Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RELATÓRIO CHAPMAN - P.2 / Irving Wallace
O RELATÓRIO CHAPMAN - P.2 / Irving Wallace

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O RELATÓRIO CHAPMAN

Segunda Parte

 

Às oito e quarenta e cinco da manhã seguinte, quarta-feira — segundo dia de entrevistas em The Briars —, Paul Radford estava sentado à grande mesa da sala de conferências da Associação Feminina a fazer uma selecção de questionários.

Pela janela escancarada, podia distinguir o telhado da estação dos Correios, e, mais acima, uma nesga do céu plúmbeo, toldado de nuvens. Corria uma ligeira brisa vinda do mar.

Ouviu o ruído da porta a abrir-se e ergueu o olhar. Aguardava o Dr. Chapman e estava esperançado que fosse ele. Todavia, em vez da figura do cientista viu entrar Cass Miller.

—        Viva! — disse alegremente Cass, dirigindo-se para o luga que lhe estava reservado. — Segundo o homem da bomba de gasolina, está um tempo propício a tremores de terra.

—        Não se deve fazer caso dos falsos profetas — retorquiu Paul, olhando para a janela. — Há pouca humidade no ar para os terramotos.

—        Como é que sabe isso?

—        Durante a guerra passei aqui perto de um ano e nesse espaço de tempo houve dois tremores de terra. Nessas fases o ar tinha sempre um alto teor de humidade.

Cass começou a mexer nos seus papéis.

—        Os tremores de terra foram violentos?

—        Piores que dois copos de vodca pura. O primeiro deixou algumas coisas escaqueiradas. O segundo não passou de algumas oscilações e barulho, mas ruiu uma aldeia perto da fronteira mexicana.

—        Sempre esse México — disse Cass, abanando a cabeça.

— A propósito, onde é que está o terceiro mosqueteiro?

—        Horace? Ficou na cama. Doente. Mas não se preocupe que não morrerá.

Cass pareceu ficar admirado.

—        Julgava que os micróbios não entravam com ele.

—        E não entraram. Acontece que ficou de ressaca. Bebeu mais do que a conta.

—        Não acredito.

—        Bem sei que é de admirar, mas corresponde à verdade. Despertei ontem à noite com o barulho de alguém a ir de encontro ao mobiliário. Era Horace. Exalava um cheiro mais violento do que uma destilaria. Despi-o e meti-o na cama. Vomitou duas vezes. Acabei por acalmá-lo a poder de sedativos. Esta manhã ainda tinha um ar descentrado, como um quadro de Picasso, de modo que o deixei ficar no quentinho.

—        Que raio se terá passado com o nosso escuteiro para se empifar?

—        Não faço a mais leve ideia. Só lhe peço que não fale da bebedeira ao Dr. Chapman.

—        Não vale a pena fazer-me recomendações dessas.

Paul levantou-se e dirigiu-se para a janela, contemplando, lá em baixo, a rua solitária.

—        Apesar de esta manhã ter procurado o Dr. Chapman, quando me levantei, ele já não estava no motel. Precisava de o avisar para substituir Horace.

Impaciente, Paul encaminhou-se para a porta, abriu-a e espreitou para o corredor.

O Dr. Chapman estava debruçado para a secretária de Benita Selby, a consultar as fichas.

—        Dr. Chapman...

O cientista levantou um dos braços e traçou no ar uma espécie de sinal cabalístico, com dois dedos. Nos documentários cinematográficos e na televisão, Paul já vira o papa a fazer aquele mesmo gesto para as multidões de fiéis.

—        Bom dia, Paul. Trabalhou muito ontem à noite?

—        A coisa vai em metade. Dr. Chapman, deve ter que substituir Horace. Ele ficou acamado, não se sente bem.

—Alguma complicação? — perguntou o Dr. Chapman, com ar preocupado.

—        Um princípio de gripe, segundo suponho.

—        Chamou o médico?

—        Não é caso para tanto. Mandei comprar uns comprimidos. Parece que existe um surto de gripe benigna na cidade. Amanhã creio que já lhe terá passado.

—        Oxalá que sim. Bom... o melhor é preparar-me para o substituir— disse o Dr. Chapman, entrando apressadamente na sala de conferências.

Paul, que ficara para trás, olhou para Benita.

—        Beleza, logo que tenha oportunidade, faça uma chamada para Horace. Diga-lhe que a senha para hoje é um vírus de gripe, e que pode ficar descansado que não há novidade, o Dr. Chapman vai substituí-lo.

—        Fique descansado—disse Benita, sorrindo. — Não é preciso dizer-me mais nada, lembre-se que o meu quarto é ao lado do vosso.

—        Então sabe o que se passou.

—        É uma coisa que não parece dele. Que mosca lhe teria mordido?

—        Horace disse apenas que ia ao cinema, mas parece que o cinema ficava situado num bar... Eh, aí vêm as nossas raparigas. A postos!

Às dez e cinquenta, o Dr. Chapman já estava nos primeiros vinte minutos da sua segunda entrevista do dia. Com o cotovelo apoiado na mesinha e o queixo encostado à mão, continuava a fazer as suas perguntas num tom monótono e seco, registando as respostas com uma exactidão que tinha algo de automático. Regra geral, o Dr. Chapman apreciava imenso as entrevistas, que considerava acréscimos ao seu pecúlio de conhecimentos; mas naquela manhã tinha o espírito ocupado pelo pensamento no Dr. Victor Jonas e apenas metade do seu cérebro era receptivo àquilo que fazia; a outra metade estava já a traçar o documento que reduziria a pó o seu adversário.

Acabava de assinalar uma resposta para a linguagem sol-ró--sol e preparava-se para formular outra pergunta (a outra parte do seu cérebro desbravava caminhos no manifesto de refutação ao seu inimigo, com o deliberado programa de se lançar na ofensiva desde o início apoiado no lugar-comum de que não existe melhor defesa do que o ataque), quando a voz da mulher que se encontrava do outro lado do biombo o interrompeu.

—        Posso fazer uma pergunta? — inquiriu Teresa Harnish, pois era ela a entrevistada.

—        Pois com certeza. Se não compreendeu alguma coisa...

—        Não, não se trata disso. Compreendi tudo perfeitamente. Posso perguntar se estou a ser entrevistada pelo próprio Dr. Chapman? Parece-me que lhe reconheci a voz...

—        Sim, na verdade sou o Dr. Chapman.

—        Sinto-me verdadeiramente feliz por isso. O meu marido e eu lemos as suas duas publicações dos primeiros inquéritos, e estamos impacientes por lermos o relatório desta sondagem. Apreciamos imenso a sua obra. Mais do que isso, veneramos o seu esforço científico. A minha necessidade de saber se estou a ser interrogada pelo Dr. George G. Chapman filia-se na mesma razão de que se, no princípio deste século, tivesse ido consultar um psicanalista, gostaria de saber se ele era o célebre Sigmund Freud. Espero que me compreenda.

Agora, o Dr. Chapman estava inteiramente atento àquela voz de pessoa inteligente e culta que partia do outro lado do biombo.

—        É extremamente amável, minha senhora.

—        Ora, para mim é um dia verdadeiramente memorável.

—        Na verdade, muito amável e generosa senhora... — procurou o nome dela no cabeçalho do questionário — ...Harnish, mas a minha maneira de levar a efeito estas entrevistas não difere da colaboração dos meus assistentes.

—        Desculpe, mas não posso estar de acordo. Tenho quase a certeza de que o senhor tem uma compreensão muito mais ampla dos problemas e trabalha com maior objectividade.

—        Pelo menos esforço-me por isso como criador do programa.

As palavras daquela mulher lisonjeavam o Dr. Chapman. Na

verdade, devia ser uma mulher fora do vulgar. Examinou a ficha que tinha a seu lado. Tratava-se de Teresa Harnish, de trinta e seis anos, natural de Kansas City, educada na Universidade de Vassar e prosélita da Ciência Cristã. («Toda a realidade reside em Deus e na Sua criação eternamente harmoniosa. Deus edificou tudo o que existe e é bom tudo o que Ele criou. Logo, as chamadas realidades do pecado, doença e morte não passam de terríveis irrealidades que parecem reais aos olhos dos homens. São falsas crenças que se revelam em toda a sua fealdade logo que Deus as despe dos disfarces que utilizam para enganar a humanidade».— Parecia-lhe incrível que alguma vez pudesse ter lido a Sr.a Eddy e lembrou-se que o fizera pouco depois da morte de Lucy Wel...), mas frequentadora irregular dos serviços religiosos. Era casada em primeiras núpcias, há dez anos. O marido negociava em objectos de arte, era dono de uma galeria e, de vez em quando, a mulher prestava-lhe assistência durante períodos variáveis.

—        Podemos continuar? — perguntou o Dr. Chapman.

—        Sem dúvida.

—        Voltemos à série de perguntas sobre relações sexuais nà fase pré-matrimonial. Disse-me ter tido relações sexuais antes do casamento, aos vinte e seis anos?        

—        É verdade, Dr. Chapman. Para melhor precisão, tive essas relações com dois homens, se quiser incluir o meu marido como um dos meus parceiros. Aconteceu que, depois de termos ficado noivos, o casamento sofreu um atraso de um ano devido a circunstâncias puramente familiares. A mãe do meu marido adoeceu gravemente, e a sua doença consumiu tempo e dinheiro preciosos a Geoffrey. Mas claro que nós possuímos todo o senso de pessoas adultas e evoluídas, e a união sexual foi uma necessidade do nosso desejo e um sentido de conveniência mútua. Pouco depois de a mãe do meu marido ter falecido, vitimada pela doença que a minava, e de Geoffrey ter arranjado o dinheiro para abrir a sua galeria de arte, contraímos matrimónio em Kansas City. Se quer que lhe diga, o nosso casamento constituiu um dos maiores acontecimentos sociais da temporada, mas senti alguma dificuldade em continuar a afivelar a máscara de noivinha ingénua e sem mácula durante a semana que antecedeu o casamento. É que meus pais eram pessoas muito rígidas e tradicionais em assuntos de tal natureza. Deseja agora saber pormenores sobre mim e meu marido antes de nos consorciarmos?

O Dr. Chapman premiu os lábios com dois dedos, um gesto que nele assinalava preocupação. Na verdade, aquela Sr.a Harnish mostrava-se demasiado prolixa, despreocupada e sabedora. Devido à sua longa experiência de tais assuntos, sabia que a franqueza feminina devia ser encarada automaticamente com circunspecção e um certo grau de desconfiança. A franqueza não era natural em circunstâncias daquelas, sabia-o muito bem. Constituía um disfarce rápido e defensivo que costumava enganar os leigos.

—        A senhora mencionou dois companheiros de prática sexual pré-conjugal. Falemos, pois, do primeiro.

—        Prefiro que essa aventura continue coberta pelo seu denso véu de mistério.

—        Está realmente resolvida ao secretismo?

