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O REI PERDE A FRANÇA / Maurice Druon
O REI PERDE A FRANÇA / Maurice Druon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O REI PERDE A FRANÇA

 

As tragédias da história revelam os grandes homens: mas são os medíocres que provocam as tragédias.

No começo do século XIV, a França é o mais poderoso, o de mais densa população, o mais ativo, o mais rico dos reinos cristãos, aquele cujas intervenções são temidas, os arbitramentos, respeitados, a proteção, solicitada. E pode-se pensar que se abre para a Europa um século francês.

Que aconteceu, quarenta anos depois, para que esta França fosse esmagada nos campos de batalha por uma nação cinco vezes menos populosa, que sua nobreza se dividisse em facções, que sua burguesia se revoltasse, que seu povo sucumbisse sob o excesso de impostos, que suas províncias se desprendessem umas das outras, que bandos de salteadores se entregassem à devastação e ao crime, que a autoridade fosse escarnecida, a moeda, aviltada, o comércio, paralisado, a miséria e a insegurança se instalassem por toda parte? Por que esta derrocada? O que, afinal, fez regredir o destino?

A mediocridade. A mediocridade de alguns reis, sua vaidade enfatuada, sua incompetência nos negócios, sua inaptidão para se cercar de assessores competentes, sua displicência, sua presunção, sua incapacidade de conceber grandes intentos ou somente prosseguir naqueles concebidos antes deles.

Nada se realiza de grande, na ordem política, e nada perdura, sem a presença de homens cujo gênio, caráter e vontade inspirem as energias de um povo.

Tudo se desfaz desde que personagens ineptas se sucedam no topo do Estado. A unidade se desfaz quando a grandeza se desgasta.

A França é uma idéia aceita pela história, uma idéia espontânea que, a partir do ano 1000, abriga uma família reinante, e que se transmite tão obstinadamente de pai a filho que a primogenitura no ramo mais antigo toma-se rapidamente uma suficiente legitimidade.

O acaso, certamente, tem sua parte, como se o destino quisesse favorecer, através de uma dinastia robusa, esta recente nação. Da eleição do primeiro Capeto à morte de Filipe, o Belo, onze reis apenas em três séculos e «m quarto, e cada um deixando um herdeiro homem.

Oh! Nem todos esses soberanos foram águias. Mas quase sempre ao incapaz ou ao infeliz sucede imediatamente, como por uma graça do céu, um monarca de grande estatura; ou ainda um grande ministro governa no lugar de um príncipe fraco.

A extraordinariamente jovem França quase perece nas mãos de Filipe I, homem de pequenos vícios ; de vasta incompetência. Sobrevém então o corpulento Luís VI, infatigável, que encontra, no seu advento, um pode: ameaçado a cinco léguas de Paris, e o deixa, ao morrer, restaurado ou estabelecido até os Pireneus. O inseguro, inconseqüente Luís VII lança o reino nas desastrosas aventuras de além-mar; mas o abade Suger mantém, em nome do monarca, a coesão e a atividade do país.

E assim a oportunidade da França, oportunidade que se repete, é ter em seguida, repartidos entre o fim do século XII e o começo do XIV, três soberanos de gênio ou de exceção, cada qual servido por uma assaz longa permanência no trono — quarenta e três anos, quarenta e um anos e vinte e nove anos — para que seu intento principal se torne irreversível. Três homens de natureza e de virtudes bem diferentes, mas todos os três acima do comum dos reis.

Filipe Augusto, forjador da história, começa, em torno e além das possessões reais, a confirmar a unidade da pátria. São Luís, iluminado pela piedade, começa a estabelecer, em torno da justiça real, a unidade do direito. Filipe, o Belo, governante superior, começa a impor em volta da administração real a unidade do Estado. Nenhum deles teve o empenho, antes de tudo, de agradar, mas o de ser diligente e eficaz. Cada qual teve que absorver a amarga beberagem da impopularidade. Mas foram mais lamentados após a morte, porque desacreditados, zombados ou odiados enquanto vivos. E, sobretudo, o que tinham desejado começou a existir.

Uma pátria, uma justiça, um Estado: os fundamentos definitivos de uma nação. A França, com esses três supremos artesãos da idéia francesa, saíra do tempo das virtualidades.

Consciente de si, afirmava-se no mundo ocidental comò uma realidade indiscutível e, desde logo, preeminente.

Vinte e dois milhões de habitantes, fronteiras bem guarnecidas, um exército rapidamente mobilizável, feudatários mantidos na obediência, circunscrições administrativas muito bem controladas, estradas seguras, um comércio ativo; que outro país cristão pode nesse tempo se comparar com a França e não lhe ter inveja? O povo se queixa, é verdade, sentindo sobre si a mão que julga com firmeza; lamentará muito mais quando for entregue a mãos demasiado frouxas ou muito loucas.

Com a morte de Filipe, o Belo, de súbito, a fratura. A longa oportunidade da sucessão está esgotada.

Os três filhos do Rei de Ferro desfilam no trono sem deixar descendência masculina. Contamos, precedentemente, os dramas que a corte da França conheceu em torno de uma coroa várias vezes lançada no leilão das ambições.

Quatro reis no túmulo no espaço de catorze anos; razão de sobra para consternar as imaginações! A França não estava acostumada a correr tão freqüentemente a Reims. O tronco da árvore dos Capetos está como que fulminado. E não é por ver a coroa deslizar para o ramo Valois, o ramo agitado, que alguém irá se consolar. Príncipes ostentosos, irrefletidos, de uma presunção enorme e sem profundidade, os Valois imaginam que lhes basta sorrir para que o reino seja feliz. Seus antecessores confundiam sua pessoa com a França. Eles confundiam a França com a idéia que faziam de si próprios. Após a maldição das mortes súbitas, a maldição da mediocridade.

O primeiro Valois, Filipe VI, cognominado o Ousado (ou, dito de outra maneira, o Usurpador), não soube em dez anos assegurar o poder, porquanto é no fim desse tempo que seu primo-irmão Eduardo III, da Inglaterra, decide-se a reabrir a querela dinàstica: declara-se de direito rei da França, o que lhe permite garantir na Flandres, na Bretanha, em Saintonge, na Aquitânia, todas aquelas cidades ou senhores que têm queixas do novo reino. Perante um monarca mais eficaz, o inglês teria, sem dúvida, hesitado.

Além disso, Filipe de Valois não soube contornar os perigos; sua frota é destruída em Écluse, por culpa de um almirante escolhido, sem dúvida, por seu desconhecimento do mar; e ele próprio, o rei, erra através dos campos, na noite de Crécy, por haver deixado suas cavalarias dar uma carga sobre sua própria infantaria.

Quando Filipe, o Belo, instituía impostos em virtude dos quais era criticado, ele o fazia a fim de colocar a França em estado de alerta. Quando Filipe de Valois exige taxas mais pesadas ainda, é para pagar o preço de suas derrotas.

Nos cinco derradeiros anos de seu reinado, o valor das moedas seria modificado cento e sessenta vezes; o dinheiro perderia três quartos de seu valor. As mercadorias, inutilmente taxadas, atingem preços exorbitantes. Uma inflação sem precedentes torna as cidades resmungonas.

Quando as asas do mal sobrevoam um país, tudo se complica, e as calamidades naturais se acrescentam aos erros dos homens.

A peste, a grande peste, vinda dos confins da Ásia, fere a França mais duramente do que qualquer outra região da Europa. As ruas das cidades são necrotérios; os subúrbios, túmulos. Vilas inteiras desaparecem, das quais não restarão, entre os terrenos baldios, senão pardieiros abandonados ao vento.

Filipe de Valois tinha um filho que a peste, ai de nós!, poupou.

Sobravam à França alguns degraus para descer à ruína e à angústia; seria a obra de João II, erroneamente chamado o Bom.

Essa linhagem de medíocres foi feita a preceito para afastar, desde a Idade Média, um sistema que confiava à natureza produzir, no seio de uma mesma família, o detentor do poder soberano. Mas têm os povos, em geral, sorte maior ganhando na loteria das urnas do que na dos cromossomos? As multidões, as assembléias, mesmo os colégios restritos, não erram menos do que a natureza; e a Providência, de qualquer maneira, é avara de grandeza.

 

                   As desgraças vem de longe

O cardeal de Périgord pensa...

Eu deveria ser papa. Como não pensar e repensar que por três vezes tive a tiara em minhas mãos; três vezes! Tanto para Bento XII como para Clemente VI, ou para nosso atual pontífice, fui eu, no fim da luta, que decidi sobre que cabeça a tiara seria colocada. Meu amigo Petrarca me chama o fazedor de papas... Nem tão bom fazedor assim, porque nunca a pus sobre a minha. Enfim, a vontade de Deus ... Ah!, que estranha coisa é um conclave! Acredito piamente que sou o único dos cardeais vivos a ter visto três. E talvez ainda verei um quarto, se nosso Inocêncio VI estiver tão enfermo como se queixa...

Que telhados são aqueles lá ao longe? Sim, reconheço, é a Abadia de Chancelade, no vale do Beauronne... Da primeira vez, é verdade, era eu muito jovem. Trinta e três anos, a idade de Cristo; e já se murmurava em Avignon, desde que se soube que João XXII... Senhor, guardai sua alma em vossa santa luz; foi meu benfeitor... não se deve esquecer disso. Mas os cardeais não iriam eleger o mais jovem dentre seus irmãos; e seria razoável, confesso-o de bom grado. É preciso nesse cargo a experiência que adquiri depois. Mesmo assim, já tinha então bastante experiência para não me encher a cabeça com ilusões vãs... Procurando segredar suficientemente aos italianos que jamais, jamais, os cardeais franceses votariam em Tiago Fournier, consegui desviar seus votos para ele e elegê-lo por unanimidade. “Elegestes um asno!” Foi o agradecimento com que me brindaram assim que seu nome foi proclamado. Ele sabia de suas deficiências. Não, nem asno, nem também leão. Um bom geral da ordem que conseguira fazer-se obedecer, à frente dos cartuxos. Mas dirigir toda a cristandade... demasiado minucioso, cuidadoso demais, muito inquisidor. Suas reformas, finalmente, trouxeram mais mal do que bem. Apenas, com ele, estava-se absolutamente certo que a Santa Sé não retornaria a Roma. Sob esse ponto de vista, um muro, uma rocha, e era o essencial.

Da segunda vez, no conclave de 1342... Ah!, da segunda vez, teria tido todas as vantagens se... Filipe de Valois não desejasse fazer eleger seu chanceler, o arcebispo de Rouen. Nós, do Périgord, tínhamos sido sempre obedientes à coroa da França. E, depois, como poderia continuar a ser o chefe do partido francês se tivesse pretendido me opor ao rei? De resto, Pedro Roger foi um grande papa, o melhor seguramente de quantos servi. Basta ver em que se transformou Avignon com ele, o palácio que fez construir, e esse grande afluxo de letrados, de sábios, de artistas... E, além disso, conseguiu adquirir Avignon. Fui eu que fiz as negociações com a rainha de Nápoles; posso afirmar que é minha obra. Oitenta mil florins, não seria nada, uma esmola. A rainha Joana tinha menos precisão de dinheiro que de indulgências por todos os seus sucessivos casamentos, sem falar dos seus amantes.

Seguramente, deram arreios novos aos meus cavalos de tiro. Falta molejo à minha liteira. É sempre assim quando se está de partida, sempre assim. Neste momento, o vigário de Deus Cessou de ser como um locatário, sentado incomodamente num trono incerto. E a corte que tivemos, dando exemplo ao mundo! Todos os reis corriam para ela. Para ser papa não basta ser padre: é preciso saber ser príncipe. Clemente VI foi um grande político; ouvia meus conselhos de boa vontade. Ah! a coligação naval que agrupava os latinos do Oriente, o rei de Chipre, os vênetos, os Hospitaleiros... Limpamos o arquipélago da Grécia dos bárbaros que o infestavam; e faríamos ainda mais. E depois houve essa obscura guerra entre o rei francês e o inglês, a respeito da qual me pergunto se não acabará nunca, e que nos impediu de prosseguir em nosso projeto, reconduzir a Igreja do Oriente ao regaço da Romana. E depois, houve a peste... e depois Clemente morreu...

Da terceira vez, no conclave, há quatro anos, foi meu nascimento que me causou empecilho. Eu era demasiado nobre, parecia-lhes, e acabávamos de ter um. Eu, Hélie de Talleyrand, a quem chamam o cardeal de Périgord, pensai um pouco, seria um insulto aos pobres se me escolhessem! Há momentos em que a Igreja se vê tomada de um súbito furor de humildade e de pequenez. O que de nada lhe adianta, absolutamente. Despojemo-nos de nossos ornamentos, escondamos nossas casulas, vendamos nossos cibórios de ouro, ofereçamos o Corpo de Cristo numa tigela de dois denários, trajemo-nos como labregos e o mais sujos que for possível, uma vez que não somos mais respeitados por ninguém, nem mesmo pelos labregos... Ora essa! Se nos igualássemos a eles, por que nos respeitariam? E acabamos não nos respeitando a nós mesmos... Os fanáticos da humildade, quando lhes contrapomos isso, metem o seu nariz no Evangelho, como se fossem os únicos a conhecê-lo, e insistem no presépio, entre o boi e o asno, e insistem na tenda do carpinteiro... Fazei-vos semelhantes a Nosso Senhor Jesus... Mas onde está Nosso Senhor neste instante, meus vaidosos clerigozinhos? Não está à direita do Pai, confundido com Ele em sua onipotência? Não é o Cristo em majestade, reinando na luz dos astros e na música dos céus? Não é Ele o rei do mundo, envolto em serafins e bem-aventurados? O que vos autoriza a decretar qual dessas imagens deveis, através da vossa pessoa, oferecer aos fiéis? A da breve existência terrena ou a da sua eternidade triunfante?

Se passo por alguma diocese em que vejo o bispo muito disposto a rebaixar Deus adotando as idéias novas, eis o que lhe prego... Caminhar suportando vinte libras de ouro tecido, e a mitra e o báculo, não é sempre agradável, sobretudo quando se fez isso por mais de trinta anos. Mas é necessário.

Não se atraem as almas com vinagre. Quando um rústico diz a outro rústico “meus irmãos”, tal coisa não produz grande efeito. Se é um rei que lhes diz isso, é diferente. Despertar nas pessoas um pouco de estima por si mesmas, eis a primeira caridade que os fradinhos e outros girovagos ignoram. Justamente porque as pessoas são pobres e miseráveis, é preciso dar-lhes alguma razão para terem esperança no além. E, sem dúvida, com incenso, brilhos, músicas. A Igreja deve oferecer aos fiéis uma visão do reino celestial, e todo padre, a começar pelo papa e seus cardeais, refletir um pouco a imagem do Pantocrator...

Na realidade, nada mau se me falasse assim a mim mesmo; teria mais argumentos para meus próximos sermões. Mas prefiro procurá-los em companhia... Espero que Brunet não se tenha esquecido de meus confeitos de amêndoas. Ah! não, estão aqui. Aliás, ele nunca se esquece...

Quanto a mim, que não sou grande teólogo como aqueles que chovem de toda parte ultimamente, mas que tenho o encargo de manter a ordem e a limpeza na casa do bom Deus, recuso-me a reduzir minha equipagem e meu palácio; e o próprio papa, que reconhece quanto me deve, não se preocupa em me contradizer. Se lhe agrada apoucar o seu trono, isso é lá com ele. Mas eu, que sou seu núncio, desvelo-me em preservar a glória do seu sacerdócio.

Sei que alguns zombam de minha grande liteira almofadada em purpura e cravos dourados, na qual viajo neste momento, dos meus cavalos ajaezados de purpura, e dos duzentos lanceiros de minha escolta e dos três leões de Périgord bordados no meu estandarte e na libré dos meus sargentos. Mas por isso mesmo, quando entro numa cidade, todo o povo se precipita para se prosternar, ou vem beijar meu manto, e obrigo os reis a se ajoelharem... por vossa glória, Senhor.

Mas estas coisas não estavam no ar no último conclave, e eu bem que o percebi. Queriam um homem comum, queriam um simples, um humilde, um despojado. Foi justamente o que pude evitar: se elegêssemos João Birel, um santo homem, oh!, certamente um santo homem, mas que não tinha uma onça de espírito de governo, teríamos tido um segundo Pedro de Morone. Usei de bastante eloqüência para convencer meus irmãos conclavistas do perigo que representava, no estado em que se encontrava a Europa, cometer o erro de nos dar um outro Celestino V. Ah!, não poupei Birel! Fiz dele tal apologia, mostrando quanto suas virtudes admiráveis torná-lo-iam impróprio para governar a Igreja, que ele acabou inteiramente arrasado. E consegui fazer proclamar Estevão Aubert, que nascera muito pobremente, da região de Pompadour, e a cuja carreira faltava um pouco de brilho para que pudesse reunir bastantes votos em benefício de seu nome.

Asseguram-nos que o Espírito Santo nos ilumina a fim de que designemos o melhor; com efeito, votamos, o mais das vezes, para afastar o pior.

Ele me decepciona, caro São Pedro. Geme, hesita, decide, corrige. Ah!, quanto a mim, teria conduzido a Igreja de outra maneira! E depois, essa idéia que teve de mandar o cardeal Capocci comigo, como se fossem necessários dois legados, como se eu já não tivesse sido advertido para conduzir as coisas sozinho! O resultado? Desentendemo-nos desde o começo, porque lhe mostrei sua estupidez; meu Capocci sentiu-se ofendido; retira-se; e enquanto corro de Breteuil a Montbazon, de Montbazon a Poitiers, de Poitiers a Bordeaux, de Bordeaux a Périgueux, ele não faz mais do que escrever de toda parte para baralhar minhas negociações. Ah!, espero não o encontrar em Metz, com o imperador...

Périgueux, meu Périgord... Meu Deus, será a última vez que os verei?

Minha mãe tinha como certo que eu seria papa. Deu-mo a entender em mais de uma ocasião. Foi por isso que me fez tonsurar quando eu tinha seis anos e obteve de Clemente V, o qual lhe devotava grande e leal amizade, que eu fosse logo inscrito como “escolar” do papa, com direito a receber auxílios. Que idade tinha eu quando ela me levou até ele?... “Senhora Brunissande, possa vosso filho, que nós abençoamos especialmente, demonstrar no estado que lhe escolhestes as virtudes que se podem esperar de sua linhagem, e elevar-se rapidamente aos mais altos cargos de nossa Santa Igreja.” Não tinha mais do que sete anos. Fez-me cônego de Saint-Front; minha primeira camalha. Quase cinqüenta anos já... Minha mãe me via papa. Seria um sonho de ambição materna, ou verdadeiramente visão profética, como às vezes as mulheres têm? Ai de mim, acredito que nunca serei papa.

E contudo... e contudo, no céu de meu nascimento, Júpiter faz conjunção com o Sol em bela culminância, o que é sinal da dominação e de reino na paz. Nenhum dos outros cardeais tem mais belo aspecto do que eu. Minha configuração era bem melhor que a de Inocêncio no dia da eleição. Mas aí está... reino na paz... reino na paz, reino na paz: ora, estamos em guerra, desordem e tempestade. Tenho excelentes astros para os tempos em que vivemos. Os de Inocêncio, que prometem dificuldades, erros, reveses, ficariam melhor neste período sombrio. Deus concilia os homens de acordo com os momentos do mundo, e chama os papas que convém aos seus desígnios, tanto para a grandeza e a glória como para a sombra e a queda...

Se eu não estivesse na Igreja, como quis minha mãe, teria sido conde de Périgord, porquanto meu irmão mais velho morreu sem descendência, precisamente no ano do meu primeiro conclave, e a coroa, na falta de quem a pudesse cingir, passou a meu irmão caçula Roger-Bernard ... Nem papa, nem conde. Vamos, é preciso aceitar o lugar em que a Providência nos coloca e esforçar-se para então fazer o melhor possível. Sem dúvida, eu seria desses homens que tiveram grande papel e grande figura no seu século e que são esquecidos assim que desaparecem. A memória dos povos é preguiçosa; apenas retém o nome dos reis... Vossa vontade, Senhor, vossa vontade...

Além do mais, não adianta nada repensar essas coisas das quais já falei cem vezes... É como rever o Périgueux de minha infância e minha querida colegiada Saint-Front e afastar-me dela, o que me dói na alma. Olhemos, de preferência, esta paisagem que vejo talvez pela última vez. Obrigado, Senhor, por me haver outorgado esta alegria...

Mas por que me conduzem assim tão rapidamente? Acabamos de passar Château-l’Evêque; daqui até Bourdeilles não temos mais do que duas horas. No dia da partida é preciso sempre esperar um pouco. Os adeuses, as últimas súplicas, as últimas bênçãos que nos vêm solicitar, a bagagem esquecida; nunca partimos na hora aprazada. Mas desta vez, na verdade, é uma pequena parada...

Brunet!... Olá!, Brunet, meu amigo; vai lá na frente ordenar que diminuam essa marcha. Quem nos conduz com tanta pressa? É Cunhac ou La Rue? Não há necessidade de me sacolejarem tanto. E, em seguida, vai dizer a dom Archambaud, meu sobrinho, que desça de sua montaria e que eu o convido a partilhar da minha liteira... Obrigado, hem...

Para vir de Avignon levava em minha companhia meu sobrinho Roberto de Durazzo; foi um companheiro agradável. Possuía muitos traços de minha irmã Agnès, e de nossa mãe. Por que foi se deixar matar em Poitiers, por esses estúpidos ingleses, lutando na batalha do rei da França? Oh!, não o desaprovo, mesmo se devo fingir fazê-lo. Quem poderia pensar que o rei João iria se deixar maltratar dessa maneira? Alinha trinta mil homens contra seis mil, e à tarde é feito prisioneiro. Ah!, príncipe absurdo, ingênuo! Quando bem que podia, se tivesse apenas aceito o acordo que lhe levei como numa bandeja de ofertas, tudo lucrar sem entrar em combate.

Archambaud me parece menos vivo e brilhante do que Roberto. Não conheceu a Itália, que faz desabrochar a juventude. Enfim, será ele o conde de Périgord, se Deus quiser, o que vai obrigar esse jovem a viajar em minha companhia. Tem que aprender tudo comigo... Feitas minhas orações, não gosto nada de ficar sozinho.

 

                             O cardeal de Périgord fala

Não é que me repugne cavalgar, Archambaud, nem que a idade me tenha tornado incapaz. Acredita-me, posso ainda correr minhas quinze léguas a cavalo e sei que deixaria para trás muitos mais jovens que eu. Aliás, como vês, tenho sempre um palafréni que me acompanha, completamente ajaezado para o caso de ter vontade ou necessidade de o escarranchar. Mas estou convencido de que uma jornada inteira a sacolejar na sela abre o apetite melhor do que o espírito, e leva a gente mais a comer e a beber bastante do que a manter a cabeça desperta, do que tenho precisão quando, freqüentemente, devo inspecionar, dar ordens ou negociar desde minha chegada.

Muitos reis, e entre eles o da França em primeiro lugar, conduziriam com mais proveito seus Estados se fatigassem um pouco menos o rim e menos ainda o cérebro, e se não se obstinassem a tratar os mais difíceis negócios na mesa, no final de um dia, ou na volta da caça. Nota que ninguém se desloca menos depressa em liteira, como eu faço, se tiver boas almofadas na cadeirinha, e a prudência de trocá-las sempre... Queres um confeito de amêndoas, Archambaud? No cofrezinho ao teu alcance... isso, dá-me...

Sabes quantos dias levei de Avignon a Breteuil, na Normandia, para me encontrar com o rei João, que ali fazia um cerco absurdo? Dize-me lá... Não, meu sobrinho, menos que isso. Partimos a 21 de junho, o dia do solstício, ao romper da aurora. Porque sabes... ou não calculas como se organiza a partida de um núncio, ou de dois, porquanto éramos dois nessa ocasião?... É tradicional que todo o colégio dos cardeais, após a missa, escolte os que partem, até uma légua da cidade; e há sempre grande multidão acompanhando ou olhando de cada lado do caminho. E deve-se ir como em procissão, para conferir dignidade ao cortejo.

Depois, há uma parada, e os cardeais se colocam em fila por ordem de precedência, e o núncio troca com cada um o beijo da paz. Toda essa cerimônia se executa em dia claro ... Então, partimos a 21 de junho. Ora, chegamos a Breteuil a 9 de julho. Dezoito dias. Niccola Capocci, meu colegatário, estava doente. Devo dizer que sacudi esse melindroso. Nunca tinha viajado tanto. Mas, passada uma semana, o Santo Padre tinha em mãos, levado por cavaleiros, o relatório de minha primeira entrevista com o rei.

Desta feita, não precisamos correr. Por outro lado, os dias nesta época do ano são curtos, mesmo quando gozamos de uma estação agradável... Não me lembrava que novembro pode ser tão suave no Périgord como acontece hoje. Quanta luminosidade! Mas arriscamo-nos bastante a reencontrar mau tempo, quando avançamos para o norte do reino... Calculei um mês comprido, de tal sorte que estaremos em Metz pelo Natal, se Deus quiser. Não, não tenho nenhuma pressa como no verão passado, porquanto, contra todos os meus esforços, esta guerra se desencadeou e o rei João está preso.

Como pôde suceder tal desgraça? Oh!, não és o único a se espantar, meu sobrinho. Toda a Europa não experimenta menor surpresa, e discute nestes meses as causas e as razões... As desgraças dos reis vêm de longe e, freqüentemente, considera-se como acidente de seu destino o que não passa de fatalidade da sua natureza. E quanto mais os infortúnios são grandes, mais as raízes são longas.

Conheço este caso em suas minúcias... Puxa um pouco sobre mim esta coberta... e eu o esperava, como estou te dizendo. Esperava que um grande revés, uma grande humilhação viesse ferir este rei e também, desgraçadamente, este reino. Em Avignon, temos que nos inteirar de tudo o que interessa às cortes. Todas as intrigas, todas as conspirações refluem sobre nós. Nem mesmo sobre um casamento projetado deixamos de ser advertidos, antes dos próprios noivos... “no caso em que a senhora de tal coroa poderia ser prometida a um fidalgo de outra, que é seu primo em segundo grau, nosso Santíssimo Padre lhe outorgaria a dispensa?”... nenhum tratado é negociado sem que alguns agentes das duas partes nos sejam enviados; nenhum criminoso que não nos venha pedir sua absolvição... A Igreja fornece aos reis e aos príncipes suas chancelarias, bem como a maioria dos seus legistas...

Passados dezoito anos, as casas de França e da Inglaterra estão em luta declarada. Qual é a causa desta luta? As pretensões do rei Eduardo à coroa da França, certamente! É o pretexto, um bom pretexto jurídico, concordo, porque se pode debatê-lo até o infinito; mas esse não é o único e verdadeiro motivo. Há fronteiras mal definidas, há muito tempo, entre a Guyenne e os condados vizinhos, a começar pelo nosso, o Périgord, todas essas terras confusamente delimitadas, em que os direitos feudais se cruzam; há dificuldades de entendimento, de vassalo a suserano, quando os dois são reis; há rivalidades de comércio, principalmente por causa de lãs ou de tecidos, o que redundou na disputa da Flandres; há o amparo que a França sempre deu aos escoceses, os quais mantêm sua ameaça contra o rei inglês, sobre o seu setentrião... A guerra não explodiu por uma razão, mas por vinte razões, que incubavam como brasa adormecida. Vai daí, Roberto d’Artois, desonrado e proscrito do reino, vai à Inglaterra assoprar sobre os tições. O papa era na ocasião Pedro Roger, isto é, Clemente VI, e tudo fez para tentar impedir esta guerra malévola. Lembrou os compromissos, as concessões de parte a parte. Ele mesmo despachou um legado, que não seria outro senão o atual pontífice, o cardeal Aubert. Quis lançar novamente o projeto da cruzada, da qual os dois reis deveriam participar, levando-lhe sua nobreza. Teria sido um bom meio de derivar seus desejos guerreiros, na esperança de refazer a união da cristandade... Em lugar da cruzada, tivemos Crécy. Teu pai esteve lá: ouviste dele a narrativa desse desastre...

Ah!, meu sobrinho, verás no decorrer de tua vida que não há nenhum mérito em servir de coração a um bom rei: ele nos encaminha ao dever, e os percalços que enfrentamos não valem nada, porque sentimos que concorrem para o bem supremo. O difícil é bem servir a um mau monarca... ou a um mau papa. Considerava-os muito felizes, os homens de minha primeira juventude, que serviam a Filipe, o Belo. Ser fiel a esses vaidosos Valois exige mais esforço. Não admitem conselhos, e só nos dão razão quando derrotados e maltratados.

Só depois de Crécy é que Filipe VI consentiu numa trégua, graças a proposições que eu lhe havia preparado. O que não é tão mau assim, devemos considerar, visto que essa trégua durou, ao todo, apesar de algumas tropelias locais, de 1347 até 1354. Sete anos de paz relativa. Teria sido, para muitos, um tempo feliz. Mas, em nosso maldito século, mal terminada a guerra, começa a peste.

Fostes relativamente poupados no Périgord... É verdade, meu sobrinho, é verdade que pagastes vosso tributo ao flagelo, tivestes vossa parcela de horror. Mas não foi nada, se comparado com as numerosas cidades cercadas de campos bastante populosos, como Florença, Avignon, ou Paris. Sabes que esse flagelo vinha de Chipre, pela índia, pela Tartária e a Ásia Menor? Espalhou-se, pelo que informam, até a Arábia. É mesmo uma doença de infiéis, que nos foi enviada para castigar a Europa por tantos pecados. De Constantinopla e das praias do Levante, os navios transportaram a peste para o arquipélago grego, de onde ela alcançou os portos da Itália; ultrapassou os Alpes e veio nos assolar, antes de chegar à Inglaterra, à Holanda, à Dinamarca e acabar precisamente nos países do grande norte, a Noruega, a Islândia. Eis aqui as duas manifestações da peste, a que matava em três dias, com febre alta e escarros de sangue... os desgraçados atingidos por ela diziam que já sofriam as penas do inferno... e depois a outra, que tornava a agonia mais comprida, de cinco a seis dias, com a mesma febre, e grandes carbúnculos e pústulas que atingiam as virilhas e as axilas.

Sete meses de horror sofremos em Avignon. Cada noite, ao nos deitarmos, pensávamos se acordaríamos no dia seguinte. Cada manhã, apalpávamos as axilas e as articulações das coxas. À menor alteração da temperatura, todos eram tomados de angústia e se olhavam com expressão apavorada. A cada respiração, pensava-se que talvez com aquele sopro de ar o mal já tivesse chegado. Ninguém se afastava de um amigo sem pensar: “Será sua vez, será a minha ou a de nós dois?” Os tecelões morriam na sua barraca junto aos teares parados, os ourives ao pé de seus cadinhos frios, os cambistas sob seus balcões. Crianças morriam em cima do traste da mãe morta. E o fedor, Archambaud, o fedor de Avignon! As ruas estavam juncadas de cadáveres.

A metade, repara nisto, a metade da população morreu. Entre janeiro e abril de 1348 foram contados sessenta e dois mil mortos. O cemitério que o papa mandara comprar às pressas ficou repleto num único mês; onze mil corpos foram enterrados. Muitos morriam sem assistência, eram sepultados sem padres. O filho não ousava mais visitar seu pai, nem o pai visitar o filho. Sete mil casas fechadas! Todos os que podiam fugiam para suas casas de campo.

Clemente VI, com alguns cardeais, eu entre eles, ficou na cidade. “Se Deus nos quiser, nos levará.” E fez permanecer a maioria dos quatrocentos oficiais do palácio pontifical, que não foram bastantes para organizar os socorros. O papa gratificou todos os médicos; contratou carroceiros e coveiros, fez distribuição de víveres e prescreveu severas medidas preventivas contra o contágio. Ninguém então o censurou de ser pródigo nos gastos. Ralhou com monges e freiras que faltavam ao dever da caridade para com os doentes e os agonizantes... Ah !, ouvi então em confissão homens muito importantes e poderosos, até da Igreja, que vinham lavar suas almas de todos os pecados e pedir a absolvição! Até poderosos banqueiros lombardos e florentinos, que se confessavam rilhando os dentes, tornavam-se generosos de repente. E as amantes dos cardeais... é, sim, é, sim, meu sobrinho; nem todas, mas muitas dessas belas senhoras vinham dependurar suas jóias nas imagens da Virgem Santa! Mantinham sob o nariz um lenço impregnado de essências aromáticas e jogavam fora os sapatos ao voltar para casa. Aqueles que acusam Avignon de ser uma cidade ímpia e uma nova Babilônia não a viram no tempo da peste. Reinou lá a piedade, eu te asseguro!

Estranha criatura é o homem! Quando tudo lhe sorri, quando goza de uma saúde invejável e seus negócios prosperam, sua esposa é fértil e a província está em paz, não seria essa a ocasião em que deveria erguer sem cessar sua alma ao Senhor, para lhe render graças por tantos benefícios? Nada disso; esquece-se de seu criador, fica orgulhoso e despreza todos os mandamentos. Mas logo que a infelicidade o fere e sobrevém a calamidade, então ele se atira a Deus. E reza e se acusa e promete se corrigir... Deus, pois, tem muita razão de o magoar, porquanto é a única maneira, me parece, de conseguir que o homem se volte para ele...

Não fui eu que escolhi meu estado. Foi minha mãe, talvez você não saiba, que mo designou, quando eu era criança. Se concordei, acredito, foi porque sempre agradeci a Deus por tudo o que me concedia, e, acima de tudo, por viver. Lembro-me, ainda pequeno, em nosso velho Castelo de La Rolphie, em Périgueux, em que também nasceste, Archambaud, mas onde só inoraste até que teu pai resolveu, já lá se vão quinze anos, residir em Montignac... Pois bem, aí, nesse enorme castelo, sentado numa arena dos antigos romanos, lembro-me do encantamento que me assaltava, de repente, de estar vivo no meio do vasto mundo, de respirar, de ver o céu; recordo-me de ter sentido tudo isso sobretudo nas tardes de estio, quando a luz é tardia, e que me levavam para a cama muito antes que o dia declinasse. As abelhas zumbiam numa videira que se enroscava pelo muro, debaixo de meu quarto, a sombra cobria lentamente o pátio oval e as pedras enormes; o céu ainda estava claro e os pássaros por ali voavam, e a primeira estrela instalava-se nas nuvens que se tornavam róseas. Tinha uma necessidade enorme de dizer obrigado, e minha mãe me deu a entender que era a Deus, o organizador de toda essa beleza, que eu devia falar. Isso jamais me abandonou.

Ainda hoje, ao longo de nosso caminho, tenho sempre um agradecimento que me sobe ao coração por este tempo agradável, estas florestas arruivadas que atravessamos, estes prados ainda verdes, estes fiéis empregados que me acompanham, estes belos e gordos cavalos que vejo trotar em volta de minha liteira. Gosto de observar o semblante dos homens, o movimento dos animais, a forma das árvores, toda esta grande variedade que é a obra infinita e infinitamente maravilhosa de Deus.

Todos os nossos doutores, que discutem teologia em salas fechadas e se enchem de palavras vãs, e se invectivam com a boca amarga, e se agridem com vocábulos inventados para denominar de outra maneira o que já se sabia antes deles, toda essa gente faria melhor em contemplar a natureza para refrescar a cabeça. Quanto a mim, guardo como teologia a que me ensinaram, vinda dos padres da Igreja; e não tenho a menor vontade de trocá-la por outra...

Sabes que eu teria podido ser papa... sim, meu sobrinho. Dizem-me alguns, como dizem também que poderei sê-lo se Inocêncio viver menos que eu. Será o que Deus quiser. Não me queixo do que me fez. Agradeço-lhe por me haver colocado onde estou, e por me ter conservado até esta idade, à qual bem poucos chegam... cinqüenta e cinco anos, meu caro sobrinho... tão disposto como estou. Também isto é uma bênção do Senhor. Pessoas que não me encontravam há dez anos não acreditam no que vêem; acham que mudei muito pouco de aparência, a pele sempre tão corada, e a barba apenas grisalhando...

A idéia de usar ou não a tiara não me aborrece, na verdade... confio-te isto como a um bom parente... quando sinto que poderia agir melhor do que aquele que a carrega. Ora, esse sentimento nunca o tive a respeito de Clemente VI. Ele compreendeu perfeitamente que o papa deve ser monarca acima dos monarcas, lugar-tenente de Deus. Certa vez em que João Birel, ou algum outro pregador do despojamento, o censurou por ser muito gastador e demasiado generoso para com os solicitadores, respondeu: “Ninguém deve se retirar descontente da presença do príncipe”. Depois, voltando-se para mim, completou, a meia voz: “Meus predecessores não souberam ser papas”. E durante a grande peste, como já te contei, provou-nos verdadeiramente que era o melhor. Não creio, muito honestamente, que pudesse fazer melhor do que ele, e agradeci a Deus, ainda essa vez, que não me tivesse designado para conduzir a cristandade sofredora através daquela prova...

Em nenhum momento Clemente se despojou de sua majestade, demonstrando muito bem que era o Santo Padre, o pai de todos os cristãos e até dos outros, porquanto as populações, um pouco em toda parte, mas principalmente nas províncias renanas, em Mayence, em Worms, se revoltaram contra os judeus, que elas acusavam de serem os responsáveis pelo flagelo, e Clemente condenou essas perseguições. Fez até mais; decidiu tomar os judeus sob sua proteção; excomungou aqueles que os molestaram; ofereceu aos judeus expulsos o asilo e o estabelecimento nos seus Estados, nos quais, é justo reconhecê-lo, refizeram sua prosperidade em poucos anos.

Mas por que te falei tão longamente sobre a peste? Ah, sim! Por causa das grandes conseqüências que ela teve para a coroa da França, e para o próprio rei João. Com efeito, no final da epidemia, no outono de 1349, uma atrás da outra, três rainhas, ou melhor, duas rainhas e uma princesa pretendente a rainha...

Que é que estás dizendo, Brunet? Fala mais alto. Estamos à vista de Bourdeilles?... Ah, sim, quero apreciar. A posição é segura, com efeito, e o castelo está bem situado para vigiar de longe quem se aproxima.

Aí está, Archambaud, o castelo que meu irmão caçula, teu pai, me doou como agradecimento por eu haver liberado Périgueux. Porque, se não consegui arrancar o rei João das mãos inglesas, pelo menos pude salvar nossa cidade condal e fazer com que a autoridade nos fosse reconhecida.

A guarnição inglesa, tu te recordas, não queria partir. Mas as lanças que me acompanham, e das quais certas pessoas caçoam, revelaram-se úteis mais uma vez. Bastou que eu aparecesse com elas, vindo de Bordeaux, para que os ingleses arrumassem suas bagagens, sem reclamar mais nada. Duzentas lanças e um cardeal, é o bastante... Sim, a maioria dos meus criados é exercitada nas armas, assim como meus secretários e meus doutores em leis, que me acompanham. E meu fiel Brunet é cavaleiro; dei-lhe o título, há pouco tempo.

Concedendo-me Bourdeilles, meu irmão afinal saiu lucrando. Porque com a castelania de Auberoche, perto de Sa-vignac, e a casa de campo de Bonneval, próximo de Thenon, que resgatei por vinte mil florins, há dez anos, ao rei Filipe VI... digo resgatei, mas na verdade ele compensou em parte as quantias que lhe emprestei... como também a Abadia-Mor de Saint-Astier, de que sou abade, e meus priorados de Fleix e de Saint-Martin-de-Bergerac, tudo representa hoje seis localidades nos arredores de Périgueux, as quais dependem de uma alta autoridade da Igreja, quase como se fossem regidas pelo próprio papa. Ninguém ousará atacá-las. Garanto deste modo a paz em nosso condado.

Conheces Bourdeilles, seguramente; já vieste aqui várias vezes. Quanto a mim, já faz tempo que não a visito... Olha, não me lembrava mais desse torreão octogonal. Tem um aspecto imponente. É meu, agora, mas apenas devo passar aí uma noite e uma manhã, o tempo para instalar o governador que escolhi, e sem saber quando voltarei, se é que devo voltar. É pouco tempo para desfrutá-lo. Enfim, agradeçamos a Deus por este tempo que me concede. Espero que nos tenham preparado uma boa ceia, porque, mesmo em liteira, a estrada arrasa.

 

                       A morte bate em todas as portas

Eu previa, meu sobrinho, já te disse, que, descontado este dia, não iríamos muito além de Nontron. E possivelmente não chegaremos lá senão depois do àngelus, noite fechada. La Rue me azucrinava os ouvidos: “Monseigneur está atrasado... Monseigneur não irá satisfazer-se com uma caminhada de oito léguas...” Pois, sim! La Rue vive como se tivesse fogo na borraina. O que afinal não é lá tão mau assim, porque com ele minha comitiva não dorme. Mas já sabia que não poderíamos deixar Bourdeilles antes da tarde. Tinha muito que fazer e decidir, muitas chancelas a conceder.

Gosto de Bourdeilles; sei que aqui poderia ser feliz, se Deus não houvesse decidido não somente possuí-la, mas aqui residir. Quem tem um único e modesto haver goza-o plenamente. Aquele que tem vastos e numerosos domínios desfruta-os apenas pela imaginação. O céu sempre regateia aquilo com que nos gratifica.

Quando voltares ao Périgord, faze-me o favor de vir a Bourdeilles, Archambaud, e verificar se consertaram os telhados como recomendei, há tempos. E, além disso, a lareira de meu quarto larga fumaça... Foi ótimo que os ingleses a poupassem. Viste Brantôme, por onde acabamos de passar; viste a desolação em que deixaram uma cidade outrora tão agradável e tão bonita, ao pé de seu ribeiro! O príncipe de Gales aqui pernoitou, no dia 9 do mês de agosto, segundo me informaram. E, pela manhã, seus lanceiros e vagabundos incendiaram tudo antes de partir.

Condeno severamente essa mania que eles têm de tudo destruir, fazer arder, exilar ou arruinar, a que se entregam cada vez mais, segundo parece. Que, em tempo de guerra, soldados se degolem, concordo; se Deus não me houvesse designado para a Igreja, e se eu tivesse de brandir estandartes em combate, não teria poupado ninguém. Rapina, ainda vá lá, é preciso dar um pouco de prazer aos homens dos quais se exigem risco e fadiga. Mas destruir apenas para reduzir o povo à miséria, queimar suas casas e suas colheitas, expô-lo à fome e ao frio, isto me enfurece. Percebo o intento; de províncias arruinadas o rei não pode tirar impostos, e é para enfraquecê-lo que se destroem dessa forma os bens dos seus súditos. Mas isso não adianta. Se o inglês pretende ter seus direitos sobre a França, por que a destrói? E julga que mesmo que a domine pelos tratados, após havê-la dominado pelas armas, julga, agindo dessa forma, que será tolerado algum dia? E semeia o ódio. Sem dúvida, priva de dinheiro o rei da França, mas lhe fornece almas a que só animam a cólera e a vingança. Encontrar fidalgos, aqui ou ali, que se aliem a ele por interesse, bem, isso o rei Eduardo encontrará; mas o povo, de hoje em diante, o repudiará, porque esses processos são inadmissíveis. Repara no que já aconteceu; as pessoas honestas não suportam que o rei João seja derrotado, elas o deploram, chamam-no de João, o Valente, João, o Bom, embora devessem chamá-lo de João, o Bobo, João, o Teimoso, João, o Incapaz. E verás que serão capazes de se sangrar para pagar o seu resgate. Perguntas-me porque dizia ontem que a peste teve seus graves efeitos sobre ele e sobre a sorte do reino? Pois bem, meu sobrinho, por causa de alguns mortos em má ocasião, por mortes de mulheres e sobretudo pela morte da senhora Bonne de Luxemburgo, antes de ele tornar-se rei.

A senhora de Luxemburgo morreu de peste em setembro de 1349. Ela devia ser rainha, e teria sido uma boa rainha. Era, como sabes, filha do rei da Boêmia, João, o Cego, que tinha tanto amor à França, que dizia ser a corte de Paris a única onde se podia viver nobremente. É um modelo de cavalaria esse rei, mas um pouco maluco. Ainda bem que, não enxergando nada, se obstinou em combater em Crécy, e por isso fez jungir seu cavalo às montarias de dois de seus cavaleiros que o levavam de um lugar para outro. E se atiraram à refrega. Foram os três encontrados mortos, sempre jungidos. O rei da Boêmia levava três penas brancas de avestruz na cimeira do seu elmo. Sua nobre morte feriu tanto o jovem príncipe de Gales... tinha então dezesseis anos; era seu primeiro combate, e ele portou-se bem, embora ao rei Eduardo achasse interessante exagerar um pouco a participação de seu herdeiro nessa empreitada... o príncipe de Gales ficou tão chocado que pediu ao pai que o deixasse usar, depois disso, o mesmo emblema do rei cego morto. E é por isso que três penas brancas encabeçam agora o elmo do príncipe.

Mas o mais importante em relação à senhora Bonne era seu irmão Carlos de Luxemburgo, do qual eu e o papa Clemente VI havíamos favorecido a eleição à coroa do Santo Império. Não que ignorássemos os tropeços que teríamos com esse rústico, manhoso como um mercador... Oh!, não tinha nada de seu pai, logo verás; mas, como prevíamos também que a França teria piores momentos, seria melhor para ela fazer seu futuro rei cunhado do imperador. Morta a irmã, estava terminada a aliança. Tivemos dificuldades com a sua Bula de Ouro; quanto ao apoio à França, ele nada fez, e é exatamente por isso que eu vou a Metz.

O rei João, nessa época ainda duque da Normandia, não demonstrou extremo desespero pela morte da senhora Bonne. Havia pouca compreensão entre eles, e brigas muitas vezes. Embora ela fosse encantadora, e ele lhe fizesse um filho cada ano, onze ao todo, deram-lhe a entender que já era tempo de se aproximar de sua esposa no tàlamo conjugal: monseigneur João, por afeição, inclinava-se mais para o lado de um primo, oito anos mais moço do que ele, de semblante muito agradável... Carlos de La Cerda, conhecido também como o senhor de Espanha, porque pertencia a um ramo desalojado juridicamente do trono de Castela.

Apenas sepultada a senhora Bonne, o duque João se retirou para Fontainebleau em companhia do belo Carlos de Espanha, para fugir ao contágio... Oh!, esse vício não é raro, meu sobrinho. Eu absolutamente não o entendo, e isso me deixa indignado; é daqueles pelos quais tenho menos indulgência. Mas é forçoso reconhecer que está difundido até entre os reis, aos quais causa bastante dano. Vê o que aconteceu com o rei Eduardo II da Inglaterra, pai do atual. Foi a sodomia que lhe custou o trono e a vida. Nosso rei João não é sob esse ponto de vista um sodomita inveterado; mas tem muitos traços, e o demonstrou sobretudo nessa paixão funesta por esse primo da Espanha, de tão gracioso semblante...

Que está acontecendo, Brunet? Por que paramos? Onde estamos? Em Quinsac? Não foi previsto... Que querem esses vilões? Ah!, uma bênção! Não vamos parar mais minha comitiva por causa disso; tu bem sabes que abençôo enquanto caminho... In nomine patris... lii... sancii...

Podem ir, boa gente, estão abençoados, vão em paz... Se for preciso parar cada vez que me pedem a bênção, só chegaremos a Metz dentro de seis meses.

Pois bem, como te dizia, em setembro de 1349 a senhora Bonne morreu, deixando viúvo o herdeiro do trono. Em outubro foi a vez da rainha de Navarra, Joana, a quem chamavam ainda há pouco Joana, a Pequena, filha de Margarida de Borgonha, e talvez, ou talvez não, de Luís, o Teimoso, a quem afastaram da sucessão da França, alegando pesar sobre ela a presumível bastardia... sim, a criança da Torre de Nesle... Levada pela peste. Sua morte também não foi muito lamentada. Estava viúva havia uns seis anos de seu primo, Filipe d’Evreux, morto em algum lugar de Castela num combate contra os mouros. A coroa de Navarra lhes havia sido concedida por Filipe VI, ao tempo de sua elevação à dignidade, a fim de prevenir as reivindicações que eles teriam pensado em fazer sobre a coroa da França. Tudo fez parte das tratativas que asseguraram o trono aos Valois.

Nunca aprovei esse arranjo navarrês, que não era correto, nem de direito, nem de fato. Mas não podia ainda dizer nada! Acabava precisamente de ser nomeado bispo de Auxerre. E eu o teria dito... Em direito tudo isso não tem valor. Navarra provinha da mãe de Luís, o Teimoso. Se Joana, a Pequena, não fosse filha deste, mas de algum escudeiro, não teria mais pretensões sobre Navarra do que sobre a França. Logo, se lhe reconheciam a coroa de uma reconheciam ipso facto seus direitos sobre a outra, para si e para seus herdeiros. Reconheciam que a tinham descartado do trono, não exatamente pela sua presumida bastardia, mas porque era mulher, e graças ao artifício de uma lei forjada pelos homens.

Quanto às razões de fato... Jamais o rei Filipe, o Belo, teria consentido, por qualquer razão plausível, em amputar assim o reino daquilo que ele havia acrescido. Não se garante um trono serrando-lhe um pé. Joana e Filipe de Navarra permaneceram bastante calmos; ela, porque a camisa de sua mãe grudava-lhe demasiado à pele; ele, porque era como o pai, Luís d’Evreux, de natureza digna e refletida. Ambos pareciam satisfeitos com o rico condado normando e o pequeno reino dos Pireneus. As coisas iriam mudar com seu filho Carlos, jovem forte, então na flor dos dezoito anos, que lançava olhares cheios de vingança sobre o passado da família, e plenos de ambição sobre seu próprio futuro. “Se minha avó não tivesse sido uma prostituta tão ardente, se minha mãe tivesse nascido homem... eu seria agora rei da França.” Ouvi dizer isso à socapa... Con vinha, pois, poupar a Navarra, que, por sua situação no sul do reino, teria muito mais importância do que os ingleses, presentemente, em toda a Aquitânia. Sendo assim, como sempre em tal circunstância, arranjemos um casamento.

O duque João bem que poderia ser dispensado de contrair nova união. Mas, já que estava destinado a ser rei, a imagem real exigia que tivesse esposa ao seu lado, sobretudo no seu caso. Uma esposa impedi-lo-ia de cair abertamente nos braços do senhor de Espanha. Por outro lado, como adular melhor o inquieto Carlos d’Évreux-Navarra, e como melhor lhe amarrar as mãos, senão procurando a futura rainha da França entre suas irmãs? A mais velha, Branca, tinha dezesseis anos. Uma beldade bastante graciosa. O projeto progrediu rapidamente; foram pedidas as dispensas ao papa, e o casamento estava em vias de ser anunciado, contanto que ela estivesse viva na semana seguinte, no horrível período que se atravessava.

Porque a morte continuava a bater em todas as portas. No início de dezembro, a peste arrebatou a própria rainha da França, Joana de Borgonha, a Coxa, a má rainha. Então foi a custo que o decoro conseguiu conter os gritos de alegria, e o povo não se pôs a dançar nas ruas. Ela era odiada; teu pai deve ter-te contado. Roubava o sinete do marido para meter gente na prisão; preparava banhos envenenados para os hóspedes que não lhe agradavam. Faltou pouco para que não conseguisse dessa maneira matar um bispo... O rei, às vezes, desancava-a a golpes de archote; mas ela não se emendava. Eu tinha muito receio dessa rainha. Sua natureza desconfiada enchia a corte de inimigos imaginários. Era colérica, mentirosa, odiosa; uma delinqüente. Sua morte pareceu um efeito tardio da justiça celeste. Aliás, logo em seguida, o flagelo começou a regredir, como se essa grande hecatombe, vinda de tão longe, não tivesse outra finalidade senão atingir enfim essa harpia.

De todos os homens da França, quem sentiu o maior alívio foi o próprio rei. Um dia antes de completar um mês de viuvez, no inverno de janeiro, tornou a se casar. Embora viúvo de uma mulher unanimemente detestada, era muito descaso pelos prazos de conveniência social. Mas o pior não estava na pressa. Com quem ele se casava? Com a noiva de seu filho, Branca de Navarra, a adolescente, pela qual se apaixonara loucamente ao vê-la na corte pela primeira vez. Por mais complacentes que sejam os franceses em matéria de desenvoltura, não apreciam no soberano extravios dessa espécie.

Filipe VI tinha quarenta anos mais que a beldade que arrebatava, tão brutalmente, ao seu herdeiro. E nem mesmo podia invocar, como em tantas uniões principescas descombinadas, o interesse superior dos impérios. Engastava uma pedra de escândalo na sua coroa e ao mesmo tempo infligia a seu sucessor a mortificação do ridículo. O casamento foi celebrado às escondidas, na região de Saint-Germain-en-Laye. João da Normandia, naturalmente, não presenciou o ato. Não tinha mesmo grande afeição por seu pai, que, de resto, muito pouco lhe retribuía. Agora, devotava-lhe ódio.

E o herdeiro, um mês mais tarde, tornava a se casar, por sua vez. Tinha pressa em esquecer o ultraje. Ficou satisfeito conformando-se com a senhora de Boulogne, viúva do duque da Borgonha. Foi meu venerável irmão, o cardeal Guy de Boulogne, que combinou essa união, vantajosa para sua família e para si mesmo. A senhora de Boulogne era, sob o ponto de vista da fortuna, um excelente partido, o que garantia o saneamento dos negócios do príncipe, dissipador por natureza, mas isso apenas serviu para encorajá-lo à prodigalidade.

A nova duquesa da Normandia era bem mais idosa que sua sogra; ofereciam um estranho contraste nas recepções da corte, sendo que, em garbo e beleza, a comparação tornava-se desvantajosa para a nora. O duque João sentia-se despeitado; estava plenamente convencido de que amava perdida-mente Branca de Navarra, a qual lhe havia sido arrebatada tão grosseiramente, e se torturava vendo-a ao lado do pai, que não cessava de acariciá-la em público, da maneira mais tola possível. Isso perturbava as noites do duque João com a senhora de Boulogne e o empurrava ainda mais para o senhor de Espanha. A prodigalidade foi então a sua desforra. Diziam que lavava a sua honra dilapidando a fortuna.

Após os meses de terror e de infelicidade que se acabava de atravessar durante a peste, todo mundo gastava loucamente. Sobretudo em Paris. Em volta da corte, era a demência. Pretendia-se que essa intemperança de luxo propiciava trabalho ao poviléu. Entretanto, não se via nada disso nos casebres e nas mansardas. Entre os príncipes endividados e o povo miserável havia um escalão para o qual as riquezas fluíam; opulentos mercadores como os Marcel, que negociavam com tecidos, sedas e outros gêneros ornamentais, enriqueciam-se largamente. A moda tornou-se extravagante, e o duque João, embora já com seus trinta e um anos de idade, exibia, em companhia do senhor de Espanha, cotas recortadas tão curtas que lhes deixavam as nádegas à mostra. Riam-se deles à sua passagem.

Branca de Navarra tornou-se rainha antes do que se previa; reinou menos tempo do que devia. Filipe de Valois escapou da guerra e da peste, mas não resistiu ao amor. Enquanto viveu ao lado de sua manca rabugenta, conservou-se um belo tipo, um pouco gordo, mas sempre sólido e ativo, manejando as armas, cavalgando com desenvoltura, caçando bastante. Seis meses de proezas galantes junto à bela desposada acabaram com ele. Só deixava o leito com a idéia de a ele retornar. Era obsessão; era furor. Exigia de seus médicos que o fizessem infatigável no prazer... O que há? Isso te surpreende tanto assim? Mas é isso mesmo, meu sobrinho, é isso mesmo; não é em vão que a Igreja ou, melhor, preferencialmente a Igreja, nos orienta sobre essas coisas, sobretudo quando atingem pessoalmente os reis.

Branca sujeitava-se, às vezes prazerosa, outras vezes inquieta e lisonjeada, a essa paixão revelada a todo momento. O rei se vangloriava publicamente de que ela se cansava mais depressa do que ele. Em pouco tempo, emagreceu. Desinteressava-se do governo. A cada semana, envelhecia um ano. Morreu a 22 de agosto de 1350, aos cinqüenta e sete anos, dos quais vinte e dois de reinado.

Sob sua esplêndida aparência, esse soberano ao qual eu fui leal... era rei da França, não é verdade?... eu não podia, por outro lado, esquecer que pediu para mim o chapéu cardinalício... esse soberano foi um capitão lastimável e um financista desastroso. Tinha perdido Calais, perdeu a Aquitânia; abandonou a Bretanha revoltada e muitas cidades do reino da incerteza, ou arrasadas. Além disso, perdeu o prestígio. Bem, é verdade que adquiriu o Delfinado. Ninguém pode ser catastrófico constantemente. Fui eu, é bom que saibas, que concluí as negociações dois anos antes de Crécy. O delfim Humberto estava endividado a ponto de não saber mais a quem recorrer para reembolsar quem... Eu te contarei a história em pormenores noutra ocasião, se ela te interessar, e de como trabalhei, conseguindo impor a coroa de delfim ao primogênito da França e encaminhando o Viennois ao regaço do reino. Posso pois dizer sem me gabar que servi melhor à França do que o rei Filipe VI, porque ele não fez mais do que diminuí-la, enquanto eu consegui engrandecê-la.

Seis anos já! Seis anos que o rei Filipe morreu e o duque João se tornou o rei João II! Seis anos que passaram tão depressa que até parece estarmos no início do reinado. Será porque nosso novo rei fez tão poucas coisas notáveis, ou por que, quanto mais a gente envelhece, mais o tempo parece fugir rapidamente? Quando se tem vinte anos, cada mês, cada semana, cheios de novidades, parecem de grande duração... Verás, Archambaud, quando tiveres minha idade, se chegares a tanto, o que te desejo de todo o coração... A gente olha para trás e pergunta: “Como? Já se passou um ano? Por que o tempo se escoou assim tão depressa?” Talvez porque gastamos muitas horas recordando, revivendo o que passou...

Eis aí; o dia se foi. Sabia que chegaríamos a Nontron com noite fechada.

Brunet! Brunet! Amanhã deveremos partir antes do amanhecer, porque vamos ter uma longa caminhada. Assim, estejais prontos a tempo, e que cada qual tenha víveres, porque não haverá tempo para paradas. Quem seguiu para Limoges a fim de anunciar minha chegada? Armando de Guillermis; ora muito bem!... Despacho assim meus bacharéis, por sua vez, para cuidar do meu alojamento e dos aprestos da minha recepção com um dia ou dois de antecedência, nunca mais do que isso. Precisamente o necessário para que as pessoas se apressem e os queixosos da diocese não possam acorrer e me aborrecer com suas súplicas... O cardeal? Ah!, soubemos apenas na véspera, infelizmente, já havia partido... De outra forma, meu sobrinho, eu seria um verdadeiro tribunal ambulante.

 

                       O cardeal e as estrelas

Ah!, meu sobrinho, já vi que tornaste gosto pela minha liteira e pelos petiscos que me servem. E pela minha companhia, e pela minha companhia, naturalmente... Experimenta esse pato em conserva com que nos presentearam em Nontron. Ë especialidade local. Não sei como o mordomo faz para conservá-lo quente...

Brunet!... Brunet, não te esqueças de dizer ao meu cozinheiro quanto aprecio ter sempre aquecidas as iguarias que ele me serve em viagem, e como é hábil... Ah!, tem um braseiro na sua carreta... Não, absolutamente, não me queixo por me servirem duas vezes em seguida as mesmas comidas, contanto que me agradem. E achei muito saboroso ontem à noite esse pato. Agradeçamos a Deus por nos ter provido suficientemente.

O vinho, na verdade, é um pouco verde e suave. Não é o vinho de Sainte-Foy ou o de Bergerac, aos quais estás acostumado, Archambaud, sem falar nos de Saint-Emilion e de Lussac, que são uma delícia, mas que segue agora de Libourne, em navios repletos, para a Inglaterra... Os palácios franceses não têm mais esse direito.

Não é verdade, Brunet, que isto não vale um copo de Bergerac? O cavaleiro Aymar Brunet é de Bergerac e não considera nada melhor do que o que dá em sua terra. Eu troço dele, de vez em quando...

Esta manhã é dom Francesco Calvo, secretário papal, que me acompanha. Queria que me lembrasse das negociações de que deverei me ocupar em Limoges. Vamos ficar ocupadíssimos, talvez uns dois ou três dias. De qualquer modo, salvo se for obrigado por alguma emergência ou ordem expressa, evito viajar no domingo. Desejo que minha comitiva possa assistir às rezas e descansar.

Ah!, não posso esconder minha emoção quando revejo Limoges! Foi meu primeiro bispado. Eu tinha... eu tinha... era mais jovem do que és agora, Archambaud: tinha vinte e três anos. E eu te trato como a um adolescente! É um capricho que vem com a idade, tratar a juventude como se fosse ainda a infância, esquecendo o que nós mesmos fomos, nessa idade. Precisas me alertar, meu sobrinho, quando me vir incidir nessa falta. Bispo... Minha primeira mitra! Fiquei muito orgulhoso dela, e bem cedo, por sua causa, cometi o pecado do orgulho. Dizia-se, certamente, que devia minha sede ao favor que, como todas as minhas primeiras mercês, me foi outorgado por Clemente VI, por causa da grande amizade que dedicava a minha mãe. João XXII me havia provisionado um bispado porque tínhamos prometido minha última irmã, tua tia Aremburge, meu caro Archambaud, a um dos seus sobrinhos-netos, Tiago de La Vie. Para te ser sincero, isso tinha fundamento. Ser sobrinho de papa é uma circunstância feliz, mas seu proveito não dura muito, a menos que se alie a alguma grande nobreza como a nossa... Teu tio La Vie foi um homem de valor.

De minha parte, por mais jovem que fosse, não deixei a fama, acredito, de um mau bispo. Quando vejo tantos diocesanos encanecidos que não sabem conter nem suas ovelhas nem seu clero, e que nos aborrecem com suas lamentações e seus processos, lembro-me que soube agir corretamente e sem muito esforço. Tive bons vigários... por favor, dá-me um pouco mais desse vinho; é preciso digerir o pato em conserva... bons vigários, aos quais deixava o cuidado de administrar. Ordenava-lhes que só me incomodassem por casos graves, o que me propiciou respeito e até um pouco de medo. Tive assim tempo para prosseguir nos meus estudos. Já era forte em direito canònico; consegui trazer bons advogados à minha residência, a fim de me aperfeiçoar em direito civil. Vieram de Toulouse, onde me laureei, e que continua sendo uma boa universidade, tal como a de Paris, também bastante provida de homens de saber. Em reconhecimento, decidi... desejo advertir-te, meu sobrinho, porquanto é chegado o momento; ficou consignado nas minhas últimas vontades, se não puder cumprir o desejo enquanto vivo... decidi fundar em Toulouse um colégio para estudantes pobres do Périgord... Toma este guardanapo, Archambaud, e limpa os dedos...

Foi ainda em Limoges que comecei a me instruir em astrologia. Porque as duas ciências mais necessárias àqueles que devem exercer o governo são exatamente a do direito e a dos astros, porque a primeira ensina as leis que regem as relações e obrigações que os homens têm entre si ou para com o reino, ou para com a Igreja, e a segunda dá conhecimento das leis que regem as relações dos homens com a Providência. O direito e a astrologia; as leis da terra, as leis do céu. Afirmo que não há como fugir disso. Deus fez nascer cada um de nós na hora que quis, e esta hora é marcada no relógio celeste, onde, por sua grande bondade, ele nos permitiu ler.

Sei que há uns pobres crentes que escarnecem da astrologia porque essa ciência está repleta de charlatães e mercadores de mentiras. Mas isso acontece em todos os tempos, e os velhos livros nos revelam que os antigos romanos e outros velhos povos denunciavam os maus intérpretes de horóscopos e os falsos magos vendedores de predições; o que não impedia que procurassem os bons e justos leitores do céu, que praticavam freqüentemente nos santuários. Não é porque existem padres simoníacos ou intempérantes que se devem fechar todas as igrejas.

Estou contente por ver que compartilhas certamente da minha opinião. É a atitude humilde que convém ao cristão, perante os decretos do Senhor, o criador de todas as coisas, que está além das estrelas...

Estás interessado?... É um grande prazer, meu sobrinho, eu o farei com muito gosto para ti. Sabes a hora do teu nascimento?... Ah!, precisadas saber; despacha alguém até tua mãe para lhe rogar dar-te a hora do teu primeiro vagido. São as mães que mantêm a memória dessas coisas...

De minha parte, sempre me louvei por praticar a ciência astral. Permitiu-me dar úteis conselhos aos príncipes que desejavam me ouvir, e também conhecer a natureza das pessoas perante as quais me encontrava, e me defender daquelas cuja sorte era contrária à minha. Assim, Capocci sempre soube que me era adverso em tudo, e sempre desconfiei dele... A partir dos astros é que tive êxito em inúmeras negociações e concluí muitos arranjos favoráveis, como para minha irmã de Durazzo ou para o casamento de Luís de Sicilia; e os beneficiários, reconhecidos, aumentaram minha fortuna. Mas, em primeiro lugar, foi junto a João XXII, que Deus o guarde... foi meu benfeitor... que essa ciência me prestou serviços preciosos. Esse papa era um grande alquimista e astròlogo também; ao saber que eu me dedicava à mesma arte, com êxito, ditou um repositório a meu favor e inspirou-se no desejo do rei da França, fazendo-me cardeal aos trinta anos, o que é coisa pouco comum. Fui pois a Avignon receber meu chapéu. Sabes como são essas coisas... Não?

