelhada luz do anoitecer.
—De verdade?
—Sim, ambas as vidas estão abertas a você, se decidisse usar seu dom dessa forma.
—Simplesmente não imagino... A idéia me assusta... Entretanto também me resulta atraente. Mas sinto o mesmo sobre a idéia de viver como loba, somente como loba, que o que sentia quando minha mãe me descreveu o sexo. Estava segura de não querer fazer... Isso! Mas me olhe agora e por certo... Por que não fico grávida? Quanta passou? Quase oito meses e... A princípio não lhe confiei isso...
—Sei. - Disse ele. - Estava preocupada com isso. Matrona me disse.
—Oh... — Disse Regeane. – Ela unicamente me disse que raras vezes têm descendência entre nós. A maioria é produto de matrimônios mistos, como eu mas você é um... Lobo.
—Sim, e só lobo.
Ela assentiu.
—Assim que tipo de criança nasceria?
—Não sei. Que eu saiba, nunca tive nenhum e conheci a muitas mulheres humanas.
Ela meneou a cabeça. Seu cabelo ainda estava molhado e molhou o rosto de Maeniel com uma chuva de gotas.
—Oh, demônios! - Disse ela. - Tanta água por todos os lados... E começa a fazer frio.
—Mude, - disse ele, e durmamos.
—Diz isso só porque você não gostava do rumo da conversa.
—Não negarei que eu não gosto. Você explora áreas que eu referiria não falar. Pelo menos, não agora. — Ele abraçou-a com mais força, atraindo-a para seu quente corpo.
Ela ronronou um pouco. Um som muito pouco lupino.
—Ah, esta é minha preciosidade. Meu amor de mel, doce como uma fruta amadurecida recém tirada da árvore ou como as frutas do outono. Deixa de se preocupar pelo que não pode mudar e durma.
Regeane adormeceu, mas abriu os olhos uma vez mais.
—Não vem ninguém aqui? — Ela perguntou.
—Ninguém. – Ele lhe assegurou. – Eu saberia.
Depois ela dormiu, deslizando tranqüilamente nas escuras águas, do lago do silêncio.
Ela mudou enquanto os últimos raios de sol se convertiam em um leque de luz sobre o horizonte ocidental. Depois, também ele procurou seu paciente irmão o lobo e dormiu.
Lucila soube assim que viu Stella. Tinha a mão na garganta e horror nos olhos.
—Odeio ter razão. - Sussurrou Lucila para si. Ele está aqui, ela pensou, e agora Stella está assustada do que fez.
Lucila tentou se recordar do que tinha ouvido sobre o filho de Desidério. Duro, inconstante, agressivo e covarde ao mesmo tempo. Mas, sobretudo, um idiota. Um idiota egoísta. Um idiota que sofria a pior enfermidade de todas, a do poder, da crença em que só por seu nascimento tinha direito aos maiores privilégios que qualquer outro homem. E ali ele estava.
Ela se inclinou elegantemente.
—Meu senhor.
Ele sorriu-lhe com desdém.
—Ah, por fim nos conhecemos. Você é se não me engano, a famosa ou é infausta Lucila? Lucila teria gostado de lhe arrebatar o sorriso com uma bofetada, mas invocou um delicioso sorriso e respondeu.
—O que prefiram meu senhor. Acredito que ambas as palavras indicam uma carreira de certa distinção.
O sorriso se estendeu.
—Teremos que explorar você. Muitos assombrosos talentos.
Lucila sentiu um arrepio de medo. Vou ser a refém deste homem e o tipo não é malvado. É pior que perverso. É estúpido.
—Vejo que está vestida para cavalgar. - Observou ele. - Bem. Teremos que partir rapidamente. Tenho, — ele explicou a Stella, - somente alguns poucos homens em meu séquito e acredito que não ficarei até que seu marido retorne.
Sim, pensou Lucila, porque sabe que ele protestaria ante este ultraje. Este seqüestro de uma mulher indefesa sob seu amparo.
—Não queria fazer esperar sua alteza. - Disse Lucila com mansidão. - Vamos?
Ele a estudou com olhos opacos durante um instante. Lucila podia sentir como lhe suavam as axilas e as palmas das mãos. Maldita. Maldita seja, ela pensou. Causei esta idiotice com minha própria loucura.
—É muito fácil. - Disse ele. - Está planejando algo ou escondendo algo. O que é?
—O que vai ser, nada. - Sussurrou Stella.
Que a levassem todos os demônios. Era uma má mentirosa, embora o certo seja que sempre havia sido.
Durante o dia o salão de recepções estava na penumbra e a única luz entrava através das pesados clarabóias de cristal da abóbada do meio ponto de concreto e Lucila supôs que Adalgiso dizia a verdade quando contava que só estavam dez homens com ele. Mas já que Ansgar havia deixado o povoado sem seus defensores, este grupo era suficiente e, se encontrassem alguma resistência, poderia ocorrer um massacre. Poderiam abrir com golpe de espada Através da desarmada cidade, como o fogo através da vegetação seca. Se Ludolf ou Dulcínia tivessem alguma idéia do que acontecia, poderiam tentar parar Adalgiso e ser os primeiros a morrer. Por isso Stella estava tão assustada.
Lucila conseguiu formar um sorriso de gentil resignação.
—Meu senhor... É muito suspicaz. O que poderiam esconder duas mulheres, de um homem de sua excelente inteligência estratégica? Chegaram, não é assim, ao vizinho monastério de Temi e esperaram ali até que Ansgar partisse. Depois, se apressaram a chegar aqui. Estou certa?
Adalgiso sorriu complacente.
—É uma mulher com discernimento. Com grande discernimento.
Lucila continuou.
—Foi esta manhã que Stella me confessou que havia lhe escrito sobre minha chegada algumas semanas atrás. Sim, eu planejava escapar, só fosse necessário, mas vocês adiantaram isso. Então devo lhes entregar a partida e me considerar sua prisioneira. A simplicidade mais absoluta, meu senhor e sem necessidade de desconfiar. Estou completamente a sua mercê.
Adule-os, adule esses bastardos. Eles adoram, pensou Lucila. Se só pudesse tirá-lo dali antes que convertesse a situação em um desastre sangrento.
—De todo modo, acredito que gostaria que a senhora Stella de Imola compartilhasse de nossa viagem até o outro lado das fronteiras com as terras de Ansgar. Eu a deixarei na vila Jovis e seu marido poderá recolhê-la ali. Não tenho intenção de ser acossado ou açoitado.
—Chamemos minha donzela. - Disse Stella. - Devo me vestir para o caminho.
—Não! Não estaremos tanto tempo na estrada.
Um dos homens de Adalgiso se adiantou até chegar a Stella e a pegou pelo braço. Stella tentou se soltar.
—Vamos, vamos, minha senhora! - Disse Adalgiso. - Eberhardt é um velho amigo. Disse-me que a conheceu durante sua estadia em Rávena faz algum tempo.
Isto está cada vez pior, pensou Lucila. Sentia como lhe tremiam as pernas sob a saia calça.
—Muito bem. Vamos já. - Disse Lucila.
Stella parecia tão assustada como um rato nas garras de um falcão. Justo então, a donzela de Stella, Avernia, desceu as escadas correndo. Adalgiso empurrava Lucila para a porta e Eberhardt fazia o mesmo com Stella.
—Minha senhora, minha senhora Stella...
Ambos os homens se detiveram e Avernia os alcançou. Lucila viu o olhar que Eberhardt lançou as escadas, tentado averiguar se Avernia estava sozinha.
—Avernia, vá-. - Vaiou Stella. - Não arme um escândalo. Ouve-me? Não arme um escândalo ou te darei uma surra.
—Não! - Gritou Avernia, cada vez ia subindo o tom de voz. - O que estão fazendo?
Eberhardt olhou para Adalgiso com desesperada irritação. Empurrou Stella para a porta. Avernia pegou o outro braço de Stella e a obrigou a parar.
—Não! Não! — Ela gritava. - Não! Às armas! Às armas! Minha senhora está...
Lucila sentiu como Adalgiso a soltava. Sua espada brilhou a meia luz, da mesma forma que um raio resplandece em um céu de tormenta. Atravessou o peito de Avernia da esquerda à direita. O seguinte grito da mulher acabou em um horrível gorgolejo. Ela cambaleou para trás com uma expressão de surpresa quase cômica, se não fosse pelo feio pouco cômico ferimento. Sentou-se no chão, tentou respirar e uma fina névoa de gotas de sangue lhe saiu pela boca, salpicando as saias de Stella. Depois, ela pegou a mão estendida de sua senhora.
Eberhardt afastou Stella dali. Ela era uma mulher pequena e indefesa nas mãos enormes e poderosas do homem.
—Não. - Sussurrou Stella enquanto era impulsionada através das portas, para a praça.
Lucila viu como Avernia caía, com o corpo se retorcendo enquanto tentava respirar com os pulmões cheios de sangue. Observou como saia uma baba sanguinolenta de sua boca e como o sangue finalmente corria por seus lábios.
Adalgiso limpou sua espada nas saias de Lucila e voltou a guardá-la em sua bainha.
—Mova-se. – Ele disse, assinalando a porta. - Agora.
Lucila o fez.
Dulcínia correu pelo corredor para o aposento de Ludolf. No caminho tomou uma decisão, uma muito importante. Drogar-lhe? Estava Lucila louca? Não, ia dizer a verdade ao seu amante. O problema era que ele não estava em seu quarto. Consternada, ela começou a lhe buscar e o encontrou embaixo, na biblioteca.
Ansgar, embora não tivesse recebido nenhuma educação, era um defensor da cultura e tinha quarenta livros. Era uma grande quantidade para a época. Ludolf tentava encontrar uma cópia da, Arte de amar de Ovídio, para a Dulcínia, que nunca o lera por inteiro. Estava seguro de que havia uma, mas o problema era que os livros estavam misturados com a correspondência de estado e com as contas da casa de Stella. Quando Dulcínia entrou, fitou-a do monte de pergaminhos que estava examinando e viu em seguida que ela estava assustada.
—Algo está errado, mas não sei o quê. Lucila se vestiu para viajar e me disse que te mantivera em seu aposento.
A face de Ludolf endureceu.
—Planeja escapar?
—Não sei. Não acredito. Lucila não é tola e o campo não é seguro para uma mulher que viagem sozinha. É simplesmente impossível, não posso nem imaginar. Conheço Lucila. Se quisesse fugir iria a pé. Pode se fazer passar por uma camponesa; já a vi fazer isso. Não, ela parecia assustada. Não por ela, mas por mim e... Sim... Por ti.
Ludolf soltou o pergaminho que tinha na mão.
—Rápido, me ajude a me armar.
Para Dulcínia só levou um instante lhe alcançar a cota de malha pela cabeça. Ela estava lhe colocando o cinturão da espada enquanto avançava pelo corredor, quando ouviram os gritos de Avernia.
Ludolf começou a correr.
Mas para quando chegaram às escadas, Stella e Lucila cavalgavam a toda pressa pelo caminho que saía da cidade. Quando ele e Dulcínia chegaram ao pé das escadas, Dulcínia olhou bem para Avernia e gritou. Saiu-se bastante melhor que a pobre Avernia.
—Está morta? — Ludolf parecia aturdido. - Por quê? Como? O que aconteceu? Dulcínia, se sabe de algo que não estas me contando...
—Não, Oh! Meu Deus! Não, não sei... – Ela ofegou, sacudindo a cabeça.
Nesse momento entrou o ferreiro. Correu para Avernia, mas se deteve quando pôde ver com claridade que sua esposa era já era um cadáver. O grito de Dulcínia tinha alertado os serventes. Estavam se reunindo e alguns fazendo o sinal da cruz, todos olhando para Avernia, boquiabertos.
—O que...? — Perguntou o ferreiro. - Não, você não! — Ele assinalou a espada de Ludolf.
—Não! - Disse Dulcínia. - Estávamos no vestíbulo de cima quando a ouvimos gritar. Viemos rapidamente, tão rapidamente como...
—Não. - Disse um dos filhos de Avernia. - Estávamos trabalhando na catedral, do outro lado da rua. Vimos entrar em um grupo de homens armados, não muitos, só... — Ele encolheu os ombros e olhou para seus irmãos. - Talvez oito, dez? Não sei não muitos. Falamos disso entre nós e depois decidimos chamar mais tarde porque estavam armados e não os conhecíamos. Pelo menos não a todos. Reconhecemos somente um.
—A quem? — Perguntou Ludolf.
—Diga. - Disse o ferreiro.
—Parecia Adalgiso, o filho do rei, mas não nos podíamos acreditar que ele estivesse aqui... E com uma escolta tão pequena. Então não confiamos em nossos sentidos, mas pensamos que devíamos dizer ao nosso pai.
—Não a deixem aí dessa forma. — Ele assinalou Avernia.
—Não, não. - Sussurrou Dulcínia e tirou seu próprio manto.
Avernia estava caída de costas, com a cabeça voltada como se olhasse para a escada e a face em uma poça de sangue. Dulcínia lhe fechou os olhos, limpou-lhe o sangue da boca e apoiou a cabeça de Avernia sobre seu manto dobrado.
—Onde está Lucila? — Ela perguntou temerosa.
Havia pelo menos, uma dúzia de pessoas ao redor do corpo e seguiam chegando mais da praça.
—Sim! - Repetiu Ludolf. - Onde está Lucila e, em nome de Deus, onde está minha mãe?
Levou um momento para se esclarecer coisas. Os filhos de Avernia recordavam ter levado uma carta de Stella a Florença, mas não sabiam nada mais sobre o assunto. Sua mãe não havia falado uma palavra sobre o conteúdo.
—Deve ter escrito no dia que chegou Lucila. - Disse Ludolf. - Ele esperou até que meu pai saiu e então veio. Mas por todos os Santos, por que levou minha mãe? Com todo o respeito para sua amiga, ela é abertamente defensora do Papa e serve a seus interesses. Mas minha mãe... O que pode ter feito ela para merecer seu desagrado?
—Lucila sabia que estava a caminho e sabia que se ele te desafiaria não a entregaria sem lutar. - Disse Dulcínia. - Ela, e provavelmente também sua mãe, queriam nos proteger. O que teria feito seu pai estivesse aqui?
Ludolf soprou.
—Não acredito que teria permitido que tomasse sua hospitalidade sem escrúpulos, nem sequer sendo o filho do senhor ao qual deve obediência.
—Sim. - Disse Dulcínia. - É o que pensava e Lucila sabia. Não havia muitos homens. É bem provável que a maioria estejam com seu pai esperando o rei franco. Ele levou a sua mãe como refém para garantir sua segurança.
O corpo de Avernia jazia sobre a mesa da cozinha, onde haviam tomado o café da manhã há algumas horas.
Suas filhas estavam lavando-a, preparando-a para o funeral.
—Dulcínia, você virá comigo? — Perguntou Ludolf. - Sairemos em uma hora.
—Sim, com todo meu coração.
Ele foi à cozinha para consolar as chorosas mulheres e apresentar suas condolências. Dulcínia correu escada acima para se vestir.
Fiéis a palavra de Ludolf, eles saíram antes do meio-dia. Embora a maioria dos homens capazes estivesse com seu pai, Ludolf conseguiu reunir vinte barbas cinza bastante formidáveis, que tinham permitido os homens mais jovens fazer campanha com Ansgar.
Dulcínia os via como um grupo de aspecto perigoso, talvez não tão ágeis ou animados como os jovens, mas com maior experiência e uma fúria sombria. Adalgiso tinha matado um dos seus e seqüestrado a esposa de seu senhor. Se o pegassem encontraria uma desagradável recompensa.
Detiveram-se no monastério de Temi. Ludolf não usou de sutilezas com o pai abade.
—Não me importa quem seja. – Ele lhe disse. – Ele entrou em minha casa sem permissão, pegou minha mãe e uma de nossas hóspedes e quando uma de nossas criadas tentou impedir-lhe, assassinou-a. Quero minha mãe de volta. Ela não lhe fez nenhum mal e ele deve pagar por seus crimes.
O abade levantou as mãos, mas não pôde fazer muito mais, além de assinalar a direção aproximada que Adalgiso havia tomado e falar com amargura.
—Tudo o que fez foi comer muito, beber ainda mais e depois se sentar, quando não estava dormindo, para ordenar que lhe servissem as coisas. Não me confiou de onde vinha, nem o que fazia aqui, nem aonde ia. E se eu soubesse que ele pretendia fazer algum mal a sua família os teria advertido porque, um vizinho infeliz causa mais problemas que um rei distante e seu pai conhece bem meus sentimentos. E vocês também deveriam. Se forem atrás dele, lhes emprestarei montarias descansadas.
Ludolf assentiu, pegou os cavalos e partiu. Felizmente, o caminho que Adalgiso tinha tomado se estreitou logo. Era pouco transitado, então os rastros frescas de um grupo de homens a cavalo tinham que ser os dele. O caminho levava até um lugar inóspito e montanhoso de, salgueiros, recamas douradas, rosas silvestres. A paisagem possuía uma beleza estranha, as flores amarelas da recama se misturavam com as brancas e espinhosas flores do encaramujo e aqui e lá, as rosas silvestres e as peras em flor pareciam explodir entre a espessura de carvalhos e salgueiros ainda nus.
Dulcínia era uma boa amazona, mas o caminho colocava a prova suas habilidades. Em uma ocasião, um dos cavalos colocou a pata em um buraco e lançou seu cavaleiro em um monte de encaramujo. O cavalo recebeu um ferimento superficial, o cavaleiro ficou mais incômodo que ferido, mas tiveram que tirar a sela do cavalo castrado e lhe deixar encontrar o caminho de volta, enquanto seu cavaleiro usava um dos cavalos de reforço recebidos no monastério.
—O único bom disto, - disse o ferreiro a Ludolf, - é que não podem deixar o caminho. Não teremos que caçá-los no bosque.
O caminho ganhou altitude com rapidez, mas quando chegaram ao ponto em que descia, Dulcínia notou o rio que serpenteava através do estreito vale.
—O mais provável, - continuou o ferreiro, é que tenha se dirigido para a água.
Ludolf assentiu.
—O que aposta que seu rastro desvanece junto ao rio?
—Nada. - Respondeu o ferreiro. - É uma aposta segura.
E foi o que aconteceu.
Stella era uma boa amazona. Lucila estava agradecida por isso. Foi capaz de seguir a passagem. Adalgiso estava claramente assustado. Lucila amaldiçoava sua sorte e prometeu a si mesma que faria todo o possível para manter a coragem do covarde. Ele era um idiota e, portanto, perigoso, mas não queria nem pensar em um idiota aterrorizado. Por ora, cavalgavam muito rápido. O ritmo que Adalgiso impunha cansaria os cavalos antes do anoitecer. A não ser que soubesse de um lugar conveniente para conseguir novas montarias. Teria que ir a algum lugar onde os animais pudessem beber, comer e descansar ou logo estariam quase todos a pé.
A pé e no bosque, pensou Lucila enquanto observava o espesso páramo que a rodeava. Esta região a caminho das montanhas nunca tinha fora abundantemente povoada, nem sequer em tempos romanos; agora estava deserta. Sequer os bandidos poderiam prosperar ali... A menos que gostassem de roubar uns aos outros.
Não muito depois do meio-dia, chegaram ao rio e puxaram as rédeas.
—Pare. - Disse Eberhardt a Adalgiso. - Nossas montarias não eram as melhores quando começaram e agora estão virtualmente cansadas.
As montarias de Stella e Lucila eram as que estavam em melhores condições. As mulheres pesavam menos que os homens, mas até seus cavalos jogavam espuma pela boca e Lucila tinha notado que já não servia esporear o animal. Pelo menos, cinco homens do grupo se atrasaram uns quantos quilômetros quando os cavalos começaram a tropeçar e frear em terreno rochoso.
—Acredito, - disse Adalgiso olhando para os seus companheiros, - que será o melhor.
—Além disso, - disse Eberhardt, - podemos usar a água para ocultar nosso rastro.
Depois, os dois homens se afastaram, falando em voz baixa. Lucila desmontou, afrouxou a cilha de sua sela e fez andar o animal em círculos, para refrescá-la. Stella chamou Lucila para que a ajudasse a desmontar. Era uma mulher pequena, mas uma vez em terra seguiu seu exemplo.
Lucila viu como alguns dos homens de Adalgiso simplesmente permitiam suas montarias beber sem deixar que se esfriassem primeiro.
—Oh, sim. - Sussurrou Lucila. - Logo irão a pé.
—Estou dolorida. - Disse Stella. - Estava acostumado a caçar com Ansgar e com o Gerald e seus falcões quase todas as semanas, mas não o faço há algum tempo. Filho da puta. Provavelmente já tenho arranhões por culpa da sela, antes que acabe o dia. — Depois ela dedicou a Adalgiso vários insultos no jargão das ruas romanas. - Sinto, Lucila. Sinto muitíssimo ter escrito sobre você, mas quando a vi entrou pânico. Ansgar me tirar daquele bordel de Rávena foi à coisa mais maravilhosa que me aconteceu. Simplesmente eu não podia acreditar em minha boa fortuna e eu estava segura de que você compartilharia minhas antigas... O que são... Maldades?... Com ele.
—Eu não as chamo de maldades. - Disse Lucila. - Os homens atuam como se as mulheres não tivessem que comer. Que demônios pensam que podemos vender, além de nossos corpos?
—Bom. Isso eu não sei. - Disse Stella. - Acredito que pensam que devemos preservar nossa castidade ao custo de nossas vidas, mas devo dizer que tanto você como eu fizemos algo mais que conseguir alguma coisa para comer. Você ganhou a companhia e amparo de Adriano e eu estava comodamente mantida por vários altos oficiais da igreja.
—Eu te disse que não confiasse nesse bastardo do Aldric. O que aconteceu em Rávena? —Perguntou Lucila.
—Vendeu-me a um bordel. Seus... Hum, assuntos não prosperaram como ele pretendia. O arcebispo o chamou chaquetero e lhe disse que um homem que traia a um senhor, trairia a outro. Isto era certo, mais certo do que certo. Só que quem ele traiu foi a mim. Minha venda lhe proporcionou o dinheiro para a passagem para Constantinopla. Ser vendida foi à experiência mais vergonhosa e humilhante de minha vida.
—Para não mencionar inconveniente e terrivelmente perigosa. - Disse Lucila. - Mas suponho que um golpe de má fortuna pressagia uma mudança completa da mesma má fortuna. A roda gira, - continuou Lucila. - Hécuba Regina. Todos nós giramos com ela.
—Quem é Hécuba? — Se queixou Stella. - Não acredito que fosse boa coisa que Adriano a ensinasse a ler. Depois estiveste desconcertando e irritando seus amigos com estranhos retalhos de conhecimentos ocultos e misteriosas entrevistas.
—Hécuba era uma rainha que acabou sua vida como escrava. - Contou Lucila. - Simplesmente queria dizer que nada é permanente, exceto a mudança.
—Vê? —Stella estava irritada. Eu me referia a isso.
—Estava me falando de Ansgar? — Recordou-lhe Lucila.
—Sim, bem. Ansgar foi ao bordel. Visitamo-nos umas quantas vezes. - Disse Stella com dissimulação. - E depois disse a esse alcoviteiro curto, o dono do bordel, que não queria que eu tivesse outros clientes. Queria ser o único homem de minha vida. É obvio, esse porco pestilento do Melo queria que fizesse armadilhas para ele, mas não o fiz.
—Deve ter sido uma batalha. - Disse Lucila.
—Foi, mas ganhei. Sei que esse tipo de acordo é desonesto, mas um senhor endinheirado como Ansgar... Não queria perdê-lo. Oh, eu pensava, não me arriscarei.
Lucila pegou as rédeas da mão de Stella e conduziu os cavalos para a água. Stella se ajoelhou na borda, bebeu com as mãos e jogou água nas faces.
—Tinha dinheiro já então?
—Sim. - Disse Stella, levantando-se. - Havia jogado do povoado esse piolho rapace do Trudo e usado seus lucros vilmente obtidos, para suas necessidades.
—Um das quais foi te liberar do bordel.
—Sim, e foi bom que não fizesse armadilhas, porque só um mês depois de nos encontrar me dei conta de que estava grávida.
—Ludolf?
—Sim. Graças a Deus que tiramos Adalgiso da cidade; estava tão assustada por meu filho! Olhe que horrivelmente fácil resultou apunhalar Avernia. Lucila, acha que está morta?
Stella olhou para Lucila e esta se voltou para entreter com parte da cabeçada do cavalo. A súplica nos olhos de Stella era quase insuportável. Ela e Avernia haviam estado juntas durante muito tempo.
—Não sei. - Respondeu Lucila. - Pelo que vi, pode ser que esteja só levemente ferida. Escute-me, Stella. Quando cérebro de papa e o amigo que pensa por ele voltarem, quer que tente persuadi-los para que a deixem aqui?
Stella olhou ao seu redor. Haviam deixado para trás o último assentamento humano, uma granja ruída, há alguns quilômetros. Ambos os lados do rio estavam cobertos de arbustos e pequenas árvores.
—Oh, Deus, não. Não neste horrível bosque.
—Pode ser que seu filho nos siga. - Disse Lucila.
—Oh, em nome do céu, imagine se não o fizer. Se Adalgiso me deixar aqui, morrerei. Morrerei imediatamente. Não o faça, por favor. Não lhe faça uma sugestão tão espantosa.
Lucila suspirou.
—Stella, não farei e nem direi nada que deixe as coisas pior, mas eu preferiria me arriscar no bosque, como você chama, antes que com o Sir Pouco Miolo e seu bolinador amigo. Por certo, é verdade que o senhor alto escuro e estúpido a conhece de Rávena ou posso descobrir seu farol em algum momento?
—Oh, Deus! Lucila, eu não sei. Eles... Eles eram todos iguais para mim. Dizem que não é pecado se você não desfruta. Bom, se isso for certo, não cometi nenhum pecado em Rávena, exceto com Ansgar.
Ela sorriu um pouco ante a lembrança e isso transformou sua face, da mesma forma que um raio de sol ilumina uma flor.
Lucila sentiu que seu coração lhe doía de pena. Oh, Deus, sou uma mulher horrível, ela pensou. Uma mulher vingativa por ter começado tudo. E então decidiu que sua opinião sobre si mesma era provavelmente certa e que o arrependimento era a mais inútil das emoções.
Nesse preciso momento, Adalgiso e Eberhardt retornaram e todos começaram novamente a marcha. Como Lucila pensava, eles se introduziram no leito do rio. A água não era profunda, mas o fundo era tão rochoso que não podiam avançar depressa. Lucila seguia esperando que continuassem pelo curso do rio durante uns quantos quilômetros e assim dar tempo a Ludolf para que os alcançasse, mas não o fizeram. Entretanto, uma coisa a fez respirar. Dois dos cavalos falharam e Adalgiso teve que abandonar quatro de seus homens. Não o suficiente, mas era alguma coisa. Ela notou como Stella se iluminou. Espero, ela pensou quando viu o medo nos olhos de Adalgiso, espero que receba o que merece. Se estiver em minhas mãos, você receberá.
Chiara despertou com fortes sacudidas.
—Sim, sim, deixe-me já. - Ela disse ao espírito. - Sequer saiu o sol e, além disso, - Ela seguiu em tom indignado enquanto tentava se enterrar mais sob as mantas, - O que fez a Hugo? Esta em seu corpo na igreja ontem à noite.
—Hugo está morto! - Disse o espírito.
Esta afirmação conseguiu fazer Chiara tirar a cabeça do travesseiro.
—Você o matou. – Ela disse, acusando ao espírito.
—Não fiz. - Foi a indignada resposta. - O raio provocou sua morte. E teria matado também a você e a seu pai se eu não lhes tivesse advertido para que ficassem no alpendre.
—Não acredito em você. - Gritou Chiara.
Produziu-se um som que começou como os ruídos de vaias e gritos, como faz um fogo quando chove sobre ele, depois se elevou de volume, com tons cada vez mais profundos, até que acabou com o explosivo rugido de um urso zangado.
Então Chiara viu como baixavam os lençóis e algo a levantava segurando fortemente pelos braços.
—Vamos, vamos, vamos! E se vista. Agora! Você e seu pai devem fugir da cidade.
Chiara respondeu com um grito de fúria.
—Minha modéstia, minha reputação.
—A merda sua modéstia e sua reputação. De nada lhe servirão se estiver morta. Vamos!
Ela ficou em pé e foi cambaleando para o canto onde estava o baú da roupa.
—Aiii! — Chiara deu outro grito.
—Por todos os Santos e demônios! - Rugiu o espírito. - Não te toquei. O que acontece agora?
—O assoalho a está frio e estou descalça. Pegarei uma pneumonia.
—Cale-se e deixa de chiar. Vista-se.
Ele levantou Chiara pelo pescoço da camisola e a depositou do outro lado do aposento, junto ao baú.
—E agora, se vista!
—Poderia, por favor, partir. E não tente fazer armadilha. Sei quando está no aposento e não tirarei a camisola até que tenha saído. - Gritou Chiara.
Nesse momento a porta se abriu de repente. Armine estava ali em pé, com uma vela na mão. Era uma luz bastante brilhante e Armine podia ver todo o aposento. Havia uma cama, o baú da roupa e nada mais. Ninguém poderia se esconder ali, mas sem lugar a duvidas, sua filha falava com alguém... Falava em voz muito alta, de fato.
Chiara ficou sem respiração e esqueceu a roupa.
—O que faz aqui?
—Não importa - Disse Armine. - Com quem falas?
—Oh! - Disse Chiara. - Vê o que fez? — Ela falou com o ar.
Armine fez o sinal da cruz.
—Maldito seja! Idiota supersticioso! - Gritou o espírito e esbofeteou as orelhas de Armine violentamente.
Armine caiu sentado no chão.
—Se levante, idiota! - Gritou novamente o espírito. - Em pé. — Ele levantou Armine.
Armine deu um grito.
— Deixe meu pai tranqüilo, ouviu-me? Não sei o que pretende com estas táticas tão despóticas. Tudo o que está conseguindo é assustá-lo.
O espírito se deteve.
—Nestes precisos instantes o rei decide seu destino, Chiara. Ele está furioso. Hugo lhe disse que você resgatou o lobo. Ele está louco de raiva.
—Quem? — Perguntou Chiara, completamente desconcertada.
—O rei, maldita. O rei! - Gritou o espírito.
—Quem? O que? Como? Chiara, você fala com alguém? Com alguém que não posso ver? —Exigiu Armine.
—Bom, já basta, os dois! — Chiara deu um chute no frio chão com um de seus pés nus e se machucou. Retrocedeu até a cama, sentou, cruzou os braços, fechou os olhos e elevou com determinação seu pequeno queixo.
—Se não pararem de me chatear os dois, nunca mais voltarei a falar com nenhum.
Armine entrou com cautela no aposento, lançando olhares um tanto enlouquecidos ao seu redor.
—Chiara, - ele perguntou—, há aqui alguém, a quem não posso ver?
Os olhos da Chiara se abriram de repente.
—Sim, é o amigo de Hugo.
Armine assentiu. Moveu-se devagarzinho até o baú da roupa, com vela na mão.
—Há alguém sentado aqui? — Ele perguntou.
—Não. - Disse Chiara. - Pelo menos... — Ela também olhava ao seu redor. - Pelo menos não acredito que se sente.
—Não me sento.
—Não o faz.
—Bem, pois eu sim. - Disse Armine enquanto se sentava. - Agora Chiara, me diga o que está acontecendo. Primeiro, sei que não foi Hugo que entrou na igreja ontem à noite. Não estou seguro de quem ou inclusive... — Ele olhou ao seu redor, nervoso. - Do que era, mas não era Hugo. Esse homem era uma lombriga. Nunca poderia ter conseguido aquele olhar de arrogante auto-suficiência. E a terna forma em que me ajudou a levá-la até seus aposentos ontem à noite não era nada característico de Hugo. Nem tampouco o fato de que estava completamente sóbrio e, além disso, ajudou ao bispo e a mim com os feridos durante a maior parte da tarde. E seguia sóbrio. Comeu um pouco de pão e queijo, rechaçou o vinho e foi dormir. Hugo? Não. Isso ninguém acreditaria.
O espírito começou a rir.
—Ele está rindo. - Disse Chiara de mau humor. - Ele ri muito, especialmente de mim.
—Ainda bem que tem senso de humor. - Disse Armine. - Agora, me diga o que tem na cabeça.
— Ele diz que o rei nos vai prender... Bom, não a nós...
—A você. - Disse o espírito.
- Parece... – Disse Chiara a seu pai, enquanto retorcia os dedos sobre o regaço. - Parece...
—Não há tempo para explicações. - Disse o espírito. - Devemos partir. O rei redige as ordens de arresto neste instante. Seus conselheiros tratam de dissuadi-lo de começar um banho de sangue, mas ele não ouve. Tão pior para ele. A única razão pela qual a guarda do não está aqui é porque os soldados que mandou procurar estão em Suas e ainda não chegaram. Quando o fizerem, varrerão limpamente a todos os que ele considera inimigos. O bispo está já carregado de correntes, pobre ancião. Se não escaparem agora, bem poderia lhes encontrar explorando a garrafa sob a igreja. A em que o lobo estava prisioneiro. Agora lhe diga Chiara; se lhe quiser, o advirta agora.
—Pai, - disse Chiara sem fôlego, para depois repetir a informação do espírito, palavra por palavra.
Armine ouviu. A cera corria vela abaixo até sua mão e gotejava sobre seus dedos.
—Ai! - Foi tudo o que ele disse. Depois inclinou a vela para que a cera caísse sobre o chão e seguiu ouvindo com atenção.
Quando terminou de falar, Armine foi correndo até a janela. O palácio estava cheio de luzes, uma em quase todas as janelas.
—Se vista. – ele disse quando se voltou. - Agora. Depressa. Onde está Gimp? — Ele disse ao ar.
Um segundo depois, Chiara respondeu.
— Foi... — Ela moveu as mãos. - O urso... Assim eu o chamo... Diz que levou com ele o que restava de Hugo. — Ela olhou novamente para cima e ouviu. - Diz que provavelmente já estejam atravessando o rio. Diz para nos apressar, que ele selará os cavalos.
—Pode fazer isso?
—Pode encher minha cama de rosas, bater em suas orelhas, dar um murro em Bebo e chutar Hugo. Não me resta dúvida alguma de que poderá selar cavalos.
Ludolf era bem filho de seu pai. Irritava-lhe ver que perdia o rastro de Adalgiso no rio, mas compreendia como dirigir a situação. O ferreiro e alguns de seus amigos cavalgaram rio abaixo, mas Ludolf foi rio acima com a Dulcínia e o resto dos homens.
A cantora pensou que seu cavalo tinha tropeçado com algo no fundo do rio até que viu a flecha que se sobressaía de um de seus flancos. Conseguiu sufocar um grito e, um segundo depois, o braço de Ludolf a levantava da sela, enquanto galopava para ficar se proteger na margem. Desmontaram em um bosque. As árvores eram abetos vermelhos, densamente rodeados de encaramujes.
Dulcínia olhou para trás. Seu cavalo havia caído, dava coices e se retorcia na água, que agora corria vermelha.
—Acredito que os encontramos. - Disse Ludolf.
Sem ter recebida ordem alguma, um dos homens cavalgou de volta, mantendo-se sob a frondosa margem do rio.
—Ele advertirá o ferreiro. - Disse Ludolf a Dulcínia.
—O cavalo... - Disse ela.
Ludolf sacudiu a cabeça.
—Provavelmente já esteja morto.
Sim, pensou Dulcínia voltando os olhos para a tela de espinhosas videiras. O animal ficou quieto. De repente notou que lhe tremia tudo. Essa... Poderia ter sido eu.
Ludolf tirou o manto e a envolveu com ele.
—Eu a enviarei de volta com um dos homens. Não deveria ter vindo...
—Não. - Disse Dulcínia. Ela se deu conta de que sussurrava. – Não. Tanto sua mãe como Lucila podem necessitar dos cuidados de uma mulher quando as alcançarmos.