—        Claro que não, Dr. Chapman. Estava simplesmente a brincar. Acabara o meu curso em Vassar e pensava em ingressar no teatro... como cenógrafa, evidentemente. Porém, considerava, no íntimo, a Broadway ultrapassada. Os seus teatros eram simplesmente horrorosos, as possibilidades de um trabalho moderno e arejado mínimas, os seus elencos arcaicos, as peças levadas à cena absolutamente desinteressantes, medíocres, e a sua gente miseravelmente afectada naqueles banhos maciços de elogios mútuos... Bem, foi nesse período melindroso que conheci um poeta, um homem bastante mais velho que eu. Tinha livros publicados e conhecia toda a gente. Senti-me impressionada, a Greenwich Village era então uma deliciosa novidade para mim, e cheguei a pensar casar-me com o meu poeta e abrir uma galeria de arte. Foi devido a isso que não me opus a fazer amor com o poeta.

—        Não se opôs?

—        Claro que também o desejava. Queria dizer que fizemos amor por consentimento mútuo — atalhou Teresa, com rapidez, dando um novo sentido à história.

—        Em média, quantas vezes por semana tinha... relações com ele?

—        Uma vez por semana, durante dois meses.

—        Em que local?

—        No quarto do poeta. Nessa altura considerava tais coisas muito românticas.

—        Obtinha prazer nessas relações?

Estabeleceu-se um brevíssimo silêncio, e, finalmente, a voz de Teresa voltou a fazer-se ouvir do outro lado:

—        Creio que não. O homem estava sempre etilizado e o acto em si não era completamente satisfatório. Acabei por abandonar o poeta ao saber que nunca tomava banho e que os livros publicados não passavam de edições do autor.

Prosseguindo a entrevista, o Dr. Chapman resolveu abreviar as perguntas, a fim de poupar tempo, porque as respostas dela estavam a prolongar-se demasiado. Para não ultrapassar o horário estabelecido, o cientista deixou de desdobrar as séries de perguntas. Não era invulgar tal caso para a experiência do Dr. Chapman, havia grande número de mulheres habitualmente retraídas que se tomavam loquazes durante as entrevistas. Em regra, isso constituía uma defesa contra hábitos ancestrais adquiridos, uma espécie de disfarce para encobrir o embaraço e timidez naturais.

Das perguntas e respostas sobre as relações sexuais pré-con-jugais, passou-se ao questionário referente à cópula matrimonial. Nessa altura as respostas da Sr.a Harnish tomaram-se mais elaboradas, mais cautelosas e, passo a passo, mais concisas. A entrevistada ainda oferecia o seu corpo ao marido duas vezes por semana. As carícias pré-coito duravam cerca de um a dois minutos. Como na maior parte dos casos, a ligação estabelecia-se de lado e, felizmente para a Sr.s Harnish, o orgasmo do marido processava--se no espaço de três minutos, aproximadamente, após a introdução. A Sr.a Harnish insistiu no prazer sentido com o marido, muito embora o Dr. Chapman, nas entrelinhas, compreendesse que ela apenas o suportava.

—        Minha senhora, durante o coito encontra-se completamente

desnudada ou vestida parcialmente?

—Se quer que lhe diga, completamente nus é que não estamos.

—        Está nua ou parcialmente vestida? — insistiu o Dr. Chapman, tentando dar ao tom de voz uma certa aspereza.

—        Costumo deitar-me em camisa de dormir.

—        Tira-a para copular?

—        Não.

—        Quer então dizer que se mantém parcialmente vestida.

Foi aquilo mesmo que o cientista inscreveu na respectiva coluna do sol-ré-sol, prosseguindo:

—        Em que período do dia costumam ter relações sexuais, de manhã, à tarde, ao anoitecer, durante a noite?

—        Geralmente à hora em que nos deitamos.

—        A que horas?

—        Depois das dez, pouco mais ou menos.

A resposta foi anotada. À medida que continuava, o Dr. Chapman ia verificando que a Sr.a Hamnish baixava gradualmente o tom de voz. Acentuava-se um certo gaguejar, uma hesitação que no princípio não tinha ocorrido, e as respostas tornavam-se brevíssimas.

Entraram então no mundo da cópula extraconjugal, coisa completamente arredada das acções da Sr.a Harnish.

—        Este caso conduz-nos à última série de perguntas a formular. Se nunca teve relações sexuais fora do casamento, sente-se capaz de as ter no futuro? Peço-lhe o favor de responder apenas sim ou não.

—        Não.

O Dr. Chapman fixou o biombo, como se o quisesse trespassar com o olhar. A sua atitude era agora a de um caçador profissional das grandes savanas da África. Farejava a enorme distância, sentia o perigo imanente a tocar-lhe a espinha. Era um instinto seguro, desenvolvido em mi! safaris daquela espécie.

Fez a pergunta de modo mais capcioso.

—        Julga não poder vir a ser infiel a seu marido? Nunca pensou no caso... ou já pensou?

—        Afirmei-lhe há pouco que não, Dr. Chapman.

—        Durante as carícias que antecedem a cópula, e mesmo durante esta, nunca desejou que o seu marido fosse outro homem? Isto é, um homem específico que conheça ou tivesse conhecido... ou mesmo, muito simplesmente, um homem qualquer idealizado por si?

—        Não. Nunca tive desejos nem devaneios desses.

Não obstante aquele acento de sinceridade, os arbustos da densa mata, ao longe, continuavam a emitir um ténue ruído, quase imperceptível ao ouvido humano, como o deslizar da peça de caça, agora também atenta a uma presença hostil. Mas o Dr. Chapman acabou por desengatilhar a arma. Travou a patiiha de segurança. O excessivo vigor das respostas podia ser considerado por dois ângulos diferentes: ou como evidente repugnância ou como autodefesa; puro estratagema. Pesou as probabilidades, voltando a ler atentamente o curriculum vitae de Teresa Harnish. Finalmente, num julgamento que não era isento de certo sentido de lisonja, acabou por concluir que aquela mulher era bem dotada, inteligente e sabedora

daquilo que queria e daquilo que fazia. Naturalmente que se conservaria fiel ao seu contrato matrimonial.           

— Muito bem, Sr.ã Harnish. Prossigamos.       

Ao dirigir-se no seu descapotável para o abrigo de Constable, Teresa Harnish sabia muito bem que não era propriamente um dia favorável para se ir à praia. As nuvens sombrias pareciam quase rasar as cristas das agitadas ondas, e o rude vento que soprava do mar açoitava como um chicote. A comprida linha da auto-estrada, à sua frente, e a costa rochosa à sua direita mostravam-se desoladoras, vastidão solitária e erma. Aqueles eram os pântanos, numa noite, sem lua, varridos pela tempestade, e ela estava a fazer a viagem de Wuthering Heights paraThrushcross Grange. «Conheço-te muito bem, Ellis Bell, porque esta manhã estou dentro da tua pele; tu e eu somos uma e a mesma pessoa».

A entrevista devia ter sido uma extraordinária conversa, sobretudo sabendo que era o próprio Dr. Chapman o entrevistador. Mas naquele momento já se manifestava muito menos interessada sobre o que se podia ou não considerar como uma conversação modelo a respeito de sexo. Até mesmo o pensamento no seu maravilhoso fato de fantasia, para a preciosa festa, em que cada mulher se apresentaria como aquilo que desejaria ter sido durante a sondagem sexual, não lhe produzia qualquer excitação. Fizera os convites pelo telefone, metade das pessoas da lista já haviam sido convidadas e fizera tenções de avisar o resto durante a tarde, depois da sua entrevista. Mas eis que já era meio-dia, e ela dirigia-se com toda a urgência para a praia. Porquê? Preciso de reflectir. A respeito de quê? Não sei. Em que coisas costumas pensar com mais frequência, será na personalidade de Ellis Bell?

Em dez minutos encontrou-se parada na esplanada rochosa que antecedia a praia. Depois da entrevista passara por sua casa para envergar os seus shorts tipo bermuda, que acabara por trocar por uns calções de ténis, usados durante as suas férias em Balboa no ano transacto. Envergara também o seu casaco de bombazina, e mal tivera tempo para agarrar no cobertor e num livro.

Abriu caminho pela senda entre a falésia até ao abrigo de Constable. Lá chegada, desdobrou o cobertor em cima da dura areia e sentou-se. Estava frio e ficou satisfeita por se ter lembrado do casaco de bombazina. Ainda não tinha observado as redondezas, e agora que o fazia não se sentiu surpreendida por ver os quatro jovens, formando pares, a disputarem uma espécie de jogo atlético, em que se placavam ferozmente mal um deles tinha a bola oval na mão.

Manteve o livro aberto em cima do regaço durante intermináveis minutos sem sequer olhar para o título (desconhecia em absoluto o exemplar em que agarrara), concentrada na observação daquele jogo titânico, onde a habilidade deles se revelava... ou antes, a habilidade dele. Vieram-lhe à memória aquelas irreverentes perguntas do Dr. Chapman sobre as carícias preparatórias. Como é que um homem da estatura mental do Dr. Chapman perdia tempo com coisas tão pouco interessantes? Mas seriam assim desinteressantes? Talvez que o sexólogo tivesse afinal toda a razão. O caso, inexplicavelmente, acabou por entristecê-la.

Voltou a observar os quatro desportistas. Afinal ele era mais alto do que pensara, talvez fosse efeito de o ver agora sem aqueles indecentes calções curtos que trocara por umas calças de treino, de flanela, quase iguais às que vira utilizar pelos cadetes de West point quando em tempos assistira a uma reunião de atletismo na célebre Academia Militar. O jovem bárbaro estava nu da cintura Para cima, e, na verdade, era majestoso no seu bem musculado torso.

Aguardou pacientemente, até que, por funções daquele treino em correrias, os jovens atletas se foram aproximando do local onde estava. E, como da primeira vez, o tal distinguiu-se numa feroz correria, quase na sua direcção, esperando apanhar a bola oval que

um dos seus camaradas arremessara para o ar com um potente pontapé. Teresa compreendeu imediatamente que a trajectória descrita pela bola era mais rápida que a corrida do homem, e que o objecto tinha alvo marcado para o abrigo de Constable. Teresa assustou-se à vista do iminente impacto, não só da bola como do homem que corria sem olhar para mais nada, com os olhos postados no ar. Cobriu a cabeça com os braços e fechou os olhos numa

instintiva reacção de medo. Pouco depois ouviu o ruído abafado da bola a bater na areia e compreendeu que ainda estava intacta. Abriu os olhos.          

O gigante estava debruçado para ela, sorrindo constrangido.

—        Desculpe, minha senhora.

Aquele minha senhora fê-la sentir-se vergonhosamente velha, e acabou por endireitar-se, de peito bem esticado para a frente. O homem tinha uma cara jovem e arrapazada, mas já não era nenhum adolescente. Aquela cara quadrada com a barba por fazer tinha um característico cunho eslávico. Olhando-o, calculou que devia ter cerca de um metro e noventa e cinco de altura. A voz do gigante fez-se ouvir de novo: — Para a próxima vez terei mais cuidado, fique descansada.

—        Oh, não tem importância — balbuciou Teresa, sem que lhe tivesse ocorrido nada de mais inteligente e profundo para dizer.

Por fim acrescentou:          

—        Pode ter a certeza que não me assustei.

O atleta encaminhou-se para o sítio onde a bola se imobilizam e levantou-a do chão apenas com uma das mãos, uma espécie de pá gigantesca. Depois voltou-se ligeiramente.

—        As minhas desculpas.

—        Está desculpado, e não se preocupe mais com o caso. Gosto imenso de os ver jogar. É futebol?