O papa ofereceu um grande banquete, em virtude da entrada do novo cardeal na cúria, a que são convidados todos os cardeais. No fim do jantar, o papa senta-se no seu trono e impõe o chapéu ao novo cardeal, que se mantém ajoelhado e lhe beija antes o pé e depois a boca. Era bastante jovem para que João XXII... tinha ele então oitenta e sete anos... me chamasse de venerabilis frater; então procurou dirigir-se a mim chamando-me de dilectus filius. E antes de me convidar a me levantar, soprou-me no ouvido: “Sabes quanto me custa o teu chapéu? Seis libras, sete soldos de dez denários”. Era, precisamente, a maneira de esse pontífice procurar diminuir nosso orgulho, no momento em que se podia concebê-lo ao máximo, dizer-nos uma zombaria sobre as grandezas. De todos os dias de minha vida não há outro do qual tenha mantido lembranças mais precisas. O Santo Padre, ressequido, inteiramente enrugado, sob sua camalha branca que lhe cobria as orelhas... Era 14 de julho de 1331...

Brunet, manda parar minha liteira. Vou desemperrar um pouco as pernas, com meu sobrinho, enquanto varrem essas migalhas. A estrada é plana, e o sol nos gratifica com um pequeno raio de luz. Apanhai-nos mais adiante. Doze homens apenas para me escoltar; quero um pouco de paz... Salve, mestre Vigier... viva, Volnerio... salve, Du Bousquet... a paz de Deus esteja convosco, meus filhos, meus bons amigos.

Os começos desse rei a quem chamam o Bom

O céu do rei João? Certamente que o conheço; muitas vezes me debrucei sobre ele... Se tivesse previsto? Naturalmente, previ; por isso tanto me esforcei para evitar essa guerra, sabendo que ela lhe seria funesta e, conseqüentemente, sinistra para a França. Mas vá alguém tentar convencer um homem, e sobretudo um rei, a quem os astros fazem obstáculo, precisamente, ao entendimento e à razão!

O rei João II, ao nascer, tinha Saturno culminando na constelação de Capricórnio., no meio do céu. Ë uma configuração nada propícia para um rei, a dos soberanos destronados, dos reinos que desaparecem depressa ou que terminam em trágicos reveses. Além disso, uma Lua que se ergue no signo de Câncer, também lunar, marcando assim uma natureza muito feminina. Enfim, e para lhe fornecer os dados mais evidentes, aqueles que saltam aos olhos de qualquer astrologo, um difícil agrupamento em que se encontram o Sol, Mercúrio e Marte, em conjuntura íntima com Touro. Eis aí um céu muito sombrio, compondo um homem mal balanceado, másculo, mas ao mesmo tempo grosseiro na aparência, e no qual o que deveria ser viril está como que castrado, inclusive o entendimento; ao mesmo tempo, um homem brutal, um violento, povoado de sonhos e de receios secretos que lhe inspiram furores súbitos e homicidas, incapaz de atender a conselhos ou de se dominar, e que esconde essas fraquezas sob a aparência de grande ostentação; no fundo de tudo, um tolo, e o contrário de um vencedor ou de um homem disposto ao comando.

Parece que algumas pessoas têm uma forte inclinação e um secreto apetite pela derrota, e não descansam enquanto não a encontram. Ser vencido compraz profundamente à sua alma; o fel do fracasso é sua beberagem preferida, como para outros o hidromel da vitória; aspiram à dependência, e nada lhes convém mais que contemplar-se numa submissão imposta. É grande desgraça quando tais disposições de nascença caem sobre a cabeça de um rei.

João II, enquanto foi duque da Normandia, vivendo sob a sujeição de um pai que não amava, parecia um príncipe aceitável, e os ignorantes acreditaram que reinaria bem. Aliás, os povos e as cortes são sempre levados pela ilusão, esperam sempre de um novo rei que ele seja melhor do que o precedente, como se a novidade trouxesse em si virtude milagrosa. Mas é só ele ter o cetro nas mãos para que seus astros e sua natureza comecem a mostrar seus efeitos malignos.

Era rei havia apenas dois dias quando o senhor de Espanha, naquele mês de agosto de 1350, foi derrotado no mar, ao largo da Winchelsea, pelo rei Eduardo III. A frota que Carlos de Espanha comandava era castelhana, e nosso sire João não tinha responsabilidade pela empresa. Entretanto, como o vencedor era da Inglaterra, e o vencido, amigo muito querido do rei da França, isso consistia num mau começo para este último.

A sagração se fez em fins de setembro; o senhor de Espanha tinha regressado, e em Reims testemunharam muitas homenagens ao vencido, para consolá-lo de sua derrota.

Em meados de novembro, o condestável Raul de Brienne, conde d’Eu, voltou à França. Era cativo, havia quatro anos, do rei Eduardo, mas um cativo bastante livre, que deixavam, então, circular entre os dois países, porque estava envolvido nas negociações de uma paz geral pela qual trabalhávamos bastante em Avignon. Até eu me correspondia com o condestável. Dessa vez vinha ele receber o preço do seu resgate. Não preciso te dizer que Raul de Brienne era uma muito preeminente, muito importante, muito poderosa personagem, e, por esse motivo, o segundo homem do reino. Tinha sucedido no posto a seu pai, Raul V, morto em torneio. Era senhor de vastos feudos na Normandia, de outros tantos na Touraine e ainda em Bourgueil e Chinon, outros mais na Borgonha, outros no Artois. Possuía terras, no momento confiscadas, na Inglaterra e na Irlanda; possuía-as na região de Vaud. Era primo por aliança do conde Amadeu de Savoia. Tal homem, quando acaba de subir ao trono, é desses que se tratam com respeito; não achas, Archambaud? Pois bem, João II, após lhe ter dirigido, na tarde de sua chegada, furiosas censuras, mas pouco claras, ordenou imediatamente sua prisão. E no dia seguinte, pela manhã, fê-lo decapitar, sem julgamento... Não, não invocou nenhuma razão. Não pudemos saber nada mais a respeito na cúria, como vós em Périgueux. E, entretanto, empenhamo-nos em esclarecer o caso, acredita! Para explicar essa execução precipitada, o rei João afirmou que possuía provas escritas da felonia do condestável; mas nunca as exibiu, nunca. Mesmo ao papa, que o pressionava, em seu próprio interesse, para revelar essas famosas provas, apôs um silêncio tumular.

Começou-se, então, em todas as cortes da Europa, a cachichar, a supor... Falou-se de uma correspondência amorosa que o condestável teria mantido com a senhora Bonne de Luxemburgo, e que, após a morte desta, caíra nas mãos do rei... Ah!, também tu soubeste dessa fábula!. . , Estranha ligação, na verdade, e da qual mal se poderia conceber tivesse que chegar a esse desfecho criminoso, entre uma mulher constantemente grávida e um homem quase continuamente cativo durante quatro anos! Talvez houvesse nas cartas de messire de Brienne coisas penosas de ler para o rei; mas, se isso aconteceu, deveriam antes se referir à sua própria conduta do que à da primeira esposa... Não, não havia nada que pudesse explicar aquela execução, a não ser a natureza odiosa e homicida do novo rei, muito semelhante à natureza de sua mãe, a coxa maldosa. O verdadeiro motivo se revelou pouco depois, quando o posto de condestável foi dado... bem sabes a quem... exatamente! Ao senhor de Espanha, com uma parte dos bens do defunto, dos quais todas as terras e possessões foram distribuídas entre os familiares do rei. Assim o conde João d’Artois recebeu uma bela porção: o condado d’Eu.

As liberalidades dessa feita produziram menos favorecidos do que inimigos. Messire de Brienne tinha parentes em abundância, amigos, vassalos, empregados, toda uma grande clientela muito afeiçoada a ele, a qual logo se congregou numa rede de descontentes. Acrescente-se, ainda, pessoas do círculo real que nada receberam dos despojos e se tornaram enciumadas e intratáveis.

Ah!, daqui se vê bem Châlus e seus dois castelos. Como estão bem localizados esses dois elevados torreões, separados por um ribeirinho! E a região é agradável de se ver, sob estas nuvens que se deslocam apressadamente...

La Rue! La Rue, não me lembro mais; foi exatamente diante da alcáçova à direita, na colina, que Ricardo Coração de Leão foi gravemente ferido por uma flecha que lhe custou a vida? Não é de hoje que nossos patrícios se acostumaram a ser assaltados pelo inglês e a se defenderem...

Não, La Rue, não estou cansado; vou parar apenas para contemplar... Eh, certamente, estou bem! Vou andar um pouco e minha liteira me apanhará mais adiante. Não temos nenhuma pressa. De Châlus a Limoges, se bem me lembro, são menos de nove léguas. Três horas e meia serão o suficiente, sem forçar o trote... Seja! Quatro horas. Deixa-me aproveitar estes últimos belos dias que Deus nos dispensa. Estarei bem abrigado atrás de minhas cortinas quando a chuva chegar...

Dizia-te então, Archambaud, da maneira como agiu o rei João para formar sua primeira cota de inimigos, no próprio ambiente do reino. Resolveu, depois, fazer amigos dedicados, homens devotados, ligados a ele por um novo vínculo, os quais o ajudariam na guerra como na paz e que construiriam a glória de seu reino. E para tanto, no início do ano seguinte, fundou a Ordem da Estrela, à qual consignou a exaltação da cavalaria e o desenvolvimento da honra. Essa grande novidade não era, no entanto, tão nova assim, porquanto o rei Eduardo da Inglaterra já havia instituído a Jarreteira. Mas o rei João ridicularizava essa ordem criada em torno de uma perna de mulher: a Estrela seria uma coisa bem diferente. Podes perceber aqui um traço constante nele. Só sabia copiar, mas sempre dando-se ares de inventor.

Quinhentos cavaleiros, nada menos, que deviam jurar sobre as Sagradas Escrituras jamais recuar um mínimo na batalha e jamais se render. Tanta sublimidade deveria ser assinalada por sinais evidentes. João II não foi mesquinho em ostentação; e seu tesouro, que já não ia muito bem, pôs-se a jorrar como tonei furado. Para alojar a ordem, instalou suntuosamente a casa de Saint-Ouen, que se denominou nada menos que a Nobre Casa, cheia de móveis soberbos, esculpidos e vazados, cravejados de marfim e outros materiais preciosos. Não cheguei a ver a Nobre Casa, mas sei descrevê-la. As paredes são, ou melhor, eram atapetadas de tecidos em ouro e prata, ou ainda de veludos salpicados de estrelas e de flores douradas de lis. A todos os cavaleiros, o rei mandou fazer uma cota de seda branca, uma sobrecota metade branca e metade cor de prata dourada, um capuz prateado, ornado com uma fivela de ouro em forma de estrela. Receberam ainda um estandarte branco recamado de estrelas e um rico anel de ouro de esmalte, para mostrar que todos eram como que casados com o rei... o que fazia sorrir. Quinhentas fivelas, quinhentos estandartes, quinhentos anéis; calcula só a despesa! Consta que o rei desenhou cada peça da sua gloriosa equipagem. Acreditava sinceramente na sua Ordem da Estrela! Com astros tão malignos como os seus, deveria ter escolhido outro emblema.

Uma vez por ano, conforme a regra que ditara, todos os cavaleiros deveriam se reunir num grande festim, em que cada qual contaria suas aventuras heróicas, e as proezas de armas executadas durante o ano; dois letrados deveriam registrá-las para as crônicas. A Tàvola Redonda iria ser revivida, e o rei João ultrapassaria em fama o rei Artur da Bretanha! Sonhava com grandes e vagos projetos. Chegou-se a falar de novo em cruzada...

A primeira assembléia da Estrela, convocada para o Dia de Reis de 1352, foi algo decepcionante. Os futuros valentes não tinham grandes proezas a relatar. Tinham tido pouco tempo. Janízaros divididos em dois, do elmo ao arção da sela, e donzelas libertas dos cárceres barbarescos, seriam a façanha de outro ano. Os dois letrados designados para a crônica da ordem não tiveram que gastar muita tinta, exceto se tivessem que relatar as bebedeiras. Porque a Nobre Casa foi o lugar da maior bebedeira que já se tinha visto na França desde Dagoberto. Os cavaleiros brancos cobertos de ouro e prata empenharam-se tanto no festim que mereciam ser armados cavaleiros do rega-bofe. Durante os assados e sobremesas, gritaram, cantaram, urraram, totalmente bêbados, só deixando a mesa para urinar ou descarregar-se, voltando para de novo se atirarem aos pratos, lançando ardorosos desafios sobre quem esvaziasse mais canjirões. A bela baixela de ouro lavrada foi por eles amassada ou quebrada; os cavaleiros a arremessavam por cima das mesas, como garotos, ou ainda arrebentavam-na a socos. Dos belos móveis vazados ou incrustados só restaram destroços. A bebedeira fez com que alguns pregassem que já estavam em guerra, porque se empenharam em saquear a casa. Assim, os tecidos de ouro e prata que pendiam das paredes foram roubados.

Ora, foi nesse mesmo dia que os ingleses tomaram a cidadela de Guines, entregue por traição, enquanto o capitão comandante dessa praça festejava em Saint-Ouen.

O rei teve uma grande decepção com tudo isso e começou a compreender que suas mais valorosas empresas, por má sorte, estavam votadas ao fracasso.

Pouco depois, sobreveio o primeiro combate no qual os cavaleiros da Estrela tiveram que tomar parte, não num Oriente fantástico, mas num canto de um bosque da Baixa Bretanha. Quinze dentre eles, querendo provar que seriam capazes de outros grandes feitos além do pichei, cumpriram seu juramento de nunca recuar nem desertar; e em lugar de fugir em tempo, como qualquer homem sensato o faria, ofereceram-se para serem cercados por um adversário cujo número não lhes deixava nenhuma oportunidade, mesmo pequena. Nenhum voltou para contar essa proeza. Mas os parentes dos cavaleiros mortos não se cansaram de dizer que o novo rei tinha um espírito bastante falso para impor a seus vexilários um juramento tão louco, e que, se todos tivessem que cumpri-lo, ver-se-ia dentro em pouco sozinho na sua assembléia...

Ah!, aqui está a minha liteira... Preferes cavalgar agora?... Quanto a mim, acho que vou dormir um pouco para estar bem disposto à chegada... E agora podes compreender, Archambaud, por que a Ordem da Estrela não teve grande seguimento e por que se fala dela cada vez menos, de ano para ano.

 

             Os começos desse rei a quem chamam o Mau

Notaste, meu sobrinho, que por todos os lugares em que paramos, em Limoges como também em Nontron ou algures, todos nos pedem notícias do rei de Navarra, como se a sorte do reino dependesse desse príncipe? Na verdade, é bastante estranha a situação em que nos encontramos. O rei de Navarra está preso num castelo do Artois, do seu primo, o rei da França. O rei da França é prisioneiro, num palácio de Bordeaux, do seu primo, príncipe herdeiro da Inglaterra. O delfim, herdeiro da França, luta no Palácio de Paris, entre seus burgueses agitados e seus generais resmungões. Ora, todo mundo parece se preocupar com o rei de Navarra. Ouviste o próprio bispo: “Dizem que o delfim é muito amigo do senhor de Navarra. Não irá libertá-lo?” Santo Deus! Espero que não. Esse jovem foi muito bem aconselhado para não fazer nada até o presente. E fico inquieto com essa tentativa de evasão que os cavaleiros do clã navarrês teriam combinado para libertar seu chefe. Abortou; devemos nos felicitar por isso. Mas tudo leva a crer que desejarão recomeçar.

Sim, sim, é verdade, percebi muitas coisas em nossa parada em Limoges. E estou propenso, assim que chegarmos esta tarde a La Péruse, a escrever ao papa a esse respeito.

Se foi uma grande tolice da parte do rei João encerrar o senhor de Navarra, seria hoje, igualmente, de parte do delfim, soltá-lo. Não conheço maior embrulhão do que Carlos, a quem chamam de o Mau; e até que se entenderam muito bem, através de sua querela, o rei João e ele, para atirar a França na atual desgraça. Sabes de onde lhe vem a alcunha? Dos primeiros meses do seu reinado. Não perdeu tempo em adquiri-la.

Sua mãe, a filha de Luís, o Teimoso, morreu, como te contei outro dia, durante o outono de 1349. No verão de 1350, ele foi se fazer coroar em sua capital de Pamplona, onde nunca mais pusera os pés desde seu nascimento em Évreux, dezoito anos antes. Querendo tornar-se conhecido, percorreu seus Estados, o que não demandava grandes caminhadas; depois foi visitar os vizinhos e parentes, seu cunhado, o conde de Foix e de Béarn, o tal que se fez chamar Phoebus, e seu outro cunhado, o rei de Aragão, Pedro, o Cerimonioso, e igualmente o rei de Castela.

Ora, certa vez, quando voltava a Pamplona e passava por uma ponte, a cavalo, encontrou uma delegação de nobres navarreses que se dirigiam a ele para lhe levar suas lamentações, porque ele permitira que fossem violados direitos e privilégios. Como se recusasse a ouvi-los, alguns se irritaram além da medida; então, mandou que seus soldados prendessem aqueles que gritavam mais perto dele, e ordenou que fossem enforcados imediatamente nas árvores vizinhas, dizendo que era preciso ser rápido em castigar, caso se quisesse ser respeitado.

Observei que os príncipes muito precoces no castigo obedecem, o mais das vezes, a sentimentos de medo. Esse Carlos não é exceção, porque acredito ser ele mais corajoso em palavras do que em ação. Foi esse brutal enforcamento de que Navarra se ressentiu que lhe valeu ser desde logo chamado por seus súditos el Malo, o Mau. Não tardou, aliás, a se afastar do reino, deixando o governo a seu irmão mais moço, Luís, que tinha apenas quinze anos, preferindo voltar a se agitar na corte da França, em companhia de outro irmão, Filipe.

Então, dir-me-ás, como o partido navarrês pode ser tão numeroso e poderoso, se na própria Navarra uma parte da nobreza se opõe ao seu rei? Pois é, meu sobrinho, esse partido se compõe, principalmente, de cavaleiros normandos do condado de Évreux. E o que torna Carlos de Navarra tão perigoso para a coroa da França, mais ainda do que suas possessões ao sul do reino, é que ele detém, ou detinha, nas proximidades de Paris, os feudos de Mantes, Pacy, Meulan, ou Nonancourt, que garantem o acesso à capital por toda a quarta parte oeste do país.

O rei João compreendeu isso muito bem, ou fizeram-no compreender; e deu, uma vez na vida, prova de bom senso, esforçando-se pela boa convivência e acomodação com seu primo de Navarra. Por que laços poderia ele prendê-lo melhor? Por um casamento. E que casamento poderia oferecer que o prendesse à coroa tão estreitamente quanto a união que já existia havia seis meses, pela qual sua irmã Branca fora levada a rainha da França? Pois bem, o casamento com a mais velha das filhas do próprio rei, a pequena Joana de Valois. Ela tinha apenas oito anos, mas era uma noiva pela qual valia a pena esperar. Aliás, a Carlos de Navarra não faltava uma galante companhia para entreter sua paciência. Entre outras, sabe-se de certa senhorita Gracieuse... é esse mesmo o seu nome, ou o que ela confessa ... A pequena Joana de Valois já era viúva, porquanto tinham-na casado uma primeira vez, com a idade de três anos, com um parente de sua mãe que Deus se apressara em recuperar.

Em Avignon fomos favoráveis a esses esponsais, que, julgávamos, deveriam assegurar a paz. Porque o contrato regulamentava todos os negócios pendentes entre esses dois ramos da família da França, a começar pelo do condado de Angoulême, havia muito tempo prometido à mãe de Carlos, em troca de sua renúncia a Brie e a Champagne, depois recambiado contra Pontoise e Beaumont, mas sem que tivesse execução. Dessa vez, retomava o primeiro acordo; Navarra receberia o Angoumois, bem como algumas praças fortes e castelanias que constituíam o dote. O rei João tomava grandes ares de autoridade para cumular de benfeitorias seu futuro genro. “Tereis isto, tal como decidi; dou-vos aquilo, já disse...”

Navarra levava na brincadeira, perante seus familiares, esse novo relacionamento com o rei João. “Somos primos por nascimento; estivemos prestes a ser cunhados; mas, depois que o pai dele desposou minha irmã, fiquei sendo seu tio; e resultou que agora vou me tornar seu genro.” Mas enquanto se negociava o contrato, Navarra procurava naturalmente aumentar sua parte. Não lhe pediram bem nenhum, a não ser um adiantamento em dinheiro: cem mil escudos que o rei João devia aos negociantes de Paris e que Carlos faria a gentileza de pagar. Não havia absolutamente nem mesmo a liquidez da quantia, ela estaria em mãos dos banqueiros da Flandres, aos quais o rei consentiu em remeter, como garantia, uma parte de suas jóias. Era o negócio mais cômodo, tanto para o genro do rei como para o próprio rei...

Foi nessa ocasião, se bem me lembro, que Navarra teve um encontro com o preboste Marcel... assunto que me levou igualmente a escrever ao papa, porquanto as maneiras de proceder desse homem me causavam muita inquietação. Mas essa já é outra história...

Os cem mil escudos foram consignados a Navarra no contrato de casamento e lhe deveriam ser pagos, prontamente, em parcelas. Além disso, armaram-no cavaleiro da Estrela e lhe prometeram até a dignidade de condestável, embora não tivesse ainda completado vinte anos. O casamento foi celebrado com muita pompa e grande alegria.

Pois bem, a bela amizade que demonstravam o sogro e o genro em breve se alterou. Quem a perturbou? O outro Carlos, senhor de Espanha, o belo La Cerda, enciumado, forçosamente, com o favor com que cumulavam Navarra, e inquieto ao ver o astro subir tão alto no céu da corte. Carlos de Navarra tem dessas esquisitices comuns a muitos moços... e eu te sugiro evitá-las, Archambaud, de falar muito quando a fortuna te sorri e não resistir a fazer pilhéria. La Cerda apressou-se em relatar ao rei João as características do seu genro, temperando-as com um pouco de sal. “Ele escarnece de vós, meu caro sire; permite-se todos os gracejos. Não podeis tolerar esses atentados a Vossa Majestade; e, se os tolerardes, eu, por vosso amor, não poderei suportá-los.” E começou a instilar veneno na mente do rei, dia após dia. Navarra disse isto, Navarra fez aquilo; Navarra aproximava-se muito do delfim; Navarra se enredava com tal oficial do Grande Conselho. Não há homem mais disposto do que o rei João para adotar uma idéia má por conta alheia; nem mais renitente em rejeitá-la. É ao mesmo tempo crédulo e teimoso. Nada mais fácil do que lhe inventar inimigos.

Em breve retiraram a lugar-tenência geral do Languedoc, com a qual Carlos de Navarra fora beneficiado. Em proveito de quem? De Carlos de Espanha. Depois a dignidade de condestável, vaga desde a degolação de Raul de Brienne, foi finalmente atribuída, não a Carlos de Navarra, mas a Carlos de Espanha. Dos cem mil escudos que lhe deviam ser reembolsados, Navarra não viu nem mesmo o primeiro, enquanto presentes e mercês se derramavam sobre o amigo do rei. Enfim, enfim, o condado de Angoulême, ao arrepio de todos os acordos, foi dado ao senhor de Espanha, devendo Navarra se contentar, mais uma vez, com uma vaga promessa de recompensa.

Então, entre Carlos, o Mau, e Carlos de Espanha resultou primeiro o resfriamento, depois a aversão, e logo o ódio aberto e confessado. O senhor de Espanha se apressou em dizer ao rei: “Vede como eu estava certo, meu caro sire! Vosso genro, do qual vos mostrei os maus sentimentos, rebela-se contra as vossas vontades. Fica contra mim, porque percebe que eu vos sou bastante útil”.

Em outras ocasiões, fingia querer exilar-se da corte, logo ele, que estava no ápice dos favores, se os irmãos Navarra continuassem a maldizê-lo. Falava como um amante: “Irei para algum lugar deserto, longe do vosso reino, para viver da lembrança do amor que me demonstrastes. Ou para lá morrer! Porque, longe de vós, a alma abandonará meu corpo”. Viram verter lágrimas a esse curioso condestável!

E como o rei João tinha a cabeça toda impregnada pelo espanhol e nada via a não ser pelos seus olhos, entregou-se a verdadeira obstinação, tornando-se irredutível inimigo do primo que havia escolhido para genro, com a finalidade de assegurar-se um aliado.

Já te disse: mais tolo do que esse rei não se pode inventar ninguém, nem mais prejudicial a si mesmo... o que não seria nada de mais, se não fosse, ao mesmo tempo, prejudicial a seu reino.

A corte não se importava mais com essa querela. A rainha, bastante desamparada, reconciliou-se com a senhora de Espanha... porque o condestável se casara, casamento de fachada, com uma prima do rei, a senhora de Blois.

Os conselheiros do rei, embora fingissem adular seu chefe, andavam muito divididos, conforme achassem melhor ligar sua fortuna à do condestável ou à do genro. E as lutas surdas que os opunham eram tanto mais desagradáveis porquanto o rei, que desejava aparentar ser o único a cuidar de tudo, abandonava a seu círculo o cuidado dos negócios mais importantes.

Vê bem, meu caro sobrinho, fazem-se intrigas em torno de todos os reis. Mas não se conspira, não se trama senão em torno dos reis fracos ou daqueles enfraquecidos por causa de um vício, ou atingidos pela doença. Queria ver quem conspiraria em volta de Filipe, o Belo! Ninguém sonharia, ninguém ousaria. O que não quer dizer que os reis fortes estejam ao abrigo das conspirações; mas nesse caso exigem-se verdadeiros traidores. Ao passo que, ao lado de príncipes fracos, torna-se até natural pessoas honestas conspirarem.

Um dia, nas vésperas do Natal de 1354, num palácio de Paris, houve troca de palavras pesadíssimas e insultos entre Carlos de Espanha e Filipe de Navarra; este último sacou de sua adaga e investiu contra Carlos, e teria ferido o condestável se não o tivessem impedido! Carlos fingiu rir e gritou ao jovem Navarra que ele ter-se-ia mostrado menos ameaçador se não tivesse tanta gente ao seu redor para contê-lo. Filipe não é tão malicioso assim, mas é muito mais inflamado em combate que seu irmão mais velho. Não o retiraram da sala sem que prometesse imediata vingança contra o inimigo da família e que lhe revidaria o ultraje. O que cumpriu, duas semanas depois, na noite festiva dos Reis Magos.

O senhor de Espanha fora visitar sua prima, a condessa d’Alençon. Resolveu pernoitar em Laigle, numa estalagem cujo nome ninguém esquece: a Estalagem da Truta que Escapa. Muito seguro do respeito que inspiravam sua posição e a amizade do rei, achava nada ter que recear quando viajava pelo reino, e levava consigo apenas uma pequena escolta. Ora, o burgo de Laigle está situado no condado de Évreux, a poucas léguas da cidade em que os irmãos Évreux-Navarra residiam em majestoso castelo. Advertidos da passagem do condestável, prepararam-lhe uma terrível emboscada.

Lá pela meia-noite, vinte cavaleiros normandos, todos rudes fidalgos, sire de Graville, sire de Clères, sire de Mainemares, sire de Morbecque, o cavaleiro d’Aunay... precisamente!, o descendente de um dos galantes da Torre de Nesle, nada surpreendente que o encontrassem no partido de Navarra... enfim, como estou te contando, uma boa vintena cujos nomes são conhecidos, uma vez que o rei, a contragosto, teve que lhes dar, mais tarde, cartas de indulto... surgiram no burgo, sob a chefia de Filipe de Navarra, arrombaram as portas da Truta que Escapa e se arremessaram no aposento do condestável.

O rei de Navarra não estava entre eles. Para o caso de a empreitada não dar certo, ele preferiu esperar à orla de um bosque, num celeiro, em companhia dos cavalariços. Posso vê-lo, meu Carlos, o Mau, pequenino, vivaz, enrodilhado em sua capa como um demônio, saltando de cá para lá na terra gelada, tal qual o diabo que não pisa no chão. Espera. Olha o céu de inverno. O frio enregela-lhe os dedos. Tem a alma torturada ao mesmo tempo pelo medo e pelo ódio. Escuta. Recomeça a saltitar, inquieto.

Surge então João de Fricamps, conhecido por Friquet, governador de Caen, seu conselheiro e o mais zeloso montador de máquinas, que lhe diz, ofegante: “Está feito, monseigneur!”

E depois surgem Graville, Mainemares, Morbecque e o próprio Filipe de Navarra e todos os conjurados. Longe dali, na estalagem, o belo Carlos de Espanha, que haviam arrancado de baixo da cama, onde tentara refúgio, está morto. Transpassaram-no covardemente através do roupão. Contaram-se oitenta ferimentos no corpo, oitenta golpes de espada. Cada qual quis mergulhar ali quatro vezes a sua arma... Eis aqui, senhor meu sobrinho, como o rei João perdeu seu bom amigo e como monseigneur de Navarra partiu para a rebelião.

Agora, quero te pedir que cedas teu lugar a dom Francesco Calvo, meu secretário papal, com o qual quero me entreter antes de chegarmos ao pernoite.

                     As notícias de Paris

Como devo estar muito atarefado, dom Calvo, chegando a La Péruse para inspecionar a abadia e ver se foi muito assolada pelos ingleses, e deva durante um ano isentar os monges, tal como me pedem, e receber minha còngrua de prior, quero vos dizer aqui mesmo o que deve constar de minha carta ao Santo Padre. Agradecer-vos-ei se me preparardes esta carta assim que chegarmos, com todos os belos torneios de frases que costumais usar.

É preciso dar a conhecer ao Santo Padre as notícias de Paris que me chegaram em Limoges, e que não deixam de me inquietar.

Em primeiro lugar, os procedimentos do preboste dos negociantes de Paris, mestre Estevão Marcel. Estou ciente de que esse preboste mandou, há um mês, construir fortificações e cavar fossos em torno da cidade, além dos antigos limites, como se estivesse se preparando para sustentar um assédio. Ora, no ponto em que estamos de tratativas de paz, os ingleses não demonstraram nenhuma intenção de executar qualquer ameaça contra Paris, e não se compreende, absolutamente, essa pressa em se fortificar. Além disso, o preboste organizou seus burgueses em regimentos locais, que ele arma e exercita, com chefes de quarteirões, quinteneiros e dezeneiros para assegurar os comandos, exatamente como nas milícias da Flandres, as quais governam por si mesmas as suas cidades; impôs ao senhor delfim, lugar-tenente do rei, que aprove a constituição dessa milícia, e ainda por cima que todas as taxas e talhas reais resultantes de reclamações e recusas se destinem ao preboste, a fim de que ele possa equipar seus homens, estabelecendo ainda um imposto sobre as bebidas, que ele recebe diretamente.

Esse mestre Marcel, que até há bem pouco tempo era muito rico, graças aos fornecimentos do rei, mas que depois de quatro anos perdeu provisão e deixou um grande débito, parece que depois da desgraça de Poitiers quis se meter em todos os negócios do reino. Não se compreendem muito bem os seus desígnios, salvo o de se tornar importante; mas isso não figura no caminho do apaziguamento que deseja o Santo Padre. Meu piedoso dever é também o de aconselhar ao papa, se acontecer de vir algum pedido de sua parte, mostrar-se bastante reservado e não dar nenhum apoio, nem mesmo aparência de apoio, ao preboste de Paris e às suas empresas.

Compreendestes-me bem, dom Calvo. O cardeal Capocci está em Paris. Ele bem poderá, irrefletido como é e notável em negligência, julgar-se bastante forte e enredar-se nas intrigas desse preboste... Não, não me foi narrado nada de preciso; mas meu nariz me adverte quanto a esses caminhos tortuosos, nos quais meu colegatário gosta de se meter...

Em segundo lugar, quero pedir ao soberano pontífice que procure se informar, em suas minúcias, relativamente aos Estados Gerais da Langue d’Oïl que se encerram em Paris no começo deste mês, e projetar a luz de sua santa atenção sobre as estranhezas que aí se produziram.

O rei João havia prometido convocar esses Estados Gerais no mês de dezembro; mas devido à grande emoção, à desordem e ao acabrunhamento em que se achou o reino em conseqüência da defecção de Poitiers, o delfim Carlos resolveu agir sabiamente, antecipando a reunião para outubro. Na verdade, não havia outra escolha a fazer para reforçar a autoridade que lhe escapava nesse desastre, jovem como é, com um exército descontrolado pelos reveses, e um Tesouro em extrema penúria.

Mas os oitocentos deputados da Langue d’Oïl, dentre os quais quatrocentos burgueses, não deliberavam absolutamente a respeito dos assuntos para os quais foram convocados.

A Igreja tem larga experiência dos concílios que escapam às finalidades dos que se reuniram. Quero dizer que para o papa esses Estados se parecem exatamente com um concilio que se desencaminha, se arroga o direito de tudo regulamentar e se perde na reformulação desordenada, aproveitando-se da fraqueza do supremo poder.

Em lugar de se preocupar com o resgate do rei da França, nossos representantes de Paris se importaram com reclamar o do rei de Navarra, o que bem demonstra de que lado estão aqueles que os conduzem.

Além disso, os oitocentos nomearam uma comissão de oitenta, que se pôs a trabalhar em segredo para estabelecer uma longa lista de advertências, onde existe algo de bom e muito de ruim. Em primeiro lugar, pedem a destituição e o julgamento dos principais conselheiros do rei, que acusam de haver dilapidado as subvenções e que consideram responsáveis pela defecção...

Sobre isso, devo dizer-vos, dom Calvo... não deveis pôr isso na carta, apenas lhe revelo meu pensamento... as advertências não são inteiramente injustas. Reconheço que, entre os indivíduos aos quais o rei João entregou o governo, alguns não valem nada, e que são mesmo uns belos patifes. É natural que se enriqueça nos altos cargos, do contrário ninguém quereria assumir as responsabilidades e os riscos. Mas é preciso resguardar-se para não ultrapassar os limites da desonestidade, e não fazer seus negócios à custa do interesse público. E depois, principalmente, é preciso ser capaz. Ora, o rei João, sendo pessoalmente pouco capaz, escolheu a seu bel-prazer pessoas que absolutamente não o são.

A partir daí os deputados começaram a requerer coisas absurdas. Exigem que o rei ou seu lugar-tenente, no momento o delfim, governe apenas por conselheiros designados pelos três Estados, quatro prelados, ‘doze cavaleiros, doze burgueses. Esse conselho teria poderes para tudo fazer e ordenar, como o rei fazia antes, nomearia pessoas para todos os cargos, poderia reformar a Câmara de Comércio e todas as companhias do reino, decidiria sobre o indulto dos prisioneiros e ainda muitas outras coisas. Na verdade, seu maior cuidado estaria, nada mais, nada menos, em despojar o rei dos atributos da soberania.

Assim, a direção do reino não seria mais exercida por quem foi ungido e sagrado, segundo nossa santa religião; seria confiada a esse referido conselho, que basearia seu direito numa assembléia tagarela e operaria em conformidade com ela. Que fraqueza e que confusão! Essas pretensas reformas ... compreendei-me, dom Calvo, continuo insistindo, porque é preciso que o Santo Padre não possa dizer que não foi advertido... essas pretensas reformas ofendem o bom senso, ao mesmo tempo que cheiram a heresia.

Ora, há gente da Igreja, e isso é lamentável, que pende para esse lado, como o bispo de Laon, Roberto Le Coq, agora em desgraça junto ao rei e, em vista disso, inteiramente devotado ao preboste. É um dos mais entusiasmados.

O Santo Padre deve ver bem que, por trás de toda essa agitação, se encontra o rei de Navarra, que parece manejar as coisas do fundo de sua prisão e que pioraria tudo ainda mais, se estivesse em liberdade. O Santo Padre, na sua grande sabedoria, decidirá, pois, que precisa procurar intervir o menos possível para que Carlos, o Mau, quero dizer monseigneur de Navarra, seja perdoado, o que inúmeras súplicas vindas de toda parte devem estar lhe rogando que faça.

Por minha vez, usando de minhas prerrogativas de legado e núncio... estais me ouvindo, dom Calvo?... ordenei ao bispo de Limoges fazer parte da minha comitiva, para estar comigo em Metz. Ele me alcançará em Bourges. E resolvi ordenar o mesmo a todos os outros bispos que estão no meu caminho, cujas dioceses foram saqueadas e destruídas pelas incursões hostis do príncipe de Gales, a fim de que testemunhem perante o imperador. Estaria assim mais seguro para discutir quanto é perniciosa a aliança que fizeram o rei navarrês e o da Inglaterra, . .

Mas que vos interessa olhar sempre para fora, dom Calvo?... Ah!, é o balanço de minha liteira que vos revolta o estômago! Quanto a mim, já estou bastante habituado, diria mesmo que me estimula o espírito; e vejo que meu sobrinho, messire de Périgord, que me faz companhia desde nossa partida, não é absolutamente afetado... É mesmo, tendes as feições alteradas. Bem, é melhor apear. Mas não vos esqueçais do que lhe disse quando empunhar vossa pena.

 

                                 O Tratado de Mantes

Onde estamos? Já passamos Mortemart?... Ainda não! Dormi um pouco, me parece... Oh!, o céu está escurecendo, e os dias vão ficando mais curtos! Sonhava, meu sobrinho, sonhava com uma ameixeira em flor, uma grande ameixeira inteiramente branca, ramalhuda, cheinha de pássaros, como se cada flor cantasse. E o céu era azul, como o manto da Virgem. Uma aparição angélica, verdadeira visão do paraíso. Estranha coisa são os sonhos! Já notaste que no Evangelho não se conta nenhum sonho, exceto o de José no primeiro capítulo de São Mateus? É o único. Enquanto no Antigo Testamento os patriarcas sonham sempre. No Novo, não se sonha. Às vezes me pergunto por quê, sem poder responder... Isso não te impressionou? É que não és grande leitor das Sagradas Escrituras, Archambaud... Nelas há sempre um bom tema para nossos sábios doutores de Paris ou de Oxford discutirem entre eles e nos dar volumosos tratados e discursos, num latim tão confuso que ninguém entende patavina...

Em todo caso, o Espírito Santo me inspirou este desvio em La Péruse. Viste esses bons irmãos beneditinos que desejavam levar vantagem nesse assalto inglês para não pagar as comendas do prior? Far-lhes-ei devolver a cruz de esmalte e os três cálices de prata dourada que afoitamente ofereceram aos ingleses para se safarem do saque e saldarem suas anuidades.

Esperavam muito ingenuamente ser confundidos com os habitantes da outra margem do Vienne, onde os salteadores do príncipe de Gales tudo destruíram, saquearam, queimaram, como vimos tão bem esta manhã em Chirac ou em Saint-Maurice-des-Lions. E principalmente na Abadia de Lesterps, onde os cônegos regulares foram destemidos. “Nossa abadia é fortificada; nós a defenderemos.” E esses cônegos lutaram como homens valentes e corajosos, de que não nos envergonhamos. Muitos pereceram na refrega, em que se portaram mais nobremente do que muitos cavaleiros de meu conhecimento em Poitiers.

Se todos os homens da França tivessem assim tanta coragem... Esses honestos cônegos ainda encontraram meios, no seu convento completamente calcinado, de nos oferecer um jantar tão abundante e tão bem-feito que acabou me dando sono. Notaste o ar de santa alegria que demonstraram em seus semblantes? “Nossos irmãos foram mortos? Descansam em paz. Deus acolheu-os na sua mansidão... Ele nos deixou nesta terra? É para que possamos executar boas obras... Nosso convento foi quase destruído? Eis a ocasião para reconstruí-lo, e para melhor...”

Os bons religiosos são alegres, meu sobrinho. Compreendes isso? Desconfio dos severíssimos jejuadores de rosto afilado, de olhos ardentes e estranhos, como se tivessem tido visão do inferno. Aqueles a quem Deus concedeu a elevada honra de havê-los chamado a seu serviço têm obrigação de se mostrar alegres; é um exemplo e uma delicadeza que devem aos outros mortais.

Da mesma forma os reis, uma vez que Deus os elevou acima de todos os outros homens, têm o dever de exercer sempre o domínio sobre si mesmos. Messire Filipe, o Belo, que era um paradigma de verdadeira majestade, condenava sem que lhe percebessem nenhuma cólera; e suportava a dor sem lágrimas.

Na ocasião do assassinato do senhor de Espanha, que te contei ontem, o rei João deu a perceber da maneira mais deplorável que era incapaz de dominar suas paixões. Um rei não deve inspirar piedade; melhor seria que o acreditassem insulado em sua mágoa. Durante quatro dias, o nosso rei esteve incapaz de pronunciar uma única palavra, e até de dizer se queria comer ou beber. Perambulava pelos quartos, com os olhos vermelhos e inundados de lágrimas, sem reconhecer ninguém, parando subitamente para soluçar. Foi-lhe impossível executar qualquer tarefa. O inimigo poderia invadir o seu palácio que ele se deixaria conduzir docilmente pela mão. Não demonstrou a mínima dor quando morreu a mãe de seus filhos, a senhora de Luxemburgo, o que o delfim Carlos não deixou de censurar. Foi mesmo a primeira vez em que se viu o delfim demonstrar o desprezo para com seu pai, chegando a lhe dizer que não era decente abandonar-se dessa maneira. Mas o rei não compreendia nada.

Só saiu desse abatimento para berrar. Berrar quando arreavam seu cavalo de torneios; berrar quando convocava as suas hostes; berrar quando ia a Évreux distribuir justiça, e toda gente acabava tremendo. Seus familiares tiveram muito trabalho para fazê-lo voltar à razão e lembrar-lhe que a reunião das hostes, mesmo sem convocação da nobreza para a guerra, far-se-ia em um mês; que, se fosse atacar Évreux, criaria a desavença na Normandia; que, por outro lado, as tréguas com o rei da Inglaterra estavam terminando e, se permitisse a este último aproveitar-se da desordem, o reino estaria em perigo.

Lembravam-lhe que, possivelmente, se tivesse respeitado o contrato de casamento de sua filha e mantido o compromisso de restituir Angoulême a Carlos de Navarra, ao invés de tê-lo doado ao seu querido condestável...

João II abria os braços e clamava: “Quem sou eu, se não posso fazer nada? Bem vejo que nenhum de vós me ama, e que perdi meu sustentáculo”. Mas, no fim, permaneceu no palácio, jurando perante Deus que jamais seria feliz se não fosse vingado.

Entretanto, Carlos, o Mau, não ficava inativo. Escreveu ao papa, escreveu ao imperador, escreveu a todos os príncipes cristãos, explicando-lhes que não desejara a morte de Carlos de Espanha, mas apenas detê-lo, pelos prejuízos e ultrajes sofridos por sua causa; que haviam ultrapassado suas ordens, mas que assumia toda a responsabilidade e defendia os parentes, amigos e afeiçoados, os quais tinham sido impelidos, no tumulto de Laigle, apenas por um grande zelo, para seu bem.

Oferecia dessa forma, depois de ter preparado a cilada como um vagabundo salteador de estradas, as luvas do cavalheiro.

E escreveu, principalmente, ao duque de Lancastre, que se achava em Malines, e ao próprio rei da Inglaterra. Tivemos conhecimento do teor dessas cartas quando as coisas se complicaram. O Mau não era homem de rodeios. “Se recomendardes a vossos capitães da Bretanha que estejam preparados a entrar na Normandia assim que eu ordenar, eu lhes garantirei a entrada, sem nenhuma dúvida. Sabei, caríssimo primo, que todos os nobres da Normandia estão comigo para a morte e para a vida.” Pelo homicídio do senhor de Espanha, nosso homem proclamou-se em rebelião; no momento primava como traidor. Mas ao mesmo tempo lançava sobre o rei João as damas de Melun.

Não sabes quem são assim chamadas?... Ah!, está chovendo. Precisamos esperar; esta chuva nos ameaçava desde a partida. Agora vais abençoar a minha liteira, Archambaud, de preferência a ter a água escorrendo pelo pescoço, sob tua sobrecota, e com o barro enlameando-te até os rins...

As damas de Melun? São as duas rainhas que desfrutam arras de viúvas e mais a pequena Joana de Valois, esposa de Carlos, à espera da puberdade. As três vivem no Castelo de Melun, chamado por essa razão de Três Rainhas, ou ainda a Corte das Viúvas.

Em primeiro lugar, a senhora Joana d’Évreux, viúva do rei Carlos IV e tia do nosso Mau. Sim, sim, ainda vive; não é tão idosa como pensam. Deve ter passado apenas o cinqüentenário; tem quatro ou cinco anos menos que eu. É viúva há vinte anos, há vinte e oito anos se veste de branco. Ocupou o trono somente três anos. Mas conserva influência no reino. É que ela é a decana, a última rainha da primeira geração dos Capetos. É isso, teve dos seus três partos... três filhas, das quais só uma, a póstuma, ainda está viva... se tivesse tido um filho teria sido rainha-mãe e regente. A dinastia acabou no seu ventre. Quando ela diz: “Monseigneur d’Évreux, meu pai... meu tio Filipe, o Belo... meu cunhado Filipe, o Longo...” todos se calam. É a sobrevivente de uma dinastia indiscutível e de um tempo em que a França era incomparavelmente mais poderosa e gloriosa do que hoje. É como um penhor de garantia para a nova geração. De resto, há certas coisas que não se fazem, porque a senhora d’Évreux desaprová-las-ia.

Além do mais, diz-se à volta dela: “É uma santa”. Convenhamos que falta bem pouco, quando se é rainha, para ser vista como santa por uma pequena corte desocupada, onde o louvor toma o lugar da ocupação. A senhora Joana d’Évreux levanta-se muito cedo, acende pessoalmente sua candeia para não incomodar suas aias. Depois põe-se a ler o livro de horas, o menor do mundo segundo dizem, um presente de seu esposo, que o havia encomendado a um perito iluminista, Jean Pucelle. Reza muito e dá muitas esmolas. Passou vinte e oito anos afirmando que não deixara descendência porque não tinha podido conceber um filho. As viúvas vivem de idéias fixas. Teria influído mais no reino se tivesse tido inteligência na proporção de sua virtude.

Vem em seguida a senhora Branca, a irmã de Carlos de Navarra, segunda mulher de Filipe VI, que foi rainha apenas por seis meses, tempo suficiente para se habituar a ter uma coroa. Tem a fama de ser a mais bela do reino. Vi-a, há tempos, e ratifico de boa mente esse juízo. Tem vinte e quatro anos agora, e há seis anos se interroga para que lhe servem a brancura da sua pele, seus olhos brilhantes e seu corpo perfeito. Mesmo que a natureza não a tivesse dotado dessa esplêndida aparência, seria rainha, presentemente, porquanto era destinada ao rei João! O pai tomou-a para si porque fora dominado pela sua beleza.

Após isso, no meio do ano que se passou desde que seu esposo baixou ao túmulo, foi pedida em casamento pelo rei de Castela, dom Pedro, que seus súditos cognominaram o Cruel. Respondeu, um pouco apressadamente talvez: ‘‘Uma rainha da França nunca se casa de novo”. Elogiaram-na bastante por essa nobreza. Mas ela se pergunta agora se não foi um sacrifício pesado o consentimento à sua magnificência passada. O domínio de Melun é a sua arras de viúva. Empreende no lugar grandes embelezamentos, mas pode mudar quanto queira, no Natal e por ocasião da Páscoa, a alca-tifa e as tapeçarias que compõem seu quarto: é sempre sozinha que ela aí dorme.

Finalmente, há outra Joana, a filha do rei João, cujo casamento só teve como efeito precipitar as tempestades. Carlos de Navarra confiou-a à sua tia e à sua irmã até que atingisse a idade da consumação do liame. Esta é uma pequena calamidade, como pode ser uma garota de doze anos que se recorda de ter sido viúva aos seis e que se considera rainha sem ocupar ainda o posto. Não tem nada que fazer, além de esperar o crescimento, que aguarda com desagrado, reclamando de tudo o que lhe ordenam, exigindo tudo o que lhe recusam, admoestando suas preceptoras e lhes prometendo mil torturas no dia em que se tornar pùbere. É preciso que a senhora d’Évreux, que leva muito a sério a conduta, lhe retruque às vezes com um tabefe.

Nossas três damas passam o tempo em Melun e em Meaux... Meaux é domínio da senhora d’Évreux... uma ilusão de corte. Têm chanceler, tesoureiro, mordomo. Títulos honoríficos para reduzidas funções. A gente se surpreende encontrando por lá pessoas que se julgava mortas, há tanto tempo esquecidas, salvo delas mesmas. Velhos servidores que sobraram de reinados precedentes, velhos confessores de reis defuntos, guardas-secretários de segredos conhecidos. Homens que pareceram poderosos um tempo porque se aproximavam o mais possível do poder, remexem em suas lembranças, dando-se importância por ter tomado parte em acontecimentos que não existem mais. Quando um deles começa: “No dia em que o rei me disse...” é preciso adivinhar de que rei se trata entre os reis que ocuparam o trono desde a aurora do século. E o que o rei disse é sempre alguma grave e memorável confidencia, tal como: “Que belo dia, não é mesmo, Gros-Pierre?”...

Quando sobrevém um acontecimento como o do rei de Navarra, é quase uma fortuna inesperada para a Corte das Viúvas, subitamente despertada de seus sonhos. Todos se comovem, fazem bulha, se agitam... Acrescentemos que para as três rainhas monseigneur de Navarra é, entre todos os vivos, o primeiro em seus pensamentos. É o sobrinho bem-amado, o irmão querido, o esposo idolatrado. Seria bom lembrar-lhes que em Navarra o chamam de o Mau! Ele tudo faz, enquanto espera, para lhes parecer amável, cumulando-as de presentes, vindo freqüentemente visitá-las ... pelo menos quando não estava preso... divertindo-as com suas narrativas, entretendo-as com suas proezas, apaixonando-as pelas suas empresas, encantador como pode ser, fingindo-se respeitoso com sua tia, afetuoso junto de sua irmã, e amoroso perante sua pequena esposa, tudo isso calculada-mente, para mantê-las como peças no seu jogo.

Após o assassinato do condestável e logo que o rei João se mostrou um pouco mais calmo, foram juntas a Paris, a pedido de monseigneur de Navarra.

A pequena Joana de Valois, atirando-se aos pés do rei, recitou-lhe com muita graça a lição que lhe ensinaram: “Senhor meu pai, não é possível que meu esposo tivesse cometido alguma traição contra vós. Se ele procedeu mal, foram os traidores que o iludiram. Peço-vos, por amor de mim, que o perdoeis”.

A senhora d’Évreux, cheia de mágoa e da autoridade que sua idade lhe confere, disse: “Senhor meu primo, como a mais antiga que ostentou a coroa neste reino, ouso aconselhar-vos e rogar-vos fazer as pazes com meu sobrinho. Se cometeu alguns erros perante vós, é que alguns que vos servem tiveram-lhe inveja, e ele chegou a acreditar que o abandonastes a seus inimigos. Mas ele mesmo só nutria por vós, posso assegurar-vos, pensamentos de boa e leal afeição. Seria prejudicar-vos a ambos prosseguir nessa discórdia...”

A senhora Branca nada disse. Encarou o rei João. Bem sabe que o rei não poderia esquecer que ela deveria ter sido sua mulher. Diante dela, esse homem alto e grosseiro, costumeiramente tão decidido, fica totalmente hesitante. Seus olhos se desviam dela, sua palavra se atrapalha. E sempre, em sua presença, decide o contrário daquilo que imaginava querer.

Logo após essa entrevista, o rei designou o cardeal de Boulogne, o bispo de Laon, Roberto Le Coq, e Roberto de Lorris, seu camareiro, para negociarem com o genro e lhe propor a paz. Prescreveu que as coisas fossem tratadas prontamente. Foram-no, na verdade, visto que uma semana antes do fim de fevereiro os negociadores das duas partes assinavam o acordo em Mantes. Nunca, que me lembre, viu-se um tratado obtido tão facilmente e concluído tão depressa.

O rei João demonstrou, na ocasião, a bizarria de caráter e sua pouca segurança nas negociações. No mês precedente só pensava em agarrar e matar monseigneur de Navarra; agora consentia em tudo o que ele desejasse. Diziam-lhe que seu genro reclamava o Cios de Contentin com Valognes, Cou tances e Carentan. Respondia: “Dái-lhe, dai-lhe!” O viscondado de Pont-Audemer e o de Orbec? “Dai-lhe, uma vez que quereis que eu esteja de acordo com ele.” Assim, Carlos, o Mau, recebeu igualmente o opulento condado de Beaumont, com as castelanias de Breteuil e de Conches, tudo quanto constituía, outrora, a pradaria do conde Roberto d’Artois. Bela vingança post-mortem para Margarida de Borgonha; seu neto recuperava os bens do homem que a tinha perdido, o conde de Beaumont! O jovem Navarra exultava. Por esse tratado, ele mesmo não cedia quase nada; resti tuia Pontoise, e em seguida confirmava solenemente que renunciava à Champagne, o que já estava estabelecido há mais de vinte e cinco anos.

Do assassinato de Carlos de Espanha não se falaria mais. Nenhum castigo, nem sequer aos comparsas, nenhuma reparação. Todos os cúmplices da Truta que Escapa, e que então não hesitaram em se dar a conhecer, receberam cartas de quitação e de indulto.

Ah!, esse Tratado de Mantes não contribuiu decerto para exaltar a imagem do rei João. “Matam-lhe o condestável; e ele cede a metade da Normandia. Se lhe matarem o irmão ou o filho, cederá a França.” Eis o que diziam.

O pequeno rei de Navarra não demonstrou inabilidade. Com Beaumont, além de Mantes e Évreux, podia isolar Paris da Bretanha; com o Contentin, assegurava vias diretas para a Inglaterra.

Quando veio a Paris para solicitar perdão, era ele que tinha o aspecto de quem perdoava.

Sim; que é que há, Brunet? ... Oh!, esta chuva! Minha cortina está inteiramente encharcada... Chegamos a Bellac? Muito bem. Aqui pelo menos teremos uma pousada confortável e não haverá desculpa para que não nos proporcionem uma grande recepção. A incursão inglesa poupou Bellac, por ordem do príncipe de Gales, que é o pensioneiro da condessa de Pembroke, a qual é uma Châtillon-Lusignan. Os guerreiros têm dessas gentilezas...

Termino, meu sobrinho, a história do Tratado de Mantes. O rei de Navarra surgiu pois em Paris como se houvesse ganho a batalha, e o rei João, a fim de recebê-lo, reuniu o Parlamento em sessão, com as duas rainhas viúvas sentadas a seu lado. Um advogado do rei veio ajoelhar-se diante do trono... oh!, tudo isso com grande pompa... “Meu mui destemido senhor, as senhoras rainha Joana e Branca tiveram conhecimento de que monseigneur de Navarra caiu em vosso desagrado e vos suplicam perdoar-lhe...”

Em seguida, o novo condestável, Gautier de Brienne, duque de Atenas... exatamente, um primo de Raul, do outro ramo dos Brienne; dessa vez não tinham escolhido um muito jovem... tomou Navarra pela mão... “O rei vos perdoa pela amizade das rainhas, de coração e de boa vontade.”

Prosseguindo, o cardeal de Boulogne teve o encargo de acrescentar alto e bom som: “Que ninguém da linhagem do rei se aventure de agora em diante a recomeçar, porque, seja ele filho do rei, será feita justiça”.

Bela justiça, em verdade, de que todos riam à socapa. E perante toda a corte, sogro e genro se abraçaram. Contar-te-ei o resto amanhã.

 

                           O Mau em Avignon

Para te dizer a verdade, meu sobrinho, prefiro essas igrejas de antanho, como a do Dorat, por onde acabamos de passar, às igrejas que se edificaram nestes cento e cinqüenta ou duzentos anos, que são monumentos de pedra, mas em que a sombra é tão densa, os ornamentos, tão profundos e sempre tão aterradores que a gente sente o coração cheio de angústia, como se estivesse perdido à noite no meio da floresta. Não é apreciável, eu bem o sei, ter meu gosto; porém é o meu e não mudo. Talvez ad venha de que cresci em nosso velho alcácer de Périgueux, edificado sobre um monumento da antiga Roma, perto do nosso Saint-Front, bem próximo de nossa Saint-Étienne, e que me apraz reencontrar as formas que me dão saudade, esses belos pilares, simples e regulares e esses altos cimbres bastante arredondados sob os quais a luz se espraia à vontade.

Os antigos monges sabiam edificar esses santuários nos quais a pedra parece suavemente dourada, enquanto o sol por ali penetra em abundância, e em que os cânticos sob as elevadas arcadas, prefigurando a abóbada celeste, reboam e se espraiam magnificamente, como vozes de anjos no paraíso.

Por divina graça, os ingleses saquearam Dorat, mas não destruíram essa obra-prima entre as obras-primas, de maneira que a tivéssemos de reconstruir. Aliás, aposto que nossos arquitetos do norte sentir-se-iam felizes em montar algum pesado navio, bem a seu gosto, apoiado sobre patas de pedra, como um animal fantástico no qual, quando alguém por ali penetrasse, não poderia deixar de acreditar que a casa de Deus é a antecâmara do inferno. E teriam substituído o anjo de cobre dourado no alto da flecha que deu seu nome à paróquia... sem dúvida, lout dort... por que um diabo bicorne e careteiro...

O inferno... Meu benfeitor, João XXII, meu primeiro papa, não acreditava nele, ou melhor, professava que estava vazio. Seria ir um pouco longe. Se as pessoas não tivessem que temer o inferno, como poderíamos pedir esmolas e exigir penitências para resgate dos seus pecados? Sem o inferno, a Igreja poderia fechar a loja. Era a mania do grande ancião. Foi-nos preciso fazê-lo retratar-se em seu leito de morte. Eu estava lá...

Oh!, mas como o tempo refrescou, hem? Sente-se logo que dentro de dois dias entraremos em dezembro. Um frio úmido, o pior.

Brunet! Aymar Brunet, vê, meu amigo, se não há no carro de víveres um braseiro para colocar na minha liteira. As mantas não bastam e, se continuarmos assim, é um cardeal todo tiritante que vai descer em Saint-Benoit-du-Sault. Também lá, disseram-me, os ingleses fizeram depredações... E se não houver bastante brasa na carreta do coque para aquecer um guisado, vamos pedir um pouco dele na primeira choupana por onde passarmos... Não, não preciso do mestre Vigier. Deixa-o seguir viagem. Se eu solicitar um médico em minha liteira, toda a comitiva vai imaginar que estou agonizando. Sinto-me maravilhosamente bem. Tenho precisão de brasas, eis tudo...

Queres saber, Archambaud, o que veio depois do Tratado de Mantes, de que te falei ontem... És bom ouvinte, meu sobrinho, e é um prazer instruir-te sobre o que se sabe. Desconfio que irás tomar algumas notas por escrito quando chegarmos à pousada, não é mesmo?... Bem, então acertei. São os fidalgos do norte que se dão importância por serem mais ignorantes do que os asnos, como se ler e escrever fosse tarefa de pequeno letrado ou de pobre. Precisam de um empregado para decifrar o conteúdo do menor bilhete que lhes endereçam. Nós, no sul do reino, que sempre fomos interessados pela romanidade, não desprezamos a instrução. O que nos dá vantagem em muitos assuntos.

Quer dizer que estás tomando notas? Isso é bom. Porque, pelo que me tange, não poderia nunca deixar testemunho de tudo o que vi e daquilo que fiz. Todas as minhas cartas e também os escritos são ou serão arquivados nos registros do papado, de onde nunca mais sairão, como é de regra. Mas tu estarás em condições, Archambaud, e, pelo menos quanto aos negócios da França, poderás dizer o que sabes e fazer justiça à minha memória, caso alguns, como não duvido que o faria Capocci... Que Deus somente me reserve na terra um dia mais do que ele... tentem denegri-la.

Pois bem, logo depois do Tratado de Mantes, em que se mostrara tão inexplicavelmente generoso em relação ao seu genro, o rei João acusou seus negociadores, Roberto Le Coq, Roberto de Lorris e até o tio de sua mulher, o cardeal de Boulogne, de se terem deixado subornar por Carlos de Navarra.

Aqui entre nós, acho que não estava longe da verdade. Roberto Le Coq é um bispo jovem muito ambicioso, que se sobressai pela intriga, que se delicia com ela, e que depressa percebeu as vantagens que poderia obter aproximando-se do Navarrês, e cujo partido, aliás, depois da sua desavença com o rei, aliou-se abertamente. Roberto de Lorris, o camareiro, é certamente devotado ao seu chefe; mas pertence a uma família de banqueiros, que não resiste nunca a arrebatar, de passagem, alguns punhados de ouro. Conheci-o, a esse Lorris, quando esteve em Avignon, há dez anos mais ou menos, negociando um empréstimo de trezentos mil florins que o rei Filipe V fez ao papa de então. Contentei-me, honestamente, de minha parte, com mil florins, por havê-lo aproximado dos banqueiros de Clemente VI, os Raimondi de Avignon e os Mattei de Florença; quanto a ele, serviu-se largamente. Em relação a Boulogne, embora parente do rei...

Bem, compreendo ser costume que nós, cardeais, sejamos justamente recompensados por nossas intervenções em proveito dos príncipes. Não poderíamos de outra forma prover nossos encargos. Nunca fiz segredos, e até disso me honro, de ter recebido vinte e dois mil florins de minha irmã de Durazzo pelo zelo que tive, há vinte anos... já vinte anos!... com seus negócios ducais, que estavam bastante comprometidos. E no ano passado, pela dispensa necessária ao casamento de Luís de Sicilia com Constance d’Avignon, fui gratificado com cinco mil florins. Mas nunca aceitei nada daqueles que remetiam sua causa ao meu talento ou à minha influência. A desonestidade começa quando se faz pagar pelo adversário. E parece-me que Boulogne não resistiu a essa tentação. Depois disso, a amizade esfriou muito entre ele e João II.

Após certo afastamento, Lorris tornou a voltar às boas graças do rei, como sempre acontece com os Lorris. Atirou-se aos pés do rei, na última Sexta-Feira Santa, jurou-lhes lealdade absoluta e descarregou todas as duplicidades ou complacências nas costas de Le Coq, o qual ficou envolvido na desavença e acabou banido da corte.

É vantajoso contradizer os negociadores. Decorrem daí argumentos para não executar o tratado. O que o rei não deixou de fazer. Quando insinuavam que teria podido controlar melhor seus deputados e ceder menos, tal como fizera, respondia, irritado: “Tratar, debater, argumentar não são encargos de cavaleiros”. Afetou sempre desprezo pela negociação e a diplomacia, o que lhe permitia renegar suas obrigações.

Na verdade, tudo o que permitira fora contando não cumprir coisa alguma.

Ao mesmo tempo, cercava o genro de mil cortesias fingidas, querendo-o sempre ao seu lado na corte, e não apenas a ele, mas a seu irmão mais moço, Filipe, que até o caçula, Luís, com o qual insistia sempre em que viesse de Navarra. Dizia-se protetor dos três irmãos e induzia o delfim a prodigalizar-lhes amizade.

O Mau não se submetia sem arrogância a tantas e excessivas gentilezas e a tanta e incrível solicitude, chegando a dizer ao rei, em pleno jantar: “Concordai que vos prestei um excelente serviço livrando-o de Carlos de Espanha, o qual queria mandar em tudo no reino. Não o dizeis, mas eu vos aliviei”. Calcula como o rei João saboreava essas amabilidades...

E certo dia de verão, em que havia uma festa no palácio, à qual Carlos de Navarra compareceu na companhia de seus irmãos, veio correndo ao seu encontro o cardeal de Boulogne e lhe disse: “Retomai vosso caminho e voltai para o palácio se tendes amor à vida. O rei resolveu mandar matar-vos agora mesmo, a todos os três, durante a festa”.

Nada era imaginário, nem deduzido de vagos rumores. O rei João decidira-o, nessa mesma manhã, no seu conselho privado, no qual Boulogne estava presente... “Esperei para isso que os três irmãos estivessem juntos, porque desejo que se cometa a matança dos três, a fim de que não reste nenhum descendente macho dessa raça maldita.”

De minha parte, não censuro absolutamente Boulogne por ter advertido os Navarra, ainda que isso dê a entender que estivesse em conluio com eles. Afinal, um padre da Santa Igreja... e mais do que isso, um membro da Cúria pontifícia, um irmão do papa em Nosso Senhor... não pode ficar sabendo friamente que se vai perpetrar um tríplice homicídio e aceitar que se o execute, sem nada haver tentado. Seria compactuar com o crime de alguma forma, pelo silêncio. Que necessidade tinha o rei João de falar diante de Boulogne? Bastava-lhe pôr de emboscada seus sargentos. Mas não, ele se considerava esperto. Ah! quando esse rei quer, sabe ser astuto! Nunca antes aceitou com antecedência três golpes de má sorte. Sem dúvida pensava que, quando o papa o censurasse por haver ensangüentado o palácio, teria uma bela oportunidade para responder: “Mas seu cardeal estava presente e não me desaprovou”. Boulogne não é perdiz de primeira ninhada, que se apanhe numa rede tão grosseira.

Carlos de Navarra, uma vez avisado, retirou-se, então, apressadamente para o seu palácio, mandando aprestar a própria escolta. O rei João, não vendo os três irmãos em sua festa, mandou chamá-los, imperiosamente. Mas seu mensageiro obteve como resposta apenas o tropel dos cavalos, porque precisamente nesse momento os Navarra galopavam para a Normandia.

O rei João mostrou-se vivamente enfurecido, escondendo o seu despeito como se fosse ele o ofendido: “Vede esse mau filho, esse traidor que se recusa à amizade do seu rei e que espontaneamente se afasta da corte! Deve ter em mira desígnios maldosos”.

Nisso achou pretexto para proclamar suspensos os efeitos do Tratado de Mantes, que nunca pensara em executar.

Sabendo disso, Carlos mandou de volta o irmão Luís para Navarra e despachou seu irmão Filipe para Contentin, a fim de sublevar as tropas, não ficando nem mesmo ele em Évreux.

