Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
As Aventuras de Prydain
Volume V
O REI SUPREMO
Retorno a Casa
Sob o céu acinzentado e frio, dois viajantes cavalgavam devagar através do relvado. Taran, o cavaleiro mais alto, voltou o rosto contra o vento e inclinou-se para a frente na sela, os olhos nas colinas distantes. Do cinturão pendia-lhe uma espada e do ombro uma trompa de guerra, com acabamento de prata. Seu companheiro, Gurgi, mais peludo que o pônei que montava, puxou para junto de si o manto desbotado, esfregou as orelhas enregeladas e começou a suspirar de tristeza, com tal intensidade que Taran, finalmente, freou o garanhão.
- Não, não! - gemeu Gurgi. - Leal Gurgi vai continuar! Ele acompanha bondoso mestre, oh, sim, como sempre. Não ligue para tremores e dores! Não ligue para o desânimo da pobre cabeça mimosa de Gurgi!
Taran sorriu ao perceber que Gurgi, apesar das palavras corajosas, estava de olho num bosque de freixos que lhes serviria de abrigo.
- Temos tempo - respondeu. - Quero muito chegar em casa, mas não à custa da sua pobre cabeça mimosa. Acampemos aqui e, quando amanhecer, seguiremos em frente.
Desmontaram e, num círculo de pedras, fizeram uma pequena fogueira. Gurgi enroscou-se e, mal terminara de engolir a comida, já estava roncando. Embora estivesse tão exausto quanto o companheiro, Taran pôs-se a cuidar dos arreios. De repente parou e deu um pulo, ficando de pé. Acima, uma forma alada mergulhava suavemente na sua direção.
- Olhe! - gritou Taran, enquanto Gurgi, caindo de sono, sentou-se e piscou. - É o Kaw! Dallben deve ter mandado que ele nos procurasse.
O corvo bateu as asas, o bico e começou a grasnar alto, antes mesmo de pousar no pulso estendido de Taran.
- Eilonwy! - grasnou Kaw a todo o volume. - Eilonwy! Princesa! Em casa!
A exaustão que Taran sentia caiu de seus ombros como se fosse um manto. Gurgi, totalmente desperto e gritando de alegria, apressou-se para soltar os cavalos. Taran pulou em Melynlas, deu uma volta com o corcel acinzentado, deixando o bosque a galope, levando Kaw empoleirado no ombro, enquanto Gurgi, montado no pônei, seguia-o de perto.
Cavalgaram noite e dia, detendo-se raramente para uma rápida refeição, exigindo o máximo de velocidade e força de suas montarias e de si mesmos, sempre em direção ao sul, descendo o vale e atravessando o Grande Avren até que, num amanhecer luminoso, os campos de Caer Dallben estenderam-se diante deles mais uma vez.
Desde o momento em que Taran atravessou a soleira da porta, sucedeu uma tamanha comoção que ele mal sabia para que lado se virar. Kaw, imediatamente, começara a tagarelar e bater asas; Coll, com a careca e o rosto largo reluzindo de satisfação, batia com carinho nas costas de Taran; nesse ínterim, Gurgi gritava de alegria e dava pulos, envolto numa nuvem de pêlos soltos. Até mesmo Dallben, o venerável feiticeiro, que raramente deixava qualquer coisa perturbar suas meditações, saiu do quarto, no seu passo arrastado, para observar a recepção. Diante de tudo aquilo, Taran mal entrevia Eilonwy, embora distinguisse, nitidamente, a voz da princesa em meio à balbúrdia.
- Taran de Caer Dallben - exclamou, quando ele tentava se aproximar dela -, faz dias que espero vê-lo! Estive fora por tanto tempo aprendendo a ser uma jovem dama, como se eu já não fosse antes uma jovem dama... e quando, finalmente, cheguei em casa, você nem estava aqui!
Um instante depois ele se achava a seu lado. A princesa de porte esguio ainda usava ao redor do pescoço a lua crescente de prata, e no dedo o anel feito pelo Povo Formoso. Mas agora, um aro dourado cingia-lhe a testa, e a riqueza do seu traje fez Taran pensar, de repente, no manto manchado e nas botas enlameadas que ele usava.
- E se você pensa que é agradável viver num castelo - continuou Eilonwy, sem fazer sequer uma pausa para respirar -, posso lhe garantir que não é. É cansativo e monótono! Fizeram-me dormir em camas com almofadas tão cheias de penas de ganso que chegavam quase a me sufocar; posso garantir que seriam mais úteis aos gansos do que a mim... as penas, quero dizer, não as almofadas. E os criados nos trazem exatamente o que não desejamos comer. E os cabelos são lavados, mesmo sem necessidade. E costura, tapeçaria, mesuras e outras coisas nas quais nem quero pensar. Nem sei quanto tempo faz que não empunho uma espada...
Eilonwy parou de repente e voltou um olhar curioso para Taran.
- Que estranho - disse. - Tem alguma coisa em você que está diferente. Não é o seu cabelo, embora pareça que foi cortado por você mesmo, de olhos fechados. É... bem, não tenho certeza. Quero dizer, se você não disser, ninguém poderá supor que você seja um auxiliar de guardador-de-porcos.
Taran riu com ternura diante da expressão preocupada de Eilonwy.
- Infelizmente, há muito tempo não cuido de Hen Wen. Na verdade, quando viajamos pela região dos Condados Livres, Gurgi e eu fizemos todo tipo de trabalho, exceto cuidar de porcos. Este manto teci no tear de Dwyvach, a tecelã; esta espada... Hevydd, o ferreiro, ensinou-me a forjar. E isto aqui - disse com um ar de tristeza, retirando do gibão uma tigela de cerâmica -, apesar de não estar muito bom, fiz na roda de Annlaw, o ceramista.
Entregou-lhe a tigela.
- Se lhe agrada, é sua.
- É linda - respondeu Eilonwy. - Sim, vou guardá-la. Mas é isso mesmo que quero dizer. Não estou negando que você seja um bom guardador-de-porcos, porque tenho certeza de que é o melhor de todos em Prydain, mas tem alguma coisa...
- É verdade o que você diz, princesa - interrompeu Coll. - Quando ele nos deixou era um guardador-de-porcos e, ao voltar, é capaz de fazer tudo que suas mãos tocarem, seja o que for.
Taran sacudiu a cabeça.
- Cheguei à conclusão de que não podia ser nem espadeiro, nem tecelão. Nem, infelizmente, ceramista. Gurgi e eu já estávamos a caminho de casa quando Kaw nos encontrou, e aqui pretendemos ficar.
- Isto me alegra - respondeu Eilonwy. - O que se sabia a seu respeito era que você andava por toda parte. Dallben me disse que você estava procurando seus pais. Até que encontrou alguém que julgava ser, mas que, na realidade, não era seu pai. Ou foi o contrário? Não entendi bem.
- Não há muito para entender - disse Taran. - Aquilo que eu procurava encontrei. Embora não fosse o que eu esperava.
- Não, não era - murmurou Dallben, que estivera observando Taran atentamente. - Você encontrou mais do que procurou e talvez tenha ganhado mais do que supõe.
- Ainda não consigo entender por que você quis sair de Caer Dallben... - Eilonwy começou a dizer.
Taran não teve a oportunidade de responder, pois nesse, momento sua mão foi apertada e sacudida vigorosamente.
- Olá, olá! - exclamou um jovem de olhos azuis e cabelos cor de palha. Seu manto, bordado com requinte, parecia ter sido imerso na água e depois torcido até secar. Os cordões das botas estavam rompidos em vários lugares e emendados com nós grandes e malfeitos.
- Príncipe Rhun! - Por pouco Taran não o reconhecia. Rhun estava mais alto e mais magro, embora o sorriso amplo fosse o mesmo de sempre.
- Rei Rhun, na verdade - respondeu o jovem -, desde que meu pai morreu, no verão passado. Esta é uma das razões por que a Princesa Eilonwy está aqui agora. Minha mãe queria mantê-la conosco, em Mona, para concluir a sua educação. E você conhece minha mãe! Não desistiria de tal projeto, apesar de Dallben ter mandado dizer que Eilonwy precisava voltar para casa. E então - acrescentou com orgulho - fiz valer a minha vontade. Mandei preparar um barco e zarpamos de Mona Haven. É impressionante o que um rei pode fazer quando está determinado!
- Também trouxemos uma outra pessoa - continuou Rhun, fazendo um gesto em direção à lareira na qual Taran, pela primeira vez, notou um homenzinho atarracado, sentado com um caldeirão entre os joelhos.
O desconhecido lambeu os dedos e enrugou o nariz flácido. Não fez menção de se levantar, mas acenou, ligeiramente, a cabeça bulbosa, enquanto a franja esparsa movia-se como uma planta aquática.
Taran olhou fixamente, sem acreditar no que via. O pequeno homem empertigou-se e fungou, demonstrando ao mesmo tempo arrogância e ressentimento.
- Não deveria ser difícil lembrar-se de um gigante - disse, mal-humorado.
- Lembrar-me de você? - respondeu Taran. - Como poderia me esquecer! A gruta de Mona! Apesar de que, a última vez que o vi, você era... digamos, bem maior. Mas, afinal, é você. É mesmo! Glew!
- Quando eu era um gigante - disse Glew -, poucos se esqueceriam de mim tão depressa. É lamentável que as coisas se tenham passado daquela maneira. Pois é, na gruta...
- Você o fez recomeçar - disse Eilonwy a Taran, sussurrando. - Vai continuar assim, falando dos dias gloriosos em que era um gigante, até deixar qualquer um exausto. Só vai parar de falar na hora de comer, e só pára de comer quando fala. Compreendo o motivo por que come tanto, pois, durante muito tempo, viveu à base de cogumelos. Mas se foi infeliz na condição de gigante, supõe-se que gostaria de esquecer o assunto.
- Eu soube que Dallben enviou Kaw à gruta levando uma poção para encolher Glew, até que voltasse ao tamanho normal - respondeu Taran. - Do que aconteceu de lá para cá, não tive notícia.
- Isto é o que aconteceu a ele - disse Eilonwy. - Assim que se libertou da gruta, foi para o castelo de Rhun.
Ninguém teve coragem de mandá-lo embora, apesar de ele nos fazer chorar de tédio com essas histórias intermináveis e descabidas. Nós o trouxemos quando embarcamos, supondo que ele reconhecia o favor que Dallben lhe prestara e que esta seria a oportunidade de lhe agradecer. Que nada! Quase foi preciso torcer as suas orelhas para trazê-lo a bordo. Agora que está aqui, eu preferia que o tivéssemos deixado lá mesmo.
- Mas faltam três dos nossos companheiros - disse Taran a Coll, enquanto olhava ao redor, no chalé. - Doli, nosso amigo de sempre, e Fflewddur Fflam. Também esperava que o Príncipe Gwydion viesse receber Eilonwy.
- Doli manda lembranças - disse Coll -, mas temos que nos acostumar com a sua ausência. O nosso amigo anão é mais difícil de ser arrancado do Povo Formoso do que uma cebola da terra. Nem se mexe. Quanto a Fflewddur Fflam, onde quer que haja divertimento, nem ele, nem a sua harpa deixam de comparecer. Já deveria estar aqui.
- E o Príncipe Gwydion também - acrescentou Dallben. - Nós dois temos assuntos a tratar. Embora vocês, jovens, possam duvidar, alguns desses assuntos são mais importantes do que as boas-vindas a uma princesa e um Porqueiro-Assistente.
- Bom, vou pôr isto de novo assim que Fflewddur e o Príncipe Gwydion chegarem - disse Eilonwy, retirando da testa o diadema dourado - para que eles vejam como é. Mas agora não quero usá-lo nem mais um minuto. Já fez um calo na minha testa e me causa dor de cabeça... É como se alguém estivesse apertando o meu pescoço, embora seja um pouco mais acima.
- Ah, princesa - disse Dallben com um sorriso enrugado -, uma coroa é mais desconfortável que um adorno. Se você já aprendeu isto, aprendeu o bastante.
- Aprender! - afirmou Eilonwy. - Estou saturada de aprendizado. Não dá para se notar, por isso é difícil de acreditar que já sei fazer muita coisa. Espere um momento, não é bem assim. Veja só o que fiz.
Do seu manto retirou um quadrado de tecido dobrado e, com certa inibição, entregou-o a Taran.
- Bordei para você. Mesmo inacabado, queria lhe entregar. Mas devo admitir que não é tão bonito como as coisas que você fez.
Taran desdobrou o tecido. Da largura de seus braços estendidos, o bordado, ligeiramente torto, mostrava uma leitoa branca de olhos azuis, tendo ao fundo um campo verde.
- Pretende ser Hen Wen - explicou Eilonwy, no momento em que Rhun e Gurgi aproximaram-se para examinar de perto a peça artesanal.
- No início tentei bordar você - disse Eilonwy a Taran. - Porque você gosta muito de Hen e porque... porque eu estava pensando em você. Mas o resultado foi um punhado de palitos com um ninho de pássaros no topo, e não você, de jeito nenhum. Então tive de recomeçar, bordando Hen Wen sozinha. Basta fazer de conta que está de pé ao lado dela, ligeiramente à esquerda. Se não fosse assim, eu jamais teria feito tudo isso, apesar de ter trabalhado durante todo o verão.
- Então, se eu estava nos seus pensamentos - disse Taran -, seu trabalho me deixa ainda mais feliz. Não importa que os olhos de Hen Wen sejam, na realidade, castanhos.
Eilonwy olhou-o sentindo-se, de súbito, decepcionada.
- Você não gostou.
- Gostei sim, de verdade - afirmou Taran. - Castanho ou azul, não faz diferença. Vai ser útil...
- Útil! - exclamou Eilonwy. - Quem falou em utilidade? É uma lembrança, não é para forrar a sela! Taran de Caer Dallben, você não sabe de nada, mesmo.
- Ao menos - respondeu Taran com um sorriso bem-humorado - sei qual é a cor dos olhos de Hen Wen.
Eilonwy agitou os cabelos vermelho-dourados e levantou o queixo.
- Hum! E, provavelmente, se esqueceu da cor dos meus - disse.
- De jeito nenhum, princesa - respondeu Taran em voz baixa. - Também não me esqueci de quando você me deu isto - acrescentou, erguendo a trompa de batalha. - Seus poderes eram maiores do que poderíamos supor. Agora, esses poderes não existem mais, no entanto, ainda guardo a trompa comigo porque me foi entregue por você.
- Perguntou-me por que saí em busca de minha ascendência - prosseguiu Taran. - Porque esperava constatar minha nobreza, o que me daria o direito de perguntar o que não ousei perguntar antes. Minha esperança era infundada. Mesmo assim...
Taran hesitou, procurando as palavras mais adequadas. Antes que pudesse voltar a falar, a porta do chalé abriu-se bruscamente e ele deu um grito de susto.
À soleira estava Fflewddur Fflam. O rosto do bardo estava pálido, o cabelo louro, revolto, caía-lhe na testa. Apoiado no seu ombro estava um homem debilitado.
Taran e, logo atrás, Rhun correram para ajudar. Gurgi e Eilonwy seguiram-nos, ajudando-os a pôr no chão a figura inerte. Glew, com as bochechas rechonchudas tremendo, olhava fixamente sem dizer uma palavra. Logo de início, Taran quase perdeu o equilíbrio com o impacto. Agora, suas mãos trabalhavam depressa, quase por conta própria, para desprender o manto e afrouxar o gibão rasgado. Diante dele, no chão de terra batida, jazia Gwydion, Príncipe de Don.
Sangue empapava os cabelos da cor de um lobo cinzento e manchava o rosto curtido. Os lábios retraídos deixavam à mostra os dentes cerrados. O manto de Gwydion envolvia-lhe um braço como se ele o tivesse usado, afinal, para se defender.
- Lorde Gwydion está morto! - exclamou Eilonwy.
- Ele dá sinais de vida... embora sejam muito leves - disse Taran. - Traga os medicamentos - ordenou a Gurgi -, as ervas curativas que estão nos meus alforjes...
De repente parou e virou-se para Dallben.
- Desculpe-me. Não me cabe dar ordens sob o teto de meu mestre. Mas as ervas são poderosas. Adaon, Filho de Taliesin, deu-me essas plantas muito tempo atrás, São do senhor, se quiser.
- Conheço as propriedades destas ervas e nenhuma das que tenho serão tão eficazes - respondeu Dallben. - Nem você deve ter receio de comandar sob teto algum, uma vez que aprendeu a comandar a si mesmo. Confio tanto no seu talento quanto você. Faça o que julgar mais apropriado.
Da copa, Coll já voltava correndo, segurando uma bacia cheia d'água. Dallben, que ajoelhara ao lado de Gwydion, ergueu-se e dirigiu-se ao bardo.
- Que maldade foi essa? - perguntou o feiticeiro. Sua voz, pouco mais alta que um sussurro, ecoou no chalé e seus olhos ardiam de raiva. - Qual foi a mão que o ousou atingir?
- Os Caçadores de Annuvin - respondeu Fflewddur. - Quase eliminaram duas vidas. E você, como conseguiu? - perguntou repentinamente a Taran. - Como conseguiu escapar deles tão depressa? Agradeça por não lhe ter acontecido o pior.
Taran ficou pensativo e ergueu os olhos para o bardo, que estava enfurecido.
- Suas palavras não têm sentido, Fflewddur.
- Sentido? - respondeu o bardo. - Têm o sentido do que querem dizer. Gwydion teria dado a vida por você no momento em que os Caçadores estavam no seu encalço, uma hora atrás.
- No meu encalço? - Taran estava cada vez mais perplexo. - Como é possível? Gurgi e eu não vimos Caçador algum. E faz uma hora que estamos em Caer Dallben.
- Grande Belin1, um Fflam vê o que vê! - exclamou Fflewddur.
- A febre deve tê-lo afetado - disse Taran. - Você também deve estar ferido gravemente, mais do que imagina. Descanse agora. Vamos lhe prestar toda a ajuda possível.
Voltou-se novamente para Gwydion, abriu o pacote de ervas que Gurgi trouxera e mergulhou-as na bacia. O semblante de Dallben estava anuviado.
- Deixe o bardo falar - disse. - Há muito nas suas palavras que me perturba.
- Lorde Gwydion e eu saímos das terras do norte cavalgando juntos - começou Fflewddur. - Tínhamos atravessado o Avren e já estávamos a caminho daqui. A uma pequena distância de nós, numa clareira...
O bardo fez uma pausa e olhou diretamente para Taran.
- Vi você com estes olhos! Você estava em dificuldade. Gritou pedindo ajuda e acenou para nós.
- Gwydion afastou-se de mim - continuou Fflewddur. - Você já havia atravessado a clareira a galope. Rápido como o vento, Gwydion seguiu-o. Llyan levou-me velozmente, mas quando cheguei ao local onde você estivera, não vi mais sinal de você; no entanto, Caçadores haviam de sobra. Arrastaram Gwydion da sela. Teriam pagado com as próprias vidas se tivessem me enfrentado! - exclamou Fflewddur. - Mas fugiram quando me aproximei. Gwydion estava quase morto e não me atrevi a deixá-lo.
Fflewddur baixou a cabeça.
- Eu não tinha condições de tratar o ferimento dele. Nada mais podia fazer a não ser trazê-lo para cá, neste estado.
- Você salvou a vida dele, meu amigo - disse Taran.
- E perdi o que Gwydion teria dado a vida para manter em suas mãos! - disse o bardo, exaltado. - Os Caçadores não conseguiram matá-lo, mas uma desgraça maior atingiu-o. Tiraram dele a espada... e a bainha!
Taran sentiu faltar-lhe o ar. Preocupado apenas com os ferimentos do companheiro, não notara que Dyrnwyn, a espada negra, não pendia mais ao lado de Gwydion. O terror invadiu-o. Dyrnwyn, a espada encantada, arma flamejante de poder antigo, agora estava nas mãos dos Caçadores. Eles a entregariam ao seu senhor: a Arawn, Lorde-da-Morte, no escuro reino de Annuvin.
Fflewddur desabou no chão e levou as mãos à cabeça.
- E ainda por cima estou perturbado, pois você está me dizendo que não foi você quem nos chamou.
- O que você viu não posso julgar - disse Taran. - A vida de Gwydion é nossa principal preocupação. Falaremos desse assunto quando você se lembrar de tudo com mais clareza.
- A memória do harpista está bastante clara.
A mulher de túnica negra moveu-se do canto escuro onde estivera escutando em silêncio e, lentamente, aproximou-se do grupo. Os cabelos compridos e soltos tinham a cor de prata embaçada; a beleza fatal de seu rosto não havia desaparecido de todo, apesar de agora parecer mais sombria, desgastada, assim como um sonho quase esquecido.
- Má sorte estraga nosso encontro, Porqueiro-Assistente - disse Achren. - Mesmo assim, seja bem-vindo. Como! Então ainda tem receio de mim? - acrescentou, ao ver o olhar apreensivo de Taran.
Ela sorriu. Seus dentes eram pontudos.
- Nem Eilonwy, Filha de Angharad, esqueceu-se de meus poderes, embora ela mesma os tenha destruído no Castelo de Llyr. Entretanto, desde que vim morar aqui, tenho servido Dallben tão bem como qualquer um de vocês, não é?
Achren caminhou rapidamente na direção da forma estendida de Gwydion. Taran chegou a perceber um olhar de piedade naqueles olhos frios.
- Lorde Gwydion vai sobreviver - disse. - Mas, para ele, a vida será mais cruel que a morte.
Inclinou-se e, com as pontas dos dedos, tocou a testa do guerreiro. Em seguida, afastou a mão e encarou o bardo.
- Seus olhos não o enganaram, harpista - disse Achren. - Você viu o que foi determinado que você visse. Um porcariço? Por que não, se ele resolveu mostrar-se assim? Somente uma pessoa detém tal poder: o próprio Arawn, Lorde de Annuvin, Terra da Morte.
Os Bastões de Letras
Taran não conseguiu reprimir a sensação súbita de medo. A mulher de vestido negro lançou-lhe um olhar gélido. - Arawn não ousa atravessar as fronteiras de Annuvin sob a forma verdadeira - disse Achren. - Se isto acontecesse, significaria a sua morte. Mas ele domina todas as formas e estas constituem, ao mesmo tempo, escudo e máscara. Para o harpista e Lorde Gwydion, mostrou-se como um porcariço. Poderia também ter surgido sob a forma de uma raposa na floresta, uma águia, e mesmo um tipo de minhoca cega, caso tal disfarce servisse melhor a seus propósitos. Sim, porcariço, ele poderia, sem dificuldade, ter escolhido a forma e as feições de qualquer ser vivente. Para Lorde Gwydion não haveria melhor chamariz do que um companheiro em perigo... aquele que várias vezes lutou ao seu lado, por ele conhecido e digno de sua confiança. Gwydion é um guerreiro tão astuto que não cairia numa cilada mais fraca.
- Então estamos todos perdidos - disse Taran, decepcionado. - Lorde de Annuvin pode circular entre nós como bem entender e não poderemos nos defender.
- Você tem razão de temer, porcariço - respondeu Achren. - Agora já se apercebeu de um dos poderes mais sutis de Arawn. Mas é um poder por ele usado somente quando nenhum outro puder lhe servir. Jamais deixaria a fortaleza, exceto se estivesse em perigo de vida; ou se, conforme ocorreu hoje, o que procurasse obter superasse, em muito, o risco.
Achren baixou o tom de voz.
- São muitos os segredos de Arawn, mas nenhum deles é tão bem guardado quanto este. Ao assumir uma forma, sua força e habilidade não são maiores do que aquela da forma que representa. Por conseguinte, pode ser morto como qualquer ser perecível.
- Ah, Fflewddur, se eu estivesse com você! - exclamou Eilonwy, desesperada. - Arawn não me teria enganado, por mais que ele se parecesse com Taran. Não me diga que eu não poderia ter distinguido um verdadeiro Porqueiro-Assistente de um falso!
- Presunção tola, Filha de Angharad - respondeu Achren com desdém. - Não existem olhos que possam ver através do disfarce de Arawn, Lorde-da-Morte. Não existem olhos assim - acrescentou -, a não ser os meus. Duvida? - disse Achren, rapidamente, ao perceber a surpresa de Eilonwy.
As feições abatidas da mulher mantinham resquícios de um orgulho antigo e sua voz, repleta de arrogância e revolta, tornou-se mais intensa.
- Muito antes de os Filhos de Don terem vindo morar em Prydain, muito antes de os lordes dos cantreves terem jurado fidelidade a Math, o Rei Supremo, e Gwydion, seu chefe militar, era eu quem impunha obediência, era eu quem usava a Coroa de Ferro de Annuvin. Arawn era meu cônjuge. Servia-me e seguia minhas ordens - disse Achren. - E ele me traiu. Sua voz era grave e áspera e seus olhos irradiavam ódio.
- Apoderou-se do meu trono e me deixou de lado. No entanto, conheço bem os seus segredos, pois ensinei-lhe todos. Pode ser que, sob qualquer forma que escolha, ele consiga confundi-los. De mim, a face de Arawn jamais se esconderá.
Gwydion estremeceu e deu um gemido fraco. Taran voltou-se novamente ao recipiente de ervas curativas, enquanto Eilonwy erguia a cabeça do guerreiro.
- Tragam o Príncipe Gwydion ao meu quarto - ordenou Dallben.
O rosto contraído do feiticeiro estava marcado, e as rugas sulcavam as faces murchas.
- Por sua destreza ele escapou da morte - disse a Taran. - Agora eu é que preciso usar toda minha habilidade para ajudá-lo a viver.
Coll ergueu Gwydion nos braços robustos. Achren fez menção de segui-lo.
- Não tenho necessidade de dormir e posso vigiar melhor - disse Achren. - Tomarei conta de Lorde Gwydion durante a noite.
- Eu tomarei conta dele - disse Eilonwy, pondo-se ao lado de Coll.
- Não tenha medo de mim, Filha de Angharad - disse Achren. - Não quero mal algum a Lorde Gwydion.
Assim dizendo, fez uma profunda reverência, um tanto humilde, um tanto irônica.
- O estábulo é o meu castelo e a copa o meu reino. É o que me basta.
- Venham - disse Dallben. - Vocês duas podem me ajudar. Os demais... esperem. Tenham paciência e esperança.
A escuridão vedou as janelas do chalé. Taran sentiu que o fogo perdera o calor e percebia apenas sombras frias entre os companheiros silenciosos.
- De início, pensei que, de algum modo, poderíamos alcançar os Caçadores e impedir que chegassem a Annuvin - disse Taran, afinal. - Mas, se Achren está dizendo a verdade, o próprio Arawn comandava-os e a espada de Gwydion já se encontra em suas mãos. Não sei o que pretende, mas estou apavorado.
- Não consigo me perdoar - disse Fflewddur. - Sou culpado pela perda. Devia ter percebido a cilada imediatamente.
Taran sacudiu a cabeça.
- Arawn usou um artifício implacável contra vocês. Até mesmo Gwydion foi enganado.
- Mas eu não! - exclamou o bardo. - Um Fflam tem a vista aguçada! Desde o primeiro instante percebi as diferenças. O jeito de montar, o jeito de...
A harpa, presa ao ombro do bardo, tensionou de repente e uma corda rompeu-se, fazendo um ruído tão estridente que Gurgi, agachado ao lado da lareira, deu um pulo. Fflewddur engasgou e engoliu a saliva.
- De novo - murmurou. - Não vai desistir nunca? Quando se quer dar algum... ah, colorido mais sutil aos fatos, as cordas inconvenientes arrebentam! Acredite, não estou exagerando. Ao relembrar o que aconteceu, pensei ter percebido... Não, a verdade é a seguinte: o disfarce era perfeito. Eu poderia enganar-me de novo... facilmente, como da primeira vez.
- Surpreendente! - murmurou o Rei de Mona, que estivera observando tudo com os olhos arregalados. - Para ser sincero, eu mesmo gostaria de poder mudar de forma.
Inacreditável! Sempre pensei nisto: seria tão interessante ser um texugo ou uma formiga. Gostaria muito de saber construir tão bem quanto eles. Desde que me tornei rei, tentei melhorar algumas coisas. Pretendia erguer um novo dique no Porto de Mona. E já havia começado. Minha idéia era começar, simultaneamente, das duas extremidades, e assim a barragem seria concluída duas vezes mais rápido. Não entendo o que deu errado, pois eu mesmo me encarreguei de todo o trabalho. Não sei por que, mas não nos encontramos no meio e ainda preciso descobrir qual é a melhor solução. Depois projetei uma estrada até a antiga caverna de Glew. É um local impressionante e acredito que os habitantes de Dinas Rhydnant gostariam de visitá-lo. Tão fácil que surpreende - disse Rhun, vibrando de orgulho. - O projeto, ao menos; a execução, por algum motivo, é sempre mais difícil.
Percebendo que seu nome fora mencionado, Glew aguçou os ouvidos. Ainda não se afastara do mesmo local no canto da lareira; nem mesmo o susto que levou em vista dos acontecimentos no chalé o fez largar o caldeirão.
- Quando eu era gigante... - começou a dizer.
- Estou vendo que a doninha veio com você - disse Fflewddur ao Rei Rhun, reconhecendo Glew de imediato, apesar da estatura atual do antigo gigante.
- Quando ele era um gigante - murmurou o bardo, lançando a Glew um olhar que não escondia a sua indignação -, era um tipo sórdido. Teria feito qualquer coisa para se livrar daquela caverna... até mesmo atirar-nos naquele cozido repulsivo que preparou. Um Fflam sabe perdoar! Mas acho que ele foi longe demais.
- Quando eu era um gigante - continuou Glew, talvez ignorando ou sem escutar os comentários do bardo -, ninguém me teria humilhado arrastando-me pelas orelhas a bordo de um barco fedorento. Eu não queria vir para cá. E depois do que aconteceu hoje aqui, tenho menos vontade de ficar.
Glew contraiu os lábios.
- Dallben precisa providenciar que eu seja levado de volta a Mona, o quanto antes.
- Estou certo de que ele vai tomar as providências - respondeu Taran. - Mas, neste momento, Dallben tem preocupações mais sérias, e nós também.
Resmungando algumas palavras a respeito de tratamento indevido e falta de consideração, Glew raspou o dedo no fundo do caldeirão e estalou a língua nos dentes. Os companheiros nada mais disseram. Aquietaram-se e esperaram a noite passar.
O fogo queimou até que só restaram cinzas na lareira. Do lado de fora do chalé batia o vento noturno. Taran apoiou a cabeça nos braços. Desta vez, ao voltar para casa, quisera estar diante de Eilonwy, esquecendo-se de posição e ascendência, como qualquer homem diante de qualquer mulher, e pedi-la em casamento. Mas agora, o infortúnio que atingira Gwydion tornou irrelevantes os anseios de Taran. Embora ainda não conhecesse os sentimentos de Eilonwy, nem a resposta que ela lhe daria, não poderia voltar ao assunto, até que todos os corações estivessem novamente em paz. Fechou os olhos. O vento gritava como se fosse rasgar em pedaços os tranqüilos campos e pomares de Caer Dallben.
A mão de alguém despertou-o. Era Eilonwy.
- Gwydion voltou a si - disse. - Quer falar conosco.
Nos aposentos de Dallben, o Príncipe de Don recostara-se no leito. Sob a tez curtida, seu semblante estava pálido e contraído, nem tanto devido à dor, mas à revolta que sentia. A boca mostrava-se firme, amarga; os olhos verdes ardiam com lampejos escuros e seu olhar era o mesmo de um lobo orgulhoso que despreza a dor e, mais ainda, aqueles que lhe causaram os ferimentos. Achren era apenas uma sombra silenciosa no canto. O feiticeiro ancião estava de pé ao lado da mesa repleta de livros, próximo a um banco de madeira onde Taran, ao longo da infância, havia se sentado para ter aulas. O Livro dos Três, volume imenso, encadernado de couro, que versava sobre ciências ocultas e era proibido a todos, exceto ao próprio Dallben, estava fechado, no topo de uma pilha de outros volumes antigos.
Taran, seguido por Eilonwy, Fflewddur e o Rei Rhun, caminhou rapidamente em direção a Gwydion e apertou a mão do guerreiro. O Príncipe de Don esboçou um sorriso quase inflexível.
- Não se trata de um encontro alegre nem prolongado, Porqueiro-Assistente - disse Gwydion. - Dallben falou-me do ardil do Lorde-da-Morte. Queria apossar-se de Dyrnwyn a qualquer preço, sem demora. Falou também sobre suas andanças - acrescentou Gwydion. - Eu gostaria que você me contasse mais a esse respeito, mas precisamos aguardar outra oportunidade. Sigo para Annuvin antes do final do dia.
Taran olhou para o príncipe com surpresa e preocupação.
- Seus ferimentos são recentes. Não pode fazer uma viagem dessas - disse-lhe.
- Nem posso permanecer aqui - respondeu Gwydion. - Desde que Dyrnwyn veio para as minhas mãos, aprendi mais sobre a sua natureza. Um pouco mais, apenas - acrescentou -, mas o suficiente para saber que sua perda é fatal.
- A linhagem de Dyrnwyn ultrapassa a memória de qualquer homem vivente - continuou Gwydion -, e grande parte de sua história foi esquecida ou destruída. Durante muito tempo acreditava-se que a espada não passava de uma lenda e tema para canções de harpistas. Taliesin, mestre dos bardos, é quem mais conhece a sabedoria de Prydain, mas disse-me apenas que foi Govannion, o Manco, artesão-mestre, quem forjou e temperou Dyrnwyn, a mando do Rei Rhydderch Hael, e que ela seria uma arma extremamente poderosa e protetora da região. Como garantia, a espada foi enfeitiçada e um aviso foi gravado na bainha.
- Eu me lembro da Inscrição Antiga - disse Eilonwy. - Na verdade, jamais me esquecerei, pois durante muito tempo tentei manter Taran afastado de coisas que ele não compreendia. "Desembainha Dyrnwyn, só tu, de sangue real..."
- Mais próximo ao sentido verdadeiro é "merecimento real" - disse Gwydion. - De acordo com o feitiço, a espada era proibida a todos, a não ser àqueles que a usassem bem e com discernimento. A chama de Dyrnwyn destruiria qualquer outro que tentasse sacá-la. Mas a inscrição na bainha foi danificada. A mensagem completa, que poderia revelar melhor o objetivo da espada, é desconhecida.
- A arma foi usada pelo Rei Rhydderch durante toda a sua vida - continuou Gwydion - e depois por seus filhos. Esses reinados foram pacíficos e prósperos. Assim encerrava-se a história de Dyrnwyn. O Rei Rhitta, neto de Rhydderch, foi o último a empunhar a espada. Era o Lorde do Castelo Espiralado antes que este se tornasse a fortaleza da Rainha Achren. Rhitta morreu de forma desconhecida, com Dyrnwyn presa às suas mãos. Não se viu mais a espada, que ficou esquecida desde que foi enterrada com ele, na mais profunda câmara do Castelo Espiralado.
Gwydion dirigiu-se a Eilonwy.
- Onde você, princesa, a encontrou. Entregou-a a mim, espontaneamente. Mas não foi com espontaneidade que a arma deixou minhas mãos. A espada vale mais do que a minha vida, ou a vida de qualquer um de nós. Nas mãos de Arawn pode trazer a desgraça a Prydain.
- Você acredita que Arawn seja capaz de sacar a espada? - perguntou Taran, depressa. - Ele pode voltar a arma contra nós? E fazê-la servir a um propósito maléfico?
- Não sei dizer - respondeu Gwydion. O semblante do guerreiro contraiu-se.
- Pode ser que Arawn, Lorde-da-Morte, tenha descoberto os meios de quebrar o encantamento. Ou, sendo incapaz de usá-la, seu intento pode ser evitar que a arma tenha qualquer outra finalidade. Além da espada, ele poderia ter me roubado a vida. Graças a Fflewddur Fflam ainda estou vivo. Agora preciso encontrar Dyrnwyn, mesmo que seja necessário chegar às profundezas de Annuvin.
Achren, até então em silêncio, ergueu a cabeça e disse a Gwydion:
- Deixe-me buscar a espada. Conheço os caminhos que levam a Annuvin; conheço bem todos os seus tesouros, onde se encontram e de que maneira estão guardados. Se Dyrnwyn está escondida, eu a encontrarei. Se está em mãos do próprio Arawn, será resgatada. E mais: juro por tudo que o destruirei. Já fizera o juramento a mim mesma e, novamente, faço-o a você. Você obrigou-me a viver, Gwydion, quando implorei a morte. Agora conceda-me aquilo para o que vivo. Conceda-me a minha vingança.
Gwydion não respondeu imediatamente. Seus olhos rajados de verde procuraram o rosto da mulher. E disse:
- Vingança não é um presente que devo ofertar, Achren. Achren enrijeceu. Suas mãos retorceram-se, formando garras, e Taran receou que ela fosse avançar em Gwydion. Ela não se moveu.
- Você não confia em mim - disse Achren, com aspereza Seus lábios descorados formaram um sorriso de satisfação.
- Que seja, Príncipe de Don. Uma vez você desprezou a chance de partilhar um reino comigo. Despreza-me outra vez, para sua própria ruína.
- Não a desprezo - disse Gwydion. - Apenas insisto que você aceite a proteção de Dallben. Permaneça aqui, a salvo. De nós todos, você é quem tem menos possibilidade de reaver a espada. O ódio que Arawn sente por você não deve ser menor do que este que você nutre por ele. O Lorde-da-Morte ou seus servos a matariam assim que a vissem, antes mesmo que você pusesse os pés em Annuvin. Não, Achren, o que você me propõe é inaceitável.
Pensou, por um instante, e disse em seguida:
- Deve haver outra maneira de recuperar Dyrnwyn. Gwydion dirigiu-se a Dallben, mas o feiticeiro sacudiu a cabeça expressando pesar.
- Infelizmente - disse Dallben -, o Livro dos Três não revela o que mais precisamos saber agora. Examinei cada página, tentando compreender os significados ocultos. Até mesmo para mim são obscuros. Vá buscar os bastões de letras - disse o feiticeiro a Coll. - Somente Hen Wen pode nos ajudar.
Da pocilga, a porca branca observava o séquito silencioso. Sobre os ombros ossudos, Dallben levava os bastões de letras, varas de freixo esculpidas com símbolos antigos. Glew, interessado apenas nos mantimentos da copa, permaneceu onde estava, e Gurgi também, que se lembrava muito bem daquele que fora um gigante, e preferia ficar de olho nele. Achren não disse mais uma palavra. Cobriu o rosto com o capuz e ficou sentada no chalé, imóvel.
Normalmente, ao avistar Taran, a porca oracular grunhia de satisfação e trotava até a cerca, para que ele coçasse o seu queixo. Mas agora estava encolhida num canto afastado, os pequenos olhos arregalados e as bochechas tremendo. Quando Dallben entrou na pocilga e fincou os bastões de letras na terra, Hen Wen fungou e agachou-se mais ainda, de encontro à cerca.
Dallben, murmurando algo inaudível, moveu-se e ficou de pé, ao lado das varas de freixo. Do lado de fora do cercado, os companheiros aguardavam. Hen Wen choramingava e não se movia.
- O que será que ela teme? - sussurrou Eilonwy.
Taran não respondeu. Tinha os olhos fixos no velho feiticeiro, na sua túnica açoitada pelo vento, nos bastões de letras e na forma imóvel de Hen Wen. Diante do céu enevoado pareciam estar congelados, todos juntos, vivendo um momento todo seu, bem longe do grupo silencioso que os observava. Era a primeira vez que Taran via o feiticeiro pedir uma profecia à porca oracular. Quanto aos poderes de Dallben, Taran fazia apenas suposições; mas Hen Wen ele conhecia bem e sabia que ela estava tão amedrontada que nem conseguia se mexer. Enquanto esperava, teve a impressão de que um século se passara. Mesmo Rhun percebeu que algo estava errado; o rosto sorridente do Rei de Mona estava sombrio.
Apreensivo, Dallben olhou para Gwydion.
- Hen Wen jamais se recusou a responder todas as vezes que os bastões de letras lhe foram apresentados.
Mais uma vez, murmurou palavras que Taran não conseguia distinguir. A porca oracular estremeceu violentamente, fechou os olhos e afundou a cabeça entre as patas curtas.
- Quem sabe, algumas notas da minha harpa? - sugeriu Fflewddur. - Deu certo quando eu...
O feiticeiro acenou indicando que o bardo fizesse silêncio. Falou mais uma vez, em voz baixa, mas com autoridade. Hen Wen encolheu-se e gemeu como se sentisse dor.
- O medo bloqueia seus poderes - disse Dallben num tom grave. - Nem minhas palavras mágicas conseguem atingi-la. Nada consegui.
O desespero era visível nos rostos dos companheiros. Gwydion baixou a cabeça e seu olhar era de grande preocupação.
- Nós também nada conseguiremos - disse - se não soubermos o que ela tem a nos dizer.
Depressa e sem dizer uma palavra, Taran passou pela cerca, caminhou a passos firmes em direção à porca assustada e abaixou-se ao seu lado. Esfregou os dedos no queixo de Hen Wen e deu um tapa afetuoso no seu pescoço.
- Não tenha medo, Hen. Nada de mal vai lhe acontecer. Surpreso, Dallben fez menção de se aproximar e, em seguida, parou. Ouvindo a voz de Taran, a porca abriu um olho, com todo o cuidado.
Torcendo o focinho, ergueu um pouco a cabeça e soltou um fraco "óinc!".
- Hen, escute-me - implorou Taran. - Não tenho poderes para comandá-la. Mas precisamos de sua ajuda, todos nós que gostamos de você.
Taran continuou a falar e a porca oracular parou de tremer. Embora não fizesse menção de se levantar, Hen Wen grunhiu carinhosamente, resfolegou, e de sua garganta saíram alguns resmungos afetuosos. Piscou os olhos e sua cara larga parecia prestes a sorrir.
- Diga-nos, Hen - insistiu Taran. - Por favor. Diga-nos o que for possível.
Hen Wen mexeu-se, ansiosa. Lentamente, ficou de pé. A porca branca bufou e olhou para os bastões de letras. Passo a passo, com as pernas curtas, aproximou-se das varas.
O feiticeiro meneou a cabeça em direção a Taran.
- Muito bem - murmurou. - Hoje, o poder de um Porqueiro-Assistente é maior que o meu.
Enquanto Taran observava, sem ousar dizer uma palavra, Hen Wen parou diante da primeira vara. Ainda hesitante, apontou com o focinho um dos símbolos entalhados, e depois outro. Dallben, observando com toda a atenção, anotou rapidamente num pedaço de pergaminho os sinais que a porca oracular havia indicado. Hen Wen ficou no mesmo lugar por alguns instantes e, em seguida, desistiu, afastando-se do bastão.
O semblante de Dallben contraiu-se.
- Será possível? - murmurou o ancião, a voz repleta de espanto. - Não... não. Precisamos saber mais.
Olhou de relance para Taran.
- Por favor, Hen - sussurrou Taran, ao se aproximar da porca, que começara a tremer outra vez. - Ajude-nos.
Apesar da influência de suas palavras, Taran temia que Hen Wen desistisse. Ela sacudiu a cabeça e, com os olhos semicerrados, grunhiu de tristeza. No entanto, atendendo à súplica de Taran, trotou em direção ao segundo bastão. Lá, apressando-se ao máximo, como se quisesse encerrar tudo rapidamente, indicou outros símbolos.
A mão do feiticeiro tremia enquanto fazia as anotações.
- Agora o terceiro - insistiu Dallben.
Com as pernas enrijecidas, Hen Wen andou para trás e apoiou-se nas patas traseiras. Durante algum tempo, nenhuma das palavras tranqüilizadoras de Taran era suficiente para fazê-la sair do lugar. Afinal, levantou-se e, mais assustada que nunca, dirigiu-se à ultima vara de freixo.
No momento em que Hen Wen se aproximou dos bastões, e, antes que pudesse indicar a primeira letra, as varas sacudiram-se e oscilaram, parecendo ter vida própria. Contorceram-se, como se tentassem se desprender da terra, e com um barulho que atravessou o ar, tal e qual um estampido de trovão, racharam, quebraram-se e foram ao chão.
Hen Wen, dando guinchos de pavor, deu um pulo para trás e correu para um canto do cercado. Enquanto Taran corria para perto dela, Dallben abaixou-se, pegou alguns fragmentos de madeira e observou-os.
- Estão destruídos, para sempre. Não servem para mais nada - disse Dallben, em tom grave. - O motivo, para mim, é obscuro, e a profecia de Hen Wen está incompleta. Mesmo assim, duvido que os termos finais pudessem conter mais previsões do que os primeiros. Ela mesma deve ter pressentido.
O feiticeiro virou-se e, lentamente, saiu do cercado. Eilonwy aproximara-se de Taran, que tentava acalmar a porca. Hen Wen ainda ofegava e tremia, tentando esconder a cabeça entre as pernas dianteiras.
- Não é de se admirar que ela não quisesse fazer a profecia - exclamou Eilonwy. - Contudo - acrescentou, dirigindo-se a Taran -, Hen Wen não teria revelado nada se não fosse por você.
Dallben, com o pergaminho na mão, fora se juntar a Gwydion. Coll, Fflewddur e o Rei Rhun, ansiosos, aproximaram-se deles. Depois de se certificarem de que Hen Wen estava bem e que desejava apenas ficar sossegada, Taran e Eilonwy foram se reunir aos amigos.
- Socorro! Oh, socorro!
Aos gritos, sacudindo os braços para todos os lados, Gurgi vinha correndo pelo relvado. Ao chegar perto dos companheiros, indicou os estábulos.
- Gurgi não pôde fazer nada! - gritou. - Gurgi bem que tentou, oh, sim, mas levou palmadas e pancadas na sua pobre cabeça mimosa!
- Foi embora! - gritou Gurgi. - Num galope rápido e veloz! A rainha perversa foi embora!
A Profecia
Os companheiros correram até o estábulo. Conforme Gurgi dissera, faltava um dos cavalos do Rei Rhun. Não havia sinal de Achren. - Deixe-me arrear Melynlas - pediu Taran a
Gwydion. - Tentarei alcançá-la.
- Ela vai direto a Annuvin - interveio Fflewddur. - Jamais confiei naquela mulher. Grande Belin, sabe-se lá que espécie de traição tem em mente! Partiu para cuidar de seus próprios interesses, pode ter certeza.
- Achren vai mesmo ao encontro da morte - retrucou o Príncipe Gwydion, o semblante austero ao dirigir o olhar às colinas e árvores desfolhadas. - Fora de Caer Dallben não estará segura. Eu poderia dar-lhe proteção, mas não devo retardar a minha busca.
E voltando-se a Dallben.
- Preciso saber qual é a profecia de Hen Wen. É o que pode me orientar.
- Hen Wen disse-nos tudo o que podia ser dito - respondeu Dallben. - Isso é tudo, receio, que conseguiremos saber por seu intermédio. Analisei outra vez os símbolos que ela indicou, alimentando a esperança de que os havia interpretado mal.
A fisionomia do feiticeiro estava tensa, os olhos baixos, e ele falava com dificuldade, como se cada palavra lhe comprimisse o coração.
- Perguntei como Dyrnwyn poderia ser recuperada. Ouçam a resposta:
Peço, antes, à pedra muda e à rocha sem voz, que falem.
- Esta é a mensagem de Hen Wen, conforme interpretei ao ver o primeiro bastão - disse Dallben. - Se expressa uma recusa a dizer algo, uma profecia em si mesma, ou um aviso para não se fazerem outras perguntas, não tenho certeza. Mas os símbolos do segundo bastão de letras revelam o destino da própria Dyrnwyn.
Dallben prosseguiu e as palavras do feiticeiro transmitiam a Taran o tipo de angústia que o afetava tanto quanto um golpe de espada.
A chama de Dyrnwyn será apagada;
Extinto o seu poder.
A noite transforma-se em dia claro
E rios queimam no fogo de gelo
Antes que Dyrnwyn seja resgatada.
O ancião baixou a cabeça e ficou em silêncio durante algum tempo.
- O terceiro bastão - disse afinal - foi destruído antes que Hen Wen completasse a mensagem. Ela poderia ter revelado mais; no entanto, a julgar pelos dois primeiros, não deveríamos ter muitas esperanças.
- As profecias zombam de nós - disse Taran. - Hen disse a verdade. Podíamos, igualmente, ter pedido ajuda às pedras.
- E teríamos obtido a mesma resposta! - exclamou Eilonwy. - Hen poderia ter dito logo que jamais teríamos Dyrnwyn de volta. Noite não pode ser dia claro, e fim de conversa.
- Em todas as minhas viagens - acrescentou Fflewddur -, jamais vi um riacho queimando, muito menos um rio. A profecia é duplamente impossível.
- Mesmo assim - disse o Rei Rhun, ansioso e com certa ingenuidade -, seria algo maravilhoso. Quem dera acontecesse!
- Creio que você jamais verá tal coisa acontecer, Rei de Mona - disse Dallben num tom grave.
Gwydion, que permanecera sentado à mesa, pensativo, virando nas mãos, de um lado e de outro, os bastões rachados, levantou-se e falou aos companheiros.
- A profecia de Hen Wen é desanimadora - disse - e muito aquém do que eu esperava. Mas, quando as profecias não ajudam, é preciso encontrar ajuda por conta própria.
Suas mãos comprimiram e quebraram o pedaço de freixo.
- Enquanto eu viver e puder respirar, hei de procurar Dyrnwyn. A profecia não altera meus planos, apenas os torna mais urgentes.
- Então deixe-nos ir com você - disse Taran, levantando-se para olhar Gwydion de frente. - Aceite nossa força até você recuperar a sua.
- Exatamente! - disse Fflewddur, pondo-se de pé de imediato. - Não me interessa se rios pegam fogo ou não. Fazer perguntas às pedras? Hei de perguntarão próprio Arawn. Ele não vai guardar segredos de um Fflam!
Gwydion sacudiu a cabeça e disse:
- Nesta incumbência, quanto maior o número de homens, maior o risco. É melhor que tudo seja feito isoladamente. Se alguma vida tiver que se arriscar contra Arawn, Lorde-da-Morte, que seja a minha.
Taran baixou a cabeça, pois o tom de voz de Gwydion impedia qualquer discussão.
- Que seja de acordo com a sua vontade - disse. - Mas, e se Kaw seguisse à sua frente até Annuvin? Mande-o seguir primeiro. Irá em silêncio e trará alguma informação.
Gwydion dirigiu a Taran um olhar perspicaz.
- Nas suas andanças você encontrou alguma sabedoria, Porqueiro-Assistente. Kaw será mais útil a mim do que todas as suas espadas. Mas não vou esperar por ele aqui. Eu o deixarei espionar Annuvin enquanto puder, e depois ele me encontrará no castelo do Rei Smoit, no Cantreve Cadiffor. O reino de Smoit fica no caminho para Annuvin e, portanto, terei a companhia de Kaw durante metade de minha jornada.
- Ao menos podemos cavalgar com você até o castelo do Rei Smoit - disse Taran - e protegê-lo até que siga em frente. Daqui ao Cantreve Cadiffor pode ser que os Caçadores de Arawn estejam a postos para matá-lo.
- Bandidos infames! - exclamou o bardo. - Assassinos, traiçoeiros! Desta vez vão sentir o fio da minha espada. Que eles nos ataquem, assim espero!
Uma corda da harpa rompeu-se, provocando um forte estalido que fez o instrumento vibrar.
- Ah, sim... bem... é maneira de falar - disse Fflewddur timidamente. - Espero que não nos deparemos com eles, de jeito nenhum. Poderiam ser inconvenientes e retardar nossa jornada.
- Ninguém considerou a inconveniência que seria para mim - disse Glew. O antigo gigante saiu da copa e, irritado, olhou ao redor.
- Doninha! - murmurou Fflewddur. - Perdemos Dyrnwyn, não sabemos se estamos correndo risco de vida e ele se preocupa com a própria conveniência. É, realmente, um homem pequeno. Sempre foi.
- Se ninguém tocou no assunto - disse Eilonwy -, parece que não se espera que eu vá. Está certo, não vou insistir.
- Você também adquiriu conhecimento, princesa - disse Dallben. - Os dias que passou em Mona não foram inúteis.
- É evidente que - continuou Eilonwy - após vocês partirem, pode me ocorrer a idéia de que é um belo dia para uma cavalgada à procura de flores silvestres difíceis de encontrar, especialmente durante o inverno. Não quer dizer que vou segui-los, entendam. Mas poderia, por acaso, perder-me e, por engano, alcançá-los. Até lá, eu já não poderia mais voltar para casa, pois seria tarde demais, não por minha culpa.
A fisionomia exausta de Gwydion abriu-se num sorriso.
- Está bem, princesa. Aceito o que não posso impedir. Venham comigo todos que quiserem, mas que não seja além da fortaleza de Smoit, em Caer Cadarn.
- Ah, princesa - suspirou Coll, sacudindo a cabeça, - Não devo, de modo algum, contradizer Lorde Gwydion. Mas não é aceitável que uma jovem dama imponha a sua vontade dessa maneira.
- É óbvio que não - concordou Eilonwy. - Foi a primeira lição que a Rainha Teleria me ensinou: uma dama não tenta impor a sua vontade. E então, quando menos se espera, tudo se resolve. Cheguei a pensar que nunca aprenderia a agir assim, embora seja bem fácil quando se conhece o truque.
Sem mais demora, Taran retirou Kaw do poleiro próximo à lareira e levou-o até o pátio da entrada. Dessa vez o corvo não bateu o bico nem tagarelou de modo desrespeitoso. Em vez dos costumeiros resmungos, grasnidos rudes e bobagens desconcertantes, Kaw curvou-se no pulso de Taran, ergueu um olho brilhante e atento, ouvindo-o explicar-lhe, com detalhes, a tarefa.