—        Bem, estamos apenas a fazer treino com a bola para nos mantermos em boa forma física. A senhora não sente frio? — perguntou, olhando despreocupadamente as pernas dela.

—        Um bocadinho. Pensei que o sol acabasse por romper.

—        Hoje o dia manter-se-á encoberto.         

O magnífico eslavo fez um gesto de bater em retirada, mas o desespero dela levou-a a gaguejar a nova pergunta para o reter:

—        É... realmente um jogador de futebol... isto é... joga profissionalmente?

—        Sim, sou jogador da equipa do Rams, muito embora só alinhe nas reservas. Este ano, porém, espero ter mais sorte e ingressar na equipa principal.

—        Oxalá que os seus desejos se concretizem. Como é que se chama?

—        Ed Krasowski. Teresa Harnish sorriu-lhe.

—        Não me esquecerei do seu nome.

Tinha vontade de lhe declarar a identidade dela, mas o desportista não lho perguntou.

—        Bom... adeus minha senhora.

Krasowski afastava-se bamboleante, com as massas musculares dos ombros a trepidarem a cada passo. Acabou por lançar a bola para junto dos companheiros e desatou a correr na direcção deles. Volvido um momento, Teresa viu os outros três olharem na direcção do Abrigo de Constable e rirem-se. Ed devia ter-lhes dito qualquer gracinha.

Teresa manteve-se tensa, a observar atentamente. Ed recomeçou as suas correrias e as placagens, juntamente com os companheiros. Depois de decorrido um certo espaço de tempo, pareceram ter-se satisfeito com o treino e retiraram-se.

Teresa levantou-se para regressar a casa e só então reparou que tinha a pele arrepiada de frio. Aconchegou-se bem dentro do casaco de bombazina.

Naomi Shields olhou com atenção para o grande relógio de pêndulo. Era engraçado ver o pequeno pulo que o ponteiro grande dava todos os sessenta segundos. Eram precisamente onze minutos para as seis. Naomi começava de novo a entrar no estado de espírito anterior. Voltava a sentir-se alegre e inteiramente despreocupada.

Comparecera à programada entrevista vestindo a sua camisola branca, que lhe revelava inteiramente as formas do busto (muito embora tivesse ficado decepcionada, porque, além daquela florzinha de estufa do corredor, não havia mais ninguém para a apreciar) e a saia preta, curta e justinha; fortificara-se com quatro uísques puros, preparada, assim, para demonstrar que não era muito diferente de qualquer outra mulher de The Briars.

Aquele estúpido biombo constituíra para ela, de imediato, um factor de perturbação. Dentro do seu estado de espírito de exibicionismo sedutor, verdadeira ninfomania, tinha desejado ser abertamente admirada e poder observar a figura do seu entrevistador. Esperara poder reduzir o homem que lhe ia falar de sexo a um mero suplicante. Talvez que o seu entrevistador fosse um homem jovem e simpático, e Naomi ficou ainda mais inquieta quando ouviu a voz varonil e bem timbrada de Paul Radford, uma voz perturbantemente, sexual e prometedora de delícias.

A reacção às primeiras perguntas demolira o seu estado de espírito. Ficara ressentida. Não lhe agradava confessar que já tinha trinta e um anos e que fora educada no mais rígido catolicismo, contra o qual se rebelara. Também lhe desagradava ter que declarar que não conseguira terminar o curso liceal. Pior ainda do que isso, haviam sido todas aquelas perguntas, a seguir, sobre os seus anos infantis e adolescentes, com todos aqueles terríveis pormenores vergonhosos e detestáveis. Quando lia (ou quando lera) biografias, costumava deliberadamente evitar os primeiros capítulos que recordavam a infância. Nesse momento, felizmente, os seus primeiros anos de vida já tinham ficado para trás e a voz do outro lado do biombo anunciara-lhe que iriam agora embrenhar-se no coito pré--conjugal. Porquê chamar àquilo coito depois de todas as conversas pomposas sobre absoluta sinceridade, franqueza e discrição absoluta durante a conferência preparatória? Porque não chamar as coisas pelo seu nome mais simples? A simplicidade atrai simplicidade, e poderia então falar sem inibições. Deus do Céu, a cabeça andava-lhe à roda. Seria do uísque?

Deu fé que lhe pendia dos lábios um cigarro que ainda não conseguira acender. Procurou os fósforos nervosamente, ao mesmo tempo que aquela voz quente falava do outro lado do biombo. Acendeu o cigarro, tossiu à primeira fumaça e atirou o fósforo, agora inútil, para o chão. Semicerrou os olhos e tentou prestar toda a sua atenção ao que lhe diziam.

—... do período da puberdade até ao casamento. Antes de contrair matrimónio teve relações sexuais?

—        Pois claro.

—        Quantos homens tiveram relações sexuais consigo? Trace uma média. Entre dois e dez, entre onze e vinte e cinco, ou mais?

—        Mais.

—        Bem. Agora é capaz de se lembrar do número exacto?

—        É muito difícil.

—        Talvez a possa auxiliar. Após a puberdade, em que idade começou a ter relações sexuais?

—        Aos treze... não, aos catorze... Exactamente aos catorze anos

—        E antes de contrair matrimónio, qual foi a última vez em que praticou o coito?

—        Uma semana antes do casamento.

Recordava-se agora do facto com nitidez. Resolvera ir comprar uns sapatinhos de setim para condizerem com o vestido de noiva. O empregado da sapataria, com aquele queixo prógnata, recusara--se a retirar a mão das coxas dela... Tinha também que dar essa explicação? Acrescentou, como quem se desculpa:

—        Fui quase forçada a ter essas relações com outro homem. Meu marido não quis nada comigo antes de legalizarmos a nossa união.

—        Nessa altura tinha vinte e cinco anos, não é verdade?

—        Sim, pouco mais ou menos.

—        Ora, pelas nossas contas, prova-se que houve onze anos de contactos anteriores ao casamento e...

—        Tive relações sexuais com cerca de cinquenta homens — declarou ela subitamente.

—        Como?

—        Tive cerca de cinquenta homens. A maior parte deles antes dos vinte e um anos — Naomi sorriu imaginando a cara que ele estava a fazer do outro lado do biombo, e começou a emitir pequenas argolas de fumo, sentindo uma pontinha de superioridade.

Estabeleceu-se um silêncio momentâneo. Pouco depois a voz de Paul Radford ouviu-se de novo:

—        Tenho que fazer esta pergunta, por muito que me custe. Nessas relações... a senhora aceitava... certos favores?

—        Não percebo nada do que está a dizer.

—        Bem... algumas dádivas, dinheiro...

—        Eh, cavalheiro, um momento, por favor! Estará a querer insinuar que sou alguma prostituta?

—        Não estou a insinuar coisíssima nenhuma. Estou apenas a fazer uma pergunta relativa à entrevista.

—        Bem, assim fico mais descansada. Então aponte isto no seu livro de notas, sem omitir a mais pequena vírgula. Nunca ninguém me pôs as calças em cima a não ser que eu estivesse disposta a isso. As minhas relações sexuais foram sempre por gosto, está a compreender? Estive na cama com esses homens porque queria, e nunca existiu qualquer outro motivo de interesse, ouviu?

—        Claro, claro... Peço desculpa, mas de modo nenhum quero que me interprete mal.

—        Está desculpado, mas faça também um esforço para não interpretar mal as outras criaturas.

—        Vamos continuar?

Naomi ainda se sentia zangada. Lançou um olhar àquele maldito biombo. O descaramento do homem, hem!? Voltava-lhe a sensação de tontura.

Mas a voz inexorável, após o seu consentimento em prosseguir a entrevista, continuava:

—        Onde é que costumava ter essas relações sexuais?

—        Ora, por todo o lado que conviesse. Quem é que se lembra de ter que escolher sítios determinados?

—        Mas, mais frequentemente, qual era o local onde costumava praticar o coito?

—        Em minha casa. Sou independente há muitos anos.

—        Conseguiu atingir plena satisfação com a cópula em qualquer dessas ocasiões?

—        Que lhe parece?

Quanto a Paul, a opinião era negativa, mas a pergunta dela manifestava uma afirmativa. Naomi contestou ainda que os seus dotes sexuais eram capazes de empolgar qualquer homem que estivesse vivo e são.

Depois de mais algumas perguntas daquela série, Paul disse que iriam agora passar a falar sobre o coito conjugal.

Trémula, Naomi acendeu outro cigarro, na ponta do que estava a consumir, e aguardou.

—        Matrimoniou-se uma única vez, não é verdade?

—        Graças a Deus.

—        Durante quantos anos viveu com seu marido?

—        Seis.

—        É divorciada?

—        Há quase três anos.

—        Desde então já voltou a ter quaisquer relações com o seu ex-marido?

—        Não. Nunca mais lhe pus a vista em cima.

Paul começou a sondar a vida dela na companhia do marido, detectando a ironia e hostilidade que havia em todas as respostas que obtinha.

A certa altura, após ter feito uma observação menospreziva ao marido, ela pareceu lamentar o facto e emendou com nervosismo:

—        Não quero que interprete mal o que estou a dizer — frisou, Iembrando-se dos bons momentos passados e odiando-se por ser implacável e tentar macular as melhores recordações da sua vida.

— Meu marido era um homem de bons sentimentos, doce e carinhoso. Nunca foi tão mau como eu o pintei. Tivemos momentos maravilhosos.

Gradualmente, o bom humor voltou a imperar em Naomi, enquanto Paul continuava a pesquisar a sua vida de casada. Na altura em que chegaram às relações fora do matrimónio, estava Naomi no melhor da sua forma. A tontura desaparecera, e começava a sentir--se à vontade, com excepção da falta que lhe fazia uma bebida.

—        A senhora foi casada durante seis anos. Muito bem, durante esse tempo manteve relações extraconjugais com outros homens, relações que não fossem além de coquetismo e carícias?

—        A maior parte das mulheres procede assim. Ora eu não sou diferente das outras.

—        Pode contar como as coisas se passavam?

Naomi relatou casos, lascivamente.

Logo a seguir Paul inquiriu sobre as relações mantidas por ela.

—        A senhora, além do seu marido, tinha relações com outros homens? Relações sexuais?

Fora aquilo precisamente o principiar das perturbações.

—        Escute — disse ela, subitamente —, é possível que possamos poupar tempo nesse aspecto. Vou contar-lhe tudo e depois acabaremos com isto. Meu marido era um tipo verdadeiramente fora de série, e digo isto sinceramente, mas o caso é que não conseguia satisfazer-me. Por isso não consegui ser feliz e talvez nunca o venha a ser. Não há dúvida que lhe quis ser fiel, tentei ser fiel com todas as minhas forças... Mas o senhor não é mulher, o senhor não pode saber o que é desejar-se amor e não o ter, pelo menos não se ter aquilo que se deseja. Fui obrigada a enganá-lo. O caso não sucedeu durante o primeiro ano de casada, mas depois comecei a estar nervosa e a sentir cio como uma gata, tive medo de me dar alguma coisa. Sabia que tinha que proceder como procedi, agia porém com todas as precauções. Não queria macular, perder aquilo que nos pertencia. De verdade que ambicionava o meu marido, mas também sentia necessidade de ter mais alguém... Está a compreender?

—        Penso que sim.