Porque, nesse meio tempo, nosso Santo Padre, o papa Inocêncio, decidira convocar uma reunião em Avignon, a terceira, a quarta, ou talvez, a mesma, sempre recomeçada... entre os enviados dos reis da França e da Inglaterra para negociar, não mais uma trégua renovada, mas uma paz verdadeira e definitiva. Inocêncio queria dessa vez, afirmava, levar a bom termo a obra de seu predecessor, e se orgulhava de obter sucesso onde Clemente VI havia falhado. A presunção, Archambaud, aloja-se até no coração dos pontífices...

O cardeal de Boulogne tinha presidido às negociações anteriores; Inocêncio reconduziu-o ao mesmo cargo. Boulogne fora sempre suspeito, como eu também o era igualmente, ao rei Eduardo da Inglaterra, que o considerava muito mais voltado para o lado dos interesses da França.

Ora, depois do Tratado de Mantes e da fuga de Carlos, o Mau, ficou suspeito também aos olhos do rei João. Por causa disso, talvez, Boulogne conduziu o encontro melhor do que se esperava; não tinha que tratar ninguém com atenção. Entendeu-se muito bem com os bispos de Londres e de Norwich, e sobretudo com o duque de Lancastre, que é um bom homem de guerra e um verdadeiro fidalgo. E até eu, mesmo afastado, trabalhei nisso. O pequeno Navarrês ouviu os rumores ...

Ah!, está aí a brasa! Brunet, coloca o braseiro debaixo de minhas roupas. Está bem fechado, pelo menos? Não vá me queimar, hem? Sim, está bem assim...

Então, Carlos de Navarra ouviu falar que se progredia nas negociações de paz, o que certamente não facilitaria seus negócios, porque num belo dia de novembro... há precisamente dois anos... ei-lo que surge em Avignon, onde ninguém o esperava.

Foi nessa ocasião que o vi pela primeira vez. Vinte e quatro anos, mas não aparentando mais do que dezoito, em virtude da sua pequena estatura, porque ele é pequenino, na verdade bastante pequeno, o menor dos reis da Europa; mas tão bem posto pessoalmente, tão correto, tão ágil, tão vivo, que ninguém repara na sua deficiência física. Além disso, é uma figura simpática, a quem não fica mal um nariz um pouco grande, belos olhos de raposa, levemente enrugados nos cantos pela malícia. Sua presença é tão afável, suas maneiras, tão polidas e delicadas, sua palavra, tão desembaraçada, fluente e imprevista, está sempre disposto ao elogio, passando rapidamente da seriedade à brincadeira e do divertimento à grande compostura; enfim, parece tão disposto a demonstrar amizade às pessoas que se compreende por que as mulheres não lhe resistam e por que os homens se deixem seduzir por ele. Não, verdadeiramente, nunca ouvi conversador mais interessante do que esse pequenino rei! Ouvindo-o, a gente esquece que há maldade oculta sob tanto encantamento, e que esse homem já está empedernido pelo estratagema, a mentira e o crime. Tem uma preeminência que faz perdoar suas secretas perversidades.

Sua situação, quando surgiu em Avignon, não era das melhores. Era insubmisso perante o rei da França, que tencionava apossar-se dos seus castelos, e havia desagradado ao rei da Inglaterra, assinando o Tratado de Mantes sem nem mesmo consultá-lo. “Eis um homem que recorre à minha ajuda e me propõe uma boa investida na Normandia. Desloco por sua causa minhas tropas da Bretanha; preparo outras para desembarcar; e quando eie se julga bastante forte com o meu apoio, para intimidar seu adversário, compõe-se com o outro sem me prevenir... Agora, ele que se arranje com quem melhor lhe aprouver; que se dirija ao papa...”

Pois bem, era justamente ao papa que Carlos de Navarra vinha recorrer. E dentro de uma semana, deslocava todo o mundo a seu favor.

Em presença do Santo Padre e perante vários cardeais, entre os quais estava eu, jura que nada mais deseja a não ser a reconciliação com o rei da França, esforçando-se ao máximo para que todos acreditem nele. Junto aos delegados de João II, o chanceler Pedro de la Forêt e o duque de Bourbon, foi mais adiante, dando-lhes a entender que, em troca da boa amizade que desejava restabelecer, poderia determinar o levante das tropas em Navarra, a fim de atacar os ingleses na Bretanha ou nas suas próprias costas.

Mas nos dias seguintes, fingindo deixar a cidade com sua escolta, regressa de noite, várias vezes e às escondidas, para conferenciar com o duque de Lancastre e os emissários ingleses. Mantém seus encontros secretos ora com Pedro Bertrand, o cardeal de Arras, ora com o próprio Guy de Boulogne. Censurei depois a Boulogne, que tirava um pouco de palha em duas manjedouras, isto é, tirava dois proveitos de um saco só. “Queria saber o que eles tramavam”, respondeu-me. “Emprestando-lhes minha casa, podia vigiá-los com meus espiões.” Seus espiões deviam ser muito surdos, porque ele nunca soube de nada ou fingiu não saber. Se não era conivente, então o rei de Navarra já o tinha despistado.

Quanto a mim, soube de tudo. E queres saber, meu sobrinho, como Navarra agiu para conquistar Lancastre? Pois bem, propôs-lhe, preto no branco, reconhecer o rei Eduardo da Inglaterra como rei da França. Nada menos do que isso. Foram ainda além nesse intento, projetando um tratado de boa aliança.

Primeiro ponto: Navarra reconhecia o rei Eduardo como rei da França. Segundo ponto: combinariam empreender juntos a guerra contra o rei João. Terceiro ponto: Eduardo reconhecia a Carlos de Navarra o ducado da Normandia, a Champagne, Brie, Chartres e também a lugar-tenência do Languedoc, além, naturalmente, do seu reino de Navarra e do condado de Évreux. Dito de outra forma: dividiam a França entre eles. Adivinha o resto.

Como pude saber desse projeto? Ah! Afianço-te que o recebi da própria mão do bispo de Londres, que acompanhava messire de Lancastre. Mas não me perguntes quem me informou um pouco depois. Lembra-te de que sou cônego da Catedral de York, e que, por mais malvisto que eu seja no ultramar da Mancha, conservei lá algumas boas relações.

Não preciso assegurar-te que, se tivéssemos tido alguma oportunidade de progredir numa paz entre a França e a Inglaterra, tudo teria sido destruído pela inoportunidade de semelhante reizinho.

Como poderiam os embaixadores ir avante quando cada uma das duas partes se considerava encorajada para a guerra pelas promessas de monseigneur de Navarra? Ao Bourbon, dizia: “Converso com Lancastre porém minto, a fim de servi-lo”. Depois vinha segredar a Lancastre: “Certamente, estive com Bourbon para enganá-lo. Sou todo seu”. E o surpreendente é que os dois acreditavam nele.

Se bem que, na verdade, quando se afastou de Avignon para alcançar os Pireneus, os dois lados estavam convencidos, com todos os cuidados para não revelar nada, de que quem tinha partido era um amigo.

A conferência caiu em ponto morto; não se resolveu mais nada. E a cidade mergulhou no marasmo. Durante três semanas nada mais se fez senão ocupar-se de Carlos, o Mau. O próprio papa surpreendeu-se melancólico e gemebundo; o malvado encantador o tinha distraído...

Ah!, estou reaquecido. Puxa o braseiro para o teu lado, meu sobrinho, e te desentorpecerás um pouco.

 

                                 O ano sinistro

Dizes muito bem, dizes muito bem, Archambaud, e estou sentindo como tu. Há dois dias apenas que partimos de Périgueux e parece que viajamos há um mês. A viagem encomprida o tempo. Esta noite dormiremos em Château-roux. Não escondo que não ficarei aborrecido se chegar amanhã a Bourges, se Deus quiser, e ficar lá em repouso três grandes dias pelo menos, e talvez até quatro. Começo a ficar um pouco cansado dessas abadias em que nos servem uma comida tão magra e aquecem tão mal a minha cama, para darem a entender que estamos arruinados pela passagem da guerra. Que esses abadezinhos não pensem que me impondo o jejum e fazendo-me dormir em camas de campanha ficarão isentos das contribuições!... E, além do mais, os homens da escolta, também eles, têm necessidade de repouso, precisam consertar os arreios e secar suas roupas. Com esta chuva nada se faz. Ouvindo os meus bacharéis espirrar em volta de minha liteira, garanto que mais de um vai usar esta parada em Bourges para entrar no chá de canela, no cravo-da-índia e no vinho quente. Quanto a mim, terei o que fazer. Examinar a correspondência de Avignon, ditar minhas cartas em resposta...

Talvez te tenham surpreendido, Archambaud, as expressões de impaciência que me ocorreram em relação ao Santo Padre. É verdade, tenho o sangue quente e não sei esconder meus aborrecimentos. É que há certas coisas que são duras de roer. Mas fica sabendo que não deixo de mostrar ao papa suas tolices, e mais de uma vez ocorreu-me dizer-lhe: “Queira a graça de Deus, mui Santo Padre, esclarecer-vos a propósito da patranha que acabais de fazer”. Ah!, se os cardeais franceses se tivessem tão subitamente convencido de que a alguém nascido como nós não convém a humildade... que esta só se concebe em quem já nasceu humilde, e se, por outro lado, os cardeais italianos, Capocci e os demais, não fossem tão obstinados em querer a volta da Santa Sé a Roma... Roma, Roma! Eles só vêem seus Estados italianos: o Capitólio lhes oculta Deus.

Além disso, o que me deixa nervoso com nosso Inocêncio é sua política para com o imperador. Com Pedro Roger, quero dizer, Clemente VI, fizemos o possível, durante seis anos, para que o imperador não fosse coroado. Que ele fosse eleito, até aí tudo bem. Que ele governasse, consentíamos. Mas era preciso conservar sua sagração em suspenso até que ele tivesse subscrito os compromissos que desejávamos obter. Sabia muito bem que esse imperador, na véspera de ser ungido, causar-nos-ia dissabores.

Vai daí, nosso Aubert assume a tiara e começa a cantilena: “Conciliemo-nos, conciliemo-nos”. E na primavera do ano passado chegou ao que desejava. “O imperador Carlos IV será coroado; eu o ordeno!”, acabou me dizendo. O papa Inocêncio é desses soberanos que só sabem ser enérgicos na retirada. Temos dessa gente em demasia. Imaginava o papa que obtivera uma grande vitória porque o imperador tinha prometido entrar em Roma apenas na manhã da sagração, para sair nessa mesma tarde, e que não pernoitaria na cidade. Mentira! O cardeal Bertrand de Colombiers... “Vede bem, designo um cardeal francês, deveis ficar satisfeitos...” foi enviado para impor na cabeça do Boêmio a coroa de Carlos Magno. Seis meses depois, após essa boa ação, Carlos IV nos brindava com a Bula de Ouro, pela qual o papado não teria mais nem voz nem capítulo na eleição imperial.

Daí por diante, o império distribui sete eleitores alemães, que vão confederar seus Estados... o que quer dizer que ditarão uma regra perpétua na sua bela anarquia. Entretanto, nada ficou decidido em relação à Itália, e ninguém sabe verdadeiramente por quem e como o poder se exercerá. O mais grave nessa bula, e que Inocêncio não viu, é que ela separa o temporal do espiritual e consagra a independência das nações frente ao papado. É o fim, o esfacelamento do princípio da monarquia universal exercida pelo sucessor de São Pedro, em nome do Senhor Todo-Poderoso. Manda-se Deus para o céu e faz-se o que convém aqui na terra. Chama-se a isso “o espírito moderno”, e toda gente se envaidece. Eu chamo a isso, perdoa-me, caro sobrinho, ter merda nos olhos.

Não existe espírito antigo nem espírito moderno. Há espírito apenas, e, do outro lado, a estupidez. Que fez nosso papa? Gritou, fulminou, excomungou? Mandou ao imperador uma carta muito amável e amiga, repleta de suas bênçãos. Oh!, não, oh!, não, essa incumbência não foi acertada por mim. Mas serei eu que devo ir à dieta de Metz ouvir solenemente publicar essa bula que renega o poder supremo da Santa Sé e só poderá trazer à Europa perturbações, desordens e misérias.

Os belos dissabores que terei de engolir, e com cara alegre, ainda por cima; porque agora que a Alemanha se afasta de nós é preciso, mais do que nunca, tentar salvar a França; de outra maneira nada mais restará a Deus. Ah! O futuro poderá maldizer este ano de 1355! Não terminamos ainda de colher os piores frutos.

E que fez o Navarrês durante todo esse tempo? Muito bem! Estava em Navarra, encantado ao saber que, aos tropeços e mais tropeços que nos arranjou, juntam-se agora os que nos advêm dos negócios imperiais.

Em primeiro lugar esperava a volta do seu Friquet de Fricamps, que seguiu para a Inglaterra com o duque de Lancastre, e que deve regressar com um camareiro deste, portador dos conselhos do rei Eduardo a propósito do projeto de tratado esboçado em Avignon. E o camareiro voltará a Londres, acompanhado dessa vez por Colin Doublel, um escudeiro de Carlos, o Mau, um dos matadores do senhor de Espanha, que vai apresentar as observações do seu chefe.

Carlos de Navarra é inteiramente o oposto do rei João. Entende melhor do que um tabelião quando discute cada artigo, cada ponto, cada vírgula de um acordo. E lembra isto, e prevê aquilo. E apóia-se em certo costume que é artigo de fé, procurando sempre melhorar as cláusulas de suas obrigações e aumentar as da outra parte... E além disso, retardando os acordos com o Inglês, ganha tempo para cuidar dos que tem de resolver do lado da França.

É chegada a hora de o rei João mostrar-se contemporiza-dor. Mas, para agir, esse homem escolhe sempre o contrário. Fazendo-se de fanfarrão, ei-lo preparando-se para a guerra, para atacar um ausente, e, investindo contra Caen, ordena a tomada de todos os castelos normandos do seu genro, exceto Évreux. Bela campanha, que, na falta de inimigos, torna-se uma campanha de comilanças e desgosta bastante aos normandos, que assistem ao saque de suas salgadeiras e despensas pelos arqueiros reais.

Nesse meio tempo, o Navarrês levantava tranqüilamente as tropas em sua Navarra, enquanto seu cunhado, o conde de Foix, Phoebus... noutro dia te falarei a seu respeito; não é um fidalgo medíocre... partia para devastar, de certa forma, o condado de Armagnac, a fim de causar prejuízo ao rei da França.

Tendo esperado o verão, a fim de viajar por mar com menor risco, nosso jovem Carlos desembarca em Cherbourg, num belo dia de agosto, com dois mil homens.

E João II fica pasmo ao saber, ao mesmo tempo, que o príncipe de Gales, que havia sido elevado em abril a príncipe da Aquitânia e lugar-tenente do rei da Inglaterra na Guyenne, tendo embarcado cinco mil homens em suas naves, vinha a velas despregadas sobre Bordeaux. Esperava apenas os ventos propícios. Ah!, pode-se afirmar que as informações que chegavam ao rei João eram perfeitas! Nós, de Avignon, víamos aprestar essa bela movimentação cruzada, no mar, a fim de prender a França em tenazes. E já se anunciava a iminência da chegada do próprio rei Eduardo, o qual deveria estar naquele momento em Jersey, se a tempestade não o houvesse obrigado a retroceder, arribando em Ports-mouth. Pode-se dizer que foi o vento e mais ninguém que salvou a França no ano passado.

Não podendo lutar em três frentes, o rei João resolveu não lutar em nenhuma. Vai novamente a Caen, mas dessa vez para negociar. Leva consigo seus dois primos de Bourbon, Pedro e Tiago, bem como Roberto de Lorris, de novo em boas relações com ele, como disse. Mas Carlos de Navarra não compareceu. Enviou os messires de Lor e de Couillarville, dois fidalgos de sua confiança, para negociar. O rei João só teve o trabalho de se dividir, deixando os dois Bourbon, que apenas instruíra, a fim de que apressassem as negociações.

O acordo foi concluído em Valognes, a 10 de setembro. Carlos de Navarra recuperava tudo quanto lhe havia sido reconhecido pelo Tratado de Mantes e ainda um pouco mais.

E duas semanas depois, no Louvre, houve nova reconciliação solene do sogro e do genro, em presença, é claro, das rainhas viúvas, as senhoras Joana e Branca... “Sire meu primo, aqui está nosso sobrinho e irmão, que vos rogamos por nosso amor...” E os braços se abrem, e se beijam nos rostos com ganas de se morder, e todos juram perdão e leal amizade...

Ah!, esqueço um pormenor que não é de menor importância. Como escolta de honra ao rei de Navarra, João II despachou ao seu encontro o próprio filho, o delfim Carlos, que havia sido nomeado precedentemente seu lugar-tenente-geral na Normandia. De Vaudreuil sur l’Eure, onde permaneceram quatro dias antes de chegarem a Paris, os dois cunhados fizeram juntos a viagem. Era a primeira vez que se viam por tanto tempo irmanados, cavalgando, conversando familiarmente, distraindo-se, jantando e dormindo lado a lado. O senhor delfim é o oposto do Navarrês, alto quanto o outro é pequeno, lento quanto o outro é vivo, parco de palavras quanto o outro é loquaz. Além disso, é seis anos mais moço e não possui precocidade em coisa alguma. Além disso, o delfim sofre de uma moléstia que parece mais propriamente uma enfermidade; sua mão direita se inflama e se torna inteiramente violàcea quando tenta levantar um peso maior ou agarrar um objeto com força. Não pode por isso empunhar a espada. Seu pai e sua mãe geraram-no muito cedo, e, mais precisamente, porque ambos sofriam da mesma doença, o fruto se ressentiu.

Mas não é preciso concluir de tudo isso, como alguns querem, apressadamente, a começar pelo próprio rei João, que o delfim seja um tolo e que será um mau rei. Estudei cuidadosamente o seu céu... 21 de janeiro de 1338... o Sol está ainda em Capricórnio, precisamente, antes que entre em Aquário... Os nativos de Capricórnio têm o triunfo tardio, mas chegarão a ele se tiverem as luzes do espírito. As plantas de inverno são lentas no seu desenvolvimento ... Estou disposto a apostar nesse príncipe muito mais do que em alguns outros que têm melhor aparência. Se ele superar os grandes perigos que o ameaçam nos anos presentes ... acabará precisamente por ultrapassá-los; mas o pior está diante dele... saberá se impor ao governo. Mas é preciso reconhecer que sua aparência não prenuncia nada de bom a seu favor...

Ah!, chegou agora o vento que impele o aguaceiro em rajadas. Desamarra os cordões de seda que seguram as cortinas, por favor, Archambaud. É melhor tagarelar na sombra do que ser borrifado. E, além do mais, ouviremos menos esse chapinhar dos cavalos, que vai acabar nos deixando surdos. E dize a Brunet que esta noite mande cobrir minha liteira com os toldos encerados embaixo dos toldos pintados. É um pouco mais pesado para os cavalos, sei disso. Vamos trocá-los logo mais...

Sim, eu te dizia que imagino muito bem como monseigneur de Navarra, durante a viagem de Vaudreuil a Paris... Vaudreuil está numa das mais belas localidades da Normandia; o rei João mandou edificar lá uma das suas residências; parece que a obra por ele ordenada é maravilhosa; não a vi, mas sei que custou muito dinheiro ao Tesouro; existem lá imagens pintadas nas paredes de ouro puro; imagino como monseigneur Carlos de Navarra, com toda a sua facúndia e seu desembaraço em protestar amizade, procurou seduzir Carlos de França. A mocidade aceita muito rapidamente os modelos. E para o delfim, aquele companheiro seis anos mais velho, tão amável que já viajou tanto, que viu muitas coisas e fez outras mais, e que lhe narra vários segredos e o diverte, gracejando com personagens da corte... “Vosso pai, nosso sire, deveria aproximar-nos muito mais... Sejamos aliados, sejamos amigos, sejamos verdadeiramente os irmãos que somos.” Feliz por ser apreciado por um parente mais adiantado do que ele na vida, já reinante e tão divertido, o delfim acabou facilmente conquistado.

Essa aproximação logo surtiu resultados e contribuiu muito para os desastres e embustes que sobrevieram.

Estou vendo a escolta que se apresta para desfilar. Afasta um pouco a cortina... Efetivamente, estou vendo os arrabaldes. Entramos em Châteauroux. Não teremos muita gente para nos recepcionar. É preciso ser muito bom cristão ou bastante curioso para se meter neste aguaceiro com a única finalidade de ver passar a liteira de um cardeal.

 

                           O reino se despedaça

Estas estradas do Berry foram sempre conhecidas como ruins. Mas verifico que a guerra não as melhorou em nada... Vamos, Brunet! La Rue! Fazei moderar esta marcha, pelo amor de Deus! Bem sei que todos têm pressa de chegar a Bourges. Mas não há razão para me moerem como pimenta nesta caixa. Parai, parai de uma vez! E mandai parar a vanguarda. Ainda bem... Não, não é culpa dos cavalos. É culpa de vós todos que apressais vossas montarias como se tivésseis tochas acesas em vossas selas... Agora, vamos continuar, e que se observe, eu vos peço, que me conduzam com a decência que convém a um cardeal. Caso contrário, obrigar-vos-ei a encher os carris da estrada na minha presença.

Estes diabos malvados me arrebentariam os ossos para ir dormir uma hora mais cedo! Finalmente, parou a chuva... Vê, Archambaud, mais uma choupana queimada. Os ingleses vieram se divertir próximo dos subúrbios de Bourges, que incendiaram, e mandaram uma tropa que apareceu sob os muros de Nevers.

Nota que não quero mal aos arqueiros galeses, como aos cutileiros irlandeses e a esse rebotalho humano que o príncipe de Gales emprega nessa expedição. São miseráveis, que enganam prometendo-lhes uma fortuna. São pobres, ignorantes, e eles os atiram nessa refrega. A guerra para eles é saquear, empanturrar-se de comida e destruir. Observam os vilões fugirem à sua aproximação, as crianças berrando de braços abertos: “Os ingleses, os ingleses, que Deus nos salve!” A coisa é divertida, plebeus que assustam outros plebeus! Eles se sentem fortes. Comem galinhas e porco bem-nutrido todos os dias; furam todos os tonéis para estancar sua sede, e o que não podem comer ou beber saqueiam antes de ir embora. Os cavalos acabam arrebentados com tanta correria, e os soldados degolam tudo quanto muge ou bale ao longo da estrada e nos estábulos. E depois, com as goelas satisfeitas e as mãos sujas, atiram, rindo, tochas acesas sobre os moinhos, os celeiros e tudo o que pode queimar. Ah! Obedecer a tais ordens só é motivo de alegria para essa horda de mercenários e lanceiros! São como crianças daninhas que se induzem a agir mal.

E da mesma forma não quero mal aos cavaleiros ingleses. Apesar de tudo, estão em outro país; foram requisitados para a guerra. E o Príncipe Negro lhes dá o exemplo do saque, levando consigo os mais belos objetos de ouro, de marfim e de prata, os mais belos tecidos para encher suas carroças ou ainda para recompensar seus capitães. Despojar inocentes para cumular os amigos, eis a grandeza desse tipo.

Mas aqueles a quem desejo que pereçam de morte vil e ardam na geena eterna, sim, sim, por melhor cristão que eu seja... são esses cavaleiros gascões, aquitanos, poitevinos e mesmo alguns dos nossos fidalgotes do Périgord, que preferem acompanhar o duque inglês a acompanhar seu rei francês, e que por amor da rapina, ou por mau orgulho, ou por ciúme de vizinhança, ou porque tenham magoado o coração por um mau acontecimento, se empregam em assolar seu próprio país. Não, quanto a esses, peço do fundo da alma que Deus não lhes perdoe.

Só têm como desculpa a estupidez do rei João, que nunca lhes demonstrou ser homem capaz de defendê-los, aprestando seus vexilários muito tarde e mandando-os rigidamente aonde os inimigos não estavam. Ah! É uma enorme desgraça que Deus permitiu, deixando nascer um príncipe tão incompetente !

Por que consentiu no Tratado de Valognes, de que te falei ontem, e trocou com seu genro de Navarra um grande e novo beijo de Judas? Porque temia as hostes do príncipe Eduardo da Inglaterra, que estavam a caminho de Bordeaux. Nesse caso, a exata razão aconselharia, uma vez tendo liberado suas mãos do lado da Normandia, que ele se apressasse na direção da Aquitânia. Não é preciso ser cardeal para pensar assim. Mas não. Nosso lastimável rei basbaque dava grandes ordens para pequenas coisas. Deixa o príncipe de Gales desembarcar na Gironde e entrar triunfalmente em Bordeaux. Ele sabe, pelas informações dos espias e dos viajantes, que o príncipe reúne suas tropas e aumenta-as com esses gascões e poitevinos sobre os quais te falava há pouco quanto à estima que lhes devoto. Tudo lhe indica no entanto que se prepara uma séria expedição. Qualquer um ter-se-ia preparado como uma águia para defender seu reino e seus súditos. Mas essa espécie de cavalaria não se mexe.

É preciso convir que enfrentava dificuldades financeiras no fim de setembro do ano passado, bem maiores do que costumavam ser. E, precisamente quando o príncipe Eduardo equipava suas tropas, o rei João por sua vez anunciava que obtivera uma prorrogação de seis meses para o pagamento de suas dívidas e dos soldos de seus oficiais.

Habitualmente, é quando um rei está com o dinheiro curto que lança seu povo à guerra. “Sede vencedores e sereis ricos! Saqueai, espoliai!” O rei João preferia empobrecer-se à grande, permitindo ao Inglês arruinar à vontade o sul do reino.

Ah!, a incursão foi fácil e proveitosa para o príncipe da Inglaterra! Bastou-lhe um mês para deslocar seu exército das margens do Garonne até Narbonne e o mar, divertindo-se em fazer tremer Toulouse, queimando Carcassonne, assolando Béziers. Deixava atrás de si um longo sulco de terror, e adquiriu, facilmente, grande nomeada.

Sua arte bélica é simples; o nosso Périgord a provou neste ano; ataca o que não é defendido. Envia uma vanguarda a examinar a estrada à distância e a reconhecer as vilas e castelos reforçados. Estes, ele os contorna. Sobre os demais, lança um forte grupo de cavaleiros e de guerreiros, que avançam sobre os burgos com um barulho infernal, dispersam os habitantes, esmagam de encontro aos muros os que não foram rápidos na fuga, atravessam com um golpe de espada ou desancam a pancadas todos quantos estão ao alcance de suas lanças e de suas maças, depois se dividem aos poucos pelas choupanas, pelos solares ou conventos vizinhos.

Em seguida aparecem os besteiros, que arrebatam a subsistência necessária à tropa, e esvaziam as casas antes de incendiá-las; depois os cutileiros e os vagabundos, que amontoam o que saquearam nas carroças e completam o serviço dos incendiários.

Toda essa horda, bebendo até a exaustão, marcha de três a circo léguas por dia, mas o pânico que esse exército espalha precede-o de longe.

A finalidade do Príncipe Negro? Já te disse: enfraquecer o rei da França. Temos que convir que atingiu seu objetivo.

Os grandes beneficiários são os bordeleses e os vinhateiros, e se entende que tenham se entusiasmado com o duque inglês. Nestes últimos anos só conheceram um rosário de desgraças; a devastação da guerra, as vinhas saqueadas pelos combates, a direção do comércio, bastante incerta, a depreciação dos preços, à qual se veio acrescentar a grande peste, que obrigou a queimar todo um quarteirão de Bordeaux para sanear a cidade. E quando as calamidades da guerra se abatem, no momento, sobre os outros, nesse caso zombam. A cada um sua vez de sofrer, não é mesmo?

Logo que desembarcou, o príncipe de Gales mandou cunhar moedas e circular belas peças de ouro esculpidas com a flor-de-lis e o leão... o leopardo, como querem os ingleses... bem mais espessas e pesadas que as da França, assinaladas pelo cordeiro. “O leão comeu o cordeiro”, dizem as pessoas em forma de brincadeira. As vinhas dão lucro. A província está resguardada. O movimento do porto é rico e volumoso, e em alguns meses daí partiram vinte mil tonéis de vinho, quase tudo para a Inglaterra. E, assim, passado o inverno, os burgueses de Bordeaux mostram caras alegres e ventres tão bojudos como seus tonéis. As mulheres vão aos costureiros, aos ourives e aos palheiros. A cidade vive em festas, e a cada regresso, o príncipe, nessa armadura negra de que gosta e que lhe valeu a alcunha, é saudado com júbilo. Todos os burgueses perderam completamente o juízo. Os soldados, enriquecidos com suas pilhagens, gastam a rodo. Os capitães de Gales e da Cornualha gozam do mais alto prestígio, e houve muito cornudo nesses tempos, porque a fortuna não encoraja a virtude.

Dir-se-ia que a França, durante um ano, teve duas capitais, o que é a pior coisa que pode acontecer a um reino. Em Bordeaux, a opulência e o poderio; em Paris, a penúria e a fraqueza. Que queres? As moedas parisienses foram mudadas oitenta vezes desde o começo do reinado. Sim, Archambaud, oitenta vezes! A libra tomesa não tem mais do que o décimo do valor que tinha no advento do rei. Como conduzir um Estado com tais finanças? Quando se deixa crescer sem medida o preço de todas as mercadorias, e quando se desvaloriza ao mesmo tempo a moeda, é preciso contar com grandes distúrbios e grandes reveses. Os reveses, a França os conhece, e os distúrbios estão acontecendo.

Que fez nosso rei tão astuto, no outro inverno, para conjurar os perigos que todos percebiam? Não podendo mais contar com a ajuda do Languedoc, após a invasão inglesa, convocou os Estados Gerais do Langue d’Oïl. A reunião não foi como desejava.

Para aceitar o decreto de uma excepcional valorização de oito denários em cada libra para venda, o que é uma pesada imposição para todos os ofícios e negócios, assim como uma gabela particular imposta sobre o sal, os deputados ficaram excitados e fizeram pesadas exigências. Queriam que a receita fosse arrecadada por cobradores especiais, escolhidos por eles; que o dinheiro desses impostos não pertencesse ao rei nem aos oficiais do seu serviço; que, se houvesse outra guerra, nenhum pedido de novos auxílios fosse feito sem o seu consentimento... nem sei mais o quê. Os homens do Terço eram bastante veementes. Seguiam o exemplo das comunas da Flandres, em que os burgueses se governam com plena autonomia, ou ainda do Parlamento da Inglaterra, que tem poderes sobre o rei, muito mais do que os Estados na França. “Façamos como os ingleses, isso deu certo lá.” É mania dos franceses, quando se acham em dificuldade política, procurar modelos estrangeiros em vez de aplicar com escrúpulos e exatidão as leis que lhes são próprias ... Não nos admiremos, pois, que a nova reunião dos Estados, que o delfim resolveu apressar, caísse na má situação de que te dei notícia outro dia. O preboste Marcel acabou mal no ano passado... Não foi a ti que eu contei? Ah, não, foi a dom Calvo, efetivamente... Não posso fazê-lo levantar-se agora; está enfermo, na liteira...

Perguntas-me o que fez o Navarrês nesse tempo? O Navarrês procurava persuadir o rei Eduardo de que não tinha feito jogo duvidoso aceitando o Tratado de Valognes com o rei João, que estava sempre do seu lado, com os mesmos sentimentos, que não tinha fingido estar de acordo com o rei da França a não ser para melhor servir os seus comuns desígnios, e que o tempo não tardaria a demonstrá-lo. Dito de outra maneira: ele esperava a primeira oportunidade para trair.

Nesse meio tempo, procurava fortalecer sua amizade com o delfim, por todas as formas de lisonja, de adulação e de prazer e até por meio de mulheres, pois sei de senhoritas, entre as quais a Gracieuse de que já te falei, e também de uma tal Biette Cassinel, muito devotadas ao rei de Navarra, e das quais corre notícia que trouxeram muita animação às festinhas dos dois cunhados. Resultava disso que, tendo-se tornado seu professor de pecado, o Navarrês começou, surdamente, a encorajar o delfim contra seu pai.

Dizia-lhe que o rei João nunca amou seu filho mais velho. E era verdade. Que ele era um rei mesquinho. E era verdade, uma vez mais. Que, além disso, seria obra de piedade ajudar Deus, sem ir a ponto de abreviar-lhe os dias, pelo menos expulsando-o do trono. “Sereis, meu irmão, melhor rei do que ele. Não espereis até que ele vos deixe um reino inteiramente arruinado.” Um jovem se deixa facilmente empulhar com essa canção. “Entre nós dois, asseguro-vos, podemos executar isso. Mas precisamos ganhar o apoio da Europa.” E é fácil de imaginar que procurassem o imperador Carlos IV, tio do delfim, para requisitar sua ajuda e lhe solicitar as tropas. Nada menos que isso. Quem teve essa bela idéia de conclamar o estrangeiro para regularizar os negócios do reino e oferecer ao imperador, que já pensava em criar muitas dificuldades ao papado, arbitrar a sorte da França? Talvez o bispo Le Coq, o mau prelado, que Navarra tinha feito se juntar ao círculo do delfim. Acontece que o negócio foi bem montado e caminhou em frente...

Que acontece? Por que paramos quando não o ordenei? Ah! São os carroções de carga que congestionam a estrada. É que estamos entrando nos subúrbios. Manda caminhar. Não gosto destas paradas imprevistas. Não se sabe nunca... Quando isto acontece, que a escolta cerre fileiras em torno da minha liteira. Há salteadores audaciosos, aos quais o sacrilégio não assusta e para quem um cardeal seria uma boa presa...

A viagem, pois, dos dois Carlos, o da França e o de Navarra, foi resolvida em segredo; e sabe-se até, presentemente, que deviam fazer parte da comitiva que os levaria a Metz o conde de Namur, o conde João d’Harcourt, o grandalhão que vai sofrer um desastre, como te contarei, e também um Boulogne, Godofredo, e Gaucher de Lor, e ainda, seguidamente, os messires de Graville, de Clères, d’Aunay, Maubué de Mainemares, Colin Doublel e o inevitável Friquet de Fricamps, isto é, os conjurados da Estalagem Truta que Escapa. E também, isto é de interesse porque julgo que eram os que pagavam as despesas da expedição, João e Guilherme Marcel, dois sobrinhos do preboste Marcel, que estavam em grande amizade com o rei de Navarra e que convinham às suas orgias. Conspirar com um rei agrada muito aos jovens burgueses ricos!

A partida estava prevista de Saint-Ambroise. Trinta navarreses deviam aguardar o delfim na barreira de Saint-Cloud, ao cair da tarde, a fim de conduzi-lo a Mantes junto ao seu primo; e daí essa galharda comitiva ganharia o império.

Depois... depois... nem tudo pode ser adverso a um homem de má sorte, e até o mais tolo dos reis não pode falhar sempre... Na véspera, dia de São Nicolau, nosso João II teve conhecimento da aventura. Chama seu filho, conversa com ele bastante tempo, e o delfim, dando-lhe conhecimento do projeto, toma consciência do golpe que o teria desencaminhado, e isso não somente no seu interesse, como no interesse do reino.

Nesse caso, o rei João, devo te dizer, conduziu-se mais habilmente do que de costume. Não censura ao filho por ter querido deixar o reino sem sua autorização, e, com toda a franqueza, perdoando-lhe essa falta e percebendo que seu herdeiro decidir-se-á pessoalmente, declara-lhe desejar associá-lo mais estreitamente aos encargos do trono, fazendo-o duque da Normandia. Era, na verdade, o mesmo que jogá-lo numa armadilha, dar-lhe esse ducado cheio de partidários dos Évreux-Navarra! Mas foi uma decisão feliz.

Ao senhor delfim nada mais restava senão prevenir o Mau de que liberava todos aqueles que participavam do segredo de seu intento.

Vê bem que esse negócio não contribuiu para fazer renascer o amor do pai pelo filho, mesmo com o despeito dissimulado por esse extraordinário presente. Mas sobretudo o ódio do rei contra seu genro começava a ser recozido e endurecido, como massa levada ao forno seis vezes. Matar seu condestável, fomentar distúrbios, desembarcar tropas, conjurar com o inimigo inglês... e nem avaliava a quanto tudo isso levaria... enfim, desviar seu filho, era demais; o rei João aguardava a hora propícia para cobrar todo esse débito ao Na varres.

Quanto a nós, que observávamos tudo de Avignon, a inquietação crescia, e víamos aproximarem-se as extremas conseqüências. Províncias separadas, outras devastadas, uma moeda flutuante, um Tesouro vazio, uma dívida crescente, deputados resmungões e veementes, grandes vassalos obstinados em suas facções, um rei apenas acompanhado por seus conselheiros imediatos e, enfim, para cúmulo disso tudo, um herdeiro do trono prestes a pedir a ajuda estrangeira contra sua própria dinastia... Disse ao papa: “Mui Santo Padre, a França se fragmenta”. Não estava errado. Apenas me enganei quanto ao tempo.

Estimava dois anos para que se desse o desmoronamento. Nem chegou a ser um. E não tínhamos ainda visto o pior. Que queres? Quando não há segurança na cabeça, como esperar que haja nos demais membros do corpo? Presentemente, é necessário tentar colar de novo os pedaços, de qualquer maneira, e para tanto estamos precisando recorrer aos bons ofícios da Alemanha e dar imediatamente mais autoridade a esse imperador do qual pensávamos abrandar a arrogância. Con vinha comigo que há muitos motivos para praguejar!

Agora, Archambaud, retoma a tua montaria e coloca-te à frente do cortejo. Quero que, ao entrarmos em Bourges, mesmo em hora tardia, possam ver flutuar nosso pendão do Périgord ao lado do da Santa Sé. E abre as cortinas da minha liteira para as bênçãos.

 

                 O banquete de Rouen

                                       Privilégios e mercês

Ah! Esse monseigneur de Bourges esgotou minha paciência nestes três dias que passamos em seu palácio. Eis um prelado cuja hospitalidade é muito embaraçosa e bastante pedinchona! Durante todo o tempo puxando-nos pelo casaco para obter alguma coisa. E quantos protegidos e clientes ele tem, aos quais faz promessas e passa para nós o cumprimento delas. “Permiti-me apresentar a Vossa Mui Santa Eminência um clérigo de grandes méritos... Queira Vossa Mui Santa Eminência conceder um olhar benigno para o cônego de nem sei onde... Ouso recomendar aos favores de Vossa Mui Santa Eminência...” Contive-me o mais que pude, ontem à noite, para não lhe soltar na cara: “Ide vos purificar, senhor bispo, e deixai... sim, a paz à minha Santa Eminência!”

Pedi-lhe que estivesse comigo esta manhã, dom Calvo... me parece que tolerais um pouco mais, espero, o balanço de minha liteira; de resto, serei breve... para que recapitulemos exatamente o que vos disse, e nada mais. Porque não demora que ele venha nos saturar a paciência novamente, agora que está em nossa companhia, com pretensos consentimentos a mais do que já dei aos seus pedidos. Aliás, já me disse: “Para os privilégios menores não quero absolutamente cansar Vossa Mui Santa Eminência; apresentá-los-ei a messire Francesco Calvo, que é, seguramente, pessoa de grande saber, ou ainda a messire du Bousquet...” Muito bem! Não trouxe comigo um auditor pontifício, dois doutores, dois licenciados em leis e quatro bacharéis para desobrigar de sua ilegitimidade todos os filhos de padres que dizem missa nesta diocese, ou que desfrutam de um privilégio. É maravilhoso, realmente, que depois de todas as mercês que distribuiu durante seu pontificado meu santo protetor, o papa João XXII... cerca de cinco mil, das quais mais da metade para bastardos de párocos e concedendo penitência em dinheiro, é verdade que ajudou muito a restaurar o Tesouro da Santa Sé... ainda existam hoje tantos tonsurados que são frutos do pecado.

Como legado do papa, tenho autoridade para conceder dez privilégios no decorrer de minha missão, nada mais do que isso. Concedo dois a monseigneur de Bourges; já é bastante. Quanto aos cargos de tabelião, tenho o direito de conferir vinte e cinco, e a clérigos que me dispensarem serviços pessoais; nada a pessoas que escorregaram pelos papéis de monseigneur de Bourges. Podereis conceder um, escolhendo entre os mais imbecis e os menos merecedores, para que não vos advenham senão aborrecimentos. Se alguém ficar surpreso, respondereis: “Ah!, foi monseigneur quem o recomendou expressamente...” Para as mercês sem encargos espirituais, dito de outra maneira, as comendas, seja a eclesiásticos ou a leigos, não distribuiremos nenhum. “Monseigneur de Bourges pediu demais... Sua Eminência não deseja despertar ciumeiras... “ E acrescentarei uma ou duas a monseigneur de Limoges, que se comportou com maior discrição. Alguém não poderá dizer que vim de Avignon tão-somente para distribuir favores e proveitos a monseigneur de Bourges? Não aprecio essa gente que se apressa em demonstrar-se agradecida, e esse bispo se engana se pensa que me lembrarei dele para o chapéu de cardeal.

E, além disso, achei-o bastante indulgente para com os irmãozinhos que vi andarem pelos corredores de seu palácio. Fui forçado a recordar-lhe a carta do Santo Padre contra esses franciscanos desgarrados... sei bem dos seus termos, porque fui eu que a redigi... os quais se atribuem o ministério da pregação, seduzem os simples com esse hábito de fingida humildade e fazem seus perigosos discursos contra a fé e o respeito devido à Santa Sé. Fiz-lhe lembrar-se de que tinha a obrigação de corrigir e punir esses malfazejos da fé segundo os cânones, implorando, se necessário, o socorro do braço secular, como Inocêncio VI fez outro ano, mandando à fogueira Jean de Chastillon e François d’Arquate, que pregavam heresias... “Heresias, heresias... erros, certamente, mas é preciso compreendê-los. Eles não estão errados em tudo. E, além disso, os tempos mudam...” Eis o que me respondeu monseigneur de Bourges. Quanto a mim, não gosto de prelados que compreendem demais os maus pregadores e, ao invés de castigar com rigor, querem se fazer populares, indo ao encontro do vento favorável.

Agradecer-vos-ia, dom Calvo, se cuidásseis um pouco desse bonachão, durante a viagem, e evitásseis que ele doutrine os bacharéis ou, ainda, que se espalhe muito para o lado de monseigneur de Limoges ou dos outros bispos que irão nos encontrar pela estrada.

Fazei com que a viagem lhe seja um pouco incômoda, embora só tenhamos daqui por diante caminhadas, mais curtas, porque os dias vão encurtando e o frio, ficando cada vez mais forte. Dez a doze léguas por dia, não mais do que isso. Não desejo viajar à noite. Não iremos hoje, por isso mesmo, além de Sancerre. Teremos aí um longo serão. Prestai atenção no vinho que iremos beber. É do tipo que conserva o gosto da fruta e um tanto encorpado, porém mais capitoso do que aparenta. Informai La Rue, e que ele tenha mais cuidado com a escolta. Não quero bêbedos no pessoal do papa... Mas estais empalidecendo, dom Calvo! Decididamente não se dá bem na minha liteira... Não, descei, descei depressa, eu vos peço.

 

                         A cólera do rei

Então a comitiva da Alemanha voltou rapidamente, deixando o Navarrês desapontado. Tendo regressado a Évreux, não deixou de se agitar. Passam-se três meses: chegamos ao final de março do ano passado... Do ano passado, digo bem... ou deste ano, se quiseres... mas como a Páscoa foi no dia 24 de abril, era ainda no ano passado.

Sim, concordo, meu sobrinho; é um costume tolo esse dos franceses de que, quando se festeja o Ano-Novo em 1.° de janeiro, para todos os registros, tratados e para efeito de todas as coisas dignas de serem lembradas, só se troca o número a partir da Páscoa. A tolice, sobretudo, e que causa muita confusão, é ter marcado o começo legal do ano a partir de uma festa móvel. De maneira que alguns anos contam dois meses de março, enquanto outros são privados de abril... Certamente, é preciso mudar, estou de acordo convosco.

Faz tempo que se fala nisso, mas nunca se resolve. O Santo Padre é quem deveria decidir, de uma vez por todas e para toda a cristandade. E acredita que a pior trapalhada cabe a nós, em Avignon; porque na Espanha, como na Alemanha, o ano começa no dia de Natal; em Veneza, a 1.° de março; na Inglaterra, a 25. Se bem que alguns países tenham acertado um tratado concluído na primavera, não se sabe nunca de que ano se fala. Imagina que uma trégua entre a França e a Inglaterra tenha sido assinada dias antes da Páscoa; para o rei João, seria datada do ano 1355, e para o Inglês, em 1356. Oh!, concordo plenamente contigo, é uma coisa idiota; mas ninguém quer renovar seus costumes, embora detestáveis, e dir-se-ia que os escrivães públicos, tabeliães, prebostes e todo o pessoal da administração se divertem em ser rotineiros, em prejuízo do comum dos mortais.

Chegamos, dizia-te eu, neste fim do mês de março, em que o rei João desencadeou uma tremenda cólera... Contra seu genro, é claro. Oh!, reconheçamos que não lhe faltavam razões para esse desprazer. Nos Estados da Normandia, reunidos em assembléia em Vaudreuil, perante seu filho elevado a duque, ouviram-se palavras pesadas a seu respeito, como nunca foram ouvidas antes, e eram os deputados da nobreza, eleitos pelos Évreux-Navarra, que as proferiam. Os dois D’Harcourt, o tio e o sobrinho, foram os mais violentos, segundo me disseram; e o sobrinho, o corpulento conde João, exaltou-se a ponto de gritar: “Pelo sangue de Deus, esse rei é um mau homem; não é um bom rei, e eu me defenderei dele”. Isto chegou, imagina, ao ouvido de João II. E também ao conhecimento dos novos Estados da Langue d’Oïl, que se reuniram logo depois, sem a presença dos deputados da Normandia. Recusa natural de comparecimento. Eles não queriam mais associar-se aos auxílios e subsídios, nem pagá-los. De resto, a assembléia reconheceu que a ga-bela e os impostos sobre as vendas não tinham produzido quanto se esperava. Decidiram, então, substituí-los por um imposto sobre os rendimentos em geral, no final do ano em que se estava.

Deixo a teu critério avaliar como a medida foi bem recebida, ter de pagar ao rei uma parte de tudo o que se tinha recebido, arrecadado ou ganho durante o ano e, no mais das vezes, já gasto... Não, isso não atingiu o Périgord, nem nenhuma parte de Langue d’Oc. Mas sei de gente da nossa região que, por medo, simplesmente, passou para o lado do Inglês, embora a medida não a tivesse atingido. Esse imposto sobre os rendimentos em geral, somado ao encarecimento dos víveres, provocou a sublevação em diversos lugares, sobretudo em Arras, onde o poviléu se insurgiu; e o rei João teve que enviar seu condestável com algumas companhias de soldados para acometer os amotinados... É evidente que tudo isso não lhes oferecia nenhum motivo para se rejubilar. Mas, por maiores aborrecimentos que tenha, um rei deve manter-se sereno e em pleno domínio de si. Foi o que ele não conseguiu, nessa ocasião.

O rei estava na Abadia de Beaupré-en-Beauvaisis para o batismo do primeiro filho de monseigneur João d’Artois, conde d’Eu depois que recebeu os bens e os títulos de Raul de Brienne, o condestável decapitado... Sim, é esse mesmo, o filho do conde Roberto d’Artois, com o qual se parece muito, pelo garbo. Quando em sua presença, fica-se perturbado; acredita-se ver o pai quando tinha a sua idade. Um gigante, verdadeira torre que anda. Os cabelos ruivos, o nariz pequeno, as bochechas recobertas de verdadeiras cerdas, e músculos que parecem unir a mandíbula aos ombros. Para sua montaria são necessários cavalos reforçados, e, quando dá uma carga, aparelhado para o combate, abre claros num exército. Mas cessa aí a semelhança. Em relação ao espírito é o contrário. O pai era astucioso, ligeiro, rápido, malvado, muito malvado. Aquele tinha o cérebro como um verdadeiro morteiro de guerra e bem municiado. O conde Roberto era entendido em processos, conspirador, falsário, perjuro, assassino. O conde João, como se quisesse desculpar as faltas paternas, quer ser um modelo de honra, de lealdade e de fidelidade. Viu seu pai decaído e banido. Ele mesmo, em sua infância, passou algum tempo na prisão com sua mãe e irmãos. Acho que ainda não se habituou ao perdão que recebeu e a seu retorno à fortuna. Olha para o rei João como para o Redentor em pessoa. Além disso, está fascinado por ter o mesmo prenome. “Meu primo João... meu primo João...”

As três palavras, “meu primo João”, o envaidecem. Os homens de minha idade que conheceram Roberto d’Artois, mesmo tendo sofrido suas arremetidas, não podem se livrar de certo desgosto vendo a palidíssima cópia que nos deixou. Ah!, era outro folgazão esse conde Roberto! Encheu sua época com suas turbulências. Quando morreu, foi como se o século tivesse silenciado. A própria guerra parecia ter perdido o seu fragor. Que idade teria ele agora? Vejamos ... essa é boa: aí pelos setenta anos. Oh! Tinha energia para viver até essa idade, se uma flecha perdida não o tivesse abatido, no campo de batalha inglês, durante o cerco de Vannes... Tudo o que se pode dizer é que as provas de lealdade, que o filho multiplica, não tiveram melhor efeito para a coroa do que as traições do pai.

Porque foi João d’Artois que, precisamente antes do batismo, e como agradecimento ao rei pela grande honra do seu paraninfado, lhe revelou a conspiração de Conches, ou o que ele acreditava fosse uma conspiração.

Conches... sim, já te disse... um dos castelos outrora confiscados a Roberto d’Artois, e que monseigneur de Na-varra se fez doar pelo Tratado de Valognes. Mas ainda existem lá alguns servidores dos Artois que lhe são fiéis.

Assim João D’Artois pôde segredar ao rei... uma conversa em surdina que se ouvia do outro lado das terras do bailio... que o rei de Navarra estava reunido em Conches com seu irmão Filipe, os dois D’Harcourt, o bispo Le Coq, Friquet de Fricamps, alguns fidalgos normandos de velho conhecimento e mais Guilherme Marcel ou João... enfim, um dos sobrinhos Marcel... e um senhor vindo de Pamplona, Miguel d’Espelette, e teriam todos juntos conjurado assaltar de surpresa o rei João, na primeira ocasião em que estivesse na Normandia, e matá-lo. Seria verdadeiro ou falso? Sou levado a crer que havia alguma coisa verdadeira nisso, e que, sem chegarem a estabelecer efetivamente a conjuração, tinham-na planejado. Porque está de acordo com a tendência de Carlos de Navarra, o qual, tendo falhado na operação maior ao procurar o apoio do imperador da Alemanha, não rejeitava completamente a sordidez de uma conspiração, repetindo o golpe da Estalagem Truta que Escapa. Será preciso aguardar sua presença diante do tribunal de Deus para conhecer a verdade a fundo.

O que é garantido é que se discutiu bastante em Conches para saber se valeria a pena ir a Rouen, na semana seguinte, na terça-feira antes da Quaresma, ao banquete para o qual o delfim, duque da Normandia, havia convidado os mais importantes cavaleiros normandos, a fim de tentar um acordo entre eles. Filipe de Navarra aconselhava que se recusasse; Carlos, ao contrário, era inclinado a aceitar. O velho Godofredo d’Harcourt, aquele que manca um pouco, era contra, e o afirmava alto e bom som. Aliás, estava agastado há tempos com o falecido Filipe VI, em virtude de uma questão de casamento em que havia sido contrariado em seus amores, e não escondia que não prestaria mais vassalagem à coroa. “Meu rei é o inglês”, afirmava.

Seu sobrinho, o obeso conde João, a quem o sabor dos banquetes levaria ao outro lado do reino, inclinava-se a comparecer. No final, Carlos de Navarra decidiu que cada qual resolveria como achasse melhor, que ele iria a Rouen com quem o quisesse acompanhar, mas aprovava, de acordo com os demais, não comparecer à casa do delfim, e seria até ponderado que o retivessem à parte, porque nunca ele conseguiria pôr todos os cães no mesmo canil.

Foi relatado ao rei outro pormenor que podia bem comprovar a suspeita de conspiração. Carlos de Navarra teria dito que, se o rei João viesse a falecer, imediatamente ele tornaria público seu tratado firmado com o rei da Inglaterra, pelo qual o reconhecia como rei da França, e que se conduziria em tudo como seu lugar-tenente no reino.

O rei João não exigiu provas. O primeiro cuidado de um príncipe deve ser sempre mandar verificar a delação, tanto a mais plausível, quanto a mais incrível. Mas a nosso rei falta sempre essa prudência. Sorve como ovos frescos tudo aquilo que alimenta seus rancores. Um espírito mais tranqüilo teria ouvido e depois procurado colher informações e testemunhos em relação a esse tratado secreto que acabava de lhe ser revelado. E, se dessa presunção resultasse a verdade, estaria bastante aparelhado contra seu genro.

Mas nessa ocasião aceitou como assentado e, assim, foi todo cheio de cólera que entrou na igreja. Assumiu, segundo me disseram, uma atitude estranha, não prestando atenção às preces, pronunciando errado os responsos, olhando a todos com ar feroz e jogando na sobrepeliz de um diàcono a brasa do turíbulo contra o qual se chocara. Não sei como foi batizado o rebento D’Artois; mas, com semelhante padrinho, acho que seria preciso, o mais breve possível, renovar os votos desse pequenino cristão, se quiserem que o bom Deus o acolha em sua misericórdia.

E, assim que terminou a cerimônia, desencadeou-se a tempestade. Nunca os monges de Beaupré ouviram tantas pragas horríveis como ao que o Diabo colocou na língua do rei. Chovia, mas João II não se importava com isso. Durante uma hora inteira, e quando já se chamava para o jantar, ficou ensopado, andando de cá para lá no jardim dos monges, chapinhando nas poças d’agua com seus sapatos de bicos arrebitados... esses ridículos calçados que ele e o belo senhor de Espanha lançaram em moda... e forçando toda a sua camarilha, messire Nicolas Braque, seu camareiro, messire de Lorris, outros camareiros, o marechal d’Au-drehem e o grande João d’Artois, completamente assustado e confuso, a se ensopar com ele. Arruinaram-se então milhares de libras de veludos, de bordados e de capas de peles.

“Não há outro soberano na França além de mim”, urrava o rei. “Arrebentarei esse malvado, esse nojento, esse texugo fedorento que conspira contra mim com todos os meus inimigos. Vou praticar o ato pessoalmente. Arrancarei seu coração com minhas próprias mãos, e esquartejarei esse seu corpo imundo em mil pedaços, estais ouvindo? Haverá o bastante para pendurar na porta de cada castelo que tive a fraqueza de lhe doar. E que ninguém venha nunca interceder por ele, e que nenhum de vós se adiante para me implorar um entendimento. Aliás, não haverá mais possibilidades para se pleitear por esse traidor, e Branca e Joana poderão chorar quanto quiserem; saber-se-á que não existe nenhum soberano na França, a não ser eu.” E sem parar voltava a esse “nenhum soberano na França a não ser eu”, como se tivesse necessidade de se convencer de que era o rei.

Acalmou-se um pouco para perguntar quando seria servido o banquete que a besta do seu filho oferecia tão gentilmente à serpente do seu genro... “Dia de Santa Irene, 5 de abril”... “5 de abril, Santa Irene”, repetia, como se tivesse dificuldade em se lembrar de uma coisa tão simples. Ficou um instante sacudindo a cabeça, como um cavalo, para enxugar seus cabelos loiros empapados de chuva. “Nesse dia, irei caçar em Gisors”, acabou dizendo.

Todos estavam acostumados a esses repentes de temperamento; cada qual pensou que a cólera do rei se esgotara em palavras e que tudo acabaria assim. E em seguida houve o que se passou no banquete de Rouen... Sim, mas não conheces os pormenores. Vou te contar tudo, mas amanhã; já é tarde e devemos estar próximos da chegada.

Gamo vês, tagarelando desta forma o caminho se torna mais curto. Nesta noite só nos resta cear e dormir. Amanhã estaremos em Auxerre, onde terei notícias de Avignon e de Paris. Ah!, ainda uma palavrinha, Archambaud. Muita circunspecção com monseigneur de Bourges, que nos acompanha, se ele se aproximar de ti. Não me agrada, absolutamente, e, não sei por quê, tenho a impressão de que esse homem se entende com Capocci. Menciona esse nome, assim como quem não quer nada, e me dirás o que te parece.

 

                       Em direção a Rouen

O rei João foi efetivamente a Gisors, mas aí ficou pouco tempo, o suficiente para apanhar cem piqueiros da guarnição. Partiu depois, ostensivamente, pela estrada de Chaumont e de Pontoise, a fim de que acreditassem que voltava para Paris. Levava consigo o segundo filho, o duque d’Anjou, e ainda seu irmão, o duque d’Orléans, o qual mais parecia um de seus filhos, porque monseigneur d’Orléans, com vinte anos, tem dezessete de diferença relativamente ao rei, e somente dois anos mais que o delfim.

O rei se fez escoltar pelo marechal d’Audrehem, pelos seus segundos-camareiros, João d’Andrisel e Guy de la Roche, por haver enviado antes para Rouen Lorris e Nicolas Braque, a pretexto de ajudar o delfim a cuidar dos preparativos do seu banquete.

Quem estaria ainda em companhia do rei? Oh! Constituíra muito bem a sua tropa. Levava os irmãos D’Artois, Carlos e o outro... “meu primo João”... grudado à sua garupa, e que ultrapassava pelo tamanho toda a cavalhada, e mais Luís d’Harcourt, no momento em desavença com seu irmão e seu tio Godofredo, e que, por isso, aderira ao partido do rei. Acrescente-lhes os estribeiros caçadores e os monteiros, os Corquilleray, Huet des Ventes e também os Mau-détour. Arre! O rei ia caçar e queria aparentá-lo; montava seu cavalo de caça, um árdego napolitano, corajoso e bem-adestrado, pelo qual se afeiçoara particularmente. Ninguém deveria surpreender-se pelo fato de estar acompanhado pelos seus sargentos da guarda pessoal, comandados por dois intrépidos, famosos pelo volume de seus músculos, Enguerrand Lalemant e Perrinet le Buffle. Esses dois dominam um homem apenas agarrando-o pela mão... É sempre bom que um rei tenha a seu lado uma guarda de confiança. O Santo Padre tem a sua. Tenho também eu meus homens proteres, que cavalgam junto à minha liteira, como já deves ter percebido. Estou de tal forma acostumado com eles que acabei por nem percebê-los mais; mas não me deixam nunca.

O que pode causar surpresa, mas seria preciso ter os olhos bem abertos, é que os criados de quarto, sem dúvida Tassin e Poupart le Barbier, carregavam, suspensos às suas celas, o elmo, a cervilheira, a grande espada, todo o apetrecho de batalha do rei. E acrescente-se ainda a presença do rei dos ribaldos, um bonacheirão conhecido por... Guilherme ... Guilherme não sei bem mais o quê... e que não somente cuida do policiamento dos bordéis nas cidades em que o rei reside, mas é também encarregado da justiça direta do rei. Tem muito trabalho nesse cargo desde que João II subiu ao trono.

Com os escudeiros dos duques, os pajens, os criados a serviço de todos esses senhores e os piqueiros embarcados em Gisors, eram ao todo uns duzentos cavaleiros, dos quais muitos eriçados de lanças, uma comitiva demasiado grande para uma caça ao cabrito montes.

O rei tomou a direção de Chaumont-en-Vexin, mas ninguém o viu passar por esse burgo. Sua tropa desapareceu na estrada como por encanto. Foi por um atalho, através dos campos, para reaparecer exatamente ao norte, em Gournay-en-Bray, onde se demorou apenas o tempo exato para apanhar o conde de Tancarville, um dos raros grandes fidalgos da Normandia que permaneceu fiel ao rei, porque vive como cão e gato com os D’Harcourt. Um Tancarville estupefato, porque aguardava, rodeado de vinte cavaleiros de sua companhia, o marechal d’Audrehem, mas nunca o rei.

“Meu filho, o delfim, não vos convidou para estar amanhã em Rouen, senhor conde?” “Sim, sire; mas a recomendação que recebi do senhor marechal, que viria inspecionar as fortalezas desta região, me dispensou de comparecer a uma comemoração onde muitas pessoas ser-me-iam bastante desagradáveis.” “Pois bem! Mesmo assim, ireis a Rouen, Tancarville, e instruir-vos-ei sobre o que iremos fazer por lá.”

Dito isso, toda a cavalhada partiu para o sul, ao cair da noite, uma pequena caminhada, três ou quatro léguas, mas que se juntam às dezoito percorridas desde a manhã, para ir dormir num castelo bastante afastado, na orla da floresta de Lyons.

Os espiões do rei de Navarra, se havia alguns por ali, deviam estar em grande dificuldade para informar aonde ia o rei da França por esse caminho desigual e para fazer o quê... todos viram o rei partir para a caça... o rei inspecionava as fortalezas...

O rei já estava de pé antes da aurora, cheio de impaciência e de febre, apressando seu pessoal, e já montando para arremeter, dessa vez diretamente, através da floresta de Lyons. Aqueles que desejaram comer um naco de pão e uma fatia de toicinho tiveram que fazê-lo às pressas, já com as rédeas à volta do braço, a outra mão agarrando a lança e correndo.

A floresta de Lyons é espessa e grande; tem mais de sete léguas, mas em duas horas já tinha sido quase toda atravessada. O marechal d’Audrehem pensa que nessa correria iria chegar seguramente muito cedo. Poderiam muito bem parar um momento, nem que fosse só para deixar os cavalos urinarem. Sem contar que também ele... Foi o próprio marechal que me contou. “Uma necessidade, que Vossa Eminência me perdoe, de me descarregar.” Ora, um marechal-de-campo não pode se aliviar de cima de sua montaria, como fazem os simples besteiros quando a necessidade os obriga, e tanto pior para eles se molham o couro do arção da sela. Então, disse ao rei: “Sire, de nada adianta tanta pressa; isto não vai fazer o sol andar mais rápido... Além do mais, os cavalos têm necessidade de verter água”. E o rei me respondeu: “Eis a carta que escreverei ao papa para explicar minha justiça e prevenir as más informações que lhe poderão mandar: ‘Por muito tempo, mui Santo Padre, as mansidões e as conciliações a que consenti, por sentimento cristão, para com esse mau parente, encorajaram-no a prevaricar, e, por sua causa, muitos malefícios e desgraças desabaram sobre o reino. Está preparando ainda uma maior, privando-me da vida; e é para evitar que ele consuma este novo crime... ‘ “

E esporeou o cavalo para a frente, sem se aperceber de nada, saindo da floresta de Lyons, da qual desembocou numa planície, entrando depois em nova floresta. D’Audrehem me contou que nunca lhe havia visto tal expressão, os olhos como os de um louco, seu largo queixo tremendo sob a barba rala.

Subitamente, Tancarville encaminhou sua montaria à altura do rei para lhe perguntar, delicadamente, se pretendia ir a Pont-de-L’Arce. “Nada disso”, gritou o rei, “vou a Rouen!” “Então, sire, acho que não chegareis lá por este caminho. Seria preciso tomar à direita, na última encruzilhada.” E o rei deu meia-volta com seu cavalo napolitano e fez voltar a galope toda a coluna, comandando aos berros para que o seguissem, o que não se pode executar sem desordem, mas sempre sem urinar, para grande desgosto do marechal...

Dize-me, meu sobrinho, não percebes nada na marcha da nossa traquitana?... Pois bem, eu, sim.

Brunet, olá!, Brunet! Um dos meus cavalos está mancando. . Não me respondas “Não, monseigneur”, mas vai verificar. Aquele detrás. E me parece que manca da pata anterior direita... Manda parar... E então? Ah! Soltou a ferradura? E de que pata?... Então, quem tinha razão? Tenho os rins mais espertos do que tu tens os olhos.

Vamos descer, Archambaud. Andaremos um pouco enquanto trocam os cavalos... Está agradável, embora um pouco frio. Que estamos vendo daqui? Sabes, por acaso, Brunet? Saint-Amand-en-Puisaye... E foi assim, Archambaud, que o rei João deve ter visto Rouen na manhã de 5 de abril.

 

                             O banquete

Não conheces Rouen, Archambaud, e por isso também não conheces o Castelo de Bouvreuil. Oh!, é um enorme castelo, com seis ou sete torres dispostas circularmente e um grande pátio central. Foi edificado há cento e cinqüenta anos pelo rei Filipe Augusto, para vigiar a cidade e seu porto e supervisionar a circulação extrema da ribanceira do Sena. É por isso uma praça de grande importância, uma das aberturas do reino para o lado da Inglaterra, e portanto um dique também. O mar alcança sua ponte de pedra, que reúne as duas partes do ducado da Normandia.

O torreão fortificado não está no meio do castelo; é uma das torres, um pouco mais alta e consistente do que as outras. Temos castelos semelhantes no Périgord, mas são normalmente mais caprichados no seu aspecto.

A fina flor da cavalaria da Normandia aí estava reunida, revestida de toda a riqueza possível. Sessenta fidalgos compareceram, cada qual com, pelo menos, um escudeiro. Já tinham soado as trompas anunciando o jantar, quando um escudeiro de messire Godofredo d’Harcourt, empapado de suor pelo longo galope, surgiu para advertir o conde João de que seu tio o enviara às pressas e lhe ordenava deixar imediatamente Rouen. A mensagem era bastante imperativa, como se messire Godofredo houvesse ouvido algum rumor suspeito. João d’Harcourt sentiu-se no dever de obedecer, esgueirando-se para longe dos convidados, e estava já na parte inferior da escada do torreão, que quase atravancava com o seu corpanzil, gordo como era, um autêntico tonel, quando encontrou Roberto de Lorris, que lhe impediu a passagem com o ar mais afável deste mundo. “Senhor conde, meu caro senhor, estais de saída? Mas o senhor delfim espera por vós para o jantar! Vosso lugar é à sua esquerda.” Não ousando afrontar o delfim, o corpulento D’Harcourt resignou-se em adiar a partida. Seria depois do jantar. E subiu a escada novamente, sem muito pesar. Porque a mesa do delfim gozava de grande reputação; todos sabiam que nela eram servidos pratos maravilhosos; e João d’Harcourt não tinha adquirido tanta gordura que o deixasse de tal forma anafado, chupando talos de erva.