Ludolf assentiu ausente. Observava a outra margem do rio, através da rede de videiras.
—Quantos homens você pensa que serão? — Ele perguntou a um dos homens mais velhos que o acompanhavam.
—Não muitos, mas somos poucos e não precisaria de muitos para bloquear o atalho.
Nesse preciso momento chegou o ferreiro cavalgando velozmente. Desmontou e se juntou a eles. Mantiveram um conselho de guerra, com as cabeças juntas, atrás das videiras.
—Quantos? — Perguntou o ferreiro.
—Só uns quantos. - Respondeu Ludolf. - Mas com dois bastaria.
Dulcínia olhou para a outra margem e notou o por que. No lugar onde estavam o rio era largo, mas pouco profundo; na borda oposta um atalho íngreme subia até um topo. Se eles se dirigissem contra a posição que os arqueiros mantinham detrás do topo, estes podiam massacrá-los enquanto atravessavam o rio e seriam alvos fáceis na costa que subia até ali.
—Pretendem nos frear - Disse Ludolf. - Provavelmente irão sigilosamente quando se fizer de noite.
—Não. - Sussurrou o ferreiro. – Não. Eles mataram minha esposa. Aproximadamente a um quilômetro daqui há outro vau. Meus filhos e eu podemos ir a pé. Apareceremos atrás deles. Faz uma incursão, meu senhor, finge que eles o fazem retroceder. Em uma hora, meus filhos e eu lhe traremos suas cabeças.
Ludolf se voltou para a Dulcínia.
—Fique aqui. Não se levante.
Ludolf e seus homens se reuniram e correram rio abaixo até entrar na água. As flechas voaram do lado oposto. Desta vez não eram flechas de dardos. O grupo de incursão fugiu.
Dulcínia podia ouvir como alguns dos homens gargalhavam. Aqueles que ainda tinham fôlego. O resto soprava e ofegava. Ludolf ria.
—Poderíamos forçar a passagem, meu senhor. - Disse um dos homens.
—Sim. - Respondeu Ludolf. - Mas eles então fugiriam e não saberíamos para onde. Assim é melhor. Ele os pegará vivos.
—O que quer dizer? — Sussurrou Dulcínia.
—Averiguaremos para onde se dirigem. - Lhe disse Ludolf.
—E se não falarem? — Perguntou ela.
Ludolf e seus homens riram com vontades ante a pergunta. Ao cabo de alguns momentos, Dulcínia pôde saber o por que.
Stella e Lucila chegaram ao monastério ao anoitecer. Adalgiso e Eberhardt virtualmente as puxaram dos cavalos e as conduziram diante deles até entrar no claustro. Os monges estavam jantando na mesa do refeitório no salão. Eles se levantaram assombrados ao ver duas mulheres entrar. O prior se levantou e protestou.
—Meus senhores!
Adalgiso desembainhou a espada.
—Onde está meu senhor abade? Façam-no vir imediatamente.
—Está jantando em privado com alguns amigos. - Respondeu o prior.
—Me levem até ele. Eberhardt, você fique aqui. Vigie as mulheres.
—Não sei aonde poderíamos ir. - Gaguejou Stella. Ato seguido jogou o véu para trás.
Todos e cada um dos homens do aposento a observaram extasiados.
—Oh, Deus! - Sussurrou Lucila enquanto se cobria ainda mais com seu véu.
Stella ainda era bela. Mesmo cansada, queimada pelo vento e desalinhada, igual parecia um pavão rebolando ante um bando de corvos. Era uma pequena, loira de pele clara, olhos azuis e proporcionada figura. Lucila estava segura de que nenhum dos homens tinha visto antes alguém como ela. Lucila voltou a colocar o véu em Stella, penteou-lhe o cabelo para trás e lhe pôs o manto sobre os ombros com mais firmeza.
—Por favor... — Disse- Lucila a Eberhardt. – Nos encontre um lugar onde possamos... —Ela esteve a ponto de dizer, permanecer despercebidas, mas se corrigiu e disse: - Descansar e nos refrescar.
Ele também parecia nervoso.
—Assim que possa. -
—Estou dolorida. - Disse Stella, em tom infantil. - E tão cansada que quase não posso ficar em pé.
Lucila pegou Stella pelo braço.
—Sh! Stella. Tudo ficará bem.
—Oh, que mentirosa mais doce você é. - Disse Stella. - Mas não, nada está bem. Ainda assim, eu gostaria de me deitar, se fosse possível.
Adalgiso voltou. Estava com outro homem, obviamente um soldado. Ele era grande, de olhar duro, que usava uma túnica e uma espada. Começou a rir quando viu as duas mulheres.
—Presentes para mim? — Ele perguntou. - O que me dizem senhoras?
Stella se afastou dele com temor.
Ele encolheu os ombros.
—A esposa de Ansgar. Por que demônios a trouxeste?
—Queria me assegurar de que não me seguisses. - Disse Adalgiso.
—Provavelmente o faça, mas eu me encarregarei dele. —Depois se dirigiu ao prior. - Leva as damas para a casa de convidados. Assegure-se de que tenham algo para comer e um pouco de vinho. Vamos. – Ele disse a Adalgiso e Eberhardt. - O porco está tão a ponto que cai do espeto.
Ele se voltou para os monges que ainda olhavam para mulheres, boquiabertos.
—Uma rodada extra de vinho para todos, em honra ao filho do rei.
Depois ele saiu com os braços nos ombros de Adalgiso e Eberhardt.
O prior, um homem velho e com uma expressão de condenação, conduziu-as até a casa de convidados.
—Quem era esse? — Perguntou Lucila.
—Dagobert, um dos amigos de meu marido. Suponho que seja inofensivo. - Sussurrou Stella. - Mas é tão grande e...
O monastério formava um quadrado, com a igreja de um lado, os aposentos dos monges do outro e um jardim entre os dois. Tanto o frente como a parte traseira estavam protegidos por altos muros; a casa de hóspedes ocupava uma parede inteira. Os estábulos a outra.
O aposento ao qual foram levadas bem poderia ter sido um estábulo. Pensando melhor, Lucila decidiu que os estábulos deviam ser mais quentes. Lá pelo menos teriam feno sobre o qual se deitar. Na casa de convidados duas plataformas de pedra geada faziam às vezes de camas e a pequena lareira servia para esquentar o aposento. Ou teria sido sua função, se para isso estivesse acesa, mas dado que o lugar estava escuro e frio, o único fazia era criar uma passagem que deixava entrar o ar frio das montanhas através do buraco do telhado.
—Podem descansar aqui. - Lhes disse o prior; depois ele se voltou para sair. Estava já escuro e a única luz que havia era o abajur que levava na mão.
—Espere! - Disse Lucila. - Necessitamos de fogo, mantas e comida.
O prior a empurrou para um lado e seguiu andando. Lucila voltou a entrar na frente dele.
—Pelo menos nos deixem um pouco de luz. – Ela disse enquanto lhe arrebatava o abajur das mãos.
Ele a afastou com uma cotovelada.
—Nenhuma mulher tem direito algum aqui. Mostrei-lhes onde se proteger; não vejo razão para lhes oferecer nada mais.
Ele saiu fechando de uma portada.
Stella chorava em silêncio. Lucila ainda tinha o abajur na mão. Ela o colocou dentro da lareira e foi em busca de madeira. Encontrou um pouco perto da porta, além de algumas lascas. Em uns minutos ela havia conseguido acender um fogo. Quando Stella o viu, secou as lágrimas e foi ajoelhar se junto à Lucila perto das chamas.
—É reconfortante. – Ela disse.
Lucila apagou o abajur.
—O fogo servirá para nos dar luz. Stella, eu temo que não tenhamos nada para comer esta noite. Este Dagobert... Podemos confiar nele para que a cuide até que seu filho ou marido a encontrem?
—Não. - Disse Stella rapidamente. - Como tantos eles, os soldados, ele é um bêbado. Por isso o prior está tão zangado, porque ele está aqui... Ele e seus homens estão bebendo todo o vinho que os monges tinham armazenado para o ano. Em teoria, ele é o abade, mas nunca vem aqui, salvo para esvaziar a adega. Faltam meses para a colheita e já não restará vinho. Dagobert e seus soldados se sentarão nas cozinhas e comerão e beberão. Sobretudo beberão, durante todo um mês. Depois disso os monges ficarão sem nada. Não é nossa culpa, mas o prior não sabe; e se soubesse provavelmente tampouco lhe importaria.
—Desidério deixa que seus homens façam o que lhes agrade? — Perguntou Lucila.
—Oh, sim. - Respondeu Stella. - Tudo o que lhes agrade.
Lucila se concentrou em alimentar o fogo. O aposento começou a esquentar.
—Sequer há um ferrolho na porta. – Ela disse. - Acredito que deveríamos dormir perto da lareira. Aqui estaremos mais cômodas.
Ela se vestira para a viagem e usava um manto grosso. Estendeu-o sobre o chão perto da lareira para que Stella se deitasse. Ela o fez e usou o véu a modo de travesseiro, sob a cabeça.
—Oh, querida. – Ela sussurrou. - Fui tão tola.
Mas então ela fechou os olhos e adormeceu, deixando Lucila acordada e preocupada.
Lucila passou um tempo tentando encontrar uma forma de bloquear a porta. No fim teve que se contentar em lhe colocar uma lasca de madeira, modo de cunha. De vez em quando ela podia ouvir os sons de farra que chegavam da cozinha do monastério. Uma vez soou algo que parecia o grito de uma mulher. Mulher? Ali? Sim, era obvio Dagobert e seus homens não viajariam sem mulheres. Os soldados quase nunca o faziam. E a eles não importaria ferir os sentimentos do prior. Suspeitava que os sentimentos daqueles que dedicavam suas vidas ao trabalho e a oração não significavam nada para Dagobert e seus seguidores. Então ela tentou dormir, mas o piso estava frio, por não falar em duro e Stella monopolizava a maior parte do manto de lã. Além disso, Stella havia escolhido o ponto mais próximo ao fogo, deixando Lucila a mercê do frio e da escuridão. Mas finalmente, Lucila se inundou em um ligeiro sono, e foi primeira a despertar para ouvir o ruído de alguém que tentava abrir a porta.
Era tarde, o sol já tocava as colinas além do rio, quando o ferreiro e seus filhos cruzaram o rio com seu prisioneiro. Só havia um. Havia quatro arqueiros na borda oposta, mas os outros três estavam mortos.
Como Ludolf prometera, no fim ela falou. Mas até Dulcínia se surpreendeu que durasse tanto. Ela não presenciou o interrogatório, mas ouviu o bastante para ter uma idéia bastante aproximada do que acontecia. O ferreiro e seus filhos desempenharam um papel ativo no assunto, mas Avernia era sua mãe e lhes podia perdoar o excessivo entusiasmo que mostravam em seus métodos.
Quando o prisioneiro caiu, falou tudo. Mas nem sequer ele sabia onde estava escondido Adalgiso e Gerberga. Fizeram-lhe sofrer o bastante para se assegurar de que dizia a verdade sobre o esconderijo de Gerberga e seus dois filhos. Depois Ludolf atravessou com sua espada o coração do mercenário.
Mas então já era de noite. Dulcínia se aproximou novamente de Ludolf enquanto alguns homens terminavam de despir o cadáver do arqueiro e levavam o corpo para atirá-lo por um ravina.
Também houve muitas queixas entre os seguidores de Ludolf, porque o ferreiro e seus filhos tinham saqueado os cadáveres dos outros três mercenários e ficaram com seus pertences. Ludolf disse simplesmente que tinham feito o trabalho e mereciam o pagamento.
—Sinto que tenha tido que presenciar isso. – Ludolf disse a Dulcínia.
—Não vi a maior parte.
Ele assentiu.
—Não acredito que nenhuma mulher deseje ver seu homem na guerra, mas Stella é minha mãe. Não permitirei que abusem dela. Não sem uma compensação. Como poderia pedir controle sobre minhas terras se não for capaz de defender sua honra? Ainda deseja se casar comigo?
—Sim.
—Posso ver como toda esta injustiça poderia me converter em um grande senhor.
—Sh! - Sussurrou Dulcínia. - Não deixe que o ouçam.
—Não. Agora estamos sozinhos, mas se o rei Desidério perder ante Carlos há um grande trecho de terreno vazio entre o domínio de meu pai e o de Rufus. Poderíamos dividir a terra entre nós. Rufus e meu pai, eu quero dizer. E jurar lealdade ao Papa e ao rei franco. Tempo atrás ali havia uma cidade e até uma dúzia de povoados. E podem voltar a se levantar e fazer ricos aos seus senhores.
Dulcínia lhe pegou da mão.
—Mas então não gostaria de ter uma esposa. Uma garota que canta.
Ele levou a mão da Dulcínia aos lábios.
—Sim. Eu vou querer. Stella é uma boa mãe para mim e uma boa esposa para meu pai, digam o que digam dela os homens. Sim, eu ouvi as histórias. Mas não me importa. Além disso, você tem a confiança de Lucila e o favor de Adriano.
—Sim, eu agrado Adriano e pode ser que ele até contribua para meu dote. Acredito que o faria. Especialmente se consegue resgatar Lucila e encontrar a fugitiva rainha franco. Acredito que consideraria favoravelmente seus desejos de limpar estas terras de bandidos, para cultivá-las. De fato, acredito que adoraria a oferta.
— Terei que me encarregar de umas quantas coisas. Atacaremos quando chegarmos ao monastério esta noite. Conheço bem o lugar. Um soldado, Dagobert estará lá com seus homens. Se minha mãe se encontrar bem, serei compassivo. Se não...
Dulcínia observou formar em sua face, a mesma expressão que ele tinha quando o ferreiro e seus filhos haviam trazido o prisioneiro do rio. Não havia desfrutado com o que tinha feito, mas isso não o impedira nem por um instante. Tinha visto a mesma expressão na face de Lucila e também na do Papa Adriano, com similar freqüência. Faziam o que tinham que fazer. E se isso os fizesse perder o sono, ela nunca viu o menor indício a respeito. Sim, ainda o queria. Mais, muito mais que a nenhum outro homem dos quais tinha conhecido ou visto. E se algum dia esses olhos a olhassem com a mesma fria resolução, bem, teria que suportar as conseqüências.
Lucila despertou fria e assustada. Sabia que devia ter dormido um momento e se sentia dura, porque Stella se voltara para ela e sua cabeça descansava sobre seu braço. O fogo se consumou e agora se reduzia a umas poucas chamas azuis e amarelas que dançavam sobre os enegrecidos carvões. O aposento estava quase tão negro como a boca de um poço.
Ela ouviu novamente o ruído dos arranhões. Lucila fechou os olhos e se obrigou a ignorá-lo. Algo empurrava a porta. Lucila viu como se levantavam as pranchas. Seus braços se fecharam em torno de Stella. Havia temido. Um ou mais dos rufiões bêbados da igreja tinham vindo como gatos, no que deviam ser as primeiras horas da manhã.
Amaldiçoou ao prior e a Dagobert por ser um par de porcos asquerosos. Por que não lhes dera um alojamento mais seguro? Ou decidido pôr algum tipo de vigilância na casa de convidados? Ela desviou os olhos da porta e os dirigiu a Stella. Ela estava com os olhos muito abertos, com aspecto de estar mortalmente aterrorizada.
—Aconteça o que acontecer, Stella, não resista. - Sussurrou Lucila. – Você é muito pequena; esses homens são muito fortes. Por favor, por favor. Prometa-me.
Stella assentiu.
Alguém bateu na porta fracamente.
—Provavelmente estejam muito bêbados. Talvez se vão...
—Deixem de sussurrar entre vocês e abram a porta, suas putas. Vocês têm clientes. Abram e nos satisfaçam. Se não, teremos que despertar toda a casa.
Lucila ficou em pé com dificuldade.
—Vamos. - Disse Adalgiso. - Ninguém tem por que saber. Só nós três. Deixem-nos entrar.
Três. Lucila apostaria tudo, que Dagobert era o terceiro.
—Vamos. - Disse Eberhardt em um tom lisonjeiro. - Ninguém tem por que saber. Deixem-nos entrar. Pularemos um pouquinho e depois se libertarão de nós. Vamos.
Lucila foi até a porta e apoiou o ombro nas pranchas.
—Vá embora, Adalgiso. Sou muito amiga do Papa. Não acredito que queira fazê-lo se zangar. E Stella é a mulher de um dos homens leais ao seu pai... Estamos comprometidas... Não somos livres para...
Alguém abriu a porta com um chute.
Stella gritou.
A porta empurrou Lucila. Suas pernas se chocaram contra uma das camas de pedras foi para trás, caindo sobre o bloco de pedra. Sua cabeça bateu contra ela. Ficou atordoada durante um segundo e depois se viu lutando por tirar Adalgiso de cima de si.
Ele lhe pegou no seio, retorcendo-o dolorosamente. Lucila gritou e tentou lhe arranhar os olhos e a face. Ele cheirava a vinho. Era mau cheiro tão intenso que Lucila teve que voltar a face, para não vomitar.
Stella voltou a gritar.
Lucila podia ouvi-la suplicar.
—Oh, não. Pare. Por favor. Sou uma mulher casada. Não tentem me forçar a desonrar meu marido. - Então Stella gritou. - Não, não. Oh, Deus. Pare.
Lucila podia vê-la sob a tênue luz do debilitado fogo. Eberhardt a segurava pelo cabelo com uma mão e com a outra lhe apertava o pescoço, quase a asfixiando, enquanto Dagobert lhe subia o vestido.
Adalgiso também estava com Lucila presa pelo cabelo e tentava lhe levantar a saia. Algo não tão singelo, porque era uma saia calça de montar.
Stella gritou novamente. Cravava as unhas grosseiramente no braço que lhe rodeava o pescoço.
Lucila levantou um joelho, afastando o peso de Adalgiso de seu corpo e depois se voltou. Ele rolou e como as plataformas eram estreitas, caiu e aterrissou de costas no chão de pedra. Deixou escapar um uivo de fúria, mas Lucila estava já em pé e corria para a lenha junto à lareira. Nesse momento, a cabeça de Stella deslizou sob o braço de Eberhardt e Dagobert e pareceu que ia se escapar. Suas saias desciam. Ele retrocedeu um passo e deu um forte murro no abdômen de Stella, debaixo das costelas.
—Aí tem o que merece. Eu a acalmarei. – Ele disse.
Stella não gritou. Não podia. Lucila observou horrorizada como ela se dobrava de agonia e a cor deixava sua face e seus lábios se tornavam azuis. Depois ela caiu, aterrissando sobre um flanco em uma apertada bola de dor.
Lucila havia já alcançado a lenha. Pegou um toco de carvalho e o esmagou o mais forte que pôde contra a cabeça de Dagobert. Ele ficou sentado no chão, enquanto o sangue emanava de um corte na testa. Ainda no chão perto da cama, Adalgiso tentava se levantar. Este exercício se complicou pelo fato de que seu sobrecarregado estômago escolheu esse preciso momento para vomitar seus conteúdos por todo o chão.
Dagobert estava cego por seu próprio sangue e aturdido pelo álcool. Ainda tentava e levantar, mas talvez por ser um pouco mais preparado ou mais ágil que Eberhardt e Adalgiso, já havia empreendido a fuga. Lucila viu que ele já estava com meio corpo do outro lado da porta.
Adalgiso permaneceu de joelhos, com violentas golfadas, enquanto Lucila golpeava Eberhardt na cabeça com seu improvisado pau. Depois lhe amassou a face, lhe rompendo o nariz e tirando um olho. Com o seguinte golpe saltaram a maioria dos dentes e depois ela conseguiu lhe romper um joelho. Tinha que finalizar seu ataque, porque Adalgiso estava para se levantar e se dirigia para ela espada em mão.
Ele deu-lhe uma estocada, tal como havia feito com Avernia, mas a diferença residia em que Lucila não era Avernia e Adalgiso já não estava sóbrio. Ela deu um passo para o lado para se esquivar da espada e golpeou sua mão com o pau. Ele gritou de dor.
Lucila lhe devolveu o grito, lhe amaldiçoando com as piores obscenidades que sabia.
—Olhe, seu porco. Olhe o que você e seus amigos fizeram. Mataram Stella.
Ele cravou o olhar na mulher loira, esbelta e antes bela que jazia sobre o chão perto da lareira. A pele de Stella estava cinza. Estava fria e úmida ao tato. Lucila sabia porque estava de joelhos junto a ela. Um fio de sangue lhe saía por entre os lábios para cair sobre o chão. Ainda tinha ambos os braços cruzados sobre o estômago e quando Lucila tentou tocá-la, ela deixou escapar o grito mais atroz que Lucila já ouvira.
—Não, não me mova. Não. Morrerei. Quebraram-me algo por dentro. Nunca havia sentido uma dor tão terrível. Ajude-me, Lucila. Ajude-me. Estou morrendo.
Ela não parecia assustada, mas assombrada ante sua condição. Lucila olhou para Adalgiso.
—Bom, se fez imbecil para toda sua vida, certo?
Ele retrocedeu afastando-se de Lucila, com a espada na mão esquerda, enquanto tentava fazer o signo da cruz com a direita.
Então ouviram os gritos e gritos que chegavam da igreja da abadia.
Matrona se aproximou do lago em sua forma de loba. Como sempre, ouviu vozes. Algumas ela reconheceu; outras lhe eram estranhas e às vezes estava convencida de que não eram simplesmente linguagem, mas outras formas usadas por seres que não podiam classificar como humanos, para transmitir informação. Os idiomas também eram um mistério. Ela sabia muitos e sua mente registrava suas mudanças Com o passar do tempo.
A própria linguagem de sua gente era ainda falada em muitos povoados diferentes, mas tinha variado tanto com a passagem dos séculos, dos milênios, que agora seria um caos para seus criadores. Ela mesma às vezes falava devagar, porque sua mente percorria preguiçosamente o caminho no tempo de um conceito convertido em língua pelas criaturas que primeiro utilizaram as palavras para impor ordem e pensamento sobre o contínuo, sobre os dados puros da vida mesma.
Era uma coisa de grande poder a linguagem. Muito mais poderosa do que os homens e mulheres que o usavam de forma tão descuidada saberiam jamais. Matrona prestava atenção no que diziam as vozes. Às vezes ofereciam advertências ou assinalavam o caminho que deveria percorrer. Mas a maior parte do tempo, elas simplesmente comentavam os problemas de seu mundo particular ou gritavam sua dor ou sua vitória sobre as dificuldades ou os lucros alcançados.
Agora, neste momento, uma mulher cantava uma canção de ninar a um bebê, acompanhada pelo sussurrante gorjeio de um flauta de madeira. Matrona reconheceu a voz de sua mãe. Outrora, quando ela resistia ao onipresente fluxo da mudança, as vozes a tinham atormentado. Mas agora aceitava sua parte como espectadora escolhida da viagem humana e já não sofria esse sentimento de perda que viveu ao saber que o inexorável fluxo dos acontecimentos arrebataria a todos seus seres amados. Ela, como Maeniel havia escolhido um posto fora do tempo e ao contrário dele ou Regeane, aceitava sua missão. A seus olhos ambos eram, bem... Jovens.
Então ouviu Gu! Cantando. Longo tempo atrás ele lhe tinha ensinado o calendário e como contar os anos. Ela pronunciou o som que era seu nome com a língua da loba.
Todos os idiomas tinham perdido esse som após, mas era notável que um lobo pudesse fazê-lo, embora os homens tivessem esquecido como. O certo é que ele era um professor de lobos e no cru e selvagem inverno do mundo havia se deslocado junto às alcatéias, para sobreviver.
—Gu! — Ela chamou, mas não houve resposta. Não. Era com o resto.
Matrona a mãe. Recordamos quando a fera e o homem eram um só. Sou o talismã. Era seu talismã. As montanhas rugiram, a fumaça cegou o olho do sol e o inverno eterno desceu sobre a terra.
Era nosso. Então fomos descuidados. Gu me disse isso. Vivíamos no sol. Arrancávamos a fruta das árvores, as águas estavam cheias de vida. Seguíamos os rios e arroios nos anos secos. Depois, quando chegaram às chuvas, toda a terra era nossa e desfrutamos de sua abundância. Não necessitávamos de vestimentas, porque os retalhos de pêlos eram suficientes. Graças a eles éramos belos como os gatos e adornados pela melhor maciez dourada, negra, avermelhada ou prateada. Era tudo o que podíamos desejar e acariciávamos uns Aas outros sem medo, para pedir comida ou amor ou mesmo perdão e consolo.
As amplas savanas eram uma fonte interminável de beleza e alimento, não só para o corpo, mas também para o espírito. Bandos de pássaros obscureciam o sol. Manadas de velozes feras com chifres e rivalizavam com o trovão das tormentas. As árvores se dobravam sob o peso da fruta e as flores e as ofereciam ante nossas bem dispostas mãos.
Até que falou a montanha.
E chegaram os longos invernos. Os frios e longos invernos.
Matrona não podia recordar a sorridente luz, o calor perpétuo.
Também duvidava que Gu pudesse. Muitos conheciam as histórias sobre a luz perpétua e a inacabável generosidade da mãe de toda a vida, mas era isso, só historia. Um paraíso perdido. Ela mesma havia nascido no longínquo sul depois de que sua gente seguiu as alcatéias do norte em sua migração anual, para caçar nas gargantas e profundezas do frondoso bosque perto do mar. Permitiu-lhes morar nessa margem de terra além do gelo; um gelo que capturava as colinas, as montanhas e inclusive a planície e que era contido pela água. A única água que sabiam que nunca se gelava, a do mar bravio.
E no estreito lugar rodeado de geleiras podiam sobreviver o inverno até a próxima prova, a longo viajem no qual seguiam as alcatéias para o norte, no começo da primavera. Então em uma bela primavera, quando se preparavam para o árduo caminho, Matrona havia sido entregue aos lobos.
Gu tinha visto as formas no fogo e tudo caiu sobre ela.
Ela foi com os lobos, que a aceitaram como uma vez aceitaram Gu e lhe deram um nome. Aceitaram-na e lhe deram um nome. E ela correu com a alcatéia para o norte como fez sua gente. Para o estepe, onde se encontrou com a loba negra. Elas lutaram.
Naquela época, Matrona, endurecida pelas longas marchas com a alcatéia lutava como o resto, por sua parte da caça. O frio e o cansaço do dia e a noite eternamente gelados, sempre atrás das feras e vestindo somente sua pele, a tinha endurecido até fazê-la o mínimo igual forte, que o resto dos lobos. Não se deixava intimidar sequer pelo líder. Ela era uma poderosa oponente para qualquer lobo.
Mas este era especial, diferente do resto. Um último e solitário sobrevivente da alcatéia líder, a organização de lobos do pleistoceno, os canis dirus, que tinham governado muito antes que se pensasse sequer na aparição da gente de Matrona. A dirus. Chegou para reclamar seu sacrifício anual, para levar Matrona para a escuridão final e ao frio eterno. E agora Matrona vestia a pele da loba e sua alma fitava o lago através de seus olhos, nas últimas horas da noite.
Matrona se sacudiu como se tentasse se livrar das lembranças que se aferravam ao seu espírito como as teias, nas árvores e fixou o olhar na água. Não houve advertências... Desta vez. Algumas vezes as vozes que ouvia estavam agitadas e molestas. Diziam-lhe que o caminho era perigoso ou que poderia acontecer alguma coisa. Ela perguntava que caminho teria tomado Regeane, quando ouviu a voz.
—É seu amor um colar e uma corrente?
Matrona sorriu e deslizou na água. Também ela chegou ao mesmo bosque estranho no qual o Regeane havia aterrissado, mas então o sol estava alto e o ar era quente.
Como humana, ela nadou através do lago entre as árvores até a cascata e estudou a mesma garganta afogada pelas raízes das árvores monstruosas que pareciam cobrir o chão do mundo. Matrona havia estado ali antes. Algumas criaturas vermelhas parecidas com pássaros passavam roçando a água para pegar... O que? Insetos? Matrona nunca soube.
Acima se elevavam as árvores, suas copas perdidas entre as nuvens antes de poder ver galho algum. Como havia feito Regeane, ela se tornou loba nas águas baixas e começou a avançar com a corrente, deixando que o silêncio a impregnasse. Ao contrário de muitos humanos, ela não estava acostumada a pensar com palavras. Em seu mundo, entre os bosques açoitados pelo vento junto à margem do mar onde havia nascido, a palavra se usava para amplificar a interminável comunicação da flexível dança da vida sobre o corpo. Não havia conhecido e nem necessitado de palavras quando vivia com os lobos, sequer depois de lutar contra a loba dirus e matá-la. Depois da chegada do Gu, não havia precisado falar com ele e nem com eles. Então respeitava o silêncio que lhe levava notícias.
O vento da manhã estava fazendo migalhas da névoa alta que escondia as porções superiores das árvores. O bosque sussurrou e depois falou em voz alta ao ar mutante. As árvores de casca prateada se moveram, tilintando um pouquinho enquanto os enredados galhos das copas em forma de guarda-chuva encostavam-se umas nas outras ligeiramente, o som dos timbales da vida e do prazer.
Outra noite se acaba.
É dia.
O chapinho das negras patas da loba sobre a água falava de presa, de urgência. As perguntas das coisas vivas e animadas.
Ela esteve aqui.
Mas já foi.
Comeu um... Brilhante.
Mas não aconteceu nada.
Entre as imprecisas ilhas de árvores, caíam gotas de condensação procedentes da névoa noturna como se fosse chuva, apagando a sede das samambaias e das plantas ainda mais primitivas que se penduravam como brincos na casca das árvores ou se aninhavam na terra presa entre as raízes que cobriam o solo sem deixar frestas entre elas.
Uma árvore morreu no dia em que ela veio.
Nós... Choramos-lhe.
Um enorme suspiro.
Deixou-nos à borda do lago.
Brilhante. E os pássaros vermelhos dançaram sobre a água.
Ou não eram pássaros?
Brilhante. Falou o bosque. Quatro pés. Dois pés.
Matrona reconheceu seu próprio nome.
Dois pés. Quatro pés.
Nossa amada filha do silêncio.
Irei além do lago. Devo encontrá-la.
Estranho pensamento... Velocidade. Pressa... Murmuravam as árvores.
Matrona reatou sua marcha.
Está na água. Ouvimo-la. Pisadas. Comeu o brilhante... Frutas, agriões... Levou parte de nós em seu interior. Ela voltará.
Maeniel não seguiu o rio como Regeane fazia. Conhecia um caminho romano. E era como quase todos os caminhos romanos, em linha reta através do pântano e fazia com que a viagem fosse muito fácil.
Aborrecido consigo mesmo por permitir que o capturassem e o acorrentasse, ele partia com rapidez para retornar ao rei o mais rapidamente possível. Para Regeane era trabalhoso seguir seu ritmo e sabia que ele ainda devia estar zangado com ela por sua discussão da noite ulterior. Embora parecessem reconciliados, sentia que a briga ainda não tinha acabado. Ele não cederia nem um milímetro ante ela e ela seguia se sentindo ofendida por ele.
Quando divisou umas quantas aves aquáticas, patos com plumas escuras e brilhantes cabeças verdes que viajavam em grupos familiares acompanhados de patinhos chapinhando atrás deles, Maeniel ficou completamente imóvel, preparando-se para um aperitivo de mamãe e bebê pato.
Regeane se sentiu indignada e mesmo a loba estava molesta. Então saiu de seu esconderijo e os assustou, para que pusessem a voar. Os patos saltaram diante de sua cara em uma algazarra de fortes gritos de advertência e plumas. Enquanto voavam, ele se voltou e suas mandíbulas se fecharam a menos de três centímetros da cara da loba.
Ela reconheceu este gesto como o que era. Uma forma de intimidação. Mas se manteve em seu lugar enquanto lhe lançava um olhar assassino. Regeane não era rival para ele e ela havia descoberto durante o breve espaço de tempo que estavam casados que, na realidade, virtualmente não existia nada que pudesse rivalizar com o lobo. Certamente, nenhum dos componentes da alcatéia que havia reunido em torno dele poderiam ser rivais para a ferocidade letal como homem ou como lobo; mas curiosamente, ele não estava tão predisposto como qualquer macho humano, em tentar intimidá-la com sua superioridade física.
As fêmeas da alcatéia tinham sua própria hierarquia. Regeane não estava no mais alto da mesma. Matrona estava. Mas Regeane era uma segunda forte e estava aprendendo muito com Matrona. E uma das lições era que devia reclamar o respeito que merecia. Inclusive dele.
Assim, o duelo de olhares acabou quando ele afastou os olhos.
E novamente a seguiu.
Durante uns quantos quilômetros o caminho estava submerso sob as inundações primaveris. Não restara ninguém para se ocupar dos canais de irrigação que antes o drenavam. Então os dois lobos tiveram que nadar, às vezes abrindo a passagem entre o lodo. Havia serpentes. Para Regeane eram indiferentes, mas para se vingar do ataque aos patos, fingiu se preparar para comer uma... Comportamento que encolerizou Maeniel e lhe arrancou um selvagem grunhido de asco.
Regeane levantou o olhar do agitado réptil e lhe dedicou um gesto de assombro inocente, um tão incomodadamente terno, que ele adivinhou seu propósito imediatamente e se afastou zangado com as patas muito rígidas e o focinho para o alto. A serpente, algo inquieta e ocultando seu medo em veloz movimento sinuoso afastou-se dali deslizando com rapidez e dedicou um último giro de pescoço e uma tirada de língua, um gesto muito grosseiro por sua parte, a Regeane, para depois desaparecer em um frondoso leito de pontederias que já mostrava suas primeiras espigas de flores.
Entretanto, ambos coincidiram em sua opinião sobre as rãs. Achavam-nas absolutamente deliciosas, então seguiram passeando e jantando sobre a marcha.
Por fim o caminho ressurgiu e o avanço se fez mais fácil, embora houvesse menos rãs suculentas para comer. O terreno começou a se elevar. Foi quando se atravessaram o caminho do Armine, Chiara, Hugo e Gimp. Só tinham dois homens com eles e eram perseguidos por meia dúzia de soldados e três cães.
Regeane pensou com horror. Muitos para nós. Mas Maeniel se voltou no atalho sem pensar duas vezes.
Sim, se lembrou Regeane. A garota havia lhe salvado a vida. Deviam tentar ajudá-la. Maeniel se pôs a correr. Regeane o seguiu.
O urso sabia que os perseguiam. Deu-se conta quando Armine e Chiara atravessaram o rio. Gimp esperava no vau de mau augúrio onde a família havia sido assassinada.
Regeane havia observado, que água devia já estar alta no cruzamento. E estava.
O corpo de Hugo estava jogado sobre a sela, de barriga para baixo.
O urso soltou um palavrão.
Chiara lhe ouviu, mas por uma vez, não disse nada. Tanto ela como Armine estavam assustados. Gimp estava, como sempre, dormindo. Conseguia dormir inclusive montado.
O urso despertou com um forte rugido. Depois voltou a possuir o corpo de Hugo. Deslizou até descer do cavalo, cambaleou, e teve que dar três voltas em torno do animal para desenredar. Mas depois se lançou sobre a sela.
A escolta de Armine não se dava conta de nada. Estavam com uma horrível ressaca e Chiara, Armine e o urso estavam bastante seguros de que seriam inúteis em uma briga. Tudo o que podiam esperar era que o rei estivesse muito ocupado massacrando aos seus outros inimigos, para lhes dedicar algum pensamento.
Esperanças vãs.
O urso detectou os perseguidores antes que o resto. Deixou o atalho para lhes dirigir no caminho romano que atravessava a zona pantanosa. Armine começou a protestar. Ele esporeou seu cavalo para chegar até onde o urso, como Hugo, que dirigia ao grupo.
—Onde...
—Estão atrás de nós. - Respondeu o urso.
—Oh, não! Não estou preocupado por mim, mas por Chiara... Quando penso no que poderia lhe acontecer...
—Não deixarei que aconteça. - Disse o urso. - Não deixarei que a peguem.