—        Procedia com discrição, la para a cidade e tentava contactar com algum homem nos cinemas e bares que frequentava, ou ia fazer compras a qualquer localidade vizinha. Sei que vocês gostam de estatísticas, por isso tentarei fornecer-lhes algumas. Após o primeiro ano de casada, em que não houve nada, nos outros cinco anos tive um homem todos... não, ó melhor rectificar e contar as coisas exactamente... nos primeiros anos subsequentes tive um homem uma vez por mês.

—        la com o mesmo homem ou com homens diferentes?

—        Diferentes, é claro. Sempre um homem diferente. Os tipos nem chegavam a saber o meu nome. Não me podia arriscar a ser descoberta. Mas as coisas foram piorando. A certa altura não pensava em mais nada, julguei que enlouqueceria. Comecei então a ter relações duas a três vezes por mês e, finalmente, uma vez por semana. Em determinada ocasião, a mulher de um casal nosso conhecido viu-me noutra cidade com um homem. Fiquei cheia de terror de ser apanhada... Como principiei a sair com frequência, meu marido começou a suspeitar... não, estou a faltar à verdade, meu marido confiava plenamente em mim, mas começou a sentir uma certa curiosidade. Devido a isso, durante algum tempo não me arrisquei, procurei não sair. Acontece simplesmente que me era impossível ficar ali, em casa, sozinha, à espera do meu querido. A cabeça quase me estalava de desespero. Por fim, desatei a meter--me com desconhecidos mesmo das vizinhanças. Claro que não foi nada fácil tomar semelhante atitude, que acabou por me fazer notada. Pouco depois conheci um estudante, não era exactamente um cândido adolescente, já tinha mais de vinte anos... Sempre que me cruzava com o moço notava o olhar de desejo que me deitava. Sobretudo não tirava os olhos do meu peito. Simpatizei um bocado com o pequeno, parecia-me suficientemente viril. Imaginei então que seria ideal que pudesse confiar nele e tê-lo sempre à mão quando tivesse vontade; era possível que fosse um modo de resolver os meus problemas sem escândalo. Certa noite em que meu marido tinha ido fazer serão — ele tinha uma ocupação qualquer fora das horas em que leccionava na universidade —, resolvi convidar o jovem para vir a minha casa. Claro que lhe fiz o convite de tarde. Muito bem, meu marido saiu por volta das sete horas, o rapaz apareceu pouco depois; estivera de atalaia na rua. Recordo-me bem que tinha sido um dos meus piores dias, estava verdadeiramente alucinada, não podia esperar. Quando o moço entrou, disse-lhe que não estava nada interessada em conversas nem beijinhos, e só queria que visse a cara do pobre rapaz. Como ele manifestou receio de ter relações sexuais comigo dentro de casa, levei-o para o pátio das traseiras, onde existia um pequeno relvado, e estendemo-nos naquele tapete verde. Foi uma coisa louca e maravilhosa. O pequeno era um verdadeiro encanto. O nosso orgasmo foi simultâneo e depois ficámos ali, a repousar, nos braços um do outro, como dois animais saciados. De repente, alguém acendeu as luzes do alpendre. Era o meu marido. O estudante fugiu a sete pés... fiquei sozinha para enfrentara tempestade. Desejei que meu marido me batesse, me matasse até, sentia-me profundamente envergonhada Por enganar um homem daqueles... Ora, foi a parte mais triste de toda a questão, ele não se mexia, apenas as lágrimas lhe deslizavam pelo rosto em catadupa. Provoquei-o para que me matasse, falei-lhe de todos os outros, mas as suas lágrimas eram a única reacção. Pouco depois, saiu de casa sem uma palavra e nunca mais nos vimos. Eu não podia continuar naquela casa, vim para a Califórnia e pedi o divórcio. Meu pai vive aqui próximo, mas a minha madrasta é uma megera e não a podia suportar. Como herdei algum dinheiro por morte de minha mãe, resolvi comprar uma vivenda em The Briars. Comecei a sonhar que poderia conhecer aqui um homem decente. Ora, conheci muitos homens decentes, mas todos casados. Está agora interessado no meu cadastro destes três últimos anos? Bem, tenho tido relações cerca de duas vezes por semana e sempre com ajuda do álcool. Não pode imaginar como as bebidas ajudam a afastar a angústia, isto é, se uma pessoa carregar bastante nos copos. Seja como for... — parou por momentos para retomar fôlego.

Fixou o biombo, pensando no que o homem estaria a pensar dela.

—        Não me interessa o que pensa de mim. Vocês querem a verdade. Não me sinto envergonhada. Somos todos diferentes uns dos outros. É possível que esteja a imaginar que eu sou um velho frasco. Pois bem, posso dizer-lhe que não sou. Afaste este estúpido biombo e poderá ver com os seus olhos. Os homens julgam que sabem tudo sobre as mulheres, mas não é verdade. Seja como for, as relações sexuais reflectem saúde quando são naturais... e para mim são perfeitamente naturais. Evidentemente... — parou de novo, decidindo que queria que o entrevistador ficasse com uma boa opinião dela. — Julgo que, para a vossa obra, gostariam de me saber regenerada. Posso pois dizer-lhe que há três semanas que não tenho um homem. Pode crer que é verdade. Também lhe digo: não é assim tão difícil como se imagina. É como deixar de fumar. Certa ocasião estive um mês sem fumar. Claro que se sofre um bocado, mas se uma pessoa persistir pode chegar a um fim positivo. Acredita naquilo que lhe estou a dizer, não é verdade?

—        Sim, acredito — disse Paul, numa voz que mal se ouvia.

—        Vou arranjar emprego. Consegui vencer a crise. Tenho uma entrevista marcada logo que sair daqui. O trabalho manter-me-á ocupada até voltar a casar-me. Se puder encontrar o homem talhado para mim e decente, tudo correrá pelo melhor, tenho a certeza.

—        Desejo sinceramente que assim seja.

Naomi encostou-se ao espaldar da cadeira e fechou os olhos. Pouco depois abriu-os. Sentia-se melhor.

—        Bem, tem que admitir que excedi em muito a média de licenciosidade de The Briars... Mais algumas perguntas?

Quando Naomi abandonou o edifício da Associação ainda era dia. O seu estado de espírito depois da entrevista permanecia numa excitação pouco habitual. A experiência havia sido curiosamente estimulante e, de modo para ela incompreensível, tinha sancionado a sua conduta anterior. O celibato e a continência afiguravam-se--Lhe virtudes de pouca monta.

Ao chegar ao poste de paragem de trânsito do cruzamento da avenida, voltando para oeste, Naomi teve a certeza de que não iria ao encontro que combinara com Kathieen Ballard, marcado para as oito horas. Ao meio-dia, cheia de determinação, telefonara a Kathieen e, após o habitual falatório acerca de amigos comuns e de lhe ter contado uma anedota que corria sobre o Dr. Chapman, pedira-lhe para se encontrar com ela. Francamente, Naomi dissera-lhe que precisava que lhe fizesse um favor... se é que ainda estava com boas relações com J. Ronald Metzgar, da Radcone. Kathieen res-pondera-lhe que as suas relações com ele continuavam a ser excelentes e que esperava poder ser-lhe útil. Finalmente tinham combinado encontrar-se em casa de Kathieen logo a seguir ao jantar.

No seu caminho, Naomi fez uma breve paragem. Encostou o carro na placa de estacionamento junto ao Hospital para Animais do Dr. Schultz e pediu ao empregado de serviço para lhe entregar Coronel, o seu cockerSpaniel, um cão já com cinco anos de idade. Naomi adquirira Corone ainda cachorrinho, porque era o único cocker que conhecia que não exibia um olhar melancólico. Alguns meses antes entregara-o ao cuidado do Hospital para Animais, porque se lhe tornara um trabalho demasiado fatigante dar-lhe de comer, limpá--lo e levá-lo a passear. Mas naquele dia, queria tê-lo em casa, junto °e si. Enquanto o empregado se deslocou para ir buscar o cão, Naomi preencheu um cheque. Quando o cachorro apareceu, agi-ar|do a cauda em movimentos incontroláveis ao avistá-la, Naomi

sentiu-se envergonhada por tê-lo abandonado durante tanto tempo.

Com Coronel bem aconchegado a seu lado, lambendo-lhe agradecidamente a mão que tinha livre do volante, Naomi guiou apressadamente para casa. Meteu o carro na garagem e depois levou o cão para o interior da residência, enchendo-lhe um pratinho com leite. Deixando o coccer ocupado a lamber o leite, entrou na casa de banho para retocar a pintura. Ao voltar à cozinha deitou uma dose dupla de scotch num copo e, sem se preocupar em misturar gelo, engoliu a bebida de um trago, ao mesmo tempo que fazia uma careta. Imediatamente uma nova vida lhe circulou pelas veias, feita de frenesim.

Procurou a trela encarnada de Coronel, engatou-a na argola da coleira e encaminhou-se para a porta da frente.

— Vou levar-te a passear, meu bonequito.

Entretanto f izera-se noite. Os candeeiros já estavam acesos. Enrolando a trela em volta da mão, conteve a natural impaciência do animal enquanto atravessavam o espaço relvado que conduzia à rua. The Briars não tinha passeios, não obstante as petições anuais feitas às autoridades peios habitantes que tinham crianças. Naomi dobrou a esquina da casa vizinha e continuou o caminho ao longo do quarteirão.

Ao aproximar-se da quinta residência daquele bloco, a residência Agajaniana, retardou o passo. O plano que concebera durante a última parte da entrevista fora o de dar uma volta até perto da residência Agajaniana de maneira a que Wash Dillon, quer estivesse cá fora ou no interior, a pudesse ver para marcarem um encontro. Se ele não estivesse visível, faria meia volta e tocaria à campainha. Se fosse Wash a vir à porta dir-lhe-ia que queria vê-lo depois de jantar. Wash compreenderia o que desejava e arranjaria maneira de comparecer. Se fosse a senhora Dillon ou algum dos outros membros da família quem atendesse, diria que era uma vizinha e que desejava que o senhor Dillon lhe fosse avaliar uma colecção de discos que comprara condicionalmente.

Naomi chegara nesse momento em frente da casa pintada de branco, em estilo colonial. Por detrás dos ramos de um renque de vidoeiros pôde ver que as luzes estavam acesas, sinal de haver gente em casa. Olhou para o relvado em frente. Não havia ninguém.

Com receio de ser vista, continuou o seu passeio. À esquina, junto da estrada, ouviu o som de uma bola de couro a bater no asfalto do caminho. As luzes da garagem iluminavam um rapazito magro que simulava uns passes de basquetebol, tentando enfiar a bola no arco de fero pregado no cimo da porta.

Era o filho de Wash Dillon. Naomi lembrava-se dele, recordava--se que o seu nome era Johnny. Por momentos tentou pensar no que podia fazer, mas agora já não tinha escolha possível. Só sabia que tinha que ver Wash nessa mesma noite.

—        Johnny —chamou.

O miúdo voltou-se com ar surpreendido.

—        Sou a senhora Shields.

Johnny, curiosamente, avançou para ela e logo a reconheceu.

—        Oh, olá.

—        O teu pai está em casa?

—        Não. Deixou-nos a noite passada.

—        O que é que queres dizer com isso?

—        Levou todas as coisas que lhe pertenciam. Discutiu com a mamã e bateu-lhe. Penso que não voltará.