E, na verdade, que festim! Não fora em vão que Nicolas Braque tinha ajudado o delfim no seu preparo. Aqueles que compareceram e que escaparam dali não se esqueceram nunca. Seis mesas colocadas no salão circular. Nas paredes, tapeçarias de folhagens, de cores tão vivas que davam a impressão de se jantar em plena floresta. Junto das janelas, moitas de velas para reforçar o dia que escoava pelos enquadramentos, como o sol através das árvores. Atrás de cada conviva um escudeiro trinchador, para servir, seja seu próprio amo, seja os demais pertencentes à casa do delfim. Usavam-se facas de cabo de ebano douradas e esmaltadas com as armas da França, especialmente reservadas para os tempos da Quaresma. É costume da corte usar as facas de cabo de marfim depois das festividades da Páscoa.

A Quaresma era respeitada. Tortas de peixe, peixes guisados, carpas, solhas, tencas, bremas, salmões e barbos, pratos de ovos, aves, caças de pena: esvaziaram-se os viveiros e os terreiros, os rios foram varejados. Os copeiros, formando uma cadeia contínua na escada, preparavam os pratos de prata e de cobre dourado em que os assadores, cozinheiros e encarregados dos molhos haviam disposto, organizado, coberto de guardanapos as iguarias preparadas nos fogões da torre das cozinhas. Seis copeiros serviam os vinhos de Beaune, de Meursault, do Arbois e de Touraine... Ah!, até tu ficaste com água na boca, hem, Archambaud! Espero que nos preparem agora uma suculenta ceia, em Saint-Sauveur...

O delfim, ao centro da mesa de honra, tinha Carlos de Navarra à direita e João d’Harcourt à esquerda. Trajava uma cota azul-mármore de Bruxelas e ostentava um capuz do mesmo tecido, ornado de bordados de pérolas dispostos à maneira de folhagem. Não te descrevi ainda o senhor delfim... Alto de corpo, espáduas largas e enxutas, a expressão ausente, um grande nariz um tanto rombudo no meio, um olhar que não se percebe bem se é atencioso ou sonhador, o lábio superior delicado, o outro mais carnudo, o queixo fugidio.

Dizem que se parece bastante, pelo menos tanto quanto é possível lembrar, com seu antepassado, São Luís, que era como ele muito alto e um pouco arqueado. Essa aparência, ao lado de homens tão sangüíneos e empertigados, surge, de tempos em tempos, na família da França.

Os criados vinham solenemente apresentar os pratos ao delfim, que designava a mesa para a qual deviam ser levados, obsequiando assim a cada um dos seus convidados, ao conde d’Étampes, ao sire de la Ferté, ao prefeito de Rouen, acompanhando com um sorriso cheio de cortês dignidade, o gesto gentil sempre da mão esquerda. Porque, já te disse, acredito, que sua mão direita é inchada, avermelhada e o deixa constrangido, por isso usa-a o menos possível. Pratica apenas uma meia hora o jogo da pela, e imediatamente sua mão se inflama. Ah!, é uma grande infelicidade para o príncipe... Nem caça, nem guerreia. O pai não esconde o seu desprazer para com ele. Como deveria invejar, o pobre delfim, todos aqueles fidalgos com os quais convivia, os sires de Clères, de Graville, du Bec Thomas, de Mainemares, de Braque-mont, da Sainte-Beuve ou do Houdetot, esses sólidos cavaleiros, confiantes em si, barulhentos, orgulhosos de seus feitos de armas! Devia invejar até o corpulento D’Harcourt, cuja obesidade não lhe proibia adestrar um cavalo nem ser temível nos torneios, e, sobretudo, o sire de Biville, homem famoso que todos cercam, assim que aparece em sociedade, e a quem fazem narrar de novo sua proeza... Ë esse mesmo... seu nome logo te ocorreu... sim, foi ele que com um golpe de espada decepou em dois um turco, diante dos olhos do rei de Chipre. Em cada narrativa por ele recomeçada, a incisão aumenta um pouco. Qualquer dia destes terá, também, rachado ao meio o cavalo...

Mas retorno ao delfim Carlos. Sabe muito bem esse jovem a que seu nascimento e seu nível o obrigam; bem sabe porque Deus o fez nascer, o lugar que a Providência lhe designou, no mais alto grau da escala dos homens, e que, a não ser que morra antes do seu pai, será rei. Não desconhece que terá o reino para governar soberanamente; e que será a França. E se no íntimo de si mesmo se angustia porque Deus não lhe dispensou, junto com o encargo, a robustez que o ajudaria a suportá-lo, sabe que deve enfrentar as insuficiências do seu corpo com soberania, a cortesia para com os demais, um controle no olhar e nos gestos, a maneira benevolente e confiante que jamais o deixam se esquecer quem ele é, e assim compor toda uma presença majestática.

Não é fácil, quando se tem dezoito anos e a barba mal desponta!

É bom que se saiba que fora educado muito cedo. Tinha onze anos quando seu avô, o rei Filipe VI, conseguiu enfim adquirir o Delfinado de Humberto II de Vienne, o que compensava um pouco a derrota de Crécy e a perda de Calais. Contar-te-ei depois como foram as negociações... Ah!, pois não... Queres saber com pormenores?

O delfim Humberto estava tão cheio de orgulho quanto de dívidas. Desejava vender, mas continuava a governar alguma parte daquilo que cedia e queria que seus Estados, depois dele, ficassem independentes. A princípio, quis negociar com o conde da Provença, rei da Sicilia; mas exigiu um preço muito elevado. Voltou-se então para a França, e foi aí que fui convocado para os entendimentos. Num primeiro acordo, cedeu sua coroa, mas somente para depois de sua morte... tinha perdido o único filho... a partilha resultava em cento e vinte mil florins por obséquio, e parte em pensão vitalícia. Com isso podia viver folgadamente. Mas ao invés de liquidar suas dívidas, dissipou tudo o que havia recebido, indo em busca de glória no combate aos turcos. Forçado por seus credores, só lhe restava vender o que lhe sobrara, isto é, seus direitos vitalícios. O que acabou aceitando por duzentos mil florins a mais e vinte e quatro mil libras de renda, mas nem por isso deixando de lado a soberbia. Felizmente para nós, não tinha mais amigos.

Fui eu, afirmo-te modestamente, que encontrei o meio justo, pelo qual pude satisfazer a honra de Humberto e de seus súditos. O título de delfim do Viennois não seria usado pelo rei da França, mas pelo mais velho dos netos do rei Filipe VI, e em seguida pelo seu primogênito. Assim, os delfinenses, até então independentes, conservavam a ilusão de manter um príncipe que não reinava sobre eles. É essa a razão pela qual o jovem Carlos de França, tendo recebido a investidura em Lyon, teve que empreender, durante todo o inverno de 1349 e a primavera de 1350, a visita a seus novos Estados. Cortejos, recepções, festas. Não tinha então, repito, mais de onze anos. Mas, com a facilidade que as crianças têm de assimilar sua personalidade, tomou o hábito de ser acolhido nas cidades com vivas, desfilar perante cabeças curvadas, sentar-se num trono enquanto se apressavam em estender sob seus pés muitas almofadas de seda, para que não ficassem suspensos no ar, de receber em suas mãos a homenagem dos fidalgos, de escutar seriamente as queixas das cidades. Surpreendeu pela dignidade, a afabilidade e o bom senso de suas respostas. Todos se enterneciam diante da sua seriedade; os velhos cavaleiros e suas esposas tinham os olhos marejados de lágrimas quando aquele menino lhes confessava seu amor e sua amizade, louvava-os pelos seus méritos e lhes dizia contar com sua fidelidade. A propósito de príncipes, qualquer palavra é objeto de infinitas glosas, pelas quais quem a recebeu se dá importância. Mas de um garoto tão jovem, de uma miniatura de príncipe, quantas histórias emocionadas não provocava a mais simples frase! “Nessa idade não se pode fingir.” Mas, efetivamente, ele se divertia fingindo, como todas as crianças. Dissimular interesse por todos os que via, mesmo quando se lhe apresentavam um olhar vesgo e uma boca desdentada, dissimular contentamento diante do presente que lhe enviavam, mesmo quando já havia recebido quatro semelhantes, dissimular autoridade quando o conselho da cidade vinha se lamentar por causa de uma cobrança exagerada ou de algum litígio comunal... “Sereis recompensados em vossos direitos, se houve erro. Quero que se faça o processo o mais breve possível.” Tinha bem cedo compreendido como determinar um processo com esse tom imperioso, que produzia muito efeito sem nada resolver.

Ainda não sabia que sua saúde era frágil, apesar de ter ficado enfermo durante algumas semanas em Grenoble. Foi durante essa viagem que teve notícia da morte de sua mãe, depois da de sua avó, e, logo mais, do novo casamento do avô e do próprio pai, uma notícia em seguida à outra, antes que lhe comunicassem que deveria também ele desposar a senhora Joana de Bourbon, sua prima, da mesma idade. O que se realizou em Tain l’Hermitage, no começo de abril, com grande pompa e toda a afluência da Igreja e da nobreza... Vai fazer seis anos.

É verdadeiro milagre que tanta pompa não lhe tenha perturbado o juízo. Apenas havia revelado esse pendor comum a todos os príncipes de sua família pela despesa exagerada e pelo luxo. Era mão-aberta. Tinha tudo quanto lhe agradava. “Quero isto, quero aquilo.” Adquirir, possuir tudo quanto é belo, as coisas mais raras, as mais curiosas e sobretudo as de maior preço, os animais para exposição, as suntuosas ourivesarias, os livros com iluminuras, gastar, viver em quartos forrados de seda e de tecidos dourados de Chipre, mandar bordar em suas vestes fortunas de pedras preciosas, resplandecer, era para o delfim, como para toda a gente de sua linhagem, sinal de poder e prova, para si mesmo, de majestade. Ingenuidade que herdara do seu antepassado, o primeiro Carlos, irmão de Filipe, o Belo, imperador titular de Constantinopla, essa corpulenta figura que tanto agitou e sacudiu a Europa e chegou, em certo momento, a sonhar com o império da Alemanha. Um perdulário como não haveria outro igual... Todos têm disso no sangue. Quando encomendam sapatos na família, são vinte e quatro, quarenta ou cinqüenta pares de cada vez, para o rei, para o delfim, para monseigneur d’Orléans. É sabido que esses ridículos sapatos de grandes pontas arrebitadas (as polônias) não suportam a lama; as compridas pontas se deformam, os ornatos perdem o brilho, e em três dias estão completamente estragados, esses sapatos que exigiram um mês de trabalho dos melhores artesãos da oficina de Guilherme Loisel, em Paris. Sei disso porque mandei vir do Loisel estas pantufas vermelhas; mas pessoalmente bastam-me oito pares por ano. E repara: não estou sempre muito bem calçado?

Como a corte determina a moda, fidalgos e burgueses arruínam-se em passamanarias, em peliças, em jóias, todas despesas de pura vaidade. Há verdadeira rivalidade na ostentação. Imagina que para enfeitar o capuz que exibia o senhor delfim nesse dia em Rouen de que estou te falando foi gasto um marco (que pesa oito onças) com grandes pérolas e um marco com miudezas, ordenadas a Belhommet Thurel por trezentos ou trezentos e vinte escudos. É de espantar que os cofres estejam vazios quando cada qual despende mais do que possui em dinheiro?

Ah! Lá vem a minha liteira. Trocaram a parelha de cavalos. Muito bem, vamos subir novamente...

Existe alguém, no entanto, a quem essas prodigalidades e dificuldades financeiras favorecem e que realiza seus negócios graças à penúria da caixa real; é messire Nicolas Braque, o primeiro-mordomo, que é também o tesoureiro e o encarregado das moedas. Montou uma pequena companhia bancária, deveria dizer um estabelecimento de origem duvidosa, que resgata, às vezes por dois terços, às vezes pela metade, às vezes até pela terça parte do valor, as dívidas do rei e de sua parentela. A maquinação é simples. Um fornecedor da corte está em dificuldades porque durante dois anos ou até mais não lhe pagam nada e ele mesmo não sabe como pagar a seus sócios ou como comprar as mercadorias. Procura messire Braque e lhe reaviva a memória da dívida. Messire Braque tem um aspecto imponente; é um belo homem, sempre severamente vestido, e nunca pronuncia uma palavra a mais do que o necessário. Não há outro capaz de rebater tão bem o palavrório dos reclamantes. Quem chega esbravejando... “dessa vez, ele vai me ouvir; tenho poucas e boas para lhe dizer, e não o pouparei com as minhas invectivas...” acaba, dentro em breve, balbuciante e suplicante. Braque arremessa sobre ele, como uma ducha de água fria, algumas palavras frias e duras: “Vossos preços são exagerados, como sempre, quando executais serviços para o rei... a clientela da corte facilita-vos muitos negócios, e ganhais bastante... se o rei está em dificuldades para pagar, é que todo o dinheiro do seu Tesouro tem sido gasto para subvencionar as despesas da guerra... Vede os burgueses, como Marcel, que mostram má vontade para dar auxílios... e, afinal, se vos é tão penoso fornecer ao rei, muito bem, não vos faremos mais nossas encomendas... “ E quando o reclamante já está conformado, bem arrependido, e até tiritante, então messire Braque lhe diz: “Se na verdade estais assim tão mal, procurarei auxiliar-vos. Posso providenciar uma companhia de empréstimos, na qual tenho alguns amigos, para que assuma seus créditos. Tentarei, reparai bem, tentarei fazer com que eles sejam resgatados por quatro sextos, e dareis quitação de tudo. A companhia será reembolsada quando Deus quiser reforçar o Tesouro ... se isso for possível. Mas não comenteis o fato com ninguém, senão toda a gente do reino virá pedir outro tanto. É um grande favor que vos presto”.

Depois disso, assim que tem três soldos no bolsinho real, Braque aproveita o ensejo para sussurrar ao rei: “Sire, não desejava por vossa honra e renome deixar arrastar-se essa dívida deplorável, visto que o credor estava muito revoltado, ameaçando fazer um escândalo. Por vosso amor paguei essa dívida com meus próprios recursos”. E, como prioridade pelo favor, faz-se reembolsar do total. Como é ele, por outro lado, quem ordena a despesa do palácio, resulta uma chuva de belos presentes em cada pedido requisitado. Ganha dos dois lados, esse honesto homem.

No dia do banquete, preocupava-se menos em negociar o pagamento das ajudas recusadas pelos Estados da Normandia do que em combinar com o prefeito de Rouen, mestre Mustel, o resgate dos créditos dos negociantes da cidade. Porque desde a última viagem do rei, e até mesmo antes, estas não tinham sido pagas. Quanto ao delfim, desde que era lugar-tenente do rei na Normandia, anteriormente ao seu título de duque, autorizava, autorizava sempre, mas nunca saldava nenhuma das suas contas. E messire Braque realizava o seu tráfico habitual, assegurando ao prefeito que era por sua amizade e pela estima que dispensava ao povo de Rouen que iria receber um terço dos seus proventos. E mais, porque ele os pagaria em francos ao câmbio, isto é, numa moeda aviltada, e por quem? Por ele, que decidia sobre as alterações ... Reconheçamos que quando um Estado se queixa de seus grandes funcionários reais tem alguns motivos. Quando penso que messire Enguerrand de Marigny foi enforcado há tempos porque o acusavam, passados dez anos, de ter uma vez defraudado o Tesouro! Ao lado dos argentários de hoje, esse era um santo!

Quem merece ser lembrado ainda de Rouen, fora os empregados habituais, é Mitton le Fol, o anão do delfim, que dava cabriolas entre as mesas, com o seu capuz também cheio de pérolas... pérolas para um anão, eu te pergunto, é uma boa maneira de gastar escudos, que não se têm? O delfim mandava vesti-lo com uma roupa listrada feita especialmente para ele em Gand... Desaprovo esse emprego dado aos anões. Obrigam-nos a se fazer de bobos, divertem-se à sua custa. São criaturas de Deus, embora possamos dizer que Deus não cuidou muito deles. Mais uma razão para lhes testemunhar um pouco de caridade. Mas as famílias, é o que penso, têm como uma bênção o nascimento de um anão. “Ah!, ele é pequenino! Tomara que não cresça. Poderemos vendê-lo a um duque ou talvez mesmo ao rei.”

Bem, tenho a impressão de que citei todos os convivas de importância, como Friquet de Fricamps, Graville, Maine-mares, sim, já falei neles... e finalmente, é claro, o mais importante de todos, o rei de Navarra.

O delfim distinguia-o com o máximo de atenção. Do lado do corpulento D’Harcourt, aliás, não precisava despender grande esforço. Este só conversava com os pratos, e seria inútil dirigir-lhe a palavra enquanto devorava montanhas.

Mas os dois Carlos, da Normandia e de Navarra, os dois cunhados, conversavam bastante. Ou melhor, Navarra falava. Não se haviam avistado desde a frustrada viagem à Alemanha, e era bem da maneira do Navarrês exibir, por adulação, protestos de boa amizade, lembranças alegres e histórias divertidas, com a finalidade de reconquistar o domínio sobre seu jovem parente.

Enquanto seu escudeiro, Colin Doublel, deixava as iguarias diante dele, Navarra, risonho, encantador, cheio de entusiasmo e de desenvoltura, dizia: “É a festa de nossos reconhecimentos; muito obrigado, Carlos, por me permitires demonstrar-te o devotamento que tenho por ti; aborreço-me desde o teu afastamento...” Recordava-lhe suas belas noitadas do inverno precedente e as amáveis burguesas com as quais haviam jogado dados. “Lembras-te da loira, lembras-te da morena?... a Cassinel está grávida, e ninguém duvida que é de ti...”, e em seguida passava às queixas afetuosas: “Ah!, como foste contar nossos projetos a teu pai? Tencionavas conseguir dele o ducado da Normandia? Foste bem arranjado, reconheço. Mas, comigo, poderias ter agora todo o reino...”, para lhe sussurrar, retomando sua antífona: “Garanto que serias um melhor rei do que ele!”

E inquirindo-o, sem dar a entender que isso lhe interessava, sobre o próximo encontro entre o delfim e o rei João, se a data fora adiada, se iria ser na Normandia... “Ouvi dizer que está caçando lá para os lados de Gisors.”

Contudo encontrava um delfim mais reservado, mais calado do que antes. Afável, certamente, mas em guarda, e respondendo apenas com sorrisos ou inclinações de cabeça a tanta amabilidade.

Subitamente, um grande barulho de baixela suplantou as vozes dos comensais. Mitton le Fol, que procurava imitar os empregados da cozinha, ao apresentar, sozinho, um merlo numa grande travessa de prata que havia encontrado, acabava de derrubá-la. E abriu uma boca enorme, mostrando a porta.

Os bons cavaleiros normandos, já bastante embriagados, divertiam-se com o fato, que lhes parecia muito engraçado. Mas suas gargalhadas logo morreram na garganta.

Porque na porta surgia o marechal d’Audrehem, inteiramente armado, agitando sua espada reta com a ponta para cima e gritando com sua voz de comando: “Que ninguém dentre vós se arrede por qualquer motivo se não quiser morrer na ponta desta espada”.

Ah!, mas minha liteira parou... É claro, chegamos; não tinha percebido. Contar-te-ei o resto após a ceia.

 

                               A prisão

Muito obrigado, senhor abade, fico-vos muito agradecido... Não, absolutamente, asseguro-vos que não preciso de nada... apenas que me coloquem algumas achas de lenha na lareira... Meu sobrinho me fará companhia; vou conversar com ele. É tudo, senhor abade, e muito boa noite. Obrigado pelas orações que ireis fazer pelo mui Santo Padre e pela minha humilde pessoa... sim, e toda sua piedosa confraria... A honra é toda minha. Pois não, eu vos abençôo; o bom Deus vos tenha sob Sua santa proteção...

Ufa! Se lhe tivesse permitido, esse abade ficaria conosco até a meia-noite! Deve ter nascido no dia de Santa Tagarela ...

Vejamos, onde estávamos? Não quero desanimar-te. Ah!, sim... o marechal, a espada desembainhada...

E atrás do marechal surgiu uma dúzia de arqueiros, os quais empurraram brutalmente escanções e empregados contra as paredes; e em seguida Lalemant e Perrinet le Buffle, e no seu encalço o próprio rei João, armado até os dentes, com o elmo colocado, os olhos chamejantes através da viseira levantada. Vinha acompanhado de perto por Chaillouel e Crespi, dois outros sargentos de sua guarda pessoal.

“Caí numa cilada”, disse Carlos de Navarra.

A porta continuava derramando a escolta real, na qual reconhecia alguns dos seus piores inimigos, os irmãos D’Artois, Tancarville...

O rei se encaminhou imediatamente para a mesa de honra. Os fidalgos normandos esboçaram um vago movimento de reverência. Com um gesto das duas mãos, ordenou-lhes que ficassem sentados.

Pegou o genro pela espessa gola da sua sobrecota, sacudiu-o, ergueu-o no ar, enquanto berrava de dentro do elmo: “Traidor maldito! Não és digno de te sentares ao lado de meu filho. Pela alma de meu pai, não pensarei mais em beber nem em comer enquanto viveres!”

O escudeiro de Carlos de Navarra, Colin Doublel, vendo seu amo tão maltratado, teve um impulso desesperado e empunhou uma faca de trinchar para ferir o rei. Mas seu gesto foi evitado por Perrinet le Buffle, que lhe virou o braço para trás.

O rei, por sua vez, deixou Navarra e, perdendo por instantes a compostura, olhou, surpreso, aquele simples escudeiro que ousara levantar a mão contra ele. “Prendei esse moço e seu amo também”, ordenou.

O séquito do rei avançou imediatamente num único impulso, em primeiro lugar contra os irmãos D’Artois, os quais enquadraram Navarra como uma aveleira pinçada entre dois carvalhos. Os guerreiros tinham tomado completamente o salão; as tapeçarias estavam eriçadas de piques. Os copeiros pareciam querer atravessar as paredes. O delfim levantara-se e implorava: “Sire meu pai, sire meu pai.

Carlos de Navarra tentava explicar-se, defender-se: “Senhor, não posso compreender! Quem vos informou assim tão mal contra mim? Tomo a Deus por testemunha, mas nunca, acreditai-me, nunca pensei em traição, nem contra vós nem contra o senhor vosso filho! Se há um homem neste mundo que deseje me acusar, que ele se apresente, perante meus pares, e juro que me justificarei contra suas delações e o confundirei”.

Mesmo em tão perigosa situação, mantinha a voz clara e a palavra lhe escorria facilmente da boca. Era na verdade muito pequeno, muito franzino no meio de todos aqueles guerreiros; porém mantinha-se confiante na argumentação.

“Sou rei, meu senhor, de um reino menor do que o vosso, certamente, mas mereço ser tratado como rei.” “És conde d’Évreux, és meu vassalo e és um traidor!” “Sou vosso bom primo, sou esposo da senhora vossa filha, nunca pratiquei nenhuma perversidade. É certo que mandei matar o senhor de Espanha. Mas ele era meu adversário e me ofendera. Já me penitenciei. Fizemos as pazes, e vós destes carta de indulto a todos...” “Para a prisão, traidor! Mentiste já demais! Encerrai-os, encerrai os dois!”, gritava o rei, apontando Navarra e seu escudeiro. “E este aqui também”, acrescentou, apontando com sua manopla Friquet de Fricamps, que acabava de reconhecer e que sabia ter concertado o atentado da Estalagem Truta que Escapa.

Enquanto os sargentos e os arqueiros arrastavam os três homens em direção a um aposento próximo, o delfim arrojou-se aos pés do rei. Por mais apavorado que estivesse pelo enorme furor em que via seu pai, tinha permanecido bastante lúcido para compreender as conseqüências, pelo menos no que lhe dizia respeito.

“Ah! Sire meu pai, por Deus, vós me desonrais! Que irão dizer de mim? Convidei o rei de Navarra e seus barões para jantar, e vós os tratais assim. Dirão que eu os traí. Suplico-vos, por Deus, que vos acalmeis e mudeis de opinião.” “Acalmai-vos, em primeiro lugar, Carlos! Não sabeis o que eu sei. São traidores maus, e seus delitos logo serão descobertos. Não, não sabeis tudo quanto eu sei.”

Dito isso, nosso João II, apoderando-se da maça de armas de um sargento, arremeteu contra o conde d’Harcourt com um formidável golpe, e não fosse ele tão gordo, teria a espádua arrebentada. “De pé, traidor! Para a prisão, também! Sereis muito esperto se me escapardes.”

E como o enorme D’Harcourt, inteiramente aterrado, não se levantou logo, o rei empunhou-o pela cota branca, que acabou rasgando, estraçalhando-lhe todas as roupas até a camisa.

Empurrado pelos arqueiros, João d’Harcourt, desarvorado, passou diante do seu irmão mais moço, Luís, e lhe disse alguma coisa que não se compreendeu bem, mas que era desagradável, ao qual o outro correspondeu com um gesto que podia significar “seja o que Deus quiser... não posso fazer nada; sou camareiro do rei... tu o procuraste, pior para ti...”

“Sire meu pai”, insistia o duque da Normandia, “estais agindo mal, tratando assim esses homens tão valorosos...”

Mas João II não ouvia mais nada. Trocou olhares com Nicolas Braque e Roberto de Lorris, que lhe apontavam silenciosamente alguns convidados. “E aquele ali, para a prisão! ... E aquele outro...”, ordenava, empurrando o sire de Graville e esbofeteando Maubué de Mainemares, dois cavaleiros que também haviam tomado parte no assassinato de Carlos de Espanha, mas que tinham recebido, havia dois anos, suas cartas de indulto, assinadas pelo próprio rei. Como podes perceber, era o ódio muito tempo recalcado.

Mitton le Fol, encarapitado num banco de pedra, no enquadramento de uma janela, fazia sinais ao seu amo, mostrando-lhe os pratos colocados num aparador, e depois apontava o rei, agitando os dedos diante da boca... comer...

“Meu pai”, disse o delfim, “quereis que vos mande servir o jantar?” A idéia era feliz: evitava mandar ao calabouço toda a Normandia.

“Bravos, como não! Na verdade, estou com fome. Deveis saber, Carlos, que parti da floresta de Lyons, e que estou correndo desde a madrugada para castigar esses malvados? Mandai-me servir.”

E, com um gesto de mão, ordenou que lhe tirassem o elmo. Surgiu então com os cabelos empastados, o rosto afogueado; o suor escorria-lhe pela barba. Ao sentar-se no lugar do filho, já tinha esquecido seu juramento de não comer nem beber enquanto o genro estivesse vivo.

Entrementes, enquanto se apressavam para lhe aprontar os talheres e lhe serviam o vinho, o qual o fazia esperar por um pastelão de solha recém-preparado, e lhe apresentavam um cisne que permanecia intacto e ainda quente, deu-se entre os prisioneiros que eram conduzidos e os criados que retornavam à cozinha uma confusão na sala e nas escadarias; os fidalgos normandos aproveitaram-se da confusão para escapar, como o sire de Clères, que estiverà também entre os assassinos do belo espanhol e que se apressou em fugir. Uma vez que o rei não se importava com prender mais ninguém, os arqueiros deixaram-nos sair.

A escolta também morria de fome e de sede. João d’Artois, Tancarville, os sargentos, estendiam os olhos gordos para os pratos. Esperavam que um aceno do rei os autorizasse a se recuperarem. Como esse aceno não vinha, o marechal d’Audrehem avançou na coxa de um capão que estava na mesa ao seu alcance e se pôs a comer, de pé. Luís d’Orléans fez uma careta de bom humor. Seu irmão não dava muita importância, na verdade, aos que o serviam. Sentou-se no lugar que Navarra ocupara até há pouco, dizendo: “Sinto-me na obrigação de vos fazer companhia, meus irmãos”.

Então, o rei, com um ar de mansidão indiferente, convidou os parentes e os barões a se sentarem, por sua vez. E todos se acomodaram, em volta das toalhas manchadas, para acabar com o que sobrara do rega-bofe. Ninguém se importou em trocar as escudelas de prata. Apanhavam o que passava ao alcance da mão, o pastel de nata antes do pato em conserva, o ganso gordo antes da sopa de mariscos. Comiam os sobejos da fritada fria. Os arqueiros se empanturravam de nacos de pão ou se esgueiravam para ir comer na cozinha. Os sargentos bebiam a grandes goles nas taças abandonadas.

O rei, descalçadas as botas sob a mesa, permanecia fechado num devaneio brutal. Sua cólera não estava extinta; parecia até que recrudescia com a comida. Entretanto, deveria ter motivos de contentamento. Estava no seu papel de justiceiro, o bom rei! Acabava de obter uma vitória: tinha uma bela proeza para consignar aos seus letrados na próxima assembléia da Ordem da Estrela. “De como o senhor rei João derrotou os traidores que agarrou no Castelo de Bouvreuil...” Parecia surpreender-se subitamente por não ver os cavaleiros normandos e ficou inquieto. Desconfiava deles. E se eles organizassem uma revolta, sublevassem a cidade, libertassem os prisioneiros?... Aquele homem astuto revelava dessa forma seu temperamento. Num primeiro momento, arrebatado por um furor longamente recalcado, atirava-se sem refletir nas conseqüências; depois, esquecia-se de consolidar seus atos; em seguida punha-se a imaginar coisas, sempre fora da realidade, mas das quais era difícil demovê-lo. Naquele momento, via Rouen em rebelião, como Arras havia estado, um mês antes. Mandou que fizessem comparecer o prefeito, o próprio mestre Mustel. “Mas ele estava aqui, não faz muito tempo”, dizia Nicolas Braque. Encontraram o prefeito no pátio do castelo. Compareceu, muito pálido, por causa da digestão interrompida, perante o rei, que se fartava de comer. Compreendeu ter que mandar fechar as portas da cidade e anunciar pelas ruas que todos deveriam ficar em casa. Proibir a todos de circular, burguês ou vilão, e sem nenhum motivo aceitável. Era o estado de sítio, o velho toque de sino (o guarda-fogo), que ordenava que todos se recolhessem ainda em pleno dia. Um exército inimigo, ao tomar de assalto a cidade, não teria agido de outra maneira.

Mustel teve a coragem de se mostrar ultrajado. Os cidadãos de Rouen nada haviam feito que justificasse tais medidas... “Sim! Recusai-vos a tomar essas medidas seguindo as exortações desses malvados que acabei de desmascarar. Mas, por São Dinis, jamais eles vos exortarão.”

Vendo o prefeito retirar-se, o delfim devia pensar com tristeza que todos os seus pacientes esforços perseguidos durante vários meses para conciliar os normandos acabaram reduzidos a nada. Agora teria todo mundo contra si, nobreza e burguesia. Quem poderia acreditar, com efeito, que não fora cúmplice nessa emboscada? Na verdade, seu pai lhe reservava um papel bem malévolo.

Em seguida, o rei mandou procurar Guilherme... ah!, Guilherme de quê... o nome me escapa, contudo eu o tenho de memória... enfim, o seu rei dos ribaldos. E todos entenderam o que o rei João tinha resolvido fazer, sem mais se importar com a execução imediata dos prisioneiros.

“Aqueles que não sabem honrar a cavalaria não têm razão para que lhes defendamos a vida”, dizia o rei. “Certamente, meu primo João”, aprovava João d’Artois, aquele monumento de imbecilidade.

Eu te pergunto, Archambaud, seria verdadeiramente digno da cavalaria pôr-se em armas de combate para prender pessoas desarmadas, aproveitando-se do próprio filho como engodo? Navarra, sem sombra de dúvida, tinha procedido com bastante velhacaria; mas o rei João, sob esses soberbos exteriores, teria mais honra na alma?

 

                             Os preparativos

Guilherme à la Cauche... Pronto, achei! O nome que procurava; o rei dos ribaldos... É um emprego muito curioso o seu, que resulta de uma instituição de Filipe Augusto. Organizou para sua guarda pessoal um corpo de sargentos, todos gigantes, o qual se denominava os ribaldi régis, os ribaldos do rei. Inversão de genitivo ou, melhor, um interessante jogo de palavras, o chefe dessa guarda veio a ser o rex ribaldorum. Nominalmente, comanda os sargentos como Perrinet le Buffle e os demais; e é ele que, toda noite, na hora da ceia, faz a ronda do palácio real para verificar se saíram todas as pessoas que entraram na corte, mas que nela não devem pernoitar. Mas, sobretudo, como já te disse, tem como encargo inspecionar os lugares suspeitos em qualquer cidade em que o rei se demora. Isto é, antes ele regulamenta e inspeciona os bordéis de Paris, que não são poucos, sem falar das doidivanas que trabalham por conta própria nas ruas que lhes são destinadas. Da mesma forma, as casas de jogos de azar. Todos esses lugares suspeitos são aqueles em que há mais oportunidade de se descobrir ladrões, ratoneiros, falsários e assassinos profissionais; além de se poder melhor conhecer os vícios de certas pessoas, às vezes de alta escala social, e que ostentam aparências perfeitamente honrosas.

Não obstante, o rei dos ribaldos tornou-se o chefe de uma espécie de polícia muito especial. Tem seus espias quase em toda parte. Possui e entretém toda uma canalha das tabernas, que o informa através de relatórios e indicações. Se alguém quer vigiar um viajante, revistar-lhe as malas ou saber com quem ele se encontra, é só procurá-lo. Não é um homem querido, mas é um homem temido. Eu te previno para o caso de ires alguma vez à corte. É sempre bom estar em boas relações com ele.

Ganha bem, porque seu trabalho é delicado. Vigiar as meretrizes, inspecionar as bodegas, rende-lhe bastante. Além dos proventos em dinheiro e vantagens pessoais que desfruta na casal real, recebe dois soldos de gratificação por semana de todas as casas de tolerância e de todas as donas de prostíbulos. Eis um belo imposto, não é mesmo? E a sua cobrança traz menos dificuldades do que acontece com a gabela. Igualmente, recebe cinco soldos das mulheres adúlteras... enfim, das que são conhecidas. Mas, ao mesmo tempo, é ele quem recruta as amantes para uso da corte. Pagam-lhe para ter os olhos abertos, mas também lhe pagam, freqüentemente, para tê-los fechados. É ele também, quando o rei está em litígio, quem executa suas sentenças ou as do tribunal dos marechais. Regulamenta as disposições sobre os suplícios; e, dos despojos dos condenados, reverte para ele tudo quanto possuam no momento da sua prisão. Como, ordinariamente, não é o refugo do crime o que provoca a ira real, mas o que provém de pessoas ricas e poderosas, as vestes e jóias que recolhe não são despojos desprezíveis.

Resultou numa fortuna inesperada o dia de Rouen. Um rei para degolar e cinco fidalgos de uma só vez! Nunca o rei dos ribaldos conhecera tamanha sorte, desde Filipe Augusto. Uma ocasião sem igual para se fazer estimado do soberano. Também não poupava despesas com o seu trabalho. Um suplício, que espetáculo!... Tinha que arranjar, dirigindo-se ao prefeito, seis carretas, porque o rei exigia uma carreta para cada condenado, nada menos que isso. Assim, o cortejo seria mais comprido. Elas aguardavam no pátio do castelo, atreladas a imponentes percherões de patas peludas. Teria ainda que encontrar um carrasco... porque o carrasco da cidade estava ausente, ou, na melhor das hipóteses, não tinha sido convocado. O rei dos ribaldos retirara da prisão um tipo desprezível de nome Bétrouve, Pedro Bétrouve... verás por que me recordo desse nome e saberás qual o motivo... tinha quatro homicídios na consciência, o que demonstrava uma boa preparação para o trabalho que lhe iriam confiar, em troca de uma carta de indulto entregue pelo rei. Vinha a calhar esse Bétrouve. Se houvesse um carrasco na cidade...

Seria preciso ainda encontrar um padre, mas era mercadoria menos rara, e ele nem se importou muito em procurá-lo... chamou o primeiro frade capuchinho que encontrou, no convento mais próximo.

Durante esses preparativos, o rei João reunia um pequeno conselho na sala pouco limpa do banquete...

Decididamente é tempo de chuva. Teremos chuva, na certa, durante toda a temporada. Não tem importância! Temos boas peliças, brasas em nossos aquecedores, confeitos, hipocraz para nos revigorar contra os resfriados; temos com que nos defender até Auxerre. Estou muito contente por rever Auxerre; irá reavivar minhas lembranças.

Como eu dizia, o rei reuniu o conselho, um conselho em que ele era quase o único que falava. Seu irmão D’Orléans mantinha-se calado; seu filho D’Anjou, igualmente. Audre-hem estava sombrio. O rei percebia evidentemente nos olhares de seus conselheiros que, mesmo os mais encarniçados, que desejavam a condenação do rei de Navarra, não apoiavam que ele fosse decapitado assim, sem nenhum processo e sem defesa. Aquilo lembrava muito a execução de Raul de Brienne, o antigo condestável, que tivera sua sorte decidida num momento de cólera, por motivos nunca esclarecidos, e que havia inaugurado tão mal aquele reinado.

Só Roberto de Lorris, o camareiro-mor, parecia secundar o rei no seu desejo de vingança instantânea; mas fazia-o mais por comodismo do que por convicção. Havia sofrido alguns meses de desvalimento por ter sido julgado, na opinião do rei, muito inclinado para o lado do Navarrês quando do Tratado de Mantes. Lorris precisava comprovar sua fidelidade.

Nicolas Braque, que era muito habilidoso e que sabia manejar o rei, procurava divergir falando de Friquet de Fri-camps. Opinava que o mantivessem com vida, provisoriamente, a fim de que sofresse um processo com toda a formalidade. Não havia dúvida de que o procurador de Caen, suficientemente trabalhado, deveria revelar segredos muito interessantes. Como conhecer todas as ramificações da conspiração se não se conservasse vivo nenhum dos prisioneiros?

“Sim, muito bem pensado”, disse o rei. “Que se poupe Friquet.”

Nesse meio tempo, Audrehem abriu uma das janelas e gritou para o rei dos ribaldos, no pátio: “Cinco carretas, é o suficiente!”, confirmando o número com um gesto largo com a mão espalmada. E uma das carretas foi devolvida ao prefeito.

“Se é bem pensado poupar Fricamps, seria ainda melhor poupar seu amo”, disse então o delfim.

Passada a primeira emoção, tinham retornado sua calma e seu ar ponderado. Sua honra estava em jogo. Procurava por todos os meios salvar o cunhado. João II pediu que João d’Artois repetisse, para conhecimento de todos, o que sabia da conspiração. Mas “meu primo João” mostrou-se menos seguro perante o conselho do que perante o rei a sós. Sussurrada ao ouvido, uma delação tem toda a aparência de uma certeza. Dita de novo, em voz alta, diante de dez pessoas, perde toda a força. Além do mais, tratava-se de diz-que-diz. Um antigo servidor vira... um outro ouvira falar...

Embora, no íntimo d’alma, o duque da Normandia não pudesse evitar de dar crédito às acusações aventadas, os pressupostos não lhe pareciam bem estabelecidos.

“Já sabemos o bastante sobre o meu mau genro, é o que me parece”, disse o rei. “Não, meu pai, não sabemos nada”, respondeu o delfim.

“Carlos, sois assim tão obtuso?”, disse o rei, encolerizado. “Não ouvistes que este meu parente, sem fé nem lei, essa fera prejudicial, desejava sacrificar-nos, a mim e depois a vós mesmo? Porque também contra vós ele tinha idéias assassinas. Acreditai-me: depois de mim, não serieis um grande obstáculo às arremetidas de vosso bom irmão, que anteriormente quis atirar-vos contra mim na Alemanha? É nosso lugar e nosso trono que ele ambiciona, nada menos. Ou estais tão influenciado por ele que insistis em não compreender mais nada?”

Mas o delfim estava persuadido e determinado: “Entendi muito bem, meu pai; mas não existem provas nem confissões”. “E que provas desejais, Carlos? A palavra de um primo leal não vos é suficiente? Esperais jazer mortalmente banhado em vosso sangue e ferido, como foi meu infeliz Carlos de Espanha, para obter a prova?”

O delfim insistia, obstinado: “Há pressuposições muito fortes, meu pai, não as contradigo; mas, no momento, nada além disso. Pressuposição não é crime”. “Pressuposição é crime para o rei, que tem o dever de se resguardar”, disse João II, transtornado. “Não falais como rei, Carlos, mas como um letrado universitário, escudado em seus enormes livros.”

Mas o jovem Carlos não desanimava. “Se é dever real se resguardar, não comecemos decapitando-nos entre nós mesmos. Carlos d’Évreux foi ungido e sagrado para Navarra. É vosso genro; traidor, sem sombra de dúvida, mas vosso genro. Quem respeitará as personalidades reais se os reis entregam outros reis ao carrasco?” “Ele não devia ter começado”, gritou o rei.

Nesse meio tempo, o marechal d’Audrehem interveio para dar seu parecer: “Sire, nesta oportunidade sois vós, perante o mundo, que pareceis começar”.

Um marechal, Archambaud, tanto quanto um condestável, é sempre difícil de manejar. Tu lhe concedes autoridade e depois, de repente, ele se vale dela para contradizer-te. Audrehem é um velho guerreiro... não tão velho, realmente, tem menos idade do que eu... mas, enfim, um homem que obedeceu durante muito tempo, calando-se e vendo muitas bobagens serem cometidas sem poder fazer nada. Agora desforra-se.

“Se tivéssemos apanhado todas as raposas na mesma armadilha!”, continuou. “Mas Filipe de Navarra está livre e, também ele, enfurecido. Executais o mais velho, e o mais moço o substituirá, subie vara muito bem seu partido e fará aliança com o Inglês, uma vez que ele é melhor cavaleiro e mais veemente no combate.”

Luís d’Orléans resolveu então apoiar o delfim e o marechal, fazendo ver ao rei que, enquanto Navarra estivesse na prisão, ele teria o controle sobre seus vassalos.

“Instaurai um longo processo contra ele, demonstrai sua periculosidade, determinai que ele seja julgado pelos pares do reino; então ninguém poderá reprovar vossa sentença. Quando o pai de nosso primo João cometeu todos os atos que conhecemos, o rei nosso pai não procedeu de maneira diferente, senão pelo julgamento público e solene. E quando nosso grande tio Filipe, o Belo, descobriu a má conduta de suas noras, por mais rápida que fosse sua justiça, esta foi estabelecida com base em interrogatórios e pronunciada em tribunal pleno.”

Tudo isso não agradou nada ao rei João, que se arrebatou, novamente: “Belos e proveitosos exemplos vós me recordais, meu irmão! O grande julgamento de Maubuisson trouxe a desonra e a desordem à família real. Quanto a Roberto d’Artois, o fato de ter sido apenas banido, e que isso não desgoste nosso primo João, ao invés de apropriadamente preso e morto, trouxe-nos a guerra da Inglaterra”.

Monseigneur d’Orléans, que não apreciava muito seu irmão mais velho e se comprazia em contradizê-lo, teria então retrucado... asseguraram-me que isto foi dito: “Sire meu irmão, é necessário lembrar-vos que Maubuisson não nos fez tanto mal assim? Sem Maubuisson, em que nosso avô Valois, que Deus o tenha na sua glória, desempenhou seu papel, nosso primo de Navarra é quem estaria no trono agora, em vosso lugar. Quanto à guerra da Inglaterra, o conde Roberto talvez tenha contribuído para ela, mas apenas empenhou uma única lança, a própria. Ora, a guerra da Inglaterra já dura dezoito anos...”

Parece que o rei fraquejou sob essa estocada. Voltou-se para o delfim, que encarou duramente, dizendo-lhe: “É verdade, dezoito anos; precisamente vossa idade, Carlos”, como se tal coincidência fosse um agravante.

Ao que Audrehem resmungou: “Teríamos agido melhor cuidando de expulsar o Inglês para longe de nossa casa, o que já teríamos feito se não estivéssemos sempre combatendo entre nós”.

O rei ficou um momento calado, de carranca fechada. É preciso ter muita confiança em nós para nos mantermos numa decisão, quando ninguém de nosso círculo nos aprova. E com isso se pode julgar o caráter dos príncipes. Mas o rei João não é determinado; é obstinado.

Nicolas Braque, que aprendera no trato dos conselhos a arte de aproveitar os silêncios, proporcionou ao rei uma porta de saída, manobrando ao mesmo tempo com seu orgulho e sua raiva.

“Sire, por acaso morrer de repente não é uma expiação rápida demais? Há dois anos ou mais que monseigneur de Navarra vos faz sofrer. E vós lhe permitis uma punição assim tão breve? Mantendo-o preso, fareis com que ele se sinta morrer a cada dia. Por outro lado, garanto-vos que seus partidários não deixarão de empreender alguma tentativa de libertá-lo. Nessa oportunidade, podereis capturar aqueles que hoje escaparam à vossa rede. E tereis um bom pretexto para empenhar vossa justiça contra uma rebelião tão patente... “

O rei aprovou essa idéia, dizendo que, com efeito, seu genro traidor merecia expiar seu crime por muito tempo. “Adio sua execução. Queira Deus não venha a me arrepender disso mais tarde. Mas, por enquanto, que se apresse o castigo dos demais. Já perdemos muito tempo com tanto palavrório.” Parecia temer que tentassem fazê-lo desistir de outra cabeça.

“Apressai-vos!”, repetiu o rei. “Libertai esses traidores.”

“Libertar”... estranho vocábulo, que pode surpreender aqueles que não estão familiarizados com esse estranho príncipe! Ë a sua fórmula especial, quando ordena uma execução. Ele não diz: “Que me libertem desses traidores”, o que teria sentido, mas “Libertai esses traidores”... O que significaria tal frase para ele? Libertá-los para o carrasco? Libertá-los da vida? Ou é, simplesmente, um lapso no qual ele se obstina, porque na sua cólera, sua cabeça conturbada já não controla mais as palavras?

Conto-te tudo isto, Archambaud, como se tivesse assistido aos acontecimentos. É que em julho, apenas três meses mais tarde, quando as memórias ainda estavam frescas, obtive de Audrehem, de monseigneur d’Orléans, e do pròprio senhor delfim e também de Nicolas Braque, a narrativa do caso, e cada quai, é certo, recordava-se do que havia dito pessoalmente. Dessa forma, pude reconstituir, o mais exatamente, acredito, e com pormenores, todo esse caso, e escrevi ao papa, ao qual haviam chegado versões mais curtas e um pouco diferentes. Os pormenores, nessas histórias, têm muito mais interesse do que se imagina, porque nos informam sobre o caráter das pessoas. Lorris e Braque são ambos homens muito ávidos de dinheiro, e desonestos na sua avidez; mas Lorris é uma natureza medíocre, enquanto Braque é um político judicioso...

Chove sempre... Brunet, onde estamos? Fontenoy. Ah!, sim, agora me lembro; era minha diocese. Houve aí uma batalha famosa de que resultaram graves conseqüências para a França; “Fontanetum”, conforme a antiga denominação. Aí pelo ano de 840 ou 841, Carlos e Luís, o Germânico, venceram seu irmão Lotário, e em seguida assinaram o Tratado de Verdun. E é a partir daí que o reino da França separou-se, definitivamente, do império... Com esta chuva a gente não vê nada. De resto, não há mesmo nada para ver. De tempos em tempos os camponeses, trabalhando, encontram um pedaço de glàdio, um capacete enferrujado, coisas de quinhentos anos. Prossigamos, Brunet, prossigamos.

 

                     O Campo do Perdão

Ostentando novamente o elmo, o rei ia a cavalo, ao lado do marechal, também ele coberto, mas apenas com uma simples cervilheira de malhas. Não iria enfrentar tão grandes perigos que o obrigassem a revestir-se com uma equipagem de combate. Audrehem não é dessas pessoas que fazem ostentação guerreira quando dela não há necessidade. Se agradava ao rei exibir seu elmo heráldico para assistir a quatro degolações, era escolha dele.

Todos os demais componentes da companhia, do mais graduado fidalgo ao último arqueiro, iriam a pé até o lugar do suplício. O rei assim decidira, porque é um homem que perde muito tempo para aprontar, pessoalmente, as paradas nos seus pormenores, gostando de nelas introduzir algumas novidades, ao invés de agir segundo os usos e costumes de sempre.

Só havia três carretas, porque as ordens e contra-ordens, mal compreendidas, dispensaram uma a mais.

Logo em seguida vinha Guilherme... não, não é bem esse, não é Guilherme à la Cauche; eu me confundi. Guilherme à la Cauche é um criado de quarto; mas é um nome parecido com este... la Gauche, le Gauche, la Tanche, la Planche... Nem mesmo sei se o prenome era Guilherme; mas isso não tem a menor importância... Logo em seguida vinham o rei dos ribaldos e o improvisado carrasco, branco como um nabo por ter estado tanto tempo no calabouço, um magricela, disseram-me, não sei se é verdade, um infiel culpado de quatro mortes, e logo depois o frade capuchinho, tropeçando, como costumam fazê-lo sempre, com seu cíngulo de cânhamo.

Com a cabeça descoberta, as mãos amarradas nas costas, os condenados saíram do torreão. O conde d’Harcourt era o primeiro, na sua sobrecota branca que o rei havia rasgado até a cava, inclusive a camisa. Tinha a enorme espádua à mostra, rosada como pele de porco raspada, assim como o gordo peito. Tinham acabado de afiar os machados num rebolo, num canto da praça.

Ninguém olhava para os condenados, ninguém ousava olhá-los. Cada qual fixava um pedaço da calçada ou um canto do muro. Quem ousaria, à vista do rei, um olhar de amizade ou mesmo de compaixão por aqueles quatro que iam morrer? Mesmo aqueles que se achavam atrás da assistência tinham o olhar baixo, temerosos de que seus vizinhos viessem a dizer que haviam percebido sua postura... Eram numerosos os que reprovavam o rei. Mas daí a demonstrá-lo... Muitos dentre eles conheciam o conde d’Harcourt de longa data, tinham caçado com ele, brigado com ele, jantado à sua mesa, que era abundante. Naquela hora, nenhum deles parecia lembrar-se disso; os telhados do castelo e as nuvens de abril eram-lhes coisas bem mais agradáveis de contemplar. Tanto assim que João d’Harcourt, voltando para todos 05 lados suas pálpebras enrugadas pela gordura, não encontrava um único rosto no qual descansar sua desgraça, nem mesmo o de seu irmão, sobretudo nem mesmo o de seu irmão! Sim, senhor! Uma vez afastado seu grande irmão primogênito, que iria decidir o rei quanto aos seus títulos e bens?

Fizeram subir na primeira carreta aquele que era, ainda por um instante, o conde d’Harcourt. Não o fizeram sem muito trabalho. Um quintal e meio de peso, e as mãos amarradas ... Foram precisos quatro sargentos para empurrá-lo e depois içá-lo. Havia palha disposta no fundo da carreta, e depois o cepo.

Uma vez carregado, João d’Harcourt voltou-se, com o peito descoberto, em direção ao rei, como se lhe quisesse falar, àquele rei imóvel em sua sela, revestido de malhas, coroado de ferro e de ouro, o rei justiceiro, o qual procurava demonstrar que todas as vidas no reino estavam submetidas ao seu poder e que o mais rico dos fidalgos de uma província poderia não ser mais nada se ele assim o quisesse. E D’Harcourt não pronunciou uma única palavra.

O sire de Graville foi colocado na segunda carreta, e na terceira fizeram subir, juntos, Maubué de Mainemares e Colin Doublel, o escudeiro que havia erguido sua adaga contra o rei. Este parecia dizer a cada um deles: “Lembra-te do assassinato do senhor de Espanha; recorda-te da Estalagem Truta que Escapa”. Porque toda a assistência compreendia que, a não ser por D’Harcourt, para os outros três, quem comandava aquela breve e torva justiça era a vingança. Condenar pessoas a quem se havia dado o indulto publicamente ... É preciso ter encontrado graves acusações e muito patentes para agir dessa maneira. Coisa que mereceria a reprovação do papa, e das mais severas, se o papa não fosse tão fraco...

No torreão, haviam maldosamente empurrado o rei de Navarra para bem perto de uma janela, para que não perdesse o espetáculo.

O tal Guilherme, que não é à la Gauche, volta-se para o marechal d’Audrehem... está tudo pronto. O marechal volta-se para o rei... está tudo pronto. O rei faz um gesto com a mão. E o cortejo se põe a caminho.

À frente, segue um esquadrão de arqueiros, de chapéus ferrados e cota de armas de couro, em marcha pesada por causa das botas de couro, enormes. Em seguida, o marechal, a cavalo e visivelmente constrangido. Ainda mais arqueiros. E depois as três carretas. E atrás dos ribaldos, o carrasco magricela e o imundo frade capuchinho.

Depois, o rei, ereto em seu cavalo de batalha, flanqueado pelos sargentos de sua guarda pessoal, e finalmente toda uma procissão de nobres de capuz ou chapéu de caça, manto acolchoado ou sobrecota curta, conforme a moda.

A cidade permanecia silenciosa e vazia. Os cidadãos tinham obedecido prudentemente às ordens de permanecer em casa. Mas suas cabeças se aglomeraram por trás das grossas vidraças esverdeadas, parecidas com fundos de garrafas; os olhares escoam pelas bordas entreabertas de suas janelas quadriculadas de chumbo. Não podem acreditar que é o conde d’Harcourt que está na carreta, justamente aquele que tantas vezes viram passar nas suas ruas, e ainda naquela manhã, em trajes soberbos. Entretanto sua obesidade não o desmente... “É ele; afirmo-te que é ele.” Quanto ao rei, cujo elmo sobressaía quase à altura do primeiro andar das casas, não há a menor dúvida. Fora por muito tempo o seu duque... “Ë ele, não há dúvida de que é o rei.” Não se sentiriam mais amedrontados se tivessem descoberto uma caveira por trás da viseira do capacete. Estavam descontentes os habitantes de Rouen; aterrorizados, naturalmente, mas descontentes. Porque o conde d’Harcourt os havia sempre sustentado, e eles o amavam. Então murmuravam: “Não, isso nunca foi justiça. É a nós que querem atingir”.

As carretas iam aos solavancos. A palha escorregava debaixo dos pés dos condenados, que faziam grandes esforços para manter sua compostura. Disseram-me que durante todo o trajeto, João d’Harcourt manteve a cabeça tombada para trás, e que seus cabelos se agitavam sobre as grandes dobras da nuca. Quem poderia pensar num homem como ele, caminhando para o suplício e olhando o céu distante, além das cumeeiras das casas? Sempre me interrogo sobre o que devem pensar os condenados à morte em seus últimos momentos ... Será que João d’Harcourt deplorava não haver apreciado devidamente todas as coisas lindas que o bom Deus oferece aos nossos olhos todos os dias? Ou pensara no absurdo daquilo que nos impede aproveitar todos os seus benefícios? Na véspera, discutia sobre os impostos e a gabe-la... Ou será que pensava em quantos erros teriam resultado no seu caso? Porque havia sido avisado, seu tio Godofredo tinha mandado preveni-lo... “Parte imediatamente...” Com bastante antecedência, Godofredo d’Harcourt havia previsto a cilada... “Esse banquete de Quaresma cheira a emboscada...” Se seu mensageiro tivesse chegado um pouquinho mais cedo, e Roberto de Lorris não o tivesse encontrado ali, no fim da escada... se... se... Mas o erro não estava no acaso, estava nele mesmo. Bastar-lhe-ia ter-se desculpado e não ter acompanhado o delfim; teria sido suficiente não ter cedido às más intenções da sua glutoneria. “Partirei depois do banquete; será a mesma coisa... “

As grandes desgraças dos homens, vê bem, Archambaud, lhes sobrevêm, freqüentemente, em virtude de pequenos motivos, por um erro de julgamento ou de decisão numa circunstância que lhes parecia sem importância e em que obedecem às tendências de sua natureza... Uma coisinha de nada, e eis a catástrofe.

Ah!, como gostariam então de ter o direito de retomar seus atos, voltar atrás, à bifurcação mal escolhida. João d’Harcourt empurra Roberto de Lorris e lhe grita: “Adeus, me s sire”, escarrancha-se no seu corpulento cavalo, e tudo teria sido diferente. Reencontraria seu tio, retornaria ao seu castelo, à sua mulher e seus nove filhos, e se vangloriaria, para o resto da vida, de haver escapado ao golpe malvado do rei... A não ser que, a não ser que aquele fosse o seu dia nefasto, e que, caso tivesse partido, pudesse ter arrebentado a cabeça de encontro a um galho de uma árvore. Quem pode penetrar nos desígnios de Deus? E é preciso não esquecer... o que aquela má justiça acabou apagando... que D’Harcourt conspirava verdadeiramente contra a coroa.

Muito bem, não era o dia do rei João, e Deus reservava à França outras desgraças de que o rei seria o instrumento.

O cortejo subia a encosta que conduzia ao patíbulo, mas parou no meio do caminho, numa grande praça rodeada de casas baixas, onde se realiza em cada outono a feira dos cavalos, e que se chama o Campo do Perdão. É exatamente este o seu nome. Os homens de armas alinharam-se à direita e à esquerda da rua que atravessava a praça, deixando entre suas fileiras um espaço de três comprimentos de lança.

O rei, sempre a cavalo, permanecia exatamente no meio da calçada, à distância do arremesso de um calhau do cepo, que os sargentos haviam rolado para fora da primeira carreta e para o qual se procurava um local plano.

O marechal d’Audrehem apeou do cavalo. E a comitiva real, em que sobressaíam as cabeças dos dois irmãos D’Artois... no que estariam pensando eles? Era o mais velho que tinha a responsabilidade prioritária das execuções. Oh!, eles não pensavam em nada... “meu primo João, meu primo João...” A comitiva ordenou-se em semicírculo. Observavam Luís d’Harcourt enquanto desciam seu irmão; ele não se mexeu.

Os preparativos daquela justiça improvisada no meio do campo da feira não acabavam nunca. E havia olhos curiosos nas janelas ao redor do local.

O delfim-duque, com a cabeça inclinada sob o capuz cheio de pérolas, desentorpecia os pés em companhia de seu jovem tio D’Orléans, dava alguns passos, voltava, tornava a andar para expulsar seu mal-estar. E, de súbito, o corpulento conde d’Harcourt dirige-se a ele, a ele e a Audrehem, gritando a plenos pulmões:

“Ah! sire duque, e vós, gentil marechal, pelo amor de Deus, deixai-me falar ao rei, e eu saberei me desculpar, e lhe direi tantas coisas de que poderá tirar proveito para si e para o seu reino”.

Quem o ouviu não esquece de ter tido nesse momento a alma despedaçada pelo clamor emitido por aquela voz, um grito ao mesmo tempo de angústia derradeira e de maldição.

Ni m mesmo impulso, o duque e o marechal dirigiram-se ao rti, que pôde ouvir tão bem quanto eles. Quase chegaram a tocar seu cavalo. “Sire meu pai, pelo amor de Deus, deixai que ele vos fale!” “Sim, sire, permiti que ele vos fale, e será bem melhor”, insistiu o marechal.

Mas esse João II é um copiador. Na cavalaria copia seu avô, Carlos de Valois, ou o rei Artur das lendas. Aprendeu que Filipe, o Belo, quando havia ordenado uma execução, permanecia inflexível. Agora acredita copiar o Rei de Ferro. Mas Filipe, o Belo, não punha o elmo quando não era necessário. E não condenava a torto e a direito, fundamentando sua justiça na torva ruminação de seu ódio.

“Libertai esses traidores”, repete João II pela viseira erguida.

Ah! Como ele deve sentir-se grande, como deve sentir-se verdadeiramente todo-poderoso. O reino e os séculos lembrar-se-ão de sua dureza. Acabou precisamente de perder uma bela ocasião para refletir.

“Seja!, confessemo-nos”, disse então o conde d’Harcourt, voltando-se para o sujo frade capuchinho. E o rei gritando: “Não, nada de confissão para os traidores!”

Nesse ponto o rei não copia, inventa. Considera o crime de... mas que crime, na verdade? O crime de ser suspeito, o crime de haver pronunciado algumas palavras maldosas que foram repetidas... digamos o crime de lesa-majestade, como o dos heréticos e dos relapsos. Porque João II foi ungido, não é mesmo? Tu es sacerdos in aetemum... Agora considera-se o Deus em pessoa e decide sobre o lugar das almas depois da morte. Também por isso o Santo Padre, no seu modo de entender, dever-lhe-ia fazer uma grave censura.

“Somente aquele, o escudeiro...”, prossegue, designando Colin Doublel.

Vá a gente saber o que se passa naquele cérebro furado como um queijo? Por que aquela discriminação? Por que permite a confissão ao escudeiro trinchador que levantou sua faca contra ele? Ainda hoje, os que assistiram ao suplício, quando conversam entre si sobre essa hora terrível, perguntam-se o porquê dessa estranheza do rei. Queria por acaso estabelecer que os graus na culpa seguem a hierarquia feudal, e que o escudeiro que errou é menos culpado do que o cavaleiro? Ou ainda que a cimitarra brandida contra seu peito fez-lhe esquecer que Doublel esteve também entre os assassinos de Carlos de Espanha, como Mainemares e Graville? Mainemares é um grande esgalgado que se agita nos seus grilhões e passeia olhares furiosos, Graville não consegue fazer c sinal-da-cruz, mas ostensivamente murmura orações... se Deus quiser ouvi-lo no seu arrependimento, ouvi-lo-á sem precisar de intercessor.

O frade capuchinho, que começava a se perguntar o que estaria fazendo ali, apega-se depressa à alma que lhe designam e murmura em latim ao ouvido de Colin Doublel.

O rei dos ribaldos empurra o conde d’Harcourt diante do cepo. “Ajoelhai-vos, messire.”

O colosso abaixa-se tal qual um boi. Movimenta os joelhos devido a alguns pedregulhos que o ferem. O rei dos ribaldos, por trás dele, veda seus olhos de repente, privando-o de ver os nós da madeira, a última coisa deste mundo que teria diante de si.

Aos outros é que se deveriam pôr as vendas, para poupar-lhes o espetáculo que iria se desenrolar.

O rei dos ribaldos... é estranho, na verdade, que não consiga recordar o seu nome; já o vi tantas vezes junto do rei; e revejo perfeitamente sua cara, um alto e forte galho-feiro que ostenta uma espessa barba negra... o rei dos ribaldos agarra a cabeça do condenado com as duas mãos, como uma coisa, para dispô-la como deveria estar, e separa os cabelos para descobrir bem a nuca.

O conde d’Harcourt continuava mexendo os joelhos por causa dos pedregulhos... “Vamos, corta!”, fez o rei dos ribaldos. E viu, e toda a gente viu, que o carrasco tremia. Não terminava nunca de sopesar o seu enorme machado, de percorrer com as mãos o seu cabo, de calcular a melhor distância em relação ao cepo. Tinha medo. Oh!, estaria mais garantido com um punhal, num canto sombrio. Mas um machado, para aquele miserável, e diante do rei e de todos aqueles nobres e todos aqueles soldados! Depois de muitos meses de prisão, não devia sentir os músculos muito sólidos, mesmo que lhe tivessem servido uma boa sopa e um copo de vinho para lhe dar forças. E, além do mais, não lhe haviam posto a cogula, como é costume, porque não encontraram nenhuma na ocasião. Assim, todo mundo saberia para sempre que tinha sido carrasco. Criminoso e carrasco. O que causaria horror a qualquer um. O que perturbava seriamente esse Bétrouve é que iria gozar a liberdade executando o mesmo ato pelo qual fora levado à prisão. Via a cabeça que lhe cabia decepar no lugar onde deveria estar a sua, alguns dias mais tarde, se o rei não tivesse passado por Rouen. Talvez houvesse naquele velhaco mais caridade, mais sentimento de comunhão, mais ligações com seu próximo do que havia no coração do rei.

“Corta!”, precisou repetir o rei dos ribaldos. Bétrouve ergueu o machado, sem a segurança com que teria feito um verdadeiro carrasco, mas de lado, como um lenhador que vai derrubar uma árvore e deixou o machado cair pelo seu próprio peso. Caiu mal.

Há carrascos que decepam uma cabeça de uma só vez, num único golpe bem desferido. Mas não esse, ah, não! O conde d’Harcourt devia ter desmaiado, porque não mexeu mais os joelhos; mas não estava morto, porque o golpe do machado fora amortecido pela camada de gordura que lhe enchia a nuca.

Foi preciso recomeçar. Mais uma vez, ainda pior. Dessa vez o ferro atingiu um lado do pescoço. O sangue jorrou por uma larga ferida que deixava à mostra a densidade da gordura amarela.

Bétrouve lutava com o machado, cujo fio se enterrara na madeira do cepo, de que não podia mais retirá-lo. O suor lhe escorria pela face.

O rei dos ribaldos voltou-se para o rei com um ar de desculpa, como se quisesse dizer: “Não é minha culpa”.

Bétrouve se enerva, não compreende o que lhe dizem os sargentos, torna a bater; e acreditar-se-ia que o ferro cai numa porção de manteiga. E de novo, e mais uma vez! O sangue jorra do cepo, escorre sob o ferro, constela a cota rasgada do condenado. Os espectadores desviam o rosto, com o coração agitado. O delfim mostra uma expressão de horror e de cólera; fecha os punhos, o que torna sua mão direita inteiramente violàcea. Luís d’Harcourt, pálido, sente-se mal por se achar na primeira fila, diante daquela carnificina a que sujeitam seu irmão. O marechal afasta os pés para não andar na regueira de sangue que se insinua para o seu lado.

Enfim, na sexta tentativa, a enorme cabeça do conde d’Harcourt separa-se do tronco e, envolta na sua venda negra, rola para fora do cepo.