Taran ergueu o braço e Kaw despediu-se batendo as asas lustrosas.
- Annuvin! - grasnou Kaw. - Dyrnwyn!
O corvo voou para o alto. Em instantes estava sobrevoando Caer Dallben. O vento transportava Kaw como se ele fosse uma folha, e ele pairou acima dos companheiros. Então, com um movimento brusco das asas, o pássaro seguiu velozmente para o noroeste. Taran firmou os olhos para acompanhar o vôo até que o corvo desaparecesse nas nuvens indefinidas. Triste e ansioso, Taran finalmente voltou-se. Estava certo de que o corvo estaria atento aos perigos da jornada: as flechas dos Caçadores, as garras cruéis e os bicos cortantes dos guidaintes perversos mensageiros alados de Arawn. Mais de uma vez estes seres haviam atacado os companheiros, e mesmo os filhotes eram perigosos.
Taran recordou-se de sua adolescência e do jovem guidainte que salvara; lembrava-se muito bem das garras afiadas do pássaro. Apesar da coragem e esperteza de Kaw, Taran temia pela sua segurança; e, mais ainda, temia pela busca de Gwydion. E lhe veio o pressentimento de que um destino ainda mais grave talvez viajasse nas asas abertas de Kaw.
Estava decidido que, assim que os viajantes chegassem ao Grande Avren, o Rei Rhun acompanharia Glew ao barco ancorado no rio, e que Glew ficaria aguardando o Rei de Mona, pois Rhun estava determinado a seguir para Caer Cadarn com Gwydion. Glew não gostava da idéia de ficar com os pés frios no barco oscilante nem de dormir na praia, sobre os pedregulhos; mas os protestos do antigo gigante não fizeram Rhun alterar os planos.
Enquanto Gwydion reunia-se pela última vez, e às pressas, com Dallben, os companheiros começaram a trazer os cavalos para fora do estábulo. O cavalo de Gwydion, o sábio Melyngar, branco de crina dourada, aguardava, calmamente, seu mestre. Melynlas, o garanhão de Taran, resfolegou e, demonstrando impaciência, batia com as patas no chão.
Eilonwy já estava montada na égua baia, Lluagor, sua preferida. Numa dobra do manto a princesa levava seu pertence mais valioso: a esfera dourada que brilhava intensamente quando estava em suas mãos.
- Resolvi deixar para trás aquele diadema desconfortável - declarou Eilonwy. - Não serve para nada mesmo, a não ser para prender o cabelo, e isso não compensa as bolhas que faz. Mas preferia caminhar com as mãos a ficar sem minha esfera. Além disso, se precisarmos de luz, teremos uma. É muito mais útil do que um aro no alto da cabeça.
A jovem guardou num alforje o bordado feito para Taran, pretendendo terminá-lo no caminho.
- Talvez - acrescentou Eilonwy - eu mude a cor dos olhos de Hen Wen.
A montaria de Fflewddur era Llyan, a imensa gata castanho-avermelhada, mais alta que um cavalo. Ao avistar o bardo, o poderoso animal ronronou bem forte e quase o derrubou, ao esfregar nele o focinho.
- Devagar, menina! - exclamou ele, quando Llyan apoiou sua cabeçorra no ombro de Fflewddur. - já sei que você quer ouvir uma canção. Prometo, mais tarde, tocar-lhe uma.
Glew reconhecera Llyan imediatamente.
- Não é justo - torceu o nariz. - Por direito, ela me pertence.
- Evidente - retrucou Fflewddur -, se você considerar aquelas poções odiosas que preparou para lhe dar de comer e fazê-la crescer. Se quer tentar montá-la, esteja à vontade. Mas estou lhe avisando... Llyan tem uma memória mais comprida que a cauda.
Realmente, ao ver Glew, Llyan começou a fazer movimentos bruscos com o rabo. Olhou do alto o homenzinho. Seus olhos amarelos incendiaram-se, os bigodes retorceram-se e as orelhas peludas ficaram achatadas, rentes à cabeça; e da sua garganta surgiu um som muito diferente daquele que produzira ao cumprimentar o bardo.
Fflewddur entoou, depressa, uma balada na harpa. Llyan desviou os olhos de Glew; sua boca formou um enorme sorriso e, afetuosamente, piscou para o bardo.
Entretanto, o rosto pálido de Glew ficou ainda mais abatido, e ele se esgueirou da gata.
- Quando eu era um gigante - murmurou Glew -, tudo se resolvia melhor.
O Rei Rhun selou sua égua acinzentada. Coll, que também decidira acompanhar Gwydion, escolheu Llamrei, a égua alazã, cria de Melynlas e Lluagor. Sendo assim, Glew, companhia indesejável, não teve escolha e precisou montar na garupa do pônei peludo de Gurgi. Nesse ínterim, Taran ajudava Coll a encontrar armas nos estábulos, na ferraria e no depósito de ferramentas.
- Já temos algumas aqui - afirmou Coll. - Estas lanças já me serviram de estacas para pés de feijão - acrescentou o guerreiro robusto. - Tinha a esperança de jamais usá-las com outro objetivo. Infelizmente, a única espada que posso dar a Gwydion está enferrujada, pois escorava uma das macieiras. Quanto aos elmos, não temos nenhum, a não ser o meu capuz de couro; e os pardais fizeram um ninho dentro dele. Não pretendo perturbá-los. Mas a minha velha cachola é resistente como couro - disse Coll, piscando. - Ela agüenta a jornada de ida e volta até Caer Cadarn.
- E você, meu rapaz - prosseguiu Coll, alegremente, apesar de perceber a expressão contrariada de Taran -, lembro-me do tempo em que um Porqueiro-Assistente estaria vibrando com a chance de viajar ao lado de Lorde Gwydion. Agora você parece tão murcho quanto um nabo enregelado.
- Meu coração não está tranqüilo - disse Taran. - Muito tempo atrás, você foi até Annuvin para resgatar Hen Wen, que lhe havia sido roubada. Diga-me: que chances tem Gwydion, sozinho, no reino de Arawn?
- Nenhum outro homem tem maiores chances - disse Coll, pondo as lanças sobre o ombro. E saiu do galpão antes que Taran percebesse que o guerreiro não havia, de fato, respondido à pergunta.
Caer Dallben ficara para trás, e o dia já estava escurecendo quando os companheiros armaram o acampamento em meio às sombras da floresta.
Satisfeita, Eilonwy deitou-se no chão.
- Há muito tempo não sentia o conforto de dormir sobre raízes e pedras! - exclamou. - É muito melhor do que penas de ganso!
Gwydion concordou que se fizesse uma fogueira; e enquanto Coll cuidava das montarias, Gurgi abriu sua sacola de comida para compartilhar as provisões. Os companheiros ficaram na maior parte do tempo em silêncio, pois estavam com frio e tensos após um longo dia de viagem. No entanto, o Rei Rhun não perdera o bom humor de sempre. Assim que os viajantes aconchegaram-se ao redor das chamas pálidas, Rhun pegou um graveto e fez vários rabiscos no chão, cobrindo o solo com uma teia de linhas.
- A respeito do dique - disse Rhun -, já sei por que não deu certo. Sim, é claro. Veja só, é assim que deve ser feito.
Do outro lado da fogueira, Taran observava os olhos de Rhun, brilhando de ansiedade, e o sorriso infantil, tão familiar. Mas ele, Taran percebia, não era mais o príncipe fútil que conhecera na Ilha de Mona. Enquanto Rhun estivera por conta de seus projetos, Taran envolvera-se nos trabalhos feitos na ferraria, no tear e na roda do ceramista. E se Rhun encontrara a maioridade ao administrar um reino, o mesmo sucedera a Taran, no trabalho árduo ao lado do fiel povo dos Condados Livres. Olhava para Rhun com afeição renovada. O Rei de Mona continuava a falar e Taran interessou-se pelos rabiscos no chão. Analisou-os à medida que Rhun falava. Taran sorriu. Havia algo que não se alterara, percebeu; como de costume, as intenções do Rei de Mona estavam além de sua perícia.
- Sua barragem pode ruir se você a construir desse jeito - disse Taran, dando uma boa risada. - Veja esta parte aqui.
E apontou.
- As pedras mais pesadas precisam ser colocadas mais ao fundo. E aqui...
- Impressionante! - exclamou Rhun, estalando os dedos. - Perfeito! Você precisa voltar comigo para Mona e me ajudar a concluir o projeto!
E começou a riscar novas linhas com tanto entusiasmo que por pouco não caiu na fogueira.
- Oh, grande e gentil mestre! - exclamou Gurgi, que estivera escutando com atenção sem entender exatamente o que os dois companheiros discutiam. - Oh, desenhos e engenhos inteligentes! Gurgi gostaria que ele também pudesse falar com sabedoria!
Gwydion avisou que deveriam ficar em silêncio.
- Mesmo que não haja nenhum barulho, a fogueira já é um risco. Só espero que os Caçadores de Arawn não estejam por perto. Não somos suficientes para enfrentar nem um punhado deles. Os Caçadores não são guerreiros comuns - acrescentou Gwydion ao notar a expressão de dúvida no rosto de Rhun - e sim uma irmandade maligna. Se um deles for morto, a força dos demais torna-se maior.
Taran concordou.
- São temíveis como os Nascidos do Caldeirão - disse a Rhun -, criaturas imortais e mudas que guardam Annuvin. Talvez ainda mais temíveis. Os Nascidos do Caldeirão não podem ser mortos; contudo, o poder que têm diminui se viajam para lugares distantes ou ficam por muito tempo afastados do reino de Arawn.
Rhun piscou e Gurgi calou-se, olhando para trás, desconfiado. A lembrança dos cruéis Nascidos do Caldeirão fez Taran voltar-se mais uma vez à profecia de Hen Wen.
- A chama de Dyrnwyn será apagada - sussurrou Taran -, mas como Arawn conseguirá fazer isso? Mesmo com todo o poder que possui, não acredito que consiga sequer empunhar a espada.
- A profecia vai além das palavras que a definem - afirmou Gwydion. - Procure o sentido que encerra. Para nós, será como se a chama de Dyrnwyn estivesse mesmo apagada, considerando-se que Arawn a mantém fora do meu alcance. De fato, o poder de Dyrnwyn vai se extinguir, apesar de tudo que representa para nós, caso a espada fique trancada, para sempre, com os seus tesouros.
- Tesouros? - perguntou Glew, parando de mastigar antes de falar.
- A propriedade do Lorde-da-Morte é, ao mesmo tempo, esconderijo de tesouros e fortaleza do mal - disse Gwydion. - Há muito tempo foi estocada com todas as coisas boas e úteis que Arawn roubou de Prydain. Esses tesouros de nada servem para ele; seu propósito é impedir que os homens tenham acesso a eles; pretende sugar a nossa força ao negar os meios de nos proporcionar a melhor de todas as colheitas.
Gwydion fez uma pausa e perguntou:
- Isto não é a morte disfarçada?
- Disseram-me - acrescentou Taran - que o esconderijo de tesouros de Annuvin contém tudo o que os seres humanos desejariam ter. Arados que, segundo consta, podem trabalhar sozinhos, foices que cortam sem a ajuda de mãos para conduzi-las, ferramentas mágicas e muito mais - continuou Taran. - Arawn apropriou-se dos segredos das artes dos ferreiros e ceramistas, do conhecimento de pastores e camponeses. Tal conhecimento também encontra-se trancado, para sempre, em seu esconderijo.
Glew estalou a língua nos dentes. O pedaço de comida permanecia intacto nos seus dedos rechonchudos. Durante algum tempo, não dissera uma palavra. Finalmente, pigarreou.
- Quero perdoar os deslizes que cometeram e as humilhações que me fizeram passar. Isso não teria acontecido quando eu era um gigante, posso garantir. Mas, não importa. Perdôo todos. Como prova de minhas boas intenções, seguirei viagem com vocês.
Gwydion voltou-lhe um olhar aguçado.
- Talvez você deva seguir conosco - disse em voz baixa, após alguns instantes.
- Agora não tenho a menor dúvida! - exclamou Fflewddur, bufando. - A doninha pretende farejar alguma coisa de seu interesse. Dá para ver o seu nariz se mexendo! Jamais pensei que algum dia desejaria que ele ficasse conosco. Mas isto é mais seguro do que tê-lo à retaguarda.
Glew sorriu, imperturbável, e voltou-se para Fflewddur.
- Também perdôo você.
O Castelo do Rei Smoit
Ao amanhecer, o Rei Rhun preparou-se para se separar dos companheiros e cavalgar rumo ao oeste, em direção ao Porto de Avren, onde pretendia avisar o comandante do barco de que os planos haviam sido alterados. Coube a Fflewddur acompanhá-lo, pois o bardo conhecia as partes mais rasas do rio, onde seria possível fazer a travessia, e os caminhos mais fáceis, na margem oposta.
Eilonwy decidira ir com eles.
- Deixei metade das minhas linhas de bordar no barco de Rhun, e preciso delas para dar um bom acabamento a Hen Wen. Nenhum de vocês terá condições de encontrá-las, porque não sei, ao certo, onde estão. Acho que também esqueci um manto mais quente para viagens, e algumas outras coisas... não sei quais são, agora, mas quando chegar lá vou me lembrar.
Coll sorriu e esfregou a careca.
- A princesa - observou - está cada vez mais parecida com uma dama, em todos os sentidos.
- Se não vou ficar no barco - disse Glew, cuja decisão, na noite anterior, permanecia inalterável -, não vejo razão para me desviar do caminho. Seguirei Lorde Gwydion.
- Aí é que você se engana, pequeno gigante - replicou o bardo. - Monte na garupa do Rei de Mona, se ele aceitar a sua companhia, e seja rápido. Não pense que vou perdê-lo de vista. Aonde eu for, você irá. E também o contrário, a propósito.
- Glew não vai nos perturbar, Fflewddur - disse Taran, puxando o bardo para o lado -, com toda a certeza. Eu mesmo vou vigiá-lo.
O bardo sacudiu a cabeleira loura e despenteada.
- Não, meu amigo. Ficarei mais tranqüilo se puder vê-lo com meus próprios olhos. E o tempo todo. Definitivamente, a fuinha está sob minha responsabilidade. Pode seguir viagem e nós os alcançaremos do outro lado do Avren bem antes do meio-dia.
- Vai ser bom ver Smoit outra vez - acrescentou Fflewddur. - Aquele velho urso de barba ruiva tem lugar certo no meu coração. Vamos nos banquetear em Caer Cadarn, pois Smoit é tão valente à mesa quanto na luta.
Gwydion já havia montado Melyngar e fez sinal para que se apressassem. Fflewddur bateu no ombro de Taran e correu para montar em Llyan, que, sob o sol brilhante e frio, brincava alegremente, correndo atrás do próprio rabo.
O Rei Rhun, Fflewddur, Eilonwy e Glew logo desapareceram de vista. Seguindo para o oeste, Taran cavalgava entre Gwydion e Coll, e Gurgi mais atrás, no pônei.
Pararam na outra margem do Grande Avren. Passou o meio-dia sem qualquer sinal dos outros companheiros. Embora Taran estivesse apreensivo ao pensar neles, preferia acreditar que nada de mal acontecera.
- Provavelmente, Rhun parou para observar a toca de um texugo ou algum formigueiro - disse. - Espero que seja só isto.
- Não tenha receio - disse Coll. - Fflewddur não permitirá que ele se detenha. Em breve estarão aqui.
Taran tocou a cometa, esperando que o sinal servisse de orientação ao bardo, em caso de Fflewddur ter tomado o caminho errado. Mas não apareceram. Gwydion, tendo esperado o quanto julgara possível, decidiu que deviam se apressar e seguir para Caer Cadarn. Continuaram a jornada num passo ligeiro, até o final do dia.
Taran virava-se, com freqüência, na sela, esperando avistar, a qualquer momento, Rhun e os outros companheiros galopando atrás dele ou, de repente, escutar o alegre "olá, olá" do Rei de Mona. Contudo, à medida que o dia terminava, Taran concluía que Rhun, um cavaleiro lento, a essa altura estaria longe dali. Fflewddur, Taran tinha certeza, não viajaria à noite.
- Devem ter acampado em algum lugar por onde passamos - Coll garantiu a Taran. - Se algo de errado tivesse acontecido, um deles teria vindo nos avisar. Fflewddur Fflam conhece o caminho para o castelo de Smoit. Nós todos nos encontraremos lá. E se eles se atrasarem demais, Smoit convocará um grupo de busca.
O guerreiro robusto apoiou a mão no ombro de Taran.
- Fique tranqüilo até que haja motivo claro para se alarmar. Ou então - acrescentou com uma piscadela -, é a companhia de Eilonwy que lhe faz falta?
- Ela não deveria ter vindo conosco - respondeu Taran, um pouco irritado.
- Sem dúvida - disse Coll, sorrindo. - Mas não cabe a você censurá-la.
Taran sorriu-lhe da mesma forma.
- Quanto a isso - disse -, já desisti, há muito tempo.
Na manhã do dia seguinte, Caer Cadarn surgiu diante deles e, de uma torre de pedra, a flâmula escarlate com o emblema do urso preto estalava ao vento. A fortaleza fora construída numa clareira e os muros reforçados ressaltavam como a testa do rei, com cicatrizes e marcas de muitas batalhas. Coll, apressando Llamrei, gritou aos guardas em nome de Gwydion, Príncipe de Don. Os imensos portões abriram-se e os companheiros entraram a galope no pátio, onde soldados armados puxaram os cavalos pelas rédeas, e um grupo de guerreiros indicou o caminho da Ala Nobre.
Gwydion atravessou rapidamente o corredor. Ladeados pelos guardas, Taran, Coll e Gurgi seguiram o príncipe.
- Smoit deve estar à mesa - disse Taran. - Seu desjejum dura até o começo da tarde.
- Diz que aguça o apetite para as demais refeições - disse Taran, rindo. - Gwydion não vai conseguir que ele diga sequer uma palavra antes que todos nós estejamos com os estômagos forrados.
- Sim, sim! - exclamou Gurgi. - Gurgi mal pode esperar pelos deliciosos petiscos e lambiscos!
- Isso não vai lhe faltar, amigo - disse Taran. - Pode ter certeza.
Entraram na Ala Nobre. Numa extremidade do salão, estava o imenso trono de Smoit, feito com a metade de um carvalho e esculpido na forma de um urso, com as patas erguidas de cada lado.
O homem que estava sentado no trono não era o Rei Smoit.
- Magg! - disse Taran, assustado.
Imediatamente, os guardas avançaram neles. A espada de Taran foi arrancada de seu cinturão. Com um grito forte, Gwydion avançou nos guerreiros, mas estes comprimiram-se à sua volta e puseram de joelhos o Príncipe de Don. Coll também foi forçado a se abaixar e uma lança pressionava-lhe as costas. Gurgi gritava de revolta e pavor. Um guarda agarrou-o pela nuca peluda e o esbofeteou até a pobre criatura não conseguir mais ficar de pé.
Magg parecia uma caveira sorridente. Com um leve movimento dos dedos ossudos determinou que os guerreiros se afastassem. Seu rosto acinzentado e esquálido retorceu-se de satisfação.
- Nosso encontro, Lorde Gwydion, é daqueles que não pude antecipar. Meus guerreiros dominam Caer Cadarn, mas este é um prêmio inesperado e mais valioso do que eu poderia imaginar.
Os olhos verdes de Gwydion faiscavam.
- Você teve a ousadia de invadir o cantreve do Rei Smoit? Vá embora antes que ele retorne. Ele vai tratá-lo com menos gentileza do que eu.
- Vocês vão se juntar ao Rei Smoit - retrucou Magg. - Embora eu repudie chamar de rei este grosseiro lorde de cantreve.
Os lábios de Magg torceram-se. Com um gesto despreocupado, levou a mão ao manto rebordado. Taran notou que a vestimenta de Magg era mais rica do que aquelas que o homem de cabelos escorridos usara quando exercera as funções de Camareiro-Chefe na corte de Mona.
- Mais poderoso que Smoit ou o Rei de Mona, mais poderoso que a Rainha Achren é o meu lorde soberano - disse Magg abrindo o sorriso amarelo. - E agora, mais forte que o Príncipe de Don.
Tocou a corrente de ferro que lhe pendia do pescoço e acariciou o pesado distintivo. Horrorizado, Taran viu que o medalhão ostentava o mesmo símbolo marcado nas testas dos Caçadores.
- Aquele a quem sirvo - disse Magg, com arrogância - é o próprio Arawn, o Lorde-da-Morte, Rei de Annuvin.
O olhar de Gwydion não vacilou.
- Encontrou seu verdadeiro mestre, Magg.
- Depois que nos vimos pela última vez - disse Magg -, pensei que você havia morrido. Qual foi minha alegria, mais tarde, ao saber que não estava morto.
O Camareiro-Chefe passou a língua nos lábios.
- É rara a oportunidade de se saborear duas vezes a vingança, e aguardei com paciência o dia em que nos encontraríamos novamente.
- Sim, com paciência - sibilou Magg. - Depois que zarpei da Ilha de Mona andei a esmo, por muito tempo. Houve quem eu servisse, humildemente, para ganhar tempo. Um deles tentou, mesmo, jogar-me na masmorra... eu, Magg, que cheguei a ter um reino ao meu alcance.
A voz do Camareiro-Chefe ergueu-se, estridente. Seu semblante ficou lívido e os olhos quase saltaram das órbitas. Mas, em pouco tempo, controlou as mãos trêmulas e afundou-se no trono de Smoit. Agora as palavras saíam-lhe dos lábios como se ele saboreasse todas elas.
- Afinal, tomei o caminho de Annuvin - disse Magg -, chegando ao limiar da Porta Negra. Até então, Lorde Arawn não me conhecia do modo que agora me conhece.
Magg balançou a cabeça em sinal de satisfação.
- Comigo aprendeu muita coisa.
- Lorde Arawn conhecia a história de Dyrnwyn - continuou Magg. - Sabia que a espada havia se perdido e depois fora encontrada, e que estava em poder de Gwydion, Filho de Don. Mas fui eu, Magg, quem lhe revelou a melhor maneira de consegui-la.
- Até mesmo a sua traição é desprezível - afirmou Taran. - Cedo ou tarde, com ou sem você, Arawn teria atingido o objetivo maléfico.
- É possível - disse Magg, com ar malicioso. - O que ele aprendeu comigo talvez seja menos importante do que as coisas que aprendi com ele. Pois logo descobri que seu poder estava abalado, e corria perigo. Seu guerreiro, o Rei Cornudo, há muito fora derrotado. Até mesmo o Crochan Negro, o caldeirão que deu a ele os imortais Nascidos do Caldeirão, fora despedaçado.
- Entre os reis dos cantreves, Lorde Arawn tem muitos vassalos - continuou Magg. - Prometeu-lhes grandes fortunas, reinos e, em troca, eles juraram servi-lo. No entanto, em conseqüência das derrotas que o lorde sofreu, os súditos tornaram-se indisciplinados. Fui eu quem lhe mostrou os meios de obter maior submissão. Foi meu o plano, exclusivamente meu, de fazer Dyrnwyn chegar às suas mãos.
- Agora, por todos os cantreves, corre a notícia de que Arawn, o Lorde-da-Morte, detém a mais poderosa arma de Prydain. Ele conhece os segredos da espada muito melhor que você, Lorde Gwydion, e sabe que é imbatível. Seus vassalos exultam, pois logo poderão comemorar a vitória. Outros chefes militares vão aderir ao seu estandarte e o contingente de guerreiros vai aumentar.
- Eu, Magg, consegui! - exclamou o Camareiro-Chefe. - Eu, Magg, o segundo depois do Lorde-da-Morte! Eu, Magg, falo em nome dele. Sou seu emissário de confiança, e viajo de reino em reino, reunindo exércitos para destruir os Filhos de Don e aliados. Toda a região de Prydain estará sob o seu domínio. E aqueles que lhe oferecerem oposição... se Lorde Arawn for misericordioso, serão mortos, e os Caçadores haverão de beber o sangue dos rebeldes. Os demais haverão de rastejar no cativeiro, para sempre!
Os olhos de Magg brilharam, sua fronte pálida reluziu e as faces tremeram violentamente.
- Por isso - sibilou -, por isso o Lorde Arawn jurou que um dia, eu, Magg, usarei a Coroa de Ferro de Annuvin!
- Além de traidor, você é um tolo - disse Gwydion, num tom de voz grave. - E em dobro, também. Primeiro, por acreditar em Arawn. Segundo, por acreditar que o Rei Smoit prestaria atenção às suas palavras traiçoeiras. Você o matou? Somente morto ele lhe daria ouvidos.
- Smoit vive - respondeu Magg. - A sua fidelidade não me interessa. Pretendo obter o respeito dos vassalos do seu cantreve. Smoit ordenará, em seu nome, que sirvam à minha causa.
- O Rei Smoit haveria de preferir que lhe arrancassem a língua! - exclamou Taran.
- E pode ser que seja assim - retrucou Magg. - Mudo também poderá me servir. Ele me acompanhará e falarei em seu nome, melhor do que ele poderia falar por si mesmo. Contudo - refletiu -, seria melhor que as ordens viessem dos seus lábios e não dos meus. Existem métodos de soltar a língua em vez de cortá-la. Alguns já foram testados.
Magg semicerrou os olhos.
- Os melhores meios estão diante de mim. Você, Lorde Gwydion. E você, porcariço. Falem com ele. Façam-no entender que precisa se submeter a mim.
Magg deu um sorriso falso.
- As suas vidas dependem de Smoit.
O Camareiro-Chefe moveu a cabeça ligeiramente. Os guardas aproximaram-se.
Tratados com grosseria, cutucados pelas lanças, os companheiros foram retirados da Ala Nobre. Taran, em estado de choque, desesperado, mal se apercebia dos caminhos por onde eram levados para baixo. Os guerreiros pararam. Um deles empurrou uma porta pesada. Outros atiraram os companheiros numa cela estreita. A porta fechou com um rangido e a escuridão engoliu-os.
Tateavam cegamente pelo recinto e Taran tropeçou numa forma prostrada que estremeceu e vociferou.
- Meu corpo e meu sangue! - rugiu a voz do Rei Smoit, e Taran foi agarrado por um par de braços que podia quebrar-lhe os ossos. - Está de volta, Magg? Não vai me levar vivo daqui!
Taran quase foi sufocado e esmagado antes de Gwydion dizer, em voz alta, seu próprio nome e os nomes dos companheiros. O aperto de Smoit cedeu e Taran sentiu a mão grande no seu rosto.
- Minha vida, e é verdade! - exclamou Smoit, enquanto os companheiros reuniram-se em torno dele. - O porcariço! Lorde Gwydion! Coll! Eu reconheceria esta careca em qualquer lugar!
A mão de Smoit pousou no pêlo desgrenhado da cabeça de Gurgi.
- E o pequeno... seja lá o quê! Que feliz encontro, amigos!
Smoit deu um suspiro profundo.
- E infeliz, também. Como foi que aquele bobalhão pegou vocês? O lacaio medíocre e afetado armou uma cilada para todos nós!
Gwydion contou rapidamente a Smoit o que lhes havia acontecido.
O rei de barba ruiva rosnou, furioso.
- Magg pegou-me tão facilmente quanto pegou vocês. Ontem, eu estava fazendo a refeição matinal, e nem bem começara quando meu camareiro chegou com a notícia de que um mensageiro de Lorde Goryon queria me falar. Ora, eu sabia que Goryon estava em desacordo com Lorde Gast. Como era de se esperar, assunto de roubo de vaca. Ah, será que algum dia os lordes dos cantreves de Prydain vão parar de brigar? Seja lá como for, já que eu conhecia a versão de Gast, achei, por bem, ouvir Goryon.
Smoit bufou e bateu na coxa maciça.
- Antes que eu pudesse engolir outro bocado, os guerreiros de Magg cercaram-me. Meu coração e fígado! Alguns deles não vão se esquecer de Smoit! Outro grupo estava à espreita e irrompeu no portão.
Smoit levou as mãos ao rosto.
- Dos meus homens, os que não foram mortos estão aprisionados nos quartos de guarda e nos depósitos de armas.
- E o senhor - perguntou Taran, ansiosamente -, está sentindo dor? Magg falou em tortura.
- Dor! - Smoit deu um berro tão alto que ecoou no recinto. - Sofri até suar. Mas não foi nas mãos daquela minhoca de nariz comprido! Minha pele é bem grossa. Tomara que Magg quebre os dentes nos meus ossos! O mal que ele pode me fazer não é maior do que uma picada de pulga ou um arranhão de espinheiro. Já sofri mais que isso numa briga amigável!
- Quer saber se sinto dor? - continuou Smoit a berrar. - Juro por cada pêlo de minha barba que dói mais que ferro quente o fato de estar confinado no meu próprio castelo!
Minha própria fortaleza, e preso aqui! Ludibriado na minha Ala Nobre! Minha comida e bebida arrancadas dos meus lábios e meu café da manhã arruinado. Tormento? Pior do que isto! É o suficiente para arruinar o apetite de um homem!
Nesse ínterim, Gwydion e Coll percorriam as paredes e, até onde a luz fraca permitia, tateavam à procura de alguma fenda. Agora, os olhos de Taran estavam um pouco mais acostumados à escuridão e ele temia que os companheiros estivessem perdendo tempo. A cela não tinha janelas; o ar que lhes chegava provinha do minúsculo espaço entre as barras que formavam a porta. O chão não era de terra batida, mas de pedras unidas, quase sem espaços entre elas.
O próprio Smoit, percebendo a intenção de Gwydion, sacudiu a cabeça e bateu no chão com as botas de salto de ferro.
- Sólida como uma montanha! - exclamou. - Sei disso porque eu mesmo a construí. Poupem o esforço, amigos. Não será antes de mim que vão rachar!
- A que profundidade está a masmorra? - perguntou Taran, embora a sua esperança de escapar estivesse se dissipando a cada momento. - Não há um meio de cavar para cima?
- Masmorra? - indagou Smoit. - Não existem mais masmorras em Caer Cadarn. Quando nos encontramos pela última vez, você mesmo disse que eram inúteis. Tinha razão, e por isso mandei emparedá-las. Agora não há delito no meu cantreve que eu não possa resolver com poucas palavras, sem demora ou dificuldade. Quem escutar a minha voz acerta o caminho... ou a cabeça. Masmorra, qual o quê! É uma despensa vazia!
- Quem me dera tê-la estocado tão bem quanto a construí - suspirou Smoit. - Deixe que Magg traga seus ferros e chicotes. Não lhes darei a menor importância em face deste outro tormento diabólico. A despensa encontra-se abaixo da minha copa! Há dois dias não forro o estômago. Dois anos, é o que parece! O traidor infame não interrompe seus banquetes! E para mim? Nada, além de sentir o cheiro! Ah, mas ele vai pagar por isto! - exclamou Smoit. - Quero pedir a ele apenas uma coisa: um instante com as minhas mãos em volta do seu pescoço descarnado. Vou espremer e tirar de lá todos os chouriços e pastelões que ele engoliu até agora!
Gwydion agachara-se ao lado do furioso Smoit.
- Sua despensa pode ser nosso túmulo - disse num tom grave. - E não apenas o nosso - acrescentou. - Fflewddur Fflam está trazendo nossos companheiros aqui. Eles vão ser agarrados pelas mandíbulas de Magg com a mesma firmeza com que fomos pegos.
O Vigia
Guiados por Fflewddur Fflam, a Princesa Eilonwy, o Rei Rhun e Glew logo chegaram ao porto de Avren, mas o retorno não foi tão rápido, Para começar, o Rei de Mona, por incrível que pareça, conseguiu tombar por cima do pescoço do cavalo quando o animal parou à margem do rio para tomar água. O mergulho deixou o infeliz rei molhado da cabeça aos pés, mas não abalou seu humor. No entanto, o cinturão de Rhun se desfez e a espada afundou no banco de areia. Uma vez que Rhun não conseguira içar a arma porque ele próprio tinha se embaraçado nos arreios do cavalo, Fflewddur foi obrigado a mergulhar no rio para tentar reaver a espada. Em seguida, Glew começou a reclamar amargamente do fato de precisar cavalgar na garupa do bardo encharcado.
- Então vá a pé, doninha! - exclamou o bardo, tremendo de frio e batendo os braços contra os flancos. - E se depender da minha vontade, na direção oposta!
Altivo, Glew apenas fungou, e não se moveu.
Impaciente, Eilonwy batia o pé no chão.
- Vocês todos, depressa! Viemos para tomar conta de Lorde Gwydion e mal conseguimos cuidar de nós mesmos.
O antigo gigante concordou em seguir na garupa de Lluagor, com a princesa, e, novamente, puseram-se a caminho. No entanto, de repente, Llyan resolveu brincar. Apoiava-se nas imensas patas dianteiras e, alegremente, dava saltos para todos os lados, enquanto Fflewddur, desesperado, agarrava-se ao pescoço castanho-avermelhado da gata, tentando evitar que Llyan e ele próprio rolassem no chão.
- Ela... raramente faz isto - gritava o bardo, ofegante, enquanto Llyan, dando saltos espetaculares, rodeava os companheiros. - Na verdade, ela está se comportando... bem! É inútil... repreendê-la. Não vai... adiantar!
Finalmente, Fflewddur, com dificuldade, precisou tirar a harpa do ombro e tocar um pouco de música até que Llyan se acalmasse.
Logo depois do meio-dia o bardo ouviu as notas indefinidas, distantes, da trompa de Taran.
- Estão preocupados conosco - disse Fflewddur. - Espero que nos encontremos logo com eles.
Os companheiros seguiram o mais rápido possível, mas a distância entre os dois grupos aumentava em vez de diminuir e, ao cair da noite, cansados, pararam para dormir.
Acordaram de manhã cedo e logo se puseram em marcha, o que, segundo a estimativa de Fflewddur, colocou-os a menos de meio-dia de distância dos demais. O Rei Rhun, mais do que nunca ansioso por chegar a Caer Cadarn, fez o possível para acelerar o passo da égua malhada; mas ela era muito mais lenta que Llyan e Lluagor por várias vezes, Eilonwy e Fflewddur precisavam frear suas montarias.
No meio da tarde, o Rei Rhun deu um grito de alegria. Caer Cadarn já se aproximava. Para além das árvores podiam ver a bandeira escarlate. Os companheiros estavam se preparando para correr em frente, mas Eilonwy franziu as sobrancelhas e olhou mais uma vez para o estandarte.
- Que estranho - observou a princesa. - É o mesmo urso alegre do Rei Smoit. Mas Gwydion, com certeza, já deve estar por lá, e não vejo a bandeira da Casa de Don. A Rainha Teleria ensinou-me que é uma cortesia do nobre do cantreve hastear o Sol Dourado de Don quando alguém da Casa Real está em visita.
- Decerto, em circunstâncias normais, é assim mesmo - concordou Fflewddur. - Mas duvido que, a esta altura, Gwydion queira que alguém saiba onde ele se encontra. Deve ter dito a Smoit que deixe de lado as formalidades. Uma precaução bem sensata.
- Sim, é claro - respondeu Eilonwy. - Não devia ter me preocupado. Bem pensado, Fflewddur.
O bardo ficou radiante.
- Experiência, princesa. Longa experiência. Mas não tenha receio. Esta experiência vem com o tempo.
- Mesmo assim - disse Eilonwy, quando cavalgavam mais à frente -, é curioso que os portões estejam fechados. Conhecendo bem o Rei Smoit, é de se esperar que estivessem escancarados, com uma guarda de honra à nossa espera, tendo o próprio Rei Smoit à frente.
Fflewddur desconsiderou o comentário da jovem.
- Nada disso. Lorde Gwydion está percorrendo um caminho cheio de perigos e não um festival, Entendo como são essas coisas. Já estive em mil missões secretas... ah, bem, talvez uma ou duas - corrigiu depressa. - Minha expectativa era que Caer Cadarn estivesse fechada e trancada tal e qual uma ostra.
- Sim - disse Eilonwy -, tenho certeza de que você conhece essas coisas melhor do que eu.
Indecisa, estreitou os olhos para observar o castelo, agora que os companheiros já se aproximavam rapidamente.
- Mas o Rei Smoit não está em guerra, segundo me consta. Duas sentinelas nas muralhas seriam mais que suficientes. Será que ele precisa de um destacamento completo de arqueiros?
- Naturalmente - respondeu Fflewddur -, para proteger Lorde Gwydion.
- Mas se ninguém deve saber que Gwydion está no castelo... - insistiu Eilonwy.
- Grande Belin! - exclamou o bardo, fazendo Llyan parar. - Agora você me deixou desnorteado. Está querendo dizer que Gwydion não está em Caer Cadarn? Se não estiver, logo vamos saber. E se estiver, também saberemos.
Fflewddur coçou a cabeleira alourada.
- Mas e se não estiver, então, por que será? - indagou o bardo. - O que poderia ter acontecido? E se estiver, então não há motivo para se preocupar. No entanto, se não estiver... Oh, droga, agora fiquei preocupado. Não entendo...
- Também não entendo - respondeu Eilonwy. - Tudo o que sei... e nem sei direito... é que, bem, não consigo explicar. Segundo posso... posso ver, o castelo me parece falso... não, não é que eu esteja vendo. É o gosto que estou percebendo? Não... Bem, não interessa! - desabafou. - Estou sentindo calafrios e isto não me agrada. Você teve muitas experiências, não duvido. Mas meus ancestrais eram feiticeiros, todos eles. E eu também teria sido, se não tivesse preferido tornar-me uma jovem dama.
- Feitiços - murmurou o bardo, pouco à vontade. - Afaste-se deles. Não lide com essas coisas. Também concluí, através da experiência, que jamais dão certo.
- Ora - interveio Rhun -, se a princesa percebe que alguma coisa não vai bem, ofereço-me a ir na frente e verificar. Bato nos portões e procuro saber o que quiser.
- Bobagem - replicou Fflewddur. - Tenho absoluta certeza de que tudo está bem.
Uma das cordas da harpa rompeu-se e fez um barulho estridente. O bardo pigarreou.
- Não, não tenho certeza alguma. Ah, que coisa! A jovem pôs uma idéia na minha cabeça e não consigo afastá-la. De um jeito, tudo parece certo; de outro, tudo errado.
- Para que você fique mais tranqüila... ah, quero dizer, para que eu fique mais tranqüilo - disse Fflewddur à princesa -, irei até lá para saber o que se passa. Sou um bardo errante e posso chegar e sair como bem entender. Se algo estiver errado, ninguém suspeitará de mim. Se tudo estiver bem, não haverá prejuízo. Fiquem aqui. Daqui a pouco estarei de volta. Vamos dar risadas quando nos lembrarmos disso à mesa do Rei Smoit - acrescentou sem muita convicção.
O bardo desmontou, por entender que chamaria a atenção se estivesse com Llyan.
- E você não faça nenhuma travessura - advertiu, voltando-se para Glew. - Não suporto a idéia de perdê-lo de vista, mas Llyan vai vigiá-lo. Os olhos dela são melhores que os meus. E os dentes mais afiados.
A pé, o bardo seguiu para o castelo. Depois de algum tempo, Eilonwy viu os portões se abrirem e Fflewddur desaparecer no interior do castelo. Em seguida, tudo ficou silencioso.
Ao cair da noite, a princesa ficou bastante preocupada, pois não houvera mais qualquer sinal do bardo. Os companheiros haviam se abrigado num bosque e aguardavam o retorno de Fflewddur, mas, nesse instante, Eilonwy, cheia de ansiedade, levantou-se e ficou de frente para o castelo.
- Tudo está errado! - exclamou. Impaciente, deu alguns passos adiante.
O Rei Rhun trouxe-a de volta.
- Talvez não - disse ele. - Ora, ele teria voltado, imediatamente, para nos avisar se houvesse algo de errado. Não há dúvida que Smoit está lhe servindo o jantar, ou...
Rhun deslizou a espada na bainha.
- Vou lá ver.
- Não, você não deve ir! - exclamou Eilonwy. - Para começar, eu é que devia ter ido. Ah, eu não devia ter me deixado influenciar.
Mesmo assim, Rhun insistiu. Eilonwy discordou. A disputa calorosa, embora sussurrada, que se seguiu foi interrompida pela súbita chegada do próprio Fflewddur. Sem fôlego e arfando, chegou cambaleando no bosque.
- É o Magg! Ele pegou todos!
A voz de Fflewddur estava tão esmaecida quanto o seu rosto à luz da lua.
- Pegos! Foi uma armadilha!
Eilonwy e Rhun ouviram, horrorizados, o que Fflewddur descobrira.
- Os próprios guerreiros não sabem quem são os prisioneiros. Sabem apenas que são quatro, trancados com Smoit e acusados de traição. Traição, isto mesmo! Fizeram-nos engolir uma história qualquer! O ardil vai mais além. Do que se trata, não consegui descobrir. Acho que as sentinelas têm ordens de deter todo mundo que entra no castelo. Felizmente, estas ordens não se aplicam a bardos errantes. Normalmente, um bardo aparece para cantar em troca da ceia, e por isso os guerreiros nem se preocuparam, embora, decerto, ficassem de olho em mim e não me deixassem chegar perto da Ala Nobre de Smoit ou da despensa onde puseram os prisioneiros. Mas vi Magg, de relance. Ah, aquela aranha debochada, sarcástica. Se eu pudesse, teria acabado com ele ali mesmo!
- Os guerreiros fizeram-me tocar durante tanto tempo que meus dedos já não agüentavam mais - concluiu o bardo, rapidamente. - Caso contrário, eu já teria voltado há muito tempo. Não me atrevia a parar, pois eles poderiam suspeitar de alguma tramóia. E há mesmo uma tramóia! - exclamou o bardo, furioso.
- Como poderemos libertá-los? - perguntou Eilonwy.
- Não me interessa saber por que estão presos. Depois a gente pergunta. Em primeiro lugar, vamos tirá-los de lá.
- Não podemos - respondeu Fflewddur, desesperado. - Impossível. Nós quatro, sozinhos, não conseguiremos. E somos quatro, mesmo contando com Glew, que não devia ser levado em conta.
Glew bufou. Normalmente, o homenzinho não se interessava por coisa alguma que não lhe dissesse respeito; mas, agora, sua fisionomia estava perturbada.
- Se eu fosse gigante, poderia derrubar as paredes.
- Às favas se você fosse gigante - retrucou Fflewddur.
- Agora você não é mais. Nossa única esperança é seguir mais adiante e contar o que aconteceu a algum lorde de cantreve e pedir que reúna um pelotão de ataque.
- Seria muito demorado! - exclamou Eilonwy. - Ah, fique quieto e deixe-me pensar!
A jovem caminhou depressa até a clareira e dirigiu um olhar desafiador para o castelo, que lhe voltava o próprio desafio sombrio. Seus pensamentos eram velozes, mas sem nenhum plano definido. Entre um leve soluço e um grito abafado de raiva, já estava prestes a desistir. Porém, um esbarrão numa árvore próxima atraiu-lhe o olhar. Ela parou por um instante.
Sem ousar mover a cabeça, olhou de esguelha e percebeu uma sombra estranha, curvada e agora imóvel. Como se retomasse o caminho para se reunir a Fflewddur e Rhun, desviou-se aos poucos em direção à árvore.
Subitamente, rápida como Llyan, pulou em cima da forma agachada. Uma parte saiu rolando numa direção e o resto soltou um guincho abafado. Eilonwy deu murros, chutes e unhadas. Logo em seguida, Fflewddur e o Rei Rhun estavam ao seu lado. O bardo agarrou uma ponta da forma espancada e o Rei Rhun, a outra.
Eilonwy afastou-se e, rapidamente, retirou a esfera que estava por dentro do manto. Assim que a envolveu com as mãos, a esfera começou a brilhar. A princesa colocou-a próxima à forma que se debatia. Espantada, abriu a boca. Os raios dourados iluminaram um rosto pálido, enrugado, com um nariz longo e curvado e uma boca tristonha. Tufos desgrenhados de cabelos semelhantes a teias de aranhas pairavam acima de dois olhos que piscavam, infelizes e lacrimejantes.
- Gwystyl! - exclamou Eilonwy. - Gwystyl do Povo Formoso!
O bardo soltou-o. Gwystyl sentou-se, esfregou os braços magros, ficou em pé e aconchegou-se no manto.
- Muito bom estar com vocês novamente - resmungou. - Um prazer, acredite. Pensei muito em vocês. Agora, preciso ir.
- Ajude-nos! - suplicou Eilonwy. - Gwystyl, nós lhe imploramos. Nossos companheiros estão aprisionados no castelo de Smoit.
Gwystyl levou as mãos à cabeça. Sua fisionomia contraiu-se de infelicidade.
- Por favor, por favor, não grite. Não estou me sentindo bem e não vou suportar que gritem comigo hoje à noite.
E pode fazer o favor de tirar esta luz dos meus olhos? Não, não, é demais! Como se não me bastasse ser arrastado e imobilizado, ainda me atormentam, gritam comigo e quase me cegam. Como ia dizendo... sim, foi um prazer encontrá-los. É claro que eu gostaria de ajudar. Talvez numa outra ocasião. Quando não estivermos tão aborrecidos.
- Gwystyl, não entende? - protestou Eilonwy. - Você escutou o que eu disse? Outra ocasião? Precisa nos ajudar agora. A espada de Gwydion foi roubada. Dyrnwyn está nas mãos de Arawn! Não percebe o que isto significa? É a coisa mais terrível que poderia acontecer. Como poderá Gwydion reaver a espada se ele está preso, e se sua própria vida está em perigo? E Taran... Coll e Gurgi também...
- Há dias assim - suspirou Gwystyl. - E o que se pode fazer? Nada, infelizmente, além de esperar que tudo se resolva, o que provavelmente não vai acontecer. Mas é isso mesmo, é o que se pode fazer. Sim, eu sei que Dyrnwyn foi roubada. Que infortúnio, que situação lamentável.
- Você já sabe? - indagou o bardo. - Grande Belin, fale logo! Onde está a arma?
- Não tenho a mínima idéia - disse Gwystyl com um suspiro tão profundo que Eilonwy supôs que a criatura tristonha realmente dizia a verdade.
- Mas esta é a menor das minhas preocupações. O que está acontecendo em Annuvin...
Ele estremeceu e, com a mão trêmula, bateu de leve na fronte empalidecida.
- Os Caçadores estão se reunindo. Os Nascidos do Caldeirão estão a postos, grupos inteiros. Jamais vi tantos Nascidos do Caldeirão juntos em toda a minha vida. É de deixar qualquer um doente.
- E isso não é nem a metade - disse Gwystyl com a voz abafada. - Alguns dos lordes dos cantreves estão convocando exércitos, e os chefes militares já estão reunidos em Annuvin. O local está repleto de guerreiros, dentro, fora, em toda parte. Tive até receio de que descobrissem meus túneis e buracos de observação. Atualmente, próximo a Annuvin, sou a única sentinela do Povo Formoso... Tanto pior, pois o trabalho se acumula.
- Acreditem em mim - Gwystyl apressou-se a dizer -, é melhor que seus amigos fiquem onde estão. Mais seguro. Não importa o que lhes fizeram; não pode ser pior do que pisar naquele vespeiro. Se, por acaso, vocês os virem novamente, dêem-lhes as minhas cordiais saudações. Sinto muito, muito mesmo, que não possa ficar mais tempo aqui. Estou a caminho do reino do Povo Formoso; o Rei Eiddileg precisa saber dessas notícias sem demora.
- Se o Rei Eiddileg souber que você não quis nos ajudar - irrompeu Eilonwy, indignada -, você vai se arrepender de ter se afastado do seu posto.
- É uma jornada longa e árdua - disse ele. Gwystyl suspirou e sacudiu a cabeleira embaraçada, ignorando, por completo, o comentário de Eilonwy.
- Terei de seguir pela superfície. Eiddileg vai querer saber de tudo que está ocorrendo. Não tenho condições de seguir viagem, não no meu estado, muito menos neste clima. No verão seria mais agradável. Mas... quanto a isso, não se pode fazer nada. Adeus, felicidades. Foi um prazer.
Gwystyl inclinou-se para pegar uma trouxa quase do seu tamanho. Eilonwy segurou-o pelo braço.
- Ah, não, você não vai embora! - exclamou. - Pode dar notícias ao Rei Eiddileg depois que libertarmos nossos companheiros. Não tente me enganar, Gwystyl do Povo Formoso. Você é mais esperto do que parece. Mas se não quer nos ajudar, sei como consegui-lo. Vou torcer o seu pescoço até você concordar!
A jovem fez um movimento para segurar a criatura pelo pescoço. Desesperado, Gwystyl soluçou e fez um esforço fraco para se defender.
- Não aperte! Não, por favor. Eu não poderia enfrentar a situação. Agora não. Adeus. É verdade, este não é o momento apropriado...
Nesse ínterim, curioso, Fflewddur examinava a trouxa. O pacote grande, volumoso, havia rolado para perto de um arbusto, no momento em que Eilonwy atacou Gwystyl, e agora estava no chão, parcialmente desfeito.
- Grande Belin - exclamou o bardo -, quanta bugiganga! Gwystyl é pior do que um caracol levando a casa nas costas.
- Não é nada, nada mesmo - Gwystyl apressou-se a dizer. - Um pouco de conforto para tornar a viagem mais fácil.
- É melhor torcer este pacote do que o pescoço de Gwystyl - observou Fflewddur, que estava de joelhos e começara a revirar a trouxa. - Deve ter alguma coisa aqui mais útil do que o próprio Gwystyl.
- Pegue o que quiser - insistiu Gwystyl, quando Eilonwy virou a luz da esfera para a pilha de objetos.
- Pegue o que quiser. Não importa. Posso ficar sem essas coisas. Vai ser difícil, mas darei um jeito.
O Rei Rhun ajoelhou-se ao lado do bardo, que até esse momento havia separado alguns casacos forrados de lã de carneiro e vários mantos esfarrapados.
- Surpreendente! - exclamou Rhun. - Eis aqui um ninho de pássaro!
- Sim - suspirou Gwystyl. - Podem ficar com ele. Estava guardando-o; nunca se sabe quando poderão ser úteis. Mas agora é seu.
- Não, obrigado - murmurou o bardo. - Não gostaríamos de nos apropriar do que lhe pertence.
A seguir, a busca apressada revelou cantis de água, alguns cheios, outros vazios, um bastão para ajudar a caminhar, articulado e dobrável, um travesseiro com um pacote de penas avulso, duas cordas, algumas linhas de pesca e anzóis grandes, duas tendas, uma porção de cunhas e uma barra de ferro, um pedaço grande de couro macio, que, conforme Gwystyl explicou, a contragosto, poderia ser montado numa armação de salgueiro para servir de bote; vários molhos de legumes desidratados e ervas, e inúmeros sacos contendo líquen de todas as cores.
- Para a minha condição física - murmurou Gwystyl, indicando o último item. - A umidade e viscosidade existentes em Annuvin são assustadoras. O líquen não resolve, mas é melhor do que nada. No entanto, se quiser...
O bardo sacudiu a cabeça, decepcionado.
- Coisa inútil. Poderíamos tomar emprestado as cordas e os anzóis. Mas, se nos servirem para...
- Gwystyl - exclamou Eilonwy, zangada -, todas as suas barracas, barcos e bastões de nada servem! Ah, minha vontade é torcer o seu pescoço porque já perdi a paciência com você. Vá embora! Sim, adeus, mesmo!
Gwystyl, aliviado e dando suspiros profundos, começou a arrumar a trouxa. Quando a ergueu sobre o ombro, do seu manto caiu uma sacola que ele tentou, mais do que depressa, recuperar.
- Ora vejam, o que é isto? - perguntou Rhun, que já havia apanhado a sacola e estava prestes a entregá-la à criatura agitada.
- Ovos - murmurou Gwystyl.
- Sorte que não se quebraram quando você caiu - disse Rhun, com um sorriso. - É melhor que a gente dê uma olhada - acrescentou, desamarrando o cordão ao redor da boca da sacola.
- Ovos! - exclamou Fflewddur, animando-se. - Bem que eu gostaria de comer um ou dois. Não comi nada desde o meio-dia... aqueles guerreiros fizeram-me tocar sem parar, mas nem se preocuparam com a minha refeição. Vamos lá, amigo, com a fome que estou sentindo, posso quebrar e engolir um ovo cru.
- Não, não! - gritou Gwystyl, agarrando a sacola. - Não faça isto! Não são ovos! Ovos, não. Nada disso!
- Ora vejam! São ovos, com toda a certeza - observou Rhun, dando uma olhada no interior da sacola. - Se não são ovos, o que são?
Gwystyl engasgou, e em seguida teve acessos de tosse e suspiros antes de responder.
- Fumaça - disse, bufando.
Dúzias de Ovos
- Espantoso! - exclamou o Rei Rhun. - Fumaça em forma de ovo! Ou será ovo em forma de fumaça?
- A fumaça está dentro - murmurou Gwystyl, puxando o manto para perto do pescoço. - Adeus. Quebra-se a casca e a fumaça é liberada... há uma boa quantidade. Podem ficar com eles. Um presente. Se virem Lorde Gwydion, digam-lhe que evite se aproximar de Annuvin, a qualquer custo. Quanto a mim, estou feliz por deixar o lugar para trás e espero nunca mais voltar.
- Gwystyl - disse Eilonwy bruscamente, segurando o braço da criatura melancólica -, tenho a impressão de que por dentro deste seu manto há mais do que podemos ver. Que mais você escondeu? A verdade, agora. Caso contrário, prometo torcer tanto...