—        Para onde é que foi?

_ Não sei. Claro que ainda deve estar nas Jorrocks' Jollities.

IÉ o clube nocturno do senhor Agajanian.

—        Eu sei... Bem, lamento muito, Johnny.

—        Não tem importância. De qualquer modo, ele nunca estava (em casa. Ena... a senhora tem um cão muito bonito.

—        É bonito, sim. Boa noite, Johnny.

—        Boa noite, Miss.

Não devia insistir. Naomi puxou a trela de Coronele regressou a casa.

De novo na cozinha, tirou o casaco, arremessando-o para cima de uma cadeira, e abriu o armário. Ainda havia ali três latas de rações para cães. Abriu uma, despejou o conteúdo num prato covo, atraiu Coronel para a porta de serviço e deixou-o a comer na varanda, fechando a porta interior da cozinha. O cão tinha comida e onde dormir. Agora quanto a ela... poderia também comer e dormir?

O relógio eléctrico por cima do fogão marcava dezanove horas e vinte e dois minutos. Naomi não sentia apetite a não ser de Wash.

Ainda tinha tempo para engolir qualquer coisa e ir ter com Kathleen. Não tinha porém vontade nenhuma de ver Kathleen e falar a respeito do emprego. Diabo, ela não queria um trabalho qualquer bolorento e lúgubre. O que queria era um lar com alguém dentro dele... alguém.

A garrafa de scotch, meia de líquido, bem como o copo, ainda estavam em cima do lava-loiças. Tinha que afastar os pensamentos tristes que a povoavam. Deitou uma dose substancial, com o líquido ambarino quase a tocar os bordos do copo e, encostando--se ao lava-loiças, inclinou a cabeça e bebeu profundamente. Um fluido quente percorreu-lhe os membros, desceu-lhe pelo peito e foi estimular-lhe as entranhas. O que sentia não era um calor benigno, mas como que uma fortíssima excitação que lhe punha o baixo--ventre em labaredas.

Evocou a imagem de Wash Dillon tal como o vira dois dias antes diante da porta da frente com o postal na mão. Todavia, não foi o seu cabelo hirsuto que evocou, não via o seu sorriso insolente no rosto marcado pelas bexigas nem o seu corpo enorme e desajeitado, o que tinha a ilusão de vir ao seu encontro através das malhas da rede que isolavam a porta da cozinha era um galo gigantesco.

Pensou: teriam as outras mulheres visões assim obscenas? Deviam ter. A pureza era uma mentira cívica. Por trás dessa mentira espreitavam o Desejo e a Luxúria. Na sua conferência, o Dr. Chapman afirmara que não havia nada de raro que uma mulher lhe pudesse contar, dissera que'a maior parte das mulheres eram capazes de fazer tudo, pensar tudo, o que sucedia era que não admitiam essas coisas senão junto dele. Nada havia naquilo que uma mulher sentisse que fosse único, ímpar. Não fora exactamente o que afirmara Chapman? Naomi já não se recordava muito bem.

Acabou de beber e de novo inclinou o gargalo para o copo. A sua mão já não tinha firmeza, e parte da bebida espalhou-se pelo lava-loiças. Erguendo o copo, sentiu a chama cauterizante a per-correr-lhe o corpo. Aquela dor, aquela tortura feroz, tinha que ser extinguida. Por momentos, considerou o caso de ir ao clube procurar Wash. Porém, logo a seguir, a ardente flama que a queimava desapareceu e apenas ficou um vazio enorme e agónico.

Olhou para o embaciado copo que ostentava na mão e compreendeu que não havia nenhum ser humano, nem Wash nem quem quer que fosse, capaz de pôr termo à agonia sentida ou de salvar aquilo que já estava devastado. Só uma coisa, só uma medida era capaz de acabar com a doença que lhe invadira a carne e o espírito. Poisou o copo e arrastou-se para fora da cozinha. De passagem para o quarto de dormir tentou acender a luz do átrio, mas falhou o interruptor e não esteve para voltar atrás. Continuou o caminho às apalpadelas, na escuridão. Com um movimento convulsivo, agar-rou-se à cama. Era a intimidade final, pensou. Aos pés do leito despojou-se metodicamente das roupas. Decidiu que o que tinha vestido fazia parte da dor que a apoquentava, e por isso não queria ter nada em cima da pele. Tirou os sapatos, esfregando os pés um contra o outro. A camisola foi arremessada para o lado. As mãos tactearam as costas, tentando desapertar o soutien de nylon e com um movimento de ombros fez as alças deslizarem. Desapertou o fecho de correr da saia e deixou-a cair a seus pés. Despojou-se da cinta. Procurou a borda da cama e, sentando-se, tirou as meias com rapidez.

Finalmente estava nua, e compreendeu então que não eram só as roupas que lhe provocavam aquela dor, ela estava-lhe colada à pele, esbraseava-a. Mas não se arrependia de estar nua, afinal fora assim que viera ao mundo e, portanto, era o modo mais adequado que uma pessoa podia ostentar.

Levantou-se e dirigiu-se à casa de banho. Acendeu a luz e rebuscou na gaveta dos remédios. Revolveu frascos e caixas até encontrar o tubo tão desesperadamente ansiado. Destapou-o e despejou na palma da mão uma quantidade substancial de comprimidos para dormir. O seu desejo de nirvana, a não ser que banisse toda a dor, remorso e culpa, ultrapassava qualquer desejo que tivesse sentido por um homem. Aos dois e três de cada vez, atirou os comprimidos salvadores para a boca. Só então se lembrou que era preciso água para auxiliar. O copo, a água. Engoliu, engoliu... Tudo lavado... Um banho... Lavagem.1

 

1 - O autor refere um jogo de palavras intraduzível para português. Wash •Qnifica acto de lavar, lavagem, limpeza por meio de lavagem.

 

Oh, Wash... Tinha consigo um bom inferno. A morte ainda seria melhor.

De repente desejou a vida ardentemente. Queria poder negociar, regatear com a morte.

Ainda não queria ser cadáver.

O braço estendeu-se, flutuante, para a porta do armário. No interior, há muito tempo, tinha colado a tabela dos «Antídotos», como uma aliada bastante prática que servia para apoiar a prerrogativa feminina. Dose excessiva de comprimidos para dormir... Duas colheres de sopa de sais de Epsom em dois copos de água... sabão emético e água quente... Epsom... Sabão... Wash, espera, por favor, por favor, espera...

Mais tarde acordou. O mostrador luminoso do despertador mostrou-lhe que já passava da meia-noite. A agonia esbraseante passara e sentia o frio a morder-lhe a pele. Tacteou por baixo do travesseiro e encontrou a dobra da coberta e dos cobertores. Aliviou o peso do corpo e puxou-os. Com um derradeiro esforço escorregou para baixo dos cobertores. Por instantes teve consciência da maciez, do bem-estar, e logo voltou a mergulhar no sono.

Passava já da meia-noite quando Paul Radford se despediu do Dr. Chapman e regressou ao quarto que compartilhava com Horace Van Duesen na Villa Neapolis.

Ficou surpreendido de ver o grande candeeiro ainda aceso e Horace, em pijama, soerguido no leito, a ler um livro.

—        Pensei que ainda estivesse morto para o mundo — disse Paul.

—        Dormi durante todo o dia. Agora estou a tentar fatigar-me até que o sono volte.

Paul tirou a gravata e começou a desabotoar a camisa.

—        Sinto-me um tanto desorientado, meu caro.

—        Onde é que esteve?

—        Realizou-se um seminário numa localidade chamada Wilshire Ebell, nos arredores da cidade. Estavam presentes alguns universitários e um par de analistas a representarem o papel de maridos num casamento moderno. Há muito tempo que o Dr. Chapman tinha prometido dar lá uma saltada, e hoje quis que o acompanhasse, a guiar o carro. As entrevistas prolongaram-se até tarde, e fomos obrigados a comer no caminho. Que dia!

Paul desdobrou o pijama e continuou a despir-se. Horace poisou o livro.

—        Paul, estou-lhe grato pela maneira como hoje me protegeu.

—Tratou-se apenas de um investimento. Espero que quando chegar o momento faça o mesmo por mim. E pela maneira como ie estou a sentir, parece que esse momento chegará muito em revê.

—        Não me devia ter embriagado daquela maneira.

—        Andamos a vadiar há muito tempo.

—        O que é que houve hoje?

—        O costume.

Apertou os atilhos das calças do pijama e enfiou as mangas do casaco.

—        Calculo não haver mais nada que me possa surpreender, muito embora tenha que admitir que as coisas nunca são prosaicas. A última que hoje me coube na rifa era realmente uma vadia amorosa... uma ninfomaníaca completa.

—        Uma perdida de verdade?

—        Nada disso. Nunca a vi mais gorda nem mais magra. Benita é que me contou que ela é uma boneca. Foi uma sessão de verdade. Senti uma terrível pena dela. Teve cinquenta amantes antes do casamento, e depois manteve relações com um macho por semana, além do próprio marido, até que este a apanhou em flagrante.

Pendurou as calças no cabide.

—        Quer dizer que o marido a surpreendeu com outro homem? — inquiriu Horace.

—        Sim. Apanhou-a com certo rapazola no pátio das traseiras, como quase sempre acontece. O marido pôs-se ao fresco... Isto não significa que a estou a culpar, mas apenas que a mulher está muito doente e precisa de ser ajudada. Veio desaguar na Califórnia e continuou com o fadário. Parece que ainda é pior. Muito embora tente dominar os seus apetites, o facto é que não pode.

Horace escutara atentamente.

—        Como é que se chama? — perguntou de súbito.

Paul, que se dirigia para a casa de banho, estacou.

—O seu nome? Julgo que não... espere, sim... Shieids... Naomi Shieids—surpreendeu-se ao ver o movimento estranho e convulsivo do rosto de Horace.

—        Conhece a senhora?

—        Não se trata de uma senhora — disse Horace, calmamente. — Trata-se da minha mulher.

 

Muito embora não tivessem dormido mais que quatro horas, Paul e Horace, por acordo tácito e sem palavras, levantaram-se ao romper do dia, a fim de evitarem os outros. Depois de se terem lavado e vestido, preparado para o seu terceiro dia de entrevistas, esperaram algum tempo que se abrissem as portas da sala de jantar da Villa Neapolis, o que sucedeu às sete e meia. Durante a meia hora seguinte, com excepção de uns quantos clientes que engoliam à pressa os pequenos-almoços para conseguirem estar na estrada antes de o trânsito se adensar, os dois homens ficaram sozinhos.

Às oito horas abandonaram a sala de jantar sem terem lobrigado o Dr. Chapman, Cass ou Benita. Aliviados, dirigiram-se para a garagem. O Sol, como um gigantesco ovo estrelado, fervia num céu sem nuvens. A relva que ladeava o caminho ainda gotejava do orvalho nocturno, mas em breve estaria seca. Paul pensou que o dia ainda ia ser mais quente que o de segunda-feira. Baixou a capota de lona do Forddescapotável e tomou depois lugar ao volante, ao lado de Horace.

Em marcha atrás, tirou o carro da garagem. Depois, sem pressas, conduziu o carro pela estrada privativa que levava ao Sunset Boulevard. Perto do sinal de trânsito do cruzamento, abrandou mais e olhou de relance para Horace.