O rei não se mexeu. Pela sua janela de aço, contemplava, sem aparentar nenhum sinal de mortificação, de nojo nem de mal-estar, aquela papa sangrenta entre enormes espáduas, precisamente diante dele, e aquela cabeça isolada, toda suja, no meio de um charco viscoso. Se alguma coisa apareceu, nas suas feições emolduradas pelo metal, não passou de um sorriso. Um arqueiro desabou, num grande barulho de ferragens. Somente então o rei consentiu em volver os olhos. Aquele delicado não permaneceria muito tempo na sua escolta. Perrinet le Buffle apressou-se a erguer o arqueiro pela gola da sua cota de armas, esbofeteando-o valentemente. Mas o delicado, com seu desmaio, não deixara de prestar seu serviço. Todos acabaram se recuperando um pouco, e ouviram-se até algumas risadas.

Três homens, menos não era possível, arrastaram o corpo decapitado. “Para o seco, para o seco”, gritava o rei dos ribaldos. As roupas lhe caberiam por direito, não nos esqueçamos. Bastava-lhe que estivessem rasgadas; se por acaso estivessem muito sujas, não lhe renderiam grande coisa. Já tinha dois condenados a menos...

E em seguida exortava seu carrasco, alagado de suor e resfolegante, e dava-lhe conselhos, como se fosse a um lutador esgotado: “Eleva o machado direito, acima de ti, e depois não olhes para o machado; deves olhar para onde tens de ferir, bem no meio do pescoço. E han!” Meteu a palha junto ao cepo para secar o solo, tratou de vendar os olhos ao sire de Graville, um bom normando, também obeso, fê-lo ajoelhar-se, colocou-lhe o rosto na papa de carne. “Corta!” Rápido, num golpe... milagre... Bétrouve corta-lhe o pescoço; e a cabeça tomba para a frente, enquanto o corpo desaba de lado, jorrando um fluxo vermelho na poeira. E os demais sentiram-se aliviados. Mais um pouco e teriam felicitado Bétrouve, que olha em redor de si, estupefato, com cara de quem se interroga como pôde sair-se tão bem.

Chegou a vez do grande derreado, Maubué de Mainemares, que lança um olhar de desafio ao rei. “Todos sabem, todos sabem...”, gritou. Mas como o barbado está diante dele e lhe aplica a venda, sua palavra fica sufocada e ninguém entende o que ele queria dizer.

O marechal d’Audrehem desloca-se de novo, porque o sangue avança para o lado de suas botas... “Corta!” Um golpe de machado, novamente, um só e bem aplicado. E foi o suficiente.

O corpo de Mainemares é retirado para junto dos outros. Desamarram as mãos dos cadáveres, a fim de segurá-los melhor pelos quatro membros, balançá-los e jogá-los na primeira carreta, que os levará até o patíbulo, onde serão dependurados como carne de açougue. Lá serão despojados. O rei dos ribaldos faz um sinal para arrebanharem também as cabeças.

Bétrouve retoma fôlego, apoiado ao cabo do seu machado. Sente cansaço nos rins; não agüenta mais. E é dele, afinal, que se deve ter piedade. Ah!, ele teve sua carta de indulto! Se até o fim de seus dias Bétrouve tiver pesadelos e gritar, sonhando, ninguém deve se admirar.

Colin Doublel, o corajoso escudeiro, estava nervoso, ainda que absorto. Fez um movimento para se libertar das mãos que o empurravam para o cepo; queria ir sozinho até lá, mas a venda é feita justamente para evitar os gestos desordenados dos condenados.

Não se pôde impedir, no entanto, que Doublel levantasse a cabeça no mau momento, e que Bétrouve... não foi sua culpa!... acabasse lhe abrindo o crânio de través. Vamos!, mais um golpe. Pronto, tudo acabado.

Ah!, quanto teriam agora que contar os cidadãos que estavam nas janelas próximas, coisas que iriam logo ser repetidas de burgo em burgo até o confim do ducado. E muita gente viria de toda parte para contemplar aquela praça que bebera tanto sangue. Não se acreditaria que quatro corpos de homens pudessem conter tanto sangue, e que ele tivesse manchado tão largamente o solo.

O rei João olhava o seu mundo com estranha satisfação. O horror que inspirava naquele instante, mesmo aos seus servidores mais fiéis, não o devia desgostar, ao que tudo indica; estava bastante orgulhoso de si. Olhava particularmente para seu filho mais velho: “Vê, meu rapaz, como se conduz um rei...”

Quem ousaria dizer-lhe que havia errado cedendo ao seu temperamento vingador? Para ele também aquele dia era o da bifurcação. O caminho da esquerda ou o caminho da direita? Tomara o mau caminho, como o conde d’Harcourt ao pé da escada. Após seis anos de um reinado penoso, cheio de distúrbios, de dificuldades e de reveses, dava ao reino, que estaria por demais disposto a segui-lo, o exemplo do ódio e da violência. Em menos de seis meses iria percorrer o caminho das verdadeiras desgraças, e a França com ele.

 

                       A primavera perdida

                                   O cão e o raposo

Ah!, como me sinto bem, verdadeiramente bem, por haver revisto Auxerre. Não esperava que Deus me concedesse essa graça, nem que eu a desfrutaria tanto. Rever os lugares que abrigaram alguns momentos de nossa juventude sempre comove o coração. Conhecerás esse sentimento, Archambaud, quando os anos se acumularem em tua vida. Se te acontecer ter que atravessar Auxerre, quando tiveres a minha idade... que Deus queira conservar-te até lá... “Estive aqui com meu tio, o cardeal, que foi bispo desta cidade, sua segunda diocese, antes de receber o chapéu de cardeal... Acompanhava-o a Metz, onde iria ver o imperador... “

Residi aqui três anos, três anos... oh!, não vás agora pensar que tenho saudade desse tempo e que teria tido mais prazer em viver quando era bispo de Auxerre do que desfruto hoje. Para te dizer a verdade, estava nessa época impaciente para partir daqui. Tinha os olhos voltados para os lados de Avignon, sabendo muito bem que era muito jovem; mas, enfim, sentia que Deus havia depositado em mim o caráter e os recursos de espírito que podiam Lhe proporcionar melhor emprego na corte pontifícia. A fim de me conservar tranqüilo, aperfeiçoei-me cada vez mais na ciência da astrologia; e foi justamente meu aperfeiçoamento nessa ciência que decidiu meu benfeitor João XXII a me impor o chapéu cardinalício quando não tinha mais do que trinta anos. Mas já te contei isso... Ah!, meu sobrinho, com um homem que viveu muito, é preciso se habituar a ouvir várias vezes as mesmas coisas. Não é porque tenhamos a cabeça mais fraca quando somos velhos; porém ela está repleta de recordações que vêm à mente em toda espécie de circunstâncias. A mocidade enche o tempo futuro com a imaginação; a velhice refaz o tempo passado com a memória. As coisas são iguais... Não, não tenho saudades. Quando faço uma comparação entre o que fui e o que sou, só tenho razões para louvar o Senhor, e louvar a mim mesmo, na minha modesta honestidade. Simplesmente, é o tempo que se escoou da mão de Deus e que não existirá mais quando tiver deixado de me recordar. Salvo na Ressurreição, onde teremos todos os nossos momentos reunidos. Mas isso ultrapassa o meu entendimento. Creio na Ressurreição, prego essa convicção, mas não ouso imaginá-la, e afirmo que são bastante orgulhosos aqueles que põem em dúvida a Ressurreição... Mas seguramente, mas seguramente, há mais pessoas do que imaginas... que são incapazes de imaginá-la. O homem é comparável a um cego que nega a luz porque não a consegue ver. A luz é um grande mistério para o cego!

Vê... poderei pregar a respeito disso em Sens no domingo. Porque devo pronunciar a homilia. Sou arcediago da catedral. É a razão pela qual me vejo na obrigação deste desvio. O caminho seria mais curto por Troyes, mas preciso inspecionar o capítulo de Sens.

Isso não me impede o prazer de prolongar um pouco mais a estada em Auxerre. Estes dois dias passaram muito depressa... Saint-Étienne, Saint-Germain, Saint-Eusèbe, todas essas belas igrejas em que celebrei missas, casamentos e comunhões... Bem sabes que Auxerre, “Autissidurum”, é uma das mais antigas cidades cristãs do reino, que ela foi sede de bispado duzentos anos antes de Clóvis, o qual, de resto, a arrasou tanto, quase como o fez Átila, e que aqui houve um concilio antes do ano 600... Meu maior cuidado, todo o tempo que passei à frente da diocese, foi o de liquidar as dívidas deixadas por meu antecessor, o bispo Pedro. E nem poderia reclamar nada dele; acabava de ser nomeado cardeal! Sem dúvida, sem dúvida um bom posto, que é como a antecâmara da cúria... Meus vários proventos e também a fortuna de nossa família ajudaram-me a tapar os buracos. Meus sucessores encontraram uma situação melhor. E este de hoje nos faz companhia, presentemente. É um excelente prelado, este novo monseigneur d’Auxerre... Mas devolvi monseigneur de Bourges... para Bourges. Acabava mais uma vez de me puxar pela batina para que lhe concedesse um terceiro tabelião. Oh!, era demais. Disse-lhe: “Monseigneur, se precisais de tantos tabeliães é que vossos negócios episcopais estão muito embrulhados. Ordeno-vos que volteis imediatamente e cuideis pessoalmente dessas dificuldades. Com a minha bênção”. E dispensaremos sua presença em Metz. O bispo de Auxerre substituí-lo-á vantajosamente... Preveni, aliás, o delfim. O mensageiro que lhe desl’Arcei ontem deverá estar de volta amanhã, ou depois de amanhã, o mais tardar. Teremos então notícias de Paris antes de deixarmos Sens... O delfim não cede; apesar de toda espécie de manobras e de pressões que exercem sobre ele, mantém o rei de Navarra na prisão...

O que fizeram nossos homens da França depois do caso de Rouen? Primeiro, o rei permaneceu lá alguns dias, morando no torreão fortificado de Bouvreuil, enquanto enviava seu filho para alojar-se numa outra torre do castelo e mandava manter Navarra numa terceira. Pensava ter diversos negócios para cuidar. Em primeiro lugar, submeter Fricamps a um inquérito. “Vamos fritar Friquet.” Quem inventou essa brincadeira, creio, foi Mitton le Fol. Não havia necessidade de acender muitos fogos, nem de empunhar as tenazes. Assim que Perrinet le Buffle e outros quatro sargentos o levaram para um porão e manejaram alguns instrumentos diante dele, o governador de Caen deu provas de muito boa vontade. Falou, falou, falou, despejando seu saco para se desfazer das menores migalhas. Aparentemente. Mas como duvidar de que ele dissesse tudo quando batia tão bem os queixos e demonstrava tanto cuidado para com a verdade?

E o que denunciou realmente? Os nomes dos que participaram do assassinato de Carlos de Espanha? Há muito tempo já eram conhecidos, e não acrescentou nenhum culpado àqueles que tinham recebido, após o Tratado de Mantes, suas cartas de indulto. No entanto, seu relato levou uma manhã inteira. As confabulações secretas, na Flandres e em Avignon, entre Carlos de Navarra e o duque de Lancastre? Não havia nenhuma corte na Europa que as ignorasse; e o próprio Fricamps pouco acrescentou ao seu conteúdo. A assistência de guerra que os reis da Inglaterra e de Navarra se haviam mutuamente prometido? As pessoas menos espertas já tinham tido conhecimento disso, no verão precedente, vendo desembarcar quase ao mesmo tempo Carlos, o Mau, em Contentin, e o príncipe de Gales em Bordelais. Ah!, certamente, havia o tratado secreto pelo qual Navarra reconhecia o rei Eduardo como rei da França e pelo qual faziam a partilha do reino! Fricamps concordou que tal acordo havia sido preparado, o que dava razão às acusações aventadas por João d’Artois. Mas o tratado não tinha sido assinado; tratava-se apenas das preliminares. Quando lhe contaram esta parte da deposição de Friquet, o rei João gritou: “O traidor, o traidor! Tinha ou não razão?”

O delfim fez esta observação: “Meu pai, este projeto era anterior ao Tratado de Valognes, que Carlos assinou convosco e que reza absolutamente o contrário. Quem, portanto, Carlos traiu foi o rei da Inglaterra e não o rei da França”.

E como o rei João berrasse que seu genro traía todo mundo: “Certamente, meu pai”, respondeu o delfim, “e começo a convencer-me disso. Mas me parece estranho acusá-lo por ter traído precisamente em vosso proveito”.

Sobre a escapada da Alemanha, que nem Navarra nem o delfim tinham chegado a cumprir, Friquet de Fricamps não escondeu nada. Os nomes dos conjurados, o local em que se reuniram e quem teve que falar e a quem, e quem deveria fazer o quê... Mas de tudo isso o delfim já tinha dado conhecimento a seu pai.

Uma nova conspiração preparada por monseigneur de Navarra com o intuito de apoderar-se do rei da França e matá-lo? Ah, não, Friquet não ouvira falar nisso absolutamente, e nem descobrira nenhum indício. Certamente, o conde d’Harcourt... acusando a um morto, o suspeito nada arriscava, é assunto conhecido na justiça... o conde d’Harcourt andava muito enfurecido nos últimos meses e pronunciava palavras ameaçadoras; mas apenas ele, e por sua própria conta.

Como não acreditar num homem, repito, tão complacente para com seus acusadores, que falara durante seis horas a fio, sem deixar aos secretários o tempo de aparar suas penas? Um espertalhão, esse Friquet, formado na escola do seu mestre, submergindo o mundo numa inundação de palavras e fingindo-se de tagarela, para melhor dissimular o que lhe interessava calar! De qualquer maneira, para poder fazer uso de suas declarações num processo, seria preciso recomeçar seu interrogatório em Paris, perante uma comissão de inquérito devidamente constituída, porque esta não estava preparada. Em suma, tinham atirado uma grande rede para apanhar bem pouco peixe.

Nesses mesmos dias, o rei João ocupava-se em reaver os títulos e os bens dos traidores e despachava de Rouen seu visconde, Tomás Coupeverge, a fim de se apoderar das propriedades dos D’Harcourt, enquanto enviava o marechal d’Audrehem para investir sobre Évreux. Mas, em toda parte, Coupeverge caiu sobre posseiros pouco amenos, e o seqüestro ficou apenas nominal. Teria sido preciso deixar uma guarnição em cada castelo; mas ele não havia levado consigo homens de armas. Em compensação, o enorme corpo decapitado de João d’Harcourt não ficou muito tempo exposto no patíbulo de Rouen. Na segunda noite, foi retirado secretamente por bons normandos; que lhe deram sepultura cristã, ao mesmo tempo em que manifestavam pouca consideração em relação ao rei.

Quanto à cidade de Évreux, foi preciso submetê-la ao cerco. Mas não era o único feudo dos Évreux-Navarra. De Valognes a Meulan, de Longueville a Conches, de Pontoise a Coutances, havia ameaça nos burgos, e as sebes, ao longo das estradas, estremeciam.

O rei João não se sentia em segurança em Rouen. Tinha vindo com uma tropa bastante forte para assaltar um banquete, mas não para fazer frente a uma revolta. Evitava sair do castelo. Seus servidores mais fiéis, entre os quais o próprio João d’Artois, aconselhavam-no a se afastar. Sua presença excitava a cólera.

Um rei que acaba tendo medo de seu povo é um pobre sire, cujo reino se arrisca bastante a ser abreviado.

João II decidiu então voltar a Paris; mas desejava que o delfim o acompanhasse. “Não estareis mais em segurança, Carlos, se houver tumulto no vosso ducado.” Temia sobretudo que seu filho mostrasse muita complacência para com o partido navarrês.

O delfim consentiu, conquanto pudesse viajar pelo rio. “Estou acostumado, meu pai, a ir de Rouen a Paris pelo Sena. Se o fizesse de outra forma poderiam pensar que fugi. Por outro lado, afastando-nos lentamente, as notícias nos chegarão mais facilmente, e se exigirem que eu volte, terei mais comodidade para fazê-lo.”

E eis então o rei embarcando no grande lin, que o duque da Normandia ordenou expressamente para seu uso, porque, como já te disse, não gostava de cavalgar. Um grande barco de fundo chato, inteiramente decorado, arvorando as bandeiras da França, da Normandia e do Delfinado, e que se manobra tanto a vela como com remos. O castelo foi arrumado como uma autêntica moradia, com um belo quarto mobiliado com tapetes e arcas. O delfim gosta de conversar familiarmente com seus conselheiros, jogar xadrez ou damas, ou contemplar a região, que tem tanta beleza, ao longo daquele grande rio. Mas o rei não gostava de viajar nessa calmaria. Que idéia tola essa de acompanhar todas as curvas do Sena, que triplicam o comprimento do percurso, quando há estradas que o diminuem! Não podia se agüentar naquele espaço estreito que media a passadas largas, ditando uma carta, uma única, sempre a mesma, que retomava e remodelava ininterruptamente. E a cada instante ter que atracar, que patinhar na vasa dos desembarcadouros, tendo que limpar suas grandes polainas nas margaridas e mandar vir seu cavalo, que o acompanhava com a escolta ao longo das margens escarpadas, para ir visitar, sem nenhum motivo, um castelo apercebido entre os olmos. “E que a carta seja recopiada na minha volta.” Tratava-se de sua carta ao papa, pela qual queria explicar as causas e as razões da prisão do rei de Na varra. Havia outros negócios no reino? Ninguém pensava que houvesse. Em todo caso, nenhum que devesse requerer seus cuidados. A má coleta dos auxílios, a necessidade de desvalorizar a moeda novamente, a taxa sobre os tecidos de lã, que causava a cólera do comércio, a reparação das fortalezas ameaçadas pelo Inglês; esquecia essas angústias. Não tinha um chanceler, um governador das moedas, um mordomo real, juizes relatores de processos de petição e presidentes no Parlamento para cuidar disso tudo? Que Nicolas Braque, que já havia partido para Paris, Simon de Bucy ou Roberto de Lorris se desincumbissem de suas tarefas. Eles, na verdade, se desincumbiam delas, aumentando suas fortunas, manejando tribunais, abafando o processo de um parente, favorecendo um amigo, descontentando terrivelmente tal companhia comercial, tal cidade ou tal diocese, que jamais perdoariam isso ao rei.

Um soberano que, por um lado, pretende zelar tanto por tudo, até nos menores regulamentos de cerimônias e, por outro, não se incomoda com coisa alguma, nem mesmo com as questões mais importantes, não é homem que conduza seu povo para altos destinos.

A nave delfínica estava ancorada em Pont-de-l’Arche, no segundo dia, quando o rei viu chegar o preboste dos comerciantes de Paris, mestre Estevão Marcel, cavalgando à frente de cinqüenta a cem lanças, sobre as quais flutuava a bandeira azul e vermelha da cidade. Aqueles burgueses estavam mais bem equipados do que muitos cavaleiros.

O rei não desceu do barco e não convidou o preboste a subir. Falaram-se de onde estavam, tão surpreso um quanto o outro de se encontrarem assim lado a lado. O preboste não esperava visivelmente encontrar o rei naquele local, e o rei pensava no que o preboste teria vindo fazer na Normandia com tal equipamento. Havia seguramente intriga navarresa naquilo tudo. Seria uma tentativa para libertar Carlos, o Mau? A coisa parecia bem arrumada, somente uma semana depois da prisão. Mas, enfim, tudo era possível. Ou o preboste estaria interessado na conspiração denunciada por João d’Artois? A maquinação, nesse caso, teria alguma verossimilhança.

“Viemos trazer-vos nossas saudações, sire”, disse apenas o preboste. O rei, em lugar de esperar que o outro falasse, respondeu-lhe logo, num tom ameaçador, que cumprira seu dever ao prender o rei de Navarra, contra o qual havia graves acusações, e que tudo seria explicado às claras na carta que enviava ao papa. Disse ainda o rei João que esperava encontrar sua cidade de Paris em ordem e em calma suficiente e trabalhando, quando a ela voltasse... “e agora, messire preboste, podeis retirar-vos”.

Caminho longo para tão pouca conversa. Estevão Marcel retirou-se, com seu tufo de barba negra bem plantado sobre o queixo. E o rei, assim que viu o pavilhão de Paris afastar-se entre os salgueiros, mandou seu secretário modificar uma vez mais a carta ao papa... É verdade, a propósito... Brunet? Brunet! Brunet, chama até aqui dom Calvo... sim, por favor... ditando qualquer coisa como “E assim, mui Santo Padre, tenho provas de que o senhor rei de Navarra tentou sublevar contra mim os negociantes de Paris, entrando em conluio com seu preboste, que veio sem ordem expressa até a região normanda, acompanhado de enorme guarnição de homens de armas, difícil de se avaliar, a fim de ajudar os malvados do partido navarrês a completar sua felonia, pelo seqüestro da minha pessoa e a do senhor delfim meu primogênito...”

A cavalgada de Marcel iria aliás aumentar cada vez mais na sua cabeça e, dentro em breve, contaria com quinhentas lanças.

E em seguida decidiu livrar-se logo desse gravame e, mandando retirar Navarra e Fricamps do castelo de Pont-de-l’Arche, ordenou aos marinheiros que navegassem em direção de Les Andelys. Porque o rei de Navarra vinha a cavalo, de parada em parada, acompanhado de uma grande escolta de sargentos que o vigiavam cuidadosamente e tinham ordem de apunhalá-lo se tentasse fugir ou se houvesse alguma tentativa para libertá-lo. Devia permanecer sempre à vista do barco. À noite, encerravam-no na torre mais próxima. Tinham-no encerrado em Elbeuf, tinham-no encerrado em Pont-de-l’Arche. Iam encerrá-lo em Château-Gaillard... sim, em Château-Gaillard, precisamente onde sua avó de Borgonha acabara tão cedo os seus dias... sim, mais ou menos com a mesma idade.

Como suportava tudo isso monseigneur de Navarra? Para dizer a verdade, muito mal. Sem dúvida, atualmente ele está mais acostumado à sua condição de prisioneiro, principalmente depois que soube que o próprio rei da França é prisioneiro do rei da Inglaterra e que por causa disso não deve temer pela sua vida. Mas nos primeiros tempos...

Ah!, eis que chega dom Calvo. Lembrai-me se no Evangelho de domingo próximo existe o vocábulo “luz” ou qualquer outro que recorde a idéia... sim, o segundo domingo do Advento. Seria surpreendente não encontrá-lo... ou na epístola... A do último domingo, evidentemente... “Abjiciamus ergo opera tenebrarum, et induamur armas lucis...” Rejeitemos pois as obras das trevas e vistamo-nos das armas da luz... 1 Mas era o domingo anterior. Também não vos recordais exatamente. Está bem, me direis daqui a pouco; sou-vos agradecido...

Uma raposa presa na armadilha, andando à roda, enfurecida na sua jaula, com os olhos ardentes, o focinho fremente, o corpo emagrecido, e ganindo, e ganindo... É assim que se achava o nosso monseigneur de Navarra. Mas é necessário dizer que tudo faziam para torturá-lo.

Nicolas Braque obtivera o adiamento da execução afirmando que seria preciso que o rei de Navarra se sentisse morrer todos os dias; isso não caíra em ouvidos moucos.

Não somente o rei João havia ordenado que ele fosse preso no aposento em que havia morrido a senhora Margarida de Borgonha, e que o fizessem estar a par desse fato... “a impudicícia dessa avó degenerada foi que produziu essa raça maldita; ele não é mais do que o rebento de uma repulsiva prostituta; é preciso que pense que seu fim será igual ao dela... “, e por acréscimo, durante os dias que o retiveram ali, foi-lhe anunciado várias vezes, e até de noite, que sua morte era iminente.

Carlos de Navarra via entrar na sua triste moradia o rei dos ribaldos, ou mesmo Le Buffle ou qualquer outro sargento para lhe dizer: “Preparai-vos, senhor. O rei determinou que se erguesse o vosso cadafalso no pátio do castelo. Viremos buscar-vos daqui a pouco”. Logo em seguida, era o sargento Lalemant que aparecia e encontrava Navarra, com

 

1 São Paulo, Epístola aos Romanos, 13-12. (N. do T.)

 

as costas coladas à parede, ofegante e de olhos enlouquecidos. “O rei decidiu adiar vossa execução; sereis executado depois de amanhã.” Então Navarra retomava alento e desabava no seu escabelo. Uma ou duas horas se passavam, voltavam novamente Perrinet le Buffle. “O rei não irá decapitar-vos, senhor. Não... Deseja que sejais enforcado. Mandou preparar a forca.” E depois, uma vez soado o àngelus, era a vez do governador do castelo, Gautier de Riveau. “Vindes me buscar, messire governador?” “Não, senhor, venho trazer-vos a vossa ceia.” “Já levantaram a forca?” “Que forca? Não, senhor, não prepararam nenhuma forca.” “Nem o cadafalso?” “Não, senhor, não vi nada disso.”

Por seis vezes, monseigneur de Navarra havia sido degolado, outras tantas vezes enforcado ou esquartejado por quatro cavalos. Talvez o pior momento foi quando trouxeram uma noite, ao seu quarto, um grande saco de cânhamo, dizendo-lhe que seria encerrado nele durante a noite para ser jogado ao Sena. Na manhã seguinte, o rei dos ribaldos veio retomar o saco, revirou-o, viu que monseigneur de Navarra tinha feito nele um buraco e foi-se embora, sorrindo.

O rei João pedia sem parar notícias do prisioneiro. Isso lhe trazia certa calma, enquanto preparava a carta para o papa. O rei de Navarra se alimentava? Não, mal tocava nas refeições que lhe traziam, e seus talheres voltavam como tinham vindo. Seguramente tinha receio de veneno. “Então, vai emagrecer? Muito bom, muito bom. Fazei com que suas comidas sejam amargas e malcheirosas, a fim de que pense que o querem envenenar.” Ele dorme? Mal. Durante o dia encontravam-no muitas vezes prostrado em cima da mesa com a cabeça escondida nos braços e sobressaltado como quem fosse acordado subitamente. Mas à noite ouviam-no andar ininterruptamente no aposento circular... “como uma raposa, sire, como uma raposa”. Sem dúvida temia que o viessem estrangular, como haviam feito com sua avó, nesse mesmo aposento. Em certas manhãs percebia-se que tinha chorado. “Está bem, está bem”, dizia o rei. “E ele vos fala?” Oh!, certamente, falava! Procurava entabular conversa com aqueles que penetravam no seu quarto. E procurava enredar alguém no seu ponto fraco. Ao rei dos ribaldos, prometia uma montanha de ouro se o ajudasse a fugir, ou somente consentisse em lhe passar cartas para fora. Ao sargento Perrinet, propôs levá-lo e fazê-lo seu rei dos ribaldos em Évreux e em Navarra, porque tinha descoberto que Le Buffle tinha ciúme do outro. Perante o governador das fortalezas, que tinha julgado soldado leal, advogava a inocência e a injustiça. “Não sei do que me acusam, porque juro por Deus que não tenho nenhum mau pensamento contra o rei, meu querido pai, nem empreendi coisa alguma para prejudicá-lo. Ele se deixou enganar a meu respeito por pessoas pérfidas. Quiseram me perder em seu conceito; mas suporto qualquer condenação que me queiram imputar, porque sei perfeitamente que nada parte verdadeiramente de sua pessoa. Há muitas coisas em que eu poderia instruí-lo utilmente para sua salvaguarda, inúmeros serviços que lhe posso prestar, e que não lhe prestarei, se me condena à morte. Ide até ele, messire governador, ide lhe dizer que terá grande vantagem em me ouvir. E se Deus quiser que eu consiga de novo minha fortuna, podeis estar certo que pensarei na vossa, porque vejo que me compadeceis tanto quanto tendes cuidado em relação à verdadeira felicidade de vosso mestre.”

Isso tudo era seguramente relatado ao rei, que invectivava: “Vede o desleal! Vede o traidor!”, como se não fosse regra entre todos os prisioneiros procurar enternecer seus carcereiros ou suborná-los. É possível que os sargentos insistissem um pouco nas ofertas do rei de Navarra, a fim de se valorizarem. O rei João atirou-lhes uma bolsa de ouro em reconhecimento de sua lealdade. “Esta noite fingireis que determinei o reaquecimento de sua prisão e queimareis palha e madeira molhada, tapando a chaminé para que o ambiente fique bastante enfumaçado.”

Na verdade, era uma raposa presa na armadilha, o pequeno rei de Navarra. O rei da França, porém, era como um canzarrão furioso, correndo em torno da jaula, um mastim barbudo, espinhaço eriçado, rosnando, latindo, arreganhando os dentes, raspando a poeira sem poder atingir sua presa através das barras de ferro.

E isso continuou assim até 20 de abril, quando surgiram em Les Andelys dois cavaleiros normandos, muito dignamente escoltados e que arvoravam em seu pendão as armas de Navarra e de Évreux. Traziam ao rei João uma carta de Filipe de Navarra, datada de Conches. Carta bastante dura. Filipe afirmava estar bastante indignado devido às grandes ofensas e injúrias assacadas contra o seu senhor e irmão mais velho... “que aprisionais sem lei, direito, nem razão. Mas sabei que não deveis pensar na sua herança nem na nossa, fazendo-o perecer por vossa crueldade, porque jamais conseguireis coisa alguma. Desde este dia, desafiamo-vos, a vós e a todo o vosso poderio, e vos declaramos guerra mortal, a maior que nos for possível”. Se não foram essas exatamente as palavras, em todo caso é exatamente esse o seu sentido. Tudo estava ali determinado com absoluta dureza; e a intenção do desafio estava patente. E o que tornava a carta ainda mais severa é que fora endereçada a “João de Valois, que se julga rei da França... “

Os dois cavaleiros apresentaram suas saudações e sem mais delongas deram meia-volta em seus cavalos e foram embora como tinham chegado.

É evidente que o rei não deu resposta a essa carta. Era inaceitável, além do mais pelo seu endereço. Mas a guerra estava declarada, e um dos maiores vassalos não reconhecia mais o rei João como legítimo soberano. O que significava que não tardaria a reconhecer o Inglês.

Esperava-se que uma ofensa tão grande pusesse o rei João numa raivosa fúria. Mas ele surpreendeu todo mundo com a risada com que a acolheu. Uma risada um pouco forçada. Seu pai também tinha rido, e com grande satisfação, vinte anos antes, quando o bispo Burghersh, chanceler da Inglaterra, lhe trouxera o desafio do jovem Eduardo III...

O rei João ordenou que se expedisse a carta ao papa, imediatamente, na forma como estava; por havê-la remanejado tanto não tinha mais sentido e nem provava absolutamente nada. Ao mesmo tempo, ordenou que seu genro saísse da fortaleza. “Vou enclausurá-lo no Louvre!” E deixando o delfim subir o Sena no grande lin dourado, tomou o caminho de Paris a galope. Onde não fez nada de mais, enquanto o clã Navarra se punha em grande atividade.

Ah!, não havia pressentido que tínheis voltado, dom Calvo... Então, encontraste... no Evangelho... Jesus lhes respondeu... o que mesmo? Ide e anunciai a João as coisas que ouvis e vedes. Falai mais alto, dom Calvo. Com este barulho da cavalhada... Os cegos vêem, os coxos andam... Sim, perfeitamente, já sei. São Mateus. Caeci vident, claudi ambulant, surdi audiunt, mortui resurgunt et coetera... 1 Os cegos vêem. Não é muito, mas isto me basta. Trata-se de poder encaixar na minha homilia. Bem sabeis como eu trabalho.

 

1 São Mateus, 11-4 e 5. O texto exato e completo do Evangelho é o seguinte: “5. Caeci vident, claudi ambulant, leprosi mundantur, surdi audiunti, mortui resurgunt, pauperes evangelizantur”. (N. do T.)

 

                   A nação da Inglaterra

Dizia-te ainda há pouco, Archambaud, que o partido navarrês estava em grande atividade. Desde o dia seguinte ao banquete de Rouen, mensageiros tinham partido em todas as direções. Primeiro em direção à tia e à irmã, as senhoras Joana e Branca; o castelo das rainhas viúvas pôs-se em movimento como se fosse uma oficina de tecelões. Depois, em direção ao cunhado, Phoebus... É preciso que te fale a seu respeito; é um príncipe muito particular, mas nada negligenciável. E como nosso Périgord é, antes de tudo, menos distante do seu Béarn do que de Paris, não seria nada mau que, algum dia... Tornaremos a falar nisso mais tarde. Em seguida, Filipe d’Évreux, que assumira todos os encargos e substituía muito bem seu irmão, expediu de Navarra a ordem para convocar as tropas e encaminhá-las por mar o mais breve possível, enquanto Godofredo d’Harcourt organizava os homens do seu partido na Normandia. E, sobretudo, Filipe despachou para a Inglaterra os sires de Morbecque e de Brévand, que haviam participado das negociações anteriores, a fim de solicitar ajuda.

O rei Eduardo acolheu-os um tanto friamente. “Aprecio a lealdade nos acordos, e que a conduta corresponda ao que disse a boca. Sem confiança entre reis que se aliam não há empresa que se possa encaminhar decentemente. No ano passado abri minhas portas aos vassalos de monseigneur de Navarra; preparei convenientemente as tropas sob as ordens do duque de Lancastre, as quais apoiaram as suas. Estávamos bastante avançados na preparação de um tratado que devia ser firmado entre nós; devíamos combinar uma aliança perpétua e empenhar-nos a jamais fazer a paz, trégua nem acordo separadamente. E contudo monseigneur de Navarra, tendo desembarcado em Contentin, aceita tratar com o rei João, jura-lhe fidelidade e lhe presta vassalagem. Se no momento está na prisão, se seu sogro o tomou como refém por um golpe de traição, a culpa não é minha. E antes de mandar-lhe socorro, gostaria de saber se meus parentes D’Ëvreux só me procuram na desgraça, para se voltarem depois para os outros, tão depressa quanto eu os afastei deles.”

Não obstante, tomou suas disposições: chamou o duque de Lancastre e determinou que iniciasse os preparativos de uma nova expedição, ao mesmo tempo em que mandava instruções ao príncipe de Gales, em Bordeaux. E como teve conhecimento pelos enviados navarreses de que João II o responsabilizava pelas acusações levantadas contra seu genro, mandou cartas ao Santo Padre, ao imperador e a diversos príncipes cristãos, em que negava qualquer conivência com Carlos de Navarra, mas por outro lado reprovava severamente João II pela sua falta de fé e pela sua maneira de proceder, que, “para honra da cavalaria”, gostaria de nunca ter presenciado num rei.

Sua carta ao papa levou menos tempo do que a do rei João, e podes acreditar que foi muito bem redigida.

Não nos estimamos, o rei Eduardo e eu; ele me julga muito favorável, sempre, aos interesses da França, e, quanto a mim, tenho Sua Majestade na conta de pouco respeitoso relativamente ao primado da Igreja. De cada vez que nos avistamos acabamos nos entrechocando. Ele desejaria ter um papa inglês, ou, de preferência, nenhum papa. Mas reconheço que é, em relação ao seu país, um príncipe excelente, hábil, prudente quanto deve ser, audacioso quando pode. A Inglaterra lhe deve muito. E, além disso, embora não tenha mais do que quarenta e quatro anos, goza do respeito que envolve um velho rei quando foi um bom rei. A idade dos soberanos não se mede pelo seu nascimento, mas pela duração do seu reino.

Sob esse ponto de vista, o rei Eduardo parece um ancião entre todos os príncipes do Ocidente. O papa Inocêncio só é o supremo pontífice há quatro anos; o imperador Carlos, eleito há dez anos, só foi coroado há dois. João de Valois celebrou precisamente... no cativeiro, triste comemoração... o sexto aniversário de sua sagração. Mas Eduardo III ocupa seu trono há vinte e nove anos, quase trinta.

É um homem de bela estatura e de grande presença, bastante corpulento. Tem longos cabelos loiros, uma barba acetinada e bem-tratada, olhos azuis um pouco grandes; um autêntico Capeto. Parece-se muito com Filipe, o Belo, seu avô, do qual herdou mais de uma qualidade. É pena que o sangue de nossos reis tenha dado um excelente produto na Inglaterra e um tão pífio na França. Com a idade, parece cada vez mais devotado ao silêncio, como seu avô. Que queres? Há trinta anos vê os homens inclinarem-se diante dele. Sabe muito bem pelo seu procedimento, pelo seu olhar, pelo seu modo de falar, o que esperam dele, o que lhe vão pedir, que ambições os animam e o que valem para o Estado. É breve nas ordens. “Quanto menos se pronunciam palavras, menos elas são repetidas e menos são adulteradas”, é o que ele diz.

Adquiriu perante a Europa um grande renome. A Batalha da Écluse, o cerco de Calais, a vitória de Crécy... Ë o primeiro, passado um século, que derrotou a França, ou melhor, seu rival francês, porque ele diz que não empreendeu essa guerra apenas para afirmar seus direitos quanto à coroa de São Luís. Mas também para se apoderar das províncias mais prósperas.

Não decorre um ano e desembarca suas tropas no continente, não só em Boulonnais como também na Bretanha, e ainda ordena, como nesses dois últimos verões, uma investida a partir do seu ducado da Guyenne.

Outrora comandava pessoalmente os seus exércitos, e daí lhe adveio uma bela reputação de guerreiro. Presentemente não acompanha mais suas tropas. Entrega o comando a bons capitães, adestrados em sucessivas campanhas, mas acredito que deva sobretudo seus êxitos ao fato de manter um exército permanente, composto em sua maior parte por peões que, além de estarem sempre disponíveis, lhe custam menos dinheiro do que essas hostes pesadas, que se convocam com grandes despesas e que são depois dissolvidas, que é preciso reconvocar, jamais com tempo suficiente, que são equipadas sem muito nexo e cujas partes não sabem se engrenar para se conduzir em combate.

É muito bonito afirmar: “A pátria está em perigo. O rei nos convoca. Todos devem se alistar!” Com o quê? Com bastões? Tempo virá em que cada rei deverá tomar como modelo o da Inglaterra e conduzirá a guerra com o pessoal do ofício, bem remunerado, que marcha para onde mandam seus comandantes, sem tugir nem mugir.

Vê bem, Archambaud, não é necessário que um reino seja muito extenso nem muito populoso para se tornar potente. É preciso somente que tenha um povo capaz de intrepidez e de esforço, e que seja por muito tempo conduzido por um chefe prudente, que saiba lhe propor grandes ambições.

De um país que contava somente seis milhões de almas, Incluindo Gales, antes da grande peste, e quatro milhões depois do flagelo, Eduardo III fez uma nação próspera e temida, que fala de igual para igual com a França e com o império. O comércio de lãs, o tráfico marítimo, a posse da Irlanda, uma boa exploração da abundante Aquitânia, os poderes reais em toda parte exercidos e obedecidos, um exército sempre à disposição e sempre ocupado; é graças a isso que a Inglaterra é tão forte e tão rica.

O próprio rei possui bens imensos; diz-se que não saberia a quanto monta sua fortuna, mas eu bem sei que ele a conhece, caso contrário não a teria. Começou há trinta anos, quando recebeu como herança um Tesouro vazio e dívidas em toda a Europa. Hoje recorrem a ele para obter empréstimos. Reconstruiu Windsor; embelezou Westminster... ou, se preferes, Westmoutiers; de tanto andar por lá acabei pronunciando à inglesa, porque, é uma coisa curiosa, à medida que se empenham em conquistar a França, os ingleses, mesmo os da corte, falam cada vez mais sua língua saxônica e cada vez menos a francesa... Em cada uma de suas residências, o rei Eduardo acumula maravilhas. Compra bastante dos negociantes lombardos e dos navegantes cipriotas, não somente especiarias do Oriente, mas também toda espécie de objetos bem trabalhados, que fornecem modelos para as suas indústrias.

A propósito de especiarias, devo entreter-te sobre a pimenta, meu sobrinho. É um excelente investimento. A pimenta não se altera, seu valor como mercadoria não parou de crescer nestes últimos anos, e tudo leva a crer que vai continuar. Possuo num entreposto de Montpellier uma partida de pimenta que adquiri por dez mil florins, como reembolso da metade de uma dívida de um comerciante lá do sul, que se chama Pedro de Rambert e que não conseguia saldar seus compromissos em Chipre. Como seu cônego de Nicósia... sem nunca ter ido lá, sem nunca ter ido lá, infelizmente, repito, porque essa ilha tem grande reputação de beleza... consegui assim arranjar o negócio dele... Mas voltemos ao nosso sire Eduardo.

Mesa de rei em sua casa não é vocábulo qualquer, e quem a ela se senta pela primeira vez fica com a respiração suspensa diante da profusão de ouro que ostenta. Um veado de ouro quase do tamanho de um natural é a decoração central. Grandes taças, os canjirões, jarros para água, pratos, colheres, facas, saleiros, tudo isso em ouro. Os encarregados da cozinha gastam em cada serviço tanto quanto custaria a emissão de moeda de um condado. “Se por desventura estivermos em dificuldade, poderemos vender tudo isso”, diz ele. Mas nos momentos de aperto... que Tesouro não sabe disso? ... Eduardo está sempre seguro de obter crédito, porque todo mundo sabe que possui riquezas. Perante seus súditos, ele próprio comparece soberbamente enfeitado, coberto de peliças preciosas e de roupas bordadas, brilhando com tantas jóias e calçado com esporas de ouro.

Nessa ostentação de esplendores, Deus não é esquecido. Só na Capela de Westminster estão em serviço catorze vigários, aos quais se acrescentam os clérigos coristas e todos os serviçais da sacristia. Para enfrentar o papa, que afirma estar sujeito aos franceses, multiplica os empregos da Igreja e exige que só sejam conferidos a ingleses, sem nenhuma compensação para com a Santa Sé, assunto sobre o qual freqüentemente nos entrechocamos.

Com a graça de Deus, a família de Eduardo III conta dez crianças vivas. O filho mais velho, príncipe de Gales e duque da Aquitânia, como sabes, tem vinte e seis anos. O mais moço, o conde de Buckingham, acaba de deixar o seio de sua ama.

Para todos esses filhos, o rei Eduardo constitui casas imponentes; para suas filhas, procura altos estabelecimentos que possam satisfazer seus desígnios.

Garanto que para o rei Eduardo seria muito fastidioso viver se não tivesse sido designado pela Providência para ser o mais apto ao seu destino: governar. É claro que teria pouco interesse em viver, envelhecer, olhar a vinda da morte, se não tivesse que arbitrar as paixões dos outros e lhes designar os fins que os ajudassem a esquecê-las. Porque os homens não dariam valor nem honra ao viver se não dedicassem seus pensamentos a alguma grande empresa, com a qual pudessem confundir-se.

Foi isso o que o inspirou quando criou em Calais a Ordem da Jarreteira, uma ordem que prospera e da qual esse pobre João II, com sua Estrela, só produziu uma cópia, no começo pomposa, e depois cada vez mais pífia...

E é ainda a essa vontade de grandeza que o rei Eduardo atende quando alimenta o projeto, não realizado mas visível, de uma Europa inglesa. Não que sonhe em colocar o Ocidente diretamente debaixo de sua mão, ou que deseje conquistar todos os reinos e submetê-los à servidão. Não; pensa antes de tudo num livre agrupamento de reis ou de governos no qual teria precedência e comando, sendo que não somente faria reinar a paz no interior dessa combinação harmônica, mas ainda não teria nada a temer do lado do império, mesmo se não o englobasse. Nem mais nada a dever à Santa Sé; suponho que nutre secretamente essa intenção... Já conseguiu com a Flandres, que destacou da França; intervém nos negócios da Espanha; estende suas garras no Mediterrâneo. Ah!, se ele tivesse a França, pode-se imaginar o que não faria, o que não conseguiria fazer a partir daí! Sua idéia, aliás, não é inteiramente nova. O rei Filipe, o Belo, seu avô, tinha sonhado com um projeto de paz perpétua, para unir a Europa.

Eduardo se compraz em falar francês com os franceses, inglês com os ingleses. Pode-se dirigir aos flamengos na sua língua, o que lhes causa muito orgulho e lhe tem valido muito êxito entre eles. Com os demais, fala em latim.

Dirás, então: sendo ele um rei tão dotado, tão capaz e que a fortuna acompanha, por que não entrar em acordo com ele e lhe favorecer as pretensões em relação à França? Por que tanta luta para manter no trono esse bobo arrogante, nascido sob maus desígnios, com o qual a Providência nos presenteou, sem dúvida para infelicitar este mal-aventurado reino?

É que, meu sobrinho, a bela combinação harmônica a ser formada entre os reinos do Ocidente, nós a queremos muito, mas a desejamos francesa, quero dizer, de direção e preeminência francesas. Temos a convicção de que a Inglaterra afastar-se-ia rapidamente das leis da Igreja, se fosse tão poderosa. A França é o reino designado por Deus. E o rei João não será eterno.

Mas deves compreender também, Archambaud, porque o rei Eduardo sustenta com tanta constância esse Carlos, o Mau, que tanto o enganou. É que a pequena Navarra e o grande condado de Évreux são peças, não somente no seu negócio com a França, mas no seu jogo de congraçamento dos reinos que lhe rumina na cabeça. É necessário que também os reis tenham um pouco com que sonhar!

Logo depois da embaixada de nossos homens de bem, Morbecque e Brévand, monseigneur Filipe de Évreux-Navar-ra, conde de Longueville, foi que se dirigiu pessoalmente à Inglaterra.

Loiro, de bela figura e de temperamento altivo, Filipe de Navarra é tão leal quanto seu irmão é falso, o que o leva, em virtude de sua lealdade para com esse irmão, a abraçar, mas de coração convicto, todas as suas trapaças. Não tem a facilidade e o talento de linguagem de seu irmão mais velho, mas seduz pelo calor de alma. Agradou bastante à rainha Filipa, que lhe afirmou ser muito parecido com seu esposo quando tinha a mesma idade. Não é nenhuma novidade; são primos por diversas vezes.

Boa rainha Filipa! Foi uma senhorita gorda e ròsea, que prometia tornar-se obesa, como acontece geralmente com as mulheres do Hainaut. Cumpriu o seu destino.

O rei amou-a ternamente. Mas teve, com o decorrer dos anos, outros entretenimentos do coração, raros mas violentos. Teve a condessa de Salisbury; e presentemente é a senhora Alice Perrère, ou Perrières, aia da rainha. Para acalmar seu despeito, Filipa come e vai se tornando cada vez mais gorda.

A rainha Isabel? Perfeitamente, sem dúvida, ainda vive; pelo menos ainda vivia ao mês passado... Em Castle Rising, um grande e triste castelo onde seu filho a enclausurou, após ter mandado executar seu amante, Lorde Mortimer, há vinte e oito anos. Se estivesse livre, causar-lhe-ia ainda maiores dissabores. A Loba de França... O rei vem visitá-la uma vez por ano, por ocasião do Natal. É dela que lhe provêm seus direitos sobre a França. Mas foi ela também quem causou a crise dinàstica, denunciando o adultério da sucessão de Borgonha e dando boas razões para afastar da sucessão a descendência de Luís, o Teimoso. Há um pouco de ridículo, hás de convir, em ver, quarenta anos depois, o neto de Margarida de Borgonha e o filho de Isabel entabularem essa aliança. Ah! É preciso viver para ter visto tudo!

E eis Eduardo e Filipe de Navarra, em Windsor, renovando esse tratado interrompido, cujas primeiras sessões tinham sido propostas logo depois das conversações de Avignon. Sempre um tratado secreto. Nas redações preparatórias, os nomes dos príncipes contratantes não deveriam figurar claramente. O rei da Inglaterra é nele denominado o mais velho, e o rei de Navarra, o mais moço. Como se isso bastasse para mascará-los e como se o teor das declarações não os revelasse com toda a evidência! São as precauções das chancelarias, que não enganam em absoluto aqueles de que toda gente desconfia. Quando se deseja que um segredo seja respeitado, muito bem!, não é necessário escrever, eis tudo.

O mais moço reconhecia o mais velho como rei da França legítimo. Sempre a mesma coisa; é o começo e o essencial; é a chave do acordo. O mais velho reconhece ao mais moço a posse do ducado da Normandia, dos condados da Champagne e de Brie, do viscondado de Chartres e de todo o Languedoc, com Toulouse, Béziers, Montpellier. Parece que Eduardo não lhe cedeu o Angoumois... muito próximo da Guyenne, deve ser por essa razão; não deixaria Navarra, se esse tratado devesse ter execução, que Deus não permita, tomar pé entre Aquitânia e o Poitou. Em compensação, concordou com a Bigorre, o que não agradaria a Phoebus, se isso viesse a ser de seu conhecimento. Como vês, tudo isto somado constitui um grande pedaço da França, um pedaço bem ponderável. E alguém pode surpreender-se de que um homem que pretenda reinar nela abandone tudo a um só vassalo. Mas, de um lado, essa espécie de vice-realeza que confere à Navarra corresponde muito bem à idéia de novo império que ele tanto almeja; e, por outro lado, aumenta as posses do príncipe que o reconhece como rei e, mais, alarga a extensão territorial de sua legitimidade. Ao invés de ter que ganhar o conjunto, peça por peça, pode sustentar que é reconhecido de uma só vez por todas essas províncias.

Como complemento, divide as despesas da guerra, promete não concluir tréguas em separado; são cláusulas habituais e sempre repetidas do projeto procedente. Mas a aliança é enunciada como “aliança perpétua”.

Esqueci-me de dizer que houve uma passagem interessante entre Eduardo e Filipe de Navarra, porque este pedia que fosse inscrito no tratado o pagamento em dinheiro dos cem mil escudos, nunca pagos, que figuravam no contrato de casamento entre Carlos de Navarra e Joana de Valois.

O rei Eduardo assustou-se. “Por que deveria pagar as dívidas do rei João?” “Perfeitamente. Vós o substituireis no trono; também o substituireis nas suas obrigações.” O jovem Filipe não perdia a compostura. É preciso ter sua idade para ousar coisas desse gênero. Isso provocou o riso em Eduardo III, que normalmente não costuma rir. “De acordo. Mas depois que for sagrado em Reims. Nunca antes da sagração.”

E Filipe de Navarra retornou à Normandia. O tempo gasto para inscrever em pergaminho o que fora combinado, de discutir os termos, artigo por artigo, de passar as notas de um lado para outro da Mancha... “o mais velho... o mais moço” e, depois ainda, os dissabores da guerra, tudo isso fez com que o tratado, sempre secreto, sempre reconhecido, pelo menos por aqueles que tinham interesse em conhecê-lo, só viesse finalmente a ser assinado nos inícios de setembro, no Castelo de Clarendon, há três meses apenas, muito pouco tempo antes da batalha de Poitiers. Assinado por quem? Por Filipe de Navarra, que fez, para tal fim, uma segunda viagem à Inglaterra.

Compreendes, Archambaud, por que, presentemente, o delfim, que tão fortemente se opôs, tu mesmo constataste, à prisão do rei de Navarra, mantém-no obstinadamente confinado, enquanto, comandando neste momento o reino, teria toda a oportunidade de pô-lo em liberdade, para o que tantas vezes tem sido pressionado? Enquanto o tratado só estiver assinado por Filipe de Navarra, pode-se considerá-lo nulo. Desde que seja ratificado por Carlos, será outro negócio.

Na hora atual, o rei de Navarra, porque o fillio do rei da França o mantém prisioneiro, na Picardia, não sabe ainda... sem sombra de dúvida é o único... que reconheceu o rei da Inglaterra como rei da França, mas é um reconhecimento sem vigor, porque não pode assinar.

Eis como se acresce o belo nó de embrulhadas, em que uma gata não reconhece os seus filhotes, o que iremos tentar desfazer em Metz! Aposto que daqui a quarenta anos ninguém compreenderá mais nada, salvo tu talvez, ou teu filho, porque lhe terás contado.

 

                           O papa e o mundo

Não te disse que teríamos notícias em Sens? E boas notícias. O delfim, abandonando seus Estados Gerais reunidos e bastante agitados, em que Marcel reclama a destituição do Grande Conselho e onde o bispo Le Coq, ao mesmo tempo em que luta pela libertação de Carlos, o Mau, se esquece até de falar em depor o rei João... Sim, sim, meu sobrinho, chegamos a isso; foi preciso que o vizinho do bispo lhe pisasse no pé para que contivesse e afirmasse que não são os Estados que poderiam depor o rei, mas o papa, a pedido dos três Estados... pois bem, o delfim, partiu ontem, segunda-feira, para Metz. Com dois mil cavalos. Alegou que as mensagens recebidas do imperador obrigavam-no a comparecer à sua dieta para o bem do reino. Sim... e sobretudo a minha mensagem. Ele me compreendeu. Assim sendo, os Estados caíram no vazio e vão se dispersar sem ter concluído coisa alguma. Se a cidade se mostrasse demasiado turbulenta, ele poderia voltar com suas tropas. A ameaça paira sobre ela...

Outra boa notícia: Capocci não virá a Metz. Recusa-se a se encontrar comigo. Bem-aventurada recusa. Põe-se em desacordo com o Santo Padre e, quanto a mim, livro-me dele. Mando o arcebispo de Sens escoltar o delfim, o qual já está sendo acompanhado pelo arcebispo-chanceler, Pedro de La Forêt; o que soma dois homens prudentes para aconselhá-lo. De minha parte, tenho doze prelados na minha comitiva. É o bastante. Nenhum legado teve tantos quanto eu. E sem Capocci. Verdadeiramente, não posso compreender por que o Santo Padre se obstinou em associá-lo a mim e ainda mais se obstina em não o convocar. Em primeiro lugar, sem ele, eu teria partido mais cedo... Na verdade, foi uma primavera perdida.

Desde que tivemos conhecimento do caso de Rouen e que recebemos em Avignon as cartas do rei João e do rei Eduardo, e, em seguida, quando soubemos que o duque de Lancastre equipava uma nova expedição enquanto a hoste da França era convocada para 1° de junho, adivinhei que tudo iria caminhar para o pior. Disse ao Santo Padre que deveria enviar um legado, com o que acabou concordando. Sofria pelo estado da cristandade. Estava pronto para partir nessa mesma semana. Seriam precisas três semanas para redigir as instruções. E eu lhe dizia: “Mas que instruções, Sanctissimus Pater? Basta recopiar aquelas que já recebestes de vosso antecessor, o venerado Clemente VI, para uma missão absolutamente semelhante, já lá se vão dez anos. Eram de resto muito boas. Minhas instruções propõem agir com toda a diligência para impedir uma retomada geral da guerra”.

Talvez, no seu íntimo, sem disso ter consciência, porque é seguramente incapaz de um mau pensamento voluntário, não desejasse que eu fosse bem-sucedido onde ele fracassara anteriormente, antes de Crécy. De resto, ele o reconhecia: “Permiti-me ser mal recebido pelo rei Eduardo III, e tenho medo de que isso também venha a acontecer-vos. É um homem bastante determinado, esse Eduardo III; ninguém o demove facilmente. Além do mais, acredita que todos os cardeais franceses demonstram má vontade para com ele. Vou enviar convosco nosso venerabilis frater Capocci”. Era esta a sua idéia.

Venerabilis frater! Cada papa deve cometer pelo menos um erro durante seu pontificado, caso contrário seria o próprio Deus. Pois bem, o erro de Clemente VI foi ter concedido o chapéu de cardeal a Capocci.

“E além disso”, afirmou-me Inocêncio, “se um de vós vier a sofrer alguma enfermidade... Que Nosso Senhor vos defenda... o outro poderá prosseguir na missão.” Como ele está sempre pensando que está doente, nosso pobre Santo Padre, deseja que toda gente sinta o mesmo e pensa logo na extrema-unção ao seu menor espirro.

Viste-me doente durante todo o tempo de nossa viagem, Archambaud? Quanto a Capocci, os solavancos lhe arrebentam os rins; é preciso parar freqüentemente a cada duas léguas para urinar. Um dia está febril, no outro tem um desarranjo no ventre. Queria tomar meu médico, mestre Vigier, o qual, como é do nosso conhecimento, não tem muito trabalho, em todo caso, quanto a mim. Para mim, o bom médico é aquele que me apalpa todas as manhãs, me ausculta, examina meus olhos e minha língua, examina minha urina, não me impõe tantas restrições, só me sangra uma vez por mês e que assim me mantém em boa saúde... E depois, para Capocci fazer seus preparativos! É dessa espécie de pessoas que intrigam e insistem em ser encarregados de missões, e, uma vez que o conseguiram, não param com as exigências. Um secretário papal é pouco; para ele seriam precisos dois. Para que ofício?, pergunta-se, uma vez que todas as cartas para a cúria, antes que acabássemos separados, fui sempre eu quem ditou e corrigiu... De tudo isso resultou que só partimos no tempo do solstício, a 21 de junho, muito tarde. Não se pára uma guerra quando os exércitos estão a caminho. Quando a decisão do rei é hesitante, então podemos fazê-lo desistir. Afirmo-te, Archambaud, uma primavera perdida.

Na véspera da partida, o Santo Padre recebeu-me a sós. Talvez estivesse um pouco arrependido de haver-me impingido esse inútil companheiro. Fui vê-lo em Villeneuve, onde reside, porque se recusa a viver no grande palácio edificado pelos seus predecessores. Muito luxo, muita pompa, o que não lhe é de muito agrado, um pessoal palaciano bastante numeroso. Inocêncio quis satisfazer o sentimento público que reprova ao papado viver com muito fausto. O sentimento público! Alguns escrevinhadores para os quais o fel é a tinta natural; alguns pregadores que o Diabo enviou à Igreja para pôr desordem em seu meio. Para esses, bastaria uma boa excomunhão, bem aplicada; para os demais, uma prebenda ou um benefício, acompanhados de alguma precedência, porque é a inveja que estimula freqüentemente seus escarros; o que eles entendem corrigir no mundo é o espaço demasiado pequeno, no seu entendimento, que eles ocupam. Vê Petrarca, de que já me ouviu falar, outro dia, com monsigneur d’Auxerre. É um homem de mau caráter, mas de grande saber e valor, é preciso reconhecer-lhe isto, e é bastante acatado dos dois lados dos Alpes. Era amigo de Dante Alighieri, que o levou a Avignon; e foi encarregado de várias missões entre os príncipes. Eis aí alguém que escrevia sobre Avignon, que era a sentina das sentinas, que todos os vícios aí medravam, que os aventureiros formigavam, que vinham a Avignon comprar os cardeais, que o papa mantinha uma loja de dioceses e de abadias, que os prelados mantinham amantes, e suas amantes, os exploradores... enfim, a nova Babilônia.

Contra mim mesmo, espalhava grandes maldades. Como era pessoa de consideração, eu o vi, escutei-o, o que lhe deu muita satisfação, encaminhei alguns negócios seus... dizia-se que ele cultivava as magias negras, magias e outras coisas... prestei-lhe alguns favores de que estava necessitado; correspondi-me com ele, pedindo-lhe que me copiasse numas cartas alguns versos ou pensamentos de grandes poetas antigos, que ele possui inúmeros, para ornamentar meus sermões, porque, quanto a mim, não costumo empregá-los, tenho um estilo de legista; em certa ocasião até, eu o propus para um cargo de secretário papal, e só dependeu dele que a minha intenção não vingasse. Pois bem, o poeta ataca menos a corte de Avignon, e, quanto a mim, escreve maravilhas. Sou um astro no céu da Igreja, um poder por trás do trono papal; igualo ou ultrapasso em saber qualquer jurista destes tempos; fui aquinhoado pela natureza e adestrado pelo estudo; e pode-se reconhecer em mim esta capacidade de abarcar todas as coisas do universo, o que Júlio César atribuía a Plínio, o Velho. Está aí, meu sobrinho; nada menos do que o que estou te revelando! E não reduzi absolutamente meu aparelhamento domiciliar nem meus numerosos domésticos que anteriormente provocavam sua diatribe... Viajou para a Itália o meu amigo Petrarca. Algo nele faz com que não consiga fixar-se em nenhum lugar, como seu amigo Dante, que elegeu para modelo. Inventou um amor desmesurado por uma senhora que nunca foi sua amante e que já morreu1. Com esta atingiu o sublime... Gosto muito dele, desse mau sujeito. Faz-me falta. Se tivesse permanecido em Avignon, sem sombra de dúvida estaria sentado em teu lugar, neste momento, porque eu o teria acrescentado à minha equipagem...

Mas seguir o assim chamado sentimento público, como nosso bom Inocêncio? É demonstrar fraqueza, dar força à crítica e afastar muitas das pessoas que vos sustentavam, sem aliciar nenhum descontente.

Logo, para dar uma imagem de humildade, nosso Santo Padre alojou-se no seu pequeno palácio cardinalício em Villeneuve, do outro lado do Ródano. Mas, mesmo com uma equipagem reduzida, o estabelecimento era demasiado pequeno. Então, era necessário aumentá-lo para abrigar as pessoas indispensáveis. A secretaria funciona mal por falta de espaço; os serventuários mudam constantemente de aposento,

 

1 Laura de Noves, a quem o poeta dedicou as “Rimas”, morreu em 1348. (N. do T.)

 

conforme seus trabalhos. As bulas se escrevem na poeira. E como muitos estabelecimentos ficaram em Avignon, é preciso atravessar o rio, constantemente, enfrentando a ventania que sopra freqüentemente nessa região e que no inverno regela a gente até os ossos. Todos os negócios se retardam, dessa maneira... Por outro lado, como ele foi eleito de preferência a João Birel, o geral dos cartuxos, que gozava da reputação de uma perfeita santidade... me pergunto, diante disso tudo, se tive razão em descartá-lo; não poderia ter sido mais desastrado do que este... nosso Santo Padre fez voto de fundar uma cartuxa. Edificam-na, nesse momento, entre o palácio pontificai e um novo estabelecimento de defesa, o Forte Santo André, que estamos prestes a construir. Mas são os funcionários do rei que encaminham os trabalhos. Embora a cristandade agora esteja sendo comandada do meio de um telheiro.

O Santo Padre recebeu-me na sua capela, de onde nunca se afasta, uma pequena abside de cinco lanços, ao lado da grande sala de audiência... porque, apesar de tudo, precisa de uma sala de audiências; compreendeu essa necessidade... e mandou que a ornamentasse um imagista vindo de Viterbo, Matteo Giova não sei o que mais, Giovanotto, Giovanelli, Giovanetti... tudo em azul, tudo desmaiado; conviria a um convento de religiosas, o que não aprecio, absolutamente; nada de vermelho, muito menos dourado. As cores vivas não custam mais do que as outras... E o barulho, meu sobrinho! Parece que é o local mais calmo de todo o palácio, e é a razão pela qual o Santo Padre vive lá retirado! As serras rangem nas pedras, os martelos metralham contra o buril, os poleames rangem, os carretos transportadores rodam, os pranchões saltam, os operários gritam e brigam... Tratar de assuntos graves nessa barulheira é o mesmo que estar no purgatório. Compreendo por que o Santo Padre não está muito bom da cabeça! “Vede, meu venerável irmão”, disse-me ele, “gasto muito dinheiro e causa-me muita confusão construir ao meu redor as aparências da pobreza. E, além disso, tenho que conservar o grande palácio em frente. Não posso deixá-lo desmoronar-se.”

Causa-me pena o papa Aubert quando caçoa de si mesmo, tristemente, e parece reconhecer seus erros para me agradar.

Está sentado num faldistòrio que eu não teria querido para mim no meu primeiro bispado; como é do seu costume, permanece curvado durante todo o decorrer da entrevista.

Um grande nariz curvo no prolongamento do rosto, grandes narinas, grandes sobrancelhas voltadas para cima, grandes orelhas, cujo lobo aparece debaixo do barrete branco, os cantos da boca repuxados na barba crespa. Tem o corpo poderosamente traçado, e a gente se assusta ao sabê-lo tão frágil no que concerne à saúde. Um escultor em pedra trabalha para fixar a sua imagem para o túmulo, em posição deitada. Porque não quer uma estátua em pé; ostentação... Mas aceita, apesar de tudo, ter uma catacumba.

Estava nos seus dias de lamentações. Continuou: “Cada papa, meu irmão, deve viver, à sua maneira, a paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. A minha está no fracasso de minhas empresas. Depois que a vontade de Deus me elevou ao vértice da Igreja, sinto-me de mãos amarradas. Que fiz, que consegui durante estes três anos e meio?”

A vontade de Deus, é claro, a vontade de Deus; mas reconheçamos que ele escolheu se exprimir um pouco através de minha modesta pessoa. O que me permite alguma liberdade com o Santo Padre. Infelizmente, existem coisas que não posso dizer-lhe. Não posso lhe dizer, por exemplo, que os homens que se encontram investidos de uma autoridade suprema não devem procurar modificar o mundo para justificar sua elevação. Há entre os grandes humildes uma forma dissimulada de orgulho, que é freqüentemente a causa de seus fracassos.

Os projetos do papa Inocêncio, suas elevadas empresas, eu as conheço muito bem. Existem três que se entrecruzam. A mais ambiciosa: reunir as igrejas latina e grega, sob a autoridade da católica, seguramente; tornar a unir o Oriente e o Ocidente, restabelecer a unidade do mundo cristão. É o sonho de todo papa, há milênios. Eu tinha, com o papa Clemente VI, avançado bastante nesse caminho; tinha chegado mais longe do que qualquer outro até então, e, em todo caso, mais do que presentemente. Inocêncio retomou o projeto por sua conta e risco, como se a idéia lhe tivesse surgido inteiramente nova, pela visitação do Espírito Santo. Não discutamos.

Para chegar a tanto, segunda empresa e anterior à primeira: reinstalar o papado em Roma, porque a autoridade do papa sobre os cristãos do Oriente não seria nunca aceita a não ser que fosse expressa do alto do trono de São Pedro. Constantinopla, presentemente em decadência, poderia, sem nenhum desdouro, inclinar-se perante Roma, não perante Avignon. Nesse ponto, já sabes, minha opinião é totalmente diversa. O raciocínio seria justo com a condição de que o próprio papa não se expusesse a ser mais fraco em Roma do que já acontece sê-lo na Provença...