- Nada! - disse Gwystyl, sobressaltado. Apesar do vento frio, ele começou a suar em profusão. O cabelo embaraçado escorria pela fronte molhada como se tivesse tomado chuva.
- Nada, a não ser meus objetos pessoais. Bugigangas. A propósito, se estão interessados...
Gwystyl ergueu os braços e abriu o manto para ambos os lados, gesto que o fez parecer um morcego sinistro, de nariz comprido. Suspirou e gemeu, tristemente, enquanto os companheiros olhavam estarrecidos.
- Estranho mesmo! - disse Fflewddur. - E, Grande Belin, jamais tem fim!
Presos com todo o cuidado nas dobras do manto, havia uma dúzia de sacolas de pano, sacos trançados e pacotes bem-feitos. A maioria parecia conter ovos do tipo dos que Fflewddur quase comera. Gwystyl puxou um dos sacos trançados e entregou a Eilonwy.
- Ora, vejam só! - exclamou Rhun. - Primeiro ovos, depois cogumelos!
De acordo com o que a princesa via, o saco trançado continha apenas alguns cogumelos com manchas marrons, mas Gwystyl agitou os braços desesperadamente e suspirou.
- Cuidado, cuidado! Se eles se partirem, poderão chamuscar os seus cabelos. Produzem uma bela chama, se precisar. Pode levar todos. É um prazer me livrar deles.
- É o que precisamos! - exclamou Eilonwy. - Gwystyl, perdoe-me por ter ameaçado torcer o seu pescoço.
A princesa virou-se para o bardo, que observava as sacolas com um ar duvidoso.
- Sim! É mesmo o que precisamos. Agora, se conseguirmos entrar no castelo...
- Minha querida princesa - respondeu Fflewddur -, um Fflam é destemido, mas não acho que seja possível dominar uma fortaleza com alguns ovos e cogumelos nas nossas mãos, e ainda mais ovos e cogumelos desta espécie. Mesmo assim...
O bardo hesitou, e então estalou os dedos.
- Grande Belin, com essas coisas vamos realizar o que pretendemos! Esperem aí! Estou começando a perceber as chances.
Enquanto isso, Gwystyl havia desprendido os pacotes restantes do seu volumoso manto.
- Tomem - disse, suspirando -, se vocês já têm a maioria deles, é melhor que fiquem com o resto. Tudo. Podem pegar. Para mim, não faz a menor diferença, agora.
Os saquinhos que Gwystyl entregou aos companheiros, com a mão trêmula, estavam repletos de uma substância escura, semelhante a terra fina.
- Ponham isto nos seus pés, e ninguém poderá ver suas pegadas... quer dizer, se alguém estiver ao seu encalço. É para isso que é feito, na verdade. Mas, se atirarem a substância nos olhos de alguém, esta pessoa não poderá enxergar nada... ao menos por algum tempo.
- Está cada vez melhor! - exclamou Fflewddur. - Vamos tirar nossos amigos das garras da aranha, mais que depressa. Uma proeza! Nuvens de fumaça! Labaredas! Poeira cegante! E um Fflam para fazer o resgate! Isso vai dar assunto para os bardos cantarem. Ah... diga-me, amigão - perguntou, com alguma insegurança, a Gwystyl: - Tem certeza de que esses cogumelos funcionam?
Os companheiros voltaram rapidamente ao abrigo do bosque para definir os planos. Gwystyl, depois de ouvir muitas súplicas e elogios, alusões de que alguém poderia torcer-lhe o pescoço e o Rei Eiddileg ficaria contrariado, finalmente concordou, entre muitos gemidos e suspiros, em ajudar no resgate. O bardo estava ansioso por começar, o quanto antes.
- De acordo com a minha longa experiência - disse Fflewddur -, aprendi que numa situação dessas deve se mergulhar de cabeça. Para começar, devo retornar ao castelo. Os guerreiros me conhecem e abrirão os portões sem hesitar. Levarei sob o meu manto os ovos e cogumelos de Gwystyl. Assim que os portões se abrirem... nuvens de fumaça, uma baforada de fogo! Vocês vão estar atentos, nas sombras. Quando eu fizer o sinal, entraremos todos, correndo, espadas em punho, gritando a plenos pulmões!
- Surpreendente! - interveio Rhun. - Não pode falhar. Mas o Rei de Mona parecia preocupado.
- Por outro lado, ao que parece... não que eu entenda alguma coisa desse assunto... estaríamos atravessando a fumaça e o fogo que nós mesmos provocamos. O que quero dizer é que os guerreiros não nos enxergariam; mas nós também não poderíamos vê-los.
Fflewddur sacudiu a cabeça, discordando.
- Pode acreditar em mim, amigo, este é o melhor método e o mais rápido. Já salvei prisioneiros em número maior do que os dedos das minhas mãos.
A harpa tensionou e estremeceu e algumas cordas teriam arrebentado, se Fflewddur não tivesse acrescentado em seguida:
- Planejei salvar, é o que queria dizer. Mas, na verdade, o plano jamais foi executado.
- Rhun está certo - afirmou Eilonwy. - Seria pior do que tropeçar nos próprios pés. Além disso, estaríamos arriscando tudo de uma só vez. Não, precisamos de um plano melhor do que esse.
O Rei Rhun vibrou de alegria, surpreso e encantado ao perceber que suas palavras foram aceitas. Piscou os olhos azuis esmaecidos, sorriu com timidez, e ousou erguer a voz mais uma vez.
- De repente, ocorre-me a idéia da barragem que estou reconstruindo - disse com certa hesitação. - Isto é, começando pelas duas extremidades. Infelizmente, o resultado não foi o que eu esperava. Mas a idéia era boa. E agora poderíamos tentar fazer o mesmo. Não se trata de construir um dique, é claro. Estou me referindo a seguir caminhos diferentes para se chegar a Caer Cadarn.
Fflewddur deu de ombros, bastante desanimado diante da recusa de sua sugestão.
Mas Eilonwy acenou com a cabeça.
- Sim. É o mais sensato que se tem a fazer. Glew resfolegou.
- O mais sensato é ter um exército atrás da gente. Quando eu era um gigante, estaria disposto a lhes ajudar. Mas, agora, não tenho a intenção de tomar parte neste plano.
O homenzinho estava se preparando para continuar a falar, mas o olhar do bardo silenciou-o.
- Não tenha medo - disse Fflewddur. - Você e eu estaremos juntos o tempo todo. Você vai estar em boas mãos.
- Mas, escutem - interrompeu Rhun, impaciente para retomar o assunto. - Somos cinco. Alguns de nós deveriam escalar a muralha dos fundos, os outros entrariam pelo portão.
O jovem rei pôs-se de pé e seus olhos brilharam de ansiedade.
- Fflewddur Fflam vai providenciar a abertura dos portões. Então, enquanto os outros atacam a partir da muralha oposta, eu avançarei diretamente pela entrada principal.
A mão de Rhun tocou a espada. Sua cabeça estava inclinada para trás e, de pé, diante dos companheiros, sentia-se orgulhoso como se todos os reis de Mona estivessem a seu lado. Continuou a falar, de modo claro, resoluto, e com tal entusiasmo que Eilonwy não teve coragem de interrompê-lo.
Mas, afinal, a princesa interveio.
- Rhun, sinto muito - disse Eilonwy. - Mas... e Fflewddur há de concordar comigo... você será mais útil se ficar fora da luta, propriamente dita, a não ser que seja de todo necessário. Desse modo, estará disponível quando for preciso, mas não estará arriscando-se tanto.
A fisionomia de Rhun anuviou-se de decepção e desânimo.
- Mas, escute...
- Você não é mais um príncipe - acrescentou Eilonwy, antes que Rhun continuasse a contestar. - Você é o Rei de Mona. A sua vida não lhe pertence, exclusivamente, entende? Você tem um reino inteiro com que se preocupar e não devemos deixá-lo correr riscos desnecessários. Ainda assim, já vai correr grande perigo. Se a Rainha Teleria imaginasse que as coisas tomariam este rumo - acrescentou Eilonwy -, para começar, você não teria navegado até Caer Dallben.
- Não sei o que minha mãe tem a ver com isto! - exclamou Rhun. - Tenho certeza de que seria a vontade de meu pai...
- O seu pai compreendia o significado de ser rei - disse Eilonwy, gentilmente. - Assim como ele, você também precisa aprender.
- Taran de Caer Dallben salvou a minha vida em Mona - insistiu Rhun. - Isso eu lhe devo e é uma dívida que somente eu posso pagar.
- Você tem outro tipo de dívida com o povo pesqueiro de Mona - retrucou Eilonwy -, e é deles o principal direito de reivindicar.
Rhun virou-se e foi se sentar, decepcionado, numa pequena elevação, a espada ao seu lado. Para animá-lo, Fflewddur bateu-lhe no ombro.
- Não se desespere - disse o bardo. - Se os ovos e cogumelos de nosso amigo Gwystyl falharem, você vai ter muito mais com o que se incomodar. E nós todos também,
A madrugada já se anunciava e o frio era cortante, quando o grupo deixou o abrigo no bosque e dirigiu-se às escondidas para o castelo envolto em escuridão. Cada integrante levava um suprimento de ovos e cogumelos de Gwystyl e um pacote do pó escuro e fino. Formando um círculo amplo, aproximaram-se de Caer Cadarn, do lado mais escuro e sombrio.
- Lembrem-se do plano - avisou Fflewddur, a meia voz. - Precisamos segui-lo na íntegra. Quando estivermos posicionados, Gwystyl vai abrir um dos seus famosos cogumelos; o fogo deverá atrair os guardas para os fundos do pátio. Este será o nosso sinal - disse a Eilonwy e Rhun. - Nesse exato momento... e não antes, lembrem-se... preparem-se para abrir os portões o mais rápido possível, porque suponho que vamos ter muita pressa de sair. Enquanto isso, vou libertar os homens do Rei Smoit que estão trancados na sala de guarda. Eles vão ajudá-los, se precisarem, enquanto sigo até a despensa e liberto nossos amigos. Tomara que aquela aranha detestável já não os tenha levado para outro lugar. Se aconteceu isso, bem, vamos ter que refazer os planos lá mesmo.
- E você, camarada - acrescentou Fflewddur, dirigindo-se a Gwystyl, diante das muralhas escuras que se elevavam diante deles -, já é hora de fazer o que prometeu.
Gwystyl deu um suspiro profundo e sua boca parecia mais entristecida do que nunca.
- Não estou disposto a escalar, hoje não. Se vocês, ao menos, tivessem esperado. Na próxima semana, talvez. Ou quando o tempo melhorasse. Bom, não importa. O que mais se pode fazer?
Ainda indecisa e sacudindo a cabeça, a criatura tristonha retirou dos ombros os rolos de corda que carregava. Prendeu os anzóis que retirara da sua trouxa na extremidade de uma linha fina em diversas posições. Fascinado, o Rei Rhun observou o movimento hábil de Gwystyl ao atirar a linha para o alto. Do alto do parapeito ouviu-se um som áspero e fraco e, em seguida, um clique seco, quando os anzóis se prenderam numa pedra saliente. Gwystyl puxou a linha e pendurou os demais rolos de corda ao redor do pescoço.
- Escute - sussurrou Rhun -, essa linha de pescar vai sustentá-lo?
Gwystyl suspirou e dirigiu-lhe um olhar melancólico.
- Duvido - respondeu.
Mesmo assim, resmungando e gemendo, ergueu-se, depressa, no ar, e, por um instante, ficou pendurado até que seus pés tocaram as pedras do paredão. Subindo pela corda e tateando com os pés o flanco íngreme da muralha, Gwystyl logo desapareceu.
- Impressionante! - exclamou Rhun.
Aflito, o bardo advertiu-o que ficasse em silêncio.
Logo em seguida, a linha de pescar foi recolhida e a ponta de uma das cordas mais fortes veio descendo. O bardo ergueu Glew, que ainda ousava elevar um pouco a voz para protestar, e deu-lhe o impulso na corda pendurada.
- Para cima - sussurrou Fflewddur. - Vou em seguida, bem atrás de você.
Depois que o bardo e o antigo gigante desapareceram nas trevas, Rhun começou a subir. Eilonwy agarrou-se à corda e foi rapidamente içada. Passou pelo parapeito e pulou numa saliência da muralha. Gwystyl já saíra correndo para os fundos do castelo. Fflewddur e Glew escorregaram para a escuridão mais abaixo. O Rei Rhun sorriu para Eilonwy e agachou-se nas pedras frias.
A lua não estava mais à vista; o céu era negro. Entre as sombras das edificações silenciosas, os estábulos e a mancha comprida e escura que, segundo Eilonwy deduzira, era a Ala Nobre de Smoit, brilhavam as pequenas chamas de uma fogueira. Mais adiante no parapeito, na direção dos portões, estavam as figuras das sentinelas, imóveis, sonolentas.
- Veja só, está bem escuro! - sussurrou Rhun, animado. - Não vamos precisar do pó de Gwystyl, em hipótese alguma. Do jeito que está, não é possível enxergar nada.
Eilonwy voltou os olhos na direção que Gwystyl tomara, esperando o próximo sinal entre um instante interminável e outro. Rhun estava a postos, pronto para descer pela corda.
Veio um grito do pátio. No mesmo instante, uma labareda avermelhada irrompeu na escuridão da Ala Nobre.
Eilonwy levantou-se, de súbito.
- Alguma coisa está errada! - exclamou. - Fflewddur ataca cedo demais!
Foi então que ela viu uma irrupção de fogo na extremidade do castelo. Surgiram outros gritos de alarme além do ruído de passos apressados. Mas os guerreiros, segundo Eilonwy observou com o coração apertado, em vez de correr na direção do ataque falso de Gwystyl, foram para a Ala Nobre. Havia uma ebulição de sombras no pátio. Archotes acenderam-se.
- Depressa! - gritou Eilonwy. - Os portões!
Rhun deslizou da saliência da muralha. Eilonwy preparava-se para segui-lo, quando avistou um arqueiro num dos postos de guarda. Ele correu na sua direção e então parou, para fazer a pontaria.
Rapidamente, Eilonwy retirou um cogumelo de seu manto e atirou-o no guerreiro. O cogumelo caiu logo adiante e se rompeu de encontro às pedras; o fogo surgiu de imediato, ofuscando-a. As chamas saltaram, formando uma nuvem ardente, estrondosa. O arqueiro gritou e afastou-se, horrorizado. Sua lança passou, assobiando, próxima à cabeça de Eilonwy.
A jovem agarrou-se à corda e desceu no pátio.
O Rei de Mona
Na despensa transformada em prisão, Gurgi foi o primeiro a ouvir os gritos de alerta. Embora abafados pelas paredes grossas, os gritos fizeram-no ficar de pé antes que os demais companheiros percebessem o tumulto do lado de fora da cela. A noite toda, temendo que Magg chegasse de um momento para o outro, em vão procuraram escapar. Extenuados, alternavam-se para poder cochilar; pretendiam vender caro as suas vidas, quando, afinal, os guardas viessem buscá-los.
- Combates e embates! - exclamou Gurgi. - Será por causa dos prisioneiros exaustos? Sim, sim, deve ser! Sim, estamos aqui!
Correu até a porta e começou a gritar por entre as grades de ferro.
Nesse instante, Taran ouviu o que parecia ser um impacto de espadas. Coll e o Rei Smoit logo se aproximaram dele. Com duas passadas, Gwydion aproximara-se da porta e afastou Gurgi, que não se continha de tanto entusiasmo.
- Cuidado - Gwydion advertiu, severamente. - Fflewddur Fflam pode ter descoberto um meio de nos libertar, mas se o castelo for despertado, Magg poderá nos eliminar antes que nossos companheiros cheguem aqui.
Do lado de fora ressoaram passos, e a tranca da porta pesada começou a vibrar; os companheiros afastaram-se da entrada e se agacharam, prontos para atacar seus captores. A porta escancarou-se. Na cela surgiu Eilonwy.
- Sigam-me! - gritou.
Erguendo em uma das mãos a esfera luminosa, com a outra retirou uma sacola do cinturão.
- Tomem. Os cogumelos são fogo, os ovos são fumaça. Jogue-os em cima de qualquer um que os atacar. E este pó... vai cegá-los.
- Não encontrei armas - disse depressa. - Consegui libertar os guerreiros de Smoit, mas Fflewddur está cercado no pátio. Tudo deu errado. Nosso plano falhou!
Smoit, aos gritos de ódio, saiu porta afora.
- Pode ficar com seus cogumelos venenosos e ovos de galo! - bradou. - Tudo de que preciso são minhas mãos para torcer o pescoço de um traidor!
Gwydion deu um salto e atravessou a soleira da porta. Seguido por Coll e Gurgi, Taran correu atrás de Eilonwy. Dos corredores da Ala Nobre, Taran precipitou-se velozmente naquele espaço que não era nem claro nem escuro. Enormes massas de fumaça densa e branca erguiam-se no pátio, embaçando o céu no momento da alvorada. Fazendo lembrar ondas oscilantes, retorcidas, alteravam-se de acordo com o vento, levantavam-se por um instante revelando uma aglomeração de guerreiros a se enfrentar e, em seguida, voltavam inundando tudo, formando a maré impenetrável. Aqui e ali colunas de fogo rugiam e serpenteavam através da fumaça.
Perdendo Eilonwy de vista, Taran mergulhou no redemoinho de nuvens. Um guerreiro ergueu a espada e o atacou.
Na tentativa de escapar do golpe, Taran pisou em falso. Com a mão estendida, jogou no rosto do homem seu pequeno suprimento de pó. O guerreiro caiu para trás, atordoado; seus olhos arregalados fixavam-se no vazio. Taran arrebatou a espada do guarda e saiu correndo.
- Um Smoit! Um Smoit!
O grito de guerra do rei de barba ruiva ecoou dos estábulos. Antes que a fumaça enchesse seus olhos outra vez, Taran viu, de relance, Smoit, furioso, armado com uma enorme foice, agitando-a como se ele fosse um urso ceifeiro.
No entanto, Gurgi, sem muita sorte, tropeçara com os ovos ainda nas mãos. A fumaça cobriu-o. Momentaneamente, Taran conseguiu ver apenas um par de braços peludos agitando-se para, em seguida, perder-se na coluna de fumaça. Fora de si e gritando com todas as forças, Gurgi rodopiava e se lançava em qualquer direção que seus pés o conduzissem. Os guerreiros gritavam e fugiam daquele ciclone assustador.
O Rei Smoit tentava reunir seus homens e Taran procurava abrir caminho até os estábulos. Coll estava a seu lado. O guerreiro corpulento acabara de tomar a espada de seu oponente. Abandonando a enxada que, até então, lhe servira de arma, Coll atirou o corpo avantajado contra o amontoado de espadachins que investiam contra Fflewddur Fflam. Taran pulou no meio da rixa, dando golpes certeiros a torto e a direito.
Os guerreiros de Magg retrocederam. O bardo uniu-se a Taran e os dois atravessaram correndo o pátio.
- Onde está Rhun? - gritou Taran.
- Não sei! - disse Fflewddur, ofegante. - Combinamos que ele e Eilonwy abririam os portões para nós. Mas, Grande Belin, sabe-se lá o que aconteceu desde então! Nem posso imaginar. Tudo mudou. Um dos guerreiros de Magg pisou em Glew, e fomos descobertos antes mesmo que pudéssemos dar outro passo. Daí em diante foi um tumulto. Onde Glew está agora não faço a menor idéia... embora a doninha tenha se defendido bem, admito. E Gwystyl também.
- Gwystyl? - Taran gaguejou. - Como foi...
- Não importa - respondeu Fflewddur. - Depois lhe diremos o que aconteceu. Se houver depois.
Tinham quase chegado aos estábulos quando Taran avistou Gwydion. A cabeça grisalha encimava o mar de guerreiros. Mas o alívio de Taran ao ver Gwydion a salvo transformou-se em desespero. Ele viu, através das nuvens mutantes, que o curso da batalha estava-se voltando contra os companheiros. Somente um pequeno número de guerreiros de Smoit conseguira se reunir para atacar; os demais estavam isolados, envolvidos no combate no pátio.
- Aos portões! - comandou Gwydion. - Todos os que puderem, fujam!
Consternado, Taran percebeu que o pequeno grupo estava em grande desvantagem. Indistintamente, ele viu que os portões tinham sido abertos. Mas outros guerreiros de Magg tinham se juntado aos demais, e o caminho para a segurança estava bloqueado.
De repente, uma figura montada entrou no pátio a galope. Era Rhun na sua égua cinzenta e malhada. O rosto jovial do Rei de Mona refletia uma luz impetuosa. Enquanto a montaria empinava-se e investia, Rhun girava a espada acima da cabeça e gritava a plenos pulmões:
- Arqueiros! Sigam-me! Para o pátio, todos!
Deu uma volta com a égua e fez sinal com a espada. Suas palavras ecoaram através do barulho das armas.
- Lanceiros! Por aqui! Depressa!
- Ele trouxe ajuda! - exclamou Taran.
- Ajuda? - repetiu o bardo, surpreso. - Não há nenhuma a quilômetros de distância!
Rhun não parou de galopar para um lado e para o outro em meio aos guerreiros, gritando ordens como se houvesse um exército inteiro com ele.
Os homens de Magg viraram-se para ver o inimigo invisível.
- Um ardil! - exclamou Fflewddur. - Ele é louco! Jamais funcionará!
- Mas funciona! - retrucou Taran, percebendo, com um rápido olhar, que os inimigos tinham se dispersado, e confusos, procuravam enfrentar aqueles que, segundo imaginavam, eram oponentes recém-chegados. Taran levou a trompa aos lábios e deu o sinal de ataque. Os guerreiros de Magg ficaram indecisos, pensando que o inimigo agora estava à retaguarda.
Naquele exato momento, Llyan atravessou os portões. Aqueles que a viram gritaram, atemorizados, assim que a gata deu um salto. Llyan não deu importância alguma aos guerreiros; atravessou o pátio correndo enquanto os espadachins deixavam cair suas armas e fugiam quando ela se aproximava.
- Está à minha procura! - exclamou Fflewddur. - Estou aqui, menina!
Os defensores de Smoit aproveitaram o momento para avançar, com grande ímpeto. Muitos dos guerreiros de Magg já haviam fugido; dominados pelo medo, atacavam-se e golpeavam-se num pânico cego. Ainda a galope, Rhun desapareceu na fumaça.
- Ele ludibriou-os muito bem! - gritou Fflewddur, radiante. - Apesar de tudo que esses ovos e cogumelos fizeram por nós... foi Rhun quem resolveu o problema!
O bardo correu ao encontro de Llyan. Taran viu Gwydion a cavalo. Melyngar, com sua crina dourada, corria velozmente pelo pátio, pois Gwydion a incitava a perseguir os inimigos em fuga. Smoit e Coll também montaram em seus corcéis. Atrás deles vinha Gwystyl, a galope. Os guerreiros de Smoit também se aliaram à perseguição. Taran saiu correndo em busca de Melynlas mas, antes que chegasse aos estábulos, ouviu Eilonwy chamá-lo. Ele se voltou. A jovem, com o rosto sujo, a túnica rasgada, acenava insistentemente.
- Venha! - chamou. - Rhun está muito ferido! Taran correu na sua direção. Ao lado da muralha oposta estava a égua cinzenta e malhada, sem o cavaleiro. O Rei de Mona achava-se sentado no chão, as pernas esticadas, as costas apoiadas numa carroça fumegante, queimada pelos cogumelos de Gwystyl. Gurgi e Glew, ilesos, estavam ao seu lado.
- Olá, olá! - murmurou Rhun e acenou com a mão. A palidez de seu rosto era mortal.
- Ganhamos o dia - disse Taran. - Se não fosse você, teria sido diferente. Não se mexa - Taran advertiu o jovem rei, abrindo-lhe a jaqueta manchada de sangue.
Taran contraiu a testa, demonstrando ansiedade. Uma flecha havia atingido profundamente o flanco de Rhun e a haste se quebrara.
- Surpreendente! - sussurrou Rhun. - Jamais estivera numa batalha, e não sabia que... não sabia de nada. Mas, veja só, as coisas mais estranhas ainda se passavam na minha mente. Pensava no dique no Porto de Mona. Não é espantoso? Sim, seu plano vai dar certo - murmurou Rhun.
Os olhos de Rhun se dispersaram e, de súbito, ele parecia mais jovem, bastante desnorteado e um pouco assustado.
- E acho... acho que gostaria de estar em casa.
Fez um esforço para se levantar. Taran inclinou-se rapidamente, aproximando-se dele.
Fflewddur havia chegado, seguido de perto por Llyan.
- Aí está você, garotão - disse a Rhun. - Eu lhe disse que teríamos problemas de sobra. Mas você nos livrou deles! Ah, os bardos vão cantar seus feitos...
Taran ergueu o rosto, pesaroso.
- O Rei de Mona morreu.
Pouco além de Caer Cadarn, no local em que enterraram Rhun, silenciosos e consternados, os companheiros ergueram um pequeno monte de pedras. Os guerreiros de Smoit reuniram-se a eles; e, ao anoitecer, cavaleiros, segurando tochas acesas, marcharam lentamente ao redor da elevação, para homenagear o Rei de Mona.
Quando a última chama esmoreceu, Taran aproximou-se e ficou diante do sepulcro.
- Adeus, Rhun, Filho de Rhuddlum. O dique do Porto de Mona está inacabado - disse com suavidade. - Mas eu lhe prometo que seu trabalho não ficará por fazer. Os pescadores do seu reino terão um porto seguro, ainda que eu tenha que o construir com as minhas próprias mãos.
Pouco depois do cair da noite, Gwydion, Coll e o Rei Smoit voltaram. Magg havia escapado, e a perseguição infrutífera deixara-os exaustos e abatidos. Eles também lamentaram a morte de Rhun, e homenagearam todos os guerreiros que haviam tombado. Então, Gwydion conduziu os companheiros à Ala Nobre.
- Arawn, o Lorde-da-Morte, dá-nos pouco tempo para a dor, e receio que, antes de terminar nossa missão, tenhamos que lamentar a perda de outros mais - disse. - Agora preciso lhes falar de uma decisão que deve ser avaliada com discernimento.
- Gwystyl do Povo Formoso já se foi, e agora continua sua jornada ao reino do Rei Eiddileg. Antes de nos separarmos, falou-me mais a respeito da concentração das tropas de Arawn. O que Magg dizia não era apenas bravata maldosa. Gwystyl também concorda comigo que Arawn pretende nos derrotar numa derradeira batalha. Neste exato momento seus exércitos estão se reunindo.
- Existe um grande risco, talvez fatal, em deixar Dyrnwyn ao alcance de Arawn - continuou Gwydion. - Contudo, precisamos enfrentar o perigo maior. Não vou mais buscar a espada negra. Seja lá qual for a força que a arma possa lhe conceder, usarei a minha própria força para enfrentá-lo até a morte. Não vou para Annuvin, mas para Caer Dathyl, a fim de reunir os Filhos de Don.
Por alguns instantes, ninguém falou. Com alguma demora, Coll respondeu:
- Na minha opinião, sua decisão foi sábia, Príncipe de Don.
Smoit e Fflewddur Fflam concordaram.
- Bem que eu gostaria de estar certo da minha sabedoria - retrucou Gwydion num tom grave. - Então, que seja.
Taran ergueu-se e olhou para Gwydion.
- Não existe algum modo de um de nós transpor a fortaleza do Lorde-da-Morte? É mesmo necessário que se desista de buscar Dyrnwyn?
- Posso ler seus pensamentos, Porqueiro-Assistente - retrucou Gwydion. - Você será mais útil a mim se obedecer às minhas ordens. Gwystyl previne que a viagem a Annuvin pode significar apenas o desperdício de uma vida... e mais do que isso: a perda de um tempo precioso. A natureza de Gwystyl consiste em dissimular a sua natureza, mas no Povo Formoso ninguém é mais astuto e confiável do que ele. Confio no seu conselho e vocês devem fazer o mesmo.
- Gwystyl prometeu fazer tudo que esteja ao seu alcance para conseguir ajuda do Povo Formoso - continuou Gwydion. - O Rei Eiddileg não tem grande simpatia pela raça humana. No entanto, percebe que a vitória de Arawn arruinaria toda a Prydain. O sofrimento do Povo Formoso não seria menor que o nosso.
- Mas não devemos contar tanto com Eiddileg. Precisamos recrutar nossas tropas e formar nossos próprios exércitos. Quanto a isso, nossa maior ajuda virá do Rei Pryderi dos Reinos Ocidentais. Nenhum lorde em Prydain comanda uma armada mais poderosa. Sua lealdade à Casa de Don é sólida e entre nós existem laços de amizade. Vou mandar notícias a Pryderi e rogar-lhe que junte as suas forças às nossas em Caer Dathyl.
- É lá que nós todos nos encontraremos - prosseguiu Gwydion. - No entanto, antes disso, pedirei ao Rei Smoit que reúna todos os guerreiros leais de seu cantreve e dos reinos mais próximos.
E voltando-se ao bardo.
- Fflewddur Fflam, Filho de Godo, nos Reinos do Norte você é rei. Volte para lá sem demora. A você confio a reunião dos cantreves do norte.
- Quanto a você, Porqueiro-Assistente - disse Gwydion, percebendo a indagação nos olhos de Taran -, sua missão é urgente. Você é bem conhecido pelo povo dos Condados Livres. Encarrego-o de levantar entre eles qualquer contingente. Leve todos os aliados até Caer Dathyl. Gurgi e Coll, Filho de Collfrewr, irão com você. E você também, Princesa Eilonwy. A segurança dela está em suas mãos.
- Felizmente - disse Eilonwy em voz baixa -, ninguém falou em me mandar para casa.
- Segundo Gwystyl, muitos vassalos de Arawn já estão em marcha - disse Coll a Eilonwy. - E são muitos os perigos dos Cantreves do Vale. Se não fosse por isso, princesa - acrescentou com um sorriso -, há muito você estaria a caminho de Caer Dallben.
Bem antes do alvorecer, Gwydion e Fflewddur partiram de Caer Cadarn a cavalo, tomando caminhos diferentes. O Rei Smoit, preparado para a batalha, deixou o castelo tendo por companhia Lorde Gast e Lorde Goryon, que demoraram a saber do ataque ao seu rei, mas vieram depressa para se reunir a ele. Diante do perigo comum, os dois rivais deixaram de lado a velha rixa. Goryon estava decidido a não levar a mal cada palavra de Gast, Gast evitava ofender Goryon, e nenhum deles sequer mencionava as vacas.
Naquela manhã, um camponês de tez curtida e cabelos grisalhos atravessou o pátio do castelo, caminhando rapidamente na direção de Taran. Era Aeddan, que, tempos atrás, o havia ajudado no cantreve de Smoit. Os dois trocaram um afetuoso aperto de mão, mas o semblante do lavrador estava sombrio.
- Agora não há tempo de falar sobre o meu passado - disse Aeddan. - Ofereço-lhe minha companhia... e isto - acrescentou, desembainhando uma espada enferrujada. - Já me serviu uma vez e poderá servir novamente. Diga aonde vai e irei com você.
- Dou valor à espada e mais ainda ao homem que a empunha - respondeu Taran -, mas seu lugar é ao lado de seu rei. Vá com ele e espero que nos encontremos numa ocasião mais feliz.
Conforme as ordens de Gwydion, Taran e os demais companheiros ficaram aguardando no castelo de Smoit, na expectativa de que Kaw traria notícias recentes. Mas, quando o dia seguinte chegou sem qualquer sinal do corvo, os amigos prepararam-se para a partida. O bordado de Eilonwy continuava intacto e ela desdobrou-o cuidadosamente.
- Agora você é um comandante militar - disse a Taran, com admiração. - No entanto, jamais ouvi falar de um comandante militar sem uma bandeira de batalha.
- Tome - disse Eilonwy. - Pode ser que Hen Wen não seja um emblema assustador. No entanto, para um auxiliar de guardador-de-porcos, é o que melhor convém.
Passaram a cavalo pelos portões. Gurgi, ao lado de Taran, ergueu a lança bem no alto e o vento bateu na flâmula da Porca Branca. Acima da fortaleza enegrecida pela fumaça, e acima da sepultura, cuja terra fresca já estava coberta pela geada, as nuvens tornaram-se carregadas. Logo cairia a neve.
Os Mensageiros
Desde que saíra de Caer Dallben, Kaw seguira diretamente a Annuvin. Embora o corvo tivesse o maior prazer de, no alto, planar nos espaços ilimitados do céu, descer rapidamente e voar acima das nuvens semelhantes a rebanhos de carneiros brancos, deixou de lado a tentação de brincar com o vento e manteve-se firme no caminho. Muito abaixo, o Rio Avren brilhava como um longo fluxo de prata fundida; terrenos sem cultivo estendiam-se formando recortes; as copas negras e desfolhadas das árvores contrastavam com as grandes extensões de florestas de pinheiros verde-escuros que acompanhavam as curvas dos montes. Kaw dirigia-se sempre a noroeste, descansando raramente, durante o dia. Só ao entardecer, quando a vista aguçada não podia distinguir mais nada além das sombras compactas, ele descia ao solo e procurava abrigo nos galhos de uma árvore.
Durante vários dias voou acima das nuvens para aproveitar as correntes de vento que o levavam, depressa, como se ele fosse uma folha num curso d'água. Mas, ao sobrevoar a Floresta de Idris, mais próxima aos cumes pontiagudos de Annuvin, Kaw interrompeu o vôo deslizante e tomou a direção do solo, atento a qualquer movimento nas trilhas das montanhas. Ao se aproximar, avistou uma coluna de guerreiros, fortemente armados, marchando para o norte. Mais perto ainda, reconheceu os Caçadores de Annuvin. Por algum tempo seguiu-os e, quando eles pararam em meio à vegetação rasteira e às árvores raquíticas, voou até um galho baixo e lá permaneceu. Sentados de cócoras ao redor das fogueiras, os Caçadores preparavam a refeição do meio-dia. O corvo ergueu a cabeça para escutar melhor, mas não distinguiu o que murmuravam, até ouvir as palavras "Caer Dathyl".
Kaw mudou de posição, escolhendo um galho mais baixo. Um dos Caçadores, guerreiro animalesco vestido com pele de urso, avistou o pássaro. Com um sorriso maldoso, ao pensar na chance de se divertir, o guerreiro apanhou uma flecha e ajustou-a no arco. Rapidamente, fez a pontaria e disparou. Kaw bateu as asas e esquivou-se da flecha, que passou um pouco acima da sua cabeça e chocalhou nos galhos secos. O Caçador amaldiçoou tanto a flecha quanto o corvo e preparou-se para atirar outra vez. Dando-se por satisfeito e grasnando, Kaw alçou vôo e passou além das árvores, pretendendo dar uma volta e encontrar um posto de escuta mais seguro.
Foi então que surgiram os guidaintes.
Por um instante, determinado a voltar ao acampamento dos Caçadores, Kaw não percebeu o vôo dos três pássaros imensos. Precipitaram-se de um aglomerado de nuvens, batendo com rapidez as asas negras. A satisfação que o corvo sentira esmoreceu. Kaw esgueirou-se do ataque e lutou desesperadamente para subir o mais alto possível, a fim de não deixar que as criaturas mortíferas dominassem o espaço aéreo acima dele.
Os guidaintes também se desviaram. Um deles se separou dos outros para perseguir o corvo fugitivo; os demais, fazendo poderosos movimentos com as asas, elevaram-se em direção às nuvens para repetir o ataque.
Kaw impelia-se sempre para o alto, e o guidainte conseguira se aproximar quando o corvo ultrapassou um mar de neblina e invadiu uma grande área inundada pelo sol que, por pouco, não o cegava.
Os outros dois guidaintes estavam à espera. Enfurecidos e guinchando, desceram ao seu encalço. Seguindo o corvo, o perseguidor guiava-o na direção das outras criaturas. De relance, Kaw percebeu o lampejo dos bicos brilhantes e os olhos vermelhos como sangue. Os gritos de triunfo dos guidaintes rasgaram o céu vazio. De súbito, o corvo interrompeu o vôo, fingindo-se confuso. Quando os guidaintes quase o alcançavam, ele concentrou todas as suas forças numa só arremetida que o levou para além das garras cortantes como punhais.
O corvo não saiu ileso. Um dos guidaintes atingiu-o debaixo da asa. Apesar da dor que o estonteava, Kaw afastou-se, voando, livre dos agressores. O céu aberto não era refúgio para ele. Não podia mais contar com a velocidade de vôo para se salvar. Precipitou-se ao solo.
Os guidaintes não se deixaram enganar. O cheiro de sangue enlouqueceu-os e não desistiriam de sua vítima. Partiram em direção ao corvo tentando ultrapassá-lo e impedir que ele chegasse à floresta.
As árvores mais altas surgiram diante de Kaw. Ele as evitou e desceu mais para perto da vegetação rasteira. O emaranhado de galhos retardava os perseguidores. Sem reduzir a velocidade, Kaw deslizava acima do solo, embrenhando-se no labirinto de arbustos. As imensas asas dos guidaintes, tão úteis nas alturas, agora mantinham-nos afastados de sua presa. Gritaram, enfurecidos, mas não se atreviam a penetrar na mata. O corvo, semelhante a uma raposa, escondera-se numa toca.
O dia já se encerrava. Dolorido, Kaw acomodou-se para passar a noite. Ao amanhecer, voou cautelosamente até o alto de uma árvore. Os guidaintes tinham ido embora, mas os instintos do corvo diziam-lhe que fora levado para leste de Annuvin. Sem muita agilidade, deixou a árvore e voou para o alto. Ao sul estava Caer Cadarn, além do alcance de sua energia. Precisava decidir-se rapidamente, enquanto tivesse vida. Descreveu um círculo e, então, voou com dificuldade rumo ao novo destino e única esperança.
Daí em diante, voar tinha se tornado um tormento. Suas asas falhavam várias vezes e somente as correntes de vento permitiam que ele continuasse no ar. Não poderia mais viajar um dia inteiro. O ferimento forçava-o a descer e refugiar-se nas árvores, muito antes do pôr-do-sol. Também não lhe era mais possível voar próximo ao calor do sol e, em vez disso, percorria o caminho um pouco acima do solo, quase esbarrando nas copas das árvores. Abaixo, o campo estava fervilhando com a presença de guerreiros, tanto a cavalo quanto a pé. Nas ocasiões em que ele parava para recuperar as forças, descobria que o destino deles, tal como o dos Caçadores, era a fortaleza dos Filhos de Don. O medo que sentia tornou-se mais intenso do que a dor, e ele seguiu em frente.
Afinal, no frio anestesiante das montanhas a nordeste do Rio Ystrad, o pássaro vislumbrou o que estivera procurando. Cercado por penhascos, o vale era um ninho verde no centro dos cumes cobertos de neve. Surgiu um pequeno chalé. A superfície azul de um lago cintilava à luz do sol. Junto ao flanco abrigado de uma encosta, achava-se uma forma alongada semelhante à de um barco, a armação e as vigas cobertas de musgo. Batendo as asas debilmente, Kaw desceu como uma pedra no vale.
Assim que seus olhos se fecharam, teve a impressão de que mandíbulas o seguravam com firmeza, levantando-o da relva; em seguida, uma voz grave perguntou:
- E então, Brynach, o que tem aí para nós? O corvo não viu mais nada.
Quando abriu os olhos novamente, estava sobre um ninho macio feito de gravetos num local ensolarado. Estava fraco, mas já não sentia dor; havia uma bandagem envolvendo o ferimento. Ao se esforçar para bater as asas, foi tocado por um par de mãos fortes e hábeis que o seguraram e o acalmaram.
- Devagar, devagar - disse a voz. - Receio que você vá ficar preso à terra por algum tempo.
O rosto de barba branca do homem era enrugado e curtido pelo tempo, como um carvalho antigo numa tempestade de neve. Cabelos brancos caíam-lhe por cima dos ombros largos e musculosos e, ao redor da testa, presa a um aro dourado, reluzia uma pedra azul. Sem grasnar e tagarelar, como de costume, o corvo baixou a cabeça com humildade. Jamais voara até aquele vale, mas no íntimo, sempre soubera que um abrigo assim o aguardava. Uma intuição misteriosa, espécie de lembrança escondida, que compartilhou com todas as criaturas da floresta de Prydain, conduzira-o até lá; e o corvo entendeu que, afinal, chegara à residência de Medwyn.
- Deixe-me ver, deixe-me ver - continuou Medwyn, franzindo as sobrancelhas espessas, buscando alguma coisa há muito guardada num canto de sua mente. - Você deve ser... sim... os traços de família são inconfundíveis: Kaw, Filho de Kadwyr. É claro que sim. Perdoe por eu não tê-lo reconhecido imediatamente, mas há tantos clãs de corvos que, às vezes, me engano. Conheci seu pai quando ele era uma avezinha de pernas compridas.
Medwyn sorriu ao evocar suas lembranças.
- O malandro não era um estranho no meu vale... aparecia com uma asa quebrada para ser consertada, uma perna deslocada, um arranhão atrás do outro.
- Espero que você não siga o exemplo dele - acrescentou Medwyn. - Já ouvi falar muito de sua bravura e... uma certa tendência, digamos, a arrumar confusão. Também chegou aos meus ouvidos que seu dono é um Porqueiro-Assistente de Caer Dallben. O nome dele é Melynlas, creio. Não... perdoe-me. Esse é o corcel. É claro, Melynlas, Filho de Melyngar. O nome do porcariço agora me escapa. Mas não importa. Sirva-o com lealdade, Filho de Kadwyr, pois ele tem um bom coração. Entre todos da raça humana, ele foi um dos poucos que eu admiti no meu vale. Quanto a você, suponho que chegou muito perto dos guidaintes. Tome cuidado. Nos dias de hoje, muitos dos mensageiros de Arawn estão circulando lá em cima. Mas agora está a salvo, e logo poderá se levantar e bater asas.
Empoleirada no encosto da cadeira de Medwyn, uma enorme águia observava o corvo. Ao lado do idoso achava-se sentado o lobo Brynach. Magro e cinzento, de olhos amarelos, abanou o rabo e sorriu para o corvo. Logo depois, uma loba, menor e com um sinal branco no peito, entrou num passo ligeiro e sentou-se ao lado do companheiro.
- Ah, Briavael - disse Medwyn. - Veio saudar nosso visitante? Assim como o pai, ele terá, sem dúvida, uma história e tanto para nos contar.
Então Kaw falou na sua própria língua, que Medwyn compreendia com facilidade. Enquanto ouvia, a expressão do homem idoso contraiu-se. Quando o corvo concluiu, Medwyn ficou em silêncio por um tempo, com a testa bem franzida. Brynach ganiu, inquieto.
- Chegou a hora - disse Medwyn com a voz carregada. - Eu já devia ter adivinhado, pois percebi um medo estranho entre os animais. Chegam aqui em número cada vez maior, fugindo do que mal conhecem. Falam de grande número de Caçadores e homens armados. Agora entendo o significado dessas notícias. O dia que eu mais temia chegou. No entanto, meu vale não pode abrigar todos que procurarem refúgio.
A voz de Medwyn começara a se elevar como um temporal violento.
- A raça humana está diante da escravidão de Annuvin. Portanto, as criaturas de Prydain também. À sombra da Terra dos Mortos a canção do rouxinol será sufocada e extinta. Os túneis de texugos e toupeiras serão transformados em prisões. Nenhuma fera, nenhum pássaro poderá andar por aí ou voar com a sensação de liberdade. Aqueles que não forem mortos... terão o mesmo destino dos guidaintes, que há muito tempo foram escravizados, atormentados, enfraquecidos, e seus sentimentos, que um dia foram bons, desvirtuaram-se diante dos propósitos malignos de Arawn.
Medwyn voltou-se à águia.
- Você, Edyrnion, voe rapidamente às montanhas onde estão aninhados os seus semelhantes. Ordene-lhes que se organizem num grupo tão forte e numeroso quanto possível.
- Você, Brynach, e você, Briavael - ordenou, assim que os lobos ergueram as orelhas -, espalhem o aviso entre seus irmãos; entre os ursos que podem dar golpes com as patas e esmagar com os braços; entre os alces de chifres afiados; e todos os habitantes da floresta, grandes e pequenos.
Medwyn aprumou-se tanto quanto possível. Seus punhos estavam cerrados fazendo lembrar raízes agarradas à terra. O corvo observava, atemorizado e quieto. Os olhos de Medwyn faiscaram e a voz grave surgiu como um trovão.
- Falem com eles em meu nome e digam: estas são as palavras daquele que construiu um barco quando as águas escuras inundaram Prydain, daquele que salvou os antepassados de todos eles. Agora, contra esta inundação do mal, cada ninho, cada toca deve ser uma fortaleza. Que toda criatura volte o dente, o bico e a garra contra todos que servem Arawn, o Lorde-da-Morte.
Lado a lado, os lobos deixaram o chalé. E a águia levantou vôo.
O Estandarte
A neve ligeira começara a cair antes que os companheiros tivessem completado um dia de viagem desde que deixaram o castelo do Rei Smoit e, ao chegarem ao Vale de Ystrad, as encostas já estavam forradas com um manto branco e o rio já se cobria de gelo. Quando os companheiros atravessavam o banco de areia em direção aos Condados Livres, estilhaços congelados batiam nas pernas dos cavalos. Dos integrantes do grupo, Gurgi era o que mais sofria os efeitos do frio. Embora vestisse uma ampla capa de couro de carneiro, a pobre criatura tremia sem parar. Seus lábios estavam azulados, os dentes rangiam e o pêlo emaranhado cobria-se de gotículas de gelo. No entanto, ele seguia na mesma velocidade de Taran, e suas mãos dormentes não deixavam de segurar, com firmeza, o estandarte.
Dias de viagem árdua levaram-nos a atravessar o Pequeno Avren na direção de Cenarth, local escolhido por Taran para começar a recrutar a gente dos Condados. Mas logo que passou a cavalo pelo conjunto de chalés com telhados de colmo, viu o povoado repleto de homens, e entre eles, Hevydd, o Ferreiro, de peito largo como um barril e barba espetada, que abriu caminho na multidão e bateu nas costas de Taran, com a mão pesada como seus próprios martelos.
- Seja bem-vindo, Errante - disse o ferreiro. - Nós o vimos de longe e nos reunimos para recebê-lo.
- Saudações aos bons amigos - respondeu Taran -, mas, em troca de uma acolhida amável, passo-lhes uma árdua tarefa. Prestem atenção - disse em seguida. - O que quero de vocês não se pede com delicadeza nem é concedido com delicadeza: a força de suas mãos e a coragem de seus corações, e, se for preciso, até mesmo suas vidas.
Em meio a murmúrios, o povo do Condado acercou-se dele, e Taran falou a respeito do que acontecera a Gwydion e da rebelião de Arawn. Quando terminou, os homens estavam com os semblantes carregados e, por algum tempo, permaneceram em silêncio. Então, Hevydd, o Ferreiro, ergueu a voz.
- A gente dos Condados Livres é fiel ao Rei Math e à Casa de Don - disse. - Mas atenderá ao apelo de um amigo, e o seguirá por amizade e não por dever. Então, que seja Hevydd o primeiro a seguir Taran Errante.
- Nós todos o seguiremos! Todos! - gritaram os habitantes dos Condados e, num instante, Cenarth, que costumava ser um local pacífico, ficou agitado como uma tempestade que se anuncia e cada homem apressou-se para se armar.
Mas Hevydd sorriu amargamente para os companheiros.
- Temos força de vontade, mas nos faltam armas - declarou. - Não faz mal, Errante. Você trabalhou com bravura na minha ferraria; agora a minha oficina vai trabalhar para você. E eu mandarei dizer a todos os ferreiros das terras do Condado que, tanto quanto eu, trabalhem com afinco para atendê-lo.
Enquanto os homens preparavam as montarias e a forja de Hevydd começava a arder, Taran levou os companheiros aos arredores dos Condados. Sua missão logo tornou-se conhecida, e a cada dia surgia um grande número de pastores e fazendeiros que não precisavam ser persuadidos a seguir o estandarte da Porca Branca. Para Taran, dias e noites fundiam-se uns nos outros. Nos acampamentos de recrutas, montado no incansável Melynlas, Taran passava pelos agrupamentos de homens pacíficos transformados em guerreiros, tratava de provisões e equipamento e, junto ao braseiro das fogueiras, reunia-se com os grupos recém-formados.
Quando concluiu tudo que lhe era possível fazer em Cenarth, Hevydd reencontrou-se com Taran, para servi-lo como mestre armeiro.
- Você trabalhou bem, mas ainda estamos mal preparados - disse Taran. - Meu receio é que nem todas as ferrarias de Prydain sejam suficientes para atender aos nossos propósitos. Seja como for, preciso achar uma solução...
- E vai achar mesmo, se tiver sorte! - disse alguém. Taran virou-se e viu um cavaleiro que seguia quase ao seu lado e espantou-se, pois, entre todos os guerreiros do Condado, este era o que se trajava de modo mais estranho. Era alto, tinha o cabelo liso e pernas tão finas quanto uma cegonha e tão compridas que por pouco os pés não tocavam o chão de cada lado da montaria. Pedaços de ferro e quinquilharias tinham sido cuidadosamente costurados em toda a sua jaqueta; levava um bastão de madeira, com uma lâmina de foice presa à extremidade; na cabeça, uma panela trabalhada e moldada no formato de um elmo ficava tão baixa na testa do homem que, praticamente, lhe cobria os olhos.
- Llonio! - exclamou Taran, trocando um aperto de mão efusivo com o recém-chegado. - Llonio, Filho de Llonwen!
- Eu mesmo - respondeu Llonio, puxando para trás o estranho capacete. - Não imaginou que, mais dia, menos dia, eu me apresentaria?
- Mas e sua mulher e a família? - indagou Taran. - Não esperava que você os deixasse. Puxa vida, lembro-me de meia dúzia de crianças!
- E, felizmente, outra a caminho - respondeu Llonio, sorrindo. - Quem sabe gêmeos, com o tipo de sorte que tenho. Mas minha prole vai estar bem a salvo até eu voltar. Com toda a certeza, para que haja, algum dia, segurança em Prydain, é preciso que eu agora siga o Errante. Mas sua preocupação, no momento, não é com bebês de colo, e sim com homens armados. Ouça-me, amigo Errante - prosseguiu Llonio. - Vi forcados e ancinhos nas mãos do Povo do Condado. Não seria possível destacar as pontas e fixá-las em bastões de madeira? Assim, ganharíamos três, quatro, e mais armas ainda, comparadas a uma só que possuíamos.
- Mas decerto que sim! - irrompeu Hevydd. - Como é que eu mesmo não havia pensado nisto?
- Nem eu - admitiu Taran. - Llonio percebe as coisas com mais clareza do que todos nós, mas chama de sorte o que outra pessoa chamaria de perspicácia. Vá, amigo Llonio, e tente conseguir o que for possível. Sei que você vai encontrar muito mais do que os olhos podem ver.
Depois que Llonio, com a ajuda de Hevydd, o Ferreiro, percorreu os Condados em busca de foices, ancinhos, tenazes e forcados, descobrindo meios de dar aos mais incríveis objetos uma nova finalidade, o suprimento de armas aumentou.
Enquanto, a cada dia, Taran recrutava mais e mais seguidores, Coll, Gurgi e Eilonwy ajudavam a estocar as carroças com equipamentos e provisões, o tipo de tarefa que não agradava nem um pouco à princesa, ansiosa por cavalgar de um Condado ao outro em vez de se esgueirar entre as carroças sobrecarregadas. Eilonwy vestira roupas de homem e prendera os cabelos no alto da cabeça; de seu cinto pendia uma espada e um punhal obtidos, com muita persuasão, de Hevydd, o Ferreiro. O traje de guerreiro não lhe assentava bem, mas ela se orgulhava de usá-lo e, portanto, ficou bastante irritada quando Taran não concordou que ela se afastasse de Cenarth.
- Você irá comigo - disse Taran - assim que os animais de carga estiverem preparados e as cargas bem amarradas.
Com relutância, a princesa concordou; mas, no dia seguinte, quando Taran passava a meio-galope pelas fileiras de cavalos nos fundos do acampamento, ela gritou, furiosa.
- Você me enganou! Estas tarefas jamais ficarão prontas a tempo! Mal termino uma fileira de cavalos e carroças e chegam outras mais. Muito bem, vou fazer o que prometi. Mas, seja você comandante militar ou não, Taran de Caer Dallben, não falo mais com você!
Taran sorriu e seguiu em frente.
Rumo ao norte, através do Vale do Grande Avren, os companheiros entraram no Condado de Gwenith e mal haviam desmontado quando Taran ouviu uma voz rouca.
- Errante! Sei que você está à procura de guerreiros e não velhotas. Mas pare um pouco para cumprimentar esta aqui que não se esqueceu de você.
Dwyvach, a tecelã de Gwenith, estava parada à porta do chalé. Apesar dos cabelos brancos e feições enrugadas, parecia disposta e descansada como sempre. Seus olhos acinzentados observaram Taran, rapidamente, e então voltaram-se para Eilonwy. A anciã fez-lhe um gesto.
- Conheço bem Taran Errante. E posso imaginar muito bem quem você é. Apesar do disfarce de homem, seu cabelo estaria melhor se você o tivesse lavado.
Lançou um olhar astuto para a princesa.
- É isso mesmo. Desde que conheci o Errante, tive a certeza de que havia uma jovem bonita nos seus pensamentos.
- Hum! - fungou Eilonwy. - Não sei se naquela ocasião eram esses os pensamentos dele e, no momento, duvido ainda mais.
Dwyvach deu uma risada.