—        Ainda é muito cedo. Vamos dar uma volta?

—        Como queira.

Paul guinou o carro para leste, deslizando pelo Sunset Boulevard, e a seguir mudou a velocidade para os sessenta quilómetros, afrouxando uma vez ao aproximar-se do complexo da Universidade (os rapazes do R. O. T. C. estavam estendidos pelos elegantes relvados da parada). Voltou a acelerar e embicou na direcção de Beverly Hills. A velocidade do carro fazia agitar uma ligeira brisa, e o ar assim deslocado afagava-lhes os cabelos como uma carícia de dedos de mulher. À entrada de Bel Air, num súbito impulso, Paul guinou completamente para a esquerda.

—        Já passou por estes lados?

—Julgo que nunca — respondeu Horace.

—        Se tivesse passado lembrava-se com certeza. É exactamente como aqueles subúrbios que ficam por trás de Honolulu.

Encontravam-se em Bellagio Road, uma estrada de asfalto levemente inclinada e sinuosa que acompanhava a linha da costa. As espessas trepadeiras e as sebes de verdura ao longo das vedações de arame, os quilómetros de buganvílias encarnadas e azuis e de fúchsias azuis e encarnadas, ocultavam todos os vestígios de haver quaisquer habitações. Os pinheiros e sicómoros de Monterey, que ladeavam os caminhos, eram antigos e copados, davam uma impressão de bens de raiz solidamente arreigados à terra, como nunca seriam capazes de sugerir as constrangidas e importadas palmeiras de Beverly Hills. Paul lembrou-se dos pais e pensou no modo como contemplariam aquelas árvores para depois desatarem a falar da Velha Terra. Os ocasionais receptáculos de correio, bizarros, tinham a encimá-los os nomes dos seus proprietários em ferro finamente lavrado. Vários daqueles nomes eram famosos. De certo modo, os receptáculos roubavam o aspecto sensacional à paisagem, dado que recordavam aos intrusos que afinal havia por ali vida humana, não vida selvagem. Recordavam que a sensação de floresta primitiva não passava afinai de cenário, de falsidade.

No desejo de comentar as impressões sentidas, Paul voltou--se para Horace. Viu porém que eie estava completamente alheio ao que o rodeava. Horace estava afundado no seu lugar como que em transe. Os braços negligentemente cruzados sobre o peito, olhava fixamente o painel de instrumentos.

Paul não teve remédio senão relembrar a negra noite que sobre eles desabara. Depois que Paul lhe revelara a entrevista com Naomi, Horace ficara como que estuporado, de olhar fixo num ponto distante, petrificado como se um raio o tivesse assombrado. Sem mudar de posição, fumando incessantemente, desatara a contar a história do seu casamento.

Um ano antes de se juntar à equipa do Dr. Chapman, realizara--se em Madison uma convenção de ginecologistas (relembrava Horace), e ele desempenhara nela um papel de certo relevo. A convenção tratava de arranjar acomodações para todos os convidados, e, entre as valiosas conveniências que eram oferecidas aos cientistas, contava-se uma secretária para ajudar aos ficheiros classificativos. A pequena que a sorte ditara a Horace anunciara-se como Naomi Shields. Até travar conhecimento com Naomi, Horace apenas conhecera as mulheres como necessidades biológicas, circunscritas a um exercício rotineiro totalmente à parte da importância do trabalho quotidiano. Sentira-se sempre seguro de estar destinado a viver e a morrer celibatário.

Naomi era algo que ele nunca imaginara que uma mulher pudesse ser: cheia de vida, linda, atraente, compreensiva, sensível. Era também, e isso cedo se provou como um factor decisivo, uma jovem muito desejada, a quem todos os homens procuravam. O facto de só ter olhos para Horace conferiu a este uma condição especial entre os seus colegas, dando-lhe uma satisfação de orgulho varonil que nunca antes sentira. Começou a atribuir a Naomi uma valia que em muito ultrapassava o próprio amor. («Evidentemente que falo de um ponto de vista abstracto» — frisara Horace a Paul). Desde o princípio que Naomi estava preparada para se entregar totalmente a Horace, para se lhe entregar completa e incondicionalmente, e fora preciso que ele se socorresse de toda a sua educação católica para não se aproveitar da vantagem que lhe oferecia a amorosa rapariga. As coisas galoparam de tal modo que ao fim de cinco meses estavam noivos («tempo escasso para nos podermos conhecer» — dissera Horace a Paul), e fora só o tempo suficiente para a levar consigo para Reardon, dando-lhe o seu nome: Naomi Van Duesen.

Desde o início o prazer do casamento fora estimulante para Horace. A condição dava-lhe ingresso em grupos sociais populares que nem sequer pensara que existissem, e, pela primeira vez na sua vida, se sentia pertencer a algo de mais cosmopolita, mais aprazível e mais cheio que o simples professorado do Colégio de Reardon. O que mais lhe agradava, porém, eram os múltiplos acessórios que rodeavam o casamento: o pato com torta de ananás, caseiro, os puídos colarinhos finalmente voltados, a colaboração na compra do frigorífico e do periquito azul, o preencher dos cartões de boas-festas, a contínua inveja manifestada pelos seus amigos, o soutien pendurado atrás da porta da casa de banho, as meias a secarem na corda por cima da banheira, o tubo da pasta de dentes destapado, a divisão do jornal dominical, os botões que, como por obra de magia, reapareciam sempre quer nos pijamas quer nas camisas.

Por esses prazeres havia porém um preço a pagar, as sancionadas intimidades do matrimónio, um dever que, com demasiada frequência, tinha lugar na cama dupla.

Horace admitira francamente perante Paul que as suas necessidades sexuais estavam abaixo de um nível médio, isto tanto quanto podia imaginar naquela época pré-Chapman, menos literata. De princípio, o incansável apetite de Naomi conseguira contagiá-lo, tornara-o orgulhoso da sua virilidade. Mas com o correr dos meses, não havendo diminuição na paixão incessante que a devorava, o prazer começou a tomar-se para Horace numa coisa perturbante. Naomi esperava o seu contacto quase todas as noites, e o que até aí fora puro impulso amoroso tornou-se uma escravidão de amor. Todos os dias que se erguiam, Horace sentia-se assaltado pelo terror que lhe começava a inspirar aquela cama dupla. Somente o aparecimento do Dr. Chapman em cena o conseguira salvar do afundamento total. De facto o Dr. Chapman tornara-se para ele numa espécie de salvador tão eficiente como a cavalaria dos Estados Unidos no tempo dos pioneiros ou os marines nos tempos modernos. Quando o Dr. Chapman o alistara na sua equipa para trabalhar durante as horas livres, pedindo-lhe que prestasse os seus serviços de noite, Horace começou a cooperar no projecto secreto com um tal fervor que foi interpretado pelo Dr. Chapman como puro entusiasmo científico. Em resultado de ter aceitado aquele trabalho, iniciara-se um atrito com Naomi, mas bem depressa ela fora forçada a compreender que as suas relações sexuais, como norma, se passariam a efectuar duas vezes por semana. A partir daí, eventualmente, diminuíra a tempestuosa agitação por ela demonstrada e, para o fim, desaparecera até completamente. Não foi senão depois do terrível desfecho do pátio das traseiras, e da cena que se lhe seguira, que Horace compreendeu até que ponto e a que grau Naomi reorganizara a sua vida sexual — a que preço conseguira o reajustamento com a sua norma de conduta.

Horace, de um só golpe, arrancara a coisa corrupta da sua vida. A casa onde tinham morado vagou; vendeu-se o mobiliário. Todas as recordações, todos os presentes, todas as fotos (salvo um retrato um tanto tremido que mostrava Naomi de perfil e que fora tirado no segundo ano do seu casamento), tudo fora rasgado, liquidado. Até mesmo o caso da pensão alimentar, simples e último elo de ligação, fora reduzido, por Horace, a uma coisa verdadeiramente impessoal. No terceiro dia de cada mês, um advogado de Reardon, Wisconsin, enviava o cheque pelo correio, para um advogado em Burbank, Califórnia.

No decorrer dos difíceis e trabalhosos meses da sondagem sobre o celibato, Horace dedicara-se inteiramente ao trabalho e fora bem sucedido em conseguir apagar da mente a imagem de Naomi. Porém, com o empreender da sondagem sobre a conduta sexual das mulheres casadas, o caso quase se lhe tornara impossível... dado que, com insistente frequência, a voz que partia do biombo lhe fazia lembrar a voz dela, e cada vez mais a resposta dada às suas perguntas sobre actividades extraconjugais lhe vinha a soar como uma coisa intencionalmente sádica.

Horace sentira pavor por The Briars desde o momento em que a viagem fora determinada. Não era que se importasse de estar em Los Angeles durante a sondagem, o que se lhe tornava insuportável era pensar na proximidade de Naomi dentro da acuidade de espécimes de mulheres casadas durante os inquéritos. Não sabia ainda bem se o receio que sentia seria por poder voltar a encontrá-la ou Por não a ver. Não encontrava a razão adequada para as suas apreensões, mas o facto era que aquilo existia e doía ainda. E então, na segunda-feira à noite, tinha-a visto. Resolvera ir ao cinema em Westwood e conseguira encontrar um lugar, três cadeiras afastadas da coxia central. Cerca de vinte minutos após ter começado o 'ilrne de fundo, observara uma mulher que subia a coxia — era Naomi. Ela não reparara nele e continuara o seu caminho para a saída, mas ele vira-a e sentira-se profundamente perturbado. Mais tarde embriagara-se como um marinheiro.

Debatendo a entrevista de Naomi com Paul, Horace ficara impressionado pela inevitabilidade (pelo menos no seu pensamento) da presença de Naomi entre duzentas voluntárias. Era como se um destino cruel o tivesse acorrentado a ela, não deixando que se libertasse. No entanto, Paul considerara o aparecimento de Naomi como uma coisa menos invulgar. Afinal de contas, haviam sido entrevistadas mais de três mil mulheres. As margens de segurança da percentagem eram, de certo modo, negativas quanto à possibilidade do acontecimento, mas, tal como Paul previra no comboio, não era de surpreender que qualquer das mulheres viesse a ter ligação com um dos membros da equipa, especialmente morando na pequena comunidade que estava a ser objecto da sondagem. Paul lembrou a Horace o anterior incidente em Indianápolis, quando ele, Paul, compreendera que estava a interrogar uma mulher casada com quem tivera vários encontros durante o seu tempo de permanência na escola. Coisas daquelas aconteciam — mas ditadas pelo acaso. Na literatura as coisas não sucediam assim com tanta frequência, no intuito de evitar um forçar da credulidade, mas na vida real aconteciam com muita frequência. Paul dissera a Horace não estar aborrecido com a coincidência, o que o aborrecera fora o facto singular de Naomi se ter oferecido para um trabalho de pesquisa de que sabia que seu marido fazia parte. Porém, Horace pensava que ela o desconhecia. No último período do casamento, Naomi nunca soubera para quem ele trabalhava durante as suas horas livres, até porque a segunda sondagem do Dr. Chapman ainda não fora anunciada oficialmente. Era também improvável que tivesse lido alguma coisa sobre a sua profissão. Embora Naomi, e isso só nos primeiros tempos de casada, lesse alguns livros, não tinha paciência para ler jornais ou revistas. Era portanto muito difícil que tivesse mudado os seus hábitos. Mas ainda que lesse jornais ou revistas, Paul bem sabia que os artigos, habitualmente, só se referiam ao Dr. Chapman, mencionando raramente o nome dos elementos da sua equipa. Além disso, não era provável que Naomi tivesse revelado em The Briars o seu nome de casada, de modo que as outras mulheres não podiam relacionar com ela o Van Duesen da equipa do Dr. Chapman. Assim, tanto quanto se podia observar, essa parte da questão formava um bloco sensato e sólido.