Ora, para voltar a Roma seria preciso, antes de tudo, terceiro desejo do papa, reconciliar-se com o imperador. O que foi empreendido como prioridade. Então vejamos a que ponto chegamos com esses belos projetos... Apressaram-se, contra o meu conselho, em coroar o imperador Carlos, eleito há oito anos e contra quem resistimos, enquanto conseguimos adiar o mais possível a sua sagração. Neste momento, nada mais podemos fazer, sobretudo contra ele. Brindou-nos com sua Bula de Ouro, que temos de engolir, e com a qual perdemos nossa autoridade não somente sobre a eleição para o império, mas ainda sobre as finanças da Igreja no império. Não é uma reconciliação, é uma capitulação. Manejando assim, o imperador nos deixou, generosamente, as mãos livres em relação à Itália, isto é, nos fez o grande obséquio de permitir-nos pousá-las num ninho de vespas.

Para a Itália, o Santo Padre enviou o cardeal Alvarez d’Albornoz, que é mais um capitão do que um cardeal, a fim de preparar o retorno a Roma. Albornoz começou aliando-se a Cola di Rienzi, que dominou Roma por um breve lapso. Nascido numa taberna do Trastevere, esse Rienzi era um desses homens do povo com aspecto de César, como costuma acontecer de tempos em tempos por aquelas bandas, e que cativam os romanos, iecordando-lhes que seus antepassados dominaram todo o universo. De resto, fazia-se passar por filho de imperador, tendo-se descoberto como bastardo de Henrique VII de Luxemburgo; mas só ele tinha essa convicção. Escolheu o título de tribuno, usava toga de púrpura e morava no Capitólio, sobre as ruínas do Templo de Júpiter. Meu amigo Petrarca saudava-o como o restaurador das antigas grandezas da Itália. Podia ser um peão em nosso tabuleiro de xadrez, mas precisaríamos manejá-lo com discernimento e sem revelar-lhe todo o nosso jogo. Foi assassinado, já faz dois anos, pelos Colonna, porque Albornoz tardou em lhe mandar socorro. Agora tudo está para ser recomeçado; e estamos demasiado longe de retornar a Roma, onde a anarquia é ainda pior do que no passado. Roma deve ser revista em sonhos sempre; mas, retornar a ela, jamais.

Quanto a Constantinopla... Oh!, avançamos demasiadamente em palavras. O imperador Paleólogo está prestes a nos reconhecer; assumiu um compromisso solene; chegaria a vir se ajoelhar diante de nós se pudesse somente sair de seu acanhado império. Propõe apenas uma condição: que se lhe envie um exército para libertar-se dos seus inimigos. No ponto em que se encontra, aceitaria reconhecer um cura de aldeia, contra quinhentos cavaleiros e mil homens de infantaria...

Ah!, até tu ficas surpreso! Se a unidade dos cristãos, se a reunião das Igrejas dependesse só disso, não poderíamos despachar para o mar grego esse pequeno exército? Pois bem, meu bom Archambaud, não podemos. Porque não temos um soldo para equipá-lo e alinhá-lo. Porque nossa bela política produziu esses efeitos; porque, para desarmar nossos detratores, resolvemos reformar-nos e voltar à pureza da Igreja das origens... Que origens? É bastante audacioso quem afirma que as conhece verdadeiramente! Que pureza! Desde os tempos dos doze apóstolos já se encontrava um traidor em seu meio!

E começamos a suprimir as comendas e os privilégios, que não se acompanham da salvação das almas... “as ovelhas devem ser vigiadas por um pastor, não por um mercenário...” e ordenar que sejam afastados dos divinos mistérios aqueles que acumulam riquezas... “tornemo-nos semelhantes aos pobres... “ e interditar todos os tributos que provinham das prostitutas e dos jogos de dados... é isso, chegamos a descer a tais pormenores... ah!, é que nos jogos de dados acontece proferirem blasfêmias; nada de dinheiro impuro; não chafurdemos no pecado, o qual, tornando-se um mercado proveitoso, apenas cresce para acabar explodindo.

O resultado de todas essas reformas é que os cofres se esvaziaram, porque o dinheiro puro para lá se escoa apenas em pequenos riachos; os descontentes foram decuplicados, e existem sempre os iluminados, que pregam que o papa é herético.

Ah! Se é verdade que o inferno está cheio de boas intenções, o caro Santo Padre teria já pavimentado um bom pedaço do caminho!

“Meu venerável irmão, abri-me todo o vosso coração; não me escondais nada, ainda que sejam censuras o que devereis proferir a meu respeito.”

Podia dizer-lhe que, se lesse um pouco mais atentamente o que o Criador escreveu para nós no céu, veria então que os astros formam más conjunções e tristes aspectos de dois planetas afastados entre si por um quarto de círculo sobre quase todos os tronos, incluindo o seu, em que está sentado apenas porque a configuração é nefasta, porque, se fosse boa, seria eu quem me encontraria nesse lugar? Podia dizer-lhe que, quando se está em posição sideral tão ruim, não é tempo de querer renovar a casa de alto a baixo, mas somente sustentá-la o melhor possível, tal qual nos foi legada, e que não basta ter chegado da vila de Pompadour no Limousin, com a simplicidade do camponês, para ser compreendido pelos reis e reparar as injustiças do mundo? A desgraça do tempo requer que os grandes tronos não sejam ocupados por homens tão grandes quanto seus encargos. Ah!, seus sucessores não terão uma tarefa fácil!

Disse-me também, nessa véspera da partida: “Serei, então, o papa que poderia ter realizado a unidade dos cristãos e falhou? Estou sabendo que o rei da Inglaterra reúne em Southampton cinqüenta grandes embarcações para transportar cerca de quatrocentos cavaleiros e arqueiros e mais de mil cavalos para o continente”. Reflito que ele soube disso; fui eu que lhe dei a notícia. “É a metade daquilo de que eu deveria dispor para satisfazer o imperador Paleólogo. Não poderíeis talvez, com o auxílio do nosso irmão, o cardeal Capocci, apesar de saber que ele não possui os vossos méritos e que também eu não o estimo tanto quanto a vós...” Poeira, mera poeira sobre meus olhos para me distrair... “mas que desfruta de algum crédito perante o rei Eduardo, não poderíeis convencê-lo, em lugar desta expedição contra a França... É claro, percebo o que estais pensando... O próprio rei João convocou seu exército; mas é sensível aos sentimentos de honra cavalheiresca e cristã. Tendes muito poder sobre ele. Se os dois reis renunciassem a se combater para despachar juntos parte de suas tropas para Constantinopla, a fim de que esta pudesse reunir o redil da Igreja única, quanta glória desfrutaríamos então, não é verdade? Tentai convencê-los, meu venerável irmão; mostrai-lhes que, ao invés de ensangüentarem seus reinos e aumentarem os sofrimentos de seus povos cristãos, tornar-se-iam dignos de se equipararem à altura dos bravos e dos santos...”

Respondi-lhe: “Mui Santo Padre, o que desejais será a coisa mais fácil deste mundo, assim que estas duas condições forem conseguidas: para o rei Eduardo, que ele seja reconhecido como rei da França e sagrado em Reims; para o rei João, que o rei Eduardo renuncie a suas pretensões e que lhe preste vassalagem. Cumpridas essas duas coisas, não vejo maiores obstáculos...” “Estais caçoando de mim, meu irmão; não tendes fé.” “Tenho fé, mui Santo Padre, mas não me sinto capaz de fazer o sol brilhar à noite. Dito isto, acredito fielmente que, se Deus desejar um milagre, poderá perfeitamente executá-lo sem nossa ajuda.”

Permanecemos uns instantes calados, porque descarregavam uma carroça de pedras de alvenaria num pátio vizinho, e uma turma de carpinteiros insultava os carroceiros. O papa baixou um momento a cabeça com o seu grande nariz e as enormes narinas e sua espessa barba. Finalmente, disse-me: “Obtende, pelo menos, que esses reis concordem em assinar uma nova trégua. Dizei-lhes que lhes proíbo recomeçar as hostilidades entre si. Se algum prelado ou clérigo se opuser aos vossos esforços de paz, privá-los-eis de todos os seus privilégios eclesiásticos. E lembrai-vos de que, se os dois reis persistirem em levar avante a guerra, podeis chegar até a excomunhão; de resto, isto está escrito nas vossas instruções. A excomunhão e o interdito”.

Depois dessa reafirmação dos meus poderes, tinha eu muita precisão da bênção que ele me proporcionou. Porque, calcula, Archambaud, no estado em que está a Europa, excomungar os reis da França e da Inglaterra? Eduardo liberaria imediatamente sua Igreja da obediência à Santa Sé, e João enviaria seu condestável para cercar Avignon. E Inocêncio, o que teria feito, na tua opinião? Vou te dizer. Ter-me-ia desaprovado e anulado as excomunhões. No final das contas, tudo isso não passava de palavras.

Amanhã, pois, vamos partir.

Três dias antes, a 18 de junho, as tropas do duque de Lancastre tinham desembarcado em La Hague.

 

                     O verão dos desastres

                                     A invasão normanda

Nem sempre o tempo tem que ser nefasto... Ah!, já deves ter percebido, Archambaud, que esta é uma das minhas frases favoritas... É assim mesmo, no âmago de todos os reveses, de todas as amarguras, de todos os descontentamentos, somos sempre gratificados com algum bem que nos venha reconfortar. Basta somente sabê-lo apreciar. Deus não espera a nossa gratidão para nos provar mais uma vez sua mansidão.

Após este verão calamitoso para a França, e bastante deplorável, confesso-te, para minha embaixada, vê como fomos favorecidos pela estação e o belo tempo de que gozamos para continuar nossa viagem! É um encorajamento do céu.

Temia, depois das chuvas que tivemos no Berry, reencontrar a intempérie, a borrasca e a friagem à medida que avançássemos para o norte. Já me preparava para calafetar minha liteira, para me cobrir de peliças e nos sustentar com vinho quente. Ora, acontece inteiramente o contrário; o ar tornou-se suave, o sol brilha, e este dezembro é como se estivéssemos em plena primavera. Isso é comum, às vezes, na Provença; mas não contava com tanta luz que vem do sol, nos campos, tanto calor que provoca o suor nos cavalos sob as gualdrapas, para nos acolher em nossa entrada na Champagne.

Era menos quente, asseguro-te, quando cheguei a Breteuil, na Normandia, no começo de julho, para me encontrar com o rei.

Porque parti de Avignon no dia 21 do mês de junho, e era o dia 12 de julho... ah!, é claro que te recordas disso; já te havia falado... e Capocci estava doente... é isso mesmo... da carruagem em que o mandei de volta.

O que o rei João fazia em Breteuil? O cerco, o cerco do castelo no final de uma curta investida normanda, que não tinha sido um grande triunfo para ele, é o menos que se pode dizer.

O duque de Lancastre, quero lembrar-te, desembarca em Contentin no dia 18 de junho. Fica atento às datas, que têm muita importância na ocorrência... Os astros? Ah!, não consultei particularmente os astros nesse dia. O que vou te contar é que na guerra o tempo e a rapidez contam tanto, e às vezes mais do que o montante das tropas.

Em três dias, faz sua junção, na Abadia de Monteburgo, com os destacamentos do continente, os mesmos que Roberto Knolles, um bravo capitão, conduz da Bretanha, e os de Filipe de Navarra. Que contam os três em poderio? Filipe de Navarra e Godofredo d’Harcourt não somam mais do que uma centena de cavaleiros. Knolles fornece o contingente mais forte: trezentos homens de armas, quinhentos arqueiros, nem todos ingleses de resto; estão aí os bretões que vieram com João de Montfort, pretendente ao ducado contra o conde de Blois, que é homem dos Valois. Enfim, Lancastre conta apenas com cento e cinqüenta armaduras e duzentos arqueiros, mas tem uma grande remonta de cavalos.

Quando o rei João teve conhecimento desses números, deu uma boa gargalhada que o sacudiu, da pança até os cabelos. Pensavam em assustá-lo com esse pífio exército? Se era isso tudo quanto seu primo da Inglaterra podia reunir, não tinha porque se inquietar. “Tinha bastante razão, vede bem, Carlos, meu filho, vede bem, Audrehem, por não temer trancafiar meu genro na prisão; é isso mesmo, tinha carradas de razão por achar graça nesses desafios dos pequenos Navarra, porquanto não podem contar com ninguém a não ser com tão magros aliados.”

E se vangloriava por haver, desde o início do mês, convocado as hostes em Chartres. “Não foi uma boa providência? Dizei-me, Audrehem. Qual é vossa opinião, Carlos, meu filho? E vedes bem que bastava convocar a nobreza ativa e não a nobreza auxiliar. Que esses bons ingleses corram, que eles avancem no país. Vamos malbaratá-los e atirá-los na embocadura do Sena.”

Raramente o viram tão alegre, disseram-me, e quero acreditar que efetivamente era assim que se sentia. Porque esse perpétuo derrotado ama a guerra, pelo menos em sonho. Partir, dar ordens do alto do seu cavalo, ser obedecido, enfim!, porque em guerra todos obedecem... pelo menos na partida; deixar as preocupações de finanças ou de governo a cargo de Nicolas Braque, de Lorris, Bucy e os demais; viver entre homens, nada de mulheres na equipagem; mover-se, mudar de lugar sem parada, comer montado, em grandes bocados, ou ainda numa escarpa de estrada, sob uma árvore já carregada de frutos verdes, receber os relatórios dos espias, pronunciar grandes frases que todos irão repetir... “Se o inimigo tem sede, beberá seu sangue...” descansar a mão no ombro de um cavaleiro, que enrubesce todo de puro contentamento... “Nunca te cansas, Boucicaut... “ “Tua boa espada brilha, nobre Coucy!”...

E, contudo, obteve ele até agora uma única vitória? Aos vinte e dois anos, designado por seu pai como comandante-em-chefe em Hainaut... ah!, belo título: comandante-em-chefe!... foi lamentavelmente vencido pelos ingleses. Aos vinte e cinco anos, com um mais belo título ainda: senhor da conquista... custou muito caro às populações do Languedoc, sem conseguir, em quatro meses de cerco, apoderar-se de Aiguillon, na confluência do Lot e do Garona. Mas, a ouvi-lo, todos esses combates resultaram em proezas, por mais tristes que fossem os resultados. Jamais homem algum adquiriu tanta confiança na experiência da derrota.

Dessa feita, prolongava o seu prazer.

O tempo que ele gastou para ir até Saint-Denis a fim de obter a auriflama e, sem nenhuma pressa, chegar a Chartres foi suficiente para que o duque de Lancastre, passado o sul de Caen, atravessasse o rio Dives e fosse dormir em Lisieux. A lembrança da investida de Eduardo III, dez anos antes, e sobretudo o saque de Caen, não tinham desaparecido. Centenas de burgueses massacrados nas ruas, quarenta mil peças de tecidos de lã arrebanhadas, todos os objetos preciosos carregados para além-Mancha, e o incêndio da cidade evitado em tempo... certamente, a população normanda não tinha esquecido e procurava apressadamente deixar passar os arqueiros ingleses. Além do mais, Filipe d’Évreux-Navarra e messire Godofredo d’Harcourt davam a entender que esses ingleses eram amigos. A manteiga, o leite e os queijos eram abundantes, a sidra gorgolejava; os cavalos, na sua fértil pradaria bem adubada, tinham forragem de sobra. Além do mais, alimentar mil ingleses, por uma noite, custava menos do que pagar ao rei toda a dívida anual, sua gabela, seu fogal (o tributo sobre os fogos da cidade) e seu imposto de oito denários à libra sobre as mercadorias.

Em Chartres, João II encontrou suas hostes menos numerosas e menos preparadas do que esperava. Tinha como certos uns quarenta mil homens. Apenas um terço fora arrolado. Mas já não era o bastante? Não era até demais em relação ao adversário que devia enfrentar? “Está bem, não pagarei nada àqueles que não se apresentaram; será tudo lucro. Mas quero que lhes façam advertências... “ Enquanto se instalava em sua tenda em forma de flor-de-lis para fazer advertências... “Quando o rei quer, o cavaleiro deve...” já o duque de Lancastre estava em Pont-Audremer, um feudo do rei de Navarra. Libertou o castelo, que alguns franceses sitiavam em vão há algumas semanas, e reforçou um pouco a guarnição navarresa, para a qual deixou abastecimentos para um ano; depois, rumando para o sul, foi saquear a Abadia do Bec-Hellouin.

Enquanto o condestável, o duque de Atenas, punha um pouco de ordem na balbúrdia de Chartres... porque os que se haviam apresentado não faziam nada (“amassavam com os pés o trigo novo”, como eles costumam dizer) e começavam a ficar impacientes... era preciso, sobretudo, apaziguar as discórdias entre os dois marechais, Audrehem e João de Clermont, que se odiavam cordialmente e... Lancastre já estava à vista das muralhas do castelo de Conches, do qual desalojou os que o ocupavam em nome do rei. E em seguida incendiou-o. Dessa forma, as recordações de Roberto d’Artois, e as mais recentes de Carlos, o Mau, desapareceram no meio da fumaça. Esse castelo nunca trouxe felicidade... E Lancastre se dirigiu para Breteuil. À parte Évreux, todas as localidades que o rei tinha desejado assegurar no feudo do seu genro foram retomadas, uma após outra.

“Esmagaremos esses malvados em Breteuil”, disse orgulhosamente João II quando seu exército pôde finalmente marchar. De Chartres até Breteuil são dezessete léguas. O rei queria que fossem cobertas numa única etapa. Desde o meio-dia, porém, parece que começavam a se esgotar todas as forças. Quando os homens chegaram, exaustos, a Breteuil, Lancastre já não estava mais lá. Tomara de assalto a cidadela, aprisionara a guarnição francesa e instalara em seu lugar uma sólida tropa, comandada por um valente chefe navarrês, Sancho Lopez, ao qual também deixou abastecimento por um ano.

Consolando-se rapidamente, o rei João exclamou: “Vamos atalhá-los em Verneuil; não é assim, meus filhos?” O delfim não ousou dizer o que me confiou mais tarde, ou seja, que lhe parecia absurdo perseguir mil homens com cerca de quinze mil. Não desejava parecer menos corajoso do que seus irmãos mais moços, os quais copiavam inteiramente seu pai e se mostravam entusiasmados, inclusive o mais jovem, Filipe, que não tem mais do que catorze anos de idade.

Verneuil, às margens do Avre; uma das portas da Normandia. A cavalgada inglesa passara por lá, na véspera, como uma torrente avassaladora. Os habitantes viram chegar o exército francês como um rio na enchente.

Messire de Lancastre, sabendo o que se desencadeava sobre ele, guardou-se de atacar Paris. Levando consigo o enorme lucro que havia obtido em sua investida, bem como uma bela quantidade de prisioneiros, retomou, prudentemente, o caminho do oeste... “Para Laigle, para Laigle, eles seguiram para Laigle”, indicaram os camponeses. Ouvindo isso, o rei João considerou-se marcado pela atenção divina. Sabes por quê? Mas não, Archambaud, não é por causa da ave... 1 Ah!, já descobriste... Por causa da Truta que Escapa... o assassinato do senhor de Espanha... No mesmo local em que se perpetrara o crime, ali mesmo o rei chegaria para executar o castigo. Não permitiu ao seu exército dormir mais de quatro horas. Em Laigle, reencontraria os ingleses e navarreses, e soaria, finalmente, a hora da sua vingança.

Assim, no dia 9 de julho, tendo feito uma parada diante da soleira da Truta que Escapa, o tempo suficiente para dobrar sua joelheira de ferro... estranho espetáculo este, para o exército, o de um rei em oração diante da porta de uma estalagem!... divisou, afinal, as lanças de Lancastre, a duas léguas de Laigle, na orla da floresta de Tubceuf... Tudo isso se passou, meu sobrinho, segundo me contaram, três dias depois.

“Atar capacetes, em formação de combate”, gritou o rei.

Foi então que, uma vez pelo menos de acordo, o condestável e os dois marechais se interpuseram. “Sire”, declarou rudemente Audrehem, “sempre me vistes corajoso, a vosso serviço...” “E também a mim”, disse Clermont. “...Mas seria loucura empenhar-vos imediatamente. Não é possível ordenar um único passo às vossas tropas. Há quatro dias não lhes dás descanso algum, e ainda hoje

 

1 Em francês, “l’aigle”, “a águia”. (N. do E.)

 

vós as conduzistes numa corrida desenfreada. Os homens estão exaustos, vede-os; os arqueiros têm os pés em sangue e, se não tivessem seu pique para se escorar, desabariam em pleno caminho.” “Ah!, esta maldita piedade, sempre, que afrouxa tudo!”, disse João II, irritado. “Os que cavalgam não se agüentam também”, replicou-lhe Audrehem. “Inúmeras cavalgaduras estão feridas no garrote pela própria carga, e muitas outras estão mancando e não se podem trocar as ferraduras. Os homens de armaduras, de tanto andar neste calor, estão com os assentos sangrando. Não espereis nada de vossos vexilários antes que tenham repousado.” “Além do mais, sire”, acrescentou Clermont, “reparai em que território iríamos atacar. Temos diante de nós uma floresta densa, em que messire de Lancastre está acampado. Terá todo desembaraço para fazer sua tropa escapar, se preciso for, enquanto nossos arqueiros vão se emaranhar nos bosques, e nossas lanças vão se embaralhar nos troncos das árvores.”

O rei João teve um momento de mau humor, blasfemando contra os homens e as circunstâncias que faziam fracassar sua vontade. Depois tomou uma dessas decisões surpreendentes, pelas quais os cortesãos o chamavam de o Bom, a fim de que sua bajulação lhe chegasse aos ouvidos.

Mandou seus dois primeiros-escudeiros, Pluyan du Val e João de Corquilleray, até o duque de Lancastre para lhe lançar o desafio e lhe propor combate. Lancastre se encontrava numa clareira, com seus arqueiros dispostos diante dele, enquanto espias, espalhados por toda parte, vigiavam o exército francês e observavam as estradas sinuosas. O duque de olhos azuis viu chegar até ele, escoltados por alguns homens de armas, os dois escudeiros reais que arvoravam o pendão da flor-de-lis no alto de suas lanças e tocavam o corno de caça como se fossem arautos de um torneio. Tendo, ao lado, Filipe de Navarra, João de Montfort e Godofredo d’Harcourt, ouviu o seguinte discurso que lhe endereçou Pluyan du Val.

O rei da França chegara à frente de um imenso exército, enquanto o duque só tinha um muito pequeno. Desse modo, propunha ao sobredito duque enfrentá-lo no dia seguinte, com um mesmo número de cavaleiros de parte a parte, cem ou cinqüenta, ou talvez mesmo trinta, num lugar a ser convencionado, e conforme todas as regras do código de honra.

Lancastre recebeu cordialmente as proposições do rei “que se dizia ser da França”, mas respondeu que não podia, de momento, decidir por toda a sua cavalaria. Assegurou que se aconselharia com todos os seus aliados, os quais designou com um gesto, porque a questão era muito séria. Os dois escudeiros puderam concluir dessas palavras que Lancastre daria a resposta no dia seguinte.

Confiando nessa garantia, o rei João ordenou que armassem sua tenda e mergulhou no sono. E a noite dos franceses foi a de um exército roncando.

De manhã, a floresta de Tubceuf estava vazia. Viam-se pegadas de passagem, mas nenhum inglês e nenhum navarrês. Lancastre tinha prudentemente encaminhado sua tropa em direção a Argentan.

O rei João desencadeou todo o seu desprezo sobre esses inimigos desleais, somente bons na pilhagem, quando não tinham ninguém diante de si, mas que se eclipsavam quando se lhes oferecia combate. “Temos a Estrela sobre o coração, enquanto a Jarreteira está na barriga da perna. Eis o que nos distingue. São os cavaleiros da fuga.”

Mas pensou em persegui-los? Os marechais propuseram-lhe empenhar os vexilários mais descansados no encalço de Lancastre; surpreendentemente, João II recusou a idéia. Dir-se-ia que considerava a batalha ganha desde que o adversário não tinha levantado a luva do seu desafio.

Decidiu por isso voltar a Chartres para aí dissolver as suas hostes. De passagem, retomaria Breteuil.

Audrehem fez-lhe ver que a guarnição deixada em Breteuil por Lancastre era numerosa, bem comandada e bem guarnecida. “Conheço a praça, sire; não é tão fácil tomá-la de assalto.” “Então por que os nossos se deixaram desalojar?”, respondeu-lhe o rei João. “Conduzirei o cerco pessoalmente.”

E foi aí, meu sobrinho, que eu o reencontrei, em companhia de Capocci, no dia 12 de julho.

 

                               O cerco de Breteuil

O rei João nos recebeu inteiramente equipado para a guerra, como se fosse ao assalto dentro de meia hora. Beijou-nos o anel, pediu notícias do Santo Padre e, sem esperar a resposta um pouco longa, dissertante e florida na qual Capocci tinha se enredado, me disse: “Monseigneur de Périgord, chegais a tempo para assistir a um belo cerco. Conheço a valentia que exorna a vossa família e sei como seus membros são adestrados nas artes da guerra. Vossos antepassados sempre prestaram serviços ao reino com altaneria e, se não fosse príncipe da Igreja, serieis, sem dúvida, marechal nas minhas hostes. Garanto que tereis muito prazer aqui”.

Essa maneira de se dirigir unicamente a mim e o cumprimento a minha parentela desgostaram a Capocci, que não descende de muito elevada linhagem, e que achou de bom alvitre dizer que não estávamos ali para nos admirarmos com proezas de guerra, mas para falar da paz cristã.

Percebi logo que as coisas não iriam nada bem entre o meu colegatário e o rei da França, sobretudo quando este último, tendo divisado meu sobrinho Roberto de Durazzo, travava com ele grande amizade, indagando-lhe sobre a corte de Nápoles e a respeito de sua tia, a rainha Joana. Devo acrescentar que meu Roberto era um belo homem, de presença soberba, rosto corado, cabelos bem cuidados, a gentileza e a força reunidas. E percebi cintilar nos olhos do rei a centelha que ordinariamente brilha no olhar dos homens quando passa uma bela mulher. “Onde ireis acomodar-vos?”, indagou. Disse-lhe que nos acomodaríamos numa abadia próxima.

Observei-o melhor e o achei bastante envelhecido, encorpado, pesadão, o queixo de aparência também pesada sob a barba rala, de um amarelo sujo. Habituara-se a sacudir a cabeça como se estivesse sendo incomodado no pescoço ou nos ombros por alguma limalha de sua cota de aço.

Quis mostrar-nos o acampamento, onde nossa chegada despertara um movimento de curosidade. “Eis aqui Sua Santa Eminência, monseigneur de Périgord, que veio nos visitar”, dizia aos seus senhores de pendão, como se tivéssemos vindo expressamente para lhe trazer a ajuda do céu. Distribuí minhas bênçãos. O nariz de Capocci ficava cada vez mais comprido.

O rei fez muita questão de me apresentar o chefe de sua aparelhagem de guerra, ao qual parecia dispensar mais importância do que aos seus marechais ou até mesmo a seu condestável. “Onde está o Arcipreste?... Não viram o Arcipreste?... Bourbon, manda chamar o Arcipreste?...” E me perguntei de que valeria esta denominação de “arcipreste” ao capitão que comandava as máquinas, minas e artilharia de pólvora.

Era um homem bastante estranho o que se dirigiu até nós, do alto de seus longos coturnos arqueados presos às panturrilhas e coxotes de aço: parecia que andava sobre resplendores. Sua cintura, muito apertada sobre a sobrecota de couro, dava-lhe uma completa aparência de vespa. Mãos enormes de unhas negras, mantidas afastadas do corpo por causa das braçadeiras de metal que lhe protegiam os cotovelos e os braços. Pescoço bastante torto, magro, com um pomo-de-adão saliente, os olhos puxados e a expressão cho-carreira de pessoa que está sempre disposta a se oferecer em divertimento para alguém. E para coroar tudo isso, um chapéu de Montauban, de abas largas, inteiramente de ferro, que avançava em ponta sobre o nariz, com duas fendas que lhe permitiam enxergar de través quando baixava a cabeça. “Onde estavas, Arcipreste? Procurávamos por ti”, disse o rei, acrescentando para mim: “Arnaud de Cervole, sire de Vélines”. “Arcipreste, às vossas ordens... monseigneur cardeal...”, completou o outro com um ar de troça que absolutamente não me agradou.

E de súbito me recordo... Vélines é de nossa região, Archambaud... precisamente, próximo de Sainte-Foy-la-Grande, nos limites do Périgord e da Guyenne. E o bona-cheirão tinha recebido sem mais esta nem aquela o título de arcipreste, um arcipreste sem latim nem tonsura, certamente, mas, apesar de tudo, um arcipreste. E de onde vinha tudo isso? Mas muito naturalmente de Vélines, seu pequeno feudo, do qual se tornou o cura, recebendo assim por sua vez as rendas senhoris e os rendimentos eclesiásticos. Bastava-lhe pagar um verdadeiro clérigo, com abatimento, para assegurar o trabalho da Igreja... até que o papa Inocêncio lhe suprima os privilégios, como todas as outras comendas dessa natureza, no início do pontificado. “As ovelhas devem ser vigiadas por um pastor... “ como te contei, noutro dia. Nesse caso, adeus, arcipreste de Vélines! Devia conhecer uma centena de casos da mesma espécie, e sabia que o gaiato não tinha a corte de Avignon no melhor dos conceitos. Uma vez ao menos, posso te afirmar, dei plena razão ao Santo Padre. E logo previ que esse Cervole não iria, naturalmente, me facilitar as coisas...

“O Arcipreste me prestou um excelente trabalho em Évreux, e a cidade retornou a nós”, disse-me o rei para demonstrar o valor do seu fogueteiro. “Foi de resto a única que retomastes ao Navarrês, sire”, respondeu-lhe Cervole com um perfeito desembaraço. “Faremos outro tanto de Breteuil. Quero um cerco bem feito, como o de Aiguillon.” “Ao que me consta, nunca vos apoderastes de Aiguillon, sire.”

Raios! pensei, o homem está muito seguro para falar com essa franqueza.

“Acontece que não tivemos muito tempo, infelizmente”, disse tristemente o rei.

Só podia ser o Arcipreste... até eu resolvi chamá-lo de Arcipreste, porquanto todo mundo o chamava assim... só seria esse o homem capaz de balançar o seu chapéu de ferro e murmurar perante seu soberano: “O tempo, o tempo... seis meses...”

E só poderia o rei João se obstinar em acreditar que o cerco de Aiguillon, por ele conduzido no mesmo ano em que seu pai se deixava esmagar em Crécy, representava um modelo de arte militar. Uma empresa ruinosa, interminável. Uma ponte, que ele tinha ordenado fosse construída para aproximar a fortaleza, num ponto tão estratégico que os sitiados tinham-na destruído seis vezes. Máquinas complicadas e de grande lentidão, que deveriam ser encaminhadas por preços elevados, desde Toulouse... e para um resultado inteiramente nulo.

Pois bem! Era nisso que o rei João fundamentava sua glória e autorizava sua experiência. Na verdade, atarefado como estava em regularizar seus rancores contra o destino, queria tomar, dez anos depois, sua desforra de Aiguillon e provar que seus métodos eram os melhores; queria deixar na memória das nações a lembrança de um grande cerco.

E era por isso que, negligenciando perseguir um inimigo que poderia ter derrotado sem grande esforço, vinha levantar sua tenda diante de Breteuil. Dirigindo-se mais uma vez ao Arcipreste, muito versado nos novos processos de destruição pela pólvora, dever-se-ia acreditar que tinha resolvido minar as muralhas do castelo como haviam feito em Évreux. Mas não. O que pedia ao seu mestre de engenharia era que levantasse construções de assalto que lhes permitissem passar por cima dos muros. E os marechais e os capitães escutavam, cheios de respeito, as ordens do rei, e se apressavam em cumpri-las. Quando um homem comanda muito tempo, mesmo que seja o pior imbecil, existem sempre pessoas que acreditam que ele comanda certo.

Quanto ao Arcipreste... tive a impressão de que caçoava de tudo. O rei queria rampas, andaimes, torres com sino para anunciar o rebate; muito bem, tudo seria construído e, em conseqüência, exigiam-se pagamentos. Se esses aparelhos de outras eras, essas maquinarias anteriores às peças de fogo não produziam mais o resultado desejado, o rei seria o único culpado. E o Arcipreste não deixaria a ninguém o cuidado de lhe dizer, tinha sobre o rei a ascendência que às vezes exercem os veteranos sobre os príncipes, e ele não se importava em usá-lo, uma vez que o tesoureiro tinha garantido seu soldo e o dos companheiros.

A pequena cidade normanda transformou-se num imenso canteiro de obras. Cavavam-se fossos em volta do castelo. A terra retirada das escavações seria utilizada para estabelecer as plataformas e os déclives de assalto. Era um barulho de pás e de carroças, rangidos de serras, gritarias de incitamentos e de pragas. Para mim, era como se estivesse de novo em Villeneuve.

Os machados retiniam nas florestas vizinhas. Alguns camponeses das redondezas faziam seus negócios vendendo bebidas. Outros tinham a desagradável surpresa de ver subitamente seis serventes de pedreiros demolir sua granja para carregar as traves. “Serviço do rei!” Era o que diziam imediatamente. E as picaretas atacavam os muros de argamassa, e as cordas se prendiam nas madeiras de armações dos barro tes de um tabique e, de repente, num grande estrondo, tudo desabava. “O rei bem que poderia ir se instalar em outro lugar ao invés de nos enviar esses malfeitores que nos arrancam nossos tetos”, diziam os aldeãos. Começavam a achar que o rei de Navarra era um amo bem melhor, e que até a presença dos ingleses pesava menos que a do rei da França.

Permaneci em Breteuil uma boa parte de julho, com grande mágoa de Capocci, que preferia a estada de Paris... eu também a teria preferido, naturalmente!... e que mandava para Avignon missivas cheias de acrimònia em que instilava todo o seu fel, afirmando que eu me satisfazia mais contemplando a guerra do que cuidando de fazer avançar a paz. Ora, pergunto-te, como poderia fazer avançar a paz a não ser falando com o rei, e onde lhe poderia falar senão no cerco do qual não parecia querer afastar-se?

O rei passava os dias observando os trabalhos em companhia do Arcipreste; gastava todo o seu tempo verificando um ângulo de ataque, inquietando-se com uma muralha e sobretudo olhando a montagem da torre de madeira, uma extraordinária torre edificada sobre rodas em que poderiam se alojar vários arqueiros com todo um armamento de bestas e de dardos de fogo, uma máquina como não se havia visto desde os antigos tempos. Não bastava edificar os andares, era necessário ainda encontrar bastante couro de boi para revestir esse enorme cadafalso; e depois construir um caminho duro e plano para poder movimentá-lo. E quando a torre estivesse pronta ver-se-iam coisas surpreendentes!

O rei convidou-me muitas vezes para cear, e então pude conversar com ele.

“A paz?”, dizia-me. “Mas é o meu maior desejo. Vede que estou prestes a dissolver minhas hostes, reservando expressamente para mim o que me basta para este cerco. Esperai apenas que eu conquiste Breteuil e imediatamente farei a paz, com muita satisfação, para ser agradável ao Santo Padre. Que os meus inimigos me apresentem suas propostas.” “Sire”, disse-lhe, “é preciso saber quais propostas estareis disposto a considerar...” “Naturalmente, as que não forem contrárias à minha honra.” Ah!, não é tarefa nada fácil! Fui eu de resto quem lhe fez ver, porque estava mais bem informado do que ele, que o príncipe de Gales reunia as suas tropas em Libourne e em La Réole para uma nova investida.

“E vós me falais de paz, monseigneur de Périgord?” “Precisamente, sire, a fim de evitar novas desgraças...” “Desta vez não permitirei que o príncipe da Inglaterra se divirta no Languedoc como aconteceu no ano passado.

Vou convocar as hostes novamente, para 1° de agosto em Chartres.”

Assustei-me, porquanto desconvocava seus vexilários para depois chamá-los às armas de novo, uma semana depois. Falei discretamente ao duque de Atenas, a Audrehem, porque toda essa gente vinha me ver e confiava em mim. Não, o rei se obstinava, por uma questão de economia que absolutamente não condizia com ele, em desconvocar antes a tropa, que havia chamado no mês precedente, para reconvocá-la com a retaguarda. Alguém o havia aconselhado, João d’Artois talvez, ou um outro cérebro privilegiado, que dessa forma economizaria alguns dias de soldos. Mas assim se atrasou um mês em relação ao príncipe de Gales. Oh!, sem dúvida, era urgente que fizesse a paz; e quanto mais esperasse, menos ela seria negociável de acordo com seus desejos.

Pude melhor conhecer o Arcipreste, e devo dizer que o bonacheirão me divertia. O Périgord aproximou-o de mim; veio solicitar-me que lhe restituíssem os seus privilégios. E em que termos! “Vosso Inocêncio...” “O Santo Padre, meu amigo, o Santo Padre... “, dizia-lhe eu. “Bom, o Santo Padre, se é assim que desejais, suprimiu minha comenda para boa ordem da Igreja... ah!, foi o que o bispo me disse. E por quê? Acreditava que não havia ordem em Vélines, antes dele? O cuidado com as almas, messire cardeal, pensais que não o exerci? Nenhum agonizante morreu sem os sacramentos, posso garantir-vos. Ao primeiro sinal da agonia, enviava o meu tonsurado. E esses sacramentos são pagos. E as pessoas que respondiam perante a minha justiça: multa. Em seguida, à confissão; e a taxa de penitência. Os adultérios, a mesma coisa. Sei bem como se manobram esses bons cristãos.” E eu lhe dizia: “A Igreja perdeu um arcipreste, mas o rei ganhou um bom cavaleiro”. Porque o rei João o tinha armado cavaleiro no ano anterior.

Nem tudo é assim tão ruim nesse Cervole. Quando fala da nossa Dordogne, tem acentos de ternura que surpreendem. A água verde do vasto ribeiro em que se refletem nossos lares, de tarde, entre os olmos e os freixos; as opulentas pradarias na primavera; o calor seco dos verões, que amadurece as cevadas amarelas; as noites com cheiro de hortelã; as uvas de setembro, que mordiscávamos quando éramos crianças, nos cachos mornos... Se todos os homens da França amassem sua terra tanto quanto esse homem, o reino seria mais bem defendido.

Acabei compreendendo as razões dos favores que ele desfrutava. Em primeiro lugar, havia combatido junto ao rei na cavalgada de Saintonge, em 1351, numa equipagem pequena, mas que permitiu a João II acreditar que seria um rei vitorioso. O Arcipreste conduziu suas tropas constantes de vinte armaduras e sessenta sargentos a pé! Como conseguiu recrutá-los em Vélines? Sempre conseguia convencer alguém que o acompanhasse. Mil escudos de ouro reservados pelo tesoureiro das guerras para o serviço de um ano. O que permitia ao rei dizer: “Somos companheiros há muito tempo, não é verdade, Arcipreste?”

Em seguida, serviu às ordens do senhor de Espanha, e, astuto como era, não perdia ocasião de recordar isso ao rei. Foi mesmo sob as ordens de Carlos de Espanha, na campanha de 1353, que expulsou os ingleses do seu próprio castelo de Vélines e das terras vizinhas, Montcarret, Montaigne, Montravel... Os ingleses tinham Libourne e conservavam aí uma grande guarnição de arqueiros. Mas Arnaud de Cer-vole submetia Sainte-Foy e não estava disposto a entregá-la... “Sou contra o papa porque me tirou o arciprestado; sou contra o Inglês porque devastou meu castelo; sou contra o Navarrès porque matou meu condestável. Ah!, por que não estava em Laigle, a seu lado, para defendê-lo?” Era bàlsamo para os ouvidos do rei.

E, finalmente, o Arcipreste é um perito no conhecimento das armas de fogo. Adora-as, adestra-se com elas e se diverte. Nada lhe agrada mais, acabou me dizendo, do que acender uma mecha, após preparos subterrâneos, e ver uma torre de castelo abrir-se como uma flor, como um ramalhete, projetando pelos ares homens e pedras, bestas e telhados. Em vista disso, é cercado, senão de amizade, pelo menos de certo respeito; porque a muitos entre os mais audazes cavaleiros repugna aproximar-se dessas armas do Diabo que ele maneja como se estivesse brincando. Há outras pessoas ainda que, quando surgem novos processos de guerra, reconhecem o seu efeito imediato e com isso adquirem uma bela reputação pelo seu emprego. Enquanto os peões, tapando os ouvidos com as mãos, correm para se abrigar, e até os barões e os marechais recuam prudentemente, Cervole, com uma luz divertida nos olhos, inspeciona o rodar dos barris de pólvora, dá ordens exatas, salta por cima das minas explosivas, mergulha entre elas apoiando-se nas braçadeiras, surge mais adiante, acende tranqüilamente o pavio, ganha tempo para encontrar um ângulo morto ou se agacha atrás de uma mureta, e o petardo explode com estrondo, fazendo a terra tremer e os muros racharem de alto a baixo.

Essas tarefas exigem equipagens sólidas. Cervole formou a sua; homenzarrões hábeis, amadores de massacres, contentes quando espalham o terror, quando quebram e des-troem. Paga a todos muito bem, porque o perigo equivale ao salário. E lá vai ele, ladeado por seus dois lugares-tenentes, que parecem escolhidos a dedo pelos seus nomes: Gaston de la Parade e Bernard d’Orgueil. Aqui entre nós, se o rei João tivesse empregado melhor esses três artífices, Breteuil teria caído numa semana. Mas não: queria sua torre rolante.

No espaço de tempo em que a grande torre se elevava, dom Sancho Lopez, seus navarreses e seus ingleses, encerrados no castelo, não se revelavam de nenhuma forma muito emocionados. Os guardas se rendiam em horas certas, nos pontos estratégicos da ronda. Os sitiados, bem aprovisionados de víveres, gozavam de excelente saúde. De tempos em tempos, mas com parcimônia para não usar inutilmente suas munições, mandavam uma revoada de flechas sobre os sitiantes. Esses tiros, que se produziam às vezes na passagem do rei, davam-lhe ilusões de uma proeza... “Viram? Uma revoada de flechas caiu sobre ele, mas nenhuma atingiu nosso rei; ah!, o rei... “, e autorizava ao Arcipreste, a D’Orgueil e a La Parade berrar-lhe: “Cuidado, sire! vós sois o alvo!”... fazendo um cerco protetor com seus corpos contra as flechas, que vinham morrer na relva, a seus pés.

O Arcipreste não cheirava bem. Mas, convenhamos, toda a gente fedia, todo o acampamento fedia, e era principalmente pelo mau cheiro que Breteuil era sitiada! O vento se encarregava de levar os fedores dos excrementos, porque todos aqueles homens que escavavam, conduziam as carroças, serravam, martelavam, descarregavam-se o mais próximo dos seus lugares de trabalho. Ninguém tomava banho, e o próprio rei, constantemente encouraçado...

Fazendo uso tanto de perfumes quanto de essências, como me era permitido, tive bastante tempo para observar as fraquezas do rei João. Ah!, pura maravilha da mais absoluta inconsciência!

Tinha consigo dois cardeais enviados pelo Santo Padre para tentar estabelecer uma grande paz geral; recebia mensageiros de todos os príncipes da Europa, que lamentavam sua conduta relativamente ao rei de Navarra e lhe davam conselhos para que o libertasse; reconhecia que os seus auxiliares, por toda parte, procediam mal, e que não somente na Normandia, não somente em Paris, mas em todo o reino, havia um mau humor generalizado e prestes à revolta; sabia, sobretudo, que dois exércitos ingleses se preparavam contra ele, o de Lancastre em Contentin, que estava recebendo reforços, e o da Aquitânia... Mas nada disso tinha a menor importância para ele, senão o cerco de uma pequena praça normanda, e nada podia demovê-lo dessa idéia. Obstinar-se nos pormenores sem jamais se aperceber do conjunto é um grande defeito de temperamento num príncipe.

Durante um mês inteiro, João II foi só uma vez a Paris, por quatro dias, e para cometer a tolice que vou te contar. E o único edito do qual não permitiu a redação aos seus conselheiros. Foi mandar proclamar em todos os burgos e bailiados, num raio de seis léguas em torno de Breteuil, que todas as corporações de pedreiros, carpinteiros, perfuradores, mineiros, escavadores, mateiros e outros ofícios se apresentassem a ele, tanto de dia como à noite, levando instrumentos necessários aos respectivos trabalhos, a fim de serem empregados nos trabalhos do cerco.

A vista da grande torre móvel, seu ornamento de assalto, como a denominava, enchia-o de satisfação. Três andares; cada plataforma bastante ampla para que duzentos homens pudessem manter-se ali e combater desse lugar. Perfazia seiscentos soldados, no total, os quais ocupariam essa máquina extraordinária, quando lhes trouxessem bastante lenha miúda e faxinas, e quando tivessem carregado bastantes pedras e aplainado o terreno, a fim de formar o caminho em que a torre rolaria sobre suas quatro rodas enormes.

O rei João estava tão orgulhoso de sua torre que fizera convites para virem apreciar a montagem e o trabalho que executaria. Vieram então o bastardo de Cas tela, Henrique de Trastámare, bem como o conde de Douglas.

“Messire Eduardo tem o seu Navarrês, mas eu tenho o meu Escocês”, dizia o rei jovialmente. Com a diferença de que Filipe de Navarra conduzia aos ingleses a metade da Normandia, enquanto messire de Douglas não levava nada ao rei da França, salvo sua valorosa espada.

Ouço ainda o rei explicar-nos: “Vede, senhores: este ornamento pode ser levado até o ponto em que há muralhas, ultrapassá-las, permitir aos assaltantes atirar na praça toda espécie de pedras e de projéteis, atacar em pleno local em que andam as rondas. Os couros que revestem a torre têm por objetivo amortecer as flechas”. E eu me obstinando em lhe falar das condições da paz!

O Espanhol e o Escocês não eram os únicos que contemplavam a enorme torre de madeira. O pessoal de messire Sancho Lopez também a olhava com prudência, porque o Arcipreste havia montado outras máquinas, que inundavam copiosamente de balas de pedra e tiros de pólvora a sua guarnição. O castelo estava por assim dizer desprotegido. Mas o pessoal de Lopez não estava muito assustado. À meia altura da própria muralha a guarnição abria buracos. “É para fugirem mais depressa”, dizia o rei.

Enfim, chegou o grande dia. Fiquei um pouco afastado, numa pequena elevação do terreno, porque a coisa me interessava. A Santa Sé tem tropas e cidades que precisa defender ... O rei João II surgiu coberto pelo elmo decorado com flores de ouro. Com sua espada cintilante, deu o sinal para o assalto, enquanto as trompas tocavam. No alto da torre revestida de couro flutua o pendão com a flor-de-lis, e, abaixo, as bandeiras das tropas que ocupam os três andares. Essa torre é um ramalhete de estandartes! ei-la em movimento. Atrelam-se-lhe homens e cavalos em cachos, e o Arcipreste estimula a todos com grande gritaria... Disseram-me que tinha empregado mil libras de cordas de cânhamo. O engenho progride muito lentamente, com rangidos de madeira e algumas oscilações, mas progride. Vendo-o avançar, oscilando um pouco e todo eriçado de bandeiras, dir-se-ia um navio que caminha para a abordagem. E aborda, efetivamente, com grande tumulto. Já atinge as seteiras, na altura da terceira plataforma. Cruzam-se as espadas, partem as flechas em revoadas compactas. No exército que ocupa o castelo estão todos tensos e de cabeça erguida, com a respiração suspensa. Lá no alto há estupendas façanhas. O rei, de viseira erguida, assiste, orgulhoso, a esse combate nos ares.

E, de súbito, um barulho enorme sobressalta as tropas e um jato de fumaça envolve as bandeiras, no alto da torre.

Messire de Lancastre enviara bocas de fogo a dom Sancho Lopez, que, muito sigilosamente, não as utilizara até aquele momento. E eis que, pelas fendas executadas na muralha, essas bocas acertam em cheio na torre rolante, rompendo violentamente os couros de boi que a revestem, ceifando com rajadas os homens das plataformas, quebrando as armações dos vigamentos.

As balistas e as catapultas do Arcipreste entram no combate, mas não conseguem impedir que uma segunda salva entre em ação, e em seguida uma terceira. Não são apenas balas de fusão, mas também panelões de inflamados, uma espécie de mistura incendiaria inventada pelos gregos, que atingem a torre frontalmente. Os homens caem, berrando, atropelam-se para fazer descer as escadas, ou mesmo atiram-se no vácuo, terrivelmente queimados. As chamas começam a faiscar no alto da bela máquina. E depois, num estalar de inferno, o estrado mais elevado desaba, esmagando seus ocupantes num braseiro... Em toda a minha vida, Archambaud, jamais vi maior clamor de sofrimento; e ainda não chegara ao final. Os arqueiros ficaram presos num entravamento de barrotes incandescentes. Com o tórax desfeito, pernas e braços sangrando. As tiras de couro em chamas exalavam um cheiro horroroso. A torre começou a se inclinar, a se inclinar cada vez mais, e, quando se esperava que desabasse, imobilizou-se, inclinada, queimando sempre. Jogaram tanta água sobre ela quanto possível, procuraram apressadamente retirar os corpos esmagados ou queimados, enquanto os defensores do castelo dançavam de alegria sobre as muralhas, gritando: “São Jorge, lealdade! Navarra, lealdade!”

Perante esse desastre, o rei João parecia procurar ao seu redor um culpado, embora não houvesse outro a não ser ele mesmo. Mas o Arcipreste ali estava, sob seu chapéu de ferro, e a grande cólera que ia explodir ficou sufocada sob o elmo real. Porque Cervole era sem dúvida o único homem de todo aquele exército que não hesitou em dizer ao rei: “Vede a vossa estupidez, sire. Aconselhei-vos a instalar as minas ao invés de edificar esses grandes cadafalsos, que já não se usam há mais de cinqüenta anos. Não estamos mais na época dos Templários, e Breteuil não é Jerusalém!”

O rei apenas indagou: “Este material pode ser restaurado?” “Não, sire.” “Então, quebrai o que ainda sobra. Pode servir para encher os fossos.”

Nessa noite, achei oportuno empreender seriamente as propostas para um tratado de paz. Os reveses costumam abrir os ouvidos dos reis ao entendimento e à prudência. O horror que acabávamos de testemunhar me permitiu apelar para os seus sentimentos cristãos. E, se o seu ardor cavalheiresco fosse ávido de proezas, o papa bem poderia ofertar a ele e aos príncipes da Europa algumas de méritos muito maiores e mais gloriosas para o lado de Constantinopla. Fui repelido, o que encheu de alegria a Capocci.

“Tenho duas investidas inglesas que me ameaçam em meu reino e não posso demorar-me para ir ao seu encontro. É esta a minha maior preocupação no momento. Voltaremos a conversar em Chartres, por obséquio.”

Os perigos que ele ignorava na véspera pareciam-lhe agora ter urgência e prioridade.

E Breteuil? Que iria decidir sobre Breteuil? Preparar um novo assalto aos sitiantes demandaria outro mês. Os sitiados, por sua vez, se não tivessem esgotado seus víveres nem suas munições, estariam sofrendo também. Tinham feridos, suas torres haviam desmoronado. Alguém falou em negociar, oferecer à guarnição uma rendição honrosa. O rei voltou-se para mim: “Pois bem, monseigneur cardeal...”

Foi a minha vez de lhe demonstrar altivez. Tinha vindo de Avignon para tratar de uma paz geral, não para me entreter numa libertação de fortaleza. Compreendeu seu erro e demonstrou paciência, porque pensava conseguir uma retirada razoável. “Uma vez que o cardeal está impedido, o Arcipreste poderá fazê-lo.”

E no dia seguinte, enquanto a torre de madeira ainda fumegava e os trabalhadores de aterros começavam sua obra, mas dessa vez para enterrar os mortos, nosso sire de Vélines, montado nas suas ferragens de aço e precedido de trompas sonoras, foi conferenciar com dom Sancho Lopez. Marcharam uns bons momentos diante da ponte levadiça do castelo, vigiados pelos soldados dos dois acampamentos.

Tanto um como outro eram homens do mesmo ofício e não podiam se enganar... “Se eu vos tivesse atacado com minhas minas de pólvora sob vossas muralhas, messire?” “Ah, messire, penso que teríeis acabado conosco.” “De quanto tempo ainda podereis dispor?” “Menos do que desejaríamos, porém mais do que ainda esperais. Temos água suficiente, assim como vitualhas, flechas e balas.”

Após uma hora, o Arcipreste retornou ao rei. “Dom Sancho Lopez consente em vos devolver o castelo se lhe deixardes a partida livre e se lhe derdes dinheiro.” “Seja, dai-lhe e acabemos com isto!”

Dois dias mais tarde, os homens da guarnição, de cabeças erguidas e bolsos repletos, saíam para ir se encontrar com monseigneur de Lancastre. Ao rei João caberia reconstruir Breteuil por sua conta. Assim terminou esse cerco que ele esperava fosse memorável. Ainda teve o topete de nos garantir que, sem sua torre de assalto, a praça não teria chegado tão cedo às conversações.

 

                         A homenagem de Phoebus

Vês afastar-se Troyes? Bela cidade, não é mesmo, meu sobrinho, sobretudo nesta manhã tão iluminada pelo sol! Verdadeiramente, para uma cidade, é uma grande vantagem ser berço de um papa. Porque os belos palácios e solares que vês ao redor da Maison de Ville, e da Igreja Saint-Urbain, que é uma jóia de art nouveau, com sua profusão de vitrais, e ainda outras construções de que tiveste ocasião de admirar a perfeita estética, tudo isso se deve ao fato de Urbano IV, que ocupou o trono de São Pedro há mais ou menos um século, e por três anos somente, ter nascido em Troyes, numa loja, exatamente no local em que se eleva agora a sua igreja. Foi o que proporcionou glória à cidade e como que um impulso de progresso. Ah!, se tal sorte pudesse ter sucedido a nossa querida Périgueux... Enfim, não quero mais falar sobre isso, porque podes acreditar que só penso nisso...

Nesse momento, conheço o itinerário do delfim. Ele nos acompanha. Estará amanhã em Troyes. Mas alcançará Metz por Saint-Dizier e Saint-Mihiel, enquanto nós passaremos por Châlons e Verdun. Em primeiro lugar, porque tenho interesses em Verdun... sou cônego da catedral... e em segundo lugar porque não desejo absolutamente parecer estar associado ao delfim. Mas, como somos amigos, poderemos trocar mensageiros a qualquer momento, durante a jornada ou quase; além disso, nossas conexões tornam-se mais fáceis e rápidas em Avignon...

Afinal de contas, o que te prometi contar e me esqueci? Ah... o que fez o rei João em Paris, durante os quatro dias que se ausentou do cerco de Breteuil?...

Ia receber a homenagem de Gaston Phoebus. Um sucesso, um triunfo para o rei João, ou antes, para o chanceler Pedro de La Forêt, que tinha preparado o evento com muita paciência e bastante habilidade. Porque Phoebus é cunhado do rei de Navarra, e seus domínios são muito próximos, no limiar dos Pireneus. Ora, essa homenagem era esperada desde o início do reinado. Obtê-la no momento em que Carlos de Navarra estava preso poderia muito bem transformar as coisas e modificar o julgamento de muitas cortes da Europa.

Seguramente, a reputação de Phoebus já é do teu conhecimento... Oh!, não somente um monteiro-mor, mas também um grande combatente, um grande leitor, um grande arquiteto e construtor, e sobretudo um grande sedutor. Diria, afinal: um grande príncipe, cuja única desvantagem é ter apenas um pequeno Estado. Assegura-se que é o mais encantador dos homens de nosso tempo, e eu subscrevo essa opinião. Bastante alto, e com uma força comparável à dos ursos... propriamente, meu sobrinho, já se mediu com um urso!... tem as pernas bem-feitas, os quadris delicados, as espáduas amplas, o rosto iluminado, os dentes irrepreensivelmente brancos, quando sorri. E além do mais possui uma cabeleira de um loiro acobreado, um velo radioso, ondulado, encaracolado até quase atingir o pescoço, verdadeira coroa natural, flamejante, que o fez adotar o sol por emblema, assim como seu sobrenome de Phoebus, que ele grafa aliás com um F e um é... Fébus... em virtude de havê-lo escolhido antes de conhecer um pouco de grego. Nunca usa capuz e anda sempre de cabeça descoberta, como os antigos romanos, o que é inédito em nossos costumes.

Estive em sua residência há pouco tempo. Porque recebe tão bem que tudo o que realmente conta no mundo cristão passa por sua pequena corte de Orthez, o que a transformou numa grande corte. Quando lá estive, encontrei um conde palatino, um prelado do rei Eduardo, um primeiro-chanceler do rei de Castela, sem contar os médicos famosos, um célebre escultor, e grandes doutores em leis. Toda essa gente é tratada esplendidamente.

Só conheço uma corte tão brilhante e tão influente num território assim tão reduzido: a do rei Lusignan de Chipre, mas este dispõe de muito mais recursos além dos proventos do comércio.

Phoebus usa uma rápida e agradável maneira de nos mostrar o que lhe pertence: “Eis aqui meus cães de caça, meus cavalos... eis minha amante... meus bastardos... A senhora de Foix está muito bem, louvado seja Deus! Ainda tereis oportunidade de vê-la esta noite”.

À noite, na longa galeria que mandou abrir no fianco do seu castelo e de onde se domina um horizonte montanhoso, toda a corte se reúne e passeia, durante alguns instantes, com soberbos adornos, enquanto uma nuvem azul paira sobre o Béarn. A espaços, vêem-se imensas chaminés flamejantes e entre as chaminés o muro é pintado em afresco com cenas de caça, um belo trabalho de artistas vindos da Itália. O convidado que não tiver levado todas as suas jóias e suas melhores vestimentas, pensando numa temporada em pequeno castelo de montanha, fará uma ridícula figura. Advirto-te disso caso aconteça de algum dia andares por lá... A senhora Agnès de Foix, que é de Navarra, irmã da rainha Branca e quase tão bela quanto ela, se apresenta com roupas recamadas de ouro e pérolas. Fala pouco, ou melhor, a gente adivinha suas palavras. Ela tem medo de falar. Ouve os menestréis, que cantam Aqueres mountanes, composto por seu esposo, e que os bearneses adoram repetir em coro.

Phoebus, por sua vez, vai de grupo em grupo, saúda um, saúda outro, acolhe um fidalgo, cumprimenta um poeta, entretém-se com um embaixador, informa-se ao acaso sobre os negócios do mundo, emite uma opinião, dá uma ordem a meia voz e governa, conversando. Até que doze grandes brandões carregados por empregados da casa, em libré, venham lembrá-lo de que é hora da ceia em companhia de todos os seus hóspedes. Às vezes Phoebus só se acomoda à meia-noite.

Certa noite surpreendi-o, apoiado nas arcadas da galeria aberta, suspirando diante do seu caudaloso rio prateado e seu horizonte de montanhas azuis: “Pequenino, muito pequenino... Dir-se-ia, monseigneur, que a Providência se diverte maldosamente, fazendo os dados rolar e emparelhando-os às avessas...”

Acabávamos de falar sobre a França, sobre o rei da França, e compreendi o que ele queria me dar a entender. A um grande homem freqüentemente só acontece governar uma terra pequena, quando a um homem fraco toca por sorte o grande reino. E acrescentou: “Mas por pequeno que seja o meu Béarn, garanto-vos que não pertence a ninguém a não ser a mim mesmo”.

Suas cartas são maravilhosas. Nunca se esquece de lhes acrescentar todos os seus títulos: “Nós, Gaston III, conde de Foix, visconde do Béarn, visconde de Lautrec, de Marsan e de Castillon... “ e mais alguma coisa ainda... ah, é verdade: “senhor de Montesquieu e de Montpezat...” e, em seguida, vê como soa bem: “magistrado de Andorra e de Capsire”, e assina somente “Fébus”... com seu F e seu é bem-feitos, talvez para se distinguir mesmo de Apoio... exatamente como sobre os castelos e os monumentos que construiu ou adornou se vê gravado em grandes caracteres: “Fébus fez”.

Há, certamente, exageros em sua personalidade: mas é preciso não esquecer que não tem mais do que vinte e cinco anos. Pela sua idade, até que tem demonstrado muita aptidão. E, ao mesmo tempo, revelado muita coragem: foi dos mais valorosos em Crécy. É mesmo, esqueci-me de te dizer, se é que já não sabes: é sobrinho em segundo grau de Roberto d’Artois. Seu avô desposou Joana d’Artois, a irmã de Roberto, a qual, logo depois de sua viuvez, manifestou muito apetite pelos homens, levou uma vida escandalosa e causou inúmeras confusões... e ainda seria capaz de causar outras tantas... perfeitamente, porque ainda está viva; pouco mais de sessenta anos e uma esplêndida saúde... o que levou seu neto, o nosso Phoebus, a encerrá-la numa torre do Castelo de Foix, onde é vigiada muito rigorosamente. Ah!, que sangue quente têm esses D’Artois!

E eis o homem que La Forêt, arcebispo-chanceler, quando tudo conspira contra o rei João, consegue que venha render-lhe vassalagem. Oh!, não o desprezemos, absolutamente. Phoebus ponderou bastante sobre essa sua decisão, e agiu, precisamente, para proteger a independência do seu pequenino Béarn. A Aquitânia ficando com a Navarra, e ele próprio interessado nos dois, essa aliança, patente nesse momento, não lhe sorri em absoluto; representa uma grande ameaça sobre suas pequenas fronteiras. Gostaria naturalmente de garantir-se do lado do Languedoc, onde mantém uma contenda com o conde de Armagnac, governador do rei. Nesse caso, aproximemo-nos da França, acabemos de uma vez com essa desavença e, com essa intenção, rendamos ao rei a vassalagem devida pelo nosso condado de Foix. Certamente Phoebus exigirá a liberdade do seu cunhado Navarra, está previsto, mas formalmente, apenas formalmente, como se fosse esse o pretexto para a aproximação. O jogo está feito. Phoebus poderá dizer sempre aos Navarra: “Só prestei minha homenagem com a intenção de vos servir”.

Numa semana, Gaston Phoebus conquistou Paris. Chegou em companhia de numerosa comitiva de gentis-homens, de empregados em abundância, vinte carruagens só para transportar sua indumentária e seu mobiliário, uma esplêndida matilha e parte da sua coleção de animais ferozes. Todo esse cortejo se estendeu sobre um quarto de légua. O menor dos pajens estava ricamente vestido, ostentando a libré típica do Béarn; os cavalos eram ajaezados em veludos e sedas, exatamente como são os meus. Uma despesa enorme, convenhamos, mas própria para impressionar as multidões. Nesse ponto Phoebus foi bem sucedido.

Os grandes fidalgos disputavam a honra de recebê-lo. Todos os notáveis da cidade, os membros do Parlamento, o pessoal da universidade, das finanças e até mesmo dignitários da Igreja, inventavam uma desculpa para vir cumprimentá-lo no palácio que sua irmã Branca, a rainha viúva, reservara-lhe para toda a temporada parisiense. As mulheres queriam contemplá-lo, ouvir sua voz, apertar-lhe a mão. Quando se deslocava pela cidade, os basbaques o reconheciam pela cabeleira dourada e se comprimiam na entrada das lojas de prataria ou de modas, em que ele entrava. Reconheciam até o escudeiro que sempre o acompanhava, um gigante denominado Ernauton de Espanha, talvez seu meio irmão adulterino; ao mesmo tempo, reconheciam-no pelos dois enormes cães dos Pireneus de que se fazia acompanhar, atrelados por um empregado. Nas costas de um dos cães, encarapitava-se um macaquinho... Um grande fidalgo fora do comum, mais pomposo do que o mais pomposo dos fidalgos, estava na capital, e todo mundo falava dele.

Conto-te tudo com pormenores; mas neste mau julho estamos na escalada dos dramas; e cada acontecimento é importante.

Irás governar um grande condado, Archambaud, e numa época, eu te garanto, que não será melhor do que esta; não nos recuperaremos facilmente, e em poucos anos, da derrocada em que nos encontramos.

Fixa bem isto na tua memória: quando um príncipe é medíocre por temperamento, ou muito enfraquecido pela idade ou pela doença, não pode manter a unidade de seus conselheiros. Sua equipagem se desdobra, divide-se, porque cada um deseja abocanhar os pedaços de uma autoridade que não se mantém ou que se exerce mal; cada qual fala em nome de um chefe que não comanda mais; cada qual pensa em si, com os olhos postos no futuro. Então formam-se os pequenos partidos, conforme as afinidades de ambição ou de temperamento. As rivalidades se exasperam. Os leais se agrupam de um lado, e do outro lado os traidores, que acreditam ser leais, à sua maneira.

Quanto a mim, chamo de traidores aqueles que traern o interesse superior do reino. Freqüentemente eles são incapazes de percebê-lo; não vêem senão seu interesse pessoal; ora, são esses, infelizmente, que em geral acabam vencendo.

Ao redor do rei João, existiam dois partidos, como existem hoje em torno do delfim, porquanto são os mesmos homens que aí estão.

De um lado, o partido do chanceler Pedro de La Forêt, arcebispo de Rouen, que secunda Enguerrand du Petit-Cellier; são homens que julgo os mais avisados e cuidadosos quanto aos interesses do reino. E de outro lado, Nicolas Braque, Lorris e, principalmente, Simon de Bucy.