—Promete-me
—Dou-te minha palavra. - Respondeu o urso e depois em seu rosto se mostrou um gesto de ferocidade. Um gesto que Hugo nunca poderia ter originado. - Matarei qualquer um que coloque uma mão sobre ela. Prometo-lhe. Juro que o farei. Agora você, Armine, se assegure de que este cadáver permaneça sobre o cavalo enquanto eu vou visitar nossos perseguidores.
O corpo de Hugo desabou. Armine o pegou pelo braço, com força.
O urso nunca soube como se movia, mas o fazia com rapidez. Em alguns segundos viu os homens de Desidério. Eles também haviam entrado no caminho romano. Um homem a pé era seguido por três cães, puxados por correias. Assassinos. Cães de guerra. Grandes, perigosos e cruéis. O homem que se ocupava dos cães usava um látego. Eles pareciam respeitar tanto ao látego como ao seu dono, mas se lançavam com fúria contra todo o resto, incluindo os guerreiros a cavalo que os acompanhavam, quando se aproximavam muito.
O urso os descartou. Recuperara-se de sua luta contra Regeane e Matrona, mas havia demorado várias semanas. Elas haviam lhe espremido até quase matá-lo ou lhe entorpecer, quando encontrou Gimp e depois Hugo. Os guardiões da tumba lhe tinham salvado de... Da morte? Da letargia? Quem sabe. Alguma forma de inexistência. Uma feroz batalha com os cães nesse momento poderia lhe arrebatar as energias ao ponto de incapacitá-lo para ajudar Chiara e seu pai. E, curiosamente, isso era o que mais o preocupava. O medo de que ela caísse presa de Desidério e de seu exército mercenário.
No fim o rei acabaria matando-a, mas antes de morrer, o brilhante e valente pequeno espírito acabaria quebrado da forma mais cruel possível. O primeiro sentimento de culpa conhecido pelo urso começou a se apoderar de sua alma ao recordar o sofrimento dos prisioneiros do abade, nas mãos daquele monstro humano. Agora estava pagando por seu desalmado apoio aos desejos do louco, mas a criatura lhe tinha amado. Havia lhe adorado. Essa era sua conexão com o mundo da luz: as emoções das criaturas que podia se fazer delas. Como o abade, Hugo, Gimp e outros dos quais tinha feito presa ao longo dos séculos... Dos milênios, de fato. Não poderia viver sem seu amor, sua admiração, seu ódio, seu medo, sua dor e, também, sua alegria.
As verdadeiras feras como esses cães enlouquecidos e arruinados... Sim, arruinados pela crueldade sistemática humana, não poderiam lhe oferecer jamais as energias que sustentavam sua vida consciente, as que lhe proporcionava a presença dos humanos. Sem eles, teria que desvanecer, afundar em uma estupidez como Gimp e depois... Afastou o pensamento de sua mente. Como detê-lo? Os cavalos eram objetivos bem mais acessíveis. Os homens não podiam vê-lo, mas os cavalos eram um assunto mais singelo.
Materializou-se em frente a eles. Escolheu a forma do urso e rugiu.
Os resultados foram mais que satisfatórios.
Segundos depois, ele estava de volta ao corpo de Hugo, rindo entredentes. O som fez com que o sangue do Armine gelasse nas veias.
—Tente levar o melhor ritmo possível. – Ele disse a Armine. – Dei algo em que eles se ocuparem. Quando conseguirem pegar seus cavalos e acalmar as criaturas, devemos já ter avançado o bastante.
Armine estudou o homem que cavalgava junto a ele. Estava limpo. Usava as roupas mais velhas de Hugo, camisa, dalmática e calças de montar reforçadas com pele na parte de atrás, joelhos e tornozelos. Mas a face estava tão completamente mudada, que ele não podia ver nada de Hugo nela. Era a face de um guerreiro: perigoso, forte, valente, sem medo e estranhamente bonito. Recostava-se sobre a sela, com os joelhos obstinados os flancos do cavalo. Controlava as rédeas facilmente com uma mão, enquanto que a outra descansava sobre a faca de seu cinturão.
Moviam-se rápido em linha reta descendo pelo centro do caminho romano. Quando chegavam a uma zona enlameada ou a lugares onde a água havia varrido o caminho, ele esporeava seu cavalo com facilidade, para que galopasse e passassem esse ponto sem dificuldades.
—O que fez com o Hugo? — Perguntou-lhe Armine.
A coisa que habitava o corpo de Hugo compôs uma careta completamente perversa.
—Comi.
Armine lhe dirigiu um olhar cansado.
—Por Deus, não brinque comigo. Se você destruiu a alma de Hugo, quando ficou com seu corpo?
—Não. Mas é muito... Há muitas coisas sobre o mundo que você não compreende. Tentei dizer a sua filha. O raio matou Hugo. Quando voltei para ver como o lobo partia, encontrei seus restos no alpendre. Ele ainda respirava, embora com muita dificuldade, mas seu cérebro, a parte de vocês que está no crânio, era... Mingau.
Armine assentiu. Tinha mais experiência vital que Chiara. Sabia que freqüentemente as lesões graves na cabeça eram mortais.
—Peguei o corpo. Posso usá-lo. — A criatura encolheu os ombros. - Mas Hugo já não existe. O homem que residia em seu cérebro; quando esse cérebro ficou destruído, foi aonde quer que seja que... Seu Deus manda. Céu ou inferno, não posso saber. Não é meu Deus e não me explica essas coisas. Mas me acredite, Hugo não voltará.
—Não posso dizer que sinta muito. - Comentou Armine.
O urso riu. Os ecos vazios do som fizeram tremer os dentes de Armine.
—Não faça isso. - Disse Armine.
—Chiara tampouco gosta. – Disse o urso. - Mas... — Ele se deteve, com aspecto preocupado. – Malditos! – Estão perto outra vez e ganham terreno.
Imagine... Imagine um mundo sem fronteiras, um mundo sem nações, nem cidades, nem granjas, sequer leis ou regras. Uma camada de gelo cobria os pólos. O verão retrocedia. No inverno se estendia até a borda dos muitos mares. No verão as feras gigantes que dominavam a limitada natureza entre o mar e o gelo ocupavam as vastas planícies, os verdes vales apanhados entre as dobras das enrugadas e anônimas correntes montanhosas e as praias dos enormes mares selvagens.
Este mundo se gabava de sua incrível riqueza, assim como de suas brutais privações. Cervos e alces dotados de galhadas de três metros, lobos que se agrupavam em alcatéias e eram do tamanho de cavalos pequenos, elefantes mamutes com gigantescas presas torcidas e pele peluda dominavam o mundo.
Matrona e sua gente caçavam, amavam, viviam e conquistavam entre seres animais que o mundo não viu desde que desaparecessem os dinossauros. Choravam no fim de cada verão, cortavam as pontas dos dedos em sinal de tristeza e rasgavam as caras. Faziam-no com terror, esperando que fossem quem fosse os deuses que governavam o universo vissem sua dor e, chegado o momento, voltassem-lhes a conceder o presente da primavera. Depois seguiam os enormes rebanhos de animais em uma viagem selvagem e perigosa das altas planícies, das montanhas, colinas e dos bosques, para passar o inverno na costa, em ilhas descobertas pelo encolhido mar encerrado no gelo, entre os promontórios varridos pelo vento e açoitados por aterradoras tormentas.
Neste mundo, uma fêmea tinha que parir quatro filhos, para criar um; um macho devia ser pai de sete para que alguém o substituísse. Mas seguiam amando, roubavam a alegria de entre as gargantas da morte e conheciam a felicidade transcendente à sombra da espada.
Matrona surgiu das águas do pântano como uma cigarra rompendo sua carapaça, para enfrentar os dois lobos. Regeane e Maeniel se olharam com expressão culpada.
—Deu sua palavra a Carlos... – Ela disse a Maeniel.
Ele inclinou a cabeça para um lado, como um cão ao qual repreende.
—Não quero suas desculpas. - Disse Matrona. - Fale com sua consorte.
Maeniel pareceu se amotinar, mas só durante um momento, depois se voltou para Regeane. Encostaram focinho contra focinho. Pode dirigir isto?
Ela grunhiu fracamente do fundo de sua garganta.
Matrona o entendeu tão bem como Maeniel. Era um, tentarei.
A cabeça de uma espadana caiu perto dos pés de Regeane. Alguém tinha cortado o caule com uma espada. Ela olhou para cima. Os olhos da loba viram a silhueta de Remingus entre ela e o sol. Era tão sólido como o dia em que foi com ela à praça de Pavia.
—O urso está perto. – Ele disse a Regeane.
A loba moveu a orelha para diante e depois para trás. Sentiu-se molesta.
Remingus continuou.
—Chiara e seu pai... Ele está tentando defendê-los. Falhará. A garota, Chiara, salvou seu marido. Você tem uma dívida de sangue com eles.
Regeane se pôs a correr a toda velocidade.
Maeniel tentou segui-la. Deu um salto no ar, mas sentiu como alguém o detinha e o puxava dele para trás, como quando um cão chega ao fim de uma corrente, com as patas dianteiras ao ar e em pé sobre as patas traseiras. Matrona o pegara pelo pescoço. Retinha-o. A mente de Maeniel se dissolveu em um magma de fúria enlouquecida. Com o movimento de um dragão gigante, seu corpo se retorceu e depois se liberou. Voltou-e e se enfrentou Matrona.
Ela estava em pé, mulher, a uns dois metros e meio de distância. Magnífica em sua nudez absoluta. Seu cabelo era um selvagem enredo de seda de ébano que descia até a cintura. Grandes seios com mamilos escuros e bem marcados, uma ampla caixa torácica que descia até se estreitar na cintura, para depois voltar a se desdobrar em quadris largos e graciosos. O pêlo das virilhas crescia abundante, negro e encaracolado, em uma escura e sedosa pele que cobria suas estruturas sexuais. Não as protegia, elogiava-as. O cabelo crescia como uma cunha cujo extremo terminava justo embaixo do umbigo. Pela primeira vez em sua longa amizade, a sexualidade de Matrona o golpeou como uma clava. Ela sorriu e seus olhos brilharam com uma sabedoria que teria convertido Eva em uma simples moça inocente. Seus dentes brancos, com os caninos um pouco mais longos e pontiagudos que os das outras mulheres, brilharam em uma careta selvagem e triunfante.
—Deixe-a ir. – Ela ordenou que. - Chegou a hora. Vamos. Por sua própria vontade você serviu a um ser humano. Um rei humano. Muito estúpido por sua parte, mas é o que escolheste. Assim seja. Agora ela deve partir sozinha.
Humana, pensou Maeniel. Não, Matrona não era de tudo humana. Era o... Outro. Estudou-a enquanto a fúria rugia em seu cérebro. Os outros. Nem sempre tinham tido fogo. Obtiveram-no dos homens. Mas sua gente tampouco o tinha necessitado. A forma do cabelo que cobria Matrona era a de uma criatura que possuía antepassados. Antepassados próximos, cômodos só com sua pele... Como acontecia com os lobos.
Os antepassados de Matrona haviam emergido do estado bestial bem a tempo para lutar contra o angustiante frio, atroz e belo, mas mortal e aterrador. Um frio e uma escuridão que ameaçavam varrer tudo ao seu passo e acabar com a vida de todas as criaturas terrestres e a maior parte da vegetação da qual se alimentavam.
E nesta escuridão e frio amargos, aparentemente finais e eternos, só os caçadores podiam sobreviver, então os outros quase-humanos foram caindo, morrendo de fome quando o frio deixou as árvores sem frutas, sem flores e depois sem folhas. Quando a seca converteu as selvas em desertos e as grandes planícies em iscas abrasadas, secas pelo interminável calor das latitudes tropicais e depois queimadas quando os raios de fogo caíram dos céus obscurecidos pelo espesso pó. E a chuva nunca chegava.
A chuva, a fecunda água dos céus nunca caía e as coisas que ainda não eram o bastante selvagens para matar, morreram. Haviam tomado um caminho distinto ao dos caçadores, um mais gentil, um caminho aparentemente mais sábio que o da gente de Matrona, mas só conduzia a uma noite eterna.
Só os caçadores, senhores do fogo e das lanças de madeira, sobreviveram. Podiam triunfar, se alimentar dos cadáveres produzidos pela matança e o caos e sobreviver. Os fracos, os carinhosos, os amáveis, os compassivos, os belos e os inteligentes, serviam aos caçadores que imitavam o comportamento dos lobos e dos canis dirus, ou morriam.
E o mundo conteve o fôlego e esperou que o sol voltasse.
E a gente de Matrona vagou pela vasta desolação e trouxe para a humanidade, à vida e durante um tempo, a humanidade se encolheu de medo, à sombra de sua força. A gente de Matrona pegou o fogo de suas mãos e este brilhou enquanto o frio quase conseguia acabar inclusive com eles.
Maeniel o lobo, entendeu tudo isto em um suspiro. Enquanto se equilibrava para Matrona, para a caça.
Matrona jogou a cabeça para trás, mostrando seus brilhantes dentes brancos, e riu. Riu enquanto, muito tarde, Maeniel se precavia de que se liberou do mundo da humanidade e se atirava de cabeça, seguindo Matrona, ao interior de outro distinto.
Os sons do combate se faziam cada vez mais fortes. Lucila, ainda em frente a Adalgiso, mostrou-lhe os dentes.
—Parece que Ansgar ou seu filho já chegaram.
—Seu filho? — Perguntou Adalgiso.
—Sim. - Sussurrou Lucila. - Ele estava presente quando pegou Stella. Ela temia por ele.
—Meu filho? — Sussurrou Stella. – Oh, Lucila! Acredita que poderia ser meu filho?
Adalgiso deu um passo para Stella.
Lucila levantou o pau sobre sua cabeça.
—Toque-a... Vamos, toque-a e eu o matarei.
Adalgiso retrocedeu para a porta.
Nesse momento apareceu Dagobert. Ele deu uma olhada Ao que ficava do Eberhardt e lhe falou com Adalgiso.
—Vamos. Não foi uma briga, mas uma matança. Como puderam entrar tão facilmente?
Ele parecia tanto angustiado como perplexo. E, de fato, sua silhueta se recortava contra o brilho escarlate de um fogo.
Lucila escutou um grito animal longo e agonizante.
Dagobert olhou para trás com terror.
—Estão nos matando. Matam e queimam a igreja.
Lucila ouviu o explosivo som de uns cristais ao se romper.
—Se não formos agora, seremos os seguintes. Não entendo. O rei lombardo é o senhor de Ludolf. Como se atreve a assassinar os soldados do rei?
—Talvez, o fato de que tenham seqüestrado sua mãe tenha algo a ver com isso. - Sugeriu Lucila com uma feia gargalhada.
Adalgiso voltou a se mover para Stella. Lucila soltou outro grito de fúria.
—Está louco? — Gritou Dagobert. - Olhe o que resta de Eberhardt e o que já fez feito A ti. Temos que ir e agora. O filho de Ansgar está com um humor assassino. Como acha que ele se comportará quando encontrar sua mãe nestas condições?
—E de quem é a culpa? — Gritou Adalgiso. - Você a golpeou. Eu não te disse que a golpeasse.
A luz do fogo era já muito brilhante, o jardim se enchia de fumaça. Lucila baixou sua arma.
—Isso... Sigam discutindo. Sigam assim até que Ludolf os encontre. Escutem-me os dois. Irei com vocês sem resistir se deixarem Stella aqui e não lhe fazem mais dano, mas temos que ir em seguida, ouve-me? Em seguida. Adalgiso, seu pai ficará furioso se não conseguir tirar algo de todo este desastre e eu serei esse algo, mas vá e deixe Stella em paz.
Lucila soltou o pedaço de madeira que tinha usado como arma e se moveu para a porta. Adalgiso a pegou pelo braço e fugiram. Mais cristais se romperam enquanto eles corriam pelo jardim. Lucila olhou para a igreja. O fogo tinha chegado às vigas que suportavam a apside sobre o altar e todo o campanário estava em chamas. Os sons que provinham do resto da catedral indicavam que alguns dos homens de Dagobert tinham estavam sóbrios para opor resistência, mas estavam perdendo. Lucila ouvia cada vez mais gritos implorando piedade e mais gritos dos que eram assassinados.
As chamas se estendiam com rapidez pelo teto de palha do estábulo quando Lucila e os dois homens chegaram até ele. Lucila sabia que não tinham tempo a perder. Ainda assim, teve que pensar por eles. Seguiam confusos por causa da bebida, mas ela conseguiu selar três cavalos, pegou as bridas e os conduziu até uma porta ao fundo. O estábulo estava se enchendo de fumaça.
Lucila pegou o braço de Adalgiso.
—Vamos. Vamos. Suba! — Ela ordenou-lhe.
Ele tremia de cima a baixo.
—Como... Como sabe que não nos esperam aí fora?
—Provavelmente esperam – Alfinetou Lucila. - Mas você irá primeiro de toda forma. Você, Dagobert, pegue o de atrás.
Obedientemente, ela montou detrás dela.
Deus, ela pensou enquanto deslizava em cima de sua própria sela. A fumaça era tão densa que quase não podia respirar. Baixou sua cabeça até a altura do pescoço do cavalo, procurando ar limpo. Estava muito escuro no interior do abrigo, mas ela pôde notar como Dagobert cambaleava em seus arreios. Ainda estava meio bêbado, aliás, muito bêbado para proteger-se da espessa e asfixiante fumaça.
—Bem. – Ela sussurrou para si. - Bem.
Encaminhou seu cavalo com sigilo para a porta. Depois a abriu com um sólido e forte chute com uma de suas botas. E o que Lucila pensava que poderia acontecer, ocorreu. O estábulo se converteu em um túnel de chamas quando o frio do exterior entrou em através da porta aberta. O cavalo que montava Adalgiso disparou como uma flecha recém lançada. Seu próprio cavalo se revolveu, mas Lucila sabia que se caísse estava morta. Soltou as rédeas, apegou-se ao pomo como um marisco e, quando as patas traseiras do animal tocaram o solo, saiu correndo na mesma velocidade que Adalgiso.
Então a corrente de ar investiu e pegou Dagobert em seu caminho de volta. Tanto homem como cavalo gritaram de terror enquanto o fogo caia sobre suas costas. O seu cavalo recebeu o impacto, suas patas traseiras se lançaram para diante em uma louca carreira. Ela estava com a cabeça abaixada junto ao pescoço.
A cabeça de Dagobert se estrelou contra a soleira da porta do estábulo. Mais que fraturar, seu crânio se desintegrou. Lucila o viu morrer. Viu como lhe abria a cabeça; o impacto arrancou até sua a mandíbula. O que ficava dele caiu, formando um vulto em chamas no chão perto da porta. Seu cavalo, com a sela vazia, passou voando junto à Lucila e esta, que era uma estupenda amazona, conseguiu pegar a brida e recolher as rédeas para conduzir o cavalo atrás depois do seu. Depois passaram pelas árvores que rodeavam o monastério e cavalgaram através dos pastos. Adalgiso olhou para trás, viu Lucila a galope atrás dele conduzindo o outro cavalo. Lucila sacudiu a cabeça e Adalgiso esporeou a montaria, para alcançar a melhor velocidade possível, atravessar o campo aberto e se afastar dali.
Uma vez esteve a sós, Stella ficou estendida em silencio sobre o abandonado manto de Lucila, ouvindo como diminuíam os ruídos da matança na igreja. Estava intumescida, a dor se desvanecia lentamente no silêncio. Estava tão assustada que já não sentia medo. De repente, Ludolf se inclinou sobre ela.
—Mãe. - Disse Ludolf, enquanto lhe tocava a face.
—Oh, querido meu. — Ele pegou sua mão. Dulcínia olhou pelo aposento. - É uma pocilga. - Sussurrou Stella. - Fria, vazia, nem sequer tem uma fechadura na porta. Não nos ofereceram nenhum consolo.
Ludolf assentiu e tentou pegar Stella nos braços. Ela deixou escapar o som mais horrendo que ambos tivessem ouvido.
—Oh, Deus! - Sussurrou ele.
—Sinto muito, querido. - Sussurrou Stella. - Não, não me toque. Por favor... Por favor, me dê só um momento. Estou segura de que me recuperarei, Mas, por favor, não me toque agora.
Dulcínia se ajoelhou junto a Stella. Tirou o próprio véu, enrolou-o em forma de travesseiro e o deslizou sob sua cabeça. Stella estava ainda enrodilhada sobre o chão de pedra. Depois Ludolf a cobriu com sua capa.
Dulcínia usou seus dedos para explorar o abdômen de Stella com muita delicadeza. Estava muito inchado e duro.
—Lucila? — Ela perguntou brandamente.
—Lucila os fez partir com ela, graças a Deus. - Sussurrou Stella. - Eu temia... Temia que me voltassem a tocar. Queriam me levar com eles. Sinto muito, meu filho. Quando me movo, tenho tanto dor... Por favor, me dê algum tempo para me recuperar. — Stella lhes dedicou a sombra de um sorriso. - Estou convencida de que dentro de um minuto poderei cavalgar.
Ludolf lhe acariciou o cabelo.
—Sim, mãe. Demore todo o tempo que precisar. Tenho tudo controlado. Está completamente a salvo. Agora, o que aconteceu?
Stella parecia afligida.
—Adalgiso chegou. Culpa minha, eu lhe escrevi. Ele queria Lucila, mas me pegou também como refém. Ignoro o que planejava. Nem sequer sei se tinha um plano... Há tantos guerreiros bêbados e idiotas.
Stella fechou os olhos. Parecia cansada.
Dulcínia não tinha visto nunca uma expressão tão horrível como a que via no rosto de Ludolf. Ele embalava a cabeça e os ombros de sua mãe entre os braços tentando afastá-la do frio chão.
Um momento depois, Stella abriu os olhos novamente.
—De noite, chegaram de noite...
—Quais, mãe? — Sussurrou Ludolf.
—Adalgiso, Eberhardt e Dagobert... — A angústia do Stella era evidente.
—Não se incomode em nos contar isso mãe. - Sussurrou Ludolf. - Sei o que queriam. Não sofra contando-o.
—Chamaram-nos de putas...
Para Dulcínia a dor que notava na voz do Stella era simplesmente inconcebível. Sussurrou “não” e se voltou. Ela estava uma mão sobre o braço do Ludolf. Sentiu como ele se encolhia de forma quase imperceptível ao lhe cravar os dedos. Ambos estavam ajoelhados junto a Stella.
—Lucila me disse que não lutasse. Que era muito pequena e me fariam mal. Mas eu lutei. Dirá a seu pai que lutei, não é? Por favor? Diga-lhe que lutei. Eu te amo... Meu filho.
Ela pronunciou as últimas palavras tão baixas, que quase não chegavam a suspiro. E foram as últimas palavras que Stella pronunciaria. Faltava-lhe respiração.
Dulcínia ainda estava com o ópio e a valeriana que Lucila lhe tinha dado. Misturou-o com um pouco de bom vinho e depois o esquentou. Stella pôde tomar uma pequena parte do remédio e depois pareceu encontrar algum alívio físico. Ludolf e Dulcínia conseguiram movê-la com cuidado até uma das plataformas de pedra, adequadamente acolchoada com almofadas de plumas e mantas, fruto do saque dos armazéns de Dagobert. De fato, Ludolf recebeu tantas mantas que no fim teve que rechaçar algumas.
Stella tinha sido profundamente amada, e não só por seu marido e seu filho. Não havia um só ápice de maldade em seu corpo e havia realizado milhares de boas obras entre a gente de seu marido. Se Ludolf não tivesse freado seus homens, eles teriam passado pela espada todo ser vivo do monastério, mas ele demonstrou um domínio de si mesmo quase sobre-humano. Dos culpados, Dagobert já estava morto. Identificaram-no graças às jóias e armas que estavam junto à porta do estábulo. Os homens de Ludolf haviam pendurado, sem incomodar em pedir permissão, ao prior que tentou bloquear a entrada ao monastério. Quanto a Eberhardt, Lucila lhe tinha deixado ferido gravemente. Alguém, de identidade desconhecida, cortou-lhe o pescoço antes que fosse identificado. Aparentemente se fez só como parte das tarefas de limpeza necessárias depois de acabar com os feridos na igreja.
A igreja ardeu brilhante e vigorosamente, com ferozes chamas que se estenderam com rapidez a todos os edifícios, exceto à casa de convidados. Os monges, em vista da sorte sofrida pelo prior, fugiram. Ninguém acudiu sequer em tentar salvar as edificações. Os homens de Ludolf fizeram só o bastante para se assegurar de poder pegar todos e cada um dos objetos que tivessem algum valor. Uma vez terminado de saquear o lugar por completo, aqueles de entre o vingativo grupo que ainda lhes parecia divertido, dedicaram-se a guiar ou avivar o fogo.
Dulcínia estava em pé na porta com Ludolf olhando como ardia tudo.
—Sim. - Disse ele com voz baixa. - Mandei chamar meu pai. Oxalá chegue logo. Não resta muito tempo.
—E agora?
—Pedirei a ele que fale com o Papa em nosso nome e no de Rufus. Nem meu pai nem eu somos traidores, mas não podemos seguir mantendo nossa fidelidade ao rei lombardo. Ele insultou-nos horrivelmente, infligiu-nos um ferimento muito profundo. Se alguma vez eu puser as mãos em Adalgiso, o matarei. Já não há volta atrás.
Ansgar chegou antes do amanhecer. Stella nunca voltou a falar, mas pareceu sorrir quando o viu. Morreu pouco depois de sua chegada... Nos braços de seu marido.
O urso tornou para trás, amaldiçoando a irresponsável forma em que Hugo tinha abusado de seu corpo. Não era nem a metade de forte do que ao urso teria gostado. Via-se enfrentando complicados problemas logísticos. Se lutasse como humano, arriscava que matassem o corpo de Hugo. Se o fizesse como urso, encontraria em uma posição muito superior, mas sequer ele poderia destruir seis homens e três cães. E, de uma forma ou outra, o corpo de Hugo acabaria morto.
Eles se aproximavam cada vez mais. Ele levou Armine para um lado.
—São muitos, mesmo para mim.
—Se acontecer o pior, nos abandone e leve Chiara. Confio em ti mais que nesses idiotas. —Armine assinalou os dois homens que os escoltavam.
Tendo em conta o que Armine sabia sobre ele, o urso decidiu que se tratava de um grande homem. Nesse momento chegaram ao ponto mais alto de um pendente e o urso observou que desceriam até outro dos pequenos vales do rio que o encadeavam à paisagem. A névoa ainda se aferrava ao terreno pantanoso e cobria a água. O sol brilhava ao seu redor iluminando as colinas, mas ainda tinha que chegar até os passadiços, às vezes profundos, que a água escavava em seu interior.
— Vou tentar uma emboscada lá abaixo. – Ele gesticulou para a névoa. - Se for necessário, sacrificarei este cadáver que levo. Posso seguir lutando mesmo se ele estiver notavelmente morto. E, depois disso, posso fazer outras coisas.
O urso soltou outra das risadas vazias que tanto gostava. Das que gelavam o sangue.
—Deixa de fazer isso. - Disse Armine. – Guarde-a para nossos perseguidores. Já estou bastante assustado.
O urso voltou a rir, mas desta vez em um tom mais humano. Chiara retrocedeu para se unir a eles.
— Eles nos seguem, não é? — Ela parecia assustada.
—Sim. - Disse seu pai.
—Estavam discutindo o que fazer a respeito, não é?
—Sim. - Disse Armine novamente.
—Bom, me digam alguma coisa. – Ela gritou. - Por suas caras posso ver que estamos em maus lençóis, não é assim? Vamos morrer?
Armine desviou os olhos. Não queria fitar a filha. Estava cansado.
—Me ouça, Chiara. - Disse o urso. - Estamos em uma situação difícil, mas aconteça o que acontecer, estarei contigo. Lembre-se, eu não posso morrer e estarei perto quando necessitar. Assim, aconteça o que acontecer, siga adiante. Não deixe de lutar. Sempre irei a sua ajuda. – Ele estendeu o braço e deu uns tapinhas na mão fechada que segurava as rédeas. - Agora tem que me prometer uma coisa.
—O que? — Perguntou ela.
—Aconteça o que acontecer, você seguirá cavalgando. Não olhe para trás. Só siga adiante.
Chiara assentiu.
—Aconteça o que acontecer. Veja o que veja e ouça o que ouça.
—Sim. - Disse ela.
Quase haviam chegado a região pantanosa que rodeava o rio. O urso desembainhou a espada de Hugo.
—Ficarei contigo. - Disse Armine. - Posso usar uma espada. Já tive um par de encontros com bandidos.
—Então não deixe que nada do que veja o desconcerte. - Disse o urso.
Um pouco mais adiante, uma pequena fortificação em ruínas se perfilava na margem do rio entre uma confusão de pedras, através da névoa branca suspensa sobre a água. O urso e Armine dirigiram seus cavalos para o interior das ruínas, esquivando-se dos blocos de pedra a seu passo.
Chiara e os dois homens da escolta continuaram pelo caminho, para a ponte.
Regeane alcançou os seis homens e os cães que seguiam Chiara e seu pai. A loba jogou as orelhas para trás e tentou fazer com que a mulher fugisse. Não queria ter nada a ver com seis homens armados, mas os três cães eram o que de verdade a assustava. Para a loba eles estavam simplesmente loucos. A crueldade humana havia distorcido tanto seu processo de socialização que odiavam todas as coisas, tanto humanas como animais e matariam imediatamente a qualquer um que ficasse ao seu alcance.
A loba foi obrigada a avançar por sua companheira humana, mas estava doente de medo. Os mercenários a serviço do rei não eram melhores que os cães. Envenenavam o ar ao seu redor com uma aura de horror. O cheiro de frio ferro, de pele quente e suja e de masculinidade impregnava sua roupa.
O almíscar masculino não lhe desgostava. Nas poucas semanas de matrimônio já sabia qual era o humor de seu marido quando ele se aproximava dela. O quente desejo acariciava seus sentidos antes que ele a tocasse, mas este calor era o calor masculino elevado até um mau cheiro de advertência. Estes homens desejavam matar e o fato de que uma das vítimas fosse uma garota jovem, só acrescentava maior excitação a sua violência. Em essência, pagavam-lhes para fazer o que gostavam.
Ferro, madeira, fumaça, desejo, raiva e uma longínqua sombra de desespero se combinavam para fazer com que a loba desejasse fugir. Mas a mulher sacudiu os receios de sua companheira de noite. Deixou o caminho e entrou na malesa. Era um lodaçal, mas enquanto se mantivesse em meio aos arbustos, seria tão difícil manter o equilíbrio. Durante a perseguição no povoado, havia descoberto quão rápida podia chegar a ser uma loba virgem. Fez um esforço e alcançou os caçadores. Foi fácil. Mas e agora? Seis homens, todos bem armados, o homem dos cães e três cães lobos. Não, estes não eram cães lobos, mas de uma raça mais antiga, os cães da guerra.
Nascidos e criados para matar. Diziam que até mesmo César uma vez ficou admirado que um mastim propriedade dos galos guardasse a carreta de seu amo durante dois dias depois de que seu amo caíra na batalha. César tentou capturá-lo vivo, mas o cão se lançou contra as lanças dos legionários, escolhendo a morte antes que a rendição. Igual aos cães, os humanos também o fazem. Muitos pereceram antes se render.
Estes cães eram descendentes desta perigosa raça. O lobo fêmea é sagrado entre os lobos, mas estes cães não dariam trégua, nem sequer a uma fêmea.
O terreno começou a descer. No alto da colina, Regeane ouviu os gritos dos mercenários ao ver sua presa: Armine, sua filha, os dois soldados de sua escolta... E Hugo.
Hugo? Pensou Regeane. Não vou colocar meu pescoço em jogo para resgatar Hugo. Entretanto, ela seguiu atrás dos passos do grupo de soldados e observou enquanto a presa dos assassinos desaparecia na névoa que se arrastava perto do rio.
—Preparam uma emboscada. - Disse o homem que levava os cães ao resto. - Acredito que poderiam aproveitar a oportunidade agora. Se não o fizerem, pode ser que não tenham outra.
—Solte os cães. - Gritou o capitão dos soldados.
O homem parou e fez estalar o látego.
Os três mastins puxaram as correias. Dois deles ladraram e grunhiram, enquanto a fúria os fazia soltar espuma pela boca; o terceiro estava mais calmo e parecia que a longa distância percorrida começava a lhe cansar.
O látego voltou a cair. Então o homem dos cães soltou as correias.
Regeane se lançou ao mesmo tempo em que os cães. Surpresa, ela se deu conta de que podia correr mais rápido que eles e talvez alcançá-los. Atravessou o caminho diante dos mercenários como uma sombra veloz e diáfana. Um deles lhe arrojou uma lança, mas se afastou muito de seu branco. No momento ela se encontrou na frondosa malesa, correndo atrás do último cão. Ele pesava mais que ela, então ela se mostrou cautelosa.
O cão que corria diante dela saltou um tronco.
O medo freava sua perseguição. A loba sentia a presença de um precipício. Medo de estar de algum modo correndo para a borda de um profundo escarpado e... O que aconteceria se caísse?
O cão estava adiante. Regeane só tinha que aumentar ligeiramente seu ritmo. Havia aprendido observando Maeniel. Ele tinha nascido sabendo como usar suas presas.
O cão assassino tinha um colar de puas que, em teoria, defendia-o dos lobos, mas lhe destroçar uma pata também podia servir. Alcançou ao lobo e lhe fincou as presas no quadril. Seu objetivo era o fêmur que impulsiona as patas traseiras de todas as criaturas, dos dinossauros até os homens.
O cão gritou. O som a comoveu. Não sabia que um animal pudesse parecer tão humano. O cão caiu ao chão, arrastando-se em círculos, tentando mordê-la e salpicando sangue ao redor de seu frenético corpo.
De repente, Remingus estava novamente com ela. Levava consigo a terrível espada talhadora dos primeiros legionários. De um só fio, seu peso a impulsionava através da carne até atravessar o osso. Em mãos de um homem forte podia partir pela metade, literalmente, um corpo humano em uma só cutilada. Os horríveis ferimentos que infligia eram legendárias. Ele decapitou ao cão com tal velocidade, que sequer a loba teve tempo de pestanejar.
—Vá. – Ele disse a Regeane. - A batalha espera.
Acima de sua voz, Regeane pôde ouvir o som de cascos sobre o caminho; os mercenários se aproximavam dos cães. O urso não havia escolhido o melhor lugar para enfrentá-los. As ruínas estavam cobertas de vegetação, cobertas por completo de rosas silvestres, hera e outras planta trepadeiras. A proximidade do rio oferecia um fornecimento de água contínua que garantia um crescimento exuberante.
O solo a estava salpicado de escolhos tanto para os cavalos como para os homens. Os dois cães que lideravam o grupo e quatro dos mercenários saíram de entre a névoa para enfrentar Armine e ao urso. O cavalo que o urso montava empinou violentamente enquanto os dois cães assassinos atacavam.
O urso brandiu a espada de Hugo, um arco de luz prateada e matou ao primeiro, mas sua montaria caiu e o segundo cão se lançou sobre o corpo do cavalo em busca do pescoço, fincando um punhado de afiados dentes no braço. Tudo o que sentia o corpo de Hugo, sentia também o urso. Então ele deixou escapar um uivo desumano de dor.
Regeane tinha chegado até o lombo do cão. Estou salvando Hugo? Foi seu atônito pensamento, mas o impulso de seu ataque a levou para diante. Tentou chegar à parte superior de sua coluna, a nuca, mas o colar de puas rechaçou seu assalto e suas presas de lobo se deslizaram sobre o crânio do cão. Caiu por cima do cavalo. O cão, distraído por seu ataque, soltou Hugo e se equilibrou sobre a loba queda.
Quando tudo passou, a mulher não se lembrava de ter ficado em pé ou por que sua irmã de pesadelo levou a cabo a manobra que lhe salvou a vida, mas conseguiu se situar em cima da mandíbula do cão. O animal morreu asfixiado antes que a perda de sangue surtisse efeito.
