Biblio VT
Tensing, o monge budista, e o seu discípulo, o príncipe Dil Bahadur, tinham escalado durante dias os altos cumes ao norte da cordilheira dos Himalaias, a região dos gelos eternos, onde só alguns lamas puseram os pés ao longo da história. Nenhum dos dois reparava nas horas, porque o tempo não lhes interessava. O calendário é uma invenção humana; a nível espiritual, o tempo não existe, ensinara o mestre ao seu aluno.
Para eles o que importava era a travessia, que o jovem efectuava pela primeira vez. O monge recordava tê-la feito numa vida anterior, mas essas lembranças eram um pouco confusas. Guiavam-se pelas indicações de um pergaminho e orientavam-se pelas estrelas, num terreno onde, mesmo no Verão, imperavam condições muito duras. A temperatura, vários graus abaixo de zero, era suportável apenas durante alguns meses por ano, quando as tempestades fatídicas deixavam de fustigar aquela região.
Mesmo sob o céu limpo, o frio era intenso. Vestiam túnicas de lã e capas ásperas de pele de iaque. Cobriam os pés com botas de couro do mesmo animal, com o pêlo para dentro e o exterior impermeabilizado com gordura. Cada passo era dado com cuidado, porque uma escorregadela no gelo significava que podiam rolar centenas de metros pelos precipícios profundos que, como machadadas de Deus, cortavam os montes.
Contra o céu de um azul intenso, sobressaíam os picos luminosos e cobertos de neve dos montes, por onde os viajantes avançavam sem pressa, porque, àquela altitude, não tinham oxigénio suficiente. Descansavam com frequência, para os pulmões se irem habituando. Doía-lhes o peito, os ouvidos e a cabeça, sofriam de náuseas e de fadiga, mas nenhum dos dois mencionava essas debilidades do corpo; limitavam-se a controlar a respiração, para tirar o máximo proveito de cada golfada de ar.
Iam em busca daquelas plantas raras que só se encontram no gélido Vale dos Yetis e que eram fundamentais para preparar loções e bálsamos medicinais. Caso sobrevivessem aos perigos da viagem, podiam considerar-se iniciados, pois o seu carácter temperar-se-ia como aço. A vontade e a coragem eram muitas vezes postas à prova durante essa travessia. O discípulo necessitaria de ambas as virtudes, vontade e coragem, para cumprir a tarefa que o esperava na vida. Por isso o seu nome era Dil Bahadur, que quer dizer «coração valente», na língua do Reino Proibido. A viagem até ao Vale dos Yetis era uma das últimas fases do treino rigoroso que o príncipe recebera durante doze anos.
O jovem não conhecia a verdadeira razão da viagem, que era mais importante que as plantas medicinais ou que a sua iniciação como lama superior. O seu mestre não podia revelar-lha, tal como não podia falar-lhe de muitas outras coisas. O seu papel era guiar o príncipe em cada fase da sua longa aprendizagem; fortalecer o seu corpo e o seu carácter; cultivar a sua mente e pôr à prova, uma e outra vez, a qualidade do seu espírito. Dil Bahadur descobriria a razão da viagem ao Vale dos Yetis mais tarde, quando se encontrasse diante da prodigiosa estátua do Dragão de Ouro.
Tensing e Dil Bahadur carregavam às costas fardos com as mantas, o cereal e a manteiga de iaque indispensáveis à sua sobrevivência. Enroladas à cintura, levavam cordas de pêlo de iaque, que lhes serviam para escalar e, na mão, um bordão grande e forte, como uma pértiga, que usavam para se apoiar, para se defender, no caso de serem atacados, e para montar, à noite, uma tenda improvisada. Usavam-no, também, para testar a profundidade e a firmeza do terreno antes de pisarem aqueles sítios onde, de acordo com a sua experiência, a neve fresca costumava cobrir buracos profundos. Enfrentavam com frequência fendas que, se não conseguissem saltar, os obrigavam a fazer longos desvios. Às vezes, para evitar horas de caminho, colocavam o bordão de um lado a outro do precipício e, tendo a certeza de que se aguentava com firmeza em ambas as extremidades, arriscavam-se a pisá-lo e a pular para o outro lado, nunca mais de um passo, porque as possibilidades de cair para o vazio eram muitas. Faziam-no sem pensar, com a mente em branco, confiando na habilidade dos seus corpos, no instinto e na sorte, porque, caso se detivessem a calcular os movimentos, não conseguiriam fazê-lo. Quando a fenda era mais larga do que o comprimento do pau, prendiam uma corda a uma rocha alta, depois um dos dois amarrava a outra ponta da corda à cintura, tomava impulso e saltava, oscilando como um pêndulo, até atingir a outra margem. O jovem discípulo, que possuía uma enorme resistência e coragem diante do perigo, vacilava sempre no momento de utilizar qualquer um destes métodos.
Tinham chegado a um desses barrancos e o lama estava à procura do sítio mais adequado para atravessar. O jovem fechou os olhos por um instante, elevando uma prece.
- Tens receio de morrer, Dil Bahadur? - perguntou Tensing, sorrindo.
- Não, honorável mestre. O momento da minha morte está escrito no meu destino antes do meu nascimento. Morrerei quando tiver concluído o meu trabalho nesta reencarnação e o meu espírito estiver pronto para voar; mas receio partir todos os ossos e ficar vivo lá em baixo - replicou o jovem apontando para o precipício impressionante que se abria aos seus pés...
- É possível que isso fosse um inconveniente... - admitiu o lama de bom humor. - Se abrires a mente e o coração, isto parecer-te-á mais fácil - acrescentou.
- O que faria se eu caísse no barranco?
- Se isso acontecesse, talvez tivesse de pensar. Por agora, os meus pensamentos estão ocupados com outras coisas.
- Posso saber com quê, mestre?
- Com a beleza da vista - replicou, apontando para a interminável cadeia de montanhas, para a brancura imaculada da neve, para o céu resplandecente.
- É como a paisagem da lua - observou o jovem.
- Talvez... Em que parte da lua estiveste, Dil Bahadur? - perguntou o lama, disfarçando outro sorriso.
- Ainda não cheguei tão longe, mestre, mas imagino-a assim.
- Na lua o céu é negro e não há montanhas como estas. Também não há neve, é tudo rocha e pó cinzento.
- Talvez, algum dia, eu possa fazer uma viagem astral à lua, como o meu honorável mestre - admitiu o discípulo.
- Talvez...
Depois de o lama ter prendido o bordão, tiraram ambos as túnicas e os mantos que os impediam de mover-se com total liberdade, e amarraram os seus pertences em quatro pacotes. O lama tinha o aspecto de um atleta. As suas costas e braços eram só músculos, o pescoço tinha a largura de uma coxa de um homem normal e as suas pernas pareciam troncos de árvore. Aquele magnífico corpo de guerreiro contrastava de uma forma notável com o rosto sereno, os olhos doces e a boca delicada, quase feminina, sempre sorridente. Tensing agarrou nos pacotes um a um, tomou impulso girando o braço como a pá de um moinho, e lançou-os para o outro lado do barranco.
- O medo não é real, Dil Bahadur, existe apenas na tua mente, como tudo o resto. Os nossos pensamentos criam o que julgamos ser a realidade - disse.
- Neste momento a minha mente está a criar um buraco bastante profundo, mestre - murmurou o príncipe.
- E a minha mente está a criar uma ponte bastante segura replicou o lama.
Fez um sinal de despedida ao jovem, que esperava sobre a neve, depois deu um passo sobre o vazio, colocando o pé direito no centro do bordão de madeira e numa fracção de segundo impeliu-se para a frente, atingindo com o pé esquerdo a outra berma. Dil Bahadur imitou-o com menos graciosidade e destreza, mas sem uma única expressão que traísse o seu nervosismo. O mestre reparou que a pele dele brilhava, húmida de transpiração. Vestiram-se rapidamente e puseram-se a caminho.
- Falta muito? - quis saber Dil Bahadur.
- Talvez.
- Seria uma imprudência pedir-lhe que não me respondesse sempre talvez, mestre?
- Talvez fosse - disse Tensing, sorrindo. E, depois de uma pausa, acrescentou que, segundo as instruções do pergaminho, tinham de continuar para norte. Faltava ainda a parte mais árdua do caminho.
- Já viu os yetis, mestre?
- São como dragões, sai-lhes fogo pelas orelhas e têm quatro pares de braços.
- Que extraordinário! - exclamou o jovem.
- Quantas vezes te disse para não acreditares em tudo o que ouves? Procura a tua própria verdade - disse o lama, rindo-se.
- Mestre, não estamos a estudar os ensinamentos de Buda, mas apenas a conversar... - suspirou o discípulo, aborrecido.
- Não vi os yetis nesta vida, mas lembro-me deles de uma vida anterior. Têm a mesma origem que nós e há vários milhares de anos tinham uma civilização quase tão desenvolvida como a humana, mas agora são muito primitivos e de inteligência limitada.
- O que lhes aconteceu?
- São muito agressivos. Mataram-se uns aos outros e destruíram tudo o que tinham, incluindo a terra. Os sobreviventes fugiram para os cumes dos Himalaias e ali a sua raça começou a degenerar. Agora são como animais - explicou o lama.
- São muitos?
- Tudo é relativo. Parecerão muitos se nos atacarem, e poucos se forem amistosos. Em todo o caso, têm uma vida curta mas reproduzem-se com facilidade, de modo que imagino que existirão vários no Vale. Moram num lugar inacessível, onde ninguém consegue encontrá-los, mas às vezes um deles sai à procura de alimento e perde-se. É essa, possivelmente, a causa das pegadas que se atribuem ao abominável homem das neves, como o denominam - aventurou o lama.
- As pegadas são enormes. Devem ser gigantes. Serão ainda muito agressivos?
- Fazes muitas perguntas para as quais não tenho respostas, Dil Bahadur - replicou o mestre.
Tensing conduziu o seu discípulo pelos cumes dos montes, saltando precipícios, escalando encostas verticais, escorregando por veredas estreitas cortadas nas rochas. Existiam antigas pontes suspensas, mas estavam em muito mau estado e era necessário usá-las com prudência. Quando o vento soprava ou caía granizo, procuravam refúgio e esperavam. Uma vez por dia comiam tsampa, uma mistura de farinha de cevada torrada, ervas secas, gordura de iaque e sal. Água havia em abundância sob as crostas de gelo. Em certas ocasiões o jovem Dil Bahadur tinha a impressão de que andavam em círculos, porque a paisagem parecia sempre igual, mas não manifestava as suas dúvidas. Seria uma falta de cortesia para com o seu mestre.
Ao cair da tarde procuravam refúgio para passar a noite. Às vezes bastava alguma fenda, onde podiam instalar-se protegidos do vento, noutras noites encontravam alguma gruta, mas de vez em quando não tinham outro remédio senão dormir ao relento, protegidos apenas com as peles de iaque. Depois de montado o seu austero acampamento, sentavam-se de frente para o sol-poente, com as pernas cruzadas e salmodiavam o mantra essencial de Buda, repetindo sucessivamente Om manipadme hum, Salve, Jóia Preciosa no Coração do Lotus. O eco repetia o cântico, multiplicando-o até ao infinito entre os altos cumes dos Himalaias.
Durante a marcha juntavam pauzinhos e erva seca que metiam nos sacos, para fazerem fogueiras à noite e preparar a comida. Depois do jantar, meditavam durante uma hora. Nessa altura, o frio costumava pô-los rígidos como estátuas de gelo, mas eles mal o sentiam. Estavam habituados à imobilidade, que lhes proporcionava calma e paz. Na sua prática budista, o mestre e o estudante sentavam-se em total descontracção, mas alerta. Desligavam-se das distracções e dos valores do mundo, embora não se esquecessem do sofrimento, que existe em toda a parte.
Depois de escalarem montanhas por vários dias, subindo a altitudes gélidas, chegaram a Chenthan, o mosteiro fortificado dos antigos lamas que inventaram a forma de luta corpo a corpo chamada Tao-shu. No século xix, um terramoto destruiu o mosteiro, que teve de ser abandonado. Era uma construção de pedra, tijolo e madeira, com mais de cem quartos, que parecia colada à beira de um despenhadeiro impressionante. Durante centenas de anos, o mosteiro albergou aqueles monges, cujas vidas eram dedicadas à procura espiritual e ao aperfeiçoamento das artes marciais.
Nas suas origens, os monges Tao-shu eram médicos com conhecimentos extraordinários de anatomia. Na sua prática, descobriram os pontos vulneráveis do corpo que, sendo pressionados, insensibilizam ou paralisam, e combinaram-nos com as técnicas de luta conhecidas na Ásia. O seu objectivo era aperfeiçoarem-se espiritualmente, através do domínio da sua própria força e das suas emoções. Embora fossem invencíveis na luta corpo a corpo, não utilizavam o Tao-shu para fins violentos, mas como exercício físico e mental. Também não o ensinavam a qualquer pessoa, apenas a alguns homens e mulheres escolhidos. Tensing tinha aprendido Tao-shu com eles e ensinara-o ao seu discípulo Dil Bahadur.
O terramoto, a neve, o gelo e o decurso do tempo tinham desgastado uma grande parte do edifício, mas duas alas ainda estavam de pé, embora em ruínas. Chegava-se aí escalando uma escarpa, tão difícil e longínqua, que ninguém o tentava há quase meio século.
- Depressa chegarão ao mosteiro pelo ar - observou Tensing.
- Mestre, acha que, dos aviões, podem descobrir o Vale dos Yetis? - inquiriu o príncipe.
- Possivelmente.
- Imagine o esforço que poderíamos poupar! Conseguiríamos voar até lá em muito pouco tempo.
- Espero que isso não aconteça. Se descobrissem os yetis, convertê-los-iam em animais de feira ou em escravos - disse o lama.
Entraram em Chenthan Dzong para descansar e passar a noite abrigados. Nas ruínas do mosteiro ainda se viam tapetes coçados com imagens religiosas, quinquilharias e armas que os monges guerreiros sobreviventes ao terramoto não conseguiram levar consigo. Havia várias representações de Buda em diversas posições, incluindo uma estátua enorme do Iluminado, deitado de lado no chão. A pintura dourada tinha-se descascado, mas o resto estava intacto. Gelo e neve em pó cobriam quase tudo, dando ao lugar um aspecto particularmente belo, como se fosse um palácio de cristal. Atrás do edifício uma avalancha tinha criado a única superfície plana dos arredores, uma espécie de pátio do tamanho de um campo de basquetebol.
- Um avião conseguiria aterrar aqui, mestre? - perguntou Dil Bahadur, que não conseguia esconder o seu fascínio pelos poucos aparelhos modernos que conhecia.
- Nada sei sobre essas coisas, Dil Bahadur. Nunca vi um avião aterrar, mas julgo que isto é muito pequeno e, além disso, as montanhas formam um verdadeiro funil de ventos cruzados...
Na cozinha encontraram panelas e outros recipientes de ferro, velas, carvão, paus para fazer fogo e alguns cereais conservados pelo frio. Havia recipientes com óleo e um com mel, que o príncipe não conhecia. Tensing deu-lho a provar e o jovem sentiu pela primeira vez um sabor doce no paladar. A surpresa e o prazer quase o fizeram cair de costas. Prepararam fogo para cozinhar e acenderam velas diante das estátuas, em sinal de respeito. Nessa noite comeriam melhor e dormiriam sob um tecto. A ocasião merecia uma curta cerimónia especial de agradecimento.
Estavam a meditar em silêncio, quando ouviram um longo rugido que retumbou entre as ruínas do mosteiro. Abriram os olhos no instante em que entrava na sala um enorme tigre dos Himalaias, um monstro de meia tonelada de peso e pêlo branco, o animal mais feroz do mundo.
O príncipe recebeu por telepatia a ordem do seu mestre e tentou cumpri-la, embora a sua primeira reacção instintiva fosse recorrer ao Tao-shu e saltar em sua própria defesa. Se conseguisse pôr uma mão atrás das orelhas do tigre, podia paralisá-lo. No entanto, permaneceu imóvel, tentando respirar com calma, para que a fera não sentisse o cheiro do medo. O tigre aproximou-se lentamente dos monges. Apesar do perigo iminente em que se encontravam, o jovem não pôde deixar de admirar a beleza extraordinária do animal. O seu pêlo era da cor do marfim claro com riscas castanhas e tinha os olhos do azul de alguns glaciares dos Himalaias. Era um macho adulto, enorme e poderoso, um exemplar perfeito.
Tensing e Dil Bahadur, sentados na posição de lótus, com as pernas cruzadas e as mãos sobre os joelhos, viram o tigre avançar. Ambos sabiam que, se estivesse esfomeado, havia poucas possibilidades de o deterem. A esperança era que a fera tivesse comido, mas era pouco provável que, naqueles ermos, a caça fosse abundante.
Tensing possuía poderes psíquicos extraordinários, porque era um tulku, a reencarnação de um grande lama da Antiguidade. Concentrou esse poder como um raio, para penetrar na mente da fera.
Sentiram o hálito do grande felino na cara, uma baforada de ar quente e fétido que lhe saía das fauces. Outro rugido temível estremeceu o ambiente. O tigre aproximou-se a poucos centímetros dos homens e estes sentiram a picada dos seus duros bigodes. Durante vários segundos, que pareceram eternos, rondou-os, farejando-os e tacteando-os com a sua patorra enorme, mas sem os agredir. O mestre e o discípulo permaneceram completamente imóveis, abertos ao afecto e à compaixão. O tigre não sentiu neles temor ou agressão, apenas empatia e, uma vez satisfeita a sua curiosidade, retirou-se com a mesma dignidade solene com que tinha chegado.
- Já vês, Dil Bahadur, como às vezes a calma serve para alguma coisa... - foi o único comentário do lama. O príncipe não conseguiu responder porque a sua voz se tinha petrificado no peito.
Apesar daquela visita inesperada, decidiram ficar e passar a noite em Chenthan Dzong, mas tomaram a precaução de dormir ao pé de uma fogueira, mantendo à mão um par de lanças que encontraram entre as armas abandonadas pelos monges Tao-shu. O tigre não voltou, mas na manhã seguinte, quando retomaram novamente a marcha, viram as suas pegadas sobre a neve refulgente e ouviram ao longe o eco dos seus rugidos nos cumes.
Alguns dias depois, Tensing lançou uma exclamação de alegria e apontou para um desfiladeiro entre duas encostas verticais da montanha. Eram duas paredes de rocha negra, polidas por milhões de anos de erosão e de gelo. Entraram no desfiladeiro com grandes precauções, porque pisavam rochas soltas e havia buracos profundos. Antes de deslocarem um pé, tinham de verificar a firmeza do terreno com os seus bordões.
Tensing atirou uma pedra para um dos poços, mas este era tão fundo que não a ouviram bater. Por cima deles, o céu, como uma fita azul entre as paredes de rocha brilhantes, mal se via. Um coro de gemidos aterradores veio ao seu encontro.
- Felizmente não acreditamos em fantasmas nem em demónios, não é verdade? - comentou o lama.
- Será acaso a minha imaginação que me faz ouvir este alarido? - perguntou o jovem, com a pele arrepiada de pavor.
- Talvez seja o vento que passa por aqui tal como o ar passa por uma trombeta.
Tinham percorrido um trecho razoável quando foram assaltados por um cheiro fétido a ovos podres.
- Enxofre - explicou o mestre.
- Não consigo respirar - disse Dil Bahadur, com as mãos no nariz.
- Talvez convenha imaginar que é uma fragrância de flores - sugeriu Tensing.
- De todas as fragrâncias, a mais doce é a da virtude - recitou o jovem, sorrindo.
- Imagina, então, que esta é a doce fragrância da virtude - replicou o lama, rindo-se também.
A passagem tinha mais ou menos uma milha de comprimento, mas demoraram duas horas a atravessá-la. Nalguns sítios era tão estreita que tinham de avançar de lado entre as rochas, enjoados pelo ar rarefeito, mas não hesitaram, porque o pergaminho indicava claramente que existia uma saída. Viram nichos cavados nas paredes, onde havia caveiras e montes de ossos muito grandes, alguns com aparência humana.
- Deve ser o cemitério dos yetis - comentou Dil Bahadur. Um sopro de ar húmido e quente, como nunca tinham sentido, anunciou o fim do desfiladeiro.
Tensing foi o primeiro a sair, seguido de perto pelo seu discípulo. Quando Dil Bahadur viu a paisagem que tinha em frente, pareceu-lhe que era de outro planeta. Se não lhe pesasse tanto a fadiga do corpo e não tivesse o estômago tão revolto devido ao cheiro a enxofre, pensaria ter feito uma viagem astral.
- Aí o tens: o Vale dos Yetis - anunciou o lama.
Diante deles estendia-se um planalto vulcânico. Bocados de vegetação esverdeada, arbustos maciços e grandes cogumelos de várias formas e cores cresciam por toda a parte. Havia regatos e charcos de água borbulhante, estranhas formações rochosas e do chão surgiam altas colunas de fumo branco. Uma bruma delicada flutuava no ar, apagando os contornos à distância e dando ao vale o aspecto de uma ilusão. Os visitantes sentiram-se fora da realidade, como se tivessem entrado noutra dimensão. Depois de suportarem durante tantos dias o frio intenso da travessia pelas montanhas, aquele vapor tépido era uma verdadeira dádiva para os sentidos, apesar do cheiro nauseabundo que ainda persistia, embora menos intenso que no desfiladeiro.
- Antigamente, alguns lamas, cuidadosamente seleccionados pela sua resistência física e força espiritual, faziam esta viagem de vinte em vinte anos para colherem plantas medicinais, que não crescem em nenhum outro lugar - explicou Tensing.
Disse que, em 1950, o Tibete foi invadido pelos chineses, que destruíram mais de seis mil mosteiros e fecharam os restantes. A maior parte dos lamas partiu para o exílio noutros países, como a índia e o Nepal, levando os ensinamentos de Buda a toda a parte. Em vez de acabarem com o budismo, como pretendiam os invasores chineses, conseguiram exactamente o contrário: espalhá-lo pelo mundo inteiro. No entanto, muitos dos conhecimentos de medicina, bem como as práticas psíquicas dos lamas, estavam a desaparecer.
- As plantas eram secas, moídas e misturadas com outros ingredientes. Um grama desses pós pode ser mais precioso que todo o ouro do mundo, Dil Bahadur - disse o mestre.
- Não conseguiremos levar muitas plantas. Pena não termos trazido um iaque - comentou o jovem.
- Talvez nenhum iaque atravessasse voluntariamente os precipícios fazendo equilíbrio em cima de um bordão, Dil Bahadur. Levaremos o que pudermos.
Entraram no misterioso vale e, passado pouco tempo, viram formas que pareciam esqueletos. O lama informou o seu discípulo de que se tratava de ossos petrificados de animais anteriores ao dilúvio universal. Pôs-se de gatas e começou a vasculhar o chão até encontrar uma pedra escura com manchas vermelhas.
- Isto é excremento de dragão, Dil Bahadur. Tem propriedades mágicas.
- Não devo acreditar em tudo o que oiço, não é verdade, mestre? - replicou o jovem.
- É, mas talvez neste caso possas acreditar em mim - disse o lama, entregando-lhe a amostra.
O príncipe hesitou. A ideia de tocar naquilo não o seduzia.
- Está petrificado - riu-se Tensing. - Pode curar ossos partidos em poucos minutos. Um pedacinho disto, moído e dissolvido em aguardente de arroz pode transportar-te a qualquer uma das estrelas que há no firmamento.
O pedacinho que Tensing tinha descoberto tinha um pequeno orifício, por onde o lama passou um cordel, pendurando-o ao pescoço de Dil Bahadur.
- Isto é como uma couraça, tem o poder de desviar certos metais. Flechas, facas e outras armas cortantes não poderão ferir-te.
- Mas talvez baste um dente infectado, um tropeção no gelo ou uma pedrada na cabeça para matar-me... - disse o jovem, rindo-se.
- Que todos iremos morrer é a nossa única certeza, Dil Bahadur.
O lama e o príncipe instalaram-se perto de uma fumarola, dispostos a passar uma noite cómoda pela primeira vez em vários dias, uma vez que a grossa coluna de vapor os mantinha abrigados.
Tinham feito chá com a água de uma fonte termal próxima. A água saía a ferver e ao desaparecerem as borbulhas adquiria uma pálida cor de lavanda. A fonte alimentava um regato fumegante, em cujas margens cresciam flores roxas e carnudas.
O monge raras vezes dormia. Sentava-se na posição de lótus, com os olhos semicerrados, e assim descansava e repunha a sua energia. Tinha a capacidade de permanecer absolutamente imóvel, controlando com a mente a respiração, a pressão sanguínea, as pulsações do coração e a temperatura, de modo que o seu corpo entrava num estado de hibernação. Com a mesma facilidade com que entrava em repouso absoluto, perante uma emergência conseguia saltar à velocidade de um tiro, com todos os seus poderosos músculos prontos para a defesa. Dil Bahadur tinha tentado imitá-lo durante anos sem o conseguir. Rendido de fadiga, adormeceu assim que colocou a cabeça no chão.
O príncipe acordou a meio de um coro de grunhidos aterradores. Assim que abriu os olhos e viu quem os rodeava, levantou-se como uma mola, aterrando de pé, com os joelhos dobrados e os braços estendidos em posição de ataque. A voz tranquila do mestre paralisou-o no momento em que se preparava para bater.
- Calma. São os yetis. Envia-lhes afecto e compaixão, como ao tigre - murmurou o lama.
Estavam no meio de uma horda de seres repelentes, de um metro e meio de altura, inteiramente cobertos por um pêlo branco, emaranhado e imundo, com braços longos e pernas curtas e arqueadas, terminadas em enormes patas de macacos. Dil Bahadur calculou que a origem da lenda eram as pegadas daqueles grandes pés. Mas, nesse caso, de quem eram os longos ossos e as caveiras gigantescas que tinham visto no túnel?
O pequeno tamanho daqueles seres em nada diminuía a ferocidade do seu aspecto. Os rostos achatados e peludos eram quase humanos, mas de expressão bestial; os olhos eram pequenos e avermelhados; as orelhas pontiagudas como as dos cães e os dentes afiados e compridos. Entre grunhido e grunhido, mostravam as línguas, que se enroscavam na ponta como as dos répteis, mas que eram de um azul-arroxeado intenso. Tinham o peito coberto com couraças de couro, manchadas de sangue seco, amarradas nos ombros e na cintura. Brandiam cacetes ameaçadores e rochas afiadas, mas, apesar das suas armas e de os superarem largamente em número, mantinham-se a uma distância prudente. Começava a amanhecer e a luz da madrugada dava à cena, envolta numa bruma espessa, um aspecto de pesadelo.
Tensing levantou-se lentamente, para não provocar uma reacção nos seus atacantes. Comparados com aquele gigante, os yetis pareciam ainda mais baixos e encurvados. A aura do mestre não tinha mudado, continuava a ser branca e dourada, o que indicava a sua completa serenidade, enquanto a aura da maior parte daqueles seres não tinha brilho, era vacilante, em tons terrosos, indicando doença e medo.
O príncipe adivinhou o motivo por que não os tinham atacado de imediato: pareciam esperar alguém. Passados alguns minutos viu avançar uma figura muito mais alta que os outros, apesar de estar encurvada pela idade. Era da mesma espécie dos yetis, mas meio corpo mais alta. Caso conseguisse endireitar-se teria o tamanho de Tensing, mas à idade avançada somava-se uma corcunda que lhe deformava as costas e a obrigava a andar com o tronco paralelo ao chão. Ao contrário dos outros yetis, cobertos apenas pelos seus pêlos longos e imundos e pelas couraças, ela enfeitava-se com colares de dentes e ossos, tinha uma coçada capa de pele de tigre e um bordão retorcido na mão.
Aquela criatura não podia chamar-se mulher, embora fosse do sexo feminino; também não era humana, embora não fosse exactamente um animal. O seu pêlo era ralo e tinha caído em vários sítios, revelando uma pele escamosa e rosada, como a cauda de uma ratazana. Estava revestida por uma crosta impenetrável de gordura, sangue seco, barro e porcaria, que exalava um cheiro insuportável.
As unhas eram garras pretas e os poucos dentes que tinha na boca estavam soltos e dançavam a cada sopro que emitia. Pelo nariz pingava-lhe um ranho verde. Os olhos remelosos brilhavam no meio das madeixas de pêlos eriçados que lhe cobriam o rosto. À sua passagem, os yetis afastaram-se respeitosamente. Era evidente a sua autoridade, devia ser a rainha ou a feiticeira da tribo.
Surpreendido, Dil Bahadur viu que o seu mestre se punha de joelhos diante da sinistra criatura, juntava as mãos diante da cara e recitava o cumprimento habitual do Reino Proibido: «a felicidade esteja consigo».
- Tampo kachi - disse.
- Grr-ympr - rugiu ela, salpicando-o de saliva.
Tensing, de joelhos, ficava à mesma altura da encurvada anciã e, dessa forma, podiam olhar-se nos olhos. Dil Bahadur imitou o lama, apesar de, nessa posição, não poder defender-se dos yetis, que continuavam brandindo os seus cacetes. Olhando de soslaio, calculou que havia uns dez ou doze à sua volta e quem sabe quantos mais nas proximidades.
A chefe da tribo emitiu uma série de ruídos guturais e agudos que, combinados, pareciam uma linguagem. Dil Bahadur teve a sensação de já a ter ouvido anteriormente, mas não sabia onde. Não compreendia uma única palavra, apesar dos sons lhe serem familiares. De imediato, todos os yetis se puseram também de joelhos e começaram a bater com a testa no chão, mas sem largarem as armas, oscilando entre aquele cumprimento cerimonioso e o impulso de os massacrarem com os seus cacetes.
A velha yeti mantinha os outros apaziguados, enquanto repetia o grunhido que soava como Grr-ympr. Os visitantes calcularam que devia ser o nome dela. Tensing ouvia-a com muita atenção, enquanto Dil Bahadur fazia um esforço para captar, por telepatia, o que pensavam aquelas criaturas, mas as suas mentes eram um emaranhado de visões incompreensíveis. Prestou atenção ao que a feiticeira, que era sem dúvida mais evoluída do que os outros, tentava transmitir. Várias imagens formaram-se no seu cérebro. Viu uns animaizinhos peludos, como coelhos brancos, agitar-se em convulsões e depois ficarem rígidos. Viu cadáveres e ossadas; viu vários yetis que empurravam outro para as fumarolas ferventes; viu sangue, morte, brutalidade e terror.
- Cuidado, mestre, são bastante selvagens - balbuciou o jovem.
- Possivelmente estão mais assustados do que nós, Dil Bahadur - respondeu o lama.
Grr-ympr fez um gesto aos outros yetis que, finalmente, baixaram os cacetes, enquanto ela avançava, chamando por gestos o príncipe e o seu mestre. Eles seguiram-na, ladeados pelos yetis, por entre as altas colunas de vapor e as águas termais, na direcção de uns buracos naturais que se abriam no chão vulcânico. Pelo caminho viram outros yetis, todos sentados ou deitados no chão, que não fizeram tenção de aproximar-se.
A lava ardente de alguma erupção vulcânica muito antiga tinha arrefecido à superfície, em contacto com o gelo e com a neve, mas continuou a avançar em estado líquido no subsolo durante muito tempo. Assim se formaram cavernas e túneis subterrâneos, nos quais os yetis fizeram as suas casas. Nalguns sítios, a crosta de lava quebrara-se e entrava luz pelos buracos. Essas grutas eram, na sua maior parte, tão baixas e estreitas que Tensing não cabia, mas mantinham uma temperatura agradável, porque a lembrança do calor da lava permanecia nas suas paredes e as águas quentes das fumarolas passavam pelo subsolo. Era assim que os yetis se defendiam do clima. De outra forma, ser-lhes-ia impossível resistir ao Inverno.
Não havia objectos de espécie alguma nas grutas, apenas peles fétidas, com pedaços de carne seca ainda pegados. Com horror, Dil Bahadur compreendeu que algumas das peles eram dos próprios yetis, certamente tiradas dos cadáveres. As outras eram de chegnos, animais desconhecidos no resto do mundo, que os yetis mantinham em currais feitos de rochas e de neve. Os chegnos eram mais pequenos que os iaques e tinham cornos retorcidos, como o carneiro. Os yetis aproveitavam a carne, a gordura, a pele e também o excremento seco, que usavam como combustível. Sem esses úteis animais, que comiam muito pouco e resistiam às temperaturas mais baixas, os yetis não conseguiriam sobreviver.
- Ficaremos aqui alguns dias, Dil Bahadur. Trata de aprender a linguagem dos yetis - disse o lama.
- Para quê, mestre? Nunca mais teremos oportunidade de a usar.
- Eu, possivelmente, não; mas tu talvez - replicou Tensing. Pouco a pouco familiarizaram-se com os sons que aquelas criaturas emitiam. Com as palavras aprendidas e lendo a mente de Grr-ympr, Tensing e Dil Bahadur ficaram a par da tragédia sofrida por aqueles seres: nasciam cada vez menos crianças e muito poucas sobreviviam. A sorte dos adultos não era muito melhor. Cada geração era mais baixa e fraca que a anterior, o seu tempo de vida diminuíra drasticamente e apenas alguns indivíduos tinham força para efectuar as tarefas necessárias, como criar os chegnos, apanhar plantas e caçar para comer. Tratava-se de um castigo dos deuses ou dos demónios que vivem nas montanhas, garantiu-lhes Grr-ympr. Disse que os yetis tentaram apaziguá-los com sacrifícios, mas a morte de várias vítimas, que foram despedaçadas ou lançadas à água fervente das fumarolas, não tinha posto fim ao malefício divino.
Grr-ympr tinha vivido muito. A sua autoridade provinha da sua memória e experiência, que mais ninguém possuía. A tribo atribuía-lhe poderes sobrenaturais e durante duas gerações tinha esperado que ela se entendesse com os deuses, mas a sua magia não tinha servido para anular o feitiço e salvar o seu povo de uma extinção próxima. Grr-ympr declarou que tinha invocado os deuses vezes sem conta e agora, finalmente, eles apareciam. Assim que vira Tensing e Dil Bahadur, soube que eram eles. Por isso os yetis não os tinham atacado.
Tudo isto comunicou aos visitantes a mente da atribulada anciã.
- Quando estes seres souberem que não somos deuses, mas simples humanos, não creio que fiquem muito contentes - observou o príncipe.
- Talvez... Mas, comparados com eles, somos semideuses, apesar das nossas infinitas debilidades - disse o lama a sorrir.
Grr-ympr lembrava-se do tempo em que os yetis eram altos, pesados e estavam cobertos por um pêlo tão espesso, que podiam sobreviver às intempéries na região mais alta e fria do planeta. Os ossos que os visitantes tinham visto no desfiladeiro eram dos seus antepassados, os yetis gigantes. Conservavam-nos aí com respeito, embora já só ela se lembrasse deles. Grr-ympr era uma criança quando a sua tribo descobriu o vale das águas quentes, onde a temperatura era suportável e a existência mais fácil, porque crescia alguma vegetação e havia alguns animais para caçar, como ratos e cabras, além dos chegnos.
A feiticeira também se lembrava de ter visto os deuses, anteriormente, uma vez na sua vida. Deuses como Tensing e Dil Bahadur, que vieram ao vale à procura de plantas. Em troca das plantas que levaram, forneceram-lhes conhecimentos valiosos, que melhoraram as condições de vida dos yetis. Ensinaram-nos a domesticar os chegnos e a cozinhar a carne, embora já ninguém tivesse forças para esfregar pedras e fazer fogo. Devoravam cru tudo aquilo que conseguiam caçar e, se a fome fosse muita, como último recurso matavam chegnos ou comiam os cadáveres de outros yetis. Os lamas também os ensinaram a distinguir-se através de um nome próprio. Grr-ympr queria dizer mulher sábia, na língua dos yetis.
Há muito tempo que nenhum deus aparecia no vale, informou-os Grr-ympr, por telepatia. Tensing calculou que, pelo menos, há meio século, desde que a China invadira o Tibete, nenhuma expedição ali chegara à procura de plantas medicinais. Os yetis não tinham muito tempo de vida e nenhum deles, excepto a velha feiticeira, tinha visto seres humanos, mas na memória colectiva existia a lenda dos sábios lamas.
Tensing sentou-se numa gruta maior do que as outras, a única onde conseguiu entrar de gatas, e que, sem dúvida, servia de local de reunião, uma espécie de sala do conselho. Dil Bahadur e Grr-ympr sentaram-se ao seu lado e, pouco a pouco, foram chegando os yetis, alguns tão fracos, que mal conseguiam arrastar-se pelo chão. Aqueles que os tinham recebido brandindo pedras e cacetes eram os guerreiros daquele patético grupo e ficaram de fora montando guarda, sem largarem as armas.
Os yetis, uns vinte no total sem contar com a dúzia de guerreiros, desfilaram um por um. Eram quase todos fêmeas e, a avaliar pelo pêlo e pelos dentes, pareciam ser jovens, mas estavam bastante doentes. Tensing examinou cada uma delas com muito respeito, para não as assustar. As últimas cinco trouxeram os seus bebés, os únicos que restavam vivos. Não tinham o aspecto repugnante dos adultos, pareciam macaquinhos de pelúcia branca, desarticulados. Estavam fracos, não seguravam a cabeça nem os membros, mantinham os olhos fechados e quase não respiravam.
Comovido, Dil Bahadur viu que aqueles seres de aspecto bestial amavam as suas crias como qualquer mãe. Traziam-nas ao colo com ternura, farejavam-nas e lambiam-nas, punham-nas ao peito para alimentá-las e gritavam de angústia ao verificar que não reagiam.
- É muito triste, mestre. Estão a morrer - observou o jovem.
- A vida está cheia de sofrimento. A nossa missão é aliviá-lo, Dil Bahadur - replicou Tensing.
Havia tão pouca luz na gruta e o cheiro era tão insuportável, que o lama deu a entender que deveriam sair para o ar livre. Aí se reuniu a tribo. Grr-ympr deu uns passos de dança em volta dos bebés doentes, fazendo soar os seus colares de ossos e dentes e lançando gritos arrepiantes. Os yetis acompanharam-na com um coro de gemidos.
Sem fazer caso da algazarra de lamentos que havia à sua volta, Tensing inclinou-se sobre as crianças. Dil Bahadur viu transformar-se a expressão do seu mestre, como costumava acontecer quando activava os seus poderes de cura. O lama levantou um dos bebés mais pequenos, que cabia tranquilamente na palma da sua mão, e examinou-o com atenção. Depois aproximou-se de uma das mães fazendo gestos amistosos, para acalmá-la, e estudou algumas gotas do seu leite.
- O que se passa com as crianças? - perguntou o príncipe.
- Possivelmente estão a morrer de fome - disse Tensing.
- Fome? As mães não os alimentam?
Tensing explicou-lhe que o leite das yetis era um líquido amarelo e transparente. Depois chamou os guerreiros, que não quiseram aproximar-se até Grr-ympr lhes ter grunhido uma ordem, e o lama também os examinou, detendo-se especialmente nas línguas arroxeadas. A única que não tinha essa cor na língua acabou por ser a velha Grr-ympr. A boca dela era um buraco escuro e malcheiroso que não dava vontade de examinar de muito perto, mas Tensing não era homem para recuar diante dos obstáculos.
- Todos os yetis estão desnutridos, excepto Grr-ympr, que só apresenta sintomas de velhice. Calculo que deve ter cerca de cem anos - concluiu o lama.
- O que mudou no vale para que lhes falte comida? - perguntou o discípulo.
- Talvez não falte alimento, mas estejam doentes e não assimilem o que comem. Os bebés dependem do leite materno, que não serve para nutri-los, porque é como água, e por isso morrem passadas poucas semanas ou meses. Os adultos têm mais recursos, porque comem carne ou plantas, mas alguma coisa os enfraqueceu.
- Por isso o seu tamanho foi diminuindo e morrem jovens acrescentou Dil Bahadur.
- Talvez.
Dil Bahadur revirou os olhos. Às vezes o seu mestre era tão vago que o irritava.
Este é um problema das últimas duas gerações, porque Grr-ympr se lembra da época em que os yetis eram tão altos como ela. Por este andar, dentro de poucos anos terão desaparecido - disse o jovem.
- Talvez - respondeu pela centésima vez o lama, que estava a pensar noutra coisa, e acrescentou que Grr-ympr também se lembrava de quando se tinham mudado para este vale. Isso significava que havia alguma coisa daninha ali, alguma coisa que estava a destruir os yetis.
- Deve ser isso...! Consegue salvá-los, mestre?
- Talvez...
O monge fechou os olhos e rezou durante alguns minutos, pedindo inspiração para resolver o problema e humildade para compreender que o resultado não estava nas suas mãos. Faria o seu melhor, mas não controlava a vida ou a morte.
Terminada a sua curta meditação, Tensing lavou as mãos, dirigiu-se depois para um dos currais, escolheu um chegno fêmea e ordenhou-a. Encheu a sua tigela de leite morno e espumoso e levou-a para junto das crianças. Embebeu um trapo no leite e pô-lo na boca de uma delas. Ao princípio, esta não reagiu, mas passados poucos segundos o cheiro a leite reanimou-a, abriu os lábios e começou a sugar fracamente o trapo. Por gestos, o lama pediu às mães que o imitassem. O processo de ensinar os yetis a ordenhar os chegnos e a alimentar os bebés gota a gota foi demorado e enfadonho. Os yetis tinham muito pouca capacidade de raciocínio, mas conseguiam aprender por repetição. O mestre e o discípulo passaram o dia inteiro nisso, mas viram os resultados nessa mesma noite, quando três das crianças começaram a chorar pela primeira vez. No dia seguinte, os cinco choravam pedindo leite e rapidamente abriram os olhos e conseguiram mexer-se.
Dil Bahadur sentia-se tão vaidoso como se a solução tivesse sido ideia sua, mas Tensing não descansava. Tinha de encontrar uma explicação. Estudou todas as coisas que os yetis metiam na boca, sem descobrir a causa da doença, até que ele próprio e o seu discípulo começaram a sofrer de dores de barriga e a vomitar bílis. Eles só comiam tsampa, o seu alimento habitual de farinha de cevada, manteiga e água quente. Não provaram a carne de chegno que os yetis lhes ofereceram, porque eram vegetarianos.
- Qual foi a única coisa diferente que comemos, Dil Bahadur? - perguntou o mestre, enquanto preparava um chá digestivo para ambos.
- Nada, mestre - respondeu o jovem, pálido como um morto.
- Alguma coisa tem de ser - insistiu Tensing.
- Alimentámo-nos apenas de tsampa, nada mais... - murmurou o jovem.
Tensing passou-lhe a tigela com o chá e Dil Bahadur, dobrado de dores, levou-a à boca. Não chegou a beber o líquido. Cuspiu-o para a neve.
- A água, mestre! É a água quente!
Normalmente ferviam água ou neve para preparar o tsampa e o chá, mas no vale tinham utilizado a água fervente de uma das fontes termais que brotavam do chão.
- É isso que está a envenenar os yetis, mestre - insistiu o príncipe.
Tinham-nos visto utilizar a água cor de lavanda da fonte termal para fazerem uma sopa de cogumelos, ervas e flores roxas, a base da sua alimentação. Grr-ympr tinha perdido o apetite com os anos e só comia carne crua de dois ou de três em três dias e deitava punhados de neve na boca quando tinha sede. Aquela mesma água termal, que devia conter minerais tóxicos, tinha sido utilizada por eles para o chá. Nas horas seguintes evitaram-na completamente e o mal-estar que os apoquentava não se repetiu. Para se certificarem de que tinham descoberto a causa do problema, no dia seguinte Dil Bahadur fez chá com a água suspeita e bebeu-o. Depressa começou a vomitar, mas estava feliz por ter provado a sua teoria.
O lama e o seu discípulo informaram Grr-ympr com muita paciência de que a água cor de lavanda estava absolutamente proibida, bem como as flores roxas que cresciam nas margens do riacho. A água termal servia para se lavarem, não para prepararem comida, disse-lhe. Não se deram ao trabalho de lhe explicar que continha minerais prejudiciais, porque a velha yeti não teria compreendido; era suficiente que os yetis acatassem as suas instruções. Grr-ympr facilitou a sua tarefa. Reuniu os súbditos e notificou-os da nova lei: quem bebesse dessa água seria atirado às fumarolas, entendido? Todos entenderam.
A tribo ajudou Tensing e Dil Bahadur a recolher as plantas medicinais de que necessitavam. Durante a semana que permaneceram no Vale dos Yetis, os visitantes comprovaram que as crianças recuperavam de dia para dia e que os adultos se fortaleciam à medida que a cor arroxeada das línguas desaparecia.
Grr-ympr em pessoa acompanhou-os quando chegou o momento de partir. Viu-os encaminhar-se para o desfiladeiro por onde tinham chegado e, após algumas hesitações, porque receava revelar o segredo dos yeti até a estes deuses, pediu-lhes que a seguissem na direcção contrária. O lama e o príncipe foram atrás dela durante mais de uma hora, por uma vereda estreita que passava entre as colunas de vapor e as lagoas de água a ferver, até deixarem para trás a primitiva aldeia dos yetis.
A feiticeira levou-os até ao fim do planalto, apontou para uma abertura na montanha e disse-lhes que os yetis saíam por ali de vez em quando à procura de comida. Tensing conseguiu compreender o que ela lhes dizia: tratava-se de um túnel natural para encurtar caminho. O misterioso vale ficava muito mais perto da civilização do que todos supunham. O pergaminho em poder de Tensing mostrava a única rota conhecida pelos lamas, que era muito mais longa e cheia de obstáculos, mas também existia aquela passagem secreta.
Pela sua localização, Tensing compreendeu que o túnel descia directamente pelo interior da montanha e terminava antes de Chenthan Dzong, o mosteiro em ruínas. Isso fazia-os poupar dois terços do caminho.
Grr-ympr despediu-se deles com a única demonstração de afecto que conhecia: lambeu-lhes a cara e as mãos até os deixar cobertos de saliva e moncos.
Assim que a horrenda feiticeira deu meia volta, Dil Bahadur e Tensing rebolaram-se na neve para se limpar. O mestre ria-se, mas o discípulo quase não conseguia controlar o asco.
- O meu único consolo é que nunca mais voltaremos a ver esta boa senhora - comentou o jovem.
- Nunca é muito tempo, Dil Bahadur. Talvez a vida nos proporcione uma surpresa - replicou o lama, entrando decididamente no túnel estreito.
CAPÍTULO 2
Três ovos fabulosos
Entretanto, no outro lado do mundo, Alexander Cold chegava a Nova Iorque acompanhado pela avó, Kate. O rapaz americano tinha adquirido uma cor de madeira devido ao sol do Amazonas. Tinha um corte de cabelo feito pelos índios, com uma calva circular a meio da cabeça, onde luzia uma cicatriz recente. Levava às costas a sua mochila imunda e, na mão, uma garrafa com um líquido leitoso. Kate Cold, tão bronzeada como ele, ia vestida com os seus habituais calções caqui e sapatorras enlameadas. O seu cabelo grisalho, que ela própria cortava sem olhar para o espelho, dava-lhe um aspecto de índio moicano acabado de acordar. Estava cansada, mas os olhos brilhavam-lhe atrás dos óculos partidos, presos com fita-cola. A bagagem era composta por um tubo de quase três metros de comprimento e outros dois pacotes com um tamanho e uma forma pouco habituais.
- Têm alguma coisa a declarar? - perguntou o funcionário da imigração, lançando um olhar de reprovação para o estranho penteado de Alex e para o aspecto da avó.
Eram cinco da manhã e o homem estava tão cansado como os passageiros do avião que acabava de chegar do Brasil.
- Nada. Somos repórteres da International Geographic. Tudo o que trazemos é material de trabalho respondeu Kate Cold.
- Fruta, vegetais, alimentos?
- Só a água da saúde para curar a minha mãe... - disse Alex, mostrando a garrafa que trouxera na mão durante toda a viagem.
- Não ligue, senhor guarda, este rapaz tem muita imaginação - interrompeu-o Kate.
- O que é isto? - perguntou o funcionário, apontando para o tubo.
- Uma zarabatana.
- O quê?
- É uma espécie de cana oca que os índios do amazonas utilizam para disparar dardos envenenados com... - começou Alexander a explicar, mas a avó fê-lo calar com um pontapé.
O homem estava distraído e não continuou com as perguntas, de modo que não foi informado sobre a aljava com os dardos ou sobre a cabaça com o veneno mortal, curare, que vinha noutro dos pacotes.
- Mais alguma coisa? Alexander Cold meteu a mão nos bolsos do blusão e tirou três bolas de vidro.
- O que é isso?
- Julgo que são diamantes - disse o rapaz e, imediatamente, recebeu outro pontapé da avó.
- Diamantes! Que engraçado! O que estiveste a fumar, rapaz? - exclamou o oficial com uma gargalhada, carimbando os passa-portes e mandando-os seguir. Ao abrir a porta do apartamento de Nova Iorque, Kate e Alexander foram atingidos na cara por uma lufada de ar fétido.
A escritora deu uma palmada na testa. Não era a primeira vez que ia de viagem e se esquecia do lixo na cozinha. Entraram a cambalear, tapando o nariz. Enquanto Kate se encarregava da bagagem, o neto abriu as janelas e foi despejar o lixo, que já tinha desenvolvido flora e fauna. Quando, finalmente, conseguiram meter o tubo com a zarabatana no minúsculo apartamento, Kate, com um suspiro, caiu escarranchada no sofá. Sentia que os anos começavam a pesar-lhe.
Alexander tirou as bolas do seu blusão e colocou-as em cima da mesa. Ela deitou-lhes um olhar indiferente. Pareciam aqueles pisa-papéis de vidro que os turistas costumam comprar.
- São diamantes, Kate - informou-a o rapaz.
- Claro! E eu sou Marilyn Monroe... - respondeu a velha escritora.
- Quem?
- Bah! - grunhiu ela, espantada com o abismo de gerações que a separava do neto.
- Deve ser alguém da tua época - sugeriu Alexander.
- Esta é a minha época! Esta época é mais minha do que tua. Eu, pelo menos, não vivo na lua como tu - resmungou a avó.
- A sério que são diamantes, Kate - insistiu ele.
- Está bem, Alexander, são diamantes.
- Poderias chamar-me Jaguar? É o meu animal totémico. Os diamantes não nos pertencem, Kate, são dos índios, do povo da neblina. Prometi à Nadia que os utilizaríamos para os proteger.
- Tá bem, tá bem, tá bem! - disse ela entre dentes, sem prestar muita atenção.
- Com isto poderemos financiar a fundação que pensavas fazer com o Professor Leblanc.
- Acho que a pancada que te deram no crânio te desatarraxou os parafusos do cérebro, filho - replicou ela, colocando distraidamente os ovos de cristal no bolso do seu casaco.
Nas semanas seguintes a escritora teria oportunidade de rever aquela opinião acerca do neto.
Kate teve os ovos de cristal em seu poder durante duas semanas sem nunca se lembrar deles, até que, ao tirar o casaco das costas de uma cadeira, um deles lhe caiu em cima do pé, esmagando-lhe os dedos. Nessa altura, o neto Alexander já estava de volta a casa dos pais, na Califórnia. A escritora andou vários dias com o pé dorido e com as pedras no bolso, brincando distraidamente com elas pela rua. Uma manhã foi tomar um café à esquina e, ao sair, esqueceu-se de um dos diamantes na mesa. O dono, um italiano que a conhecia há mais de vinte anos, correu atrás dela até à esquina.
- Kate! Deixaste a tua bola de vidro! - gritou-lhe, atirando-a sobre as cabeças dos outros transeuntes.
Ela agarrou-a no ar e continuou a andar, pensando que já era tempo de fazer alguma coisa a respeito daqueles ovos. Sem um plano definido, dirigiu-se para a rua dos joalheiros, onde estava situada a loja de um antigo apaixonado seu, Isaac Rosenblat. Tinham estado prestes a casar-se há cerca de quarenta anos, mas apareceu Joseph Cold que seduziu Kate tocando-lhe um concerto de flauta. Kate tinha a certeza de que a flauta era mágica. Passado pouco tempo, Joseph Cold converteu-se num dos músicos mais célebres do mundo. «Era a mesma flauta que o tonto do meu neto deixou esquecida no Amazonas!», pensou Kate, furiosa. Dera um bom puxão de orelhas a Alexander por ter perdido o magnífico instrumento musical do avô.
Isaac Rosenblat era um pilar da comunidade hebraica, rico, respeitado e pai de seis filhos. Era uma daquelas pessoas rectas, que cumprem o seu dever sem alardes e que têm a alma em paz; mas, quando viu Kate Cold entrar na sua loja, sentiu que se afundava num pântano de lembranças. Num instante voltou a ser o jovem tímido que tinha amado aquela mulher com o desespero do primeiro amor. Naquele tempo ela era uma jovem com pele de porcelana e indómito cabelo ruivo; agora ostentava mais rugas que um pergaminho e um cabelo grisalho cortado às tesouradas e espetado como os pêlos de um escovilhão.
- Kate! Estás na mesma, rapariga! Seria capaz de te reconhecer no meio de uma multidão... - murmurou, emocionado.
- Não mintas, velho desavergonhado - replicou ela, sorrindo lisonjeada, apesar de tudo, e largando a mochila que caiu no chão como um saco de batatas.
- Vieste dizer-me que te enganaste e pedir-me perdão por me teres deixado plantado e com o coração partido, não é verdade? troçou o joalheiro.
- É verdade, enganei-me, Isaac. Não sirvo para estar casada. O meu casamento com Joseph durou muito pouco tempo, mas pelo menos tivemos um filho, John. Agora tenho três netos.
- Soube que Joseph morreu. Lamento-o, a sério. Sempre tive ciúmes dele e nunca lhe perdoei ter-me roubado a namorada, mas comprava na mesma todos os seus discos. Tenho a colecção completa dos seus concertos. Era um génio... - disse o joalheiro, convidando Kate a sentar-se num sofá de cabedal escuro e sentando-se ao lado. - Então, agora estás viúva - acrescentou, olhando para ela com carinho.
- Não tenhas ilusões, não vim para me consolares. Também não vim para comprar jóias. Não combinam com o meu estilo replicou Kate.
- Estou a ver - comentou Isaac Rosenblat, olhando de soslaio para as calças engelhadas, para as botas de combate e para a bolsa de excursionista que estava no chão.
- Quero mostrar-te uns pedaços de vidro - disse ela, tirando os ovos do seu casaco.
Pela janela entrava a luz da manhã, que bateu em cheio nos objectos que a senhora segurava na palma das mãos. Um brilho inacreditável cegou Isaac Rosenblat por um instante, provocando-lhe um salto no coração. Provinha de uma família de joalheiros. Pelas mãos do seu avô tinham passado pedras preciosas das tumbas dos faraós egípcios; das mãos do seu pai tinham saído diademas para imperatrizes; as suas próprias mãos tinham desmontado os rubis e as esmeraldas dos czares da Rússia, assassinados durante a Revolução Bolchevique. Ninguém sabia tanto sobre jóias como ele e muito poucas pedras conseguiam perturbá-lo, mas tinha diante dos seus olhos uma coisa tão prodigiosa que se sentiu enjoado. Sem dizer uma palavra, agarrou nos ovos, levou-os até à sua secretária e examinou-os à lupa sob um candeeiro. Quando verificou que a sua primeira impressão era verdadeira, deu um suspiro profundo, tirou um lenço branco de cambraia e limpou a testa.
- Onde roubaste isto, rapariga? - perguntou com voz trémula.
- Vêm de um lugar distante chamado Cidade dos Deuses Selvagens.
- Estás a gozar comigo? - perguntou o joalheiro.
- Juro-te que não. Valem alguma coisa, Isaac?
- Valem alguma coisa, sim. Digamos que, com eles, podes comprar um pequeno país - murmurou o joalheiro.
- Tens a certeza?
- São os diamantes maiores e mais perfeitos que já vi. Onde estavam? É impossível que um tesouro como este tenha passado despercebido. Conheço todas as pedras importantes que existem, mas nunca ouvi falar destas, Kate.
- Pede que nos tragam café e um gole de vodca, Isaac. Agora, instala-te confortavelmente, porque te vou contar uma história interessante - replicou Kate Cold.
Desta forma o bom homem ficou a conhecer a adolescente brasileira que subiu a uma misteriosa montanha do Alto Orenoco, guiada por um sonho e por um feiticeiro nu, onde encontrou as pedras num ninho de águias. Kate contou-lhe como a rapariga entregara aquela fortuna a Alexander, seu neto, encarregando-o da missão de as usar para ajudar uma certa tribo de índios, o povo da neblina, que ainda vivia na Idade da Pedra. Isaac Rosenblat ouviu educadamente, sem acreditar numa única palavra daquela história despropositada. Nem um louco rematado conseguiria engolir semelhantes fantasias, concluiu. Com certeza a sua antiga namorada estava envolvida nalgum negócio muito escuro ou descobrira uma mina fabulosa. Sabia que Kate nunca o confessaria. Era lá com ela, estava no seu direito, pensou, suspirando novamente.
- Estou a ver que não acreditas em mim, Isaac - resmungou a extravagante escritora, metendo à garganta outro gole de vodca para acalmar um acesso de tosse.
- Suponho que estás de acordo comigo em que esta é uma história pouco comum, Kate...
- E isso antes de te ter falado das Bestas, uns gigantes peludos e hediondos que...
- Está bem, Kate, julgo que não necessito de mais pormenores - interrompeu-a o joalheiro, extenuado.
- Tenho de transformar estes calhaus em capital para uma fundação. Prometi ao meu neto que os usaria para proteger o povo da neblina, assim se chamam os índios invisíveis e...
- Invisíveis?
- Não são exactamente invisíveis, Isaac, mas parecem-no. É como um truque de magia. Nadia Santos diz que...
- Quem é Nadia Santos?
- A rapariga que encontrou os diamantes, já to disse. Ajudas-me, Isaac?
- Ajudo-te, desde que seja legal, Kate.
E foi assim que o honrado Isaac Rosenblat se converteu no guardião das três pedras maravilhosas; que se encarregou de as transformar em dinheiro sonante; que investiu o capital com sabedoria; e que assessorou Kate Cold na criação da Fundação Diamante. Aconselhou-a a nomear o antropólogo Ludovic Leblanc para presidente, mas a manter o controlo do dinheiro nas suas próprias mãos. Dessa forma reatou com ela também a sua amizade, adormecida durante quarenta anos.
- Sabes que eu também sou viúvo, Kate? - confessou-lhe nessa mesma noite, quando foram jantar juntos.
- Suponho que não pensarás declarar-te, Isaac. Há muito tempo que não lavo as peúgas de um marido e não penso começar agora - riu-se a escritora.
Brindaram pelos diamantes.
Alguns meses mais tarde Kate estava diante do computador, com o seu corpo seco coberto apenas por uma camisola cheia de orifícios que lhe chegava a meio das coxas e deixava à mostra os seus joelhos ossudos, as suas pernas cobertas de veias e cicatrizes e os seus pés firmes de caminhante. Sobre a cabeça giravam, como um zumbido de vespas, as pás de uma ventoinha, que não conseguiam aliviar o calor sufocante de Nova Iorque no Verão. Há já algum tempo - há dezasseis ou dezassete anos - que a escritora ponderava a possibilidade de instalar ar condicionado no apartamento, mas ainda não encontrara o momento certo para o fazer. O suor empapava-lhe o cabelo e escorria-lhe pelas costas, enquanto os dedos açoitavam furiosamente o teclado. Sabia que bastava roçar as teclas, mas ela era um animal de hábitos, por isso as esmagava, tal como fazia anteriormente na sua antiquada máquina de escrever.
Num dos lados do computador tinha um jarro de chá gelado com vodca, uma mistura explosiva de cuja invenção se sentia orgulhosa. No outro lado estava pousado o seu cachimbo de marinheiro, apagado. Resignara-se a fumar menos, porque a tosse não a largava, mas mantinha o cachimbo preparado para lhe fazer companhia. O cheiro do tabaco preto reconfortava-lhe a alma. «Aos sessenta e cinco anos não são muitos os vícios que uma bruxa como eu pode permitir-se», pensava. Não estava disposta a renunciar a nenhum dos seus vícios, mas, se não deixasse de fumar, os pulmões explodir-lhe-iam.
Há seis meses que Kate se dedicava a pôr de pé a Fundação Diamante, que criara com o famoso antropólogo Ludovic Leblanc, que, diga-se de passagem, considerava seu inimigo. Detestava aquele tipo de trabalho, mas se não o fizesse, o seu neto Alexander nunca lhe perdoaria. «Sou uma pessoa de acção, uma repórter de viagens e aventuras, não uma burocrata», dizia, suspirando, entre golinhos de chá com vodca.
Além de batalhar com o assunto da fundação, tivera de se deslocar duas vezes até Caracas para prestar declarações contra Mauro Carias e a doutora Omayra Torres, os responsáveis pela morte de centenas de índios infectados pela varíola. Mauro Carias não assistia ao julgamento, estava numa clínica privada, convertido num vegetal. Teria sido melhor que a bordoada dada pelos índios o tivesse despachado para o outro mundo.
As coisas complicavam-se para Kate Cold, porque a revista International Geographic a encarregara de escrever uma reportagem sobre o Reino do Dragão de Ouro. Não lhe convinha continuar a adiar a viagem, porque podiam entregá-la a outro repórter, mas antes de partir tinha de curar a tosse. Aquele pequeno país ficava incrustado nos cumes dos Himalaias, onde o clima era muito traiçoeiro; a temperatura podia variar trinta graus em poucas horas. A ideia de consultar um médico nem lhe passava pela cabeça, evidentemente. Nunca o fizera na vida e não ia começar agora. Tinha uma péssima opinião dos profissionais que ganham à hora. Ela cobrava à palavra. Parecia-lhe óbvio que não convinha a nenhum médico que o paciente sarasse, por isso preferia remédios caseiros. Depositara a sua fé numa casca de árvore trazida do Amazonas, que lhe deixaria os pulmões como novos. Um xamã centenário chamado Walimai garantira-lhe que a casca servia para as doenças do nariz e da boca. Kate pulverizava-a no liquidificador e diluía-a no seu chá com vodca, para disfarçar o sabor amargo, e bebia-o ao longo do dia com grande determinação. O remédio ainda não tinha dado resultados, explicava nesse mesmo momento ao professor Ludovic Leblanc, através do correio electrónico.
Nada fazia Cold e Leblanc mais felizes do que odiar-se mutuamente e não perdiam uma oportunidade de o demonstrar. Não lhes faltavam pretextos, porque estavam irremediavelmente unidos pela Fundação Diamante, cujo presidente era ele, enquanto ela governava o dinheiro. O trabalho comum para a fundação obrigava-os a comunicar um com o outro quase diariamente e faziam-no por correio electrónico para não terem de ouvir as suas respectivas vozes pelo telefone. Procuravam ver-se o menos possível.
A Fundação Diamante tinha sido criada para proteger as tribos do Amazonas em geral e o povo da neblina em particular, tal como Alexander tinha exigido. O professor Ludovic Leblanc estava a escrever um pesado calhamaço académico sobre a tribo e o seu próprio papel nessa aventura, embora na verdade os índios tenham sido salvos, milagrosamente, do genocídio por Alexander Cold e pela sua amiga brasileira Nadia Santos, e não por Leblanc. Ao recordar aquelas semanas na selva, Kate não conseguia evitar um sorriso. Quando partiram de viagem para o Amazonas o seu neto era um rapazinho mimado e, quando regressaram, pouco mais tarde, tinha-se convertido num homem. Alexander - ou Jaguar, como se lhe metera na cabeça que devia chamá-lo - portara-se como um valente, era justo reconhecê-lo. Estava orgulhosa dele. A fundação existia graças a Alex e a Nadia; sem eles o projecto teria ficado pelas intenções: eles é que o tinham financiado.
No início, o professor pretendia que a organização se chamasse Fundação Ludovic Leblanc, porque tinha a certeza de que o seu nome atrairia a imprensa e possíveis benfeitores, mas Kate não o deixou acabar a frase.
- Terá de passar sobre o meu cadáver para conseguir que ponha o dinheiro conseguido pelo meu próprio neto em seu nome, Leblanc - interrompeu-o.
O antropólogo teve de se resignar, porque ela dispunha dos três fabulosos diamantes do Amazonas. Tal como o joalheiro Rosenblat, Ludovic Leblanc também não acreditava numa palavra da história daquelas pedras extraordinárias. Diamantes num ninho de águias? Está bem...! Suspeitava que o guia César Santos, pai de Nadia, tinha acesso a uma mina secreta em plena selva, onde a rapariga tinha obtido as pedras. Acalentava a fantasia de regressar ao Amazonas e de convencer o guia a partilhar com ele essas riquezas. Era um sonho disparatado, porque estava a ficar velho, doíam-lhe as articulações e já não tinha energia para viajar para sítios sem ar condicionado. Além disso, estava muito ocupado a escrever a sua obra-prima.
Parecia-lhe impossível concentrar-se na sua importante missão com o seu reduzido salário de professor. O seu escritório era um buraco insalubre, num edifício decrépito, num quarto andar sem elevador, uma vergonha! Se ao menos Kate Cold fosse um pouco mais generosa com o orçamento... Que mulher desagradável!, pensava o arqueólogo. Era impossível relacionar-se com ela. O presidente da Fundação Diamante devia trabalhar com estilo. Precisava de uma secretária e de um escritório decente. Mas a forreta da Kate não largava um centavo a mais do estritamente necessário para as tribos. Nesse momento, precisamente, discutiam ambos por correio electrónico a propósito de um automóvel, que ele achava indispensável. Deslocar-se de metro era uma perda do seu precioso tempo, que seria melhor empregue ao serviço dos índios e dos bosques, explicava. No ecrã dela iam-se formando as frases de Leblanc: não peço nada de especial, Cold, não se trata de uma limusina com motorista, mas apenas de um pequeno descapotável...