- Se não é você, não pode ser mais ninguém. O tempo dirá qual de nós está certa. Mas enquanto isso, menina - acrescentou, desdobrando um manto que segurava nas mãos encarquilhadas e pondo-o em torno dos ombros de Eilonwy -, aceite este presente, de uma idosa para uma jovem, e saiba que não existe tanta diferença entre as duas. Pois mesmo uma avó trôpega tem um pouquinho do coração de uma menina, e a mais jovem donzela, um fio da sabedoria da mulher de idade.
Naquele momento, Taran aproximara-se da porta do chalé. Cumprimentou afetuosamente a tecelã e admirou o manto que ela oferecera a Eilonwy.
- Hevydd e os ferreiros do Condado trabalharam para fazer armas para nós - disse ele. - Mas, além de armas, guerreiros precisam de calor. Infelizmente, não temos roupas como esta.
- Pensa que uma tecelã é menos resistente que um ferreiro? - retrucou Dwyvach. - Uma vez você trabalhou, pacientemente, no meu tear. Agora o meu tear vai tecer o mais depressa possível para você. E em todo o Condado lançadeiras vão acelerar, em favor de Taran Errante.
Animados com a promessa da tecelã, os companheiros deixaram Gwenith. A uma pequena distância do Condado, Taran avistou um pequeno grupo de cavaleiros que seguia a passo ligeiro. À frente do grupo estava um jovem alto que gritou o nome de Taran e ergueu a mão para saudá-lo.
Com um grito de alegria, Taran apressou Melynlas para se encontrar logo com os cavaleiros.
- Llassar! - exclamou Taran, freando o cavalo ao lado do rapaz. - Não imaginei que nos encontraríamos tão longe do seu redil no Condado de Isav.
- As notícias viajam à sua frente, Errante - replicou Llassar. - Mas temi que você considerasse o nosso Condado muito pequeno, e passasse adiante.
- O tamanho de Isav não corresponde à coragem do Condado - disse Taran -, e todos vocês são necessários e bem-vindos. Mas, onde está seu pai? - perguntou, olhando de relance para o grupo de cavaleiros. - Onde está Drudwas? Não deixaria o filho viajar para tão longe sem sua companhia.
A fisionomia de Llassar contraiu-se.
- O inverno levou-o de nós. Sofro a sua falta, mas honro a sua memória ao fazer o que ele mesmo faria.
- E sua mãe? - perguntou Taran, enquanto Llassar e ele seguiam a cavalo para se reunir aos companheiros. - Também era a vontade dela que você deixasse a casa e o rebanho?
- Outros cuidarão do meu rebanho - respondeu o jovem pastor. - Minha mãe sabe o que uma criança deve fazer e o que um homem deve fazer. Sou um homem - acrescentou, com determinação -, e me considero assim desde que enfrentamos Dorath e seus bandidos naquela noite no redil.
- Sim, sim! - exclamou Gurgi. - E o destemido Gurgi também os enfrentou!
- Disso tenho certeza - observou Eilonwy, amargamente -, enquanto eu estava fazendo reverências e lavando os cabelos em Mona. Não sei quem é Dorath, mas se algum dia o encontrar, prometo descontar o tempo perdido.
Taran sacudiu a cabeça.
- Considere-se uma pessoa de sorte por não saber quem ele é. Infelizmente, conheço-o muito bem.
- Ele não nos perturbou desde aquela noite - disse Llassar. - Provavelmente não nos incomodará mais. Soube que deixou as terras do Condado e que percorre o oeste. Pôs a sua espada a serviço do Lorde-da-Morte, dizem. Pode até ser verdade. Mas se Dorath servir a alguém, haverá de ser a si mesmo.
- O apoio que você nos oferece de bom grado vale mais para nós do que qualquer ajuda que o Lorde de Annuvin possa contratar - disse Taran a Llassar. - O Príncipe Gwydion vai agradecer-lhe.
- Agradecer a você, melhor dizendo - disse Llassar. - Temos orgulho de trabalhar na lavoura e não de lutar; orgulho do trabalho de nossas mãos e não de nossas espadas. Jamais procuramos a guerra. Agora nos aproximamos do estandarte da Porca Branca porque é o estandarte do nosso amigo, Taran Errante.
O tempo piorava à medida que os companheiros avançavam no vale, e o agrupamento cada vez maior de homens dos Condados tornava a marcha mais lenta. Os dias eram muito curtos diante de todo o trabalho a fazer, mas Taran prosseguia com obstinação. Ao seu lado galopava Coll, incansável e sempre sorridente. Seu rosto largo, rosado e ressequido pelo vento e pelo frio estava quase escondido pela gola de um casacão forrado de lã de carneiro. Um cinturão de pesados elos de ferro prendia-se à cintura, e nas costas estava pendurado um escudo arredondado, de couro de boi. Coll havia encontrado um capacete de metal martelado, mas decidira que este não seria tão confortável na sua cabeça calva quanto o seu antigo chapéu de couro.
Taran sentia-se grato de poder contar com o bom senso de Coll e não hesitava em pedir-lhe conselhos. Quando os acampamentos ficaram muito cheios, foi Coll quem lhe deu a idéia de enviar grupos menores, mais ágeis, diretamente a Caer Dathyl, em vez de marchar de um Condado ao outro com uma tropa cada vez mais morosa. Llassar, Hevydd e Llonio mantinham-se na dianteira de Taran e eram sempre solícitos; mas quando Taran embrulhava-se num manto e deitava-se no chão enregelado durante alguns esparsos momentos de sono, era Coll que o guardava.
- Você é o tronco de carvalho no qual me apoio - disse Taran. - Mais ainda.
E deu uma risada.
- É a árvore inteira, e um grande guerreiro. Em vez de ficar radiante, Coll olhou-o de lado.
- Quer me engrandecer? - perguntou. - Então diga, de preferência, que sei cultivar nabos e colher maçãs muito bem. Não sou guerreiro nenhum, a não ser quando precisam de mim, por tempo determinado. O meu canteiro sente a minha falta tanto quanto eu sinto a dele - acrescentou Coll. - Não terminei de prepará-lo para o inverno, e por isso terei de pagar caro quando chegar a hora de plantar, na primavera.
Taran concordou fazendo um gesto com a cabeça.
- Haveremos de cavar e capinar juntos, grande cultivador de nabos... e grande amigo.
As fogueiras ardiam à noite. Amarrados, os cavalos estavam irrequietos. Em torno deles, os guerreiros adormecidos formavam um aglomerado de sombras intensas na escuridão. O vento frio cortava o rosto de Taran. Subitamente, o cansaço atingiu-lhe a medula dos ossos. Voltou-se para Coll.
- Também estarei mais tranqüilo - disse - quando voltar a ser um porcariço.
Taran recebeu a notícia de que o Rei Smoit havia formado, com os lordes dos cantreves, um exército numeroso e agora estava se dirigindo ao norte. Os companheiros também sabiam que determinados servos de Arawn tinham enviado bandos armados através de Ystrad, a fim de hostilizarem as colunas em marcha até Caer Dathyl. Por conseguinte, a missão de Taran tornou-se cada vez mais urgente, e o que lhe restava fazer era avançar a toda velocidade.
Os companheiros seguiram o caminho de Merin. Segundo Taran, era o Condado mais lindo de todos os que ele conhecera em suas andanças. Mesmo agora, em meio ao tumulto de guerreiros que se armavam, cavalos relinchando e cavaleiros aos gritos, os chalés brancos de telhados de colmo do vilarejo pareciam pacíficos, isolados de tudo. Taran passou a galope pelos campos margeados por cicutas e pinheiros altos. Com o coração carregado de memórias, parou diante de um conhecido chalé, cuja chaminé expelia fumaça e revelava o fogo que havia no seu interior. A porta abriu-se e surgiu um homem idoso, baixo e robusto vestindo uma túnica simples, marrom. Os cabelos cinza-escuros e a barba tinham sido cortados curtos; os olhos eram azuis e brilhantes.
- Prazer em vê-lo - disse a Taran, erguendo a mão enorme, coberta por uma camada de argila. - Quando você nos deixou era Errante, e ao retornar é comandante militar. Já ouvi falar muito do seu talento nesta atividade. Mas pergunto: esqueceu-se da habilidade na roda de ceramista? Ou será que desperdicei meu tempo ao ensiná-lo?
- Prazer em vê-lo, Annlaw Ceramista - respondeu Taran, descendo da sela de Melynlas e trocando um aperto de mão com o velho ceramista.
- Na verdade, desperdiçou - disse Taran, rindo -, pois o mestre teve um aprendiz desajeitado. Falta-me talento, mas não memória. Do pouco que aprendi, não me esqueci.
- Então mostre-me - desafiou o ceramista, tirando de uma gamela um punhado de argila molhada.
Com um sorriso triste, Taran sacudiu a cabeça.
- Parei apenas para cumprimentá-lo - respondeu. - Meu trabalho agora é com espadas, e não potes de barro.
Entretanto, fez uma pausa. A luz da lareira refletia nas prateleiras repletas de peças de cerâmica, jarras de vinho graciosas, potes delicadamente trabalhados. Rapidamente, segurou a argila fria e jogou-a em cima da roda que Annlaw começara a girar. O tempo era escasso, Taran bem o sabia; mas, quando o trabalho tomou forma nas suas mãos, por um momento sentiu-se livre do peso de sua outra tarefa. O tempo parecia retroceder, e ele ouvia apenas o ruído da roda e observava o formato da tigela nascida da argila irregular.
- Bom trabalho - disse Annlaw com a voz calma. E então acrescentou.
- Ouvi dizer que, por todos os Condados, ferreiros e tecelões trabalham para lhe fornecer armas e vestimentas. Mas minha roda não pode forjar uma espada nem tecer o manto de um guerreiro; além disso, a argila com a qual trabalho é moldada apenas com objetivos pacíficos. Infelizmente, não posso agora oferecer-lhe nada que seja útil.
- O senhor deu-me mais do que todos os outros - respondeu Taran -, e é o que vale mais para mim. Meu caminho não é o caminho do guerreiro; mas, se eu não sacar a espada agora, não haverá lugar em Prydain para a utilidade e beleza de qualquer trabalho artesanal. E se eu falhar, terei perdido tudo que obtive do senhor.
Sua mão hesitou, pois a voz estrondosa de Coll gritava o seu nome. Taran levantou-se de súbito da roda e, perante o olhar espantado de Annlaw, saiu às pressas do chalé, dando um rápido adeus ao ceramista. Coll já havia sacado a espada. Em seguida, Llassar reuniu-se a eles. Galoparam em direção ao acampamento um pouco além de Merin, enquanto Coll contava depressa a Taran que as sentinelas avistaram um bando de saqueadores.
- Daqui a pouco estarão aqui - avisou Coll. - Precisamos encontrá-los antes que ataquem nossos comboios. Na qualidade de bom cultivador de nabos, aconselho-o a reunir um destacamento de arqueiros e uma tropa de bons cavaleiros. Llassar e eu tentaremos atraí-los com um grupo menor de guerreiros.
Rapidamente estabeleceram os planos. Taran cavalgou à frente, convocando os cavaleiros e os soldados de infantaria que, de posse das armas, seguiram-no. Ordenou a Eilonwy e Gurgi que permanecessem a salvo junto aos carros; sem parar para ouvir seus protestos, saiu a galope em direção à floresta de pinheiros que cobria os morros distantes.
Os saqueadores estavam mais armados do que Taran esperara. Desceram velozmente do cimo coberto de neve. A um sinal de Taran, os arqueiros correram e atiraram-se numa vala rasa, enquanto os guerreiros montados dos Condados voltavam-se para o ataque. Os cavaleiros enfrentaram-se, dando início a um tumulto de cascos e espadas. Em seguida, Taran levou a trompa aos lábios. Ao ouvir o sinal agudo e vibrante, os arqueiros ergueram-se.
Taran sabia que, apesar da violência, o confronto não passava de uma escaramuça; no final, quando o bando de Coll e Llassar havia derrubado muitos oponentes, os assaltantes fugiram. Contudo, aquela batalha tinha sido a primeira que Taran comandara como chefe militar do Príncipe de Don. O povo dos Condados vencera, sem qualquer baixa, e com apenas alguns feridos. Embora extenuado e sem energia, o coração de Taran batia forte com a alegria da vitória, enquanto ele guiava os guerreiros exultantes, saindo da floresta em direção a Merin.
Ao chegar ao topo da colina, Taran viu labaredas e colunas negras de fumaça.
De início, pensou que o acampamento tinha se incendiado. Impeliu Melynlas a descer a colina na máxima velocidade. Ao chegar mais perto e ver as línguas avermelhadas de encontro ao pôr-do-sol manchado de sangue, e a fumaça que se erguia e se espalhava por todo o vale, compreendeu que o Condado estava em chamas.
Afastando-se da tropa, entrou em Merin a galope. Entre os guerreiros do acampamento viu, de relance, Eilonwy e Gurgi lutando em vão para aplacar as chamas. Coll chegara ao vilarejo antes de Taran. Taran desmontou de Melynlas e correu ao seu encontro.
- Tarde demais! - exclamou Coll. - Os cavaleiros atacaram o Condado de surpresa, pela retaguarda. Merin foi atingido pelas tochas e seus habitantes pelas espadas.
Dando um grito terrível de tristeza e revolta, Taran correu pelos chalés em chamas. O colmo dos telhados queimara e muitas paredes tinham rachado e desmoronado. Assim aconteceu ao chalé de Annlaw, e no local ainda havia fumaça; as ruínas estavam a céu aberto. O corpo do ceramista jazia no meio do entulho. Todo o trabalho artesanal estava destroçado. A roda virada, a tigela caída, em pedaços.
Taran caiu de joelhos. A mão de Coll pousou no seu ombro, mas ele se afastou e olhou fixamente para o antigo guerreiro.
- Eu cantei vitória hoje? - sussurrou com a voz rouca.
- Pequeno consolo para a gente que certa vez me recebera como amigo. E será que eu os ajudei? O sangue de Merin está nas minhas mãos.
Mais tarde, Llassar falou em particular com Coll.
- O Errante não quer se afastar do chalé do ceramista
- murmurou o pastor. - Para qualquer homem, já é difícil suportar o próprio ferimento. Mas quem detém o comando sofre pelos ferimentos de todos que o seguem.
- Que ele fique onde quiser. Vai se sentir melhor quando amanhecer... embora jamais consiga se curar - acrescentou.
Chegada a metade do inverno, o último grupo de combate havia se formado e os guerreiros do Condado partiram para Caer Dathyl. Com um destacamento de cavaleiros, Llassar, Hevydd e Llonio permaneceram com Taran, que agora conduzia os amigos para o noroeste, cortando as Montanhas Llawgadarn. A tropa tinha capacidade para garantir o avanço, sem retardar a viagem.
Duas vezes foram atacados por assaltantes, e duas vezes os integrantes do grupo de Taran derrotaram-nos, infligindo-lhes muitas perdas. Os cavaleiros, depois de aprender uma dura lição do chefe militar que cavalgava sob a flâmula da Porca Branca, esquivaram-se e não mais se atreveram a importunar as tropas. Rapidamente, e sem impedimentos, os companheiros atravessaram os contrafortes das Montanhas da Águia. Gurgi ainda carregava, com orgulho, o estandarte que estalava e esvoaçava ao vento frio que chegava das alturas, chicoteando. No seu manto Taran levava um talismã: um fragmento chamuscado de uma cerâmica do Condado de Merin.
Nas imediações de Caer Dathyl, batedores trouxeram a notícia de mais uma coluna. Taran foi em frente, a galope. Na vanguarda de um grupo de lanceiros, vinha Fflewddur Fflam.
- Grande Belin! - exclamou o bardo, fazendo Llyan se apressar para ficar ao lado de Taran. - Gwydion vai exultar! Os lordes do norte armaram-se com todas as suas forças. Quando um Fflam está à frente... sim, quero dizer, eu os convoquei em nome de Gwydion, caso contrário eles não teriam vindo com tanta boa vontade. Mas não importa, estão a caminho. Ouvi dizer que o Rei Pryderi também reuniu suas tropas. Então você verá o que é um verdadeiro exército! Calculo que metade dos cantreves do oeste está sob seu comando.
- Ah, sim - acrescentou Fflewddur, quando Taran avistou Glew, mal acomodado em cima de um cavalo cinzento de dorso caído e cascos pesados -, o homenzinho ainda está conosco.
Aquele que outrora fora um gigante, ocupado em roer um osso, deu apenas um sinal de que reconhecera Taran.
- Não sabia o que fazer com ele - disse Fflewddur em voz baixa. - Não tive coragem de mandá-lo embora, não com todos esses exércitos espalhados por aí. Então, aqui está ele. Não parou de se lamuriar; um dia são os pés que lhe doem, outro, a cabeça, e aos poucos todo o resto. E depois, entre as refeições, vem com essas histórias intermináveis do tempo em que era um gigante.
- O pior de tudo é que - continuou Fflewddur com certo desânimo -, com essa cantilena, ele está quase conseguindo que eu tenha pena dele. Ele é e sempre será uma doninha miserável. Mas quando eu paro e penso no assunto... ele tem s/do desconsiderado, desprezado. Agora, quando Glew era um gigante...
O bardo parou de falar e bateu a mão na testa.
- Chega! Se continuo essa conversa acabo me convencendo! Venha conosco! - exclamou, soltando a harpa do emaranhado de arcos, aljavas de flechas, broquéis e tiras de couro que levava às costas. - Todos os amigos estão novamente reunidos. Vou tocar para você uma canção para comemorar e, ao mesmo tempo, nos alegrar.
Animados pela música do bardo, os companheiros seguiram viagem juntos. Logo surgiu a fortaleza de Caer Dathyl, dourada, ao sol do inverno. Suas torres majestosas elevavam-se como águias impacientes para atingirem o céu. Fora das muralhas, e circundando a fortaleza, estavam os acampamentos e barracas embandeiradas dos lordes, que vieram demonstrar lealdade à Casa Real de Don. Mas não foi a visão das bandeiras nem dos emblemas do Sol Dourado que fez o coração de Taran disparar, e sim a consciência de que os companheiros e os guerreiros dos Condados tinham chegado a salvo ao final de uma jornada, para se aquecer e descansar pelo menos por algum tempo. A salvo... Taran deteve-se nos próprios pensamentos e as lembranças voltaram: do Rei de Mona que dormia diante dos portões de Caer Cadarn; de Annlaw Ceramista. E seus dedos seguraram o pedaço de cerâmica.
A Chegada de Pryderi
Caer Dathyl era um acampamento armado, onde faíscas saltavam das oficinas dos armeiros num turbilhão incandescente. Os pátios amplos vibravam com o impacto dos cascos ferrados dos cavalos e as notas agudas das trompas de batalha. Embora os companheiros estivessem agora em segurança no interior das muralhas, a Princesa Eilonwy não quis trocar o traje rústico de guerreiro por uma roupa mais adequada. O máximo que ela consentiu... e com relutância... foi lavar os cabelos. Algumas damas da corte ainda estavam presentes, pois as demais tinham sido mandadas às fortalezas do leste, por questões de segurança. No entanto, Eilonwy recusava-se a permanecer nos aposentos onde elas fiavam e teciam.
- Pode ser que Caer Dathyl seja o castelo mais glorioso de Prydain - declarou -, mas damas da corte são damas da corte em qualquer lugar, e eu já tolerei mais do que o tolerável do bando de matracas da Rainha Teleria. Escutando suas risadinhas e fofocas... Ora! É pior que sentir as orelhas serem cutucadas com penas. Pelo fato de ser uma princesa, quase me afogaram na água ensaboada, e isso já foi o suficiente. Meus cabelos ainda estão pegajosos como algas. Nada de saias. Estou confortável assim mesmo. De qualquer maneira, perdi todos os meus vestidos e, obviamente, não faço questão de tirar medidas para fazer outros. As roupas que estou usando vão me servir muito bem.
- Ninguém se preocupou em me perguntar se meu traje é apropriado - observou Glew, contrariado, embora as roupas do antigo gigante, segundo Taran podia observar, estivessem em melhores condições do que os trajes dos companheiros. - Mas tratamento reles é coisa a que estou acostumado. Na minha caverna, no tempo em que eu era um gigante, tudo era muito diferente. Generosidade! Infelizmente, não existe mais. Agora lembro-me de quando eu e os morcegos...
Taran não tinha nem energia para rebater as palavras de Eilonwy, nem tempo para ouvir Glew. Ao perceber a chegada dos companheiros, Gwydion mandou chamar Taran à Ala dos Tronos. Enquanto Coll, Fflewddur e Gurgi providenciavam equipamento e provisões para os guerreiros que viajavam com eles, Taran acompanhou um guarda até a ala. Ao encontrar Gwydion reunido com Math, Filho de Mathonwy, Taran hesitou em se aproximar; mas Math acenou para ele e Taran ajoelhou-se diante do soberano de barba branca.
O Rei Supremo tocou o ombro de Taran com a mão encarquilhada mas firme, e ordenou que se levantasse. Desde a batalha entre os Filhos de Don e os exércitos do Rei Cornudo, Taran não estivera na presença de Math, Filho de Mathonwy, e observava que o tempo afetara profundamente o monarca da Casa Real. Comparado a Dallben, o rosto de Math estava bem mais desgastado e enrugado; em torno de sua testa, a Coroa Dourada de Don parecia um fardo cruel. Ainda assim, seu olhar era vivo e repleto de orgulho inabalável. Além disso, Taran percebia nele uma tristeza tão profunda que seu próprio coração afligiu-se e ele baixou a cabeça.
- Olhe para mim, Porqueiro-Assistente - ordenou Math num tom de voz tranqüilo. - Não receie ver o que eu mesmo sei. A mão da morte tenta alcançar a minha e eu não me recuso a segurá-la. Há muito ouvi a trompa de Gwyn, o Caçador, que não deixa de chamar nem mesmo um rei à derradeira morada.
- Seria uma satisfação atender ao chamado - disse Math -, pois uma coroa é um senhor impiedoso, mais duro que o bastão de um porcariço: enquanto o bastão é útil a quem quer se levantar, uma coroa pesa, apesar do esforço que um homem faz para usá-la com leveza. O que me entristece não é a morte; é ver, no final de minha vida, o sangue derramado na terra onde procurei manter a paz.
"Você conhece a história de nossa Casa Real; sabe de que maneira, muito tempo atrás, os Filhos de Don viajaram em seus barcos dourados até Prydain, e de que maneira a população procurou se defender de Arawn, o Lorde-da-Morte, que se apropriara dos tesouros de Prydain, transformando um solo rico e fértil em terra improdutiva. Desde então, os Filhos de Don têm atuado como escudo contra os ataques de Annuvin. Mas se o escudo agora se romper, tudo o mais vai se despedaçar."
- Nós alcançaremos a vitória - disse Gwydion. - O Lorde de Annuvin está arriscando tudo, mas sua força é também sua fraqueza, pois pode ser que, se resistirmos a ele, seu poder seja abalado para sempre.
- Boas notícias, e más também, chegaram até nós - prosseguiu Gwydion. - Quanto às últimas, o Rei Smoit e seus exércitos estão envolvidos em combate no Vale do Ystrad. Ele não pode, apesar de toda a sua bravura, insistir em seguir o caminho até o norte antes do final do inverno. Mesmo assim, ele nos presta um bom serviço, pois os traidores, entregues pelos guerreiros aos lordes sulistas, estão detidos e impossibilitados de se reunirem a outras tropas de Arawn. Os soberanos dos reinos mais distantes do norte estão se aproximando lentamente, pois, para eles, o inverno é um inimigo mais implacável do que Arawn.
"Mais animadora é a notícia de que poucos dias de marcha separam os exércitos dos Reinos Ocidentais da nossa fortaleza. Olheiros já os avistaram. É um exército maior do que qualquer outro já constituído em Prydain, e o próprio Lorde Pryderi está no comando. Ele tem feito tudo que lhe pedi, e mais ainda. Minha única preocupação é que os servos de Arawn possam dar-lhe combate e desviá-lo antes que ele chegue a Caer Dathyl."
- Entre as boas notícias, e não menos importante - acrescentou Gwydion, um sorriso iluminando-lhe as feições extenuadas -, é a chegada de Taran de Caer Dallben e os guerreiros dos Condados. Contei com ele, plenamente, e tenho mais ainda a lhe pedir.
Em seguida, Gwydion falou da organização da cavalaria e infantaria de Taran. O Rei Supremo ouviu atentamente e concordou com um gesto de cabeça.
- Agora vá realizar sua missão - disse Math a Taran -, pois chegou o dia em que um Porqueiro-Assistente deverá ajudar a suportar o fardo de um rei.
Nos dias que se seguiram, os companheiros prestaram serviços onde quer que fosse necessário, conforme Gwydion ordenava. Glew também, até certo ponto, dava a sua colaboração... mediante eficaz insistência de Fflewddur Fflam, e não por livre escolha. Sob o olhar vigilante de Hevydd, o Ferreiro, o antigo gigante passou a bombear os foles nas ferrarias, onde se queixava copiosamente de bolhas nas mãos pequenas.
Mais do que um bastião, Caer Dathyl era um local de lembranças e beleza. No seu interior, na extremidade de um de seus vários pátios, havia uma clareira com cicutas altas, e entre elas havia túmulos em honra aos antigos reis e heróis. Salões revestidos de madeira-de-lei ornamentada ostentavam coleções de armas de linhagem antiga e nobre, e estandartes cujas insígnias eram celebrizadas nas canções dos bardos. Em outras edificações reuniam-se tesouros de peças artesanais provenientes de cada cantreve e Condado de Prydain; foi com o coração apertado que Taran viu entre essas peças uma jarra de vinho estilizada, feita a mão por Annlaw Ceramista.
Nos intervalos das tarefas, os companheiros descobriam muitas coisas que os deixavam maravilhados. Coll jamais estivera em Caer Dathyl e não conseguia tirar os olhos das arcadas e torres que pareciam ultrapassar as montanhas cobertas de neve, que se erguiam além das muralhas.
- É muito bonito - reconheceu Coll - e construído com refinamento. Mas as torres fazem-me pensar nas macieiras que deveriam ter sido bem podadas. Abandonado como está, meu pomar não vai produzir mais que as pedras deste pátio.
Um homem gritou por eles e acenou da entrada da porta de um dos prédios menores e mais simples. Era alto, seu rosto bastante envelhecido; cabelos brancos caíam-lhe sobre os ombros. O manto rústico de um guerreiro estava jogado, displicentemente, por cima do seu ombro, mas do cinturão de couro liso não pendia nem espada nem punhal. No momento em que os companheiros caminhavam ao seu encontro, Fflewddur, de súbito, correu até o homem e, sem se importar com a neve, ajoelhou-se diante dele.
- Eu é que deveria, talvez, reverenciá-lo, Fflewddur Fflam, Filho de Godo - disse o homem, abrindo um sorriso -, e pedir-lhe que me perdoe.
Voltou-se para os companheiros e estendeu a mão.
- Conheço-os melhor do que vocês me conhecem - disse, e riu com todo o gosto diante da surpresa deles. - Meu nome é Taliesin.
- O Mestre dos Bardos de Prydain - disse Fflewddur, vibrando de orgulho e satisfação - deu-me de presente a harpa. Devo-lhe muito.
- Não sei se concordo com isto - respondeu Taliesin, enquanto os companheiros o acompanhavam até um recinto espaçoso, mobiliado apenas com algumas cadeiras e bancos sólidos e uma longa mesa de madeira trabalhada que brilhava à luz de uma lareira crepitante. Livros antigos, pilhas e rolos de pergaminho cobriam as paredes e atingiam as sombras do teto sustentado por vigas.
- Sim, meu amigo - disse o Mestre dos Bardos a Fflewddur -, pensei muito no presente que lhe dei. A verdade é que tem ocupado um pequeno lugar na minha consciência.
Lançou ao bardo um olhar perspicaz mas repleto de generosidade e bom humor. De início, Taran pensara que Taliesin era um homem de idade avançada; agora não conseguia avaliar a idade do Mestre dos Bardos. Seus traços fisionômicos, embora bem marcados, pareciam repletos de uma estranha mistura de sabedoria antiga e juventude. Não usava nada que revelasse a sua posição, e Taran percebeu que adornos não seriam necessários. Tal e qual Adaon, seu filho e companheiro de Taran de muito tempo atrás, os olhos acinzentados, profundos, pareciam ver além do que era visível, e no rosto e na voz do Mestre dos Bardos o senso de autoridade era muito maior do que aquele de um chefe militar, mais autoritário do que aquele de um rei.
- Quando eu lhe dei a harpa, já conhecia a natureza do instrumento - continuou a dizer o Mestre dos Bardos. - E conhecendo a sua própria natureza, Fflewddur, desconfiei que você teria sempre algum tipo de problema com as cordas,
- Problema? - indagou Fflewddur. - Ora, nem um pouco! Nem por um momento...
Duas cordas arrebentaram, e ressoaram de tal forma que Gurgi se assustou. O semblante de Fflewddur, até a ponta do nariz, enrubesceu.
- O cerne da questão é que, pensando bem, o querido traste tem me forçado a dizer a verdade... ah, digamos, um pouco mais do que de costume. Mas admito que dizer a verdade não faz mal a ninguém, muito menos a mim.
Taliesin sorriu.
- Então você aprendeu uma pequena lição. Entretanto, o presente foi uma brincadeira, embora não apenas uma brincadeira. Digamos, quem sabe, o riso de um coração para o outro. Mas você tem sido muito paciente com ela. Agora ofereço-lhe o que você quiser - disse.
Taliesin mostrou uma prateleira onde havia uma variedade de harpas, algumas mais novas, outras mais velhas, e algumas com uma curvatura mais delicada que o instrumento que Fflewddur levava. Com um grito de alegria, Fflewddur correu para perto delas, tocando carinhosamente as cordas de cada uma, admirando o trabalho artesanal, voltando-se de uma para a outra e assim por diante.
Por um tempo ficou indeciso, olhando tristemente as cordas de seu instrumento que acabaram de se romper, os arranhões e falhas que marcavam o cepo.
- Ah... sim, bem, é uma honra - murmurou desnorteado -, mas este traste está muito bom para mim. Tem vezes, juro, que ela parece tocar por conta própria. Nenhuma é tão afinada quanto esta; quando as cordas estão presas, bem entendido. Encaixa-se bem no meu ombro. Não que eu deprecie estas aqui, mas o que quero dizer é que, de certo modo, já nos acostumamos um ao outro. Sim, agradeço muito. Mas não a trocaria.
- Então, muito bem - respondeu Taliesin. - E vocês - disse o Mestre dos Bardos aos companheiros -, já viram muitos tesouros em Caer Dathyl. Mas já conhecem o seu verdadeiro orgulho, tesouro inestimável? Está aqui - disse calmamente, fazendo um gesto ao redor do recinto. - Armazenado nesta Ala da Sabedoria está grande parte do antigo saber de Prydain. Embora Arawn, o Lorde-da-Morte tenha roubado os segredos dos ofícios de muitos artífices, não conseguiu apropriar-se das letras e músicas de nossos bardos. Neste local têm sido guardados com todo o cuidado. De suas canções, nobre amigo, há muitas.
- A memória sobrevive ao objeto lembrado - disse Taliesin. - E todas as pessoas compartilham o saber de todas as outras. Embaixo desta sala há tesouros ainda mais valiosos.
O Mestre dos Bardos sorriu.
- Assim é a poesia. A parte mais sublime é aquela que está mais escondida. Lá encontra-se também a Ala dos Bardos. Infelizmente, Fflewddur Fflam - lamentou Taliesin -, nesta ala somente um verdadeiro bardo pode entrar. Embora, um dia, talvez você possa nos fazer companhia.
- Oh, sabedoria de nobres bardos! - exclamou Gurgi, com os olhos arregalados de admiração. - Faz a cabeça mimosa e humilde de Gurgi girar e rodopiar! Tristeza, tristeza, pois ele não tem sapiência alguma! Mas poderia viver sem mastigar e mascar para obtê-la!
Taliesin apoiou a mão no ombro da criatura.
- Pensa que não tem nenhuma sabedoria? - perguntou. - Não é verdade. Há tantos tipos de sabedoria quanto os padrões que um tear pode compor. O seu é aquele de um coração bom e gentil. É raro, e seu valor muito maior.
- Assim é o saber de Coll, Filho de Collfrewr - disse o Mestre dos Bardos -, e acrescente a isso o conhecimento do solo, o dom de reviver o solo estéril, fazendo-o florescer numa colheita generosa.
- Minha horta faz o trabalho, e não eu - disse Coll, a calva tornando-se rosada tanto de satisfação quanto de modéstia. - E se me lembro bem do estado em que a deixei, vou ter de esperar muito por outra colheita.
- Era na Ilha de Mona que eu deveria conquistar o saber - interveio Eilonwy. - Foi por isso que Dallben me mandou para lá. Tudo o que aprendi foi costurar, cozinhar e fazer reverências.
- Aprender não é o mesmo que saber - interrompeu Taliesin com uma risada amável. - Em suas veias, Princesa, corre o sangue das feiticeiras de Llyr. Sua sabedoria pode ser a mais secreta de todas porque você sabe sem saber; assim como o coração sabe bater.
- É triste pensar na minha sabedoria - disse Taran. - Eu estava ao lado de seu filho quando ele se deparou com a morte. Entregou-me um broche de grandes poderes, e enquanto eu o usei, compreendi muitas coisas, e o que estava oculto tornava-se claro para mim. O broche não me pertence mais, se é que um dia foi meu, de verdade. O que eu sabia, na ocasião, agora relembro como se fosse um sonho, pairando além do meu poder de alcançá-lo.
Uma sombra de tristeza passou pelo rosto de Taliesin.
- Há aqueles que precisam primeiro conhecer a derrota, o desespero, a tristeza. De todos os caminhos que levam à sabedoria, esse é o mais cruel e o mais longo. Você é um daqueles que precisa fazer tal percurso? Nem eu sei dizer. Se é o que você precisa fazer, tenha coragem. Aqueles que chegam ao final conseguem mais do que sabedoria. Assim como a lã rústica torna-se um tecido, e o barro cru uma taça, assim são aqueles que alteram e modelam o conhecimento para outros, e o que doam é mais importante do que aquilo que ganharam.
Taran estava prestes a falar, mas as notas de um toque de trompa soaram da Torre Central e ouviram-se gritos dos guardiões das torres. Sentinelas gritaram que estavam avistando o exército do Rei Pryderi. Taliesin subiu com os companheiros por um largo lance de escada de pedra, onde, do alto da Ala da Sabedoria, podiam ver além das muralhas da fortaleza. Taran teve apenas uma rápida visão do reflexo do sol do oeste nas fileiras de lanças que cobriam o vale. Em seguida, figuras montadas separaram-se do conjunto e atravessaram a extensão manchada de neve. Em contraste com o prado, o cavaleiro que liderava o grupo destacava-se com as vestimentas nos tons vermelho, preto e dourado, e a luz do sol cintilava no seu capacete dourado. Taran não podia mais ficar observando, pois os guardas estavam gritando os nomes dos companheiros, chamando-os à Ala Nobre.
Gurgi apanhou o estandarte da Porca Branca, e seguiu Taran, correndo. Os companheiros dirigiram-se rapidamente à Ala Nobre. Uma longa mesa tinha sido preparada e à cabeceira estavam sentados Math e Gwydion. Taliesin sentou-se à esquerda de Gwydion; à direita de Math achava-se um trono vazio, enfeitado com as cores da Casa Real do Rei Pryderi.
De cada lado estavam os lordes de Don, nobres dos cantreves e chefes militares.
Em torno do salão estavam perfilados os porta-estandartes. Aflito, Gurgi olhou à sua volta; atendendo ao gesto de Gwydion, posicionou-se entre eles. A pobre criatura parecia frágil e desconcertada no meio dos guerreiros inflexíveis. Contudo, os amigos dirigiram-lhe olhares animadores, e Coll abriu um sorriso largo e deu uma piscadela, fazendo Gurgi erguer, ao mesmo tempo, a cabeça peluda e o estandarte improvisado, com maior orgulho do que qualquer um dos que estavam presentes na Ala Nobre. A situação de Taran não foi menos embaraçosa quando Gwydion acenou para ele e os outros, indicando que ocupassem os lugares entre os chefes militares; por sua vez, Eilonwy, ainda vestindo o traje de guerreiro, sorria satisfeita e parecia estar bem à vontade.
- Hum! - fez Eilonwy. - Na minha opinião, Hen Wen está muito bonita e, a propósito, melhor do que a maioria dos emblemas. Você foi muito inconveniente ao questionar se os olhos dela eram azuis ou castanhos. Bem, posso lhe garantir que isso não é tão estranho quanto as cores usadas nos bordados de alguns estandartes...
Eilonwy parou de falar, pois, de súbito, as portas se abriram e o Rei Pryderi entrou na Ala Nobre. Todos os olhares voltaram-se para a figura do rei, enquanto ele se dirigia rapidamente à mesa do conselho. Era tão alto quanto o próprio Gwydion, e seu traje resplandecia à luz das tochas. Não usava elmo; o que Taran havia visto foram os cabelos longos que reluziam como ouro em sua fronte. Ao seu lado pendia-lhe uma espada à mostra, pois, segundo os costumes de Pryderi, sussurrou Fflewddur ao ouvido de Taran, a arma jamais era embainhada até que a guerra fosse vencida. Atrás dele seguiam falcoeiros levando nos punhos enluvados falcões com as cabeças cobertas por capuzes; seus chefes militares ostentavam o emblema do falcão vermelho da Casa de Pwyll bordado nos mantos; e lanceiros escoltavam o porta-estandarte.
Gwydion, vestido do mesmo modo que o Mestre dos Bardos, com os trajes de guerreiro sem adornos, levantou-se para cumprimentá-lo, mas Pryderi parou antes de chegar à mesa do conselho e, de braços cruzados, olhou ao redor da Ala, em direção aos reis dos cantreves.
- Saudações, lordes! - exclamou Pryderi. - Que prazer em vê-los aqui reunidos. A ameaça de Annuvin os faz esquecer as próprias rixas. Mais uma vez vêm em busca da proteção da Casa de Don, como pintinhos ao ver o falcão acercando-se.
A voz de Pryderi não escondia o sarcasmo. Taran ficou perplexo diante do tom áspero do pronunciamento do rei. O próprio Rei Supremo lançou-lhe um olhar sagaz, embora, ao falar, suas palavras fossem equilibradas e sérias.
- O que se passa, Lorde Pryderi? Fui eu quem convocou aqueles que se dispuseram a nos apoiar, pois a segurança de todos está em risco.
Pryderi deu um sorriso amargo. Seus belos traços fisionômicos enrubesceram-se devido ao frio ou à raiva, Taran não saberia dizer; o sangue tingiu as maçãs salientes do seu rosto no momento em que inclinou para trás a cabeça dourada e, sem se abalar, fitou o olhar firme do Rei Supremo,
- Alguém teria hesitado ao se achar em perigo? - replicou Pryderi. - Os homens reagem apenas a um punho de ferro ou a uma espada nas suas gargantas. Aqueles que lhe prestam obediência o fazem para atender aos seus próprios interesses. No meio deles, os lordes de cantreves nunca estão em paz; ao contrário, cada qual está sempre disposto a se aproveitar da fraqueza do vizinho. Será que no íntimo são melhores que Arawn, o Lorde-da-Morte?
Murmúrios expressavam o espanto e a revolta dos reis dos cantreves. Math silenciou-os com um rápido gesto.
Então Gwydion falou.
- Julgar a natureza íntima de um ser está além da sabedoria de qualquer homem - disse ele -, pois ali o bem e o mal se misturam. Mas estes são assuntos que devem ser debatidos ao redor de uma fogueira de acampamento, como já se passou comigo e com você; ou ao final de um banquete, quando a luz das tochas já está enfraquecida. Neste momento nossos atos devem proteger Prydain. Aproxime-se, Pryderi, Filho de Pwyll. Há um lugar reservado para você e temos muitos planos a fazer.
- Você me convocou, Príncipe de Don - respondeu Pryderi num tom de voz inflexível. - Estou aqui. Para unir-me a você? Não. Para exigir a sua rendição.
A Fortaleza
Por um instante, ninguém conseguiu falar. Os sinos de prata nas pernas dos falcões de Pryderi tilintaram levemente. Em seguida, Taran levantou-se, espada em punho. Os lordes dos cantreves, enraivecidos, gritaram e sacaram suas armas. A voz de Gwydion elevou-se, exigindo silêncio.
Pryderi não se moveu. Seus guardas haviam desembainhado as espadas e formaram um círculo à sua volta. O Rei Supremo levantara-se do trono.
- Você está se divertindo às nossas custas, Filho de Pwyll - disse Math, em tom grave -, mas não se deve brincar com traição.
Pryderi ainda estava de pé com os braços cruzados. Suas feições douradas tornaram-se escuras como o ferro.
- Não pense que é brincadeira - respondeu -, nem me chame de traidor. Refleti durante muito tempo, com todo o cuidado, e foi grande a minha angústia. Agora percebo que somente assim poderei salvar Prydain.
O semblante de Gwydion estava pálido e seus olhos sérios.
- Você fala como um louco - retrucou o Príncipe de Don. - As falsas promessas de Arawn embotaram a sua razão? Está tentando me dizer que algum súdito do Lorde-da-Morte serve qualquer reino que não seja Annuvin?
- A mim Arawn não pode prometer nada que eu não tenha - respondeu Pryderi. - Mas Arawn fará o que os Filhos de Don não conseguiram: eliminar as guerras intermináveis dos cantreves e levar a todos os lugares a paz desconhecida.
- A paz da morte e o silêncio da escravidão amordaçada - replicou Gwydion.
Pryderi olhou ao redor. Nos seus lábios havia um sorriso cruel.
- Estes homens merecem coisa melhor, Lorde Gwydion? As vidas de todos eles juntos valem ao menos uma das nossas? Brigões rudes que se intitulam lordes de cantreves não conseguem nem ao menos governar suas propriedades.
- Escolho o que é melhor para Prydain - continuou.
- Não sirvo Arawn. O machado é o amo do lenhador? No final, Arawn vai se submeter a mim.
Horrorizado, Taran ouvia as palavras que Pryderi dirigia ao Rei Supremo.
- Deponham as armas. Abandonem os fracos que em busca de proteção se agarram a vocês. Rendam-se a mim agora. Caer Dathyl não sofrerá ataque, nem vocês, nem aqueles que eu considerar dignos de governar comigo.
Math ergueu a cabeça.
- Quem será o pior? - disse em voz baixa, sem afastar os olhos de Pryderi. - Quem será pior do que aquele que usa a máscara do bem?
Um dos lordes levantou-se repentinamente da mesa do conselho, a arma erguida, e investiu contra Pryderi.
- Não o toque! - exclamou Math. - Nós o recebemos como amigo. Ele parte como inimigo, mas em segurança. Se alguém fizer qualquer mal até mesmo a uma pena de seus falcões, pagará com a vida.
- Afaste-se daqui, Pryderi, Filho de Pwyll - disse Gwydion, a frieza do tom de sua voz tornando ainda mais terrível a sua indignação. - A angústia que sinto não é menor que a sua. Nosso companheirismo foi rompido. Entre nós haverá somente as tropas enfileiradas, e nossa única ligação, a ponta de uma espada.
Pryderi não respondeu; girou sobre os calcanhares e, acompanhado por seus guardas, saiu às pressas da Ala Nobre. Enquanto montava no seu corcel, a notícia correu entre os guerreiros que, das suas posições, olhavam em silêncio. Além das muralhas, os exércitos de Pryderi tinham acendido archotes e o vale flamejava até onde o olhar de Taran podia alcançar. Pryderi atravessou os portões, o vermelho e o dourado de seu traje cintilando como os próprios archotes, e galopou ao encontro do exército à sua espera. Taran e os homens do Condado observavam, desesperados; eles e todos que estavam em Caer Dathyl sabiam que, assim como um falcão mortífero, aquele rei fulgurante apossara-se de suas vidas e agora as levava embora.
A expectativa de Gwydion era de que o exército do Rei Pryderi atacasse assim que surgisse a primeira luz da manhã e, na fortaleza, os homens trabalharam durante toda a noite, preparando-se para repelir o cerco. No entanto, quando amanheceu o dia e o sol pálido se ergueu, foi possível observar que o exército de Pryderi havia feito não mais que um pequeno avanço. Da muralha, Taran, Fflewddur e Coll, e outros líderes militares estavam observando, ao lado de Gwydion, que percorria com os olhos o vale e os momos que se erguiam na planície. Não caíra neve durante alguns dias; nos barrancos e fissuras rochosas ainda havia faixas e manchas brancas presas nas fendas, fazendo lembrar tufos de lã, mas a maior parte da vasta planície não tinha neve. A relva seca aparecia sob a forma de manchas marrons por baixo de uma capa de gelo, esfarrapada.
Olheiros trouxeram a notícia de que os guerreiros de Pryderi ocupavam todo o vale, e com as tropas em fileira bloqueavam a passagem. Entretanto, nem grupos pequenos de soldados nem colunas de cavaleiros haviam sido avistados em locais mais distantes. Baseando-se nisso e na posição da infantaria e da cavalaria, os observadores concluíram que o ataque ocorreria através de uma grande investida frontal, como um punho de ferro contra os portões de Caer Dathyl.
Gwydion acenou com a cabeça e disse:
- O objetivo de Pryderi é atacar com toda a força, embora isso vá lhe custar caro. Ele pode esbanjar as vidas de seus guerreiros, pois sabe que não podemos pagar com a mesma moeda.
O príncipe franziu o cenho e esfregou no queixo as costas da mão protegida pela luva de ferro. Seus olhos verdes estreitaram-se ao observar o vale atentamente, e o rosto vincado fazia lembrar um lobo farejando inimigos.
- Lorde Pryderi é arrogante - murmurou. Gwydion virou-se bruscamente para os chefes militares.
- Não vou esperar o ataque. Se o fizesse, na certa resultaria em derrota. Pryderi conta com forças em número suficiente para nos inundar como uma onda. Daremos combate fora da fortaleza, e nós mesmos enfrentaremos a onda antes que ela chegue à sua crista. Math, Filho de Mathonwy, vai comandar as defesas internas. Somente em último caso, e se for inevitável, é que nos refugiaremos na fortaleza para oferecer resistência.
Por alguns instantes, Gwydion olhou na direção das alas e torres do castelo que agora captavam os primeiros raios de sol.
- Os filhos de Don ergueram Caer Dathyl com as próprias mãos e construíram-no não como um escudo contra Arawn, mas como abrigo para a sabedoria e beleza de Prydain. Eu faria tudo que estivesse ao meu alcance para derrotar Pryderi, e, do mesmo modo, faria tudo para evitar a destruição de Caer Dathyl. Pode ser que consigamos realizar esses dois feitos. Ou não. Portanto, precisamos guerrear não como bois lentos, mas como lobos ágeis e raposas astutas.
O Príncipe de Don falou rapidamente aos chefes militares, expondo com clareza as tarefas de cada um. Taran estava apreensivo. Quando menino, sonhara em ocupar um lugar entre os homens feitos e também acreditara ser capaz de se inserir em tal lugar. Agora, no meio dos guerreiros grisalhos e experientes, sua força parecia limitada, seu conhecimento falho. Coll, percebendo os pensamentos de Taran, piscou para animá-lo. O lavrador robusto e experiente, Taran bem o sabia, prestara toda a atenção às palavras de Gwydion. Mesmo assim, Taran desconfiava que um lado do coração de Coll estava distante, ocupado e satisfeito no canteiro de nabos.
Durante boa parte da manhã, o exército de Pryderi manteve a posição, enquanto os defensores formavam, depressa, suas próprias fileiras. A certa distância além das muralhas de Caer Dathyl, homens fortemente armados, sob o comando do próprio Gwydion, estavam preparados para enfrentar o ímpeto do ataque de Pryderi. Fflewddur e Llyan, com uma companhia de bardos-guerreiros, mantinham um posto do outro lado do vale. A cavalaria dos Condados ficaria no flanco da investida de Pryderi e seu objetivo era penetrar na onda invasora, a fim de desestruturar e minimizar a força do inimigo.
Taran e Coll, encabeçando uma tropa, e Llassar encarregado de liderar outra, galoparam até as suas posições. Gurgi, em silêncio, tremendo de frio apesar do enorme casaco, fincou o estandarte da Porca Branca no chão enregelado para assinalar o ponto de encontro. Taran sentia os olhos dos inimigos observando cada movimento, e uma estranha impaciência, mesclada de medo, tornava-o tenso como a corda de um arco.
Gwydion, montado em Melynlas, subiu para ver, afinal, o dispositivo dos homens dos Condados, e Taran gritou para ele.
- Por que Pryderi está esperando? Zomba de nós? Por acaso somos apenas formigas trabalhando num monte que ele pode esmagar por puro prazer?
- Paciência - respondeu Gwydion num tom de voz que denotava, ao mesmo tempo, a intenção de tranqüilizar um amigo e o comando de um chefe militar. - Vocês são espadas que se somam às minhas mãos - continuou. - Não se deixem perturbar. Ajam com rapidez; não se demorem num mesmo combate, mas iniciem muitos.
Apertou as mãos de Taran, Coll e Gurgi.
- Até mais - disse Gwydion bruscamente, e, em seguida, fazendo Melyngar girar, foi se reunir, depressa, aos seus guerreiros.
Taran observou-o até ele sumir de vista, e então voltou os olhos às tomes distantes de Caer Dathyl. Eilonwy e Glew tinham recebido ordens de permanecer na fortaleza sob a proteção do Rei Supremo. Taran forçou a vista na vã esperança de vê-la de relance perto das muralhas. O que ela poderia sentir por ele, Taran não saberia dizer, nem agora, nem no tempo em que esteve em Caer Dallben; mas, a despeito disso, estava determinado a revelar o próprio sentimento, por inteiro. Então, de repente, como se fosse arrastado por uma inundação, achou-se na concentração de guerreiros, sem ter ao menos um instante para se despedir. A saudade trespassava-o e o remorso causado pelas palavras não reveladas era qual mão de ferro apertando-lhe a garganta.
Sobressaltou-se e cerrou o punho nas rédeas de Melynlas, que resfolegava, produzindo uma nuvem branca, e começava a bater com as patas no chão. Num relance, viu que o exército de Pryderi tinha se levantado e, como uma onda, avançava no vale. A batalha estava diante dele.
Chegou rapidamente, não como a demorada crista de onda que Taran havia previsto. Logo no começo era um mar repleto de homens aos gritos. Os Filhos de Don não esperaram o sinal de ataque de Pryderi, e correram à frente para lutar corpo-a-corpo com o inimigo. Taran viu Gwydion sobre a figura branca e empinada de Melyngar. Mas não conseguiu distinguir o instante em que ocorreu o primeiro impacto de armas; pois em dado momento, em vez de duas marés, havia apenas uma que girava e se deslocava em grande convulsão, um redemoinho de lanças e espadas.
Taran fez soar a trompa e, ao ouvir Llassar responder com um grito, bateu com os calcanhares nos flancos de Melynlas. Coll e os cavaleiros dos Condados esporearam suas montarias e o seguiram. De um meio-galope rápido, as vigorosas pernas de Melynlas passaram ao galope. Os músculos do garanhão intumesceram e Taran, de espada erguida, mergulhou no mar de homens. Sentia a cabeça girar e faltava-lhe o fôlego, como se estivesse se afogando. Percebeu que estava apavorado.
Em tomo dele circulavam rostos de amigos e inimigos. Viu, rapidamente, Llonio dando golpes a torto e a direito.
O elmo improvisado oscilava na frente de seus olhos, as pernas compridas estavam esticadas nos estribos e ele mais parecia um espantalho vivo; contudo, por onde Llonio passava, oponentes caíam como trigo ceifado. O corpanzil de Hevydd erguia-se como um muro de pedra no meio do combate. Nenhum sinal de Llassar, mas Taran tinha a impressão de ouvir o grito agudo de guerra do jovem pastor. Logo em seguida, um rugir furioso chegou aos seus ouvidos e ele percebeu que Llyan e Fflewddur tinham entrado no combate. Depois, sem tomar conhecimento de coisa alguma além da espada em sua mão, Taran envolveu-se numa loucura cega, lutando para revidar os golpes dos guerreiros que o atacavam.
Várias vezes, Taran e os cavaleiros dos Condados irrompiam no centro dos flancos dos atacantes e depois viravam-se, repentinamente, e galopavam a fim de se livrar do redemoinho para, em seguida, retornar. Num lampejo, Taran viu resplandecerem o dourado e o rubro. Era o Rei Pryderi num cavalo negro. Taran esforçou-se para enfrentá-lo. Por um instante seus olhares se cruzaram, mas o Filho de Pwyll não fez o menor empenho em revidar o desafio de um cavaleiro maltrapilho. Em vez disso, desviou o olhar e seguiu à frente. E se foi. O breve olhar de desdém de Pryderi doeu mais em Taran do que a lâmina que surgiu da massa de inimigos de guerra para atingir-lhe o rosto.
Em dado momento a onda armada empurrou Taran para as margens da batalha. Avistou o estandarte de Gurgi e tentou reunir-se aos cavaleiros que estavam em torno dele. Surgira uma brecha entre as fileiras de Pryderi. Logo depois, uma égua veio em sua direção: Lluagor. Um guerreiro armado com uma lança comprida agarrava-se ao dorso do animal.
- Volte para o castelo! - berrou Taran. - Perdeu o juízo?
Eilonwy, pois era ela mesma, fez uma breve pausa. Tinha prendido o cabelo trançado por baixo de um elmo de couro. A Princesa de Llyr sorriu para ele.
- Até entendo que você esteja bravo - gritou -, mas isso não lhe dá motivos para ser grosseiro.