Armine trespassou ao primeiro soldado que saiu da névoa com uma cutilada sob seu diafragma. Mas mesmo antes de poder recuperar sua espada, tinha a dois mais em cima dele. Em vez de fazer retroceder seu cavalo, fez-lhe ficar de lado e os dois se estrelou contra ele. Os três caíram em uma escandalosa massa de patas para o ar e homens tentando se levantar. Armine, em que pese a sua idade, foi a primeiro em levantar e aproveitou a oportunidade para matar outro dos assaltantes de um golpe de espada, desta vez no pescoço. Enfrentou o terceiro e soube que estava perdido. O homem tinha uma espada, um escudo e armadura.
Armine só tinha sua espada. O homem rechaçou com facilidade suas seguintes estocadas e depois lhe golpeou com o escudo. O fôlego saiu de seu corpo de um sopro. Ele cambaleou para trás, convencido de que ia morrer. Sequer podia correr. Tentava recuperar a compostura com as pernas afundadas até o joelho nas retorcidas trepadeiras que cobriam as ruínas.
O mercenário se equilibrou sobre ele para trespassá-lo com sua espada. Armine viu olhos brilhar por trás das pernas do homem. Eram tão temíveis que esteve a ponto de gritar uma advertência. Então as mandíbulas da loba se fecharam sobre a perna do mercenário. Ele usava proteção, que danificaram suas presas, mas a morna do soldado se partiu como um ramo seco. Ele se voltou para lhe pegar a loba com a espada e Armine, com a fúria da batalha a flor de pele, decapitou-o.
Mas um segundo depois, o capitão dos mercenários apareceu diante dele. Ele montava a arma mais terrível de todas. Um cavalo treinado para a batalha. Um dos cascos dianteiros esmagou o braço que Armine brandia a espada e os ossos se romperam. Curiosamente, ele não sentiu nenhuma dor, mas seus inúteis dedos não puderam seguir sustentando a espada, que caiu ao chão. O segundo casco lhe deu no ombro, lhe partindo a clavícula e o úmero A essa altura, Armine caiu. A loba tentou morder o tendão da perna ao animal. Mas foi só isso, uma tentativa. O cavalo de guerra a atacou com os cascos.
A loba se encontrou voando pelos ares. Aterrissou e se deslizou entre dois enormes blocos de pedra em meio da emaranhada rede de videiras. Notou sabor de sangre na boca e soube que uma de suas costelas havia se quebrado e perfurado um pulmão. Mas a loba afogou a mulher assustada em muita fúria e ficou novamente em pé.
O outro mercenário se uniu ao seu capitão, mas o urso tinha abandonado o corpo quebrado de Hugo. Como urso, ele ficou em frente ao cavalo e então cometeu um cruel engano. Tentou acertar o homem, mas o mercenário tinha o escudo levantado. A garra do urso o destroçou, desfazendo a capa de aço, a pele e a madeira que havia debaixo. O cavalo era treinado para atacar. Enquanto o homem que o montava atirou o escudo quebrado e pegou sua espada com as duas mãos. O grande cavalo ficou em pé diante do urso. Outro tapa do urso lhe alcançou o peito, mas o cavalo estava tão bem protegido como o homem; uma bandagem de malha cobria o peito e os flancos do animal. As poderosas garras do urso deslizaram sobre ela sem causar dano algum.
Então um dos ferrados cascos dianteiros do cavalo se estrelou com força no crânio do urso. O outro lhe reduziu o ombro a pedaços. Um segundo mais tarde, a lança do mercenário atravessava o corpo do urso.
O urso sentiu que, a não ser que abandonasse sua forma corpórea, estaria condenado; mas desprezava a rendição. Melhor, muito melhor, continuar lutando.
Notou uma forte comoção quando a espada do mercenário lhe cortou a garra esquerda.
Condenado. O urso lançou um grito sobrenatural que reverberou através do reino ignorado pela humanidade e golpeou com sua garra direita a cara do cavalo, cegando-o e lhe destroçando parte do crânio.
O cavalo cambaleou sobre a massa de trepadeiras e pedras sob seus pés, ainda disposto, embora moribundo.
Ainda podia morder e o fez, lhe imobilizando o ombro direito enquanto o mercenário, ao vê-lo a descoberto, atravessou com sua espada o coração da criatura.
Chiara e os dois homens que restaram tinham alcançado a ponte. Os sons da batalha estalaram as suas costas. Ela apressou o cavalo, preocupada com seu pai e o urso. Fizera uma promessa, mas não se sentia obrigada a cumprir nenhuma promessa feita sob o que ela considerava ser coação.
Um dos dois homens, criados de seu pai, estendeu o braço e deu uma palmada na garupa de seu cavalo para que fosse mais rápido. A lembrança da garota morta no alpendre da igreja surgiu em sua mente, em um aviso do destino que esperava as mulheres que perdiam seus amigos e familiares.
—Não. - Sussurrou Chiara. Puxou as rédeas de seu cavalo e voltou.
O homem de seu pai tentou segurá-la, mas segundos depois ela galopava a toda velocidade sobre a ponte, para a batalha que acontecia nas ruínas.
O urso se levantou novamente quando a espada lhe atravessou o coração, mas a loba de prata já estava sobre o cavalo, atrás do capitão. Só tinha um segundo para escolher o objetivo de seu ataque. O homem usava armadura.
O urso estava caindo. Tirar-lhe um braço não serviria para nada.
Foi pela garganta na parte superior do ombro, perto do pescoço. Sua presa esquerda escorregou sobre a malha, o que lhe provocou uma onda de pura dor por todo o crânio, mas a direito se introduziu na garganta e perfurou a artéria carótida, rasgando-a por completo. Então ele a atacou com força, descarregando seu punho no crânio de Regeane, justo por debaixo da orelha.
A loba caiu.
Mas havia distraído o homem o suficiente. O urso ainda podia morder. Suas mandíbulas se fecharam sobre o braço onde o capitão levava a espada. Arrancou o homem do cavalo moribundo e o jogou entre os escombros e as videiras, lhe arrancando um braço com uma mordida, para arrematar.
Nesse preciso momento Chiara surgiu entre a névoa. Ainda restava um soldado.
Chiara desmontou de um salto, pegou uma pedra e a atirou em sua cabeça. Acertou totalmente.
Regeane viu Remingus, um fantasma, uma coisa aterrorizante, a coisa morta saída de uma cruz cartaginense, sair da névoa atrás dela.
O soldado também o viu. Foi o suficiente. Ele estava ileso e vivo, mas era o único. Soltou a lança, a espada e o escudo e saiu galopando como quem levam os demônios, longe da névoa maldita, e de volta a Pavia.
Armine jazia imóvel.
O capitão mercenário estava morto. Maciça perda de sangue. O cavalo ainda se retorcia e escoiceava.
A loba lutava para se incorporar em meio a hera que agasalhava uma janela ou pórtico ruído. Invocou a mudança.
Chiara conteve a respiração. A silhueta de uma bela mulher se recortava em rente à janela destruída. Chiara nunca a esqueceu, porque podia ver o bosque atrás dela, através do corpo da mulher.
Regeane levantou os braços, tentando pegar os caules da hera e ela viu como seus dedos os atravessavam.
O urso voltou a rugir, enquanto a forma que tinha assumido se dissolvia para se converter em uma mancha escura entre as trepadeiras verdes e as erodidas pedras.
Ele se foi, pensou Regeane, enquanto se perguntava o que era o que estava lhe acontecendo. Então cambaleou. Um raio de sol atravessou a neblina espessa e pálida e ela mudou. Era mulher. Tão sólida e real como sempre, de joelhos. As heras trepadeiras que caíam da entrada coberta de vegetação quase a asfixiam com seu peso. A loba voltou e sacudiu a espessa rede de videiras.
Chiara observava com horror a coisa amorfa que lutava desesperadamente para conservar sua existência; enroscava e se retorcia como um punhado de serpentes enlouquecidas que saíam e entravam se arrastando por entre a erva viva.
Novamente a loba sentiu a tristeza que já havia notado no pavilhão quando lutaram entre eles. A dor pelo que se perderia. Um sentimento de raiva por ter que terminar assim.
Chiara se aproximou até a sombra.
—Tome sua vida de nós. Tome a minha. Amo-o. Eu o deixarei entrar. Venha para mim. Não, não morra. Amo-o.
Não basta, pensou Regeane. E o urso venceu. O que a força não pôde impor, o que o engano não obteve e as ameaças não conseguiram, a compaixão o fez.
E as duas, Regeane e Chiara, deixaram que as unisse.
O lobo e Matrona saíram da água no baixio a margem do lago entre as árvores. Os ossos do planeta se sobressaíam nesse lugar, mas o musgo, ou algo que parecia musgo, suavizava as arestas de rocha. Crescia em espessas bolhas por entre as árvores dispersas e expulsava frutos densamente cobertos de fina renda, que escondiam dentro algo com aspecto de jóia.
Matrona se fez humana para comer as frutas de musgo que pareciam bagos. Sentou-se a sombra sobre uma almofada de veludo verde fabricado pela mesma planta e começou a tirar a doce fruta de sua matriz protetora. Pareciam bastante com uvas, vermelhas, maduras, verdes ou quase negras, mas não tinham sabor de uva. Eram doces e mais picantes.
—Quer discutir? — Ela perguntou a Maeniel.
—Não. Como volto? Pode ser que ela necessite de minha ajuda.
—A resposta é, não pode. - Disse Matrona. - Não até que a viagem chegue a seu fim. Além disso, ela já tem ajuda. Os mortos a chamaram quando ela viajava para ajudá-lo e a escoltarão até que tenha êxito ou falhe em sua missão. Deixe-a ir, lobo águia. Ela deve averiguar quem e o que é.
Maeniel se sentou perto de Matrona, observou as ondas de a água atravessar as rochas cobertas de musgo e olhou para o outro lado do lago. Era precioso sob a luz do sol salpicada de nuvens, uma extensão de água a descoberto que refletia o movimento das mutantes nuvens de montanha em sua superfície.
—Quero mantê-la comigo - Disse Maeniel. – Eu a amo.
—Mantê-la a salvo ou mantê-la estúpida? — Perguntou-lhe Matrona entre risadas.
—Ambas as coisas, se for necessário. - Lhe respondeu Maeniel.
—Bom, No fim falhará em ambas as coisas e ela não agradecerá seus esforços.
—Isso é o que você diz. - Respondeu ele. Depois se converteu novamente em lobo.
—Não me desafie meu senhor - Disse Matrona.
Maeniel, maior inclusive que Matrona, se aproximou dela ameaçador e com as patas muito rígidas.
—Não me desafie. Não só porque poderia perder e é certo que poderia, mas porque se equivoca. Você escolheu este caminho, o caminho do progresso humano sob este rei. Adverti-o que já tinha tudo o que um homem poderia desejar. Bons amigos, uma bela esposa a quem mimar, prosperidade e inclusive uma pequena quantidade de poder e segurança. Mais do que a maioria dos mortais poderia chegar a alcançar. Mas não era o bastante. Tinha que se unir as lutas dos senhores da guerra. Bom, agora também alcançaste esse objetivo. O rei te espera. Fez um juramento. Mantenha-o. Eu me internaria nas montanhas, abandonaria o forte. Eu a veria falhar. Mas você, que é meu líder, escolheu aceitar. Faça honra ao seu juramento lobo, ou se arrependerá de tê-lo feito.
Maeniel se tornou humano novamente. Estendeu a mão para um dos caules carregados de frutas e o retorceu.
—Não faça isso. – Recriminou Matrona enquanto sentia como a angústia se elevava ao seu redor. - O musgo dedicou muito esforço aos seus corpos frutíferos. Não os danifique. Pegue o que queira quanto à fruta se refere, ao musgo não importa. Disseminá-los resulta inclusive de ajuda.
Maeniel dedicou a Matrona outro de seus longos e lentos olhares.
—você fala com musgo.
—Você fala com Audovald. Tem longas conversas com ele durante as quais discutem todo tipo de assuntos da granja. Quem está grávida, quem dará mais leite e se esta ou aquela gerará melhores produtos para elaborar queijo. Para não mencionar a intromissão nos assuntos pessoais do gado. O que preferem das éguas como grupo de liderança e amparo nos altos pastos, que fêmea entre as cabras, vacas, ovelhas, inclusive se a gata do estábulo se sente faminta ou poderá ter uma gestação difícil este ano, e sei mais o quê. Então, por que não posso falar ao musgo? Não o ofenda. As criaturas deste lugar nos oferecem hospitalidade, amparo e direção. Aconselham-nos sobre as melhores rotas para viajar. Vá ao seu rei. Escolheste-o desobedecendo meu conselho. Eu o servirei, lhe darei prazer e o protegerei por lealdade a ti.
—Sinto-me envergonhado. - Disse Maeniel.
—Não. Não está e amedrontará Regeane tudo o que puder assim que ela retornar. Você passou muito tempo como homem e está aprendendo hipocrisia, para não mencionar a cobiça.
O saxão, esperando no lugar onde prometeu Regeane, despertou de noite. A princípio não soube por que, mas depois viu os três cavalos. Pastavam perto das árvores a margem da clareira. Um deles, ele reconheceu; era Audovald, o cavalo zaino, escuro, anódino e de patas longas de Maeniel.
Sentou sobre as mantas.
—Cavalo, o que faz aqui? — Perguntou-lhe o saxão.
Audovald elevou a cabeça e tocou com o focinho o pescoço do cavalo mais próximo a ele.
Um animal pequeno, pensou o saxão. Mas depois, quando estudou o cavalo com maior interesse, notou que não era pequeno. Simplesmente estava tão bem proporcionado, que parecia, mas na realidade era maior que Audovald. Sua silhueta se recortava contra o brilhante céu.
Ele estudou ao saxão durante o que pareceu um longo momento, enquanto este bocejava e ficava em pé. Quando o saxão se levantou, o cavalo galopou colina abaixo para ele. Por um momento o saxão teve a inquietante impressão de que ele o atropelaria, mas ele parou quando chegou até ele e depois ficou ergueu as patas dianteiras. Se a criatura quisesse lhe fazer mal, não se imaginava por que. Mas depois notou que não, porque os cascos baixaram ao chão sem mais e ele levantou as patas diante dele como um cão quando é a hora de caçar, quando quer saudar um amo ausente ou simplesmente quando quer brincar.
—Amigo? — Perguntou o saxão.
O cavalo lhe roçou a face com o focinho, suave ao tato. O saxão lhe deu uns tapinhas no lustroso pescoço e o cavalo se ajoelhou, inclinando-se elegantemente sobre um joelho.
—O que? — Perguntou atônito o saxão.
O cavalo soprou. Parecia impaciente. Então, como ele não reagia, mordeu-lhe suave, mas firmemente na face interna de um de seus pés. O saxão era um cavaleiro adequado, mas não devoto. Jogou uma perna por cima do cavalo e este se levantou com ele. Depois simplesmente caminhou ao redor de seu fogo e foi até o riacho para pegar água. Bebeu até se fartar. O saxão massageou as crinas do cavalo.
Como ele pode controlá-lo?
Quando o cavalo terminou de beber, ficou quieto, espectador. O saxão pressionou ligeiramente com seu joelho direita. O cavalo se moveu para a esquerda. Se pressionasse com a esquerda, o cavalo se movia para a direita. Que maravilha, pensou o saxão. Golpeou ligeiramente com seus calcanhares os flancos do animal, que e começou a trotar. O saxão se inclinou para diante. O ritmo do cavalo aumentou. E então começaram a voar como o vento. Cruzaram um prado aberto, depois o cavalo freou enquanto passavam entre as árvores, mas uma vez entraram em um atalho, o ritmo do cavalo aumentou novamente até que passaram a linha das árvores e chegaram a terreno descoberto. Podia se ouvir o rangido da erva sob os cascos do cavalo; embora já terminasse o inverno, o tempo era o bastante frio para converter o rocio em gelo. O cavalo galopou com brio através da elevada pradaria de montanha e depois parou junto à margem, para olhar ao outro lado do mundo.
As montanhas se erguiam ao redor do saxão. Os picos nevados pareciam brilhar com sua própria luz interior. Acima deles, o arco da Via Láctea fluía como um rio de luz. Os vales profundos abaixo estavam afogados em uma sombra imprecisa. Nenhuma luz humana lhe estorvava a visão. Salvo pelo vento e o silêncio, o cavalo e ele estavam sozinhos.
O saxão não chegou, ou seja, durante quanto tempo ambos permaneceram absortos na presença da eternidade, a notar o ar mais frio e o interminável vento pareceu lhe roubar o calor do corpo. Sentia intumescido e meio congelado quando exerceu a ligeira pressão necessária para dar a volta ao cavalo, deixar o alto prado e retornar ao acampamento.
Quando o alcançou, descobriu que o fogo estava aceso. Maeniel e Matrona estavam ali. Ambos estavam vestidos.
O saxão notou que o outro cavalo era a égua de Matrona. O saxão desmontou e começou a limpar sua montaria usando seu próprio manto. Quando se aproximaram mais do fogo, ele notou que o cavalo era um ruano cor fresa com as patas, nariz e a cauda mais escuros. Descobriu que não necessitava nem de rédea ou corda para levá-lo. Bastava colocar uma mão sobre seu pescoço e indicar a direção. Estava lhe esfregando as patas quando Maeniel se aproximou.
—Tem algo a me dizer, meu senhor? —Perguntou-lhe o saxão.
Ambos sabiam o que queria dizer. Regeane, com a cumplicidade do saxão, havia lhe seguido de toda forma.
Maeniel suspirou. Quaisquer que fossem os motivos do saxão, ele era fiel e honorável. Não, isto ficava entre o Regeane e ele.
—Tenho uma mensagem de Audovald. - Disse Maeniel.
—Audovald? — As sobrancelhas do saxão se arquearam. - Audovald é seu cavalo.
—É.
O cavalo inclinou o nariz novamente e roçou a face do saxão como se quisesse dizer, ouça. O saxão se levantou. Era um homem grande, mas o cavalo era dois palmos mais alto que ele.
—Audovald, - continuou Maeniel, - me disse que o cavalo vem de um lugar longínquo no qual os guerreiros são companheiros e amigos de suas montarias e não lhes causam dano. Mas seu humano foi assassinado e a família o vendeu em um lugar estranho. Não se deixava pôr brida nem sela e muito menos bocado. Então que o torturaram, mantiveram-no acordado e insuficientemente alimentado e lhe surraram para tentar dobrar seu espírito. Ele fugiu e não puderam capturá-lo, mas lhe resultava muito duro viver sozinho. Os humanos sempre haviam cuidado dele. Audovald o encontrou nos altos pastos. Disse-lhe que conhecia um humano que o entenderia. Você é o homem, ou – continuou Maeniel, - deveria dizer, é você o homem?
—Sou. - Respondeu o saxão. E se dirigiu ao cavalo. - Só haverá confiança entre nós.
—Seria recomendável lhe pôr uma manta - Disse Matrona. - Para proteger seu lombo e seu traseiro.
O cavalo soprou levemente.
Audovald se voltou para o Maeniel.
—Ele aceita. - Disse Maeniel.
O cavalo relinchou e levantou as patas dianteiras para dançar ao redor do fogo.
—Ele está contente. - Disse o saxão. - Já não está sozinho.
—Nem você tampouco. - Disse Matrona.
—Pergunte seu nome. – Pediu o saxão a Matrona.
—Ele lhe permite lhe dar um nome quando estiver preparado. - Respondeu ela. - Enquanto isso cavalgue até o outro exército, que o tio de Carlos Bernard dirige. O lobo cinza o guiará. Amanhã ele terá que atacar Suas. O lobo pode mostrar aos dois o caminho a seguir.
Bernard, o tio de Carlos, ainda estava em Ivrea. Nesse momento ele estava sentado junto ao fogo em uma clareira sob um alto pico montanhoso. Apesar do fogo, ele seguia com frio, tanto que estava envolto em uma pesada capa, o objeto multiuso de todo o mundo, do escravo ao imperador. Um homem sem esta combinação entre montaria, casaco, impermeável, esconderijo de armas e, em geral, meio de sobrevivência era realmente desafortunado. De fato, o termo geral que usavam os francos para denominar a pobreza era nu, as costas nuas, em concreto. A capa de Bernard não tinha nada de diferente. Era bastante similar a dos soldados que o rodeavam. Ele havia aprendido tempo atrás que era um disparate se engalanar esplendidamente para a batalha.
Ressaltava.
O inimigo o caça e te assassina.
O incentivo acrescentado que supõe matar, além de ganhar a batalha, consiste em possuir seu magnífico traje. Assassinar um aristocrata podia converter um soldado a pé, que normalmente não possuía sequer uma boa espada, em um homem endinheirado. Ele havia aprendido com o pai de Carlos, Pipino o Breve, um homem que reprovava constantemente o mundo, por causa de sua baixa estatura. Qualquer soldado bem vestido, à margem do importante de suas conexões, era automaticamente açoitado através de pântanos, rios, lagos e em caso de seca, colocado a cavar latrinas para o exército. A inveja permanente de Pipino, de todos e tudo, o convertia em um indivíduo já por si só difícil de lidar dia a dia, assim era preferível que ninguém saísse de seu caminho para incomodá-lo. Bernard aprendeu logo a se vestir com coloração protetora.
Bernard estava preocupado com Carlos ou melhor, pelo com o que Carlos lhe faria se não pudesse atacar as forças lombardas à alvorada, como estava previsto. Diziam que Carlos tinha um caráter um tanto melhor que o de seu pai, mas era, em um cálculo aproximado, o dobro de cruel. Nem Bernard ou nenhum de seus oficiais queria pensar no que ele faria se não conseguissem manter sua entrevista de amanhã.
Os oficiais, todos homens jovens, mostravam tendência a afogar suas dores no jantar, e estavam dormindo. Mas Bernard, que não tinha nem cabeça nem estômago para beber muito vinho, permanecia sentado, acordado e preocupado. Quando Carlos atacou Suas, Desidério tinha atuado como se esperava, retirando suas forças de Ivrea.
Bernard tinha chegado para encontrar completamente despreparada a simbólica guarnição que Desidério tinha deixado atrás. O que seguiu foi uma matança, mais que outra coisa. Algo ou alguém tinha conseguido provocar a correria dos cavalos da guarnição. Seus homens e ele invadiram a posição do inimigo naquela ruinosa fortaleza romana. Podia ser que os defensores se rendessem se ele tivesse perguntado, mas Bernard não se incomodou em averiguar. Matou a todos.
Após, as coisas tinham saído errado. Bernard tinha partido para Suas com um exército. Perdeu. Tinha seis oficiais e estavam bêbados. Havia pensado que encontraria guias. Como recompensa pela matança da fortaleza, Bernard descobriu que todos os habitantes dos arredores se alongavam abruptamente ao ver seu exército. Depois a névoa, uma característica primaveril das cálidas terras baixas perto das frias montanhas, se fechou. O pânico se estendia facilmente em todos os exércitos e este começou a beirar o limite do descontrole. Bernard temia pressioná-los muito. Então ali estava, congelando o traseiro junto a um fogo miserável, rodeado de soldados bêbados e exaustos e perguntando que demônios iriam fazer pela manhã.
Já que se considerava bem camuflado, se surpreendeu quando um homem surgiu da escuridão e lhe chamou pelo nome. A mão de Bernard se fechou por reflexo sobre o punho de sua espada. Estava sozinho, sem contar o autêntico tapete de homens adormecidos que o rodeava e durante um segundo se perguntou se ia ser assassinado n o meio de seu exército sem que ninguém o ajudasse, quando reconheceu o saxão.
Não que isso o consolasse muito. O saxão era um tipo grande e perigoso e não parecia apreciar muito os francos.
—Meu senhor Maeniel te envia seus cumprimentos. - Disse o saxão. - E viemos para levá-los até Carlos.
—Vieram? — Perguntou Bernard, tentando de ocultar o profundo e completo alívio que sentia.
O lobo maior que ele já vira saiu das sombras junto ao saxão.
—Vieram? — Voltou a perguntar Bernard.
—Sim, levante seus homens. Já quase é de dia. Iremos antes que saia o primeiro raio de sol.
—Confio em que não me conduzirão a uma emboscada?
Os olhos do saxão se estreitaram ligeiramente.
—Cavalgarei lado a lado contigo. Se for assim, serei o primeiro que matarão.
—Sua confiança nos criados de seu senhor é certamente poderosa.
—Minha confiança, — ressaltou o saxão, - em meu senhor é poderosa.
Depois se voltou, deixando que Bernard tirasse limpo o que pudesse de tal afirmação.
Bernard não queria pensar sobre as implicações. Ouvira histórias sobre Maeniel... Sua esposa... E seus amigos.
Perto de seu joelho havia uma cuba de madeira cheio de vinho aguado. Estava frio. Bernard tomou um longo trago. Depois, pegou a cuba pela asa e foi despertar seus homens. Decidiu levantar primeiro seus oficiais.
Bernard não era nenhum estúpido. Carlos era seu sobrinho. A fortuna da família perduraria ou se perderia com ele. Tal como eles haviam retirado os cabeludos reis megrovianos, algum dos outros magnatas podia retirá-los também. Seu rei necessitava dele desesperadamente. Inclusive se o demônio se apresentou para lhe prometer levá-lo até o rei em troca de sua alma, Bernard não o teria rechaçado. Bernard levou todos os homens que pôde e deixou que a infantaria se atrasasse. Se os scarae não podiam lutar, ninguém poderia. Se ganhassem, infantaria podia acabar o trabalho. Se perdessem, os homens ficariam sozinhos e teriam que sobreviver como pudessem.
Quando o mundo começou a se iluminar ao seu redor. Bernard notou que a névoa havia retornado, para pior. O saxão apareceu ante ele sobre um magnífico cavalo ruano, mas Bernard notou, para seu desassossego, que o cavalo não tinha nem brida e nem sela no lombo. O saxão cavalgava sem rédeas e o cavalo era um semental. Mas Bernard não fez mais perguntas.
—O atalho é estreito. - Disse o saxão. - Diga a cada homem que siga o que está adiante, que mantenha o ritmo e que não se perca.
—Ouviram? - Gritou Bernard.
Depois, depois de algum tipo de sinal do saxão, ou alguma outra coisa que Bernard não pôde ver, o ruano se voltou e os conduziu fora da névoa. Bernard fez o sinal da cruz e os seguiu.
—São loucos ou bruxos. - Disse um de seus oficiais.
Antes que alguém pestanejasse, a espada de Bernard saiu da bainha e no mesmo movimento, decapitou ao homem.
—Alguém mais quer fazer um comentário? — Bernard mostrou os dentes ao resto dos homens. Não se parecia nada com um sorriso.
Ato seguido ele se voltou. O ruano que montava o saxão parou, voltou-se por completo e o olhou, com seu olho animal. O saxão deu uma olhada ao cadáver sem cabeça que ainda estava sentado em sua sela. Bernard golpeou o peito do cadáver com a base da mão e o morto desabou.
A névoa era tão espessa que não se pôde ver como ele caía ao chão. Mesmo enquanto observava as transbordantes nuvens de vapor que quase ocultavam o saxão.
—Vamos. - Disse Bernard. - E, se por acaso não entenderam ainda, eu poderia ensinar ao diabo um par de coisas. Assim não me provoquem. Agora, se mova.
Eles correram a atendê-lo.
Lucila seguiu Adalgiso através da noite. Esperava que ele soubesse para onde se dirigia; ela não fazia idéia. Perto da alvorada, ela se deu conta de que Stella havia morrido. Soube por que a presença de Stella lhe fez uma breve visita, para lhe agradecer por ter levado os dois homens que tinham significado sua desgraça e para dizer que jazia tranqüila nos braços de Ansgar, o homem que, apesar de tudo tinha sido seu único amor.
Era inútil chorar. Estavam açulando seus suarentos cavalos para tirar os últimos quilômetros das exaustas bestas. As árvores que margeavam o desigual traçado eram somente sombras sob as estrelas. Cada vez que as montarias freavam um pouco, Adalgiso amaldiçoava Lucila e golpeava o cavalo dela com sua vara. Lucila se precaveu de que não a golpeasse. Havia conseguido aleijar e talvez matar Eberhardt e o querido Dagobert não havia sobrevivido durante muito tempo depois que lhe dedicara um longo e vingativo olhar. Então acreditava que Adalgiso podia ter um pouco de medo dela. Além disso, a tristeza que sentia pelo fim de Stella chegava até um lugar profundo. Um lugar dentro de seu ser que não sabia que lágrimas eram para considerar unicamente como um sinal de debilidade. Não. Ela prometeu a presença de Stella que o porco que cavalgava diante dela e toda sua família se arrependeriam eternamente do que lhe tinham feito. Sua frágil beleza não se desvaneceria no pó sem ser vingada. A presença de Stella não fez nenhum comentário sobre a resolução de Lucila, mas lhe pareceu dizer: Que a paz seja contigo. Eu encontrei a minha. Que Deus te abençoe e a mantenha a salvo. Depois desapareceu.
Lucila seguiu cavalgando através da noite. Deixara o manto no monastério, sob o corpo de Stella, mas a aquecia o frio ódio que sentia no coração. Adalgiso e ela chegaram a Jovis perto do amanhecer. Apesar da hora, os habitantes da casa estavam acordados e em movimento. O encarregado da vila a colocou imediatamente à disposição do Adalgiso.
Conduziram Lucila, que começava a notar sua idade, aos banhos. A água estava morna. As donzelas dos banhos eram duas garotas camponesas que pareciam capazes de lutar corpo a corpo com um touro. Lucila sequer pensou em escapar. Levaram sua roupa para lavar e entregaram uma camisa de linho e um vestido de lã escura.
Ambos os objetos eram amplos e o vestido possuía um brocado de seda amarela com um desenho que Lucila observou com surpresa. Acanto? Não, folhas de alcachofra. Seguidamente, as duas garotas a levaram até um quarto que dava para o pátio interior da vila. A luz entrava através de quatro janelas de trifólio na parte superior das paredes. As janelas tinham barrotes por fora, como à porta. Mas no interior, Lucila encontrou uma bandeja com pão, queijo fresco, vinho, passas e uma terrina de sopa de cebola.
Lucila não tinha apetite, mas logo que provou o vinho e um pouco de pão, sentiu uma fome voraz. Não pôde parar até consumir a última migalha. Quando tentou se levantar, cambaleou. Caminhou até a cama e dormiu antes de tocar o travesseiro.
Um grito a despertou.
Lucila ficou em pé antes de se despertar por completo. Chegou até a porta e a abriu sem pensar. Por que não estava fechada?
Adalgiso estava em pé no vestíbulo, lutando com a garota que, evidentemente, havia lhe levado o jantar... A bandeja estava sobre uma mesa ao lado da porta de seu aposento.
Oh, Deus bendito, pensou Lucila. Descanse um momento. Nesse momento a garota voltou a gritar, depois se encolheu no chão com as costas contra a parede e chorava. A luz do pátio era azul e Lucila calculou que devia ter dormido todo o dia. Adalgiso seguia em pé, observando a mão.
—Zorra! – Ele gritou. – Você tem unhas afiadas. Farei com que a açoitem, pequena... —Ele mordeu a língua ao ver Lucila ali fora. – Ela me arranhou. Só queria um pouco de companhia. – Ele fez uma careta de dor. - Puta! — Ele voltou a gritar. - Apostaria que não sou o primeiro a colocar a mão sob sua saia.
A garota olhou para cima, assustada e zangada e lhe respondeu com um jorro de palavras em um dialeto que obviamente ele não entendia. Lucila a entendeu. Parecia que a garota havia crescido perto do povoado da montanha aonde tinha nascido Lucila. Ela balbuciava algo sobre estar dolorida e sangrando.
—A pequena imbecil é tão atrasada que não sabe falar latim de verdade. - Ladrou Adalgiso.
—Espere... - Disse Lucila com calma. - Eu a entendo. Perguntarei qual é o problema. Como se chama?
A garota secou os olhos com o dorso da mão.
—Lavínia.
—O que aconteceu?
—Ele quer que me deite com ele, mas não posso... Não posso... Estou sangrando... Há duas semanas minhas regras não... Estavam atrasadas e então me assustei. Tomei uma poção. O período me veio ontem à noite com sangue e cãibras. Dói-me tanto que acredito que se me tocar, eu morrerei. A cozinheira só me mandou para lhe trazer o jantar. Estou imunda e suja. Uma dúzia de homens me possuiu na semana passada. Eles usam as escravas da casa para manter se contentes. Estive no estábulo com as outras mulheres toda a semana passada. Não sei quantos homens me possuíram... Quando tomei a poção... Acredito que estava criando... Não quero que me esmaguem o crânio. Isso é o que fazem aqui: esmagam o crânio e atiram no velho poço.
—Sim. - Disse Lucila. - Agora seque as lágrimas não fale mais e volte para a cozinha. Eu explicarei ao cavalheiro.
A garota não se levantou, arrastou-se com um ombro apoiado na parede, até ficar fora do alcance de Lucila e Adalgiso; depois ficou em pé e correu.
—O que estava tagarelando? — Perguntou Adalgiso.
—Suas regras acabam de chegar. – Ela tem cãibras e sangra.
Já era quase de noite. O último raio ruborizado de sol desvanecia no céu. Os vaga-lumes dançavam sobre os canteiros de flores do pátio. Havia uma vela acesa sobre a mesa ao lado da qual se encontrava a bandeja de Adalgiso. Este estudava Lucila intensamente sob sua luz. A camisa que ela usava sob o vestido de lã era semitransparente. Sobre ela, o grosso vestido tinha sido feito para uma mulher muito maior que Lucila, então a abertura dianteira do pescoço lhe chegava quase até a cintura. De ambos os lados se viam seus seios pálidos unicamente cobertos pela fina gaze de linho. Ele os olhava fixamente.
—Não são iguais. – Ele disse.
—Não. - Respondeu Lucila. - Falta parte de um. Ela afastou o vestido de lã e mostrou a cicatriz do peito. Haviam lhe destroçado o mamilo.
—Isso deve ter doido. - Disse Adalgiso enquanto lambia os lábios.
— Doeu.
Um segundo depois, ele se inclinava para lhe sugar o seio ferido enquanto lhe mordiscava a malha cicatrizada. Quando se afastou estava ruborizado e suas veias das têmporas e o pescoço palpitavam, sobressaíam como cordas.
—O que usaram?
—Tenazes de fogo no mamilo.
Ele ronronou.
Lucila baixou o braço e pegou seu membro, envolvendo a ponta com sua mão.
—Oh! Não. - Mas não parecia lhe incomodar sua ação. – Siga mantendo-o ereto. – Ele sussurrou. - Vou me desmanchar.
—Isso seria uma lástima. - Disse ela. - Uma ferramenta como a tua deve ser usada, saboreada e desfrutada até que, por fim, lhe permita descansar.
Introduziu-o em seu aposento e trancou a porta. A camisa e o vestido aterrissaram no chão um segundo mais tarde. Depois lhe conduziu até a cama. Por que não fez isto antes que o imbecil do Dagobert assaltasse Stella? Pensou Lucila com fúria. Por que este estúpido monte de merda de porco teve que se fazer o homem entre os homens? Mas por que deveria esperar outra coisa dele?
Não havia nada em sua personalidade que parecesse remotamente a discrição ou ao bom julgamento. Que um idiota fizesse o idiota não resultava surpreendente.
Manobrou-o para colocá-lo sobre cama. Ela ficou em cima.
—Deixe que controle as coisas. – Ela disse.
—De acordo, mas você tem que me contar tudo o que lhe fizeram. Tudo. Quero ouvir enquanto...
—Fodemos? — Sussurrou Lucila.
—Sim, sim, enquanto fodemos... Essa palavra é bela. Foder. – Ele riu.
Lucila apertou alguns músculos estratégicos. Ele gritou, arqueando seu corpo contra o dela.
— Terminei! - Disse ele; parecia quase atônito.
—Oh, não, meu querido. Não tem feito mais que começar.