Os dois homens tinham estado a falar no assunto até às três horas da madrugada, com Horace a fazer quase toda a despesa da conversa e Paul a tentar dar-lhe ânimo, a procurar tranquilizá-lo.

Nesse momento, à luz daquele sol matinal e a guiar o carro através de Bel Air, ao relembrar o sucedido, Paul pensava porque é que a lembrança do caso continuava ainda a perturbá-lo. Claro que era um sentimento de pesar por um amigo. Mas só isso era coisa demasiado simplista. Havia no fundo algo de mais egoísta. Supunha que tudo aquilo tinha uma ligação directa com o seu estado de celibatário. Possivelmente era mais um tijolo a acrescentar àquele muro que ia edificando lentamente. Aquele muro que o mantinha afastado de ser monopolizado por qualquer mulher, que o isolava do casamento. Cada tijolo tinha em si determinada característica, um número símbolo, e essa barreira de números simbólicos seria um dia tão extraordinariamente alta e inexpugnável que nada a poderia forçar. Naomi nada mais fora do que o reflexo de centenas de outras mulheres cujas vidas íntimas havia sondado — números sem nome — e lhe diziam em linguagem científica que dentro do amor e do casamento tudo era apenas numerativo — número de comportamento e maneiras animadas; número de posições; número de orgasmos. Honestamente, talvez fosse tudo quanto havia. Se assim fosse, então o casamento não passava de um ermo — para isso era preferível, quanto a ele, o isolamento monástico. Ou seria algo mais que aquela definição árida? O que se passava com as sólidas e boas uniões conjugais que conhecera e com os ideais românticos que tanto acalentara? Onde estavam a ternura, as coisas em comum e a procriação? Victor Jonas, afasta-te de mim.

Paul chegou o descapotável para a berma da estreita estrada, a fim de deixar passar uma camioneta de carga, e depois voltou a observar Horace. Sentiu uma vaga de compaixão pelo seu abatido amigo.

— Horace, sente-se melhor?

Horace afastou o olhar do compartimento.

—        Isto passa... Foi muito amável da sua parte ter-me deixado desabafar ontem à noite.

—        Não seja tolo.

—        Sabe o que é que vinha para aqui a ruminar? Pensava qual a verdade que me levou a embriagar daquela maneira na segunda--feiraà noite...

—        Bem, você tinha-a visto.

—        Sim, mas não foi só porque a vi. O que sucedeu é que tendo-a apenas visto de relance, pela primeira vez depois daquela noite fatal, nesse rápido instante soube que ainda a amava tanto ou mais que antes. Foi isso que me agoniou. É vergonhoso, tanto mais que habitualmente sou uma criatura bastante reservada, mas não consegui dominar-me. Ali estava ela, uma coisa imunda, e eu ainda a amava. Depois de ela ter saído pouco me importava com aquilo que dissesse ou fizesse. Tudo o que desejava era encontrá--la. A noite passada não lhe contei isto, sentia-me envergonhado, mas o facto é que saltei como uma mola do meu lugar e fui atrás dela como um sabujo. Não a vi nem no vestíbulo nem na rua, mas andei para baixo e para cima a procurá-la por toda a parte, como um tolo. Como lhe perdi o rasto, decidi-me a procurar a sua morada na lista telefónica, para ir lá vê-la. Claro que lhe encontrei a morada, mas depois senti-me assustado, não sabia muito acerca daquela mulher que vira na relva com o moço — e pensei que era melhor ingerir primeiro uma boa golada. Naquela parte de Westwood não encontrei bares. Perguntei a um transeunte que me disse que a razão de tal ausência se devia à Universidade. Tinha conhecimento disto? Fui até outra localidade, perto de um sítio chamado Pico, encontrei um bare embebedei-me como um suíno. Deixei de estar em condições de ir procurá-la, e tive muita sorte em conseguir chegar ao motel. O que não posso é afastar do pensamento o modo como me comportei. Pensei que ela estava morta, liquidada para mim, e afinal o caso, que só estava escondido num velho e esquecido compartimento do meu ser, ressurgiu e deixou-me o espírito em frangalhos. Devo estar maluco. Como é que se pode continuar a amar uma prostituta?

Sem deixar de olhar para a estrada, Paul disse:

—        Ela não é uma prostituta. É uma mulher com quem você foi casado. Uma mulher que está muito doente e que precisa de auxílio. E você ainda a ama.

—        É verdade. Mas isso seria ser devorado por uma centena de infernos vivos.

—        É possível. Sim, suponho que seria.

Prestou atenção a um marco da estrada cuja seta apontava a direcção de Sunset Boulevard.

—        Bem, perdemos a noção do tempo. É melhor regressarmos.

Cass Miller assumiu uma atitude tensa no seu lugar ao ouvir a resposta dada por Sarah Goldsmith à pergunta que lhe fizera, e lançou um olhar carregado de desprezo para o biombo de separa-ão. A cadela, pensou, a suja cadela vigarista. Cass tinha-lhe dito:

—        Agora vai haver uma série de perguntas sobre relações extraconjugais.

A seguir perguntara:

—        Praticou alguma vez o coito com outro homem que não fosse o seu marido?

Estava tão certo da resposta que ela daria que logo assinalara na escala sol-ré-sol o sítio reservado a «Nunca», sem mesmo esperar que Sarah falasse.

Todavia ela acabara por responder:

—        Sim. Com um homem.

Cass recusou-se a acreditar naquilo que ouvia.

—        Perdão. Disse que já teve relações, desde que se casou, com outro que não fosse o seu marido?

—        Sim. Com um homem — confirmou ela, nervosamente. Era difícil para Cass esconder o tom reprovativo da sua voz.

—        Quando... quando é que isso aconteceu? Certamente que havia circunstâncias atenuantes. Fora talvez há muito tempo, quando ela ainda não estava segura de si, na imaturidade. Talvez estivesse embriagada. Resposta dela:

—        Ainda hoje mesmo.

A cadela aluada! Começou a doer a cabeça a Cass. Irritado, quis apagar o que antecipadamente tinha escrito e rasgou o papel ao fazê-lo.

Aquela mulher fizera dele um pateta alegre e Cass odiava-a. Habitualmente costumava estar preparado para tais confissões e mantinha-se em guarda. Fora a história anterior dela e a sua aparência que o haviam enganado.

A entrevista fora marcada para as nove horas. Cass não fora lesto a acordar e chegara um pouco tarde. Ao atravessar para o seu gabinete, vira que Benita conduzia uma mulher em direcção da saia de conferências. Observara-lhe o cabelo liso, apanhado atrás em carrapito à velha moda, usava uns óculos que lhe davam um ar de respeitabilidade, e o vestido era de xadrez, em estilo conservador. Os óculos, os sapatos de salto raso, a maturidade do seu aspecto davam-lhe um ar completamente progressivo da dona de casa decente. Tinham sido essas coisas que o haviam induzido em erro, principalmente os óculos.

Depois de ter tomado lugar do outro lado do biombo e de ela — aquela Sarah Goldsmith — estar pronta, a história contada confirmara a sua opinião de seriedade e respeito acerca dela. As respostas que deu eram objectivas, sensíveis. Com trinta e cinco anos, estava casada há doze. Durante o questionário, Cass notara que o marido não era propriamente o que se poderia chamar uma bola de fogo, mas para ela o caso estava provavelmente certo. Estava casada há doze anos. Tinha dois filhos. Prestava serviço na sinagoga durante as férias grandes. Uma boa esposa e uma boa mãe.

—        Quando é que isso aconteceu? — perguntara-lhe a respeito da infidelidade.

—        É uma coisa actual — tinha-lhe respondido.

A cadela piolhosa! Cass devia ter previsto aquilo.

Aquelas fêmeas eram as piores, lavadeiras, padeiras, criadas para todo o serviço, meretrizes de avental de chita.

Também a mãe dele — naquilo que dela se lembrava — tinha usado o cabelo em carrapito, com excepção daquela manhã — que manhã! — em que regressara a casa inesperadamente. Fora punido na escola por uma falta que não cometera, e fugira a toda a pressa para casa no intuito de procurar o conforto materno. Lembrava-se que nessa manhã a vira com o cabelo espalhado pelos ombros, recordava-se daqueles enormes seios maternais desnudados, da obscenidade da posição em que estava com aquele homem escanzelado que não era o seu pai. Pensando na mãe, Cass recordava sempre aquele quadro, e só podia desprezá-lo até à náusea — a velha na cama com outro homem, aquela velha que era sua mãe.

Há muito tempo, quando estava no colégio, ainda obcecado pelo que acontecera, tentara estabelecer a data do nascimento da mãe, cotejando-a com a sua própria idade, para saber quantos anos teria ela na altura em que o caso sucedera. Ficara assombrado por descobrir que, então, a mãe apenas tinha vinte e nove anos. Era inacreditável! O pior de tudo, para ele, era o caso de sempre ter pensado na mãe como velha, quando ela ainda era uma mulher jovem. A velhice só fora um facto quando Cass já era um homem muito tempo depois, naquele famoso Verão em que ela, sem manifestar o mais leve sentimento de vergonha, fora visitar seu pai para tratarem de negócios. No entanto, fosse como fosse, na sua mente e nunca conseguira haver qualquer mudança acerca do assunto. A mãe para ele fora sempre uma velha, uma velha debochada, imoral, dissoluta, demoníaca, que, na sua obscenidade, lhe fora infiel.

Do outro lado do biombo, Sarah mexia-se na cadeira, inquieta, amachucando nervosamente o lenço nas mãos. O entrevistador estava silencioso há muito tempo. Teria ela dito alguma coisa errada? Não, o Dr. Chapman havia afirmado que pretendia os factos nus e crus. Nunca ninguém viria a saber o que confessasse. Havia a linguagem secreta, os cofres nos bancos, a máquina S. T. C. No entanto a sua ansiedade aumentava. Porque é que não consultara primeiro Fred Tauber? O que sucederia se aquilo, por acidente, fosse revelado publicamente? Que lhes sucederia? Nesse momento desejava, acima de tudo no mundo, nunca ter falado no assunto fosse a quem fosse. Porque anuíra àquela entrevista? Porque contara a verdade? Fora por se sentir orgulhosa daquele segredo que lhe queimava a alma, pela plenitude da nova liberdade que desfrutava que desejara falar do caso a alguém, fosse a quem fosse?

Ouviu a voz do homem. Pareceu-lhe invulgarmente ríspida.

— Por favor, desculpe a demora. Temos perguntas facultativas Para cada diferente circunstância. Desde que me disse que o seu caso extraconjugal é uma coisa corrente, tive que procurar o conjunto correcto de perguntas. Agora, se é que está preparada...