E saiu a galope.
Por algum tempo, Taran não acreditou que a tinha visto, na realidade.
Passaram-se alguns instantes e ele já estava lutando com um bando de guerreiros que se atiravam nos flancos de Melynlas e tentavam derrubar cavalo e cavaleiro. Taran tinha a impressão de que alguém segurava as rédeas de sua montaria e o arrastava para o lado. Os guerreiros de Pryderi tombaram. Livre da pressão, virou-se na sela e, sem ver direito, preparou-se para golpear o novo atacante.
Era Coll. O robusto camponês tinha perdido o elmo. Sua calva estava tão arranhada que parecia que ele mergulhara de cabeça em arbustos espinhosos.
- Reserve sua espada para os inimigos, não para os amigos! - exclamou.
A surpresa de Taran deixou-o sem palavras por um instante, até balbuciar:
- Salvou a minha vida, Filho de Collfrewr.
- Ora, é possível - respondeu Coll, como se a idéia lhe tivesse ocorrido naquele instante.
Olharam-se e, como dois tolos, desataram a rir.
Somente ao cair da tarde, quando até mesmo o céu parecia riscado de sangue, Taran apreendeu um sentido diferente da batalha. Os guerreiros de Gwydion, bloqueando o avanço de Pryderi, tinham enfrentado toda a fúria de seus atacantes. Os exércitos de Pryderi tinham falhado como se tropeçassem nos próprios mortos. A onda havia alcançado seu ápice e mantinha-se suspensa. Naquele instante, surgiu um vento fresco no vale. O coração de Taran bateu forte quando se ouviram os gritos da força renovada dos guerreiros de Don. Eles avançavam atacando todos à sua frente. Taran fez soar a trompa e, com os cavaleiros dos Condados, galopou para se reunir à vaga arrebatadora.
As fileiras do inimigo partiram-se como se fossem muralhas quebradas. Taran agarrou-se às rédeas no momento em que Melynlas empinou e relinchou, alarmado. Um estremecimento de horror abalou o vale. Taran viu e compreendeu tudo, antes mesmo que a corrente de gritos cada vez mais forte chegasse aos seus ouvidos.
- Os Nascidos do Caldeirão! Os guerreiros imortais!
Os homens de Pryderi recuaram para deixá-los passar, numa atitude de temor e respeito. Em silêncio espectral, com passos nem rápidos, nem lentos, os Nascidos do Caldeirão passaram pela brecha entre as fileiras e o vale vibrou com o barulho das botas pesadas. Em meio à neblina avermelhada do sol poente, seus semblantes pareciam ainda mais lívidos. Os olhos eram frios e inertes como pedras. Sem hesitação, a coluna de guerreiros imortais conduzia-se na direção de Caer Dathyl. Levavam com eles, amarrado por cordas, um aríete revestido de ferro.
Os inimigos, ladeando os Nascidos do Caldeirão, voltaram-se repentinamente para desferir um novo ataque aos Filhos de Don. Aterrorizado, Taran percebia por que Pryderi havia se atrasado e compreendia o motivo de sua arrogância. Somente agora o plano do Rei traiçoeiro tinha se concretizado. Atrás da longa coluna de Nascidos do Caldeirão, combatentes recém-chegados vertiam das colinas. Para Pryderi, o longo dia de batalha não passara de uma brincadeira. O massacre havia começado.
Na fortaleza, arqueiros e lanceiros das defesas internas aglomeravam-se nas muralhas. Mudos, os Nascidos do Caldeirão não hesitaram diante da tempestade de flechas. Embora cada uma atingisse seu alvo, o inimigo avançava, constante, parando apenas para arrancá-las da carne que não sangrava. Os traços de seus rostos não demonstravam nem dor, nem raiva, e nenhum berro humano, nenhum grito de triunfo passava pelos lábios desses guerreiros. Vieram de Annuvin como se tivessem saído do túmulo, e sua única missão era levar a morte, impiedosa e implacável como seus rostos sem vida.
Com as pancadas do aríete, os portões de Caer Dathyl gemeram e estremeceram. As dobradiças reforçadas afrouxaram, ao mesmo tempo que os ecos do aparato demolidor atravessaram a fortaleza. O portão rachou, a primeira fenda abriu-se, como um ferimento. Os Nascidos do Caldeirão, mais uma vez, uniram forças para impelir o aríete. Os portões de Caer Dathyl, arrebentados, caíram para o lado de dentro do castelo. Presos entre as alas dos guerreiros de Pryderi, os Filhos de Don lutaram em vão para chegar à fortaleza. Soluçando de raiva e desespero, Taran, desamparado, viu os Nascidos do Caldeirão atravessarem os portões quebrados.
Diante deles estava Math, o Rei Supremo. Usava a vestimenta da Casa Real, presa por um cinturão de elos dourados, e na sua cabeça brilhava a Coroa Dourada de Don. Sobre os ombros, um manto de lã branca, fina, estava disposto de tal modo como se fosse para um sepultamento. A mão franzina segurava a espada desembainhada.
Os guerreiros imortais de Annuvin fizeram uma pausa, como se alguma lembrança remota os perturbasse. O momento passou e eles continuaram a avançar. O campo de batalha agora estava quieto; um estranho silêncio dominara até mesmo os combatentes de Pryderi, O Rei Supremo não se voltou quando os Nascidos do Caldeirão se aproximaram; seus olhos fixaram-se nos deles ao mesmo tempo que erguia a espada desafiante. Permaneceu inabalável, firme, com altivez e venerável majestade. O primeiro dos pálidos guerreiros investiu contra ele. Agarrando com firmeza a espada reluzente nas mãos frágeis, o Rei Supremo baixou-a num golpe rápido. A espada do guerreiro imortal afastou-a e o Nascido do Caldeirão golpeou-o, violentamente. O Rei Math cambaleou e caiu sobre um dos joelhos. A massa dos guerreiros mudos avançou, as armas dando golpes cortantes. Taran cobriu o rosto com as mãos e afastou-se, chorando, quando Math, Filho de Mathonwy, tombou e as botas de ferro dos Nascidos do Caldeirão marcharam por cima do corpo sem vida. Das colinas escuras, ecoando entre os rochedos, surgiram as notas longas e trêmulas de uma trompa de caça, e uma sombra percorreu o céu acima da fortaleza.
Naquele momento, logo atrás dos Nascidos do Caldeirão, os homens de Pryderi atravessaram os portões despedaçados, enquanto ondas de atacantes pressionavam o exército de Gwydion na direção das colinas, dispersando-os nos barrancos cobertos de neve. De Caer Dathyl surgiam mais estrondos, à medida que o aríete dos Nascidos do Caldeirão passou a atingir as muralhas, derrubando-as, uma após a outra. Chamas ergueram-se acima da Ala Nobre, da Ala do Saber e, na Tome Central, foi desfraldado o falcão vermelho de Pryderi.
Ao lado, encobrindo o sol poente, era estendida a bandeira negra de Arawn, Lorde de Annuvin.
Caer Dathyl tombara.
O Descampado Vermelho
Durante toda a noite a destruição alastrou-se e, pela manhã, Caer Dathyl estava em ruínas. Onde antes erguiam-se imponentes salões, restava apenas fumaça. As espadas e machados dos Nascidos do Caldeirão tinham arrasado a aléia de cicutas próxima aos túmulos ilustres. Sob o efeito da luz da madrugada, as paredes destruídas pareciam estar manchadas de sangue.
O exército de Pryderi, negando o direito de sepultura aos mortos, empurrara os defensores até as colinas a leste de Caer Dathyl. Foi lá, em meio ao tumulto do acampamento improvisado, que os companheiros se encontraram novamente. Gurgi, sempre leal, ainda ostentava o estandarte da Porca Branca, embora o mastro estivesse quebrado e o emblema cortado, quase irreconhecível. Llyan, com Fflewddur a seu lado, estava agachada, mal abrigada por uma saliência rochosa; sua cauda movia-se bruscamente e os olhos amarelos ainda brilhavam de raiva. Hevydd, o Ferreiro, acendeu a fogueira, e Taran, Eilonwy e Coll procuravam se aquecer junto ao braseiro. Llassar, embora gravemente ferido, sobrevivera à batalha; mas o inimigo tinha causado perdas brutais aos homens dos Condados. Entre aqueles que jaziam, rígidos e silenciosos no campo de batalha pisoteado, estava Llonio, Filho de Llonwen.
Um dos poucos sobreviventes das defesas internas da fortaleza era Glew. Um guerreiro de Don, encontrando-o perdido e confuso além das muralhas, apiedou-se dele e o trouxe ao acampamento. Chegava a ser patética a alegria do antigo gigante ao reencontrar os companheiros, embora estivesse tão sobressaltado e trêmulo que mal conseguia murmurar algumas palavras. Com um manto rasgado sobre os ombros, aconchegou-se ao lado do fogo e apoiou a cabeça nas mãos.
Gwydion mantinha-se de pé, sozinho. Por muito tempo, seu olhar não se afastou da coluna de fumaça negra que manchava o céu sobre as ruínas de Caer Dathyl. Finalmente, voltou-se e ordenou a todos os sobreviventes da batalha que se reunissem. Taliesin aproximou-se e, tomando a harpa de Fflewddur, entoou uma elegia aos mortos. Entre os pinheiros escuros, elevou-se a voz do Mestre dos Bardos, carregada de tristeza, apesar de ser uma tristeza sem desespero; e embora as notas da harpa expressassem o luto pesado, continham acordes nítidos de vida e esperança.
Quando a melodia terminou, Taliesin ergueu a cabeça e falou suavemente:
- Cada pedra quebrada de Caer Dathyl será um símbolo de honra, e o vale será o local de descanso para Math, Filho de Mathonwy, e todos os nossos mortos. Mas um Rei Supremo ainda vive. Assim como eu o exalto, também exalto aqueles que o apóiam. - Voltou-se para Gwydion e fez uma reverência profunda. Os guerreiros ergueram suas espadas e aclamaram o novo Rei de Prydain.
Gwydion então chamou os companheiros.
- Nós nos encontramos, mas estamos prestes a nos separar - disse. - A vitória de Pryderi nos dá uma chance e uma esperança. Embora, através dos mensageiros, as notícias de nossa derrota cheguem ao Rei Smoit e seu exército, e, da mesma forma, aos lordes do norte, não devemos esperar a ajuda. O que pretendemos fazer precisa ser feito agora. Nem mesmo um exército dez vezes maior que o de Pryderi pode combater os Nascidos do Caldeirão. Depois de enfrentá-los, exércitos e mais exércitos vão acabar engrossando as fileiras dos mortos.
- Mesmo assim, aí está a semente de nossa esperança - prosseguiu Gwydion. - Jamais se ouviu dizer que Arawn tivesse mandado seus guerreiros imortais para longe de Annuvin, e em número tão grande. Ele correu o maior risco para conseguir o máximo. E venceu. Mas o seu momento de triunfo é também o de maior fraqueza. Sem os Nascidos do Caldeirão, o reino de Annuvin está aberto ao ataque. É quando devemos atacá-lo.
- Então supõe que Annuvin esteja desprotegido? - perguntou Taran rapidamente. - Não há mais ninguém a serviço de Arawn?
- Guerreiros mortais, decerto - respondeu Gwydion -, e talvez a força militar dos Caçadores. Mas temos número suficiente para dominá-los, se os Nascidos do Caldeirão não chegarem a Annuvin a tempo de ajudá-los.
O rosto de Gwydion, marcado de sangue, estava rígido como pedra.
- Eles não podem chegar a Annuvin. Sabendo-se que o poder deles enfraquece à medida que se mantêm distantes do reino do Lorde-da-Morte, devem ser detidos a qualquer custo, retardados, desviados de qualquer caminho que seguirem.
Coll assentiu com um gesto de cabeça.
- De fato, é a nossa única chance. E precisamos agir rapidamente, pois agora tentarão voltar o mais depressa possível para o seu mestre. Mas de que maneira poderemos alcançá-los se já estão a caminho? Poderemos detê-los e, ao mesmo tempo, pôr em prática o nosso plano de ataque a Annuvin?
- Não, se seguirmos juntos, como um só exército - disse Gwydion. - Em vez disso, precisamos nos separar em dois grupos. O primeiro, e menor, deve ter o maior número de cavalos e correr no encalço dos Nascidos do Caldeirão. O segundo deve tomar o caminho do Vale do Kynvael e acompanhar o rio em direção ao litoral noroeste. A região do vale é tranqüila e, em marcha acelerada, pode-se atingir o mar em dois dias, no máximo.
- O mar pode nos ajudar - continuou Gwydion -, porque Pryderi poderia, facilmente, interromper nossa jornada por terra.
E voltando-se para Taran.
- Math, Filho de Mathonwy, falou-lhe dos barcos que trouxeram os Filhos de Don do País do Verão. Essas embarcações não foram abandonadas. Ainda estão em condições de navegar, e sempre foram mantidas a postos, no caso de um dia serem necessárias. Uma gente leal guarda-as num porto escondido, próximo à foz do Rio Kynvael. Eles nos levarão à costa ocidental de Prydain, perto da fortaleza de Annuvin.
- Somente dois homens sabiam da existência do porto - acrescentou Gwydion. - Um deles era Math, Filho de Mathonwy. O outro, eu mesmo. Não tenho escolha a não ser liderar a marcha em direção ao mar. Quanto à outra jornada - disse a Taran -, aceita liderá-la?
Taran ergueu a cabeça.
- Eu o servirei de acordo com suas ordens.
- Isto não é uma ordem - respondeu Gwydion. - Não ordenaria que um homem cumprisse tal missão contra a sua vontade. E todos que o seguirem deverão fazê-lo espontaneamente.
- Então é a minha vontade fazê-lo.
Ouviu-se o murmúrio dos companheiros, concordando.
- Os barcos dos Filhos de Don são ligeiros - disse Gwydion. - Peço-lhes que retardem os Nascidos do Caldeirão apenas por pouco tempo. No entanto, tudo depende deste pouco.
- Se eu falhar - disse Taran -, como poderei preveni-lo? Se os guerreiros do Caldeirão chegarem antes de você a Annuvin, seu plano não dará certo e você terá de retornar.
Gwydion sacudiu a cabeça.
- Não tenho como retroceder, pois não haverá mais esperança. Se algum de nós falhar, nossas vidas estarão perdidas.
Llassar, Hevydd e toda a gente dos Condados decidiram acompanhar Taran. A eles aderiram os guerreiros sobreviventes da tropa de Fflewddur Fflam, e juntos constituíam a maior parte do grupo de Taran. Para a surpresa dos companheiros, Glew preferiu seguir com eles.
Aquele que um dia fora um gigante tinha se recuperado do susto, ao menos o suficiente para retomar boa parte de sua costumeira impertinência. E ainda havia recuperado todo o apetite e exigia muita comida da mochila de Gurgi.
- Como se não fosse o bastante me arrastarem até aqui pela nuca - disse Glew, lambendo os dedos -, agora querem me pôr num barco ou no meio de uma tropa de cavalos. Muito bem, prefiro estes últimos, pois ao menos não vou ficar molhado e salgado. Mas posso lhes garantir que teria recusado qualquer uma dessas opções quando eu era gigante.
Fflewddur dirigiu um olhar furioso para o antigo gigante e falou em particular com Taran.
- Além de todas as nossas aflições, parece que estamos condenados a suportar a todo momento essa doninha lamurienta. E suspeito que no fundo dessa cabecinha insignificante ele pretende, de algum modo, tirar proveito da situação.
O bardo sacudiu a cabeça e lançou um olhar triste para Taran.
- Mas ainda resta alguma coisa para se aproveitar? Não existe lugar seguro nem para o Glew esconder a cabeça.
Gurgi amarrara a flâmula da Porca Branca num outro bastão, mas, olhando o emblema rasgado, suspirou de tristeza.
- Pobre porquinha! - lamentou a criatura. - Ninguém pode vê-la agora, pois está rasgada em trapos e farrapos!
- Prometo bordar outra - disse Eilonwy. - Logo que... De súbito, Eilonwy interrompeu a própria fala e nada mais disse, montando em seguida em Lluagor. Taran percebeu seu olhar preocupado. A Princesa de Llyr teria de esperar muito, assim ele receava, até que suas mãos pudessem trabalhar com uma agulha de bordado. No seu íntimo, porém, emudecido, havia o temor de que nenhum deles veria Caer Dallben outra vez. No final daquela corrida apavorante, o único prêmio poderia ser a morte.
Armados com lanças e espadas, os guerreiros já estavam montados, à espera. Depois de se despedirem de Gwydion pela última vez, os companheiros partiram das colinas rumo ao oeste.
Segundo a opinião de Coll, os Nascidos do Caldeirão marchariam diretamente a Annuvin, tomando o caminho mais curto e mais direto. Llassar e Taran encabeçavam a coluna que contornava os caminhos dos cerros cobertos de neve. Com a habilidade do jovem pastor, a passagem tornou-se mais fácil, e ele guiava todos rapidamente até a planície, que não poderia ser avistada pelo exército de Pryderi, o qual já começara a se retirar do vale nas imediações de Caer Dathyl.
Por alguns dias viajaram, e Taran começou a recear que estavam perdendo terreno em relação aos guerreiros imortais de Arawn. No entanto, nada mais podiam fazer a não ser seguir em frente, o mais rápido possível, cruzando extensas áreas pouco arborizadas.
Gurgi foi o primeiro a avistar os Nascidos do Caldeirão. O rosto da criatura ficou pálido de susto quando ele apontou para uma planície pedregosa. Glew piscou várias vezes, engasgou, e mal pôde engolir a comida que estava mastigando. Eilonwy ficou observando em silêncio e o bardo, atemorizado, deu um assobio baixo.
Taran sentiu o coração comprimir-se, ao ver a coluna que se movia como uma longa serpente na planície. Virou-se e perguntou a Coll.
- Temos alguma chance de afastá-los do caminho?
- Um seixo pode desviar uma avalanche - disse Coll - ou um graveto mudar o curso de uma enchente.
- Sem dúvida - murmurou Fflewddur -, mas não quero nem pensar no que acontece ao graveto ou ao seixo, mais tarde.
Taran já se preparava para fazer um sinal para os guerreiros perfilarem-se para o ataque, mas Coll segurou-o pelo braço.
- Agora não, meu garoto - disse. - Primeiro, eu me certificaria do caminho que estas criaturas de Arawn pretendem seguir até Annuvin. Se é para o graveto funcionar, deve ficar em boa posição.
Durante o resto daquele dia e na manhã seguinte, os companheiros seguiram os passos dos Nascidos do Caldeirão, algumas vezes à frente, outras vezes ao lado, mas sem perder de vista os guerreiros imortais. Taran tinha a impressão de que os guerreiros imortais haviam reduzido o ritmo da marcha. A coluna escura movia-se sem hesitar, mas o andar era lento como se carregassem peso. Ele falou sobre isto com Coll, que balançou a cabeça, satisfeito.
- A força deles diminui um pouco - disse Coll. - O tempo trabalha a nosso favor, mas penso que em breve precisaremos fazer a nossa parte.
Tinham chegado a uma longa e sinuosa faixa de terra árida que se estendia de cada lado até onde o olhar podia alcançar. O solo estéril estava rachado como se tivesse sido mal lavrado, recortado por valas e sulcos profundos. Nenhuma árvore, nenhum arbusto erguia-se da terra vermelha e opaca, e em nenhum lugar Taran viu o mais leve sinal de cultivo. Apreensivo, observava o local, e sentia frio, não apenas devido ao vento cortante, mas ao silêncio que pairava como uma névoa congelada sobre a região sem vida.
Perguntou em voz baixa:
- Que lugar é este? Coll fez uma careta.
- O Descampado Vermelho, é assim que se chama agora. No momento - acrescentou, preocupado -, receio que o meu canteiro esteja assim mesmo, como um descampado.
- Já me falaram deste lugar - disse Taran -, embora, no meu entender, não passasse de uma lenda de algum viajante. Coll sacudiu a cabeça.
- Lenda nenhuma. Faz tempo que as pessoas evitam esse lugar, contudo, este já foi o reino mais bonito de Prydain. A terra era tão boa que tudo aqui brotava com facilidade, como se fosse da noite para o dia. Cereais, verduras, frutas... ora, se comparadas às maçãs dos pomares desta região, quanto ao tamanho e sabor, as minhas seriam frutas murchas, derrubadas pelo vento. A terra era um prêmio para se conquistar e manter, e muitos lordes lutavam pela sua posse. Mas, no decorrer das lutas, ano após ano, os cascos dos cavalos comprimiram o solo manchado pelo sangue dos guerreiros. Tempos depois, a terra morreu, e com ela aqueles que se empenharam em exigi-la de seus semelhantes, e a praga se alastrou muito além dos campos de batalha. Coll suspirou.
- Eu conheço esta terra, meu garoto, e não me agrada revê-la. Nos meus dias de juventude, também marchei com os exércitos e deixei muito do meu próprio sangue no Descampado.
- E a terra não há de florescer jamais? - perguntou Taran, olhando com pesar o solo arruinado. - Prydain seria uma terra valiosa com o muito que poderia produzir. Mais lamentável que derramar sangue seria deixar assim estes campos. Se fosse bem tratado, o solo não produziria novamente?
- Quem sabe? - respondeu Coll. - Talvez. Muitos anos se passaram sem que um homem lavrasse esta terra. Mas, para nós, tudo isso é secundário agora.
Coll fez um gesto na direção dos cumes pontudos que se erguiam na extremidade dos campos.
- O Descampado Vermelho estende-se ao longo dos Montes de Bran-Galedd, quase a sudoeste de Annuvin. É o caminho mais longo, porém o mais fácil que podemos seguir até Annuvin e, se estou certo, os Nascidos do Caldeirão vão passar por lá, rapidamente, até chegar ao seu mestre.
- Não podemos deixá-los passar - respondeu Taran. - É aqui que precisamos oferecer nossa primeira resistência e retardá-los ao máximo.
E olhou na direção dos picos.
- Precisamos pressioná-los contra os morros. No meio das pedras e do solo fendido poderíamos armar ciladas ou atraí-los a uma emboscada. É tudo o que nos resta fazer.
- Talvez - disse Coll -, embora, antes que você tome a decisão, saiba o seguinte: os Montes de Bran-Galedd também conduzem a Annuvin, e trata-se de um caminho mais curto. Os montes tornam-se mais íngremes à medida que se avança para o oeste e, logo depois, encontram-se os desfiladeiros. É onde fica o Monte Dragão, o pico mais alto, guardando os Portões de Ferro da Tema da Morte. Trata-se de uma passagem difícil, cruel e perigosa... mais para nós do que para os imortais Nascidos do Caldeirão. Podemos perder nossas vidas. Eles não.
Ansioso, Taran contraiu o rosto e, então, disse com uma risada irônica.
- Decerto, amigo, toda escolha implica riscos. O caminho do Descampado Vermelho é mais fácil mas muito longo; o caminho das montanhas, mais difícil e mais curto!
Taran balançou a cabeça de um lado para o outro.
- Não tenho sabedoria suficiente para decidir. Pode me aconselhar?
- A escolha deve ser sua, chefe militar - respondeu Coll. - Contudo, na qualidade de plantador de nabos e repolhos, eu diria que se você confia na sua força, as montanhas tanto podem ser aliadas quanto inimigas.
Taran sorriu-lhe com tristeza.
- Não é grande a confiança que deposito na força de um só guardador-de-porcos - disse após um longo momento -, mas confio muito na força e sabedoria dos companheiros que ele tem. Que seja. Vamos impelir os guerreiros do Caldeirão às montanhas.
- Saiba também de uma coisa - disse Coll. - Se esta é a sua escolha, deverá fazer o que for preciso neste lugar e a todo o custo. Mais longe, ao sul, o Descampado se amplia, a planície se toma mais larga e quase sem relevo; se falharmos aqui, haverá o perigo de os Nascidos do Caldeirão escaparem de nós.
Taran sorriu.
- Um auxiliar de guardador-de-porcos pode entender isso sem dificuldade.
Taran voltou à coluna de guerreiros para lhes falar do plano que deveriam seguir. Embora advertisse Eilonwy e Gurgi a se manter, o máximo possível, a distância do conflito, ele percebia, com alguma dificuldade, que a Princesa de Llyr não tinha a intenção de atender ao seu apelo. Quanto ao próprio Taran, a decisão que havia tomado pesava-lhe muito; suas dúvidas e temores tornaram-se mais intensas quando os cavaleiros reuniram-se à margem do bosque e o momento de avançarem no Descampado se aproximava. Sentia frio; o vento murmurando através dos campos sulcados infiltrava-se no seu manto como se fosse uma inundação enregelada. Avistou Coll, que piscou para ele e balançou a cabeça ligeiramente. Taran levou a trompa aos lábios e deu o sinal para que os guerreiros seguissem em frente.
Aconselhados por Coll, os companheiros e cada um dos cavaleiros levavam galhos robustos que haviam cortado das árvores. Agora, como se fossem formigas carregando palha, a coluna iniciou a marcha na região desabrigada, ultrapassando fendas e valetas. A direita erguia-se um paredão em ruínas, algum antigo marco fronteiriço, agora inútil, cujas lajes quebradas espalhavam-se por grande parte do Descampado, até a encosta íngreme dos Montes Bran-Galedd.
Foi por ali que Taran rapidamente conduziu o grupo de guerreiros, Tinha a impressão de que os Nascidos do Caldeirão já os tinham visto, pois a coluna escura apressava o passo, avançando rapidamente no Descampado. Os cavaleiros de Taran haviam apeado e, mais que depressa, introduziam os galhos nas fissuras do paredão. A coluna dos Nascidos do Caldeirão já se aproximava. Ao lado deles marchavam Caçadores montados, vestindo grossos casacos de pele de lobo. Eram os chefes da tropa, cujos comandos chegavam aos ouvidos de Taran como chicotadas. As ordens repercutiam numa linguagem que lhe era desconhecida, mas Taran entendia, claramente, o tom sarcástico e a risada brutal que lhes escapavam dos lábios.
Assim como acontecera em Caer Dathyl, os Nascidos do Caldeirão mantinham-se em forma, avançando a passo largo, resolutos. Tinham retirado suas espadas dos pesados cinturões de bronze. As tachas de bronze que cobriam os peitorais de couro eram embaçadas. Seus rostos pálidos estavam congelados, tão vazios quanto os olhos fixos.
De repente, as trompas dos comandantes soaram como se fossem falcões. Os guerreiros do Caldeirão entesaram-se e, em seguida, seguiram em frente em ritmo mais rápido, correndo através da terra avermelhada e escura.
Os homens dos Condados pularam para a barreira de pedras e galhos que haviam improvisado. Os Nascidos do Caldeirão partiram para a muralha arruinada e tentaram subi-la. Fflewddur, deixando Llyan e Glew com os cavalos, agarrou um galho comprido e, aos berros, atirou-o como uma lança, de encontro ao amontoado de guerreiros que escalavam a muralha. Ao seu lado, Gurgi, desesperado, atacava a onda crescente com um imenso bastão. Ignorando o grito de advertência de Taran, Eilonwy brandiu sua lança e, devido à pancada violenta que desferiu, o primeiro guerreiro do Caldeirão tombou e caiu, lutando para ficar de pé, novamente, no meio das fileiras silenciosas que, sem interrupção, passavam por cima dele. O grupo de Taran redobrou os esforços, golpeando, afastando, rechaçando com toda a força o inimigo mudo.
Entre as tropas imortais, alguns desequilibravam-se, no momento em que a onda de atacantes investia cegamente contra a barreira, e acabavam sendo derrubados pelos bastões e cabos das lanças dos homens dos Condados.
- Estão com medo! - exclamou o bardo, exultante. - Vejam! Estão desistindo! Se não podemos matá-los, Grande Belin, podemos, ao menos, empurrá-los!
No meio do confronto de guerreiros e do soar estridente das trompas dos Caçadores, Taran entreviu as filas de Nascidos do Caldeirão desviarem-se da cerca viva de lanças ameaçadoras. Sentiu o coração pulsar forte. Seria mesmo possível que os comandantes receassem o obstáculo, ou o poder do exército mudo estaria enfraquecendo? Há pouco, a onda atacante lhe parecera mais fraca, embora ele não tivesse certeza se era apenas a sua esperança que lhe dava essa impressão. Nem sabia ao certo por quanto tempo haviam lutado no paredão. Os golpes incessantes de sua lança deixaram-no tão cansado que lhe parecia que o confronto durara uma eternidade, embora o céu ainda estivesse claro.
De súbito, percebeu que Fflewddur estava certo. A massa silenciosa de guerreiros imortais retrocedera. Os comandantes dos Caçadores tinham se decidido. Tal e qual feras que encontram suas presas muito bem escondidas, e percebem que estas não valem seus esforços, os líderes montados ergueram as trompas fazendo soar um som longo e ondulante. As fileiras de Nascidos do Caldeirão viraram-se na direção dos Montes Bran-Galedd.
Ouviram-se os gritos de alegria dos guerreiros dos Condados. Taran virou-se, em busca de Coll. Mas o guerreiro experiente corria ao longo do paredão. Taran gritou por ele, e então, atemorizado, percebeu o que o companheiro tinha visto. Um grupo dos Nascidos do Caldeirão tinha se separado do contingente principal e agora lutava para escalar um flanco desprotegido.
Coll chegou lá assim que o primeiro guerreiro do Caldeirão começara a subir pelas pedras. Num instante, o homem idoso já estava próximo ao atacante e, depois de largar a lança, agarrou-o com seus braços troncudos, atirando-o para baixo. Quando outro Nascido do Caldeirão começava a escalar o flanco, o lavrador apanhou a lança e bateu nele a torto e a direito, ignorando as lâminas cortantes do agressor. Gritando de indignação quando a arma se quebrou em suas mãos, Coll jogou-a para o lado e investiu com seus punhos fortes. Os guerreiros imortais agarraram-se a ele tentando puxá-lo para o meio deles, mas ele se desvencilhou, arrancou a espada das mãos de um Nascido do Caldeirão cambaleante e girou-a no ar como se fosse derrubar um carvalho com um só golpe.
Em pouco tempo, Taran estava ao lado de Coll. As trompas dos Caçadores deram o toque de retirada. Agora Taran compreendia que, na realidade, o ataque havia terminado com esse último confronto.
A cabeça de Coll sangrava profusamente; seu casaco forrado de lã de carneiro, saturado de sangue, estava cortado e rasgado pelas espadas dos Nascidos do Caldeirão. Depressa, Taran e Fflewddur carregaram-no até a base do paredão. Gurgi, choramingando de aflição, comeu para ajudá-los. Eilonwy já retirara o seu manto, forrando as pedras para o velho camponês se deitar.
- Atrás deles, meu garoto - disse Coll, quase sem fôlego. - Não os deixem descansar. Os gravetos desviaram a enchente, mas ela precisa ser desviada mais uma vez, e muitas vezes ainda, a fim de bloquear o caminho para Annuvin.
- Um carvalho forte bloqueou-o - respondeu Taran.
- Mais uma vez, contei com esse tronco.
Taran segurou aquelas mãos endurecidas pelo trabalho e tentou levantá-lo. O rosto largo de Coll expressou um sorriso e ele sacudiu a cabeça.
- Sou um lavrador - murmurou -, mas a experiência que tenho como guerreiro é suficiente para que eu reconheça meu próprio ferimento mortal. Vá em frente, meu garoto. Não carregue mais fardos do que os necessários.
- Como assim? - indagou Taran. - Você vai me fazer quebrar a promessa que fiz? De capinarmos e cavarmos juntos?
Mas as palavras surgiram repletas de dor, como um ferimento provocado por um punhal.
Eilonwy, o semblante tenso, olhou para Taran com ansiedade.
- Esperava poder um dia dormir no meu canteiro - disse Coll. - O zumbido das abelhas teria sido mais agradável que a trompa de Gwyn, o Caçador. Mas estou vendo que a escolha não cabia a mim.
- Não é a trompa de Gwyn que você está escutando
- disse Taran. - O que você ouve é o toque de retirada dos Nascidos do Caldeirão.
Mas, enquanto falava, as notas esmaecidas de uma trompa surgiram acima dos montes e os ecos trepidaram como sombras no descampado. Eilonwy cobriu o rosto com as mãos.
- Cuide de nossa plantação, meu garoto - disse Coll.
- Nós dois vamos cuidar de tudo - respondeu Taran.
- O mato não vai atrapalhar tanto quanto os guerreiros de Arawn.
O camponês velho e corpulento não respondeu. Taran custou a perceber que o amigo estava morto.
Enquanto os companheiros, cheios de pesar, foram buscar pedras da muralha arruinada, Taran cavou com as mãos o solo árido, sem permitir que alguém o ajudasse. Mesmo depois que o túmulo tosco, erguido acima de Coll, Filho de Collfrewr, fora concluído, Taran não se afastou, e ordenou que Fflewddur e os companheiros já se pusessem a caminho dos Montes de Bran-Galedd, onde ele os encontraria antes do anoitecer.
Por muito tempo permaneceu em silêncio. Finalmente, quando o céu escureceu, Taran voltou-se e, com dificuldade, subiu no dorso de Melynlas. Deteve-se mais um momento diante do monte de terra vermelha e pedras brutas.
- Durma bem, plantador de nabos e apanhador de maçãs - murmurou. - Você está distante de onde gostaria de estar. E eu também.
Sozinho, cavalgou na escuridão do descampado em direção aos montes que o aguardavam.
Escuridão
Nos dias seguintes, os companheiros empenharam-se em alcançar os Nascidos do Caldeirão e, mais uma vez, interceptar a marcha dos guerreiros em retirada. Mas o avanço era excessivamente lento. Taran sabia que Coll não se equivocara ao afirmar que os Montes de Bran-Galedd eram, ao mesmo tempo, amigos e inimigos: as valas rochosas e os desfiladeiros estreitos, os declives imprevisíveis onde o chão cedia, dando lugar a gargantas congeladas, ofereciam-lhes a única esperança de retardar o inimigo imortal que seguia em frente como um rio de ferro. Mas, ao mesmo tempo, dos penhascos a oeste, rajadas de vento carregadas de neve batiam no grupo com martelos congelados. As trilhas tortuosas eram escorregadias e traiçoeiras. As ribanceiras continham depressões repletas de neve, onde cavalo e cavaleiro poderiam afundar e jamais serem resgatados.
Nos montes, o guia em que Taran depositava maior confiança era Llassar. De andar seguro, bastante acostumado aos caminhos das montanhas, o jovem dos Condados agora era o pastor de um rebanho diferente, mais austero.
Mais de uma vez, o sentido aguçado de Llassar afastou os companheiros das armadilhas geladas das fendas escondidas sob a neve, e ele descobria trilhas que ninguém conseguia enxergar. Não obstante, o avanço do grupo maltrapilho era lento, e o frio cruel causava sofrimento a todos, pessoas e animais. Apenas a imensa gata, Llyan, parecia não se preocupar com as rajadas implacáveis que atiravam agulhas congeladas nos rostos dos companheiros.
- Parece que ela está se divertindo - suspirou Fflewddur, aconchegando-se no manto. Ele fora obrigado a desmontar, pois Llyan resolveu, de repente, afiar as unhas enormes num tronco de árvore. - Eu também estaria satisfeito - acrescentou - se tivesse o agasalho que ela tem.
Gurgi concordou tristemente. Desde que chegara às colinas, a pobre criatura mais parecia um amontoado de neve peluda. O frio havia interrompido o lamento interminável de Glew; o antigo gigante puxou o capuz para cobrir o rosto e só se via a ponta enregelada do seu nariz flácido. Eilonwy também estava quieta, o que não era comum. Taran sabia que, no íntimo, estava tão triste quanto ele.
Mesmo assim, Taran fez o possível para afastar a tristeza. Sua perseguição obstinada, afinal, levou os combatentes a se aproximarem dos Nascidos do Caldeirão e agora ele pensava apenas nos meios de retardar a marcha desses guerreiros para Annuvin. Assim como sucedera no Descampado Vermelho, os companheiros trabalharam para construir barreiras feitas com galhos de árvores, atravessando-as em desfiladeiros estreitos, trabalhando até que o suor impregnasse suas roupas e congelasse ao vento. Desta vez, os guerreiros pálidos foram mais rápidos que eles e, com as espadas, cortavam os galhos, tirando-os do caminho. Desesperados, os homens dos Condados enfrentaram corpo-a-corpo o inimigo em marcha; mas os Nascidos do Caldeirão penetraram nas fileiras dando golpes cortantes. Taran e os homens do Condado tentaram bloquear o caminho com pedras pesadas, mas mesmo com a ajuda dos braços poderosos de Hevydd, a tarefa estava além de suas forças, e o número de mortos aumentou.
Os dias eram um pesadelo branco de neve e vento. As noites eram invariavelmente congeladas, e os companheiros, como se fossem animais exaustos, descansavam nas saliências rochosas e no abrigo precário dos desfiladeiros. Contudo, pouco adiantava se esconderem, pois a presença dos guerreiros dos Condados não passava despercebida e seus movimentos eram logo avistados pelos comandantes inimigos. De início, os Nascidos do Caldeirão preferiram ignorar o grupo maltrapilho; agora os caminhantes imortais, além de apressarem o passo, partiam na direção dos cavaleiros de Taran como se ansiosos para travar batalha.
Fflewddur, que seguia ao lado de Taran, ficou intrigado.
Taran franziu a testa e sacudiu a cabeça, desesperançado.
- Compreendo muito bem o que está havendo - disse. - O poder deles diminuíra quando eles estavam mais distantes de Annuvin. Agora que estão mais próximos, recuperam-no e, à medida que ficamos mais fracos, eles ficam mais fortes. A não ser que consigamos detê-los de uma vez por todas, o empenho que fizermos há de minar a nossa própria força. Em breve - acrescentou com amargura -, poderemos derrotar a nós mesmos de tal forma que os guerreiros de Arawn nem imaginaram.
Mas não mencionou outro receio que se achava no íntimo de todos. A cada dia tornava-se mais evidente que os Nascidos do Caldeirão estavam se voltando para o sul, longe dos Montes de Bran-Galedd e, mais uma vez, na direção do caminho mais plano e mais fácil que cortava o Descampado Vermelho. Com uma satisfação sombria, Taran concluiu que o inimigo ainda temia os perseguidores e que não mediria esforços para se livrar deles.
Naquela noite a neve caiu e os companheiros pararam, pois o redemoinho de flocos e o próprio cansaço não os deixavam enxergar o caminho. Antes do amanhecer, os Nascidos do Caldeirão atacaram o acampamento.
No início, Taran supunha que apenas um dos destacamentos dos guerreiros mudos atingira os postos avançados. Quando os homens dos Condados se lançaram às armas, em meio aos relinchos assustadores dos cavalos e ao ruído estridente das lâminas, ele percebeu, rapidamente, que todo o destacamento inimigo estava atacando suas fileiras. Taran apressou Melynlas e entrou na rixa. Fflewddur, tendo Glew agarrado à sua cintura, estava montado em Llyan, que dava grandes saltos, e corria para se juntar aos defensores em combate. No meio do tumulto de guerreiros, Taran perdeu Eilonwy e Gurgi de vista. Parecendo uma espada implacável, os Nascidos do Caldeirão tinham dividido as fileiras dos cavaleiros dos Condados e fluíam livremente, esmagando todos que os enfrentassem.
Durante todo o dia, a batalha desigual e violenta prosseguiu, enquanto os homens dos Condados lutavam em vão para reunir suas forças. Ao anoitecer, o caminho dos Nascidos do Caldeirão era um rastro sangrento de feridos e mortos. Num só golpe mortífero, a tropa dos Caldeirões conseguira se libertar de seus perseguidores, e já se afastava das colinas, com rapidez e determinação.
Eilonwy e Gurgi tinham desaparecido.
Assustados, Taran e Fflewddur tentavam reagrupar suas fileiras entre os sobreviventes dispersos. Tochas foram acesas para indicar pontos de reencontro aos extraviados, que cambaleavam, feridos e desnorteados, entre os corpos de seus camaradas. Noite adentro, sem descanso, Taran andou à procura dos companheiros perdidos tocando a trompa e gritando seus nomes. Com Fflewddur, cavalgara além do campo de batalha, esperando um sinal de pelo menos algum deles. Ninguém foi encontrado, e a neve, que começara a cair durante a madrugada, cobriu todas as trilhas.
Antes do meio-dia, os sobreviventes se reuniram. A passagem dos Nascidos do Caldeirão tinha causado grandes perdas entre as montarias e os homens; dos guerreiros dos Condados, um em cada três tinha sido derrubado pelas espadas do inimigo imortal; e dos cavalos, mais da metade. Lluagor galopava com a sela vazia. Eilonwy e Gurgi não estavam nem entre os mortos nem entre os sobreviventes.
Agora desesperado, Taran preparou a busca nas colinas mais distantes. Mas Fflewddur, com a fisionomia séria e cheia de preocupação, segurou o braço de Taran e puxou-o para trás.
- Sozinho você não pode alimentar a esperança de encontrá-los - avisou o bardo. - Também não pode desperdiçar tempo nem homens num grupo de busca. Se quisermos impedir que aqueles brutos infames cheguem ao Descampado, temos que andar depressa. Seus amigos dos Condados estão prontos para marchar.
- Você e Llassar devem comandá-los - respondeu Taran. - Quando Eilonwy e Gurgi forem encontrados, de alguma forma nós nos reuniremos. Vá depressa. Logo estaremos com vocês outra vez.
O bardo sacudiu a cabeça.
- Se são essas as suas ordens, está certo. Mas, de acordo com o que me disseram, foi Taran Errante quem chamou o povo dos Condados para seguir o seu estandarte, e foi por causa de Taran Errante que eles atenderam ao chamado. Eles o seguiram aonde você os conduziu. Por mais ninguém teriam feito tanto.
- O que quer dizer? - indagou Taran. - Acha que eu poderia deixar Eilonwy e Gurgi em perigo?
- É uma decisão difícil - disse Fflewddur. - Infelizmente, ninguém pode torná-la mais fácil para você.
Taran não respondeu. As palavras de Fflewddur amarguravam-no, sobretudo por serem verdadeiras. Tudo que Hevydd e Llassar pretenderam foi lutar ao seu lado. Llonio dera a vida em Caer Dathyl. Cada guerreiro dos Condados havia perdido um parente ou amigo. Se ele os deixasse para sair em busca de Eilonwy, será que ela mesma aprovaria tal escolha? Os cavaleiros aguardavam suas ordens. Impaciente, Melynlas batia a pata no chão.
- Se Eilonwy e Gurgi estiverem mortos - disse Taran com a voz angustiada -, não lhes poderei oferecer qualquer ajuda. Se estiverem vivos, devo esperar e confiar que nos encontrem.
Com o corpo pesado, ele saltou para a sela.
- Se estiverem vivos - murmurou.
Sem arriscar um olhar para trás, na direção das colinas silenciosas, vazias, cavalgou até o grupo de combatentes.
Quando os homens dos Condados se puseram em marcha mais uma vez, os Nascidos do Caldeirão já haviam se afastado bastante e seguiam às pressas para o sopé de Bran-Galedd. Mesmo no passo mais rápido, parando apenas por alguns instantes de descanso intermitente, os cavaleiros dos Condados pouco recuperavam do precioso tempo que haviam perdido.
A cada dia Taran forçava o olhar à procura de um sinal de Eilonwy e Gurgi, esforçando-se por acreditar que a princesa encontraria os meios de reencontrar o grupo de com batentes. Mas os dois companheiros estavam desaparecidos e soava falso o entusiasmo de Fflewddur, quando este afirmava que a qualquer momento eles surgiriam.
Na metade da manhã do terceiro dia de marcha, um cavaleiro chegou a galope trazendo notícias de alguns movimentos estranhos na floresta de pinheiros situada no flanco da coluna. Taran deteve seus guerreiros e ordenou que se preparassem, rapidamente, para o combate. Em seguida, afastou-se com Fflewddur para conferir a informação. Por entre as árvores, mais abaixo, percebia um leve movimento, como se sombras de galhos oscilassem ao vento. Mas, logo depois, o bardo deu um grito e Taran fez soar a trompa.
Da floresta surgia, a pé, uma longa fila de figuras baixas e troncudas. Usando mantos e capuzes brancos, eram quase invisíveis diante da neve, e só depois que começaram a atravessar uma faixa descoberta de terreno rochoso, Taran pôde distinguir um caminhante do outro. As botas reforçadas, de couro, bem amarradas com correias, mal apareciam por baixo dos mantos e mais pareciam tocos de árvore que se deslocavam rapidamente. As formas que se avolumavam nos ombros ou nas cinturas eram, segundo Taran podia supor, armas ou sacolas com provisões.
- Grande Belin! - exclamou Fflewddur. - Se são aqueles em que estou pensando...
Taran já havia desmontado e corria encosta abaixo, acenando para que o bardo o seguisse. Liderando o grupo, que parecia ultrapassar uma centena, marchava uma figura conhecida, atarracada. Embora ele também estivesse todo encapotado de branco, o cabelo ruivo flamejava por dentro do capuz. Em uma das mãos levava um machado curto com uma lâmina reforçada, e na outra, um bastão grosso. Tinha avistado Taran e Fflewddur, e correu para encontrá-los.
Instantes depois, o bardo e Taran estavam estendendo-lhe as mãos, batendo-lhe nos ombros robustos e fazendo tantas saudações e perguntas que o recém-chegado levou as mãos à cabeça.
- Doli! - exclamou Taran. - Doli, amigão!
- Já ouvi o que disseram, desde o início - bufou o anão. - Podia ser que eu tivesse alguma dúvida que vocês me reconheceriam, mas já estou convencido de que já sabem quem sou.
Pôs as mãos na cintura e lançou um olhar esperto para cima, tentando, como sempre, parecer rude. Porém, sem querer, os olhos vermelhos e brilhantes vibraram de satisfação e seu rosto abriu-se num sorriso que ele tentou, inutilmente, transformar na costumeira carranca.
- Você nos levou a uma caçada e tanto - declarou Doli, indicando aos guerreiros que seguissem Taran encosta acima. - Soubemos que estava a caminho das colinas, mas, até hoje, não o tínhamos avistado.
- Doli! - exclamou Taran, ainda atônito diante da visão inesperada do companheiro há tanto tempo ausente. - Que boa sorte o traz até aqui?
- Boa sorte? - rosnou Doli. - Chama de boa sorte viajar a pé dia e noite debaixo de neve e vento? Todos nós do Povo Formoso estamos distantes do reino, num ou noutro lugar... ordens do Rei Eiddileg. A ordem que recebi foi procurar por você e me colocar ao seu dispor. Sem querer ofender, mas logo adivinhei que se alguém em Prydain precisava de ajuda, seria você. Portanto, aqui estamos.
- Gwystyl fez um bom trabalho - disse Taran. - Sabíamos que ele estava se dirigindo para o seu reino, mas temíamos que o Rei Eiddileg não o atendesse.
- Não diria que ele esteja exultante - respondeu Doli. - Na verdade, quase explodiu. Eu estava lá quando nosso amigo tristonho contou-lhe qual era a sua situação e pensei que meus ouvidos fossem estourar com os urros de Eiddileg. Grandes idiotas! Ignorantes! Gigantes imbecis! Todas as suas opiniões a respeito dos humanos. Mas, apesar do estardalhaço, concordou espontaneamente. Apesar do que diz, gosta muito de você. Além de tudo, lembra-se de como você evitou que o Povo Formoso fosse transformado em bandos de rãs, toupeiras e não sei mais o quê. Foi o melhor serviço que qualquer mortal já nos prestou, e Eiddileg pretende pagar a dívida.
- É verdade, o Povo Formoso está em marcha - continuou Doli. - Infelizmente, chegamos tarde demais a Caer Dathyl. Mas o Rei Smoit pode nos agradecer. Há um exército do Povo Formoso lutando com ele, lado a lado. Os lordes do nordeste estão prontos para o combate, e nós também vamos lhes dar uma ajuda, disso pode estar certo.
Apesar de toda a aspereza, era óbvio que Doli estava orgulhoso das notícias. Com enorme satisfação tinha terminado o relato de um confronto no qual o Povo Formoso, propagando ecos por todo o vale, tinha confundido o inimigo até que os adversários fugiram aterrorizados, julgando-se cercados; e começara a contar outra história de bravura do seu povo, quando parou, repentinamente, percebendo o olhar de preocupação no rosto de Taran. Doli passou a ouvir o que ele tinha a dizer sobre o que acontecera aos outros companheiros, e desta vez foi o anão que ficou sério e pensativo. Quando Taran terminou, Doli não deu resposta durante certo tempo.
- Quanto a Eilonwy e Gurgi - disse o anão, afinal -, concordo com Fflewddur. De algum modo eles vão se sair bem. E se bem conheço a princesa, não me surpreenderia se a visse galopando à frente de seu próprio exército.
- Em relação aos Nascidos do Caldeirão, estamos todos em apuros - prosseguiu Doli. - Mesmo nós, do Povo Formoso, quase nada podemos fazer contra esses seres. Todos os truques que enganariam um mortal comum tornam-se inúteis diante deles. Os Nascidos do Caldeirão não são humanos... eu diria, são menos que os humanos. Não se lembram do que foram e nenhum medo, nenhuma esperança... pode afetá-los.
O anão sacudiu a cabeça.
- E estou vendo que qualquer vitória que tivermos em outros lugares seria perdida, a não ser que encontremos um meio de lidar com essa prole de Annuvin. Gwydion tem razão. Caso eles não sejam detidos... bem, meus amigos, temos que detê-los, e ponto final.
A essa altura, o grupo do Povo Formoso já chegara às fileiras de Taran, e um murmúrio de admiração espalhou-se entre os homens dos Condados. Todos tinham conhecimento da habilidade e destemor das forças do Rei Eiddileg, mas nenhum deles já os tinha visto frente a frente. Hevydd, o Ferreiro, ficou maravilhado ao ver os seus machados e espadas curtas, afirmando que eram mais afiadas e mais bem temperadas do que as dele. Por sua vez, o Povo Formoso não parecia estar nem um pouco acanhado; o mais alto dos guerreiros de Eiddileg mal chegava à altura do joelho de Llassar, mas os soldados do Povo Formoso olhavam para seus camaradas humanos com a tolerância que demonstrariam a crianças grandes.
Doli afagou a cabeça de Llyan e, em reconhecimento, o imenso animal ronronou, satisfeito. Ao ver Glew acocorado sobre uma pedra, fixando o olhar desgostoso nos recém-chegados, o anão ruivo deu um grito de surpresa.
- Quem é... ou o que é... aquilo? É grande para ser um cogumelo e pequeno para ser qualquer outra coisa!
- Fico muito contente por você ter perguntado - respondeu Glew. - É uma história que você vai achar muito interessante. Uma vez fui um gigante, e meu estado atual de insatisfação provém, sem dúvida, de uma total falta de interesse daqueles... - e voltou um olhar rígido para Taran e o bardo -... de quem se esperava, no mínimo, alguma consideração. Meu reino... sim, eu gostaria que você me chamasse de Rei Glew... era a melhor de todas as cavernas, com os melhores morcegos da Ilha de Mona. Uma caverna tão ampla...
Fflewddur levou as mãos às orelhas.
- Pare com isso, gigante! Chega! Não temos tempo para esta sua conversa fiada a respeito de cavernas e morcegos. Sabemos que você foi maltratado. Foi você mesmo quem nos contou. Pode acreditar, um Fflam é paciente, mas, se eu encontrasse uma caverna, deixaria você lá mesmo.
A expressão no rosto de Doli mudou e ele ficou pensativo.
- Cavernas - murmurou o anão. Estalou os dedos.
- Cavernas! Escutem-me - disse rapidamente. - Saindo daqui, a menos de um dia de caminhada... sim, tenho certeza... encontra-se uma das minas do Povo Formoso. As melhores pedras e as mais preciosas já não existem e, há muito tempo, segundo me consta, Eiddileg não manda ninguém trabalhar lá. Mas acho que podemos percorrê-la. É claro! Seguindo pela galeria principal, chegaremos quase até a extremidade do Descampado Vermelho. Em pouco tempo vocês alcançariam os Nascidos do Caldeirão. Com todos os nossos guerreiros reunidos, vamos detê-los, seja lá como for. O que faremos, ao certo, não sei. Mas, por enquanto, não importa. Na hora é que se vê.
Doli sorriu com vontade.
- Meus amigos, agora vocês estão com o Povo Formoso. O que fazemos é bem-feito. Metade de seus problemas acabou. A outra metade - acrescentou - a gente vê depois.
Pela primeira vez, desde que deixara Caer Dallben, Glew parecia bem-disposto. A idéia de qualquer coisa que parecesse uma caverna animava-o, embora essa melhora de humor resultasse em mais uma enxurrada de histórias desconexas a respeito de seus feitos quando era gigante. Contudo, após um dia e uma noite de caminhada exaustiva, quando Doli parou diante da encosta íngreme de um penhasco, o antigo gigante pôs-se a olhar em volta, cheio de temor. Receoso, torceu o nariz e piscou os olhos. A antiga mina que o anão indicava não passava de uma fenda na rocha, cuja largura mal permitia a passagem dos cavalos; à entrada, pingentes de gelo brilhavam como dentes afiados.
- Não, não - gaguejou Glew. - Isto não se compara ao meu reino em Mona. Nem um pouco. Não, vocês não podem esperar que eu ande aos tropeções nessa toca insignificante.
Ele teria voltado, caso Fflewddur não o tivesse segurado pela gola, arrastando-o em frente.
- Basta, gigante! - exclamou. - Para dentro, com todos nós.
Mas nem Fflewddur demonstrava entusiasmo em conduzir Llyan através da fenda rochosa.