Ele voltou a gritar surpreso enquanto ela apertada os músculos tão bem treinados e ele sentia seu corpo responder.
—Oh, Deus! – Ele ofegou. - Quando chegarmos a Verona tenho que encontrar um lugar onde te esconder. Se ela se inteirar... Matará-nos.
Em algum lugar de sua mente, Lucila ouviu um alarido triunfante tão ensurdecedor, que lhe surpreendeu que Adalgiso não pudesse ouvi-lo também. Sabia. Ela sabia. Agora devia passar a mensagem a Adriano. E logo ela se dispôs a proporcionar a Adalgiso o melhor momento de sua vida.
Uma vez terminado com ele, Lucila se levantou e retornou ao seu quarto. Deixou-o dormindo como um cadáver. Havia abarrotado-o descaradamente de comida, bebida e sexo o suficiente para deixá-lo mais flácido que um macarrão cozido. Pensava que ele não despertaria antes que se tornasse dia. Ela passou o ferrolho na porta quando entrou em seu aposento e encontrou os três objetos que havia conseguido esconder, apesar dos vigilantes olhos das donzelas dos banhos.
Agora, a quem subornar? Estava meditando quando ouviu um tímido golpe na porta. Lucila resmungou um palavrão, mas conseguiu sorrir, se por acaso fosse Adalgiso. Mas era a criada Lavínia. Ela entrou com uma bandeja com frango frio, sopa, pão e um pouco de queijo.
—É tarde. - Disse Lucila surpreendida. - A cozinheira ainda está em pé?
—Não, mas eu agradeço o que fez por mim e perguntei se podia lhe trazer algo quando você e... O senhor... Tivessem terminado. A cozinheira, que é boa comigo fez isto e quando a vi voltar de lá...
A cara da garota estava vermelha e torcida à luz do abajur. Parecia que estivera chorando muito.
—Qual é o problema? Tanto te dói? — As donzelas dos banhos não tinham conseguido tirar de Lucila seu pequeno fornecimento de remédios. De fato, negaram-se a tocá-la pensando que ela era uma bruxa. Talvez pudesse dar algo à pobre menina. Um pouco de láudano, talvez. Pelo menos lhe permitiria dormir tranqüilamente uma noite.
Uma voz amável era mais do que a menina podia suportar. Ela começou a chorar novamente.
—Odeio. Odeio estar aqui. Ontem à noite tentei me enforcar, mas... Pular. Não pude. Não pude, mas me disseram que se beber o bastante no palheiro... Algumas das garotas os fazem pagar e ter umas quantas moedas de cobre para comprar uma jarra de vinho grande. Mas não posso beber o bastante para ter a coragem de passar uma corda no pescoço e pular para frente.
Lucila abraçou a mocinha e esta se derrubou por completo, chorando de uma forma que parecia rasgar todo seu ser. Lucila sabia do que falava a menina. Ela lhe recordava seu próprio passado mais vivamente do que teria querido. Nos lupanares de Rávena tinha visto garotas se suicidarem da forma que Lavínia descrevia. Atavam uma corda ou mesmo um pedaço de tecido em algo baixo, até ao respaldo de uma cadeira e o enrolavam no pescoço e depois se inclinavam para frente. Uma vez ela falara com uma garota que havia feito e acudida a tempo. O primeiro minuto requer coragem, mas depois sob pressão curta o sangue que sobe para a cabeça e chega o sono. Em pouco tempo, a morte. E só para provar o quanto era fácil, a garota se matou uns quantos dias depois seguindo o mesmo método. Desta vez não a encontraram até que foi tarde. Realmente muito tarde.
—Dizem que você é uma bruxa. - Ofegou a menina. - Vendo o que fez ao senhor, acredito que deve ser. De me alguma coisa para beber. Algo para que possa me fazer dormir e não despertar nunca. Eu era uma boa garota quando estava em casa. Uma boa garota. Agora me sinto suja. Sempre estão em cima de mim. Fiz um bebê. Sei que o fiz, mas o matei porque não queria ver como eles o matavam. Não posso agüentar mais este lugar. Preferiria morrer.
Lucila levou a garota até a cama e a sentou.
—Por que não foge? — Perguntou-lhe.
— Já tentei... - A garota começou a tremer violentamente. - Me pegaram. Fui para casa, mas não havia ninguém ali. A casa onde vivíamos... Estava vazia. Inclusive a vila próxima havia desaparecido. Só restaram o vento, os pinheiros e o silêncio. Não sabia o que fazer. Fiquei ali dormindo junto à fria lareira até que eles chegaram. Olhe minhas costas.
Lucila o olhou e estremeceu. Ela tinha as costas cobertas de cicatrizes. Quase parecia queimada.
—Marcaram-me. Não fugirei novamente. Não tenho aonde ir.
—Eu poderia te dar um lugar aonde ir. - Disse Lucila.
Uma vez, quando se mudara para sua vila em Roma, ela encontrou um gato meio morto de fome vivendo no jardim. Quando lhe ofereceu comida, o animal não se atreveu a se aproximar do prato, mas quando ela se afastou, ele se equilibrou sobre ele. A expressão na cara do animal faminto se parecia muito com a da garota, aterradora pelo profundo desespero que mostrava.
—Pode... Farei o que quer seja. – Ela caiu de joelhos. - O que seja.
—Leve uma mensagem a Roma. — Lucila tinha um anel que todos os seus amigos íntimos conheciam. Um camafeu de Adriano. Ela o entregou a garota com um pouco de prata envolta em um tecido. – Ouça-me com atenção. – Ela lhe disse. - Quando chegar à cidade, se dirija pela manhã, onde as mulheres que tiram água das fontes. Pergunte pela vila de Lucila. Pode ser que ouça comentários ofensivos sobre mim ou que não. Quem sabe? Mas se ouvir não prestes atenção. Vá à vila; este anel garantirá sua entrada. Fala com Susana, minha donzela. É a guarda da vila e pode confiar nela por completo.
—Sim. - Disse a garota avidamente.
—Me repita o que eu disse...
A menina o fez, palavra por palavra.
—A mensagem é só uma palavra. Só uma palavra, mas você deve recordá-la. Perfeitamente. Entendeu?
—Sim. Entendi. Qual é?
—Verona.
—Verona. Isso é tudo?
—É o suficiente. Só Verona. Se não conseguir encontrar Susana, procure Dulcínia.
—Dulcínia, a cantora?
—Já ouviu falar dela?
—Sim. Todos conhecem Dulcínia, mas estamos falando de gente famosa, minha senhora. Receberão-me?
—Mostre o anel e a receberão. Se não encontrar ninguém, procure Simona, a mãe de Póstumo. Não é nem rica nem famosa, mas será uma amiga para você.
Capítulo 11
Quando ela Chiara entraram no mundo do urso ouviu seu rugido de fúria e terror e ela soube, com certo regozijo, que ao entrar em seu mundo provocava o mesmo sentimento de violação que os humanos sentiam quando ele tentava controlá-los. E então se viu movendo muito rápido através de um terreno plano e era parte dele, o sentido da dimensionalidade desvanecia. Regeane era uma luz que se retorcia saindo e entrando de um labirinto, movendo-se a grande velocidade para... O que?
Não tinha nem idéia; e então começou a se assustar e tentou reduzir seu avanço, mas se deu conta de que não podia. Viajavam muito rápido, afastando-se de sua própria vida e de seu próprio mundo, as imagens passavam voando ao seu lado em uma confusão de movimento. A face de sua mãe, Gundabald açoitando-a em Roma, o Papa, Lucila, Maeniel. Então eles desapareceram. Aqueles que ela havia amado, odiado e temido desapareceram. E ela seguiu avançando... Arrastada? Avançava ainda mais rápido. Sentiu a união mulher e loba e loba e mulher. Tentou gritar. Seu estômago se revolveu e ela vomitou. A dor das contrações de seu estômago a reuniu com seu corpo durante um segundo. Depois ela se converteu na mulher loba... Já que era ambas, se deu conta assombrada, que não a uma ou a outra, não só uma das duas. Então seus músculos se bloquearam. Ela se desprendeu de seu corpo, como uma cigarra se desprende da carapaça depois de passar longo tempo enterrada na terra ou como uma mariposa que se desprende da larva. Mesmo como um pássaro que abre caminho a bicadas, para sair do ovo.
E viu a árvore. Não pode ver o carvalho, nem o pêssego em sua semente venenosa de grossa casca, mas em sua vida, em seu ser. Conhecer a figura, a forma que adquire, não significa que a conheça. Nem tampouco basta lhe dar um nome e recordar suas partes. A raiz, o tronco, os anéis, as folhas, a fruta, o corpo nu no inverno, o vestido verde na primavera ou mesmo o número de folhas que perde durante os fortes ventos do outono. Não conhecerá árvore por nenhuma destas coisas, porque o universo é uma árvore e por isso se plantou o Irmunsul dos saxões, para recordar que somos parte da árvore da vida e que ele é parte da terra e que a terra é parte do universo e, a não ser que compreenda todo o resto, a árvore seguirá sendo um mistério.
O universo explorou vida ao redor de Regeane. Ele o notou como parte da singularidade que constitui seu espírito e seu começo. Entrou em erupção. Não como um vulcão, mas como uma flor que se desdobrava em torno dela. Mundo sobre mundos, um junto ao outro como os anéis de crescimento de uma árvore. E os seres que pertenciam a cada um dos mundos não sabiam nada e não podiam saber nada uns dos outros. Mas todos eram parte da árvore, a singularidade pertencia a suas raízes. Algumas coisas se moviam entre os mundos e... Ela... Ela era uma delas. O urso era outra. Podia possuí-la tanto como um homem podia possuir as imóveis estrelas. Ela era seu igual e, em alguns aspectos, seu superior.
Insustentável como o instante do orgasmo na carne, assim era para a mente. Insustentável, cegava em uma luz tão brilhante que fechava o olho da mente com sua glória pura e absoluta.
—Não posso... Não posso! - Gritou Regeane.
E retornou de volta ao seu corpo, mulher, curada e completa entre as videiras, envolta na estranha hera com folhas lobuladas que cobria as pedras caídas das ruínas. Podia observar, como uma dupla imagem superposta à massa de trepadeiras, o que o edifício uma vez fora para os romanos e, antes disso, a ponte que atravessava um rio selvagem e além, um lugar onde não havia rio e o mar lambia uma pálida margem arenosa não muito longínqua.
—Pare! - Gritou Regeane. - Pare! — E tudo parou. Ela se sentou apoiando as costas em um bloco de pedra enquanto fitava Armine deitado de barriga para baixo junto a um arco entre a enredada erva e ao urso, nos braços de Chiara. Estava dentro de Hugo.
Os mortos estavam espalhados ao seu redor.
—O que aconteceu? — Perguntou Chiara. - Aonde fomos?
—Acredito, - disse o urso, - que acabo de receber uma lição sobre minha própria inconseqüência.
—Não acredito. - Disse Regeane. - Não, não acredito absolutamente. Mas estou... Dêem-me um pouco de roupa.
Chiara lhe passou seu manto.
—O que está fazendo aqui? — Rugiu o urso se dirigindo a Chiara.
—Ora, cale-se. - Disse ela e depois olhou para seu pai que estava tentando sentar. O estalo de energia que Regeane havia liberado ao tentar se fundir com o urso o ajudara também. Seus braços estavam muito danificados, mas já não estavam quebrados. Entretanto, ele estava enjoado e pálido e sofria com vários ferimentos menores.
—E cale-se você também. - Disse Chiara a Armine, cruzando os braços. - Se os dois tivessem morrido, para esses homens eu só seria uma coisa que usar ou vender e o dinheiro do rei tria ganhado. Então se calem... Calem-se de uma vez. Além disso, quero saber o que me aconteceu.
—Não sei. - Disse o urso. - Acredito que nos ofereceu uma espécie de... Visão. Viram meu mundo de alguma forma.
Regeane estava calada. Estava profundamente emocionada com o que tinha visto. Havia chegado mais longe que Chiara e o urso.
—Posso ver... - Disse o urso a Regeane. - Qualquer tentativa futura para pegar você ou o lobo cinza seria fútil. Não sei se uma tentativa assim seria prática com Chiara. Ela... —Ele fitou-a. - Tem algum tipo de talento. Ela disse — Ele voltou-se para Chiara. – Você disse que me amava.
—Isso é porque te amo. — Ela parecia rebelde e teimosa ao mesmo tempo. - Mas não deixe que isso te dê nenhuma idéia. Sou filha de meu pai e não me vou atirar sem mais, nos braços do primeiro espírito malvado errante que se presente. Espero alguma segurança, algo mais na linha de um acordo e não um monte de promessas vazias.
—Agora se cale você. - Disse Armine. - O urso e eu fizemos um acordo sobre seu futuro.
Chiara lançou um olhar assassino aos dois e depois se dirigiu aos tropeções para a estrada.
Encontraram Gimp descansando apoiado em um poste quilométrico, dormido.
—Malditos! Levaram os cavalos. - Disse Armine. - Nem sequer pode confiar os cavalos aos seus cuidados.
—Não lhe pode deixar cuidar nada. - Grunhiu o urso.
Depois ele sentou Hugo. Os olhos de Hugo ficaram em branco e seu corpo desmoronou.
Regeane olhou para Hugo.
—Agora sim. Parece o Hugo. – Ela disse. - Quando o urso está dentro dele, até parece alguém distinto.
—É. - Disse Armine mal-humorado. - A criatura, demônio ou o que seja me disse que o cérebro de Hugo virou mingau. Um raio o acertou durante a tormenta. Hugo se foi. Não estou completamente seguro de acreditar em tudo o que essa criatura deseja que eu acredite quando não está presente. – Ele disse assinalando o corpo de Hugo. – Ele não mostra signos de consciência.
Chiara voltou e entregou a Regeane um vestido e uma camisa. Regeane se voltou para as ruínas, para se trocar. Esperava cavalgar junto a eles durante algum tempo, mas antes de, dedicou um lento sorriso de satisfação para Hugo. Parecia que Hugo iria viver uma longa, saudável e próspera vida... Algo pelo qual não teria a alguns anos.
Quando retornou para junto dos outros, Armine, Chiara e o urso conversavam entre eles.
—Pode fazer o que o vi fazer em Florença?
—O que? — Perguntou o urso.
—Deixar o corpo de Hugo e entrar em... Digamos... No escritório de um competidor enquanto ele leva a cabo seus negócios?
—É obvio.
—Ah, Hugo, então? Hugo?
—Por que não? - Respondeu o urso.
—Espero que não tenham matado também... Refiro-me aos homens que nos escoltavam.
—Não. - Disse o urso imediatamente. Ele segurava as rédeas dos quatro cavalos. - Estão a pé e... — O sorriso do urso era taciturno, como pouco. - Acredito que provavelmente ainda estejam correndo.
Chiara bufou, mas parecia satisfeita.
—Meu querido Hugo! - Disse Armine. - Acredito que este pode ser o princípio de uma bela amizade.
Matrona se aproximou da casa de Carlos umas quantas horas mais tarde. Vestia uma túnica longa e vaporosa de linho branco. Usava abundantes brocados de ouro no pescoço e nas mangas.
O scarae da entrada a viu. Era Arbeo, que fora carcereiro de Maeniel quando ele se entrevistou com o rei pela primeira vez.
—Ele não quer ver ninguém minha senhora, mas me disse que viesse a deixasse entrar. Foi uma tarde terrível. Os conselheiros do rei estiveram aqui, todos gritando e discutindo para que nos retirássemos, dizendo que o plano do rei havia falhado. Que vamos perder. Que devemos mudar a retirada ou atacar com todas nossas forças, amanhã. O rei não lhes deixa fazer nenhuma das duas coisas. Diz que não esbanjará suas melhores tropas ainda... —Arbeo se interrompeu porque Carlos estava em pé atrás dele.
—Cale-se! - Disse Carlos e acompanhou Matrona para o interior da casa.
Ela entrou e se sentou em uma cadeira dobradiça. A maquete que Antonius havia construído enchia por completo a metade do aposento. Junto à maquete havia uma mesa com vinho e alguns pedaços de carne fria.
Carlos gesticulou para a mesa.
—Vinho? Comida?
—Não. - Disse Matrona.
—Bem? — Perguntou-lhe ele.
—A guarnição de Ivrea já não existe. Eu fiz fugir os cavalos. Bernard acabou com eles. Até o último homem foi assassinado. Ninguém escapou para advertir Desidério.
Carlos assentiu.
—O senhor Maeniel está com Bernard. Atacará à alvorada. Seu exército avança neste mesmo momento. Surgirá da névoa matinal e pegará Desidério pelo flanco. Seu plano funcionou, meu rei. Em breve será dono do reino lombardo.
—Oxalá estivesse tão seguro como você. - Respondeu Carlos e se dirigiu a jarra de vinho da mesa e a levantou. O objeto era romano; uma procissão gravada em alto relevo ao redor da jarra, ninfas e sátiros pulavam juntos sob os ritos de Baco.
—Estou segura. - Disse Matrona. - Olhei em meu espelho e vi o que será.
A asa da jarra era um espinho de flor de acanto. A mão de Carlos descansava sobre ela.
—Um objeto precioso, embora pagão. Profundamente pagão. Como é você e seu senhor, senhora Matrona. Se eu ganhar, farei com que fundam esta preciosa jarra pagã e que a convertam em um relicário para os ossos de um santo qualquer. Sabe onde a consegui?
—Provavelmente a tiraram dos saxões quem, sem dúvida alguma, a roubaram de outros. - Disse Matrona.
—Sim, estava enterrada onde.. Eu a adquiri quando destruí sua árvore sagrada, Irmunsul. Então lhe dei uma trégua enquanto me servia, mas decidi ganhar o mundo para Cristo e as coisas pagãs já não têm lugar aqui.
—Sim.
—Então aceite a Cristo e conduza seu senhor e sua bela esposa até a pilha batismal, e eu encontrarei uma elevada posição em meu reino para você.
Matrona sorriu.
—Acredita que um banho em uma piscina congelada e um pouquinho de mau latim murmurado por um bispo mudará em algo nossas naturezas essenciais?
Carlos parecia incômodo.
—Meu rei, eu serei direta. A estas alturas de sua carreira, não podem lhes permitir falhar. Um rei que enguiça só tem um lugar onde cair, e esse lugar é sua tumba. Meu senhor lhes concedeu a vitória e pagou um grande preço por isso. Permita-lhe desfrutar de um pouco de paz em troca. É tudo o que lhe pede. Atacaram os saxões e destruíram a árvore sagrada porque necessitavam de dinheiro com o qual contentar aos seus nobres, que poderia ter aliado com a esposa de seu irmão, se tivesse contido sua generosidade quando ele morreu. Atacaram os lombardos porque necessitavam de uma vitória.. Uma grande vitória, para impressionar os magnatas mais poderosos do reino franco. Homens que, devo acrescentar, teriam tudo em suas mãos, inclusive sua vida, se decidissem se unir para atuar conjuntamente. Depois de manhã sua posição será segura. Use sua força para ser compassivo e conceda ao meu senhor a paz que pede.
Uma onda de fúria transpassou Carlos. Uma raiva tão imensa que Matrona, que podia sentir, cheirar e quase tocar sua ira, sabia que ele a teria matado se tivesse uma arma ao seu alcance. Depois ela desapareceu e algo parecido a admiração ocupou seu lugar.
—Sempre é tão brusca com os reis?
Os lábios de Matrona se torceram. Era o bastante preparada para não sorrir. Ele ainda estava a beira do assassinato.
—Eu nunca minto. - Disse ela. - Pode ser que nunca diga toda a verdade, mas nunca minto.
Ele estendeu uma mão para ela.
—Venha. Ainda resta um pouco de noite, até a alvorada, quando terei que cavalgar com minhas tropas. O que usa debaixo desse magnífico vestido?
—Nada.
Quando ela encontrou Maeniel à sombra da fortaleza de Seu no dia seguinte, ela lhe disse: - Ele sabe.
Antonius, que cavalgava junto a Maeniel, respondeu-lhe.
—Não importa o que saiba. O problema é o que pretenda fazer com o que sabe.
—Sucinto e, como sempre, ao grão. - Disse Maeniel.
—A religião e a conveniência liberam a batalha em sua mente - Disse Matrona. - Lhe somos muito úteis.
Carlos havia arrojado seus arqueiros e infantaria sobre a fortaleza romana. Estavam sofrendo baixas sem obter resultados aparentes, enquanto tentava forçar com pouco êxito, a entrada a altura do rio. Os homens de Desidério, situados em maior altura e empunhando flechas compostas, estavam utilizando as tropas de Carlos para praticar tiro ao alvo.
—Isto é o que eu não gosto da guerra. - Disse Matrona. – Eles são só uma distração, mas morrerão.
—Tenho que reconhecer que Carlos é digno de admiração: estava na vanguarda dirigindo o ataque.
Enquanto Matrona e o resto observavam, Carlos tocou a retirada, tentando assim mercenários de Desidério para que abandonassem a coberta da fortaleza e pressionassem os fugitivos.
Já era de dia, embora o sol ainda não tivesse saído de tudo; a névoa que enchera os vales fluviais ainda vagava em nuvens sobre as colinas mastreadas perto do rio. Em alguns lugares a visibilidade era muito boa. Em outros, ambos os exércitos se enfrentavam na penumbra. Bernard e seu exército atacaram no dramático momento no qual os primeiros raios do sol caíam do desfiladeiro, criando longos corredores de luz que golpeavam a névoa e iluminavam todo o vale. O rio era um vórtice pálido e transparente e a vegetação um tapete esmeralda. Os limites do bosque ainda se aferravam a umidade e a escuridão da noite, que jazia como uma mancha sobre a terra. As pedras que formavam a antiga fortaleza estavam queimadas e ofereciam brilhos de alabastro sob a luz dourada.
Carlo Magno fechou sua armadilha.
Os homens de Bernard estrelaram, uivando, contra o flanco do exército de Desidério. O rei estava entre eles, levando o estandarte dos longobardos. Foi o primeiro a fugir. Maeniel montava Audovald; o cavalo empinou um pouco e caminhou nervoso. Maeniel pronunciou a ordem, que na linguagem dos cavalos significa adiante. E assim Audovald o fez.
O grosso das filas dos scarae atacou a primeira linha e abriu passo entre os poucos soldados de Desidério que tentavam manter a posição.
Maeniel sentiu o esplêndido ímpeto da tensão longamente contida e por fim dissolvida. Ele, como o resto dos grandes magnatas da Francia, conduziu seus homens à batalha.
Para uma batalha como esta. O antigo capitão do guarda real, cego de lealdade para com seu soberano, tentou reunir as tropas e oferecer resistência. De fato, poderiam ter vencido, se Desidério tivesse mostrada coragem e resolução. Carlos havia levado até ali, através das montanhas, a maior parte de seu exército, mas eram menos que as experimentadas tropas que dirigiam os lombardos.
Era um bom exército mercenário e Desidério havia maquinado, assassinado, traído e extorquido riqueza de todos em cada um dos cantos e frestas de seu reino, para poder reunir o enorme punho armado e impor sua vontade sobre toda a Itália. Mas quando chegava o momento de enfrentar e destruir seus inimigos, Desidério sempre se retirava.
No ano anterior, o Papa Adriano o enfrentara fingindo superioridade e, se Desidério tivesse reforçado suas filas na Cidade Santa com tropas, Regeane e Maeniel poderiam ter morrido. E ao ter Adriano sob seu controle, ele poderia ter lhe obrigado a abdicar ou o ter assassinado. Mas novamente Desidério havia evitado a briga e fugido.
Ambas as forças se detiveram bastante além da passagem de Suas, na planície aberta. As reluzentes fileiras dos soldados de infantaria do exército de Desidério ficaram em fila, em formação de batalha. O sol estava às costas de Carlos. Os comandantes francos permaneciam sobre seus cavalos, esperando o sinal do rei.
Maeniel observou a multidão lombarda. Então todos os seus homens e mulheres estavam presentes, montados e preparados para lutar e ganhar. Silvia estava junto. Vestia-se como um homem ou o fato de usar armadura simplesmente lhe proporcionasse um aspecto andrógino.
—Lutamos? — Ela perguntou a Maeniel. Parecia impaciente.
—Esperem um momento. – Ele lhe disse e ao resto da alcatéia . - Não sei.
—Pensando bem... - Disse Antonius. - Acredito que ele fugirá. E depois o rei terá que decidir se quer organizar um assédio na Pavia.
—Tem um exército magnífico. - Disse Maeniel. - É possível que ganhe, embora esteja em uma posição difícil. Seu comandante é, além disso, um homem capaz.
—Sua posição não é tão ruim. - Disse Antonius. - Tem diante de si um afluente do Ticino. Seus arqueiros podem pegar a infantaria franco nos baixios pantanosos e destruí-la. Seu comandante colocou o grosso de sua cavalaria de ambos os lados. Não é tolo. Isso é o que Aníbal fez em Conserta. Sua parte central se dividirá, mas não longe daqui. Notou as pequenas colinas atrás deles? Não poderão deter uma retirada. Mas poderia envolver os scarae e talvez , só talvez , destruí-los. A infantaria perecerá facilmente, mas as tropas de elite de Carlos são as mais protegidas. E melhor motivadas. Nenhum general gosta que suas possibilidades estejam aos cinqüenta por cento em uma batalha campal. Por isso tanto ele como Carlos estão se contendo. Claro que escolherá o caminho fácil e fugirá. Pode apoiar parte de suas forças em Turin e manter o resto na Pavia. Depois pode deixar que Carlos rompa o crânio contra seus muros. Mas seu comandante está desejoso de lutar. Sabe que não disporão de uma oportunidade melhor e seu conselho pode prevalecer, mas seu rei é um pequeno e matreiro rato trapaceiro. Meu conselho, meu senhor, é que mantenha sua posição e não se mova. — Antonius sorriu e mudou de postura em cima da sela. - Não passou tempo suficiente sobre a cadeira.
A égua de Matrona, Clóris, se revolveu e sacudiu suas crinas.
Audovald falou seriamente com ela, que ficou quieta.
O sol começou a queimar as costas de Maeniel através de sua camisa.
Antonius se elevou com a razão.
Desidério fugiu.
Uma retirada bela e metódica orquestrada pelo capitão de sua guarda. Os arqueiros mantiveram sua posição enquanto a cavalaria saia em fila de dois. O capitão da guarda, tal como fizera no dia em que empurrou o rei para afastá-lo da multidão, partiu por último, dirigindo a retaguarda.
—Nirvardd é um homem capaz. - Disse Antonius.
—Nirvardd. - Repetiu Maeniel. - Nunca soube seu nome.
Regeane e seus companheiros passaram a noite nas ruínas de um povoado nas terras pantanosas do vale do rio. Sentaram-se ao redor de uma fogueira, já entrada a tarde, e o ambiente era estranhamente amistoso.
—É estranho que ninguém viva aqui. - Disse Chiara. - Nem sequer há rastro de bandidos.
—Ninguém vem aqui há muito tempo. - Disse o urso e dedicou uma careta para Regeane. – Acredito que está de acordo, minha senhora.
—Sim. - Disse ela. - Sempre posso notar. - As casas, embora sem cobertura ainda estavam em pé, e eles acamparam dentro de uma que estava de costas ao vento.
—Os impostos acabaram com este lugar. - Disse o urso. – Eu sei. Viajei por aqui faz muito tempo, com um bruxo que conhecia. Os habitantes deste lugar fugiram para escapar dos impostos, não muito tempo depois que o velho império morreu. Já então começavam a partir e aqueles que ficaram não sabiam o que fazer para evitar o encargo já que, com ou sem fugitivos, a quantia a reunir para os cobradores seguia sendo a mesma.
—Havia cada vez menos para pagá-la. - Disse Armine.
O urso assentiu. Era certo que já não se parecia com Hugo. Mantinha seu cabelo muito curto; Hugo usava longo. Nunca bebia e Hugo era uma esponja.
O urso tinha sido sincero a respeito desse assunto quando Regeane havia perguntado.
—Ele não tem nenhum efeito sobre mim; não sobre meu eu essencial, quero dizer. Não tenho cérebro para me embebedar. Pelo menos, não como Hugo. — Ela estava limpando um osso de pato com os dentes. - Entretanto, desfruto da comida. Refiro-me ao sabor. Este corpo morreria de fome se eu não cuidasse dele. Assim, se tiver que comer prefiro desfrutar. O que vais fazer agora, loba? — Ele perguntou a Regeane.
—Não sei. - Respondeu ela. Estava abrindo um pescado cozido sobre barro. Havia vários no fogo. Não tinha conseguido pescar nenhum grande, mas pescara oito médios durante uma rápida expedição aquática.
—Me dê um pouco disso. – Lhe pediu Chiara, aproximando-se com uma parte de pão plano.
Regeane tirou os espinhos ao pescado como uma perita e pôs a metade sobre o pão de Chiara, junto com umas quantas verduras tinha usado para preenchê-los.
Chiara comeu vorazmente.
—Morro de fome. - Disse ela entre bocados. - Brigar abre o apetite.
—Isso não chegou a ser uma briga. - Disse o urso com ar de condescendência. - Uma pequena escaramuça, isso é tudo.
—Por algum motivo eu tinha a impressão, a forte impressão, de que tinha sido muito mais que isso. - Disse Armine. - Mas meu querido amigo Hugo, se quer que o chame assim, agradeço-o. Embora em certo momento acreditei que estava com os dois braços quebrados.
—Provavelmente estivessem. - Lhe disse Regeane.
—Sei. - Respondeu Armine, olhando-a por cima da fogueira. - O que ocorreu?
—Não sei. - Respondeu Regeane.
Armine trabalhava em excesso em uma terrina de guisado de coelho.
—Acredito, - continuou ela, - que teve algo a ver com o que Chiara e eu tentamos fazer pelo urso.
Chiara começou a tremer e a chorar. Gimp pegou os restos de seu pescado. Estava sentado junto a outros, terminando o que eles deixavam e, dado que nenhum desfrutava de do vinho azedo, ele lhe dava longos goles para acompanhar o que engolia.
O urso Hugo passou um braço sobre os ombros de Chiara e começou a reconfortá-la.
—Eu estou aqui. Sempre estarei aqui.
—Nem sequer cheira como Hugo. - Disse ela.
O urso Hugo riu.
—Pergunte a loba, ela é a perita.
—É certo. - Disse Regeane. – Você cheira a limpo. Nenhum aroma de sujeira, suor ou bebida constante. Tem um aroma seco e agudo, bastante parecido a algum tipo de sabão.
—Você sente o cheiro de tudo? — Perguntou-lhe Chiara, já distraída de sua dor.
—Tudo. - Disse Regeane. - Os aromas são um aviso contínuo para todas as coisas cotidianas. Por exemplo, estas ruínas, não foram habitadas durante longo tempo, não por humanos. Uma raposa teve sua guarida na casa do lado, a zorra pirralho, uma isca de peixe mas já foram. O último aroma tem alguns meses: um viajante veio o inverno passado. Ficou uns quantos dias. Cavou. Provavelmente procurava um tesouro. Cheiro algo velho. —Novamente faz alguns meses, aroma de terra removida e... E há um mocho em um templo em ruínas próximo daqui. Não pode ver o edifício porque é em sua mais velha parte um monte de ruínas, mas eu cheiro tijolo, cal e mármore. Isso me diz que é um templo.
Tanto Chiara como Armine a olhavam com exageros.
—Não é de duvidar que não se preocupassem os bandidos. - Disse Armine. - Provavelmente poderia saber se há um a vários quilômetros a volta.
Regeane assentiu, abriu outro pescado cheio e começou a prepará-lo para Chiara.
O urso Hugo bocejou.
—Este maldito corpo está cansado. Eu também saberia se alguém se aproxima. Esse mocho tem pintinhos em seu ninho. Agora está caçando para eles. Não sei onde está o macho. Estava me perguntando se lhe teria acontecido alguma coisa. Não cheiro nada, mas percebo os gradientes de temperatura, o movimento, os processos corporais, os batimentos do coração. Porque pulsa. Seus tipos intelectuais são tristemente ignorantes do mecanismo dos seres vivos. Quando amplio minhas percepções, seus corpos me são transparentes e, entre outras coisas, sinto o que poderiam chamar de topografia. A forma da terra e das coisas que vivem nela.
—Aí está. - Disse Regeane. - Acredito que ele tem um rato.
—O mocho macho. - Respondeu o urso Hugo. - Eu o ouvi. Eu senti como suas asas deslocavam o ar. O humano que procurava um tesouro tinha razão, aqui há algo. Uma pequena reserva. – Ele voltou a bocejar. - Pela manhã lhes mostrarei onde se encontra. Podem tirar. Estou certo? — Ele perguntou a Armine. - Deixaram Pavia com pouco dinheiro em mão.
—Sim. - Disse Armine. - O rei não me pagou e não acredito que seja saudável ficar por aqui a esperar que ele liquide suas dívidas. Não sabia que você pudesse fazer coisas como encontrar tesouros enterrados.
—Como demônios acha que mantive com recursos esse idiota de Hugo? Quando nos encontramos ela não tinha dinheiro nem para pagar para que um piolho o picasse.
—Mostre-me agora mesmo.
—Não. Incomodaria os mochos. O rato é um banquete para eles. Deixe-os em paz. As ruínas estão cheias de roedores nocivos. Quando mamãe mocho terminar de criar seus pintinhos, terão melhorado em alto grau a atmosfera deste lugar.
—Está a muita profundidade? — Perguntou Regeane.
—Não. - Lhe respondeu o urso.
—Então eu o pegarei. - Disse ela. - Não notarão minha presença como notariam a de humanos com ruído e tochas, pisoteando a vegetação. Dê-me um minuto. – Regeane se levantou e entrou por uma abertura da casa em ruínas, para sair para a escuridão.
Armine parecia espantado, atônito, assustado e indignado ao mesmo tempo. A indignação se devia ao fato dos preparativos caseiros de uma família de mochos se antepor aos seus desejos.
—Sua atitude é original, para não dizer mais. Eu teria pensado que nosso bem-estar tinha precedência sobre a de um mocho.
—Por quê? — Perguntou-lhe o urso. – Eles têm tanto direito a estar aqui como você; mais, de fato. Nós somos intrusos. Este é seu lar.
—Se olhar dessa forma, você está com a razão. - Disse Chiara.
A chegada de Regeane com um saco de pele na mão acabou com a discussão. Ela soltou-o aos pés de Armine. Abriu-o com facilidade e uma coleção de vasilhas de prata e ouro, pequenos objetos rituais, saiu rodando.
—Há mais. - Disse ela. - Mas só podia carregar isto... Como loba, quero dizer.
—Deus bendito! — Sussurrou Armine. -. Tenho uma fortuna ante mim. Mas parte disto é de vocês. – Ele disse a Regeane e ao urso.
Regeane encolheu os ombros .
—Já tenho o bastante. Deveria ver a câmara couraçada de meu marido. Poderia ter pagado o resgate que ofereceu ao rei, multiplicá-lo por dois e ainda teria dinheiro para gastar.
— A mim não importa nada. - Disse o urso. - Percebo coisas como estas, todo o tempo e também coisas desagradáveis. Há quinze ou dezesseis bebês em um poço não muito longe daqui. Foram tempos muito duros para os últimos habitantes deste lugar. No fim não podiam criar seus filhos. É uma das razões pelas que fugiram. Também é provável que enterrassem o ouro por isso. Estavam seguros de que se os cobradores de impostos encontrassem os objetos sagrados, os fundiriam. Uma lástima. Agora você vai fazer o mesmo.
—Não, não acredito. Não todos eles, em qualquer caso. - Disse Armine. - Dizem muitas coisas desagradáveis sobre os mercadores florentinos, mas ninguém nos acusou nunca de ser cegos à beleza. – Ele estava estudando uma deliciosa terrina de prata com um desenho de uvas brancas representadas por meio de adularias. - Acredito que deveríamos nos dedicar aos bancos, urso. Não o fiz em minha juventude. Simplesmente não tinha o capital suficiente. Mas você desfrutará dos bancos, urso. É bem mais interessante que o comércio de tecidos.