Tocou o telefone e a escritora ignorou-o, porque não queria perder o fio dos contundentes argumentos com que planeava crivar Leblanc, mas a campainha continuou a tocar até fazê-la perder a paciência. Furiosa, agarrou no auscultador com uma pancada, resmungando contra o atrevido que a interrompia no seu trabalho intelectual.
- Olá, avó - cumprimentou alegremente, da Califórnia, a voz do seu neto mais velho.
- Alexander! - exclamou, encantada por ouvi-lo, mas imediatamente se controlou, não fosse o seu neto suspeitar que sentia a falta dele. - Não te disse milhares de vezes para não me chamares avó?
- Também combinámos que tu me chamarias Jaguar - replicou o rapaz, imperturbável.
- De jaguar não tens nem o bigode, és um pobre gato pelado.
- Tu, pelo contrário, és a mãe do meu pai, de modo que legalmente posso chamar-te avó.
- Recebeste o meu presente? - cortou ela.
- É maravilhoso, Kate!
E, na verdade, era-o. Alexander acabara de fazer dezasseis anos e recebeu pelo correio uma caixa enorme proveniente de Nova Iorque com o presente da avó. Kate Cold desfizera-se de uma das suas mais valiosas posses: a pele de um pitão de vários metros de cumprimento, o mesmo que engolira a sua máquina fotográfica na Malásia, há vários anos. Agora o trofeu estava pendurado, como única decoração, no quarto de Alexander. Há alguns meses, o rapaz tinha destruído os móveis num assomo de angústia devido à doença da mãe. Ficou apenas com um colchão semiesventrado para dormir e com uma lanterna para ler à noite.
- Como estão as tuas irmãs?
- Andrea não entra no meu quarto, porque tem pavor da pele da cobra, mas Nicole presta-se a ser minha escrava para que eu a deixe tocar-lhe. Ofereceu-me tudo o que tem em troca do pitão, mas nunca a darei a ninguém.
- Assim espero. E como está a tua mãe?
- Muito melhor, basta dizer que voltou aos pincéis e às pinturas. Sabes? Walimai, o xamã, disse-me que tenho o poder de curar e que o devo usar bem. Pensei que se calhar não vou ser músico, como tinha pensado, mas médico. O que achas? - perguntou Alex.
- Suponho que deves pensar ter curado a tua mãe... - riu-se a avó.
- Não fui eu quem a curou, mas a água da saúde e as plantas medicinais que trouxe do Amazonas...
- E a quimioterapia e a radioterapia também - interrompeu-o ela.
- Nunca saberemos o que a curou, Kate. Outros pacientes que receberam o mesmo tratamento no mesmo hospital já morreram e a minha mãe, pelo contrário, está em plena recuperação. Esta doença é muito traiçoeira e pode voltar a qualquer momento, mas creio que as plantas que me deu o xamã Walimai e a água maravilhosa poderão mantê-la saudável.
- Muito trabalho te custou consegui-las - comentou Kate.
- Quase perdi a vida...
- Isso não é nada. Deixaste a flauta do teu avô - cortou ela.
- A tua consideração pelo meu bem-estar é comovedora, Kate - troçou Alexander.
- Enfim... O assunto já não tem remédio. Suponho que devo perguntar pela tua família...
- Também é tua e não me parece que tenhas outra. Caso te interesse, estamos pouco a pouco a voltar à normalidade na família. À mãe está-lhe a nascer cabelo encaracolado e grisalho. Achava-se mais bonita careca - informou-a o neto.
- Fico feliz por Lisa estar a recuperar. Gosto dela, é boa pintora - admitiu Kate Cold.
- E boa mãe...
Houve uma pausa de alguns segundos na linha, durante a qual Alexander tentou ganhar coragem para expor o motivo do seu telefonema. Explicou que tinha poupado dinheiro, por ter trabalhado durante o semestre dando aulas de música e servindo numa pizaria. O seu objectivo tinha sido repor o que destruíra no quarto, mas depois mudara de ideias.
- Não tenho tempo para ouvir os teus planos financeiros. Vai directo ao assunto. O que é que queres? - intimou-o a avó.
- Estou de férias a partir de amanhã... - E?
- Pensei que, se pagasse a minha passagem, talvez pudesses levar-me contigo na tua próxima viagem. Não me disseste que ias aos Himalaias?
Outro silêncio glacial acolheu a pergunta. Kate Cold estava a fazer um esforço enorme para controlar a satisfação que a tolhia: estava tudo a sair de acordo com os seus planos. Se o tivesse convidado, o neto teria colocado uma série de entraves, tal como fizera quando se tratou de viajar até ao Amazonas, mas desta forma a iniciativa partia dele. Tinha tanta certeza de que Alexander iria com ela que lhe preparara uma surpresa.
- Estás aí, Kate? - perguntou Alexander, timidamente.
- Claro! Onde querias que estivesse?
- Podes, ao menos, pensar nisso?
- Ora! E eu que pensava que a juventude andava ocupada a fumar erva e a arranjar namorada através da Internet... - comentou ela entre dentes.
- Isso é um pouco mais tarde, Kate. Tenho dezasseis anos e o orçamento não me chega sequer para um encontro virtual - disse Alexander, rindo-se e acrescentando: - Julgo ter-te provado que sou um bom companheiro de viagem. Não te incomodarei com nada e posso ajudar-te. Já não tens idade para andar sozinha...
- Mas, o que estás a dizer, fedelho?!
- Refiro-me... bom, posso transportar a tua bagagem, por exemplo. Também posso tirar fotografias.
- Achas que a International Geographic publicaria as tuas fotografias? Timothy Bruce e Joel Gonzalez, os mesmos fotógrafos que foram connosco ao Amazonas, virão também.
- Gonzalez está curado?
- Curou as costelas partidas mas ainda está assustado. Timothy Bruce cuida dele como uma mãe.
- Eu também cuidarei de ti como uma mãe, Kate. Nos Himalaias podes ser pisada por uma manada de iaques. Além disso, há pouco oxigénio, pode dar-te algum ataque de coração - suplicou o neto.
- Não penso dar a Leblanc o prazer de morrer antes dele - resmungou ela entre dentes, e acrescentou: - mas vejo que sabes alguma coisa sobre aquela região.
- Nem imaginas o que li a respeito dela. Posso ir contigo? Por favor!
- Está bem, mas não vou esperar por ti nem um minuto. Encontramo-nos no aeroporto John F. Kennedy na próxima quinta-feira para embarcarmos às nove da noite para Londres e daí para Nova Deli. Percebeste?
- Lá estarei, prometo-te.
- Traz roupa quente. Quanto mais alto subirmos, mais frio haverá. Com certeza terás oportunidade de fazer montanhismo, de modo que podes trazer também o teu equipamento de alpinismo.
- Obrigado, obrigado, avó! - exclamou o rapaz, emocionado.
- Se tornas a chamar-me avó, não te levo a parte nenhuma! replicou Kate, desligando o telefone e desatando a rir com as suas gargalhadas de hiena.
CAPÍTULO 3
O Coleccionador
A trinta quarteirões do minúsculo apartamento de Kate Cold, no andar superior de um arranha-céus em pleno coração de Manhattan, o segundo homem mais rico do mundo, que fizera a sua fortuna roubando as ideias dos seus subalternos e sócios na indústria informática, falava ao telefone com alguém em Hong Kong. Estas duas pessoas nunca se tinham visto nem nunca se veriam.
O multibilionário dava-se a conhecer como o Coleccionador, e a pessoa em Hong Kong era, simplesmente, o Especialista. O primeiro não conhecia a identidade do segundo. Entre outras medidas de segurança, tinham ambos um dispositivo no telefone que lhes deformava a voz e outro que os impedia de localizar o número. Esta conversa não ficaria registada em parte alguma e ninguém, nem sequer o FBI com os mais sofisticados sistemas de espionagem do mundo, conseguiria averiguar em que consistia a transacção secreta daquelas duas pessoas.
O Especialista conseguia qualquer coisa por um preço. Podia assassinar o presidente da Colômbia, colocar uma bomba num avião da Lufthansa, obter a coroa real de Inglaterra, raptar o Papa ou substituir o quadro da Mona Lisa no Museu do Louvre. Não precisava de publicitar os seus serviços porque nunca lhe faltava trabalho, pelo contrário, os seus clientes tinham de aguardar, com frequência, numa lista de espera de meses antes de chegar a sua vez. A forma de actuar do Especialista era sempre a mesma: o cliente depositava uma determinada quantia de seis dígitos - não reembolsável – numa conta, e esperava pacientemente enquanto os seus dados eram rigorosamente verificados pela organização criminosa.
Passado pouco tempo, o cliente recebia a visita de um agente, regra geral alguém de aspecto insignificante, talvez uma jovem estudante procurando informação para uma tese, ou um padre em representação de uma instituição de beneficência. O agente entrevistava-o, para averiguar em que consistia a missão e depois desaparecia. No primeiro encontro o preço não era mencionado porque se partia do princípio que, se o cliente precisava de perguntar quanto custava o serviço, com certeza não poderia pagá-lo. Mais tarde fechava-se o acordo com um telefonema do Especialista em pessoa. Esse telefonema podia provir de qualquer lugar do mundo.
O Coleccionador tinha quarenta e dois anos. Era um homem de estatura mediana e aspecto comum, com óculos de lentes grossas, ombros descaídos e uma calvície precoce, o que lhe dava um aspecto muito mais velho. Vestia com desleixo, o seu pouco cabelo parecia estar sempre sebento e tinha o péssimo hábito de meter o dedo no nariz quando estava concentrado nos seus pensamentos, o que acontecia quase todo o tempo. Tinha sido uma criança solitária e complexada, pouco saudável, sem amigos e tão brilhante que se aborrecia na escola. Os colegas detestavam-no, porque tinha sempre as melhores notas sem esforço e os professores também não o suportavam porque era pedante e sabia sempre mais do que eles. Tinha começado a sua carreira aos quinze anos, construindo computadores na garagem da casa do seu pai. Aos vinte e três era milionário e, graças à sua inteligência e absoluta falta de escrúpulos, aos trinta tinha mais dinheiro nas suas contas pessoais que o orçamento total das Nações Unidas.
Em criança coleccionava, como quase toda a gente, selos e moedas; na sua juventude coleccionou carros de corrida, castelos medievais, campos de golfe, bancos e rainhas de beleza; agora, no início da idade madura, tinha iniciado uma colecção de «objectos raros». Mantinha-os escondidos em subterrâneos blindados, repartidos pelos cinco continentes, para a sua colecção não perecer completamente em caso de cataclismo. O método tinha o inconveniente de o impedir de passear entre os seus tesouros, desfrutando-os a todos em simultâneo; tinha de se deslocar no seu avião de um ponto para outro para os ver. Mas, na realidade, não precisava de o fazer com assiduidade. Bastava-lhe saber que existiam, que estavam a salvo e que eram seus. Não o motivava qualquer sentimento de amor artístico por aquele espólio, mas cobiça pura e simples.
Entre outras coisas de valor inestimável, o Coleccionador possuía o mais antigo manuscrito da humanidade, a verdadeira máscara funerária de Tutankamón (a do museu é uma cópia), o cérebro de Einstein cortado aos pedacinhos e flutuando num caldo de formol, os textos originais de Averróis escritos pelo próprio, uma pele humana completamente coberta de tatuagens do pescoço aos pés, pedras da lua, uma bomba nuclear, a espada de Carlos Magno, o diário secreto de Napoleão Bonaparte, vários ossos de Santa Cecília e a fórmula da Coca-Cola.
Agora o multibilionário pretendia adquirir um dos mais raros tesouros do mundo, de cuja existência muito poucos estavam a par e ao qual apenas um ser vivo tinha acesso. Tratava-se de um dragão de ouro incrustado de pedras preciosas, que desde há mil e oitocentos anos só fora visto pelos monarcas coroados de um pequeno reino independente nas montanhas e vales dos Himalaias. O dragão estava envolto em mistério e protegido por um malefício e por antigas e complexas medidas de segurança. Nenhum livro ou guia turístico o mencionava, mas muita gente tinha ouvido falar dele e havia uma descrição no Museu Britânico. Existia também um desenho num antigo pergaminho, descoberto por um general num mosteiro quando a China invadiu o Tibete. Aquela brutal ocupação militar obrigou mais de um milhão de tibetanos a fugir para o Nepal e para a índia, entre eles o Dalai Lama, a mais alta figura espiritual do budismo.
Antes de 1950, o príncipe herdeiro do Reino do Dragão de Ouro recebia instrução especial, dos seis aos vinte anos, nesse mosteiro do Tibete. Aí se conservaram durante séculos os pergaminhos onde eram descritas as propriedades daquele objecto e as instruções para a sua utilização, que o príncipe tinha de estudar. Segundo a lenda, não se tratava apenas de uma estátua, mas de um poderoso engenho de adivinhação, que só o rei coroado poderia usar para resolver os problemas do seu reino. O dragão conseguia prever desde as variações do clima, que determinavam a qualidade das colheitas, até às intenções belicistas dos países vizinhos. Graças a essa misteriosa informação, e à sabedoria dos seus governantes, aquele reino minúsculo tinha conseguido manter uma prosperidade tranquila e a sua feroz independência.
Para o Coleccionador, o facto de a estátua ser de ouro era irrelevante, uma vez que dispunha de todo o ouro que desejava. Interessavam-lhe apenas as propriedades mágicas do dragão. Tinha pago ao general chinês uma fortuna pelo pergaminho roubado e depois mandara-o traduzir, porque sabia que de nada lhe serviria a estátua sem o manual de instruções. Os olhinhos de rato do multibilionário brilhavam por detrás das lentes grossas dos seus óculos quando pensava como poderia controlar a economia mundial assim que tivesse aquele objecto nas mãos. Conheceria as variações do mercado de valores antes de estas se produzirem, podendo dessa forma adiantar-se aos seus competidores e multiplicar os seus biliões. Aborrecia-o muitíssimo ser o segundo homem mais rico do mundo.
O Coleccionador ficou a saber que durante a invasão chinesa, quando o mosteiro fora destruído e vários dos seus monges assassinados, o príncipe herdeiro do Reino do Dragão de Ouro conseguira fugir pelas passagens das montanhas, disfarçado de camponês, tendo chegado ao Nepal e, daí, viajado, sempre incógnito, até ao seu país.
Os lamas tibetanos não tinham conseguido terminar a preparação do jovem, mas o seu pai, o Rei, continuou pessoalmente a sua educação. Não pôde dar-lhe, no entanto, a óptima preparação em práticas mentais e espirituais que ele próprio tinha recebido. Quando os chineses atacaram o mosteiro, os monges não tinham aberto ainda o olho na testa do príncipe, que o habilitaria a ver a aura das pessoas, determinando dessa forma o seu carácter e intenções. Também não fora bem treinado na arte da telepatia que permitia ler o pensamento. Nada disso lhe podia ser ensinado pelo pai, mas à morte deste, o príncipe pôde ocupar o trono com dignidade. Possuía um conhecimento profundo dos ensinamentos de Buda e, com o tempo, provou ter a combinação adequada de autoridade para governar, espírito prático para fazer justiça e espiritualidade para não se deixar corromper pelo poder.
O pai de Dil Bahadur tinha acabado de fazer vinte anos quando subiu ao trono e muitos pensaram que não seria capaz de governar como outros monarcas daquela nação. No entanto, desde o início, o novo rei revelou maturidade e sabedoria. O Coleccionador soube que o monarca ocupava o seu trono há mais de quarenta anos e que o seu governo se caracterizava pela paz e pelo bem-estar.
O soberano do Reino do Dragão de Ouro não aceitava influências do estrangeiro, sobretudo do Ocidente, cuja cultura considerava decadente e materialista, muito perigosa para os valores que sempre tinham imperado no seu país. A religião oficial do Estado era o budismo e ele estava decidido a manter as coisas dessa forma. Realizava-se todos os anos um inquérito para avaliar o índice de felicidade nacional; esta não consistia na falta de problemas, uma vez que a maior parte deles são inevitáveis, mas na atitude compassiva e espiritual dos seus habitantes. O governo desencorajava o turismo e só admitia um número bastante reduzido de visitantes qualificados por ano. Por este motivo, as empresas de turismo referiam-se àquele país como o Reino Proibido.
A televisão, instalada recentemente, transmitia durante poucas horas diárias e apenas aqueles programas que o Rei considerava inofensivos, como os desportivos, científicos e de animação. O traje nacional era obrigatório; a roupa ocidental era proibida em lugares públicos. Esta tinha sido uma das exigências mais veementes dos estudantes universitários, que morriam pelos jeans americanos e pelos ténis, mas o Rei era inflexível nesse ponto, tal como em muitos outros. Contava com o apoio incondicional da restante população, que se sentia orgulhosa das suas tradições e não tinha qualquer interesse nos costumes estrangeiros.
O Coleccionador sabia muito pouco sobre o Reino do Dragão de Ouro, e estava-se nas tintas para as suas riquezas históricas e geográficas. Não pensava visitá-lo. Também não era um problema seu apoderar-se da estátua mágica: para isso pagaria uma fortuna ao Especialista. Se aquele objecto conseguia prever o futuro, como lhe tinham garantido, ele poderia cumprir o seu derradeiro sonho: converter-se no homem mais rico do mundo, no número um.
A voz distorcida do seu interlocutor em Hong Kong confirmou-lhe que a operação estava em marcha e que podia esperar resultados dentro de três ou quatro semanas. Embora o cliente não tenha perguntado, o Especialista informou-o do custo dos seus serviços, um custo tão absurdo que o Coleccionador se levantou de um salto.
- E se você falhar? - quis saber o segundo indivíduo mais rico do mundo, assim que se acalmou, observando atentamente o dedo indicador, onde estava colada a substância amarela que acabara de extrair do nariz.
- Eu não falho - foi a resposta lacónica do Especialista.
Nem o Especialista nem o seu cliente imaginavam que, nesse mesmo momento, Dil Bahadur, o filho mais novo do monarca do Reino do Dragão de Ouro e o escolhido para lhe suceder no trono, estava com o mestre na sua «casa» da montanha, uma gruta cujo acesso era dissimulado por um biombo natural de rochas e arbustos, localizada numa espécie de socalco ou varanda na encosta da serra. Foi escolhida pelo monge porque era praticamente inacessível por três dos seus lados e porque ninguém que não conhecesse o lugar a conseguiria descobrir.
Tensing tinha vivido nessa gruta como eremita durante vários anos, em silêncio e solidão, até a rainha e o rei do Reino Proibido lhe terem entregue o filho para que o preparasse. O rapaz ficaria com ele até aos vinte anos, tempo durante o qual deveria convertê-lo num governante perfeito através de um treino tão rigoroso, que muito poucos seres humanos lhe resistiriam. Mas todo o treino do mundo não obteria resultados adequados se Dil Bahadur não tivesse uma inteligência superior e um coração imaculado. Tensing estava feliz, porque o seu discípulo tinha dado sobejas provas de possuir esses dois atributos.
O príncipe tinha permanecido com o monge durante doze anos, dormindo em cima de pedras, coberto com uma pele de iaque, alimentado com uma dieta estritamente vegetariana, totalmente dedicado à prática religiosa, ao estudo e ao exercício físico. Era feliz. Não trocaria a sua vida por nenhuma outra e via com pesar aproximar-se a data em que devia integrar-se no mundo. No entanto, lembrava-se muito bem do sentimento de terror e solidão quando, aos seis anos, se viu numa ermida das montanhas juntamente com um gigante desconhecido, que o deixou chorar durante três dias sem intervir, até não lhe restarem mais lágrimas para derramar. Nunca mais voltou a chorar. A partir desse dia, o gigante substituiu a sua mãe, o seu pai e a sua restante família, converteu-se no seu melhor amigo, mestre, instrutor de Tao-shu, guia espiritual. Com ele aprendeu quase tudo o que sabia.
Tensing conduziu-o passo a passo no caminho do budismo, ensinou-lhe história e filosofia, deu-lhe a conhecer a natureza, os animais e o poder curativo das plantas, desenvolveu-lhe a intuição e a imaginação, treinou-o para a guerra e fê-lo ver, ao mesmo tempo, o valor da paz. Iniciou-o nos segredos dos lamas e ajudou-o a encontrar o equilíbrio mental e físico de que necessitava para governar. Um dos exercícios que o príncipe devia fazer consistia em disparar o seu arco na ponta dos pés, com ovos colocados sob os calcanhares, ou então de cócoras, com ovos na parte de trás dos joelhos.
- Não se requer apenas boa pontaria com a flecha, Dil Bahadur. Precisas também de força, estabilidade e controlo de todos os teus músculos - repetia-lhe o lama, pacientemente.
- Talvez fosse mais produtivo comermos os ovos, honorável mestre - dizia o príncipe, suspirando, quando esmagava os ovos.
A prática espiritual era ainda mais intensa. Aos dez anos o rapaz entrava em transe e elevava-se a um nível superior de consciência, aos onze conseguia comunicar por telepatia e deslocar objectos sem tocar neles, aos treze fazia viagens astrais. Quando completou catorze anos, o mestre abriu-lhe um orifício na testa para que ele pudesse ver a aura. A operação consistiu em perfurar o osso, o que lhe deixou uma cicatriz circular do tamanho de uma cereja.
- Toda a matéria orgânica irradia energia ou aura, um halo de luz invisível aos olhos humanos, excepto no caso de algumas pessoas com poderes psíquicos. Pode-se saber muitas coisas pela cor e pela forma da aura - explicou-lhe Tensing.
Durante três Verões consecutivos, o lama viajou com o rapaz por cidades da índia, Nepal e Butão, para que este treinasse lendo a aura das pessoas e dos animais que via; mas nunca o levou aos bonitos vales e socalcos cortados nas montanhas do seu próprio país, o Reino Proibido, onde só regressaria terminada a sua educação.
Dil Bahadur aprendeu a usar o olho da sua testa com tanta precisão que aos dezoito anos, idade que tinha agora, conseguia distinguir as propriedades medicinais de uma planta, a ferocidade de um animal ou o estado emocional de uma pessoa pelo aspecto da sua aura.
Faltavam apenas dois anos para o jovem fazer vinte anos e o trabalho do seu mestre estar concluído. Nesse momento, Dil Bahadur regressaria pela primeira vez ao seio da sua família e depois iria estudar para a Europa, porque havia muitos conhecimentos indispensáveis no mundo moderno que Tensing não poderia transmitir-lhe e dos quais necessitaria para governar a sua nação.
Tensing dedicava-se inteiramente a preparar o príncipe para um dia ser um bom rei e para poder decifrar as mensagens do Dragão de Ouro, sem suspeitar que em Nova Iorque havia um homem ambicioso que planeava roubá-lo. Os estudos eram tão intensos e complicados que, às vezes, o aluno perdia a paciência, mas Tensing, inflexível, obrigava-o a trabalhar até que a fadiga os vencia aos dois.
- Não quero ser rei, mestre - disse Dil Bahadur naquele dia.
- Talvez o meu aluno prefira renunciar ao trono a ter de estudar as suas lições - disse Tensing, sorrindo.
- Desejo uma vida de meditação, mestre. Como posso atingir a iluminação entre as tentações do mundo?
- Nem todos podem ser eremitas como eu. O teu karma é ser rei. Deverás atingir a iluminação por um caminho muito mais difícil que a meditação. Terás de o fazer servindo o teu povo.
- Não desejo separar-me de si, mestre - disse o príncipe, com a voz quebrada.
O lama fingiu não ver os olhos húmidos do jovem.
- O desejo e o receio são ilusões, Dil Bahadur, não são realidades. Deves praticar o desprendimento.
- Devo desprender-me também do afecto?
- O afecto é como a luz do meio-dia e não precisa da presença do outro para se manifestar. A separação entre os seres também é ilusória, uma vez que, no universo, tudo está ligado. Os nossos espíritos estarão sempre juntos, Dil Bahadur - explicou-lhe o lama, verificando, com alguma surpresa, que ele próprio não era impermeável à emoção, porque a tristeza do seu discípulo o contagiara. Também ele via com pesar aproximar-se o momento em que teria de levar o príncipe de volta à família, ao mundo e ao trono do Reino do Dragão de Ouro, ao qual estava destinado.
CAPÍTULO 4
A Águia e o Jaguar
O avião em que Alexander Cold viajava aterrou em Nova Iorque às cinco e quarenta e cinco da tarde. Àquela hora, ainda não diminuíra o calor daquele dia de Junho. Divertido, o rapaz recordou-se da sua primeira viagem sozinho àquela cidade, onde uma rapariga de aspecto inofensivo lhe roubara todas as suas posses assim que saiu do aeroporto. Como se chamava? Já quase se tinha esquecido... Morgana! Era um nome de feiticeira medieval. Parecia-lhe terem decorrido anos desde essa altura, embora na verdade só tivessem passado seis meses. Sentia-se outra pessoa: tinha crescido, tinha mais confiança em si próprio e não voltara a ter ataques de raiva ou desespero.
A crise familiar tinha passado. A mãe parecia a salvo do cancro, embora existisse sempre o receio do seu reaparecimento. O pai voltara a sorrir e as irmãs, Andrea e Nicole, começavam a crescer. Ele já quase não brigava com elas, apenas as brigas indispensáveis para que não o chateassem. Entre as suas amizades, o seu prestígio tinha aumentado notavelmente. Até a bonita Cecilia Burns, que sempre o tratara como um miserável, lhe pedia agora que a ajudasse nos trabalhos de Matemática. Mais que ajudá-la, tinha de os fazer totalmente e depois deixar que ela copiasse por ele no exame, mas o sorriso radioso da rapariga era uma recompensa mais do que suficiente para ele. Cecilia Burns baloiçava o seu brilhante cabelo e ele ficava com as orelhas a arder. Desde que Alexander regressou do Amazonas com metade da cabeça rapada, uma orgulhosa cicatriz e uma série de histórias incríveis, tornara-se bastante popular na escola. No entanto, sentia que já não encaixava naquele ambiente. Os amigos já não o divertiam como antigamente. A aventura tinha despertado a sua curiosidade. A pequena vila onde crescera era apenas um ponto quase invisível no mapa da Califórnia do Norte, onde se sentia afogar. Queria fugir daqueles confins e explorar a imensidão do mundo.
O professor de Geografia sugeriu-lhe que contasse as suas aventuras na aula. Alex levou para a escola a sua zarabatana (sem os dardos envenenados com curare, porque não queria provocar nenhum acidente), e as suas fotografias nadando com um golfinho no rio Negro, agarrando num jacaré com as mãos e devorando carne espetada numa flecha. Quando explicou que era um bocado de anaconda, a maior serpente aquática conhecida, o espanto dos seus colegas aumentou até à incredulidade. E isto sem lhes ter chegado a contar o mais interessante: a sua viagem ao território do povo da neblina, onde encontrou criaturas pré-históricas prodigiosas. Também não lhes falou de Walimai, o velho feiticeiro que o ajudara a conseguir a água da saúde para a mãe, porque pensariam que enlouquecera. Anotara tudo cuidadosamente no seu diário, porque pensava escrever um livro. Até já tinha o título. O seu livro chamar-se-ia A Cidade dos Deuses Selvagens.
Nunca mencionava Nadia Santos, ou Águia, como ele a chamava. A família sabia que tinha deixado uma amiga no Amazonas, mas só Lisa, a mãe, adivinhara a profundidade daquela relação. A Águia era mais importante para ele que todos os seus amigos juntos, incluindo Cecilia Burns. Não pensava expor a lembrança de Nadia à curiosidade de um bando de miúdos ignorantes, que não acreditariam que a rapariga conseguisse falar com os animais e tivesse descoberto três diamantes fabulosos, os maiores e mais valiosos do mundo. Muito menos podia contar que ela tinha aprendido a arte da invisibilidade. Ele próprio comprovou como os índios desapareciam à vontade, como camaleões, num mimetismo com a cor e a textura do bosque. Era impossível vê-los a dois metros de distância e em plena luz do dia. Tentou fazê-lo muitas vezes, mas nunca conseguiu. Nadia, pelo contrário, fazia-o com tanta facilidade como se tornar-se invisível fosse a coisa mais natural do mundo.
Jaguar escrevia à Águia quase todos os dias, às vezes só um ou dois parágrafos, outras vezes mais. Juntava as páginas e enviava-as num grande sobrescrito todas as sextas-feiras. As cartas demoravam mais de um mês a chegar a Santa Maria de la Lluvia, na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, mas os dois amigos tinham-se resignado àquelas demoras. Ela vivia numa aldeola isolada e primitiva, onde o único telefone pertencia ao posto da guarda e onde ninguém ouvira falar do correio electrónico.
Nadia respondia com notas breves, escritas trabalhosamente, como se a escrita fosse uma tarefa muito difícil para ela. Mas bastavam algumas frases no papel para que Alexander a sentisse ao seu lado como uma presença real. Cada uma dessas cartas trazia para a Califórnia um sopro da selva, com o seu rumor de água e o seu concerto de pássaros e macacos. Às vezes, ao Jaguar parecia-lhe sentir claramente o cheiro e a humidade da floresta, bastando-lhe estender o braço para poder tocar na amiga. Na primeira carta ela avisou-o de que devia «ler com o coração», tal como anteriormente o ensinara a «ouvir com o coração». Para ela, essa era a forma de comunicar com os animais ou de entender um idioma desconhecido. Com um pouco de prática, Alexander Cold conseguiu fazê-lo, e nessa altura descobriu que não precisava de papel e tinta para se sentir em contacto com ela. Se estivesse sozinho e em silêncio, bastava-lhe pensar em Águia para ouvi-la, mas, de qualquer forma, gostava de escrever. Era como ter um diário.
Quando a porta do avião se abriu em Nova Iorque e os passageiros puderam finalmente esticar as pernas, após seis horas de imobilidade, Alexander saiu com a sua mochila na mão, acalorado e tolhido, mas muito contente com a perspectiva de se encontrar com a avó. Tinha perdido a cor acastanhada e o cabelo crescera-lhe, tapando-lhe a cicatriz que tinha no crânio. Lembrou-se de que, na sua visita anterior, Kate não o tinha ido esperar ao aeroporto e ele ficara angustiado porque era a primeira vez que viajava sozinho. Pôs-se a rir ao pensar no susto que apanhara naquela ocasião. Desta vez a avó tinha sido bastante clara: deviam encontrar-se no aeroporto.
Assim que entrou na sala, depois de percorrer o longo corredor, avistou Kate Cold. Não tinha mudado: o mesmo cabelo espetado, os mesmos óculos partidos presos com fita-cola, o mesmo casaco com milhares de bolsos, todos eles cheios de coisas, os mesmos calções largos até aos joelhos, que mostravam as suas pernas magras e musculosas, com a pele quebrada como casca de árvore. A única coisa inesperada acabou por ser a sua expressão, que habitualmente era de fúria concentrada mas que, desta vez, parecia alegre. Alexander vira-a sorrir muito poucas vezes, embora costumasse rir às gargalhadas, sempre nos momentos menos oportunos. O seu riso era um latido ruidoso. Agora sorria com uma expressão que se assemelhava à ternura, embora fosse bastante improvável ser capaz de tal sentimento.
- Olá, Kate! - cumprimentou-a, um pouco assustado perante a possibilidade de que a sua avó estivesse a ficar xexé.
- Chegas meia hora atrasado - pespegou-lhe ela, tossindo.
- Culpa minha - replicou ele, tranquilizado pelo tom de voz. Era a sua avó de sempre, o sorriso tinha sido uma ilusão de óptica.
Alexander agarrou-a por um braço com a maior brusquidão possível e deu-lhe um beijo sonoro na cara. Ela empurrou-o, limpou o beijo com a mão e convidou-o depois a beber qualquer coisa, porque dispunham de duas horas antes de embarcarem para Londres e, daí, para Nova Deli. O rapaz seguiu-a na direcção da sala destinada aos passageiros frequentes. A escritora, que viajava muito, pelo menos dava-se ao luxo de utilizar esse serviço. Kate mostrou o seu cartão e entraram. Nessa altura, Alexander viu, a três metros de distância, a surpresa que a avó lhe preparara: Nadia Santos estava à sua espera.
O rapaz deu um grito, largou a mochila e abriu os braços num gesto impulsivo, mas imediatamente se conteve, envergonhado. Nadia também corara e hesitou alguns instantes, sem saber o que fazer diante daquele rapaz que, de repente, lhe parecia um desconhecido. Não o recordava tão alto e, além disso, a cara parecia-lhe mudada, com as feições mais angulosas. Por fim, a alegria pôde mais que a perplexidade e correu a abraçar-se contra o peito do amigo. Alexander verificou que Nadia não tinha crescido durante esses meses, continuava a mesma menina etérea, toda cor de mel, uma fita com penas de papagaio a prender-lhe o cabelo crespo.
Kate Cold fingia estar a ler uma revista com demasiada atenção, esperando pelo seu vodca no bar, enquanto os dois amigos, felizes por se reencontrarem depois de uma separação demasiado longa e por empreen-derem juntos uma nova aventura, murmuravam os seus nomes totémicos: Jaguar, Águia...
A ideia de convidar Nadia para a viagem estava há meses a rondar a cabeça de Kate. Mantinha-se em contacto com César Santos, o pai da rapariga, porque ele supervisionava os programas da Fundação Diamante para a preservação das florestas nativas e das culturas indígenas no Amazonas. César Santos conhecia a região como ninguém, era o homem ideal para essa tarefa. Por ele, Kate soube que a tribo do povo da neblina, cujo chefe era a pitoresca anciã lyomi, demonstrava adaptar-se às mudanças com grande rapidez, lyomi tinha decidido enviar quatro jovens - dois rapazes e duas raparigas - para estudarem na cidade de Manaus. Queria que esses jovens aprendessem os costumes dos nahab, como denominavam os que não eram índios, para poderem servir de intermediários entre as duas culturas.
Enquanto o resto da tribo permanecia na selva vivendo da caça e da pesca, os quatro emissários aterraram de pára-quedas no século xxi. Assim que se habituaram a usar roupa e conseguiram adquirir um vocabulário mínimo em português, lançaram-se corajosamente à conquista da «magia dos nahab», começando por duas invenções maravilhosas: os fósforos e o autocarro. Em menos de seis meses tinham descoberto a existência dos computadores e, à velocidade a que iam, num dia não muito distante, segundo César Santos, poderiam combater ombro a ombro com os temíveis advogados das corporações que exploravam o Amazonas. Tal como dizia lyomi: «Há muitos tipos de guerreiros.»
Kate Cold andava há muito tempo a pedir a César Santos que lhe mandasse a filha de visita. Argumentava que, tal como lyomi tinha enviado os jovens estudar para Manaus, ele devia enviar Nadia a Nova Iorque. Estava na altura de a rapariga sair de Santa Maria de la Lluvia e conhecer um pouco o mundo. Era muito bonito viver em contacto com a natureza e conhecer os costumes dos animais e dos índios, mas também devia receber uma educação formal. Alguns meses de férias em plena civilização far-lhe-iam muito bem, defendia a escritora. Secretamente, esperava que essa separação temporária servisse para tranquilizar César Santos e talvez num futuro próximo o homem se decidisse a mandar a filha estudar para os Estados Unidos.
Pela primeira vez na sua vida, aquela mulher estava disposta a tomar conta de alguém. Nem sequer o fizera com o seu próprio filho John, que ficou a viver com o pai depois do divórcio. O seu trabalho de jornalista, as viagens, os seus hábitos de velha maníaca e o seu apartamento caótico não eram ideais para receber visitas, mas Nadia era um caso especial. Parecia-lhe que, aos treze anos, aquela miúda era muito mais sábia do que ela própria aos sessenta e cinco. Tinha a certeza de que Nadia tinha uma alma antiga.
Evidentemente, Kate não dissera ao seu neto Alexander uma palavra sobre os seus planos, não fosse o rapaz pensar que ela estava a ficar sentimental. Não havia um pingo de sentimentalismo neste caso, raciocinava enfaticamente a escritora. Os seus motivos eram de carácter puramente prático: precisava de alguém que lhe organizasse os papéis e arquivos e, além disso, tinha uma cama a mais no apartamento. Se Nadia vivesse com ela, pensava fazê-la trabalhar como uma escrava, nada de mimos. Claro que isso seria depois, quando viesse para ficar, e não agora que, finalmente, o teimoso César Santos tinha acedido enviá-la por algumas semanas.
Kate não pensou que Nadia chegasse só com a roupa que trazia vestida. A sua única bagagem constava de um casaco, duas bananas e uma caixa de cartão com uns furinhos na tampa. Lá dentro ia Borobá, o macaquinho preto que sempre a acompanhava, tão assustado como ela. A viagem tinha sido longa. César Santos levou a filha até ao avião, onde uma hospedeira se encarregaria dela até Nova Iorque. Colara-lhe adesivos nos braços com os telefones e a direcção da escritora, para o caso de se perder. Livrá-la dos adesivos mais tarde não foi fácil.
Nadia só tinha voado na avioneta decrépita do seu pai e não gostava de o fazer porque tinha medo das alturas. O coração deu-lhe um salto quando viu o tamanho do avião comercial em Manaus e percebeu que ficaria lá dentro durante muitas horas. Subiu aterrada e Borobá não passou muito melhor. O pobre macaco, habituado ao ar e à liberdade, sobreviveu com muita dificuldade à prisão e ao ruído dos motores. Quando a sua dona levantou a tampa da caixa no aeroporto de Nova Iorque, saiu disparado como uma flecha, guinchando e saltando sobre os ombros das pessoas, semeando o pânico entre os viajantes. Nadia e Kate Cold demoraram meia hora a caçá-lo e a acalmá-lo.
Durante os primeiros dias, a experiência de viver em Nova Iorque foi difícil para Borobá e para a sua dona, mas depressa aprenderam a orientar-se nas ruas e fizeram amigos no bairro. Onde quer que fossem, chamavam a atenção. Um macaco que se portava como um ser humano e uma miúda com penas no cabelo eram um espectáculo naquela cidade. As pessoas ofereciam-lhes doces e os turistas tiravam-lhes fotografias.
- Nova Iorque é um conjunto de aldeias, Nadia. Cada bairro tem as suas características próprias. Assim que conheceres o iraniano da mercearia, o vietnamita da lavandaria, o carteiro salvadorenho, o meu amigo italiano do café, e mais algumas pessoas, sentir-te-ás como em Santa Maria de la Lluvia - explicou-lhe Kate, e rapidamente a rapariga verificou que tinha razão.
A escritora recebeu Nadia como uma princesa, repetindo para os seus botões que, mais à frente teria oportunidade de lhe apertar os calos. Passeou-a por toda a parte, levou-a a tomar chá ao Hotel Plaza, a andar num coche puxado por cavalos em Central Park, ao cimo dos arranha-céus, à Estátua da Liberdade. Teve de ensinar-lhe a apanhar o elevador, a subir uma escada rolante e a usar portas giratórias. Foram também ao teatro e ao cinema, experiências que Nadia nunca tivera. Mas, o que mais a impressionou foi o gelo de um ringue de patinagem. Habituada aos trópicos, não se cansava de admirar o frio e a brancura do gelo.
- Rapidamente te cansarás de ver gelo e neve, porque penso levar-te comigo aos Himalaias - disse-lhe Kate Cold.
- Onde fica isso?
- No outro lado do mundo. Vais precisar de bons sapatos, roupa grossa, um casacão impermeável.
A escritora considerou que levar Nadia ao Reino do Dragão de Ouro era uma ideia magnífica, assim a rapariga veria mais mundo. Comprou-lhe roupa quente e sapatos apropriados, um blusão de bebé para Borobá e um saco de viagem especial para mascotes. Era uma malinha preta com uma rede que deixava entrar o ar e ver o exterior. Era forrada com pêlo macio de ovelha e tinha um dispositivo para a água e a comida. Também comprou fraldas. Não foi fácil colocá-las no macaco, apesar das longas explicações de Nadia no idioma que partilhava com o animal. Pela primeira vez, na sua plácida existência, Borobá mordeu um ser humano. Kate Cold andou com uma ligadura no braço durante uma semana, mas o macaco aprendeu a fazer as suas necessidades na fralda, condição indispensável numa viagem tão longa como a que planeavam.
Kate não disse a Nadia que Alexander se reuniria com elas no aeroporto. Quis que fosse uma surpresa para os dois.
Pouco tempo depois, Timothy Bruce e Joel Gonzalez chegaram à sala da companhia aérea. Os fotógrafos não viam a escritora e os jovens desde a viagem ao Amazonas. Abraçaram-nos efusivamente, enquanto Borobá pulava da cabeça de um para a de outro, encantado por reencontrar os seus velhos amigos.
Joel Gonzalez levantou a camisola para mostrar, com orgulho, as marcas do abraço furioso daquela anaconda de vários metros de comprimento, que esteve quase a acabar com a sua vida na selva amazónica. Partira-lhe várias costelas e deixou-lhe para sempre o peito metido para dentro. Por outro lado, Timothy Bruce parecia quase bonito, apesar da sua comprida cara de cavalo. Ao ser interrogado pela implacável Kate confessou que tinha arranjado os dentes. Em vez dos dentes amarelos e tortos que o impediam, anteriormente, de fechar a boca, ostentava agora um sorriso resplandecente.
Às oito da noite, os cinco embarcaram rumo à índia. O voo era interminável, mas para Alexander e Nadia pareceu rápido porque tinham muita coisa para contar. Verificaram, aliviados, que Borobá estava calmo, aninhado contra o pêlo de ovelha, como um bebé. Enquanto os restantes passageiros tentavam dormir naqueles assentos estreitos, eles entretiveram-se a conversar e a ver filmes.
Timothy Bruce mal conseguia meter as suas longas extremidades no espaço reduzido da sua cadeira e, de vez em quando, levantava-se para fazer exercícios de ioga no corredor, evitando assim as cãibras. Joel Gonzalez viajava mais comodamente, porque era baixo e magro. Kate Cold tinha o seu próprio sistema para as viagens longas: tomava duas pastilhas para dormir com vários goles de vodca. O efeito era o de uma paulada no crânio.
- Se houver um terrorista com uma bomba a bordo, não me acordem - instruiu-os antes de se cobrir com uma manta e de se enrolar no assento como um camarão.
Três filas atrás de Nadia e Alexander, viajava um homem com o cabelo comprido e penteado com dúzias de tranças finas, amarradas atrás com uma tira de couro. Ao pescoço levava um colar de contas e, à altura do peito, um saquinho de camurça preso por uma tira preta. Vestia uns jeans desbotados, botas de tacões já gastas e um chapéu texano, que usava caído sobre a testa e que, como verificaram mais tarde, não tirava nem para dormir. Os jovens acharam que já não tinha idade para se vestir daquela maneira.
- Deve ser um músico pop - esclareceu Alexander.
Nadia não sabia o que isso era e Alexander achou que era muito difícil explicá-lo. Prometeu a si próprio que, na primeira oportunidade, forneceria à sua amiga os conhecimentos básicos de música popular, que qualquer adolescente que se preze deve ter.
Calcularam que o estranho hippie devia ter mais de quarenta anos, a avaliar pelas rugas em torno dos olhos e da boca, que marcavam o seu rosto muito bronzeado. O que se via do seu cabelo preso num rabo-de-cavalo era de uma cor cinzenta de aço. No entanto, qualquer que fosse a sua idade, o homem parecia em muito boa forma física. Tinham-no visto primeiro no aeroporto de Nova Iorque, carregando uma bolsa de lona e um saco-cama amarrado com um cinto, que pendurava ao ombro. Depois avistaram-no dormitando, sempre com o chapéu, num banco do aeroporto de Londres, enquanto esperava pelo seu voo, e agora encontravam-no no mesmo avião para a índia. Cumprimentaram-no de longe.
Assim que se apagou o sinal que os obrigava a permanecer com o cinto de segurança, o homem deu alguns passos no corredor, esticando os músculos. Aproximou-se de Nadia e de Alexander e sorriu-lhes. Repararam, pela primeira vez, que tinha os olhos de um azul muito claro, inexpressivos, como os de uma pessoa hipnotizada. O seu sorriso movia-lhe as rugas da cara, mas não passava dos lábios. Os olhos pareciam mortos. O desconhecido perguntou a Nadia o que levava no saco que tinha sobre os joelhos e ela mostrou-lhe Borobá. O sorriso do homem converteu-se numa gargalhada ao ver o macaco de fralda.
- Chamam-me Tex Armadillo por causa das botas, sabem? São de pele de tatu - disse, apresentando-se.
- Nadia Santos, do Brasil - disse a rapariga.
- Alexander Cold, da Califórnia.
- Reparei que levam um guia turístico do Reino Proibido. Vi-os estudarem-no no aeroporto.
- Vamos para lá - informou-o Alexander.
- Muito poucos turistas visitam esse país. Julgo que só admitem uma centena de estrangeiros por ano - disse Tex Armadillo.
- Vamos com um grupo da International Geographic.
- A sério? Parecem demasiado jovens para trabalhar nessa revista - comentou, irónico.
- A sério - replicou Alexander, decidido a não dar demasiadas explica-ções.
- Eu tenho os mesmos planos, mas não sei se na índia conseguirei um visto. No Reino do Dragão de Ouro não têm simpatia pelos hippies como eu. Julgam que vamos apenas pela droga.
- Há muita droga? - perguntou Alexander.
Armadillo - tatu. (N. da T.)
- A marijuana e o ópio crescem em estado selvagem por toda a parte, basta chegar e colher. Muito conveniente.
- Deve ser um problema bastante grave - comentou Alexander, achando estranho a sua avó não o ter mencionado.
- Não é nenhum problema. Ali são usadas apenas para fins medicinais. Não sabem o tesouro que têm. Imaginam o negócio que seria exportá-las? - disse Tex Armadillo.
- Imagino - respondeu Alexander. Não lhe agradava o rumo da conversa e também não gostava daquele homem de olhos mortos.
CAPÍTULO 5
As Cobras
Aterraram em Nova Deli pela manhã. Kate Cold e os fotógrafos, habituados a viajar, sentiam-se bastante bem mas Nadia e Alexander, que não tinham pregado olho, pareciam os sobreviventes de um terramoto. Nenhum dos dois estava preparado para o espectáculo daquela cidade. O calor atingiu-os como uma bofetada. Assim que saíram à rua, foram rodeados por uma multidão de homens, que lhes saltou para cima oferecendo-se para levar a bagagem, servir-lhes de guias e vender-lhes desde pedacinhos de banana cobertos de moscas até estátuas de deuses do panteão hindu. Meia centena de crianças tentava aproximar-se com as mãozinhas esticadas, pedindo algumas moedas. Um leproso com meia cara comida pela doença e sem dedos, comprimia-se contra Alexander, mendigando, até um guarda do aeroporto o ameaçar com o seu cassetete.
Uma massa humana de pele escura, feições delicadas e enormes olhos negros, envolveu-os totalmente. Alexander, habituado à distância mínima aceitável - vinte polegadas - que separa as pessoas do seu país, sentiu-se atacado pela populaça. Mal conseguia respirar. De repente, apercebeu-se de que Nadia tinha desaparecido, engolida pela multidão, e entrou em pânico. Começou a chamar por ela freneticamente, tentando livrar-se das mãos que lhe puxavam pela roupa, até que, após alguns minutos angustiantes, conseguiu avistar a alguma distância as penas coloridas que ela levava amarradas ao seu rabo-de-cavalo. Abriu caminho à cotovelada, agarrou-a pela mão e arrastou-a, seguindo os passos decididos da sua avó e dos fotógrafos, que tinham estado várias vezes na índia e conheciam a rotina.
Demoraram meia hora a reunir a bagagem, contar os volumes, defendê-los da multidão e apanhar dois táxis, que os levaram ao hotel, conduzindo pela esquerda, à inglesa, pelas ruas a abarrotar. Circulava todo o tipo de veículos numa confusão total, sem qualquer respeito pelos poucos semáforos ou pelas ordens dos polícias: automóveis, autocarros desconjuntados pintados com figuras religiosas, motocicletas com quatro pessoas em cima, carroças puxadas por búfalos, riquexós a tracção humana, bicicletas, carroças cobertas carregadas de alunos e até um pacífico elefante enfeitado para uma cerimónia.
Ficaram parados durante quarenta minutos num engarrafamento de trânsito porque havia uma vaca morta, rodeada de cães esfomeados e passarões negros debicando a sua carne decomposta. Kate explicou que as vacas eram consideradas sagradas e ninguém as enxotava, por isso circulavam pelo meio das ruas. Existia, no entanto, uma polícia especial que as conduzia para a saída da cidade e recolhia os cadáveres.
A paciente e suada multidão contribuía para o caos. Um asceta com o cabelo emaranhado e comprido até aos calcanhares, completamente nu e seguido por meia dúzia de mulheres que lhe atiravam pétalas de flores, atravessou a rua a passo de tartaruga, sem que ninguém olhasse para ele. Era, certamente, um espectáculo normal.
Nadia Santos, criada numa aldeia de vinte casas, no silêncio e na solidão da floresta, oscilava entre o pavor e o fascínio. Comparado com isto, Nova Iorque parecia uma vilória. Não imaginava que houvesse tanta gente no mundo. Entretanto, Alexander defendia-se das mãos que se introduziam no táxi oferecendo mercadorias ou pedindo esmola, sem poder fechar as janelas, porque morreriam asfixiados.
Finalmente chegaram ao hotel. Assim que atravessaram as portas, vigiadas por guardas armados, viram-se no meio de um jardim paradisíaco, onde reinava a mais absoluta paz. O barulho da rua tinha desaparecido como por encanto, e ouvia-se apenas o trinado das aves e o canto das numerosas fontes. Vários empregados vestidos de brocado e veludo debruado a ouro, com turbantes altos decorados com penas de faisão, como ilustrações de um conto de fadas, agarraram na sua bagagem e acompanharam-nos até ao interior.
O hotel era um palácio esculpido em mármore branco de uma forma tão extraordinária que parecia uma renda. O chão estava coberto por gigantescos tapetes de seda; os móveis eram de madeiras exóticas com incrustações de prata, madrepérola e marfim; em cima das mesas havia jarrões de porcelana transbordantes de flores perfumadas. Por toda a parte cresciam frondosas plantas tropicais em vasos de cobre cinzelado e havia gaiolas de complicada arquitectura, onde cantavam pássaros de plumagem colorida. O palácio tinha sido a residência de um marajá, que perdera poder e fortuna após a independência da índia, e que agora o alugava a uma companhia hoteleira americana. O marajá e a sua família ainda ocupavam uma ala do edifício, separada dos hóspedes do hotel. À tarde, costumavam descer para tomar chá com os turistas.
O quarto que Alexander e os fotógrafos partilhavam era excessivamente decorado e luxuoso. No quarto de banho havia uma piscina de azulejos e, na parede, um fresco representando uma caçada ao tigre: os caçadores, armados de espingardas e montados em elefantes, eram rodeados por um séquito de criados a pé, munidos de lanças e flechas. Estavam no andar superior e, da varanda, podiam apreciar os fabulosos jardins separados da rua por um muro alto.
- Aquelas pessoas que vês acampando lá em baixo são famílias que nascem, vivem e morrem na rua. As suas únicas posses são a roupa que têm vestida e algumas vasilhas para cozinhar. São os intocáveis, os mais pobres entre os pobres - explicou Timothy Bruce, apontando para uns toldos de trapos no passeio do outro lado do muro.
O contraste entre a opulência do hotel e a absoluta miséria daquela gente provocou em Alexander uma reacção de fúria e horror. Mais tarde, quando quis partilhar os seus sentimentos com Nadia, ela não percebeu a que se referia. Ela possuía o mínimo e o esplendor daquele palácio parecia-lhe opressivo.
- Acho que estaria melhor lá fora com os intocáveis que aqui dentro com todas estas coisas, Jaguar. Estou enjoada. Não há um pedacinho de papel sem adornos, não há onde descansar os olhos. Demasiado luxo. Sinto-me afogar. E porque nos fazem reverências estes príncipes? - perguntou, apontando para os homens vestidos de brocado e turbantes emplumados.
- Não são príncipes, Águia, são empregados do hotel - disse o amigo, rindo-se.
- Pede-lhes que saiam, não precisamos deles.
- É o seu trabalho. Se lhes peço para saírem, ofender-se-ão. Depressa te habituarás.
Alexander voltou à varanda para observar os intocáveis da rua, que sobreviviam na maior miséria, cobertos apenas com trapos. Angustiado com aquele espectáculo, separou alguns dólares dos poucos que tinha, trocou-os por rupias e saiu para os repartir entre eles. Nadia ficou na varanda, seguindo-o com os olhos. Do seu posto podia ver os jardins, os muros do hotel e, do outro lado, o formigueiro de pobres. Viu o amigo atravessar o gradeamento policiado pelos guardas, aventurar-se sozinho entre a multidão e começar a repartir as moedas entre as crianças mais próximas. Em poucos instantes, viu-se rodeado por dezenas de pessoas desesperadas. Tinha-se espalhado como pólvora a notícia de que um estrangeiro estava a dar dinheiro e, de toda a parte, convergia cada vez mais gente, como uma incontrolável avalancha humana.
Ao compreender que, numa questão de minutos, Alexander seria esmagado, Nadia correu pelas escadas abaixo aos gritos. Acorreram hóspedes e empregados do hotel, que contribuíram para o alarme e para a confusão generalizada. Todos davam opiniões, enquanto os segundos passavam rapidamente. Não havia tempo a perder, mas ninguém parecia capaz de tomar uma decisão. De repente surgiu Tex Armadillo e, num abrir e fechar de olhos, encarregou-se da situação.
- Rápido! Venham comigo! - ordenou aos guardas armados que vigiavam as portas do jardim.
Conduziu-os sem hesitar até ao centro da revolta que se formara na rua, e começou a distribuir murros, enquanto os guardas tentavam abrir caminho à coronhada. Armadillo agarrou na arma de um deles e disparou dois tiros para o ar. De imediato, o movimento das pessoas mais próximas parou subitamente, mas os de trás continuavam a empurrar para se aproximarem.
Tex Armadillo aproveitou aquele instante de perplexidade para chegar até Alexander, que já estava no chão com a roupa às tiras. Agarrou-o pelas axilas e, com a ajuda dos guardas, conseguiu arrastá-lo para um local seguro dentro do hotel, depois de recuperar os óculos do rapaz que, por milagre, estavam intactos no chão. A seguir fecharam o gradeamento do palácio, enquanto lá fora a gritaria aumentava.
- És mais tonto do que pareces, Alexander. Não consegues mudar nada com alguns dólares. A índia é a índia, é preciso aceitá-la tal como é - foi o comentário de Kate Cold quando o viu chegar bastante maltratado.
- Seguindo esse critério ainda estaríamos na época das cavernas! - replicou ele, limpando o sangue do nariz.
- Estamos, miúdo, estamos - disse ela, dissimulando o orgulho que a atitude do seu neto lhe provocava.
No terraço do hotel, sentada sob um guarda-sol branco com franjas douradas, uma mulher observara a cena. Aparentava uns quarenta anos muito bem conservados, magra, alta, atlética, vestida com calças e camisa de algodão caqui, sandálias e uma carteira de cabedal bastante usada, que tinha atirado para o chão, entre os pés. O seu cabelo preto e liso, com uma grossa madeixa branca na testa, emoldurava-lhe o rosto de feições clássicas: olhos castanhos, sobrancelhas grossas e arqueadas e boca expressiva. Apesar da simplicidade das suas roupas, tinha um ar aristocrático e elegante.
- És um jovem corajoso - disse a desconhecida a Alexander uma hora mais tarde, quando o grupo da International Geographic se reuniu no terraço.
O rapaz sentiu as orelhas a arder.
- Mas deves ter cuidado, não estás no teu país - acrescentou ela, num inglês perfeito, embora com um certo sotaque centro-europeu, cuja procedência exacta era difícil de precisar.
Nesse instante, chegaram os empregados trazendo grandes bandejas de prata com chá à moda da índia, preparado com leite, especiarias e muito açúcar. Kate Cold convidou a viajante a partilhá-lo com eles. Convidara também Tex Armadillo, grata pela sua reacção rápida, que salvara a vida do neto, mas o homem manteve-se à parte, depois de declarar que preferia uma cerveja e o jornal. Alexander estranhou que aquele hippie, que levava como única bagagem um andrajoso saco de lona e um saco-cama, se hospedasse no palácio do marajá, mas calculou que o custo devia ser mínimo. A índia era barata para quem tivesse dólares.
Depressa Kate Cold e a sua convidada estavam a trocar impressões e, dessa forma, descobriram que iam todos ao Reino do Dragão de Ouro. A desconhecida apresentou-se como Judit Kinski, arquitecta paisagista, e disse-lhes que viajava a convite oficial do Rei, que tivera a honra de conhecer recentemente. Disse que, ao saber que o monarca estava interessado em cultivar túlipas no seu país, lhe escrevera, oferecendo-lhe os seus serviços. Pensava que, sob certas condições, os bolbos dessas flores poderiam adaptar-se ao clima e ao terreno do Reino Proibido. O Rei pedira-lhe logo que se encontrassem e ela escolhera fazê-lo em Amesterdão, dada a fama mundial das túlipas holandesas.
- Sua Majestade sabe tanto de túlipas como o maior especialista. Na realidade não precisa de mim para nada, teria podido levar a cabo o projecto sozinho; mas, aparentemente, agradaram-lhe alguns desenhos de jardins que lhe mostrei e teve a amabilidade de me contratar - explicou. - Conversámos muito acerca dos seus planos para a criação de novos parques e jardins para o seu povo, preservando as espécies locais e incorporando outras. Tem consciência de que isso deve ser feito com muito cuidado para não quebrar o equilíbrio ecológico. No Reino Proibido existem plantas, pássaros e alguns pequenos mamíferos que já desapareceram no resto do mundo. Aquele país é um santuário da natureza.
O grupo da International Geographic pensou que o monarca devia ter ficado tão encantado com Judit Kinski como eles. A senhora provocava uma impressão memorável: irradiava uma combinação de força de carácter e feminilidade. Observando-a de perto, a harmonia do seu rosto e a elegância natural dos seus gestos eram tão extraordinárias que se tornava difícil tirar-lhe os olhos de cima.
- O Rei é um paladino da ecologia. Pena que não haja mais governantes como ele. É assinante da International Geographic. Por isso nos facilitou os vistos e permitiu que fizéssemos uma reportagem - explicou Kate, por sua vez.
- É um país muito interessante - disse Judit Kinski.
- Já o visitou anteriormente? - perguntou Timothy Bruce.
- Não, mas li bastante acerca dele. Para esta viagem tratei de me preparar, não apenas em relação ao meu trabalho mas também relativamente às pessoas, aos costumes, às cerimónias... Não quero ofendê-los com os meus rudes modos ocidentais - disse ela, sorrindo.
- Suponho que ouviram falar do fabuloso dragão de ouro... - insinuou Timothy Bruce.
- Garantem que nunca ninguém o viu, excepto os reis. Pode ser só uma lenda - replicou ela.
O assunto não voltou a ser abordado, mas Alexander reparou no brilho de entusiasmo nos olhos da avó e calculou que ela faria o possível para se aproximar daquele tesouro. O desafio de ser a primeira a provar a sua existência era irresistível para a escritora.
Kate Cold e Judit Kinski puseram-se de acordo para trocar informações e ajudar-se mutuamente, como competia a duas forasteiras numa região desconhecida. Na outra extremidade do terraço, Tex Armadillo bebia a sua cerveja com o jornal em cima dos joelhos. Uns óculos escuros com lentes espelhadas tapavam-lhe os olhos mas Nadia Santos sentia o olhar dele examinando o grupo.
Dispunham apenas de três dias para fazer turismo. Tinham a vantagem de que muita gente falava inglês, porque a índia tinha sido uma colónia do Império Britânico durante vários séculos. No entanto, em tão pouco tempo, nem conseguiriam arranhar a superfície de Nova Deli, como disse Kate, e muito menos entender aquela sociedade complexa. Os contrastes eram para enlouquecer qualquer um: uma miséria incrível por um lado, beleza e opulência por outro. Havia milhões de analfabetos, mas as universidades formavam os melhores técnicos e cientistas. As aldeias não dispunham de água potável, mas o país fabricava bombas nucleares. A índia tinha a maior indústria de cinema do mundo e também o maior número de ascetas cobertos de cinzas, que nunca cortavam o cabelo ou as unhas. Só os milhares de deuses do hinduísmo ou o sistema de castas, exigiam anos de estudo.
Alexander, habituado a que, na América, cada um fazia da sua vida mais ou menos o que queria, ficou horrorizado com a ideia de que as pessoas eram classificadas consoante a casta em que nasciam. Nadia, pelo contrário, ouvia as explicações de Kate sem emitir opiniões.
- Se tivesses nascido aqui, Águia, não poderias escolher o teu marido. Casar-te-iam aos dez anos com um velho de cinquenta. O teu pai combinaria o casamento e tu nem poderias dar a tua opinião - disse-lhe Alexander.
- Com certeza o meu pai escolheria melhor do que eu... - disse ela, sorrindo.
- Estás louca? Eu jamais permitiria uma coisa dessas! - exclamou o rapaz.
- Se tivéssemos nascido no Amazonas, no seio do povo da neblina, teríamos de caçar a nossa comida com dardos envenenados. Se tivéssemos nascido aqui, não acharíamos estranho que os nossos pais combinassem o nosso casamento - argumentou Nadia.
- Como podes defender este sistema de vida? Olha para a pobreza! Gostarias de viver assim?
- Não, Jaguar, mas também não gostaria de ter mais do que preciso - replicou ela.
Kate Cold levou-os a visitar palácios e templos, passeou-os também pelos mercados, onde Alexander comprou pulseiras para a mãe e para as irmãs, enquanto pintavam as mãos de Nadia com henna, como faziam às noivas. O desenho era um verdadeiro rendilhado e permanecia na pele durante duas ou três semanas. Borobá ia, como sempre, no ombro ou na anca da sua dona, mas ali não chamava a atenção, como acontecia em Nova Iorque, porque os macacos eram mais comuns que os cães.
Numa praça, estavam dois encantadores de serpentes, sentados no chão com as pernas cruzadas, a tocar as suas flautas. As cobras saíam dos cestos e permaneciam levantadas, ondulando, hipnotizadas pelos sons das flautas. Ao ver aquilo, Borobá começou a guinchar, largou a sua dona e trepou rapidamente uma palmeira. Nadia aproximou-se dos encantadores e começou a murmurar alguma coisa no idioma da selva. De repente, os répteis voltaram-se para ela, silvando, com as suas línguas afiadas cortando o ar. Quatro pupilas longas fixaram-se como punhais na rapariga.
Antes que alguém conseguisse prevê-lo, as cobras deslizaram para fora dos cestos e arrastaram-se ziguezagueando na direcção de Nadia. Uma gritaria explodiu na praça e provocou uma debandada de pânico entre as pessoas que presenciavam o incidente. Em poucos instantes não ficou ninguém nas proximidades, apenas Alexander e a avó, paralisados de surpresa e de terror. Os encantadores tentavam inutilmente dominar as serpentes com o som das flautas, mas não se atreviam a aproximar-se. Nadia permaneceu impassível, com uma expressão divertida no seu rosto dourado. Não se moveu um milímetro, quando as cobras se enrolaram nas suas pernas, subiram pelo seu corpo magro, lhe chegaram ao pescoço e à cara, sempre a silvar.
Banhada num suor gelado, Kate julgou que ia desmaiar pela primeira vez na sua vida. Caiu sentada no chão e ali ficou, branca e com os olhos esbugalhados, sem conseguir articular um som. Passado o primeiro momento de estupor, Alexander compreendeu que não devia mover-se. Conhecia de sobra os estranhos poderes da sua amiga; no Amazonas viu-a agarrar numa surucucu com a mão, uma das serpentes mais venenosas do mundo, e atirá-la para longe. Calculou que, se ninguém desse um passo que pudesse provocar as serpentes, Águia estava a salvo.
A cena durou alguns minutos, até a rapariga dar uma ordem na sua língua da floresta e os répteis começarem a descer pelo seu corpo e regressarem aos cestos. Os encantadores colocaram as tampas rapidamente, agarraram nos cestos e desapareceram a correr, convencidos de que aquela estrangeira com penas no cabelo era um demónio.
Nadia chamou por Borobá e, assim que o viu sentado no ombro, continuou a passear pela praça com a maior das calmas. Alexander seguiu-a a sorrir, sem um único comentário, bastante divertido ao ver que a avó tinha perdido por completo a sua tradicional compostura diante do perigo.
CAPÍTULO 6
A Seita do Escorpião
No último dia em Nova Deli, Kate Cold teve de passar algumas horas numa agência de viagens tentando arranjar passagens no único voo semanal para o Reino do Dragão de Ouro. Não é que os passageiros fossem muitos, o avião é que era minúsculo. Enquanto tratava destes assuntos, autorizou Nadia e Alexander a irem sozinhos ao Forte Vermelho, que ficava perto do hotel. Tratava-se de uma grande fortaleza, muito antiga, passeio obrigatório para os turistas.
- Não se separem por motivo algum e regressem ao hotel antes do pôr do Sol - ordenou-lhes a escritora.