Ë possível que vás encontrá-lo em Metz. Ah!, desconfia sempre dele e das pessoas que se pareçam com ele. Um homem de cabeça muito grande num corpo muito pequeno já é um mau sinal, empinado como um galo, muito insolente e violento quando deixa de ser taciturno, e cheio de um imenso orgulho, porém dissimulado. Aproveita-se de um poder exercido na sombra e apenas tem por finalidade humilhar, quando não pôr a perder todos aqueles que percebe desfrutarem de muita importância na corte ou de demasiada influência sobre o príncipe. Ele imagina que governar é apenas negociar, mentir, preparar maquinações. Não tem nenhuma idéia generosa, somente desígnios medíocres, freqüentemente negros, e que persegue com bastante obstinação. Pequeno serventuário do rei Filipe, esgueirou-se até onde se encontra agora... primeiro-presidente do Parlamento e membro do Grande Conselho... com reputação de fidelidade porque é autoritário e brutal. Viram esse homem, em nome da justiça, obrigar litigantes descontentes a ajoelhar-se em pleno pretòrio para lhe pedir perdão, ou mandar executar de uma só vez vinte e três burgueses de Rouen; mas decide absolvições arbitrárias ou adia indefinidamente graves processos, para poder manter muita gente calada e sob seu arbítrio. Não descura quanto à própria fortuna; obteve do abade de Saint-Germain-des-Prés a concessão do direito de entrada na Porta de Saint-Germain, imediatamente denominada Porta de Bucy, e por esse privilégio ganha o tributo que se paga por cargas ou passagem (chamado de portagem) sobre uma grande quantidade de tudo quanto transita por Paris.

A partir do momento em que La Forêt negociou a homenagem de Phoebus, Bucy se opôs a ela e resolveu efetivamente fazer fracassar o acordo. Foi ele que se apresentou perante o rei, vindo de Breteuil, e lhe sussurrou: “Phoebus vos manifesta pouco-caso em Paris com essa ostentação de riqueza... Phoebus recebeu por duas vezes o preboste Marcel... Desconfio que Phoebus conspira com sua mulher e a rainha Branca para obter a evasão de Carlos, o Mau... É preciso exigir de Phoebus toda vassalagem sobre o Béarn... Phoebus não alimenta bons propósitos a vosso respeito... Tende cuidado, ao acolher gentilmente Phoebus, em não desgostar o conde de Armagnac, de que tendes grande necessidade no Languedoc. Certamente o chanceler La Forêt pensa que está agindo bem; mas La Forêt é muito receptivo em relação aos amigos de vossos inimigos... Por que teve essa idéia de convocar Phoebus?” E, com evidente intenção de deixar o rei de mau humor, revelou-lhe uma notícia desagradável. Friquet de Fricamps fugira do Châtelet graças à esperteza de dois dos seus domésticos. Os navarreses desprezavam o poder real e haviam recuperado um homem astuto e bastante perigoso...

Por causa disso, na ceia oferecida na véspera da homenagem, o rei João se revelou arrogante e agressivo, chamando Phoebus de “messire meu vassalo” e lhe perguntando: “Ainda restam alguns homens em vosso feudo, além dos que vos acompanham nesta minha cidade?”

E ainda por cima lhe disse: “Gostaria que vossas tropas não entrassem mais nas terras em que governa monseigneur de Armagnac”.

Muito surpreso, porque tinha sido convencionado com Pedro de La Forêt que esses incidentes seriam considerados como esquecidos, Phoebus replicou: “Meus comandados, sire meu primo, não teriam penetrado no Armagnac a não ser para rechaçar aqueles que vieram me atacar. Mas, se derdes ordem para que cessem as incursões dos homens que obedecem a monseigneur de Armagnac, meus cavaleiros sentir-se-ão felizes em suas fronteiras”. Ao que o rei retrucou: “Sentir-me-ia feliz se eles se mantivessem um pouco mais próximos de mim. Convoquei as hostes para Chartres a fim de enfrentar o Inglês. Tenho certeza de que comparecereis, reunindo-vos a elas com os vexilários de Foix e do Béarn”. “Os vexilários de Foix”, respondeu Phoebus, “serão convocados assim que o vassalo ordenar, uma vez prestada a minha homenagem, sire meu primo. E os do Béarn os acompanharão, caso seja do meu agrado.”

Para uma ceia de reconhecimento chegava-se a bom termo! O arcebispo-chanceler, surpreso e descontente, empenhou-se em vão para pôr em tudo um bocado de contenção. Bucy demonstrava-se impassível. Mas no íntimo exultava. Considerava-se o verdadeiro senhor da situação.

Em relação ao rei de Na varra, nem se chegou a pronunciar o seu nome, embora a rainha Joana e a rainha Branca estivessem presentes.

Saindo do palácio, Ernauton de Espanha, o escudeiro gigante, disse ao conde de Foix... não estava lá, mas este é o sentido do que me contaram: “Admirei a vossa paciência. Se eu fosse Phoebus, não aguardaria um novo ultraje, e voltaria imediatamente para o meu Béarn”. Ao que Phoebus respondeu: “E se eu fosse Ernauton, seria esse exatamente o conselho que teria dado a Phoebus. Mas sou Phoebus, e devo olhar, antes de mais nada, para o futuro de meus súditos. Não desejo ser aquele que rompe e aparenta estar injustiçado. Esgotarei todas as possibilidades de meu acordo, até os limites da honra. Quanto a La Forêt, estou certo de que me jogou numa emboscada. A não ser que um fato novo, que ignoro e que ele mesmo ignora, tenha desviado a atenção do rei. Veremos isso amanhã”.

E no dia seguinte, logo depois da missa, Phoebus surgiu na grande sala do palácio. Seis escudeiros sustentavam a cauda do seu manto, e, o que muito raramente acontecia, ele não estava de cabeça descoberta. Ë que ostentava a coroa de ouro sobre ouro. O aposento estava repleto de camareiros, conselheiros, prelados, capelães, membros do Parlamento e grandes oficiais. Mas quem primeiro divisou Phoebus foi o conde de Armagnac, João de Forez, em pé ao lado do rei, e como que apoiado sobre o trono, exibindo uma postura demasiadamente arrogante. No lado oposto, estava Bucy, que fingia pôr em ordem seus rolos de pergaminho. Apanhou um e leu, como se isso representasse um acórdão comum: “Messire, o rei da França meu senhor, vos recebe pelo condado de Foix e o viscondado de Béarn, de que sois proprietário, e vos tornais seu vassalo como conde de Foix e visconde de Béarn, de acordo com as formalidades ajustadas entre os antepassados reis da França e os vossos. Ajoelhai-vos”.

Houve um instante de silêncio. Em seguida, Phoebus respondeu com voz bastante nítida: “Não posso”.

A assistência ficou siderada de surpresa, sincera, em grande parte, e fingida por alguns, com um travo de prazer. Não era assim tão comum que um incidente desses sobre-viesse numa cerimônia de homenagem.

Phoebus repetiu: “Não posso”. E acrescentou, com bastante clareza: “Tenho um joelho que pode se dobrar: o de Foix. Mas o de Béarn não pode se curvar”.

Então o rei João falou, e sua voz manifestava evidente tom de cólera: “Recebo-vos por Foix e por Béarn”. A assistência fremia de curiosidade. E o debate prosseguiu em tom ainda mais pesado... Phoebus: “Sire, Béarn é terra alodial 1, e não podeis me receber por aquilo que não pertence à vossa soberania”. O rei: “É falso o que alegais, uma vez que por muitos anos essas terras estiveram sujeitas a disputas entre os vossos parentes e os meus”. Phoebus: “Ë verdade, sire, e não haverá mais discórdias se assim o quiserdes. Sou vosso súdito fiel e leal por Foix, de acordo com o que meus pais sempre protestaram, mas não posso me declarar vosso vassalo por aquilo pelo qual só devo obediência a Deus”. O rei: “Mau vassalo! Caminhais por estradas de pura trapaça para vos subtrairdes aos deveres que vos imponho. No ano passado não enviastes vossos vexilários ao conde de Armagnac, meu lugar-tenente no Languedoc, que está aqui presente, e por causa de vossa defecção não pude repelir a investida inglesa!” Phoebus disse então, soberbamente: “Se do meu único concurso depende a sorte do Languedoc, e se messire de Armagnac é impotente para vos defender nessa província, então não será a ele que deveis entregar vossa lugar-tenência, sire, mas a mim”.

O rei ficou furioso; sua barba tremia. “Vós me desprezais, belo sire, mas não o fareis por muito tempo. Ajoelhai-vos!” “Retirai Béarn da vassalagem e eu dobrarei o meu joelho imediatamente.” “Curvá-lo-eis na prisão, traidor malvado!”, gritou o rei. “Prendei-o!”

A comédia estava montada, prevista, organizada, ao menos para Bucy, que não precisou mais do que um aceno para que Perrinet le Buffle e mais seis sargentos da guarda corressem para junto de Phoebus. Sabiam de antemão que o deveriam conduzir ao Louvre.

Nesse mesmo dia, o preboste Marcel ia dizendo pela cidade: “Não sobrou ao rei João um só inimigo; tudo está terminado. Se todos os ladrões que envolvem o rei permanecerem em seus lugares, muito em breve não haverá mais um único homem honesto que possa respirar fora do calabouço”.

 

1 Na jurisprudência feudal, terras alodiais (do alemão “allod”) eram as que, sendo hereditárias, por oposição às terras adquiridas, não pagavam foro nem feudo ou qualquer outro encargo. Livres de encargos ou ônus. A revolução terminou com esse privilégio. (N. do T.)

 

                         O acampamento de Chartres

A grande novidade, meu sobrinho, a grande novidade! Queres saber o que o papa me escreveu numa carta de 28 de novembro, mas cuja expedição ficou um tanto atrasada, ou talvez o mensageiro que ma trouxe tenha ido me procurar onde já não estava, porquanto ela só chegou às minhas mãos ontem, à noite, em Arcis? Adivinha... Pois bem, o Santo Padre, deplorando o desacordo que tive com Niccola Capocci, censura-me “pela falta de caridade que existe entre nós dois”. Desejaria saber como poderia testemunhar caridade para com Capocci? Não o revi mais desde Breteuil, onde bruscamente abandonou minha companhia para ir se instalar em Paris. E quem é mais responsável pelo desacordo, a não ser o papa, que forçosamente quis me associar a esse prelado egoísta, teimoso, unicamente interessado em suas comodidades, e cujas intervenções não tinham outro desígnio a não ser contrariar as minhas? Não cuidou da paz geral. Tudo o que lhe importa é que não seja eu quem a consiga. Falta de caridade, essa é boa! Falta de caridade... Tenho boas razões para pensar que Capocci està mancomunado com Simon de Bucy, e que por qualquer motivo contribuiu para a prisão de Phoebus, que, eu te asseguro, exatamente, e sabes bem disso... foi libertado em agosto, e graças a quem? A mim; isto tu não sabias... sob a promessa de que ele se alistaria nas hostes do rei...

Enfim, o Santo Padre quer convencer-me de que me louva pelos meus esforços e que minhas atividades são aprovadas, não somente por ele, mas por todo o colégio de cardeais. Espero que não tenha escrito ao outro igualmente... Mas torna a insistir, como já havia feito em outubro, a propósito do seu conselho de incluir Carlos de Navarra na paz geral. Adivinho facilmente quem lhe sopra isso nos ouvidos...

Foi depois da fuga de Friquet de Fricamps que o rei João decidiu transferir seu genro para Arleux, uma fortaleza da Picardia em cujos arredores só há afeiçoados aos D’Artois. Temia que, estando Carlos de Navarra em Paris, pudesse levar vantagens através de cumplicidades. Não queria deixar Phoebus e Carlos na mesma prisão, isto é, na mesma cidade...

E depois, tendo resolvido o caso de Breteuil como te contei ontem, voltou a Chartres. Chegou a me dizer: “Tornaremos a conversar em Chartres”. Quanto a mim, estive presente, enquanto Capocci exibia sua vaidade em Paris...

Onde estamos agora? Brunet!, qual é o nome deste burgo?... E Poivres, já passamos por Poivres? Ah!, ainda bem, é mais adiante. Disseram-me que a igreja é digna de ser admirada. De resto, todas essas igrejas da Champagne são muito bonitas. É uma região cheia de fé...

Oh!, não me arrependo de ter visto o acampamento de Chartres, e desejaria que tu também o tivesses visto... já sei; foste dispensado de servir às hostes a fim de substituir teu pai, doente, na tarefa de manter os ingleses, bem ou mal, afastados do Périgord... Isso possivelmente te livrou de estares hoje deitado sob uma pedra tumular, num convento de Poitiers. Quem vai saber? A Providência decide.

Então, imagina Chartres: sessenta mil homens, mais ou menos, acampados na vasta planície dominada pelas flechas da catedral. Um dos maiores exércitos, senão o maior jamais reunido num reino. Mas separado em duas partes bem distintas.

De um lado, alinhadas em belas filas, às centenas, as tendas de seda ou de tela colorida dos vexilários e dos cavaleiros. A movimentação dos homens, dos cavalos, das carroças produzia um verdadeiro formigamento de cores, de aço, ao sol, a perder de vista; e foi exatamente desse lado que vieram instalar suas bancas sobre rodas os negociantes de armas, de arreios, de vinho, e alimentos, bem como os bordeleiros, conduzindo carros cheios de mulheres, sob a vigilância do rei dos ribaldos... cujo nome ainda não consegui recordar.

E em seguida, a uma razoável distância, bem separados como nas representações do Juízo Final... de um lado, o paraíso; do outro lado, o inferno... os peões sem outro abrigo, em cima do trigo recém-colhido, a não ser uma tela erguida sobre um pique, quando tiveram o cuidado de se garantir com algum; uma imensa multidão espalhada ao deus-dará, cansada, suja, ociosa, que se agrupava por acaso e que mal obedecia a chefes improvisados. Aliás, a quem deveria obedecer? Não lhe davam nenhuma tarefa, não lhe ordenavam qualquer manobra. Toda a ocupação dessa gente consistia na busca de alimentos. Os mais espertos iam “larapiar” (como diziam) no lado dos cavaleiros ou roubar galinhas nos terreiros das choupanas vizinhas, ou ainda caçar, às escondidas. Atrás de cada talude viam-se três mendigos acocorados ao redor de um coelho em vias de ser assado. Acontecia haver subitamente correrias em direção das carroças que distribuíam pão de cevada, em horas irregulares. A passagem diária do rei é que era regular no esquadrão dos peões. Inspecionava os recém-chegados, uma vez os de Beauvais, no dia seguinte os de Soisson, depois os de Orléans e de Jargeau.

Fazia-se acompanhar, vê bem, por seus quatro filhos, seu irmão, o condestável, dois marechais, João d’Artois, de Tancarville, que posso mais acrescentar? ... uma quantidade enorme de escudeiros.

Certa vez em que eu estava na retaguarda, e logo verás por que motivo... convidou-me como se estivesse me dando uma grande honra. “Monseigneur de Périgord, amanhã, tende a gentileza de me acompanhar, quero conduzir-vos à inspeção.” Quanto a mim, contava concordar com ele a propósito de algumas proposições, por mais vagas que fossem, para transmiti-las aos ingleses, a fim de conseguir reiniciar um começo de negociação. Tinha-lhe proposto que os dois reis nomeassem uma comissão de deputados para redigir uma lista com todos os litígios existentes entre os dois reinos. Sem isso, seria possível discutir durante quatro anos.

Procurava ainda por outro lado uma outra abordagem, muito diferente. Fingia-se ignorar os litígios e iniciavam-se as preliminares sobre os preparativos de uma expedição comum em direção a Constantinopla. O importante seria começar a falar...

Resolvi então arrostar minha batina vermelha nessa piolheira que dominava a Beauce. Digo com absoluta segurança: piolheira, porque, ao regressar, Brunet teve que me catar os piolhos. Eu não podia me negar e afastar de mim aqueles pobres-diabos que vinham beijar a barra de minhas vestes! O mau cheiro era ainda mais incômodo do que aquele que senti em Breteuil. Na noite precedente houve uma grande tempestade, e os peões tiveram que dormir sobre a terra encharcada. Seus andrajos fumegavam ao sol da manhã, e eles fediam terrivelmente. O Arcipreste, que marchava ao lado do rei, parou. Decididamente esse Arcipreste desempenhava um papel muito importante! O rei e toda a sua comitiva pararam.

“Sire, eis aqui os homens do prebostado de Bracieux no bailiado de Blois, que chegaram ontem. Estão em estado lastimável...” Do alto de sua armadura o Arcipreste apontava uma quarentena de mendigos esfarrapados, imundos, hirsutos. Havia dez dias não cuidavam nem da barba nem dos cabelos; muito menos de tomar banho. A disparidade de suas roupas se confundia numa cor acinzentada de sujeira e de terra. Alguns calçavam sapatos furados; outros tinham as pernas envoltas somente com panos de aparência duvidosa; outros ainda estavam inteiramente descalços. Para aparentar melhor situação, todos ficaram de pé, mas seus olhares demonstravam inquietação. Por Deus, não esperavam ver surgir diante deles o rei em pessoa, rodeado de sua brilhante comitiva! E os mendigos de Bracieux encostavam-se uns nos outros. As lâminas curvas e os piques pontiagudos de algumas partasanas apareciam em ponta acima deles, como espinhos fora de um lamacento feixe de lenha.

“Sire”, insistia o Arcipreste, “são trinta e nove, quando deveriam ser cinqüenta. Oito são gladíferos, nove estão providos de uma espada em péssimo estado. Só um possui uniforme completo, uma espada e um glàdio. Um deles possui um machado, três têm varapaus de ponta ferrada, e um outro está armado com uma faca de ponta; os demais não têm absolutamente, nada.”

Teria tido vontade de rir se não houvesse indagado de mim mesmo o que levava o rei a perder assim seu precioso tempo e o de seus marechais convocando aquelas espadas enferrujadas. Que ele fizesse suas aparições uma vez, vá lá! seria interessante. Mas todos os dias, todas as manhãs? E por que me convidava para essa miserável demonstração?

Fiquei surpreso ao ouvir o mais moço dos seus filhos, Filipe, exclamar com sua voz de falsete, própria de adolescentes quando desejam se impor como homens já amadurecidos: “Não será certamente com esses homens que travaremos grandes batalhas”. Não tem mais do que catorze anos, sua voz está mudando, e ele não cabia inteiramente na sua cota de malha. O pai acariciou-lhe a cabeça, como se se sentisse feliz por ter dado nascimento a um guerreiro tão prudente. Em seguida, dirigindo-se aos homens de Bracieux, perguntou: “Por que não estais mais bem providos de armas?

Vamos, por quê? Ë dessa maneira que vos apresentais em minhas hostes? Não recebestes as ordens de vosso preboste?”

Foi então que um atrevido menos trêmulo do que os demais, por acaso exatamente o que carregava consigo o único machado, apresentou-se para dizer: “Sire, nosso chefe, o preboste, ordenou armar-nos cada qual de acordo com suas possibilidades. Armamo-nos como pudemos. Aqueles que não têm nada é porque seu estado não lhes permitia mesmo coisa alguma”.

O rei João voltou-se para o condestável e os marechais, com aquele ar de quem está satisfeito, até mesmo em seu detrimento, porque as circunstâncias lhe davam razão: “Mais um preboste que não cumpriu o seu dever... Demiti-o como o fizestes com o de Saint-Fargeau e o de Soissons. Pagarão a multa. Anotai, Lorris...”

Um instante depois, explicou-me que aqueles que não se apresentassem à demonstração, ou nela aparecessem desarmados e não pudessem combater, seriam obrigados a pagar o resgate. “São as multas devidas por todos os peões que me fornecerão o necessário para pagar os meus cavaleiros.”

Uma bela idéia, que deve ter vindo de Simon de Bucy, e que ele adotava como sua. Eis por que tinha convocado a nobreza, e eis por que contava com essa espécie de rapacidade os destacamentos que mandava de volta para suas casas. “Que emprego daríamos a essa gentalha?”, disse-me ainda. “Por causa dessas tropas a pé é que meu pai foi derrotado em Crécy. A gentalha retardava tudo e impedia avançar como é indispensável.”

E todos concordavam com ele, salvo, devo dizê-lo, o delfim, que parecia ter uma reflexão à flor dos lábios, mas a reservava para si mesmo.

Deve-se convir que do outro lado do acampamento, da parte dos homens de pendão, dos cavalos e das armaduras, tudo ia às mil maravilhas? Apesar das reiteradas convocações, e malgrado os belos regulamentos que prescreviam aos vexilários e aos capitães inspecionar duas vezes por mês, de improviso, seus homens, armas e montarias, a fim de estarem sempre prontos para uma arremetida, e que proibiam mudar de chefe ou retirar-se sem permissão, “sob pena de perder seus soldos e serem punidos exemplarmente”, malgrado tudo isso, um bom terço dos cavaleiros não havia se apresentado. De outro lado, obrigados a equipar um esquadrão ou uma companhia de pelo menos vinte e cinco lanças, apenas apresentavam dez. Cotas de malhas rotas, capacetes de ferro amassados, arreios muito ressequidos e que rangiam a todo instante... “Eh!, messire, como poderia provê-lo? Nem fui reajustado ainda em meus soldos e tenho que conservar minha própria armadura...” Lutava-se para refrear os cavalos. Os chefes andavam no acampamento à procura de sua tropa dispersa, e os adestradores, mais ou menos à procura dos seus chefes. De uma tropa para outra surrupiava-se o pedaço de madeira, o couro, a sovela ou o martelo de que se necessitava. Os marechais eram assediados pelas reclamações, e suas cabeças ressoavam com as pesadas palavras que trocavam entre si os vexilários encolerizados. O rei João não queria saber de nada. Contava os peões que pagariam o resgate...

Dirigia-se para a concentração do pessoal de Saint-Aígnan quando chegaram, a todo galope através do acampamento, seis homens de armas, com seus cavalos alagados de suor, e eles próprios com o rosto suado e a armadura empoeirada. Um deles apeou-se, pesadamente, pediu licença para falar ao condestável e, aproximando-se dele, foi dizendo: “Estou a serviço de messire de Boucicaut, do qual vos trago notícias”.

Com um aceno, o duque de Atenas convidou o mensageiro a fazer seu relato ao rei. O mensageiro esboçou o gesto de se ajoelhar, mas as engrenagens de sua armadura não o permitiam; o rei dispensou-o de qualquer cerimônia e incitou-o a falar.

“Sire, messire de Boucicaut está cercado em Romorantin.”

Romorantin! A comitiva real ficou um momento assustada com o golpe. Romorantin, a trinta léguas apenas de Chartres, do outro lado do Blois! Não se imaginava que os ingleses estivessem tão perto.

Porque, enquanto se acabava o cerco de Breteuil e se mandava Gaston Phoebus para a prisão, e as duas nobrezas lentamente se concentravam em Chartres, o príncipe de Gales... como sabes melhor do que ninguém, Archambaud, porquanto estiveste protegendo Périgueux... empreendeu sua investida a partir de Sainte-Foy e Bergerac, onde entrou em território real e continuou em direção ao norte, pela estrada que seguimos, por Châteaux-PÉvêque, Brantôme, Rochechouart, La Péruse, provocando essas devastações que acabamos de ver. Estávamos informados de sua progressão e devo acrescentar que não fiquei surpreso ao ver o rei se comprazer em Chartres, enquanto o príncipe Eduardo devastava o país. Acreditava-se que este, pelas notícias recebidas, estivesse em algum lugar ainda entre La Châtre e Bourges. Pensava-se que iria continuar em direção a Orléans, e era aí que o rei contava como certo dar-lhe combate, cortando-lhe o caminho de Paris. À vista disso, o condestável, perfeitamente inspirado pela prudência, tinha enviado um pelotão de trezentas lanças, sob as ordens dos messires de Boucicaut, de Craon e de Caumont, com largo conhecimento do outro lado do Loire, para colher informações. Recebeu de resto muito poucas. E em seguida, subitamente, Romorantin! O príncipe de Gales tinha-se desviado para oeste...

O rei pediu ao mensageiro que prosseguisse.

“Antes, sire, messire de Chambly, que messire de Boucicaut tinha destacado para obter informes, deixou-se prender do lado de Aubigny-sur-Nère...” “Ah!, Gris-Mouton está preso...”, disse o rei, porque é assim que apelida messire de Chambly.

O mensageiro de Boucicaut retomou: “Mas messire de Boucicaut não soube disso imediatamente, e foi assim que nos vimos, subitamente, na vanguarda dos ingleses. Nós atacamos tão seriamente que eles foram obrigados à retirada...” “Como sempre”, disse o rei João. “Mas eles reabasteceram-se com reforços, numericamente superiores a nós, e nos assaltaram por todos os lados, a ponto de messires de Boucicaut, de Craon e de Caumont nos encaminharem rapidamente para Romorantin, onde ficaram cercados, perseguidos por todo o exército do príncipe Eduardo, que, no momento em que messire de Boucicaut me despachou, começava o seu cerco. Eis aí, sire, o que me competia dizer.”

Houve silêncio novamente. Em seguida, o marechal de Clermont teve um acesso de cólera. “Por que diabo teriam atacado? Não era o que lhes havíamos ordenado.” “Censurai-os por sua valentia?”, respondeu-lhe o marechal d’Audrehem. Eles tinham desbaratado o inimigo, tinham-no enfrentado. “Bela valentia”, disse Clermont. “Eram trezentas lanças, e eles só tinham vinte, e avançam sem nenhuma previdência, acreditando que seria essa uma grande proeza. E, em seguida, surgiram mil, e ei-los agora fugindo por sua vez, e correndo para se esconderem no primeiro castelo. Agora não nos servem para mais nada. Não é valentia, é burrice.”

Os dois marechais discutiam como de costume, e o condestável deixou-os falar. O condestável não gostava de tomar nenhum partido. Era um homem com mais coragem física do que espiritual. Preferia ser chamado de Atenas a Brienne, em virtude do nome do antigo condestável, seu primo, decapitado. Ora, Brienne era seu feudo, enquanto Atenas não passava de velha lembrança de família, sem nenhuma realidade, nem mesmo numa cruzada... Ou talvez, simplesmente, tivesse se tornado indiferente, com a idade. Há muitos anos comandara, e com eficiência, os exércitos do rei de Nápoles. Detestava a Itália porque detestava sua mocidade. O Arcipreste, um pouco afastado, observava com ar galhofeiro a conversa dos marechais. Foi o rei quem acabou encerrando os debates.

“Penso”, disse ele, “que esses reveses nos servem. Porque o Inglês agora está preso num cerco. E sabemos, neste momento, como atacá-lo, enquanto está retido.” Dirigiu-se em seguida ao condestável: “Gautier, ponde as hostes em movimento, amanhã, de madrugada. Separai-as em diversos campos de luta, fazei-as atravessar o Loire em vários pontos, precisamente onde estão as pontes, para não nos atrasarmos, mas mantendo uma estreita conexão entre os campos de combate a fim de serem reunidos num lugar escolhido, além do rio. Quanto a mim, seguirei para Blois. E atacaremos o exército inglês pela retaguarda em Romorantin, ou melhor, se ele pensar em prosseguir, cortaremos todos os caminhos diante dele. Reforçai o Loire, o mais distante que for possível de Tours, até Angers, para que jamais o duque de Lancastre, que vem da Normandia, possa juntar-se ao príncipe de Gales”.

João II surpreendia seus partidários! De súbito, calmo e senhor de si, eis que dava ordens claras e fixava as evoluções do seu exército, como se tivesse a França inteira diante de si. Interditar o Loire do lado do Anjou, transpô-lo na Touraine, estar pronto seja para descer em direção ao Berry, seja para interditar a estrada de Poitou e do Angoumois... e no final disso tudo avançar para reconquistar Bordeaux e a Aquitânia. “E que a presteza seja a nossa meta, que a surpresa desempenhe um papel a nosso favor.” Todos se empertigaram, prontos para a ação. Anunciava-se uma bela cavalgada.

“E que se mande de volta toda essa gentalha”, ordenou ainda João II. “Não teremos a repetição de Crécy. Apenas em homens de armas seremos ainda cinco vezes mais numerosos do que esses malvados ingleses.”

E assim, porque dez anos antes os arqueiros e besteiros, malpreparados, haviam prejudicado os movimentos da cavalaria e decidido a perda de uma batalha, o rei João renunciou a usar, dessa feita, a infantaria. E seus chefes de homens de pendão (os vexilários franceses) concordaram, porque todos eles tinham estado em Crécy e ainda permaneciam amargurados. Não cometer o mesmo erro era o seu maior empenho.

Somente o delfim animou-se a dizer: “Desta forma, meu pai, não teremos todos os nossos arqueiros...”

O rei nem mesmo se dignou responder-lhe. E o delfim, que se achava ao meu lado, disse, como se procurasse um apoio ou desejasse que eu não o tomasse por um ingênuo: “Os próprios ingleses usam seus arqueiros a cavalo. Mas ninguém consentiria, do nosso lado, em dar cavalos a pessoas do povo”.

Bem, isso me faz lembrar... Brunet!... Se o tempo amanhã continuar tão agradável como agora, farei uma etapa, que será muito curta, sobre o meu palafréni. É preciso me acostumar novamente à montaria, antes de Metz. E além disso, quero demonstrar ao pessoal de Châlons, entrando em sua cidade, que posso cavalgar tanto quanto o seu louco bispo Chauveau... que ainda não foi substituído.

 

                               O príncipe da Aquitânia

Ah!, tu me achas muito zangado, Archambaud, neste fim de estrada que nos levará até Saint-Menehould. Já está combinado que nunca me deterei numa grande cidade sem nela encontrar alguma notícia que me faça ferver o sangue. Em Troyes, foi a carta do papa. Em Châlons, o correio de Paris. Que fiquei sabendo? Que o delfim, quinze dias antes de iniciar sua viagem, assinou um mandado para alterar, uma vez mais, o valor das moedas, no sentido de desvalorização, claro. Mas, temeroso de que a coisa não fosse bem recebida... para tanto não havia necessidade de ser grande adivinho para prevê-lo... recusou a promulgação até depois de sua partida, quando estaria longe, com cinco dias de estrada, e somente a 10 deste mês o mandado foi publicado. Em resumo, o delfim tem medo de afrontar seus burgueses e escondeu-se como um veado na mata. Com efeito, a fuga é freqüentemente seu recurso! Não sei quem lhe aconselhou esse pouco honroso ardil, se foi Braque ou Bucy; mas os frutos amadurecerão depressa. O preboste Marcel e os maiores comerciantes, terrivelmente encolerizados, foram cantar matinas ao duque de Anjou, que o delfim instalou no Louvre em seu lugar; e o segundo filho do rei, que só tem dezoito anos e muito pouco juízo, deixou-se convencer, a fim de evitar a revolta com a qual o ameaçavam, a suspender o mandado até a volta do delfim. Ou não se executará a medida, pensamento para o qual estou inclinado, porque ela não passa mais uma vez de um expediente infeliz, ou será executada e posta em ação imediatamente. Chega muito bem recomendado o nosso delfim Carlos junto ao seu tio, o imperador, no momento em que na capital o conselho da cidade se recusa a obedecer às suas ordens reais!

Neste momento, quem manda verdadeiramente no reino da França? Temos o direito de indagá-lo. Não nos enganemos, a coisa vai ter graves seguimentos. Porque aí temos o preboste Marcel, muito seguro de si, sabendo que conseguiu dobrar a vontade da coroa e sustentado forçosamente pela população dos burgueses, já que está defendendo a bolsa deles. O delfim desamparou realmente seus Estados Gerais, deixando-os ao deus-dará com sua partida; com esse golpe perde todas as vantagens. Concorda que é decepcionante, em verdade, empenhar-se tanto em devorar estradas como estou fazendo há já meio ano para tentar melhorar a sorte de príncipes tão obstinados em prejudicarem a si próprios!

Adeus, Châlons... Oh, não, oh, não!, não desejo me meter na designação de um novo bispo. O conde-bispo de Châlons é um dos seis pares eclesiásticos. É negócio para o rei João ou para o delfim. Eles que se arrumem diretamente com o Santo Padre... ou, melhor, que entreguem a prebenda a Niccola Capocci; urna vez na vida ele terá uma incumbência, bem feitas as contas...

Não é preciso, bem vistas as coisas, sobrecarregar o delfim; ele já não tem uma missão muito fácil. O rei João é o grande errado; e jamais o filho poderá cometer tantos erros quanto os que o pai já somou.

Para me acalmar, ou talvez para me encolerizar ainda mais... Deus me perdoe se estou pecando... vou relatar-te a temeridade do rei João. E verás como um rei perde a França!

Em Chartres, como já te havia contado, o rei se refez. Cessara de falar em cavalaria quando tinha que falar de finanças, ocupar-se com finanças quando deveria ocupar-se com a guerra, e preocupar-se com bagatelas enquanto estava em jogo o destino do reino. Uma vez ao menos, parecia sair de sua confusão interior e de sua funesta inclinação para o contratempo; uma vez ao menos, parecia coincidir com a hora. Havia adotado verdadeiras disposições de campanha. E como o humor do chefe é coisa contagiosa, essas disposições foram executadas com exatidão e rapidez.

Em primeiro lugar, interditar aos ingleses a passagem do Loire. Fortes destacamentos, comandados por capitães aos quais essas regiões eram familiares, foram enviados para reforçar todas as pontes e passagens entre Orléans e Angers. Ordens aos chefes para manter permanente contato com seus vizinhos, enviar freqüentemente mensageiros ao exército do rei. Impedir a junção a qualquer preço da cavalgada do príncipe de Gales, que vem de Sologne, com a do duque de Lancastre, que chega da Bretanha. Serão combatidas separadamente. E, em primeiro lugar, o príncipe de Gales. O exército, dividido em quatro colunas para facilitar a movimentação, atravessará o rio pelas pontes de Meung, de Blois, de Amboise e de Tours. Evitar os engajamentos, sejam quais forem as ocasiões que se ofereçam, antes que todos os corpos de combate estejam reunidos além do Loire. Nada de proezas individuais, por mais tentadoras que possam parecer. A proeza será esmagar os ingleses em conjunto e livrar o reino da França da miséria e da vergonha que vem sofrendo há tantos e tão longos anos. Tais foram as instruções que o condestável duque de Atenas deu aos chefes em comando, reunidos antes da partida. “Ide, meus senhores, e que todos cumpram o seu dever! O rei tem as vistas voltadas sobre vós.”

O céu estava encoberto por grandes nuvens negras, que, subitamente, estouraram, transpassadas de raios. Durante todos esses dias o Vendômois e a Touraine foram fustigados por chuvas torrenciais, breves mas pesadas, que encharcavam as cotas de armas e os arneses, atravessavam as camisas de malha, tornando os couros mais pesados. Dir-se-ia que os raios eram atraídos por todo esse mundo de aço que desfilava; três homens de armas que estavam abrigados debaixo de uma árvore foram atingidos pelos raios. Mas o exército no seu conjunto suportava bem essa intempérie, muitas vezes encorajado por um povo em gritaria. Porque os burgueses das pequenas cidades e os moradores dos campos estavam bastante inquietos com o avanço do príncipe da Aquitânia, sobre o qual se contavam histórias assustadoras. Esse longo desfilar de armaduras que se apressavam em quatro colunas assegurava-lhes, no seu modo de entender, que os combates não se dariam nas suas paragens. “Viva nosso bom rei! Maltratai bastante seus inimigos! Que Deus vos proteja, valorosos fidalgos!” O que queria dizer: “Que Deus nos proteja, graças a vós... dos quais muitos vão morrer em algum lugar... a fim de que não vejamos nossas casas e nossos pobres animais queimados, nossos rebanhos dispersos, nossas colheitas perdidas, nossas filhas maltratadas. Deus nos proteja contra essa guerra que ides combater além”. E não eram mesquinhos quanto ao seu vinho, que é suave e dourado. Davam-no aos cavaleiros, que o bebiam, de viseira levantada, sem parar a montaria.

Vi tudo isso porque tomara a resolução de seguir o rei e ir, como ele determinara, até Blois. O rei apressava-se para a guerra, mas eu tinha uma missão de paz. E insistia. Também eu tinha o meu plano. E minha liteira avançava na retaguarda do grosso do exército, acompanhada de destacamentos que não tinham chegado a tempo ao acampamento de Chartres. Chegariam ainda, passados alguns dias, os condes de Joigny, de Auxerre e de Châtillon, três arrogantes companheiros de armas que marchavam sem pressa, acompanhados de todas as lanças dos seus condados, e levavam a guerra por seu lado alegre. “Boa gente, por acaso vistes passar o exército do rei?” “O exército? Vimos passar anteontem, e quanta gente, quanta gente! Durou um bom par de horas. E nesta manhã ainda passou outro tanto. Se encontrardes o Inglês, não lhes deis quartel.” “Claro, minha boa gente, claro... e, se agarramos o príncipe Eduardo, não nos esqueceremos de vos mandar um pedaço.”

Durante esse tempo, o príncipe Eduardo, vais me perguntar... O príncipe tinha se atrasado diante de Romorantin. Por menos tempo do que o rei João desejava, mas o bastante para lhe permitir o desenvolvimento da manobra. Cinco dias, pois os sires de Boucicaut, de Craon e de Cau-mont haviam se defendido furiosamente. Só na jornada de 31 de agosto assaltaram-nos três vezes e foram repelidos. E foi somente a 3 de setembro que a localidade se rendeu. O príncipe mandou incendiá-la, como costumava fazer; mas no dia seguinte, que era domingo, foi-lhe necessário dar repouso à tropa. Os arqueiros, que tinham sofrido muitas perdas, estavam cansados. Era o primeiro combate um pouco mais sério desde o início da campanha. E o príncipe, menos sorridente do que de costume, tendo sabido pelos seus espiões... porque tinha sempre espias bastante avançados... que o rei da França, com todas as suas hostes, se dispunha a romper sobre ele, pensava agora se não fora um erro seu insistir contra a fortaleza, e se não teria agido melhor se tivesse deixado as trezentas lanças de Boucicaut encerradas em Romorantin.

Desconhecia o tamanho exato do exército do rei João; mas reconhecia que era mais forte do que o seu esse exército que ia tentar a passagem através de quatro pontes de uma vez... Se não quisesse estar numa desigualdade tão esmagadora, ser-lhe-ia preciso a qualquer preço unir as tropas com as do duque de Lancastre. A cavalgada divertida estava terminada, acabava também o seu entretenimento com os camponeses, fugindo pelos bosques e dos telhados dos mosteiros em chamas. Os sires de Chandos e de Grailly, seus melhores capitães, não estão menos inquietos, e são eles justamente, velhos salteadores de estradas atirados aos azares das guerras, que o instigam a não se demorar muito. Então, ele desce o vale do Cher, atravessando Saint-Aignan, Thésée, Montrichard, sem se demorar na pilhagem, sem nem mesmo apreciar a bela ribeira de águas tranqüilas, nem suas ilhas plantadas de olmeiros atravessados pelo sol, nem os outeiros argilosos onde amadurecem, aquecidas, as próximas colheitas. Caminha para o oeste em busca de socorro e de reforço.

A 7 de setembro, atinge Montlouis, onde fica sabendo que um grande corpo de combate está em Tours, sob o comando do conde de Poitiers, terceiro filho do rei, e do marechal de Clermont.

Assim sendo, pondera. Aguarda quatro dias nas alturas de Montlouis, até que chegue Lancastre, que deve ter atravessado o rio; o milagre, no final das contas. E se não se der o milagre, sua posição é boa, apesar de tudo. Espera durante quatro dias que os franceses, os quais sabem o lugar onde ele se encontra, o ataquem. Contra o corpo de Poitiers-Clermont, o príncipe de Gales julga que ainda pode enfrentá-lo, e até suplantá-lo. Escolheu seu posto estratégico sobre um terreno dividido por espessos bosques de espinheiros. Ocupa seus arqueiros em aterrorizar os entrincheirados. Com seus marechais e escudeiros, vai pessoalmente acampar nas casinholas próximas.

Quatro dias, desde a madrugada, perscruta o horizonte em direção a Tours. A manhã desdobra no imenso vale suas cerrações douradas; o rio, cheio pelas recentes chuvas, corre, cor de tijolo, entre suas margens verdes escarpadas. Os arqueiros prosseguem amoldando os taludes.

Quatro noites, olhando o céu, o príncipe se interroga sobre o que o espera na madrugada seguinte. Tão belas essas noites nesses momentos! E Júpiter brilhava lá no alto, maior do que todos os demais astros.

“Que desejarão os franceses?”, perguntava o príncipe. “Que pensarão fazer?”

Ora, os franceses, obedecendo uma vez ao menos à ordem que lhes foi dada, não atacam. A 10 de setembro, o rei João está em Blois, com seu corpo de combate bem congregado. No dia 11, movimenta-se em direção à agradável cidade de Amboise, o que quer dizer, quase atingindo Montlouis. Adeus, reforços, adeus, Lancastre; o príncipe de Gales é forçado a se retirar para a Aquitânia, o mais rápido possível, se deseja evitar que, entre Tours e Amboise, não se encerre a nassa; não pode fazer frente a dois corpos de combate. Nesse mesmo dia, desaloja-se de Montlouis, indo pernoitar em Montbazon.

E aí, na manhã do dia 12, que irá acontecer? Duzentas lanças precedidas de um estandarte amarelo e branco e, no meio das lanças, uma grande liteira cor de purpura de onde sai um cardeal... Acostumei meus sargentos e criados, sabes disso, a se ajoelharem quando eu apeio. Isso causa impressão às pessoas das quais me aproximo. Muitos imediatamente se ajoelham e se persignam. Meu aparecimento provocou emoção no acampamento inglês, posso te garantir.

Deixara o rei João, na véspera, em Amboise. Sabia que ainda não entraria em combate, mas que o momento não poderia ser adiado. Então pensei que era a minha vez de entrar em ação. Passei por Bléré, onde consegui dormir um pouco. Rodeado das armaduras do meu sobrinho de Durazzo e de messire de Hérédia, e acompanhado pelas vestimentas dos meus prelados e clérigos, encaminhei-me até o príncipe e pedi-lhe que conversasse comigo, inteiramente a sós.

Pareceu-me apressado, afirmando que deixaria o acampamento dentro de poucas horas. Assegurei-lhe que havia tempo suficiente, e que meu propósito, o mesmo do nosso Santo Padre, o papa, merecia ser ouvido por ele. Ao saber, como eu lhe desse certeza disso, de que não seria atacado nesse mesmo dia, mostrou-se mais confiante; mas, durante todo o tempo em que conversamos, embora procurasse demonstrar estar seguro de si mesmo, continuou revelando a mesma pressa, o que afinal achei bom.

Como acontece comigo, havia naturalmente nesse príncipe bastante altivez, o que não tornava nada fácil nossa conversa. Mas tenho bastante idade, e é o que me vale...

Belo homem, belo porte... Com efeito, com efeito, é verdade, meu sobrinho, ainda não te descrevi o príncipe de Gales: vinte e seis anos. É, de resto, a idade da nova geração que se tornou dona dos negócios do Estado. O rei de Navarra tem vinte e cinco anos, e Phoebus também; somente o delfim é mais moço; o príncipe de Gales tem um sorriso jovial que nenhum dente estragado desdoura. Pela carnação e a parte inferior do rosto, tem tudo de sua mãe, a rainha Filipa. Conserva as mesmas maneiras folgazãs, e vai engordar como ela. Quanto à parte superior do rosto, herdou muito mais do seu bisavô, Filipe, o Belo. Uma testa ampla, olhos azuis, rasgados e grandes, de uma frieza de ferro. Olha-nos fixamente, de um modo que desmente a amenidade do sorriso. As duas metades dessa personagem, de expressão tão diversa, são separadas por um belo bigode loiro, à moda saxônia, que lhe enquadra o lábio e o queixo... No fundo, sua natureza é a de um dominador. Só vê o mundo do alto de um cavalo.

Sabes quais são os seus títulos? Eduardo de Woodstock, príncipe de Gales, príncipe da Aquitânia, duque da Cornualha, conde de Chester, senhor de Biscaye... O papa e os reis coroados são os únicos homens que ele encara como seus superiores. De seu ponto de vista, todas as outras criaturas estão em grau de inferioridade. Tem o dom do comando, é indiscutível, e o desprezo pelo risco. É paciente; mantém-se tranqüilo diante do perigo. Pomposo nos êxitos e esbanjador nos presentes para com seus amigos.

Já tem um apelido, Príncipe Negro, que deve à sua armadura de aço brunido, de que cuida com muito carinho e que o torna extremamente notável, sobretudo com as três plumas brancas do seu elmo entre as camisetas de malhas muito brilhantes e as cotas de armas multicores dos cavaleiros que o rodeiam. A glória lhe sorriu muito cedo. Em Crécy, tinha apenas dezesseis anos, seu pai confiou uma batalha inteira ao seu comando, a dos arqueiros galeses, naturalmente resguardado por capitães experientes, que o deviam aconselhar e mesmo dirigi-lo. Ora, essa batalha foi tão severamente acometida pelos cavaleiros franceses que, em determinado momento, julgando o príncipe em perigo, aqueles que tinham o encargo de acompanhá-lo correram até o rei para lhe solicitar que viesse em socorro do próprio filho. O rei Eduardo III, que observava o combate do topo de um moinho, respondeu ao mensageiro: “Meu filho está morto, assustado ou tão ferido que não possa defender-se? Não?... Então, voltai para junto dele ou para junto dos que vos enviaram, e dizei-lhes que não devem me pedir socorro, aconteça o que acontecer, enquanto ele estiver vivo. Determino que permitais ao garoto conquistar suas esporas, porque, espero, se Deus for servido, que esta empreitada seja sua, e que toda a honra lhe pertença”.

Eis o jovem diante do qual eu me encontrava pela primeira vez.

Disse-lhe que o rei da França... “Perante mim, não é o rei da França”, replicou o príncipe. “Perante a Santa Igreja, é o rei ungido e coroado”, retruquei-lhe. “Calculai que o rei da França está à frente com suas hostes, que somam cerca de trinta mil homens.” Exagerei um pouco, é claro, e para ser acreditado, concluí: “Outros vos falariam de sessenta mil. Quanto a mim, digo-vos a verdade. Não incluo a populaça que ficou para trás”. Evitei dizer-lhe que essa gente havia sido dispensada; tive o pressentimento de que ele já soubera disso.

Pouco importa; sessenta ou trinta, ou mesmo vinte e cinco, número que mais se aproxima do verdadeiro: o príncipe não tinha mais do que seis mil homens consigo, incluindo todos os arqueiros e cuteleiros. Acrescentei-lhe que doravante não era mais questão de valentia, mas de número.

Disse-me que iria unir-se, de uma hora para outra, ao exército de Lancastre. Respondi-lhe que o desejava de todo o coração, para sua sorte.

Compreendeu que em matéria de prevenção não levaria vantagem sobre mim, e, depois de um breve instante de silêncio, disse-me, de supetão, que me achava mais favorável ao rei João... presentemente, reconhecia-lhe o título de rei... do que a seu pai. “Sou apenas favorável à paz entre os dois reinos”, respondi-lhe, “e é ela que vos venho propor.”

A essa altura, começou a me contar com grande petulância que no ano precedente havia atravessado todo o Languedoc e conduzido seus cavaleiros até o mar latino, sem que o rei lhe pudesse opor qualquer resistência; que nessa mesma temporada vinha de uma cavalgada desde a Guyenne até o rio Loire; que a Bretanha estava por pouco para ser um domínio inglês; que boa parte da Normandia, sob as ordens de monseigneur Filipe de Navarra, estava prestes a seguir o mesmo destino; que inúmeros fidalgos do Angoumois, do Poitou, de Saintonge e até do Limousin eram seus aliados... teve a gentileza de não mencionar o Périgord ... e ao mesmo tempo olhava a altura do sol pela janela... para finalmente sair-se com esta: “Depois de tantos êxitos para nossas armas e todas estas empreitadas que executamos, de direito e de fato, no reino da França, que ofertas nos faria o rei João em relação à paz?”

Ah!, se o rei tivesse me ouvido em Breteuil, em Chartres ... Que poderia eu responder, que tinha em minhas mãos? Disse ao príncipe que não lhe trazia nenhuma proposta do rei da França, porque este último, forte como estava, não podia pensar na paz antes de conquistar a vitória com que contava; mas que lhe trazia a recomendação do papa, o qual desejava que se cessasse de ensangüentar os reinos do Ocidente e pedia imperiosamente aos reis (eu insistia) entrarem num acordo a fim de, juntos, partirem em socorro de nossos irmãos de Constantinopla. E perguntava-lhe em que condições a Inglaterra...

O príncipe continuava olhando a altura do sol e interrompeu a entrevista, dizendo: “É assunto para meu pai, o rei, não para mim, decidir a paz. Não tenho autorização dele para tratar disso”. Em seguida pediu-me que o desculpasse se me precedesse na estrada. Só tinha em mente pôr-se distante do exército perseguidor. “Permiti-me que vos dê a minha bênção, senhor”, disse-lhe então. “E estarei por perto se vos acontecer precisar de mim.”

Dirás, meu sobrinho, que eu apanhara um peixinho na minha rede, prosseguindo de Montbazon na retaguarda do exército inglês. Mas eu não estava assim tão descontente como supões. A situação, como eu a encarava, permitira-me apanhar o peixe e estender-lhe a fieira. Tudo dependia dos redemoinhos do ribeiro. A mim restava apenas não me afastar das margens.

O príncipe seguia rapidamente para o sul, em direção a Châtellerault. As estradas da Touraine e do Poitou viram, nessa temporada, passar cortejos surpreendentes. Primeiro, o exército do príncipe de Gales, compacto, rápido, com seis mil homens, sempre bem-organizado, embora um pouco apressado, e não mais com a sanha de incendiar os celeiros. Parece que era a terra que dessa vez queimava as ferraduras de seus cavalos. Com um dia de diferença, lançado em sua perseguição, o extraordinário exército do rei João, o qual reagrupava, como desejava, todos os seus senhores de pendão, ou quase todos, com vinte e cinco mil homens, mas que exagerava na pressa, cansando-o, e que a essa altura começava a se desarticular, deixando gente pelo caminho.

E finalmente, entre ingleses e franceses, acompanhando os primeiros e precedendo os segundos, minha pequena comitiva, que lança nos campos um pouco de purpura e de ouro. Um cardeal entre dois exércitos não é acontecimento que se pode ver com freqüência! Todos os homens de pendão apressam-se para a guerra, e eu, com minha pequena escolta, insisto obstinadamente na paz. Meu sobrinho de Durazzo fica impaciente; percebo que sente um pouco de vergonha em escoltar alguém cuja proeza seria conseguir que não se combatesse. E os outros cavaleiros que me acompanham, Hérédia, La Rue, todos pensam da mesma maneira. Durazzo observa: “Deixai que o rei João dê uma sova nesses ingleses e que se acabe com isto de uma vez para sempre. Aliás, o que esperais impedir?”

Intimamente concordo com eles plenamente, mas não quero afrouxar. Percebo muito bem que se o rei João conseguir agarrar o príncipe Eduardo, e ele irá agarrá-lo na certa, vai esmagá-lo, decididamente. Se não for em Poitou, será no Angoumois.

Aparentemente, tudo indica que João será o vencedor. Mas nessa temporada seus astros são maus, muito maus, e eu bem o sei. E me pergunto como, numa situação bastante vantajosa, irá se manifestar um aspecto tão ruim. Suponho que talvez ainda consiga ganhar uma batalha, mas na qual acabará morrendo. Ou possivelmente uma enfermidade irá acometê-lo a caminho...

Nessa mesma direção avançam as cavalgadas dos retardatários, os condes de Joigny, de Auxerre e de Châtülon, os bons compadres, permanentemente alegres e compenetrados com suas comodidades, embora aos poucos se aproximem do grosso do exército da França. “Boa gente, vistes o rei, por acaso?” “O rei? Saiu de manhã de La Haye.” “E o Inglês?” “Pernoitou ali na véspera...”

Na perseguição do primo inglês, João II está bem informado sobre os itinerários do seu adversário. Este último, sentindo-se acossado, alcança Châtellerault e aí, para se tornar mais leve e ultrapassar a ponte, ordena a passagem do Vienne, à noite, ao seu comboio pessoal, os carroções que transportam seus móveis, seus arneses de parada, bem como todo o lucro de seus saques, as sedas, as baixelas de prata, os objetos de marfim, os tesouros das igrejas que arrebanhou durante a sua investida. E se apressa em direção a Poitiers. Seus homens de armas e seus arqueiros, e ele próprio, desde a madrugada, seguem o mesmo caminho, e em seguida, tendo em vista maior prudência, ele encaminha sua tropa por estradas diferentes. Tem um plano em mente: contornar Poitiers a leste, onde o rei será forçado a ordenar o repouso ao seu pesado exército, nem que seja por algumas horas, e depois apressar o seu avanço.

O que ignora é que o rei não tomou a estrada de Châtellerault. Com sua cavalaria, que conduz a toda a pressa, seguiu para Chauvigny, mais para o oriente, a fim de tentar atropelar o inimigo e cortar-lhe a retirada. Vai à frente das tropas, empinado em sua sela, com o queixo para a frente, sem tomar o menor cuidado, como quando foi para o banquete de Rouen. Uma etapa de mais de doze léguas numa corrida só.

Sempre andando à sua procura os três fidalgos borgonheses, Joigny, Auxerre e Châtillon. “O rei?” “Para os lados de Chauvigny.” “Então vai-se para Chauvigny!” Vão contentes; estão quase alcançando-o; estarão lá para o halali 1.

Chegam assim a Chauvigny, que ostenta seu grande castelo numa curva do Vienne. Lá está, na tarde que morre, um conjunto enorme de tropas, um ajuntamento sem igual de carroções e de couraças. Joigny, Auxerre e Châtillon gostam de comodidades. Não desejam atirar-se a esse tumulto depois de uma penosa caminhada. Para que tanta pressa? Vamos comer antes uma boa ceia, enquanto nossos cavalariços cuidam das montarias. Cervilheira erguida, coxotes afrouxados, ei-los à vontade, esfregando os rins e as panturrilhas, e, logo depois, abancados numa estalagem à beira do ribeirão. Os escudeiros, que bem conhecem esses glutões, encomendaram peixes, pois que era sexta-feira. Em seguida, irão dormir... isso tudo foi-me relatado em pormenores ... e na manhã seguinte acordam tarde, num burgo vazio e silencioso. “Boa gente... e o rei?” Mostram-lhes a direção de Poitiers. “Qual o caminho mais curto?” “Pela Chaboterie.”

E eis agora Châtillon, Joigny e Auxerre, com as lanças atrás deles, caminhando calmamente nas estradas de charnecas. A manhã é agradável; o sol atravessa os ramos das árvores, sem muito calor. Três léguas são vencidas sem perigos. Estarão em Poitiers em menos de meia hora. E de súbito, num cruzamento de dois atalhos, defrontam-se cara a cara com sessenta guardas ingleses avançados. Eles são mais de trezentos. É a grande oportunidade. Fechemos as viseiras, lanças em riste. Os guardas ingleses avançados, que são, aliás, gente do Hainaut, sob o comando de messires de Ghistelles e de Auberchicourt, dão meia-volta e fogem a galope. “Ah!, os poltrões, ah!, os covardes! Em perseguição, em perseguição!”

A perseguição não vai além porque, ultrapassado o primeiro bosque, Joigny, Auxerre e Châtillon defrontam-se com o grosso da coluna inglesa, que avança sobre eles. As espadas e as lanças se entrechocam por alguns momentos. Lutam corajosamente os borgonheses! Mas o número os sufoca.

 

1 Toque de trompa com que os caçadores anunciam estar o veado acuado pelos cães. Provável alteração do “aleluia”. É uma fanfarra composta pelo marquês de Dampierre, a mais musical e a mais popular e conhecida das fanfarras de caça. Tornou-se popular graças à abertura de Méhul, La chasse du jeune Henri. (N. do T.)

 

“Ide ao rei, ide ao rei se puderdes!”, lançam Auxerre e Joigny aos seus escudeiros, antes de serem apeados e se entregarem à rendição.

O rei João já estava nos arrabaldes de Poitiers quando alguns homens do conde de Joigny, que tinham escapado a uma caçada furiosa, surgiram, sem fôlego, para lhe contar o acontecido. O rei cumprimentou-os calorosamente. Estava muito feliz. Porque perdera três grandes barões e seus comandados? Certamente que não; mas o preço não fora tão alto pela boa notícia! O príncipe de Gales, que ele pensava estar à sua frente, estava atrás. Tinha conseguido o que desejava; cortara-lhe o caminho. Meia-volta em direção a Chaboterie. “Acompanhai-me, meus bravos!” O halali, o halali... o rei João acabava de viver o seu dia de glória.

Quanto a mim, meu sobrinho? Ah!, seguira a estrada vindo de Châtellerault. Chegava a Poitiers para me hospedar na sede do bispado, onde fui informado de tudo durante o serão.

 

                           As diligências do cardeal

Não te surpreendas se em Metz, Archambaud, vires o delfim prestar homenagem a seu tio, o imperador. Evidentemente pelo Delfinado, que está na dependência imperial... Não, absolutamente, estou até bastante interessado; é na verdade um dos pretextos desta viagem! O fato não desmerece em nada a França, pelo contrário; estabelece os direitos sobre o reino de Aries, se chegarmos a reconstituí-lo, porquanto o Viennois, antigamente, estava incluído nele. E, de resto, é um belo exemplo para os ingleses mostrar-lhes que rei ou filho de rei, sem se humilhar, pode consentir em prestar sua homenagem a um outro soberano, quando partes de seus Estados reconhecem a antiga suserania do outro...

É a primeira vez, depois de tantos anos, que o imperador parece resolvido a se voltar um pouco para o lado da França. Porque até agora, muito embora sua irmã, a senhora Bonne, tivesse sido a primeira esposa do rei João, era mais favorável aos ingleses. Não nomeara o rei Eduardo, que se mostrou bastante hábil para com ele, vigário imperial? As grandes vitórias da Inglaterra e o rebaixamento da França devem tê-lo levado a refletir. Um império inglês, ao lado do império, não lhe sorriria absolutamente. Trata da mesma maneira os príncipes alemães: vale-se deles enquanto podem diminuir a França e, depois, eles acabam compreendendo que, muito pelo contrário, isso não lhes serviu para nada.

Aconselho-te, quando estivermos perante o imperador e se vier à baila o assunto de Crécy, a não insistires demasiado a propósito dessa batalha. Seja como for, antes de tudo, não pronuncies esse nome. Porque, ao contrário de seu pai, João, o Cego, o imperador, que ainda não era imperador, não fez muito bela figura nessa ocasião... Fugiu, simplesmente; não modifiquemos os termos... Mas ao mesmo tempo não fales muito a respeito de Poitiers, que toda gente tem em mente agora, e não penses que valha a pena exaltar a coragem desses infelizes cavaleiros franceses, e isso em sinal de respeito pelo delfim... visto que também ele não se distinguiu por um excesso de valentia. Ë uma das razões pelas quais tem dificuldade em assegurar seu poder. Ah, não!, essa não será uma reunião de heróis... Afinal, o delfim tem seus motivos para se desculpar, e uma vez que não é um homem de guerra, não seria ele que deixaria de aproveitar a oportunidade que ofereci a seu pai...

Retomo a narrativa sobre Poitiers, que ninguém poderia fazer melhor do que eu, e logo compreenderás por quê. Estávamos no sábado à noite, quando os dois exércitos perceberam que se situavam muito próximos um do outro, quase em contato, e que o príncipe de Gales não podia mais mudar de posição...

No domingo, de manhã bem cedo, o rei ouviu missa em pleno campo. Uma missa de guerra. Quem a oficia leva mitra e casula sobre a cota de malhas; é Regnault Chauveau, o conde-bispo de Châlons, um desses prelados a quem conviria melhor uma ordem militar, ao invés de uma ordem religiosa... Estás sorrindo, meu sobrinho... compreendo, porque achas que pertenço a essa espécie; mas aprendi a me conter, porque Deus me mostrou meu caminho.

Esse exército de joelhos nos prados orvalhados pela cerração, diante do burgo de Nouaillé, deve oferecer a Chauveau a visão das legiões celestes. Os sinos da Abadia de Maupertuis bimbalhavam no alto do seu enorme campanário quadrado. E os ingleses, a montante, atrás dos bosquetes que os dissimulam, ouvem o formidável Gloria que entoam os cavaleiros da França.

O rei comunga em companhia de seus quatro filhos e de seu irmão D’Orléans, todos eles em vestimentas de combate. Os marechais olham com alguma perplexidade para os jovens príncipes, aos quais são obrigados a entregar os comandos, embora não tenham nenhuma experiência de guerra. Evidentemente os príncipes deixam-nos angustiados. Não foram convocadas até as crianças, o jovem Filipe, o filho predileto do rei, e seu primo Carlos d’Alençon? Catorze anos, treze anos; que dificuldades com essas couraças anãs! O jovem Filipe permanecerá ao lado do pai, que se encarregará de cuidar dele, e a proteção do pequeno D’Alençou ficou a cargo do Arcipreste.

O condestável repartiu o exército em três grandes grupos. O primeiro, com trinta e dois vexilários sob as ordens do duque d’Orléans. O segundo, sob o comando do delfim, duque da Normandia, secundado pelos seus irmãos, Luís d’Anjou e João de Berry. Mas na verdade o comando será de João de Landas, de Thibaut de Vodenay e do sire de Saint-Venant, três homens de guerra que têm por encargo proteger cerradamente o herdeiro do trono e orientá-lo. O rei assumirá a frente do terceiro lance.

Ajudam-no a montar no seu cavalo branco de combate. Percorre o seu exército com um olhar e fica maravilhado vendo-o tão numeroso e tão belo. Quantos elmos, quantas lanças, lado a lado em filas profundas! Quantos portentosos cavalos, que sacodem a cabeça e mordem os freios com estalidos! Pendem das selas as espadas, as maças de armas, os machados de dois gumes. Na ponta das lanças flutuam os pendões e as bandeirolas. Quantas cores vivas sobre os escudos e os broquéis, bordadas sobre as cotas dos cavaleiros e sobre as gualdrapas de suas montarias! Tudo aquilo polvilha, reluz, cintila, explode sob o sol da manhã.

O rei avança e exclama: “Meus bravos sires, quando estivestes reunidos em Paris, em Chartres, em Rouen ou em Orléans, ameaçáveis os ingleses e desejáveis ter as caçoletas de vossas armas nas suas cabeças; estais reunidos aqui, neste momento; e eles ali estão. Demonstrai-lhes vossos talentos e vingai os aborrecimentos e os despeitos com que nos maltrataram, porque, sem nenhuma dúvida, iremos vencê-los!” E, em seguida, depois de um estrondoso: “Deus está conosco. Temos certeza!”, com que lhe corresponderam, aguarda. Aguarda, para dar a ordem de atacar, pela volta de Eustá-quio de Ribemont, o bailio de Lille e de Douai, que mandou com um pequeno destacamento reconhecer exatamente a posição inglesa.

E todo o exército aguarda, em grande silêncio. É o momento difícil em que se vai dar a investida e em que a ordem tarda. Porque todos pensam nesse instante: “Hoje talvez seja a minha hora... É possível que esteja vendo a terra pela última vez”. Todas as gargantas estão cerradas sob a jugular de aço; e todos se recomendam a Deus com mais fervor do que durante a missa. O jogo da guerra torna-se de repente solene e terrível.

Messire Geoffroy de Charny conduz a auriflama da França, que o rei lhe confiou como homenagem, e me disseram que mantinha uma postura inteiramente transfigurada.

O duque de Atenas parecia dos mais tranqüilos. Sabia, por experiência própria, que já tinha assegurado o maior vulto do seu trabalho de condestável. Assim que se iniciasse o combate, não veria mais nada a mais de duzentos passos, nem se faria ouvido a mais de cinqüenta; mandar-lhe-ia dos diversos pontos do campo de batalha escudeiros que chegariam até ele ou não chegariam; e aos que chegassem, gritaria uma ordem que seria ou não executada. O fato de ele permanecer ali, de fazer um gesto, gritar uma aprovação, já era em si tranqüilizador. Talvez uma decisão a ser tomada em momento difícil... Mas naquela grande confusão de choques e de clamores não seria mais ele, verdadeiramente, quem iria comandar, mas a vontade de Deus. E, tendo em conta o número de franceses, parecia que Deus já se tinha pronunciado.

O rei João começava a se irritar porque Eustáquio de Ribemont não regressava. Teria sido preso, como o foram no dia anterior Auxerre e Joigny? Seria prudente mandar um segundo reconhecimento. Mas o rei João não suporta a expectativa. Sente-se preso dessa fúria impaciente de que sofre cada vez que o acontecimento não obedece imediatamente à sua vontade e que o torna impotente para julgar as coisas com serenidade. Está prestes a dar a ordem de ataque... ver-se-á depois que seria pior... quando regressam, afinal, messire de Ribemont e seus patrulheiros.

“Então, Eustáquio, quais são as notícias?” “Excelentes, sire; conseguireis, se Deus quiser, a vitória sobre vossos inimigos.” “Quantos são?” “Sire, vimos bem e avaliamos. Acreditamos que os ingleses podem ter uns dois mil homens de armas, quatro mil arqueiros e quinhentos ribaldos.”

Sobre o seu cavalo branco, o rei tem um sorriso vencedor. Encara os vinte e cinco mil homens, ou mais ou menos esse número, alinhados ao redor. “E como estão as suas posições?” “Ah!, sire, estão muito bem colocados. Podemos garantir que não oferecerão mais do que uma pequena batalha contra os nossos, mas estão bem organizados.”