- Um Fflam é valente - murmurou -, mas jamais gostei de passagens subterrâneas e coisas assim. Não tenho sorte nesses lugares. Prestem bem a atenção nas minhas palavras: quando nos dermos conta, já estaremos cavando como toupeiras.
À entrada da caverna, Taran deteve-se. Além daquele ponto não haveria esperança de encontrar Eilonwy. Mais uma vez lutou contra o desejo de procurá-la, antes que ela se perdesse dele para sempre. Fez todo o empenho para se livrar destes pensamentos. Mas quando, afinal, se obrigou a seguir o bardo, sentiu como se tivesse deixado para trás todo o seu ser. E, sem conseguir enxergar, tropeçou no escuro.
Sob as ordens de Doli, os guerreiros improvisaram archotes. Quando estes foram acesos, e à luz trepidante, Taran viu que o anão os tinha conduzido a uma galeria que aos poucos se inclinava para baixo. Quanto às paredes de pedra bruta, Taran podia tocar as partes mais altas com as mãos estendidas. A pé, os homens dos Condados conduziam os cavalos assustados por cima das saliências e pedras quebradas.
Doli explicou que a mina propriamente dita não era ali. Aquele era um dos vários túneis laterais que o Povo Formoso costumava percorrer para levar sacos de pedras até a superfície. De fato, conforme o anão avisara, a passagem logo se alargou e o teto rochoso tornou-se três vezes mais alto que Taran. Estreitas plataformas de madeira, umas acima das outras, acompanhavam as paredes, de cada lado, embora muitas tivessem ruído por falta de manutenção, e os suportes tombados amontoavam-se no solo de terra batida. Uma grande quantidade de vigas quase apodrecidas sustentava as arcadas que ligavam uma galeria a outra, mas algumas, em parte, já haviam desabado, forçando guerreiros e montarias a escolher o melhor caminho possível, por cima e em torno dos montes de entulho. O ar abafado, devido ao vento gelado que atingia a superfície, pairava repleto de poeira e mofo. Ecos atravessavam, rapidamente, as câmaras há muito abandonadas, enquanto o grupo de combate se deslocava em forma de coluna ondulante com os archotes acima das cabeças. As sombras destorcidas pareciam abafar o ruído dos passos; apenas o relinchar estridente de um cavalo amedrontado quebrou o silêncio.
Glew, que não deixara de reclamar desde que entrou na mina, deu um grito agudo de surpresa, abaixou-se e pegou alguma coisa do chão. A luz do archote, Taran viu o antigo gigante segurar uma pedra reluzente, do tamanho de um punho.
Fflewddur também tinha visto o que acontecera e não hesitou em dar a ordem.
- Deixe isso no chão, homenzinho. Este é o esconderijo do Povo Formoso, e não aquela caverna cheia de morcegos onde você esteve.
Glew apertou o achado contra o peito.
- É minha! - guinchou. - Nenhum de vocês a viu. Se a tivessem visto, teriam ficado com ela.
Doli, que dera uma olhada na pedra, riu com desdém:
- Não vale nada - disse ele a Taran. - Nenhum artesão do Povo Formoso perderia tempo com esse tipo de pedra. Usamos material de melhor qualidade para consertar o pavimento de uma estrada. Se o seu amigo cara-de-cogumelo deseja carregar peso, que fique à vontade.
Sem esperar que lhe dirigissem a palavra novamente, Glew, mais que depressa, pôs a pedra na sacola de couro que pendia da cintura, e suas feições flácidas expressaram o tipo de contentamento que Taran só havia percebido quando o antigo gigante fazia uma refeição.
Daí em diante, enquanto os companheiros avançavam sem interrupção no interior da mina, os olhos pequenos e brilhantes de Glew moviam-se para todos os lados, e ele seguia em frente demonstrando energia e interesse incomuns. O antigo gigante jamais se decepcionava, pois a luz dos archotes iluminava outras pedras que estavam enterradas no chão, pela metade, ou que sobressaíam nas paredes. Instantaneamente, Glew atirava-se nelas, raspando a terra com os dedos curtos e jogando os cristais na sacola. A cada nova descoberta ficava mais entusiasmado, dando risadinhas e falando em voz baixa consigo mesmo.
O bardo olhou para ele, sentindo pena.
- Bom - suspirou -, afinal a doninha farejou alguma coisa de seu interesse. Vai lhe servir muito bem quando voltarmos à superfície! Um punhado de pedras! A meu ver, serão úteis se ele as atirar nos Nascidos do Caldeirão.
Mas Glew, compenetrado na atividade de acumular o maior número de pedras o mais depressa possível, não prestou atenção aos comentários de Fflewddur. Em pouco tempo a sacola do antigo gigante estava repleta de pedras em tons escarlate e verde-brilhante e outras claras como água, tendo no interior partículas de ouro e prata.
Os pensamentos de Taran não estavam nas riquezas abandonadas da mina, embora lhe parecesse que as pedras preciosas surgissem em maior número, à medida que a coluna de guerreiros atingia o interior do túnel. Segundo Taran supunha, era pouco mais que meio-dia e os companheiros já haviam percorrido uma distância considerável. E, quando o túnel tornou-se mais amplo e o caminho ficou plano, a marcha ganhou ainda mais velocidade.
- Não podia ser mais fácil - afirmou Doli. - Mais um dia e meio, no máximo, e chegaremos à superfície, no Descampado.
- É a nossa única esperança - disse Taran - e, graças a você, a esperança mais concreta que tivemos. Mas o Descampado me preocupa. Se o terreno é árido, teremos pouca proteção e poucos recursos para deter os Nascidos do Caldeirão.
- Hum! - exclamou Doli. - Como lhe falei, agora você está lidando com o Povo Formoso, meu rapaz. Quando nos propomos uma tarefa, não fazemos nada que seja insignificante ou pequeno. Você verá. Algo vai acontecer.
- Falando de insignificante e pequeno - interrompeu Fflewddur -, onde está Glew?
Taran parou e olhou, depressa, ao redor. De início não viu sinal do antigo gigante. Ergueu a tocha e chamou-o pelo nome. Instantes depois, avistou-o e, alarmado, correu ao seu encontro.
Glew, em busca de pedras preciosas, tinha subido em uma das plataformas de madeira. Logo acima do arco que conduzia à câmara seguinte, uma pedra resplandecente, grande como a cabeça dele, estava incrustada nas pedras; depois de chegar com dificuldade a uma saliência estreita, Glew tentava, a todo o custo, deslocar a pedra.
Taran gritou, mandando-o descer, mas Glew não parava de puxar a pedra com mais força ainda. Soltando as rédeas de Melynlas, Taran já se preparava para subir atrás dele, mas Doli segurou-o pelo braço.
- Não faça isso! - disse o anão, bruscamente. - As vigas não vão suportar o seu peso.
Deu um assobio e fez um gesto para que dois guerreiros do Povo Formoso subissem até a plataforma que, devido à luta furiosa de Glew com a pedra, começara a balançar, prenunciando o perigo.
- Depressa! - gritou Doli. - Tragam esse idiota para baixo.
Foi então que a sacola de Glew, tão cheia que parecia estourar, soltou-se. Uma chuva brilhante de pedras caiu e Glew, com um grito de angústia, virou-se, tentando segurá-las. Seus pés escorregaram e ele agarrou-se desesperadamente à plataforma e, ao fazê-lo, o arco acima de sua cabeça cedeu. Agora, dando gritos estridentes não pelas jóias perdidas e sim pela própria vida em risco, Glew debatia-se em desespero e segurava-se a uma das vigas que oscilavam. Houve um estrondo e ele veio parar no chão. Atrás dele a arcada balançou e o teto estalou. Glew levantou-se e, enlouquecido, fugiu da chuva de pedregulhos.
- Para trás! - gritou Doli. - Para trás! Todos!
Os cavalos empinavam e relinchavam enquanto os guerreiros tentavam afastá-los do local.
Com um estampido ensurdecedor, as plataformas superiores caíram, uma avalanche de pedras grandes e vigas quebradas ressoou na galeria. O túnel encheu-se de poeira cegante e asfixiante, e parecia que a mina inteira estava estremecendo, até que um silêncio mortal se estabeleceu.
Gritando por Doli e Fflewddur, Taran caminhou, aos tropeções, até o monte de destroços. Nenhum dos guerreiros ou animais tinha ficado preso; atrás deles, o túnel ficara firme e os mantivera a salvo. Mas o caminho à sua frente estava definitivamente bloqueado.
Doli subira com dificuldade o monte de pedras e madeira e segurava-se na extremidade de uma viga comprida. Mas depois de alguns instantes parou, ofegante, e voltou um rosto desesperado para Taran.
- A coisa não vai bem - disse quase sem fôlego. - Se quisermos continuar, teremos que abrir caminho.
- Quanto tempo vai levar? - perguntou Taran com insistência. - Quanto tempo nos arriscaríamos a perder?
Doli sacudiu a cabeça.
- É difícil dizer. Mesmo para o Povo Formoso vai ser um trabalho demorado. Dias, talvez. Quem saberia dizer até onde a galeria foi destruída?
O anão bufava de raiva.
- Agradeça àquele tolo, diminuto, cogumelo bípede de gigante por isso tudo!
Taran sentiu desânimo.
- E então? - perguntou. - Precisamos retornar? Pela expressão inflexível de Doli ele temeu a resposta do anão.
Doli fez um breve aceno com a cabeça.
- Seja como for, estamos muito atrasados. Mas, se quer meu conselho, volte. Faremos o caminho para o Descampado pela superfície, o melhor que pudermos. Agora, a mina inteira está abalada; posso estar enganado, mas outros desabamentos vão ocorrer. Da próxima vez, pode ser que não tenhamos tanta sorte.
- Sorte! - queixou-se o bardo, que se deixara cair, sentado numa pedra. E com as mãos apoiou a testa.
- Dias perdidos! Os Nascidos do Caldeirão chegarão a Annuvin antes que tenhamos outra chance de pegá-los. A única sorte que eu poderia ter agora seria ver aquela doninha gananciosa debaixo da pilha de suas pedras inúteis!
Enquanto isso, Glew conseguira arrastar-se para fora de uma das plataformas que restaram. Suas roupas estavam rasgadas, o rosto rechonchudo coberto de poeira.
- Dias perdidos? - lamentou-se. - Nascidos do Caldeirão? Túneis bloqueados? Por acaso algum de vocês parou para pensar que eu acabei de perder uma fortuna? Minhas pedras desapareceram, todas elas, e vocês nem se importam. É isso que eu chamo de egoísmo. Egoísmo! Não existe outra palavra.
Claridade
A Princesa Eilonwy estava mais do que contrariada. Em primeiro lugar, havia se perdido; em segundo, estava presa. Levada para longe de Taran e Fflewddur durante o ataque, ela provavelmente estaria caída entre os mortos, caso Gurgi não a tivesse retirado do confronto. Terminada a ofensiva, andara aos tropeços pelos rochedos escuros, tendo Gurgi ao seu lado. Ao cair da noite, quando não era mais possível procurar Taran, Gurgi encontrou uma gruta, onde permaneceram agachados e tremendo de frio até a primeira luz do dia. No dia seguinte, quando os dois companheiros procuravam pistas de Taran, foram atacados por salteadores.
Com mordidas, chutes e arranhões, Eilonwy lutou em vão para se libertar do homem corpulento que a agarrou. O outro atirou Gurgi no chão e, com o punhal na mão, pressionara os rins da pobre criatura. Num abrir e fechar de olhos, os dois amigos viram-se de pés e mãos amarrados e carregados nos ombros dos assaltantes, como se fossem sacos de farinha. Eilonwy não tinha idéia da direção em que estava sendo levada, mas logo avistou uma fogueira de acampamento tremeluzindo em meio ao crepúsculo e, ao redor do fogo, reunia-se um bando de 12 ou mais malfeitores.
O homem que estava agachado e mais próximo à fogueira olhou para cima. Vestindo roupas sujas, feitas de couro de carneiro, tinha o semblante carregado e a barba curta, os cabelos compridos, alourados e em desalinho.
- Mandei vocês se divertirem e não trazer prisioneiros - gritou com a voz rouca. - O que encontraram?
- Lucro pequeno - respondeu o captor de Eilonwy, deixando cair o fardo furioso na relva, ao lado de Gurgi. - O que pode valer um par de matutos?
- Nada, provavelmente - disse o homem carrancudo, cuspindo no fogo.
- Deviam ter cortado suas goelas e poupado o peso nos ombros - acrescentou.
Levantando-se, deu passadas largas para se aproximar dos companheiros. Com a mão encardida e de unhas quebradas, segurou Eilonwy pelo pescoço como se pretendesse estrangulá-la.
- Quem é você, garoto? - perguntou com a voz áspera.
Seus olhos azuis estreitaram-se.
- Está a serviço de quem? Que tipo de resgate posso obter por você? Responda depressa quando Dorath pergunta.
Ao ouvir o nome, Eilonwy prendeu a respiração. Taran falara a respeito de Dorath. Os lamentos de Gurgi também lhe indicavam que ele reconhecera o bandido.
- Responda! - gritou Dorath, praguejando. E golpeou o rosto de Eilonwy. A jovem cambaleou e foi ao chão, a cabeça ressoando devido à pancada. A esfera dourada caiu de sua jaqueta. Eilonwy tentou se livrar das amarras e se jogar por cima da esfera. Uma bota chutou o objeto para longe. Dorath inclinou-se para pegar a esfera e, curioso, girou-a à luz do fogo.
- O que é isso? - indagou um dos malfeitores, chegando perto para admirar a pequena esfera.
- É ouro, mesmo - disse outro. - Vamos, Dorath, corte esse treco e divida conosco.
- Afastem-se, seus porcos - grunhiu Dorath.
E pôs a esfera dentro do casaco de pele de carneiro. Murmúrios de protesto foram ouvidos no meio do bando, mas Dorath silenciou-os com um olhar. E inclinou-se para Eilonwy.
- De onde roubou essa bugiganga, ladrãozinho? Quer continuar com a cabeça em cima dos ombros? Então me diga onde posso encontrar tesouros desse tipo.
Embora estivesse furiosa, Eilonwy calou-se. Dorath sorriu com malícia.
- Logo você vai falar - disse - e vai se arrepender de não ter falado mais cedo. Primeiro, deixe-me ver se seu amigo tem a língua mais solta que você.
Gurgi, batendo os dentes, afundou a cabeça no casaco de couro de carneiro e curvou bem os ombros.
- Está se fingindo de tartaruga? - gritou Dorath com uma risada grosseira. Agarrou os cabelos de Gurgi com os dedos grossos e puxou para cima a cabeça da criatura. - Não é à toa que você esconde a cara! Que coisa mais feia!
De repente, Dorath se deteve e semicerrou os olhos.
- Feio ele é, e não é fácil esquecê-lo. Ora, vejam! Somos velhos amigos, você e eu. Mais uma vez é meu hóspede! Da última vez que nos encontramos, você era o companheiro de um porcariço.
E dirigiu um olhar a Eilonwy.
- Mas este não é o porcariço.
Dorath segurou o rosto de Eilonwy e, bruscamente, girou-o de um lado para o outro.
- Este rapaz sem barba... Dorath grunhiu de surpresa.
- Como assim? Rapaz? Rapaz coisa nenhuma! Uma jovem! Eilonwy não podia mais se controlar.
- Uma jovem, sim! Meu nome é Eilonwy, Filha de Angharad, Filha de Regat. Sou a Princesa de Llyr. Não gosto que me amarrem e não gosto de levar socos. Não gosto que me toquem, e ficaria agradecida se você parasse de agir assim, imediatamente!
Apesar de estar amarrada, deu chutes vigorosos na direção do malfeitor.
Dorath riu e deu um passo atrás.
- Lembro-me que o Lorde Porcariço uma vez falou sobre você.
E zombando, Dorath fez uma reverência.
- Bem-vinda, Princesa Ranzinza. Você vale mais que qualquer resgate. Entre mim e o seu porcariço existem dívidas antigas a acertar. Você dá a mim e à minha legião o prazer de resolver uma pequena parte desse assunto.
- E eu lhe darei o prazer de nos libertar agora mesmo - rebateu Eilonwy. - E quero a minha esfera de volta.
O rosto de Dorath cobriu-se de manchas vermelhas.
- Você vai ser libertada - disse entre os dentes - daqui a algum tempo, minha linda princesa, daqui a algum tempo. Quando estiver em condições de servir de companhia para porcariços, talvez possa reencontrar o guardador-de-porcos. Pode ser até que ele reconheça os seus encantos, aqueles que restarem.
- Já pensou no que vai sobrar de você quando Taran o encontrar? - replicou Eilonwy.
Até aquele momento, a Princesa de Llyr mantivera a presença de espírito. Mas podia captar os pensamentos do bandido por trás do olhar gelado e, pela primeira vez, ficou bastante assustada.
- Lorde Porcariço e eu vamos ajustar nossas contas quando chegar a hora - respondeu Dorath.
Com um sorriso malicioso, inclinou-se na direção dela.
- Mas agora é a sua vez.
Gurgi se debateu, desesperadamente.
- Não magoe sábia e gentil princesa! - gritou. - Ah, Gurgi vai fazer você pagar pela maldade!
A criatura investiu contra Dorath e tentou cravar os dentes na perna do malfeitor.
Praguejando, Dorath voltou-se para Gurgi e sacou a espada. Eilonwy deu um grito.
Mas antes que o bandido pudesse dar o golpe, uma forma alongada saltou, de súbito, das pedras salientes. Dorath abafou um grito. Sua arma caiu-lhe da mão e ele tombou para trás, a sombra peluda rosnando e dilacerando sua garganta. Os bandidos que estavam ao redor da fogueira levantaram-se bruscamente, e gritaram aterrorizados. Sombras cinzentas surgiam por toda parte, cercando-os. Os salteadores tentavam em vão escapar, pois, aonde quer que se dirigissem, eram empurrados, atirados ao chão pela força de corpos magros e garras cortantes.
Apavorado, Gurgi começou a gritar.
- Socorro, oh, socorro! Oh, espíritos do mal vão acabar com todos nós!
Eilonwy tentava levantar-se. Sentia atrás de si alguma coisa afiada roendo as tiras que a prendiam. Logo depois, suas mãos estavam livres. Moveu-se com dificuldade para a frente, enquanto a sombra cinzenta rasgava as tiras que lhe amarravam os pés. Diante dela, jazia o corpo imóvel de Dorath. Rapidamente, Eilonwy ajoelhou e retirou da jaqueta do malfeitor a esfera dourada. Da sua mão em concha a esfera dourada projetou raios dourados num imenso lobo agachado à sua frente. Do lado da fogueira ela viu, de relance, outros lobos que se retiravam tão depressa quanto chegaram. O que deixaram para trás estava silencioso. Eilonwy estremeceu e desviou os olhos. Os lobos tinham feito um bom trabalho.
Gurgi fora solto por uma loba com uma faixa branca no peito e, embora satisfeito de estar livre das garras dos guerreiros, contraiu a testa e dirigiu um olhar desconfiado à sua salvadora. A loba Briavael piscou os olhos amarelos e lhe sorriu. Contudo, Gurgi preferiu ficar à distância.
Eilonwy, por sua vez, surpreendentemente, não sentia medo nem insegurança. O lobo Brynach sentou-se e observou-a. Eilonwy pôs a mão no pescoço musculoso e peludo do animal.
- Espero que compreenda que estamos tentando lhe agradecer - disse -, embora eu não tenha certeza se você entende ou não. Os únicos lobos que conheci viviam longe daqui, no vale de Medwyn.
Ao ouvir essas palavras, Brynach uivou e abanou o rabo.
- Muito bem, você entendeu mesmo - disse Eilonwy. - Medwyn...
E hesitou.
- Havia dois lobos... Eilonwy juntou as mãos.
- Deve ser! Não quero dizer que posso distinguir um lobo do outro, não à primeira vista. Mas alguma coisa em você faz-me lembrar... Em todo caso, se são vocês, estamos muito contentes por tornar a vê-los. Agradecemos e agora vamos seguir nosso caminho. Embora eu não saiba ao certo qual é o caminho, entende?
Brynach sorriu e não deu a entender que ia embora. Em vez disso, continuou sentado, abriu as mandíbulas e deu um latido alto.
Eilonwy suspirou e sacudiu a cabeça. - Estamos perdidos e tentando encontrar nossos companheiros, mas não tenho a menor idéia de como se diz Porqueiro-Assistente na linguagem dos lobos.
Enquanto isso, Gurgi havia alcançado a mochila de comida e pendurou-a no ombro. Finalmente, percebendo que os lobos não lhe fariam mal, chegou mais perto de Brynach e Briavael e observou-os com enorme interesse, enquanto eles, não menos curiosos, olhavam para ele.
Eilonwy dirigiu-se a Gurgi.
- Tenho certeza de que pretendem nos ajudar. Ah, se eu pudesse entendê-los! De que adianta ser meio-feiticeira se não consigo saber, ao menos, o que um lobo quer dizer?
Eilonwy deteve-se, subitamente.
- Mas... mas acho que entendi! É claro que sim! Escute, um deles acabou de dizer "Conte-nos!". Foi o que ouvi... não, não ouvi, percebi.
Ela olhou para Gurgi, maravilhada.
- Não são palavras. É como se eu, em vez de escutar com os ouvidos, escutasse com o coração. Sei o que é mas não sei explicar. Pensando bem - acrescentou, admirada -, foi o que Taliesin me disse.
- Oh, suprema sabedoria! - exclamou Gurgi. - Oh, sábia princesa que sabe escutar! Gurgi também escuta, mas dentro dele só existem barulhos e murmúrios quando a sua barriga está vazia! Oh, tristeza! Gurgi jamais ouvirá os segredos profundos que são revelados à princesa.
Eilonwy tinha ajoelhado ao lado de Brynach. Falou depressa a respeito de Taran, dos companheiros e do que lhes acontecera. Brynach ergueu as orelhas e latiu como se compreendesse o que acabara de ouvir. O imenso lobo ergueu-se, sacudiu a neve do pêlo alto e, com os dentes, puxou, com gentileza, a manga do casaco de Eilonwy.
- Diz que devemos segui-los - Eilonwy informou Gurgi. - Venha, estamos em boas mãos agora. Ou, diria eu, patas?
Os lobos andavam em silêncio e depressa, seguindo vestígios e trilhas escondidas que uma jovem jamais poderia imaginar. Os dois companheiros faziam o possível para acompanhar o passo rápido de Brynach; mesmo assim, contra a vontade, precisavam parar e descansar. Em tais ocasiões, os lobos não se importavam de esperar, com toda paciência, até que os companheiros estivessem prontos para prosseguir. Ao lado de Eilonwy, Brynach ficava agachado com a cabeça acinzentada entre as patas, e raramente adormecia; as orelhas alertas, moviam-se ao ruído mais leve. Briavael também servia de sentinela e guia, saltando depressa para os picos rochosos, farejando o ar; então, com um movimento de cabeça, chamava os companheiros, indicando que a seguissem.
Eilonwy raramente via o resto da matilha. No entanto, de vez em quando, despertava de um cochilo e se deparava com lobos sentados em círculo, protegendo-a. Pouco depois os animais magros e acinzentados desapareciam nas sombras, enquanto Brynach e Briavael permaneciam. A jovem logo se deu conta que os lobos não eram os únicos animais dos Montes de Bran-Galedd. Certa vez ela viu, rapidamente, um bando de ursos, com seu andar pesado, deslocando-se em fila ao longo de uma cadeia de montanhas. Os animais pararam por um instante e, curiosos, ficaram observando; depois retomaram a marcha. Através do ar puro e gelado ouvia, à distância, o latido de raposas e outros sons, talvez ecos ou respostas a algum sinal desconhecido.
- Estão vigiando toda a região dos montes - Eilonwy sussurrou a Gurgi, mostrando um cume descoberto onde um veado alto surgiu de repente. - Não saberia dizer quantos bandos de malfeitores estão por aí. Se depender dos ursos e dos lobos, não serão muitos.
O lobo Brynach olhou para ela, como se tivesse ouvido as palavras de Eilonwy. Pôs a língua de fora e piscou os olhos amarelos. Em torno dos dentes afiados e brilhantes, os lábios curvaram-se ligeiramente, formando um sorriso inconfundível.
Seguiram em frente. A noite, Eilonwy fez brilhar sua pequena esfera e ergueu-a no alto. Viu que a matilha completa tinha se reunido a eles, mais uma vez, deslocando-se em longas filas de ambos os lados, para além do círculo de luz dourada. Os ursos também acompanhavam, e outros seres da floresta, que ela não enxergava, mas dos quais sentia a presença.
Nos Montes de Bran-Galedd havia muitos lugares onde o perigo e a morte espreitavam. A Princesa de Llyr não estava ciente de tais perigos, mas nada de mau aconteceu quando ela e Gurgi passaram escoltados pelo bando de guardiães silenciosos.
Ao final da manhã seguinte, Briavael, que passara a maior parte do tempo vigiando os caminhos à sua frente, parecia alegre e ansiosa. A loba latia e subia no topo de rochedos altos onde se voltava para o oeste, abanando a cauda com ligeireza e incentivando os companheiros a se apressarem.
- Acho que encontraram Taran! - exclamou Eilonwy. - Não dá para saber o que estão dizendo, mas parece que sim. Homens e cavalos! Uma gata montesa... deve ser Llyan! Mas o que estariam fazendo neste local? Estão se dirigindo ao Descampado Vermelho outra vez?
Eilonwy e Gurgi mal podiam esperar o momento de se reunir aos companheiros; não quiseram parar para comer nem descansar e, várias vezes, Brynach precisou segurar com os dentes o manto de Eilonwy para evitar que a jovem corresse riscos desnecessários entre os montes íngremes. Os viajantes logo chegaram à beira de um abismo, e um grito de alegria irrompeu dos lábios de Eilonwy.
- São eles! São eles!
Apontou para baixo, no vale extenso. Gurgi correra para cima e pulava de alegria.
- Oh, é o gentil mestre! - gritou. - Oh, sim, e o valente bardo! Quase do tamanho de formigas, mas os olhos aguçados de Gurgi podem vê-los!
Estavam tão distantes que Eilonwy precisava apertar os olhos para distinguir as figuras minúsculas. Sabia que a longa descida até o vale tomaria o resto do dia, e estava ansiosa por alcançar os companheiros antes do cair da noite. Já se preparava para começar a descer o morro, quando parou, de repente.
- O que será que estão fazendo? - indagou. - Estão indo direto para aquele muro de pedra. É uma caverna? Veja, é o último cavaleiro. Agora não estou vendo mais nenhum deles. Se é uma caverna, deve ser a maior de Prydain! Não estou entendendo nada. Seria algum tipo de passagem? Ou um túnel? Ah, é revoltante! Só mesmo um Porqueiro-Assistente resolveria desaparecer no momento que fosse encontrado!
O mais depressa possível, Eilonwy começou a descer a encosta. Apesar de toda a correria, a descida parecia interminável. Mesmo com a ajuda de Brynach e Briavael, os dois tinham percorrido pouco mais da metade do caminho quando o sol baixou no oeste e as sombras começaram a se alongar. De súbito, Brynach parou e rosnou profundamente. Os pêlos eriçaram-se e ele arreganhou os dentes. O lobo fixava os olhos no vale e, inquieto, torcia o focinho. Em seguida, Eilonwy compreendeu por que Brynach havia parado. Surgia uma longa fileira de guerreiros que se deslocava, rapidamente, na direção oeste.
Briavael emitiu um som agudo. A voz da loba transmitia a Eilonwy medo e ódio. A princesa sabia por quê.
- Caçadores! - exclamou a jovem. - Parece que são centenas deles de volta a Annuvin. Ah, espero que não vejam as pistas de Taran, embora tudo indique que ele esteja bem a salvo.
Logo depois de dizer essas palavras, percebeu certo movimento no distante muro de pedra e bateu a mão na boca. Das sombras intensas viu reaparecerem, uma a uma, as pequeninas figuras de Taran e seu grupo.
- Não! - disse Eilonwy, quase sem fôlego. - Estão voltando!
Da sua posição favorável, a jovem podia esquadrinhar o vale, e percebia com toda a clareza e perplexidade que os guerreiros dos Condados e os Caçadores, mesmo sem poder ver uns aos outros, acabariam se encontrando.
- Vão cair numa armadilha! - gritou Eilonwy. - Taran! Taran!
Os ecos perderam-se no espaço amplo, coberto de neve. Taran não poderia vê-la nem ouvi-la. Naquele momento, a escuridão precipitara-se sobre o vale, impedindo que a jovem enxergasse o confronto inevitável dos grupos de combate. Era um pesadelo no qual toda ação seria inútil, no qual ela só poderia esperar o massacre. Parecia-lhe que suas mãos estavam amarradas e a voz sufocada.
Ainda gritando o nome de Taran, Eilonwy retirou a esfera de dentro do manto. Ergueu-a no alto. A esfera brilhou intensamente. Temerosos, os lobos afastaram-se, e Gurgi cobriu o rosto com os braços, como se o próprio sol irrompesse da encosta. A luz intensa e límpida inundou os rochedos sombrios e os galhos escuros das árvores. O vale inteiro iluminou-se como se fosse meio-dia.
O Rio de Gelo
Diante da repentina efusão de luz dourada, os Caçadores, assustados, gritaram, e uma onda de pavor agitou a coluna em marcha, fazendo todos recuarem em busca de proteção num desfiladeiro. Imediatamente, Taran compreendeu que, por muito pouco, teria levado os cavaleiros dos Condados a uma armadilha fatal. Mesmo assim, deu um grito de alegria.
- Eilonwy!
Montado em Melynlas, teria atravessado o vale a galope, na direção da encosta, se Fflewddur não o tivesse impedido.
- Espere, espere! - exclamou o bardo. - Ela nos encontrou, sem dúvida. Grande Belin, não há dúvida que essa luz vem da esfera de Eilonwy! Salvou as nossas vidas. Com certeza, Gurgi está com ela; mas se você sair galopando atrás deles, nenhum de vocês vai retornar. Se nós avistamos os Caçadores, estes, por sua vez, também nos viram.
Doli subira no topo de um penedo e observava os Caçadores em retirada. O sinal de Eilonwy apagara-se tão depressa quanto surgira e, em seguida, a escuridão do inverno caiu, mais uma vez, sobre o vale.
- Era só o que faltava! - resmungou o anão. - Sermos agora surpreendidos no nível da superfície! A mina é inútil para nós e será preciso caminhar por mais uma semana para encontrarmos outra passagem. E mesmo que houvesse qualquer outra, não conseguiríamos chegar lá, com um exército de Caçadores bloqueando o caminho.
Fflewddur havia sacado a espada.
- Então, ao ataque! Esses patifes abomináveis tomaram um bom susto. Não vão ter estômago para lutar agora. Vamos avançar contra eles sem qualquer aviso. Grande Belin, com isso eles não podem contar!
Voltando-se para o bardo, Doli bufou.
- Você deixou o seu juízo na mina! Avançar nos Caçadores? Matar um deles e tornar os outros ainda mais fortes? Até mesmo o Povo Formoso pensaria duas vezes antes de atacar esses bandidos. Não, meu amigo, não vai resolver.
- Quando eu era gigante - interveio Glew -, teria sido muito fácil, para mim, mandar todos eles pelos ares. No entanto, apesar de eu não ter culpa nenhuma, os tempos mudaram, e não posso afirmar que mudaram para melhor. Em Mona, por exemplo, eu havia decidido que era preciso dar um jeito naqueles morcegos insolentes. É uma história curiosa...
- Silêncio, coisa insignificante! - ordenou o bardo. - Já falou e fez o bastante.
- Está certo, deixe toda a culpa cair sobre mim - disse Glew, fungando. - É minha culpa que a espada de Gwydion tenha sido roubada, minha culpa que os Nascidos do Caldeirão tenham fugido, minha culpa que outras coisas desagradáveis tenham acontecido.
O bardo não se deu ao trabalho de rebater as lamúrias do antigo gigante. Taran, depois de dispor os guerreiros dos Condados em relativa segurança na entrada do túnel, voltou para perto dos companheiros.
- Doli tem razão - disse Taran. - Se atacarmos os Caçadores, vamos nos destruir. Nossa força já é pequena e não podemos desperdiçá-la. Já nos atrasamos muito e talvez seja tarde demais para ajudar Gwydion. Não, o que precisamos é descobrir os meios de seguir nosso caminho, a despeito dos Caçadores.
Doli sacudiu a cabeça.
- Também não vai resolver. Eles sabem que estamos aqui; se tentarmos nos deslocar, vão perceber. Basta que sigam nossas pistas. A propósito, não me surpreenderia se fôssemos atacados antes do alvorecer. Olhem bem para a pele de vocês, meus amigos. Pode ser a última vez que a vêem inteira.
- Doli - disse Taran, insistentemente -, só você pode nos ajudar agora. Por que não investiga o acampamento dos Caçadores? Descubra tudo o que for possível sobre os planos deles. Eu sei como se sente quando precisa ficar invisível, mas...
- Invisível! - gritou o anão, levando a mão à cabeça. - Sabia que estava para acontecer, mais dia, menos dia. É sempre assim! Doli, amigão! Fique invisível! Não sei se ainda consigo, já tentei esquecer como se faz. Afeta meus ouvidos. Melhor seria encher os meus ouvidos de vespas. Peça o que quiser, mas isso não.
- Doli, amigão - disse Taran. - Estou certo de que você pode fazer isto.
Depois de outra manifestação de relutância, que não convenceu ninguém, além do próprio Doli, o anão ruivo concordou em fazer o que Taran havia pedido. Doli fechou bem os olhos, respirou fundo, como se preparasse para mergulhar em água gelada, e desapareceu. Se não fosse o som abafado de um resmungo, Taran não acreditaria que Doli ainda estivesse ali. Só mesmo o leve estalido de seixos deslocados por pés invisíveis demonstrou a Taran que o anão tinha se afastado do túnel, rumo às fileiras do inimigo.
Sob ordens de Doli, a tropa do Povo Formoso estabeleceu postos de observação num amplo meio-círculo além da entrada do túnel, de onde seus olhos e ouvidos aguçados podiam captar qualquer movimento ou ruído ameaçador. Taran ficava impressionado ao ver como esses guerreiros permaneciam estáticos e quase tão invisíveis como Doli. Suas vestimentas brancas faziam-nos parecer nada mais que pedras cobertas de neve ou montículos congelados à luz da lua, que surgia atrás das nuvens. Os cavaleiros cochilavam junto aos corcéis para se aquecerem. Perto dali, estava Glew, enrascado. No interior do túnel, Fflewddur sentou-se encostado à parede de pedra, uma das mãos na harpa, a outra descansando na cabeçorra de Llyan, que, por sua vez, se esticara ao lado dele e ronronava calmamente.
Taran envolveu-se no manto e, maravilhado, olhou mais uma vez para a encosta onde o sinal luminoso de Eilonwy tinha aparecido.
- Ela está viva - murmurou para si mesmo. - Viva - sussurrou repetidamente, e seu coração disparava cada vez que ele pronunciava tais palavras. Gurgi devia estar com ela, com certeza. Todos os seus sentidos diziam-lhe que os dois companheiros tinham sobrevivido. Através do ar frio veio o latido de um lobo. Havia outros sons, como um grito distante, mas logo se dissiparam, e ele não lhes prestou atenção, repleto que estava da esperança recém-descoberta.
Metade da noite havia se passado quando Doli voltou a aparecer. Estava tão animado que nem se queixou do ruído nos ouvidos, e fez um gesto para que Taran e Fflewddur o seguissem. Determinando que os cavaleiros ficassem em alerta, Taran seguiu, depressa, os companheiros. Atrás de Doli, os guerreiros do Povo Formoso caminhavam num passo lento e regular, silenciosos como sombras brancas.
A princípio, Taran pensava que o anão pretendesse levá-los diretamente ao acampamento dos Caçadores; em vez disso, um pouco antes de chegar lá, Doli tomou outra direção e começou a subir uma elevação bem acima do desfiladeiro.
- Os Caçadores ainda estão lá - disse Doli em voz baixa enquanto subiam. - Não por vontade própria. Temos alguns amigos que não conhecíamos... ursos e lobos, dúzias deles, em toda a orla do desfiladeiro. Um grupo de Caçadores tentou subir. Ainda bem que não me viram, caso contrário, eu não estaria aqui. Mas e/es foram vistos. Foram os ursos que os pegaram. Trabalharam rápido para acabar com aqueles patifes. Trabalho cruel, mas rápido.
- Mataram um grupo de Caçadores? - disse Taran franzindo a testa. - Agora os outros estão mais fortes ainda.
- Deixa estar - retrucou Doli. - Ursos e lobos podem dar conta deles melhor do que nós. Duvido que os Caçadores ataquem hoje à noite. Estão com medo dos animais. Vão permanecer no desfiladeiro até o amanhecer. E é lá que eu quero que estejam. Acho que tive uma idéia.
Tinham então chegado ao topo e se aproximaram das margens de um lago congelado. No declive íngreme, acima da borda da falésia, uma queda-d'agua tremeluzia à luz da lua; tal e qual dedos de um punho imenso, pingentes de gelo enormes agarravam-se à encosta escarpada, como se segurassem o lago em suas gamas enregeladas. Um rio de prata endurecida contorcia-se para baixo, em direção ao desfiladeiro, onde os Caçadores se abrigavam. Taran entreviu as fogueiras ardendo como se fossem olhos malignos na escuridão. Embora não tivesse certeza, parecia-lhe que, no terreno mais acima, formas escuras moviam-se por entre os rochedos e arbustos mimados; talvez fossem os ursos e lobos de que o anão havia falado.
- Ali! - exclamou Doli - O que acham?
- O que acho? - retrucou o bardo. - Meu amigo, acho que foi você quem perdeu o juízo na mina. Você nos guiou e fizemos uma boa escalada, mas este não é o momento apropriado para se admirarem as belezas da natureza.
O anão pôs as mãos na cintura e, exasperado, olhou para Fflewddur.
- Às vezes penso que as idéias de Eiddileg a respeito dos humanos estão certas. Será que você não consegue enxergar além do nariz? Não enxerga mesmo? Estamos quase em cima dos facínoras. Solte o lago! Solte a cascata! Deixe que escorra para baixo! Direto no acampamento!
Taran perdeu o fôlego. Por um instante, seu coração bateu cheio de esperança. Então sacudiu a cabeça.
- O desafio é grande demais, Doli. Não temos domínio sobre o gelo.
- Então derreta-o - gritou o anão. - Corte galhos, arbustos, tudo que puder ser queimado. Se o gelo estiver muito espesso, quebre-o! Quantas vezes preciso lhe dizer? Vocês estão lidando com o Povo Formoso!
- Será mesmo possível? - sussurrou Taran.
- E eu teria falado isso se achasse que não daria certo? - rebateu o anão.
Admirado, Fflewddur deu um longo assobio.
- Você pensa em termos grandes, velho companheiro. Mas a idéia me atrai. Grande Belin, se conseguíssemos realizar o plano, poderíamos atingi-los num só golpe! E nos livraríamos deles de uma vez por todas!
Doli não estava mais prestando atenção ao bardo, e sim dando ordens rápidas aos guerreiros do Povo Formoso, que pegaram seus machados e, a toda velocidade, começaram a cortar as árvores, arrancar a vegetação rasteira e arrastar os fardos, rapidamente, até o lago.
Deixando de lado as dúvidas, Taran sacou a espada para derrubar os galhos. Fflewddur trabalhava ao lado dele. Apesar do ar frio, o suor escorria de suas testas; a respiração ofegante formava uma cerração branca diante de seus rostos. Da cascata congelada ouviam-se as batidas dos machados do Povo Formoso. No meio dos guerreiros, Doli corria, aumentando a pilha de arbustos e galhos, movendo pedras e seixos para formar um canal mais direto e rápido.
Já anoitecia. Taran tropeçava de exaustão; suas mãos, dormentes de frio, tinham cortes e sangravam. Fflewddur mal podia ficar de pé. Mas o empenho do Povo Formoso jamais esmorecia. Antes do amanhecer, pilhas de troncos e gravetos abarrotavam o lago e a queda-d'água, como se uma floresta tivesse crescido ali. Foi então que Doli se deu por satisfeito.
- Agora vamos atear fogo - disse a Taran. - Os pavios do Povo Formoso queimam mais rápido do que qualquer um que vocês, humanos, conheçam. Vai incendiar imediatamente.
Deu um assobio agudo. Em toda a extensão do lago, os archotes do Povo Formoso flamejaram e, em seguida, arquearam, tal e qual estrelas cadentes, no momento em que os guerreiros lançaram-nos na pira. Taran viu os primeiros galhos pegarem fogo, e em seguida, o resto. Um estalo violento encheu seus ouvidos, e mais alto que este ruído foram os gritos de Doli avisando os companheiros de que se afastassem depressa do fogo. Uma onda de calor, semelhante a um sopro de fornalha, atingiu Taran no momento em que ele procurava apoiar-se em meio às pedras. O gelo estava derretendo. Ele ouviu o chiado de chamas que se extinguiam. Mas o fogo era alto e não se apagaria por completo. Ao contrário, tomava-se cada vez mais intenso. Do canal ouviram-se um estrondo e o gemido dos pedregulhos que se deslocavam, pressionados pela enchente em formação. Num instante, tal e qual um portão que se rompe das dobradiças ou uma parede que desaba, a lateral da escarpa cedeu, e através do canal precipitou-se um lençol d'água carregando tudo que estava no caminho. Imensos blocos de gelo estrondearam morro abaixo, saltando e rolando como se não passassem de seixos. O fluxo veloz arrastava os galhos em chamas; acima da torrente nuvens de faíscas avolumavam-se e rodopiavam, e todo o córrego se incendiava.
Abaixo, no desfiladeiro, os Caçadores gritaram e tentaram fugir. Tarde demais. No ímpeto, as águas e os pedregulhos derrubavam os guerreiros quando estes tentavam escalar a ribanceira. Gritando e amaldiçoando, os homens caíam ao pé da cascata, ou eram lançados no ar como lascas de madeira e atirados contra os rochedos. Taran viu alguns deles chegarem ao terreno mais elevado, mas, ao fazê-lo, formas escuras saltavam para agarrá-los; era a vez dos animais, à espreita, vingarem-se daqueles que, sem piedade, sempre os caçaram e os abateram.
Fez-se o silêncio no desfiladeiro. A luz do alvorecer, Taran observou o lampejo da água escura que inundara a garganta. Alguns galhos ainda queimavam, outros estavam em brasa, e uma nuvem de fumaça pairava. Um chocalhar de pedras atrás dele fez Taran girar e desembainhar a espada.
- Olá! - disse Eilonwy. - Voltamos!
- Que jeito estranho de dar as boas-vindas - prosseguiu Eilonwy enquanto Taran, sem conseguir falar de tanta emoção, olhava-a sem dizer uma palavra. - Podia, ao menos, dizer qualquer coisa.
Enquanto Gurgi dava gritos de alegria, tentando cumprimentar todos de uma só vez, Taran caminhou depressa em direção a Eilonwy, e a abraçou.
- Eu tinha perdido a esperança...
- Que bobagem - respondeu Eilonwy. - Eu nunca perdi. Embora reconheça que passei por alguns momentos difíceis com aquele bandido Dorath, e poderia contar-lhe histórias inacreditáveis sobre lobos e ursos. Vou guardá-las para mais tarde, depois que você me contar o que lhe aconteceu. Quanto aos Caçadores - prosseguiu, à medida que os companheiros reunidos tomavam o caminho do túnel -, presenciei tudo. No começo não tinha a menor idéia do que vocês pretendiam fazer. Depois entendi. Foi maravilhoso. Devia ter percebido que havia ali o toque de Doli. Doli, amigão! Parecia um rio de gelo incandescente...
A princesa deteve-se de súbito e arregalou os olhos.
- Vocês têm idéia do que fizeram? - sussurrou. - Não estão vendo?
- Se temos idéia do que fizemos? - riu Fflewddur. - Decerto que sim! Nós nos livramos dos Caçadores e foi um bom trabalho. Não poderia ter sido melhor. Quanto ao que vejo, estou mais satisfeito pelo que não vejo, se você entendeu, para ser explícito: nenhum vestígio daqueles bandidos.
- A profecia de Hen Wen! - exclamou Eilonwy. - Uma parte já se realizou! Será que vocês todos se esqueceram? A noite transforma-se no dia e rios queimam no fogo de gelo antes que Dyrnwyn seja resgatada. Bom, vocês queimaram um rio, pelo menos foi o que me pareceu. Fogo de gelo poderia significar todo aquele gelo e galhos incendiados, não é mesmo?
Taran olhava atentamente para a princesa. Suas mãos tremeram quando as palavras da profecia ecoaram-lhe na memória.
- Então você percebeu o que nós mesmos não pudemos perceber? Mas será que você não fez tanto quanto nós? E nem mesmo se deu conta? Pense! A noite transforma-se no dia. Da escuridão a sua esfera fez a luz do dia!
Foi a vez de Eilonwy ficar surpresa.
- E foi isso mesmo! - exclamou.
- Sim, sim! - gritou Gurgi. - A porca sábia disse a verdade! Espada poderosa será encontrada!
Fflewddur pigarreou.
- Um Fflam é sempre otimista - disse -, mas, neste caso, devo lembrá-los que a profecia também disse que a chama de Dyrnwyn será apagada, e o poder da espada, extinto, o que não nos deixa em melhor situação do que antes, mesmo que encontremos a arma. Também me lembro de algo a respeito de pedir que pedras mudas falem. Até agora não ouvi nenhuma palavra das pedras daqui, embora, em se tratando de pedregulhos e rochedos, a quantidade não seja pequena. A única mensagem que me passaram é que não são confortáveis para se dormir. E mais, se querem a minha opinião, eu diria que, em primeiro lugar, não confiem em profecias. De acordo com a minha experiência, afirmo que essas predições são tão ruins quanto feitiços e só levam ao seguinte: encrenca.
- Eu mesmo não entendo o significado da profecia - disse Taran. - Serão sinais de esperança ou estamos nos iludindo? Somente Dallben e Gwydion têm discernimento para interpretá-los. Mesmo assim, ainda resta alguma esperança. Mas Fflewddur tem razão. Agora, nossa tarefa não é mais fácil do que antes.
Doli fez uma careta.
- Não é mais fácil? Agora é impossível. Se ainda pensa em chegar ao Descampado Vermelho, quero preveni-lo de que os Nascidos do Caldeirão estão muito distantes.
Ele bufou.
- Não quero saber de profecias. É o tempo que me preocupa. E já nos demoramos muito.
- Também tenho pensado muito nisso - respondeu Taran. - Tem sido a minha preocupação desde que o túnel caiu. Acredito que nossa única chance seja atravessarmos as montanhas e tentar deter os Nascidos do Caldeirão quando eles se voltarem para o noroeste, em direção a Annuvin.
- Vã esperança - respondeu Doli. - O Povo Formoso não pode se arriscar a ir tão longe. É terra proibida. Chegar tão perto do reino de Arawn significaria o fim do Povo Formoso. O posto de trânsito de Gwystyl era o mais próximo da Terra da Morte, e vocês viram como a sua digestão e seu humor foram afetados. Melhor seria deixar vocês seguirem seu caminho. Um de nós precisa ir com vocês - acrescentou. - Já podem saber de quem se trata. O Doli, amigão! Já fiquei tanto tempo com vocês, humanos, à superfície, que Annuvin não vai me afetar.
- Sim, irei com vocês - prosseguiu Doli, furioso. - Não vejo outra saída. Doli, amigão! Às vezes eu preferia não ter um temperamento assim... tão dócil. Hum!
O Feiticeiro
Fazendo lembrar uma criança cansada, o ancião debruçou-se sobre a mesa repleta de livros e apoiou a cabeça no braço. Por cima dos ombros ossudos pusera um manto; na lareira, o fogo ainda crepitava, mas o frio daquele inverno afetava-o ainda mais do que qualquer outro. Aos seus pés, Hen Wen estava inquieta, e seu choro era alto e tristonho. Dallben, que não estava completamente adormecido nem desperto, esticou a mão para baixo, e com leveza coçou a orelha do animal.
A porca não sossegava. O focinho cor-de-rosa retorcia-se, e ela roncava e resmungava de tristeza, tentando esconder a cabeça nas dobras da túnica dele. Afinal, o feiticeiro ergueu-se.
- O que foi, Hen? Chegou a nossa vez?
Fez um afago na porca para reconfortá-la, e levantou-se do banco de madeira.
- É só um momento que precisa ser superado, e nada mais, seja qual for o resultado.
Sem pressa, pegou um longo bastão de madeira de freixo e, apoiando-se nele, saiu do aposento, mancando.
Hen Wen seguia-o de perto. Próximo à porta do chalé, agasalhou-se melhor com o manto, e saiu caminhando, noite adentro. A distância, a lua cheia percorria o céu profundo. Dallben parou e escutou com atenção. Para outros ouvidos podia ser que a fazendola, assim como a lua, estivesse silenciosa, mas o velho feiticeiro, com a testa vincada, olhos semicerrados, balançou a cabeça em sinal afirmativo.
- Tem razão, Hen Wen - murmurou. - Posso ouvi-los. Mas ainda estão longe. E então - acrescentou, com um sorriso enrugado -, terei de esperar por eles até que o tutano que me resta nos ossos congele?
No entanto, em vez de entrar no chalé, deu mais alguns passos no pátio da entrada. Seus olhos, que estiveram pesados de sono, tornaram-se brilhantes como cristais de gelo. Olhou atentamente na direção das árvores desfolhadas do pomar, como se pudesse enxergar por entre as sombras que, tal e qual gavinhas de heras negras, entrelaçavam a floresta.
- Diria que são 20 - observou Dallben e, em seguida, acrescentou, de esguelha: - Não sei se devo me sentir ofendido ou aliviado. Só 20? É um número irrisório. Ao mesmo tempo, mais do que isso seria incômodo numa viagem longa, especialmente em meio à luta no Vale de Ystrad. Não, 20 é um número suficiente e bem escolhido.
Por algum tempo o ancião aguardou, quieto e paciente. Afinal, através do ar límpido, um som fraco de batidas de cascos tornou-se mais acentuado e parou, como se os cavaleiros tivessem desmontado e agora estivessem puxando seus corcéis.
Em contraste com o emaranhado escuro de árvores onde a floresta se erguia na extremidade do campo de restolho, os vultos fugidios poderiam ser apenas as sombras dos arbustos. Dallben empertigou-se, ergueu a cabeça e soltou a respiração bem devagar, como se soprasse a lanugem de um cardo.
Logo, um vento cortante assobiou pelo campo. A pequena fazenda estava tranqüila, mas o vento irrompia com a força de milhares de espadas e, na floresta, as árvores batiam-se e sacudiam-se. Cavalos relinchavam, homens gritavam quando os galhos os atingiam. A ventania atacava os guerreiros, que erguiam os braços para se protegerem.
Mesmo assim, o grupo de combatentes avançou, lutando para transpor a floresta açoitada pelo vento e, finalmente, chegaram ao campo de restolho. Diante da investida da ventania, Hen Wen, guinchando de medo, virou as costas e correu para dentro do chalé. Dallben ergueu a mão e o vento parou, tão depressa quanto surgiu. Com a testa contraída, o ancião bateu o bastão na relva congelada.
Ouviu-se um forte trovão, o solo estremeceu; o campo agitava-se, fazendo lembrar o mar incansável. Os guerreiros cambaleavam, tropeçavam, e em meio aos atacantes, muitos fugiram em busca da proteção da floresta, temendo que a própria terra pudesse se abrir e engoli-los. Os demais, instigando uns aos outros, sacaram as espadas, e aos trancos e barrancos atravessaram o campo, comendo em direção ao chalé.
Com alguma irritação, Dallben estendeu o braço, posicionando os dedos como se preparasse para atirar pedras num lago. De sua mão foi lançada uma chama vermelha que se espalhou como um açoite, dando golpes flamejantes de encontro ao céu negro.
Os guerreiros gritaram quando cordas em chamas apanharam-nos e enrascaram braços e pernas. Os cavalos soltaram-se e partiram num galope enlouquecido para o interior do bosque. Os atacantes jogaram as armas no chão e, em desespero, rasgaram mantos e jaquetas. Aos gritos de dor e pavor, os homens cambaleavam e precipitavam-se em fuga desabalada para a floresta.
As chamas desapareceram. Preparando-se para voltar, Dallben vislumbrou uma figura que ainda percorria o campo vazio. Assustado, o idoso agarrou o bastão e, com dificuldade, caminhou o mais depressa que pôde em direção ao chalé. Depois de passar pelos estábulos, o guerreiro já estava próximo ao pátio da entrada. Com o barulho dos passos atrás dele, Dallben apressou-se para atravessar a soleira da porta, mas, assim que o ancião se refugiou nos seus aposentos, o guerreiro irrompeu pela porta. Dallben virou-se para enfrentar o invasor,
- Cuidado! - gritou o feiticeiro. - Cuidado! Não dê mais nenhum passo!
Dallben esticara-se para ficar o mais alto possível. Seus olhos faiscavam e o tom de voz era tão autoritário que o guerreiro hesitou. O capuz do homem caiu para trás, e o reflexo do fogo tremulou nos cabelos dourados e nas feições altivas de Pryderi, Filho de Pwyll.
Os olhos de Dallben jamais oscilavam.
- Há muito esperava por você, Monarca dos Reinos Ocidentais.
Pryderi fez menção de dar um passo à frente. Sua mão baixou ao botão da espada desembainhada, presa ao cinturão. Contudo, o olhar do ancião deteve-o.