O forte tinha sido utilizado pelas tropas inglesas na época em que a índia foi colonizada. O imenso país era considerado a jóia mais preciosa da coroa britânica, até ter, finalmente, obtido a sua libertação em 1949. O forte estava desocupado desde essa altura. Os turistas visitavam apenas uma parte da enorme construção. Muito pouca gente conhecia as suas entranhas, um verdadeiro labirinto de corredores, salas secretas e subterrâneos, que se estendiam sob a cidade como os tentáculos de um polvo.
Nadia e Alexander seguiram um guia que dava explicações em inglês a um grupo de turistas. O calor sufocante do meio-dia não se fazia sentir na fortaleza; lá dentro estava fresco e viam-se as paredes manchadas por uma patina verde de humidade acumulada durante séculos. O ar estava impregnado de um odor desagradável e o guia disse-lhes que era a urina de milhares de ratazanas, que viviam nos subterrâneos e saíam durante a noite. Os turistas, horrorizados, tapavam o nariz e a boca e vários saíram a correr.
De repente, Nadia avistou ao longe Tex Armadillo, que estava apoiado numa coluna olhando para todas as direcções, como se esperasse por alguém. O seu primeiro impulso foi ir cumprimentá-lo, mas a Alexander chamou a atenção aquela atitude e agarrou na amiga por um braço.
- Espera, Águia, vamos ver o que anda a fazer esse homem. Não confio nada nele - disse.
- Lembra-te de que te salvou a vida quando a multidão quase te esmagou...
- Sim, mas alguma coisa nele não me agrada.
- Porquê?
- Parece estar disfarçado. Não creio que seja realmente um hippie interessado em arranjar drogas, como nos disse no avião. Reparaste nos músculos dele? Desloca-se como um daqueles lutadores de karaté que se vêem nos filmes. Um hippie toxicodependente não teria esse aspecto - disse Alexander.
Esperaram, escondidos pela multidão de turistas, sem tirar os olhos de cima dele. De repente, viram que, a poucos passos de Tex Armadillo, surgia um homem alto, vestido com uma túnica e um turbante negro-azulado, quase do mesmo tom da sua pele. Em volta da cintura levava uma faixa larga também negra e um punhal curvo com punho de osso. No seu rosto muito escuro, de barba comprida e sobrancelhas espessas, os olhos brilhavam como tições.
Os amigos repararam no gesto de reconhecimento com que o recém-chegado e o americano se cumprimentaram, depois viram como o primeiro desaparecia atrás de um cotovelo da parede, seguido pelo segundo e, sem necessidade de combinarem, decidiram averiguar de que se tratava. Nadia sussurrou no ouvido de Borobá a ordem para ficar mudo e quieto. O macaquinho pendurou-se nas costas da sua dona, como uma mochila.
Deslizando colados às paredes e escondendo-se atrás das colunas, avançaram a poucos metros de distância de Tex Armadillo. Às vezes perdiam-nos de vista, porque a arquitectura do forte era complicada e parecia evidente que o homem desejava passar despercebido, mas o instinto de Nadia, sempre infalível, voltava a encontrá-los. Tinham-se afastado muito dos outros turistas, já não se ouviam vozes nem se via ninguém. Atravessaram salas, desceram escadas estreitas com os degraus corroídos pelo desgaste do uso e do tempo e percorreram corredores eternos, com a sensação de que andavam em círculos. Ao cheiro penetrante, juntou-se um murmúrio crescente, como um coro de grilos.
- Não devemos descer mais, Águia. Estes ruídos são guinchos de ratazanas. São muito perigosas - disse Alexander.
- Se aqueles homens podem internar-se nos subterrâneos, porque não nós? - perguntou ela.
Os dois amigos avançaram pelo subterrâneo em silêncio, porque se deram conta de que o eco repetia e ampliava as suas vozes. Alexander receava que mais tarde não conseguissem encontrar o caminho de regresso, mas não quis manifestar as suas dúvidas em voz alta, para não assustar a amiga. Também não falou na possibilidade de existirem ninhos de serpentes, porque, depois de a ter visto com as cobras, a sua apreensão parecia despropositada.
No princípio, a luz entrava por pequenos orifícios nos tectos e paredes, depois tiveram de percorrer longos trechos na escuridão, apalpando as paredes para poderem guiar-se. De vez em quando havia uma lâmpada fraca acesa e podiam ver as ratazanas, escapulindo-se ao longo das paredes. Os fios eléctricos pendiam perigosamente do tecto. Repararam que o chão estava húmido e, nalguns lugares, pingavam fios de água fétida. Depressa ficaram com os pés ensopados e Alexander tratou de não pensar no que lhes aconteceria se houvesse um curto-circuito. Serem electrocutados preocupava-o menos que as ratazanas, cada vez mais agressivas, que os rodeavam.
- Não lhes ligues, Jaguar. Não se atrevem a aproximar-se, mas se sentirem que temos medo, atacarão - sussurrou Nadia.
Mais uma vez, Tex Armadillo desapareceu. Os dois jovens estavam numa pequena abóbada, onde antigamente eram armazenadas munições e víveres. Três aberturas davam para o que parecia serem longos corredores escuros. Por gestos, Alexander perguntou a Nadia qual delas deviam escolher. Pela primeira vez, ela hesitou, confusa. Não tinha a certeza. Agarrou em Borobá, pô-lo no chão e deu-lhe um pequeno empurrão, convidando-o a escolher por ela. O macaco voltou a trepar a toda a pressa para os seus ombros. Tinha medo de se molhar e horror às ratazanas. Ela repetiu a ordem, mas o animal não quis soltar-se e limitou-se a apontar com a mãozinha para a abertura da direita, a mais estreita das três.
Os dois amigos seguiram a indicação de Borobá, agachados e às cegas, porque ali não havia lâmpadas eléctricas e a escuridão era quase total. Alexander, que era muito mais alto que Nadia, bateu com a cabeça e soltou uma exclamação. Uma nuvem de morcegos envolveu-os por uns minutos, provocando um ataque de pânico em Borobá, que se meteu dentro da camisola da dona.
Então o rapaz concentrou-se, chamando o jaguar negro. Passados poucos segundos, conseguia adivinhar o que o rodeava, como se tivesse antenas. Tinha praticado isto durante meses, desde que soube no Amazonas que este era o seu animal totémico, o rei da selva sul-americana. Alexander tinha uma leve miopia e, mesmo com os óculos, via mal no escuro, mas aprendera a confiar no instinto do jaguar, que às vezes conseguia invocar. Seguiu Nadia sem hesitar, «vendo com o coração», como fazia cada vez com mais frequência.
Subitamente, Alex parou, agarrando na amiga pelo braço. Nesse ponto, o corredor fazia uma curva brusca. Mais à frente havia uma pequena claridade e até eles chegou claramente um murmúrio de vozes. Com grandes precauções, espreitaram e viram que, três metros à frente, o corredor se abria noutra abóbada, como aquela onde tinham estado pouco antes.
Tex Armadillo, o homem da roupa preta e outros dois indivíduos vestidos da mesma forma estavam acocorados no chão em redor de uma candeia de azeite, que emitia uma luz débil, mas suficiente para os jovens os poderem ver bem. Era impossível aproximar-se mais, porque não tinham onde esconder-se. Sabiam que, caso fossem surpreendidos, passariam muito mal. Pela mente de Jaguar passou fugazmente a certeza de que ninguém sabia onde estavam. Podiam perecer naqueles subterrâneos sem que ninguém encontrasse os seus cadáveres durante muitos dias, talvez semanas. Sentia-se responsável por Nadia, afinal de contas a ideia de seguir Tex Armadillo fora sua e agora estavam naquele atoleiro.
Os homens falavam em inglês e a voz de Tex Armadillo era clara, mas os outros tinham um sotaque praticamente incompreensível. Era evidente, no entanto, que se tratava de uma negociação. Viram Tex Armadillo entregar um maço de notas àquele que parecia ser o chefe do grupo. Depois ouviram-nos discutir demoradamente sobre o que parecia ser um plano de acção que incluía armas de fogo, montanhas, e, talvez, um templo ou um palácio, não tinham a certeza.
O chefe desdobrou um mapa sobre o chão de terra, alisou-o com a palma da mão e, com a ponta do punhal, mostrou a Tex Armadillo uma rota. A luz da candeia de azeite batia em cheio no homem. À distância a que se encontrava, não conseguiam ver bem o mapa, mas distinguiram nitidamente uma marca gravada a fogo sobre a mão morena e repararam que o mesmo desenho se repetia no punho de osso do punhal. Era um escorpião.
Alex calculou que já tinham visto o suficiente e deviam voltar para trás antes que aqueles homens dessem por concluído o seu encontro. A única saída da abóbada era o corredor onde eles estavam. Tinham de se afastar antes de os conspiradores decidirem regressar, caso contrário seriam surpreendidos. Nadia consultou novamente Borobá, que foi indicando o caminho sem hesitar, sentado no ombro da sua dona. Aliviado, Alexander lembrou-se do que o seu pai costumava aconselhar-lhe quando escalavam montanhas juntos: enfrenta os obstáculos à medida que se apresentarem, não percas energias receando o que pode acontecer no futuro. Sorriu, pensando que não devia preocupar-se tanto, uma vez que nem sempre era ele quem ficava a cargo da situação. Nadia era uma pessoa cheia de recursos, como já demonstrara em muitas ocasiões. Não podia esquecer-se disso.
Quinze minutos mais tarde tinham chegado ao nível da rua e depressa ouviram as vozes dos turistas. Apressaram o passo e misturaram-se com a multidão. Não voltaram a ver Tex Armadillo.
- Sabes alguma coisa sobre escorpiões, Kate? - perguntou Alexander à avó, quando se juntaram a ela no hotel.
- Alguns dos que existem na índia são bastante venenosos. Se te picarem, podes morrer. Espero que não seja o caso, porque isso poderia atrasar-nos a viagem; não tenho tempo para funerais - replicou ela, fingindo indiferença.
- Ainda nenhum me picou.
- Nesse caso, a que se deve o teu interesse?
- Quero saber se o escorpião tem algum significado. É um símbolo religioso, por exemplo?
- A serpente é, sobretudo a cobra. De acordo com a lenda, uma cobra gigantesca protegeu Buda durante a sua meditação. Mas não sei nada sobre escorpiões.
- Podes investigar?
- Teria de comunicar com o chato do Ludovic Leblanc. Tens a certeza de que queres pedir-me semelhante sacrifício? - resmungou a escritora.
- Creio que pode ser bastante importante, avó. Perdão... quero dizer, Kate...
Ela ligou o seu computador portátil e enviou uma mensagem ao professor. Dada a diferença horária era impossível telefonar-lhe. Não sabia quando receberia a resposta, mas esperava que fosse rapidamente, porque, mais tarde, no Reino Proibido, não conseguiriam comunicar um com o outro. Seguindo um pressentimento, enviou outra mensagem ao seu amigo Isaac Rosenblat, perguntando-lhe se sabia alguma coisa acerca de um dragão de ouro que, supostamente, existia no país para onde se dirigiam. Para sua surpresa, o joalheiro respondeu de imediato:
Rapariga! Que alegria saber de ti! Evidentemente que ouvi falar sobre essa estátua. Qualquer joalheiro sério conhece a sua descrição, porque se trata de um dos objectos mais raros e mais preciosos do mundo. Ninguém viu até agora o famoso dragão, que nunca foi fotografado, mas existem desenhos. Tem uns dois pés de altura e supõe-se que é de ouro maciço, mas isso não é tudo: o trabalho de ourivesaria é muito antigo e muito belo. Além disso, está incrustado de pedras preciosas. Só os dois perfeitos rubis-estrela, absolutamente simétricos que, segundo a lenda, tem nos olhos, custam uma fortuna. Porque mo perguntas? Suponho que não estarás planeando roubar o dragão, como fizeste com os diamantes do Amazonas?
Kate garantiu ao joalheiro que era precisamente isso que pretendia e decidiu não voltar a dizer-lhe que os diamantes tinham sido encontrados por Nadia. Convinha-lhe que Isaac Rosenblat a julgasse capaz de os ter roubado. Calculou que, dessa forma, o interesse do seu antigo apaixonado por ela não decairia. Deu uma gargalhada, mas imediatamente o riso se converteu em tosse. Meteu a mão num dos seus múltiplos bolsos e tirou o cantil com o remédio do Amazonas.
A resposta do professor Ludovic Leblanc foi longa e confusa, como tudo o que provinha dele. Começava com uma complicada explicação de como ele, entre os seus muitos méritos, tinha sido o primeiro antropólogo a descobrir o significado do escorpião na mitologia suméria, egípcia, hindu, etc., etc., mais vinte e três parágrafos sobre os seus conhecimentos e a sua própria sabedoria. Mas, salpicados aqui e ali, nesses vinte e três parágrafos, havia alguns dados interessantes que Kate Cold conseguiu resgatar desse emaranhado. A velha escritora deu um suspiro de enfado, pensando como era difícil suportar aquele petulante. Teve de reler várias vezes a mensagem para resumir o mais importante.
- Segundo Leblanc, existe uma seita no Norte da índia que adora o escorpião. Os seus membros têm um escorpião marcado com ferro em brasa, geralmente no dorso da mão direita. Têm a reputação de sanguinários, ignorantes e supersticiosos - informou ao neto e a Nadia.
Acrescentou que a seita era odiada porque, durante a luta pela libertação da índia, fazia o trabalho sujo para as tropas britânicas, torturando e assassinando os seus próprios compatriotas. Os homens do escorpião costumavam ser ainda utilizados como mercenários, porque eram guerreiros ferozes, famosos pela sua destreza no uso de punhais.
- São bandidos e contrabandistas, mas também ganham a vida matando por dinheiro - explicou a escritora.
O rapaz passou a contar-lhe o que tinham visto no Forte Vermelho. Se Kate teve a tentação de censurá-los por terem corrido semelhante perigo, absteve-se. Na viagem ao Amazonas tinha aprendido a confiar neles.
- Não tenho dúvidas de que os homens que vocês viram pertencem a essa seita. Leblanc diz que os seus membros se vestem com túnicas e turbantes de algodão, tingidos com índigo, um produto vegetal. A tinta adere à pele e, com os anos, torna-se indelével, como uma tatuagem, por isso são conhecidos como os guerreiros azuis. São nómadas, vivem em cima do dorso dos seus cavalos, não possuem mais do que as suas armas e são treinados desde crianças para a guerra - esclareceu Kate.
- As mulheres também têm a pele azul? - perguntou Nadia.
- É curioso fazeres essa pergunta, miúda. Não há mulheres na seita.
- E como têm filhos, se não há mulheres?
- Não sei. Talvez não tenham filhos.
- Se se treinam desde crianças para a guerra, devem nascer bebés nessa seita - insistiu Nadia.
- Podem roubá-las ou comprá-las. Neste país há muita miséria, muitas crianças abandonadas, também há pais que não podem alimentar os filhos e os vendem - disse Kate Cold.
- Pergunto a mim próprio que negócios pode ter Tex Armadillo com a Seita do Escorpião - murmurou Alexander.
- Não pode ser nada bom - disse Nadia.
- Achas que se trata de droga? Lembra-te do que nos disse no avião, que a marijuana e o ópio crescem selvagens no Reino Proibido.
- Espero que esse homem não volte a cruzar-se no nosso caminho, mas se isso acontecer não quero que se metam com ele. Perceberam? - ordenou a avó com firmeza.
Os amigos concordaram, mas a escritora conseguiu ver o olhar que trocaram e calculou que nenhuma advertência sua travaria a curiosidade de Nadia e de Alexander.
Uma hora mais tarde o grupo da International Geographic reuniu-se no aeroporto para apanhar o avião para Tunkhala, a capital do Reino do Dragão de Ouro. Ali se encontraram com Judit Kinski, que ia no mesmo voo. A arquitecta paisagista levava um vestido de linho branco e um casaco comprido do mesmo tecido, botas e a mesma carteira surrada com que a tinham visto anteriormente.
A sua bagagem era composta por duas malas de um tecido grosso de tapete, de boa qualidade, também muito gastas. Era evidente que tinha viajado muito, mas o uso não dava às suas roupas ou às suas malas um aspecto descuidado. Pelo contrário, os membros da expedição da International Geographic, com as suas roupas desbotadas e engelhadas, os seus pacotes e mochilas, pareciam refugiados fugindo de algum cataclismo.
O avião era um modelo antigo a hélice, com capacidade para oito passageiros e dois tripulantes. Os outros viajantes eram um hindu, que tinha negócios no Reino Proibido, e um jovem médico formado numa universidade de Nova Deli que regressava ao seu país. Os viajantes comentaram que aquele pequeno avião não parecia um meio muito seguro para desafiar as montanhas dos Himalaias, mas o piloto respondeu, sorrindo, que não tinham nada a recear: nos seus dez anos de experiência nunca tinha tido um acidente grave, apesar de os ventos entre os precipícios costumarem ser bastante fortes.
- Quais precipícios? - perguntou Joel Gonzalez, inquieto.
- Espero que possam vê-los, são um espectáculo magnífico. A melhor altura para voar é entre Outubro e Abril, quando o céu está limpo. Se estiver nublado não se vê nada - disse o piloto.
- Hoje está um pouco nublado. Como faremos para não nos esmagarmos de encontro às montanhas? - perguntou Kate Cold.
- Estas são nuvens baixas, depressa verá o céu limpo, minha senhora. Além disso, conheço o caminho de cor, posso voar com os olhos fechados.
- Espero que os leve bem abertos, jovem - replicou ela, secamente.
- Julgo que, em meia hora, deixaremos as nuvens para trás tranquilizou-a o piloto, acrescentando que tinham tido sorte porque os voos costumavam atrasar-se vários dias, dependendo do tempo.
Jaguar e Águia verificaram, satisfeitos, que Tex Armadillo não ia a bordo.
CAPÍTULO 7
No Reino Proibido
Nenhum dos passageiros que apanhava aquele voo pela primeira vez estava preparado para o que lhes aconteceu. Era pior que a montanha-russa de um parque de diversões. Sentiam os ouvidos tapados e um vazio no estômago, enquanto o avião subia verticalmente como uma flecha. De repente caíam a pique várias centenas de metros e nessa altura sentiam as entranhas coladas ao cérebro. Quando parecia que, finalmente, estabilizavam um pouco, o piloto desviava-se num ângulo agudo, para evitar um pico dos Himalaias, e ficavam praticamente de cabeça para baixo; depois, rodava no mesmo ângulo para o outro lado.
Pelas pequenas janelas podiam ver ambas as encostas das montanhas e lá em baixo, bem ao fundo, precipícios incríveis, cujo fim quase não se avistava. Um único movimento em falso ou uma ligeira hesitação do piloto e o pequeno avião chocaria contra as rochas ou cairia como uma pedra. Soprava um vento caprichoso, que os impelia para a frente aos solavancos, mas ao passar uma montanha podia tornar-se contrário, mantendo-os no ar numa imobilidade aparente.
O comerciante da índia e o médico do Reino Proibido iam agarrados aos seus assentos, bastante inquietos, embora dissessem já ter passado anteriormente por aquela experiência. Por outro lado, os membros da expedição da International Geographic agarravam no estômago com as duas mãos, tentando controlar as náuseas e o medo. Nenhum deles fez o mais pequeno comentário, nem sequer Joel Gonzalez, que ia branco como a cal, murmurando orações e acariciando a cruz de prata que trazia sempre ao pescoço. Todos repararam na calma de Judit Kinski, que arranjava maneira de folhear um livro sobre túlipas sem enjoar.
O voo durou várias horas, que pareceram tão longas como vários dias, no fim das quais aterraram em voo picado num pequeno campo no meio da vegetação. Do ar tinham visto a paisagem maravilhosa do Reino Proibido. Entre a majestosa cadeia de montanhas cobertas de neve havia uma série de vales estreitos e de socalcos nas encostas dos montes, onde crescia uma luxuriante vegetação semitropical. As aldeias, com casinhas brancas que pareciam de bonecas, estavam salpicadas aqui e ali em sítios quase inacessíveis. A capital situava-se num vale longo e estreito, encravado entre montanhas. Parecia impossível manobrar ali o avião, mas o piloto sabia muito bem o que fazia. Quando, finalmente, aterraram, todos aplaudiram comemorando a sua espantosa perícia. Do exterior aproximaram rapidamente uma escada e abriram a portinhola do avião. Com muita dificuldade, os viajantes puseram-se de pé e avançaram aos tropeções na direcção da saída, com a sensação de que, a qualquer momento, podiam vomitar ou desmaiar. Todos, excepto Judit Kinski, a única que mantinha a compostura.
A primeira a chegar à porta foi Kate Cold. Uma lufada de vento bateu-lhe na cara, reanimando-a. Admirada, viu que na base da escada fora colocada uma passadeira de um bonito tecido, que ligava o avião à porta de um pequeno edifício de madeira policromática, com tectos de pagode. De ambos os lados da passadeira esperavam crianças, segurando cestos com flores. Fixados ao longo do trajecto havia finos postes, onde ondulavam longos estandartes de seda. Vários músicos, vestidos de cores berrantes e grandes chapéus, tocavam tambores e instrumentos metálicos.
Ao pé da escada esperavam quatro dignitários ataviados com o traje de cerimónia: saias de seda presas à cintura com apertadas faixas azuis-escuras, sinal da sua categoria de ministros, casacos compridos bordados com corais e turquesas, chapéus altos e pontiagudos, de pele, com decorações douradas e fitas. Nas mãos levavam delicados cachecóis brancos.
- Ora essa! Não esperava esta recepção! - exclamou a escritora, alisando com os dedos o seu cabelo grisalho e o seu casaco horrendo de muitos bolsos.
Desceu seguida pelos seus companheiros, sorrindo e acenando, mas ninguém lhe devolveu o cumprimento. Passaram à frente dos dignitários e das crianças com as flores sem receber um olhar, como se não existissem.
Atrás deles desceu Judit Kinski, tranquila, sorridente, perfeitamente apresentável. Nessa altura os músicos iniciaram uma barulheira ensurdecedora com os seus instrumentos, as crianças começaram a atirar uma chuva de pétalas e os dignitários fizeram uma profunda reverência. Judit Kinski cumprimentou com uma pequena inclinação da cabeça e estendeu depois os braços, onde foram colocados os cachecóis brancos de seda, chamados katas.
Os repórteres da International Geographic viram sair da casinha com tecto de pagode uma comitiva de pessoas ricamente vestidas. Ao centro ia um homem mais alto que os restantes, com cerca de sessenta anos, mas de aspecto juvenil, vestido com uma simples saia comprida de um vermelho-escuro, ou sarong, que lhe cobria a parte inferior do corpo, e um tecido amarelo-açafrão sobre o ombro. Tinha a cabeça descoberta e barbeada. Ia descalço e os seus únicos adornos eram uma pulseira de oração, feita de contas de âmbar, e um medalhão ao peito. Apesar da sua extrema simplicidade, que contrastava com o luxo dos restantes, não tiveram quaisquer dúvidas de que aquele homem era o Rei. Os estrangeiros afastaram-se para o deixar passar e, automaticamente, inclinaram-se profundamente, como faziam os outros, tal era a autoridade que emanava do monarca.
O Rei cumprimentou Judit Kinski com um gesto da cabeça, que ela devolveu em silêncio; depois trocaram cachecóis com uma série de complicadas reverências. Ela efectuou impecavelmente os passos da cerimónia. Não estava a brincar quando dissera a Kate Cold ter estudado a fundo os costumes do país. Ao finalizar a cerimónia de boas-vindas, o Rei e ela sorriram abertamente e apertaram as mãos à maneira ocidental.
- Bem-vinda ao nosso humilde país - disse o soberano num inglês com sotaque britânico.
O monarca e a sua convidada retiraram-se, seguidos pela numerosa comitiva, enquanto Kate e a sua equipa coçavam a cabeça, perplexos com o que tinham presenciado. Judit Kinski devia ter causado uma impressão extraordinária no Rei, que não a recebia como a uma arquitecta paisagista contratada para plantar túlipas no seu jardim mas como a uma embaixadora plenipotenciária.
Estavam a reunir a bagagem, que incluía os pacotes com as máquinas fotográficas e com os tripés dos fotógrafos, quando um homem se aproximou, apresentando-se como Wandgi, o seu guia e intérprete. Vestia o traje típico, um sarong preso à cintura por uma faixa às riscas, um casaco curto sem mangas e macias botas de pele. Chamou a atenção de Kate o seu chapéu italiano, como os que se usavam nos filmes de mafíosos.
Meteram a bagagem num jipe desconjuntado, instalaram-se o melhor possível e partiram rumo à capital que, segundo Wandgi ficava «mesmo ali», mas que acabou por ser uma viagem de quase três horas, porque, o que ele denominava «a estrada», acabou por revelar-se uma vereda estreita e cheia de curvas. O guia falava um inglês antiquado e com um sotaque difícil de entender, como se o tivesse estudado pelos livros sem ter tido muitas oportunidades de o praticar.
Pelo caminho passavam monges e monjas de todas as idades, alguns com cinco ou seis anos apenas, com as suas tigelas para mendigar comida. Também circulavam camponeses a pé, carregados com sacos, jovens de bicicleta e carroças puxadas por búfalos. Eram uma raça muito bonita, de estatura mediana, com feições aristocráticas e porte digno. Sorriam constantemente, como se estivessem genuinamente felizes. Os únicos veículos a motor que viram foram uma motocicleta antiga, com um guarda-chuva em jeito de capota improvisada, e um pequeno autocarro pintado de muitas cores e cheio de passageiros, animais e pacotes até à borda. Para passarem, o jipe teve de esperar num dos lados, porque não cabiam dois veículos naquele caminho tão estreito. Wandgi informou-os que Sua Majestade dispunha de vários automóveis modernos e certamente Judit Kinski estaria no hotel há muito tempo.
- O Rei veste-se de monge... - observou Alexander.
- Sua Majestade é o nosso Chefe Espiritual. Os primeiros anos da sua vida decorreram num mosteiro do Tibete. É um homem muito santo - explicou o guia, juntando as mãos diante da cara e inclinando-se, em sinal de respeito.
- Pensei que os monges eram celibatários - disse Kate Cold.
- Muitos são-no, mas o Rei deve casar-se para dar filhos à Coroa. Sua Majestade é viúvo. A sua esposa bem amada morreu há dez anos.
- Quantos filhos tiveram?
- Foram abençoados com quatro filhos e cinco filhas. Um dos seus filhos será rei. Aqui não é como em Inglaterra, onde o mais velho herda a coroa. Entre nós, o príncipe com o coração mais puro converte-se em nosso rei aquando da morte do pai - disse Wandgi.
- E como sabem qual tem o coração mais puro? - perguntou Nadia.
- O Rei e a Rainha conhecem bem os seus filhos e regra geral adivinham-no, mas a sua decisão deve ser confirmada pelo Grande Lama, que estuda os sinais astrais e submete a criança escolhida a várias provas para determinar se é realmente a reencarnação de um monarca anterior.
Explicou-lhes que as provas eram irrefutáveis. Por exemplo, numa delas o príncipe devia reconhecer sete objectos que tinham sido usados pelo primeiro governante do Reino do Dragão de Ouro, há mil e oitocentos anos. Os objectos eram colocados no chão, misturados com outros, e a criança escolhia. Se passasse esta primeira prova, tinha de montar um cavalo selvagem. Se fosse a reencarnação de um rei, os animais reconheciam a sua autoridade e acalmavam-se. A criança devia também atravessar a nado as águas revoltosas e geladas do rio sagrado. Os de coração puro eram ajudados pela corrente, os outros afundavam-se. O método de testar os príncipes desta forma nunca tinha falhado.
Ao longo da sua história, o Reino Proibido teve sempre monarcas justos e de visão, disse Wandgi, e acrescentou que nunca tinha sido invadido ou colonizado apesar de não dispor de um exército capaz de enfrentar os seus poderosos vizinhos: a índia e a China. Na geração actual, o filho mais novo, que era apenas uma criança quando a sua mãe morreu, tinha sido designado para suceder ao pai. Os lamas deram-lhe o mesmo nome que tinha nas reencarnações anteriores: Dil Bahadur, coração valente. Desde essa altura ninguém mais o vira, porque estava a receber formação num local secreto.
Kate Cold aproveitou para interrogar o guia sobre o misterioso dragão de ouro. Wandgi não parecia disposto a falar do assunto, mas o grupo da International Geographic conseguiu deduzir alguns dados das suas respostas evasivas. Aparentemente, a estátua podia prever o futuro, mas só o Rei conseguia decifrar a linguagem críptica das profecias. A razão pela qual este devia ter o coração puro era por o poder do dragão só dever ser utilizado para proteger a nação, e nunca para fins pessoais. O coração do rei não podia albergar a cobiça.
Pelo caminho viram casas de camponeses e muitos templos, que identificavam de imediato pelas bandeiras de oração, semelhantes às que tinham visto no aeroporto, ondulando ao vento. O guia trocava cumprimentos com as pessoas que encontrava. Parecia que naquele sítio toda a gente se conhecia.
Cruzaram-se com filas de rapazes vestidos com as túnicas vermelho-escuras dos monges e o guia explicou-lhes que a maior parte da educação era dada nos mosteiros, onde os alunos viviam desde os cinco ou seis anos. Alguns nunca abandonavam o mosteiro, porque preferiam seguir os passos dos seus mestres, os lamas. As meninas frequentavam escolas separadas. Havia uma universidade, mas em geral os profissionais formavam-se na índia e, nalguns casos, em Inglaterra, quando a família podia pagar ou o estudante merecia uma bolsa de estudos do governo.
Nalgumas modestas mercearias viam-se antenas de televisão. Wandgi contou-lhes que os moradores se reuniam aí, nas horas em que havia programação mas, como a electricidade faltava muitas vezes, os horários das emissões variavam. Acrescentou que a maior parte do país estava ligado por telefone e, para falar, bastava ir a um posto dos correios, se houvesse algum no local, ou a uma escola, onde havia sempre um telefone disponível. Ninguém tinha telefone em casa, evidentemente, uma vez que não era necessário. Timothy Bruce e Joel Gonzalez trocaram um olhar de dúvida. Poderiam utilizar os seus telemóveis no país do Dragão de Ouro?
- A cobertura desses telefones está muito limitada pelas montanhas, por isso são quase desconhecidos aqui. Contaram-me que no vosso país já ninguém fala cara a cara, só por telefone - disse o guia.
- E por correio electrónico - acrescentou Alexander.
- Ouvi falar disso, mas nunca vi - comentou Wandgi.
Era uma paisagem de sonho, preservada ainda da tecnologia moderna. A terra era cultivada com a ajuda dos búfalos, que puxavam os arados com lentidão e paciência. Nas encostas das montanhas, escalonadas em socalcos, havia centenas de campos de arroz de uma cor verde-esmeralda. Árvores e flores de espécies desconhecidas cresciam na berma do caminho e, ao fundo, erguiam-se os cumes cobertos de neve dos Himalaias.
Alexander comentou que a agricultura parecia bastante atrasada, mas a avó fê-lo ver que nem tudo se mede em termos de produtividade e esclareceu que este era o único país do mundo onde a ecologia era muito mais importante do que os negócios. Wandgi sentiu-se lisonjeado com aquelas palavras, mas nada disse, para não os humilhar, uma vez que os visitantes vinham de um país onde, conforme tinha ouvido, o mais importante era os negócios.
Duas horas mais tarde, o Sol já se tinha escondido atrás das montanhas e as sombras da tarde caíam sobre os verdes campos de arroz. Aqui e ali surgiam as luzinhas trémulas das lamparinas de banha em casas e templos. Ouvia-se debilmente o som gutural das grandes trompetas dos monges chamando para as vésperas.
Pouco depois viram ao longe os primeiros edifícios de Tunkhala, a capital, que parecia pouco maior que uma aldeia. A rua principal tinha alguns candeeiros e puderam apreciar a limpeza e a ordem que imperava em toda a parte, bem como as contradições: iaques avançavam pela rua lado a lado com motocicletas italianas, velhotas transportavam os netos às costas e polícias vestidos de príncipes antigos dirigiam o trânsito. Muitas casas tinham as portas abertas de par em par e Wandgi explicou que ali praticamente não havia delinquência e, além disso, toda a gente se conhecia. Quem quer que entrasse em casa podia ser amigo ou parente. A polícia tinha pouco trabalho, limitava-se praticamente a vigiar as fronteiras, a manter a ordem nas festividades e a controlar os estudantes mais irrequietos.
O comércio ainda estava aberto. Wandgi parou o jipe diante de uma loja, pouco maior que um armário, onde vendiam pasta de dentes, doces, rolos fotográficos Kodak, postais desbotados pelo sol e algumas revistas e jornais do Nepal, índia e China. Repararam que vendiam latas vazias, garrafas, sacos de papel usados. Cada coisa, até a mais insignificante, tinha valor, porque não havia muito. Nada se perdia, tudo se usava ou reciclava. Um saco de plástico ou um frasco de vidro eram tesouros.
- Esta é a minha humilde loja e, ao lado, fica a minha pequena casa, onde será uma imensa honra recebê-los - anunciou Wandgi corando, porque não queria que os estrangeiros o achassem presumido.
Veio recebê-los uma rapariga de uns quinze anos.
- E esta é a minha filha Perna. O seu nome quer dizer flor de lótus - acrescentou o guia.
- A flor do lótus é o símbolo da pureza e da beleza - disse Alexander, corando, tal como Wandgi, porque, assim que acabou de o dizer, lhe pareceu ridículo.
Kate lançou-lhe um olhar de soslaio, surpreendida. Ele piscou-lhe um olho e sussurrou que o lera na biblioteca antes de começar a viagem.
- Que mais averiguaste? - murmurou ela, dissimuladamente.
- Pergunta e verás, Kate, sei quase tanto como Judit Kinski - replicou Alexander no mesmo tom.
Perna sorriu com um encanto irresistível, juntou as mãos diante da cara e inclinou-se, no cumprimento tradicional. Era magra e direita como uma cana de bambu. À luz amarelada dos candeeiros, a sua pele parecia marfim e os seus grandes olhos brilhavam com uma expressão travessa. O seu cabelo preto era como um suave manto que lhe caía solto pelos ombros e pelas costas. Também ela, como todas as outras pessoas que viram, vestia o traje típico. Havia pouca diferença entre a roupa dos homens e a das mulheres, usavam todos uma saia ou sarong e casaco ou blusa.
Nadia e Perna entreolharam-se, mutuamente admiradas. Por um lado, a rapariga chegada do coração da América do Sul, com penas no cabelo e um macaco preto agarrado ao pescoço; por outro, aquela outra rapariga com a graça de uma bailarina, nascida entre os cumes das montanhas mais altas da Ásia. Ambas se sentiram ligadas por uma corrente instantânea de simpatia.
- Se desejarem, talvez amanhã Perna possa ensinar à menina e à avozinha como usar um sarong - sugeriu o guia, perturbado.
Alexander teve um sobressalto ao ouvir a palavra avozinha, mas Kate Cold não reagiu. A escritora acabara de se aperceber de que os calções que ela e Nadia usavam eram ofensivos naquele país.
- Agradecemos muito... - replicou Kate, inclinando-se por sua vez, com as mãos diante da cara.
Finalmente, os extenuados viajantes chegaram ao hotel, o único da capital e do país. Os poucos turistas que se aventuravam pelas aldeias do interior dormiam nas casas dos camponeses, onde eram sempre muito bem recebidos. A ninguém era negada hospitalidade. Arrastaram a sua bagagem para os quartos que partilhavam, num Kate e Nadia, no outro os homens. Comparados com o luxo inacreditável do palácio do marajá na índia, os quartos do hotel pareciam celas de monges. Caíram em cima das camas sem se lavarem ou despirem, mortos de cansaço, mas acordaram mais tarde entumecidos de frio. A temperatura tinha descido bruscamente. Procuraram as suas lanternas e descobriram pesados cobertores de lã, empilhados ordeiramente num canto, com os quais puderam cobrir-se e continuar a dormir até ao amanhecer, quando foram acordados pelo lamento lúgubre das pesadas e compridas trompetas com que os monges chamavam para a oração.
Wandgi e Perna esperavam-nos com a excelente notícia de que o Rei estava disposto a recebê-los no dia seguinte. Enquanto tomavam um suculento pequeno-almoço composto por chá, verduras e bolas de arroz, que tinham de comer com três dedos da mão direita, como exigia a boa educação, o guia pô-los a par do protocolo da visita ao palácio.
Para começar, era preciso comprar roupa adequada para Nadia e Kate. Os homens deviam ir de casaco. O Rei era uma pessoa bastante compreensiva e com certeza entenderia que se tratava de uma expedição de repórteres em roupa de trabalho, mas, de qualquer forma, deviam demonstrar respeito. Explicou-lhes como se trocavam as katas ou cachecóis cerimoniais, como deviam permanecer ajoelhados nos lugares que lhes fossem indicados, até lhes ser permitido sentar-se, e como não deviam dirigir-se ao Rei antes que este o fizesse. Se lhes oferecessem comida ou chá, deviam recusar três vezes, depois comer em silêncio e lentamente, para demonstrar que apreciavam o alimento. Era uma descortesia falar enquanto comiam. Borobá ficaria com Perna. Wandgi não conhecia o protocolo no que se referia a macacos.
Kate Cold conseguiu ligar o seu PC a uma das linhas telefónicas do hotel para enviar notícias à revista International Geographic e comunicar com o professor Leblanc. O homem era um neurótico, mas não se podia negar que era também uma fonte inesgotável de informações. A velha escritora perguntou-lhe o que sabia sobre o treino dos reis e sobre a lenda do dragão de ouro. Depressa recebeu uma lição a esse respeito.
Perna levou Kate e Nadia a uma casa onde vendiam sarongs e cada uma escolheu três, porque chovia várias vezes por dia e era preciso dar-lhes tempo que secassem. Aprender a enrolar o tecido em volta do corpo e prendê-lo com a faixa não foi fácil para nenhuma das duas. Primeiro ficava-lhes tão apertado que nem conseguiam dar um passo; depois ficava-lhes tão largo que, ao primeiro movimento, caía. Nadia conseguiu dominar a técnica depois de vários ensaios mas Kate parecia uma múmia envolta em ligaduras. Não conseguia sentar-se e andava como um preso com grilhetas nos pés. Ao vê-la, Alexander e os dois fotógrafos explodiram em gargalhadas irreprimíveis, enquanto ela tropeçava, resmungando entre dentes e tossindo.
O palácio real era a maior construção de Tunkhala, com mais de mil salas distribuídas por três andares visíveis e outros dois debaixo da terra. Estava estrategicamente situado numa colina alta, e acedia-se a ele por um caminho de curvas, ladeado de bandeiras de oração presas a flexíveis hastes de bambu. O edifício era do mesmo estilo elegante do resto das casas, incluindo as mais modestas, mas tinha vários níveis de telhados de telha, coroados por antigas figuras de criaturas mitológicas de cerâmica. As varandas, portas e janelas estavam pintadas com desenhos de cores extraordinárias.
Soldados vestidos de amarelo e vermelho, com casacas de pele e capacetes emplumados, montavam guarda. Estavam armados com espadas, arcos e flechas. Wandgi explicou que a sua função era puramente decorativa; os verdadeiros polícias usavam armas modernas. Acrescentou que o arco era a arma tradicional do Reino Proibido e também o desporto favorito do país. Nas competições anuais, até o próprio Rei participava.
Foram recebidos por dois funcionários, engalanados com os trajes elaborados da corte, e conduzidos através de diversas salas, onde os únicos móveis eram mesas baixas, grandes baús de madeira policromática e pilhas de almofadas redondas para as pessoas se sentarem. Havia algumas estátuas religiosas com oferendas de velas, arroz e pétalas de flores. As paredes ostentavam frescos, alguns tão antigos que os motivos já tinham quase desaparecido. Viram alguns monges com pincéis, boiões de tinta e finas lâminas de ouro, restaurando os frescos com uma paciência infinita. Por toda a parte se viam ricos tapetes dependurados, bordados a seda e cetim.
Passaram por longos corredores, com portas de ambos os lados, que davam para escritórios, onde trabalhavam dezenas de funcionários e de monges escrivães. Ainda não tinham adoptado os computadores; os dados da administração pública ainda se anotavam à mão, em cadernos. Havia também uma sala para os oráculos.
Aí acorria o povo para pedir conselho a certos lamas e monjas que possuíam o dom da adivinhação e que ajudavam nos momentos de dúvida. Para os budistas do Reino Proibido, o caminho da salvação era sempre individual e baseava-se na compaixão por tudo o que existe. A teoria de nada servia sem a prática. Podia-se corrigir o rumo e apressar os resultados com um bom guia, um mentor ou um oráculo.
Chegaram a uma grande sala sem adornos, no centro da qual se erguia um enorme Buda de madeira dourada, cuja cabeça chegava ao tecto. Ouviram uma música que parecia de bandolins, mas depois deram-se conta de que eram várias monjas cantando. A melodia subia sem parar. Subitamente descia, mudando de ritmo. Diante da imagem monumental havia um tapete de oração, velas acesas, varetas de incenso e cestos com oferendas. Imitando os dignitários, os visitantes inclinaram-se três vezes diante da estátua, tocando no chão com a testa.
O Rei recebeu-os numa sala de arquitectura tão simples e delicada como o resto do palácio, mas decorada com tapetes que mostravam cenas religiosas e máscaras cerimoniais nas paredes. Tinham colocado cinco cadeiras, como deferência pelos estrangeiros, que não estavam habituados a sentar-se no chão.
Atrás do Rei, pendia um tapete com um animal bordado, que surpreendeu Nadia e Alex, porque se parecia espantosamente com os belos dragões alados que tinham visto dentro do tepui onde ficava a Cidade dos Deuses Selvagens, em pleno Amazonas. Aqueles eram os últimos de uma espécie extinta há milénios. O tapete real provava que, com certeza, teria havido um tempo em que esses dragões existiram também na Ásia.
O monarca vestia a mesma túnica do dia anterior, e, na cabeça, um estranho toucado, como um capacete de tecido. Sobre o peito trazia o medalhão da sua autoridade, um antigo disco de ouro incrustado de corais. Estava sentado na posição de lótus, sobre um estrado de meio metro de altura.
Junto do soberano estava um belo leopardo, deitado como um gato, que, ao ver os visitantes, se levantou com as orelhas alerta e cravou o seu olhar em Alexander, mostrando os dentes. A mão do seu dono no dorso tranquilizou-o, mas os seus olhos alongados não se afastaram do rapaz americano.
Acompanhavam o Rei alguns dignitários, vestidos luxuosamente, com tecidos às riscas, casacos bordados e chapéus enfeitados com grandes folhas de ouro, embora vários deles calçassem sapatos ocidentais e segurassem pastas de executivo. Estavam também vários monges com as suas túnicas vermelhas. Três raparigas e dois rapazes, altos e ilustres, estavam de pé junto ao Rei, o que levou os visitantes a pensar tratar-se dos filhos.
Tal como Wandgi lhes recomendara, não aceitaram as cadeiras, porque não deviam colocar-se à mesma altura do Rei, preferindo os pequenos tapetes de lã, colocados diante da plataforma real.
Depois de trocarem as katas e cumprimentos de rigor, os estrangeiros esperaram o sinal do Rei para se sentarem no chão, os homens com as pernas cruzadas e as mulheres sentadas de lado. Kate Cold, presa no sarong, esteve quase a rolar pelo chão. O Rei e a sua corte disfarçaram, com dificuldade, um sorriso.
Antes de começar a conversa, foi servido chá, nozes e uns estranhos frutos polvilhados com sal, que os visitantes comeram depois de recusarem três vezes. Tinha chegado o momento das ofertas. A escritora fez um gesto a Timothy Bruce e a Joel Gonzalez, que se deslocaram de joelhos no chão, para entregar ao Rei uma caixa com os doze primeiros exemplares da International Geographic, publicados em 1888, e uma página manuscrita de Charles Darwin, que o director da revista tinha conseguido, milagrosamente, num antiquário de Londres. O Rei agradeceu e ofereceu-lhes, por sua vez, um livro envolto num pano. Wandgi tinha-lhes dito que não deviam abri-lo, por isso ser considerado uma demonstração de impaciência, aceitável apenas numa criança.
Nesse momento, um funcionário anunciou a chegada de Judit Kinski. Os membros da expedição da International Geographic compreenderam porque não a tinham visto no hotel nessa manhã: a senhora era hóspede do palácio real. Cumprimentou com uma inclinação de cabeça e sentou-se no chão, ao pé dos restantes estrangeiros. Levava um vestido simples, a sua habitual carteira de cabedal, da qual, aparentemente, nunca se separava, e uma larga pulseira africana de osso trabalhado como único adorno.
Nesse instante, Tschewang, o leopardo real, que permanecia quieto mas atento, deu um salto e postou-se diante de Alexander, com o focinho arreganhado numa careta ameaçadora, que deixava à vista cada um dos seus afiados caninos. Todos os presentes se imobilizaram e os guardas prepararam-se para intervir, mas o Rei deteve-os com um gesto e chamou a fera. O leopardo voltou-se para o seu dono, mas não obedeceu.
Sem se aperceber do que fazia, Alexander tinha tirado os óculos, tinha-se posto de gatas e revelava a mesma expressão do felino: com as mãos, como patas, apoiadas no chão, rugia e mostrava os dentes.
Nessa altura, Nadia, sem sair do seu lugar, começou a murmurar sons estranhos, que pareciam o ronronar de um gato. Imediatamente, o leopardo se dirigiu para ela, aproximando-lhe o focinho da cara, farejando-a e abanando a cauda. Depois, perante o assombro de todos, deitou-se à sua frente, expondo a barriga, que ela acariciou sem vestígios de receio e sem deixar de ronronar.
- Consegue falar com os animais? - perguntou-lhe o Rei, com naturalidade.
Perplexos, os estrangeiros deduziram que, certamente, falar com os animais não era uma coisa insólita naquele reino.
- Às vezes - replicou a rapariga.
- E o que se passa com o meu fiel Tschewangl Regra geral é educado e obediente - disse o monarca, sorrindo e apontando para o felino.
- Julgo que se assustou ao ver um jaguar - replicou Nadia. Ninguém, excepto Alexander, compreendeu o que significava aquela afirmação. Kate Cold deu uma palmada involuntária na testa. Definitivamente, estavam a fazer um papelão! Pareciam um bando de loucos à solta. Mas o Rei não se alterou com a resposta da rapariga estrangeira cor de mel. Limitou-se a olhar com atenção para o rapaz americano, que voltara à normalidade e estava novamente sentado com as pernas cruzadas. Só a transpiração que tinha na testa revelava o susto por que passara.
Nadia Santos pôs um dos cachecóis de seda diante do leopardo, que o agarrou delicadamente entre os dentes e o levou até aos pés do monarca. Depois, instalou-se no seu sítio habitual em cima da plataforma real.
- E também consegue falar com os pássaros, menina? - perguntou o Rei.
- Às vezes - repetiu ela.
- Costumam aparecer por aqui algumas aves interessantes - disse ele.
Na verdade, o Reino do Dragão de Ouro era um santuário ecológico, onde existiam muitas espécies extintas no resto do mundo, mas a presunção era considerada uma má educação imperdoável. Nem o Rei, que era a autoridade máxima em matéria de flora e fauna, o fazia.
Mais tarde, quando o grupo da International Geographic abriu o presente real, verificou que era um livro de fotografias de pássaros. Wandgi explicou-lhes que fora o próprio Rei quem as tirara. No entanto, o seu nome não aparecia no livro porque isso seria uma demonstração de vaidade.
O resto da entrevista decorreu conversando sobre o Reino do Dragão de Ouro. Os estrangeiros repararam que todos falavam vagamente. As palavras mais frequentes eram talvez e possivelmente, com as quais se evitavam opiniões peremptórias e divergências. Isso permitia uma saída honrosa, no caso de as partes não estarem de acordo.
Judit Kinski parecia saber bastante sobre a maravilhosa natureza da região. Isso tinha conquistado o governante, bem como o resto da corte, porque os seus conhecimentos eram muito pouco usuais em estrangeiros.
- É uma honra receber no nosso país os enviados da revista International Geographic - disse o soberano.
- A honra é toda nossa, Majestade. Sabemos que, neste reino, o respeito pela natureza é único no mundo - replicou Kate Cold.
- Se danificamos o mundo natural, temos de pagar as consequências. Só um louco cometeria semelhante estupidez. O vosso guia, Wandgi, poderá levá-los aonde quiserem. Talvez possam visitar os templos ou os dzong, mosteiros fortificados, onde possivelmente os monges possam recebê-los como hóspedes e dar-lhes as informações de que necessitem - ofereceu o Rei.
Repararam todos que não incluía Judit Kinski e calcularam que o governante pensava mostrar-lhe pessoalmente as belezas do seu reino.
A entrevista tinha chegado ao fim e só restava agradecer e despedir-se. Nessa altura Kate Cold cometeu a primeira imprudência. Incapaz de resistir àquele impulso, perguntou directamente pela lenda do dragão de ouro. Imediatamente se sentiu um silêncio glacial naquela sala. Os dignitários ficaram paralisados e o sorriso amável do Rei desapareceu. A pausa que se seguiu pareceu muito pesada, até Judit Kinski se ter atrevido a intervir.
- Perdoe a nossa impertinência, Majestade. Não conhecemos bem os vossos costumes. Espero que a pergunta da senhora Cold não tenha sido ofensiva... Na verdade, ela falou por todos nós. Sinto a mesma curiosidade por essa lenda que os repórteres da International Geographic - disse, fixando os seus olhos castanhos nas pupilas do Rei.
Ele devolveu-lhe o olhar, com uma expressão séria, como se avaliasse as suas intenções, e acabou por sorrir. Quebrou-se de imediato o gelo e todos voltaram a respirar aliviados.
- O dragão sagrado existe, não é apenas uma lenda. No entanto, não poderão vê-lo, lamento - disse o Rei, falando com uma firmeza que, até então, tinha evitado.
- Li, nalgum lado, que a estátua está guardada num mosteiro fortificado do Tibete. Pergunto a mim própria o que lhe terá acontecido após a invasão chinesa... - insistiu Judit Kinski.
Kate pensou que mais ninguém teria ousado continuar aquele assunto. Aquela mulher tinha muita confiança em si própria e na atracção que exercia sobre o Rei.
- O dragão sagrado representa o espírito da nossa nação. Nunca saiu do nosso reino - esclareceu ele.
- Desculpe, Majestade, estava mal informada. É lógico que esteja guardada neste palácio, perto de vós - disse Judit Kinski.
- Talvez - disse ele, levantando-se para dar a entender que a entrevista estava terminada.
O grupo da International Geographic despediu-se fazendo vénias profundas e retrocedendo até à saída, excepto Kate Cold, tão embrulhada no seu sarong que não teve outro remédio senão erguê-lo até aos joelhos e sair aos tropeções, voltando as costas a Sua Majestade.
Tschewang, o leopardo real, seguiu Nadia até à porta do palácio, esfregando o focinho na mão dela, mas sem deixar de olhar para Alexander.
- Não olhes para ele, Jaguar. Tem ciúmes de ti... - disse a rapariga, rindo-se.
CAPÍTULO 8
Sequestradas
O Coleccionador acordou sobressaltado com a campainha do telefone privado, que tinha em cima da mesa-de-cabeceira. Eram duas da manhã. Três pessoas apenas conheciam aquele número: o seu médico, o chefe dos seus guarda-costas e a sua mãe. Há meses que aquele telefone não tocava. O Coleccionador não tinha precisado do seu médico ou do seu chefe de segurança. Quanto à sua mãe, nesse momento andava pela Antárctica fotografando pinguins. A senhora passara os últimos anos como passageira de cruzeiros de luxo, que a levavam de um lado para o outro numa viagem interminável. Ao chegar a um porto, era recebida por um empregado que levava na mão a passagem do seu próximo cruzeiro. O filho tinha descoberto que, dessa forma, ela ficava entretida e ele não tinha de a ver.
- Como descobriu este número? - perguntou, indignado, o segundo homem mais rico do mundo, assim que reconheceu o seu interlocutor, apesar do dispositivo que lhe alterava a voz.
- Descobrir segredos faz parte do meu trabalho - replicou o Especialista.
- Que notícias tem?
- Rapidamente terá em seu poder o que combinámos.
- Nesse caso, porque me incomoda?
- Para dizer-lhe que de nada lhe servirá o dragão de ouro se não souber usá-lo - explicou o Especialista.
- Foi para isso que mandei traduzir o pergaminho, aquele que comprei ao general chinês - esclareceu o Coleccionador.
- Você acha que uma coisa tão importante e tão secreta estaria exposta num único pedaço de pergaminho? A tradução está em código.
- Arranje o código! Para isso foi contratado.
- Não. Você contratou-me para conseguir um objecto, nada mais. Isto não está abrangido pelo contrato - esclareceu friamente a voz, deformada, ao telefone.
- O dragão não me interessa sem as instruções, entendeu? Consiga-as ou não verá os seus milhões de dólares!! - gritou o cliente.
- Não reconsidero nunca os termos de uma negociação. Nós combinámos uma coisa. Entregar-lhe-ei a estátua dentro de duas semanas e cobrarei o combinado ou você sofrerá um prejuízo irreparável.
O cliente percebeu a ameaça e deu-se conta de que arriscava a vida. Por uma vez, o segundo homem mais rico do planeta assustou-se.
- Tem razão. Um acordo é um acordo. Pagar-lhe-ei à parte o código para decifrar esse pergaminho. Acha que o pode obter num prazo aceitável? Como sabe, este assunto é bastante urgente. Estou disposto a pagar o que for necessário, o dinheiro não é problema disse o cliente, num tom conciliador.
- Neste caso não se trata de uma questão de preço.
- Toda a gente tem um preço.
- Engana-se - replicou o Especialista.
- Você não me disse que era capaz de conseguir qualquer coisa? - perguntou o cliente, angustiado.
- Um dos meus agentes entrará proximamente em contacto consigo - replicou a voz e a comunicação foi cortada.
O multibilionário não conseguiu voltar a adormecer. Passou o resto da noite a estudar a sua incomensurável fortuna no escritório, que ocupava a maior parte da casa, onde tinha meia centena de computadores. Dia e noite, os seus empregados mantinham-se ligados aos mais importantes mercados de valores do mundo. No entanto, por muito que o Coleccionador revisse os números e gritasse aos seus subalternos, não conseguia alterar o facto de haver outro homem mais rico do que ele. Isto arrasava-lhe os nervos.
Depois de percorrer a encantadora cidade de Tunkhala, com as suas casas com tectos em forma de pagode, as suas stupas ou cúpulas religiosas, templos, e dezenas de mosteiros empoleirados nas encostas das montanhas, a meio de uma natureza exuberante de árvores e flores, Wandgi ofereceu-se para os levar à universidade. O campus era um parque natural, com cascatas de água e milhares de pássaros, onde se erguiam vários edifícios. Os tectos de pagode, as imagens de Buda pintadas nas paredes e as bandeiras de oração, davam à universidade o aspecto de um conjunto de mosteiros. Pela vereda do parque viram estudantes em grupo, a conversar, e chamou-lhes a atenção a sua formalidade, tão diferente do ar descontraído dos jovens no Ocidente.
Foram recebidos pelo reitor, que pediu a Kate Cold para se dirigir aos alunos, falando-lhes da revista International Geographic, que muitos deles liam regularmente na biblioteca.
- Temos muito poucas oportunidades de receber visitantes ilustres na nossa humilde universidade - disse, inclinando-se profusamente diante dela.
E foi assim que a escritora, os fotógrafos, Alexander e Nadia se viram instalados numa sala, diante dos cento e noventa estudantes da universidade e dos seus professores. Quase todos falavam um pouco de inglês, porque era a disciplina preferida dos jovens, mas Wandgi teve de traduzir muitas vezes. A primeira meia hora decorreu com muita compostura.
O público fazia perguntas ingénuas, com muito respeito, cumprimen-tando com uma reverência antes de se dirigir aos estrangeiros. Aborrecido, Alexander levantou a mão.
- Nós também podemos fazer perguntas? Viemos de muito longe para aprender alguma coisa sobre o vosso país... - sugeriu.
Houve alguns momentos de silêncio, durante os quais os estudantes se entreolharam, confusos, porque era a primeira vez que um conferencista fazia uma proposta daquelas. Após algumas hesitações e cochichos entre os profes-sores, o reitor deu o seu consentimento. Na hora e meia seguinte, os visitantes averiguaram alguns dados interessantes sobre o Reino Proibido e os estu-dantes, libertos da estrita formalidade a que estavam habituados, atreveram-se a fazer perguntas sobre cinema, música, roupa, carros e milhares de outros assuntos sobre a América.
No fim, Timothy Bruce tirou uma cassete de rock n roll e Kate Cold colocou-a no seu leitor. O neto, habitualmente tímido, sentiu um impulso irresistível, saltou para a frente e fez uma demonstração de dança moderna, que deixou todos de boca aberta. Borobá, contagiado por aquela dança frenética, começou a imitá-lo na perfeição, no meio das risotas do público. Ao terminar a «conferência», os estudantes em peso acompanharam-nos até aos limites do campus, cantando e dançando tal como Alexander, enquanto os professores coçavam a cabeça, estupefactos.
Como conseguiram aprender a música americana, depois de a terem ouvido apenas uma vez? - perguntou Kate Cold, admirada.
- Circula entre os estudantes há muitos anos, avozinha. Nas suas casas, estes rapazes usam jeans, tal como vocês. Trazem-nos da índia, de contra-bando - replicou Wandgi, rindo-se.
Nessa altura, já Kate Cold tinha aceitado, resignada, que o guia a tratasse por «avozinha». Era um sinal de respeito, a forma educada de se dirigirem a uma pessoa mais velha. Por outro lado, Nadia e Alex deviam chamar «tio» a Wandgi e «prima» a Perna.
- Talvez os honoráveis visitantes, se não estiverem muito cansados, desejem provar a comida típica de Tunkhala... - sugeriu Wandgi, timidamente.
Os honoráveis visitantes estavam extenuados, mas não podiam perder esta oportunidade. Terminaram aquele dia de intensa actividade na casa do guia que, como muitas na capital, era de dois andares, de tijolo branco e madeiras pintadas com intrincados desenhos de flores e de pássaros, no mesmo estilo do palácio. Foi impossível averiguar quem pertencia à família directa de Wandgi, porque entravam e saíam dúzias de pessoas e todas elas eram apresentadas como tios, irmãos ou primos. Não existiam apelidos. Quando uma criança nascia, os pais davam-lhe dois ou três nomes, para a distinguir das restantes, mas cada pessoa podia trocar os seus nomes à vontade, várias vezes durante a vida. Os únicos que usavam apelido eram os membros da família real.
Perna, a mãe e várias tias e primas serviram a refeição. Sentaram-se todos no chão, em volta de uma mesa redonda, onde colocaram uma verdadeira montanha de arroz vermelho, cereais, e várias combinações de vegetais, temperados com especiarias e pimento picante. Depois, foram trazendo as delícias preparadas especialmente para honrar os estrangeiros: fígado de iaque, pulmão de ovelha, patas de porco, olhos de cabra e salsichas de sangue temperadas com tanta pimenta e paprica, que o simples aroma dos pratos já os fazia lacrimejar e provocou um ataque de tosse em Kate. Comia-se com a mão, formando bolinhas com os alimentos e a boa educação exigia que se oferecesse primeiro as bolinhas aos visitantes.
Ao levar o primeiro bocado à boca, Alexander e Nadia estiveram quase a dar um grito: nunca tinham provado nada tão picante. A boca ardia-lhes como se a tivessem queimado com carvões em brasa. Kate Cold avisou-os, entre acessos de tosse, que não deviam ofender os seus anfitriões, mas os nativos do Reino Proibido sabiam que os estrangeiros não eram capazes de comer a sua comida.
Enquanto as lágrimas corriam pelas faces dos dois jovens, os outros riam-se imenso, batendo no chão com as mãos e os pés.
Perna, também bastante divertida, trouxe-lhes chá para lavarem a boca e um prato com os mesmos vegetais, mas preparados sem picante. Alexander e Nadia trocaram um olhar de cumplicidade. No Amazonas tinham comido desde serpente assada até uma sopa feita com as cinzas de um índio morto. Sem dizerem uma palavra, decidiram simultaneamente que este não era o momento de retroceder. Agradeceram, inclinando-se com as mãos unidas diante da cara, e depois cada um preparou a sua bolinha de fogo e colocou-a corajosamente na boca.
No dia seguinte, celebrava-se um festival religioso, que coincidia com a lua cheia e com o aniversário do Rei. O país inteiro tinha-se preparado durante semanas para o acontecimento. Tunkhata em peso saiu para a rua e, das montanhas, vieram camponeses de aldeias longínquas, que tiveram de viajar a pé ou a cavalo durante dias. Depois das bênçãos dos lamas, vieram os músicos com os seus instrumentos e as cozinheiras, que colocaram grandes bancadas com comida, doces e jarros com licor de arroz. Nesta ocasião, tudo era grátis.
As trompetas, tambores e gongos dos mosteiros soaram desde muito cedo. Os fiéis e os peregrinos vindos de longe aglomeraram-se nos templos para fazer as suas oferendas, girar as rodas de oração e acender velas de banha de iaque. O cheiro rançoso da gordura e o fumo do incenso flutuavam pela cidade.
Antes da viagem, Alexander tinha recorrido à biblioteca da sua escola para se informar sobre o Reino Proibido, os seus costumes e a sua religião. Deu a Nadia, que nunca tinha ouvido falar de Buda, uma breve lição sobre budismo.
- No que é hoje o Sul do Nepal, nasceu 566 anos antes de Cristo um príncipe chamado Sidarta Gautama. Quando nasceu, um adivinho prognosticou que a criança reinaria sobre toda a terra, desde que fosse preservado da deterioração e da morte. Caso contrário, seria um grande mestre espiritual. O pai, que preferia a primeira hipótese, rodeou o palácio de muros altos, para que Sidarta tivesse uma vida magnífica, dedicada ao prazer e à beleza, sem nunca se deparar com o sofrimento. Até as folhas que caíam das árvores eram varridas rapidamente, para que ele não as visse murchar. O jovem casou-se e teve um filho sem nunca ter saído daquele paraíso. Tinha vinte e nove anos quando espreitou para fora do jardim e viu pela primeira vez doença, pobreza, dor, crueldade. Cortou o cabelo, despojou-se das suas jóias e das suas vestes de seda valiosa e foi à procura da Verdade. Durante seis anos estudou com mestres de ioga na índia e submeteu o seu corpo ao ascetismo mais rigoroso...
- O que é isso? - perguntou Nadia.
- Levava uma vida de privações. Dormia em cima de espinhos e comia apenas alguns grãos de arroz.
- Má ideia... - comentou Nadia.
- Isso mesmo concluiu Sidarta. Depois de passar do prazer absoluto no seu palácio ao sacrifício mais severo, compreendeu que O Caminho do Meio é o mais adequado - disse Alexander.
- Porque o chamam O Iluminado? - quis saber a sua amiga.
- Porque aos trinta e cinco anos se sentou, imóvel, debaixo de uma árvore durante seis dias e seis noites a meditar. Numa noite de lua, como a que este festival comemora, a sua mente e o seu espírito abriram-se e conseguiu compreender todos os princípios e processos da vida. Ou seja, converteu-se em Buda.
- Em sânscrito, Buda quer dizer acordado ou iluminado - esclareceu Kate Cold, que ouvia atentamente as explicações do neto.
- Buda não é um nome, mas um título e qualquer um se pode converter em Buda através de uma vida nobre e da prática espiritual acrescentou.
- A base do budismo é a compaixão por tudo o que vive ou existe. Diz que cada um deve procurar a verdade ou iluminação dentro de si próprio, não nos outros ou em coisas externas. Por isso os monges budistas não andam pregando, como os nossos missionários, passando, em vez disso, a maior parte das suas vidas em serena meditação, procurando a sua própria verdade. Possuem apenas as suas túnicas, as suas sandálias e as suas tigelas para mendigar comida. Não lhes interessam os bens materiais - disse Alexander.
Nadia, que possuía apenas um saquinho com a roupa indispensável e três penas de papagaio para o cabelo, achou perfeita essa parte do budismo.
De manhã realizaram-se os torneios de tiro ao alvo, a actividade mais concorrida do festival de Tunkhala. Os melhores arqueiros apareceram engalanados com as suas roupas vistosas, ostentando colares de flores que as raparigas lhes colocavam ao pescoço. Os arcos tinham quase dois metros de comprimento e eram bastante pesados.
Ofereceram um a Alexander, mas este viu-se em apuros para o levantar e nem por sombras conseguiu acertar no alvo. Esticou a corda com todas as suas forças, mas num descuido a flecha escapou-lhe por entre os dedos e saiu disparada na direcção de um elegante dignitário que se encontrava a vários metros do alvo. Horrorizado, Alexander viu-o cair de costas e pensou que o tinha matado, mas a sua vítima levantou-se rapidamente, bastante divertida. A flecha tinha-se espetado precisamente a meio do seu chapéu. Um coro de gargalhadas comemorou a falta de jeito do estrangeiro e o dignitário passeou-se o resto do dia com a flecha no chapéu, como um trofeu.
A população do Reino Proibido vestira-se com as suas melhores roupas e a maioria usava máscaras ou pintara a cara de amarelo, branco ou vermelho. Chapéus, pescoços, orelhas e braços ostentavam adornos de prata, ouro, corais antigos e turquesas.