—Compreende-me muito bem. - Disse o urso. - Não é bom me aborrecer.
Chiara gemeu.
—Oh, Deus! Mas calcular os interesses é um pesadelo.
—Sim, bem... Deixarei-lhes a cargo da contabilidade. Sua tremenda influência será a inveja de todas as mulheres de Florença.
—Oh! - Sussurrou Chiara, absolutamente encantada. – Posso ver-me em missa vestida de veludo e brocado com um missal iluminado na mão.
—Sim. - Suspirou Armine. - E violando todas as leis.
—Tolices. Mamãe me disse que só nos reprimem quando a cidade está em guerra. Além disso, também as atividades bancárias são contra a igreja.
—Oh, sim. - Respondeu Armine. - Mas é fácil se esquivar da igreja. É estranho que um bispo não olhe para o outro lado, se receber uma doação generosa.
Regeane bocejou.
Armine olhou incômodo ao seu redor.
—Antes que nos deitemos para passar a noite, vocês estão seguros de que seguimos sozinhos?
—Oh, sim. - Disse Regeane. - Nós saberíamos.
Ela e Chiara escolheram a casa aquecida pela fogueira. Regeane era uma esposa e Chiara uma garota solteira. A decência exigia que dormissem separadas dos homens.
Regeane e Chiara se deitaram juntas ao lado de uma parede.
—Isso é muito ouro. – Ela disse a Regeane. - Está segura de não querer nada?
Regeane riu.
—Já viu como viajo. Onde o guardaria?
Chiara se ruborizou.
—O que fará com o urso quando chegar à cidade?
—Não sei. - Respondeu Chiara. - Por ora suponho que pode seguir sendo Hugo. E, a não ser que me equivoque, ele e meu pai serão sócios dentro de pouco. – Ela encolheu os ombros - O que pensa? Acha que ele pedirá minha mão em matrimônio?
Regeane estava reunindo um monte de ervas, para fazer uma cama mais cômoda. Sempre podia dormir com sua forma de loba, mas não queria alarmar A Chiara.
—Porque se não pensar em matrimônio, não vou considerar nenhuma outra opção. É como dizia minha mãe, para um homem está bem ir saltando de cama em cama, mas as mulheres têm que ter em conta a vida familiar e os filhos. Para não mencionar as finanças e a reputação e o resto das coisas que o sexo suporta. E, além disso, é o corpo de Hugo e não estou segura de que eu gostaria...
—Terá que ver como tagarelam. - Disse a voz do urso.
Chiara se calou e deu um chute no chão.
—Está se tornando furtivo. Não o senti. Além disso, era uma conversa particular e você não tinha nenhum direito de colocar seu nariz...
—Já basta, - disse o urso, - pequena dama mal-humorada. Não vai parar alguma vez de me corrigir?
—Não enquanto se comportar como um caipira.
—Um caipira? Eu, um caipira? — Rugiu o urso.
Chiara enfiou os dedos nas orelhas.
—Não o ouvirei.
—De pouco te vai servir isso. - Gritou o urso. - Minha voz está dentro de sua mente.
Chiara tirou os dedos das orelhas.
—Sim, é certo, mas...
—Oh, cale-se já. - Disse o urso. Depois a afastou da fogueira, levou-a até um canto escuro e a beijou. - Agora vá dormir. E não se preocupe. Não necessito do corpo de Hugo.
E partiu rindo.
—Parece que não precisa. - Disse Regeane.
Chiara voltou junto ao fogo. Estava vermelha; seu longo cabelo loiro, antes recolhido, estava agora solto sobre os ombros. Parecia satisfeita.
—Olhe! – Ela disse mostrando uma delicada aliança em seu dedo anular, com três pescoços de cisne entrelaçados e esculpidos em prata maciça. - É precioso! – Ela mostrou-o a Regeane. - Não me dei conta realmente de que ele a colocara, até ele sair. Me pergunto de onde o terá tirado. Quero dizer, virá sua antiga proprietária de madrugada para reclamá-lo?
—Não, não acredito. Não veio de um cemitério. - Disse Regeane. - Havia muitas mais coisas das que trouxe. Seu pai e você deverão pegar tudo pela manhã. —Também lhe alegrava saber que Chiara não se iludia sobre o urso, o que era um bom augúrio para sua futura relação.
Remingus despertou Regeane durante a noite. De repente Regeane se encontrou no lugar dos mortos, na espessa escuridão sem lua e sem estrelas. O povoado tinha o aspecto de antes de se converter em uma ruína. Os templos ao redor do foro, que constituía o coração de toda cidade romana, se elevavam sobre suas plataformas tal e como faziam antes de se sucumbir as ruínas. Estavam pintados e com suas estátuas em relevo intactas observando tudo ao alcance de sua visão. A estátua de um imperador presidia o povoado, ereta sobre seu pedestal.
A casa em que dormia Chiara era uma loja em que se vendiam cestas. Regeane não podia vê-la, mas sabia que a garota dormia bem porque sua respiração produzia fumaça no frio ar noturno e ela podia sentir as nuvenzinhas de vapor.
Regeane atravessou o foro deserto; seus pés reconheciam as pedras, mas não as sentiam de tudo. Estava vestida com a camisa e o desgastado vestido marrom que Chiara lhe tinha emprestado. Remingus estava com o rapaz que Robert tinha matado. O que havia instigado e levado a cabo o assassinato da garota que Robert amava.
—Ele está aqui conosco.
—Sim. - Respondeu Regeane. – Eu o vejo.
—Diga a Robert que sua piedade não foi em vão. - Disse o rapaz. - Não estou no inferno.
—Não é isto o inferno? — Perguntou Regeane. O frio que lhe atravessava o corpo era de fazer tremer. O frio que lhe atravessava o coração era ainda mais profundo. Havia começado a chorar. As lágrimas que desciam por faces eram gotas de puro gelo sobre a pele.
—Não. - Disse Remingus. – Não. Nem isto é o inferno e eu nem sei o que é o inferno. Mas aqui não há esperança, assim não há tristeza. E ele está conosco. Isso é tudo o que podíamos pedir.
E Regeane olhou através dos olhos de Remingus enquanto ele estava na cruz cartaginense e olhava para o sol. Tentou fechar os olhos, os olhos de Remingus, e se deu conta de que não tinha pálpebras. Estavam cortadas. E até os endurecidos oficiais romanos que recolheram seu corpo para enterrá-lo haviam ficado atônitos ante as coisas que lhe fizeram antes de crucificá-lo. Os cartaginenses tinham usado toda sua ingenuidade para lhe fazer sofrer, mas mesmo assim, ele triunfou. E a porta que estivera aberta quando Aníbal cruzou os Alpes se fechou de repente, fechou com uma sensação de finalidade que teve eco. Igual a sua dor.
A bênção de suas lágrimas fez com que a cena que via se tornasse imprecisa e quando lhe esclareceu a visão, Hildegard chegou para se sentar com suas irmãs de amor e Regeane não notou que ela estava morta. A mulher mais jovem tinha guiado a mais velha até seu lugar e tinha colocado um prato e uma taça ante o que, para as outras monjas, era só o vazio.
Então Hildegard estendeu a mão e tocou a face de Regeane com dedos suaves e secos como seda nova.
—Regeane, vá a Roma. Lucila a requer.
Regeane se levantou. O ar noturno era frio e claro. As estrelas desdobravam seu esplendor no céu. Sua mente, como sempre, situou-as e a loba lhe disse que faltava pouco para a alvorada.
Chiara tinha jogado de lado sua manta e estava agora encolhida sob o frio. Enquanto Regeane observava a manta se elevou, colocou-se sobre ela e se remeteu, de maneira similar a forma em que uma mãe cobre um filho que moveu muito a noite.
—Urso? — Perguntou Regeane.
—Sim. Uma vez Armine me perguntou se eu me sentava; bom, não me sento, nem tampouco durmo. Esse cadáver de Hugo tem que fazer ambas as coisas, mas enquanto o faz, não tenho com o que me ocupar. Sei que algo veio te saudar, porque não estava sob suas mantas a um momento.
—Vou a Roma. - Disse Regeane.
—Sozinha? É isso inteligente?
—Provavelmente não. - Disse Regeane. - Mas vou de toda forma. Apresente minhas desculpas.
—Ah, sim, como se deixasse a mesa logo depois de jantar. Um assunto menor. Sem nenhuma importância.
—Espero que não. - Disse Regeane. - Cuide dela.
—Farei isso. Voltaremos a nos encontrar?
—Não sei, urso. Mas aconteça o que acontecer, desejo-te o melhor dos destinos. E quando você e Armine se tornarem banqueiros, tente não extorquir muita gente.
Regeane escutou um grunhido de aborrecimento e soube que o urso tinha mais que dizer sobre o assunto, mas ela já era a loba.
De onde estava sentada, tudo o que Lucila podia ver era um retalho de céu azul, mas sabia que tinha sérios problemas.
Adalgiso tinha tentado escondê-la de Gerberga, a rainha franco, logo que chegaram em Verona. A este fim, havia colocado Lucila na parte alta de uma casa que dava para a praça. Era uma casa de má reputação. Ele pensava que ela estaria segura ali, já que a rainha era uma mulher altiva que só prestava atenção nos notáveis da cidade, embora houvesse um bom número de mulheres ricas que teriam vendido sua alma, para recebê-la em suas casas. Gerberga levantava o nariz o mais alto possível e pretendia que só o senhor lombardo, um tal Syagrius era merecedor de sua atenção. Era um indivíduo de rançosa linhagem romana cujo avô tinha tido a sagacidade de se casar com uma dama que se considerava princesa lombarda... Seu pai tinha recolhido o fruto de numerosos saques e ela acabara sendo sua única herdeira. Syagrius chamava a si mesmo duque. Dux, na terminologia atual, um senhor da guerra. Sua família se assegurara de que seu irmão fosse arcebispo de Verona, de forma que tudo ficasse entre família.
Adalgiso, Syagrius e Karl, o bispo eram as únicas pessoas com as quais a arrogante Gerberga se dignava a se relacionar. Todos outros tinham que se conformar em observá-la, de fora.
—Com um pouco de sorte, - Adalgiso lhe havia dito com regozijo, - ela nunca saberá que está aqui.
Dado que a presunçosa Gerberga ia diariamente à missa, Lucila pôde observá-la atentamente todos os dias quando a levavam para a igreja em sua cadeira de mãos. Escoltavam-na quatro donzelas e duas damas de companhia, além de seus dois filhos, cada um deles acompanhado de uma enfermeira e um tutor.
—É seu amante? — Perguntou- Lucila a Adalgiso, na primeira manhã que passaram por ali.
—Por quê? — Perguntou-lhe ele. Tinha aspecto de estar presumindo. – Acreditei que não se importava.
Lucila, que queria dizer que esperava o fora, para que Gerberga o seguisse recebendo, exibiu seu mais afetado sorriso e ronronou.
—Querido meu, eu gosto de me pavonear de ser a rival de uma rainha. É assombroso.
Adalgiso a afastou da janela.
—Vem, encanto. Meu amor, me conte mais historia sobre... Tortura.
Lucila apertou os dentes, mas Adalgiso estava ocupado em lhe deixar uma marca no pescoço. Tinha aprendido com rapidez, quais botões pressionar para controlar o filho do rei. Sempre podia avivar sua fogueira até convertê-la em fogo branco se lhe relatava os horrores que o verdugo público praticava sobre aqueles considerados irritantes, pelos poderosas de Roma. Inclusive Adriano, que não era partidário da tortura, usava-a de vez em quando pelas mesmas razões que todo mundo: para que alguém que se entregasse a uma conduta criminal espetacularmente viciosa servisse de exemplo, ou para persuadir ao resistente ocasional de que compartilhasse a informação que preferia guardar só para ele. Lucila se considerava a salvo sempre que conseguisse fazer interessante a vida sexual de Adalgiso no futuro imediato.
Mas não estava, e descobriu o porquê poucos dias depois.
Abriram a porta de um chute quando faltava pouco para que amanhecesse.
Dois homens.
Lucila pôde se vestir com um pesado vestido de lã e conseguiu esconder uma faca e seus remédios. Arrastaram-na até o bispo.
Este olhou Lucila durante longo momento, enquanto tamborilava insistentemente os dedos sobre o braço da cadeira.
—Estão seguros de que é esta? — Ele perguntou finalmente.
—Grifo e Myra, os proprietários, dizem que o príncipe a visita todos os dias. - Respondeu um dos soldados.
—É um pouco mais velha do que esperava. - Disse o bispo.
—Dizem que o príncipe está louco por ela. Fica com ela durante muito tempo. - Disse o homem que retorcia o braço de Lucila e o retinha entre suas omoplatas.
—Suponho que a experiência tem sua importância. - Disse o bispo. Depois estudou o rosto de Lucila. Seus olhos a assustaram. Não havia nada dentro deles.
—Deixem-me ir. - Disse Lucila. - Tenho dinheiro.
—Não aqui. - Disse o bispo.
—Em Roma. Posso assegurar que lhes mereceria a pena. Também conto com influências.
—Oh, sim? Sei quem você é. E não tem nem dinheiro o bastante e nem influencia para me fazer trair o segredo do rei.
Sou mulher morta, pensou Lucila.
—Venha até aqui. - Ordenou o bispo a um dos soldados sujeitavam Lucila.
O soldado se aproximou de sua cadeira. Conversaram em voz baixa.
Lucila permaneceu imóvel. Não estava presa e nem acorrentada, talvez porque ela não os enfrentara. Estavam sozinhos no salão do bispo. Lucila podia ouvir o barulho dos criados ao longe. Mas além dela, o bispo e os dois soldados, não havia ninguém mais no aposento. Faça-o, disse-lhe algo em sua mente. Se pensar muito está perdida.
À velocidade do raio, ela e se retorceu para se livrar do soldado que a retinha, mas não tinha visto que ele levava uma clava na outra mão. Foi rápido; um segundo depois a clava se estrelou contra a lateral de sua cabeça. Ela sentiu o golpe. Foi tão forte que ela sentiu uma terrível pontada de medo a que lhe rompesse o crânio; depois ficou paralisada e por fim tragou a escuridão.
Despertou em outro lugar, fitando uma grade de aço através da qual se via o céu. Tinham-lhe acertado com tanta força que até levantar a cabeça lhe produzia uma dor feroz. Simplesmente fico quieta, entrando e saindo da consciência durante quase um dia e meio. Quando as náuseas e o enjôo se reduziram o bastante para lhe permitir se sentar, quase começou a lamentar que o golpe não a tivesse matado.
A cela estava em algum lugar das ruínas da velha cidade romana. A maior parte da mesma estava clandestina. A grade do teto era sua única conexão com o exterior. O solo era de pedra coberta de musgo e as paredes eram de tijolo de terracota que os romanos usavam para construir tudo, desde aquedutos até palácios. Seguia durante um trecho, até se introduzir nas ruínas. Nesse ponto, a paredes e o chão acabavam e eram substituídos por um aterro de escombros e terra petrificada que bloqueava qualquer possível saída.
Quando Lucila se voltou arrastando-se até a luz, descobriu que lhe tinham deixado uma jarra de vinho e uma cesta com umas quantas fatias de pão duro. Tentou beber um gole de vinho, mas o aroma lhe fez afastar a cabeça de repente. Estava carregado de ópio. Bem carregado de ópio. O bastante, conforme ela sentia pelo aroma, que, por outro lado era bastante agradável, para matar duas ou três pessoas.
Havia uma grande pedra plaina, parte de uma coluna muito grande de algum tipo de templo. Era arredondada e estriada nos extremos. Podia servir como um assento aceitável. Ela se sentou e se desesperou, fechou os olhos e deixou vagar a mente. Entendia as intenções do bispo e como a descobriram. Era provável que o bispo Karl fosse o dono do bordel. Havia uma inegável afinidade entre a ordem eclesiástica e as casas de prostituição. O bispo de Rávena era o proprietário do primeiro bordel ao qual havia sido vendida com dezesseis anos e o bispo se assegurava bem de cobrar sua percentagem e o aluguel de seus terrenos. Dizer que estes estabelecimentos eram lucrativos, seria tolo. E dado que a cristandade se convertera em parte da limitada cena urbana ocidental antes de proliferar no campo, a maioria das propriedades da igreja estavam nas cidades. A igreja, o primeiro organismo corporativo do ocidente, possuía muitas.
Deveria ter se lembrado, mas aceitara a palavra do Adalgiso de que estava a salvo. Também deveria ter sido mais inteligente nesse aspecto. Agora o bispo Karl a convidava a se suicidar. A jarra de vinho era uma espécie de misericórdia. A deixaram para que ela pudesse escolher esse caminho em vez de morrer de fome e sede.
Sobre ela, o recorte de céu azul começava a escurecer. A noite se aproximava. Lucila seguia sentada sobre a invenção do destruído império romano, o tambor da coluna, profundamente imersa na miséria e no desespero físico e emocional. No fundo de seu coração estava convencida de que ia morrer.
As lembranças vagavam por sua mente como sombras de nuvens atravessando os prados no verão: difusos, fragmentados e desconectados.
Como tantos outros, Lucila se lamentava de sua incapacidade para apagar por completo seu cérebro e descansar em silêncio e paz mental. Seu pai tinha sido um próspero granjeiro na região montanhosa da Itália conhecida como Abruzzos. Era um homem duro. Agora se dava conta de que, considerando o mundo no qual vivia, só um homem duro teria conseguido sobreviver. A vida de um granjeiro das montanhas não perdoava os fracos, sequer os vagos. Sua mãe tinha sido uma mulher boa e carinhosa, mas seu marido a aterrorizava.
Mas Lucila tinha sido uma menina feliz e trabalhadora até que seu pai a surpreendeu sozinha no celeiro quando tinha dezesseis anos. A princípio ela se perguntou por que ele estava tocando-a. Não era um homem afetuoso. Mas quando a atirou sobre um monte de feno, ela o compreendeu e resistiu. Ele a ameaçou com um látego... Uma ameaça considerável, já que ele o que usava para impor disciplina nos animais difíceis, em seus filhos e, em ocasiões, em sua esposa.
Lucila ficou quieta. Tinha doído, mas ele tinha gritado ao notar a firmeza de sua carne e tinha ficado satisfeito. Como tantas outras garotas, Lucila tinha tentado pedir ajuda as pessoas que conhecia, mas seu irmão maior nem sequer quis ouvi-la. Tudo o que sua irmã mais velha lhe disse foi que já era hora de que ela também colaborasse para mantê-lo ocupado. Sua mãe disse que não acreditava. Lucila decidiu mais tarde que ela devia estar fingindo, porque depois disso não voltou a fitá-la nos olhos. Nunca mais olhou diretamente em seu rosto. Assim Lucila tentou se endurecer para enfrentar a situação. Tentou não se importar.
Mas depois ele começou a escapulir até os altos pastos para se agradar com seu e jovem corpo. Para ela era uma contaminação insuportável. Ela se encarregava das ovelhas e do escasso gado, porque não tinha medo. Não permitia que nada e nem os lobos que rondavam a fria noite, nem a águia das montanhas que caçava cordeiros jovens incomodasse o gado que ela guardava. E se algum se extraviava do rebanho, para trazer o de volta ela subia colinas que não ofereceriam cabos nem a uma mosca ou atravessava traiçoeiros montes de pedregulhos, movendo-se pelas perigosas pedras com mais segurança que uma cabra montês.
Estes eram seus domínios, onde estava sozinha com o vento e o silêncio, a beleza das flores silvestres na primavera ou o vasto oceano de estrelas nas frias noites de outono. A segunda vez que ele foi até ela, o notou no atalho que baixava de seu posto nas montanhas. Havia recolhido um bom monte de pedras para estar preparada se acontecesse. Atirou-as até que ele saiu correndo com o rabo entre as pernas. À noite, quando devolveu os rebanhos ao celeiro perto da granja, lhe esperava uma surra. Provavelmente uma surra tremenda. Pensava que podia chegar a matá-la, mas acreditava que merecia a pena simplesmente por manter seu próprio mundo a salvo. Mas não recebeu nem um golpe. Ele não a matou. A vendeu a um negociante de escravos e, mais tarde, dado que era forte e ainda bonita quando chegaram à cidade, muitos dos jovens que levavam a rastros das montanhas já não eram para quando chegavam à costa. Venderam-na para o negócio do sexo.
Antonius, seu filho, não era só seu filho, mas também seu meio irmano. Se tivesse conseguir colocar as mãos em cima de seu pai, não teria parado até vê-lo torturado e morto. Ainda o faria, se o encontrasse cara a cara. Mas agora compreendia por que ele lhe tinha feito o que fizera. O que mais deseja um tirano é governar e seu pai era um tirano, tão temível como qualquer dos que tenham marcado as páginas da história humana. Não podem suportar a oposição porque ameaçava seu controle sobre aqueles a quem governam. E ele via, refletidas nela, sua própria força e determinação.
Então necessitara destruí-la, tal como ele a via. Tentou e quase o conseguiu... Porque ele sabia que ela nunca se renderia por completo.
Já havia se feito de noite e o céu estava banhado no resplendor das estrelas. Não. Nunca beberia o frasco de vinho. Faça o que faça um ser, nunca pode negar sua natureza essencial, e ela não podia negar a dela. Sim, provavelmente morresse. Mas morreria tentando viver.
Ela fez inventário de suas posses. Ainda tinha a faca, mais ópio e valeriana, sua camisa de algodão e o vestido de lã. Entre os refugos do chão de pedra havia um pouco de erva seca e uns quantos pedaços de madeira. Selecionou alguns e lhe fez um entalhe. Tentaria levar a conta dos dias. Depois empilhou a erva seca para fazer uma cama. Um gole do vinho não a mataria e provavelmente acabaria com sua enxaqueca e a ajudaria dormir.
Ela bebeu um pouquinho, tampou a jarra e a afastou para um lado junto com o pão. De toda forma, tinha muitas náuseas para tentar comer. Depois se deitou e adormeceu.
Regeane viajava de noite e dormia de dia. Tentou tirar de sua mente à mulher e ser somente a loba. Matrona lhe havia dito que era possível e funcionava a maior parte do tempo. Mas as coisas que tinha aprendido através do urso a atormentavam.
Perto de cada assentamento humano, ela via sombras. Um templo festivamente engalanado apareceu em sua mente enquanto seus olhos observavam somente ruínas; podia ver os ornamentos pintados em vivas cores e as estátuas com olhos de cristal, joalheria de ouro e pedras semipreciosas. Carne coberta de mármore, jóias de latão ou cristal engastadas nas togas e nos vestidos; pintadas folhas de hera, alcachofra e acanto que decoravam os capitéis e os frisos vermelhos e azuis brilhavam ante ela como se acabassem de ser criados e expostos ao sol.
Às vezes aparecia ante ela gente morta há longo tempo, mas estes, pelo contrário de outros fantasmas que tinha visto ignoravam por completo sua presença. Assim ela encontrou o caminho que levava a costa, tal como Hugo fazia e comprovou que a solidão lhe servia como fonte de renovação, coisa que Hugo não tinha feito. Havia tornado a ser ela mesma e sabia. As críticas que lhe havia feito Maeniel já não eram válidas. Era uma caçadora competente e sempre encontrava algo para comer. Pescava bem e com facilidade, inclusive nos escolhos.
As outras alcatéias de lobos já não eram um problema, graças a sua experiência com o urso. Usaria seu sentido aumentado de posição temporária, para investigar com rapidez a atividade de qualquer alcatéia que se encontrasse nas proximidades, com o que depois quase sempre poderia predizer seus movimentos. O mesmo podia dizer sobre as presas. Notar a presença de um cervo significava saber onde tinha estado às últimas horas e, portanto, freqüentemente sabia para onde ia.
Seus sentidos, sobrenaturais e agudos por ser loba e humana, agora abrangiam ainda mais. Enquanto saltava e dançava no escolho perto do acampamento de Hugo, descobriu que podia sentir a presença de todas e cada uma das criaturas viventes: um banco de pequenos peixes que lançava brilhos através das sombras e tentava ser mais rápido que uma barracuda; uma dúzia de mexilhões que se agarravam as rochas em um pequeno charco criado pela maré; a escura e fria inteligência de algo que navegava a margem das profundezas. Até as efêmeras e ligeiras medusas, restos de naufrágio levados pelas ondas sobre a coluna de água, ficavam registrados em sua consciência.
Tornou-se humana e nadou ao longo de um grande banco de areia que entrava no mar, deixando se levar pelas ondas polidas pela luz do sol. Depois se aproximou até a margem, junto a um promontório rochoso e comeu uns crustáceos e um pouco de pescado branco antes de voltar a se converter em loba e dormir em uma caverna de areia perto da deserta cidade em ruínas, em que Hugo tinha tido seu fatídico encontro com o urso.
No dia seguinte teria que ser mais cuidadosa, já que estava se aproximando dos campos povoados dos arredores de Roma.
Encontrou uma colina e de ela examinou a paisagem plana e ondulada, observando e deixando que suas percepções explorassem até encontrar uma rota segura. Depois se guardou em uma toca de texugo abandonada até que se fez noite.
Pouco depois da alvorada, ela saltou o muro da vila de Lucila e se deslizou entre os belos jardins de ervas e flores perto de seu triclinio. Alegrou-se ao ver Dulcínia sentada em um banco com uma taça de seu chá preferido.
Dulcínia levantou os olhos quando viu a loba no atalho, trotando para ela com aspecto amistoso.
—Um cão! – Ela murmurou. - Não sabia que Lucila possuía um cão... Isso não é um cão, é um...
Nesse instante, Regeane decidiu assumir forma humana.
—Dulcínia, você poderia...?
Foi tudo o que ela pôde dizer, porque Dulcínia soltou um grito tremendo e ficou em pé de um salto. Regeane, com a mente humana ainda misturada a da loba, ouviu o som de pés que corriam para elas, de todas as direções. Arrebatou o manto e se envolveu com ele no preciso momento em que parecia que todo o pessoal da vila descia pelo jardim. Pelo menos a metade deles brandiam arma ou o objeto mais pesado que houvessem encontrado ao seu alcance. Dulcínia cambaleou até ficar apoiada em um disco, com a mão no peito, tentando recuperar o fôlego.
—Sinto muito. - Disse Regeane. - Pensei que Lucila te contara que posso fazer... Isso.
—Fazer o que? — Gritou Dulcínia. - Fazer o que? Não sabia que ninguém pudesse fazer isso!
—Quer dizer que ela não te disse...
Nesse momento chegou uma onda de serventes, soldados e operários da granja que trabalhavam no campo, acompanhados por uns quantos estranhos ou viandantes que tinham ouvido a comoção e deviam ver o que acontecia.
Era o momento de dar explicações.
—Acredito que sobressaltei a senhora Dulcínia. - Disse Regeane, que tentava sufocar o riso.
Dulcínia lhe dirigiu um olhar fulminante.
—Me sobressaltar? Sim, acredito que me dar um susto que quase me provoca um ataque do coração possa ser descrito como sobressaltar... Mas não acredito que a senhora Regeane deseje me fazer nenhum mal.
Ela baixou o olhar até a taça de cristal quebrada, sobre os paralelepípedos.
—Se não contarmos a taça da senhora Lucila, não aconteceu nada. Poderia alguém me trazer um pouco de vinho, por favor? Sinto a necessidade de tomar um reconstituinte.
Seguidamente, ela deixou seu posto na árvore e tomando cuidado de não pisar nos cristais quebrados, cambaleou de volta ao banco e se sentou. Uma das donzelas varreu os cristais, recolhendo com cuidado as peças e levando-a para ver se podiam ser recomposta. O cristal era valioso, um luxo para os ricos. Romper cristal era um assunto grave.
—Onde está Lucila? — Perguntou Regeane. - Venho vê-la. Recebi uma mensagem me pedindo que viesse a Roma.
Dulcínia engoliu meia taça de vinho.
—Ela não está aqui. Uma mensagem? Quem te deu uma mensagem? Esteve em contato com ela? Sabe onde ela está? Se souber, por todos os Santos, diga-me. Todos estão muito preocupados; estivemos...
—Dulcínia, vá um pouco mais devagar. Não, não sei onde está Lucila e a pessoa que me deu a mensagem de que viesse A Roma é... É... Bom, digamos que se a loba a transtornou, e a deixou realmente...
—Temo lhe perguntar... – Interrompeu-a Dulcínia. - E você está com razão, não estou segura de querer saber como recebe a informação. Está com a razão; estou segura de que me inquietaria.
Regeane pegou outro copo da bandeja, serviu um pouco de vinho, acrescentou-lhe umas gotas de água e bebeu com vontade.
—Dulcínia, necessito de comida, roupa e descanso. Estou na estrada toda a noite. Entende? É mais seguro viajar a noite.
A risada com a qual Dulcínia lhe respondeu roçava a histeria.
—Oh, sim, é obvio. Bem mais seguro. Se encontrasse alguém, o mataria e comeria...
—Dulcínia. Eu nunca... Bem, só poucas vezes e quase sempre em defesa própria, quase sempre, de fato uma ou duas vezes não tive outra escolha, mas... Oh, pelo amor de Deus, Dulcínia. Explicarei-lhe mais tarde. Mas eu nunca, absolutamente nunca, comi ninguém.
—Que reconfortante.
—Pare. Você está se vingando de mim por ter te assustado.
—Me assustar? Oh, sim, me recorde que me olhe em um espelho quando entrar em casa. Eu gostaria de saber se me deixou de cabelo branco.
Regeane deu outro gole em seu vinho com água.
—Seu cabelo não pode ficar branco. Isso é um conto de velhas.
—Sim, e estou começando a reconsiderar todos e cada um dos contos de velhas que ouvi. Parece que essas velhas devem saber algo. Olhe-se. Pensei que era um conto de velhas. —Dulcínia parecia indignada.
—Dulcínia, me leve até os banhos. Necessito de roupa, comida e também me banhar. - Seus cabelos estavam empapados de rocio, como também estivera sua pelagem. Ela sacudiu a cabeça e atacou Dulcínia com as gotas.
Dulcínia fechou os olhos e apertou os punhos.
—Pare. Você vai me deixar louca. Está me deixando louca.
—Quanto vinho você tomou com o estômago vazio? — Perguntou-lhe Regeane.
—Muito. Não sou bêbada. Acredito que estou um pouco chispada, mas por que se preocupa?
—Eu acrescentei água. Além disso, se me embebedar muito, sempre posso mudar para loba e voltar a trocar depois para a forma humana.
—Oh, Meu deus! - Disse Dulcínia. Depois ela se levantou, sem muita estabilidade e levou a Regeane.
Regeane se banhou. Dulcínia recuperou a moderação que antes havia perdido. Não era uma pessoa rancorosa por natureza e quando as mulheres saíram ao jardim para tomar o café da manhã, limpas e refrescadas, já eram novamente amigas. Dulcínia informou Regeane de tudo o que tinha acontecido desde que saíram de Roma e Regeane lhe proporcionou um relato altamente adaptado de suas próprias atividades.
Dulcínia disse a Regeane o que tinha acontecido depois da morte de Stella.
—Tentamos seguir Adalgiso, mas perdemos seu rastro no bosque. Pensávamos que provavelmente tivesse cavalgado até a vila Jovis, mas ela está bem fortificada. Ansgar e Ludolf não quiseram tentar um ataque. É virtualmente uma cidade e está repleta de homens armados. De lá seria impossível saber para onde ele iria, então voltamos e Ansgar me enviou Roma. Rufus e ele são amigos. Recorda-se de Rufus, da Cecília?
—Oh, sim, claro - Disse Regeane. - É obvio que me recordo.
—Conseguiu um salvo-conduto a Ansgar para ele poder visitar o Papa. Acredito que Ansgar vai trocar suas lealdades.
—Ele culpa Lucila pelo que aconteceu?
—Sim e não. - Disse Dulcínia lentamente. - Diz que nada teria acontecido se ela não tivesse chegado e provocado Stella, mas é um homem justo e diz que Stella não deveria ter sido tão tola a ponto de mandar uma mensagem a Adalgiso. Sabia tão bem como Ansgar que o homem era idiota. E isso é o que acontece quando as mulheres se misturam nos assuntos dos homens. Mas em todo caso, Adalgiso deveria ter tido o sentido comum para não levar a Stella quando foi capturar Lucila. Depois, Eberhardt e Dagobert se comportaram da forma mais estúpida possível. Ambos morreram e Ansgar pensa que é melhor. E se tivesse colocado as mãos em cima deles teriam morrido de uma maneira muito mais dolorosa. Ele culpa os homens, mais porque diz que deveriam ter mais sentido comum, mas também diz que tem que assegurar o futuro de seu filho. Se tiver que jurar lealdade a Carlo Magno para conseguir, ele jurará. E não põe objeções ao meu matrimônio com Ludolf, se ele assim desejar, mas começo a me pensar nisso duas vezes. — Dulcínia começou a dar voltas no elaborado anel de rubi que levava em um de seus dedos. - Estou grávida e Ludolf diz que ele não é dos que fazem filhos bastardos. Quer criar seu filho em sua cidade.
—Talvez não coloque objeções se o bebê for uma menina. Refiro-me, a que fique em Roma. - Disse Regeane.
Dulcínia se animou.
—Não tinha pensado nessa possibilidade... De que fosse uma menina. Então pode ser que a Ludolf não importe...
—Mas me importaria sim. - Disse Ludolf enquanto saía detrás de um pilar no atalho que rodeava o jardim da vila. Ele se sentou e olhou para Dulcínia.
—Ludolf, esta é Regeane, uma amiga de Lucila e minha. É aparentada com a família real franco e seu marido é o senhor de um ducado nos Alpes.
—Maeniel. Sim, eu sei. É uma honra conhecê-la.
—Obrigado. - Disse Regeane. - O mesmo digo eu.
Ludolf se voltou para Dulcínia.
—Meu pai está com Adriano neste momento. Acredito que chegarão a um acordo. Rufus não manteve em segredo sua alegria ante a oferta de meu pai em unir a ele para jurar lealdade ao rei franco. Entre os dois, deveriam poder reabilitar as terras sem cultivar que se encontram entre os domínios de Rufus e os nossos. E sim. Mesmo se o bebê for menina, ainda quero ter ambas ao meu lado. Posso compreender alguns de seus medos e dúvidas. Lavraste sua própria posição independente, algo que poucas mulheres conseguem, e eu não gostaria de te arrebatar isso. Mas o mundo está mudando e nosso povoado, embora recém-nascido, parece que será próspero. Nossa pequena corte pode chegar a se converter em um centro artístico e cultural e eu gostaria que ficasse comigo para me ajudar a construir um lugar assim.
—Querido meu! - Disse Dulcínia. - Está seguro disso? Quero-o, mas o que diria o mundo de uma união assim?
—Nada. Ou pelo menos nada que nós, ou qualquer de nós, tenha que nos preocupar. Farão os típicos comentários tolos que sempre fazem e nós viveremos juntos e espero, que muito felizes. – Ludolf levou a mão dela aos lábios e a beijou. - Não ganha se não se arrisca. Que não te assuste provar a vida.
Regeane sentia algo estranho. Tentou afastar de sua mente, mas crescia em intensidade. O jardim que a rodeava estava cheio de gente. Andavam nas sombras, mas a luz mudava de um rosto a outro. Uma magnífica mulher de cabelo escuro vestida de seda rosa e com uma coroa; um homem moreno com cabelo espesso e encaracolado e sobrancelhas negras, franzindo o cenho zangado. O Papa que levava o manto mais elaborado que ela já havia visto, de rosto magro e também zangado; um guerreiro, com aspecto de ser mais casto que o Papa. E então, bruscamente, antes que pudesse ordenar toda a informação, eles desapareceram e ela se sentou junto à Dulcínia, enquanto Ludolf ainda sustentava a mão desta junto aos lábios.
E Regeane soube que o tempo destruiria a si mesmo novamente. Tinha visto... O que?