- O senhor se engana ao se dirigir a mim - disse Pryderi, com sarcasmo. - Agora domino um reino maior. A própria Terra de Prydain.
- Mas então - replicou Dallben, fingindo surpresa - Gwydion da Casa de Don não é mais o Rei Supremo de Prydain?
Pryderi deu uma risada grosseira.
- Um monarca sem reino? Um rei maltrapilho, caçado como se fosse uma raposa? Caer Dathyl foi derrotada, os Filhos de Don estão espalhados para todos os lados. Isto o senhor já sabe, embora me pareça que as notícias chegaram aqui muito depressa.
- O senhor se vangloria dos seus poderes? - perguntou Pryderi, com ironia. - Afinal, quando mais precisava deles, falharam. Seus feitiços serviram apenas para assustar um punhado de guerreiros. Será que o talentoso Dallben orgulha-se de afugentar camponeses?
- Meus feitiços não pretendiam destruir, e sim alertar - retrucou Dallben. - Este é um lugar perigoso para todos que vêm aqui sem o meu consentimento. Seus seguidores atenderam ao meu aviso. Mas não você, Lorde Pryderi, infelizmente. Aqueles camponeses são mais sábios do que o próprio rei, pois um homem que procura a própria morte não é sensato.
- Engana-se novamente, feiticeiro - disse Pryderi. - É a sua morte que procuro.
Dallben puxou as mechas da barba.
- O que procura e o que pode encontrar podem ser coisas diferentes, Filho de Pwyll - disse, em voz baixa. - Sim, você poderia acabar com a minha vida. Para mim isso não é segredo. Caer Dathyl foi derrotada? Essa vitória é inútil enquanto Caer Dallben existir e enquanto eu viver. Durante muito tempo, duas fortalezas confrontaram o Lorde de Annuvin: um castelo dourado e um chalé. O primeiro está em ruínas. O outro, no entanto, ainda é um escudo contra o mal, e uma espada sempre voltada para o coração de Arawn. O Lorde-da-Morte está ciente disto, e sabe muito bem que nem ele, nem os Caçadores, nem os Nascidos do Caldeirão podem entrar aqui.
- Por isso você veio - acrescentou Dallben - cumprir as ordens do seu mestre.
Um rubor de raiva espalhou-se pelo rosto de Pryderi.
- Eu sou o meu próprio mestre! - exclamou. - Se o poder de servir Prydain é a mim concedido, por acaso terei receio de usá-lo? Não sou qualquer Caçador que mata por prazer. Faço o que deve ser feito, e não me esquivo. Meu objetivo é maior do que a vida de um homem, ou mil homens. E se o senhor deve morrer, Dallben, que seja.
Pryderi arrancou a espada do cinturão e, num movimento brusco, golpeou o feiticeiro. Mas Dallben agarrara o bastão com mais firmeza e o erguera de encontro ao golpe. Ao bater na madeira leve, a espada de Pryderi despedaçou-se, e os fragmentos ressoaram ao cair no solo. Pryderi atirou ao chão o cabo da espada. Mesmo assim, não era medo que lhe enchia os olhos, mas desdém.
- Alertaram-me a respeito de seus poderes, bruxo. Decidi submetê-los à prova.
Dallben não se movera.
- Foi mesmo alertado? Penso que não. Se isso tivesse ocorrido, não ousaria me enfrentar.
- Sua força é imensa, mago - disse Pryderi -, mas não é tão grande quanto sua fraqueza. Lute contra mim como bem entender. No final serei eu a vencer. De todos os poderes, um deles lhe é proibido e pode lhe custar a própria vida. O senhor é o mestre dos ventos? Pode fazer o solo tremer? São brincadeiras inúteis. Não pode fazer o que o guerreiro mais simples faz: o senhor não pode matar.
De seu manto, Pryderi tinha retirado um punhal negro e curto que ostentava no botão do punho o brasão de Annuvin.
- Tal proibição não se aplica a mim - disse. - Em virtude de ter sido bem alertado, armei-me bem. Esta lâmina vem do próprio Arawn. Pode ser usada à revelia de qualquer um dos feitiços de que o senhor lançar mão.
Um olhar de piedade e tristeza profunda enchera a face enrugada de Dallben.
- Tolo infeliz - murmurou. - É verdade. Esta arma de Annuvin pode acabar com a minha vida e eu não posso paralisar a sua mão. Mas você é tão cego quanto a toupeira que trabalha na terra. Pergunte agora, Lorde Pryderi, quem é o mestre e quem é o escravo? Arawn traiu-o.
- Sim, traiu-o - disse Dallben, e sua voz era áspera e fria. - Você pensou que era ele que o servia. Mesmo assim, sem perceber, você o serviu melhor do que qualquer um dos mercenários de Annuvin. Ele mandou que você me matasse e lhe deu os meios para tal. Mas o triunfo será de Arawn e não seu. Executada a ordem, você será inútil palha de milho para o Lorde de Annuvin. Ele sabe muito bem que jamais permitirei que você saia vivo de Caer Dallben. Você é um homem morto, Lorde Pryderi, ainda que esteja aí, de pé.
Pryderi ergueu o punhal negro, dizendo:
- Com palavras pretende evitar a sua morte.
- Olhe pela janela - respondeu Dallben.
Nem bem terminara de falar e um clarão avermelhado atravessou o batente. Uma larga faixa de labaredas ergueu-se e circundou Caer Dallben. Pryderi perdeu o equilíbrio e deu um passo atrás.
- Você acreditou em meias verdades - disse Dallben. - Até hoje, minhas mãos não causaram a morte de nenhum homem. Mas aqueles que desprezam meus feitiços arriscam a própria vida. Mate-me, Lorde Pryderi, e as chamas que vê varrerão Caer Dallben num instante. Não há saída para você.
As feições douradas de Pryderi alteraram-se, expressando incredulidade misturada ao medo crescente que sentia diante das palavras do feiticeiro.
- O senhor está mentindo - sussurrou num tom áspero. - As chamas vão se apagar e o senhor também.
- Isto, Lorde, você mesmo terá de comprovar - disse Dallben.
- Eu tenho a minha prova! - exclamou Pryderi. - Arawn não destruiria o que mais quer. As tarefas eram duas. Com toda a sua sabedoria, o senhor não adivinhou quais seriam. Sua morte era apenas uma delas. A outra, conseguir O Livro dos Três.
Dallben sacudiu a cabeça tristemente e olhou para o volume pesado, encadernado de couro.
- Então, você foi traído duas vezes. Este livro de nada servirá a Arawn, assim como não servirá a nenhum propósito maligno. Nem servirá a você, Lorde Pryderi.
O poder da voz do ancião era como um vento gelado.
- Você mergulhou as mãos em sangue e seu orgulho o fez julgar seus semelhantes. Pretendia ser útil a Prydain? Para tanto escolhe métodos cruéis. Uniu-se a Arawn em função do que considerava uma causa nobre. Agora é prisioneiro do próprio mal que pretendia derrotar, prisioneiro e vítima. Pois, no Livro dos Três você já está marcado para morrer.
Os olhos de Dallben inflamaram-se e a veracidade de suas palavras parecia apertar o pescoço de Pryderi. A face do rei estava pálida. Com um grito, largou o punhal para pegar o volume enorme. Suas mãos esticaram-se, desesperadamente, como se fossem rasgar o livro em pedaços.
- Não o toque! - ordenou Dallben.
Mas Pryderi já o havia tocado. Ao fazê-lo, um raio cegante saltou do antigo volume como se fosse uma árvore incandescente. O grito agudo da morte de Pryderi ecoou no recinto.
Dallben voltou-se e inclinou a cabeça, como se lhe pesasse uma tristeza profunda. Mais ao longe, na pequena fazenda, o círculo de fogo definhou e se extinguiu na madrugada silenciosa.
A Tempestade de Neve
Ao chegar à fileira de penhascos desarborizados que delimitava o extremo oeste dos Montes de Bran-Galedd, os guerreiros do Povo Formoso retrocederam, pois além daquele marco a região encontrava-se sob o domínio de Arawn, o Lorde-da-Morte. Alguns dias haviam-se passado desde que os companheiros iniciaram a árdua caminhada através do deserto pedregoso, onde nem musgo, nem líquen cresciam. O céu estava acinzentado e as raras nuvens finas não passavam de faixas mais escuras. Era como se uma névoa maligna tivesse escapado da fortaleza de Annuvin, sufocando todas as coisas viventes, deixando apenas aquele descampado de pedra.
Os companheiros quase não conversavam, poupando forças. Desde o primeiro dia, quando já se encontravam nos limites da Terra da Morte, foram obrigados a desmontar e seguir a pé, passando a conduzir os cavalos pelos caminhos traiçoeiros. Mesmo o garanhão Melynlas mostrava sinais de fadiga; o pescoço vigoroso do corcel estava curvado e, algumas vezes, seu passo falhava. Llyan, no entanto, caminhava com destreza pelas saliências mais estreitas e perigosas. Muitas vezes, enquanto os companheiros faziam esforço para descer uma rampa íngreme para, em seguida, escalar outra ainda mais acentuada, a enorme gata pulava de um rochedo para o próximo e, mais adiante, eles a encontravam sentada com a cauda enrolada ao redor das patas traseiras, esperando que Fflewddur lhe afagasse as orelhas para, em seguida, saltar de novo.
Doli, segurando com firmeza o bastão, o capuz branco bem puxado sobre o rosto, fazia a marcha difícil na dianteira do pequeno grupo. Taran não deixava de admirar o incansável anão, que encontrava, como se fosse por instinto, trilhas encobertas e caminhos estreitos que os ajudavam a fazer mais rápido o percurso acidentado.
Contudo, passado algum tempo, o ritmo de Doli parecia esmorecer. Cada vez mais preocupado e inseguro, Taran constatou que, de vez em quando, o anão perdia o equilíbrio e, de repente, sua passada falhava. Quando Doli cambaleou e caiu sobre um dos joelhos, Taran assustou-se e comeu para perto dele tentando erguê-lo. Os companheiros aproximaram-se rapidamente.
A costumeira face rosada de Doli estava manchada, e ele ofegava. Fez o possível para se levantar.
- Droga de reino maldito - resmungou. - Não consigo suportar isso aqui tão bem quanto havia pensado. Não me olhem desse jeito! Ajudem-me a ficar de pé.
Teimoso como era, o anão recusou-se a montar um dos cavalos, insistindo que se sentia melhor quando os pés estavam no chão. Quando Taran pediu-lhe que descansasse, Doli sacudiu a cabeça, irritado.
- Eu disse que encontraria uma passagem para você - reagiu. - E é o que pretendo fazer. Não suporto trabalho malfeito. Quando o Povo Formoso se propõe a realizar uma tarefa, eles a realizam bem, e não perdem tempo.
Entretanto, logo depois, com muito custo, Doli consentiu montar em Melynlas. Atrapalhou-se com os estribos, mas ficou irritado e resmungou quando Fflewddur o ajudou a subir na sela.
Mas esse alívio não durou muito. Sem forças, a cabeça do anão pendia para a frente, ele oscilava e, antes que Taran pudesse alcançá-lo, balançou no dorso do cavalo e foi ao chão.
Rapidamente, Taran fez um sinal com a mão, ordenando a interrupção da marcha.
- Hoje não avançaremos mais - disse ao anão. - Pela manhã você terá recuperado a força.
Doli sacudiu a cabeça. Sua face empalidecera, os olhos vermelhos estavam opacos.
- De nada adianta esperar - disse ele, ofegante. - Já fiquei muito tempo aqui. E vai piorar. Preciso continuar enquanto puder guiá-los.
- Não à custa da sua vida - disse Taran. - Hevydd, o Ferreiro, vai levá-lo até a fronteira. Llassar, Filho de Drudwas, vai nos ajudar a encontrar o nosso caminho.
- Não vai adiantar - murmurou o anão. - Sem a perícia do Povo Formoso vai demorar muito. Amarre-me à sela - exigiu.
Fez o que pôde para se levantar, mas caiu para trás e ficou imóvel. Sua respiração tornou-se áspera e intensa. Taran deu um grito de susto.
- Está morrendo. Depressa, Fflewddur. Ajude-me a colocá-lo sobre Llyan. Ela é a montaria mais rápida. Vá com ele. Talvez ainda haja tempo.
- Deixe-me aqui - disse Doli, arfando. - Não podem dispensar Fflewddur. Sua espada vale por dez. Ou seis, ao menos. Vão embora, depressa.
- Isso não vou fazer - retrucou Taran.
- Tolo! - disse o anão, sufocando. - Ouça-me! - ordenou. - O trabalho precisa ser feito. Você é um chefe militar ou um Porqueiro-Assistente?
Taran ajoelhou-se perto do anão, cujos olhos estavam quase fechados e, gentilmente, pôs-lhe a mão no ombro.
- É pergunta que se faça? Sou um Porqueiro-Assistente. Taran ergueu-se para ir ao encontro do bardo, que logo trouxera Llyan, mas, quando se voltou para o anão, o local estava vazio. Doli desaparecera.
- Aonde ele foi? - gritou Fflewddur.
Uma voz irritada veio de algum lugar perto de um rochedo.
- Estou aqui! Onde mais?
- Doli! - gritou Taran. - Você estava quase morrendo, e agora...
- Fiquei invisível, como qualquer ignorante, com o mínimo de bom senso, pode perceber - disse Doli, zangado. - Eu devia ter pensado nisso antes. A última vez que estive em Annuvin, fiquei invisível na maior parte do tempo. Não fizera idéia de que era isso que me protegia.
- E agora vai resolver? - perguntou Taran, ainda um pouco desnorteado. - Devemos continuar?
- É claro - retorquiu o anão. - Já estou melhor, mas terei de permanecer invisível. O quanto puder, bem entendido! Invisível! Marimbondos e vespas nos meus ouvidos!
- Doli, amigão! - exclamou Taran, procurando, inutilmente, tocar a mão invisível do companheiro.
- Essa não, outra vez! - disse Doli, rispidamente. - Eu não faria isso de boa vontade... ai, meus ouvidos... por nenhum mortal de Prydain... ai, minha cabeça... a não ser por você! E não grite! Meus ouvidos não suportam gritos!
O bastão de Doli, que havia caído, pareceu erguer-se sozinho quando o anão invisível o apanhou. Pelo movimento do bastão, Taran podia ver que Doli recomeçara a marcha difícil.
Os companheiros continuaram a caminhar, orientando-se pela localização da vara. No entanto, mesmo que não pudessem vê-la, poderiam ter encontrado o caminho, guiados pelo som alto dos resmungos.
Fflewddur foi o primeiro a avistar os guidaintes. A distância, acima de um desfiladeiro, três figuras negras e aladas planavam em círculo.
- O que será que encontraram? - gritou o bardo. - Seja o que for, espero que nós não sejamos os próximos!
Taran tocou a trompa, avisando o grupo de combate de que procurasse qualquer refúgio em meio aos enormes rochedos. Eilonwy, ignorando as ordens de Taran, escalou até o alto de uma pedra saliente e esticou a mão na altura da testa.
- Não tenho certeza - disse Eilonwy -, mas parece que eles cercaram alguma coisa. Pobre criatura. Não vai conseguir resistir por muito tempo.
Gurgi agachou-se, apavorado, junto a um penedo, e tentou achatar-se como um peixe.
- Nem Gurgi poderá resistir se os guidaintes o virem - choramingou. - Vão cortar e retalhar a sua cabeça mimosa!
- Em frente! Em frente! - gritou Glew, o pequeno rosto contraído de medo. - Estão ocupados com a presa. Não fiquem parados aqui como bobos. Vão para o mais longe possível. Ah, se eu pudesse ser um gigante outra vez, vocês não me veriam aqui, perdendo tempo!
Os guidaintes fecharam o círculo e começaram a baixar, rapidamente, buscando a vítima. Mas, de repente, algo parecido com uma nuvem preta guiada por uma forma escura desceu a toda velocidade do quadrante leste do céu. Antes que os companheiros pudessem acompanhar o movimento rápido, a nuvem partiu-se, talvez por ordem da forma que a liderava, em fragmentos alados que avançaram nos pássaros enormes. Mesmo àquela distância, Taran ouvia os gritos furiosos dos guidaintes, quando eles mudaram o rumo para enfrentar os estranhos atacantes.
De um salto, Fflewddur aproximara-se de Eilonwy e, assim que Taran e Doli subiram até um ponto de observação, o bardo gritou, entusiasmado:
- Corvos! Grande Belin! Nunca vi tantos! Parecendo marimbondos, os corvos enxameavam-se acima do inimigo; não era um combate isolado de pássaro contra pássaro, mas uma batalha na qual destacamentos inteiros de corvos agarravam-se às asas dos guidaintes, sem se preocupar com os bicos afiados e as garras das criaturas, forçando-as a pousar. Assim que os pássaros gigantescos conseguiam se livrar, à força, de seus atacantes, um grupo novo se formava e renovava o ataque. Os guidaintes procuravam livrar-se do estorvo, precipitando-se, passando o mais perto possível das pedras brutas. Mas ao fazê-lo, os corvos bicavam-nos com toda a fúria, e os guidaintes, estonteados, rodopiavam e adejavam, perdendo o curso e, mais uma vez, se expondo ao incansável ataque.
Numa última erupção de força, os guidaintes abriram caminho para o alto; fizeram a volta e voaram desesperadamente rumo ao norte, com os corvos a persegui-los implacavelmente. E desapareceram além do horizonte, todos, exceto um corvo solitário, que voou rapidamente na direção dos companheiros.
- Kaw! - gritou Taran estendendo os braços.
Grasnando o mais alto que podia, o corvo desceu rapidamente. Seus olhos faiscavam, vitoriosos, e ele batia as asas brilhantes, mais orgulhoso que um galo. Grasnava, corvejava, crocitava, deixando escapar uma torrente de gritos que fazia Gurgi tapar os ouvidos com as mãos.
Empoleirado no pulso de Taran, Kaw oscilava a cabeça e batia o bico, inteiramente satisfeito consigo mesmo, e nem por um instante parou de tagarelar.
Taran não conseguia interromper o falatório rouco e presunçoso de Kaw, e já havia perdido a esperança de pedir notícias ao pássaro travesso quando ele bateu as asas, procurando alçar vôo novamente.
- Achren! - grasnou Kaw. - Achren! Rainha!
- Você a viu?
Taran prendeu a respiração. Desde que Achren fugira de Caer Dallben, ele não se lembrara dela, outrora tão poderosa.
- Onde ela está? - perguntou.
O corvo esvoaçou para perto dali e voltou em seguida.
- Perto! Perto! Guidaintes!
- Foi o que vimos - disse Eilonwy, arfando. - Os guidaintes mataram-na!
- Vive! - respondeu Kaw. - Ferida!
Taran ordenou que os cavaleiros dos Condados esperassem por ele e, em seguida, pulou no chão para seguir Kaw. Eilonwy, Doli e Gurgi seguiam-no às pressas. Glew não queria se mover, alegando que já havia se arranhado bastante nas pedras e não pretendia desviar-se do caminho por causa de ninguém.
Por um momento Fflewddur ficou indeciso.
- Sim, pensando bem, creio que eu também deva ir junto, caso você precise de ajuda para carregá-la. Mas, a meu ver, existe algo de estranho no ar. Achren estava impaciente por seguir o próprio caminho, e sou levado a crer que não devíamos intervir. Não é que ela me assuste, de jeito nenhum... hã, a verdade é que... - acrescentou rapidamente, quando as cordas se esticaram - essa mulher me dá calafrios. Desde o dia em que ela me atirou na masmorra. Notei que havia algo hostil na sua atitude. Ela não gosta de música. Apesar disso, um Fflam se dispõe ao resgate! - exclamou.
Parecendo um monte de farrapos pretos, a figura imóvel da Rainha Achren jazia na fenda de um rochedo onde ela, na sua última esperança, tentara escapar dos bicos e garras cruéis dos guidaintes. Contudo, Taran apiedou-se da rainha ao constatar que o refúgio mal lhe servira. Achren dava gemidos fracos, enquanto os companheiros tentavam erguê-la. Llyan, que viera com o bardo, ficou em silêncio, agachada perto dali, abanando a cauda como se estivesse inquieta. O rosto de Achren, contraído e aparentando uma palidez mortal, tinha sido cortado com violência, e nos seus braços muitos ferimentos profundos sangravam. Eilonwy amparou a mulher e tentou reanimá-la.
- Llyan pode levá-la conosco - disse Taran. - Ela vai precisar de muitas ervas curativas, e eu não tenho o suficiente; além dos ferimentos, a febre debilitou-a. Caminhou muito sem comer ou beber.
- Seus sapatos estão despedaçados - disse Eilonwy. - Por quanto tempo esteve perambulando neste lugar terrível? Pobre Achren! Não vou dizer que gosto dela, mas fico arrepiada só de pensar no que poderia ter acontecido.
Fflewddur, depois de ajudar a levar a rainha inconsciente a um local mais plano, afastara-se um pouco. Gurgi também achara melhor ficar a certa distância da rainha. Não obstante, por insistência de Taran, eles se aproximaram, e o bardo, dizendo palavras tranqüilizadoras, segurou Llyan enquanto os demais companheiros ergueram Achren e a puseram no lombo da gata.
- Depressa - disse a voz de Doli. - Está começando a nevar.
Flocos brancos já se precipitavam do céu carregado; em pouco tempo o vento cortante rodopiou em tomo dos companheiros e uma nuvem de neve cada vez mais densa atingiu-os. Agulhas de gelo batiam nos seus rostos e era cada vez mais difícil enxergar. A tempestade tornou-se tão violenta que nem mesmo Doli podia garantir que estavam seguindo o caminho certo. Em fila, os companheiros cambaleavam às cegas, apoiando-se uns nos outros, enquanto Taran agarrava-se à ponta do bastão de Doli. Kaw, quase todo coberto de neve, abria as asas, tentando a todo custo permanecer no ombro de Taran. Llyan, sustentando a rainha imóvel, inclinava a cabeça de encontro à ventania e seguia a caminhada árdua; mas a gata de andar confiante tropeçou várias vezes nos pedregulhos e buracos encobertos pela neve. Em dado momento, Gurgi deu um grito de terror e desapareceu como se, de repente, a terra o tivesse engolido. Ele havia caído numa fenda profunda e, quando os companheiros conseguiram retirá-lo, a infeliz criatura mais parecia um pingente de gelo cheio de pêlos. Gurgi tremia tanto que mal podia caminhar, e por isso, Taran e Fflewddur ajudaram-no a prosseguir.
O vento não diminuía, a neve era uma cortina impenetrável; e a ventania, que já era cruel, intensificou-se. A respiração tornava-se muito difícil e, cada vez que inspirava, Taran sentia o ar frígido apunhalar-lhe os pulmões. Eilonwy quase soluçava de frio e exaustão e apoiava-se em Taran, lutando para manter o passo, enquanto Doli guiava-os através da neve acumulada, que agora estava à altura dos joelhos.
- Não podemos continuar - gritou o anão, tentando se fazer ouvir em meio ao vento. - Procurem abrigo. Alcançaremos os cavaleiros quando a neve abrandar.
- Mas, e os guerreiros? Como poderão prosseguir? - replicou Taran, ansioso.
- Melhor do que nós! - exclamou o anão. - Percebi que no local onde se encontram há uma caverna de bom tamanho na encosta do penhasco. O jovem pastor vai encontrá-la, não se preocupe. O problema é encontrarmos algum abrigo para nós mesmos.
No entanto, depois de uma procura longa e difícil, Doli não achou nada melhor que uma valeta estreita abaixo de uma saliência da rocha. Os companheiros, agradecidos, foram para lá aos tropeços; estariam protegidos das piores rajadas de vento e neve. Mas o frio ainda os atingia e, assim que pararam, seus corpos começaram a enrijecer; somente à custa de muito esforço conseguiam mover braços e pernas. Procuravam manter-se juntos, para se aquecerem, e comprimiam-se na espessa camada de pêlo de Llyan. Nem isso proporcionou-lhes muito conforto e, ao cair da noite, o frio tornou-se ainda mais forte. Taran retirou o manto e cobriu Eilonwy e Achren; Gurgi insistiu em acrescentar sua jaqueta de couro de carneiro e, fazendo barulho ao bater os dentes, agachou-se com os braços peludos à sua volta.
- Receio que Achren não sobreviva à noite - sussurrou Taran a Fflewddur. - Quando a encontramos estava quase morta. Não terá forças para suportar este frio.
- Será que algum de nós vai suportar? - respondeu o bardo. - Sem fogo é melhor cada um de nós dizer adeus ao outro, agora mesmo.
- Não entendo por que vocês estão se queixando - disse Eilonwy, suspirando. - Jamais me senti tão bem em toda a minha vida.
Taran olhou para ela, perplexo. A jovem não se movia por baixo do manto. Seus olhos estavam semicerrados e, devido à sonolência, sua voz era falha.
- Bem quente - continuou a divagar, satisfeita. - É um excelente acolchoado de penas de ganso que eu tenho aqui. Que estranho! Sonhei que nós todos fomos atingidos por uma terrível tempestade. Era muito desagradável. Ou será que ainda estou sonhando? Não importa. Quando eu acordar, tudo terá terminado.
Taran, o rosto dominado pela ansiedade, sacudiu-a com firmeza.
- Não durma! - exclamou. - Se você dormir será a sua morte.
Eilonwy não respondeu. Apenas virou a cabeça e fechou os olhos. Gurgi havia se enroscado ao lado dela e era impossível despertá-lo. O próprio Taran sentiu que uma sonolência fatal dominava-o.
- Fogo - disse -, precisamos fazer uma fogueira.
- Com o quê? - perguntou Doli bruscamente. - Não se acha um graveto neste deserto. O que vai queimar? Nossas botas? Nossos mantos? Vamos congelar mais depressa ainda.
- E se vou virar gelo - disse tornando-se visível -, não vai ser com o zumbido de vespas nos meus ouvidos.
Fflewddur, que estivera quieto por algum tempo, retirou a harpa do ombro. Diante disso, Doli gritou furioso.
- Música de harpa! - exclamou. - Amigo, é o seu juízo que está congelado.
- Vai entoar o que precisamos - retrucou Fflewddur. Taran arrastou-se para perto do bardo.
- Fflewddur, o que pretende fazer?
O bardo não respondeu. Por algum tempo segurou a harpa com todo o carinho e, delicadamente, tocou as cordas e então, com um movimento rápido, ergueu o belo instrumento e quebrou-o contra o joelho.
Taran deu um grito de angústia ao ver a madeira despedaçando-se e as cordas se arrebentando num estrondo dissonante. Fflewddur deixou os fragmentos caírem de suas mãos.
- Queime - disse. - É madeira bem-tratada. Taran agarrou o bardo pelos ombros.
- O que você fez? - disse, soluçando. - Fflam, generoso e tolo! Destruiu sua harpa em troca de um instante de calor. Precisamos de um fogo bem maior do que esta madeira pode nos proporcionar.
Não obstante, Doli retirara a pedra-de-fogo de sua sacola e lançara uma faísca no meio da pilha de lascas de madeira. No mesmo instante, a madeira incendiou-se e um calor repentino envolveu os companheiros. Perplexo, Taran olhava para as chamas que se elevavam. Os pedaços de madeira mal haviam se consumido e o fogo já se avivava. Gurgi agitou-se e ergueu a cabeça. Seus dentes pararam de bater e a cor voltou-lhe ao semblante marcado pelo frio. Eilonwy também sentou-se e olhou ao redor, como se despertasse de um sonho. Com um rápido olhar entendeu qual fora o combustível que o bardo havia providenciado, e lágrimas verteram de seus olhos.
- Não pense mais nela! - exclamou o bardo. - A verdade é que estou feliz de me livrar do instrumento. Eu não conseguia mesmo tocar essa coisa, e era mais um peso para carregar. Grande Belin, sem ela sinto-me leve como uma pluma. Acreditem em mim; para começar, jamais pretendi ser um bardo, portanto, melhor assim.
No meio das chamas, várias cordas da harpa partiram-se em duas e uma baforada de faíscas voou pelos ares.
- Mas causa uma fumaça terrível - murmurou Fflewddur, embora o fogo ardesse forte e brilhante. - E faz os meus olhos lacrimejarem.
Agora, as chamas haviam se propagado em todos os fragmentos e, quando as cordas se incendiaram, uma melodia surgiu, de repente, do centro do fogo. A música tornou-se mais sonora e mais bonita, e os acordes encheram o ar, propagando ecos intermináveis ao longo dos rochedos. Parecia que a harpa, ao morrer, deixara fluir todas as canções que haviam sido tocadas, e o som cintilava como o fogo.
Durante toda a noite a harpa tocou, e as melodias eram de alegria, tristeza, amor e bravura. As chamas não se apagaram e, aos poucos, os companheiros recuperavam vida e força. E quando as notas atingiram as alturas, um Vento surgiu do sul e inundou as colinas com o seu calor, afastando a neve que caía, como se esta fosse uma cortina. Somente ao amanhecer a chama baixou, e restaram apenas brasas; a voz da harpa silenciou. A tempestade terminara e a neve derretida fazia brilhar os rochedos.
Em silêncio e maravilhados, os companheiros deixaram o abrigo. Fflewddur deteve-se por um momento. Da harpa restara apenas uma corda. Aquela que era inquebrável e que lhe tinha sido ofertada havia muito tempo por Gwydion. Fflewddur ajoelhou-se e a retirou das cinzas. No calor do fogo, a corda da harpa tinha se torcido e enrolado, mas reluzia como ouro.
Monte Dragão
Conforme Doli havia previsto, Llassar conduzira os guerreiros até um abrigo numa caverna e os salvou da fúria da tempestade de neve. Os companheiros agora preparavam-se para prosseguir viagem. Os rochedos íngremes, representando o último obstáculo, não estavam muito distantes. O topo do Monte Dragão aparecia indistintamente, escuro e ameaçador. Com a ajuda das poções medicinais de Taran e os cuidados de Eilonwy, Achren voltara a si. Fflewddur ainda se mantinha à distância de três passos da rainha vestida de negro, mas Gurgi finalmente encheu-se de coragem para abrir a mochila e oferecer comida à mulher faminta... embora o fizesse com a fisionomia contraída, esticando o braço para lhe passar alguns bocados, como se receasse levar uma mordida. Achren, apesar de tudo, comia com moderação; Glew, por sua vez, não perdia tempo; apanhava as sobras, e depois de levá-las à boca, olhava ao redor para ver se haveria mais.
A febre deixara o corpo de Achren enfraquecido, mas seu rosto não perdera a arrogância; e depois que Taran lhe fez um breve relato sobre o que levara os companheiros a se aproximar tanto de Annuvin, ela comentou, sem conseguir disfarçar o desdém:
- O porcariço e seus seguidores maltrapilhos esperam triunfar onde uma rainha falhou? Eu teria chegado a Annuvin há muito tempo, não fosse Magg e seus guerreiros. Por acaso, seu grupo de combate atacou-me de surpresa no Cantreve Cadiffor.
Os lábios de Achren repuxaram-se, expressando amargor.
- Abandonaram-me, supondo que estava morta. Pude ouvir a risada de Magg quando lhe disseram que eu havia morrido. Ele também vai conhecer a minha vingança. Sim, andei pela floresta tal e qual uma fera ferida. Mas meu ódio era mais forte que os golpes dos guerreiros. Teria me arrastado atrás deles, de cócoras, e teria gastado as minhas últimas forças para derrotá-los, embora tivesse receio de morrer sem me vingar. Mas encontrei refúgio. Ainda há, em Prydain, aqueles que honram Achren. Deram-me abrigo até que eu pudesse seguir viagem, e por esses préstimos serão recompensados.
"Contudo, fracassei quando já avistava meu objetivo. Os guidaintes foram mais impiedosos que Magg. Teriam mesmo acabado comigo... eu, que outrora dominava-os. Será violento o castigo que vão receber."
- Tenho a sensação terrível - sussurrou Eilonwy a Taran - que Achren às vezes pensa que ainda é a Rainha de Prydain. Não dou nenhuma importância a isto, contanto que ela não resolva nos castigar.
Ao perceber os comentários de Eilonwy, Achren voltou-se à jovem.
- Perdoe-me, Princesa de Llyr - disse depressa. - Falei como se estivesse num sonho, no gélido consolo da nostalgia. Devo agradecer-lhe por ter salvado a minha vida e lhe pagarei muito além do que ela vale. Escutem-me bem. Pretendem atravessar as montanhas que protegem Annuvin? Estão no caminho errado.
- Hum! - exclamou Doli, ficando visível por um instante. - Não diga a alguém do Povo Formoso que ele está no caminho errado.
- Sim, é verdade - replicou Achren. - Há segredos que nem o seu povo conhece.
- Não é segredo algum que o caminho que corta as montanhas é o mais fácil - rebateu Doli. - E este é o meu plano. O Monte Dragão serve-me de ponto de referência mas, pode ter certeza, quando chegarmos perto, vamos nos desviar e procurar uma passagem através das encostas menos íngremes. Pensa que sou tolo a ponto de agir de outra maneira?
Achren deu um sorriso sarcástico.
- Se fizer o que está dizendo, anão, será mesmo um tolo. Entre todos os picos que circundam Annuvin, só é mesmo possível atravessar o Monte Dragão. Ouçam-me - acrescentou enquanto Taran murmurava, incrédulo. - Os rochedos são iscas e ciladas. Outros foram enganados, e os ossos deles se encontram nas armadilhas naturais. Os montes mais baixos acenam com a promessa de uma passagem mais fácil mas, tão logo são ultrapassados, surgem desfiladeiros íngremes. Por acaso, o Monte Dragão adverte-os que fujam dos seus cumes? Pois a descida do lado oeste é o próprio caminho para os Portais de Ferro de Annuvin. Para chegar lá, existe uma trilha secreta aonde poderei levá-los.
Taran olhou firmemente para a rainha.
- É o que você diz, Achren. Pede que confiemos nossas vidas baseando-nos nas suas palavras?
Os olhos de Achren faiscaram.
- No íntimo você tem receio de mim, Porqueiro. Mas, o que você mais teme? O caminho que lhe ofereço ou a morte certa de Lorde Gwydion? Pretende surpreender os guerreiros do Caldeirão? Isto você não pode fazer, pois o tempo vai derrotá-lo, a não ser que me siga. Este é o meu presente para você, Porqueiro. Recuse-o se quiser, e seguiremos caminhos diferentes.
Achren virou-se e aconchegou-se no manto esfarrapado. Os companheiros afastaram-se para conversar. Doli, apesar de bastante imitado diante da opinião de Achren a respeito de sua perícia, teve de admitir que, involuntariamente, poderia estar conduzindo os companheiros ao caminho errado.
- Nós, do Povo Formoso, nunca nos atrevemos a andar por aqui e não posso comprovar nem contestar o que ela diz. Mas vi montanhas que, de um lado, parecem íngremes... e do outro, seria possível rolar e, no máximo, conseguir um calombo na testa. Então, pode ser que ela esteja dizendo a verdade.
- E pode ser que ela esteja tentando se livrar de nós o mais depressa possível - interveio o bardo. - Essas tais armadilhas naturais, cheias de ossos, me dão arrepios. Acredito que Achren ficaria feliz se alguns desses ossos pertencessem a nós. Ela está visando apenas ao que lhe interessa, podem ter certeza.
E sacudiu a cabeça, apreensivo.
- Um Fflam é destemido, mas quanto a Achren, prefiro me prevenir.
Taran ficou em silêncio por um instante, buscando discernimento para escolher o caminho a seguir e, mais uma vez, sentira que o peso do fardo que Gwydion pusera sobre si era maior do que ele podia suportar. O semblante de Achren era uma pálida máscara na qual ele não conseguia interpretar nada do que se passava no íntimo. Por mais de uma vez, a rainha teria eliminado os companheiros. Mas ele sabia que depois que seus poderes foram destruídos, ela servira Dallben com lealdade.
- Penso que - disse devagar - o que temos a fazer é confiar, até que ela nos dê uma razão forte para duvidarmos. Tenho receio de Achren - acrescentou -, tal como todos nós temos. Mas não deixaria que o medo me impedisse de ter esperança.
- Concordo - disse Eilonwy -, e isto me faz pensar que, neste caso, pelo menos, sua decisão é acertada. Admito que confiar em Achren é como deixar um marimbondo pousar no nariz. Mas, algumas vezes somos picados porque tentamos afugentá-lo... o marimbondo, quero dizer.
Taran aproximou-se de Achren.
- Leve-nos ao Monte Dragão - disse. - Nós a seguiremos.
Outro dia de viagem conduziu os companheiros através de um vale acidentado, à sombra do próprio Monte Dragão. A colina recebera o nome apropriado, pois Taran observou que o pico tinha a forma grosseira de uma cabeça monstruosa e encrespada, com as mandíbulas escancaradas e, de cada lado, as encostas mais baixas estendiam-se como asas abertas. Os grandes blocos e saliências pontiagudas que se erguiam para formar a silhueta recortada eram escuros, cheios de manchas avermelhadas. Diante desta última barreira suspensa, ameaçando cair em cima deles e esmagá-los, os companheiros pararam, temerosos. Achren deu passos largos até a vanguarda da tropa e acenou para que avançassem.
- Há outras passagens mais fáceis - disse Achren, quando eles entraram num desfiladeiro estreito, que se contorcia entre paredões de rochedos íngremes -, mas são mais longas, e aqueles que as percorrem podem ser avistados antes de chegarem à fortaleza de Annuvin. Esta aqui só é conhecida por Arawn e seus servos mais confiáveis. E por mim, pois fui eu que lhe mostrei as passagens secretas do Monte Dragão.
No entanto, Taran começou a recear que Achren os enganara, pois o aclive era tão acentuado que homens e cavalos mal conseguiam se equilibrar. Parecia que Achren os conduzia para o interior da montanha. Grandes saliências de rochas inclinadas erguiam-se como arcos acima do grupo, bloqueando-lhes a vista do céu. Em determinados pontos, a trilha contornava precipícios escancarados e, mais de uma vez, Taran desequilibrou-se, agredido por uma rajada de vento gelado que o atirava de encontro aos paredões. Seu coração batia forte e a cabeça parecia girar, ao ver os desfiladeiros profundos abrindo-se aos seus pés; apavorado, Taran agarrava-se às pontas cortantes das pedras brutas. Achren, mantendo o passo firme, apenas virava-se e o olhava, em silêncio, com um sorriso irônico no rosto envelhecido.
A trilha continuava a subir, mas já não era tão íngreme, pois em vez de acompanhar o flanco da montanha, seguia em ziguezague, e era em pequenas etapas que os companheiros atingiam os pontos mais altos. As enormes mandíbulas de pedra da cabeça do dragão erguiam-se, ameaçadoras. A trilha, que estivera parcialmente escondida por estranhas formações de pedras, agora estava exposta, e Taran podia ver, logo abaixo, a maior parte da encosta da montanha. Tinham quase chegado ao ponto mais alto das costas do dragão quando Kaw, depois de espiar mais à frente, retornou e, com toda a disposição, bateu o bico.
- Gwydion! Gwydion! - grasnou o corvo, o mais alto possível. - Annuvin! Depressa!
Com um salto, Taran ultrapassou Achren e correu até o topo, escalando as pedras, estreitando os olhos para ver a fortaleza. Os Filhos de Don teriam começado a atacar Annuvin? Será que os guerreiros de Gwydion haviam derrotado os Nascidos do Caldeirão? Sentindo o coração bater forte, Taran tentou subir um pouco mais. De repente, as tomes escuras da fortaleza de Arawn surgiram abaixo. Adiante das muralhas altas, além dos imensos Portais de Ferro, feios e soturnos, vislumbrou os pátios amplos, a Ala dos Guerreiros onde, no passado, estivera o Caldeirão Negro. A Ala Nobre de Arawn destacava-se, reluzente como se fosse mármore negro polido, e acima, no ponto mais alto, adejava o estandarte de Arawn.
A visão de Annuvin e a frieza da morte que pairava sobre a fortificação deixavam-no nauseado; sentia a cabeça girar e sombras pareciam cegá-lo. Procurou ir mais para o alto. Figuras combatentes enchiam o pátio, o impacto das lâminas e gritos de guerra feriam-lhe os ouvidos. A oeste, homens escalavam a muralha; a Porta Negra fora quebrada e Taran julgou ter visto passarem, como um clarão, a forma branca e a crina dourada de Melyngar, e as figuras altas de Gwydion e Taliesin.
Os homens do Condado não haviam fracassado! O exército imortal de Arawn fora retardado e a vitória estava nas mãos de Gwydion. Mas quando Taran já se voltava para gritar as alegres notícias, sentiu o coração enregelar. Do lado sul aproximava-se rapidamente o exército dos Nascidos do Caldeirão. Suas botas de ferro ressoavam enquanto os guerreiros mudos passavam correndo pelos portões pesados, e as cometas dos comandantes das tropas emitiam sons agudos de vingança.
Taran pulou do penhasco para reunir-se aos amigos. A saliência de pedra despedaçou-se aos seus pés e ele tombou para a frente. O grito de Eilonwy ecoou nos seus ouvidos; lá embaixo, as pedras aguçadas pareciam rodopiar, vindo de encontro a ele. Desesperado, agarrava-se à rocha, lutando para interromper a queda. Com toda a força segurou-se à encosta íngreme do Monte Dragão, ao mesmo tempo que as pedras, parecendo dentes pontiagudos, mordiam-lhe as palmas das mãos. Sua espada desprendeu-se do cinturão e retiniu no desfiladeiro.
Lá em cima, avistava os rostos horrorizados dos companheiros, ciente de que eles não poderiam alcançá-lo. Com os músculos tremendo e os pulmões quase explodindo devido ao esforço, lutou para escalar a trilha.
Seu pé escorregou e ele torceu o corpo, procurando equilibrar-se. Foi então que viu o guidainte mergulhar do topo do Monte Dragão vindo ao seu encalço, a toda velocidade.
O Lorde-da-Morte
O guidainte, o maior que Taran já havia visto, guinchava e batia as asas, provocando uma ventania mortal. Taran viu o bico arqueado e aberto, os olhos da cor vermelho-sangue; em seguida, as garras da criatura alada penetraram-lhe nos ombros, tentando agarrar a carne sob o seu manto. O pássaro impiedoso estava tão próximo, que o odor forte de suas penas saturava as narinas de Taran. A cabeça do guidainte, marcada com a cicatriz de um antigo ferimento, investiu contra ele.
Taran afastou o rosto e esperou que o bico lhe abrisse a garganta. No entanto, o guidainte não atacou. Em vez disso, procurava retirá-lo das pedras com uma força a que Taran não conseguia resistir. O guidainte havia parado de gritar. Fazia ruídos suaves, agudos, e o olhar que o pássaro dirigia a Taran não era de fúria, e sim de reconhecimento.
A ave parecia insistir que ele soltasse as mãos. De repente, a lembrança da adolescência tomou conta de Taran e, mais uma vez, ele viu um filhote de guidainte preso a um espinheiro; um jovem pássaro ferido, agonizante. Sena este o emaranhado de penas que ele um dia ajudara a sobreviver?
Teria a criatura voltado, afinal, para pagar a dívida por muito tempo lembrada? Taran não queria se iludir mas, agarrado à encosta do Monte Dragão, enfraquecido, percebia que esta era a sua única esperança. Soltou as mãos e se deixou cair.
O peso fez o guidainte desequilibrar-se e, por um momento, descer ao solo. Abaixo de Taran, os penhascos giravam. Com toda a força, o pássaro imenso bateu as asas e Taran sentiu que estava sendo levado para cima, cada vez mais alto, enquanto o vento assobiava nos seus ouvidos. Erguendo e estendendo as asas pretas, com grande esforço, o guidainte continuou a subir até que suas garras se abriram e Taran caiu no topo rochoso do Monte Dragão.
Achren dissera a verdade. Diante dele, mais abaixo, livre e seguro, achava-se o declive que dava acesso aos Portais de Ferro, agora abertos ao exército dos Nascidos do Caldeirão, que entrava rapidamente em Annuvin. O bando imortal havia sacado as espadas. Na fortaleza, os guerreiros de Gwydion tinham visto o inimigo e ouviram-se gritos de desespero dos combatentes.
Um contingente de Nascidos do Caldeirão, avistando a figura isolada de Taran no topo da montanha e os companheiros que já haviam atravessado o cimo, separou-se do corpo principal do exército e dirigiu o ataque ao Monte Dragão. Brandindo as armas, correram para o alto da encosta.
O guidainte, voando em círculos acima deles, deu um grito de guerra. Virando as asas, o pássaro gigantesco voou em direção aos guerreiros que se preparavam para atacar e mergulhou nas fileiras, investindo com o bico e as garras. Sob o ataque violento e inesperado do guidainte, a primeira fileira de Nascidos do Caldeirão caiu para trás e foi ao chão, mas um dos guerreiros mudos golpeou várias vezes o guidainte, até que o pássaro caiu aos seus pés. As imensas asas agitaram-se e, em seguida, o corpo derrotado ficou imóvel.
Três Nascidos do Caldeirão haviam ultrapassado seus camaradas e corriam em direção a Taran, que via a própria morte nas suas faces lívidas. Os olhos dele voltaram-se para o topo, tentando encontrar o último recurso de defesa.
No ponto mais alto da crista do dragão destacava-se uma pedra alongada. O tempo e as tempestades haviam corroído a pedra, que assumira um formato grotesco. O vento, batendo nas rachaduras e cavidades, emitia um lamento maligno, e o rochedo guinchava e gemia como se tivesse voz humana. O estranho gemido parecia ordenar, implorar, atrair Taran para mais perto. Era sua única arma. Taran atirou-se contra a rocha, lutando para arrancar o pedregulho inabalável. Os Nascidos do Caldeirão já estavam quase o alcançando.
Parecia que o ressalto de pedra movia-se ligeiramente à medida que Taran redobrava os esforços. De repente, desprendeu-se da cavidade. Dando-lhe um impulso definitivo, Taran atirou-o contra os atacantes. Dois guerreiros do Caldeirão caíram para trás e as armas rodopiaram de suas mãos, mas o terceiro não perdeu o equilíbrio durante a subida.
Desesperado, como um homem que atira pedras contra um raio que poderia derrubá-lo, Taran agarrou um punhado de pedras, terra e até mesmo um graveto quebrado para se defender do guerreiro do Caldeirão que se aproximava, comendo, de espada em punho.
O local de onde a crista do dragão fora arrancada estava forrado com pedras planas e, no meio delas, deitada num vão que fazia lembrar uma sepultura estreita, estava Dyrnwyn, a espada negra.
Taran agarrou-a. Por um instante, sentindo a cabeça girar, não reconheceu a arma. Uma vez, há muito tempo, tentara empunhar Dyrnwyn e, por sua ousadia, quase pagara com a vida. Agora, sem se preocupar com as conseqüências, vendo apenas uma arma que lhe caíra nas mãos, desprendeu-a da bainha. Dyrnwyn flamejava e a luz que emitia era branca, ofuscante. Foi então que, em algum local remoto de seu cérebro, Taran se deu conta de que Dyrnwyn estava ardendo na sua mão, e que ele ainda estava vivo.
Ofuscado, o Nascido do Caldeirão deixou cair a espada e cobriu o rosto com as mãos. Taran deu um salto à frente e, com toda a força, impeliu a espada flamejante contra o coração do guerreiro.
O Nascido do Caldeirão desequilibrou-se e caiu; e, dos lábios que havia muito eram mudos irrompeu um grito estridente, que ecoou da fortaleza do Lorde-da-Morte, como se tivesse saído de mil gargantas. Taran cambaleou para trás. O Nascido do Caldeirão estava no chão, imóvel.
Ao longo do caminho e nas proximidades dos Portais de Ferro, os guerreiros do Caldeirão tombavam como se fossem um só corpo. No interior da fortaleza, os seres imortais, em combate com os Filhos de Don, gritaram e caíram no mesmo instante em que o oponente de Taran fora derrotado. Um destacamento que se apressou para transpor o Portal Escuro caiu prostrado aos pés dos guerreiros de Gwydion; aqueles que tentavam abater os soldados na muralha ocidental tombaram no meio do caminho, e suas armas caíram nas pedras, retinindo. A morte, afinal, atingira os imortais Nascidos do Caldeirão.
Aos gritos, chamando os companheiros, Taran desceu correndo o Monte Dragão. Os cavaleiros dos Condados pularam nas selas e seguiram-no a galope, lançando-se na batalha.
Taran atravessou o pátio a toda velocidade. Diante da morte dos Nascidos do Caldeirão, muitos dos guardas mortais de Arawn atiravam as espadas no chão e tentavam escapar da fortaleza. Outros lutavam, sentindo o desespero de homens cujas vidas já estavam perdidas; e os Caçadores restantes, que haviam se fortalecido quando seus camaradas caíram com os golpes de espada dos Filhos de Don, ainda emitiam gritos de guerra e enfrentavam os guerreiros de Gwydion. Um dos comandantes dos Caçadores, com o rosto marcado, retorcido de raiva, avançou em Taran, mas gritou de pavor e fugiu ao ver a espada em chamas.
Taran lutou para abrir caminho entre os guerreiros que o cercavam e comeu para a Ala Nobre, onde avistara Gwydion. Assim que atravessou os portais, encheu-se de temor e ódio. Por um instante hesitou, como se uma onda negra o tivesse dragado. Da extremidade do corredor, Gwydion o avistara e caminhou depressa ao seu encontro. Taran comeu para perto dele, gritando que Dyrnwyn fora encontrada.
- Ponha a espada na bainha! - exclamou Gwydion, protegendo os olhos com a mão. - Embainhe a espada ou vai pagar com a vida.
Taran obedeceu.
O rosto de Gwydion estava contraído e pálido, os olhos rajados de verde tinham um ardor febril.
- Como sacou esta espada, porcariço? - perguntou Gwydion. - Minhas mãos são as únicas que ousam tocá-la. Dê-me a espada.
A voz de Gwydion era severa, autoritária; mesmo assim, Taran hesitou e um receio estranho fazia seu coração bater.
- Depressa - ordenou Gwydion. - Vai destruir o que eu lutei para conseguir? O tesouro de Arawn está ao nosso dispor e o poder maior que um homem poderia almejar espera por nós. Você vai compartilhá-lo comigo, porcariço. Não confio em mais ninguém.
- Poderia algum guerreiro humilde tirar de nós esses tesouros? - indagou Gwydion. - Arawn fugiu do seu reino, Pryderi está morto e seu exército disperso. Agora, ninguém mais tem poderes para nos enfrentar. Dê-me a espada, porcariço, Metade do reino está ao seu alcance, agarre-a agora antes que seja tarde demais.
Gwydion estendeu a mão.
Taran afastou-se, os olhos arregalados de horror.
- Lorde Gwydion, isto não é conselho de amigo. É traição...
Foi então que, ao olhar, desnorteado, para este homem que admirara desde a adolescência, percebeu o ardil.
Em seguida, Taran arrancou Dyrnwyn da bainha e ergueu a espada resplandecente.
- Arawn! - exclamou Taran, arfando. E golpeou. Antes que a arma atingisse o alvo, a forma disfarçada de
Arawn dissipou-se, repentinamente. Uma sombra ondulou pelo corredor e desapareceu.
Foi quando os companheiros chegaram às pressas à Ala Nobre, e Taran correu para perto deles, alertando em voz alta que Arawn ainda vivia e que escapara.
Os olhos de Achren ardiam de ódio.
- Escapou de você, porcariço, mas não da minha vingança. Conheço todos os aposentos secretos de Arawn. Vou buscá-lo onde quer que se refugie.
Sem aguardar os companheiros, que a seguiram comendo, Achren desceu velozmente pelos corredores sinuosos. Atravessou uma porta pesada, que ostentava o brasão do Lorde-da-Morte, gravado a fogo na madeira tacheada. Na extremidade da sala comprida, Taran visualizou a figura encurvada, qual uma aranha, correndo para um trono alto com o formato de um crânio.
- Não cheguem perto! - exclamou Magg, e o tom de sua voz fez Achren parar, e Taran, que estava prestes a sacar Dyrnwyn, foi dominado pelo horror ao ver os traços contorcidos de Magg.
- Querem continuar vivos? - perguntou Magg. - Então ajoelhem-se! Humilhem-se e implorem clemência. Eu, Magg, hei de conceder-lhes o favor de torná-los meus escravos.
- Seu mestre abandonou-o - retrucou Taran. - E sua própria traição terminou.
Taran deu alguns passos largos à frente.
As mãos de Magg, tal e qual patas de aranha, estenderam-se para adverti-lo, e Taran viu que o Camareiro-Chefe segurava uma coroa grotesca.
- O mestre aqui sou eu - gritou Magg. - Eu, Magg, Lorde de Annuvin. Arawn assegurou-me que eu usaria a Coroa de Ferro. Ela escorregou dos dedos dele? É minha, minha por direito e compromisso!
- Enlouqueceu - sussurrou Taran a Fflewddur, que olhava fixamente, enojado, o Camareiro-Chefe, que erguia no alto a coroa e balbuciava para si mesmo:
- Ajude-me a fazê-lo prisioneiro!
- Prisioneiro ele não será - exclamou Achren, retirando um punhal do manto. - Cabe a mim eliminá-lo, e ele morrerá assim como todos que me traíram. Minha vingança começa aqui, diante de um escravo traidor e, em seguida, seu amo.
- Não lhe faça mal - ordenou Taran, quando a rainha tentava, desesperadamente, ultrapassá-lo para se aproximar do trono. - Que seja julgado por Gwydion.
Achren debateu-se com Taran, mas Eilonwy e Doli apressaram-se para segurar os braços enfurecidos da rainha. Taran e Fflewddur correram em direção a Magg, que se atirou no trono.