Desta vez o Rei chegou com um toucado espectacular na cabeça: a coroa do Reino Proibido. Era de seda bordada com incrustações de ouro e pejada de pedras preciosas. A meio, sobre a testa, tinha um grande rubi. Ao peito levava o medalhão real. Com a sua eterna expressão de calma e optimismo, o Rei passeava-se sem escolta entre os seus súbditos que, evidentemente, o adoravam. O seu séquito compunha-se apenas do seu inseparável Tschewang, o leopardo, e da sua convidada de honra, Judit Kinski, vestida com o traje típico do país, mas sempre com a sua carteira ao ombro.
À tarde houve representações teatrais de actores com máscaras, acroba-tas, jograis e malabaristas. Grupos de raparigas ofereceram uma demons-tração de danças tradicionais, enquanto os melhores atletas competiram em simulacros de lutas com espadas e num tipo de artes marciais que os estrangeiros nunca tinham visto. Davam saltos mortais e deslocavam-se com uma rapidez tão espantosa que pareciam voar por cima das cabeças dos seus adversários. Nenhum deles conseguiu vencer um jovem magro e bonito, que tinha a agilidade e a valentia de uma pantera. Wandgi informou os estrangeiros de que este era um dos filhos do Rei, mas não o escolhido para ocupar um dia o trono. Tinha índole de guerreiro, adorava ganhar e ser aplaudido, era impaciente e voluntarioso. Definitivamente, acrescentou o guia, não tinha fibra para ser um governante sábio.
Ao pôr do Sol, os grilos começaram a cantar, juntando-se ao ruído da festa. Acenderam-se milhares de archotes e lâmpadas de papel.
Na multidão entusiasta viam-se muitos mascarados. As máscaras eram verdadeiras obras de arte, todas diferentes, pintadas de dourado e de cores brilhantes. A Nadia chamou-lhe a atenção o facto de, sob algumas máscaras, espreitarem barbas pretas, porque os homens do Reino Proibido se barbeavam cuidadosamente. Nunca se via um homem com pêlos no rosto, por ser considerado uma falta de higiene. Durante algum tempo observou a multidão, até se ter apercebido de que os indivíduos barbudos não participavam nas festividades como todos os outros. Ia comentar estas observações com Alexander, quando este se aproximou com uma expressão preocupada.
- Repara naquele homem que está ali, Águia - disse-lhe.
- Onde?
- Atrás do malabarista que atira archotes ao ar. O que tem o gorro tibetano de pele.
- O que tem ele? - perguntou Nadia.
- Aproximemo-nos disfarçadamente para o vermos de perto - disse Alexander.
Quando conseguiram fazê-lo, viram através da máscara duas pupilas claras e inexpressivas: os olhos inesquecíveis de Tex Armadillo.
- Como chegou ele aqui? Não veio connosco no avião e o próximo voo é dentro de cinco dias - comentou Alexander depois, quando se afastaram um pouco.
- Julgo que ele não está só, Jaguar. Aqueles mascarados barbudos podem ser da Seita do Escorpião. Estive a observá-los e parece-me que estão a tramar alguma coisa.
- Se virmos algo suspeito, avisamos Kate. Por agora, não os percamos de vista - disse Alexander.
Da China, tinha vindo para o festival uma família de especialistas em fogos-de-artifício. Assim que o Sol se escondeu atrás dos montes, a noite caiu bruscamente e a temperatura desceu, mas a festa continuou. Rapidamente o céu se iluminou e a multidão nas ruas festejou com gritos de espanto cada explosão das luzes maravilhosas dos chineses.
Estava tanta gente que era difícil deslocar-se na confusão. Nadia, habituada ao clima tropical da sua aldeia, Santa Maria de la Lluvia, tiritava com frio. Perna ofereceu-se para acompanhá-la ao hotel e trazerem roupa mais quente. Partiram ambas com Borobá, que ficara histérico com o ruído dos fogos, enquanto Alexander, de longe, vigiava Tex Armadillo.
Nadia agradeceu intimamente a Kate Cold esta ter tido a ideia brilhante de lhe comprar roupa de montanha. Tremiam-lhe os dentes tanto quanto a Borobá. Primeiro, colocou ao macaco o blusão de bebé e depois vestiu umas calças compridas, meias grossas, botas e um casaco, enquanto Perna a observava, divertida. Ela sentia-se muito confortável com o seu sarong leve de seda.
- Vamos! Estamos a perder o melhor da festa! - exclamou a jovem.
Saíram a correr para a rua. A lua e as cascatas de estrelas multicores dos chineses iluminaram a noite.
- Onde estão Perna e Nadia? - perguntou Alexander, calculando que não as via há mais de uma hora.
- Não as vi - replicou Kate.
- Foram ao hotel porque Nadia precisava de um casaco, mas já deviam ter voltado. É melhor ir procurá-las - decidiu Alex.
- Devem estar a chegar, aqui não se podem perder - disse-lhe a avó.
Alexander não encontrou as raparigas no hotel. Duas horas depois estavam todos preocupados, porque ninguém as vira na confusão do festival há já muito tempo. O guia, Wandgi, conseguiu uma bicicleta emprestada e foi até sua casa, pensando que Perna poderia ter levado Nadia para lá, mas pouco depois regressou, alterado.
- Desapareceram - anunciou aos gritos.
- Não lhes pode ter acontecido nada de mal. Você disse que este era o país mais seguro do mundo! - exclamou Kate.
Àquela hora restavam poucas pessoas na rua, apenas alguns estudantes que se deixaram ficar para trás e algumas mulheres que limpavam o lixo e os restos de comida das mesas. O ar cheirava a uma mistura de flores e pólvora.
- Podem ter ido com alguns estudantes da universidade... - sugeriu Timothy Bruce.
Wandgi garantiu-lhes que isso era impossível. Perna nunca faria isso. Nenhuma rapariga respeitável saía de noite sozinha e sem licença dos pais, disse. Decidiram ir ao posto da polícia, onde foram atendidos com cortesia por dois oficiais extenuados, que tinham trabalhado desde a madrugada e não pareciam dispostos a sair à caça de duas raparigas que, com certeza, estariam com amigos ou parentes. Kate Cold pespegou-se diante deles brandindo o seu passaporte e o seu cartão de jornalista, reclamando com o seu pior vozeirão de comando, mas não conseguiu abalá-los.
- Estas pessoas receberam um convite especial do nosso amado Rei - disse Wandgi, e isso pôs os polícias imediatamente em acção.
O resto da noite passou-se procurando Perna e Nadia por toda a parte. Ao amanhecer toda a força policial - dezanove funcionários - estava em estado de alerta, porque tinham participado o desaparecimento de outras quatro adolescentes em Tunkhala.
Alexander comunicou à avó as suas suspeitas de estarem guerreiros azuis misturados na multidão e acrescentou ter visto Tex Armadillo disfarçado de pastor tibetano. Tinha tentado segui-lo, mas este com certeza apercebera-se de que fora reconhecido e desapareceu entre a multidão. Kate informou a polícia, que a avisou de que não convinha semear o pânico sem provas.
Durante as primeiras horas da manhã, propagou-se a notícia atroz de que várias raparigas tinham sido sequestradas. Quase todas as lojas permaneceram fechadas e as portas das casas abertas, enquanto os habitantes da aprazível capital saíam para as ruas comentando o sucedido. Grupos de voluntários foram percorrer os arredores, mas o trabalho era desesperante, porque o terreno irregular e coberto de vegetação impenetrável dificultava as buscas. Depressa começou a circular um boato que foi aumentando até se converter num rio imparável de pânico que envolveu a cidade: os escorpiões! Os escorpiões!
Dois camponeses, que não tinham assistido ao festival, garantiram ter visto vários cavaleiros dirigindo-se, a galope, na direcção das montanhas. Os cascos dos cavalos arrancavam faíscas das pedras, as capas pretas ondulavam ao vento e, à luz fantástica dos fogos artificiais, pareciam demónios, disseram os aterrados camponeses. Pouco depois, uma família que regressava à sua aldeia encontrou no caminho um cantil de couro bastante gasto e cheio de álcool e foi entregá-lo à polícia. Tinha um escorpião gravado.
Wandgi estava fora de si. Acocorado no chão, gemia, com a cara entre as mãos, enquanto a sua mulher se mantinha em silêncio e sem lágrimas, completamente aniquilada.
- Referem-se à Seita do Escorpião, a mesma da índia? - perguntou Alexander Cold.
- Os guerreiros azuis Nunca mais verei a minha Perna! - chorava o guia.
Pouco a pouco, os expedicionários da International Geographic foram obtendo mais pormenores. Aqueles nómadas sanguinários movimentavam-se pelo Norte da índia, onde costumavam atacar aldeias indefesas para raptar raparigas, que convertiam em escravas. Para eles, as mulheres tinham menos valor que uma faca, tratavam-nas pior que animais e mantinham-nas aterrorizadas, escondidas em grutas.
As meninas que nasciam eram mortas de imediato, mas deixavam viver os rapazes, que eram separados das mães e treinados para lutar desde os três anos. Para os imunizarem contra o veneno, faziam-nos picar por escorpiões, de forma que, ao atingirem a adolescência, podiam suportar mordeduras de répteis e de insectos que, caso contrário, seriam fatais.
Passado muito pouco tempo, as escravas morriam de doença, maus tratos ou eram assassinadas, mas as poucas que chegavam aos vinte anos eram consideradas imprestáveis e abandonadas, sendo substituídas por novas raparigas roubadas. Desta maneira, o ciclo repetia-se. Pelos caminhos rurais da índia costumavam ver-se as figuras lamentáveis dessas mulheres, loucas, em farrapos, pedindo esmola. Ninguém se aproximava delas com receio da Seita do Escorpião.
- E a polícia não faz nada? - perguntou Alexander, horrorizado.
- Isto passa-se em regiões bastante isoladas, em aldeias indefesas e miseráveis. Ninguém se atreve a enfrentar os bandidos, têm-lhes pavor, julgam que possuem poderes diabólicos, que conseguem enviar uma praga de escorpiões e acabar com toda a gente de uma aldeia. Não há pior destino para uma rapariga que cair nas mãos dos homens azuis. Levará uma vida de animal durante alguns anos, verá matarem as suas filhas, tirar-lhe-ão os filhos e, se não morrer, acabará como uma mendiga - explicou-lhes o guia, acrescentando que a Seita do Escorpião era um bando de ladrões e de assassinos, que conhecia todas as passagens dos Himalaias, atravessava as fronteiras a seu bel-prazer e atacava sempre de noite. Eram silenciosos como sombras.
- Já tinham entrado anteriormente no Reino Proibido? - perguntou Alexander, em cuja mente começava a tomar forma uma suspeita terrível.
- Até agora nunca o tinham feito. Agiam apenas na índia e no Nepal - replicou o guia.
- Porque terão vindo tão longe? É muito estranho terem-se atrevido a vir até uma cidade como Tunkhala. E mais estranho ainda é terem decidido fazê-lo justamente durante um festival, quando o povo estava na rua e a polícia vigiava - reparou Alexander.
- Iremos imediatamente falar com o Rei. É preciso mobilizar todos os recursos possíveis - determinou Kate.
O seu neto estava a pensar em Tex Armadillo e nas personagens medonhas que tinha visto nos subterrâneos do Forte Vermelho. Que papel tinha aquele homem neste assunto? O que significava o mapa que estavam a observar?
Não sabia por onde devia começar a procurar Águia, mas estava disposto a percorrer os Himalaias de uma ponta a outra atrás dela. Imaginava os perigos que a sua amiga corria nesse momento. Cada minuto era precioso. Tinha de encontrá-la antes que fosse demasiado tarde. Precisava mais do que nunca do instinto de caçador do jaguar, mas estava tão nervoso que não conseguia concentrar-se o suficiente para o invocar. O suor corria-lhe pela testa e pelas costas, empapando-lhe a camisa.
Nadia e Perna não chegaram a ver os seus atacantes. Duas capas escuras caíram-lhes em cima, envolvendo-as, depois amarraram-nas com cordas, como se fossem embrulhos e levantaram-nas no ar. Nadia gritou e tentou defender-se, dando pontapés para o ar, mas uma pancada seca na cabeça aturdiu-a. Perna, pelo contrário, entregou-se à sua sorte, calculando que era inútil lutar nesse momento; devia reservar as suas energias para mais tarde. Os sequestradores colocaram as raparigas atravessadas sobre os cavalos e montaram atrás, prendendo-as com mãos de ferro. A sua única sela era um cobertor dobrado e conduziam as montadas com a pressão dos joelhos. Eram cavaleiros formidáveis.
Passados alguns minutos, Nadia recuperou a consciência e, assim que a sua mente clareou um pouco, fez um inventário da situação. Apercebeu-se imediatamente de que ia a galope num cavalo, apesar de nunca ter montado. Sentia retumbar cada passada do animal no seu estômago e no seu peito, tinha dificuldade em respirar debaixo do cobertor e sentia nas costas a pressão de uma mão grande e forte, como uma garra, que a prendia.
O cheiro do cavalo suado e das roupas do homem era penetrante, mas foi justamente isso que lhe devolveu a clareza e lhe permitiu pensar. Habituada a viver em contacto com a natureza e com os animais, tinha uma grande memória olfactiva. O seu sequestrador não tinha o mesmo cheiro das pessoas que conhecera no Reino Proibido, que eram extremamente asseadas. O aroma natural dos tecidos de seda, algodão e lã, misturava-se com o das especiarias que utilizavam para cozinhar e com o óleo de amêndoas, que toda a gente usava para dar brilho ao cabelo. Nadia conseguia reconhecer um habitante do Reino Proibido de olhos fechados. O homem que a segurava era sujo, como se a sua roupa nunca fosse lavada, e a pele exalava um cheiro amargo de alho, carvão e pólvora. Era, sem dúvida, um estrangeiro nesta terra.
Nadia ouviu com atenção e conseguiu calcular que, além dos dois cavalos onde Perna e ela seguiam, havia pelo menos mais quatro, talvez cinco. Apercebeu-se de que iam sempre a subir. Quando a passada do cavalo mudou, compreendeu que não iam por nenhuma vereda mas atravessando o campo. Conseguia ouvir os cascos contra as pedras e sentia o esforço que o animal fazia ao trepar. Às vezes escorregava, relinchando, e a voz do cavaleiro animava-o a continuar num idioma desconhecido.
A rapariga sentia os ossos moídos pelo balanço, mas não conseguia arranjar uma posição mais confortável porque as cordas a imobilizavam. A pressão no peito era tão forte que receava que lhe partissem as costelas. Como poderia deixar alguma pista para que a pudessem encontrar? Tinha a certeza de que Jaguar tentaria fazê-lo, mas aquelas montanhas eram um labirinto de picos e precipícios. Se ao menos conseguisse deixar cair um sapato... Mas isso era impossível porque tinha as botas amarradas.
Muito tempo depois, quando as duas raparigas já estavam completamente doridas e quase inconscientes, os cavalos pararam. Nadia fez um esforço para se recuperar e prestou atenção. Os cavaleiros desmontaram e sentiu que voltavam a levantá-la, atirando-a para o chão como um saco. Caiu em cima de pedras. Ouviu Perna gemer e a seguir umas mãos desamarraram as cordas e arrancaram-lhe o cobertor. Respirou fundo e abriu os olhos.
A primeira coisa que viu foi a abóbada escura do céu e a Lua, depois os rostos negros e barbudos inclinados sobre ela. Como um murro, sentiu o hálito fétido dos homens, a alho, álcool e alguma coisa parecida a tabaco. Aqueles olhos malignos brilhavam nas cavidades fundas e riam-se trocistas. Faltavam-lhes vários dentes e os poucos que tinham estavam quase pretos. Nadia tinha visto gente na índia com os dentes assim e Kate Cold explicou-lhe que mastigavam betei. Apesar de estar bastante escuro, reconheceu o aspecto dos homens que tinha visto no Forte Vermelho, os temíveis guerreiros do Escorpião.
Com um safanão, os seus raptores puseram-na de pé, mas tiveram de a segurar, porque os joelhos lhe fraquejavam. Nadia viu Perna a poucos passos de distância, encolhida de dor. Com gestos e empurrões, os sequestradores indicaram às raparigas para avançarem. Um deles ficou com os cavalos e os outros subiram o monte levando as prisioneiras. Nadia tinha calculado bem: os cavaleiros eram cinco.
Tinham começado a subir há uns quinze minutos quando apareceu de súbito um grupo com vários homens, vestidos da mesma forma, escuros, barbudos e armados com punhais. Nadia tentou ultrapassar o medo e ouvir com o coração, tentando compreender aquele idioma, mas estava demasiado dorida e maltratada. Enquanto os homens discutiam, fechou os olhos e imaginou que era uma
Betei: ou noz-de-areca, oriunda e cultivada há muito tempo na índia e no Sudeste Asiático, é usada, com outros ingredientes, na preparação de uma pasta que, quando mastigada, provoca uma espécie de embriaguez e deixa a boca e os dentes escuros.
A águia, a rainha das alturas, a ave imperial, o seu animal totémico. Durante alguns segundos teve a sensação de elevar-se como um pássaro magnífico e pôde ver aos seus pés a cadeia de montanhas dos Himalaias e, muito ao longe, o vale onde ficava a cidade de Tunkhala. Um empurrão devolveu-a à terra.
Os guerreiros azuis acenderam uns archotes improvisados, feitos com estopa amarrada a um pau e embebida em gordura. Sob aquela luz vacilante conduziram as raparigas por um estreito desfiladeiro natural cavado na rocha. Iam colados à montanha, andando com imenso cuidado, porque sob os seus pés se abria um precipício profundo. Uma ventania gelada cortava a pele como navalhas. Havia bocados de neve e de gelo entre as pedras, apesar de ser Verão.
Nadia pensou que o Inverno naquela região devia ser pavoroso, se até no Verão fazia frio. Perna ia vestida de seda e calçava sandálias. Quis dar-lhe o seu casacão, mas assim que tentou tirá-lo deram-lhe um bofetão e obrigaram-na a continuar. A sua amiga ia no fim da fila e, de onde estava, não conseguia vê-la, mas calculou que estaria em piores condições do que ela. Felizmente não tiveram de escalar muito porque rapidamente se viram diante de uns arbustos espinhosos, que os homens afastaram. Os archotes iluminaram a entrada de uma caverna natural, muito bem disfarçada no terreno. Nadia sentiu-se desfalecer: a esperança de que Jaguar a encontrasse era cada vez mais ténue.
A caverna era ampla e tinha várias abóbadas ou salas. Viram pacotes, armas, arreios de cavalos, mantas, sacos de arroz, lentilhas, verduras secas, nozes e longas tranças de alhos. A julgar pelo aspecto do acampamento e pela quantidade de alimentos, era evidente que os seus agressores estavam ali há vários dias e pensavam ficar outros tantos.
Num lugar proeminente, tinham improvisado um altar arrepiante. Sobre um montinho de pedras erguia-se uma estátua da temível deusa Kali, rodeada de várias caveiras e ossos humanos, ratazanas, serpentes e outros répteis dissecados, recipientes com um líquido escuro, como sangue, e frascos com escorpiões pretos. Ao entrar, os guerreiros ajoelharam-se diante do altar, meteram os dedos nos recipientes e depois levaram-nos à boca. Nadia reparou que cada um deles levava uma colecção de punhais de diferentes formas e tamanhos na faixa que lhes envolvia a cintura.
As duas raparigas foram empurradas para o fundo da caverna, onde as recebeu uma mulherona coberta de farrapos e com uma capa de pele de cão, que lhe dava um aspecto de hiena. Tinha a pele tingida do mesmo tom azulado dos guerreiros, uma cicatriz horrenda na face direita, do olho ao queixo, como se tivesse levado uma facada, e um escorpião gravado a fogo na testa. Trazia um pequeno chicote na mão.
Aninhadas ao pé da fogueira, quatro raparigas cativas tremiam de frio e de terror. A carcereira deu um grunhido e apontou para Perna e Nadia, que se juntaram às outras. A única que vestia roupa de Inverno era Nadia, todas as outras vestiam os sarongs de seda que tinham usado para a comemoração do aniversário do Rei. Nadia compreendeu que tinham sido raptadas nas mesmas circunstâncias que elas e isso devolveu-lhe algumas esperanças, porque a polícia, sem dúvida, já devia estar a revolver céus e terra à procura delas.
Um coro de gemidos recebeu Nadia e Perna, mas a mulher aproximou-se com o chicote e as prisioneiras calaram-se, escondendo a cabeça entre os braços. As duas amigas tentaram permanecer juntas.
Num descuido da guardiã, Nadia cobriu Perna com o seu casaco e sussurrou-lhe ao ouvido que não desesperasse, que já encontrariam uma forma de sair daquele atoleiro. Perna tiritava, mas tinha conseguido acalmar-se. Os seus bonitos olhos negros, sempre sorridentes, reflectiam agora coragem e determinação. Nadia apertou-lhe a mão e as duas sentiram-se fortalecidas pela presença uma da outra.
Um dos homens do Escorpião não tirava os olhos de Perna, impressionado com a sua graça e dignidade. Aproximou-se do grupo de raparigas aterrorizadas e pespegou-se diante de Perna, com uma mão no punho da sua faca. Vestia a mesma túnica escura, o mesmo turbante gorduroso, a barba despenteada, a pele no estranho tom negro-azulado e os dentes negros de betei de todos os outros, mas a sua atitude emanava autoridade e os outros respeitavam-no. Parecia ser o chefe.
Perna levantou-se e suportou o olhar cruel do guerreiro. Ele estendeu a mão e agarrou no longo cabelo da rapariga, que deslizou como seda entre os seus dedos imundos. Um ténue perfume de jasmim libertou-se do cabelo. O homem pareceu desconcertado, quase comovido, como se nunca tivesse tocado em algo tão precioso. Perna fez um movimento brusco com a cabeça, libertando-se. Se tinha medo, não o manifestou. Pelo contrário, a sua expressão era tão desafiadora que a mulher da cicatriz, os outros bandidos e até as raparigas, se imobilizaram, certas de que o guerreiro espancaria a sua insolente prisioneira. Mas, perante a surpresa geral, este soltou uma risada seca e recuou um passo. Deu uma cuspidela para o chão, aos pés de Perna, depois regressou para junto dos seus companheiros, que estavam de cócoras perto do fogo. Bebiam goles dos seus cantis, mastigavam as nozes vermelhas de betei, cuspiam e falavam em volta de um mapa aberto no chão.
Nadia calculou que era o mesmo mapa ou um semelhante ao que tinha visto no Forte Vermelho. Não percebia o que diziam, porque os brutais acontecimentos das últimas horas tinham-na alterado de tal forma, que não conseguia ouvir com o coração. Perna disse-lhe ao ouvido que falavam num dialecto do Norte da índia e que ela conseguia entender algumas palavras: dragão, rotas, mosteiro, americano, rei.
Não conseguiram continuar a falar, porque a mulher da cicatriz, que as ouvira, se aproximou brandindo o chicote.
- Calem-se! - rugiu.
As raparigas começaram a gemer de medo, excepto Perna e Nadia, que se mantiveram impassíveis, mas baixaram os olhos para não a provocar. Quando a carcereira se distraiu, Perna contou ao ouvido de Nadia que as mulheres abandonadas pelos homens azuis tinham sempre um escorpião gravado a fogo na testa e muitas eram mudas, porque lhes tinham cortado a língua. Tremendo de horror, não voltaram a falar, mas comunicavam uma com a outra através de olhares.
As outras quatro raparigas, levadas para a caverna pouco antes, estavam num tal estado de pânico que Nadia imaginou saberem de alguma coisa que ela ignorava, mas nem se atreveu a perguntar. Deu-se conta de que Perna também sabia o que as esperava, mas era corajosa e estava disposta a lutar pela vida. Rapidamente a coragem de Perna contagiou as outras raparigas e, sem terem combinado, foram-se aproximando dela, à procura de protecção. Nadia foi invadida por uma mistura de admiração pela amiga e de angústia por não conseguir comunicar com as outras raparigas, que não falavam uma palavra de inglês. Lamentou ser tão diferente delas.
Um dos guerreiros azuis deu uma ordem e a mulher da cicatriz esqueceu as prisioneiras por um instante para obedecer. Serviu numas tigelas o conteúdo de uma panela preta que estava suspensa sobre a fogueira e passou-as aos homens. A outra ordem do chefe serviu as prisioneiras de má vontade.
Nadia recebeu uma caçarola de latão, onde fumegava uma mistela acinzentada. Um bafo a alho entrou-lhe pelo nariz e mal conseguiu conter as voltas do estômago. Tinha de se alimentar, decidiu, porque precisaria de todas as suas forças para fugir. Fez um sinal a Perna e levaram ambas o prato à boca. Nenhuma das duas tinha intenção de se resignar à sua sorte.
CAPÍTULO 9
Borobá
A Lua mergulhou atrás dos cumes cobertos de neve e, na caverna, a fogueira converteu-se num monte de brasas e de cinza. A guardiã roncava sentada, sem soltar o chicote, com a boca aberta e um fio de saliva escorrendo-lhe pelo queixo. Os homens azuis tinham-se deitado no chão e dormiam também, mas um deles montava guarda à entrada da caverna, com uma espingarda antiquada nas mãos. Apenas um archote iluminava levemente o ambiente, projectando sombras sinistras nas paredes de pedra.
Tinham amarrado as cativas pelos tornozelos com tiras de couro e tinham-lhes dado quatro cobertores de lã grossa. Comprimidas umas contra as outras, as infelizes raparigas, que os cobertores mal tapavam, tentavam aquecer-se. Esgotadas de tanto chorar, todas elas dormiam, excepto Perna e Nadia, que aproveitavam a oportunidade para conversar em sussurros.
Perna contou à amiga o que se sabia sobre a temível Seita do Escorpião, de como roubavam meninas e de como as maltratavam. Além de cortarem a língua a quem falasse mais do que devia, queimavam-lhes as plantas dos pés se tentassem fugir.
- Não penso acabar nas mãos destes homens pavorosos. Prefiro matar-me - concluiu Perna.
- Não digas isso, Perna. De qualquer forma, é melhor morrer tentando fugir que morrer sem lutar.
- Julgas que se pode fugir daqui? - perguntou Perna, apontando para os guerreiros adormecidos e para o guarda à entrada.
- Encontraremos a ocasião de o fazer - garantiu-lhe Nadia, esfregando os tornozelos, inchados pelas cordas.
Passado pouco tempo, também elas foram vencidas pelo cansaço e começaram a cabecear. Tinham decorrido várias horas e Nadia, que nunca tivera um relógio mas estava habituada a calcular o tempo, pensou que deviam ser perto das duas da manhã. De repente, o seu instinto avisou-a de que alguma coisa acontecia. Sentiu na pele uma alteração na energia do ar e sentou-se, alerta.
Uma sombra fugaz passou quase a voar pelo fundo da gruta. Os olhos de Nadia não conseguiram distinguir do que se tratava, mas viu com o coração que era o seu inseparável Borobá. Com imenso alívio compreendeu que o seu amiguinho tinha seguido os sequestradores. Os cavalos depressa o deixaram para trás, mas o macaquinho foi capaz de seguir o rasto da sua dona e de alguma forma se terá arranjado para descobrir a caverna. Nadia desejou com toda a sua alma que Borobá não guinchasse de alegria ao vê-la e tentou transmitir-lhe uma mensagem mental para o tranquilizar.
Borobá tinha chegado aos braços de Nadia recém-nascido, quando ela própria tinha nove anos. Nessa altura era tão pequenino que ela teve de o alimentar com um conta-gotas. Nunca se separavam. O macaco cresceu ao seu lado e conseguiram ambos complementar-se de tal forma que conseguiam adivinhar o que cada um sentia. Partilhavam um idioma de gestos e instintos, além da linguagem animal que Nadia aprendeu. O macaco deve ter sentido o aviso da sua dona, porque não se aproximou dela. Ficou encolhido num canto escuro, imóvel durante muito tempo, observando o ambiente, avaliando os riscos, esperando.
Quando a rapariga teve a certeza de que ninguém tinha notado a presença de Borobá e os roncos da carcereira não tinham variação, deu um ligeiro assobio. Nessa altura, o animal foi-se aproximando aos poucos, sempre colado à parede, protegido pelas sombras, até chegar junto dela e, de um salto, se pendurar ao seu pescoço. Já não levava o blusão de bebé, que arrancara aos puxões. As suas mãozinhas aferravam-se ao cabelo encaracolado de Nadia e esfregava a sua cara enrugada no pescoço desta, emocionado mas mudo.
Nadia esperou que ele acalmasse e agradeceu-lhe a sua fidelidade. Depois deu-lhe uma ordem ao ouvido. Borobá obedeceu imediatamente. Deslizando por onde viera, aproximou-se de um dos homens adormecidos e, com as suas mãos ágeis e delicadas, tirou o punhal do cinto com uma precisão admirável e levou-o a Nadia. Sentou-se diante dela, observando atentamente, enquanto ela cortava as correias dos tornozelos. O punhal estava tão afiado que não foi difícil fazê-lo.
Assim que se libertou, Nadia acordou Perna.
- Esta é a altura de fugir - soprou-lhe ao ouvido.
- Como pensas passar diante do guarda?
- Não sei, já vemos. Um passo de cada vez.
Mas Perna não lhe permitiu que cortasse as suas cordas e, com lágrimas nos olhos, sussurrou-lhe que não podia ir.
- Eu não chegaria muito longe, Nadia. Olha como estou vestida, não consigo correr como tu com estas sandálias. Se for contigo, apanham-nos a ambas. Tu, sozinha, tens mais possibilidades de o conseguir.
- Estás louca? Não posso ir sem ti! - sussurrou Nadia.
- Tens de tentar. Vai buscar ajuda. Eu não posso deixar as outras raparigas, ficarei com elas até tu voltares com reforços. Agora vai, antes que seja tarde - disse Perna, tirando o casaco e devolvendo-o a Nadia.
Havia nela tanta determinação, que Nadia desistiu da ideia de a fazer mudar de opinião. A sua amiga não abandonaria as outras raparigas. Também não era possível levá-las, porque não conseguiriam sair sem ser vistas. Mas ela, sozinha, talvez conseguisse fazê-lo. As duas deram um abraço rápido e Nadia levantou-se com infinitas precauções.
A mulher da cicatriz mexeu-se no sono, balbuciou algumas palavras e, por uns instantes, pareceu que tudo estava perdido, mas depois continuou a roncar ao mesmo ritmo. Nadia esperou cinco minutos, até se convencer de que os outros também dormiam e depois avançou colada à parede, pelo mesmo caminho percorrido por Borobá. Respirou fundo e invocou os seus poderes de invisibilidade.
Nadia e Alexander tinham passado um tempo inesquecível junto da tribo do povo da neblina, no Amazonas, os seres humanos mais distantes e misteriosos do planeta. Aqueles índios, que viviam como nos tempos da Idade da Pedra, nalguns aspectos eram bastante evoluídos. Desprezavam o progresso material e viviam em contacto com as forças da natureza, numa perfeita simbiose com o seu meio ambiente. Faziam parte da complexa ecologia da selva, como as árvores, os insectos, o húmus. Tinham sobrevivido na floresta durante séculos, sem contacto com o mundo exterior, defendidos pelas suas crenças, tradições, pelo seu sentido de comunidade e pela arte de parecerem invisíveis. Quando espreitava algum perigo, simplesmente desapareciam. Era tão poderosa esta habilidade que ninguém acreditava realmente na existência do povo da neblina. Circulavam rumores acerca deles, contados à maneira de lendas, o que também lhes tinha servido de protecção contra a curiosidade e a cobiça dos forasteiros.
Nadia apercebeu-se de que não se tratava de um truque de ilusionismo mas de uma arte muito antiga, que exigia uma prática contínua. É como aprender a tocar flauta, é preciso estudar muito», disse a Alexander, mas ele não acreditava realmente que pudesse aprender-se e não se empenhou em praticar. Ela, pelo contrário, decidiu que, se os índios o faziam, ela também o faria. Sabia que não se tratava apenas de mimetismo, agilidade, delicadeza, silêncio e conhecimento do meio, mas, sobretudo, de uma atitude mental. Era necessário reduzir-se a nada, visualizar o corpo tornando-se transparente até se transformar em espírito puro. Era preciso manter a concentração e a calma interior para criar um forte campo psíquico em redor de si própria. Bastava uma distracção para falhar. Só aquele estádio superior no qual o espírito e a mente trabalhavam em uníssono permitia atingir a invisibilidade.
Nos meses que decorreram entre a aventura na Cidade dos Deuses Selvagens, em pleno Amazonas, e o momento em que se viu naquela aventura nos Himalaias, Nadia tinha praticado incansavelmente. Progrediu tanto que, às vezes, o pai a chamava aos gritos quando ela estava de pé ao seu lado. Quando ela aparecia de repente, César Santos dava um salto: «Já te disse para não apareceres dessa maneira! Ainda me matas de um ataque de coração!», queixava-se.
Nadia sabia que nesse momento a única coisa que poderia salvá-la era aquela arte que aprendera com o povo da neblina. Murmurou instruções a Borobá para que este esperasse alguns minutos antes de a seguir, uma vez que não podia fazê-lo carregando o animal, e voltou-se depois para dentro de si própria, para esse espaço misterioso que todos temos quando fechamos os olhos e deixamos a mente livre de pensamentos. Em poucos segundos entrou num estado semelhante ao transe. Sentiu que se libertava do corpo e que podia ver-se de cima, como se a sua consciência se tivesse elevado alguns metros acima da sua cabeça. Dessa posição, viu as suas pernas darem um passo, depois outro e mais outro, separando-se de Perna e das outras raparigas, avançando em câmara lenta, percorrendo o espaço na penumbra do esconderijo dos bandoleiros.
Passou a poucos centímetros da horrível mulher do chicote, deslizou como uma sombra imperceptível entre os corpos dos guerreiros adormecidos, continuou quase a flutuar na direcção da entrada da caverna, onde o guarda extenuado fazia esforços para se manter acordado, com os olhos perdidos na noite, sem largar a sua espingarda. Ela não perdeu, nem por um segundo, a sua concentração, não permitiu que o medo ou a hesitação devolvessem a sua alma à prisão do corpo. Sem parar nem alterar o ritmo dos passos, aproximou-se do homem quase a tocar-lhe nas costas; tão perto que sentiu nitidamente o seu calor e o seu cheiro a sujidade e a alho.
O guarda estremeceu e apertou a arma, como se o seu instinto se tivesse dado conta de uma presença ao seu lado, mas imediatamente a sua mente bloqueou essa suspeita. As suas mãos descontraíram-se e os seus olhos voltaram a semicerrar-se, lutando contra o sono e a fadiga.
Nadia franqueou a entrada da caverna como um fantasma e continuou a andar às cegas na escuridão sem olhar para trás e sem se apressar. A noite engoliu a sua silhueta magra.
Assim que Nadia retornou ao seu corpo e olhou em volta, compreendeu que seria incapaz de encontrar o caminho de regresso a Tunkhala em pleno dia, e muito menos poderia fazê-lo na escuridão da noite. À sua volta erguiam-se as montanhas e como tinha feito a viagem com a cabeça coberta por uma manta, não tinha um único ponto de referência que lhe permitisse orientar-se. A sua única certeza é que tinham vindo sempre a subir, o que significava que tinha de prosseguir montanha abaixo, mas não sabia como o fazer sem dar de caras com os homens azuis. Sabia que a alguma distância do desfiladeiro, um dos guerreiros tinha ficado a tomar conta dos cavalos, e não fazia ideia de quantos haveria ainda, espalhados pelos montes. Pela confiança com que os bandidos se deslocavam, sem receio aparente de encontrar oposição, deviam ser muitos. Era melhor procurar outro caminho de fuga.
- O que fazemos agora? - perguntou a Borobá, quando se reuniram novamente. Mas este só conhecia a rota que tinha usado para chegar ali, a mesma dos bandidos.
O animal, tão pouco habituado ao frio como a sua dona, tiritava tanto que se lhe ouviam os dentes. A rapariga acomodou-o ao peito, sob o casacão, reconfortada com a presença desse amigo fiel. Subiu o capuz e amarrou-o com firmeza em volta do rosto, lamentando não ter consigo as luvas que Kate lhe tinha comprado. Tinha as mãos tão geladas que não sentia os dedos. Meteu-os na boca, soprando para os aquecer, e depois nos bolsos, mas era impossível escalar ou equilibrar-se naquele terreno abrupto sem se agarrar com as duas mãos. Calculou que, assim que nascesse o Sol, viriam procurá-la, porque não podiam permitir que uma das prisioneiras chegasse ao vale para dar o alarme. Estavam habituados, sem dúvida, a deslocar-se nas montanhas, mas ela, pelo contrário, não fazia ideia de onde estava.
Os homens azuis pensariam que ela fugiria para baixo, onde ficavam as aldeias e vales do Reino Proibido. Para os enganar, decidiu subir a montanha, embora tivesse consciência de que, ao fazê-lo, se afastava do seu objectivo e de que não havia tempo a perder. O destino de Perna e das outras raparigas dependia de ela encontrar socorro rapidamente. Esperava chegar acima ao amanhecer e, lá em cima, orientar-se, pois devia haver outra maneira de chegar ao vale.
Trepar a encosta acabou por ser muito mais lento e trabalhoso do que imaginava, porque, às dificuldades do terreno, juntava-se a escuridão, atenuada apenas pela luz da lua. Escorregava e caía milhares de vezes. Estava dorida pelo galope do dia anterior atravessada em cima do cavalo, pela pancada que levara na cabeça e pelas nódoas negras que tinha por todo o corpo, mas não se permitiu pensar nisso. Custava-lhe respirar e zumbiam-lhe os ouvidos. Compreendeu que, a esta altitude, havia menos oxigénio, tal como Kate Cold lhe tinha explicado.
Por entre as rochas cresciam pequenos arbustos que, no Inverno, desapareciam por completo, mas que, nesta época do ano, renasciam sob o sol de Verão. Nadia aferrava-se a eles para subir.
Quando as forças lhe faltavam, lembrava-se de quando escalara o cume do tepui na Cidade dos Deuses Selvagens, até encontrar o ninho de águia onde estavam os três diamantes magníficos. «Se consegui fazer aquilo, consigo fazer isto, que é muito mais fácil», dizia ela a Borobá, mas o macaquinho, entumecido sob o seu casaco, nem deitava o nariz de fora.
A madrugada surgiu quando ainda lhe faltavam uns duzentos metros para chegar ao cume da montanha. Primeiro foi um clarão difuso, que em poucos minutos foi adquirindo um tom alaranjado. Quando os primeiros raios de sol bateram no imenso maciço dos Himalaias o céu transformou-se numa sinfonia de cores, as nuvens tingiram-se de púrpura e as manchas de neve adquiriram um brilho rosado.
Nadia não parou para contemplar a beleza da paisagem. Com um esforço descomunal continuou a subir e, pouco tempo depois, estava de pé no ponto mais alto daquela montanha, ofegando e banhada em suor. Sentia o coração prestes a explodir-lhe no peito. Pensara que, dali, poderia ver o vale de Tunkhala, mas diante dos seus olhos erguiam-se os impenetráveis Himalaias, umas montanhas atrás das outras, estendendo-se até ao infinito. Estava perdida. Ao olhar para baixo, pareceu-lhe ver figuras que se moviam em várias direcções: eram os homens azuis. Sentou-se num penhasco, derrotada, lutando contra o desespero e a fadiga. Tinha de descansar para recobrar fôlego, mas não era possível ficar ali. Se não encontrasse um esconderijo, depressa os seus perseguidores a encontrariam.
Borobá mexeu-se debaixo do casaco. Nadia abriu o fecho e o seu pequeno amigo deitou a cabeça de fora, com os seus olhos inteligentes fixos nela.
- Não sei para onde ir, Borobá. Todas as montanhas parecem iguais e não vejo nenhuma vereda transitável - disse Nadia.
O animal apontou para a direcção por onde tinham vindo.
- Não posso voltar por ali porque os homens azuis me apanhariam. Mas tu não chamarias a atenção, Borobá, neste país há macacos por todo o lado. Tu podes encontrar o caminho de volta a Tunkhala. Vai procurar Jaguar - ordenou-lhe Nadia.
O macaco abanou a cabeça numa negativa, tapando os olhos com as mãos e guinchando, mas ela explicou-lhe que, se não se separassem, não haveria qualquer possibilidade de salvar as outras raparigas ou eles próprios. O destino de Perna, das outras raparigas e dela própria, dependiam dele. Tinha de encontrar ajuda ou morreriam todos.
- Eu esconder-me-ei aqui perto até ter a certeza absoluta de que não andam à minha procura. Depois verei como poderei descer até ao vale. Entretanto, tu tens de correr, Borobá. Já nasceu o Sol, não está tanto frio e poderás chegar à cidade antes que o Sol se ponha novamente - insistiu Nadia Santos.
Finalmente, o animal separou-se dela e saiu, disparado como uma flecha, montanha abaixo.
Kate Cold despachou os fotógrafos Timothy Bruce e Joel Gonzalez para o interior do país, onde iriam fotografar a flora e a fauna para a revista International Geographic. Teriam de fazer o trabalho sozinhos, enquanto ela ficava na capital. Não se lembrava de se ter sentido tão angustiada em toda a sua vida, excepto quando Alexander e Nadia se perderam na selva amazónica. Garantira a César Santos que aquela viagem ao Reino Proibido não implicava qualquer perigo. Como informaria o pai de que a filha tinha sido sequestrada? Muito menos poderia dizer-lhe que Nadia estava nas mãos de assassinos profissionais que roubavam meninas para as converterem em escravas.
Kate e Alexander encontravam-se nesse momento na sala de audiências do palácio, na presença do Rei que, desta vez, os recebeu na companhia do seu comandante-em-chefe, do seu primeiro-ministro e dos dois lamas hierarquicamente mais importantes, depois de si. Judit Kinski também estava na sala.
- Os lamas consultaram os astros e deram instruções aos mosteiros para rezarem e fazerem oferendas pelas raparigas desaparecidas. O general Myar Kunglung está encarregado da operação militar. Possivelmente já mobilizou a polícia, não é verdade? perguntou o Rei, cujo rosto sereno não reflectia a sua tremenda preocupação.
- Talvez, Vossa Majestade... E também estão em estado de alerta os soldados e a guarda do palácio. As fronteiras estão vigiadas - disse o general no seu péssimo inglês, para que os estrangeiros compreendessem.
- Talvez o povo saia também para procurar as raparigas. Julgo que nunca aconteceu uma coisa destas no nosso país. Possivelmente teremos notícias em breve - acrescentou o general.
- Possivelmente? Não me parece suficiente! - exclamou Kate Cold, mordendo imediatamente os lábios, porque compreendeu que tinha cometido uma terrível descortesia.
- Talvez a senhora Cold esteja um pouco alterada... - fez notar Judit Kinski que, pelos vistos, já tinha aprendido a falar vagamente como era considerado correcto no Reino do Dragão de Ouro.
- Talvez - disse Kate, inclinando-se com as mãos unidas diante da cara.
- Seria talvez inadequado perguntar como pensa o honorável general organizar a busca? - inquiriu Judit Kinski.
Os quinze minutos seguintes passaram-se com os estrangeiros a fazer perguntas e a receber respostas cada vez mais vagas, até ser evidente que não havia forma de pressionar o Rei ou o general. A impaciência fazia Kate e Alexander transpirarem. Por fim, o monarca levantou-se e não tiveram outro remédio senão despedir-se e sair às arrecuas.
- Está uma bela manhã, talvez haja muitos pássaros no jardim sugeriu Judit Kinski.
- Talvez - concordou o Rei, conduzindo-a para fora.
O Rei e Judit Kinski deram um passeio pela vereda estreita que serpenteava entre a vegetação do parque, onde tudo parecia crescer de forma selvagem; no entanto, um olho treinado poderia apreciar a calculada harmonia do conjunto. Era ali, naquela gloriosa abundância de flores e de árvores, no concerto de centenas de aves, que Judit Kinski tinha proposto iniciar a experiência com as túlipas.
O Rei pensava não merecer ser o chefe espiritual da sua nação, porque se sentia muito longe de ter atingido o grau de preparação necessário. Toda a vida praticara o desprendimento dos assuntos terrenos e das posses materiais. Sabia que nada no mundo é permanente, que tudo muda, se decompõe, morre e se renova noutra forma, por isso agarrar-se às coisas terrenas é inútil e causa sofrimento. O caminho do budismo consistia em aceitar isso. Às vezes tinha a ilusão de o ter conseguido, mas a visita desta mulher estrangeira devolvera-lhe as dúvidas. Sentia-se atraído por ela e isso tornava-o vulnerável. Era um sentimento que nunca sentira anteriormente, porque o amor que partilhou com a sua mulher tinha fluído como a água de um riacho tranquilo. Como poderia proteger o seu reino se não conseguia proteger-se a si próprio da tentação do amor? Nada de mal havia em desejar o amor e a intimidade com outra pessoa, matutava o Rei, mas na sua posição não podia permiti-lo, porque os anos de vida que lhe restavam deviam ser inteiramente dedicados ao seu povo. Judit Kinski interrompeu os seus pensamentos.
- Que colar extraordinário, Majestade! - comentou ela, indicando a jóia que ele levava ao peito.
- É usado pelos reis deste país há mil e oitocentos anos - explicou ele, tirando o medalhão e entregando-lho, para que ela o visse de perto.
- É muito bonito - disse ela.
- O coral antigo, como este, é bastante apreciado entre nós, porque é raro. Também se encontra no Tibete. A sua existência indica que talvez há milhões de anos as águas do mar chegassem até aos cumes dos Himalaias - explicou o Rei.
- O que diz a inscrição? - perguntou ela.
- São palavras de Buda: A mudança deve ser voluntária, não imposta.
- O que significa?
- Todos podemos mudar, mas ninguém pode obrigar-nos a fazê-lo. A mudança costuma efectuar-se quando enfrentamos uma verdade inquestio-nável, alguma coisa que nos obriga a rever as nossas crenças - disse ele.
- Parece-me estranho terem escolhido esta frase para o medalhão...
- Este foi sempre um país muito tradicional. O dever dos governantes é defender o povo das mudanças que não são baseadas em algo verdadeiro - replicou o Rei.
- O mundo está a mudar rapidamente. Compreendo que, aqui, os estudantes desejem essas mudanças - sugeriu ela.
- Alguns jovens ficam fascinados com o modo de vida e com os produtos estrangeiros, mas nem tudo o que é moderno é bom. A maioria do meu povo não deseja adoptar os costumes ocidentais.
Tinham chegado a um tanque e pararam para observar a dança das carpas na água cristalina.
- Suponho que a nível pessoal, a inscrição do medalhão significa que qualquer ser humano pode mudar. Acha que uma personalidade já formada se pode modificar, Majestade? Por exemplo, que um vilão possa transformar-se em herói, ou um criminoso em santo? - perguntou Judit Kinski, devolvendo-lhe a jóia.
- Se a pessoa não muda nesta vida, talvez tenha de voltar para o fazer noutra reencarnação - disse o monarca, sorrindo.
- Cada qual tem o seu karma. Talvez o karma de uma pessoa má não possa ser alterado - sugeriu ela.
- Talvez o karma dessa pessoa seja encontrar uma verdade que a obrigue a mudar - replicou o Rei, reparando, intrigado, que os olhos castanhos da sua hóspede estavam húmidos.
Passaram por uma parte separada do jardim, onde a exuberância das flores tinha desaparecido. Era um simples pátio de areia e pedras, onde um monge muito velho traçava um desenho com um ancinho. O Rei explicou a Judit Kinski que tinha copiado a ideia de alguns jardins dos mosteiros Zen que tinha visitado no Japão. Mais adiante, atravessaram uma ponte de madeira trabalhada. O riacho produzia um som musical ao correr sobre as pedras. Chegaram a um pequeno pagode, onde se efectuava a cerimónia do chá e onde os esperava outro monge, que os cumprimentou com uma inclina-ção da cabeça. Enquanto ela tirava os sapatos, continuaram conversando.
- Não desejo ser impertinente, Majestade, mas imagino que o desaparecimento daquelas raparigas deva ser um golpe muito duro para a sua nação... - disse Judit.
- Talvez... - replicou o soberano e, pela primeira vez, ela viu alterar-se a sua expressão e um sulco profundo atravessar-lhe o centro da testa.
- Não há nada que possa fazer? Além da acção militar, digo eu...
- O que quer dizer, menina Kinski?
- Por favor, Majestade, chame-me Judit.
- Judit é um bonito nome. Infelizmente, a mim ninguém me chama pelo meu nome. Receio que seja uma exigência do protocolo.
- Numa ocasião tão grave como esta, possivelmente o Dragão de Ouro seria de grande utilidade, se for verdadeira a lenda sobre os seus poderes mágicos - sugeriu ela.
- O Dragão de Ouro consulta-se apenas para assuntos relativos ao bem-estar e à segurança deste reino, Judit.
- Desculpe o meu atrevimento, Majestade, mas talvez este seja um desses assuntos. Se os seus cidadãos desaparecem, quer dizer que não dispõem de bem-estar ou de segurança... - insistiu ela.
- Possivelmente tem razão - admitiu o Rei, cabisbaixo. Entraram no pagode e sentaram-se no chão diante do monge.
Reinava uma penumbra suave no quarto circular de madeira, iluminado apenas por umas brasas onde fervia água num antigo recipiente de ferro. Permaneceram meditando em silêncio, enquanto o monge realizava, passo a passo, a longa e lenta cerimónia, que consistia apenas em servir chá verde e amargo em duas tacinhas de barro.
CAPÍTULO 10
A Águia Branca
O Especialista entrou em contacto com o Coleccionador através de um agente, como fazia habitualmente. Desta vez o mensageiro era um japonês, que solicitou uma entrevista para discutir com o segundo homem mais rico do mundo uma estratégia de negócios nos mercados de ouro da Ásia.
Nesse dia, o Coleccionador tinha comprado a um espião o código dos arquivos ultra-secretos do Pentágono. Os arquivos militares do governo norte-americano podiam servir-lhe para os seus interesses em armamento. Era importante para os investidores como ele que no mundo houvesse conflitos. A paz não lhe convinha. Tinha calculado que percentagem exacta da humanidade devia estar em pé de guerra para estimular o mercado de armas. Se o número fosse inferior, ele perdia dinheiro, e, se fosse superior, a Bolsa de Valores tornava-se muito volátil e nessa altura o risco era demasiado grande. Felizmente para ele, era fácil provocar guerras, embora não fosse tão fácil terminá-las.
Quando o seu assistente o informou de que um desconhecido solicitava uma entrevista urgente, calculou que devia ser o enviado do Especialista. Duas palavras deram-lhe a chave: ouro e Ásia. Esperava-o há vários dias com impaciência e recebeu-o imediatamente. O agente dirigiu-se ao cliente num inglês perfeito. A elegância do seu fato e os seus modos impecáveis passaram totalmente despercebidos ao Coleccionador, que não se caracterizava por qualquer tipo de refinamentos.
- O Especialista averiguou a identidade das duas únicas pessoas que conhecem na totalidade o funcionamento da estátua que lhe interessa. O Rei e o príncipe herdeiro, um jovem que ninguém vê desde os cinco ou seis anos - informou-o.
- Porquê?
- Está a ser educado num local secreto. Todos os monarcas do Reino Proibido passam por isso na sua infância e juventude. Os pais entregam a criança a um lama, que o prepara para governar. Entre outras coisas, o príncipe deve aprender o código do Dragão de Ouro.
- Então esse lama, ou como quer que se chame, também conhece o código.
- Não. Ele é apenas um mentor, o guia. Ninguém conhece o código completo, além do monarca e do seu herdeiro. O código está dividido em quatro partes e cada uma delas está num mosteiro diferente. O mentor conduz o príncipe num percurso por esses mosteiros, que dura doze anos, durante os quais aprende o código completo - explicou o agente.
- Que idade tem esse príncipe?
- Cerca de dezoito anos. A sua educação está quase concluída, mas não temos a certeza de que já saiba decifrar o código.
- Onde está ele agora? - perguntou o Coleccionador, com impaciência.
- Julgamos que numa ermida secreta no cume dos Himalaias.
- Bom, o que espera? Traga-mo.
- Isso não será fácil. Já lhe disse que a localização dele é incerta e não há a certeza de possuir toda a informação de que o senhor necessita.
- Trate de o investigar, para isso lhe pago, homem! E, se não o encontrar, suborne o Rei.
- Como?
- Esses reizinhos de países de pacotilha são todos corruptos. Ofereça-lhe o que ele quiser: dinheiro, mulheres, automóveis, o que ele quiser - disse o multibilionário.
- Nada do que o senhor tem consegue tentar esse Rei. Não lhe interessam as coisas materiais - replicou o agente japonês, sem esconder o desprezo que sentia pelo cliente.
- E o poder? Bombas nucleares, por exemplo?
- Não, definitivamente.
- Então sequestre-o, torture-o, faça o que for necessário para lhe arrancar o segredo!
- Neste caso a tortura não funcionaria. Morreria sem nos dizer nada. Os chineses tentaram esses métodos com os lamas no Tibete e raras vezes deu resultado. Essa gente foi treinada para separar o corpo da mente - disse o enviado do Especialista.
- E fazem-no como?
- Digamos que sobem para um nível mental superior. O espírito liberta-se da matéria física, compreende?
- Espírito? Você acredita nisso? - troçou o Coleccionador.
- Não interessa no que acredito. O facto é que o fazem.
- Quer dizer que são como aqueles faquires de circo que não comem durante meses e se deitam em camas de pregos?
- Estou a falar de uma coisa muito mais misteriosa que essa. Alguns lamas podem permanecer separados do corpo durante o tempo que desejarem.
- E...?
- Isso significa que não sentem dor. Podem até morrer à vontade. Simplesmente deixam de respirar. É inútil torturar uma pessoa assim - explicou o agente.
- E o soro da verdade?
- As drogas são ineficazes, uma vez que a mente está noutro plano, desligada do cérebro.
- Pretende dizer-me que o Rei desse país é capaz de fazer isso? - rugiu o Coleccionador.
- Não sabemos com certeza, mas se o treino que recebeu na sua juventude foi completo e se o praticou ao longo da sua vida, é isso exactamente o que pretendo dizer-lhe.
- Esse homem deve ter alguma fraqueza! - exclamou o Coleccionador, passeando como uma fera pela sala.
- Tem muito poucas, mas descobri-la-emos - concluiu o agente, colocando sobre a mesa um cartão onde estava escrita a tinta roxa a cifra, em milhões de dólares, do custo da operação.
Era incrivelmente alta, mas o Coleccionador calculou que não se tratava de um sequestro normal e que, em todo o caso, podia pagá-la. Quando tivesse o Dragão de Ouro nas mãos e controlasse o mercado de valores do mundo, recuperaria o seu investimento multiplicado por mil.
- Está bem, mas não quero problemas de espécie alguma, é preciso agir com discrição e não provocar um incidente internacional. É fundamental que ninguém me relacione com este assunto, a minha reputação ficaria arruinada. Vocês encarregam-se de pôr o Rei a falar, mesmo que tenham de fazer voar esse país em pedaços, compreendeu? Os pormenores não me interessam.
- Depressa terá notícias - disse o visitante, levantando-se e desaparecendo silenciosamente.
Ao Coleccionador pareceu-lhe que o agente se tinha esfumado no ar. Sentiu um calafrio: era uma pena ter de fazer acordos com gente tão perigosa. No entanto, não podia queixar-se. O Especialista era um profissional de primeira classe, sem cuja ajuda ele não chegaria a ser o homem mais rico do mundo, o número um, o mais rico da história da humanidade, mais que os faraós egípcios ou que os imperadores romanos.
Brilhava o sol da manhã sobre os Himalaias. O mestre Tensing tinha terminado a sua meditação e as suas orações. Lavara-se com a lentidão e a precisão que caracterizavam todos os seus gestos, num pequeno fio de água que caía das montanhas, e preparava-se agora para a única refeição do dia. O seu discípulo, o príncipe Dil Bahadur, tinha fervido a água com chá, sal e manteiga de iaque. Colocava-se uma parte numa cabaça, para irem bebendo ao longo do dia, e a outra parte misturava-se com farinha tostada de cevada. A pasta resultante chamava-se tsampa e era a base da alimentação dos monges na região. Cada um levava a sua porção num saquinho entre as pregas da túnica.
Dil Bahadur tinha fervido também alguns vegetais, que cultivavam com muito esforço no terreno árido de um terraço natural na montanha, bastante longe da ermida onde viviam. O príncipe tinha de andar várias horas para apanhar um molho de folhas verdes ou de ervas para a comida.
- Vejo que estás a coxear, Dil Bahadur - observou o mestre. -Não, não...
O mestre cravou nele os seus olhos e o discípulo viu um clarão de divertimento nas suas pupilas.
- Caí - confessou, mostrando arranhões e nódoas negras numa perna.
- Como?
- Distraí-me. Sinto muito, mestre - disse o jovem, inclinando-se profundamente.
- O treinador de elefantes precisa de cinco virtudes, Dil Bahadur: boa saúde, confiança, paciência, sinceridade e sabedoria - disse o lama, sorrindo.
- Esqueci-me das cinco virtudes. Neste momento falta-me a saúde porque perdi a confiança ao andar. Perdi a confiança porque ia apressado, não tive paciência. Ao dizer-lhe que não coxeava, faltei à sinceridade. Em resumo, estou longe da sabedoria, mestre.
Os dois puseram-se a rir alegremente. O lama dirigiu-se a uma caixa de madeira, tirou uma taça de cerâmica que continha um unguento esverdeado e esfregou-o com delicadeza na perna do jovem.
- Mestre, creio que o senhor atingiu a Iluminação, mas ficou nesta terra só para me ensinar - suspirou Dil Bahadur e o lama, por resposta, deu-lhe uma pancadinha amistosa na cabeça com a taça.
Prepararam-se para a curta cerimónia de gratidão, que efectuavam sempre antes de comer, depois sentaram-se na posição de lótus no cume da montanha, com o chá e as suas tigelas de tsampa à frente. Entre uma dentada e outra, mastigando lentamente, admiravam a paisagem em silêncio, porque não falavam enquanto comiam. A vista perdia-se na magnífica cadeia de cumes cobertos de neve que se estendia diante deles. O céu tornara-se de um azul-cobalto intenso.
- Esta será uma noite fria - disse o príncipe, quando acabou de comer.
- Esta é uma manhã muito bonita - comentou o mestre.
- Já sei: aqui e agora. Devemos regozijar-nos com a beleza do momento, em vez de pensar na tempestade que virá... - recitou o aluno com um tom levemente irónico.
- Muito bem, Dil Bahadur.
- Talvez não seja muito o que me falta aprender - disse o jovem a sorrir.
- Quase nada, só um pouco de modéstia - replicou o lama. Nesse momento, uma ave apareceu no céu, voou em grandes círculos abrindo as suas asas enormes e depois desapareceu.
- Que pássaro era aquele? - perguntou o lama, levantando-se.
- Parecia uma águia branca - disse o jovem.
- Nunca vi nenhuma por aqui.
- Há muitos anos que observa a natureza. Possivelmente conhece todas as aves e animais da região.
- Seria uma arrogância imperdoável da minha parte pretender que conheço tudo o que vive nestas montanhas, mas na verdade nunca vi uma águia branca - replicou o lama.
- Tenho de ir fazer as minhas lições, mestre - disse o príncipe, agarrando nas tigelas e dirigindo-se para a ermida.
Sobre o cume da montanha, numa clareira, Tensing e Dil Bahadur exercitavam-se em Tao-shu, a combinação de diversas artes marciais inventada pelos monges do longínquo mosteiro fortificado de Chenthan Dzong. Os sobreviventes do terramoto que destruiu o mosteiro espalharam-se pela Ásia para ensinar a sua arte. Cada um treinava apenas uma pessoa, escolhida pela sua capacidade física e pela sua integridade moral. Assim se transmitiam os conhecimentos. O número total de guerreiros especialistas em Tao-shu nunca ultrapassava os doze em cada geração. Tensing era um deles e o aluno que tinha escolhido para o substituir era Dil Bahadur.
O terreno rochoso era traiçoeiro nessa época, porque amanhecia com geada e ficava escorregadio. No Outono e no Inverno o exercício parecia mais agradável a Dil Bahadur, porque a neve mole suavizava as quedas. Além disso, gostava de sentir o ar invernoso. Suportar o frio era parte da rude aprendizagem à qual o submetia o seu mestre, tal como andar quase sempre descalço, comer muito pouco e permanecer horas e horas imóvel em meditação. Nessa manhã estava sol e não corria vento para refrescá-la, doía-lhe a perna magoada e a cada pirueta mal feita aterrava em cima de pedras, mas não pedia tréguas. O seu mestre nunca o tinha ouvido queixar-se.
O príncipe, de meia estatura e magro, contrastava com o tamanho de Tensing, que era oriundo da região oriental do Tibete, onde as pessoas são muito altas. O lama media mais de dois metros de altura e tinha passado a sua existência igualmente dedicado à prática espiritual e ao exercício físico. Era um gigante com músculos de halterofilista.
- Perdoa-me se fui demasiado brusco, Dil Bahadur. Possivelmente, em vidas anteriores, fui um guerreiro cruel - disse Tensing, em tom de desculpa, na quinta vez que derrubou o seu aluno.
- Possivelmente, em vidas anteriores, eu fui uma frágil donzela - replicou Dil Bahadur, ofegante e estatelado no chão.
- Talvez fosse conveniente que não tentasses dominar o teu corpo com a mente. Deves ser como o tigre dos Himalaias, puro instinto e determinação... - sugeriu o lama.
- Talvez nunca venha a ser tão forte como o meu honorável mestre - disse o jovem, pondo-se de pé com alguma dificuldade.
- A tempestade arranca do solo o forte carvalho, mas não o junco, porque este se dobra. Não avalies a minha força, mas as minhas fraquezas.
- Talvez o meu mestre não tenha fraquezas - disse Dil Bahadur, sorrindo e assumindo a atitude de defesa.
- A minha força é também a minha fraqueza, Dil Bahadur. Deves usá-la contra mim.
Segundos depois, cento e cinquenta quilos de músculos e ossos voavam pelo ar em direcção ao príncipe. Desta vez, no entanto, Dil Bahadur saiu ao encontro da massa que lhe caía em cima com a graça de um bailarino. No instante em que os dois corpos se tocaram, rodou um pouco para a esquerda, esquivando o peso de Tensing, que caiu ao chão, rolando com habilidade sobre um ombro e um dos lados. Imediatamente se pôs de pé com um salto formidável e voltou ao ataque. Dil Bahadur estava à sua espera. Apesar da sua corpulência, o lama elevou-se como um felino, desenhando um arco no ar mas não chegou a tocar no jovem, porque, quando a sua perna disparou um pontapé feroz, este já não estava ali para o receber. Numa fracção de segundo, Dil Bahadur pusera-se atrás do seu adversário e dera-lhe um golpe seco e curto na nuca. Era um dos passos do Tao-shu, que podia paralisar de imediato e até matar, mas a força fora calculada para fazer cair sem causar ferimentos.
- Possivelmente, Dil Bahadur foi uma donzela guerreira em vidas passadas - disse Tensing, pondo-se de pé, bastante satisfeito, e cumprimen-tando o seu aluno com uma profunda inclinação da cabeça.
- Talvez o meu honorável mestre se tenha esquecido das virtudes do junco - disse o jovem, sorrindo e cumprimentando também.
Nesse momento uma sombra projectou-se no chão e ambos ergueram os olhos: sobre as suas cabeças voava em círculos o mesmo pássaro branco que tinham visto horas antes.
- Notas alguma coisa estranha naquela águia? - perguntou o lama.
- Talvez me falhe a vista, mestre, mas não lhe vejo a aura.
- Eu também não...
- O que significa isso? - perguntou o jovem.
- Diz-me tu o que significa, Dil Bahadur.
- Se não conseguimos vê-la é porque talvez não a tenha, mestre.
- Essa é uma conclusão muito sábia - troçou o lama.
- Como é possível não ter uma aura?
- Possivelmente é uma projecção mental - sugeriu Tensing.
- Tentemos comunicar com ela - disse Dil Bahadur.
Os dois fecharam os olhos e abriram a mente e o coração para receber a energia da poderosa ave que girava por cima das suas cabeças. Durante vários minutos permaneceram assim. Tão forte era a presença do pássaro, que sentiam vibrações na pele.
- Diz-lhe alguma coisa, mestre?
- Sinto apenas a sua angústia e confusão. Não consigo decifrar a sua mensagem. E tu?
- Também não.
- Não sei o que significa isto, Dil Bahadur, mas há, com certeza, uma razão para que a águia nos procure - concluiu Tensing, que nunca tivera uma experiência destas e parecia perturbado.
CAPÍTULO 11
O jaguar totémico
Na cidade de Tunkhala reinava uma grande confusão. Os polícias interrogavam meio mundo, enquanto destacamentos de soldados partiam para o interior do país em jipes e a cavalo, porque nenhum veículo de rodas se podia aventurar pelas veredas das montanhas. Monges com oferendas de flores, arroz e incenso aglomeravam-se diante das estátuas religiosas. Soavam as trombetas nos templos e por toda a parte ondulavam bandeiras de oração. A televisão transmitiu o dia inteiro pela primeira vez desde que fora instalada, repetindo milhares de vezes a mesma notícia e mostrando fotografias das raparigas desaparecidas. Nos lares das vítimas não cabia um alfinete: amigos, parentes e vizinhos vinham apresentar as condolências, trazer comida e orações escritas em papel, que queimavam diante das imagens religiosas.