E Ribemont descreve como os ingleses estão instalados, na elevação do terreno, de um lado e do outro de uma estrada em subida, rodeada de sebes copadas e de moitas, atrás das quais estão dissimulados os arqueiros. Para atacá-los não há outro caminho a não ser essa estrada, em que só poderão subir quatro cavalos por vez. Nos demais flancos, existem apenas vinhedos e pinheirais, onde não seria possível cavalgar. Com suas montarias postas de lado, os homens de armas ingleses estão a pé, e os arqueiros se postam atrás, como se lhes fizessem uma espécie de grade de arrimo. E não será nada fácil desbaratar esses arqueiros.

“E como, messire Eustáquio, aconselhais-nos chegar até eles?”

Todo o exército tinha a atenção voltada para esse conciliábulo, que reunia, em torno do rei, o condestável, os marechais e os principais chefes de vexilários. E também o conde de Douglas, que não abandonara o rei desde Breteuil. Existem às vezes convidados que custam caro. Guilherme de Douglas diz: “Quanto a nós, escoceses, foi sempre a pé que vencemos os ingleses...” Ribemont retruca, lembrando as milícias flamengas. Na hora de iniciar um combate, estão todos interessados em dissertar sobre a arte militar. Ribemont tem uma proposta a fazer para a disposição do ataque. Guilherme de Douglas aprova. E o rei convida todos a ouvi-los, porquanto Ribemont foi o único que explorou o terreno e porque Douglas é o convidado que tem bom conhecimento a respeito dos ingleses.

De repente, uma ordem é dada, transmitida, repetida: “Desmontar!” Mas como? Após esse grande momento de tensão e ansiedade, em que todos se prepararam completamente para afrontar a morte, não se vai combater? Perpassa uma onda de decepção. “Como não? Como não? Vamos combater, mas a pé.” Apenas trezentas armaduras permanecerão a cavalo, as quais irão, comandadas pelos dois marechais, abrir uma brecha nas linhas dos arqueiros ingleses. E por essa brecha os homens de armas se engolfarão imediatamente, para combater, ombro a ombro, os homens do príncipe de Gales. Os cavalos ficarão de reserva, nas proximidades, para a perseguição.

Audrehem e Clermont percorrem a frente dos vexilários, para escolher os trezentos cavaleiros mais fortes, mais astutos, e os mais bem armados, que formarão a linha de ataque.

Os marechais não se mostram satisfeitos, pois nem mesmo foram convidados para dar sua opinião. Clermont tenta fazer-se entender e pede que se reflita um instante. O rei respondeu-lhe asperamente. Messire Eustáquio viu, e messire Douglas sabe. “Que nos trará de novo nossa falação?” O plano do batedor e do convidado torna-se o plano do rei. “Só resta nomear Ribemont marechal e Douglas condestável”, resmunga Audrehem.

Para todos os que não estão no ataque, desmontar, desmontar... “Tirai vossas esporas e cortai vossas lanças no comprimento de cinco pés!”

Mau humor e resmungos nas fileiras. Não foi para isso que vieram. E por que haviam dispensado a populaça em Chartres, se a ela é que agora competiria essa tarefa? E, além do mais, encurtar as lanças amargurava os cavaleiros. Belas hastes de freixos, escolhidas cuidadosamente para ficarem horizontais, apertadas contra o broquel e a galope! Agora iriam passear a pé, carregados de ferro, com bastões. Aqueles que, apesar de tudo, queriam dar razão ao rei diziam: “Não nos esqueçamos de que em Crécy... “ Os outros respondiam: “Crécy, sempre Crécy”.

Aqueles homens que há meia hora exultavam, com o coração cheio de honra, resmungam agora como camponeses que tivessem quebrado um eixo da carroça. Mas o próprio rei, para dar o exemplo, dispensara seu cavalo branco de combate e passeava pela grama, despido das esporas, jogando de uma para a outra mão a sua maça de armas.

Foi no meio desse exército ocupado em cortar suas lanças a golpes de machado de arção que cheguei de Poitiers a toda a pressa, protegido pela bandeira da Santa Sé e escoltado somente pelos meus cavaleiros e os melhores donzéis, Guillermis, Cunhac, Elie d’Aimery, Hélie de Raymond, com os quais viajamos. Acredito que não se esqueceram de nada! Devem ter-te contado tudo... não?

Apeio, entregando as rédeas a La Rue. Cubro-me com meu chapéu de viagem, que havia despencado para as costas por causa da correria; Brunet compõe minhas roupas, caminho até o rei, todo enluvado. Digo-lhe, logo de saída, com o máximo de firmeza e de reverência: “Sire, peço-vos e vos suplico, em nome da fé, adiar por alguns instantes o combate. Dirijo-me a vós por ordem e pela vontade de nosso Santo Padre. Dar-me-eis a honra de me ouvir?”

Por mais surpreso que o rei João se mostrasse, nesse momento, pela chegada desse importuno da Igreja, que lhe restava fazer senão me responder no mesmo tom cerimonioso: “À vontade, monseigneur cardeal. Que tendes a dizer?”

Permaneci um instante com os olhos postos no céu, como se lhe pedisse que me inspirasse. E efetivamente orava; mas ao mesmo tempo aguardava que o duque de Atenas, os marechais, o duque de Bourbon, o bispo Chauveau, em quem esperava encontrar um aliado, João de Landas, Saint-Venant, Tancarville e mais alguém, como o Arcipreste, se aproximassem. Porque já não cabia mais, presentemente, conversas a sós ou entretenimentos de jantar, como em Breteuil ou em Chartres. Desejava ser ouvido, não somente pelo rei, mas pelos mais nobres homens da França, e que eles fossem testemunhas suficientes de minha diligência.

“Mui amado sire”, retomei a palavra, “tendes aqui a fina flor da cavalaria de vosso reino, compacta, contra um punhado de homens ingleses. Eles não podem enfrentar-vos, seguramente; e seria mais honroso para vós que eles se rendessem sem lutar, antes que arriscar toda esta cavalaria e levar à morte bons cristãos de um lado e de outro. Digo-vos tudo isto por ordem de nosso Santo Padre, o papa, que me enviou como seu núncio, com plena autoridade a fim de conseguir a paz, conforme o mandamento de Deus, que a deseja entre os povos cristãos. Peço-vos também que me permitais, em nome do Senhor, que eu cavalgue até o príncipe de Gales para lhe demonstrar a que perigo vós o expondes e aconselhá-lo a ter prudência.”

Se o rei João pudesse morder-me, garanto que o faria. Mas um cardeal num campo de batalha não deixa de impressionar. O duque de Atenas mostrava seu assentimento, e o mesmo o faziam o marechal de Clermont e monseigneur de Bourbon. Acrescentei: “Mui amado sire, estamos num domingo, dia consagrado ao Senhor, e acabais de assistir à missa. Em consideração ao dia consagrado ao Senhor, não poderíeis adiar esse esforço de morte? Permiti-me ao menos poder falar com o príncipe”.

O rei João percorreu com o olhar os fidalgos que estavam ao seu lado e compreendeu que, como rei muito cristão, não poderia deixar de atender ao meu pedido. Se por acaso acontecesse algum acidente fatal, apontá-lo-iam como culpado e veriam nisso o castigo de Deus.

“De acordo, monseigneur”, acabou me dizendo. “Apraz-nos concordar com o vosso desejo. Mas não vos demoreis.”

Senti nesse momento uma baforada de orgulho... que Deus me perdoe... Reconheci a supremacia do homem da Igreja, do príncipe de Deus, sobre os reis temporais. Se eu fosse conde de Périgord, no lugar do teu pai, jamais estaria investido desse poder. E compreendi que estava cumprindo a tarefa da minha vida.

Sempre escoltado de minhas poucas lanças, sempre assinalado pela bandeira do papado, parti imediatamente para cima do morro, pelo caminho que Ribemont havia indicado, em direção ao pequeno bosque onde estava acampado o príncipe de Gales.

“Príncipe, meu filho bem-amado...”, porque dessa vez, quando me vi diante dele, não o denominei senhor, a fim de que ele melhor sentisse a sua fraqueza... “Se houvésseis considerado o poder do rei da França como acabo de fazê-lo, deixar-me-íeis tentar uma convenção entre vós e concordaríeis comigo.” E relatei-lhe o poderio do exército da França, que pude contemplar diante do burgo de Nouaillé. “Vede bem onde vos encontrais e quantos sois... Acreditais que podereis lutar por muito tempo ainda?”

É claro: não poderia sustentar-se por muito tempo, e ele o sabia muito bem. O terreno era sua única vantagem; seu entrincheiramento na verdade era o melhor que se poderia desejar. Mas os seus homens começavam a sofrer com a sede, pois não havia água nessa colina; seria necessário ir colhê-la no ribeirão, o Miosson, que serpenteava lá embaixo, e desse eram os franceses que tinham a posse. Quanto aos víveres, não lhes sobrava senão quantidade suficiente para um dia. Havia perdido o seu belo sorriso branco, sob o bigode à moda saxônia, o grande príncipe devastador! Se não fosse quem era, no meio dos seus cavaleiros Chandos, Grailly, Warwick, Suffolk, que o observavam, estaria convencido de que eles próprios pensavam da mesma forma, que sua situação não permitia nenhuma esperança. A não ser por um milagre... e esse milagre talvez fosse eu quem lho trouxesse. Não obstante, por puro orgulho, discutiu um pouco: “Monseigneur de Périgord, já vos disse em Montbazon que não poderia decidir nada sem a ordem do rei meu pai...” “Querido príncipe, acima da ordem dos reis existe a ordem de Deus. Nem vosso pai, o rei Eduardo, do alto do seu trono de Londres, nem Deus no seu trono celestial, perdoar-vos-iam pela perda de vidas de tantos valorosos homens colocados sob a vossa proteção, se podeis agir de outra maneira. Concordai com que eu discuta as condições em que podereis, sem perda de vossa honra, poupar um combate bastante cruel e muito duvidoso.”

Armadura negra e sotaina vermelha, face a face. O elmo de três plumas brancas interrogava meu chapéu vermelho e parecia contar as borlas de seda. Finalmente o elmo fez um sinal de assentimento.

Depois de percorrer de volta o caminho de Eustáquio, no qual percebi os arqueiros ingleses em filas cerradas por trás das sebes de estacas por eles fincadas, eis-me de novo perante o rei João. Caí em pleno conciliábulo; e compreendi, por certos olhares com que me acolhiam, que não haviam feito muito bons comentários a meu respeito durante minha ausência. O Arcipreste oscilava, magro, folgazão, debaixo de seu chapéu de Montauban.

“Sire”, disse ao rei, “vi muito bem os ingleses. Não deveis ter pressa em combatê-los, e nada perdereis se repousardes um pouco. Porque, localizados como estão, não podem fugir nem escapar-vos. Penso sinceramente que podereis vencê-los sem combate. Peço-vos que lhes concedais um prazo até amanhã, ao amanhecer.”

Sem combate... Percebi que alguns deles, como o conde João d’Artois, Douglas, o próprio Tancarville, acharam ridícula a proposição e balançaram a cabeça como que desaprovando. Estavam ansiosos por lutar. Insisti: “Sire, não concedais nada, se assim o desejais, ao vosso inimigo, mas dedicai o seu dia a Deus”.

O condestável e o marechal de Clermont pendiam para a suspensão das hostilidades... “Sire, vamos aguardar o que o Inglês propõe e o que podemos exigir; não estamos arriscando nada... “ Audrehem, pelo contrário — oh!, simplesmente porque Clermont pensava de uma forma, ele pensava de outra —, dizia bem alto, para que eu o ouvisse: “Afinal, estamos aqui para combater ou para ouvir sermões?” Eustá-quio de Ribemont, só porque seu plano de combate havia sido adotado pelo rei, e por isso estava ansioso por vê-lo em execução, era pelo combate imediato.

E Chauveau, o conde-bispo de Châlons, que ostentava o elmo pintado de roxo em lugar da mitra, agitou-se de repente e esteve a ponto de se encolerizar.

“Será missão da Igreja, messire cardeal, deixar saqueadores e perjuros partir sem castigo?” Nesse ponto me irritei um pouco: “Será dever de um membro da Igreja, messire bispo, recusar a trégua em nome de Deus? Aprendei, se é que já não o sabeis, que tenho o poder de suspender cargos e privilégios de qualquer eclesiástico que deseje dificultar meus esforços de paz... A Providência pune os presunçosos, messire. Deixai, pois, ao rei a honra de demonstrar sua grandeza, se assim o desejar... Sire, tendes tudo em vossas mãos; Deus decide por meio delas”.

O cumprimento teve efeito. O rei tergiversou ainda um tempo, enquanto eu continuei a pleitear, encarecendo meus propósitos com cumprimentos tão altos como os Alpes. Que príncipe, depois de São Luís, tivera tamanha oportunidade como a que lhe competia naquele momento? Toda a cristandade iria admirar um gesto de bravura e viria mais tarde solicitar o arbitramento de sua sabedoria ou recorrer ao seu poder!

“Mandai erguer minha tenda”, disse o rei aos escudeiros. “De acordo, monseigneur cardeal; permanecerei aqui até amanhã, ao amanhecer, por vosso amor.” “Pelo amor de Deus, sire; somente pelo amor de Deus.”

E parti novamente. Seis vezes durante o dia percorri a estrada entre os dois acampamentos, indo sugerir as condições de um acordo, vindo relatá-los à outra parte; e cada vez que passava entre as paliçadas dos arqueiros galeses, vestidos com suas librés, metade brancas e metade verdes, considerava que, se algum deles, desconhecendo-me, atirasse uma revoada de flechas em minha direção, eu estaria liquidado.

O rei João jogava dados para passar o tempo, sob sua tenda de tela cor de cobre prateado. Ao seu redor, todo o exército debatia-se. Batalha ou nenhuma batalha? E havia discussões abertas, mesmo perante o rei. Havia os prudentes, havia os fanfarrões, havia os timoratos, havia os coléricos ... Todos se sentiam com autoridade para dar sua opinião. Na verdade, o rei João permanecia indeciso. Não creio que em nenhum momento tenha-se proposto o problema do bem geral. Propunha-se tão-somente o problema de sua glória pessoal, que confundia com o bem-estar de seu povo. Após tantos reveses e dissabores, o que poderia aumentar mais seu prestígio, uma vitória pelas armas ou pela negociação? Era evidente que, tanto a ele como aos seus conselheiros, não poderia tocar nem de leve a idéia de uma derrota.

Ora, as ofertas que eu lhe trazia, viagem após viagem, não eram desprezíveis. Em primeiro lugar, o príncipe de Gales consentia em devolver todo o lucro dos saques que conseguira no decorrer de sua cavalgada, bem como todos os prisioneiros, sem exigir resgate. Em segundo lugar, aceitava entregar todas as praças e castelos conquistados e dar como nulas as vassalagens e alianças. Na terceira proposta, consentia numa soma de ouro em reparação daquilo que havia destruído, não somente durante o verão, mas também nas terras do Languedoc, no ano anterior. Resultava disso tudo que, das suas duas expedições, o príncipe Eduardo não conservaria nenhum proveito.

O rei João exigia ainda mais? De acordo. Obtive do príncipe a retirada de todas as guarnições dispostas fora da Aquitânia... era um êxito notável... e o compromisso de jamais negociar no futuro nem com o conde de Foix ... A propósito, Phoebus estava no exército do rei, mas não cheguei a vê-lo; mantinha-se bastante afastado... nem com nenhum parente do rei, o que visava precisamente Navarra. O príncipe cedia mais do que eu imaginava. Contudo, eu adivinhava que, no seu íntimo, não acreditava que seria dispensado de combater.

A trégua não proíbe que se trabalhe. Nesse ínterim, empregou seus homens, durante todo o dia, fortificando as respectivas posições. Os arqueiros duplicavam as sebes de estacas com duas pontas, para garantir um arrimo de defesa. Derrubavam as árvores que atravessavam no caminho de que o adversário poderia servir-se. O conde de Suffolk, marechal da hoste inglesa, inspecionava as tropas continuamente. Os condes de Warwick e de Salisbury e o sire de Audley participavam de nossas entrevistas e me escoltavam através do seu acampamento.

Caía a tarde quando levei ao rei João uma última proposta, que eu próprio já havia encaminhado. O príncipe estava disposto a jurar e assinar que, durante sete anos completos, não se armaria nem empreenderia nada contra o reino da França. Estávamos então com tudo acertado para a paz geral.

“Oh! Conhecemos os ingleses”, disse o bispo Chauveau. “Eles juram e depois renegam a sua palavra.”

Repliquei que seria difícil renegar um compromisso assentado perante um legatàrio do papa; eu seria um dos signatários da convenção.

“Dar-vos-ei uma resposta amanhã cedo”, disse o rei.

E fui hospedar-me na Abadia de Maupertuis. Nunca havia cavalgado tanto num mesmo dia nem discutido tanto. Por mais cansado que estivesse, tive tempo ainda para rezar bastante, com todo o meu ardor. Pedi que me acordassem logo cedo. O sol começava precisamente a dardejar seus primeiros raios quando me apresentei, sem aviso, diante da tenda do rei João. Ele havia dito que seria ao amanhecer. Não se poderia ser mais exato do que eu. Tive má impressão: todo o exército da França estava em pé de guerra, em ordem de combate, a pé, salvo os trezentos designados para o ataque, apenas aguardando o sinal de atacar.

“Monseigneur cardeal”, declarou-me o rei, em breves palavras, “aceitaria renunciar ao combate, caso o príncipe Eduardo e cem de meus cavaleiros, à minha escolha, se considerem meus prisioneiros.” “Sire, é uma exigência demasiado pesada e contrária à honra. E torna inúteis todas as nossas conversações de ontem. Sei perfeitamente que o príncipe de Gales não a aceitaria em absoluto. Não é homem de capitular sem combate e entregar-se em vossas mãos com a fina flor da cavalaria inglesa, nem que esse fosse o seu último dia. Vós, ou algum dos vossos cavaleiros da Estrela, aceita-ríeis essa proposta se estivésseis em seu lugar?” “Certamente que não!” “Então, sire, parece-me inútil levar-lhe qualquer proposta sabendo de antemão que seria rejeitada.” “Monseigneur cardeal, agradeço vossos bons propósitos; mas o sol já despontou. Por favor, retirai-vos.”

Atrás do rei, entreolhavam-se pelas viseiras, trocando sorrisos e piscando os olhos, o bispo Chauveau, João d’Artois, Douglas, Eustáquio de Ribemont e até Audrehem, e seguramente o Arcipreste, contentíssimos, ao que me pareceu, com o fracasso do legado do papa e pelo fato de poderem ir esmagar os ingleses.

Por um momento fiquei perplexo; a cólera subiu-me à cabeça; sabia muito bem que tinha o poder da excomunhão. Mas de que iria adiantar? Os franceses teriam partido para o ataque assim mesmo, e eu teria posto em maior evidência ainda a impotência da Igreja. Só pude acrescentar: “Deus julgará, sire, qual de vós dois terá demonstrado ser melhor cristão”.

E subi pela última vez em direção aos bosquetes. Estava cheio de raiva. “Que esses doidos se arrebentem!”, dizia a mim mesmo, galopando. “O Senhor não terá necessidade de escolha: são todos muito bons para a sua fornalha.”

Perante o príncipe de Gales, pude lhe dizer: “Prezado filho, fazei o que puderdes; é preciso combater. Não consegui nenhuma boa vontade para um acordo com o rei da França”. “Bater-nos é precisamente nossa intenção”, respondeu-me o príncipe. “Que Deus me ajude!”

Dito isso, regressei a Poitiers, bastante amargurado e cheio de despeito. Foi justamente o momento em que meu sobrinho de Durazzo escolheu para me dizer: “Peço-vos que me dispenseis de minhas funções, meu tio. Quero combater”. “E com quem?”, gritei-lhe. “Com os franceses, é claro!” “Não os considerais já bastante numerosos?” “Meu tio, compreendei que vai haver combate, e não é digno de um cavaleiro não tomar parte nele. E também messire de Hérédia vos roga o mesmo favor...”

Deveria ter ralhado com ele, ter-lhe dito que estava requisitado pela Santa Sé, a fim de me acompanhar em minha missão de paz, e que, ao contrário de um ato de nobreza, poderia sua decisão ser considerada uma violação da fé jurada. Deveria ter-lhe ordenado simplesmente que ficasse ... Mas eu estava exausto, estava irritado. E de certa forma o compreendia. Teria tido vontade, também eu, de empunhar uma lança e atirá-la sobre não sei quem, o bispo Chauveau... Então eu lhe gritei: “Ide todos os dois para o diabo! E aproveitai o quanto puderdes!” Foi a última palavra que disse a meu sobrinho Roberto. E quanto me arrependo, quanto me reprovo agora, profundamente...

 

                       A mão de Deus

É muito difícil reconstituir uma batalha quando não se esteve nela ou, ainda, mesmo quando se esteve. Sobretudo se ela se desenvolve tão confusamente como a de Maupertuis... Algumas horas após, foi-me narrada, de vinte maneiras diferentes; cada qual julgava-a conforme o seu lugar e só dava importância ao que fizera. Particularmente os derrotados, que, no seu modo de ver, nunca o teriam sido se não fosse por culpa dos vizinhos, os quais repetiam a mesma coisa.

O que não pode ser posto em dúvida é que, logo após minha partida do acampamento francês, os dois marechais se desentenderam. O condestável, duque de Atenas, tendo solicitado ao rei o favor de ouvir o seu conselho, disse-lhe mais ou menos isto: “Sire, se desejais verdadeiramente que os ingleses se rendam, por que não os deixais esgotar-se por falta de víveres? Ao certo sua posição é sólida, mas eles não a sustentarão quando ficarem esgotados. Estão cercados por todos os lados e, se tentarem escapar pela única saída para a qual nós mesmos podemos forçá-los, esmagá-los-emos sem dó nem piedade. Uma vez que esperamos um dia, não poderemos esperar mais um ou dois dias, até que se somem a nós os retardatários que esperamos?” O marechal de Clermont dá seu apoio: “O condestável disse muito bem. Um pouco de espera nos leva a tudo ganhar sem nada perder!”

Nesse ponto, o marechal d’Audrehem se empolgou.

“Adiar!, sempre adiar! Deveríamos ter acabado logo com tudo depois da descida do sol. Adiareis tanto que acabareis deixando-os escapar, como acontece freqüentemente. Vede bem como eles se movimentam. Estão descendo até nós para se fortificarem mais embaixo e prepararem o caminho da fuga. Dir-se-ia, Clermont, que não tendes muita pressa em combater, e que temeis, vendo os ingleses tão próximos.”

Era fatal que explodisse a briga dos marechais. Mas seria esse o momento oportuno? Clermont não era homem de receber, sem mais esta nem aquela, tão grande ultraje em plena cara. Revidou, como no jogo da pelota: “Não sereis tão atrevido, hoje, Audrehem, quando enfiardes o focinho do vosso cavalo no rabo do meu”.

Dito isso, reuniu os cavaleiros que devia levar ao assalto, fez-se montar e deu pessoalmente a ordem de atacar Audrehem imita-o imediatamente e, antes que o rei tivesse dito alguma coisa, nem o condestável, ordenado outra, eis a carga lançada, não agrupada como estava combinado, mas em dois esquadrões, separados, que parecem estar menos interessados em romper com o inimigo do que se distanciarem ou se perseguirem. O condestável, por sua vez, pede o seu cavalo de combate e se atira a eles, procurando reagrupá-los.

Então o rei dá ordem de ataque para todos os comandados; e todos os homens de armas, peões, acaçapados sob o peso de cinqüenta ou sessenta libras de ferro às costas, começam a avançar pelos campos em direção ao caminho em declive ao qual a cavalaria se atirara. Quinhentos passos para vencer...

Do alto, o príncipe de Gales, quando viu a carga francesa se movimentar, exclamou: “Meus bravos fidalgos, estamos em pequeno número, mas não vos atemorizeis. Nem a virtude nem a vitória sorrirão sempre ao maior número, mas aonde Deus quer enviá-las. Se formos vencidos, não haverá nenhum descrédito, e, se a vitória for nossa, seremos os mais valorosos do mundo”.

A terra tremia no sopé da colina; os arqueiros galeses permaneciam de joelhos em terra, atrás de suas estacas pontiagudas. E as primeiras flechas sibilaram...

Imediatamente o marechal de Clermont avançou sobre os comandados de Salisbury, metendo-se pelas sebes à procura de uma brecha. Uma chuva de flechas barrou sua carga. Foi uma luta feroz, no relato daqueles que dela escaparam. Os cavalos que não tinham sido atingidos iam se estrepar nas estacas pontiagudas dos arqueiros galeses. Por trás da paliçada, os cutileiros e os lançadores de dardos surgiam com suas gaudendarts, essas terríveis armas de três gumes, cujo gancho agarra o cavaleiro pela camisa de malha e às vezes pela própria carne, para em seguida desmontá-lo, cuja ponta rasga a couraça nas virilhas ou nas axilas quando o homem está em terra, e cujo crescente parte o elmo, finalmente ... O marechal de Clermont foi dos primeiros mortos, e quase ninguém entre seus comandados pôde, em verdade, enfrentar a posição inglesa. Todos foram derrotados na passagem aconselhada por Eustáquio de Ribemont.

Ao invés de levar socorro a Clermont, Audrehem preferiu distanciar-se dele, seguindo o curso do Miosson, para contornar os ingleses. Acabou enfrentando as tropas do conde de Warwick, cujos arqueiros levaram a melhor. Soube-se logo que Audrehem fora ferido e feito prisioneiro. Quanto ao duque de Atenas, nada se sabia. Havia desaparecido na refrega. O exército via, em poucos momentos, desaparecer seus três comandantes. Mau começo. Mas eram apenas trezentos homens mortos ou rechaçados em vinte e cinco mil, que avançavam passo a passo. O rei havia voltado a montar para dominar esse campo de armaduras que marchava lentamente.

Produziu-se então um estranho redemoinho. Os que haviam escapado à carga de Clermont, libertando-se com dificuldade das duas sebes mortíferas, arrastando seus cavalos, todos completamente aturdidos e incapazes de frear suas montarias, acabaram caindo na primeira força de combate, a do duque d’Orléans, derrubando, como se fossem peças de um jogo de xadrez, seus companheiros que vinham penosamente a pé. Oh!, não derrubaram muitos: trinta ou cinqüenta, talvez, mas na sua queda deram por terra com o dobro!

Resultou o pânico nas hostes de Orléans. Tentando recuperar-se do choque, as primeiras filas recuam em desordem; as da retaguarda não sabem porque as primeiras refluem, nem sob que pressão, afinal; e a derrota se apodera em poucos momentos de uma tropa de cerca de seis mil homens. Esses soldados não estão habituados a combater a pé, a não ser, em campo fechado, um contra o outro. Naquele local, sobrecarregados como estavam, com dificuldades para se deslocarem, a vista restringida pelos seus capacetes, imaginam-se inteiramente perdidos e sem socorro. E todos se atiraram à fuga, embora estivessem ainda muito distantes do primeiro inimigo. É uma coisa espantosa essa de um exército que a si próprio se empurra!

As tropas do duque d’Orléans e o próprio duque cederam dessa maneira um terreno que ninguém lhes disputava; alguns batalhões foram procurar refúgio na retaguarda das forças de combate do rei, mas a maior parte correu desabaladamente, se é que se pode chamar a isso correr, para apanhar os cavalos seguros pelos cavalariços, enquanto a maioria corria do puro medo que a si próprios causavam.

E, procurando montar para escapar imediatamente, alguns partiam, dobrados como um tapete sobre suas montarias, nas quais não conseguiam cavalgar corretamente. E desapareciam campo adentro... Não se pode deixar de pensar na mão de Deus... não é mesmo, Archambaud? ... E só os incréus ousariam sorrir.

As forças de combate do delfim prosseguiam... “Montjoie Saint-Denis!”1, e, não tendo recebido nenhuma alternativa nem refluxo, continuavam progredindo. As primeiras filas, já cansadas pela marcha, insinuaram-se entre as mesmas sebes que tinham sido fatais a Clermont, chocando-se de encontro aos cavalos e aos homens ali abatidos. Foram recebidas pelas mesmas nuvens de flechas, atiradas por trás das paliçadas. Houve um grande tumulto de gládios que se entrechocam, de gritos e de raiva e de dor. Como a passagem era demasiado estreita, poucos enfrentaram o choque, e os que vinham depois foram comprimidos sem poder mover-se. João de Landas, Voudenay e também sire de Guichard, obedecendo às ordens, permaneceriam junto do delfim, que, como seus irmãos de Poitiers e do Berry, demonstrava muito constrangimento por não poder movimentar-se ou exercer algum comando. De resto, ainda uma vez, quando se está a pé e com uma centena de couraças à frente, o olhar não tem muito campo através da viseira do elmo. O delfim mal conseguia enxergar além dos seus homens, comandados pelo cavaleiro Tristão de Meignelay. Quando os cavaleiros do conde de Warwick, os mesmos que tinham feito prisioneiro Audrehem, surgiram sobre o fianco das forças do delfim, já era tarde demais para se sustentar a carga.

Realmente, era o cúmulo! Os ingleses, que combatiam muito bem a pé e haviam mesmo se tornado famosos justamente por isso, tinham passado a cavalgar assim que viram seus inimigos caminharem desmontados para o ataque. Embora não fossem numerosos, produziram no corpo de combate do delfim o mesmo choque, porém bem mais violento,

 

1 “Montjoie Saint-Denis!” é uma expressão de guerra usada na França, não traduzível em nosso idioma. Não só os reis da França faziam uso dela. Também os duques de Borgonha adotaram “Montjoie Saint-André”, e assim os duques de Bourbon “Montjoie Bourbon” e “Montjoie Notre-Dame”; os reis da Inglaterra “Montjoie Notre-Dame Saint-George”. (N. do T.)

 

que já tinha ocorrido, provocado por sua própria conta, entre os homens do duque d’Orléans. E com um acúmulo de confusão, ainda por cima. “Defendei-vos, defendei-vos”, gritavam aos três filhos do rei. Os cavaleiros de Warwick avançaram sobre os homens do delfim, o qual deixara cair sua pequena lança e desajeitadamente, empurrado pelos seus, mal sustentava a espada.

Foi Voudenay, ou talvez Guichard, não se sabe muito bem, quem o arrastou pelo braço, berrando-lhe: “Segui-nos; tendes que vos retrairdes, senhor!” Era preciso... O delfim viu o pobre Tristão de Meignelay, atirado ao chão; o sangue escorria-lhe da gorjeira como de um vaso quebrado, banhando as bandeiras com as armas da Normandia e do Delfinado. E isso, acredito, deu-lhe ainda mais ânimo para fugir. Landas e Voudenay abriam-lhe caminho através das suas próprias fileiras. Seguiam-no seus dois irmãos, arrastados por Saint-Venant.

Não há nada a dizer de novo sobre como ele se salvou, e deve-se louvar àqueles que o ajudaram. Tinham a missão de conduzi-lo e protegê-lo. Não podiam deixar os filhos da França, e principalmente o primeiro, nas mãos do inimigo. Tudo valeu naquela circunstância. Que o delfim tenha alcançado o seu cavalo ou que seu cavalo tenha vindo até ele, que então pôde cavalgá-lo, e que seus companheiros tenham feito o mesmo, é natural que acontecesse, porquanto estavam todos sendo empurrados por pessoas montadas.

Mas o fato de que o delfim, sem olhar para trás, tenha disparado num galope só, deixando o campo de combate, exatamente como o seu tio d’Orléans o fizera antes, dificilmente pode ser considerado como conduta honrosa. Ah!, os cavaleiros da Estrela! Não era o seu dia, certamente!

Saint-Venant, que é velho e devotado servidor da coroa, assegurará sempre que foi ele quem tomou a decisão de afastar o delfim, por ter julgado a batalha em má situação; que o herdeiro do trono entregue à sua guarda devia ser salvo sob qualquer condição, e que lhe foi necessário insistir fortemente junto ao delfim e quase ordenar que ele partisse. E isso ele continuará afirmando, até mesmo perante o delfim... Bravo, Saint-Venant! Outros, infelizmente, têm a língua menos discreta.

Os homens das forças de combate do delfim, vendo-o se afastar, não levaram muito tempo para debandar, e correram aos seus cavalos, conclamando todos à retirada geral.

O delfim correu uma légua após sua partida. Então, julgando-o em segurança, Voudenay, Landas e Guichard anunciaram-lhe que retornariam ao combate. Ele nada lhes respondeu. E o que poderia ter dito? “Voltai à luta e eu me afasto. Deixo-vos meus cumprimentos e minhas saudações...” Saint-Venant queria retornar, igualmente. Mas era necessário que alguém ficasse com o delfim, e os demais fizeram questão de que fosse ele, por ser o mais velho e o mais prudente. Assim, Saint-Venant, com uma pequena escolta de fugitivos inteiramente sem fôlego que foram encontrando pela estrada, conduziu o delfim e alojou-o no imponente Castelo de Chauvigny. E lá, ao que consta, quando chegaram, o delfim teve dificuldade em retirar a manopla de tão inflamada que se achava a sua mão direita, inteiramente roxa. E viram-no chorar.

 

                           A batalha do rei

Restava a batalha do rei... Brunet, serve-nos um pouco deste vinho de Mosela. Quem mais? O Arcipreste?... Ah, sim, o de Verdun! Vê-lo-ei amanhã, e será sempre cedo demais. Ficaremos aqui por três dias, aproveitando este tempo primaveril, que continua, a tal ponto que as árvores estão brotando em dezembro...

Certamente, sobrava o rei João em campo, em Maupertuis... Maupertuis... imagina só, não havia sonhado com isso... A gente não pensa no significado dos nomes... Má saída, má passagem... Devia-se evitar combate num local com essa denominação.

A princípio, o rei vira fugir em desordem, antes mesmo do encontro com o inimigo, as tropas comandadas por seu irmão. Depois, desbaratarem-se e desaparecerem, nem bem empenhadas na luta, as tropas de seu filho. Certamente sentiu-se indignado, mas sem pensar, ainda, que estava tudo perdido. Sua força de combate continuava mais numerosa do que a de todos os ingleses reunidos.

Um capitão mais experimentado teria, sem sombra de dúvida, compreendido o perigo e modificado imediatamente sua estratégia. Ora, o rei João deixava aos cavaleiros da Inglaterra todo o tempo disponível para repetir contra ele a carga com que acabavam de obter tanto êxito. Romperam sobre ele, com as lanças em riste, e desbarataram a sua frente de batalha.

Pobre João II! Seu pai, o rei Filipe, fora derrotado em Crécy por haver lançado sua cavalaria contra os peões, e ele estava sendo batido, em Poitiers, precisamente pela razão inversa.

“Que se deve fazer quando se enfrentam homens sem honra, que empregam sempre armas diferentes das vossas?” Foi o que me disse, depois, quando o revi. Uma vez que ele avançava a pé, os ingleses deveriam permanecer da mesma forma a pé, se fossem homens honrados. Oh!, não existe um único príncipe que rejeite o erro de seus desbarates contra um adversário que não obedeceu à regra do jogo escolhida por ele!

Disse-me, ainda, que a grande cólera de que estava possuído reforçava-lhe os membros. Nem sentia o peso de sua armadura. Tinha rompido sua maça de ferro, mas antes havia derrubado mais de um assaltante. De resto, apreciava mais enfrentar do que rachar de alto a baixo; mas, uma vez que só lhe restava sua machadinha de combate de dois gumes, brandia-a, movimentava-a e feria. Dir-se-ia que era um lenha-dor louco numa floresta de aço. Ninguém conhecia alguém mais furioso do que ele num campo de luta. Não sentia nada, nem fadiga nem medo, somente o ódio que o cegava, ainda mais do que o sangue que escorria de sua pàlpebra esquerda.

Estava tão certo de vencer imediatamente; tinha a vitória em suas mãos! E tudo desmoronou. Por culpa de quê? Por culpa de quem? Por culpa de Clermont, por culpa de Audrehem, seus maus marechais, que haviam avançado cedo demais, por culpa de seu condestável, um asno! Que se arrebentem, que todos se arrebentem! Depois disso, pôde se tranqüilizar o rei. Esse seu anseio pelo menos foi satisfeito. O duque de Atenas está morto; seu corpo será encontrado logo mais numa moita, estraçalhado por um golpe de partasana e esmagado por uma carga de cavalaria. O marechal de Clermont está morto; recebeu tantas flechas que seu cadáver tem a aparência de uma cauda de peru. Audrehem está prisioneiro, com a coxa transpassada.

Raiva e furor. Tudo perdido! Mas o rei João só pensa em matar, matar tudo quanto lhe estiver à frente. E depois, o pior, morrer com o coração partido! Sua cota de armas azul bordada com a flor-de-lis da França está em frangalhos. Viu cair a auriflama, que o valoroso Geoffroy de Charny apertava contra o peito; cinco cutileiros estavam em cima dele; um dardanário galés, ou um vagabundo irlandês, armado com uma velha faca de açougueiro, arrebatou a bandeira francesa.

O rei conclama os seus. “Comigo, Artois!, comigo, Bourbon!” Estavam por ali pouco antes. É verdade, estavam! Mas agora o filho do conde Roberto, o delator do rei de Navarra, o gigante de cérebro diminuto... “meu primo João, meu primo João...” é prisioneiro, assim como seu irmão Carlos d’Artois e messire de Bourbon, pai da delfina.

“Comigo, Regnault, comigo, o bispo! Fazei que Deus nos ouça!” Se Regnault Chauveau falasse com Deus nesse momento, seria face a face. O corpo do bispo de Châlons jazia em algum lugar, com os olhos fechados sob a mitra de ferro. Ninguém mais respondia ao rei, a não ser uma voz de criança que lhe gritava: “Pai, pai, defendei-vos! À direita, pai, defendei-vos!”

O rei teve um instante de esperança vendo Landas, Voudenay e Guichard voltarem ao combate em seus cavalos. Os fugitivos estavam de volta? Os soldados dos príncipes voltavam a galope para livrá-lo. “Onde estão meus filhos?” “Em lugar seguro, sire!”

Landas e Voudenay foram ao ataque. Sozinhos. O rei saberia mais tarde que tinham sido mortos, mortos em virtude de haverem voltado ao combate para que não dissessem que foram covardes, após ter salvo os príncipes da França. Só resta ao rei um único de seus filhos, o mais moço, seu predileto, Filipe, que continua gritando: “À esquerda, pai, defendei-vos! Pai, pai, defendei-vos, à direita...”, o qual o prejudica mais do que o ajuda, sejamos sinceros. Porque a espada é um tanto pesada demais nas mãos de uma criança para poder ser eficaz, e é preciso que o rei afaste, por vezes, com sua comprida machadinha, essa lâmina inútil, a fim de poder golpear de rijo seus assaltantes. Mas pelo menos o pequeno Filipe não fugiu!

De súbito, João II se vê envolvido por vinte adversários, a pé, tão apressados que se embaralham entre si. Ouve gritarem: “É o rei, é o rei, eia, sobre o rei!”

Nenhuma cota de armas francesa nesse cerco terrível. Sobre os broquéis e os escudos, só insígnias inglesas ou da Gasconha. “Rendei-vos, rendei-vos, senão sereis morto”, gritam ao rei.

Mas o louco do rei não ouve nada. Continua fendendo o ar com sua machadinha. Como o reconheceram, os outros permanecem à distância. “Raios!, devemos apanhá-lo vivo!” E ele corta o ar à direita e à esquerda, sobretudo à direita, porque tem o olho esquerdo grudado pelo sangue... “Pai, defendei-vos...” Um golpe atinge o rei no ombro. Nesse momento, um enorme cavaleiro atravessa o cerco, abre espaço com seu corpo no muro de aço, dá cotoveladas e chega diante do rei já sem fôlego, mas sempre golpeando a esmo. Não, não é João d’Artois; já te disse que foi feito prisioneiro. Com acentuado sotaque francês, o cavaleiro grita: “Sire, sire, rendei-vos”.

Nesse instante, o rei João pára de golpear a esmo, contempla os que o cercam e responde ao cavaleiro: “A quem devo me render, a quem? Onde está meu primo, o príncipe de Gales? Preciso falar com ele”. “Sire, não está aqui; mas rendei-vos a mim, e eu vos conduzirei perante ele”, responde o gigante. “Quem sois vós?” “Sou Denis de Morbecque, cavaleiro, há cinco anos, no reino da Inglaterra, porquanto não posso viver no vosso reino.”

Morbecque, condenado por homicídio e delito de guerra particular, o irmão de João de Morbecque, que tão bem trabalha para os Navarra, que até negociou o tratado entre Filipe d’Évreux e Eduardo III. Ah!, a sorte fazia das suas e punha espinhos no infortúnio, para torná-lo ainda mais amargo.

“Rendo-me a vós”, disse o rei.

Atirou sua machadinha de armas ao chão, tirou sua manopla e a entregou ao possante cavaleiro. Depois, imóvel por um instante, com o olho fechado, entregou-se à derrota.

À sua volta, no entanto, o tumulto continuava, e ele era jogado de um lado e de outro, puxado, empurrado, sacudido, sufocado. Os vinte folgazões gritavam, todos ao mesmo tempo: “Eu o agarrei, eu o agarrei, fui eu que o agarrei!” Mais forte do que os demais, um gascão berrava: “É meu! Fui o primeiro que o assaltou. E viestes aqui, Morbecque, quando o trabalho estava concluído”. E Morbecque respondeu: “Que reclamais, Troy? Ele se entregou a mim, e não a vós”.

A razão disso é que, além de honra e dinheiro, a rendição do rei da França iria render muito mais! E todos procuravam agarrá-lo para si para assegurar seu direito. Agarrado pelo braço por Bertrand de Troy, no pescoço por um outro, o rei acabou sendo desalojado de sua armadura. Chegariam a reparti-lo em pedaços.

“Senhores, senhores”, gritava o rei, “tratai-me cortes-mente, por favor, tanto a mim quanto ao meu filho, em atenção ao príncipe meu primo. Não disputeis mais o prêmio que eu represento. Sou muito poderoso para que todos vos torneis ricos.”

Mas eles nada escutavam. Continuavam berrando: “Fui eu que o agarrei. Ele é meu!”

E aqueles cavaleiros lutavam entre si, com vozes arrogantes e garras de ferro levantadas, e se batiam por um rei como cães por um osso.

Encaremos agora os fatos do lado do príncipe de Gales. Seu leal capitão, João Chandos, veio juntar-se a ele sobre um outeiro que dominava grande parte do campo de batalha, e os dois aí permaneceram. Seus cavalos, com os focinhos injetados de sangue, e os freios envoltos em baba escumosa, estavam cobertos de espuma. Até eles arquejavam. “Percebíamos tanto um como o outro que sorvíamos o ar em grandes haustos”, contou-me Chandos. O rosto do príncipe porejava, e sua camalha de aço, fixada ao elmo, que fechava o rosto e os ombros, elevava-se a cada tomada de fôlego.

Diante deles só havia sebes eventradas, arbustos quebrados, vinhedos devastados. Por toda parte, cavalgaduras e homens derreados. Aqui um cavalo moribundo, batendo os cascos. Mais adiante uma couraça rastejava. Pouco além, três escudeiros levavam para junto de uma árvore o corpo de um cavaleiro moribundo. Por toda parte, arqueiros galeses e cutileiros irlandeses despojavam os cadáveres. Ouviam-se, esparsos, em alguns pontos, estalidos de combate. Cavaleiros ingleses vinham pela planície, segurando os últimos franceses em busca da retirada.

Chandos disse: “Graças a Deus, a jornada é vossa, senhor”. “Ah, sim, graças a Deus, é mesmo. Nós a conquistamos!”, respondeu-lhe o príncipe. E Chandos replicou: “Seria aconselhável, creio, que permanecêsseis aqui e arvorásseis vossa bandeira nesta moita elevada. Desta maneira, reagrupar-se-ão em torno de vós vossos homens, que estão muito espalhados. E poderei refrescar-vos um pouco, porque estou vos sentindo muito afogueado. Não há mais nada a perseguir”. “Também penso assim”, disse o príncipe.

E enquanto a bandeira dos leões e da flor-de-lis era plantada numa moita, e os tocadores faziam vibrar os cornos de caça, executando em suas trompas a saudação ao príncipe, Eduardo fez despir seu elmo, sacudiu os louros cabelos e enxugou o bigode empapado de suor.

Que dia! Ë preciso reconhecer que ele o havia verdadeiramente merecido. Galopara sem descanso para estar presente em cada pelotão, encorajando seus arqueiros, exortando seus cavaleiros, decidindo os pontos em que seria preciso reforçar... enfim, eram sobretudo Warwick e Suffolk, seus marechais, que decidiam, mas ele estava presente, constantemente, para lhes dizer: “Continuai, estais certos...” Ao certo havia apenas tomado uma decisão, mas capital, e que lhe dava os méritos e a glória de toda a campanha. Quando viu a desordem na tropa de Orléans, em virtude tão-somente do refluxo da carga francesa, decidiu imediatamente mandar uma parte de seus homens montar, a fim de produzir semelhante efeito na batalha do duque da Normandia. Ele próprio tinha tomado parte na refrega umas dez vezes. Tinha-se a impressão de que estava em toda parte. E todos os que retornavam vinham lhe dizer: “O dia é vosso. O dia é vosso... É uma grande data, de que os povos se recordarão. O dia é vosso, fizestes maravilhas”.

Seus gentis-homens de confiança e da câmara apressaram-se em levantar sua tenda e avançaram a carroça, cuidadosamente guardada, que continha todo o necessário para sua refeição, poltronas, mesas, talheres, vinhos.

Não se decidia a apear, como se a vitória ainda não estivesse completamente consumada.

“Onde está o rei da França, não o vistes?”, perguntava aos seus escudeiros.

Estava embriagado de ação. Percorria o outeiro, pronto para qualquer outra luta suprema.

E de súbito percebeu, revirada nas charnecas, uma couraça imóvel. O cavaleiro estava morto, abandonado pelos seus escudeiros, salvo por um velho servidor ferido, que se escondia num bosque. Junto do cavaleiro, seu pendão: armas da França num colar de goles. O príncipe mandou levantar o elmo do morto. Eh!, sim, Archambaud... é exatamente o que estás prevendo: era meu sobrinho... era Roberto de Durazzo.

Não me envergonho pelas minhas lágrimas... Certamente, sua própria honra o tinha impelido a uma ação que a honra da Igreja, e a minha, poderiam muito bem ter-lhe proibido. Mas eu o compreendo. E, além do mais, foi um valente... Não passa um dia sem que eu peça a Deus que o perdoe.

O príncipe ordenou aos seus escudeiros: “Ponde esse cavaleiro sobre um broquel, levai-o a Poitiers e entregai-o ao cardeal de Périgord, com as minhas saudações”.

E dessa maneira fiquei sabendo que a vitória sorrira aos ingleses. E dizer que, pela manhã, o príncipe estava disposto a tratar, a tudo entregar de suas conquistas, a convencionar uma suspensão de armas, por sete anos! Censurou-me bastante, no dia seguinte, quando nos encontramos de novo em Poitiers. Ah! Ele não escolhia as palavras. Eu desejava servir os franceses, tinha-o enganado quanto às suas forças, havia posto na balança todo o peso da Igreja para encaminhá-lo à composição. Só lhe pude responder: “Prezado príncipe, esgotastes todos os recursos da paz, por amor a Deus. E a vontade de Deus se fez presente”. Eis o que lhe disse...

Warwick e Suffolk chegaram até o outeiro, e com eles lorde Cobham. “Tendes notícia do rei João?”, perguntou-lhes o príncipe. “Não, pelo menos não o vimos ainda, mas acreditamos que esteja morto ou prisioneiro, porque não seguiu com os seus homens.”

Disse-lhes então o príncipe: “Peço-vos, ide e cavalgai para me dizerdes a verdade. Procurai o rei João”.

Os ingleses estavam espalhados, mais ou menos, por umas boas duas léguas, procurando o homem, correndo e esgrimindo. Agora que a vitória estava selada, todos queriam o seu proveito. Ora essa! Tudo o que possui um cavaleiro prisioneiro, armas e jóias, pertence ao seu vencedor. E os barões do rei João estavam bem apetrechados. Muitos levavam cintos de ouro. E isso sem falar nos resgates, certamente, que eram discutidos e fixados conforme o nível do prisioneiro. Os franceses são bastante vaidosos para que se lhes deixem fixar o valor que a si mesmos se dão. Podia-se muito bem confiar na sua gloriola. Nesse caso, cada qual com sua sorte! Quem tivesse a bela fortuna de aprisionar João d’Artois ou o conde de Vendôme, ou o conde de Tancarville, poderia sonhar com a possibilidade de mandar edificar um castelo. Os que apenas haviam apanhado um pequeno vexilário ou um simples donzel, poderiam, quando muito, pensar em renovar os móveis de sua sala de visitas e ofertar alguns vestidos à sua dama. E ainda havia os prêmios do príncipe para os mais elevados feitos e as belas proezas.

“Nossos homens estão caçando o derrotado até as portas de Poitiers”, anunciou João de Grailly, chefe de Buch. Um dos homens de seus comandados, que regressava de longe com quatro grandes capturas, porque não havia podido carregar mais, informou-o de que era preciso abater muita gente porque os burgueses de Poitiers haviam fechado suas portas; em vista disso, matava-se horrivelmente nas estradas, e os franceses, assim que avistavam um inglês, rendiam-se logo. Arqueiros comuns tinham aprisionado até cinco ou seis franceses. Jamais se havia visto tanta facilidade.

“Onde está o rei João?”, perguntava o príncipe. “Não se sabe. Caso contrário me informariam.”

E eis que Warwick e Cobham reapareceram, não longe do outeiro, caminhando a pé, com as rédeas de seus cavalos enroscadas no braço, e procurando acalmar uma vintena de cavaleiros e escudeiros que os escoltavam. Em inglês, em francês, em gascão, os homens discutiam com grandes gestos e movimentos de combate. E diante deles, arrastando os passos, ia um homem exausto, algo cambaleante, que segurava pela manopla, com sua mão sem luvas, um menino revestido de armadura. Um pai e um filho que caminhavam lado a lado, exibindo, os dois, o peitoral de lis de seda já danificado.

“Para trás; que ninguém se aproxime do rei, se não for chamado”, gritou Warwick aos contestadores.

E foi então que Eduardo de Gales, príncipe da Aquitânia, duque da Cornualha, percebeu, compreendeu, abraçou a imensidão da sua vitória. O rei, o rei João, o chefe do mais populoso e mais poderoso reino da Europa... O homem e menino caminhavam lentamente em sua direção ... Ah!, era um momento que permaneceria para sempre na memória dos homens!... O príncipe teve a impressão de que o mundo inteiro o encarava.

Fez um sinal aos seus gentis-homens para que o ajudassem a descer do cavalo. Sentia as coxas e os rins endurecidos.

Postou-se à entrada do seu pavilhão. O sol que declinava atravessava o pequeno bosque com seus raios de ouro. Todos aqueles homens ficariam surpresos se lhes dissessem que a hora do àngelus já tinha soado.

Eduardo estendeu as mãos ao presente que lhe encaminhavam Warwick e Cobham, ao presente da Providência. João da França, mesmo encurvado pelo destino adverso, é mais alto do que ele. Correspondeu ao gesto do seu vencedor. E suas duas mãos também se estenderam, uma enluvada e outra nua. Permaneceram um momento assim, não se abraçando, simplesmente estreitando-se as mãos. E em seguida, Eduardo fez um gesto que comoveria os corações de todos os cavaleiros. Era filho de rei; seu prisioneiro era uma testa coroada. Então, sempre de mãos dadas, inclinou a cabeça profundamente e ameaçou dobrar os joelhos. Honra à bravura infeliz... Tudo quanto engrandece nosso vencido engrandece nossa vitória. Houve gargantas embargadas perante aqueles homens duros.

“Sire, meu primo”, disse Eduardo, convidando o rei a entrar no pavilhão, “tomai o vosso lugar. Permiti-me servir-vos um pouco de vinho e especiarias. E perdoai-me que para a ceia só vos apresente uma pobre refeição. Sirvamo-nos imediatamente.”

Apressaram-se a levantar uma grande tenda sobre o outeiro. Os gentis-homens do príncipe conheciam seu dever. E os cozinheiros têm sempre algumas tortas e carnes em suas despensas. O que faltava, foram buscar nos despenseiros dos monges de Maupertuis. Disse ainda o príncipe: “Vossos parentes e barões terão o prazer de vos acompanhar. Mandei chamá-los. E permiti-me que cuide desse ferimento na cabeça, a demonstrar vossa grande coragem”.

 

                                   A ceia do príncipe

É uma coisa que faz pensar no destino das nações o fato de eu contar tudo isto que acaba de acontecer... e que assinala uma grande mudança, um grande desvio para o reino... justamente aqui em Verdun... Por quê? Eh!, meu sobrinho, porque o reino nasceu aqui, porque aquilo que se pode chamar de reino da França resultou do tratado assinado aqui mesmo, depois da batalha de Fontenay, nessa época “Fontaneum”... Tu te recordas, passamos por lá... entre os três filhos de Luís, o Piedoso. A parte de Carlos, o Calvo, foi então retalhada, aliás, sem levar em consideração as verdades do solo. Os Alpes, o Reno deveriam ser as fronteiras naturais da França, e falta o bom senso em que Verdun e Metz sejam terras do império. Ora, que será da França amanhã? Como irão recortá-la? Pode ser que não haja mesmo mais França dentro de dez ou vinte anos; há quem pense assim seriamente. Vêem uma grande porção inglesa, e um pedaço navarrês indo de um mar a outro, com todo o Languedoc, e um reino de Aries, reconstruído na movimentação do império, com a Borgonha por acréscimo ... Todos sonham em desmembrar a fraqueza.

Para ser sincero, não acredito nisso, porque a Igreja, enquanto eu viver e enquanto viverem outros iguais a mim, não permitirá esse esquartejamento. E, além disso, o povo guarda demasiada lembrança e o hábito de uma França que foi una e grande. Os franceses logo perceberão que não são nada se não são mais do reino, se não estão mais congregados num único Estado. Mas haverá dificuldades a superar. É possível que vós ainda enfrenteis opções bastante penosas. Procura sempre, Archambaud, escolher no sentido do reino, mesmo quando governado por um mau rei... porque o rei pode morrer, ou ser destronado, ou mantido em cativeiro, mas o reino, apesar de tudo, permanece.

A grandeza da França surge, nessa tarde de Poitiers, nos próprios olhares com que o vencedor, admirado com sua fortuna, e quase nem acreditando nela, prodigalizava favores ao vencido. Uma estranha reunião de comensais instalou-se após a batalha, no meio de um bosque do Poitou, entre as paredes de tecido vermelho. Nos lugares de honra, à luz de círios, o rei da França, seu filho Filipe, monseigneur Tiago de Bourbon, agora tornado duque porque seu pai fora morto na refrega, o conde João d’Artois, os condes de Tan-carville, D’Étampes, de Dammartin, e também os sires de Joinville e de Parthenay, servidos em baixelas de prata; e espalhados por outras mesas, entre cavaleiros ingleses e gascões, os outros prisioneiros mais poderosos e mais ricos.

O príncipe de Gales fazia questão de se levantar para servir pessoalmente o rei da França e lhe prodigalizar vinho em abundância.

“Comei, prezado sire, por favor. Não vos constranjais por isso. Porque, se Deus não consentiu no vosso desejo, e se a luta não pendeu para o vosso lado, conquistastes hoje um alto renome com as vossas proezas, e vossos elevados feitos ultrapassaram os maiores. Certamente o senhor meu pai vos prestará todas as honras que puder e vos acolherá tão cordialmente que vos tomareis bons amigos. Na verdade, todos aqui presentes vos outorgam o prêmio de bravura, visto que, nesse particular, ultrapassastes a todos.”

O tom era amável. O rei João se desarmava. Com o olho esquerdo inteiramente azulado e um corte na face, ele correspondia às delicadezas do seu hospedeiro. Rei-cavaleiro, fazia questão de assim parecer mesmo na derrota. Nas outras mesas as vozes se alteravam. Depois de terem se confrontado duramente com a espada ou a machadinha, os fidalgos dos dois partidos, nesse momento, praticavam assaltos de cumprimentos.

Comentavam-se, em altas vozes, as peripécias da batalha. Não se regateavam elogios quanto à afoiteza do jovem príncipe Filipe, o qual, tendo comido muito após aquela jornada tão dura, cochilava na sua poltrona e deslizava para o sono.

As contas começavam a ser acertadas. Além dos grandes fidalgos, duques, condes e viscondes, que somavam uma vintena, podiam-se enumerar entre os prisioneiros mais de sessenta barões e senhores de pendão; os simples cavaleiros, escudeiros e donzéis não podiam ser citados. Mais de dois mil, seguramente; não se poderia contar exatamente o total, a não ser no dia seguinte...

Os mortos? Podiam ser recenseados na mesma quantidade. O príncipe ordenou que aqueles que já tivessem sido recuperados fossem conduzidos, logo na madrugada seguinte, ao convento dos frades menores de Poitiers, precedidos dos corpos do duque de Atenas, do duque de Bourbon, do conde-bispo de Châlons, para aí serem sepultados com toda a pompa e a honra que mereciam. Que procissão! Jamais o convento havia visto num só dia tão elevados e tão ricos cavaleiros. Que fortuna, em missas e donativos, iria chover sobre os frades menores! E outro tanto sobre os frades pregadores.

Digo-te, de saída, que foi preciso descalçar a nave e o claustro de dois conventos para colocar sob as lajes, em dois andares, Geoffroy de Charny, Rochechouart, Eustáquio de Ribemont, Dance de Melon, João de Montmorillon, Seguin de Cloux, La Fayette, La Rochedragon, La Rochefoucault, La Roche Pierre de Bras, Olivier de Saint-Georges, Imbert de Saint-Saturnin, e eu poderia citar-te vintenas.

“Sabe-se o que aconteceu com o Arcipreste?”, perguntou o rei.

O Arcipreste fora ferido e feito prisioneiro por um cavaleiro inglês. Quanto valia o Arcipreste? Tinha castelo imponente, grandes propriedades em terras? Seu vencedor se informava desavergonhadamente. Não. Um pequeno solar em Vélines. Mas esse preço se elevava, uma vez que o rei acabava de citá-lo.

“Eu o resgatarei”, disse João II, que, sem saber ainda quanto ele próprio iria custar à França, recomeçava com sua mania de grandeza.

Nesse meio tempo, o príncipe Eduardo lhe respondeu: “Em vossa homenagem, sire meu primo, eu resgatarei pessoalmente esse arcipreste e lhe darei a liberdade, se a solicitardes”.

O tom das vozes se alterava cada vez mais entre as mesas. O vinho e as carnes, gulosamente devorados, subiam à cabeça daqueles homens fatigados, que nada haviam comido desde cedo. Sua assembléia se parecia ao mesmo tempo um banquete de corte após grandes torneios e uma feira de animais.

Morbecque e Bertrand de Troy não terminavam sua disputa quanto à prisão do rei. “Fui eu, vos afirmo!” “Nada disso; eu estava em cima dele, vós me afastastes!” “Para quem ele entregou sua luva?”

Seja como for, a nenhum deles caberia o prêmio, enorme realmente, mas ao rei da Inglaterra. Presa de rei é de rei. O que eles debatiam era saber a quem tocaria a pensão que o rei Eduardo não deixaria de conceder. Pode-se indagar se não teriam tido maior vantagem, ou mesmo mais honra, em prender um rico barão, que acabariam repartindo entre si. Porque faziam-se partilhas, no caso de serem dois ou três a disputarem o mesmo prisioneiro. Ou até trocas. “Dai-me o sire de La Tour; conheço-o, ele é parente de minha esposa. Eu vos entregarei Mouvinet, que aprisionei. E o proveito será vosso; ele é senescal, o mordomo-mor da casa regia da Touraine.”

E o rei João subitamente bateu na mesa com a palma da mão.

“Meus sires, meus caros senhores, compreendo que tudo se faça entre vós e aqueles que nos aprisionaram conforme a honra e a nobreza. Deus quis que fôssemos derrotados, mas deveis ponderar a consideração que nos deveis. Devemos respeitar a cavalaria. Que ninguém pense em fugir ou faltar à palavra empenhada, porque eu o desonrarei.”

Dir-se-ia que o derrotado comandava e assumia todo o seu poder para convidar seus barões a serem corretos na prisão.

O príncipe de Gales, que lhe servia o vinho de Saint-Emilion, agradeceu-lhe. O rei João achava o jovem amável. Como era atencioso e bem-educado! O rei João desejava que seus filhos se parecessem com ele! Não resistiu, vencido pela bebida e pelo cansaço, a lhe dizer: “Não conheceu por acaso o senhor de Espanha?” “Não, caro sire; eu apenas o combati no mar...” Era cortês, porquanto poderia muito bem ter dito: “Eu o derrotei”. “Era um bom amigo. Pela vossa aparência e boa educação pareceis com ele.” E, de repente, com a maldade na voz: “Não me peçais que ponha em liberdade o meu genro de Navarra; com isto por nenhum preço eu concordaria”.

O rei João II fora verdadeiramente grande por um rápido instante, no instante que se seguia à sua captura. Tivera a grandeza da desgraça suprema. E eis que retoma seu temperamento, as maneiras correspondentes à imagem exagerada que ele próprio fazia a seu respeito, uma apreciação frágil, precauções fúteis, paixões vergonhosas, impulsos absurdos e ódios tenazes.

O cativeiro de certa forma não iria desagradar-lhe, um cativeiro dourado, compreende-se, um cativeiro real. Aquele falso glorioso tinha atingido o seu verdadeiro destino, que era o de ser derrotado. Tinham acabado por algum tempo os percalços do governo, a luta contra todas as adversidades do reino, o aborrecimento de dar ordens que nunca são cumpridas. Presentemente, está em paz; pode tomar por testemunho o céu que lhe foi adverso, esconder-se no próprio infortúnio e fingir suportar com nobreza a dor de um destino que tão bem lhe convinha. Deixa a outros o fardo de conduzir um povo intratável! Ver-se-á se chegarão a obter melhor resultado...

“Para onde me encaminhareis, meu primo?”, perguntou. “Para Bordeaux, prezado sire, onde vos providenciarei um castelo adequado, provisões e festas para diverti-vos, até que vos entendais com meu pai, o rei.” “Ele está satisfeito com um rei prisioneiro?”, respondeu João II, inteiramente atencioso.

Ah!, por que não aceitou em Poitiers as condições que eu lhe ofertei? Já se viu alguma vez um rei em situação de tudo ganhar de manhã, sem desembainhar a espada, que pode restabelecer sua lei sobre a quarta parte do seu reino somente apondo seu selo e seu signo sobre o tratado que um inimigo vencido lhe oferece, recusar o acorde... e à tardinha se vê prisioneiro!

Um sim ao invés de um não. O ato inapelável. Como o do conde d’Harcourt, ao subir a escada de Rouen em lugar de sair do castelo. João d’Harcourt deixou ali sua cabeça; aqui é a França inteira que se arrisca a conhecer sua agonia.

O mais surpreendente e injusto é que esse rei absurdo, obstinado apenas em jogar fora sua sorte, e que ninguém estimava antes de Poitiers, tornou-se de repente, porque foi vencido, porque é cativo, objeto de admiração, de piedade e de amor pelo seu povo, por uma parte do seu povo. João, o Bravo, João, o Bom...

E tudo começou na ceia do príncipe. Agora que tinham tudo a reprovar a esse rei que os havia lançado na infelicidade, os barões e os cavaleiros prisioneiros exaltavam sua coragem, sua magnanimidade, que sei eu? Assumiam, os vencidos, boa consciência e belo aspecto. Ao regressarem, suas famílias sangradas e tendo sangrado seus súditos para pagar seus resgates, eles dirão, fica certo disso, e com soberba: “Não estivestes como eu ao lado do nosso rei João”. Ah! E tornarão a narrar a jornada de Poitiers!

Em Chauvigny, o delfim, que tomava uma triste refeição em companhia dos seus irmãos e ao lado apenas de alguns empregados, foi advertido de que seu pai estava vivo, mas prisioneiro. “Cabe a vós governar, senhor”, disse-lhe Saint-Venant.

Não existiu no passado, pelo menos que eu saiba, um príncipe de dezoito anos que tivesse de assumir o governo numa situação tão ruim. Um pai prisioneiro, uma nobreza aviltada pela derrota, dois exércitos inimigos acampados no país, porque há ainda um Lancastre acima do Loire... algumas províncias devastadas, nenhum dinheiro, conselheiros cúpidos, divididos e odiados, um cunhado preso na fortaleza, cujos partidários, bastante ativos, levantam a cabeça mais do que nunca, uma capital fremente, que um punhado de burgueses ambiciosos incita à revolta... Acrescente-se a isso que o jovem tem uma saúde precária e que sua conduta na guerra não contribuiu para aumentar sua reputação.

Em Chauvigny, sempre nessa mesma noite, como havia decidido voltar para Paris pelo caminho mais curto, Saint-Venant lhe perguntou: “Que título, senhor, deverão vos dar os que falarem em vosso nome?” E o delfim respondeu: “O que eu tenho, Saint-Venant, aquele que Deus me designou: lugar-tenente-geral do reino”. O que era sensato.

Faz três meses. Nem tudo foi perdido, mas nada anuncia nenhuma melhora, muito pelo contrário. A França se desagrega. E nós iremos, em menos de uma semana, encontrar-nos em Metz, de onde não espero grande coisa, garanto-te. Que grande benefício poderia advir, salvo para o imperador, que grande resultado poderão obter um lugar-tenente do reino, que não é rei, e um legado pontifício, que não é papa?

Sabe o que me disseram? A estação é tão bela, e os dias tão quentes em Metz, onde nos aguardam mil príncipes, prelados e nobres, que o imperador, se esta suavidade se mantiver, decidiu que dará uma festa de Natal ao ar livre, num jardim fechado.

Jantar ao ar livre no Natal, na Lorraine, outra coisa que nunca se viu!

 

                                                                                Maurice Druon  

 

                      

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