Sua viagem ao outro mundo lhe tinha proporcionado poderes quase divinos, mas não tinham valor se não possuísse o conhecimento concomitante de Deus. Tudo o que sabia depois da visão é que estas duas pessoas teriam descendentes, mas não estava segura de se seriam de ambos ou não. Tinham lhe concedido o poder de ver sob o universo tranqüilo e ordenado que balança a vida seguindo uma linha temporária do nascimento até a morte, mas distava muito de compreender o significado de suas visões.
Susana, a donzela pessoal de Lucila, chegou nesse momento com aspecto apressado. Era uma mulher esbelta de cabelo escuro. Vestia as roupas negras habituais entre as mulheres mais velhas da Itália. A princípio de conhecê-la Regeane se perguntava por que seria tão reservada, já que mal saía da ampla moradia de Lucila, até que viu que Susana tinha um lábio leporino. Era possível operar tal defeito, mas deixava seu dono só parcialmente atraente. Susana havia sido rechaçada no dia de suas bodas por um pretendente cuja família pensou que bastaria lhe oferecer a seu filho um matrimônio acomodado e não teve em conta sua reação quando visse a garota. «Não terei meus filhos com essa cadela». Foi o que ele disse. Contou Lucila a Regeane. O pai da Susana desembainhou a espada e o matou no ato. Então todas as partes encetaram uma briga... E durante o confronto o pai de Susana foi assassinado.
Adriano estava presente. Teve que chamar o guarda para deter a briga e as duas partes culpou a pobre garota, como se ela tivesse algo a ver com o que acontecera. Ao jovem deveriam ter ensinado melhores maneiras e, para começar, não teria que ter se sentido decepcionado. A família de Susana não foi muito melhor. Deveriam ter se dado conta de que teriam que discutir abertamente o pequeno problema de Susana antes do dia das bodas. Mas em qualquer caso, Lucila disse, saí ganhando graças a ela. Ela administra todo meu dinheiro e propriedades e dobrou meu capital com a passagem dos anos.
Regeane sabia que as duas mulheres eram amigas e que Lucila tinha uma grande confiança depositada nela, mas Susana ainda cobria a parte inferior do rosto com seu véu, mesmo quando falava com os amigos íntimos de Lucila.
—Senhoras, será melhor que me acompanhem. Simona está aqui com alguém que devem conhecer e você, meu senhor Ludolf, me acompanhe também, por favor.
Eles se levantaram e a seguiram até o tablinum de Lucila, do lado da fonte do átrio. Simona estava ali em pé com uma garota, Lavínia. Quando Lavínia viu que se aproximava um bonito e jovem guerreiro com três mulheres ricamente vestidas, começou a retroceder. Regeane viu o mesmo terror louco em sua face, que tinha observado em alguns animais quando enfrentavam não a uma ameaça mortal, mas o absolutamente desconhecido. Felizmente, havia uma grossa coluna de mármore detrás da Lavínia. Ela e ficou paralisada.
—Vão devagar. - Disse Regeane ao resto. Eles andavam depressa. - Ela está assustada e pronta para saltar.
Observando garota, a loba notava a dor e o medo. Dedo durante longo tempo, dor durante longo tempo, tanto que haviam destruído sua habilidade para comer e até dormir com tranqüilidade. Esta garota estava tão assustada e tão cansada que parecia quase disposta a renunciar a vida, se deitar em algum lugar e morrer. Ao sentirem a estranheza da garota, eles reduziram a marcha, confusos e temerosos de assustá-la ainda mais.
Regeane saudou Simona.
—Como está?
—Muito bem, minha senhora. – Ela se adiantou e beijou Regeane na face. - Parece radiante. Diga-me, deixou-te já em estado interessante?
Regeane fez uma careta.
—Não, mas trabalhamos duro para conseguir.
—hum...Quer dizer que ele trabalha duro para conseguir.
Ambas riram.
—E Póstumo? — Perguntou-lhe Regeane.
—Ele e a Maria-macho da Elfgifa estão na corte do rei inglês. Pode acreditar? Meu filho na corte de um rei. Estou contente por ele, mas jogo muito de menos. Mas essa fulana da Silve está em cinta, assim imagino que logo terei outro para criar. Ela não será o que eu chamaria uma mãe devota. Muito ocupada contando às mãos que lhe sobem pelas saias, para poder lhes cobrar depois.
—Algo mais que uma mão deve ter subido por sua saia. Não ouvi nunca que uma mão tenha feito um bebê. - Disse Por sua vez Regeane.
Simona voltou a rir, depois estendeu o braço e pegou a mão de Lavínia.
—Venha. Fale com a senhora Regeane. Ela não te morderá. Pelo menos, não agora. – Ela disse sorrindo. - Sob todas essas roupas elegantes só há uma mulher, como todas as demais.
Regeane ofereceu a mão e Lavínia tomou duvidosa. A atrevida conversa de Simona tinha servido para que a garota se sentisse um pouco mais segura. Regeane inclinou a cabeça ante Lavínia.
—Senhora. - Disse Lavínia.
Regeane podia sentir a tensão na garota. Só tocando sua mão notou que ela tremia como um pássaro enjaulado. Regeane a conduziu delicadamente até um banco de mármore junto ao lago do átrio. Pediu a Susana que trouxesse um pouco de pão e vinho.
—Agora, garota, - disse Simona, - conte a ela o que me contou .
Lavínia assentiu. Seu discurso parecia ensaiado e Regeane pensou que provavelmente o teria repetido uma e outra vez em sua mente enquanto jazia tombada em sarjetas, em ruínas desertas nos claros dos bosques ou correndo furtivamente através de centenas de atalhos e caminhos afastados enquanto tentava se esconder de seus perseguidores.
—Conheci uma dama na vila Jovis. Chamava-se Lucila. Disse-lhe que era desgraçada ali, mas que não tinha nenhum lugar aonde ir. Ela me disse que se eu entregasse uma mensagem de sua parte em Roma, suas amigas Simona, Dulcínia e Susana, me ajudariam a encontrar trabalho e um lugar onde viver.
—Faremos isso. - Disse Regeane. - Ela é Susana, essa é Dulcínia, e seu noivo Ludolf e esta é como você já sabe, Simona.
—Tinha que te dar isto. — Lavínia entregou a Regeane o anel.
Regeane o mostrou a Susana.
—É dela. Adriano o deu de presente.
Lavínia assentiu.
—A mensagem que ela me deu... Não a compreendo. Mas... — Ela olhou para Simona. - Talvez não creiam...
—Acreditaremos, sim. – Regeane a fitou. - Sabemos que não podia levar uma mensagem longa nem complicada. Diga-nos o que é e veremos se podemos lhe encontrar sentido.
Lavínia parecia mais tranqüila.
—Tudo o que disse foi uma palavra: Verona.
—Bem... - Disse Dulcínia e depois soltou o ar que prendia em seus pulmões. Seu olhar e o de Ludolf se encontraram.
—Sim. - Disse ele, levando a mão ao punho da espada.
—Adriano deve ser informado o antes possível. - Disse Susana.
—O Papa! — Exclamou Lavínia. Parecia disposta a morrer de medo ali mesmo.
—Sh! - Lhe disse Simona. - Não será tua responsabilidade.
—Será minha e imediatamente. - Ludolf beijou a mão da Dulcínia novamente e se afastou.
—Lucila teve êxito em sua missão. - Disse Dulcínia.
—O que me dizem sobre o lugar onde viver e trabalhar? Um trabalho que não inclua abrir de pernas. - Disse Lavínia com dureza.
—Agradecemos-lhe o que fez, pequena. Não pode imaginar quanto. - Lhe disse Regeane.
—Sim. - Disse Susana tirando uma corrente de ouro que usava ao redor do pescoço e a colocou em Lavínia. - Isto já é teu. E haverá muito mais depois de ter se banhado e comido. Quanto a um lugar onde viver, fique aqui. Lucila não gostaria que fizesse menos.
—Mas pode que leve algum tempo encontrar trabalho.
—Você é hóspede de Lucila e minha durante todo o tempo que quiser. - Lhe disse Susana. - Agora venha comigo. Vocês possuíam banhos na vila Jovis?
—Não para nós.
—Bom, aqui nós temos... Para todo mundo.
Simona sacudiu a cabeça enquanto Susana se levava a menina.
—Verona. Acredito que vocês sabem o que significa.
—Sabemos. - Disse Dulcínia.
Regeane saiu do átrio e começou a descer a toda pressa pelo atalho rodeado de colunas.
—Pare! - Disse Dulcínia.
Regeane não fez conta.
Simona e Dulcínia a perseguiram.
Regeane chegou ao jardim. Era a hora da sesta. Não havia ninguém. O vestido que usava caiu flutuando. Simona e Dulcínia o encontraram enredado em um arbusto coberto de rosas brancas.
Ninguém viu a loba saltar o muro da vila e desvanecer na paisagem da tranqüila tarde.
Lucila lutava para sobreviver dentro do buraco onde havia sido abandonada. Depois de estudar a grade do teto da cela, ela descobriu que podia empurrá-la o bastante para tirar uma mão fora, mas não abria mais, já que os extremos estavam assegurados com correntes e ferrolhos. As dobradiças do outro lado estavam novas e bem apertadas.
Ela sabia abrir fechaduras, mas quem quer que houvesse colocado-as ali tinha previsto essa possibilidade. As duas fechaduras estavam trancadas com madeira. Provavelmente um pau ou um galho empurrado para o interior do buraco, cravado e depois quebrado.
Arrastou-se rodeando as paredes, examinando-as. O único ponto débil que pôde encontrar era que um dos extremos da cela era escavado na colina. No extremo mais afastado, podia ver o bastante para saber que solo descia e que provavelmente não haveria mais de metro ou metro e meio de sujeira entre esse extremo da cela e a colina. Considerou todas as possibilidades e depois começou a cavar metodicamente.
Uma tarefa desencorajadora. O terreno estava completamente seco e tinha virtualmente a mesma consistência que uma pedra. Além disso, estava cheio de refugos de todo tipo: madeira, terrinas quebradas de barro e parte de tijolos. Sua faca começou a se desgastar com rapidez. Ela ficou consternada quando a ponta se rompeu ao se chocar com um pedaço de mármore.
Já estava cansada e ainda lhe doía à cabeça. Ela se sentou na coluna rota e chorou. Secou os olhos quando lhe ocorreu que as lágrimas gastavam uma pequena parte da reserva de água de seu corpo. Sabia, graças a amarga experiência, que se podia sobreviver longo tempo sem comida, mas só um período muito breve sem água. Se não tivesse sorte com sua escavação, só lhe restaria uns três dias de vida. A sede já a começava a atormentar. Tomou um gole do vinho com ópio e se controlou para que fosse pequeno. Depois se sentou em silencio sobre o tambor da coluna com as costas contra a parede e fechou os olhos.
O ópio acabou com sua dor de cabeça e a acalmou. Ela tirou o chapéu estudando o lixo que já tinha arrancado da parede. A peça de mármore parecia parte de um morteiro..
Arrastou-a até ela e a examinou. Estava ao lado de uma parte de madeira e vários fragmentos de cerâmica. Sacudiu-lhe a sujeira da madeira golpeando-a contra o tambor da coluna; a sujeira caiu e ela notou que o objeto tinha forma de taça. Provavelmente antes servisse para sustentar o pé uma mesa, mas podia ser um contendor passável. Deixou-a de um lado cuidadosamente. Era primavera e as grandes chuvas eram habituais na região. Podia ser que nenhuma chegasse a tempo, mas poderia acontecer e uma taça serviria de ajuda. Agora, quanto ao bloco de mármore... Lucila franziu o cenho e seus olhos se estreitaram. Uma meia hora depois tinha várias peças de mármore do tambor da coluna. Uma delas seria uma excelente ferramenta para cavar; várias tinham bordas tão cortantes como as de uma faca. Com eles pôde cortar o pão duro em partes bastante pequenas, para poder mastigá-las.
Ao anoitecer, ela jantou pão duro e uns quantos goles de vinho. Conseguiu sossegar o bastante para dormir sobre a cama de erva seca.
O dia seguinte foi como o primeiro, salvo pelo fato de que estava mais fraca e mais sedenta. Do vinho com ópio só restavam os sedimentos. Entrada à tarde, se tornou impossível seguir cavando. Ela deitou sobre a cama de erva e se perguntou se seus esforços tinham conseguido era condená-la a morrer agonizando de sede.
Ela havia tinha começado há marcar o tempo em um pau. Olhou os entalhes e contou: cinco. Estava ali há cinco dias. Tentou recordar se tinha contado o primeiro dia ou se tinha começado a contar no segundo, mas não pôde se lembrar e se zangou consigo mesma por sua falta de acuidade mental. Depois riu em silencio por ser tão tola ao pensar se isso importava. Não podia rir com mais força porque estava com os lábios gretados e a língua começava a inchar.
Naquela tarde, com um pedregulho, ela conseguiu extrair saliva de seu ressecado corpo e cuspi-la na jarra para soltar os últimos sedimentos. Adormeceu porque havia bastante concentrado no fundo, para deitar a um cavalo, então dormiu, mas quando despertou pela manhã tinha uma sede atroz e sua língua tão torcida começava a se sobressair de sua boca.
Pôde abrir uma veia no dorso da mão com uma de suas improvisadas facas e beber o sangue. Não servia muito, ela pensou, mas pelo menos lhe aliviou um pouco a dor na boca e na garganta.
Seguiu cavando durante um momento por simples teimosia e para se manter ocupada e evitar pensar no inevitável fim de sua luta. Mas novamente, quando chegou a tarde estava muito cansada para seguir. Havia uma última forma de tirar um pouco mais do ópio condensado no fundo da taça e, desprezando a si mesmo por necessitar da droga para apagar seus sofrimentos, utilizou a própria urina.
A horrível mistura lhe queimou a boca, mas ela conseguiu dormir. Quando despertou estava escuro. Mediu a escuridão em busca da faca, mas não pôde encontrá-lo. Já não lhe restava forças para procurá-la. Dentro de seu buraco a escuridão era completa e ela se perguntou se teria ficado cega, mas depois conseguiu ver umas quantas estrelas.
Fechou os olhos novamente e pensou sobre a morte. Não rezou. Não suplicou nem implorou ante o bispo por sua vida e tampouco faria semelhante coisa ante Deus. Tinha chegado até ali com uma intenção cruel. Sabia quando a começou. E se Deus a tinha julgado indigna de assistência, poderia lhe dizer muito em breve. Se não houvesse Deus... Ela se lembrou o que Sócrates disse sobre a morte antes de tomar a cicuta. Talvez fosse só um sonho eterno. Se fosse assim, não o considerava algo ruim, já que nunca tinha ouvido ninguém criticar a experiência de um sono longo e reparador. Então por que teria medo de uma sesta eterna?
Não havia por que. O homem estava certo. Era o que Lucila opinava quando leu os Diálogos pela primeira vez e seguia pensando. Pela manhã, quando chegasse o dia, encontraria sua faca. Sabia em que lugares o pulso passava mais perto da pele, no cotovelo e perto do polegar. Um corte decidido abriria um vaso sangüíneo nesse lugar e não lhe faltava decisão. E tudo acabaria. Depois de pensar, se estirou, relaxou e voltou a adormecer.
E nessa noite choveu.
Até os céus pareciam chorar pelo rei lombardo. Carlos perseguiu Desidério através de um campo sob a chuva enquanto os aguaceiros da primavera caíam sobre as terras dos Alpes. Carlos manteve seu exército em ordem. Cavalgava adiante sob estreita vigilância de seus melhores homens a cavalo. O grosso dos famosos scarae o seguia, protegendo as colunas a pé e outro contingente avançava trabalhosamente na retaguarda com os carroções de fornecimentos.
Maeniel e uns quantos e seletos guerreiros ocupavam um lugar de honra junto a Bernard, o tio de Maeniel, na vanguarda. O fato de que dois dos guerreiros fossem mulheres inquietava alguns dos cortesãos de Carlos, mas nenhum desejava realmente enfrentar Silvia ou Matrona.
Durante o tempo que passaram no acampamento, Gavin se dedicara a derrubar na comodidade dos carroções e seus excessos sexuais, gustativos e alcoólicos já eram legendários em certas seções da corte. Mas tivera que fazer muitas lavagens, fumigados, mudanças de lobo para humano e vice e versa, para se livrar de um grande sortido de pulgas, piolhos, de sete variedades de diferentes e incômodas enfermidades sociais contraídas durante suas peregrinações entre as damas e cavalheiros de vida alegre.
Nestes momentos Matrona não falava com ele. Silvia tampouco.
A viagem não era cômoda e estava chovendo durante toda a manhã. O vento os pegava de frente. Quase todos vestiam malha. Tinha que ser acolchoada e estava realmente empapado.
Maeniel contraiu sua pele de forma decididamente pouco humana para sacudir a água dos braços.
Gavin deu um gole em uma jarra e a ofereceu a Maeniel.
—Realmente deveria prová-lo, meu senhor. É um vinho estupendo. Estive bebendo desde ontem à noite e não posso sentir absolutamente nada.
Maeniel o cheirou e decidiu que Gavin deveria estar morto. Beber isso devia matar qualquer um em pouco tempo.
—Nós o compramos de um velho em uma granja das montanhas. Primeiro faz vinho de nabo. Depois o congela, joga o que não se congela, acrescenta algumas ervas e...
—Se mate com ele. - Disse Maeniel.
—Oh, isso é só para colocar os cogumelos. - Lhe disse Gavin. - Se a encharcar de mentas, fica muito forte.
Maeniel acreditava. Somente em cheirar o hálito de Gavin lhe lacrimejavam os olhos. O conteúdo de álcool era simplesmente incrível e o aroma de valeriana, uma variedade de ervas. O cheiro de ópio era pestilento.
—Tenho que me lembrar do nome do velho para poder voltar e conseguir um pouco mais. - Comentou Gavin. - É agradável nos dias de chuva.
Nesse momento, Arbeo chegou a galope. Freou junto a Audovald e gritou:
—A caravana com a bagagem está sendo atacada.
Carlos não parecia muito preocupado.
—Eles irão querer nos frear. Pode se encarregar disto, senhor Maeniel?
Maeniel moveu a cabeça.
—Sim.
Silvia e Matrona seguiram até a caravana da bagagem. Quando chegaram tudo estava revolto. Haviam ferido um homem e dois dos bois que puxavam dos carros de provisões estavam mortos.
Silvia saltou do cavalo e se uniu aos criados para ajudá-los a cortar os arreios dos bois mortos e arrastar o carro para o lado, para evitar que bloqueasse o caminho. Havia um tipo musculoso que parecia não gostar de muito receber ordens de Silvia. Mas quando ela pegou um dos bois pelas patas e arrastou o enorme cadáver até uma árvore, pois sua intenção era esfolar e estripar o mesmo para salvar a carne, mas primeiro ia pendurá-lo usando para isso uma somente a mão, todos decidiram que a discrição era melhor que a coragem na hora de lidar com Silvia. Maeniel não acreditava que fossem causar problemas. Então ele e Matrona se afastaram em perseguição dos atacantes.
Embora tivessem saído das montanhas, a paisagem era ainda abrupta, com afloramentos rochosos, altas colinas, profundas ravinas e pequenos vales fluviais. Cruzaram um vale estreito atravessado por um arroio e se detiveram na ladeira de uma colina ainda mais alta.
—Robert. - Disse Maeniel. - E acredito que o capitão de Desidério, Antonius me deu seu nome... Nirvardd. Sabem o que posso fazer.
—Hum... - Disse Matrona. - Cavalgue até o alto da colina.
Maeniel o fez.
O arroio que acabavam de atravessar desembocava em um afluente do enorme Correio. Fluía através de um vale densamente povoado de árvores sob a colina. Do interior do bosque, perto da água, Robert e Nirvardd o observavam.
—Meu Deus! - Disse Robert.
—Sabe o que ele pode fazer? — Perguntou-lhe Nirvardd.
—Oh, sim. Ele e sua esposa. Mas está muito longe para uma flecha e, de todo modo, eu não...
—Não, não, não. - Disse Nirvardd. – Eu não estava pensando nisso. É só que eu não gostaria de tê-lo atrás de nós.
—Deus, não! - Disse Robert. - Iremos ao rio. Sequer os cães de caça podem... Parta.
A um sinal de Matrona, inaudível para os humanos, Maeniel voltou o cavalo e retornou por onde havia chegado. Para Silvia não iria ruim que a ajudasse com os bois.
Nirvardd e Robert seguiram cavalgando e nunca viram a loba negra que os observava por entre as sombras.
A noite, Maeniel estava sentado diante de uma taça de vinho, falando sobre assuntos de estado com Antonius. O resto da alcatéia havia escolhido seu aposento como dormitório comunitário. Estavam atirados com abandono sobre os tapetes persas, os lençóis de seda e o sofá dobradiço. Quando ele estivesse cansado, os da cama lhe dariam um lugar. Todos menos Gavin, que estava dormido no chão sob a mesa.
Antonius notou pela extremidade do olho que algo se movia, olhou para lá e viu que Gavin se convertera em lobo novamente.
—Está se tornando descuidado.
—Sei disso. - Disse Maeniel. - O outro dia quando jantava com o rei, alguém comentou que eu tinha muitos cães no acampamento.
—Sim. - Respondeu Antonius. – E outro dia Joseph me disse que era muito irritante mudar somente para sair à noite e esvaziar a bexiga. Que além de estar frio, a pele de lobo era muito melhor. Antonius ergueu os olhos para o alto. - O que disse à pessoa que fez o comentário?
—Que não incomodasse meus cães. Que eram perigosos. - Disse Maeniel. - Cães de guerra. Treinados para matar. Como nossos cavalos, treinados para a batalha.
Antonius sorriu.
Matrona entrou no pavilhão. Antonius deu um salto, embora ele e Maeniel estivessem esperando sua chegada. Ela usava um vestido longo de seda pura. Era vermelho com violetas e acantos bordados em ouro e flores de cardo bordadas em prata.
—Você é... - Disse Antonius. - Simples, assombrosa e incrivelmente bela.
—Obrigado, agrada-me que pense assim. Estava procurando um entretenimento. Esse idiota... — Ela deu um olhar rápido em Gavin. - Não vale a pena nestes momentos. O rei está ocupado e o saxão ainda vaga pelo bosque. O que me diz, quer companhia esta noite?
—Minha senhora, seria uma honra e um grande prazer contar com sua presença em minha cama.
Matrona estendeu-lhe a mão.
Antonius a beijou.
—Esperemos que assim seja. - Disse ela.
—Acredito que o posso garantir. Respondeu ele. – Estou celibatário há algum tempo.
Matrona ronronou como um grande gato.
—Oh, sim. - Disse Antonius.
Depois ela se voltou para Maeniel.
—Era quem eu pensava. Nirvardd e Robert. Quando saí eles dormiam o sono dos justos. Acreditam que estão sendo preparados e para seres humanos, estão. Os dois têm pelo menos certo caráter e estão tentando revoltar os camponeses contra Carlos. Movem-se pelo campo, recolhem homens, organizam uma incursão. Depois o bando se dissolve e Nirvardd e Robert seguem sozinhos, para evitar ser capturados facilmente. Entre uma coisa e outra poderiam causar muitos problemas a Carlos.
Maeniel olhou para Antonius.
— Ele não mandou nenhuma partida de reconhecimento, enforca os desertores e flagela os que se perdem. Acredito que pode estar pensando o mesmo que nós.
Maeniel assentiu.
—Vamos atrás eles.
Antonius se levantou, seu manto caiu ao chão e ele se deixou ver que estava armando.
—Necessitam de mim? — Perguntou Matrona.
—Não necessariamente. - Disse Maeniel e deu um uivo grave e Gavin despertou. Bocejou com vontade e depois levantou o focinho para o céu.
—Não o faça. - Disse Maeniel.
Gavin se deteve e depois se sacudiu com tanta força que suas orelhas moveram de um lado a outro.
—Necessito de você, como homem. - Disse Antonius.
Produziu-se uma estranha piscada e Gavin, nu, começou a se arrastar para sair debaixo da mesa.
—É bonito. - Disse Antonius.
—Ele cheira mulheres, bebida, drogas e o suor que acompanha a bebida e o sexo, além da algumas outras coisas realmente desagradáveis que só um humano poderia comer. Ao que terá que lhe somar as últimas quatro ou cinco mulheres com as quais se deitou, por não mencionar os dois ou três carroções de alterne que visitou. Vindo isso de que Gavin é bonito? — Perguntou-lhe Matrona. - Você gosta dos homens?
—Digamos que acredito que posso ser como uma mãe nesse aspecto. Tenho fama de não rechaçar, se surgir à oportunidade.
Gavin era bonito, pensou Maeniel. Tinha o cabelo vermelho e a pele branca da maioria dos ruivos. Era robusto mais que imponente, mas tinha uma constituição elegante, um corpo esbelto e muito musculoso, com traços bem definidos e olhos magníficos.
Gavin estava sentado em um banco, atando a tanga e colocando as meias. Deteve e olhou para Antonius.
—Como é? — Ele lhe perguntou. - Nunca o provei.
Antonius sorriu lentamente. Ele sabia que a maioria dos tabus humanos não significava nada para esta gente.
—Pode ser prazeroso. Venha comigo alguma vez e lhe mostrarei. Mas agora deverá aceitar minhas desculpas. Tenho uma oferta algo melhor.
Gavin olhou para Matrona airadamente.
—Sem dúvida alguma- Ele disse enquanto começava a fechar a calça de montar.
Matrona riu.
—Irei como loba.
Umas quantas horas mais tarde, Maeniel conduzia Nirvardd e Robert até o interior do pavilhão e os sentava à mesa. Era difícil, porque ambos os homens estavam atados, com as mãos nas costas e cordas ao redor do pescoço. Antonius se sentou em um extremo da mesa e Matrona entrou vestida com o mesmo vestido escarlate.
Os hóspedes não entraram tranqüilamente.
Nirvardd havia lutado, fazendo todo o possível para que Maeniel o matasse, mas Antonius o pegara com um laço com a correia envolta em pele flexível. Uma vendagem ensangüentada ao redor da cabeça lhe cobria um enorme marca e um corte em um lado da testa.
Robert tinha fugido, mas Matrona o alcançou.
Aterrissou sobre suas costas, descarregando seus oitenta quilos de peso sobre o homem. Robert baixou dando tropeções pela íngreme ladeira, estrelou contra um tronco de árvore e rompeu duas costelas. Seguia tentando lutar, mas Maeniel já tinha chegado até lá e o reduziu.
—Vos trouxe aqui porque queria falar com vocês. - Disse Maeniel aos dois.
Robert soltou uma gargalhada de pura mofa e descobriu que tinha a boca cheia de sangue. O nariz também estava quebrado. Voltou para cuspir e notou que o chão de lona da casa estava coberto com um tapete de seda. E ele era muito bem educado para cuspir em um tapete de seda.
Matrona se levantou e lhe ofereceu um recorte de linho. Ele cuspiu e depois ela afastou sua cabeça para trás para lhe pôr um tecido limpo e úmido no nariz. Massageou-lhe a face com os dedos.
—Fica quieto. - Disse Matrona. - Ninguém quer lhes fazer mal. Não somos homens e, portanto, não somos cruéis. Se meu senhor Maeniel quisesse matá-los teríamos acabado com vocês esta tarde.
Os dedos de Matrona e sua voz obraram a mesma magia utilizada o Otho. Robert se tranqüilizou. Não lhe doía tanto o nariz e havia deixado de sangrar. Ela deu alguns passos para trás e voltou para seu assento. Robert pôde respirar e colocar sua cabeça em um ângulo normal.
—Então, por quê? — Ele perguntou.
—Porque estão oferecendo a mais absoluta lealdade de seus valorosos corações a um homem que não a merece. Desidério. - Lhes disse Maeniel.
—É meu rei. - Respondeu Nirvardd.
—É o senhor a quem devo obediência. - Disse Robert.
—Conhecem o bispo? — Perguntou-lhes Maeniel.
—Ebroin, esse era seu nome quando servia no exército. - Disse Nirvardd. - Sim, é obvio que conheço. Crescemos juntos.
—Robert? —perguntou Maeniel.
—Conheço-o. Ensinou-me as letras. Tinha uma escola para todos os meninos do povoado. Minha mãe me enviou. É muito necessário saber ler e escrever se tiver um negócio. Era um bom amigo da família. Tinha uma classe superiora a nosso, mas visitava minha mãe freqüentemente nos bons tempos.
—Desidério o enforcou. - Disse Maeniel.
—Não! - Gritou Nirvardd. – Ela não faria isso. Não poderia fazer algo assim.
—Não. - Disse Robert, mas por sua expressão dizia que acabava de receber um golpe.
Maeniel tirou sua adaga, levantou e cortou as cordas que atavam os dois homens. Depois lhes tirou os nós corrediços que tinham ao redor do pescoço.
—Vão embora. - Disse enquanto assinalava a entrada da loja. - Voltem a Pavia e comprovem se minto. Tudo o que lhes peço é que evitem levar a cabo qualquer ação contra do rei franco antes de fazê-la. Robert, onde está sua mãe?
Robert empalideceu.
—Deixou a cidade, pelo menos isso é o que me disse. Que fugiria para Turin e ficaria com uns amigos. Por quê?
—Havia cinco na forca. Era o bispo, o segundo era Benignus, a voz da lei; o outro eu não o conhecia, mas o quinto era uma mulher.
—Benignus é sagrado. - Disse Robert. - Machucar um representante da lei é uma abominação. Não aceitam dinheiro, para assim ser livres e aconselhar as pessoas de forma honrada.
—Aparentemente o representante não era sagrado para Desidério. - Disse Maeniel. Depois ele fitou Nirvardd e viu que o homem chorava com os olhos abertos e as lágrimas lhe molhavam a barba cinza.
—Era um de meus melhores amigos. - Disse Nirvardd destroçado. - Não posso recordar os dias em que não o conhecia. Se o que diz é verdade, meu rei é um monstro.
—É certo. - Disse Maeniel. - Oxalá não o fosse.
—Como pudeste estar ali e voltar tão rápido? —perguntou Nirvardd.
—Já viu o que fiz na igreja. Para um de nós, a distância é menor uma vez passadas as montanhas. Fui a Pavia novamente. Desta vez não me capturaram. Posso passar através dos lugares habitados pelo homem como se fosse fumaça ou vento. Estava preocupado por sua mãe. Pelo que pude ver, sua casa estava vazia. Os ratos estavam famintos, mas não puderam me dizer nada mais.
—Os ratos não são muito preparados. - Disse Matrona. - Sua capacidade de observação é limitada.
—Ou não estão dizendo tudo o que sabem. - Disse Antonius.
—Estamos destroçados pela tristeza e vocês com brincadeiras. - Disse Robert.
—Não são brincadeiras. É certo que estava procurando sua mãe e que tomei a moléstia de subornar os ratos com comida. Pude conseguir roupa no povoado e aproveitei a oportunidade para me mover em forma humana. - Disse Maeniel. - Nirvardd estava na igreja; mas você nos viu pegar os criminosos. Ambos sabem o que podemos fazer. Ouvimos vocês falar sobre nós ontem. Viam o sol com tanta claridade como nós víamos vocês escondidos entre as árvores.
—Matrona estava lá? — Perguntou Robert.
—Era loba. - Disse ela.
—Venham comigo ver o rei. - Disse Maeniel. - Pagamos nossas dívidas. Foram amáveis e hospitalares com minha esposa e, quando chegou o momento, tentaram me ajudar. Eu os recomendarei a ele. Prestei-lhe um grande serviço e ele me ouvirá. Se não querem ver Carlos, lhes devolveremos os cavalos e poderão partir, mas da próxima vez que atacarem as caravanas de mercadorias... O rei me pediu que pusesse fim a essas incursões. — Maeniel golpeou duramente a mesa com a palma da mão produzindo um forte rangido. - E eu o farei.
Umas quantas horas mais tarde eles foram ver Carlos. Quando entraram, ele estava com Bernard e vários homens encarregados do abastecimento de fornecimentos. Ele despachou-os salvo Bernard, ao ver entrar Maeniel e os outros.
—Estes, - disse Maeniel, - são os homens que estiveram atacando nossos carros de fornecimentos. — Ele assinalou Robert e Nirvardd.
Carlos assentiu.
—Claro que a pergunta óbvia é, por que não estão nem cobertos de correntes, enforcados ou mortos?
—Com sua permissão, meu senhor. - Disse Maeniel. - Eu gostaria que Antonius respondesse essa pergunta.
—É obvio. - Disse Carlos. - Sua majestade se sente honrada. Antonius sempre se mostra obsequioso em seus elogios a minhas palavras e obras. Então deviam falar os oradores que uma vez se dirigissem ao antigo senado romano quando enchiam de louvores os conquistadores do mundo. Faz-me sentir como se já estivesse morto, Antonius.
—Deus me livre, sua majestade! - Disse Antonius. - Seria mais acertado dizer que me equivoco ao oferecer minha indigna arte em honra daqueles cujas obras são de uma magnificência tal que conseguem que tudo os louvores vulgares resultem supérfluas.
Bernard estalou em gargalhadas.
—Sobrinho, você não pode ganhar. Ele sempre o superará.
Carlos sorriu.
—O que acontece desta vez, Antonius?
—Meu senhor, eu acredito que para todos os efeitos salvo no nome é já o conquistador do reino lombardo. Chegaremos a Pavia amanhã e, embora Desidério espere poder resistir, não oferecerá mais resistência.
Carlos assentiu.
—Desidério é preparado. Espera que a fome acosse suas tropas tanto como sua cidade. — Continuou Antonius.
—Sim, por essa razão estamos celebrando este encontro. Preocupa-nos o assunto dos fornecimentos.
—Tempos atrás, - disse Antonius, - existiu outro grande homem que dirigiu um exército contra a Itália. Seu nome era Aníbal de Cartago, um comandante de prestígio.
—A carreira do grande cartaginês não me passou por cima. – O interrompeu Carlos.
—Ele ganhou todas as batalhas que liberou, menos a última - Disse Antonius.
—A única vitória que resulta absolutamente necessária para qualquer comandante. - Disse Bernard.
—Exatamente. - Disse Antonius. - E sabem por que perdeu?
—Picarei. - Disse Carlos. - Por quê?
—Porque o brilhante cartaginês era conhecido tanto por sua crueldade como por suas proezas militares. - Respondeu Antonius. - No fim as cidades da Itália o temiam como a morte e preferiram apoiar o demônio conhecido, Roma, em vez de enfrentar o demônio por conhecer.
Carlos assentiu.
—Meu senhor Maeniel traz estes dois valentes homens ante você. Não porque os temam, mas sim porque o rei da Pavia traiu os dois de forma imperdoável.
—Sei. - Disse Carlos. – Ele enforcou seu bispo Ebroin. Pensei que essa ação poderia fazer diminuir sua popularidade. Ebroin estava aparentado com a metade da nobreza lombarda.
—Minha foi mãe assassinada? — Interrompeu Robert.
—Não. - Disse Carlos. - E não fique com cara de surpresa, Maeniel. Tenho fontes de informação independentes na Pavia. – ele se voltou para Robert. - Sua mãe se livrou da atenção do verdugo de Desidério. Não sei para onde se dirigiu, mas já não está lá. Nirvardd, de verdade deseja entrar em meu serviço?
—Sim, mas não sozinho. Eu gostaria que Robert viesse comigo.
Carlos se voltou para seu tio Bernard.
—Posso usá-los, os dois. - Disse Bernard. - Quase todos os cachorrinhos aristocráticos que me envia são tão ignorantes como qualquer torrão de barro dos que arrancam os arados. Não seria ruim ter dois homens experimentados que podem ler e escrever e sabem algo sobre assuntos militares. Os grandes latifundiários ouvirão Nirvardd e... — Bernard pensou. Não era homem de grande delicadeza. Robert não era nobre.
—Sim. - Disse Nirvardd. - Mas haverá outros que ouvirão Robert, outros para quem você e eu não somos mais que um par de nobres vagos que tentam recolher plumas para seus próprios ninhos.
Bernard deu um grunhido de aprovação.