Kate Cold conseguiu entrar em contacto com a embaixada americana na índia para pedir ajuda, mas não tinha esperanças de que esta chegasse com a rapidez necessária, se alguma vez chegasse. O funcionário que a atendeu disse que o Reino Proibido não estava sob a sua jurisdição e que, além disso, Nadia Santos não era cidadã americana, mas brasileira. Em vista disto, a escritora decidiu converter-se na sombra do general Myar Kunglung. Aquele homem dispunha dos únicos recursos militares existentes no país e ela não estava disposta a permitir que se distraísse por um instante que fosse. Arrancou com um puxão o sarong que tinha usado durante aqueles dias, vestiu a sua roupa habitual de exploradora e subiu para o jipe do general, sem que ninguém conseguisse dissuadi-la.
- Você e eu vamos pôr-nos em campanha - anunciou ao surpreendido general, que não entendeu todas as palavras da escritora, mas entendeu perfeitamente as suas intenções.
- Tu ficas em Tunkhala, Alexander, porque, se Nadia puder fazê-lo, entrará em contacto contigo. Telefona novamente para a embaixada na índia - ordenou ao neto.
Ficar de braços cruzados à espera era intolerável para Alex, mas compreendeu que a avó tinha razão. Foi para o hotel, onde havia telefone, e conseguiu falar com o embaixador, que foi um pouco mais amável que o funcionário anterior, mas que não prometeu nada em concreto. Falou também com a revista International Geographic em Washington. Enquanto esperava, fez uma lista de todos os dados disponíveis, mesmo dos mais insignificantes, que pudessem conduzi-lo a uma pista.
Ao pensar em Águia, tremiam-lhe as mãos. Porque a teria escolhido, justamente a ela, a Seita do Escorpião? Porque se arriscavam a sequestrar uma estrangeira, o que provocaria, sem dúvida, um incidente internacional? O que significava a presença de Tex Armadillo no festival? Porque estava o americano disfarçado? Eram guerreiros azuis os homens barbudos de máscaras, como julgava Águia? Essas e milhares de outras perguntas martelavam-lhe o cérebro, aumentando a sua frustração.
Lembrou-se que, se encontrasse Tex Armadillo, poderia agarrar na ponta do novelo que o levaria até Nadia, mas não sabia por onde começar. Procurando uma chave, relembrou cuidadosamente cada palavra que tinha trocado com aquele homem ou que tinha conseguido ouvir quando o seguiu pelos subterrâneos do Forte Vermelho na índia. Apontou as suas conclusões numa lista:
- Tex Armadillo e a Seita do Escorpião estão relacionados.
- Tex Armadillo não ganhava nada com o rapto das raparigas. Essa não era a sua missão.
- Poderia tratar-se de tráfico de drogas.
- O rapto das raparigas não encaixava com uma operação de tráfico de drogas, porque chamava demasiado a atenção.
- Até esse momento, os guerreiros azuis nunca tinham sequestrado raparigas no Reino Proibido. Deviam ter uma razão muito forte para o fazer.
- A razão podia ser, precisamente, chamar a atenção e distrair a polícia e as forças armadas.
- Se disso se tratava, o seu objectivo era outro. Qual? Por onde atacariam?
Alexander concluiu que a lista esclarecia muito pouco: estava a andar em círculos.
Por volta das duas da tarde recebeu um telefonema da sua avó Kate, que estava numa aldeia a duas horas da capital. Os soldados do general Myar Kunglung tinham ocupado todas as vilórias e revistavam templos, mosteiros e casas em busca dos malfeitores. Não havia novidades, mas já não havia dúvidas de que os temíveis homens azuis se encontravam no país. Vários camponeses tinham visto ao longe os cavaleiros vestidos de preto.
- Porque procuram aí? Evidentemente que não se escondem nesses sítios! - exclamou Alexander.
- Andamos atrás de qualquer pista, meu filho. Também há soldados a percorrer os montes - explicou Kate.
O jovem lembrou-se de ter ouvido dizer que a Seita do Escorpião conhecia todas as passagens dos Himalaias. Logicamente, os homens esconder-se-iam nas mais inacessíveis.
O rapaz decidiu que não podia ficar no hotel à espera. «Por alguma razão me chamo Alexander, que quer dizer defensor de homens», murmurou, certo de que o seu nome também incluía defender as mulheres. Vestiu o blusão e as botas de montanha, as mesmas que usava para escalar rochedos com o pai, na Califórnia. Contou o seu dinheiro e foi buscar um cavalo.
Saía do hotel quando viu Borobá caído no chão, perto da porta. Inclinou-se para o apanhar, com um grito atravessado no peito, porque pensou que estava morto mas, assim que o tocou, o animal abriu os olhos. Acariciando-o e murmurando o seu nome, levou-o ao colo até à cozinha, onde arranjou fruta para o alimentar. Tinha espuma na boca, os olhos vermelhos, o corpo coberto de arranhões, cortes sangrentos nas mãos e nas patas. Parecia extenuado, mas assim que comeu uma banana e bebeu água, reanimou um pouco.
- Sabes onde está Nadia? - perguntou-lhe, enquanto lhe limpava as feridas, mas não conseguiu decifrar os guinchos e gestos do macaco.
Alex lamentou não ter aprendido a comunicar com Borobá, Teve oportunidade de o fazer quando esteve três semanas no Amazonas e Nadia se ofereceu muitas vezes para lhe ensinar a linguagem dos macacos, composta por muito poucos sons que, segundo ela, qualquer um consegue aprender. No entanto, ele não achou necessário. Pensou que, de qualquer forma, Borobá e ele tinham pouco a dizer um ao outro e Nadia estava sempre lá para traduzir. E agora o animal tinha, com certeza, a informação mais importante do mundo para ele!
Mudou a pilha da sua lanterna e colocou-a na mochila juntamente com o restante equipamento de alpinismo. O equipamento era pesado, mas bastava dar uma vista de olhos à cadeia de montanhas que rodeava a cidade para compreender que era necessário. Preparou uma refeição de fruta, pão e queijo, e depois pediu um cavalo emprestado no próprio hotel, onde tinham vários disponíveis, uma vez que era o meio de transporte mais utilizado no país. Tinha montado nos Verões anteriores, quando ia com a família ao rancho dos avós maternos, mas aí o terreno era plano. Calculou que o cavalo teria a experiência, que a ele lhe faltava, de subir montanhas escarpadas. Meteu Borobá dentro do casaco, deixando-lhe apenas a cabeça e os braços de fora e saiu a galope na direcção que este lhe indicou.
Quando a luz começou a diminuir e a temperatura a descer, Nadia compreendeu que a sua situação era desesperada. Depois de enviar Borobá à procura de auxílio, ficou a vigiar de cima a encosta abrupta que se estendia aos seus pés. A vegetação exuberante que crescia nos vales e montanhas do Reino Proibido era menos copiosa à medida que se subia, e desaparecia por completo nos cumes das montanhas. Isso permitia-lhe ver, embora não com clareza, os movimentos dos homens azuis que foram à sua procura assim que verificaram que ela tinha fugido. Um deles desceu até o sítio onde tinham deixado os cavalos, com certeza para avisar o resto do grupo. Nadia não tinha dúvidas de que haveria mais alguns, a julgar pela quantidade de provisões e arreios que tinha visto, embora fosse impossível calcular o seu número.
Os restantes guerreiros percorreram os arredores da gruta, onde estavam as raparigas sequestradas a cargo da mulher da cicatriz. Não demoraram muito a lembrar-se de revistar o cume. Nadia apercebeu-se de que não podia permanecer ali, porque os seus perseguidores não tardariam a seguir-lhe o rasto. Deu uma vista de olhos em redor e não conseguiu evitar uma exclamação de angústia. Havia muitos sítios onde esconder-se, mas era também muito fácil perder-se. Finalmente, escolheu um barranco profundo, como um corte na montanha, que ficava a oeste do local onde se encontrava. Parecia perfeito, poderia esconder-se nas irregularidades do terreno, embora não tivesse a certeza se depois seria possível sair dali.
Se os homens azuis não a encontrassem, Jaguar também não. Suplicou que não lhe ocorresse vir sozinho porque sozinho jamais poderia enfrentar os guerreiros do Escorpião. Conhecendo o carácter independente do amigo, e como ele se impacientava com a maneira indecisa de falar e agir dos habitantes do Reino Proibido, receou que ele não pedisse ajuda.
Ao ver que vários homens começavam a subir, teve de tomar uma decisão. Vista de cima, a greta cortada na montanha que tinha escolhido para se esconder parecia muito menos profunda do que era na realidade, como pôde comprovar assim que começou a descida. Não tinha experiência nesse campo e tinha medo das alturas, mas lembrou-se como teve de trepar as encostas a pique de uma cascata no Amazonas, atrás dos índios, e isso deu-lhe coragem. Claro que, nessa altura, ia com Alexander, e agora estava sozinha.
Tinha descido apenas dois ou três metros, colada como uma mosca à parede vertical da rocha, quando a raiz sobre a qual se apoiava, cedeu, enquanto tacteava com o pé à procura de um apoio. Perdeu o equilíbrio, tentou agarrar-se, mas havia bocados de gelo. Escorregou e rolou, inevitavelmente, até às profundezas. Durante alguns segundos, o pânico dominou-a, tinha a certeza de que ia morrer, por isso mesmo foi uma surpresa incrível quando aterrou em cima de uns matagais, que amorteceram milagrosamente a queda. Magoada e cheia de cortes e esfoladelas, quis mover-se, mas uma dor aguda fê-la dar um grito. Viu com horror que o seu braço esquerdo pendia num ângulo anormal. Tinha deslocado o ombro.
Nos primeiros minutos não sentiu nada, tinha o corpo insensível, mas depressa a dor se tornou tão intensa que julgou desmaiar. A dor tornava-se muito pior quando se mexia. Fez um esforço mental para permanecer alerta e avaliar a situação: não podia dar-se ao luxo de perder a cabeça, decidiu.
Assim que se acalmou um pouco, ergueu os olhos e viu-se rodeada de rochas talhadas a pique, mas lá em cima estava a paz infinita de um céu azul tão límpido que parecia pintado. Chamou em sua ajuda o seu animal totémico e, através de um grande esforço psíquico, conseguiu transformar-se na poderosa águia e voar para fora do desfiladeiro onde estava presa e por cima das montanhas. O ar suportava as suas grandes asas e ela deslocava-se em silêncio pelas alturas, observando de cima a paisagem de cumes cobertos de neve e, muito mais abaixo, o verde intenso daquele bonito país.
Nas horas seguintes, Nadia evocou a águia quando o desespero a vencia. E, de cada uma dessas vezes, o grande pássaro trouxe alívio ao seu espírito.
Pouco a pouco, conseguiu mover-se, segurando no braço inerte com a outra mão, até meter-se debaixo do matagal. Fez bem, porque os guerreiros azuis chegaram até ao cume onde ela estivera e exploraram os arredores. Um deles tentou descer o barranco, mas era demasiado escarpado e calculou que, se ele não conseguia fazê-lo, também a fugitiva não conseguiria.
Do seu esconderijo, Nadia ouvia os bandidos chamando uns pelos outros num idioma que não tentou compreender. Quando, finalmente, se foram embora, reinou o silêncio mais completo nos cumes e ela pôde avaliar a sua enorme solidão.
Apesar do seu casaco, Nadia estava gelada. O frio diminuía-lhe a dor do ombro ferido e mergulhava-a num sono irresistível. Não comia desde a noite anterior, mas não sentia fome, só uma sede terrível. Arranhava os charcos de gelo sujo que se formavam entre as pedras e chupava-os ansiosa, mas ao dissolver-se, deixavam-lhe um gosto de lama na boca. Apercebeu-se de que a noite cairia e que a temperatura desceria abaixo de zero. Os olhos fechavam-se-lhe. Durante algum tempo lutou contra a fadiga, mas depois decidiu que, dormindo, o tempo passaria mais depressa.
- Talvez nunca mais veja outro amanhecer - murmurou, entregando-se ao sono.
Tensing e Dil Bahadur dirigiram-se para a sua ermida na montanha. Aquelas horas destinavam-se ao estudo, mas nenhum deles fez tenção de tirar os pergaminhos do baú onde estavam guardados, pois ambos tinham a mente noutra coisa. Acenderam uma pequena braseira e aqueceram o chá. Antes de mergulharem na meditação, salmodiaram Om mani padme hum durante uns quinze minutos e depois rezaram pedindo clareza mental para entender o estranho sinal que tinham visto no céu. Entraram em transe e os seus espíritos abandonaram os corpos para empreender viagem.
Faltavam cerca de três horas para o pôr do Sol, quando o mestre e o seu discípulo abriram os olhos. Permaneceram imóveis por alguns instantes, dando tempo à alma, que tinha estado longe, de se instalar novamente na realidade da ermida onde viviam. No seu transe tiveram ambos visões semelhantes e nenhuma explicação se tornou necessária.
- Suponho, mestre, que iremos em auxílio da pessoa que nos enviou a águia branca - disse o príncipe, certo de que essa era também a decisão de Tensing, porque esse era o caminho assinalado por Buda: o caminho da compaixão.
- Talvez - replicou o lama, apenas por hábito, porque a sua determinação era tão firme como a do seu discípulo.
- Como a encontraremos?
- Possivelmente a águia guiar-nos-á.
Vestiram as suas túnicas de lã, puseram sobre os ombros uma pele de iaque, calçaram as suas botas de cabedal, que usavam apenas nas grandes caminhadas e durante o Inverno rigoroso, e agarraram nos seus longos bastões e numa candeia de azeite. À cintura colocaram o saco com farinha e a manteiga para a tsampa, base da sua alimentação. Tensing levava noutro saco um frasco com licor de arroz, a caixinha de madeira com as suas agulhas de acupunctura e uma selecção dos seus remédios. Dil Bahadur colocou ao ombro um dos seus arcos mais curtos e a aljava com as flechas. Sem comentários, os dois empreenderam a marcha na direcção em que tinham visto afastar-se o grande pássaro branco.
Nadia Santos entregou-se à morte. Já não a incomodavam a dor, o frio, a fome ou a sede. Flutuava num estado de sonolência, sonhando com a águia. Por momentos acordava e, nessa altura, a sua mente tinha clarões de consciência, sabia onde e como se encontrava, percebia que havia pouca esperança, mas quando a noite a envolveu o seu espírito já estava livre de todo o medo.
As horas anteriores tinham sido de uma grande angústia. Assim que os homens azuis se afastaram e não voltou a ouvi-los, tentou arrastar-se, mas depressa se apercebeu de que seria impossível subir aquele precipício escarpado, sem ajuda e com um braço inutilizado. Não tentou tirar o casacão para examinar o ombro, porque cada movimento que fazia era um suplício, mas verificou que tinha a mão bastante inchada. Às vezes a dor aturdia-a, mas se lhe dava atenção era muito pior, por isso tentava entreter-se pensando noutras coisas.
Teve várias crises de desespero durante o dia. Chorou pensando no pai, que não voltaria a ver; chamou Jaguar com o pensamento. Onde estava o seu amigo? Borobá tê-lo-ia encontrado? Porque não aparecia? Gritou várias vezes até perder a voz, sem se importar que os homens da Seita do Escorpião a ouvissem, porque preferia enfrentá-los a ficar ali sozinha, mas ninguém apareceu. Um pouco mais tarde ouviu passos e o coração saltou de alegria, mas eram apenas algumas cabras selvagens. Chamou-as no idioma das cabras, mas não conseguiu que se aproximassem.
A sua vida tinha decorrido no clima quente e húmido do Amazonas. Não conhecia o frio. Em Tunkhala, onde as pessoas andavam vestidas de algodão e seda, ela não conseguia tirar o casaco. Nunca tinha visto neve e não sabia o que era o gelo até o ter visto num ringue artificial de patinagem em Nova Iorque. Agora estava a tiritar. No buraco onde estava prisioneira estava protegida do vento e o matagal amenizava um pouco o frio mas, de qualquer forma, para ela era insuportável. Permaneceu encolhida durante horas, até o seu corpo entumecido se tornar insensível. Finalmente, quando o céu começou a escurecer, sentiu com toda a clareza a presença da morte. Reconheceu-a porque já a vira antes. No Amazonas tinha visto nascerem e morrerem pessoas e animais, sabia que cada ser vivo cumpre o mesmo ciclo. Na natureza tudo se renova. Abriu os olhos, procurando as estrelas, mas já nada via, estava mergulhada numa escuridão total, porque à greta não chegava o fulgor ténue da Lua, que iluminava suavemente os cumes dos Himalaias. Tornou a fechar os olhos e imaginou que o seu pai estava com ela, apoiando-a. Passou-lhe pela cabeça a imagem da mulher do feiticeiro Walimai, aquele espírito translúcido que sempre o acompanhava, e perguntou a si própria se só as almas dos índios podiam ir e vir à vontade do céu à terra. Calculou que ela também poderia fazê-lo e decidiu que, nesse caso, gostaria de voltar em espírito para consolar o seu pai e Jaguar, mas cada pensamento custava-lhe um esforço imenso e só desejava dormir.
Nadia soltou as amarras que a prendiam ao mundo e começou a partir suavemente, sem nenhum esforço e sem dor, com a mesma graciosidade com que se elevava quando se convertia em águia e as suas asas poderosas a mantinham por cima das nuvens e a levavam cada vez mais para cima, em direcção à Lua.
Borobá levou Alexander até ao sítio onde tinha deixado Nadia. Totalmente esgotado pelo esforço de percorrer aquele caminho três vezes sem descanso, perdeu-se várias vezes, mas conseguiu sempre regressar à vereda correcta. Chegaram ao desfiladeiro que dava para a gruta dos homens azuis por volta das seis da tarde. Nessa altura já estes se tinham cansado de procurar Nadia e tinham voltado às suas ocupações. O tipo horroroso, que parecia comandá-los, decidiu que não podiam continuar a perder tempo com a rapariga que lhes tinha escapado por entre as garras, que tinham de continuar com o plano e de se reunir com o resto do grupo, de acordo com as instruções dadas pelo americano que os contratara. Alex verificou que o terreno estava pisado e que havia bosta de cavalo por todo o lado; era evidente que os bandidos tinham lá estado, embora não visse ninguém nos arredores. Percebeu que não podia continuar a cavalo, parecia que os passos do animal ecoavam como um sino de alarme. Se estivesse alguém de guarda, seria impossível não ouvi-lo. Desmontou e deixou o cavalo partir para não revelar a sua presença ali. Por outro lado, tinha a certeza de que não conseguiria voltar pelo mesmo caminho e recuperá-lo.
Começou a escalar a montanha, escondendo-se entre rochas e pedras, seguindo a mãozinha trémula de Borobá. Passou, arrastando-se, a uns setenta metros da entrada da gruta, onde viu três homens de guarda, armados com espingardas. Deduziu que os restantes estariam lá dentro ou teriam ido para outro sítio porque não viu mais ninguém na encosta da montanha. Calculou que Nadia estaria ali juntamente com Perna e com as outras raparigas desaparecidas, mas ele sozinho e desarmado não poderia enfrentar os guerreiros do Escorpião. Hesitou, sem saber o que fazer, até os sinais insistentes de Borobá o fazerem duvidar de que a sua amiga se encontrasse ali.
O macaco puxava-o pela manga e apontava para o cume da montanha. Uma vista de olhos bastou para calcular que necessitaria de várias horas para chegar ao cume. Poderia ir mais rapidamente sem a mochila às costas, mas não quis abandonar o seu equipamento de montanhismo.
Hesitou entre regressar a Tunkhala para pedir ajuda, o que levaria algum tempo, ou continuar à procura de Nadia. A primeira opção poderia salvar as prisioneiras, mas poderia ser fatal para Nadia, se esta estivesse em apuros, como Borobá parecia querer dizer-lhe. A segunda opção poderia ajudar Nadia, mas podia ser perigosa para as outras raparigas. Decidiu que aos homens azuis não lhes convinha magoar as raparigas. Uma vez que se tinham dado ao trabalho de as raptar, era porque precisavam delas.
Continuou a escalar e chegou ao cume já de noite, mas no céu brilhava uma Lua imensa, como um grande olho de prata. Borobá olhava à sua volta, confuso. Saltou para fora do casaco, onde estava protegido, e pôs-se a procurar freneticamente, guinchando de angústia. Alexander apercebeu-se de que o macaco esperava encontrar ali a sua dona. Cheio de esperança, começou a chamar por Nadia com cautela, porque receava que o eco levasse a sua voz montanha abaixo e, naquele silêncio absoluto, chegasse com clareza aos ouvidos dos bandidos. Depressa compreendeu a inutilidade de continuar a busca sem outra luz além da claridade da Lua, num terreno escarpado e concluiu que era melhor esperar até amanhecer.
Instalou-se entre duas rochas, usando a sua mochila como almofada e partilhou o seu lanche com Borobá. Depois ficou quieto, esperando que Nadia pudesse dizer-lhe onde estava, caso conseguisse ouvir com o coração, mas nenhuma voz interior veio iluminar a sua mente.
- Tenho de dormir um pouco para recuperar as forças murmurou, extenuado, mas não conseguiu fechar os olhos.
Perto da meia-noite, Tensing e Dil Bahadur encontraram Nadia. Tinham seguido a águia branca durante horas. A poderosa ave voava silenciosamente sobre as suas cabeças e tão baixo que, mesmo de noite, a sentiam. Nenhum dos dois tinha a certeza de poder realmente vê-la, mas a sua presença era tão forte que não precisavam de falar um com o outro para saber o que deveriam fazer. Quando se desviavam ou paravam, a ave começava a voar em círculos, indicando-lhes o caminho correcto. Dessa forma os conduziu directamente ao sítio onde estava Nadia e, uma vez ali, desapareceu.
Um rugido arrepiante fez o lama e o seu discípulo estacar de repente. Estavam a poucos metros do precipício por onde Nadia caíra, mas não conseguiam avançar, porque um animal que nunca tinham visto, um grande felino, negro como a própria noite, lhes impedia a passagem. Estava pronto para saltar, com o dorso eriçado e as garras de fora. A sua boca aberta revelava enormes caninos afiados e as suas ardentes pupilas amarelas brilhavam ferozes na luz vacilante da candeia de azeite.
O primeiro impulso de Tensing e Dil Bahadur foi de defesa e ambos tiveram de se controlar para não recorrer à arte do Tao-shu, na qual confiavam mais do que nas flechas de Dil Bahadur. Com grande força de vontade, imobilizaram-se. Respirando pausadamente, para impedir que o pânico os invadisse e que o animal sentisse o cheiro inconfundível do medo, concentraram-se a enviar energia positiva, tal como tinham feito noutras ocasiões com um tigre branco e com os ferozes yetis. Sabiam que o pior inimigo, assim como a maior ajuda, costumam ser os próprios pensamentos.
Por um instante muito breve que, no entanto, pareceu eterno, os homens e a fera defrontaram-se, até a voz serena de Tensing recitar num sussurro o mantra essencial. E, nessa altura, a luz da candeia vacilou como se fosse apagar-se e, perante os olhos do lama e do seu discípulo, em lugar do felino apareceu um rapaz de aspecto muito estranho. Nunca tinham visto ninguém daquela cor pálida ou vestido dessa maneira.
Por outro lado, Alexander tinha visto uma luz ténue, que inicialmente parecia uma ilusão mas que, pouco a pouco, se tornou mais real. Atrás dessa claridade viu avançar duas silhuetas humanas. Julgou que eram os homens da Seita do Escorpião e saltou, alerta, disposto a morrer lutando. Sentiu que o espírito do jaguar negro vinha em sua ajuda, abriu a boca, e um rugido arrepiante fez tremer o ar tranquilo da noite. Só quando os dois desconhecidos ficaram a poucos metros de distância e pôde distinguir melhor os seus contornos, Alex se apercebeu de que não eram os sinistros bandidos barbudos.
Olharam-se com a mesma curiosidade: por um lado, dois monges budistas cobertos com peles de iaque; por outro, um rapaz americano de jeans e botas, com um macaco agarrado ao pescoço. Quando conseguiram reagir, os três uniram as mãos e inclinaram-se em uníssono no cumprimento tradicional do Reino Proibido.
- Tampo kachi, felicidade para si - disse Tensing.
- Hi - replicou Alexander.
Borobá guinchou e tapou os olhos com as mãos, como fazia quando estava assustado ou confuso.
A situação era tão estranha, que os três sorriram. Alexander procurou, desesperado, alguma palavra no idioma daquele país, mas não conseguiu lembrar-se de nenhuma. No entanto, teve a sensação de que a sua mente era um livro aberto para aqueles homens. Embora não os tenha ouvido dizer uma palavra, as imagens que se formavam no cérebro revelaram-lhe as intenções deles e deu-se conta de que estavam todos ali pela mesma razão.
Tensing e Dil Bahadur, recorrendo à telepatia, inteiraram-se de que o estrangeiro procurava uma rapariga perdida chamada Águia. Deduziram, naturalmente, que era a mesma pessoa que lhes enviara a ave branca. Não lhes pareceu surpreendente que aquela rapariga tivesse a capacidade de se transformar em pássaro, tal como não os surpreendeu que o jovem tivesse aparecido aos seus olhos com o aspecto de um grande felino preto. Achavam que nada era impossível. Nos seus transes e viagens astrais, eles próprios tinham tomado a forma de diversos animais ou de seres de outros universos. Também leram na mente de Alexander as suas suspeitas sobre os bandidos da Seita do Escorpião, da qual Tensing tinha ouvido falar nas suas viagens pelo norte da índia e pelo Nepal.
Nesse instante, um grito no céu interrompeu a corrente de ideias que fluía entre os três homens. Ergueram os olhos e ali, sobre as suas cabeças, estava novamente o grande pássaro. Viram-no desenhar um breve círculo e depois descer na direcção de um escuro precipício que se abria um pouco mais à frente.
- Águia Nadia! - exclamou Alexander, primeiro com uma alegria louca e depois com uma terrível apreensão.
A situação era desesperada, porque descer de noite ao fundo daquela quebrada era quase impossível. No entanto, tinha de tentar, porque o facto de Nadia não ter respondido aos reiterados chamamentos de Alexander e aos guinchos de Borobá, significava que alguma coisa grave lhe acontecera. Estava viva, sem dúvida, uma vez que a projecção mental da águia assim o indicava, mas podia estar ferida. Não havia tempo a perder.
- Vou descer - disse Alexander em inglês.
Tensing e Dil Bahadur não precisaram de tradução para compreender a decisão do rapaz e dispuseram-se a ajudá-lo.
O jovem felicitou-se por ter levado o seu equipamento de montanhismo e a lanterna. Também agradeceu a experiência adquirida com o pai, escalando montanhas e fazendo rapel. Colocou o arnês, encaixou um pitão metálico entre as rochas, verificou a sua firmeza, amarrou-lhe uma corda e, perante os olhos atónitos de Tensing e Dil Bahadur, que nunca tinham visto nada parecido, apesar de terem vivido sempre entre os cumes daquelas montanhas, desceu como uma aranha pelo precipício.
CAPÍTULO 12
O medicamento da mente
A primeira coisa que Nadia sentiu, ao voltar a si, foi o cheiro rançoso da pesada pele de iaque que a envolvia. Entreabriu os olhos e não conseguiu ver nada. Quis mover-se, mas estava imobilizada; tentou falar, mas não lhe saiu a voz. De súbito, invadiu-a uma dor insuportável num ombro que, em poucos segundos, se alastrou ao resto do corpo. Mergulhou novamente na escuridão, com a sensação de que caía num vazio infinito, onde se perdia por completo. Nesse estado flutuava tranquila, mas assim que tinha um instante de consciência, sentia a dor trespassando-a como flechas. Mesmo desmaiada, gemia.
Finalmente começou a acordar, mas o cérebro parecia estar envolto numa espécie de algodão esbranquiçado, do qual não conseguia livrar-se. Ao abrir os olhos viu o rosto de Jaguar inclinado sobre ela e pensou que tinha morrido, mas depois ouviu a voz dele chamando-a. Conseguiu focar a vista e, ao sentir a pontada aguda no ombro, apercebeu-se de que ainda estava viva.
- Águia, sou eu... - disse Alexander, tão assustado e comovido diante da amiga, que mal conseguia conter as lágrimas.
- Onde estamos? - murmurou ela.
Um rosto cor de bronze, de olhos amendoados e expressão serena, surgiu-lhe diante dos olhos.
- Tampo kachi, menina corajosa - cumprimentou-a Tensing. Trazia uma tigela de madeira na mão, mostrando-lhe que devia beber.
Nadia engoliu com dificuldade um líquido morno e amargo, que lhe caiu como uma pedra no estômago vazio. Sentiu náuseas, mas a mão do lama pressionou-lhe firmemente o peito e o mal-estar desapareceu imediatamente. Bebeu um pouco mais. Depressa Jaguar e Tensing desapareceram e ela caiu num sono profundo e tranquilo.
Valendo-se da corda e da lanterna, Alexander tinha descido ao barranco em poucos segundos, onde encontrou Nadia encolhida como um novelo entre o matagal, gelada e imóvel, como morta. O alívio que sentiu ao verificar que ainda respirava fê-lo dar um grito. Quando tentou deslocá-la, viu o braço pendente e calculou que teria algum osso partido, mas não parou para investigar. O mais importante era tirá-la daquele buraco, mas viu que não seria fácil subi-la desmaiada.
Tirou o arnês e colocou-o em Nadia, depois usou o cinto para lhe imobilizar o braço contra o peito. Dil Bahadur e Tensing içaram a rapariga com muito cuidado, para evitar que batesse contra as pedras, e depois atiraram a corda para que Alexander pudesse subir.
Tensing observou Nadia e decidiu que, antes de tudo o mais, deviam aquecê-la. Do braço ocupar-se-ia mais tarde. Deu-lhe um pouco de licor de arroz, mas ela estava inconsciente e não engolia. Entre os três esfregaram-na de cima a baixo durante longos minutos, até conseguirem activar a circulação. Assim que ela recuperou um pouco as cores, envolveram-na numa das peles como um embrulho, cobrindo mesmo a cara.
Com os seus compridos bordões, a corda de Alexander e a outra pele de iaque, improvisaram uma padiola e, dessa forma, transportaram a rapariga até um pequeno refúgio próximo, uma das muitas fendas e cavernas naturais das montanhas. Carregando Nadia, a viagem de volta até à ermida de Tensing e Dil Bahadur seria demasiado complicada e longa, por isso o lama decidiu que ali ficariam a salvo dos bandidos e poderiam descansar pelo resto da noite.
Dil Bahadur encontrou umas raízes secas, com as quais improvisou uma pequena fogueira que lhes proporcionou um pouco de luz e de calor. Com muitas precauções tiraram o casaco a Nadia, e Alexander não conseguiu conter uma exclamação de susto quando viu o braço da amiga pendendo, com o dobro do seu tamanho normal e com o osso do ombro fora do lugar. Tensing, pelo contrário, não se alterou.
O lama abriu a sua caixinha de madeira e começou a colocar as agulhas em certos pontos da cabeça de Nadia, para lhe suprimir a dor. Depois, tirou do seu saco algumas ervas medicinais e moeu-as entre duas pedras, enquanto Dil Bahadur derretia manteiga na sua tigela. O lama misturou a gordura com o pó, formando uma pasta escura e aromática. As suas mãos experientes colocaram o osso de Nadia no sítio e depois cobriram a área com a pasta, sem que a rapariga fizesse o mais pequeno movimento, completamente anestesiada pelas agulhas. Tensing, por telepatia e por gestos, explicou a Alexander que a dor provoca tensão e resistência, o que bloqueia a mente e reduz a capacidade natural de cura. Além de anestesiar, a acupunctura activava o sistema imunológico do corpo. Nadia não sofria, garantiu-lhe.
Dil Bahadur rasgou a bainha da sua túnica, para fazer ligaduras, pôs a ferver água com um pouco de cinza da fogueira e, nesse líquido, embebeu as tiras de tecido, que o lama utilizou para ligar o ombro ferido. Depois, Tensing imobilizou o braço com um cachecol, retirou as agulhas de acupunctura e indicou a Alexander que refrescasse a testa de Nadia com geada e neve, que havia nas fendas das rochas, para baixar a febre.
Nas horas seguintes, Tensing e Dil Bahadur concentraram-se em curar Nadia com a força da mente. Era a primeira vez que o príncipe efectuava essa proeza com um ser humano. O mestre treinara-o durante anos nessa forma de sarar, mas só a tinha praticado com animais feridos.
Alexander compreendeu que os seus novos amigos tentavam atrair energia do universo e canalizá-la para fortalecer Nadia. Dil Bahadur passou-lhe mentalmente a noção de que o seu mestre era médico, além de ser um poderoso tulku, que dispunha da imensa sabedoria de encarnações anteriores. Embora não tivesse a certeza de ter compreendido bem aquelas mensagens, Alexander teve o bom senso de não os interromper ou fazer perguntas. Permaneceu ao pé de Nadia, refrescando-a com neve e dando-lhe a beber água quando esta acordava. Manteve o fogo aceso até se acabarem as raízes que serviam de combustível. Depressa a claridade do amanhecer rasgou o manto da noite, enquanto os monges, sentados na posição de lótus, com os olhos fechados e a mão direita no corpo da sua amiga, murmuravam mantras.
Tempos depois, quando Alexander conseguiu analisar o que sentiu durante essa noite estranha, a única palavra que lhe ocorreu para definir o que fizeram aqueles dois homens misteriosos foi «magia». Não tinha outra explicação para a forma como curaram Nadia. Imaginou que o pó que tinham usado para fazer a pasta era um remédio potente, desconhecido no resto do mundo, mas tinha a certeza de que foi sobretudo a força mental de Tensing e Dil Bahadur que produziu o milagre.
Durante as horas em que o lama e o príncipe aplicaram os seus poderes psíquicos para curar Nadia, Alexander pensava na mãe, lá longe, na Califórnia. Imaginava o cancro como um terrorista escondido no seu organismo, pronto para atacar impunemente a qualquer momento. A família festejara a recuperação de Lisa Cold, mas todos sabiam que o perigo não tinha passado. A combinação de quimioterapia com a água da saúde, obtida na Cidade dos Deuses Selvagens, e as ervas do feiticeiro Walimai, tinha vencido o primeiro assalto, mas a luta não tinha acabado. Ao ver como Nadia se recompunha a uma velocidade espantosa durante a noite, enquanto os monges rezavam em silêncio, Alexander decidiu que traria a sua mãe ao Reino do Dragão de Ouro ou que estudaria, ele próprio, esse método maravilhoso para a curar.
Ao amanhecer, Nadia acordou sem febre, com boas cores e com uma fome voraz. Borobá, aninhado ao seu lado, foi o primeiro a cumprimentá-la. Tensing preparou tsampa e ela devorou-a como se fosse uma delícia, embora fosse, na realidade, uma mistela acinzentada com gosto a aveia fumada. Também bebeu com sofreguidão a poção medicinal que lhe deu o lama.
Em inglês, Nadia contou-lhes a sua aventura com os guerreiros azuis, o sequestro de Perna e das outras raparigas e a localização da gruta. Apercebeu-se de que o homem e o jovem que a tinham salvado captavam as imagens que a sua mente formava. De vez em quando, Tensing interrompia para esclarecer algum pormenor e, se ela ouvisse com o coração, conseguia entendê-lo. Quem tinha maiores problemas de comunicação era Alexander, apesar de os monges adivinharem também os seus pensamentos. Estava extenuado, fechavam-se-lhe os olhos de sono e não percebia como o lama e o discípulo se mantinham tão alerta, depois de terem passado uma parte da noite ocupados no resgate de Nadia e o resto em oração.
- É preciso salvar essas pobres raparigas antes que lhes aconteça alguma desgraça irremediável - disse Dil Bahadur, depois de ouvir o relato de Nadia.
Mas Tensing não demonstrou a mesma pressa do príncipe. Interrogou a jovem para saber exactamente o que ouvira na caverna e ela repetiu-lhe as poucas palavras que Perna tinha entendido. Tensing perguntou-lhe se tinha a certeza de que tinham mencionado o Dragão de Ouro e o Rei.
- O meu pai pode estar em perigo! - exclamou o príncipe.
- O teu pai? - perguntou Alexander, admirado.
- O Rei é meu pai - explicou Dil Bahadur.
- Estive a pensar em tudo isto e tenho a certeza de que aqueles criminosos não vieram ao Reino Proibido só para roubarem algumas raparigas. Isso poderiam fazê-lo mais facilmente na índia... sugeriu Alexander.
- Queres dizer que vieram por outra razão? - perguntou Nadia.
- Acho que raptaram as raparigas como uma distracção, por o seu verdadeiro objectivo estar relacionado com o Rei e com o Dragão de Ouro.
- Roubar a estátua, por exemplo? - insinuou Nadia.
- Julgo saber que é bastante valiosa. Não percebo porque mencionaram o Rei, mas por boa coisa não deve ser - concluiu Alex.
Tensing e Dil Bahadur, habitualmente impassíveis, não conseguiram evitar uma exclamação. Discutiram alguns minutos na sua língua e depois o lama anunciou que deviam descansar três ou quatro horas, antes de se porem em acção.
A posição do Sol indicava serem cerca das nove da manhã quando os amigos acordaram. Alexander deu uma vista de olhos em redor e viu apenas montanhas e mais montanhas, como se estivessem no fim do mundo, mas compreendeu que não estavam longe da civilização, apenas muito bem escondidos. O sítio escolhido pelo lama e pelo seu discípulo estava protegido por grandes rochas e era difícil chegar ali a menos que se conhecesse a sua localização. Era evidente que eles já o tinham usado anteriormente, porque havia restos de velas num canto. Tensing explicou que, para descer ao vale era preciso dar uma grande volta, apesar de não ficar longe, porque estavam isolados por um despenhadeiro alto e os guerreiros azuis bloqueavam a única vereda transitável para a capital.
A temperatura de Nadia era normal, não sentia dores e o braço tinha desinchado. Estava novamente morta de fome e comeu tudo o que lhe ofereceram, até um bocado de um queijo verde com um cheiro muito pouco apetecível, que Tensing tirou do seu saco. O lama renovou a pasta que cobria o ombro da rapariga, ligou-o com os mesmos trapos, uma vez que não dispunha de outros, e ajudou-a depois a dar uns passos.
- Olha, Jaguar, estou completamente bem! Poderei levá-los até à caverna onde têm Perna e as outras raparigas - exclamou Nadia, dando uns saltos para provar o que dizia.
Mas Tensing ordenou-lhe que voltasse a deitar-se na sua cama improvisada, porque não estava totalmente curada, precisava de descanso; o seu corpo era o templo do seu espírito e devia tratá-lo com respeito e cuidado, disse. Como tarefa, pediu-lhe para visualizar os ossos no seu sítio, o ombro desinflamado e a sua pele livre das nódoas negras e dos arranhões que sofrera nos últimos dias.
- Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge dos nossos pensamentos. Os nossos pensamentos constróem o mundo - disse o monge, por telepatia.
Nadia captou a ideia em linhas gerais: com a sua mente podia curar-se. Isso mesmo tinham feito por ela Tensing e Dil Bahadur, durante a noite.
- Perna e as outras raparigas correm um grave perigo. Podem estar ainda na gruta de onde fugi, mas também já as podem ter levado... - explicou Nadia a Alexander.
- Disseste que tinham lá um acampamento com armas, arreios e provisões. Não creio que seja fácil mobilizar tudo isso em poucas horas - comentou ele.
- De qualquer forma, é preciso apressarmo-nos, Jaguar. Tensing disse-lhe que ela ficaria a descansar, enquanto ele e os dois jovens iriam resgatar as cativas. Não estavam longe e Borobá poderia guiá-los. Nadia tentou explicar-lhe que enfrentariam os ferozes guerreiros da Seita do Escorpião, mas pareceu-lhe que o lama não compreendeu bem, porque só obteve por resposta um sorriso plácido.
Tensing e Dil Bahadur não tinham armas, além do arco e da aljava de flechas do príncipe e dos dois grandes bordões de madeira que usavam sempre; o restante ficara na sua ermida. Como único escudo, o príncipe tinha pendurado ao pescoço o pedaço mágico de excremento petrificado de dragão, que tinham encontrado no Vale dos Yetis. Quando competiam a sério, como faziam algumas vezes nos mosteiros onde o príncipe recebia instrução, usavam uma grande variedade de armas. Eram competições amistosas, e raras vezes alguém era ferido, porque os monges guerreiros tinham experiência e eram muito cuidadosos. O sereno Tensing colocara uma dura couraça de cabedal acolchoado que lhe cobria o peito e as costas, além de protecções metálicas nas pernas e nos antebraços. O seu tamanho, já de si enorme, duplicava, convertendo-o num verdadeiro gigante. Por cima dessa mole humana, a sua cabeça parecia demasiado pequena e a doçura da sua expressão completamente deslocada. As suas armas preferidas eram discos metálicos com pontas afiadas como navalhas, que atirava com incrível precisão e velocidade, e a sua pesada espada, que qualquer outro homem não conseguiria levantar com as duas mãos e que ele brandia no ar com uma só e sem esforço. Era capaz de desarmar qualquer outro apenas com um movimento dos braços, partir em dois uma couraça com a espada ou atirar os discos que roçavam a face dos seus adversários, sem os ferir.
Dil Bahadur não possuía a força ou a destreza do mestre, mas era ágil como um gato. Não usava couraça ou quaisquer protecções, que lhe entorpeciam os movimentos, e a velocidade era a sua melhor defesa. Numa competição podia evitar facas, flechas e lanças, furtando o corpo como uma doninha. Vê-lo em acção era um espectáculo prodigioso, parecia estar a dançar. A sua arma favorita era o arco, porque tinha uma pontaria imbatível: onde punha o olho, punha a flecha. O mestre ensinara-o que o arco fazia parte do seu corpo e que a flecha era um prolongamento do seu braço, devia disparar por instinto, apontando com o terceiro olho. Tensing insistira em convertê-lo num arqueiro perfeito, porque defendia que isso limpa o coração. Segundo ele, só um coração puro consegue dominar totalmente aquela arma. O príncipe, que nunca falhava um tiro, contradizia-o, trocista, com o argumento de que o seu braço nada sabia das impurezas do seu coração.
Como todos os especialistas em Tao-shu, usavam o seu poder físico como uma forma de exercício para temperar o carácter e a alma, nunca para magoar outro ser vivo. O respeito por qualquer forma de vida, fundamento do budismo, era o lema de ambos. Achavam que qualquer criatura poderia ter sido sua mãe numa vida anterior, por isso deviam tratá-las a todas com bondade. De qualquer forma, como dizia o lama, não importa aquilo em que se acredita ou não, mas aquilo que se faz. Não podiam caçar um pássaro para o comer, muito menos podiam matar um homem, mesmo em autodefesa. Deviam olhar para o inimigo como para um mestre que lhes dava a oportunidade de controlarem as suas paixões e de aprenderem alguma coisa sobre si próprios. Nunca se tinham deparado anteriormente com a perspectiva de agredir.
- Como posso disparar contra outros homens com o coração puro, mestre?
- Só é permitido fazê-lo se não houver outra alternativa e quando tivermos a certeza de que a causa é justa, Dil Bahadur.
- Parece-me que, neste caso, essa certeza existe, mestre.
- Que todos os seres vivos tenham uma boa sorte, que nenhum conheça o sofrimento - recitaram juntamente o mestre e o discípulo, desejando de todo o coração não se verem na obrigação de usar nenhum dos seus mortíferos conhecimentos marciais.
Por outro lado, Alexander tinha um temperamento conciliador. Nos seus dezasseis anos de vida nunca se tinha visto obrigado a lutar e na realidade não sabia fazê-lo. Além disso, não possuía nada para se defender ou atacar, excepto um canivete que a avó lhe tinha oferecido, para substituir outro que dera ao feiticeiro Walimai no Amazonas. Era uma boa ferramenta, mas como arma era ridícula.
Nadia deu um suspiro. Não entendia nada de armas, mas conhecia os membros da Seita do Escorpião, famosos pela sua brutalidade e pela perícia com os punhais. Aqueles homens criavam-se na violência, viviam para o crime e para a guerra, eram treinados para matar. O que poderiam fazer dois pacíficos monges budistas e um jovem turista americano contra semelhante bando de foragidos? Angustiada, disse-lhes adeus e viu-os afastar-se. O seu amigo Jaguar ia à frente, com Borobá encavalitado na nuca, bem agarrado às orelhas do jovem; o príncipe seguia-o e aquele lama colossal fechava a marcha.
- Espero voltar a vê-los vivos - murmurou Nadia quando eles desapareceram atrás das rochas altas que protegiam a pequena gruta.
Assim que os três homens começaram a descer para a caverna dos guerreiros azuis, puderam fazê-lo mais rapidamente. Iam quase a correr. Apesar de o sol brilhar, estava frio. A atmosfera estava tão límpida, que até se viam os vales e, daqueles cumes, a paisagem era de uma beleza surpreendente. Estavam rodeados pelos picos altos e cobertos de neve das montanhas e, em baixo, estendiam-se montes cobertos por uma vegetação exuberante e por plantações verdes de arroz, em socalcos construídos nas encostas. À distância, avistavam-se, salpicadas aqui e ali, as brancas stupas dos mosteiros, as pequenas aldeias com as suas casas de barro, madeira, pedra e palha, com os seus tectos em forma de pagode e as suas ruas tortuosas, tudo integrado na natureza, como um prolongamento do terreno. Ali o tempo media-se pelas estações e o ritmo de vida era lento, imutável.
Com binóculos teriam visto as bandeiras de oração ondulando por toda a parte, as grandes imagens de Buda pintadas nas rochas, as filas de monges trotando em direcção aos templos, os búfalos puxando os arados, as mulheres a caminho do mercado com os seus colares de turquesa e prata, as crianças brincando com bolas de trapos. Era quase impossível imaginar que essa pequena nação, tão aprazível e bonita, que conseguira preservar-se intacta durante séculos, estivesse agora à mercê de um bando de assassinos.
Alexander e Dil Bahadur apressavam o passo, pensando nas raparigas que tinham de salvar antes que as marcassem com um ferro em brasa na testa ou pior. Não sabiam que perigos os esperavam na proeza de as resgatarem, mas tinham a certeza de que não seriam poucos. A Tensing, pelo contrário, estas dúvidas não o afligiam demasiado. As cativas eram apenas a primeira parte da sua missão; a segunda preocupava-o muito mais: salvar o Rei.
Entretanto, em Tunkhala, espalhara-se a notícia de que o Rei se tinha esfumado. Esperavam-no na televisão, porque se ia dirigir ao país, mas não chegou a comparecer. Ninguém sabia onde se encontrava, apesar de o general Myar Kunglung tentar por todos os meios manter a notícia em segredo. Era a primeira vez na história da nação que acontecia uma coisa destas. O filho mais velho, o mesmo que tinha ganho os torneios de arco e flecha durante o festival, ocupou temporariamente o lugar do pai. Se o Rei não aparecesse nos próximos dias, o general e os lamas superiores teriam de ir buscar Dil Bahadur, para que este cumprisse o destino para o qual fora treinado durante mais de doze anos. Todos esperavam, no entanto, que isso não fosse necessário.
Corriam rumores de que o Rei estava num mosteiro das montanhas, aonde se tinha retirado para meditar; que tinha viajado para a Europa com a mulher estrangeira, Judit Kinski; que estava no Nepal com o Dalai Lama; e milhares de outras suposições. Mas nada disto correspondia ao carácter pragmático e sereno do soberano. Também não era possível que viajasse incógnito e, de qualquer forma, o avião semanal só saía na sexta-feira seguinte. O monarca jamais abandonaria as suas responsabilidades, muito menos quando o país enfrentava uma crise devido às raparigas sequestradas. A conclusão do general e dos restantes habitantes do Reino Proibido, era que alguma coisa muito grave devia ter acontecido.
Myar Kunglung abandonou a busca das raparigas e regressou à capital. Kate Cold não o largou e dessa forma se inteirou pessoalmente de alguns pormenores confidenciais. À porta do palácio encontrou Wandgi, o guia, acocorado ao pé de uma coluna da entrada, esperando notícias da sua filha Perna. O homem abraçou-se a ela a chorar. Parecia outra pessoa, como se tivesse envelhecido vinte anos naqueles dois dias. Kate libertou-se com brusquidão, porque não gostava de demonstrações sentimentais e, em jeito de consolo, ofereceu-lhe um gole de chá com vodca do seu inseparável cantil. Wandgi meteu-o à boca por cortesia, mas teve de cuspir para longe aquela beberagem asquerosa. Kate agarrou-o por um braço e obrigou-o a seguir o general, porque precisava dele como tradutor. O inglês de Myar Kunglung era como o de Tarzan.
Souberam que o Rei tinha passado uma tarde e parte da noite na sala do Grande Buda, no centro do palácio, acompanhado apenas por Tschewang, o leopardo. Só uma vez interrompeu a sua meditação para dar alguns passos pelo jardim e beber uma chávena de chá de jasmim, que um monge lhe levou. O monge informou o general que Sua Majestade orava sempre durante várias horas antes de consultar o Dragão de Ouro. À meia-noite levou-lhe outra chávena de chá. Nessa altura a maior parte das velas já se tinham apagado e na penumbra da sala viu que o Rei já não estava ali.
- Não tratou de saber onde se encontrava? - perguntou Kate, valendo-se de Wandgi.
- Calculei que tinha ido consultar o Dragão de Ouro – replicou o monge.
- E o leopardo?
- Estava amarrado a um canto com uma corrente. Sua Majestade não pode levá-lo quando consulta o Dragão de Ouro. Às vezes deixa-o na sala do Buda, outras vezes entrega-o aos guardas que vigiam a Última Porta.
- Onde é isso? - quis saber Kate. Mas, como única resposta, recebeu um olhar escandalizado do monge e outro, furioso, do general. Era evidente que aquela informação não estava disponível, mas Kate não se dava facilmente por vencida.
O general explicou que muito poucos conheciam a localização da Última Porta. Os guardas que a vigiavam eram levados até lá com os olhos vendados, por uma das velhas monjas que serviam no palácio e que estavam a par do segredo. Essa porta era o limite que conduzia à parte sagrada do palácio e que ninguém, excepto o monarca, podia atravessar. Passado o umbral, começavam os obstáculos e as armadilhas mortais que protegiam o Recinto Sagrado. Qualquer pessoa que não soubesse onde pôr os pés, morria de uma forma horrível.
- Poderíamos falar com Judit Kinskí, a europeia que está no palácio como hóspede? - insistiu a escritora.
Foram procurá-la e viram que a mulher também tinha desaparecido. A cama dela parecia ter sido usada, a roupa e objectos pessoais estavam no quarto, menos a carteira de cabedal que levava sempre ao ombro. Pela cabeça de Kate passou fugazmente a ideia de que o Rei e a especialista em túlipas tinham desaparecido para um encontro amoroso, mas imediatamente a descartou por ser absurda. Decidiu que uma coisa destas não encaixava com o carácter de nenhum dos dois e, além disso, que necessidade tinham de esconder-se?
- Temos de procurar o Rei - disse Kate.
- É possível que essa ideia já nos tenha ocorrido, avozinha replicou o general Kunglung entre dentes.
O general deu ordem para chamarem uma monja que os guiasse ao andar inferior do palácio e teve de aguentar que Kate e Wandgi o acompanhassem, porque a escritora se agarrou ao braço dele como uma lapa e não o largou. Definitivamente, aquela mulher era de uma falta de cortesia nunca vista, pensou o militar.
Seguiram a monja dois andares sob a terra, passando por uma centena de salas ligadas entre si e chegaram, finalmente, à sala onde se encontrava a grandiosa Ultima Porta. Não perderam tempo a admirá-la, porque viram com horror os dois guardas, com o uniforme da casa real, deitados no chão de barriga para baixo num charco de sangue. Um deles estava morto, mas o outro ainda vivia e conseguiu avisá-los com as suas últimas forças, que os homens azuis, dirigidos por um branco, tinham entrado no Recinto Sagrado e não só tinham sobrevivido e voltado a sair, como tinham também raptado o Rei e roubado o Dragão de Ouro.
Myar Kunglung tinha passado quarenta anos nas forças armadas, mas nunca tinha enfrentado uma situação tão grave como aquela. Os seus soldados entretinham-se brincando à guerra e desfilando, mas até agora a violência era desconhecida no seu país. Nunca se vira na necessidade de usar as suas armas e nenhum dos seus soldados conhecia o verdadeiro perigo. A ideia de que o soberano tinha sido sequestrado no seu próprio palácio parecia-lhe inconcebível. O sentimento mais forte do general nesse momento, mais do que o pavor ou a ira, era a vergonha: tinha falhado a sua missão, não tinha sido capaz de proteger o seu amado Rei.
Kate já não tinha nada a fazer no palácio. Despediu-se do perplexo general e partiu a passos largos em direcção ao hotel, arrastando Wandgi consigo. Tinha de fazer planos com o seu neto.
- É possível que o rapaz americano tenha alugado aqui um cavalo e talvez tenha partido. Parece-me que não voltou - informou-a o dono do hotel com grandes sorrisos e reverências.
- Quando foi isso? Partiu sozinho? - perguntou ela, inquieta.
- É possível que se tenha ido embora ontem e talvez levasse um macaco - disse o homem, tentando ser o mais amável possível com aquela estranha avó.
- Borobá - exclamou Kate, adivinhando imediatamente que Alexander tinha ido à procura de Nadia.
- Nunca deveria ter trazido as crianças para este país! - acrescentou, a meio de um ataque de tosse e deixando-se cair, acabrunhada, numa cadeira.
Sem dizer uma palavra, o dono do hotel serviu um copo de vodca e colocou-lho nas mãos.
CAPÍTULO 13
O Dragão de Ouro
Naquela noite, o Rei tinha meditado diante do Grande Buda durante horas, como fazia sempre antes de descer até ao Recinto Sagrado. A sua capacidade para compreender a informação que receberia da estátua dependia do seu estado de espírito. Devia ter o coração puro, limpo de desejos, temores, expectativas, lembranças e intenções negativas, aberto como a flor de lótus. Rezou com fervor, porque sabia que a sua mente e o seu coração eram vulneráveis. Sentia que mal dominava os fios do seu reino e os da sua própria psique.
O Rei tinha subido ao trono muito novo, em virtude da morte prematura do pai, sem ter terminado o seu treino com os lamas. Faltavam-lhe conhecimentos e não desenvolveu como devia as suas capacidades paranormais. Não conseguia ver a aura das pessoas nem ler os seus pensamentos, não efectuava viagens astrais, não sabia curar com o poder da mente, embora soubesse fazer outras coisas, como deixar de respirar e morrer à vontade.
Tinha compensado as falhas da sua preparação e as suas carências psíquicas com um grande bom senso e uma contínua prática espiritual. Era um homem bondoso e sem ambição pessoal, inteiramente dedicado ao bem-estar do seu reino. Rodeava-se de colaboradores fiéis, que o ajudavam a tomar decisões justas, e mantinha uma eficiente rede de informações para saber o que acontecia no seu país e no mundo. Reinava com humildade, porque não se sentia capacitado para o papel de Rei. Esperava retirar-se para um mosteiro quando o seu filho Dil Bahadur ascendesse ao trono, mas depois de conhecer Judit Kinski, duvidava mesmo da sua vocação religiosa. Aquela estrangeira era a única mulher que tinha conseguido inquietá-lo desde a morte da sua mulher. Sentia-se muito confuso e nas suas orações pedia simplesmente que se cumprisse o seu destino, qualquer que este fosse, sem magoar ninguém.
O monarca conhecia o código para decifrar as mensagens do Dragão de Ouro, porque as aprendera na juventude; mas faltava-lhe a intuição do terceiro olho, que também era necessária. Só conseguia interpretar uma parte do que a estátua lhe transmitia. Cada vez que se via diante dela, lamentava as suas limitações. O seu consolo era que o seu filho Dil Bahadur estaria muito mais bem preparado do que ele para governar a nação.
- Este é o meu karma nesta reencarnação: ser Rei sem o merecer - costumava murmurar com tristeza.
Nessa noite, depois de várias horas de intensa meditação, sentiu que a sua mente estava limpa e o seu coração aberto. Inclinou-se profundamente diante do Grande Buda, tocando com a testa no chão, pediu inspiração e ergueu-se. Doíam-lhe os joelhos e as costas depois de tantas horas de imobilidade. Amarrou o fiel Tschewang com uma corrente a uma argola fixa na parede, bebeu o último gole do seu chá de jasmim, já frio, agarrou numa vela e saiu da sala. Os seus pés descalços deslizavam sem ruído sobre o chão de pedra polida. Pelo caminho cruzou-se com alguns criados que a essa hora limpavam silenciosamente o palácio.
Por ordem do general Myar Kunglung, a maior parte dos guardas tinha partido para reforçar os escassos soldados e polícias do reino que procuravam as raparigas desaparecidas. O Rei mal notou a sua ausência, porque o palácio era bastante seguro. Os guardas desempenhavam uma função decorativa durante o dia, e à noite ficavam apenas alguns deles vigiando porque, na realidade, não eram necessários. Nunca a segurança da família real fora ameaçada.
As mil salas do palácio comunicavam entre si através de uma verdadeira imensidão de portas. Alguns quartos tinham quatro saídas; outros, hexagonais, tinham seis. Era tão fácil perder-se que os arquitectos do antigo edifício talharam sinais nas portas como guia nos andares superiores, mas no de baixo, onde só tinham acesso alguns monges e monjas, os guardas escolhidos e a família real, esses sinais não existiam. Como, além disso, não havia janelas, porque ficava dez metros abaixo do solo, não existiam pontos de referência.
As salas do subterrâneo, que recebiam ventilação através de um engenhoso sistema de tubagens, tinham-se impregnado ao longo dos séculos de um cheiro peculiar a humidade, azeite das candeias e diversos tipos de incenso, que os monges acendiam para afastar as ratazanas e os maus espíritos. Algumas salas eram usadas para armazenar os pergaminhos e a administração pública, estátuas, móveis; outras eram depósito de remédios, víveres ou antiquadas armas que já ninguém usava, mas a maior parte estava vazia. As paredes mostravam pinturas de cenas religiosas, dragões, demónios, longos textos em sânscrito, descrições horríveis dos castigos que sofrem as almas malvadas no Outro Mundo. Os tectos também estavam pintados, mas a fuligem das candeias enegrecera-os.
À medida que se internava nas entranhas do seu palácio, o Rei ia acendendo as candeias com a chama da sua vela. Pensava que já era altura de instalar luz eléctrica em todo o edifício, mas até agora só o fizera numa ala do andar superior, onde morava a família real. Abria portas e avançava sem hesitar, porque conhecia o caminho de cor.
Depressa chegou a um aposento rectangular maior e mais alto que os restantes, iluminado por uma fila dupla de candeias de ouro, em cuja extremidade se erguia uma grandiosa porta de bronze e prata, incrustada de jade. Dois jovens guardas, engalanados com o uniforme antigo dos arautos reais, com penachos de penas nos chapéus de seda azul e lanças enfeitadas com fitas de cores, vigiavam, um de cada lado da porta. Via-se que estavam fatigados, porque já tinham várias horas de turno na solidão e no silêncio sepulcrais daquele aposento. Ao verem aparecer o seu Rei, caíram de joelhos, tocaram com a testa no chão e permaneceram assim até ele lhes ter dado a sua bênção e lhes ter indicado que se levantassem. Depois, voltaram a cara para a parede, como exigia o protocolo, para não verem como o soberano abria a porta.
O Rei rodou vários dos muitos jades que decoravam a porta, empurrou e esta rodou pesadamente nos gonzos. Atravessou o umbral e a porta maciça voltou a fechar-se. A partir desse momento activava-se automaticamente o sistema de segurança que protegia o Dragão de Ouro há mil e oitocentos anos.
Escondido entre os fetos gigantescos do parque que rodeava o palácio, Tex Armadillo seguia cada passo do Rei nos subterrâneos, como se fosse colado aos seus calcanhares. Conseguia vê-lo perfeitamente num pequeno ecrã, graças à tecnologia moderna. O monarca não suspeitava que levava ao peito uma minúscula máquina de filmar de grande precisão, através da qual o americano o viu ultrapassar cada um dos obstáculos e desarmar os meca-nismos de segurança que protegiam o Dragão de Ouro. Simultaneamente, gravavam-se as coordenadas do seu percurso, como um mapa exacto, num global positioning system (GPS), que permitiria segui-lo mais tarde. Tex não conseguiu evitar um sorriso pensando na genialidade do Especialista, que não deixava nada ao acaso. Aquele aparelho, muito mais sensível, preciso e de longo alcance do que os de uso comum, acabava de ser desenvolvido nos Estados Unidos para fins militares e não estava à disposição do público. Mas o Especialista conseguia obter qualquer coisa, para isso dispunha dos contactos e do dinheiro necessários.
Escondidos entre as plantas e as esculturas do jardim, estavam os doze melhores guerreiros azuis da Seita, sob o comando de Tex Armadillo. Os outros levavam a cabo o resto do plano nas montanhas, onde preparavam a fuga com a estátua e onde tinham as raparigas sequestradas. Também essa distracção era produto da mente maquiavélica do Especialista. Estando a polícia e os soldados ocupados a procurá-las, eles podiam entrar no palácio sem encontrar resistência.
Apesar de se sentirem muito seguros, os malfeitores moviam-se com cautela, porque as instruções do Especialista eram bastante precisas: não deviam chamar a atenção. Precisavam de várias horas de vantagem para pôr a estátua a salvo e obter o código da boca do Rei. Sabiam o número exacto de guardas que restavam e onde estavam colocados. Já tinham despachado os quatro que vigiavam os jardins e esperavam que os seus cadáveres não fossem descobertos até à manhã seguinte. Iam, como sempre, armados com um arsenal de punhais, nos quais confiavam mais do que nas armas de fogo. O americano levava uma pistola Magnum com silenciador, mas se tudo saísse como estava planeado, não teria de usá-la.
Tex Armadillo não gostava particularmente da violência, embora no seu ramo esta acabasse por ser inevitável. Achava que a violência era para os caceteiros e ele considerava-se um «intelectual», um homem de ideias. Secretamente, albergava a ambição de substituir o Especialista ou de formar a sua própria organização. Não gostava da companhia daqueles homens azuis que eram uns mercenários brutais e traiçoeiros, com quem mal conseguia comunicar e não tinha a certeza de os conseguir controlar, caso fosse necessário. Tinha garantido ao Especialista que precisava apenas de alguns dos seus melhores homens para levar a cabo a missão, mas como única resposta recebeu a ordem de se cingir ao plano. Armadillo sabia que a mais pequena indisciplina ou desvio poderia custar-lhe a vida. A única pessoa que temia neste mundo era o Especialista.
As suas instruções eram claras: tinha de vigiar todos os movimentos do Rei através da máquina de filmar oculta, esperar que chegasse à sala do Dragão de Ouro e activasse a estátua, para garantir que tudo funcionava, depois entraria no palácio e, usando o GPS, chegaria à Ultima Porta. Devia levar seis homens, dois para carregar o tesouro, dois para sequestrar o Rei e dois para protecção. Teria de entrar no Recinto Sagrado evitando as armadilhas, para isso dispunha do vídeo no seu ecrã.
A ideia de sequestrar o chefe de uma nação e roubar o seu objecto mais precioso teria sido absurda em qualquer parte menos no Reino Proibido, onde o crime era quase desconhecido e, por isso, não havia defesas. Para Tex Armadillo era quase uma brincadeira de crianças atacar um país cujos habitantes ainda usavam velas para se iluminarem e consideravam o telefone um aparelho mágico. A expressão depreciativa apagou-se-lhe da cara quando viu no ecrã a forma engenhosa como estava defendido o Dragão de Ouro. A missão não era tão fácil como imaginava. As mentes que inventaram aquelas armadilhas, há dezoito séculos, não eram, em absoluto, primitivas. A sua vantagem era a mente do Especialista ser superior.
Quando verificou que o Rei estava na última sala, indicou a seis dos guerreiros azuis que lhe protegessem a retirada, como estava previsto, e ele dirigiu-se ao palácio com os restantes. Usaram uma entrada de serviço do primeiro andar e viram-se, de imediato, numa sala com quatro portas. Recorrendo ao mapa no GPS, o americano e os seus sequazes passaram, com muito poucas hesitações, de uma sala para outra, até chegarem ao coração do edifício. Na sala da Última Porta encontraram o primeiro obstáculo: dois soldados estavam de guarda. Ao ver os intrusos, ergueram as lanças, mas antes de conseguirem dar um passo, dois punhais certeiros, lançados a vários metros de distância, cravaram-se-lhes no peito. Caíram de bruços.
Seguindo passo a passo o que mostrava o vídeo no seu ecrã, Tex Armadillo rodou os mesmos jades que o Rei tocara anteriormente.
A porta abriu-se pesadamente e os bandidos atravessaram-na, entrando numa sala redonda com nove portas estreitas, todas idênticas. As candeias acesas pelo monarca ardiam, projectando luzes vacilantes nas pedras preciosas que decoravam as portas.