- Está me dizendo que as promessas de Arawn são mentiras? - sibilou o Camareiro-Chefe, acariciando com os dedos a coroa pesada. - Houve a promessa de que eu usaria esta coroa. Foi entregue às minhas mãos. Então será assim!
Rapidamente, Magg ergueu a coroa e a colocou na cabeça.
- Magg! - gritou. - Magg, o Magnífico! Magg, o Lorde-da-Morte!
A risada triunfante do Camareiro-Chefe transformou-se num guincho, quando ele, de súbito, segurou o aro de ferro ao redor de sua fronte. Sobressaltados, Taran e Fflewddur deram alguns passos atrás.
A coroa brilhava como ferro em brasa numa fornalha. Agonizando, Magg contorcia-se, e, em vão, agarrava o metal incandescente que se tornara esbranquiçado devido à temperatura alta. O Camareiro-Chefe berrou pela última vez, e tombou do trono.
Eilonwy deu um grito e virou o rosto.
Gurgi e Glew tinham se perdido e comiam pelo labirinto de corredores sinuosos, tentando encontrar os companheiros. Gurgi estava apavorado por se encontrar no centro de Annuvin, e a cada passo gritava o nome de Taran. Somente os ecos retornavam dos salões iluminados por tochas. Glew também estava assustado. Entre sobressaltos, o antigo gigante ainda encontrava fôlego para se queixar.
- É demais! - exclamou. - Demais! Quando vão se acabar as obrigações infames impostas a mim? Atirado num barco e forçado a ir para Caer Dallben; arrastado para as montanhas, quase morto de frio e correndo risco de vida; uma fortuna arrancada das minhas mãos! E agora isto! Ah, quando eu era gigante não admitiria tal atrevimento.
- Ah, gigante, deixe de se lamentar e choramingar! - respondeu Gurgi, já se sentindo bastante infeliz por estar separado dos amigos. - Gurgi está desgarrado e desnorteado mas se esforça para encontrar o bondoso mestre. Não tenha medo - acrescentou com segurança, tentando falar pouco, antes que a voz começasse a tremer -, Gurgi valente vai manter a salvo o gigantezinho queixoso, ah, sim.
- Mas você não está se saindo muito bem - rebateu Glew.
Entretanto, o homenzinho rechonchudo agarrava-se à criatura peluda, movendo as pernas curtas de modo a coincidir as suas passadas com as de Gurgi.
Tinham chegado ao final de um corredor, onde uma porta de ferro baixa e pesada estava aberta. Gurgi parou, amedrontado. Uma luz intensa e fria emanava do recinto. Cauteloso, Gurgi deu alguns passos para ver o que havia lá dentro. Distante da entrada havia um túnel que parecia interminável. A luz originava-se de montes de pedras preciosas e adornos de ouro. Mais adiante, ele entreviu alguns objetos estranhos, meio encobertos pelas sombras. Gurgi deu alguns passos atrás e seus olhos arregalaram-se de admiração e horror.
- Oh, é o tesouro do perverso Lorde-da-Morte - sussurrou. - Oh, luzes cintilantes e faiscantes! Este é um local secreto e assustador e não convém ao valente Gurgi permanecer aqui.
No entanto, Glew foi à frente e, ao ver as pedras preciosas, suas faces pálidas estremeceram e os olhos brilharam.
- É mesmo um tesouro! - disse, engasgando de entusiasmo. - Já me fizeram perder uma fortuna, mas agora serei recompensado. O tesouro é meu! - exclamou. - Tudo isso! Eu falei primeiro! Ninguém vai tirá-lo de mim!
- Não, não - protestou Gurgi. - Não pode se apossar dele, gigante ganancioso! Cabe ao poderoso príncipe dar ou guardar o que está aqui. Venha logo e tente encontrar os companheiros mais depressa ainda. Ouça as informações e recomendações, pois Gurgi também tem receio de ciladas e emboscadas. Tesouro valioso sem vigia? Não, não, Gurgi esperto fareja feitiços maléficos.
Sem dar atenção às palavras da criatura, Glew empurrou-a para o lado. Com uma exclamação carregada de ansiedade, o antigo gigante passou pela entrada do tesouro e entrou no túnel, onde mergulhou as mãos na maior pilha de jóias. Gurgi segurou-o pela gola, tentando em vão arrastá-lo de volta, ao mesmo tempo que chamas irromperam das paredes do esconderijo do tesouro.
Próximo à Ala Nobre de Annuvin, Gwydion reuniu os últimos sobreviventes dos Filhos de Don e dos cavaleiros dos Condados. Lá, os companheiros, seguidos pelo corvo que, mais acima, grasnava, exultante, reuniram-se aos demais. Por um momento, Taran olhou fixamente para Gwydion, procurando certificar-se de que era ele mesmo, mas suas dúvidas desapareceram quando o guerreiro alto caminhou depressa ao encontro dele e apertou-lhe a mão.
- Temos muito o que contar um ao outro - disse Gwydion -, mas agora não há tempo. Embora Annuvin esteja em nossas mãos, o próprio Lorde-da-Morte escapou. Precisa ser encontrado e morto, se tivermos poderes para fazê-lo.
- Gurgi e Glew estão perdidos na Ala Nobre - disse Taran. - Dê-nos permissão para encontrá-los, primeiro.
- Vão depressa - respondeu Gwydion. - Se o Lorde-da-Morte ainda se encontra em Annuvin, os dois correm maior perigo de vida do que nós.
Taran tinha soltado Dyrnwyn do seu cinturão e a estendera a Gwydion.
- Agora compreendo por que Arawn queria obtê-la... não seria para uso próprio, e sim porque sabia que a espada representava uma ameaça ao seu poder. Somente Dyrnwyn poderia destruir os Nascidos do Caldeirão. Na verdade, ele não ousou guardá-la na sua fortaleza, e acreditava que a espada estaria a salvo, enterrada no topo do Monte Dragão. Quando Arawn assumiu a sua forma, quase me convenceu a entregar-lhe a arma. Tome-a agora. A lâmina está mais protegida nas suas mãos.
Gwydion sacudiu a cabeça, discordando de Taran.
- Você conquistou o direito de empunhá-la, Porqueiro-Assistente - disse ele -, e, portanto, o direito de usá-la.
- De fato! - acrescentou Fflewddur. - Foi magnífico o modo como você derrubou aquele guerreiro do Caldeirão. Um Fflam não teria feito melhor. Estamos livres daqueles brutamontes abomináveis, para sempre.
Taran fez um gesto de cabeça e assentiu.
- Apesar de tudo, deixei de sentir ódio por eles. Não foi por vontade própria que se escravizaram a alguém. Agora estão em paz.
- Seja como for, a profecia de Hen Wen se realizou - disse Fflewddur. - Não que eu duvidasse.
Olhou para o lado, instintivamente, por cima do ombro, mas, desta vez, não houve nenhum barulho de cordas de harpa.
- Mas ela expressou-se de um jeito muito estranho. Ainda não ouvi nenhuma pedra falar.
- Eu ouvi - afirmou Taran. - No topo do Monte Dragão, o som proveniente dá crista parecia uma voz. Se não fosse por isso eu não teria notado a pedra. Então, quando percebi como estava cavada e desgastada, acreditei ser capaz de removê-la. É verdade, Fflewddur, a pedra sem voz falou nitidamente.
- Acredito que sim, se pensarmos desse modo - concordou Eilonwy. - Quanto à chama de Dyrnwyn ser apagada, Hen enganou-se. É compreensível. Estava muito perturbada naquela ocasião...
Antes que a jovem terminasse de dizer o que pretendia, duas figuras assustadas saíram às pressas da Ala Nobre e correram para os companheiros. Grande parte do pêlo de Gurgi tinha se queimado e estava falhada; suas sobrancelhas peludas estavam chamuscadas e das roupas ainda saía fumaça. O estado do antigo gigante era pior, pois ele mais parecia uma pilha de fuligem e cinzas.
No instante em que Taran pretendia dar as boas-vindas aos amigos que haviam se perdido, a voz de Achren projetou-se num grito terrível.
- Estão à procura de Arawn? Ele está aqui!
Achren atirou-se aos pés de Taran. Sem conseguir respirar, de tanto pavor, Taran ficou paralisado. Atrás dele uma serpente enroscava-se, armando o bote.
Taran deu um salto para o lado. De dentro da bainha Dyrnwyn faiscou. Achren prendeu a serpente nas mãos, como se a quisesse estrangular ou dilacerar. A cabeça da serpente lançou-se com ímpeto na sua direção, o corpo escamoso moveu-se violentamente, como um chicote, e as presas cravaram-se na garganta de Achren. Dando um grito, a rainha caiu para trás. Num instante, a serpente enrolou-se mais uma vez; seu olhar tremeluzia, qual uma chama fria e mortal. Enfurecida e sibilando, mandíbulas escancaradas e presas à mostra, a serpente projetou-se para a frente, atacando Taran. Eilonwy gritou. Taran brandiu a espada flamejante com toda a sua força. A lâmina cortou a serpente em duas partes.
Lançando Dyrnwyn para o lado, Taran abaixou-se ao lado de Gwydion, que apoiava o corpo lívido da rainha. Sangue vertia dos lábios de Achren e seu olhar vítreo procurou o rosto de Gwydion.
- Não mantive minha palavra, Gwydion? - murmurou, com um sorriso vago. - O Lorde de Annuvin está morto, não está? Muito bom. A morte se aproxima de mim, tranqüilamente.
Os lábios de Achren separaram-se como se ela ainda fosse falar, mas a cabeça pendeu para trás, e o corpo caiu nos braços de Gwydion.
Horrorizada, Eilonwy deu um grito abafado. Taran olhou para cima e viu que a jovem apontava para a serpente cortada. O corpo do animal estremeceu e a forma embaçou-se. No mesmo lugar surgiu a figura de manto negro de um homem, cuja cabeça decapitada rolara no chão com o rosto para baixo. Logo a seguir, esta forma também se desfez e o cadáver, como uma sombra, penetrou na terra; e o local onde ele tombara estava ressequido e estéril, o solo destruído, rachado como se fora atingido pela seca. Arawn, o Lorde-da-Morte desaparecera.
- A espada! - gritou Fflewddur. - Veja a espada! Rapidamente, Taran apanhou a arma, mas, ao segurar o punho, a chama de Dyrnwyn vacilou, como se o vento a agitasse. O fulgor branco esmaeceu qual uma fogueira que se apaga. Em seguida, e mais depressa ainda, o brilho enfraqueceu e não era mais branco, mas repleto de um turbilhão de cores que dançavam e vibravam. Logo depois, a mão de Taran segurava apenas uma arma arranhada e gasta, cuja lâmina tinha o brilho opaco que não era da chama que uma vez queimara no seu interior, mas apenas refletia os raios do sol poente.
Eilonwy correu para perto de Taran e exclamou:
- A inscrição na bainha também está se apagando! É o que parece sob essa luz fraca. Espere, deixe-me ver direito.
A princesa retirou a esfera de dentro do manto e aproximou-a da bainha negra. De súbito, à luz dos raios dourados, a inscrição danificada resplandeceu.
- A esfera ilumina a inscrição! Ainda há mais dizeres! - exclamou a jovem, surpreendida. - Agora consigo ver quase tudo... mesmo a parte que estava arranhada!
Os companheiros aproximaram-se rapidamente e, enquanto Eilonwy segurava a esfera, Taliesin examinou cuidadosamente a bainha da espada.
- A inscrição está nítida, mas começa a desaparecer rapidamente - disse ele. - É verdade, princesa, a luz dourada deixa ver o que antes se escondia. Desembainha Dyrnwyn, apenas tu de valor nobre, para governar com justiça e derrotar o mal. Quem a empunhar por uma boa causa será capaz de matar até mesmo o Lorde-da-Morte.
Em seguida, a inscrição desapareceu. Taliesin girou nas mãos a bainha negra da arma, para trás e para a frente.
- Agora talvez eu entenda o que a sabedoria apenas insinuava: de que certa vez um rei tornou-se muito poderoso e tentou usá-la para seu próprio benefício. Suponho que Dyrnwyn fosse aquela arma afastada do próprio destino, há muito desaparecida e finalmente encontrada.
- Cumpriu-se a missão de Dyrnwyn - disse Gwydion.
- Deixemos este lugar maligno.
Na morte, o semblante de Achren não mais demonstrava arrogância; afinal, estava tranqüilo. Depois de envolver a mulher no manto negro e esfarrapado, os companheiros sepultaram o corpo na Ala Nobre, porque ela uma vez governara Prydain e morrera com dignidade.
De súbito, no ápice da torre do Lorde-da-Morte, o estandarte negro incendiou-se e os retalhos em chamas caíram. As paredes da Ala Nobre vibraram e os alicerces da fortaleza estremeceram.
Os companheiros e os guerreiros atravessaram correndo os Portais de Ferro; atrás deles, as muralhas quebraram-se e as torres volumosas ruíram. Um lençol de labaredas atingiu o céu que encimava as ruínas de Annuvin.
A Dádiva
Estavam de volta ao lar, outra vez. Gwydion conduzira os companheiros na direção oeste, rumo ao litoral, onde os barcos dourados aguardavam. De lá, com o corvo empoleirado no mastro mais alto de uma das grandes embarcações de velas resplandecentes, rumaram para o porto de Avren. A notícia da derrota de Arawn havia se espalhado rapidamente; e assim que os companheiros desembarcaram, muitos lordes de cantreves e seus exércitos reuniram-se para escoltarem os Filhos de Don, prestarem homenagem ao Rei Gwydion e saudarem o povo dos Condados e Taran Errante. Gurgi desfraldou o que restara do estandarte da Porca Branca e o ergueu, triunfal mente.
Gwydion, porém, mantivera-se em silêncio. E Taran, assim que a fazendola foi avistada, em vez de alegria, sentiu um aperto no coração. O inverno terminara; o solo descongelado começava a se revolver e os primeiros sinais de verde pareciam uma neblina fraca tocando as colinas. Mas, voltando o olhar ao canteiro vazio de Coll, Taran tornou a lamentar a ausência do plantador de nabos, que agora se encontrava tão distante, no isolado local de descanso.
Trôpego, Dallben saiu de casa para acolhê-los. O rosto do feiticeiro estava mais marcado do que nunca, o cenho carregado e a pele enrugada, quase translúcida. Ao vê-lo, Taran percebeu que Dallben já sabia que Coll não voltaria. Eilonwy correu na direção de seus braços abertos. Taran, saltando do lombo de Melynlas, seguiu Eilonwy, rapidamente. Kaw bateu as asas e grasnou o mais alto que pôde. Fflewddur, Doli e Gurgi, que estavam mais esfarrapados e desarrumados do que nunca, apressaram-se para cumprimentá-lo e, todos ao mesmo tempo, tentavam contar a Dallben o que lhes acontecera.
Hen Wen guinchava, roncava e resfolegava, e quase escalava as grades da pocilga. Quando Taran pulou no cercado para abraçar a porca, ouviu, de repente, gritos agudos e ficou boquiaberto de tanta surpresa.
Eilonwy, que viera correndo até o cercado, deu um grito de alegria.
- Porquinhos!
Seis filhotes, cinco brancos como Hen Wen e um preto, davam guinchos ao lado da mãe.
- Tivemos visitas - disse Dallben. - Um deles era um javali bem bonito. Durante o inverno, quando as criaturas da floresta ficaram agitadas, ele veio até aqui à procura de comida e abrigo, achando que Caer Dallben fosse local mais conveniente que o bosque. Agora deve andar por aí, pois ainda é selvagem e não está acostumado a tanto visitantes.
- Grande Belin! - exclamou Fflewddur. - Sete porcos oraculares! Taran, meu amigo, seu trabalho será mais difícil do que foi nos Montes de Bran-Galedd.
Dallben sacudiu a cabeça, discordando.
- De fato, são fortes e saudáveis; a melhor ninhada que já vi, mas não têm poderes maiores do que aqueles de qualquer outro porco... e isso lhes basta para que fiquem satisfeitos. O dom da própria Hen Wen começou a enfraquecer quando os bastões de letras se quebraram. Tanto melhor; é o tipo do poder que se torna um fardo pesado, tanto para homens quanto para porcos, e estou convencido de que agora ela está muito mais feliz.
Durante dois dias os companheiros descansaram, recompensados e satisfeitos por estarem juntos, em meio à tranqüilidade da fazenda. Parecia que o céu jamais fora tão límpido e repleto da promessa mais alegre de primavera, da maior felicidade. O Rei Smoit chegara com a guarda de honra, e durante uma noite inteira de banquetes o chalé vibrou de alegria.
No dia seguinte, Dallben chamou os companheiros aos seus aposentos, onde Gwydion e Taliesin já os esperavam. Voltou o olhar atento e bondoso a todos que estavam ali reunidos e, quando falou, o tom de sua voz era gentil.
- Estes são dias de boas-vindas - disse -, mas também de despedida.
Ouviu-se um murmúrio de indagação entre os companheiros. Taran, surpreso, olhou para Dallben, procurando entender o que se passava. Fflewddur, por sua vez, bateu a mão na espada e exclamou:
- Eu sabia! O que ainda precisa ser feito? Os guidaintes voltaram? Ainda há por aí um bando de Caçadores? Não tema! Um Fflam está a postos!
Gwydion deu um sorriso tristonho em face do entusiasmo do bardo.
- Não é bem assim, meu corajoso amigo. Tanto os Caçadores quanto os guidaintes foram destruídos. Mas é verdade: ainda há uma tarefa. Os Filhos de Don e seus familiares, homens e mulheres, precisam velejar nos barcos dourados até o País do Verão, a terra de onde vieram.
Taran dirigiu-se a Gwydion como se não tivesse apreendido as palavras do Rei Supremo.
- Mas então - perguntou rapidamente, sem querer admitir que entendera direito -, os Filhos de Don vão deixar Prydain? Precisam partir agora? Qual é o objetivo? Quando voltarão? Não deveriam antes comemorar a vitória?
- Nossa vitória é, em si mesma, o motivo da nossa viagem - respondeu Gwydion. - Há muito tempo conhecíamos o nosso destino: Quando o Lorde de Annuvin for derrotado, os filhos de Don deixarão Prydain para sempre.
- Não! - protestou Eilonwy. - Justo agora, não!
- Não podemos fugir a este antigo destino - respondeu Gwydion. - O Rei Fflewddur Fflam também virá conosco, pois pertence à família da Casa de Don.
O semblante do bardo encheu-se de melancolia.
- Um Fflam é bem-agradecido - começou a dizer - e, em circunstâncias normais, eu gostaria muito de fazer uma viagem por mar. Mas prefiro ficar no meu próprio reino. Na verdade, mesmo sendo monótono, admito que me faz falta.
Então Taliesin falou.
- Não cabe a você a escolha, Filho de Godo. Mas saiba que o País do Verão é uma terra bonita, ainda mais bonita que Prydain, onde todos os desejos são satisfeitos. Llyan ficará com você. Você terá uma nova harpa. Eu mesmo lhe ensinarei a tocá-la, e você terá acesso a todo o antigo saber dos bardos. Seu coração sempre foi o coração de um verdadeiro bardo, Fflewddur Fflam. Até agora não estava preparado. Abandonou aquilo que mais amava em favor dos seus companheiros? Pois a harpa que lhe aguarda há de ser a mais valiosa de todas, e suas cordas jamais vão se romper.
- Saiba também disto que vou lhe dizer - acrescentou Taliesin. - Todos os homens que nascem devem morrer, exceto aqueles que vivem no País do Verão. É uma terra onde não há discórdia nem sofrimento, onde até mesmo a morte é desconhecida.
- Existe ainda outro destino traçado para nós - disse Dallben. - Assim como os Filhos de Don precisam retornar à sua terra, deve haver também um término para os meus próprios poderes. Por muito tempo meditei a respeito da mensagem contida no último bastão de letras que Hen Wen nos deixou. Agora entendo bem por que os bastões de freixo se quebraram. Não teriam resistido à profecia, que só poderia ser a seguinte: Não apenas a chama de Dyrnwyn e seus poderes vão se extinguir, como todos os feitiços vão desaparecer, e homens desamparados guiarão seu próprio destino.
- Eu também vou para o País do Verão - prosseguiu Dallben. - É com tristeza e também com grande alegria que o faço. Sou um homem velho e cansado, e para mim haverá descanso e ausência de obrigações que já se tornaram muito pesadas.
- Infelizmente, Doli precisa retornar ao reino do Povo Formoso, e Kaw também - continuou o feiticeiro. - Os postos avançados estão abandonados. Em breve, o Rei Eiddileg ordenará o bloqueio de todos os caminhos que levam ao seu reino, assim como Medwyn fechou o vale, definitivamente, à raça humana, permitindo que apenas os animais encontrem o lugar.
Doli baixou a cabeça.
- Hum! - resmungou. - Já é hora de interromper o relacionamento com os mortais. Sempre acaba em confusão. Sim, estou disposto a voltar, Para mim já chega de Doli amigão isto, e Doli amigão aquilo, e Doli será que você não se importa de ficar invisível mais uma vez!
O anão fez o possível para parecer que estava furioso, mas seus olhos vermelhos encheram-se de lágrimas.
- Mesmo a Princesa Eilonwy, Filha de Angharad, precisa seguir para o País do Verão - disse Dallben. - É assim que deve ser - prosseguiu, enquanto Eilonwy mal respirava, sem querer acreditar. - Em Caer Colur, a princesa renunciou apenas ao uso de seus poderes mágicos. Ela ainda os tem, pois foram dispensados a todas as filhas da Casa de Llyr. Por isso ela deve partir. No entanto - acrescentou depressa, antes que Eilonwy o interrompesse -, há outros que serviram muito bem os Filhos de Don: o fiel Gurgi; Hen Wen, também, à sua maneira; e Taran de Caer Dallben. A sua recompensa é poderem partir conosco.
- Sim, sim! - gritou Gurgi. - Todos vão para a tema onde não existem temores e dissabores!
Todo contente, deu um pulo e agitou os braços, perdendo uma boa parte dos pêlos que ainda lhe restavam.
- Sim, oh, sim! Todos juntos para sempre! E Gurgi também vai encontrar o que procura. Sabedoria para a sua cabeça mimosa!
O coração de Taran disparou, quando ele disse em voz alta o nome de Eilonwy e comeu para o lado da princesa para abraçá-la.
- Não vamos mais nos separar. No País do Verão poderemos nos casar...
Ele parou de repente.
- Se é o que você deseja. Se aceita se casar com um Porqueiro-Assistente.
- Bom, de fato - respondeu Eilonwy -, cheguei a duvidar que você algum dia fizesse o pedido. É claro que sim, e se você já se deteve no assunto, devia saber qual seria a minha resposta.
Taran, ainda tonto em face dos avisos do feiticeiro, voltou-se para Dallben.
- É verdade? Eilonwy e eu podemos ir juntos?
Por um instante, Dallben não falou, mas logo fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- É verdade. Meus poderes não poderiam lhe conceder maior dádiva.
Glew resmungou.
- É muito bom conceder a vida eterna aqui e acolá. Mesmo para uma porca! Mas ninguém pensou em mim. Egoísmo! Falta de consideração! É claro que se aquela mina do Povo Formoso não tivesse desabado... privando-me de minha fortuna, devo acrescentar... o caminho teria sido diferente, não teríamos chegado ao Monte Dragão, Dyrnwyn jamais seria encontrada, os Nascidos do Caldeirão jamais seriam mortos...
Apesar de toda a revolta, a testa do antigo gigante enrugou-se e seus lábios tremeram.
- Podem ir, mesmo! Deixem-me assim neste tamanho ridículo! Mas eu lhes garanto, quando eu era gigante...
- Sim, sim! - gritou Gurgi. - Gigante queixoso também ajudou, como ele mesmo diz. Não é justo deixá-lo sozinho e perdido na sua pequenez! E no esconderijo do tesouro do perverso Lorde-da-Morte, quando todas as jóias se incendiaram, uma vida foi salva das chamas quentes e ardentes!
- É verdade, até mesmo Glew foi útil, embora sem perceber - replicou Dallben. - Sua recompensa não será menor que a de vocês. No País do Verão ele terá condições de crescer, se quiser, até adquirir a estatura normal de um homem. Mas quer dizer - disse Dallben olhando com firmeza para Gurgi - que ele salvou a sua vida?
Por um instante Gurgi ficou indeciso. Antes que tivesse a chance de responder, Glew falou depressa.
- É claro que não - disse o antigo gigante. - A minha vida, sim, é que foi salva. Se ele não tivesse me arrastado para fora do esconderijo do tesouro, eu não seria agora mais que um punhado de cinzas em Annuvin.
- Pelo menos, disse a verdade, gigante! - exclamou Fflewddur. - Que bom! Grande Belin, acho que você já cresceu um pouco!
Gwydion aproximou-se de Taran e apoiou a mão no seu ombro.
- A nossa hora já se aproxima - disse calmamente. - Partiremos ao amanhecer. Prepare-se, Porqueiro-Assistente.
Naquela noite Taran teve um sono intermitente. No entanto, por mais estranho que fosse, a alegria que iluminara seu coração tinha se afastado, voando como um pássaro de plumagem reluzente que se mantém inacessível, e que ele tentava, em vão, atrair. Nem o pensamento em Eilonwy e na felicidade que os aguardava no País do Verão era suficiente para fazê-lo recuperar o entusiasmo.
Afinal, ergueu-se do leito e, inquieto, ficou de pé junto à janela. Das fogueiras dos acampamentos dos Filhos de Don, restavam apenas cinzas. A lua cheia transformara os campos adormecidos num mar prateado. Muito além das colinas, uma voz entoou uma canção suave, mas nítida; outra voz somou-se à primeira e, em seguida, outras mais. Taran prendeu a respiração. Somente uma vez, muito tempo atrás, no reino do Povo Formoso, escutara tal melodia. Agora, mais bonita ainda, num crescendo, a música transbordava, cintilando mais que os raios da lua. De súbito, terminou. Taran deu um grito de tristeza, sabendo que jamais ouviria algo semelhante. E talvez, na sua imaginação, o som de portões pesados que se fecham ecoava de todos os cantos da tema.
- Sem sono, meu frango? - disse a voz atrás dele.
Taran virou-se rapidamente. A luz que enchia o quarto ofuscou-o, mas, quando pôde ver melhor, deparou-se com três figuras altas e esguias; duas vestiam túnicas furta-cor, em branco, dourado e escarlate; e a outra, encapuzada, vestia um manto negro e brilhante. Pedras preciosas resplandeciam nos cabelos cacheados da primeira, e no pescoço da segunda figura havia um colar de contas brancas e luminosas. Taran percebeu que seus rostos estavam calmos, tão bonitos que o fascinavam e, embora o capuz negro cobrisse de sombras os traços da terceira figura, Taran sabia que ela era igualmente bonita.
- Sem sono e também sem palavras - disse a que estava no meio. - Amanhã, pobrezinho, em vez de dançar de alegria, vai bocejar.
- Suas vozes... conheço muito bem - balbuciou Taran, e sua própria voz não passava de um sussurro. - E seus rostos... sim, já os tinha visto, no passado, nos Pântanos de Morva. Mas não podem ser as mesmas. Orddu? Orwen e... Orgoch?
- É claro que somos nós, meu patinho - respondeu Orddu -, embora seja verdade que da última vez que você nos encontrou não estávamos em muito boa forma.
- Mas servimos bem a um propósito - murmurou Orgoch do fundo do capuz.
Orwen deu uma risada infantil e brincou com as contas do colar.
- Não pense você que nos parecemos com bruxas rabugentas o tempo todo - disse. - Só é assim quando se faz necessário.
- Por que vieram? - começou Taran a dizer, ainda perplexo diante do tom de voz das feiticeiras vindo de figuras tão bonitas. - Vocês também vão para o País do Verão?
Orddu sacudiu a cabeça.
- Estamos de partida, mas não com você. O ar salgado tem o poder de deixar Orgoch nauseada. Vamos para... bem... qualquer lugar. Todos os lugares, se preferir.
- Você não tornará a nos ver - acrescentou Orwen, talvez com pesar. - Vamos sentir a sua falta. Tanto quanto nos é possível sentir a falta de alguém. Orgoch, especialmente, teria adorado... bem, melhor não tocar no assunto.
Orgoch, muito indelicada, bufou. Nesse ínterim, Orddu desdobrara uma tapeçaria bem trabalhada, entregando-a a Taran.
- Viemos para lhe trazer isto, meu patinho - disse ela.
- Aceite e não preste atenção aos grunhidos de Orddu. Ela vai ter de engolir a sua frustração... na falta de coisa melhor.
- Eu vi isto no seu tear - disse Taran, bastante desconfiado. - Por que oferecem a mim? Não estou lhes pedindo nada, nem posso pagar.
- É sua de direito, meu passarinho - respondeu Orddu.
- É mesmo do nosso tear, se insiste no detalhe, mas foi você que o teceu.
Intrigado, Taran observou melhor o tecido e viu que estava repleto de imagens de homens e mulheres, guerreiros e batalhas, pássaros e outros animais.
- O que está aqui - murmurou maravilhado - faz parte da minha própria vida.
- É claro - replicou Orddu. - O motivo foi escolha sua, sempre foi.
- Minha escolha? - questionou Taran. - Não foi sua? Mas eu pensava...
Taran deteve-se e ergueu o olhar para Orddu.
- Sim - disse pausadamente -, certa vez acreditei que o mundo girava às suas ordens. Agora vejo que não é assim. Os fios da vida não são tecidos por três bruxas, nem mesmo por três lindas donzelas. O motivo era meu, de verdade - acrescentou. - Mas aqui - disse, contraindo a expressão à procura da parte final do tecido, onde a trama terminava e os fios caíam soltos -, aqui está incompleto.
- É evidente - disse Orddu. - Ainda precisa escolher o motivo, e, do mesmo modo, cada um de vocês, pobres frangotes assustados, enquanto houver linha para se tecer.
- Mas não consigo mais ver com clareza o motivo que escolhi! - exclamou Taran. - Nem entendo mais meu próprio sentimento. Por que será que a minha tristeza obscurece a minha alegria? Digam-me. Concedam-me esse entendimento, como se fosse um último favor.
- Querido franguinho - disse Orddu, com um sorriso triste -, quando foi, realmente, que lhe demos alguma coisa?
E então se foram.
Despedidas
Durante o resto da noite, Taran não se afastou da janela. A tapeçaria inacabada estava caída aos seus pés. Ao romper do dia, muita gente dos Condados e nobres dos cantreves aglomeraram-se nos campos e nas encostas de Caer Dallben, porque era do conhecimento de todos que os Filhos de Don iam partir de Prydain e, com eles, as Filhas de Don que vieram das fortalezas do ocidente. Afinal, Taran afastou-se da janela e tomou o caminho dos aposentos de Dallben.
Os companheiros já estavam reunidos, inclusive Doli, que se recusava, terminantemente, a partir para o Povo Formoso sem antes se despedir, pela última vez, de cada amigo. Kaw, agora quieto, estava empoleirado no ombro do anão. Glew parecia animado e satisfeito diante da perspectiva da viagem. Taliesin e Gwydion encontravam-se perto de Dallben, que vestira um manto apropriado para a viagem e portava um bastão de freixo. Debaixo do braço, o feiticeiro levava O Livro dos Três.
- Gentil mestre, depressa! - gritou Gurgi, ao mesmo tempo que Llyan, ao lado de Fflewddur, agitava a cauda com impaciência. - Todos estão prontos para flutuar e navegar!
Os olhos de Taran voltaram-se aos rostos dos companheiros; para Eilonwy, que o observava com ansiedade, para as feições curtidas de Gwydion e para o rosto de Dallben, vincado de sabedoria. Jamais sentira tanto amor por cada um deles como naquele momento. Não disse uma palavra até se deter diante do velho feiticeiro.
- Jamais receberei maior honra do que a dádiva que o senhor me oferece - disse Taran. As palavras surgiam lentamente, mesmo assim obrigou-se a prosseguir.
- Na noite passada meu coração esteve inquieto. Sonhei que Orddu... não, não foi um sonho. Ela estava lá, de verdade. E cheguei à conclusão que não posso aceitar a sua oferta.
Gurgi sufocou um grito e dirigiu a Taran o olhar espantado, incrédulo.
Os companheiros sobressaltaram-se e Eilonwy perguntou em voz alta:
- Taran de Caer Dallben, você tem noção do que está dizendo? A chama de Dyrnwyn torrou o seu juízo?
Subitamente, a voz de Eilonwy ficou presa na garganta. Ela mordeu os lábios e afastou-se, depressa.
- Entendo. No País do Verão haveríamos de nos casar. Duvida do meu sentimento? Nada mudou. Foi o seu sentimento que mudou em relação a mim.
Taran não ousou olhar para Eilonwy, pois a tristeza que ele sentia mortificava-o.
- Engana-se, Princesa de Llyr - murmurou. - Há muito tempo que a amo, e a amei antes que eu mesmo soubesse. Ao me separar dos companheiros, meu coração se quebra duas vezes porque me afasto de você. No entanto, assim deve ser. Não tenho alternativa.
- Pense bem, Porqueiro-Assistente - disse Dallben, secamente. - Depois que se decidir, será definitivo. Prefere morar em meio à tristeza em vez da felicidade? Recusa não apenas a alegria e o amor, mas a vida infinita?
Durante um longo momento Taran não respondeu. Quando falou, afinal, sua voz estava carregada de remorso, mas as palavras eram claras e precisas.
- Há aqueles que merecem mais a sua dádiva do que eu, mesmo que ela jamais lhes seja oferecida. Minha vida está ligada a essa gente. O jardim e o pomar de Coll, Filho de Collfrewr, estão por cultivar, esperando pela mão que os avive. Meu talento é menor que o de Coll, mas por ele hei de me esforçar, de bom grado.
- O dique de Dinas Rhydnant não está pronto - continuou Taran. - Perante o túmulo do Rei de Mona prometi não deixar o seu trabalho inacabado.
Taran retirou da jaqueta o fragmento de porcelana.
- Devo esquecer Annlaw, o Ceramista? O Condado de Merin e outros mais? Não posso restituir a vida a Llonio, Filho de Llonwen, e aquela gente valorosa que me acompanhou jamais voltará aos seus lares. Nem posso amenizar o sofrimento das viúvas e das crianças órfãs. Mas, se tiver condições de reconstruir ao menos um pouco do que foi arruinado, eu o farei, com certeza.
- O Descampado Vermelho, outrora, foi um lugar produtivo. Talvez se recupere à custa de trabalho.
Taran virou-se e falou com Taliesin.
- Os salões nobres de Caer Dathyl estão em ruínas, e com eles a Ala da Sabedoria e a cobiçada ciência dos bardos. O senhor não disse que a lembrança sobrevive ao objeto lembrado? Mas, e se a lembrança se perder? Se eu tiver quem me ajude, ergueremos as pedras que tombaram e recuperaremos a riqueza que é a memória.
- Gurgi vai ajudar! Ele não vai viajar, não, não! - lamentou-se Gurgi. - Ele sempre fica. Ele não quer dádiva que o separa do gentil mestre!
Taran apoiou a mão no braço da criatura.
- Você precisa seguir com os outros. Trata-me por mestre? Então obedeça à minha última ordem. Siga ao encontro da sabedoria que almeja. Está à sua espera no País do Verão. O que procuro deverei encontrar aqui.
Eilonwy baixou a cabeça.
- Você tomou a decisão que devia tomar, Taran de Caer Dallben.
- Nem eu o contestarei - disse Dallben a Taran -, mas quero preveni-lo. As tarefas às quais você se obriga são extremamente difíceis. Não se sabe se poderá cumprir sequer uma delas, e há um grande risco de fracassar. Em ambos os casos, seus esforços talvez não sejam recompensados e permaneçam inglórios, esquecidos. E no final, como todos os mortais, você terá de enfrentar a morte; talvez sem um túmulo digno para marcar o seu local de descanso.
Taran concordou com um aceno.
- Que seja assim - disse. - Noutros tempos, quis ser herói sem saber o que era, na realidade, um herói. Agora, talvez, saiba. Um plantador de nabos ou um ceramista, um fazendeiro do Condado ou um rei... todo homem é um herói se ele se esforça mais pelos outros do que por ele próprio. Certa vez - acrescentou -, o senhor me disse que a procura vale mais que o achado. Então, da mesma forma, o esforço é mais importante que o ganho.
- Houve tempo em que eu almejava um destino glorioso - continuou Taran, sorrindo ao se lembrar. - Aquele sonho desapareceu e, com ele, a minha infância; embora fosse um sonho agradável, era próprio de criança. Estou satisfeito por ser um Porqueiro-Assistente.
- Nem mesmo esta satisfação você terá - disse Dallben. - Você não é mais Porqueiro-Assistente, mas o Rei Supremo de Prydain.
Taran prendeu a respiração e, incrédulo, olhou para o feiticeiro.
- O senhor está brincando comigo - murmurou. - Tenho sido tão arrogante que o fiz zombar de mim, chamando-me de rei?
- O seu mérito foi posto à prova quando desembainhou Dyrnwyn - disse Dallben - e a sua realeza quando decidiu ficar aqui. Não é uma dádiva que lhe ofereço agora, mas um fardo ainda mais pesado do que qualquer outro que você já carregou.
- Então por que devo carregá-lo? - indagou Taran. - Sou um Porqueiro-Assistente, é o que sempre fui.
- Estava escrito no Livro dos Três - respondeu Dallben, erguendo a mão para pedir silêncio antes que Taran falasse novamente. - Não ousei lhe contar. Permitir que você tomasse conhecimento de tal assunto teria anulado a profecia. Até este momento, eu não tinha certeza se você era o escolhido para governar. Para dizer a verdade, ontem receei que você não o fosse.
- Como assim? - indagou Taran. - O Livro dos Três poderia enganá-lo?
- Não, não poderia - disse Dallben. - O livro tem esse título porque nos relata as três partes de nossas vidas: o passado, o presente e o futuro. Mas também poderia se chamar um livro de "se". Se você não tivesse cumprido suas tarefas; se você tivesse seguido um mau caminho; se você fosse assassinado; se você não tivesse feito a escolha que fez... milhares e milhares de ses, meu menino. O Livro dos Três não pode dizer mais que se até o final, quando, entre todas as coisas que deveriam ser, somente uma se torna o que realmente é. Porque são as atitudes de um homem e não as palavras de uma profecia que modelam o destino,
- Agora compreendo por que o senhor manteve em segredo a minha ascendência - disse Taran. - Jamais poderei saber?
- Não foi, inteiramente, por vontade própria que guardei o segredo - respondeu Dallben. - E nem vou guardá-lo agora. Muito tempo atrás, quando O Livro dos Três chegou às minhas mãos, soube pelas suas páginas que, quando os Filhos de Don deixassem Prydain, o Rei Supremo seria aquele que tivesse matado uma serpente, conquistado e perdido uma espada flamejante e escolhido um reino de tristeza em vez de um reino de alegria. Essas profecias eram obscuras, mesmo para mim; e mais obscura era a profecia de que aquele que governaria Prydain seria alguém sem posição na vida.
- Por muito tempo meditei - prosseguiu Dallben. - Afinal, saí de Caer Dallben em busca do futuro rei, para apressar-lhe a vinda. Procurei-o durante muitos anos, mas todos aqueles a quem eu indagava conheciam bem a própria origem, de pastor ou chefe militar, lorde de cantreve ou agricultor dos Condados.
"Sucederam-se as estações; reis subiram ao trono e caíram, guerra transformou-se em paz, e paz em guerra. Na verdade, em dado momento, há tanto tempo quanto a idade que você tem, uma guerra impiedosa abateu-se sobre a região e eu desisti da minha busca, e, mais uma vez, tomei o rumo de Caer Dallben. Naquele dia, atravessei por acaso um terreno onde se travara uma batalha. Muitos eram os mortos, tanto nobres quanto gente humilde; nem mesmo as mulheres e as crianças foram poupadas.
"De uma floresta próxima dali ouvi um grito doloroso. Uma criança tinha sido escondida no meio das árvores, como se a mãe tivesse procurado, ao menos, mantê-la a salvo. Os panos que a envolviam nada revelavam sobre sua ascendência, e minha única certeza era de que sua mãe e seu pai jaziam naquele campo de mortos.
"Ali estava, sem dúvida, alguém sem posição na vida, um bebê desconhecido, de pais desconhecidos. Levei a criança para Caer Dallben. O nome que lhe dei foi Taran."
- Não poderia ter-lhe falado de sua ascendência, nem que eu quisesse - continuou Dallben -, porque eu não sabia mais do que você. Compartilhei minha expectativa com duas pessoas: Lorde Gwydion e Coll. À medida que você crescia, nossas esperanças aumentavam, embora jamais pudéssemos ter certeza se você era a criança que nascera para ser o Rei Supremo.
- Até agora, meu menino - disse Dallben -, você tinha sido sempre um grande "talvez".
- O que estava escrito se realizou - disse Gwydion.
- E agora, na realidade, precisamos nos despedir.
O recinto ficou em silêncio. Llyan, percebendo a inquietação do bardo, esfregou o focinho nele, com delicadeza. Os companheiros não se moviam. Foi Glew quem deu um passo à frente e falou primeiro.
- Isto aqui está comigo desde que me fizeram sair de Mona, às pressas e de qualquer jeito - disse, retirando da jaqueta um pequeno cristal azul, que colocou na mão de Taran.
- Fazia-me lembrar de minha caverna e daqueles dias maravilhosos em que eu era um gigante. Mas, por alguma razão, não quero mais me lembrar daquele tempo. E portanto... tome, aceite uma pequena lembrança de mim.
- Ele não é nem de longe a pessoa mais generosa do mundo - murmurou Fflewddur -, mas não duvido que esta seja a primeira vez que dá alguma coisa a alguém. Grande Belin, juro que o sujeitinho cresceu mais um centímetro!
Doli retirara do cinturão o belo machado.
- Vai precisar disto - disse a Taran -, e lhe será útil em muitas tarefas. Tem a qualidade de tudo que é do Povo Formoso, meu rapaz, e não perde o corte facilmente.
- Não será tão útil a mim quanto foi ao seu dono - retrucou Taran, apertando a mão de Doli -, e o metal desta ferramenta não deve ser tão puro quanto o seu coração. Doli, amigão...
- Hum! - bufou o anão, furioso. - Doli, amigão! Já ouvi isto em algum lugar.
Kaw, no ombro de Doli, movia a cabeça para cima e para baixo, enquanto Taran, com delicadeza, deslizava os dedos nas penas macias do corvo.
- Adeus - grasnou Kaw. - Taran! Adeus!
- Até mais - respondeu Taran sorrindo. - Posso ter desistido de ensinar-lhe a se comportar, mas me diverti com os seus maus modos. Você é um tratante, um malandro, mas entre os corvos é uma verdadeira águia.
Llyan aproximara-se para roçar a cabeça no braço de Taran, acariciando-o, e o fez com tanta força que por pouco não o derrubou.
- Faça companhia ao meu amigo - disse Taran, afagando as orelhas da gata. - Quando ele estiver desanimado, deixe-o contente com o seu ronronar, assim como eu gostaria que você me alegrasse. Não se afaste dele, pois até mesmo um bardo corajoso como Fflewddur Fflam não é imune à solidão.
O próprio Fflewddur chegara mais perto segurando a corda da harpa que retirara da fogueira. Taran observava que o calor da chama torcera e enrolara a corda, dando origem a um formato curioso, sem começo nem fim, parecendo modificar-se constantemente, como as melodias que se sucedem.
- É tudo o que sobrou do traste - disse Fflewddur, oferecendo a corda a Taran. - Na realidade, estou bem satisfeito. Só fazia barulho, e desafinava...
Fez uma pausa, olhou para trás, agitado, e pigarreou.
- Ah... o que eu quis dizer é que vou sentir falta daquelas cordas fracas.
- E eu, mais ainda - disse Taran. - Lembre-se de mim com a mesma freqüência e afeição com que me lembrarei de você.
- Pode ter certeza! - exclamou o bardo. - Ainda há canções a serem cantadas e histórias a serem narradas. Um Fflam jamais esquece!
- Que pena, que pena! - choramingou Gurgi. - Pobre Gurgi não tem nada a ofertar ao gentil mestre para que ele tenha boas lembranças. Tristeza e desgraça! Até mesmo a mochila de petiscos e lambiscos está vazia agora!
De repente, a criatura chorosa bateu palmas.
- Sim, sim! Gurgi tem um presente. Aqui está. Do tesouro em chamas do Lorde-da-Morte, o valente Gurgi pegou-o, segurando e agarrando. Mas a sua cabeça mimosa estava tão cheia de confusões que ele esqueceu!
Dizendo isto, Gurgi retirou da sua bolsa de couro uma pequena caixa de metal desconhecido, chamuscada e gasta, e entregou a Taran, que a tomou nas mãos, olhou-a com curiosidade e então quebrou o fecho reforçado que a trancava.
A caixa continha apenas alguns pergaminhos finos cobertos de escritos. Quando Taran os examinou, seus olhos arregalaram-se, e ele se voltou, rapidamente, para Gurgi.
- Sabe o que encontrou? - sussurrou. - Aqui estão os segredos de forjar e temperar metais, de moldar e queimar cerâmica, de plantar e cultivar. Foi isto que, há muito tempo, Arawn roubou e manteve inacessível à raça humana, Este conhecimento é em si mesmo um tesouro inestimável.
- Talvez o mais precioso de todos - disse Gwydion, que se aproximara para examinar os pergaminhos nas mãos de Taran. - As chamas de Annuvin destruíram as ferramentas encantadas que trabalhavam por si mesmas e que teriam levado à ociosidade. Estes tesouros são muito mais valiosos, pois seu uso requer talento e força tanto das mãos, quanto do espírito.
Fflewddur assobiou baixinho.
- O detentor destes segredos é realmente senhor de Prydain. Taran, velho amigo, o mais orgulhoso dos lordes dos cantreves vai estar à sua disposição, implorando por qualquer coisa que você queira lhe dar.
- E foi Gurgi quem encontrou! - gritou a criatura, dando um salto para cima e girando como um alucinado. - Sim, sim! Audacioso, esperto, leal, corajoso Gurgi sempre encontra coisas! Uma vez encontrou um porquinho e, outra vez, o detestável Caldeirão Negro! Desta vez encontra segredos poderosos para o gentil mestre!
Taran sorriu perante o entusiasmo de Gurgi.
- De fato, você encontrou muitos segredos poderosos. Mas não cabe a mim guardá-los. Estes haverei de compartilhar com todos em Prydain, pois, de direito, pertencem a todos.
- Então compartilhe este, também - disse Dallben, que estivera escutando atentamente e agora entregava o volume pesado e encadernado de couro que estivera debaixo de seu braço.
- O Livro dos Três? - disse Taran, expressando admiração e dúvida ao olhar para o feiticeiro. - Não me atrevo...
- Pegue-o, meu menino - disse Dallben. - Não vai fazer bolhas nos seus dedos, como aconteceu uma vez com um Porqueiro-Assistente curioso demais. Todas as páginas estão abertas a você. O Livro dos Três não revela o que virá e sim o que aconteceu. E agora as palavras da última página podem ser escritas.
De cima da mesa, o feiticeiro apanhou uma pena, abriu o livro e escreveu com a mão firme.
E foi assim que um Porqueiro-Assistente tornou-se o Rei Supremo de Prydain.
- Isto também é um tesouro - disse Gwydion. - Agora, O Livro dos Três é, ao mesmo tempo, história e herança. Meu presente não poderia ser maior do que este. Nem poderia lhe oferecer uma coroa, pois um verdadeiro rei usa a própria coroa no coração. - O guerreiro alto apertou a mão de Taran. - Adeus, não nos encontraremos novamente.
- Então aceite Dyrnwyn, como lembrança minha - disse Taran.
- Dyrnwyn é sua - disse Gwydion -, conforme estava destinado.
- Mas Arawn está morto - retrucou Taran. - O mal foi derrotado e o trabalho da arma está concluído.
- O mal foi derrotado? - questionou Gwydion. - Muito você aprendeu, mas atente para a última lição e a mais difícil. Você derrotou apenas os feitiços do mal. Esse foi o seu trabalho mais fácil, apenas um começo e não o final. Acredita que o mal seja vencido tão depressa? Não, enquanto os homens ainda se odiarem e se matarem, enquanto a ganância e o ódio influírem sobre eles. Contra isso, nem mesmo uma espada flamejante pode prevalecer, e sim a única porção de bem que existe nos corações de todos os homens, cuja chama jamais poderá ser extinta.
Eilonwy, que estivera de pé e em silêncio, agora aproximara-se de Taran. Os olhos da jovem não se desviaram dele, enquanto ela lhe entregava a esfera dourada.
- Tome - disse com suavidade -, embora não brilhe tanto quanto o amor que poderíamos ter compartilhado. Adeus, Taran de Caer Dallben. Lembre-se de mim.
Eilonwy estava prestes a se afastar mas, de súbito, seus olhos azuis faiscaram furiosamente e ela bateu o pé no chão.
- Não é justo! - exclamou. - Não tenho culpa por ter nascido numa família de feiticeiras. Não pedi poderes mágicos. É pior do que ser feita para usar um par de sapatos que não serve! Não sei por que preciso conservar esses poderes!
- Princesa de Llyr - disse Dallben. - Esperava que você dissesse essas palavras. Quer mesmo desistir de seu legado de feitiçaria?
- É claro que sim! - bradou Eilonwy. - Se os feitiços nos separam, então será melhor livrar-me deles!
- Isto depende de você - disse Dallben. - Está ao alcance da sua mão e, melhor dizendo, do seu dedo. O anel que você usa, presente que Lorde Gwydion lhe deu há muito tempo, concederá o seu pedido.
- O quê? - desabafou Eilonwy com um misto de surpresa e indignação. - Está dizendo que durante todos esses anos eu poderia ter usado o meu anel para que um desejo fosse atendido? O senhor nada me disse a esse respeito! Isso é mais que injusto. Ora, eu poderia ter desejado que o Caldeirão Negro fosse destruído! Ou que Dyrnwyn fosse encontrada! Poderia ter desejado que Arawn fosse vencido! Sem correr o menor perigo! E jamais soube!
- Criança, criança - interrompeu Dallben -, seu anel pode realmente conceder-lhe um pedido, apenas um. Mas não basta desejar que o mal se acabe. O anel servirá apenas a você e concederá somente o desejo mais profundo do seu coração. Eu não lhe disse antes porque não tinha certeza se você sabia ao certo o que queria.
- Gire o anel uma vez em torno do dedo - disse Dallben. - Deseje de todo o coração que seus poderes mágicos desapareçam.
Admirada e talvez temerosa, Eilonwy fechou os olhos e fez o que o feiticeiro ordenou. O anel brilhou, repentinamente, mas por um instante apenas. A jovem deu um grito agudo de dor. E na mão de Taran a luz da esfera dourada se apagou.
- Está feito - murmurou Dallben. Eilonwy piscou e olhou ao redor.
- Não me sinto nem um pouco diferente - comentou. - Será mesmo que meus poderes já se foram?
Dallben fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Sim - disse com delicadeza. - Mas lhe restarão ainda a magia e o mistério comuns a todas as mulheres. E suponho que Taran, tal e qual todos os homens, fique muitas vezes desnorteado diante de tais atributos. Mas é assim mesmo. Vamos, dêem as mãos e jurem fidelidade um ao outro.
Depois que os votos foram feitos, os companheiros reuniram-se em torno dos noivos, para lhes desejarem felicidades. Em seguida Gwydion e Taliesin saíram do chalé e Dallben apanhou o bastão de freixo.
- Não podemos nos demorar mais - disse o feiticeiro -, e aqui nossos caminhos se separam.
- E quanto a Hen Wen? - perguntou Taran. - Posso vê-la pela última vez?
- Quantas vezes quiser - respondeu Dallben. - Visto que ela tem a liberdade de ir ou ficar, presumo que queira ficar próxima a você. Mas sugiro que, antes de mais nada, você faça ver a esses visitantes que andam pelos campos que há um novo Rei Supremo em Prydain, e uma nova rainha. Gwydion terá proclamado a notícia e os súditos devem estar impacientes para saudá-lo.
Seguidos pelos companheiros, Taran e Eilonwy saíram do quarto. Mas, à porta do chalé, Taran voltou-se para Dallben.
- Alguém como eu pode reinar? Lembro-me de quando caí de cabeça num espinheiro e receio que a realeza seja algo parecido.
- Provavelmente arranha muito mais - acrescentou Eilonwy. - Mas você não terá nenhuma dificuldade; será um prazer dar-lhe conselhos. No momento há apenas uma pergunta: você vai entrar ou sair por esta porta?
No meio da multidão que aguardava do lado de fora, Taran vislumbrou Hevydd, Llassar, o povo dos Condados, Gast e Goryon, lado a lado com Aeddan, o lavrador, e o Rei Smoit, mais alto que todos eles, a barba vibrante como o fogo. No entanto, eram muitos os rostos amados que ele via, claramente, apenas com o coração. Um súbito estrondo de vozes o aclamou, no momento em que ele segurou com firmeza a mão de Eilonwy e atravessou a soleira da porta.
E foram muitos os anos felizes que desfrutaram, e as tarefas prometidas foram realizadas. Não obstante, muito mais tarde, quando tudo se dissipara na memória, eram muitos os que indagavam se o Rei Taran, a Rainha Eilonwy e os companheiros tinham realmente existido, ou se não passavam de devaneios numa história para encantar crianças. E com o passar do tempo, os bardos eram os únicos que conheciam a verdade.
1 O grande Deus dos galeses era Belin, o carneiro. [N. da T.]
Lloyd Alexander
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