—Então que assim seja. - Disse Carlos. - Ambos se unirão aos scarae.
—Vamos. - Disse Bernard ao tempo que se levantava. - Lhes encontraremos um lugar onde ficar e apresentá-los ao resto dos meninos.
—Maeniel, desejo falar contigo. - Disse Carlos.
Ele esperou até que os outros saíssem e só Antonius e Maeniel ficaram na estadia. Carlos abriu seu caderno de anotação e entregou uma pequena parte de papel a Maeniel. Maeniel foi até a porta da casa do rei e o olhou à luz. O papel estava enrolado e enrugado.
Gerberga, a esposa de seu defunto irmão está na Verona. Regeane foi para lá.
—É esta a letra do Adriano? — Perguntou Carlos.
—É. - Respondeu Antonius. - As pombas.
—Sim. - Disse Carlos. - Foram criadas em Genebra. Tomei a precaução de fazer com que mandassem duas dúzias delas ao Papa. Um mensageiro especial me trouxe isto esta manhã.
—Necessitarão de mim para algo mais? — Perguntou-lhe Maeniel.
—Não.
—Então, irei a Verona antes que anoiteça. - Disse Maeniel. - Falem com Matrona ou, se ela não estiver presente, com Antonius.
Maeniel deixou o aposento apressadamente.
—Ele não pediu permissão para se retirar. - Destacou Carlos.
—Ajudaria se eu lhe rogasse seu perdão? — Perguntou-lhe Antonius.
—Não. - Disse Carlos. - Não ajudaria absolutamente.
Capítulo 12
Lucila sonhava e no sonho uma mulher sem rosto lhe oferecia uma taça de água fresca. Nunca tinha desfrutado de um sabor tão doce. Quando despertou, a chuva jorrava através da grade diretamente até sua boca. Lucila ficou em pé sob o ralo, com a boca e os braços abertos para recebê-la e bebeu até se fartar. Depois pôde capturar mais líquido na jarra que antes continha vinho drogado e em todos outros contêineres que pôde improvisar usando os fragmentos de cerâmica descobertos em seus dias de escavações.
Ao amanhecer a chuva cessou varrida ao passar pela frente atmosférica que havia trazido o aguaceiro. Então, depois de afastar seus preciosos contêineres de água da grade e colocá-los em um lugar onde não batesse o sol durante o dia, Lucila se deitou em sua cama de erva e adormeceu sem nenhuma ajuda.
Quando despertou era pela tarde. Ficou deitada em silencio com os olhos fechados por alguns instantes, pensando. Agora tinha esperança e a esperança podia ser tão cruel como a tortura em se não se cumprir. Ela lutou consigo mesma para não ser tão otimista, porque não restava dúvida de que se o bispo e seus sequazes descobrissem que havia sobrevivido durante tanto tempo enviariam alguém para matá-la. Ao cabo de um bom momento se sentou e comprovou os contêineres de água. Havia quatro. A taça de madeira, uma terrina quebrada, um pedaço de cerâmica côncavo que tinha formado parte de algo muito maior e a jarra de argila em que havia o vinho.
No extremo mais afastado da cela, uma depressão no solo havia acumulado um poça bastante grande. Arrastou até ela e bebeu. Depois recolheu o cabelo com uma tira de tecido que arrancou da prega do vestido de lã, pegou suas ferramentas, arrastou-se de volta ao canto e começou a cavar.
Quando obscureceu muito para seguir avançando, arrastou-se novamente até a poça, bebeu dele a fez outro entalhe no pau dos dias, deitou e adormeceu.
Pela manhã a poça se secou e ela bebeu da terrina quebrada e depois do pedaço de cerâmica. Pelo resto, o dia transcorreu de igual forma que o anterior, salvo que fazia um pouco mais de frio. Ela pôde trabalhar um momento maior. As bolhas de suas mãos já gotejavam sangue..
No oitavo dia já só restava água na jarra de vinho. Bebeu dela frugalmente porque estava começando a sentir verdadeira esperança. Agora cavava em terra limpa e estava úmida, branda e fria. Encontrou raízes pela primeira vez. E estava segura de que se aproximava da superfície da colina.
Nessa noite chegou Adalgiso.
A lua cheia já havia saído quando o ouviu sussurrar do outro lado da grade.
—Lucila! Lucila, você está viva? O homem ao que subornei me disse que estaria morta e cheirando, mas não posso cheirar nada.
Ao princípio Lucila pensou que sua mente estava brincando com ela, já que acabava de despertar. Mas depois ouvir seu nome quatro ou cinco vezes, soube que ele estava realmente ali.
—Lucila, por favor, se estiver viva, me responda.
Soava como a mesmo queixa de sempre; ela sentiu um estremecimento de pura raiva que lhe fez tremer todo o corpo com uma necessidade absoluta de matá-lo ali mesmo. E então a parte mais cautelosa de sua mente sussurrou, Garota não seja tola, porque esta pode ser sua única oportunidade. Sua ira desapareceu sob a superfície da consciência e procurou em sua mente as instruções para jogar esta partida.
—Sim. – Ela sussurrou.
—Deus, sim! Você está viva. Sabia que não te renderia tão facilmente como diziam.
Novamente a ira sacudiu sua calma e a fúria fez com que a escuridão sob suas pálpebras se tornasse escarlate.
—Estou, mas... – Ela respondeu. - Me consiga um pouco de comida, um pouco de água. Se não tivesse chovido há duas noites, já estaria morta.
Ele introduziu algo pela grade. Vinho em uma jarra de barro, um guardanapo com umas quantas fatias de pão, um pouco de queijo e, bênção entre as bênçãos, uma salsicha dura. Lucila se ajoelhou para beber o vinho e rasgar o duro pão com os dentes.
—Lucila, você tem que me ajudar.
Durante um segundo, Lucila quase riu. Deus, ele era um menino. Ela... Ajudá-lo?
Melhor averiguar o que acontecia.
—Por quê? — Perguntou-lhe entre um bocado e outro.
—Carlos passou as montanhas e sitiou meu pai na Pavia. Diz que as grandes famílias de latifundiários estão se voltando para Carlos e o ajudam a abastecer seu exército.
Lucila suspirou. Muito tarde para ela, talvez, mas por fim ocorria o que ela e Adriano tinham esperado. Ela tinha vencido. Pequeno consolo. Agora, talvez pudesse usá-lo como moeda de mudança com Adalgiso.
—Me tire daqui. – Ela lhe disse. - Te ajudarei a chegar a um acordo com o Papa. Pode ser que ainda salve alguma coisa.
Ele ficou em silêncio.
—Se deixar que me matem, - sussurrou ela grosseiramente, - está condenado. Se me ajudar, falarei em seu nome. Adriano me ouvirá e Carlos ouvirá Adriano. Prometo-lhe. Mas pelo amor de Deus, Adalgiso, por favor... — Lucila ficou horrorizada ante o desespero da própria voz. - Por favor, me tire daqui.
Durante um momento ela pensou que ela havia partido, quando ele respondeu, ela ficou igualmente horrorizada pelo alívio que sentia; foi como se um calafrio a sacudisse.
—Não posso. – Ele gemeu. - O homem que subornei para que me dissesse onde estava não quis me dar às chaves.
Oh, Jesus! Deus, tenha piedade, pensou Lucila. E não era uma maldição, mas a única prece que tinha pronunciado desde que fora encerrada ali. Adalgiso tivera em suas mãos o homem com as chaves daquele lugar de horrível tortura e o havia deixado partir.
A fúria tomou forma.
—Porco! Porco com pau e as bolas de um camundongo! Corra, bastardo. Corra. Você... Você... Rei? Não serviria nem para governar um monte de esterco. Corra, vá a Gênova, a Veneza, chupa-rolas de merda. Pegue um navio e vá para o no exílio. Apodreça no exílio até o dia de sua morte. - Sua voz se elevou até um grito. - Até o dia de sua morte, ouve-me? Até o dia de sua morte.
O som de sua própria voz a horrorizou tanto que ela teve que se calar. E foi o melhor, porque ouviu pés correndo, gritos e o brilho de luz através da grade. Pegou a comida do chão e a escondeu no fundo da cela, longe das luzes, encolhendo-se contra o muro perto do monte de terra que tinha tirado da colina. Ficou ali até que retornou o silêncio e tudo o que se via através da grade era a luz das distantes estrelas e o único som que se ouvia era o suave zumbido dos insetos sobre a vegetação e o vento agitando as folhas de umas quantos árvores longe de ali.
E então chorou. Nunca soube durante quanto tempo, mas em algum momento parou e não sentia nada, salvo um desespero sem fundo, sem fim, sem esperança. Tinha deixado de chorar e estava descansando, apoiada sem forças no monte de terra, quando ouviu o uivo de um lobo.
Syagrius, Gerberga e Karl estavam sentados juntos. Ouviam Audoin, o verdugo público. Estava falando de Adalgiso.
—Ele foi embora. E sem dúvida deve estar já a meio caminho de Gênova, se é que ainda não chegou. Provavelmente estará em Constantinopla para quando acabar o mês. Teriam que ter ouvido como ela o insultava... E eram insultos muito apropriados. Assim lhe resta um pouco de força.
Syagrius parecia horrorizado.
—Ainda está viva? Quase não posso acreditar nisso. Já passaram oito dias. Irmão, você estaria mais contente se lhe tivesse cortado o pescoço enquanto a tinha sob sua custódia. Qual é a razão desta charada?
—Não sofreu o bastante. - Disse Gerberga com despeito. – Posso imaginá-la com ele, me observando atravessar a praça a caminho da missa, enquanto eles se deitavam em sua asquerosa luxúria. Eu... Eu que lhe ofereci um trono. Assim, ele me usa. Bom, Karl já a fez pagar por isso.
Karl riu entre dentes.
—Pergunto-me quanto mais durará Lucila. Seria interessante saber.
—Não. - Disse Syagrius. - Já basta. Audoin, pegue dois homens e vá a cela. Solucione este assunto agora mesmo. Tinha que havê-la enviado ao pau quando a levaram ante ti.
—Não siga com isso. - Disse seu irmão Karl. - Tudo saiu perfeitamente. Gerberga queria vingança pela perfídia de Adalgiso; você queria assustá-lo para ter o campo livre e chegar ao nosso próprio acordo com o rei franco. Ambos têm o que queriam.
Os lábios de Gerberga se retorceram.
—Temos que tratar com Carlos?
—Não, ainda não. - Disse Karl. - Temos que esperar. Observar como as coisas acontecem. Não sei de nenhum senhor ou rei o bastante poderosa para manter seu exército no campo durante mais de uns quantos meses. Mesmo Carlos o Grande, o Martelo, não foi capaz de manter seus homens em armas durante mais de meio ano. E enquanto ele centra sua atenção em Pavia, nós poderemos nos fortalecer.
Syagrius se sentia incômodo. A mulher deveria estar morta. Deveria ter morrido. O mesmo se poderia dizer de Adalgiso. Mas Karl se excedia um pouco em seu gosto em infligir dor e algum seu dia querido irmão poderia bancar esperto. De todo modo, não encontrava nenhuma falha no raciocínio de Karl. Inclinou diante de seu irmão. Karl sai de braço com Gerberga. Bem, a mulher não tinha perdido tempo buscando outro campeão.
Ele se voltou para Audoin.
—Vá e acabe com ela.
—Pela manhã...
—Agora! Dormirei melhor quando souber que está morta.
—Mas bloqueei os ferrolhos.
—Que ferrolhos?
—Os cadeados das correntes que mantêm a grade fechada. O bispo me ordenou. Disse que ela sabia abri-los. Terá que serrar a corrente pela metade.
Syagrius suspirou.
—Muito bem. – Ele estava muito cansado para discutir. - Mas será seu primeiro serviço pela manhã. Sem descuidos.
—Não, meu senhor. - Disse Audoin. - Sem descuidos.
A loba uivou três vezes antes que Lucila se desse conta do que estava ouvindo. Ela se arrastou até a grade, levantou com os braços, aferrou os barrotes com as mãos e gritou.
—Regeane, Regeane, Regeane... —Deus, por favor, que ela seja.
Houve uma resposta, um longo uivo e uns quantos segundos depois, algo úmido lhe tocou a mão e a cabeça de um lobo ocultou as estrelas.
Um segundo mais tarde Regeane estava de cócoras sobre a grade.
—Sabia que estaria perto daqui. Eu sabia. - Disse Regeane.
—Lavínia chegou a Roma... - Disse Lucila. - Não me atrevia a albergar esperança. Pensei que tinha muito poucas possibilidades de conseguir. Oh, Meu deus! Deus, é tão bom saber que não estou sozinha. Você nunca entenderia.
—Ah, não? Lucila, estes ferrolhos estão trancados. Como te tiro daí? Diga-me rápido, estou congelando.
—Tome. —Lucila usava a camisa de linho. Tirou o vestido de lã e a passou a Regeane através da grade.
Regeane se introduziu no vestido.
—Assim está melhor.
—Seguro que está cheirando mal.
—Sim, mas está quente. E agora, como a tiro daí?
—Esta jaula é em uma colina?
—Sim. - Disse Regeane.
—Bem, a cela se introduz clandestinamente uns quantos passos a minha direita. Comecei a cavar. Acredito que quase cheguei ao outro lado.
— Mostre-me. Faça ruído. Posso ouvir coisas que outros não podem.
Lucila se arrastou até o fundo da cela e começou a golpear a terra com seu improvisado pico.
Um segundo depois ela cedeu sem a intervenção de Regeane e Lucila pôde ver a face de sua amiga.
A princípio a abertura não era o bastante larga para que ela passasse, mas mais alguns minutos de trabalho as duas mulheres criaram um oco o bastante grande para ela se arrastar por ele.
Lucila pegou a mão de Regeane e juntas elas desceram cambaleantes a colina, até chegar a um riacho no vale.
A água estava gelada, mas a Lucila dava a impressão de que não ia poder parar de se esfregar. Ficou de cócoras e nua dentro da água, usando punhados de areia grossa para esfregar o rosto e o corpo. Para Regeane pareceu uma tentativa de lixar a pele até arrancar-lhe. Depois ela bebeu goles e goles da doce, estimulante, fria e clara água.
Por último, ela jogou a destroçada camisa de linho na água e a afundou com uma pedra; depois a amassou com os pés até que esteve mais ou menos limpa. Ficou novamente em cima do resistente objeto, para que se secasse sob seu corpo. Depois se atirou de barriga para baixo sobre a borda do arroio e bebeu um pouco mais.
—Lucila. — Regeane a sacudiu. - Ansgar não está longe daqui. Temos que chegar até seu acampamento. Estou segura de que poderá encontrar coisas limpas lá.
Lucila ficou em pé.
—O inferno, Regeane... Sabe o que é o inferno? É um buraco no chão sem comida nem água. Estive no inferno nos últimos oito dias. Esperavam que morresse. Queriam que eu morresse. Cada dia do resto de minha vida me levantarei e agradecerei a Deus por continuar viva. Não importa que mais coisas saiam erradas no mundo, eu seguirei fazendo isso. - Depois, de repente, sua mente pareceu recuperar o sentido. - Que horas são? Bom Deus, o que fazemos aqui perdendo tempo? Poderiam nos encontrar e nos capturar. Onde está o acampamento de Ansgar? Mostre-me. Stella morreu, não é? Culpam-me por isso? Fiz o que pude. Está segura de que não correremos perigo lá?
—Não sei que horas são, mas a loba sabe que é muito tarde. Nada se move. Não acredito que nos encontrem. Sim. – Regeane estava ajudando Lucila, que de repente se sentia fraca para se levantar. - Sim, Stella morreu. Não, não acredito que Ansgar a culpe. Ou, melhor dizendo, culpa aos outros mais que a você. E sim, não há perigo em seu acampamento. Maeniel estará lá e pela manhã chegará o rei franco.
Meia hora mais tarde as duas chegaram ao acampamento de Ansgar. Causaram uma comoção considerável, porque eles não as esperavam. Haviam informado Ansgar sobre a partida de Regeane de Roma, mas não tinham idéia do que ela e podia fazer nem de seu possível destino. Quando Maeniel chegou, o lobo cinza sabia que ela estava nas proximidades, mas como ela não se revelou, ele só podia supor suas intenções.
Depois que Regeane chegou ao acampamento e conseguisse um pouco de roupa de Matrona, ela encontrou o saxão.
—Maeniel...?
—Obviamente não, - Disse o saxão. - Sigo aqui e inteiro. Não, minha senhora, não era um farol. Não acredito que ele brinque. Simplesmente decidiu que não cumpriria suas ameaças. Sabe que não pode me fazer responsável por suas ações. Agora a aceita. Deu-me um magnífico presente. Ou talvez devesse dizer que me apresentou a um magnífico amigo.
Regeane viu o cavalo, mas não teve tempo suficiente para chegar a conhecê-lo. Matrona chegou e disse a Regeane que Lucila estava chamando-a e se inquietou quando viu que ela não retornava logo.
Regeane se apressou a atender a sua amiga.
Matrona ficou olhando as costas de Regeane com os olhos entrecerrados.
—O que está acontecendo? — Perguntou-lhe o saxão.
—Não sei. - Respondeu Matrona. - Mas Lucila é uma pessoa de muito aprumo e, digamo-lo assim, endurecida.
—Endurecida? — As sobrancelhas do saxão se elevaram.
—Sim, ela poderia desafiar a maioria dos homens. Tal comportamento não é típico dela. Mantenha as duas vigiadas, por favor.
O saxão assentiu e seguiu Regeane.
Lucila havia tomado outro banho e, embora a roupa de Regeane não lhe servisse, a de Matrona sim. Ela estava com um aspecto bastante respeitável quando Carlos chegou ao acampamento.
O rei franco não era um homem de muita cerimônia. Ansgar lhe ofereceu uma taça de vinho e ele se sentou; conversaram durante alguns momentos na entrada da casa de Ansgar, junto ao fogo, sobre o incomum calor da primavera. Ansgar observou que o grupo de jovens bem armados que acompanhavam o rei não lhe tiravam o olho, mas a única coisa que aconteceu foi à chegada Ludolf, que estivera reconhecendo os arredores da cidade. Ele foi apresentado a Carlos. Prostrou um joelho ante ele com elegância e fez uma reverência. Todos pareceram relaxar.
Maeniel e Regeane chegaram nesse momento com mais comida e vinho subministrados por Matrona. Lucila e o saxão os seguiram. Matrona havia emprestado A Lucila um vestido azul celeste fabricado em linho de seda, muito simples, mas com linhas longas e fluídas e mangas abertas. Ela usava-o sobre uma saia calça de montar de pele e Matrona tinha insistido em que usasse também uma fina cota de malha entre o vestido e a camisa.
Lucila envolvera a cabeça em um denso véu de linho, mas quando Carlos fitou seus olhos algo terrível pareceu saltar dela para ele. Fosse o que fosse, durante um momento lhe cortou a respiração. Eles cintilavam como pedaços de gelo a luz do fog. Então ela se inclinou e prostrou também um joelho diante dele.
Ele a convidou a se sentar. Ela sentou.
—Ansgar me disse que estiveste na cidade e pode nos dizer o que devemos esperar de lá.
Lucila assentiu e depois, com voz clara, tranqüila e bem modulada falou-lhe da organização da cidade, suas defesas, quantos homens Syagrius possuía e onde se alojavam, onde guardavam os cavalos e as armas extras. Depois procedeu a desenhar um mapa em um pedaço de papel marcando a localização mais provável das casas de Syagrius e Karl, da catedral, da residência de Gerberga e a disposição das casas nas quais ela e suas mulheres dormiam, assim como da outra asa, aonde dormiam os príncipes.
Impressionado, o rei assimilou a informação.
—Os romanos fortificaram bem a cidade. Como entramos?
Lucila riu. Regeane viu como lhe cintilavam os olhos. Ela se voltou para Ansgar.
— Eles têm a menor idéia de que estamos aqui?
Ansgar sorriu, seu sorriso era tão frio como o gelo nos olhos de Lucila.
—Não.
—Pensei nisso. Pela manhã, cada manhã, eles abrem as portas para deixar entrar os granjeiros que levam carne, ovos e verduras à cidade. O vigilante abre as portas quando os carros aparecem, entre as primeiras luzes do dia e o alvorada. O caminho não está longe daqui. Esconde-o um vinhedo e uma plantação de oliveira. Quando ouvirem o rangido dos carros e os gritos dos condutores, elas se abrirão. Simples e rapidamente, antes que o vigilante saiba o que acontece, cavalguem adiante dos carros dos granjeiros e a cidade será sua.
—Estive observando-os. - Disse Ludolf. - Seu plano é factível, mas devemos nos mover com rapidez. Quando chegar o dia verão nosso acampamento e darão o alarme.
Lucila pegou a mão de Regeane e as duas mulheres deixaram para trás o surdo bulício do acampamento. Moveram-se em silêncio juntas através do vinhedo. Regeane viu que a luz era já azul. As videiras começavam a jogar suas folhas; o ar era como costumava ser durante o dia... Muito tranqüilo.
—Sente melhor agora? — Perguntou Regeane a Lucila.
—Sim, mas preciso de você, Regeane. Prometa que não me deixará. Aconteça o que acontecer, não me deixe.
—Sim. — Regeane estava algo perplexa pelo medo de Lucila. O que podia lhe produzir medo agora? Os olhos da loba eram melhores que os da mulher, mas mesmo para um humano, o azul das primeiras luzes da manhã se tornava cada vez mais pálido. Podia ver a bruma no solo a se converter em rocio sobre as robustas e fibrosas videiras e se depositar em forma de gotas sobre as jovens folhas verdes. Os olhos de Regeane puderam distinguir o saxão e Maeniel montados em seus cavalos entre as árvores de olivas. E então ela ouviu os primeiros carros, as rodas estalando ao longo dos grandes paralelepípedos do antigo caminho romano.
Audoin havia se sentido inquieto e tinha dormido mal. Syagrius não gostara de saber que a mulher romana seguisse viva. Então havia tirado dois de seus ajudantes da cama cedo e estavam se aproximando das portas da cidade, já à primeira hora.
Ouviu o ruído, mas não viu as portas abertas. Começou a se apressar. Ao chegar as portas, ele se afastou para o lado, para deixar passar um carro carregado de lenha; encontrava-se olhando o caminho envolto na brumosa luz que precede à alvorada, quando ela apareceu. A mulher da cela. Saiu cavalgando da névoa matinal com alguns mais. Outra mulher e quatro homens, e teve a sensação de que vinham mais atrás.
Audoin sentiu como lhe enrijeciam todos os músculos do corpo e o cabelo de nuca se arrepiou de medo. De todas as criaturas que povoavam o inferno, a terra e o céu, ela era a menos oportuna e com diferença. E tirou o chapéu rezando para que não o visse.
Ela não o viu e seguiu cavalgando, com os olhos fixos no caminho que tinha adiante. Enquanto o cavalo passava a meio galope junto a ele, se deu conta de que estas pessoas estavam à cabeça de uma coluna de homens armados e a cavalo, que entravam em fila de dois na cidade. Deixaram-lhe para trás em meio a um torvelinho de cascos, montarias e armaduras, como se voassem pelo caminho. Os homens da guarda estavam em pé olhando boquiabertos a procissão que passava diante deles, até que um deles se deu conta de que estava presenciando como acontecia um desastre militar. Mas então o único ele e seus companheiros guardiões fizeram foi correr, desvanecendo no estreito labirinto de ruas próximas as portas, enquanto os homens de Carlos e Ansgar entravam na cidade em turba. Quando notaram como desapareciam os vigilantes, Audoin decidiu que o melhor seria seguir sua estratégia. Então ele e seus dois ajudantes empreenderam fuga.
Ansgar, Regeane e Lucila puxaram as rédeas na praça, em frente à residência de Syagrius. Meia dúzia de scaraes estava já forçando as portas, que se abriram de repente e Ansgar subiu os degraus e os seguiu para o interior da casa, com o Regeane e Lucila atrás dele acompanhadas pelo saxão.
Lucila não queria soltar a mão de Regeane.
—Necessito de você. – Ela lhe sussurrou. - vai se desacorrentar um inferno. Fique perto, estará mais segura.
Os criados e os guarda-costas da família nem sequer tiveram tempo de opor uma resistência simbólica. A maioria fugiu e uns quantos atiraram suas armas e se renderam. Minutos depois, os homens de armas do rei tiraram Syagrius e Karl de suas camas e os empurraram até o centro do salão para que enfrentassem Lucila e Ansgar.
Regeane podia ouvir gritos terríveis no exterior e sentir o cheiro de sangue, madeira queimada e carne abrasando. A loba se pegou a Regeane, aterrada. Queria sair. Regeane, embora assustada, a fez retroceder. Carne queimada não era mais que carne queimada. Então Regeane adivinhou o que a carne torrada era e sentiu uma náusea quente quando o conteúdo de seu estômago pareceu subir e começar a afogá-la. O mau cheiro se introduzia através das altas janelas de ambos os lados do salão de palácio.
Syagrius parecia desconcertado.
—Quem são? O que querem? O que aconteceu? Meus homens? Meus serventes?
—Seus criados se foram. - Ansgar parecia quase triste. - Seus homens... Acredito que isso é o que resta deles, fumaça e mau cheiro. As tropas do rei os pegaram na cama. Os barracões já estão queimando. Tenho uma pergunta a te fazer.
—Que rei? — Gritou Syagrius. - Que rei está fazendo isto?
—Carlos, o rei dos francos. - Respondeu Ansgar com calma. - Agora responda a minha pergunta, por favor. Onde está Adalgiso?
—Adalgiso? Onde está Adalgiso? — Repetiu Syagrius estupidamente. - Está... Está... Não está aqui. Nós o assustamos ontem à noite e o enviamos a visitar uma amiga...
—Irmão, cale-se. - Disse Karl. - A mulher... – Ele disse assinalando Lucila. – Ela é a mulher.
Syagrius retrocedeu.
—Eu disse a você que devia tê-la matado.
Karl estava imóvel, olhando para Lucila com fascinado horror.
—Adalgiso? — Repetiu Ansgar.
Syagrius limpou a boca.
—Foi embora. Interpretamos uma farsa, fingimos tentar agarrá-lo junto a sua cela. Ela o insultou e ele fugiu. Pegou todas as riquezas que tinha entesourado em sua casa. Por isso sabemos que se foi para sempre. Seus cofres estão vazios. Ele fugiu para a costa.
No exterior já morria a escuridão. Regeane podia ouvir algumas mulheres chorando e outras gritando. Acima dos sons de desespero humano, Regeane também ouvia o estrondo e os gritos de alarme enquanto os soldados forçavam as portas das casas e arrancavam as venezianas das lojas. O saque da Verona progredia com rapidez. Intuía que toda resistência tinha sido sufocada nos minutos seguintes ao ataque, mas a agonia das pessoas da cidade duraria algo mais.
—Sei. - Disse Ansgar tranqüilamente. - Lucila?
—Karl, tem algo a me dizer? — Perguntou-lhe ela.
—Minha querida senhora... - Disse Karl. - Deve compreender que tenho parentes ricos. Poderiam pagar um bom resgate por mim. Não tínhamos más intenções para com a senhora. Era puramente um assunto de negócios, nada pessoal, asseguro-lhe.
Lucila pegou uma flecha das mãos do scarae mais próximo. A essa distância era quase impossível falhar. Um segundo depois a flecha impactava o peito de Karl.
Ele pareceu voar para trás, para depois aterrissar feito uma planta, com o corpo lasso antes de tocar o chão. Regeane pensou que não parecia mais que uma pilha de roupa suja.
Ansgar se voltou para Syagrius, que estava pálido como um fantasma e tremia visivelmente. Ele sujou as calças. Regeane podia sentir o mau cheiro.
—Syagrius, - lhe disse Ansgar. - Adalgiso chamou minha esposa Stella de puta. Também o fez seu amigo Eberhardt e, mais tarde, Dagobert a tentou obrigar que exercesse o papel de puta com ele. Agora bem, todos eram homens jovens, nenhum o bastante velho para conhecer minha Stella quando ela foi injustamente encerrada naquela casa de má reputação em Rávena. Mas eu me recordo de vê-lo lá. E sei que alguém deve lhes ter contado histórias sobre minha Stella. Eu acredito que esse alguém foi você. Posso recordar o medo em seus olhos antes de resgatá-la daquele horrendo lugar. Minha pobre, frágil e pequena Stella. E lembro-me ainda mais medo quando ela te olhou e vejo o mesmo medo em seus olhos agora. Cheiro em seu corpo a peste de seu medo e, sabe o que? É um medo bem justificado, porque vou matá-lo.
Ansgar se voltou para os scarae.
—Tirem-no para fora e o enforquem. Usem um nó corrediço e deixem que ele chute um pouco.
Os soldados tiveram que tirá-lo a rastros e gritando. Por fim, ele desmaiou.
Regeane saiu correndo do salão. Lucila a perseguiu.
Detiveram-se porque Syagrius estava pendurado de um balcão do segundo piso e estava, tal e como havia dito Ansgar, dando chutes. Regeane cambaleou pela rua. Quase caiu porque tinha os olhos fixos no homem, cuja face se tornava negra enquanto segurava o pescoço com a mão. Lucila a alcançou e a pegou pelo braço. Perto do palácio ela viu outra casa, a fumaça saía de cada porta e janela. Correu para ela. As portas estavam no chão, sobre a rua.
O saxão pegou Regeane pelos ombros.
—Não entre aí. – Ele lhe pediu.
Regeane olhou para ele e logo para Lucila. Lucila enfrentou-a, com o olhar mais frio que Regeane já vira.
—A rainha. - Ofegou Regeane. - Seus filhos! Você sabia. Você sabia o que Carlos faria.
—Sim, e sabia que você tentaria detê-lo e que ele a mataria como eles. Não se atrevia a deixar viver esses pequenos. Têm tanto direito como ele ao trono. Se já não estão mortos, devem morrer. Detenha-a! Não deixe que ela vá...
Regeane gritou desesperada. Retorceu entre os braços do saxão. Ele era um homem poderoso. Voltando-se sobre o corpo de Regeane, ele lhe retorceu o braço nas costas.
—Se tenta deter Carlos, ele a matará e talvez a todos nós.
O saxão passou um braço ao redor do pescoço de Regeane para segurá-la melhor. Ela era incrivelmente forte. Nunca havia conhecido uma mulher tão poderosa.
—Quebre seu braço se precisar. - Ordenou Lucila. - É melhor isso que vê-la morta nas mãos do rei e seus homens. Desafiem-na...
O saxão não ouviu o resto, porque escorregou e caiu de joelhos. Regeane havia desaparecido.
—Espere... — Ele ouviu Lucila gritar.
E ficou novamente em pé em um segundo.
—Ela tem alguns poderes estranhos. - Disse Lucila. - Encontre Maeniel.
O mundo se ondulou de forma estranha e o tempo ficou imóvel. Regeane olhou para Lucila e viu sua sósia junto a ela, nos braços do saxão. A fumaça havia desaparecido e o silêncio da manhã os envolvia. Viu o rei, e seus homens diante dela derrubando as portas. Deslizou como um espírito atrás dele e notou como enfrentava A Gerberga, a esposa de seu irmão, que uma vez fora rainha franco.
Não, pensou Regeane. Não.
Mas então deixou de se importar. Havia saído do tempo. O que tinha acontecido já havia terminado. Tudo o que podia fazer era observar a representação chegar ao seu inevitável final. Regeane viu Gerberga fugir de suas dependências para o salão central. A luz era já brilhante, o salão estava aberto ao jardim que olhava um horizonte repleto da cálida luz dourada do brumoso amanhecer da primavera.
—Carlos. - Disse ela, enquanto se apressava a ficar entre ele e a asa onde dormiam seus filhos. - Carlos. Por favor! Por favor! Não faça mal aos meus meninos.
—O que te faz pensar que eu faria? — Perguntou-lhe ele com calma.
Regeane viu que ele se movia para a direita e que Gerberga se voltava lentamente, agora com as costas apoiada na porta do dormitório dos filhos. Viu que Carlos estava tentando captar a atenção de Gerberga.
—Carlos, por favor, por favor. Em nome de Cristo, não lhes faça mal. Farei tudo o que quiser. – Ela se ajoelhou. - Irei a Bizâncio. Serei sua prisioneira. Irei para um convento, deixarei que me encerre, mas por favor...
E Regeane soube com terrível certeza o que ia acontecer.
Carlos sorriu e estendeu a mão para sua cunhada, como se fora ajudá-la a se levantar.
Bernard saiu do aposento dos meninos. Brandia a pequena espada de guerra, a franco, que dava seu nome aos francos. Era uma beleza delicadamente lavrada em prata para reduzir seu peso, mas com um fio acabado em aço.
Estava ensangüentada.
No último segundo, a rainha notou o olhar de Carlos quando encontrava os olhos de Bernard acima dela. E Regeane observou, por um instante, uma terrível compreensão em sua face. Então Bernard deixou cair sua tocha e Regeane recordou que a espada franco era ainda o instrumento predileto para as execuções.
A lâmina seccionou a coluna vertebral de Gerberga e a mulher caiu para frente, morta aos pés do rei. Regeane o viu retroceder ante a crescente poça de sangue. Deslizou atrás de Bernard e olhou através da porta. Os dois meninos estavam juntos na cama. Estavam tão estava tão relaxados que pareciam dormir. Além da palidez amarelada e serosa de sua pele, poderiam de fato estar dormindo. Mas a cabeça de um deles, do mais velho, estava meio separada de seu pescoço. O sangue ainda corria pelos lençóis, formando uma pequena poça escarlate no chão. Os olhos do menino estavam abertos e suas infantis feições estavam congeladas em um rictus de medo totalmente apropriado.
Novamente Regeane presenciou como a cena se desenvolvia e, voltou a presenciar. E soube que podia ficar ali para sempre vendo esse horror uma e outra vez durante toda a eternidade, se assim o decidisse. Mas não importava quanto tempo o observasse, presa como um inseto em âmbar durante um eterno instante de horror inimaginável, porque nunca poderia mudar nem um ápice do que tinham lugar ante seus olhos.
Mas alguém gritava seu nome. Queria que parasse. Era tão irritante... E então desceu e já lutava entre os braços de alguém, e a arrastavam através de um quarto imerso em uma nuvem de fumaça negra. A única luz era a do brilho sangrento das vigas que ardiam no teto. Lutou contra ele inclusive enquanto a arrastava através de portas quebradas para sair à rua. Arranhou, chutou e gritou, até que olhou para cima e lhe viu o rosto, com um olho inchado por seus murros, com a pele arranhada por suas unhas, e reconheceu seu amor, Maeniel.
—Fui parte disso. Eu ajudei. – Ela gritou. - Se não fosse por mim, ela... Esses meninos... Poderiam seguir...
A praça em que estavam era um caos. As casas ardiam, as pessoas corriam de um lado a outro tentando encontrar seus seres queridos ou atirando suas posses pelas janelas; os soldados se abarrotavam de álcool e comida. Mas já não havia luta.
—Se você me amar, - ela suspirou a Maeniel, - me leve a algum lugar limpo.
Ele a abraçou e lhe acariciou o cabelo com os lábios. O ar estava cheio de fumaça e ninguém pareceu notar os dois lobos que atravessarem a praça e depois correrem a toda pressa para as portas. Ninguém exceto Carlos, o rei. Ele os seguiu com seu cavalo a meio galope. Eram somente sombras recortadas sobre os novos brotos de milho dos campos, sobre as oliveiras que ressaltavam como fumaça entre os vinhedos e sobre os pastos que brilhavam com sua longa e verde grama agitada pelo vento. Depois, desapareceram.
Ele estremeceu pensando, A culpa é de Bernard. A culpa de sangue. Não eram de sua família. Ele é o irmão de minha mãe. Eu estou livre de culpa. Estou livre de culpa.
Mas ainda assim, ele se sentou durante longo momento com as mãos cruzadas sobre o pomo da cadeira, observando as altas sombras das nuvens se moverem pelo belo, rico e verde campo que agora podia reclamar como dele.
Alice Borchardt
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