Ali, o Rei colocara-se sobre um olho pintado no chão, tinha aberto os braços em cruz e a seguir tinha rodado num ângulo de quarenta e cinco graus, de modo que o seu braço direito apontava para a porta que devia abrir. Tex Armadillo imitou-o, seguido pelos supersticiosos homens do Escorpião, que iam com um punhal entre os dentes e outros dois nas mãos. O americano calculava que o ecrã não registara todos os riscos que enfrentariam, alguns deviam ser puramente psicológicos ou truques de ilusionismo. Tinha visto o Rei passar sem hesitar por algumas salas que pareciam vazias, mas isso não significava que o estivessem. Tinham de segui-lo com muita cautela.
- Não toquem em nada - avisou os seus homens.
- Ouvimos dizer que este sítio tem demónios, bruxos, monstros... - murmurou um deles no seu inglês arranhado.
- Essas coisas não existem - replicou Armadillo.
- E dizem também que uma terrível maldição acabará com quem puser as mãos no Dragão de Ouro...
- Asneiradas! Isso são superstições, ignorância pura. O homem ofendeu-se e, quando traduziu o comentário do americano, os outros estiveram prestes a amotinar-se.
- Eu julgava que vocês eram guerreiros, mas estou a ver que se assustam como crianças! Cobardes! - cuspiu Armadillo com infinito desprezo.
O primeiro bandido, indignado, levantou o punhal, mas Armadillo já tinha a pistola na mão e, nos seus olhos claros, havia um brilho assassino. Os homens azuis estavam arrependidos de ter aceite aquela aventura. O bando ganhava a vida com delitos mais simples, este era um terreno desconhecido. O acordo era roubar uma estátua, recebendo em troca um arsenal de modernas armas de fogo e um monte de dinheiro para comprar cavalos e tudo o que lhes apetecesse; no entanto, ninguém os avisou de que o palácio estava enfeitiçado. Já era tarde para recuarem, não tinham outro remédio a não ser seguir o americano até ao fim.
Depois de vencer, um a um, os obstáculos que protegiam o tesouro, Tex Armadillo e quatro dos seus homens entraram na sala do Dragão de Ouro. Apesar de disporem de tecnologia moderna, que lhes permitia ver o que o Rei fizera para não cair nas armadilhas, tinham perdido dois homens, que tiveram uma morte atroz, um no fundo de um poço e o outro com um veneno poderoso que lhe devorou a carne em poucos minutos.
Tal como o americano tinha imaginado, não enfrentavam apenas ciladas mortais, mas também ardis psicológicos. Para ele foi como descer a um inferno psicadélico, mas conseguiu manter-se calmo, repetindo para si próprio que uma grande parte das arrepiantes imagens que o assaltavam eram produto da sua imaginação. Ele era um profissional que exercia um controlo total sobre o seu corpo e a sua mente. Para o primitivismo dos homens da Seita do Escorpião, pelo contrário, a viagem até ao dragão foi muito pior, porque não sabiam distinguir o real do imaginário. Estavam habituados a enfrentar todo o tipo de riscos sem retroceder, mas tinham pavor de tudo o que era inexplicável. Aquele misterioso palácio punha-lhes os nervos em franja.
Ao entrar na sala do Dragão de Ouro não sabiam o que encontrariam, porque as imagens no ecrã não eram claras. Cegou-os o brilho das paredes, cobertas de ouro, onde se reflectiam as luzes de muitas candeias de azeite e de grossas velas de cera de abelha. O cheiro das candeias, do incenso e da mirra, que queimavam nos incensários, impregnava o ar. Pararam no umbral, ensurdecidos por um som rouco, gutural, impossível de descrever, que, numa primeira impressão era como se uma baleia soprasse para dentro de uma tubagem metálica. Pouco depois, no entanto, era possível distinguir uma certa coerência naquele ruído, e depressa se tornava evidente tratar-se de uma espécie de linguagem. O Rei, sentado na posição de lótus diante da estátua, estava de costas para eles e não os ouviu entrar, totalmente imerso naqueles sons e concentrado na sua tarefa.
O monarca salmodiava as linhas de um cântico, formando palavras estranhas e, depois, pela boca da estátua saía a resposta, que ecoava no aposento. Dessa forma produzia-se uma reverberação tão intensa, que se sentia na pele, no cérebro, em todos os nervos. O efeito era o de estarem no interior de um sino enorme.
Diante dos olhos de Tex Armadillo e dos guerreiros azuis estava o Dragão de Ouro em todo o seu esplendor: corpo de leão, patas com grandes garras, cauda enrolada de réptil, asas emplumadas, uma cabeça de aspecto feroz, com quatro cornos, olhos protuberantes e fauces abertas, revelando uma fila dupla de dentes afiados e uma língua bifurcada de serpente. A estátua, de ouro puro, media mais de um metro de comprimento e outro tanto de altura. O trabalho de ourivesaria era delicado e perfeito: em cada escama do corpo e da cauda brilhava uma pedra preciosa; as penas das asas terminavam em diamantes; a cauda tinha um desenho complicado de pérolas e esmeraldas; os dentes eram de marfim e os olhos dois rubis-estrela perfeitos, cada um deles do tamanho de um ovo de pomba. O animal mitológico estava sobre uma pedra negra, no centro da qual espreitava um pedaço de quartzo amarelado.
Os bandidos ficaram paralisados de surpresa durante uns instantes, tentando dominar o efeito das luzes, o ar rarefeito e aquele ruído ensurdecedor. Nenhum deles esperava que a estátua fosse tão magnífica; até o mais ignorante do grupo se apercebeu de que se encontravam diante de uma jóia de valor incalculável. Todos os olhos brilhavam de cobiça e cada um deles imaginou como mudaria a sua vida apenas com uma daquelas pedras preciosas.
Tex Armadillo também sucumbiu ao fascínio mágico da estátua, apesar de não se considerar um homem particularmente ambicioso. Dedicava-se a este trabalho porque gostava da aventura. Orgulhava-se de levar uma vida simples, de total liberdade, sem amarras sentimentais ou de qualquer tipo. Acarinhava a ilusão de se retirar na velhice, quando se cansasse de correr mundo, e passar os seus últimos anos no rancho, no Oeste americano, onde criava cavalos de corrida. Nalgumas das suas missões passaram-lhe fortunas pelas mãos, sem nunca ter sentido a tentação de se apoderar delas, bastando-lhe a sua comissão, que era sempre muito alta, mas, ao ver a estátua, pensou trair o Especialista. Com ela em seu poder nada conseguiria detê-lo, seria imensamente rico, poderia realizar todos os seus sonhos, até o de criar a sua própria organização, muito mais forte, inclusivamente, que a do Especialista. Entregou-se, por instantes, ao prazer dessa ideia, como quem se regozija com um sonho, mas depressa voltou à realidade. «Deve ser esta a maldição da estátua: provoca uma cobiça irresistível», pensou. Teve de fazer um esforço enorme para se concentrar no resto do plano. Fez um sinal silencioso aos homens e estes avançaram em direcção ao Rei com os punhais nas mãos.
CAPÍTULO 14
A caverna dos bandidos
Não foi difícil para Alexander e para os seus novos amigos chegar às proximidades da caverna dos guerreiros do Escorpião, porque Nadia lhes dera as indicações gerais e Borobá encarregara-se do resto. O animal ia empoleirado nos ombros de Alexander, com a cauda enrolada em volta do pescoço do rapaz e agarrado, com as duas mãos, ao seu cabelo. Não gostava de subir montanhas e menos ainda de descê-las. De vez em quando o rapaz dava-lhe umas palmadas para se libertar, porque a cauda o afogava e as mãozinhas ansiosas do macaco lhe arrancavam punhados de cabelo.
Assim que tiveram a certeza da localização da gruta, aproximaram-se com grandes precauções, utilizando os arbustos e as irregularidades do terreno para se esconderem. Não era visível qualquer actividade nos arredores, só se ouvia o vento entre os montes e, de vez em quando, o grito de uma ave. Naquele silêncio, os seus passos e até a sua respiração pareciam ensurdece-dores. Tensing seleccionou algumas pedras e guardou-as na prega que a sua túnica formava na cintura e depois, por telepatia, ordenou a Borobá que fosse espiar. Alexander respirou aliviado quando, finalmente, o macaco o soltou.
Borobá saiu a correr na direcção da caverna e regressou dez minutos depois. Não podia informá-los do que vira, mas Tensing viu na sua mente as imagens confusas de várias pessoas e dessa forma soube que a gruta não estava vazia, como receavam. Aparentemente, as cativas ainda lá estavam, vigiadas por alguns guerreiros azuis, mas a maior parte tinha partido. Embora isso facilitasse a tarefa imediata, Tensing considerou-a uma má notícia, porque significava que os outros estariam, certamente, em Tunkhala. Não tinha dúvidas de que, tal como tinha sugerido o jovem americano, o objectivo dos criminosos ao atacar o Reino Proibido não era raptar meia-dúzia de raparigas, mas roubar o Dragão de Ouro.
Arrastaram-se até às proximidades da caverna, onde estava um homem de cócoras, apoiado numa espingarda. A claridade dava-lhe de frente e, àquela distância, era um alvo fácil para Dil Bahadur, mas este, para usar o arco, tinha de se pôr de pé. Tensing fez-lhe sinal que se mantivesse deitado no chão e tirou uma das pedras que juntara. Pediu perdão mentalmente pela agressão que ia cometer e depois atirou o projéctil sem hesitar, com toda a força do seu poderoso braço. A Alexander pareceu-lhe que nem sequer tinha apontado, por isso a sua surpresa foi enorme quando o guarda caiu para a frente sem um gemido, desmaiado, depois de a pedra lhe ter acertado entre os olhos. O lama fez-lhes sinal para o seguirem.
Alexander agarrou na arma do guarda, embora nunca tivesse usado nada parecido e nem sequer soubesse se estava carregada. O peso da espingarda nas mãos deu-lhe confiança e despertou nele uma agressividade desconhe-cida. Sentiu uma tremenda energia interior, num segundo desapareceram as suas hesitações e dispôs-se a lutar como uma fera.
Os três entraram na caverna ao mesmo tempo. Tensing e Dil Bahadur davam gritos arrepiantes e, sem pensar no que fazia, Alexander imitou-os. Normalmente era uma pessoa bastante mais tímida e nunca tinha gritado daquela maneira. Toda a sua raiva, medo e força concentraram-se nesses gritos que, juntamente com a descarga de adrenalina que lhe corria nas veias, o fizeram sentir-se invencível, como o jaguar.
Dentro da caverna havia mais quatro bandidos, a mulher da cicatriz e as cativas, que estavam ao fundo, com os tornozelos amarrados. Apanhados de surpresa por aquele trio de atacantes que rugiam como loucos, os guerreiros azuis hesitaram apenas um instante e imediatamente deitaram mãos aos punhais. Mas bastou esse momento para que a primeira flecha de Dil Bahadur acertasse o alvo, atravessando o braço direito de um deles.
A flecha não deteve o bandido. Com um grito de dor, lançou o punhal usando a mão esquerda e, imediatamente, tirou outro da faixa que tinha à cintura. O punhal atravessou o ar com um assobio, directo ao coração do príncipe. Dil Bahadur não o evitou. A arma passou a roçar a sua axila, sem o ferir, enquanto ele levantava o braço para disparar a sua segunda flecha e avançava com calma, convencido de que o escudo mágico do excremento de dragão o protegia.
Tensing, pelo contrário, evitava os punhais que voavam à sua volta com uma perícia incrível. Uma vida inteira treinando-se na arte do Tao-shu permitia-lhe adivinhar a trajectória e a velocidade da arma. Não precisava de pensar, o corpo reagia por instinto. Com um salto rápido no ar e um pontapé directamente na mandíbula, deixou um dos homens fora de combate e, com uma pancada lateral do braço desarmou outro que apontava uma espingarda, sem lhe dar tempo de disparar. Depois enfrentou as facas.
Alexander não teve tempo de apontar. Apertou o gatilho e um tiro retumbou no ar, indo bater contra as paredes de rocha. Recebeu um empurrão de Dil Bahadur, que o fez cambalear e o salvou por uma unha negra de apanhar com um dos punhais. Quando viu que os bandidos que restavam de pé agarravam nas espingardas, agarrou na sua pelo cano, que estava quente, e correu, gritando a plenos pulmões. Sem saber o que fazia deu uma coronhada no ombro do homem mais próximo, não conseguindo aturdi-lo mas deixando-o confuso e permitindo que Tensing lhe pusesse as mãos em cima.
A pressão dos dedos dele num ponto-chave do pescoço paralisou-o completamente. A vítima sentiu um choque eléctrico da nuca aos calcanhares, as pernas dobraram-se e caiu como um boneco de trapos, com os olhos esbugalhados e um grito preso na garganta, incapaz de mover os próprios dedos.
Em poucos minutos, os quatro homens azuis estavam por terra. O guarda recuperara-se um pouco da pedrada, mas não teve oportunidade de deitar a mão aos punhais. Alexander encostou-lhe o cano da espingarda às fontes e ordenou-lhe que se juntasse aos outros. Disse-o em inglês, mas o tom de voz foi tão claro, que o homem não hesitou em obedecer. Enquanto Alexander os vigiava, apontando-lhes a arma que não sabia usar, tentando parecer o mais decidido e cruel possível, Tensing tratou de os amarrar com as cordas que havia na gruta.
Dil Bahadur, com o seu arco preparado, dirigiu-se para o fundo da caverna, onde estavam as raparigas. Separava-o delas uma distância de cerca de dez metros e um buraco com carvões em brasa, onde estavam algumas panelas com comida. Um grito deteve-o em seco. A mulher da cicatriz tinha o chicote numa mão e uma cesta destapada na outra, que agitava sobre as cabeças das cinco cativas.
- Mais um passo e solto os escorpiões em cima delas! - guinchou a carcereira.
O príncipe não se atreveu a disparar. À distância a que se encontrava conseguia matar a mulher sem qualquer dificuldade, mas não poderia evitar que os mortais aracnídeos caíssem em cima das raparigas. Os homens azuis, e, com certeza, aquela mulher também, eram imunes ao veneno, mas os outros corriam perigo de vida.
Todos se imobilizaram. Alexander manteve os olhos e a arma apontada aos seus prisioneiros, dois dos quais ainda não tinham sido amarrados por Tensing e esperavam a mais pequena oportunidade para os atacar. O lama não se atreveu a intervir. Do sítio onde se encontrava só podia usar contra a mulher os seus extraordinários poderes parapsicológicos. Tentou projectar com a mente uma imagem que a assustasse, uma vez que era demasiada a confusão e a distância que havia entre ambos para tentar hipnotizá-la. Distinguia vagamente a sua aura e apercebeu-se de que era um ser primitivo, cruel e assustado, a quem, seguramente, teriam de controlar pela força.
A pausa durou breves segundos, mas foram suficientes para quebrar o equilíbrio de forças. Mais um instante, e Alexander seria forçado a disparar contra os homens que se preparavam para saltar sobre Tensing. De repente aconteceu uma coisa absolutamente inesperada. Uma das raparigas atirou-se contra a mulher da cicatriz e as duas rolaram pelo chão, enquanto a cesta era projectada pelo ar, indo cair ao chão. Uma centena de escorpiões pretos espalhou-se pelo fundo da caverna.
A rapariga que tinha intervindo era Perna. Apesar da sua constituição magra, quase etérea, e de estar amarrada pelos tornozelos, fez frente à carcereira com uma decisão suicida, ignorando as chicotadas, que esta dava às cegas, e o perigo iminente dos escorpiões. Perna batia-lhe com os punhos, mordia-a e puxava-lhe o cabelo, lutando corpo a corpo, em clara desvantagem, porque, além de ser muito mais pesada, a outra tinha soltado o chicote para empunhar uma faca de cozinha que trazia à cintura. A atitude de Perna permitiu a Dil Bahadur largar o arco, agarrar numa lata de querosene, que os bandidos usavam nas suas lamparinas, espalhar o combustível no chão e pegar-lhe fogo com um carvão da fogueira. Uma cortina de chamas e fumo espesso elevou-se de imediato, chamuscando-lhe as pestanas.
Desafiando o fogo, o príncipe correu até junto de Perna, que estava de costas no chão, com aquele mulherão em cima, agarrando-lhe com as duas mãos no braço que se aproximava cada vez mais da sua cara. A ponta da faca já arranhava a cara de Perna, quando o príncipe agarrou na mulher pelo pescoço, a puxou para trás e, com uma pancada seca dada com as costas da mão nas fontes, a deixou atordoada.
Perna levantara-se e estava a dar palmadas desesperadas para apagar as chamas que lambiam a sua longa saia, mas a seda ardia como um pavio. O príncipe arrancou-a de um puxão e depois voltou-se na direcção das outras raparigas que gritavam de terror, encostadas à parede. Utilizando a faca da mulher da cicatriz, Perna cortou as cordas que a prendiam e ajudou Dil Bahadur a libertar as suas companheiras, conduzindo-as para o outro lado da cortina de fogo, onde os escorpiões se contorciam esturricados, até à saída da caverna, que se ia enchendo de fumo.
Tensing, o príncipe e Alexander arrastaram os prisioneiros para o exterior e deixaram-nos firmemente amarrados, dois a dois, costas contra costas. Borobá aproveitou o facto de os bandidos estarem indefesos para troçar deles, atirando-lhes bocados de terra e mostrando-lhes a língua, até Alexander o ter chamado. O macaco saltou-lhe para os ombros, enrolou-lhe a cauda ao pescoço e aferrou-se firmemente às suas orelhas. O jovem suspirou, resignado.
Dil Bahadur tirou a roupa de um dos bandidos e deu o seu hábito de monge a Perna, que estava seminua. Ficava-lhe tão grande que teve de dar duas voltas em redor da cintura. Com grande repugnância, o príncipe vestiu os trapos negros e hediondos do guerreiro do Escorpião. Embora preferisse mil vezes ficar vestido apenas com a sua tanga, apercebia-se de que, mal o Sol se pusesse e a temperatura descesse, precisaria de agasalho. Estava tão impressionado com a coragem e com a serenidade de Perna, que o sacrifício de lhe dar a sua túnica lhe pareceu mínimo. Não conseguia afastar os olhos dela. A jovem agradeceu-lhe aquele gesto com um sorriso tímido e vestiu o hábito rústico vermelho-escuro, que caracteriza os monges do seu país, sem suspeitar que estava vestida com a roupa do príncipe herdeiro.
Tensing interrompeu os olhares emotivos entre Dil Bahadur e Perna, para interrogar a jovem acerca do que ouvira na gruta. Esta confirmou o que ele suspeitava: o resto do bando planeava roubar o Dragão de Ouro e sequestrar o Rei.
- Entendo a razão do primeiro, porque a estátua é muito valiosa, mas não do segundo. Para que querem o Rei? - perguntou o príncipe.
- Não sei - respondeu ela.
Tensing observou rapidamente a aura dos seus prisioneiros, escolheu o mais vulnerável e pespegou-se à sua frente, fixando-o com o seu olhar penetrante. A expressão sempre doce dos seus olhos modificou-se por completo: as pupilas diminuíram até parecerem dois riscos e o homem teve a sensação de estar diante de uma víbora. O lama recitou com uma voz monótona algumas palavras em sânscrito, que só Dil Bahadur compreendeu e, em menos de um minuto, o assustado bandido estava em seu poder, mergulhado num sono hipnótico.
O interrogatório esclareceu alguns aspectos do plano da Seita do Escorpião e confirmou que já era tarde para impedir que o bando entrasse no palácio. O homem não acreditava que tivessem feito mal ao Rei. As instruções do americano eram para o capturarem com vida, porque queriam obrigá-lo a confessar alguma coisa. O homem não sabia mais nada.
A informação mais importante que obtiveram foi que o soberano e a estátua seriam levados para o mosteiro abandonado de Chenthan Dzong.
- Como pensam fugir dali? Aquele sítio é inacessível - perguntou o príncipe, admirado.
- Voando - disse o bandido.
- Devem ter um helicóptero - sugeriu Alexander, que percebia, em traços gerais, o que diziam, embora não soubesse a língua, porque as imagens se formavam na sua mente, por telepatia. Fora assim a maior parte da comunicação com o lama e com o príncipe, até Perna poder ajudar com os pormenores.
- É a Tex Armadillo que se referem? - perguntou Alexander. Não conseguiu averiguá-lo, porque os bandidos conheciam-no apenas pelo «americano» e Perna não o tinha visto.
Tensing tirou o homem do transe hipnótico e depois anunciou que deixariam ali os bandidos, depois de se certificarem de que não conseguiriam soltar-se. Não lhes faria mal passar uma ou duas noites ao relento, até serem encontrados pelos soldados reais ou, se tivessem sorte, pelos seus companheiros. Juntando as mãos à frente da cara e fazendo uma pequena reverência, pediu perdão aos malfeitores pelo tratamento desconsiderado que lhes dava. Dil Bahadur fez o mesmo.
- Rezarei para que vocês sejam resgatados antes de aparecerem os ursos pretos, os leopardos da neve ou os tigres - disse Tensing, com seriedade.
Alexander ficou bastante intrigado com estas demonstrações de cortesia. Se a situação fosse contrária e fossem eles os vencidos, aqueles homens assassiná-los-iam sem lhes fazerem tantas reverências.
- Talvez devêssemos ir ao mosteiro - propôs Dil Bahadur.
- O que será delas? - perguntou Alexander, apontando para Perna e para as outras raparigas.
- É possível que eu consiga conduzi-las até ao vale e avisar as tropas do Rei, para que também possam ir ao mosteiro - ofereceu-se Perna.
- Não creio que seja possível utilizar a rota dos bandidos, porque deve haver outros de vigia nestas montanhas. Terão de tomar um atalho - replicou Tensing.
- O meu mestre não estará a pensar no despenhadeiro... - murmurou o príncipe.
- Talvez não seja de todo uma má ideia, Dil Bahadur - disse o lama, sorrindo.
- Acaso o meu honorável mestre troça? - sugeriu o jovem. A resposta do lama foi um sorriso rasgado, que lhe iluminou o rosto, e um gesto, indicando às jovens que o seguissem. Puseram-se a andar por onde tinham vindo, para se reunirem com Nadia. Tensing ia à frente, ajudando as raparigas, que a muito custo o seguiam, porque calçavam sandálias, vestiam sarongs e não tinham experiência num terreno tão abrupto, mas nenhuma se queixava. Estavam muito gratas por terem escapado aos homens azuis e porque aquele monge gigantesco lhes inspirava uma confiança absoluta. Alexander, que fechava a fila atrás do príncipe e de Perna, deitou uma última vista de olhos ao patético grupo de bandidos que deixavam para trás. Parecia-lhe incrível ter participado numa luta com aqueles assassinos profissionais; essas coisas só se viam nos filmes de acção. Acabava de sobreviver a uma coisa quase tão violenta como a que vivera no Amazonas, quando índios e soldados se defrontaram numa batalha que deixou vários mortos, ou quando viu alguns corpos destroçados pelas garras das Bestas. Não conseguiu disfarçar um sorriso: definitivamente, fazer turismo com a sua avó Kate não era para fracos.
Nadia viu chegar os seus amigos em fila indiana pelo desfiladeiro que ia dar ao seu esconderijo e foi recebê-los emocionada, mas estacou ao ver um dos homens azuis no grupo. Um olhar mais atento revelou-lhe que era Dil Bahadur. Tinham demorado menos do que imaginara, mas essas poucas horas foram eternas para Nadia. Durante esse tempo chamou pelo seu animal totémico na esperança de os vigiar do ar, mas a águia branca não apareceu e teve de se resignar à espera, com um nó na garganta. Deu-se conta de que não conseguia transformar-se no grande pássaro sempre que queria. Isso só era possível nos momentos de muito perigo ou de extraordinária expansão mental, tal como no transe. A águia representava o seu espírito, a essência do seu carácter. Quando teve a primeira experiência com ela no Amazonas, admirou-se por ser justamente uma ave, porque ela sofria de vertigens e o medo das alturas paralisava-a. Nunca tinha sonhado voar como as outras crianças que conhecia. Se lhe tivessem perguntado anteriormente qual poderia ser o seu espírito totémico, teria respondido que com certeza seria o golfinho, porque se identificava com aquele animal inteligente e brincalhão. A águia, que voava tão graciosamente por cima dos cumes mais altos, ajudara-a muito a superar a sua fobia, embora às vezes ainda sentisse medo das alturas. Mesmo agora, a visão dos despenhadeiros abruptos que se abriam aos seus pés fazia-a tremer.
- Jaguar! - gritou, correndo na direcção do seu amigo, sem sequer olhar para os restantes componentes do grupo.
O primeiro impulso de Alexander foi abraçá-la, mas conteve-se a tempo. Não queria que os outros pensassem que Nadia era sua namorada ou alguma coisa do estilo.
- O que aconteceu? - perguntou ela.
- Nada interessante... - replicou ele com uma expressão de fingida indiferença.
- Como libertaram as raparigas?
- Muito facilmente: desarmámos os bandidos, demos-lhes uma sova, queimámos os escorpiões, enchemos a gruta de fumo, torturámos um deles para obter informações e deixámo-los amarrados, sem água nem comida, para morrerem aos poucos.
Nadia ficou parada de boca aberta, até Perna a abraçar. As duas raparigas contaram rapidamente uma à outra, as peripécias por que tinham passado desde que se separaram.
- Sabes alguma coisa acerca deste monge? - sussurrou Perna ao ouvido de Nadia, indicando Dil Bahadur.
- Muito pouco.
- Como se chama?
- Dil Bahadur.
- Isso quer dizer coração valente, um nome apropriado. Talvez me case com ele - disse Perna.
- Mas... se acabaste de o conhecer! E já te pediu que te casasses com ele? - murmurou Nadia, rindo.
- Não, regra geral os monges não se casam. Mas possivelmente pedirei eu, se tiver oportunidade - respondeu Perna, com naturalidade.
CAPÍTULO 15
O despenhadeiro
Tensing decidiu que tinham de comer alguma coisa e descansar antes de planear a descida das raparigas até ao vale. Dil Bahadur comentou que a farinha e a manteiga que tinham não chegava para todos, mas ofereceu as suas escassas provisões a Perna e às raparigas, que não comiam há muitas horas. Tensing mandou-o fazer uma fogueira para ferver água para o chá e derreter a banha de iaque. Assim que isto ficou pronto, o monge meteu as mãos nas pregas da sua túnica, onde habitualmente levava o seu saco de mendicante, e começou a tirar, como um mago, punhados de cereais, alhos, vegetais secos e outros alimentos para preparar o jantar, perante a surpresa de todos.
- Isto é como a multiplicação dos pães e dos peixes por Jesus Cristo, que lemos no Novo Testamento - comentou Alexander, maravilhado.
- O meu mestre é muito santo. Não é a primeira vez que o vejo fazer milagres - disse o príncipe, inclinando-se com profundo respeito diante do lama.
- Talvez o teu mestre não seja tão santo como rápido de mãos, Dil Bahadur. Na caverna dos bandidos sobravam provisões que não podiam perder-se - replicou o lama, inclinando-se também.
- O meu mestre roubou-as! - exclamou o discípulo, incrédulo.
- Digamos que talvez o teu mestre as tenha trazido emprestadas... - disse Tensing.
Os jovens trocaram um olhar de perplexidade e depois desataram a rir-se. Aquela explosão de alegria foi como abrir uma válvula por onde saiu a tremenda ansiedade e o medo em que tinham vivido durante dias. O riso tornou-se contagiante e depressa estavam todos no chão, sacudidos por gargalhadas incontroláveis, enquanto o lama mexia a panela de tsampa e servia amavelmente o chá sem alterar minimamente a serenidade do seu rosto.
Finalmente os jovens acalmaram-se um pouco, mas assim que o mestre lhes serviu o austero jantar, desataram novamente a rir-se.
- Talvez quando recuperarem a sensatez, queiram ouvir o meu plano... - sugeriu Tensing, sem perder a paciência.
O plano fê-los parar de rir imediatamente. O que o lama sugeria era, nem mais nem menos, fazer descer as raparigas pelo despenhadeiro. Foram até à beira espreitar e retrocederam desencorajados: eram mais ou menos oitenta metros de declive vertical.
- Mestre, nunca ninguém desceu por ali - disse Dil Bahadur.
- Talvez tenha chegado o momento de alguém ser o primeiro - replicou Tensing.
As raparigas puseram-se a chorar, à excepção de Perna que, desde o início, dera um exemplo de força às outras, e de Nadia, que decidiu ali mesmo preferir morrer às mãos dos bandidos ou gelada de frio num glaciar dos cumes, que descer por aquele precipício. Tensing explicou que, se usassem esse atalho, as raparigas poderiam chegar a uma aldeia do vale e pedir socorro antes que a noite caísse. De outro modo ficariam retidos cá em cima, com o perigo de que o restante bando do Escorpião os encontrasse. Tinham de devolver as raparigas às suas casas e avisar o general Myar Kunglung para que este resgatasse o Rei do mosteiro fortificado antes que o matassem. Quanto a ele e a Dil Bahadur, tomariam a dianteira para chegar a Chenthan Dzong o mais rapidamente possível.
Alexander não participou na discussão, mas pôs-se, em vez disso, a estudar o assunto. O que faria o pai nesta situação? Com certeza, John Cold encontraria uma maneira não apenas de descer, mas também de subir. O pai tinha escalado montes mais escarpados que aquele e fizera-o durante o Inverno, às vezes por desporto, outras vezes para ajudar pessoas que se feriam ou ficavam presas. John Cold era um homem prudente e metódico, mas não retrocedia perante qualquer perigo quando se tratava de salvar uma vida.
- Com o meu equipamento de rapel acho que consigo descer - disse.
- Quantos metros de altura terá isto? - perguntou Nadia, sem olhar para baixo.
- Muitos. As minhas cordas não chegam, mas há algumas saliências, alguns terraços, que nos permitem escalonar a descida - explicou Alex.
- Talvez seja possível - replicou Tensing, que tinha idealizado este plano audacioso depois de o ver resgatar Nadia do buraco para onde tinha caído.
- É bastante arriscado e com sorte consigo fazê-lo; mas como poderão descer estas raparigas, que não têm experiência de montanhismo? - perguntou Alexander.
- Possivelmente lembrar-nos-emos de alguma forma de as descer... - respondeu o lama, pedindo depois silêncio para rezar, porque estava há muitas horas sem o fazer.
Enquanto Tensing meditava sentado numa rocha com a cara voltada para o céu infinito, Alexander media a sua corda, contava os pitões que tinha, experimentava o arnês, calculava as possibilidades e discutia com o príncipe a melhor maneira de efectuar aquela manobra arriscada.
- Se ao menos tivéssemos um papagaio... - disse Dil Bahadur, suspirando.
Contou aos seus amigos estrangeiros que no Reino do Dragão de Ouro existia a antiga arte de fabricar papagaios de seda em forma de pássaro com asas duplas. Alguns eram tão grandes e fortes, que conseguiam suportar um homem de pé entre as asas. Tensing era especialista nesse desporto e ensinara-o ao seu discípulo.
O príncipe lembrava-se do seu primeiro voo, há alguns anos atrás, quando, ao visitar um mosteiro, passou de uma montanha para outra, utilizando as correntes de ar, que lhe permitiam dirigir o seu frágil veículo, enquanto seis monges seguravam na longa corda do papagaio.
- Muitos se devem ter matado assim... - imaginou Nadia.
- Não é tão difícil como parece - garantiu o príncipe.
- Deve ser como os planadores - comentou Alexander.
- Um avião com asas de seda... Acho que não gostaria de experimentar - disse Nadia, grata por não haver papagaios à mão.
Tensing rezava para que não houvesse vento, que os impediria de tentar a descida. Também rezava para que o rapaz americano tivesse a experiência e a determinação necessárias e para que aos restantes não lhes faltasse a coragem.
- É difícil calcular a altura daqui, mestre Tensing, mas se as minhas cordas chegarem até aquele terraço estreito que se vê lá em baixo, consigo fazê-lo - garantiu-lhe Alexander.
- E as raparigas?
- Desço-as uma a uma.
- Menos a mim - interrompeu Nadia, decididamente.
- Nadia e eu queremos ir consigo e com Dil Bahadur ao mosteiro - disse Alexander.
- E quem levará as raparigas até ao vale? - perguntou o lama.
- Talvez o honorável mestre me permita fazê-lo... - disse Perna.
- Cinco raparigas sozinhas? - interrompeu Dil Bahadur.
- Porque não?
- A decisão é tua, de mais ninguém, Perna - disse Tensing, observando, deleitado, a aura dourada da jovem.
- Possivelmente, qualquer um de vós pode fazê-lo melhor do que eu, mas se o mestre me autorizar e me apoiar com as suas orações, talvez eu possa cumprir a minha parte com honra - ofereceu-se a jovem.
Dil Bahadur estava pálido. Tinha decidido, com a certeza cega do primeiro amor, que Perna era a única mulher para ele neste mundo. O facto de não conhecer outras e de a sua experiência ser equivalente a zero, não entrava nos seus cálculos. Receava que ela caísse no fundo do despenhadeiro ou, no caso de chegar lá abaixo sã e salva, se perdesse ou enfrentasse outros riscos. Nesta região havia tigres e não podia esquecer-se da Seita do Escorpião.
- É muito perigoso - disse.
- Talvez o meu discípulo tenha decidido acompanhar as jovens... - sugeriu Tensing.
- Não, mestre, tenho de o ajudar a resgatar o Rei - murmurou o príncipe, baixando os olhos, envergonhado.
O lama levou-o à parte, onde os outros não pudessem ouvi-lo.
- Deves confiar nela. Tem um coração tão valente como o teu, Dil Bahadur. Se o vosso karma for juntar-se, isso acontecerá de qualquer forma. Se não for, nada do que fizeres mudará o curso da vida.
- Não disse que queria juntar-me a ela, mestre!
- Talvez não seja necessário dizê-lo - disse Tensing, sorrindo. Alexander decidiu aproveitar as horas de luz que restavam preparando o caminho para o dia seguinte. Primeiro que tudo tinha de se certificar de que, com as suas duas cordas de cinquenta metros cada, conseguiria fazê-lo. Passou meia hora explicando aos outros os princípios básicos do rapel, desde a colocação do arnês, no qual se descia sentado, até aos movimentos para alargar e esticar a corda. A segunda corda funcionava como uma segurança. Ele não precisava dela, mas era indispensável para as raparigas poderem descer.
- Agora vou descer até ao terraço e, daí, medirei a altura até ao fundo do despenhadeiro - anunciou, assim que prendeu a corda e colocou o arnês.
Todos observaram as manobras com grande interesse, menos Nadia, que nem se atrevia a debruçar-se sobre o abismo. Para Tensing, que passara a vida escalando como uma cabra as montanhas dos Himalaias, a técnica de Alexander parecia-lhe fascinante. Examinou, assombrado, a corda resistente e leve, os ganchos metálicos, as cilhas de segurança, o engenhoso arnês. Maravilhado, viu-o fazer um gesto de despedida com a mão e lançar-se para o vazio sentado no arnês. Com os pés, separava-se da parede vertical de rocha e, com as mãos, ia alargando a corda, de modo a deslizar em quedas de três a cinco metros, sem esforço aparente. Em menos de cinco minutos chegou à beira do despenhadeiro. De cima parecia minúsculo. Esteve aí uma meia hora, medindo a altura até baixo com a segunda corda, que levava enrolada à cintura. Depois, trepou com muito mais esforço do que utilizara para descer, mas sem grandes dificuldades. Lá em cima foi recebido com aplausos e gritos de alegria.
- Pode fazer-se, mestre Tensing, o terraço é amplo e seguro, as cinco raparigas e eu cabemos lá. A corda chega até lá abaixo e creio que posso ensiná-las a usar o arnês. Mas há um problema - disse Alexander.
- Qual?
- No terraço precisarei de duas cordas, porque elas não conseguem fazê-lo sem uma corda de segurança. Usa-se uma delas para segurar o arnês e a segunda fixa-se às rochas com um aparelho especial, que já deixei colocado, e que me permite ajudar as raparigas a descer pouco a pouco. É uma medida de segurança indispensável, caso percam o controlo da primeira corda ou, por qualquer razão, o sistema falhar. Como não têm experiência, é impossível fazerem-no sem essa segunda corda.
- Entendo. Mas temos duas cordas; qual é o problema?
- Utilizamo-las para chegar ao terraço. Depois, vocês soltam-nas para que as fixe ali e faça descer as raparigas até à base do despenhadeiro. Mas, como subirei, quando as duas cordas estiverem no terraço? Não consigo escalar uma parede vertical sem ajuda. Um montanhista experiente demoraria muitas horas e eu não me julgo capaz de o fazer. Ou seja, precisamos de uma terceira corda - explicou Alexander.
- Ou então de um cordel que nos permita içar as cordas do terraço até aqui - disse Dil Bahadur.
- Exactamente.
Não dispunham de cinquenta metros de cordel. A primeira ideia foi, evidentemente, cortar tiras finas da roupa que usavam, mas compreenderam que não podiam ficar seminus naquele clima porque morreriam de frio. Nenhuma das raparigas levava mais do que o fino sarong de seda e um casaquinho. Tensing pensou nos rolos de cordel de pêlo de iaque que guardava na sua ermida, muito longe dali, mas não tinham tempo de os ir buscar.
Nessa altura, o Sol já se pusera e o céu começava a ficar azul-índigo.
- É muito tarde. Talvez tenha chegado a hora de nos prepararmos para passar a noite mais ou menos confortavelmente. Amanhã veremos que solução nos ocorrerá - disse o lama.
- Esse cordel de que necessitamos, não precisa de ser muito forte, não é verdade? - perguntou Perna.
- Não, mas tem de ser comprido. Usá-lo-emos apenas para içar uma das cordas - replicou Alexander.
- Talvez nós o possamos fazer... - sugeriu ela.
- Como? Com quê?
- Todas temos o cabelo comprido. Podemos cortá-lo e entrançá-lo.
Uma expressão de assombro percorreu todos os rostos. As raparigas levaram as mãos à cabeça e acariciaram as suas longas madeixas, que lhes chegavam à cintura. Nunca uma tesoura tocava no cabelo de uma mulher do Reino Proibido, considerado o maior atributo de beleza e feminilidade. As solteiras usavam-no solto e perfumavam-no com almíscar e jasmim; as casadas untavam-no com óleo de amêndoas e entrançavam-no, fazendo penteados elaborados que decoravam com pauzinhos de prata, turquesas, âmbar e corais. Só as monjas renunciavam aos seus cabelos e passavam a sua vida de cabeça rapada.
- Talvez consigamos fazer umas vinte tranças finas de cada uma. Multiplicando por cinco, são cem tranças. Se cada uma medir cinquenta centímetros, temos cinquenta metros de cabelo. Eu consigo, possivelmente, obter umas vinte e quatro do meu cabelo, de modo que nos sobraria explicou Perna.
- Eu também tenho cabelo - ofereceu-se Nadia.
- É muito curto, não creio que sirva - comentou Perna. Uma das raparigas pôs-se a chorar desconsoladamente. Cortar o cabelo era um sacrifício demasiado grande, não podiam pedir-lhe isso, disse. Perna sentou-se junto dela e tratou de convencê-la, com suavidade, de que o cabelo era menos importante que as vidas de todos eles e que a segurança do Rei. E, de qualquer forma, voltaria a crescer-lhes.
- E enquanto não cresce, como posso aparecer em público? - perguntou a rapariga, a soluçar.
- Com imenso orgulho, porque terás contribuído para salvar o nosso país da Seita do Escorpião - replicou Perna.
Enquanto o príncipe e Alexander procuravam raízes e bosta seca de animais para acender uma pequena fogueira que os mantivesse aquecidos durante a noite, Tensing resolveu examinar Nadia e ajustar-lhe as ligaduras... Mostrou-se bastante satisfeito: o ombro ainda estava um pouco magoado, mas são, e Nadia não tinha dores.
Perna usou o canivete suíço de Alexander para cortar o cabelo. Dil Bahadur não conseguiu olhar, sentia-se perturbado; parecia-lhe um acto demasiado íntimo, quase doloroso. À medida que aqueles cabelos sedosos caíam e revelavam o pescoço esguio e a nuca frágil da jovem, a sua beleza transformava-se e Perna ficou parecida com um rapazinho.
- Agora posso mendigar como uma monja - riu-se, apontando para a túnica do príncipe, que. tinha vestida, e para a cabeça, onde se erguiam algumas madeixas entre as peladas.
As outras raparigas agarraram no canivete e começaram a rapar-se umas às outras. Depois sentaram-se em círculo a entrançar uma corda fina, negra e brilhante, com cheiro de almíscar e jasmim.
Descansaram o melhor que as circunstâncias permitiam no apertado refúgio de rocha. No Reino do Dragão de Ouro não era comum o contacto físico entre pessoas de sexos diferentes, excepto no caso das crianças, mas nessa noite tiveram de o fazer, porque o frio era muito e não dispunham de mais agasalhos além da roupa que traziam no corpo e duas peles de iaque. Tensing e Dil Bahadur tinham vivido nos picos e resistiam ao clima muito melhor que os restantes. Também estavam habituados a passar por privações, de modo que cederam as peles e a maior parte dos alimentos às raparigas. Para não ficar atrás dos outros dois homens, Alexander imitou-os, embora as suas tripas reclamassem com fome. Também repartiu em pedacinhos minúsculos uma tablete de chocolate que encontrou esmagada no fundo da mochila.
Como dispunham de muito pouco combustível, tinham de manter o fogo muito baixo, mas aquelas chamas fracas ofereciam-lhes alguma segurança. Pelo menos afastariam os tigres e os leopardos das neves, que habitavam esses montes. Numa tigela aqueceram água e prepararam chá com manteiga e sal, que os ajudou a suportar os rigores da noite.
Dormiram amontoados como uma ninhada, transmitindo calor uns aos outros, protegidos do vento na gruta onde se encontravam.
Dil Bahadur não se atreveu a ficar perto de Perna, como desejava, porque receou o olhar trocista do mestre. Apercebeu-se de que tinha evitado informá-la de que o Rei era seu pai e que ele não era um monge comum. Pareceu-lhe que não era o momento de o fazer, mas por outro lado sentia que essa omissão era tão grave como enganá-la. Alexander, Nadia e Borobá ajeitaram-se num abraço estreito e adormeceram profundamente, até o primeiro raio da aurora se insinuar no horizonte.
Tensing dirigiu a primeira oração da manhã e recitaram em coro Om manepadme hum várias vezes. Não adoravam uma divindade, uma vez que Buda era apenas um ser humano que tinha atingido a «iluminação» ou compreensão suprema. Enviavam as suas orações como raios de energia positiva para o espaço infinito e para o espírito que reina em tudo o que existe. Alexander, que crescera numa família de agnósticos que não praticavam nenhuma religião, maravilhava-se ao ver que no Reino Proibido até os actos mais quotidianos estavam impregnados de um sentido divino. A religião naquele país era uma forma de vida; cada pessoa cuidava do Buda que tinha dentro de si. Surpreendeu-se recitando o mantra sagrado com verdadeiro entusiasmo.
O lama abençoou os alimentos e repartiu-os, enquanto Nadia fazia circular as tigelas com chá quente.
- Possivelmente, este será um bonito dia, soalheiro e sem vento - anunciou Tensing, perscrutando o céu.
- Talvez se o honorável mestre o ordenasse, pudéssemos começar o mais depressa possível, porque o caminho até ao vale será longo - sugeriu Perna.
- Creio que, com um pouco de sorte, em menos de uma hora vocês estarão lá em baixo - disse Alexander, preparando o seu equipamento.
Pouco depois começou a descida. Alexander colocou o equipamento e desceu, em poucos minutos, como um insecto, até ao terraço que se destacava a meio da parede vertical do abismo. Perna declarou querer ser a primeira a segui-lo. Dil Bahadur recolheu a corda e colocou o arnês a Perna, explicando-lhe mais uma vez o mecanismo dos ganchos.
- Deves ir alargando pouco a pouco. Se houver um problema, não te assustes, porque eu te segurarei com a segunda corda até recuperares o ritmo, entendido? - perguntou.
- Talvez fosse conveniente não olhares para baixo. Apoiar-te-emos com os nossos pensamentos - acrescentou Tensing, afastando-se alguns passos para se concentrar e enviar energia mental a Perna.
Dil Bahadur passou pela sua cintura a corda, que estava fixa a uma fenda na rocha por um aparelho metálico, e fez sinal a Perna de que estava pronto. Ela aproximou-se do abismo e sorriu para disfarçar o pânico que a invadia.
- Espero que nos voltemos a ver - sussurrou Dil Bahadur, sem se atrever a dizer mais com receio de revelar o segredo de amor que o afogava desde que a vira pela primeira vez.
- Assim o espero também. Elevarei as minhas orações e farei oferendas para que consigam salvar o Rei... Tem cuidado - replicou ela, comovida.
Perna fechou os olhos por um instante, entregou a sua alma ao céu e atirou-se para o vazio. Caiu como uma pedra durante vários metros, até conseguir controlar o gancho que esticava a corda. Assim que aprendeu o mecanismo e adquiriu ritmo, pôde continuar a descida cada vez com mais segurança. Com as pernas, afastava-se das rochas e tomava impulso. A sua túnica flutuava no ar e, de cima, parecia um morcego. Antes do que esperava, ouviu a voz de Alexander dizendo-lhe que já faltava pouco.
- Perfeito! exclamou o rapaz quando a recebeu nos braços.
- É tudo? Acabou justamente quando eu começava a gostar - replicou ela.
O terraço era tão estreito e exposto que uma ventania tê-los-ia desequilibrado, mas tal como Tensing previra, o clima ajudava. De cima içaram o arnês e colocaram-no noutra das raparigas que estava aterrada e não tinha o carácter de Perna. Mas o lama cravou-lhe os seus olhos hipnóticos e conseguiu tranquilizá-la. Uma por uma desceram as quatro jovens sem grandes problemas porque, cada vez que ficavam presas ou se soltavam, Dil Bahadur as agarrava com a corda de segurança. Depois de estarem todas no rebordo estreito da montanha, tornava-se difícil mexer-se, porque o perigo de cair para o abismo era enorme. Alexander tinha previsto essa dificuldade e, no dia anterior, tinha colocado vários ganchos para que pudessem agarrar-se. Estavam prontos para iniciar a segunda parte da descida.
Dil Bahadur largou as cordas, que Alexander utilizou para repetir a mesma operação, desde o terraço até à base do precipício. Desta vez, Perna não tinha quem a recebesse em baixo, mas adquirira confiança e atirou-se sem vacilar. Pouco depois, as suas companheiras seguiram-na.
Alexander acenou-lhes, desejando com toda a sua alma que aquelas quatro raparigas de aspecto frágil, vestidas de festa e calçadas com sandálias douradas, guiadas por outra vestida de monja, conseguissem encontrar o caminho até à primeira aldeia. Viu-as afastar-se, encosta abaixo, na direcção do vale, até se transformarem em pontinhos minúsculos e, depois, desaparecerem. O Reino do Dragão de Ouro tinha muito poucas estradas para veículos e muitas delas ficavam intransitáveis durante as chuvas intensas ou as tempestades de neve, mas nesta época não havia problemas. Se as raparigas conseguissem chegar a uma estrada, certamente alguém as recolheria.
Alexander fez um sinal e Dil Bahadur soltou a longa trança de cabelo preto, com uma pedra amarrada na ponta. Depois de manobrar um pouco, de cima, para a orientar, esta caiu no terraço onde Alexander a apanhou. Enrolou uma corda e pendurou-a à cintura, depois amarrou a segunda à trança e pediu, por sinais, que a içassem. Dil Bahadur puxou a trança cuidadosamente, até ter a extremidade da corda no cume do desfiladeiro. Amarrou-a a um gancho e Alexander começou a subida.
CAPÍTULO 16
Os guerreiros yetis
Assim que se certificaram de que Perna e as outras raparigas iam em direcção ao vale, o lama, o príncipe, Alexander, Nadia e Borobá, iniciaram a marcha montanha acima. À medida que subiam sentiam mais o frio. Algumas vezes tiveram de utilizar os longos bordões dos monges para atravessar precipícios estreitos. Aquelas pontes improvisadas acabaram por ser mais seguras e firmes do que pareciam à primeira vista. Alexander, habituado a balançar-se a grandes altitudes quando praticava montanhismo com o pai, não tinha dificuldades em dar um passo sobre os bordões e saltar para o outro lado, onde o esperava a mão firme de Tensing, que ia à frente, mas Nadia não se teria atrevido a fazê-lo de boa saúde e menos ainda com um ombro deslocado. Dil Bahadur e Alexander esticavam uma corda, segurando-a um de cada lado da fenda, enquanto Tensing efectuava a proeza de atravessar com Nadia debaixo do braço, como um embrulho. A ideia era a corda poder dar-lhe alguma segurança no caso de escorregar, mas era tanta a sua experiência que os jovens nem sentiam o esticão quando passava, porque a mão do monge quase nem roçava a corda. Tensing balançava-se sobre os bordões apenas um instante, como se flutuasse e, antes de Nadia sucumbir ao pânico, já estava do outro lado.
- Talvez esteja enganado, honorável mestre, mas não me parece que esta seja a direcção de Chenthan Dzong - disse o príncipe passadas algumas horas, quando se sentaram um pouco para descansar e preparar um chá.
- Possivelmente, pela rota habitual demoraríamos vários dias e os bandidos levam-nos um grande avanço. Talvez não seja má ideia tomarmos um atalho... - replicou Tensing.
- O túnel dos yetis! - exclamou Dil Bahadur.
- Creio que necessitaremos de alguma ajuda para enfrentar a Seita do Escorpião.
- O meu honorável mestre pensa pedi-la aos yetis? -Talvez...
- Com todo o respeito, mestre, creio que os yetis têm tanto raciocínio como este macaco - replicou o príncipe.
- Nesse caso estamos bem, porque Borobá tem tanto raciocínio como tu - interrompeu Nadia, ofendida.
Alexander tentava seguir a conversa e captar as imagens que se forma-vam, por telepatia, na sua mente, mas não tinha a certeza do que falavam.
- Percebi bem? Referem-se ao yeti? Ao abominável homem das neves? - perguntou.
Tensing concordou.
- O professor Ludovic Leblanc procurou-o durante anos nos Himalaias e concluiu que não existe, que é só uma lenda - disse Alexander.
- Quem é esse professor? - quis saber Dil Bahadur.
- Um inimigo da minha avó Kate.
- Talvez não tivesse procurado onde devia... - sugeriu Tensing. Para Nadia e Alexander, a perspectiva de ver um yeti pareceu-lhes tão fascinante como o seu encontro extraordinário com as Bestas na prodigiosa cidade dourada do Amazonas. Aqueles animais pré-históricos tinham sido compa-rados com o abominável homem das neves, devido às suas pegadas e ao seu comportamento sigiloso. Daquelas Bestas também se dizia serem apenas uma lenda, mas eles tinham comprovado a sua existência.
- A minha avó vai ter um enfarte quando souber que vimos um yeti e não tirámos fotografias - suspirou Alexander, pensando que tinha colocado tudo na sua mochila menos uma máquina fotográfica.
Continuaram a marcha em silêncio, porque cada palavra lhes cortava a respiração. Nadia e Alexander sofriam mais com a falta de oxigénio, porque não estavam habituados àquelas altitudes. Doía-lhes a cabeça, estavam enjoados e, ao entardecer, encontravam-se ambos no limite das suas forças. De repente, Nadia começou a sangrar do nariz, dobrou-se e vomitou. Tensing procurou um sítio protegido e decidiu que descansariam aí. Enquanto Dil Bahadur preparava tsampa e fervia água para um chá medicinal, o lama aliviou o mal-estar das alturas de Nadia e de Alexander com as suas agulhas de acupunctura.
- Julgo que Perna e as outras raparigas já estão a salvo. Isso talvez signifique que o general Myar Kunglung depressa saberá que o Rei está no mosteiro... - disse Tensing.
- Como sabe, honorável mestre? - perguntou Alexander.
- A mente de Perna já não transmite tanta ansiedade. A sua energia está diferente.
- Já tinha ouvido falar de telepatia, mestre, mas nunca imaginei que funcionasse como um telemóvel.
O lama sorriu amavelmente. Não sabia o que era um telemóvel.
Os jovens instalaram-se entre as pedras, o mais abrigados que puderam, enquanto Tensing descansava a mente e o corpo, mas vigiava com um sexto sentido, porque aqueles picos eram o território dos grandes tigres brancos. A noite tornou-se, para eles, muito longa e muito fria.
Os viajantes chegaram à entrada do longo túnel natural que dava para o vale secreto dos yetis. Nessa altura, Nadia e Alexander estavam exaustos, tinham a pele queimada pelo reflexo do sol na neve e crostas nos lábios secos e gretados. O túnel era tão estreito e o cheiro a enxofre tão intenso, que Nadia julgou que iam morrer sufocados, mas para Alexander, que tinha penetrado nas entranhas da terra na Cidade dos Deuses Selvagens, não passou de um passeio. Por outro lado, Tensing, que media dois metros, mal conseguia passar nalguns sítios, mas como já tinha percorrido aquele caminho, avançava com confiança.
A surpresa de Nadía e de Alexander quando, finalmente, entraram no Vale dos Yetis foi enorme. Não estavam preparados para encontrar encravado nos cumes gelados dos Himalaias um lugar banhado de vapor quente, onde crescia uma vegetação inexistente no resto do mundo. Em poucos minutos o calor que não sentiam há dias voltou-lhes ao corpo, e puderam tirar os casacos. Borobá, que tinha viajado entorpecido sob a roupa de Nadia, colado ao corpo dela, deitou a cabeça de fora e, ao sentir o ar quente recuperou o seu bom humor habitual: estava no seu ambiente.
Se não estavam preparados para as altas colunas de vapor, para os charcos de águas sulfurosas e para a névoa quente do vale, para as flores roxas e carnudas e para os rebanhos de chegnos que vagueavam devorando o pasto duro e seco do vale, muito menos estavam para os yetis que, um pouco mais tarde, vieram ao seu encontro.
Uma horda de machos, armados de cacetes, enfrentou-os, gritando e dando saltos como energúmenos. Dil Bahadur preparou o arco, porque compreendeu que, vestido como estava com as roupas do bandido, os yetis podiam não o reconhecer. Instintivamente, Nadia e Alexander, que nunca imaginaram os yetis com aquele aspecto horrendo, colocaram-se atrás de Tensing. Este, pelo contrário, avançou confiante e, juntando as mãos diante da cara, inclinou-se e cumprimentou-os com energia mental e com as poucas palavras que conhecia no idioma deles.
Passaram dois ou três minutos eternos, antes de os cérebros primitivos dos yetis recordarem a visita do lama, efectuada há vários meses. Não se tornaram mais amáveis depois de os reconhecerem, mas deixaram, pelo menos, de brandir os cacetes a poucos centímetros dos crânios dos viajantes.
- Onde está Grr-ympr? - perguntou Tensing.
Sem deixar de grunhir e de os vigiar de perto, levaram-nos até à aldeia. Contente, o lama verificou que, contrariamente ao que vira há meses, os guerreiros estavam cheios de energia e na aldeia havia fêmeas e crias com aspecto saudável. Reparou que nenhum deles tinha a língua roxa e que o pêlo esbranquiçado, que os cobria totalmente da nuca aos pés, já não era uma pasta impenetrável de porcaria. Algumas fêmeas não só estavam mais ou menos limpas, como parecia terem também penteado o pêlo, o que o intrigou sobremaneira, porque ele ignorava tudo acerca da vaidade feminina.
A aldeia não tinha mudado, continuava a ser um monte de covis e de cavernas subterrâneas sob a crosta de lava petrificada que formava a maior parte do terreno. Sobre essa crosta havia uma fina camada de terra que, graças ao calor e à humidade do vale, era mais ou menos fértil e fornecia alimento aos yetis e aos seus únicos animais domésticos, os chegnos. Levaram-nos directamente à presença de Grr-ympr.
A feiticeira tinha envelhecido bastante. Quando a conheceram já era bastante idosa, mas agora parecia milenar. Se os outros pareciam mais saudáveis e limpos que antes, ela, pelo contrário, convertera-se num feixe de ossos torcidos cobertos por um pêlo oleoso. Pelo seu rosto horrível escorriam secreções do nariz, dos olhos e das orelhas. O cheiro a sujidade e decompo-sição que exalava era tão repugnante que nem sequer Tensing, com a sua longa experiência médica, conseguia suportá-lo. Comunicaram por telepatia e utilizando os poucos vocábulos que partilhavam.
- Vejo que o teu povo está saudável, Grr-ympr.
-A água cor de lavanda: proibida. Ao que a bebe: cacetadas - replicou ela, sumariamente.
- O remédio parece ser pior que a doença - disse Tensing, sorrindo.
- Doença: não há - afirmou a velhota, impermeável à ironia do monge.
- Fico muito contente. Nasceram crianças?
Ela mostrou com os dedos que tinham nascido dois e acrescentou no seu idioma que eram saudáveis. Tensing compreendeu sem dificuldade as imagens que se formavam na mente dela.
- Os teus companheiros, quem são? - grunhiu ela.
- Este já conheces, é Dil Bahadur, o monge que descobriu o veneno na água cor de lavanda da fonte. Os outros também são amigos e vêm de muito longe, de outro mundo.
- Para quê?
- Vimos pedir-te, com todo o respeito, a tua ajuda, honorável Grr-ympr. Precisamos dos teus guerreiros para resgatar um Rei, que foi sequestrado por uns bandidos. Somos apenas três homens e uma rapariga, mas com os teus guerreiros talvez consigamos vencê-los.
Deste palavreado, a velhota entendeu menos de metade, mas adivinhou que o monge vinha cobrar o favor que lhes fizera antes. Pretendia usar os seus guerreiros. Haveria uma batalha. Não gostou da ideia, principalmente porque andava há décadas a tentar manter a tremenda agressividade dos yetis sob controlo.
- Guerreiros lutam: guerreiros morrem. Aldeia sem guerreiros: aldeia morre também - resumiu.
- É verdade, o que te peço é um favor muito grande, honorável Grr-ympr. Possivelmente haverá uma luta perigosa. Não posso garantir a segurança dos teus guerreiros.
- Grr-ympr morrendo - murmurou a velhota, batendo no peito.
- Eu sei, Grr-ympr - disse Tensing.
- Grr-ympr morta: muitos problemas. Tu curar Grr-ympr: tu levar guerreiros - ofereceu Grr-ympr.
- Não consigo curar-te da velhice, honorável Grr-ympr. O teu tempo neste mundo terminou, o teu corpo está cansado e o teu espírito deseja partir. Não há nisso nada de mau - explicou o monge.
- Nesse caso, não guerreiros - decidiu ela.
- Porque receias morrer, honorável anciã?
- Grr-ympr: necessária. Grr-ympr manda: yetis obedecem. Grr-ympr morta: yetis lutam. Yetis matam, yetis morrem: fim concluiu ela.
- Entendo, não podes partir deste mundo porque receias que o teu povo sofra. Não há quem possa substituir-te?
Ela negou, tristemente. Tensing compreendeu que a feiticeira temia que, depois da sua morte, os yetis, que agora estavam saudáveis e enérgicos, voltassem a matar-se uns aos outros, como tinham feito anteriormente, até desaparecerem completamente da face da terra. Aquelas criaturas semi-humanas tinham dependido da força e da sabedoria da feiticeira durante várias gerações. Ela era uma mãe severa, justa e sábia. Obedeciam-lhe cegamente porque a julgavam dotada de poderes sobrenaturais; sem ela a tribo ficaria à deriva. O lama fechou os olhos e durante vários minutos os dois permaneceram com a mente em branco. Quando voltou a abri-los, Tensing anunciou o seu plano em voz alta, para que também Nadia e Alexander compreendessem.
- Se me emprestares alguns guerreiros, prometo que regressarei ao Vale dos Yetis e ficarei aqui durante seis anos. Com humildade, ofereço-me para te substituir, honorável Grr-ympr. Dessa forma podes partir em paz para o mundo dos espíritos. Cuidarei do teu povo, ensiná-lo-ei a viver o melhor possível, a não se matar entre si, a utilizar os recursos do vale. Treinarei o yeti mais capaz para que, passados seis anos, possa ser o chefe ou a chefe da tribo. É isto que ofereço...
Ao ouvir aquilo, Dil Bahadur pôs-se de pé de um salto e enfrentou o seu mestre, pálido de horror, mas o lama deteve-o com um gesto. Não podia perder a comunicação mental com a velhota.
Grr-ympr precisou de alguns minutos para assimilar o que o monge dissera.
- Sim - aceitou ela, com um enorme suspiro de alívio porque finalmente, estava livre para morrer.
Assim que tiveram um momento de privacidade, Dil Bahadur, com os olhos cheios de lágrimas, pediu uma explicação ao seu amado mestre. Como podia ter oferecido uma coisa daquelas à feiticeira? O Reino do Dragão de Ouro precisava muito mais dele que os yetis; ele não tinha concluído a sua educação, o mestre não podia abandoná-lo desta maneira, clamou.
- Possivelmente, serás rei antes do previsto, Dil Bahadur. Seis anos passam depressa. E, durante esse tempo, talvez possa ajudar um pouco os yetis.
- E eu? - clamou o jovem, incapaz de imaginar a vida sem o seu mentor.
- Talvez sejas mais forte e estejas mais bem preparado do que julgas... Dentro de seis anos penso deixar o Vale dos Yetis para educar o teu filho, o futuro monarca do Reino do Dragão de Ouro.
- Que filho, mestre? Não tenho nenhum.
- O que terás com Perna - replicou Tensing tranquilamente, enquanto o príncipe corava até às orelhas.
Nadia e Alexander seguiam a discussão com dificuldade, mas captaram o sentido e nenhum dos dois se manifestou admirado com a profecia de Tensing a respeito de Perna e Dil Bahadur ou com o seu plano de se converter em mentor dos yetis. Alexander pensou que há um ano teria qualificado tudo isto como demência, mas agora sabia como é misterioso o mundo.
Recorrendo à telepatia, às poucas palavras que aprendera no idioma do Reino Proibido, às que Dil Bahadur tinha aprendido em inglês e à incrível capacidade de Nadia para as línguas, Alexander conseguiu transmitir aos seus amigos que a avó tinha efectuado uma reportagem para a International Geographic sobre um tipo de puma que existia na Florida e que estava prestes a desaparecer. Estava confinado a uma região pequena e inacessível, não se cruzara e, reproduzindo-se sempre dentro da mesma família, enfraquecera e embrutecera. O seguro de vida de qualquer espécie é a diversidade. Como exemplo, explicou que se houvesse apenas um tipo de milho, rapidamente as pestes e as alterações do clima acabariam com ele, mas como existiam centenas de variedades, se uma perecia, as outras cresciam. A diversidade garantia a sobrevivência.
- O que aconteceu ao puma? - perguntou Nadia.
- Levaram para a Florida alguns especialistas que introduziram outros felinos semelhantes ao puma na região. Cruzaram-se e, em menos de dez anos, a raça tinha regenerado.
- Achas que isso acontece também com os yetis? - perguntou Dil Bahadur.
- Sim. Viveram demasiado tempo isolados, são muito poucos, cruzam-se apenas entre eles, por isso são tão fracos.
Tensing ficou a pensar no que dissera o rapaz estrangeiro. De qualquer forma, mesmo que os yetis saíssem do vale misterioso não teriam com quem cruzar-se porque, com certeza, não havia outros da sua espécie no mundo e nenhum ser humano estaria disposto a formar com eles uma família. Mas, mais cedo ou mais tarde, teriam de se integrar no mundo, era inevitável. Seria necessário fazê-lo com prudência, porque o contacto com as pessoas poderia ser-lhes fatal. Só no ambiente protegido do Reino do Dragão de Ouro isso seria possível.
Nas horas seguintes, os amigos comeram e descansaram um pouco para que os seus corpos esgotados recuperassem. Ao saber que havia luta pela frente todos os yetis queriam ir, mas Grr-ympr não permitiu porque a aldeia não podia ficar sem machos. Tensing avisou-os de que poderiam morrer, porque defrontariam uns seres humanos malvados chamados homens azuis, que eram muito fortes e tinham punhais e armas de fogo. Os yetis não sabiam o que eram essas coisas e Tensing explicou-lhes, o mais exageradamente que conseguiu, descrevendo o tipo de ferida que provocavam, os jorros de sangue e outros pormenores para entusiasmar os yetis. Isso renovou a frustração dos que tinham de permanecer no vale. Nenhum deles queria perder a oportunidade de se divertir lutando contra os humanos. Desfilaram, um por um, diante do lama, aos saltos, dando gritos arrepiantes e mostrando os dentes e os músculos, para o impressionar. Dessa forma, Tensing pôde seleccionar os dez que tinham pior carácter e a aura mais vermelha.
O lama examinou pessoalmente as couraças de couro dos yetis, que poderiam diminuir o efeito de uma punhalada, mas que eram ineficazes contra uma bala. Aquelas dez criaturas, apenas um pouco mais inteligentes que os chimpanzés, não conseguiriam vencer os homens do Escorpião, por mais ferozes que fossem, mas o lama contava com o elemento surpresa. Os homens azuis eram supersticiosos e, ainda que já tivessem ouvido falar do «abominável homem das neves», nunca tinham visto nenhum.
Por ordem de Grr-ympr, nessa tarde mataram um par de chegnos para dar as boas-vindas aos visitantes. Com bastante repugnância, porque não concebiam o sacrifício de nenhum ser vivo, Dil Bahadur e Tensing recolheram o sangue dos animais e pintaram o pêlo hirsuto dos guerreiros seleccionados. Utilizando tiras de pele, os cornos e os ossos mais compridos, fabricaram uns aterradores capacetes ensanguentados, que os yetis colocaram com guinchos de satisfação, enquanto as fêmeas e as crias pulavam de admiração. O mestre e o seu discípulo concluíram, contentes, que o aspecto dos yetis era de assustar o mais valente.
Os homens pretendiam que Nadia permanecesse na aldeia, mas foi inútil tentar convencê-la e acabaram por aceitar que ela fosse com eles. Alexander não a queria expor aos perigos que os aguardavam.
- É possível que nenhum de nós escape com vida, Águia... - argumentou.
- Nesse caso, eu teria de passar o resto da minha vida neste vale sem outra companhia além dos yetis. Não, obrigada. Irei com vocês, Jaguar - replicou ela.
- Aqui, pelo menos, estarias relativamente a salvo. Não sei o que iremos encontrar nesse mosteiro abandonado, mas com certeza não será nada agradável.
- Não me trates como se eu fosse uma miúda. Sei cuidar de mim, fi-lo durante treze anos e julgo que posso ser útil.
- Está bem, mas farás exactamente o que eu disser - decidiu Alex.
- Nem sonhes. Farei o que me parecer adequado. Tu não és um especialista, de lutas percebes tão pouco como eu - replicou Nadia, e ele teve de admitir que ela não deixava de ter razão.
- Talvez o melhor fosse partir esta noite. Assim chegaríamos ao amanhecer ao outro lado do túnel e aproveitaríamos a manhã para chegar a Chenthan Dzong - propôs Dil Bahadur e Tensing mostrou-se de acordo.
Depois de encherem a barriga com um jantar suculento, os yetis deitaram-se por terra a roncar, sem tirarem os novos elmos, que tinham adoptado como símbolo de coragem. Nadia e Alexander estavam tão esfomeados que devoraram a sua porção de carne assada de chegno, apesar do seu sabor amargo e dos pêlos chamuscados que ainda trazia. Tensing e Dil Bahadur prepararam a sua tsampa e o chá, depois sentaram-se a meditar voltados para a imensidão do firmamento, cujas estrelas não conseguiam ver. À noite, quando a temperatura nas montanhas baixava, o vapor das fumarolas transformava-se numa espessa neblina que cobria o vale como um manto de algodão. Os yetis nunca tinham visto as estrelas e, para eles, a Lua era uma auréola inexplicável de luz azul que às vezes rompia a névoa.
CAPÍTULO 17
O mosteiro fortificado
Tex Armadillo preferia o plano inicial para a retirada de Tunkhala com o Rei e com o Dragão de Ouro, que consistia num helicóptero provido de uma metralhadora, que no momento preciso desceria nos jardins do palácio. Ninguém teria podido detê-los. A força aérea daquele país compunha-se de quatro aviões antiquados adquiridos na Alemanha há mais de vinte anos e que só voavam pelo Ano Novo, atirando pássaros de papel sobre a capital para alegria das crianças. Pô-los em acção para os perseguir levaria horas, possibilitando ao helicóptero tempo de sobra para chegar a um local seguro. No entanto, o Especialista mudou de plano à última hora sem dar grandes explicações. Limitou-se a dizer que não convinha chamar a atenção e, menos ainda, metralhar os pacíficos habitantes do Reino Proibido, porque isso provocaria um escândalo internacional. O seu cliente, o Coleccionador, exigia discrição.
De modo que Armadillo teve de aceitar o segundo plano, em sua opinião muito menos expedito e seguro que o primeiro. Assim que deitou a luva ao Rei no Recinto Sagrado, fechou-lhe a boca com fita-cola e deu-lhe uma injecção no braço que, em cinco segundos, o deixou anestesiado. As instruções eram para não o magoar, porque o monarca tinha de chegar vivo e saudável ao mosteiro, onde deviam extrair-lhe a informação necessária para decifrar as mensagens da estátua.
Cuidado, o Rei sabe artes marciais, pode defender-se. Mas aviso-vos que, se o ferirem, pagarão caro - dissera o Especialista.
Tex Armadillo começava a perder a paciência com o chefe, mas não havia tempo para ruminar o seu descontentamento.
Os quatro bandidos estavam assustados e impacientes, mas isso não os impediu de roubar alguns candelabros e perfumadores de ouro. Estavam prontos para arrancar o precioso metal das paredes com os punhais, quando o americano lhes ladrou as ordens.
Dois deles agarraram no corpo inerte do Rei pelos ombros e pelos tornozelos, enquanto os restantes retiravam a pesada estátua de ouro do pedestal de pedra negra, onde tinha permanecido durante dezoito séculos. Ainda se sentia na sala o eco do cântico e dos estranhos sons do dragão. Tex Armadillo não podia parar para examiná-lo, mas calculou que devia ser como um instrumento musical. Não acreditava que conseguisse prever o futuro, essa era uma patranha para ignorantes, mas, de facto, isso não o interessava: o valor intrínseco do objecto era incalculável. Quanto ganharia o Especialista com esta missão? Muitos milhões de dólares, certamente. E a ele, quanto lhe cabia? Em comparação, apenas uma gorjeta, pensava.
Dois dos homens azuis passaram umas cilhas de cavalo sob a estátua e levantaram-na desta forma, com enorme esforço. Nessa altura, Armadillo compreendeu por que razão o Especialista tinha exigido que levasse seis bandidos. Agora faziam-lhe falta os dois que tinham morrido nas armadilhas do palácio.
A volta não foi mais fácil, apesar de já conhecerem o caminho e poderem evitar vários dos obstáculos, porque levavam o Rei e a estátua, que lhes retardavam os movimentos. Depressa se deu conta, no entanto, de que ao fazer o caminho inverso as armadilhas não se activavam. Isso tranquilizou-o, mas não se apressou nem baixou as defesas porque receava que aquele palácio albergasse muitas surpresas desagradáveis. No entanto, chegaram à Última Porta sem imprevistos. Ao atravessarem o umbral, viram no chão os corpos dos guardas reais apunhalados tal como os tinham deixado. Nenhum deles se apercebeu de que um dos jovens soldados ainda respirava.
Recorrendo ao GPS, os foragidos percorreram o labirinto de salas com várias portas e chegaram finalmente ao jardim do palácio ainda na sombra, onde os esperava o resto do bando. Tinham aprisionado Judit Kinski. De acordo com as ordens, ela não devia ser adormecida com injecções como tinham feito ao Rei, e também não a podiam maltratar. Os bandidos, que nunca tinham visto a mulher, não percebiam qual era o objectivo de a levarem com eles e Tex Armadillo não deu explicações.
Tinham roubado um camião do palácio, que esperava na rua, junto dos cavalos dos bandidos. Tex Armadillo evitou olhar de frente para Judit Kinski, que se mantinha bastante tranquila, dadas as circunstâncias, e mandou os seus homens colocarem-na no veículo junto do Rei e da estátua, cobertos com uma lona. Pôs-se ao volante, porque mais ninguém sabia conduzir, acompanhado pelo chefe dos guerreiros azuis e outro dos bandidos. Enquanto o camião se dirigia para o estreito caminho das montanhas, os outros dispersaram-se. Reunir-se-iam mais tarde num local do Bosque dos Tigres, como ordenara o Especialista e, daí, empreenderiam a marcha até Chenthan Dzong.
Tal como estava previsto, o camião teve de parar à saída de Tunkhala, onde o general Myar Kunglung tinha colocado uma patrulha para controlar o caminho. Foi uma brincadeira de crianças para Tex Armadillo e para os bandidos colocar fora de combate os três homens que faziam guarda e vestir os seus uniformes. O camião estava pintado com os emblemas da casa real, de modo que puderam passar pelos restantes controlos sem serem incomodados e chegar assim ao Bosque dos Tigres.
O imenso bosque tinha sido originalmente a coutada de caça dos reis, mas há vários séculos que ninguém se dedicava a esse cruel desporto. O imenso parque convertera-se numa reserva natural, onde proliferavam as espécies de plantas e de animais mais raros do Reino Proibido. Na Primavera os tigres fêmea iam para lá ter as suas crias. O clima único do país que, consoante as estações, oscilava entre a humidade temperada dos trópicos e o frio invernoso das alturas montanhosas, dava origem a uma flora e fauna extraordinárias, um verdadeiro paraíso para os ecologistas. A beleza do lugar, com as suas árvores milenares, os seus regatos cristalinos, as suas orquídeas, rododendros e aves coloridas, não teve qualquer efeito em Tex Armadillo ou nos bandidos. A única coisa que lhes interessava era não atrair os tigres e sair dali o mais depressa possível.
O americano libertou Judit Kinski.
- O que está a fazer?! - exclamou o chefe dos bandidos, ameaçadora-mente.
- Não pode fugir. Para onde iria? - disse o outro, em jeito de explicação.
Em silêncio, a mulher esfregou os pulsos e os tornozelos, onde as cordas tinham deixado marcas vermelhas. Os olhos dela observavam o local, seguiam cada movimento dos seus raptores e voltavam sempre a Tex Armadillo, que continuava a desviar os olhos como se não resistisse ao olhar dela. Sem pedir licença, Judit aproximou-se do Rei e, com delicadeza, para não o magoar nos lábios, foi tirando aos poucos a fita-cola que o amordaçava. Inclinou-se e colocou-lhe o ouvido no peito.
- Depressa passará o efeito da injecção - comentou Armadillo.
- Não lhe dêem mais que o coração pode falhar-lhe - disse ela, num tom de voz que não parecia uma súplica, mas uma ordem, cravando as suas pupilas castanhas em Tex Armadillo.
- Não será necessário. Além do mais ele terá de montar um cavalo, de modo que é melhor ir despertando - replicou ele, voltando-lhe as costas.
Quando os primeiros raios de sol atravessaram as copas cerradas, a luz irrompeu dourada, como mel espesso, acordando os macacos e os pássaros num coro alvoroçado. Do chão evaporava-se o orvalho da noite, envolvendo a paisagem numa bruma amarela que esfumava os contornos das árvores gigantescas. Um casal de ursos panda baloiçava-se num dos ramos por cima das suas cabeças. Já amanhecia quando o bando do Escorpião finalmente se reuniu. Assim que a luz se tornou suficiente, Armadillo dedicou-se a tirar fotografias da estátua com uma máquina Polaroid, depois deu ordens para a cobrirem com a mesma lona que tinham usado no camião e amarrarem-na com cordas.
Tinham de abandonar o veículo e continuar, montanha acima, no lombo dos cavalos, por veredas quase intransitáveis que ninguém usava desde que o terramoto mudara a geografia do sítio e Chenthan Dzong, bem como outros mosteiros da região, foi abandonado. Os guerreiros azuis, que passavam a vida em cima dos cavalos e estavam habituados a todo o tipo de terrenos, eram certamente os únicos capazes de lá chegar. Conheciam bem as montanhas e sabiam que, uma vez paga a sua recompensa em dinheiro e armas, poderiam chegar ao norte da índia em três ou quatro dias. Por outro lado, Tex Armadillo contava com o helicóptero, que devia recolhê-lo no mosteiro juntamente com o saque.
O Rei tinha acordado, mas o efeito da droga persistia, estava confuso e enjoado, sem saber o que tinha acontecido. Judit Kinski ajudou-o a sentar-se e explicou-lhe que tinham sido raptados e que os bandidos tinham roubado o Dragão de Ouro. Tirou um pequeno cantil da carteira, que por milagre não se perdera na aventura, e deu-lhe a beber um gole de uísque. O álcool reanimou-o e ele conseguiu sentar-se.
- O que significa isto?! - exclamou o Rei num tom de voz autoritário que ninguém ouvira anteriormente.
Ao ver que estavam a colocar a estátua numa plataforma metálica com rodas que seria puxada por cavalos, compreendeu a dimensão da desgraça.
- Isto é um sacrilégio! O Dragão de Ouro é o símbolo do nosso país. Existe uma maldição muito antiga contra quem profanar a estátua - avisou o Rei.
O chefe dos bandidos levantou o braço para o espancar, mas o americano afastou-o com um empurrão.
- Cale-se e obedeça, se não quiser mais problemas – ordenou ao monarca.
- Libertem a menina Kinski, ela é uma estrangeira, não tem nada a ver com este assunto - replicou o soberano com voz firme.
- Já me ouviu, cale-se ou ela pagará as consequências, entendido? - advertiu-o Armadillo.
Judit Kinski agarrou num braço do Rei e sussurrou-lhe que, por favor, ficasse quieto porque de momento não podiam fazer nada, mais valia esperar que surgisse uma oportunidade para agirem.
- Vamos, não percamos mais tempo - ordenou o chefe dos bandidos.
- O Rei ainda não pode montar - disse Judit Kinski, ao vê-lo vacilar como um ébrio.
- Montará com um dos meus homens até se recompor - decidiu o americano.
Armadillo lançou o camião numa ribanceira, onde ficou meio enterrado. Depois, taparam-no com ramos e, pouco depois, empreenderam a marcha em fila indiana em direcção à montanha. O dia estava claro, mas os cumes dos Himalaias desapareciam entre manchas de nuvens. Tinham de subir continuamente, passando por uma região de bosque semitropical, onde cresciam bananeiras, rododendros, magnolias, hibiscos e muitas outras espécies. Com a altitude, a paisagem mudava abruptamente, o bosque desaparecia e começavam os perigosos desfiladeiros de montanha, cortados frequentemente por penhascos que rolavam dos cumes ou por quedas de água, que transformavam o chão num lodaçal escorregadio. A subida era arriscada, mas o americano confiava na perícia dos homens azuis e na força extraordinária dos seus corcéis. Assim que chegassem às montanhas não conseguiriam alcançá-los, porque ninguém suspeitava onde se encontravam e, de qualquer forma, levavam um grande avanço.
Tex Armadillo nem suspeitava que, enquanto levava a cabo o roubo da estátua no palácio, a caverna dos bandidos tinha sido arrasada e que os seus ocupantes estavam amarrados dois a dois, esfomeados, com frio e cheios de medo de que aparecesse um tigre e os transformasse em jantar. Os prisioneiros tiveram sorte porque, antes de aparecerem as feras, tão abundantes naquela região, apareceu um destacamento de soldados reais. Perna indicara-lhes a localização do acampamento da Seita do Escorpião.
A jovem tinha conseguido chegar com as suas companheiras a uma estrada rural onde foram, finalmente, encontradas por um camponês que levava os seus vegetais para o mercado numa carroça puxada por cavalos. Primeiro julgou que eram monjas, devido às cabeças rapadas, mas chamou-lhe a atenção todas elas, excepto uma, estarem vestidas de festa. O homem não tinha acesso ao jornal ou à televisão, mas soubera pela rádio, como todos os outros habitantes do país, que seis jovens tinham sido sequestradas. Como não tinha visto as suas fotografias, não pôde reconhecê-las, mas bastou-lhe um olhar para se aperceber de que aquelas raparigas estavam em apuros. Perna postou-se a meio do caminho de braços abertos, obrigando-o a parar, e contou-lhe em poucas palavras a sua situação.
- O Rei está em perigo, tenho de conseguir ajuda imediatamente - concluiu.
O camponês deu meia volta e levou-as a trote até ao casario de onde vinha. Aí arranjaram um telefone e, enquanto Perna tentava estabelecer ligação com as autoridades, as suas companheiras recebiam os cuidados das mulheres da aldeia. As raparigas, que tinham dado mostras de muita coragem durante aqueles dias terríveis, foram-se abaixo ao saber-se a salvo e choravam, pedindo que as devolvessem o mais depressa possível às suas famílias. Mas Perna não pensava nisso, mas em Dil Bahadur e no Rei.
O general Myar Kunglung pôs-se ao telefone assim que o avisaram do sucedido e falou directamente com Perna. Ela repetiu o que sabia mas absteve-se de mencionar o Dragão de Ouro, primeiro, porque não tinha a certeza de que os bandidos o tivessem roubado e, segundo, porque percebeu instintivamente que, sendo assim, não convinha que o povo o soubesse. A estátua encarnava a alma da nação. Não lhe cabia a ela propagar uma notícia que podia ser falsa, decidiu.
Myar Kunglung deu instruções ao posto de guarda mais próximo, para que fossem buscar as raparigas à aldeia e as levassem para a capital. A meio caminho, ele próprio lhes saiu ao encontro, levando consigo Wandgi e Kate Cold. Ao ver o pai, Perna saltou do jipe onde viajava e correu para o abraçar. O pobre homem chorava como um bebé.
- O que te fizeram? - perguntava Wandgi, examinando a filha por todos os lados.
- Nada, papá, não me fizeram nada, juro-te; mas isso agora não importa, temos de resgatar o Rei, que corre um perigo mortal.
- Isso compete ao exército, não a ti. Tu voltas comigo para casa!
- Não posso, papá! O meu dever é ir a Chenthan Dzong!
- Porquê?
- Porque o prometi a Dil Bahadur - replicou ela, corando. Myar Kunglung trespassou a jovem com o seu olhar de raposa e alguma coisa deve ter interpretado na cor avermelhada das faces e no tremor dos lábios dela, porque se inclinou profundamente diante do guia, com as mãos diante da cara.
- Talvez o honorável Wandgi permita que a sua corajosa filha acompanhe este humilde general. Creio que será bem cuidada pelos meus soldados - pediu.
O guia compreendeu que, apesar da reverência e do tom de voz, o general não aceitaria um não por resposta. Teve de permitir que Perna partisse, pedindo ao céu que a trouxesse de volta sã e salva.
A boa nova de que as jovens tinham escapado às garras dos seus raptores, abalou o país. No Reino Proibido, as notícias circulavam de boca em boca com tanta rapidez que, quando quatro das raparigas apareceram na televisão contando as suas peripécias, com as cabeças cobertas por xailes de seda, já toda a gente sabia. As pessoas saíram à rua para festejar, levaram flores de magnolia às famílias das jovens e aglomeraram-se nos templos para fazer oferendas de agradecimento. As rodas e as bandeiras de oração elevavam no ar a alegria irreprimível daquela nação.
A única que não teve motivos para celebrar foi Kate Cold, que estava à beira de um colapso nervoso porque Nadia e Alexander continuavam ainda perdidos. Naquele momento ia cavalgando em direcção a Chenthan Dzong, juntamente com Perna e Myar Kunglung, à cabeça de um destacamento de soldados, por um caminho de curvas que serpenteava na direcção dos cumes. Perna contara-lhes o que ouvira da boca dos bandidos acerca do Dragão de Ouro. O general confirmou as suas suspeitas.
- Um dos guardas que vigiavam a Última Porta sobreviveu à punhalada e viu-os levarem o nosso amado Rei e o Dragão. Isto deve permanecer em segredo, Perna. Fizeste bem em não mencioná-lo pelo telefone. A estátua vale uma fortuna, mas não percebo porque levaram o Rei... - disse.
- O mestre Tensing, o seu discípulo e os dois jovens estrangeiros foram para o mosteiro. Levam-nos muitas horas de avanço. Possivelmente chegarão antes de nós - informou-o Perna.
- Essa pode ser uma grave imprudência, Perna. Se alguma coisa acontecer ao príncipe Dil Bahadur, quem ocupará o trono...? - perguntou o general, suspirando.
- Príncipe? Que príncipe? - interrompeu Perna.
- Dil Bahadur é o príncipe herdeiro. Não sabias, rapariga?
- Ninguém mo disse. De qualquer forma, não acontecerá nada ao príncipe - afirmou ela, mas imediatamente se apercebeu de que tinha cometido uma falta de cortesia e corrigiu-a: - Quer dizer, possivelmente o karma do honorável príncipe é resgatar o nosso amado soberano e sobreviver ileso...
- Talvez... - acedeu o general, preocupado.
- Não pode enviar aviões ao mosteiro? - sugeriu Kate impaciente perante uma guerra levada a cabo a cavalo, como se tivessem retrocedido vários séculos.
- Não há onde aterrar. Talvez um helicóptero possa fazê-lo, mas é necessário um piloto bastante experiente, porque teria de descer num funil de correntes de ar - explicou-lhe o general.
- Possivelmente, o honorável general estará de acordo comigo em que é preciso tentá-lo... - rogou Perna, com os olhos brilhantes de lágrimas.
- Só há um piloto capaz de o fazer e vive no Nepal. É um herói, o mesmo que há alguns anos subiu de helicóptero ao Evereste para salvar alguns alpinistas.
- Lembro-me do caso, o homem é muito famoso, entrevistámo-lo para a International Geographic - comentou Kate.
- Talvez consigamos comunicar com ele e trazê-lo nas próximas horas - disse o general.
Myar Kunglung não desconfiava que esse piloto fora contratado com bastante antecedência pelo Especialista e, nesse mesmo dia, voava do Nepal para os cumes do Reino Proibido.
A coluna composta por Tensing, Dil Bahadur, Alexander, Nadia com Borobá ao ombro e os dez guerreiros yetis, aproximou-se do despenhadeiro onde se erguiam as ruínas de pedra de Chenthan Dzong. Os yetis, bastante excitados, grunhiam, empurravam-se e davam dentadas amistosas entre eles, preparando-se, felizes, para o prazer de uma batalha. Há muitos anos que esperavam por uma oportunidade de se divertir a sério como a que tinham agora. Tensing tinha de parar de vez em quando para os acalmar.
- Mestre, acho que finalmente me lembro onde já ouvi o idioma dos yetis: nos quatro mosteiros onde me ensinaram o código do Dragão de Ouro - sussurrou Dil Bahadur a Tensing.
- Talvez o meu discípulo também se lembre de que, na nossa visita ao Vale dos Yetis, lhe disse que havia uma razão importante pela qual lá fôramos - replicou o lama, no mesmo tom de voz.
- Tem a ver com a língua dos yetis?
- Possivelmente... - disse Tensing, sorrindo.
O espectáculo era surpreendente. Estavam rodeados por uma beleza impressionante: cumes cobertos de neve, rochas enormes, cascatas, precipícios cortados a pique nos montes, corredores de gelo. Ao ver aquela paisagem, Alexander Cold compreendeu por que razão os habitantes do Reino Proibido acreditavam que o pico mais alto do seu país, a sete mil metros de altura, era o mundo dos deuses. O jovem americano sentiu que o seu íntimo se enchia de luz e de ar limpo, que alguma coisa se abria na sua mente, que a cada minuto mudava, amadurecia, crescia. Pensou que seria muito triste deixar este país e regressar à falsamente denominada civilização.
Tensing interrompeu-lhes os pensamentos para lhe explicar que os dzongs, ou mosteiros fortificados, que existiam apenas no Butão e no Reino do Dragão de Ouro, eram uma fusão de convento de monges e caserna de soldados. Erguiam-se na confluência dos rios e nos vales, para proteger as povoações dos arredores. Construíam-se sem planos nem pregos, sempre de acordo com o mesmo desenho. O palácio real em Tunkhala fora, originalmente, um destes dzongs, até as necessidades do governo obrigarem a uma ampliação e modernização, convertendo-o num labirinto de mil aposentos.
Chenthan era uma excepção. Erguia-se sobre um terraço natural tão escarpado, que era difícil imaginar como levaram os materiais e construíram o edifício, que resistiu a tempestades de Inverno e a avalanchas durante séculos, até ter sido destruído pelo terramoto. Existia uma vereda estreita escavada na rocha, mas era pouco utilizada porque os monges tinham pouco contacto com o resto do mundo. Esse caminho, praticamente talhado na montanha, dispunha de várias pontes de madeira e cordas, suspensas sobre os precipícios. A rota não era utilizada desde o terramoto e as pontes estavam em muito mau estado, com as madeiras apodrecidas e metade das cordas cortadas, mas Tensing e o seu grupo não podiam levar esses perigos em consideração, porque não havia alternativa. Além disso, os yetis atravessa-vam-nas confiadamente porque, nas suas curtas incursões fora do vale à procura de alimento, tinham passado por ali. Ao ver os restos de um homem no fundo de uma quebrada, adivinharam que Tex Armadillo e os seus sequazes os tinham ultrapassado.
- A ponte não é segura, aquele homem caiu - disse Alexander, apontando para ele.
- Há pegadas de cavalos. Devem ter desmontado aqui e soltaram os animais. Continuaram a pé, levando o dragão numa padiola - observou Dil Bahadur.
- Não consigo imaginar como terão os cavalos chegado até aqui. Devem ser como cabras - disse Alexander.
- Possivelmente são corcéis tibetanos, treinados para subir, resistentes e ágeis e, por isso mesmo, muito valiosos. Os donos devem ter tido boas razões para os abandonar - aventurou Dil Bahadur.
- Temos de atravessar - interrompeu-os Nadia.
- Se os bandidos o fizeram arrastando o peso do Dragão de Ouro, nós também podemos fazê-lo - insinuou Dil Bahadur.
- Isso pode ter enfraquecido ainda mais a ponte. Talvez não fosse má ideia testá-la antes de nos pormos em cima - determinou Tensing.
O abismo não era muito largo, mas também não era suficientemente estreito para usar as varas ou bordões de madeira de Tensing e do príncipe. Nadia sugeriu que se amarrasse Borobá a uma corda e o mandassem testar a ponte, mas o macaco era demasiado leve de modo que, mesmo que ele a atravessasse, não havia quaisquer garantias de que os outros conseguissem fazer o mesmo. Dil Bahadur examinou o terreno e viu que, felizmente, no outro lado, havia uma raiz grossa. Alexander amarrou uma ponta da sua corda a uma flecha e o príncipe disparou-a com a precisão habitual, cravando-a fortemente na raiz. Alexander amarrou a outra corda à cintura e, suportado por Tensing, aventurou-se lentamente a atravessar a ponte, testando cada pedaço de madeira com cuidado antes de pôr o seu peso em cima.
Se a ponte cedesse, a primeira corda podia segurá-lo por algum tempo. Não sabiam se a flecha suportaria o peso, mas não sendo assim, a segunda corda podia impedir que caísse no vazio. Nesse caso, o mais importante era não se esmagar como um insecto contra as paredes laterais de rocha. Esperava que a sua experiência como alpinista o ajudasse.
Passo a passo, Alexander atravessou a ponte. Ia a meio quando duas tábuas se partiram e ele escorregou. Um grito de Nadia ressoou nos cumes, devolvido pelo eco. Durante alguns minutos intermináveis ninguém se mexeu, até ter parado o balanço da ponte e o jovem ter recuperado o equilíbrio. Muito lentamente, Alexander puxou a perna que ficara pendurada no buraco entre as tábuas partidas, depois atirou-se para trás preso pela primeira corda, até ter conseguido pôr-se novamente de pé. Estava a avaliar se devia continuar ou retroceder, quando ouviram um ruído estranho, como se a terra roncasse. A primeira suspeita foi de que se tratava de um tremor de terra como tantos outros que havia nessas regiões, mas depois viram que rolavam pedras e neve do cume da montanha. O grito de Nadia provocara uma avalancha.
Impotentes, os amigos e os yetis viram um rio mortal de penhascos precipitar-se sobre Alexander e a frágil ponte. Não era possível fazer nada, era impossível retroceder ou avançar.
Tensing e Dil Bahadur concentraram-se automaticamente, enviando energia ao rapaz. Noutras circunstâncias, Tensing teria tentado a prova máxima de um tulku como ele, reencarnação de um grande lama: alterar a vontade da natureza. Em momentos de verdadeira necessidade, alguns tulkus conseguiam fazer parar o vento, desviar tempestades, evitar inundações em tempos de chuva e impedir geadas, mas Tensing nunca tivera de o fazer. Não era uma coisa que se pudesse praticar, como as viagens astrais. Agora era tarde para tentar mudar o rumo da avalancha e salvar o rapaz americano. Tensing utilizou os seus poderes mentais, transferindo para ele a imensa força do seu próprio corpo.
Alexander ouviu o rugido da avalancha de pedras e viu a nuvem de neve que se levantou, cegando-o. Soube que ia morrer e a descarga de adrenalina foi como uma enorme descarga de electricidade, apagando qualquer pensamento da sua mente e deixando-o apenas à mercê do instinto. Uma energia sobrenatural arrebatou-o e, num milésimo de segundo, o seu corpo transformou-se no jaguar negro do Amazonas. Com um rugido terrível e um salto formidável chegou ao outro lado do precipício aterrando nas suas quatro patas de felino, enquanto as pedras caíam ruidosamente atrás de si.
Os amigos não souberam que se tinha salvado milagrosamente, porque a neve e a terra pulverizadas pelos penhascos os impediram. Nenhum deles, excepto Nadia, viu o rapaz até a derrocada ter assentado. No momento da morte, quando julgou que Alexander estava perdido, ela teve a mesma reacção que ele, a mesma poderosa descarga de energia, a mesma fantástica transformação. Borobá ficou estirado no chão enquanto ela se elevava, transformada em águia branca. E, da altura do seu elegante voo, pôde ver o jaguar negro aferrado com as suas garras à terra firme.
***
Assim que passou o perigo iminente, Alexander recuperou o seu aspecto habitual. O único vestígio da sua experiência mágica, eram os dedos ensanguentados e a expressão do rosto, com os lábios arreganhados e os dentes expostos numa careta feroz. Também sentiu o cheiro forte do jaguar colado à sua pele, um cheiro de fera carnívora. A avalancha fez cair um pedaço daquele caminho estreito e destruiu a maior parte das madeiras da ponte, mas as cordas antigas e as de Alexander ficaram intactas. O jovem prendeu-as fortemente num dos lados, enquanto Tensing o fazia do outro e, dessa forma, conseguiram atravessar. Os yetis tinham uma agilidade de macaco e estavam habituados a este tipo de terreno, de modo que não tiveram dificuldades em passar, pendurados numa corda. Dil Bahadur pensou que, se antes recorria a um bordão, podia muito bem usar agora uma corda bamba, como o fez o seu mestre com tanta graciosidade. Tensing não precisou de levar Nadia, apenas Borobá, uma vez que a águia continuava a voar por cima das suas cabeças. Alexander perguntou-lhe porque não pudera Nadia transformar-se no seu animal totémico quando partiu o ombro e teve de enviar uma projecção mental para pedir socorro. O lama explicou-lhe que a dor e o esgotamento a mantiveram retida na sua forma física.
Foi o grande pássaro branco que os avisou de que Chenthan Dzong se erguia alguns metros à frente, depois de um cotovelo da montanha. Os cavalos amarrados no exterior indicavam a presença dos foragidos, mas não se via ninguém de guarda. Era evidente que não estavam à espera de visitas.
Tensing, por telepatia, recebeu a mensagem da águia e reuniu os seus para decidirem qual a melhor maneira de actuar. Os yetis não entendiam nada de estratégia, a sua forma de lutar era simplesmente atirar-se para a frente, brandindo os seus cacetes e gritando como demónios, o que também poderia ser bastante eficaz, desde que não fossem recebidos por uma saraivada de balas. Primeiro, tinham de averiguar exactamente quantos homens estavam no mosteiro e como estavam distribuídos, com que armas contavam, onde tinham o Rei e o Dragão de Ouro.
De repente, Nadia apareceu a meio deles com naturalidade, como se nunca tivesse estado a voar em forma de ave. Nenhum deles fez qualquer comentário.
- Se o meu honorável mestre me permitir, eu irei à frente pediu Dil Bahadur.
- Talvez esse não seja o plano mais acertado. Tu és o futuro rei. Se acontecer alguma coisa ao teu pai, a nação conta apenas contigo - replicou o lama.
- Se o honorável mestre o permitir, irei eu - disse Alexander.
- Se o honorável mestre o permitir, creio que é melhor ir eu, que tenho o poder da invisibilidade - interrompeu Nadia.
- De maneira nenhuma - exclamou Alexander.
- Porquê? Não confias em mim, Jaguar?
- É muito perigoso.
- É tão perigoso para mim como para ti. Não vejo qualquer diferença.
- Talvez a menina-águia tenha razão. Cada um oferece o que tem. Neste caso, é muito conveniente ser invisível. Tu, Alexander, coração de gato negro, deverás lutar ao lado de Dil Bahadur. Os yetis irão comigo. Receio ser o único aqui que consegue comunicar com eles e controlá-los. Assim que se aperceberem de que estão perto dos inimigos, ficarão como loucos - replicou Tensing.
- Agora é que precisávamos de tecnologia moderna. Um walkie-talkie viria mesmo a calhar. Como nos avisará Águia de que poderemos avançar? - perguntou Alexander.
- Possivelmente da mesma forma que nos comunicamos agora... - sugeriu Tensing e Alex começou-se a rir, porque se deu conta de que estavam há algum tempo a trocar ideias sem palavras.
- Tenta não ficar assustada, Nadia, porque isso confunde as ideias. Não duvides do método, porque isso também impede a recepção. Concentra-te numa única imagem de cada vez - aconselhou-a o príncipe.
- Não te preocupes. A telepatia é como falar com o coração disse ela, tranquilizando-o.
- Talvez a nossa única vantagem seja a surpresa - advertiu o lama.
- Se o honorável mestre me permitir uma sugestão, creio que seria mais conveniente que, quando se dirigisse aos yetis, fosse mais directo - disse Alexander, com ironia, imitando a forma educada de falar no Reino Proibido.
- Talvez o jovem estrangeiro devesse ter um pouco mais de confiança no meu mestre - interrompeu Dil Bahadur, testando a tensão do arco e contando as flechas.
- Boa sorte - despediu-se Nadia, dando um beijo rápido na cara de Alexander.
Libertou-se de Borobá, que foi a correr encavalitar-se na nuca de Alexander, agarrando-se com força às orelhas dele, como costumava fazer na ausência da dona.
Nesse momento, um ruído semelhante à avalancha anterior, paralisou-o. Só os yetis compreenderam imediatamente que se tratava de outra coisa. Alguma coisa aterradora que nunca tinham ouvido. Atiraram-se para o chão, escondendo a cabeça com os braços, tremendo, com os cacetes esquecidos e toda a sua ferocidade substituída por uma lamúria de crias assustadas.
- Parece que é um helicóptero - disse Alexander, fazendo sinais para se entrincheirarem nas fendas e sombras da montanha, de modo a não serem vistos do ar.
- O que é aquilo? - perguntou o príncipe.
- Um aparelho semelhante ao avião. E um avião é como um papagaio com motor - respondeu o americano, sem conseguir acreditar que, em pleno século xxi, houvesse gente a viver como na Idade Média.
- Eu sei o que é um avião, vejo-os passar todas as semanas em direcção a Tunkhala - disse Dil Bahadur, sem se aborrecer com o tom de voz do seu novo amigo.
No outro lado do edifício, aparecia agora no céu um aparelho metálico. Tensing tentou acalmar os yetis, mas os cérebros daqueles seres não concebiam a ideia de uma máquina voadora.
- É uma ave que obedece a ordens. Não precisamos de temê-la somos mais ferozes - explicou-lhes, por fim, o lama, calculando que isto conseguiriam compreender.
- Isso significa que há lugar para o aparelho aterrar. Agora percebo porque se deram ao trabalho de vir até aqui e como pretendem fugir com a estátua para fora do país - concluiu Alexander.
- Ataquemos antes que fujam, se o meu honorável mestre estiver de acordo - propôs o príncipe.
Tensing fez sinal de que deviam esperar. Passou quase uma hora, até o aparelho conseguir aterrar. Não conseguiam ver a manobra do sítio onde se encontravam, mas calcularam que devia ser bastante complicada, porque o piloto fez várias tentativas, tornando a subir, dando voltas e descendo novamente, até, finalmente, ter desaparecido o ruído do motor. No silêncio primitivo daqueles cumes ouviram vozes humanas próximas e calcularam que deviam ser dos bandidos. Quando também as vozes se calaram, Tensing decidiu que tinha chegado o momento de se aproximarem.
Nadia concentrou-se até se tornar transparente como o ar e encaminhou-se para o mosteiro. Alexander ficou a tremer por ela. As batidas de tambor do seu coração eram tão fortes que receou serem audíveis pelos seus inimigos, trezentos metros à frente.
CAPÍTULO 18
A batalha
No mosteiro de Chenthan Dzong, levava-se a cabo a última parte do plano do Especialista. Quando o helicóptero pousou na pequena plataforma coberta de neve, formada noutros tempos por uma avalancha, foi recebido com entusiasmo porque se tratava de uma verdadeira proeza. Tex Armadillo tinha marcado o local da aterragem com uma cruz vermelha, traçada com pó de morango para refrescos, tal como lhe dissera o seu chefe. Do ar, a cruz via-se como uma moeda de vinte e cinco centavos, mas ao aproximar-se era um sinal bastante nítido. Além do tamanho reduzido do campo, que obrigava a manobrar com destreza para que a hélice não se esmagasse contra a montanha, o piloto tinha de navegar entre correntes de vento. Naquele sítio, os picos formavam um funil onde o vento circulava como um remoinho.
O piloto era um herói da Força Aérea do Nepal, um homem de comprovada coragem e integridade, a quem tinham oferecido uma pequena fortuna para recolher aí um «pacote» e duas pessoas. Não sabia em que consistia a carga e não sentia particular curiosidade em averiguá-lo. Bastava-lhe saber que não se tratava de drogas nem de armas. O agente que o contactara apresentara-se como membro de uma equipa internacional de cientistas, que estudavam amostras de rochas da região. As duas pessoas e o «pacote» deviam ser transportados de Chenthan Dzong para um destino desconhecido no Norte da índia, onde o piloto receberia a outra metade do seu pagamento.
O aspecto dos homens que o ajudaram a descer do helicóptero não lhe agradou. Não eram os cientistas estrangeiros que esperava, mas uns nómadas com a pele azul e expressão criminosa, com meia dúzia de punhais de diferentes formas e tamanhos à cintura. Atrás apareceu um americano com olhos azul-celeste, frios como um glaciar, que lhe deu as boas-vindas e o convidou a tomar uma chávena de café no mosteiro, enquanto os outros colocavam o «pacote» no helicóptero. Era um volume pesado, de forma estranha, envolto em lona e fortemente amarrado com cordas, que teve de ser içado por vários homens. O piloto calculou que se tratava de amostras de rochas.
O americano levou-o através de várias salas completamente em ruínas. Os tectos mal se sustinham, a maior parte das paredes tinha caído, o chão estava levantado devido ao terramoto e às raízes que foram aparecendo durante os anos de abandono. Uma erva seca e dura surgia entre as gretas. Por toda a parte havia excrementos de animais, possivelmente de tigres e cabras-monteses. O americano explicou ao piloto que, na pressa de fugirem ao cataclismo, os monges-guerreiros que moravam no mosteiro tinham deixado para trás armas, utensílios e alguns objectos de arte. O vento e outros tremores de terra tinham derrubado as estátuas religiosas, que jaziam aos pedaços pelo chão. Era difícil avançar entre os escombros e, quando o piloto tentou desviar-se, o americano agarrou-o por um braço e, de uma forma amável mas firme, levou-o até ao local onde tinham improvisado uma pequena cozinha com café instantâneo, leite condensado e bolachas.
O herói do Nepal viu grupos de homens com a pele tingida de um negro-azulado, mas não viu uma rapariga magra, toda cor de mel, que passou muito perto dele, deslizando como um espírito entre as ruínas do antigo mosteiro. Perguntou a si próprio quem seriam estes tipos de má catadura, com turbantes e túnicas, e que relação teriam com os supostos cientistas que o tinham contratado. Não estava a gostar do cariz que aquele trabalho estava a tomar. Desconfiava de que o assunto talvez não fosse assim tão legal e limpo como o tinham colocado.
- Temos de partir rapidamente porque, depois das quatro da tarde o vento aumenta - avisou o piloto.
- Não demoraremos muito. Por favor não saia daqui. O edifício está prestes a ruir e é perigoso - replicou Tex Armadillo, deixando-o com a chávena na mão e vigiado de perto pelos homens dos punhais.
No outro extremo do mosteiro, passando por inúmeras salas cobertas de escombros, estavam o Rei e Judit Kinski, sozinhos, sem cordas nem mordaças, porque, tal como disse Tex Armadillo, fugir era impossível; o isolamento do mosteiro não o permitia e a Seita do Escorpião vigiava. Nadia foi contando os bandidos à medida que avançava. Viu que as paredes exteriores de pedra estavam tão destruídas como as paredes internas; a neve amontoava-se nos cantos e havia pegadas recentes de animais selvagens, que tinham ali os seus covis e que, com certeza, tinham fugido devido à presença dos homens. «Falando com o coração», transmitiu a Tensing as suas observações. Quando chegou ao local onde estavam o Rei e Judit Kinski, avisou o lama de que estavam vivos. Nessa altura, fele decidiu que tinha chegado o momento de agir.
Tex Armadillo tinha dado ao Rei outra droga para lhe baixar as defesas e anular a vontade, mas graças ao controlo que o monarca tinha sobre o corpo e a mente, conseguiu manter-se num silêncio obstinado durante o interrogatório. Armadillo estava furioso. Não podia dar por terminada a sua missão sem averiguar o código do Dragão de Ouro. Fora esse o acordo efectuado com o cliente. Sabia que a estátua «cantava», mas de nada serviriam ao Coleccionador esses sons sem a fórmula para os interpretar. Perante os escassos resultados obtidos com a droga, com ameaças e com pancada, o americano informou o seu prisioneiro que torturaria Judit Kinski até ele revelar o segredo ou até matá-la, se fosse necessário, pesando, nesse caso, na consciência e no karma do Rei a sua morte. No entanto, quando se preparava para o fazer, chegou o helicóptero.
- Lamento profundamente que, por minha causa, você esteja nesta situação, Judit - murmurou o Rei, enfraquecido pelas drogas.
- A culpa não é sua - disse ela para o tranquilizar, mas ele achou-a realmente assustada.
- Não posso permitir que a magoem, mas também não confio nestes desalmados. Julgo que nos matarão da mesma forma, mesmo que lhes dê o código.
- Na verdade não temo a morte, Majestade, mas a tortura.
- O meu nome é Dorji. Ninguém me trata pelo nome desde que a minha mulher morreu, há muitos anos - sussurrou ele.
- Dorji... o que quer dizer o seu nome?
- Significa raio ou luz verdadeira. O raio simboliza a mente iluminada, mas eu estou muito longe de ter atingido esse estádio.
- Julgo que merece esse nome, Dorji. Nunca conheci ninguém como você. Carece totalmente de vaidade, apesar de ser o homem mais poderoso deste país - disse ela.
- Talvez esta seja a minha única oportunidade de dizer, Judit, que, antes destes infelizes acontecimentos, ponderava a possibilidade de você me acompanhar na missão de cuidar do meu povo...
- O que significa isso, exactamente?
- Pensava pedir-lhe que fosse a rainha deste modesto país. - Por outras palavras, que me casasse consigo...
- Compreendo que é absurdo falar disso agora, quando estamos prestes a morrer, mas essa era a minha intenção. Meditei muito sobre isso. Sinto que estamos destinados a fazer alguma coisa juntos. Não sei o quê, mas sinto que é o nosso karma. Não poderemos fazê-lo nesta vida, possivelmente será noutra reencarnação - disse o Rei, sem se atrever a tocá-la.
- Noutra vida? Quando?
- Dentro de cem, de mil anos, não importa, de qualquer forma a vida do espírito é uma só. A vida do corpo, pelo contrário, decorre como um sonho efémero, é pura ilusão - respondeu o Rei.
Judit voltou-lhe as costas, olhando fixamente para a parede, de modo que o Rei não conseguia ver-lhe o rosto. O monarca calculou que ela estava perturbada, tal como ele.
- Você não me conhece, não sabe como sou - acabou ela por murmurar.
- Não consigo ler a sua aura nem a sua mente como desejaria, Judit, mas posso apreciar a sua inteligência clara, a sua grande cultura, o seu respeito pela natureza...
- Mas não me pode ver por dentro!
- No seu íntimo só pode haver beleza e lealdade - assegurou-lhe o monarca.
- A inscrição do seu medalhão sugere que a mudança é possível. Você acredita realmente nisso, Dorji? Podemos transformar-nos totalmente? - perguntou Judit, olhando-o nos olhos.
- A única coisa verdadeira é que, neste mundo, tudo muda constan-temente, Judit. A mudança é inevitável, uma vez que tudo é temporário. No entanto, custa-nos muito, aos seres humanos, modificar a nossa essência e evoluir para um estádio superior de consciência. Nós, budistas, acreditamos poder mudar por vontade própria se estivermos convencidos de uma verdade, mas ninguém pode obrigar-nos a fazê-lo. Foi isso que aconteceu a Sidarta Gautama. Era um príncipe mimado que, ao ver a miséria do povo, se transformou em Buda - replicou o Rei.
- Eu acho que é muito difícil mudar... Porque confia em mim?
- Confio tanto em si, que estou disposto a dizer-lhe qual o código do Dragão de Ouro. Não suporto a ideia de que sofra, muito menos por minha causa. Não devo ser eu a decidir quanto sofrimento você consegue suportar, essa é uma decisão sua. Por isso o segredo dos reis do meu país deve ficar nas suas mãos. Entregue-o a estes malfeitores em troca da sua vida, mas, por favor, faça-o depois da minha morte - ofereceu o soberano.
- Não se atreveriam a matá-lo! - exclamou ela.
- Isso não acontecerá, Judit. Eu próprio porei fim à minha vida, porque não desejo que a minha morte pese na consciência de outros. O meu tempo aqui terminou. Não se preocupe, será sem violência, deixarei apenas de respirar - explicou-lhe o Rei.
- Oiça atentamente, Judit, dar-lhe-ei o código e você deve memorizá-lo - disse o Rei. - Quando a interrogarem, explique que o Dragão de Ouro emite sete sons. Cada combinação de quatro sons representa um dos 840 ideogramas de uma linguagem desaparecida, a linguagem dos yetis.
- Refere-se ao abominável homem das neves? Existem realmente esses seres? - perguntou ela, incrédula.
- Restam muito poucos e degeneraram, agora são como animais e comunicam com muito poucas palavras; no entanto, há três mil anos tiveram uma linguagem e uma certa forma de civilização.
- Essa linguagem está escrita nalgum lado?
- É preservada na memória de quatro lamas em quatro mosteiros diferentes. Ninguém, excepto o meu filho Dil Bahadur e eu, conhece o código completo. Estava escrito num pergaminho, mas os chineses roubaram-no quando invadiram o Tibete.
- De modo que a pessoa que tiver o pergaminho pode decifrar as profecias... - disse ela.
- O pergaminho está escrito em sânscrito mas, se for molhado com leite de iaque, aparece um dicionário numa outra cor, onde cada ideograma está traduzido na combinação dos quatro sons que o representam. Compreende, Judit?
- Perfeitamente! - interrompeu Tex Armadillo, com uma expressão de triunfo e uma pistola na mão.
- Toda a gente tem o seu calcanhar de Aquiles, Majestade. Já vê que obtivemos o código, no fim de contas. Admito que estava um pouco preocupado, pensei que levaria o segredo para a tumba, mas o meu chefe acabou por ser muito mais astuto que você - acrescentou.
- O que significa isto? - perguntou o monarca, confuso.
- Nunca suspeitou dela, homem de Deus? Nunca se interrogou como e por que razão entrou Judit Kinski na sua vida, precisamente agora? Não consigo entender como não investigou o passado da paisagista especialista em túlipas antes de a trazer para o seu palácio. Como você é ingénuo! Olhe para ela. A mulher pela qual pensava morrer é minha chefe, o Especialista. Ela é o cérebro por detrás de toda esta operação - anunciou o americano.
- É verdade o que diz este homem, Judit? - perguntou o Rei, incrédulo.
- Como julga que roubámos o seu Dragão de Ouro? Ela descobriu como entrar no Recinto Sagrado, colocando uma máquina de filmar no seu medalhão. E, para o fazer, teve de conquistar a sua confiança - disse Tex Armadillo.
- Você usou os meus sentimentos... - murmurou o monarca, pálido como cinza, com os olhos cravados em Judit Kinski, que não foi capaz de suportar o seu olhar.
- Não me diga que até se apaixonou por ela! Que coisa mais ridícula! - exclamou o americano, dando uma gargalhada seca.
- Basta, Armadillo! - ordenou-lhe Judit.
- Ela tinha a certeza de que não conseguiríamos arrancar-lhe o segredo recorrendo à força, por isso se lembrou da ameaça de a torturarmos a ela. É tão profissional, que pensava cumpri-la, só para o assustar e obrigá-lo a confessar - explicou Tex Armadillo.
- Está bem, Armadillo, isto está acabado. Não é necessário magoar o Rei, já podemos partir - ordenou-lhe Judit Kinski.
- Não tão depressa, chefe. Agora é a minha vez. Não julga que vou entregar-lhe a estátua, não é verdade? Porque faria isso? Vale muito mais que o seu peso em ouro e penso negociar directamente com o cliente.
- Enlouqueceu, Armadillo? - ladrou a mulher, mas não pôde continuar porque ele a interrompeu, colocando-lhe a pistola à frente da cara.
- Dê-me o gravador ou estoiro-lhe os miolos, senhora - ameaçou-a Armadillo.
Por um segundo, as pupilas sempre alerta de Judit Kinski dirigiram-se para a sua carteira, que estava no chão. Foi apenas um pestanejar, mas isso deu a solução a Armadillo. O homem inclinou-se para apanhar a carteira, sem deixar de apontar para ela, e esvaziou o seu conteúdo no chão. Apareceu uma combinação de artigos femininos, uma pistola, algumas fotografias e alguns aparelhos electrónicos que o Rei nunca tinha visto. Várias fitas gravadas, num formato minúsculo, caíram também. O americano deu-lhes um pontapé, porque não eram essas que procurava. Só lhe interessava aquela que ainda estava no gravador.
- Onde está o gravador? - gritou, furioso.
Enquanto, com uma mão, mantinha a pistola contra o peito de Judit Kinski, com a outra, revistava-a de cima a baixo. Por fim, ordenou-lhe que tirasse o cinto e as botas, sem encontrar nada. De súbito reparou na bracelete larga, de osso talhado, que lhe enfeitava o braço.
- Tire-a! - ordenou-lhe, num tom de voz que não admitia demoras.
Contrafeita, a mulher tirou o adorno e entregou-o. O americano retrocedeu alguns passos para o examinar à luz e deu um grito de triunfo. Ali escondia-se um minúsculo gravador, que teria feito as delícias do mais sofisticado espião. Em matéria de tecnologia, a Especialista estava na vanguarda.
- Vai-se arrepender disto, Armadillo, juro. Ninguém brinca comigo - rosnou Judit, desfigurada pela raiva.
- Nem você nem este velho patético viverão para se vingar! Cansei-me de obedecer a ordens. Você já passou à história, chefe. Tenho a estátua, o código e o helicóptero, não preciso de mais nada. O Coleccionador ficará muito satisfeito - replicou ele.
Um instante antes de Tex Armadillo apertar o gatilho, o Rei empurrou violentamente Judit Kinski, protegendo-a com o seu corpo. Abala que lhe estava destinada acertou-lhe a meio do peito. A segunda bala arrancou faíscas na parede de pedra, porque Nadia Santos tinha corrido como um bólide, chocando com todas as suas forças contra o americano e atirando-o ao chão.
Armadillo levantou-se de um salto, com a agilidade que lhe davam muitos anos de treino em artes marciais. Afastou Nadia com um murro e deu um salto de felino, caindo junto da pistola, que tinha ficado a alguma distância. Judit Kinski também correu na mesma direcção, mas o homem foi mais rápido e adiantou-se-lhe.
Tensing irrompeu com os yetis na outra extremidade do mosteiro, onde a maior parte dos homens azuis aguardava, enquanto Alexander seguia Dil Bahadur em busca do Rei, orientando-se pelas imagens que Nadia enviara mentalmente. Embora Dil Bahadur tivesse lá estado anteriormente, não se lembrava bem da planta do edifício e, além disso, era-lhe difícil orientar-se entre os montes de escombros e de outros obstáculos espalhados por toda a parte. Ia à frente com o arco preparado, seguido por Alexander, armado precariamente com o bordão que o príncipe lhe emprestara.
Os jovens tentaram evitar os bandidos, mas de repente viram-se frente a dois deles que, ao vê-los, ficaram paralisados de surpresa por um instante. Essa hesitação foi suficiente para dar tempo ao príncipe de lançar uma flecha dirigida à perna de um dos seus adversários. De acordo com os seus princípios, não podia atirar a matar, mas devia imobilizá-lo. O homem caiu ao chão com um grito visceral, mas o outro já tinha dois punhais na mão, que partiram disparados contra Dil Bahadur.
A acção foi tão rápida, que Alexander ficou sem perceber como as coisas tinham acontecido. Ele nunca teria conseguido esquivar-se dos punhais, mas o príncipe moveu-se um pouco, como se executasse um discreto passo de dança, e as afiadas lâminas de aço roçaram-no apenas, sem o ferir. O inimigo não conseguiu empunhar outro punhal, porque uma flecha se lhe cravou no peito, com prodigiosa precisão, a poucos centímetros do coração, sob a clavícula, sem tocar nenhum órgão vital.
Alexander aproveitou esse momento para dar uma bordoada no primeiro bandido que, no chão e sangrando da perna, já se preparava para utilizar outro dos seus numerosos punhais. Fê-lo sem pensar, levado pelo desespero e pela urgência, mas no instante em que aquele pau grosso entrou em contacto com o crânio do outro, Alexander ouviu o ruído de uma noz ao ser partida. Isso fê-lo recuperar a razão e aperceber-se da brutalidade do seu acto. Uma onda de mal-estar invadiu-o. Ficou coberto de suores frios, a boca encheu-se-lhe de saliva e julgou que ia vomitar, mas Dil Bahadur já começara a correr e ele teve de ultrapassar a sua fraqueza e segui-lo.
O príncipe não receava as armas dos bandidos, porque se julgava protegido pelo amuleto mágico que lhe dera Tensing e que trazia ao pescoço: o excremento petrificado de dragão. Muito mais tarde, quando Alexander contou à avó Kate o que se passara, esta comentou que não fora isso mas sim o treino em Tao-shu que salvara Dil Bahadur dos punhais, permitindo-lhe esquivar-se.
- Não importa o que foi, a verdade é que funciona - replicou o neto.
Dil Bahadur e Alexander irromperam na sala onde estava o Rei, no mesmo instante em que a mão de Tex Armadillo agarrava na pistola, ultrapassando Judit Kinski num milésimo de segundo. No espaço de tempo que o americano demorou a levar o dedo ao gatilho, o príncipe lançou a sua terceira flecha, que lhe atravessou o antebraço. Um grito terrível saiu do peito de Armadillo, mas este não soltou a arma. A pistola continuou entre os seus dedos, embora fosse pouco provável que tivesse forças para apontar ou disparar.
- Não se mexa! - gritou Alexander, quase histérico, sem saber como poderia evitá-lo, uma vez que o seu bordão de nada servia contra as balas do americano.
Longe de lhe obedecer, Tex Armadillo agarrou em Nadia com o seu braço são e levantou-a como se ela fosse uma boneca, protegendo-se com o corpo dela. Borobá, que tinha seguido Dil Bahadur e Alexander, correu a pendurar-se na perna da sua dona, guinchando desesperado, mas um pontapé do americano atirou-o para longe. Embora estivesse um pouco atordoada com a pancada, a rapariga tentou defender-se debilmente, mas o braço de ferro de Armadillo não lhe permitiu fazer o mais pequeno movimento.
O príncipe avaliou as suas possibilidades. Confiava cegamente na sua pontaria, mas o risco de que o homem disparasse contra Nadia era muito grande. Impotente, viu Tex Armadillo retroceder até à saída, arrastando a rapariga inerte, na direcção do pequeno campo onde o helicóptero aguardava sobre uma fina camada de neve.
Judit Kinski aproveitou a confusão para fugir, correndo na direcção contrária e desaparecendo entre as sinuosidades do mosteiro.
Enquanto tudo isto acontecia numa das extremidades do edifício, no lado contrário também se desenrolava uma cena violenta. A maior parte dos homens azuis tinha-se concentrado nos arredores da improvisada cozinha, bebendo dos seus cantis, mastigando betei e discutindo em voz baixa a possibilidade de traírem Tex Armadillo. Ignoravam, evidentemente, que Judit Kinski era realmente quem dava as ordens, julgavam-na uma refém, tal como o Rei. O americano pagara-lhes o combinado em dinheiro sonante e sabiam que, na índia, as armas e os cavalos que completavam o acordo estavam à sua espera. Mas, depois de verem a estátua de ouro coberta de pedras preciosas, achavam que lhes era devido muito mais. Não lhes agradava a ideia de o tesouro estar fora do seu alcance, colocado no helicóptero, embora compreendessem que era a única forma de o tirar do país.
- É preciso raptar o piloto - propôs o chefe entre dentes, olhando de soslaio para o herói nepalês que, a um canto, bebia a sua chávena de café com leite condensado.
- Quem irá com ele? - perguntou um dos bandidos.
- Eu irei - decidiu o chefe.
- E quem nos garante que tu não vais ficar com o saque? - intimou-o outro dos seus homens.
O chefe, indignado, levou a mão a um dos seus punhais, mas não pôde completar o gesto, porque Tensing, seguido pelos yetis, entrou como um tornado pela ala sul de Chenthan Dzong. O pequeno destacamento era verdadeiramente aterrador. À frente ia o monge, armado com dois paus unidos por uma corrente, que encontrou entre as ruínas do que antigamente fora a sala de armas dos célebres monges-guerreiros que moravam no mosteiro fortificado. Pela forma como brandia os paus e movia o corpo, qualquer pessoa podia adivinhar que era um especialista em artes marciais. Atrás iam os dez yetis, que normalmente já tinham um aspecto bastante aterrador e que, naquela ocasião, pareciam monstros fugidos do pior pesadelo. Pareciam ter-se multiplicado por dois, provocando o alvoroço de uma horda. Armados de cacetes e pedras, com as suas couraças de couro e os seus capacetes pavorosos de cornos ensanguentados, nada tinham de humano. Gritavam e pulavam como orangotangos enlouquecidos, contentes com a oportunidade de distribuir cacetadas e, porque não, de as receber também, uma vez que isso fazia parte da diversão. Tensing mandou-os atacar, resignando-se ao facto de não conseguir controlá-los. Antes de irromper no mosteiro, elevou uma rápida oração pedindo ao céu que não houvesse mortos no confronto, porque lhe pesariam na consciência. Os yetis não eram responsáveis pelos seus actos; uma vez liberta a sua agressividade, perdiam o pouco uso da razão que tinham.
Os supersticiosos homens azuis julgaram-se vítimas da maldição do Dragão de Ouro que enviava um exército de demónios para se vingar do sacrilégio cometido. Podiam enfrentar os piores inimigos, mas a ideia de se verem diante de forças do inferno aterrorizou-os. Desataram a correr como gamos, seguidos de perto pelos yetis, perante o pavor do piloto, que se encostara à parede para os deixar passar, ainda com a chávena na mão, sem saber o que estava a acontecer à sua volta. Supostamente, tinha ido buscar alguns cientistas e, em vez disso, deu consigo a meio de um horda de bárbaros tingidos de azul, de símios extra-terrestres e de um monge gigantesco, armado como nos filmes chineses de kung-fu.
Passada a correria de bandidos e yetis, o lama e o piloto encontraram-se, subitamente, sozinhos.
- Namasté - cumprimentou o piloto, quando recuperou a voz, porque não lhe ocorreu mais nada.
- Tachu kachi - cumprimentou Tensing na língua dele, inclinando-se um pouco, como se fosse uma reunião social.
- Que diacho se passa aqui? - perguntou o primeiro.
- Talvez seja um pouco difícil de explicar. Os que usam capacetes com cornos são os meus amigos yetis. Os outros roubaram o Dragão de Ouro e sequestraram o Rei - informou-o Tensing.
- Refere-se ao lendário Dragão de Ouro? Então foi isso que puseram no meu helicóptero! - gritou o herói do Nepal, e saiu disparado na direcção da pista de aterragem.
Tensing seguiu-o. A situação parecia-lhe algo cómica, porque ainda não sabia que o Rei estava ferido. Por um buraco da parede viu os aterrorizados membros da Seita do Escorpião correndo montanha abaixo, perseguidos pelos yetis. Em vão tentou chamá-los com a sua força mental. Os guerreiros de Grr-ympr estavam a divertir-se demasiado para fazer caso disso. Os seus arrepiantes gritos de batalha tinham-se transformado em guinchos de prazer antecipado, como se fossem crianças a brincar. Tensing rezou uma vez mais para que os yetis não apanhassem nenhum bandido, pois não desejava continuar a conspurcar o seu karma com mais actos de violência.
O bom humor de Tensing alterou-se assim que saiu do mosteiro e viu a cena que se desenrolava diante dos seus olhos. Um estrangeiro, que identificou como sendo o americano ao comando dos homens azuis, de acordo com o que Nadia lhe contara, estava junto do helicóptero. Tinha um braço atravessado de lado a lado por uma flecha, mas isso não o impedia de brandir uma pistola. Com o outro braço levava Nadia praticamente suspensa no ar, apertada contra si, de modo a servir-lhe de escudo.
A uns trinta metros viu Dil Bahadur com o arco tenso e a flecha pronta, acompanhado por Alexander, apalermado e paralisado.
- Largue o arco! Afastem-se ou mato a rapariga! - ameaçou Tex Armadillo e nenhum deles duvidou de que o faria.
O príncipe largou a arma e os dois jovens retrocederam até às ruínas do edifício, enquanto Tex Armadillo tentava entrar no helicóptero arrastando Nadia, que atirou para dentro com uma força brutal.
- Espere! Não conseguirá sair daqui sem mim! - gritou, nesse momento, o piloto, adiantando-se, mas o outro já tinha posto o motor em marcha e a hélice começava a girar.
Para Tensing era a oportunidade de exercitar os seus poderes psíquicos sobrenaturais. Aprova máxima de um tulku consistia em alterar o comportamento da natureza. Tinha de se concentrar e de invocar o vento, para que este impedisse o americano de fugir com o tesouro sagrado da sua nação. No entanto, se o helicóptero fosse apanhado por um remoinho de vento em pleno voo, Nadia morreria também. A mente do lama avaliou rapidamente as suas possibilidades e decidiu que não podia arriscar, porque uma vida humana era mais importante que todo o ouro do mundo.
Dil Bahadur tornou a pegar no arco, mas era inútil atacar aquela máquina metálica com flechas. Alexander compreendeu que aquele desalmado levava Nadia e começou a gritar o nome da amiga. A jovem não conseguia ouvi-lo, mas o rugido do motor e a ventania da hélice conseguiram arrancá-la do seu atordoamento. Tinha caído como um saco de batatas em cima do banco, empurrada pelo seu raptor. No instante em que o aparelho começava a subir, Nadia aproveitou o facto de Tex Armadillo estar ocupado com os controlos, que tinha de manejar com uma só mão, enquanto o braço ferido pendia inerte, e escorregou até à porta, abriu-a e, sem olhar para baixo e sem pensar duas vezes, saltou para o vazio.
Alexander correu na sua direcção, sem querer saber do helicóptero, que balançava sobre a sua cabeça. Nadia tinha caído de mais de dois metros de altura, mas a neve amortizou a queda, caso contrário poderia ter morrido.
- Águia, estás bem? - gritou Alexander, aterrado.
Ela viu-o aproximar-se e fez-lhe um sinal, mais surpreendida que assustada com a sua proeza. O ruído do helicóptero no ar abafou as vozes.
Tensing aproximou-se também, mas a Dil Bahadur bastou-lhe saber que ela estava viva e voltou a correr para a sala onde tinha deixado o pai trespassado por uma bala de Tex Armadillo. Quando Tensing se inclinou sobre ela, Nadia gritou-lhe que o Rei estava gravemente ferido e indicou-lhe que fosse ter com ele. O monge precipitou-se para o mosteiro, seguindo o príncipe, enquanto Alexander tentava pôr a amiga mais cómoda, colocando-lhe o seu casaco sob a cabeça, a meio daquela ventania e da poeirada de neve solta que o helicóptero tinha levantado. Nadia estava bastante magoada pela queda, mas o ombro que deslocara estava no sítio.
- Parece que não vou morrer tão jovem - comentou Nadia, reunindo coragem para se levantar. Tinha a boca e o nariz cheios de sangue do murro que Armadillo lhe dera.
- Não te mexas até Tensing voltar ordenou-lhe Alexander, que não estava para brincadeiras.
Da sua posição, de costas no chão, Nadia viu o helicóptero subir como um grande insecto de prata contra o azul profundo do céu. Passou roçando a parede da montanha e subiu bamboleando-se pelo funil que os picos dos Himalaias formavam nesse sítio. Durante longos minutos pareceu que diminuía no firmamento, afastando-se cada vez mais. Nadia empurrou Alexander, que teimava em mantê-la deitada na neve, e levantou-se com grande esforço. Pôs um punhado de neve na boca, cuspindo-o a seguir, rosado de sangue. A cara começava a inchar-lhe.
- Olhem! - gritou subitamente o piloto, que não afastava os olhos do aparelho.
A máquina oscilava no ar, como uma mosca travada em pleno voo. O herói do Nepal sabia exactamente o que estava a acontecer: um remoinho de vento rodeara-o e as pás da hélice vibravam perigosamente. Começou a gesticular desesperado, gritando instruções que, evidentemente, Armadillo não conseguia ouvir. A única possibilidade de sair do remoinho era voar com ele em espiral ascendente. Alexander pensou que devia ser como o surf, era preciso apanhar a onda no momento exacto e aproveitar o impulso, caso contrário a força do mar obrigava-o a rebolar.
Tex Armadillo tinha muitas horas de voo, era um requisito indispensável na sua área de trabalho, e tinha pilotado todo o tipo de aviões, avionetas, planadores, helicópteros e até um balão. Dessa forma atravessava fronteiras sem ser visto, traficando armas, drogas e objectos roubados. Considerava-se um especialista, mas nada o tinha preparado para o que aconteceu.
Justamente quando a máquina emergia do funil e ele dava gritos de entusiasmo, como quando domava potros no seu longínquo rancho do Oeste americano, sentiu a vibração imensa que a sacudia. Compreendeu que não conseguiria controlá-la e esta começou às voltas, cada vez mais rapidamente, como se estivesse dentro de um liquidificador. Ao ruído atroador do motor e da hélice, juntou-se o rugido do vento. Tentou raciocinar, fazendo apelo aos seus nervos de aço e à experiência acumulada, mas nada do que tentou deu resultado. O helicóptero continuou a girar enlouquecido, preso pelo remoinho. De repente, um ruído ensurdecedor e uma pancada violenta fizeram Armadillo aperceber-se de que a hélice tinha partido. Manteve-se no ar durante mais uns minutos suportado pela força do vento até que este, subitamente, mudou de curso. Por alguns instantes houve um silêncio e Tex Armadillo teve a fugaz esperança de ainda conseguir manobrar, mas imediatamente começou a queda vertical.
Mais tarde, Alexander perguntou a si próprio se o homem se teria dado conta do que estava a acontecer ou se a morte o terá atingido como um raio, sem lhe dar tempo de a sentir chegar. Do sítio onde se encontrava, o rapaz não viu onde caía o helicóptero, mas todos ouviram a violenta explosão, seguida por uma coluna de fumo negro e espesso, que subia até ao céu.
Tensing encontrou o Rei inerte no chão, com a cabeça sobre os joelhos do seu filho Dil Bahadur, que lhe acariciava o cabelo. O príncipe não via o pai desde os seis anos quando, uma noite, o arrancaram da cama para o colocarem nos braços de Tensing, mas conseguiu reconhecê-lo porque durante todos esses anos tinha guardado a sua imagem na memória.
- Pai, pai... - murmurava, impotente, perante o homem que se esvaía em sangue diante dos seus olhos.
- Majestade, sou eu, Tensing - disse o lama, inclinando-se, por sua vez, sobre o soberano.
O Rei ergueu os olhos, velados pela agonia. Ao focar o olhar, viu um jovem bem parecido que era a cara da sua falecida mulher. Por gestos, pediu-lhe que se aproximasse mais.
- Ouve-me, filho, tenho de te dizer uma coisa... - murmurou. Tensing afastou-se, dando-lhes um momento de privacidade.
- Vai imediatamente ao palácio, à sala do Dragão de Ouro - ordenou o monarca com dificuldade.
- Pai, roubaram a estátua - respondeu o príncipe.
- Vai, de qualquer forma.
- Como posso fazê-lo se não for comigo?
Desde tempos ancestrais, eram sempre os reis que acompanhavam o herdeiro a primeira vez, para o ensinar a evitar as armadilhas mortais que protegiam o Recinto Sagrado. Essa primeira visita do pai e do filho ao Dragão de Ouro era um ritual de iniciação e marcava o fim de um reinado e o início de outro.
- Terás de o fazer sozinho - ordenou-lhe o Rei e fechou os olhos. Tensing aproximou-se do seu discípulo e colocou-lhe uma mão no ombro.
- Talvez devas obedecer ao teu pai, Dil Bahadur - disse o lama. Nesse momento entraram na sala, Alexander, segurando Nadia por um braço, porque os joelhos desta fraquejavam, e o piloto do Nepal, que ainda não se recompusera da perda do helicóptero e do acumular de surpresas desta missão. Nadia e o piloto ficaram a uma distância prudente, sem se atreverem a interferir no drama que se desenrolava diante dos seus olhos, entre o Rei e o seu filho, enquanto Alexander se agachava para examinar o conteúdo da carteira de Judit Kinski, que ainda estava no chão.
- Deves ir ao Recinto do Dragão de Ouro, filho - repetiu o Rei.
- Pode o meu honorável mestre Tensing vir comigo? O meu treino é apenas teórico. Não conheço o palácio nem as armadilhas. Atrás da Última Porta espera-me a morte - alegou o príncipe.
- É inútil ir contigo, porque eu também não conheço o caminho, Dil Bahadur. Agora o meu lugar é junto do Rei - replicou tristemente o lama.
- Conseguirá salvar o meu pai, honorável mestre? - suplicou Dil Bahadur.
- Farei todos os possíveis.
Alexander aproximou-se do príncipe e entregou-lhe um pequeno aparelho, cuja utilidade este desconhecia.
- Isto pode ajudar-te a encontrar o caminho dentro do Recinto Sagrado. É um GPS - disse.
- Um quê? - perguntou o príncipe, perplexo.
- Digamos que é um mapa electrónico de orientação dentro do palácio. Desta forma podes chegar ao Dragão de Ouro, tal como o fizeram Tex Armadillo e os seus homens para roubarem a estátua - explicou-lhe o amigo.
- Como é possível? - perguntou Dil Bahadur.
- Calculo que alguém tenha filmado o percurso - sugeriu Alexander.
- Isso é impossível. Ninguém, excepto o meu pai, tem acesso a essa parte do palácio. Mais ninguém consegue abrir a Última Porta nem evitar as suas armadilhas.
- Armadillo fê-lo e deve ter usado este aparelho. Judit Kinski e ele eram cúmplices. Talvez o teu pai lhe tenha mostrado a ela o caminho... - insistiu Alexander.
- O medalhão! Armadillo disse alguma coisa sobre uma máquina de filmar escondida no medalhão do Rei! - exclamou Nadia, que tinha presenciado a cena entre o Especialista e Tex Armadillo antes de os seus amigos irromperem na sala.
Nadia desculpou-se pelo que ia fazer e, com todo o cuidado, começou a revistar o corpo prostrado do monarca até encontrar o medalhão real, que escorregara e estava entre o pescoço e o casaco do Rei. Pediu ao príncipe que o ajudasse a tirá-lo e este hesitou, porque esse gesto tinha um significado profundo, uma vez que o medalhão representava o poder real e, em caso algum, se atrevia a tirá-lo ao pai. Mas a urgência na voz da sua amiga Nadia obrigou-o a agir.
Alexander levou a jóia à luz e observou-a atentamente. Descobriu imediatamente a máquina de filmar em miniatura, dissimulada entre os adornos de coral. Mostrou-a a Dil Bahadur e aos outros.
- Com certeza Judit Kinski colocou-a aqui. Este aparelho, do tamanho de uma ervilha, filmou a trajectória do Rei dentro do Recinto Sagrado. Foi assim que Tex Armadillo e os guerreiros azuis puderam segui-lo. Todos os seus passos estão gravados no GPS.
- Essa mulher, porque o fez? - perguntou o príncipe horrorizado, uma vez que na sua mente não existia o conceito de traição ou de cobiça.
- Suponho que pela estátua, que é muito valiosa - aventurou Alexander.
- Ouviram a explosão? O helicóptero chocou e a estátua foi destruída - disse o piloto.
- Talvez seja melhor assim... - suspirou o Rei, sem abrir os olhos.
- Com a maior humildade, permito-me sugerir que os dois jovens estrangeiros acompanhem o príncipe ao palácio. Alexander-jaguar e Nadia-águia têm o coração puro, tal como o príncipe Dil Bahadur e, possivelmente, poderão ajudá-lo na sua missão, Majestade. O jovem Alexander sabe usar esse aparelho moderno e a menina Nadia sabe ver e ouvir com o coração - disse Tensing.
- Só o Rei e o seu herdeiro podem entrar aí - murmurou o monarca.
- Com todo o respeito, Majestade, atrevo-me a contradizê-lo. Talvez haja momentos em que se deve quebrar a tradição... - insistiu o lama.
Às palavras de Tensing seguiu-se um longo silêncio. Parecia que as forças do ferido tinham atingido o seu limite, mas de repente ouviu-se novamente a sua voz.
- Está bem, que vão os três - aceitou, por fim, o soberano.
- Talvez não fosse de todo inútil, Majestade, eu dar uma vista de olhos à sua ferida - sugeriu Tensing.
- Para quê, Tensing? Já temos outro Rei. O meu tempo acabou.
- Possivelmente não teremos outro Rei até o príncipe provar que pode sê-lo - replicou o lama, levantando o ferido nos seus poderosos braços.
O herói do Nepal encontrou um saco-cama, que Tex Armadillo tinha deixado num canto, para improvisar uma cama onde Tensing colocou o Rei. O lama abriu o casaco ensanguentado do ferido e começou a lavar o peito para o examinar. A bala trespassara-o, deixando uma perfuração brutal com saída pelas costas. Pelo aspecto e localização da ferida e pela cor do sangue, Tensing compreendeu que os pulmões estavam comprometidos; não havia nada que ele pudesse fazer; toda a sua capacidade para curar e os seus poderes mentais de pouco serviam num caso como este. O moribundo também o sabia, mas precisava de mais algum tempo para tomar as suas últimas decisões. O lama deteve a hemorragia, ligou o tronco com força e pediu ao piloto que trouxesse água a ferver da cozinha improvisada para fazer um chá medicinal. Uma hora mais tarde, o monarca tinha recuperado o conhecimento e a lucidez, embora estivesse muito fraco.
- Filho, deverás ser melhor Rei do que eu - disse a Dil Bahadur, pedindo-lhe que pendurasse o medalhão ao pescoço.
- Pai, isso é impossível...
- Ouve-me porque não tenho muito tempo. Estas são as minhas instruções. Primeiro: casa-te rapidamente com uma mulher tão forte como tu. Ela deve ser a mãe do nosso povo e tu o pai. Segundo: preserva a natureza e as tradições do nosso reino; desconfia do que vem de fora. Terceiro: não castigues Judit Kinski, a mulher europeia. Não desejo que passe o resto da vida na prisão. Ela cometeu faltas muito graves, mas não nos compete limpar o seu karma. Terá de voltar noutra reencarnação para aprender o que não aprendeu nesta.
Só nessa altura se lembraram da mulher que fora responsável pela tragédia ocorrida. Calcularam que não iria longe. Não conhecia a região, ia desarmada, sem provisões, sem agasalhos e aparentemente descalça, uma vez que Armadillo a obrigara a tirar as botas. Mas Alexander pensou que, se tinha sido capaz de roubar o dragão daquela forma espectacular, também seria capaz de escapar ao próprio inferno.
- Não me sinto preparado para governar, pai - gemeu o príncipe, com a cabeça baixa.
- Não tens escolha, filho. Foste bem treinado, és valente e de coração puro. Pede conselho ao Dragão de Ouro.
- Foi destruído!
- Aproxima-te, tenho um segredo para te contar.
Os outros recuaram alguns passos, para os deixar a sós, enquanto Dil Bahadur encostava o ouvido à boca do Rei. O príncipe ouviu atentamente o segredo mais bem guardado do reino, o segredo que, durante dezoito séculos, só os monarcas coroados sabiam.
- Talvez seja hora de te despedires, Dil Bahadur... - sugeriu Tensing.
- Posso ficar com o meu pai até ao fim...?
- Não, filho, deves partir agora mesmo... - murmurou o soberano.
Dil Bahadur beijou o pai na testa e recuou. Tensing cingiu o seu discípulo num forte abraço. Despediam-se por muito tempo, talvez para sempre. O príncipe tinha de enfrentar a sua prova de iniciação e podia não regressar vivo; por outro lado, o lama tinha de cumprir a promessa feita a Grr-ympr, substituindo-a por seis anos no Vale dos Yetis. Pela primeira vez na sua vida, Tensing sentiu-se derrotado pela emoção. Amava aquele rapaz como um filho, mais que a si próprio, e separar-se dele doía-lhe como uma queimadura. O lama tentou manter distância e acalmar a ansiedade do seu coração. Observou o processo da sua própria mente, respirou fundo, tomando nota dos seus sentimentos desenfreados e do facto de ainda lhe faltar um longo caminho para atingir o desprendimento absoluto dos assuntos terrenos, incluindo os afectos. Sabia que no plano espiritual não existe a separação. Lembrou-se de que ele mesmo tinha ensinado ao príncipe que cada ser faz parte de uma só unidade, que tudo está ligado. Dil Bahadur e ele próprio estariam eternamente entrelaçados, nesta e noutras reencarnações. Sendo assim, porque sentia essa angústia?
- Serei capaz de chegar ao Recinto Sagrado, honorável mestre? - perguntou o jovem, interrompendo-lhe os pensamentos.
- Lembra-te que deves ser como o tigre dos Himalaias: ouve a voz da intuição e do instinto. Confia nas virtudes do teu coração - replicou o monge.
O príncipe, Nadia e Alexander iniciaram a viagem de regresso à capital. Como já conheciam a rota, iam preparados para os obstáculos. Usaram o atalho pelo Vale dos Yetis, de modo que não se cruzaram com o destacamento de soldados do general Myar Kunglung, que nesse momento subia a vereda escarpada da montanha, acompanhado por Kate Cold e Perna.
Os homens azuis, pelo contrário, não conseguiram evitar Kunglung. Tinham corrido monte abaixo, à velocidade máxima que o terreno abrupto permitia, fugindo dos demónios horripilantes que os perseguiam. Os yetis não conseguiram alcançá-los porque não se atreveram a descer para além dos seus limites habituais. Aquelas criaturas tinham gravada na memória genética a sua lei fundamental: manter-se isolados. Raras vezes abandonavam o seu vale secreto e, se o faziam, era apenas para procurar alimento nos picos mais inacessíveis, longe dos seres humanos. Isso salvou a Seita do Escorpião, porque o instinto de preservação dos yetis foi mais forte que o desejo de agarrar os seus inimigos. Houve uma altura em que decidiram parar. Não o fizeram de boa vontade porque, renunciar a uma luta apetitosa, talvez a única com que se deparariam em muitos anos, foi um sacrifício enorme. Ficaram muito tempo uivando de frustração, distribuíram algumas cacetadas entre si, para se consolarem, e depois empreenderam, cabisbaixos, o regresso às suas paragens.
Os guerreiros do Escorpião não perceberam por que razão os diabos de capacetes ensanguentados abandonavam a perseguição, mas deram graças à deusa Kali por isso. Estavam tão assustados, que a ideia de regressar para se apoderarem da estátua, como tinham planeado, nem lhes passou pela cabeça. Continuaram a descer pela única vereda possível e, inevitavelmente, encontraram-se frente a frente com os soldados do Reino Proibido.
- São eles, os homens azuis. - gritou Perna, assim que os avistou ao longe.
O general Myar Kunglung não teve dificuldade em prendê-los, porque eles não tinham hipótese de fugir. Entregaram-se sem opor qualquer resistência. Um oficial encarregou-se de os levar até à capital, vigiados pela maior parte dos soldados, enquanto Perna, Kate, o general e vários dos seus melhores homens continuavam em direcção a Chenthan Dzong.
- O que farão àqueles bandidos? - perguntou Kate ao general.
- Talvez o caso deles seja estudado pelos lamas, deliberado pelos juizes, para mais tarde o Rei decidir o seu castigo. Pelo menos, assim se fez noutros casos, mas, na realidade, não temos muita prática a castigar criminosos.
- Nos Estados Unidos passariam, com certeza, o resto das suas vidas na prisão.
- E aí atingiriam a sabedoria? - perguntou o general.
As gargalhadas de Kate foram de tal ordem que esteve prestes a cair do cavalo.
- Duvido, general - replicou limpando as lágrimas quando, finalmente, recuperou o equilíbrio.
Myar Kunglung não percebeu o que provocava tanta hilaridade à velha escritora. Concluiu que os estrangeiros são pessoas um pouco estranhas, com maneiras incompreensíveis, e que mais valia não perder energia tentando analisá-los, era suficiente aceitá-los.
Nessa altura, a noite começava a cair e foi necessário parar e montar um pequeno acampamento, aproveitando um dos socalcos cortados na montanha. Estavam impacientes por chegar ao mosteiro, mas sabiam que escalar sem outra luz além das lanternas era um absurdo.
Kate estava extenuada. Ao esforço da viagem juntava-se a altitude, a que não estava habituada, e a tosse, que não a deixava em paz. Mantinham-na a sua vontade de ferro e a esperança de que, lá em cima, encontraria Alexander e Nadia.
- Talvez não se devesse preocupar, avozinha. O seu neto e Nadia estão seguros, porque com o príncipe e com Tensing nada lhes pode acontecer - tranquilizou-a Perna.
- Alguma coisa muito má deve ter acontecido lá em cima para que os bandidos fugissem daquela maneira - replicou Kate.
- Aqueles homens mencionaram qualquer coisa acerca da maldição do Dragão de Ouro e a perseguição de uns diabos. Você acha que nestas montanhas há demónios, avozinha? - perguntou a jovem.
- Não acredito nessas tontices, miúda - replicou Kate, que já se tinha resignado ao facto de toda a gente naquele país a tratar por avozinha.
A noite foi longa e ninguém conseguiu dormir descansado. Os soldados prepararam um pequeno-almoço simples de chá salgado com manteiga, arroz e uns vegetais secos com aspecto e sabor a sola de sapato e, depois, continuaram a marcha. Kate não se deixava ficar para trás, apesar dos seus sessenta e cinco anos e dos seus pulmões enfraquecidos pelo fumo do tabaco. O general Myar Kunglung não dizia nada nem olhava para ela, com receio de esbarrar com os seus penetrantes olhos azuis, mas no seu coração de guerreiro começava a surgir uma admiração inevitável. Ao princípio detestava-a e não via a hora de se ver livre dela, mas com o correr dos dias deixou de considerá-la uma velha impossível e começou a respeitá-la.
O resto da subida decorreu sem surpresas. Quando, por fim, chegaram ao mosteiro fortificado, julgaram que não estava lá ninguém. Um silêncio absoluto imperava nas antigas ruínas. Alerta, com as armas na mão, o general e os soldados entraram à frente, seguidos de perto pelas duas mulheres. Dessa forma percorreram, uma por uma, as salas amplas, até chegarem à última, em cujo umbral foram interceptados por um monge gigantesco, munido de dois paus unidos por uma corrente. Com um complicado passo de dança, este levantou a arma e, antes que o grupo pudesse reagir, enrolou a corrente à volta do pescoço do general. Os soldados imobilizaram-se, desconcertados, enquanto o seu chefe pontapeava o ar, suspenso pelos braços monumentais do monge.
- Honorável mestre Tensing! - exclamou Perna, encantada por vê-lo.
- Perna? - perguntou ele.
- Sou eu, honorável mestre! - disse ela, e acrescentou, apontando para o humilhado militar: - Talvez fosse prudente libertar o honorável general My ar Kunglung...
Tensing colocou-o no chão com delicadeza, tirou-lhe a corrente do pescoço e inclinou-se respeitosamente diante dele com as mãos unidas à altura da testa.
- Tampo kachi, honorável general - cumprimentou.
- Tampo kachi. Onde está o Rei? - replicou o general, tentando disfarçar a sua indignação e ajeitando o casaco do uniforme.
Tensing deixou-os passar e o grupo entrou num vasto aposento. Metade do tecto tinha desmoronado há anos e o restante mantinha-se de pé com dificuldade, havia um buraco enorme numa das paredes exteriores, por onde entrava a luz difusa do dia. Uma nuvem, presa no cimo da montanha, criava um ambiente nebuloso onde tudo parecia impreciso, como imagens de um sonho. Um tapete aos fiapos pendia entre as ruínas e uma elegante estátua de Buda reclinado, milagrosamente intacta, estava no chão, como que surpreendida em pleno descanso.
Sobre uma mesa improvisada jazia o corpo do Rei, rodeado de meia-dúzia de velas de banha acesas. Rajadas de ar frio como cristal faziam vacilar as chamas das velas na névoa dourada. O heróico piloto do Nepal, que velava junto do cadáver, não se mexeu com a irrupção dos militares.
Kate Cold julgou que presenciava uma filmagem. A cena era irreal: a sala em ruínas, envolta numa neblina esbranquiçada; restos de estátuas centenárias e de colunas partidas pelo chão; pedaços de neve e geada nas irregularidades do piso. As personagens eram tão teatrais como o cenário: o monge descomunal com corpo de guerreiro mongol e rosto de santo, sobre cujo ombro se baloiçava o macaquinho Borobá; o severo general Myar Kunglung, vários soldados e o piloto, todos de uniforme, como se tivessem caído ali por engano; e, finalmente, o Rei, que mesmo na morte se impunha com a sua presença serena e digna.
- Onde estão Alexander e Nadia? - perguntou a avó, vencida pela fadiga.
CAPÍTULO 19
O príncipe
Alexander ia à frente, seguindo as instruções do vídeo e do GPS, porque o príncipe não percebia o seu funcionamento e o momento não era o mais indicado para uma lição. Alexander não era um especialista naqueles aparelhos e, além disso, aquele era um modelo ultramoderno usado apenas pelo Exército Americano, mas estava habituado a usar tecnologia e não lhe foi difícil descobrir como funcionava.
Dil Bahadur tinha passado doze anos da sua vida preparando-se para o momento de percorrer o labirinto de portas no andar inferior do palácio, atravessar a Ultima Porta e vencer, um por um, os obstáculos espalhados pelo Recinto Sagrado. Tinha aprendido as instruções, convicto de que, se a memória lhe falhasse, o pai estaria ao seu lado até conseguir fazê-lo sozinho. Agora tinha de enfrentar aquela prova com os conselhos do seu mestre Tensing e com a presença dos seus novos amigos, Nadia e Alexander, como única ajuda. Inicialmente, olhava com desconfiança para o pequeno ecrã que Alexander levava na mão, até se aperceber de que os conduzia directamente à porta adequada. Nunca tiveram de retroceder, nunca abriram uma porta errada e, dessa forma, viram-se na sala das candeias de ouro. Desta vez ninguém guardava a Última Porta. O guarda ferido pelos homens azuis, bem como o cadáver do seu companheiro, tinham sido retirados, sem que outros os tivessem substituído, e o sangue tinha sido lavado do chão sem deixar rasto.
- Uau! - exclamaram Nadia e Alexander em uníssono, ao verem aquela magnífica porta.
- Temos de rodar os jades certos. Se nos enganarmos, o sistema fecha-se e não conseguiremos entrar - avisou o príncipe.
- É tudo uma questão de observarmos bem o que fez o Rei. Está gravado no vídeo - explicou Alexander.
Viram as filmagens duas vezes, até se sentirem seguros, e depois Dil Bahadur moveu quatro jades talhados em forma de flor de lótus. Não aconteceu nada. Os três jovens esperaram com a respiração suspensa, contando os segundos. De repente, os dois batentes da porta começaram lentamente a deslocar-se.
Encontraram-se na sala circular com nove portas idênticas e, tal como fizera Tex Armadillo dias antes, Alexander colocou-se em cima do olho pintado no chão, abriu os braços e rodou num ângulo de quarenta e cinco graus. A sua mão direita apontou para a porta que deviam abrir.
Ouviram um coro arrepiante de lamentos e chegou-lhes ao nariz um cheiro fétido a tumba e a decomposição. Não se via nada, só um negrume insondável.
- Eu irei primeiro, porque se supõe que o meu animal totémico, o jaguar, pode ver no escuro - ofereceu-se Alexander, atravessando o umbral, seguido pelos amigos.
- Vês alguma coisa? - perguntou-lhe Nadia.
- Nada - confessou Alexander.
- Esta é uma ocasião em que conviria ter um animal totémico mais humilde que o jaguar. Como uma barata, por exemplo - disse Nadia, rindo-se nervosamente.
- Possivelmente não seria de todo uma má ideia usar a tua lanterna... - sugeriu o príncipe.
Alexander sentiu-se um idiota. Tinha-se esquecido completamente que trazia a lanterna e o canivete no bolso do casaco. Ao acender a lanterna, viram-se num corredor, que percorreram hesitantes, até chegar à porta que havia no fim. Abriram-na com muitas precauções. Ali, a fetidez era muito pior, mas havia uma claridade fraca que permitia ver. Estavam rodeados de esqueletos humanos que pendiam do tecto, baloiçando no ar com um tilintar macabro de ossos, enquanto aos seus pés fervilhava um asqueroso colchão vivo de serpentes. Alexander deu um grito e tentou retroceder, mas Dil Bahadur agarrou-o por um braço.
- São ossos muito antigos, foram colocados aqui há séculos, para desencorajar os intrusos - disse.
- E as cobras?
- Os homens do Escorpião passaram por aqui, Jaguar, isso quer dizer que nós também podemos fazê-lo - animou-o Nadia.
- Perna disse que aqueles tipos são imunes ao veneno de insectos e répteis - lembrou-lhe Alexander.
- Talvez essas cobras não sejam venenosas. Como me ensinou o meu honorável mestre Tensing, a forma da cabeça das víboras perigosas é mais triangular. Sigamos - ordenou o príncipe.
- Estes répteis não aparecem no vídeo - comentou Nadia.
- O Rei levava a máquina de filmar no medalhão, de modo que só filmava o que tinha à frente, não aos pés - explicou Alexander.
- Isso significa que devemos ter muito cuidado com o que há por baixo e por cima do peito do Rei - concluiu ela.
Com as mãos, o príncipe e os amigos afastaram os esqueletos e, pisando as víboras, avançaram até à porta seguinte, que dava acesso a uma sala na penumbra e vazia.
- Espera! - deteve-o Alexander. - Aqui o teu pai mexeu nalguma coisa existente no umbral.
- Já me lembro, é uma pinha talhada em madeira - disse Dil Bahadur, tacteando a parede.
Encontrou a alavanca que procurava e empurrou-a. A pinha afundou-se e ouviram de imediato uma barulheira terrível e viram cair do tecto um bosque de lanças, que levantou uma nuvem de pó. Esperaram que a última lança se cravasse no chão.
- Agora é que Borobá mais falta nos faz. Ele poderia experimentar o caminho... Enfim, eu passarei primeiro porque sou a mais magra e leve - decidiu Nadia. - Ocorre-me que esta armadilha, possivelmente, não é tão simples como parece - avisou-os Dil Bahadur. Deslizando como uma enguia, Nadia passou pelas primeiras barras metálicas. Tinha percorrido alguns metros quando roçou com o cotovelo numa delas e, subitamente, um buraco se abriu sob os seus pés. Instintivamente, agarrou-se às lanças que estavam mais próximas e ficou praticamente suspensa sobre o vazio. As mãos escorregavam-lhe no metal enquanto, com os pés, ela procurava algum ponto de apoio. Nessa altura Alexander já a tinha agarrado, sem se preocupar onde punha os pés, na pressa de ajudá-la. Com um braço, agarrou-a pela cintura e atraiu-a a si, segurando-a com força contra o seu corpo. A sala inteira pareceu vacilar, como se houvesse um terramoto, e mais algumas lanças caíram do tecto, mas nenhuma perto deles. Durante alguns minutos os dois amigos permaneceram imóveis, abraçados, à espera. Depois começaram a separar-se muito lentamente. - Não toques em nada - sussurrou Nadia, receando que até o ar que expirava provocasse uma tragédia. Chegaram ao outro lado e fizeram sinal a Dil Bahadur para que ele passasse, embora este já tivesse iniciado o trajecto, porque não receava as lanças: estava protegido pelo seu amuleto. - Poderíamos ter morrido, espetados como insectos - comentou Alexander limpando os óculos, que estavam embaciados. ^
- Mas isso não aconteceu, não é verdade? - recordou-lhe Nadia, ^ apesar de estar tão assustada como o amigo. Se inspirarem três vezes profundamente, deixarem que o ar chegue ao ventre e depois expirarem lentamente, talvez se acalmem... - aconselhou-os o príncipe. - Não há tempo para fazer ioga. Continuemos - interrompeu- o Alexander.
O GPS indicou a porta que deviam abrir e, mal o fizeram, as lanças subiram em simultâneo e a sala voltou a ficar vazia. Depois encontraram duas salas, cada uma com várias portas, mas sem armadilhas. Acalmaram um pouco e começaram a respirar com normalidade, mas não se descuidaram.
De repente viram-se num espaço completamente escuro.
- No vídeo não se vê nada, o ecrã está preto - disse Alexander.
- O que haverá aqui? - perguntou Nadia.
O príncipe agarrou na lanterna e iluminou o chão, onde viram uma árvore frondosa e cheia de frutos e pássaros, pintada com tanta mestria que parecia plantada em terra firme, erguida no centro do aposento. Era tão bonita e tinha um aspecto tão inofensivo, que convidava a aproximar-se e a tocá-la.
- Não dêem um passo! É a Árvore da Vida. Ouvi histórias sobre o perigo de a pisarmos - exclamou Dil Bahadur, esquecendo-se por uma vez das suas boas maneiras.
O príncipe agarrou na pequena tigela onde preparava a sua comida, e que trazia sempre entre as pregas da sua túnica, e atirou-a ao chão. A Árvore da Vida estava pintada numa fina seda estendida por cima de um poço profundo. Um passo em frente tê-los-ia precipitado no vazio. Não sabiam que ali, nesse mesmo trajecto, tinha morrido um dos sequazes de Tex Armadillo. O bandido jazia no fundo de um poço onde, nesse mesmo momento, as ratazanas acabavam de lhe limpar os ossos.
- Como conseguiremos passar? - perguntou Nadia.
- Talvez fosse melhor esperarem aqui - pediu o príncipe. Com grandes precauções, Dil Bahadur tacteou com o pé até encontrar um rebordo estreito ao longo da parede. Não se via porque estava pintado de preto e confundia-se com a cor do chão. Com as costas coladas à parede, foi avançando. Deslocava a perna direita alguns centímetros, procurava equilibrar-se e depois deslocava a esquerda. Desta forma chegou ao outro lado.
Alexander compreendeu que, para Nadia e devido ao medo que ela tinha das alturas, esta seria uma das provas mais difíceis.
- Agora deves recorrer ao espírito da águia. Dá-me a mão, fecha os olhos e põe toda a tua atenção nos pés - disse-lhe.
- Em vez disso, porque não espero aqui? - sugeriu ela.
- Não. Vamos passar juntos - intimou-a o amigo.
Não sabiam qual a profundidade do buraco e não pensavam averiguá-lo. O bandido de Tex Armadillo que caiu ao poço tinha escorregado sem que ninguém conseguisse impedi-lo. Por um instante pareceu flutuar no ar, suportado pela copa da Árvore da Vida, de pernas e braços abertos, envolto nas suas vestes negras, como um morcego gigante. A ilusão durou um abrir e fechar de olhos. Com um grito de verdadeiro terror, o homem caiu na boca negra do poço. Os seus companheiros ouviram a pancada do corpo ao bater no fundo e depois reinou um silêncio arrepiante. Felizmente, Nadia não sabia nada disto. Agarrou-se à mão de Alexander e seguiu-o, passo a passo, até ao outro lado.
Ao abrir outra das portas, os três amigos viram-se rodeados de espelhos. Não era só nas paredes, também no tecto e no chão, multiplicando as imagens até ao infinito. Além disso, a sala era inclinada, como um cubo apoiado num dos seus vértices. Não conseguiam avançar de pé, tinham de o fazer gatinhando, agarrando-se uns aos outros, completamente desorientados. As portas não se viam, porque eram espelhos também. Passados alguns segundos estavam com náuseas, sentiam a cabeça a estalar e perdiam a razão.
- Não olhem para os lados, fixem os olhos em quem vai à frente. Sigam-me em fila, sem se separarem. A direcção está indicada no ecrã - ordenou Alexander.
- Não sei como vamos encontrar a saída - disse Nadia, completamente baralhada.
- Se abrirmos a porta errada, é possível que seja activado um sistema de segurança que nos mantenha aqui para sempre - avisou-os o príncipe, com a sua calma habitual.
- Para isso dispomos da mais moderna tecnologia - tranquilizou-o Alexander, embora ele próprio tivesse dificuldade em controlar os nervos.
As portas eram todas iguais, mas recorrendo ao GPS, Alexander percebeu em que direcção deviam seguir. O Rei parara em vários sítios antes de abrir a porta correcta. Rebobinou o vídeo para observar os pormenores e reparou que o espelho reflectia uma imagem deformada do Rei.
- Um dos espelhos é côncavo. Essa é a porta - concluiu.
Quando Dil Bahadur se viu gordo e de pernas curtas no espelho, empurrou, este cedeu e conseguiram sair. Estavam num corredor estreito e comprido que se enroscava sobre si próprio como uma espiral. Diferenciava-se dos outros recintos do palácio por não ter portas à vista mas não duvidaram que existisse uma no fim, porque o vídeo a mostrava. Não era possível perder-se, era simplesmente uma questão de avançar. O ar era rarefeito e flutuava uma poeira fina, que parecia dourada sob a luz dos pequenos candeeiros suspensos do tecto. No vídeo viram que o Rei passava depressa e sem hesitar, mas isso não significava que fosse seguro, podia haver perigos que o vídeo não registava.
Entraram no corredor, olhando em redor, sem saber de onde viria a ameaça, mas conscientes de que não podiam descuidar-se um segundo. Tinham dado vários passos quando perceberam que pisavam alguma coisa mole. Tinham a sensação de andar sobre uma lona esticada, que cedia com o peso dos corpos.
Dil Bahadur tapou a boca e o nariz com a túnica e fez gestos desesperados aos amigos para o seguirem sem parar. Acabava de se aperceber de que, na realidade, avançavam sobre um sistema de foles. A cada passo que davam, saía de uns buraquinhos no chão o pó que tinham visto ao entrar. Passados alguns segundos, o ar estava tão saturado que não se via a trinta centímetros de distância. A vontade de tossir era insuportável, mas controlaram-se como puderam, porque, ao fazê-lo, inspiravam o pó às golfadas. A única solução era tentar chegar à saída o mais depressa possível. Começaram a correr, tentando não respirar, o que era impossível, dado o comprimento do corredor. Recearam que fosse um veneno mortal, mas pensaram que, se o Rei atravessava este corredor com frequência, não podia tratar-se disso.
Nadia era boa nadadora porque fora criada no Amazonas, onde a vida decorre em cima da água, e conseguia permanecer submersa mais de um minuto. Isso permitiu-lhe prender a respiração melhor que os amigos, mas mesmo assim teve de inspirar algumas vezes. Calculou que Alexander e Dil Bahadur tinham muito mais desse estranho pó no organismo do que ela. Em quatro passadas chegou ao fim do corredor, abriu a única porta que havia e puxou os outros na direcção do umbral.
Sem pensar nos riscos que o aposento seguinte poderia conter, os três amigos precipitaram-se para fora do corredor, caindo uns por cima dos outros, afogados, respirando a plenos pulmões e tentando sacudir o pó que aderira à roupa. No vídeo não aparecia nada de ameaçador. O Rei tinha passado por aquele quarto com a mesma segurança com que o fizera pelo corredor. Nadia, que estava em melhores condições que os rapazes, pediu-lhes que não se mexessem enquanto ela examinava o local.
A sala estava bem iluminada e o ar parecia normal. Havia várias portas, mas o ecrã mostrava com clareza qual delas deviam usar. Deu alguns passos e reparou que lhe custava fixar a vista: milhares de pontos, linhas e figuras geométricas de cores brilhantes bailavam-lhe diante dos olhos. Esticou os braços, tentando manter o equilíbrio. Voltou para trás e comprovou que Alexander e Dil Bahadur também cambaleavam.
- Sinto-me muito mal - murmurou Alexander, deixando-se cair sentado no chão.
- Jaguar, abre os olhos! - disse Nadia, sacudindo-o. - O efeito desse pó parece-se com o da poção que nos deram os índios no Amazonas, lembras-te de que tivemos visões?
- Um alucinogénio? Achas que estamos drogados?
- O que é um alucinogénio? - perguntou o príncipe, que só se mantinha de pé graças ao controlo que exercia sobre o seu corpo.
- Sim, acho. Cada um de nós verá, com certeza, coisas diferentes. Não é real - explicou Nadia, segurando nos amigos para os ajudar a andar, sem desconfiar de que, dentro de poucos segundos, ela própria cairia no inferno daquela droga.
Apesar da advertência de Nadia, nenhum dos três suspeitava do terrível poder daquele pó dourado. O primeiro sintoma foi que se afundavam num labirinto psicadélico de cores e figuras geométricas que se deslocavam com uma velocidade vertiginosa. Com um esforço supremo, conseguiram manter os olhos abertos e avançar tropeçando, interrogando-se o que faria o Rei para evitar a droga. Sentiam que se desligavam do mundo e da realidade, como se fossem morrer, e não conseguiam conter os gemidos de angústia. Nessa altura tinham chegado à sala seguinte, que era muito mais ampla que as anteriores. Ao ver o que ali havia, lançaram uma exclamação de pavor, apesar de uma parte dos seus cérebros repetir que aquelas imagens eram, unicamente, fruto da sua imaginação.
Estavam no inferno, rodeados de monstros e de demónios que os ameaçavam como uma matilha de feras. Por toda a parte viam corpos destroçados, tortura, sangue e morte. Um coro horripilante de gritos ensurdecia-os. Vozes cavernosas chamavam por eles, como fantasmas esfomeados.
Alexander viu nitidamente a sua mãe nas garras de uma poderosa ave de rapina, negra e ameaçadora. Estendeu as mãos para tentar resgatá-la e, nesse instante, o pássaro da morte devorou a cabeça de Lisa Cold. Deixou escapar um grito, do mais profundo do seu peito.
Nadia estava de pé, num equilíbrio precário, sobre uma viga estreita no último andar de um dos arranha-céus que visitara com Kate em Nova Iorque. Aos seus pés, centenas de metros mais abaixo, via tudo coberto de lava ardente. A vertigem da morte apoderou-se do seu espírito, anulando a sua capacidade de raciocínio, enquanto a viga se inclinava cada vez mais. Ouviu o chamamento do abismo como uma tentação fatal.
Por outro lado, Dil Bahadur sentiu que o seu espírito se libertava, atravessava o firmamento como um raio e chegava às ruínas do mosteiro fortificado, no momento preciso em que o seu pai morria nos braços de Tensing. Depois viu um exército de seres sanguinários que atacava o desprotegido Reino do Dragão de Ouro. E a única coisa que havia entre ambos era ele próprio, nu e vulnerável.
As visões eram diferentes para cada um deles, mas igualmente atrozes. Representavam o que mais temiam, as suas piores lembranças, pesadelos e fraquezas. Aquela era uma viagem pessoal aos lugares escondidos das suas próprias consciências. No entanto, para eles foi uma viagem muito menos árdua que para Tex Armadillo e para os guerreiros do Escorpião, porque os três jovens eram almas boas, não carregavam o peso dos crimes abomináveis dos outros indivíduos.
O primeiro a reagir foi o príncipe, que praticava há muitos anos o controlo da mente e do corpo. Com um esforço brutal, libertou-se das figuras maléficas que o atacavam e deu alguns passos pela sala.
- Tudo o que vemos é ilusão - disse, e agarrando os amigos pela mão, levou-os à força na direcção da saída.
Alexander não conseguia focar bem a vista para seguir as instruções do ecrã, mas teve o bom senso suficiente para se dar conta de que, no vídeo, só se via um quarto vazio, prova de que Dil Bahadur tinha razão e de que aquelas cenas diabólicas eram apenas produto da sua imaginação. Sentaram-se ali, apoiados uns aos outros, para descansar um pouco, até terem acalmado e conseguirem lidar com as visões horrendas do alucinogénio, que não desapareceram. Encorajando-se mutuamente, os três jovens conseguiram pôr-se de pé. O Rei tinha-se dirigido para a porta precisa sem sofrer, aparentemente, nada do que agora os afectava. Pensaram que, com certeza, o Rei aprendera a não inalar o pó, ou que dispunha de um antídoto para a droga. De qualquer forma, no vídeo, o monarca parecia a salvo do suplício psicológico sofrido por eles.
Na última sala do labirinto que protegia o Dragão de Ouro, a mais ampla de todas, os demónios e as cenas de horror desapareceram subitamente e foram substituídas por uma paisagem maravilhosa. O mal-estar provocado pela droga tinha dado lugar a uma euforia inexplicável. Sentiam-se leves, poderosos, invencíveis. Sob a luz pálida de centenas de pequenas candeias de azeite, viram um jardim envolto numa bruma suave e rosada, que saía do chão e se elevava até à copa das árvores. Aos seus ouvidos chegava um coro de vozes angelicais, e notaram que havia uma fragrância penetrante de flores silvestres e frutas tropicais. O tecto tinha desaparecido e, no seu lugar, viram um céu ao pôr do Sol, cruzado por pássaros com plumagens de cores vivas. Esfregaram os olhos, incrédulos.
- Isto também não é real. Com certeza ainda estamos drogados - murmurou Nadia.
- Vemos todos a mesma coisa? Eu vejo um parque - acrescentou Alexander.
- Eu também - disse Nadia.
- E eu. Se vemos os três a mesma coisa, não se trata de visões. Esta é uma armadilha, talvez a mais perigosa de todas. Sugiro que não toquemos em nada e passemos rapidamente... - avisou Dil Bahadur.
- De modo que não estamos a sonhar? Isto parece-se com o Jardim do Éden - comentou Alexander, ainda um pouco ébrio pelos pós dourados da sala anterior.
- Que jardim é esse? - perguntou Dil Bahadur.
- O Jardim do Éden aparece na Bíblia. Aí, o Criador colocou o primeiro casal de seres humanos. Creio que quase todas as religiões têm um jardim semelhante. O Paraíso, um lugar de eterna beleza e felicidade - explicou o amigo.
Alexander pensou que aquilo que presenciavam podiam ser imagens virtuais ou projecções de cinema, mas imediatamente compreendeu a impossibilidade de ser uma tecnologia tão moderna. O palácio fora construído há muitos séculos.
Entre as brumas, onde voavam delicadas borboletas, surgiram três figuras humanas, duas raparigas e um jovem de beleza impressionante, com os cabelos como fios de seda que a brisa levantava, vestidos com leves sedas bordadas, com grandes asas de penas cor de ouro. Deslocavam-se com extraordinária graciosidade, chamando-os por gestos, estendendo-lhes os braços. A tentação de se aproximar daqueles seres translúcidos e de se abandonar ao prazer de voar com eles, levados por aquelas asas poderosas, era quase irresistível. Alexander deu um passo em frente, hipnotizado por uma das donzelas, e Nadia sorriu ao jovem desconhecido, mas Dil Bahadur teve presença de espírito suficiente para agarrar nos amigos pelo braço.
- Não lhes toquem, são fatais. Este é o jardim das tentações - suplicou-lhes.
Mas Nadia e Alexander, de cabeça perdida, sacudiam-se, tentando libertar-se das mãos do príncipe.
- Não são reais, estão pintadas nas paredes ou são estátuas. Ignorem-nas - repetia este.
- Mas movem-se e chamam por nós... - murmurou Alexander, apaler-mado.
- É um truque, uma ilusão de óptica. Olhem para ali! - exclamou Dil Bahadur obrigando-os a olhar para um canto do jardim.
Deitado de bruços sobre um maciço de flores pintadas, estava o corpo inerte de um dos homens azuis. Dil Bahadur, à força, levou até lá os amigos. Inclinou-se e voltou-o. Nessa altura viram a forma horrível como tinha perecido.
Os guerreiros do Escorpião tinham entrado naquele jardim fantástico como num sonho, drogados pelos pós dourados, que os faziam acreditar em tudo o que viam. Eram homens brutais, que passavam a vida a cavalo, dormiam no chão duro, estavam habituados à crueldade, ao sofrimento e à pobreza. Nunca tinham visto nada tão bonito ou delicado, não entendiam nada de música, de flores, de fragrâncias ou de borboletas como as daquele jardim. Adoravam serpentes, escorpiões e deuses sanguinários do panteão hindu. Receavam os demónios e o inferno, mas nunca tinham ouvido falar do Paraíso ou de seres angelicais como os daquela última armadilha do Recinto Sagrado. O que conheciam de mais parecido à intimidade e ao amor era a camaradagem rude entre eles. Tex Armadillo tivera de os ameaçar com a pistola para impedir que parassem naquele jardim embruxado, mas não conseguira evitar que um deles sucumbisse à tentação.
O homem estendeu a mão e tocou no braço estendido de uma das belas donzelas aladas. Encontrou a frieza do mármore, mas a sua textura não era lisa, era áspera como lixa ou vidro moído. Retirou a mão, surpreendido, e viu que a palma estava arranhada. Imediatamente a pele começou a gretar, a abrir-se, enquanto a carne se dissolvia como se fosse queimada até aos ossos. Os outros acorreram aos seus gritos, mas não havia nada a fazer. O veneno mortal já tinha entrado na corrente sanguínea e avançava rapidamente pelo braço, como um ácido corrosivo. Em menos de um minuto, o infeliz estava morto.
Agora, Alexander, Nadia e Dil Bahadur estavam diante do cadáver, que durante aqueles dias secara como uma múmia em consequência do veneno. O corpo tinha diminuído, era um esqueleto com uma pele negra colada aos ossos, que exalava um cheiro persistente a cogumelos e a musgo.
- Como já disse, talvez seja melhor não tocar em nada... - repetiu o príncipe, mas a sua advertência já não era necessária porque, perante aquele espectáculo, Nadia e Alexander acordaram do transe.
Os três jovens encontravam-se, finalmente, na sala do Dragão de Ouro. Embora nunca a tivesse visto, Dil Bahadur reconheceu-a imediatamente pelas descrições dadas pelos monges, nos quatro mosteiros onde aprendera o código. Ali estavam as paredes cobertas de lâminas de ouro, gravadas com cenas em baixo-relevo da vida de Sidarta Gautama, os candelabros de ouro maciço com as velas de cera de abelha, as delicadas candeias de azeite com os seus reflectores de filigrana de ouro, os perfumadores de ouro onde se queimava incenso e mirra. Ouro, ouro por toda a parte. Aquele ouro, que tinha despertado a cobiça de Tex Armadillo e dos homens azuis, deixava Dil Bahadur, Alexander e Nadia, para quem este metal não era importante, totalmente indiferentes.
- Talvez não fosse pedir muito se nos dissesses o que fazemos aqui - sugeriu Alexander ao príncipe, sem conseguir evitar uma certa ironia na voz.
- Talvez nem eu próprio saiba - replicou Dil Bahadur.
- Por que razão o teu pai pediu que viesses aqui? - quis saber Nadia.
- Possivelmente para consultar o Dragão de Ouro.
- Mas se o roubaram! Aqui não há nada, além daquela pedra preta com um pedacinho de quartzo, que deve ser a base onde estava a estátua - disse Alexander.
- Aquilo é o Dragão de Ouro - informou o príncipe.
- O quê?
- A base de pedra. Levaram uma estátua muito bonita, mas na verdade o oráculo sai da pedra. Esse é o segredo dos reis, que nem os monges dos mosteiros sabem. Esse é o segredo que me contou o meu pai e que vocês jamais poderão divulgar.
- Como funciona?
- Primeiro tenho de salmodiar a pergunta no idioma dos yetis; então o quartzo na pedra começa a vibrar e emite um som, que depois tenho de interpretar.
- Estás a brincar com a minha cara? - perguntou Alexander. Dil Bahadur não entendeu o que Alexander queria dizer. Não tinha a menor intenção de brincar com a cara de ninguém.
- Vejamos como se faz. O que pensas perguntar-lhe? - perguntou Nadia, sempre prática.
- Talvez o mais importante seja informar-me sobre o meu karma, para poder cumprir o meu destino sem me desviar - decidiu Dil Bahadur.
- Desafiámos a morte para vir aqui consultar o teu karma? - troçou Alexander.
- Isso até eu posso dizê-lo: és um bom príncipe e serás um bom rei - acrescentou Nadia.
Dil Bahadur pediu aos amigos que se sentassem em silêncio no fundo da sala e depois aproximou-se da plataforma onde anteriormente se apoiavam as patas da magnífica estátua. Acendeu os incensários e as velas, e sentou-se com as pernas cruzadas por um tempo que os amigos acharam eterno. O príncipe meditou em silêncio até acalmar a sua ansiedade e limpar a sua mente de qualquer pensamento, desejos, temores e curiosidade. Abriu-se por dentro como a flor de lótus, tal como o seu mestre lhe tinha ensinado, para receber a energia do universo.
As primeiras notas foram quase um murmúrio, mas rapidamente o cântico do príncipe se converteu num rugido poderoso que brotava da própria terra, um som gutural que os dois jovens nunca tinham ouvido. Era difícil de acreditar que fosse um som humano, parecia provir de um grande tambor no centro de uma enorme caverna. As notas roucas rodavam, subiam, desciam, adquiriam ritmo, volume e velocidade, depois acalmavam para tornar a começar, como a ondulação do mar. Cada nota batia contra as lâminas de ouro das paredes e voltava multiplicada. Fascinados, Nadia e Alexander sentiam a vibração dentro dos seus próprios ventres, como se fossem eles a emiti-la. Depressa repararam que, ao canto do príncipe, se tinha juntado uma segunda voz, muito diferente: era a resposta do pequeno pedaço de quartzo amarelado incrustado na pedra negra. Dil Bahadur calou-se para ouvir a mensagem da pedra, que permanecia no ar como o eco de grandes sinos de bronze repicando em uníssono. A sua concentração era total, nem um músculo do seu corpo se movia, enquanto a sua mente retinha as notas, de quatro em quatro, traduzindo-as simultaneamente para os ideogramas da linguagem perdida dos yetis, que memorizara durante doze anos.
O cântico de Dil Bahadur prolongou-se por mais de uma hora, que a Nadia e Alexander pareceram minutos, porque aquela música extraordinária os transportava a um estádio superior de consciência. Sabiam que durante dezoito séculos esta sala tinha sido visitada apenas pelos reis do Reino Proibido e que ninguém antes deles tinha presenciado um oráculo. Mudos, com os olhos arregalados de assombro, os dois jovens seguiam o som ondulante da pedra, sem compreender exactamente o que fazia Dil Bahadur, mas certos de que era algo prodigioso e com profundo sentido espiritual.
Finalmente, reinou o silêncio no Recinto Sagrado. O pedaço de quartzo, que durante o cântico parecia brilhar com luz própria, tornou-se opaco, como no início. O príncipe, esgotado, permaneceu na mesma posição durante muito tempo, sem que os amigos se atrevessem a interrompê-lo.
- O meu pai morreu - acabou por dizer Dil Bahadur, levantando-se.
- Disse-o a pedra? - perguntou Alexander.
- Sim. O meu pai esperou que eu chegasse até aqui e depois pôde entregar-se à morte.
- Como soube que tinhas chegado?
- Disse-lhe o meu mestre Tensing - respondeu, tristemente, o jovem príncipe.
- E que mais disse a pedra? - perguntou Nadia.
- O meu karma é ser o penúltimo monarca do Reino do Dragão de Ouro. Terei um filho que será o último rei. Depois dele, o mundo e este reino mudarão e nada voltará a ser como antes. Para governar com justiça e sabedoria contarei com a ajuda do meu pai, que me guiará em sonhos. Terei também a ajuda de Perna, com quem me casarei, de Tensing e do Dragão de Ouro.
- Ou seja, desta pedra, porque a estátua se converteu em cinzas - comentou Alexander.
- Talvez tenha percebido mal, mas parece-me que a recuperaremos - respondeu o príncipe, fazendo-lhes sinal de que deviam regressar.
Timothy Bruce e Joel Gonzalez, os fotógrafos da International Geographic, tinham cumprido à letra as ordens de Kate Cold. Passaram o tempo percorrendo os sítios mais inacessíveis do reino, guiados por um sherpa de pequena estatura, que transportava às costas o pesado equipamento e as tendas, sem perder o sorriso plácido e o andamento regular. Os estrangeiros, pelo contrário, desfaleciam no esforço de o seguirem àquela altitude, que os sufocava. Os fotógrafos, que não tinham conhecimento das peripécias dos seus companheiros, regressaram entusiasmadíssimos, contando as suas aventuras com orquídeas raras e ursinhos panda, mas Kate Cold não demonstrou qualquer interesse. A escritora esmagou-os com a notícia de que o neto e Nadia tinham contribuído para derrotar uma organização criminosa, resgatar várias raparigas cativas, prender uma seita de bandidos sanguinários e colocar o príncipe Dil Bahadur no trono, tudo isto com a ajuda de um bando de yetis e de um misterioso monge com poderes mentais. Timothy Bruce e Joel Gonzalez fecharam a boca e não disseram uma palavra até subirem para o avião que os levava de regresso ao seu país.
- De qualquer forma, não volto a viajar com Alexander e Nadia, porque atraem o perigo, como o mel atrai as moscas. Já estou muito velha para tantas preocupações - comentou a escritora, que ainda não se recompusera dos sobressaltos passados.
Alexander e Nadia trocaram um olhar de cumplicidade, porque ambos tinham decidido que, de qualquer forma, iam acompanhá-la na sua próxima reportagem. Não podiam perder a oportunidade de viver outra aventura com Kate Cold.
Os jovens não tinham contado à avó os pormenores do Recinto Sagrado, nem a forma de funcionamento do prodigioso pedaço de quartzo, porque se tinham comprometido a guardar segredo. Limitaram-se a dizer-lhe que, naquele sítio, Dil Bahadur tal como todos os monarcas do Reino Proibido, contava com meios para prever o futuro.
- Na Antiga Grécia existia um templo em Delfos, onde o povo acorria para ouvir as profecias de uma pitonisa que entrava em transe - contou-lhes Kate. - As palavras dela eram sempre enigmáticas, mas os clientes encontravam-lhes sentido. Agora sabe-se que, nesse sítio, a terra exalava um gás, seguramente éter. A sacerdotisa embriagava-se com o gás e falava em código; o resto, imaginavam os seus ingénuos clientes.
- A situação não é comparável. O que vimos não se explica com um gás - replicou o neto.
A velha escritora deu uma risada seca.
- Inverteram-se os papéis, Kate. Antigamente, era eu o céptico que não acreditava em nada sem provas e tu repetias-me que o mundo é um lugar misterioso e que nem tudo tem uma explicação racional - disse Alexander, sorrindo.
A senhora não conseguiu responder, porque o riso se transformara num ataque de tosse e estava prestes a sufocar. O neto deu-lhe umas palmadas nas costas, com mais energia do que a necessária, enquanto Nadia ia buscar um copo de água.
- É uma pena Tensing ter partido para o Vale dos Yetis, caso contrário ter-te-ia curado a tosse com as suas agulhas mágicas e orações. Receio que tenhas de deixar de fumar, avó - disse Alexander.
- Não me chames avó!
Na tarde anterior à partida de regresso aos Estados Unidos, os membros da expedição da International Geographic estavam reunidos no palácio das mil salas com a família real e o general Kunglung, depois de assistirem ao funeral do Rei. Este tinha sido cremado, como era tradição, e as suas cinzas tinham sido repartidas por quatro recipientes antigos de alabastro, que os melhores soldados levaram a cavalo aos quatro pontos cardeais do reino, onde foram lançadas ao vento. Nem o seu povo nem a sua família, que tanto o amavam, choraram a sua morte, porque acreditavam que o choro obriga o espírito a permanecer no mundo para consolar os vivos. O mais correcto era demonstrar alegria, para que o espírito partisse contente a cumprir outro ciclo na roda da reencarnação, evoluindo em cada vida até atingir, finalmente, a iluminação e o céu, ou Nirvana.
- Talvez o meu pai nos dê a honra de reencarnar no nosso primeiro filho - disse o príncipe Dil Bahadur.
A chávena de chá que Perna segurava tremeu-lhe nas mãos, revelando a sua perturbação. A jovem estava inteiramente vestida de seda e brocado, com botas de pele e adornos de ouro nos braços e nas orelhas, mas tinha a cabeça descoberta, orgulhosa por ter doado o seu bonito cabelo a uma causa que lhe parecia justa. O seu exemplo serviu para que as outras quatro raparigas rapadas não se sentissem complexadas. A longa trança de cinquenta metros que fizeram com os seus cabelos tinha sido colocada como oferenda diante do Grande Buda do palácio, onde as pessoas vinham vê-la em peregrinação. Tanto se falou do assunto e tantas vezes apareceram na televisão, que provocou uma reacção histérica e centenas de raparigas raparam a cabeça por imitação, até Dil Bahadur em pessoa ter de aparecer no ecrã dizendo que o reino não necessitava dessas provas de patriotismo extremo. Alexander comentou que, nos Estados Unidos, isso de andar rapado como uma abóbora estava na moda, bem como fazer tatuagens e furar o nariz, as orelhas e o umbigo para colocar adornos metálicos, mas ninguém acreditou.
Estavam todos sentados em círculo, em almofadas no chão, bebendo chai, o chá doce e aromático da índia, e tentando comer um péssimo bolo de chocolate que as monjas cozinheiras do palácio tinham inventado para presentear os visitantes estrangeiros. Tschewang, o leopardo real, tinha-se deitado ao pé de Nadia com as orelhas baixas. Desde a morte do Rei, seu dono, o bonito felino andava deprimido. Durante vários dias não quis comer, até Nadia ter conseguido convencê-lo, no idioma dos gatos, de que agora tinha a responsabilidade de cuidar de Dil Bahadur.
- Ao despedir-se de nós para ir cumprir a sua missão no Vale dos Yetis, o meu honorável mestre Tensing entregou-me uma coisa para ti - disse Dil Bahadur a Alexander.
- Para mim?
- Não concretamente para ti, mas para a tua honorável mãe - replicou o novo Rei, entregando-lhe uma caixinha de madeira.
- O que é isto?
- Excremento de dragão.
- O quê? - perguntaram Alexander, Nadia e Kate em uníssono.
- Tem a reputação de ser um medicamento muito poderoso. Possivel-mente, se o dissolveres num pouco de licor de arroz e lho deres a beber, a tua honorável mãe melhorará da sua doença - disse Dil Bahadur.
- Como posso dar isto a comer à minha mãe?! exclamou o jovem, ofendido.
- Talvez seja melhor não lhe dizeres o que é. Está petrificado. Não é como excremento fresco, acho eu... De qualquer forma, Alexander, tem poderes mágicos. Um desses pedacinhos salvou-me dos punhais dos homens azuis - explicou Dil Bahadur, apontando para a pedrinha que levava pendurada ao pescoço com uma tira de couro.
Kate não conseguiu deixar de revirar os olhos nem evitar que uma careta trocista bailasse rapidamente nos seus lábios, mas Alexander agradeceu comovido o presente do amigo e guardou-o no bolso da camisa.
- O Dragão de Ouro fundiu-se na explosão do helicóptero. É uma perda grave, porque o nosso povo acredita que a estátua defende as fronteiras e mantém a prosperidade da nação - disse o general Kunglung.
- Talvez não tenha sido a estátua, mas a sabedoria e a prudência dos seus governantes que mantiveram este país a salvo - replicou Kate, oferecendo disfarçadamente o seu pedaço de bolo de chocolate ao leopardo, que o farejou rapidamente, enrugou o focinho num gesto de repugnância, tornando a deitar-se ao lado de Nadia.
- Como podemos fazer o povo compreender que pode confiar no jovem rei Dil Bahadur, mesmo sem o dragão sagrado? - perguntou o general.
- Com todo o respeito, honorável general, possivelmente o povo terá outra estátua em pouco tempo - disse a escritora, que acabara por aprender a falar de acordo com as normas de cortesia daquele país.
- Teria a honorável avozinha desejos de explicar a que se refere? - interrompeu Dil Bahadur.
- Possivelmente, um amigo meu poderá resolver o problema - disse Kate, passando a expor o seu plano.
Depois de várias horas de luta com a primitiva companhia de telefones do Reino Proibido, a escritora tinha conseguido falar directamente com Isaac Rosenblat em Nova Iorque, para lhe perguntar se poderia fabricar um dragão semelhante ao anterior, baseando-se em quatro fotografias Polaroid, algumas imagens imprecisas filmadas em vídeo e uma descrição pormenorizada dada pelos bandidos do Escorpião que, dessa forma, esperavam granjear alguma benevolência das autoridades do país.
- Estás a pedir-me que faça uma estátua de ouro? - perguntou aos gritos o bondoso Isaac Rosenblat, do outro lado do planeta.
- Sim. Mais ou menos do tamanho de um cão, Isaac. Além disso, é necessário incrustar-lhe várias centenas de pedras preciosas, incluindo diamantes, safiras, esmeraldas e, evidentemente, um par de rubis estrela idênticos para os olhos.
- E, pelo amor de Deus, rapariga, quem vai pagar tudo isto?
- Um determinado coleccionador que tem o seu escritório muito perto do teu, Isaac - replicou Kate Cold, morta de riso.
A escritora estava muito orgulhosa do seu plano. Pedira que lhe enviassem dos Estados Unidos um gravador especial, que não se vende nas lojas, mas que obteve graças aos seus contactos com um agente da CIA, de quem se tornara amiga durante uma reportagem na Bosnia. Com esse aparelho, conseguiu ouvir as minúsculas fitas que Judit Kinski escondia na carteira. Continham a informação necessária para descobrir a identidade do cliente denominado Coleccionador. Com isso, Kate pensava pressioná-lo. Só o deixaria em paz se, em troca, repusesse a estátua perdida. Era o mínimo que podia fazer para reparar os danos provocados. O Coleccionador tinha tomado precauções para que os telefonemas não fossem interceptados, mas não desconfiava de que cada um dos agentes enviados pelo Especialista para fechar o acordo gravara as negociações. Para Judit, aquelas fitas gravadas eram um seguro de vida que poderia usar se o caso se pusesse muito feio, por isso as levava sempre consigo, até ter perdido a carteira na luta com Tex Armadillo. Kate Cold sabia que o segundo homem mais rico do mundo teria de ceder às suas exigências porque não podia permitir que a história das suas ligações com uma organização criminosa, que incluíam o sequestro de um monarca de uma nação pacífica, aparecesse na imprensa.
O plano exposto por Kate surpreendeu bastante a corte do Reino Proibido.
- Possivelmente, seria conveniente que a honorável avozinha debatesse esse assunto com os lamas. A sua ideia é muito bem intencionada, mas talvez a acção que pretende seja um pouco ilegal... - sugeriu amavelmente Dil Bahadur.
- Talvez não seja tão legal quanto isso, mas o Coleccionador não merece um tratamento melhor. Deixe-o nas minhas mãos, Majestade. Neste caso, justifica-se plenamente macular o meu karma com uma pequena chantagem. E, a propósito, se não for uma impertinência, posso perguntar a Vossa Majestade que tratamento receberá Judit Kinski? - perguntou Kate.
A mulher tinha sido encontrada, desmaiada e enregelada, por um dos destacamentos enviados à sua procura pelo general Kunglung. Tinha vagueado pelas montanhas durante dias, perdida e esfomeada, até lhe congelarem os pés e não poder continuar. O frio adormeceu-a e foi-lhe tirando rapidamente o desejo de viver. Judit Kinski abandonou-se à sua sorte com uma espécie de alívio secreto. Após tantos riscos e tanta cobiça, a tentação da morte parecia doce. Nos seus breves momentos de lucidez, não lhe vinham à memória os triunfos do passado, mas o rosto sereno de Dorji, o Rei. Qual a razão para aquela presença tenaz na sua memória? Na verdade nunca o amara. Fingira amá-lo porque precisava que ele lhe entregasse o código do Dragão de Ouro, nada mais. Admitia, no entanto, a sua admiração por ele. Aquele homem bondoso provocou nela uma profunda impressão. Pensava que, noutras circunstâncias, ou se ela fosse uma mulher diferente, ter-se-ia apaixonado inevitavelmente por ele; mas não era o caso, disso tinha a certeza. Por essa razão, estranhava que o espírito do Rei a acompanhasse naquele lugar gélido onde esperava a morte. Os olhos doces e atentos do soberano foram a última coisa que viu antes de mergulhar na escuridão.
A patrulha de soldados encontrou-a mesmo a tempo de lhe salvar a vida. Agora estava num hospital, onde a mantinham anestesiada, depois de lhe terem amputado alguns dedos dos pés e das mãos, que tinham congelado.
- Antes de morrer, o meu pai ordenou-me que não condenasse Judit Kinski à prisão. Desejo oferecer a essa senhora a oportunidade de melhorar o seu karma e de evoluir espiritualmente. Enviá-la-ei, pelo resto da sua vida, para um mosteiro budista na fronteira com o Tibete. O clima é um pouco agreste e fica um pouco isolado, mas as monjas são muito santas. Disseram-me que se levantam antes do nascer do Sol, passam o dia a meditar e alimentam-se apenas de uns grãos de arroz - disse Dil Bahadur.
- E acredita que Judit Kinski atingirá aí a sabedoria? - perguntou Kate com ironia, trocando um olhar de cumplicidade com o general Myar Kunglung.
- Isso só depende dela, honorável avozinha - respondeu o príncipe.
- Posso rogar a Vossa Majestade que, por favor, me chame Kate? É esse o meu nome - pediu a escritora.
- Será um privilégio chamá-la pelo nome. Talvez a honorável avozinha Kate, os seus corajosos fotógrafos e os meus amigos Nadia e Alexander queiram regressar a este humilde reino, onde Perna e eu estaremos sempre à vossa espera... - disse o jovem Rei.
- Claro que sim! - exclamou Alexander, mas uma cotovelada de Nadia recordou-lhe as boas maneiras e acrescentou: - Embora possivelmente não mereçamos a generosidade de Vossa Majestade e da sua respeitável noiva, talvez tenhamos o atrevimento de aceitar tão honroso convite.
Sem conseguirem evitar, desataram todos a rir-se, até as monjas que serviam cerimoniosamente o chá e o pequeno Borobá, que saltava alegre-mente, atirando para o ar pedaços de bolo de chocolate.
Isabel Allende
O melhor da literatura para todos os gostos e idades