—        Não sei bem — hesitou ela —, talvez não deva... — Sentia-se de súbito assustada.

A voz do homem por detrás do biombo soou instantaneamente suave e solícita.

—        Por favor, não tenha receio. Sei que isto é importante para a senhora, e é honestamente difícil nestas circunstâncias. Os nossos interesses, porém, são puramente científicos. Nada mais. Para nós... para mim... a senhora é uma anónima, uma mulher que se ofereceu voluntariamente para ajudar neste excelente trabalho, nesta boa obra. Quando tivermos acabado, dentro de pouco tempo, outra mulher ocupará o seu lugar nesta sala, e poderá revelar, ela e outras, factos tanto ou mais difíceis de debater que os seus. No fim do dia o que disseram não passará de símbolos assinalados em várias folhas de papel. A senhora não deve ter qualquer espécie de receio.

As palavras eram confortadoras, e Sarah acenou mudamente.

—        Muito bem.

—        Terminaremos isto rapidamente. Esse homem de que falou... há quanto tempo mantém essa ligação?

—        Há três meses.

—        Em média, pode lembrar-se de quantas vezes realizou com ele, por mês, o acto sexual?

—        Por mês?

—        Bem, por semana, se é mais fácil assim.

Sarah hesitou. Que aparência lhe conferiria a verdade? Seria degradante ou normal e atractiva? Pensou em Fred, nela própria desperta e renovada, e decidiu que só se podia sentir orgulhosa.

—        Quatro vezes por semana — respondeu.

—        Quatro vezes por semana... — repetiu ele. A sua voz soou estranhamente abafada.

—        O seu companheiro é solteiro ou casado?

—        É... é casado. — Não devia porém haver más interpretações. Ela não era nenhuma arruinadora de lares.

—        Acho melhor explicar — acrescentou apressadamente. — Ele é casado mas está separado da mulher. A esposa não lhe quer conceder o divórcio.

—        Compreendo.

A pergunta sobressaltara-a. Claro que Fred se queria divorciar. Tinha-lho dito inúmeras vezes. Simplesmente, sucedia que a mulher dele tornava as coisas difíceis. Se assim não fosse, porque é que viviam separados?

—        Pode enumerar uma ou mais razões que a tivessem levado a envolver-se num caso de ligações extraconjugais?

—        Na verdade não sei.

—Talvez eu possa simplificar a pergunta.

E Cass começou a enumerar as várias razões que levam as mulheres casadas, com mais frequência, a tornar-se adúlteras. («Quando a analisada for incapaz de fornecer uma resposta directa» — dizia sempre o Dr. Chapman nas reuniões de trabalho — «é útil apresentar exemplos de respostas dadas por outras mulheres»). Tinha Cass acabado de apresentar a quinta razão possível quando Sarah o interrompeu:

—        Sim, é essa mesma.

—        Qual? A última?

—        Precisamente.

—        A senhora não experimentava satisfação com o seu marido?

Sarah estremeceu. Porque é que o homem não se quedava com a resposta dada? Porque é que havia de continuar a repisar o caso? De que modo ela lhe poderia dizer? Como é que ele iria compreender? Acaso o entrevistador conhecia Sam? Vivera com ele durante doze anos? Poderia aquele homem compreender a corrosiva monotonia de todos os meses, de cada ano? Poderia ele compreender que a cada mulher só é dado viver uma vida, dom natural que deve ser utilizado da melhor forma, e que, se esse dom fosse desperdiçado f utilmente, não havia outra vida?

—        Não — acabou por responder. — Faltava algo para me sentir satisfeita. Aponte que a coisa aconteceu espontaneamente. Não fui eu que forcei os acontecimentos. Eles apareceram.

—        Durante o seu primeiro contacto sexual com esse outro homem, foi a senhora a parte activa, foi seduzida por ele, ou a °ópula obedeceu a uma acção mútua?

Se ela própria desconhecia os motivos, como é que podia responder com lealdade? Mas claro que devia a Fred, custasse o que custasse, um sentimento de honestidade. A verdade é que ele não era um D. Juan insensível e frio, sem coração, nem ela era... uma Jezabel demoníaca. Pensou ser no meio termo que se encontrava a virtude.

—        Suponho que houve um impulso mútuo — respondeu.

—        Crê-se tão ardente, mais ardente ou menos ardente que seu marido?

—        Que meu marido?... — repetiu surpreendida por haverem voltado a Sam.

—        Exactamente.

—        Oh, muito mais ardente.

—        E, nisso, compara-se ao... ao homem que não é seu marido?

—        Sim. Penso que somos os dois igualmente ardentes.

—        Muito bem. Agora vem uma outra pergunta que pode ter respostas alternativas. No melhor da sua compreensão pelo problema, poderá informar-me se seu marido sabe do seu caso amoroso? As respostas podem ser as seguintes: ele sabe porque lhe contaram; sabe porque surpreendeu o caso; provavelmente suspeita ou ele ignora totalmente. Qual é a sua resposta?

—        Ignora — disse Sarah, sem hesitar.

Cass apontou a resposta. Ignora! Ignora! Uma cólera surda comprimiu-lhe a garganta. Era da pior espécie aquela Ester fingida, aquela mulher vestida como uma menina pudica, que parecia um padrão de pureza, aquela mulher que brincava às donas de casa típicas, que parecia a incarnação da esposa-mãe, ao mesmo tempo que enganava o marido, que o humilhava quatro vezes por semana. Recordou a passagem da Bíblia que, quando era jovem, tinha à mesa-de~cabeceira: «Tais são os modos da mulher adúltera; ela come o fruto do pecado, limpa a boca e diz: eu não cometi iniquidade».

Passou a mão pela testa e olhou para as perguntas que se seguiam. Tinham que parar com aquilo, não podia aguentar mais a situação.

Recapitulou a entrevista. Cada uma das respostas era para ele como uma pancada. Comparou a voracidade voluptuosa da mulher com o ascetismo do marido. Os sentimentos de Cass fugiram para aquele marido, para aquele pobre pateta, cansado, fatigado pelo exaustivo trabalho quotidiano, trabalho que realizava para tentar apenas agradar a alguém que se recusava a sentir-se satisfeita.

Por aquele marido, por ele próprio, pelo Dr. Chapman, mas, acima de tudo, pelo marido, Cass devia conhecer toda a extensão da perfídia da mulher.

—        Quanto tempo costuma demorar a prática do coito entre a senhora e esse homem?

—        Demora muito, agora.

—        Quanto tempo?

Titubeando, Sarah discutiu a duração, a longevidade do pecado.

A testa de Cass estava perlada de suor, e ele abandonou por completo a sucessão cronológica do questionário.

—        Fica estimulada só de ver o seu companheiro?

—        Não.

—        Não em absoluto?

—        Não muito.

—        Então o que é que a estimula?

Estabeleceu-se um silêncio.

—        Deve sentir-se estimulada por alguma coisa — disse Cass impacientemente. — O que é? Pode dizer sem qualquer receio.

—        São as relações sexuais — respondeu Sarah. As palavras eram quase imperceptíveis.

—        Somente isso?

—        E tudo o mais que lhe está ligado — respondeu.

O lápis de Cass repousava sobre a folha de papel. Ele tentou visualizá-la tal como a tinha vislumbrado no corredor. O cabelo liso, Penteado para trás e formando carrapito, as ancas desenvolvidas de mulher fecunda. Seguidamente viu-a como ela devia na verdade Ser contemplada: o cabelo caído sobre os ombros, as maciças Coxas desnudadas... era como aquela velha que encontrara na cama com outro homem.

Eram dez horas e trinta e cinco minutos, vinte minutos depois de ter saído da Associação, quando Sarah voltou a direcção da station para o sul de Wilshire e percorreu os dois quarteirões de residências até ao apartamento de Fred. Estava combinado que não se encontrariam nessa manhã; porém, após a entrevista, Sarah sentira a urgente necessidade de estar com ele. Habitualmente agia com bastante cautela, mas naquela manhã permitiu-se dar roda livre ao seu capricho.

A entrevista produzira um efeito singular nos seus pensamentos e sentimentos. Auxiliara-a a colocar em ordem certas matérias. Tendo explanado sequentemente a história do seu casamento e do seu caso amoroso, ficara apta a ver mais claramente a escolha que devia fazer. Até esse momento, a escolha fora coisa que ainda não surgira. Mas agora Sarah via Sam e via-se a si mesma concretamente. Via Fred e via-se a si mesma num plano de verdade insofismável.

Arrumou o carro à sombra dos ulmeiros, atravessou a ruazinha tranquila e entrou na vivenda. Aquela ala só tinha dois inquilinos: uma loira oxigenada de idade indefinível, rodeada de inúmeros gatos siameses, que vivia no piso térreo, e Fred, cujo apartamento se situava ao cimo das escadas.

Entrou no fresco átrio e, ao começar a subir as escadas, ficou surpreendida de ver uma mulher que descia.

O coração de Sarah teve um baque súbito. Aquela mulher só podia vir de um único sítio. Por momentos viu-a agigantar-se no topo dos degraus. A desconhecida envergava um imaculado vestido de ténis em «pique» branco. Devia andar à volta dos quarenta anos, com o negro cabelo salpicado de brancas, meticulosamente frisado, alta, desempenada e de feições angulosas, regulares e aristocráticas. A mulher desceu degrau a degrau sem parar de fitar Sarah e, depois de ter passado por ela, voltou-se ainda para a mirar bem. Ao cruzarem-se, Sarah afastou-se um pouco para lhe dar lugar, continuando a subir em direcção ao apartamento. No cimo das escadas, deitou um olhar de relance para o átrio. A mulher estava especada à porta a contemplá-la. Os seus olhos cruzaram-se num lampejo. Sarah cerrou as mãos. A desconhecida saiu.

Sarah, perturbada por aquele encontro, precipitou-se para a porta do apartamento de Fred e começou a bater com frenesim.

Pouco depois a porta abriu-se e no limiar surgiu Fred trajando uma camisola e uns calções de jogar ténis. Sarah apressou-se a penetrar no interior do apartamento.

—        Sarah! Que diabo fazes tu aqui? Pensei que...

—        Tinha que te ver. A sessão acabou cedo. Fez um gesto irritado na direcção da saída.

—        Quem é aquela mulher?

—        Quer dizer então que a viste?

—        Precisamente. Cometi algum erro?

—        Oh, pára lá com isso. Não sejas tonta. Não tem importância nenhuma... acontece apenas que sempre te pedi para me telefonares primeiro.

—        Porquê? Quem é ela?

—        A minha mulher.

—        A tua mulher?

Sarah também pensara naquela hipótese, mas era-lhe difícil poder conciliar a imagem daquela mulher já entrada em anos e tão estéril com o vigor juvenil de Fred.

—        Ela costuma fazer isto com frequência?

—        Fazer o quê? Ah, não é nada do que estás a pensar. Já te disse que eu e ela nada temos um com o outro. Sucede apenas que possuímos alguns bens comuns. Ela aparece uma ou duas vezes por mês para falarmos de negócios. Hoje quis que a conferência se realizasse no Ténis Clube de Beverly Hills.

—        Mas então o que é que veio fazer aqui?

—        Ainda não tínhamos acabado a conversa, e ela sentiu-se cheia de sede.

—        Sede de água?

—        Sarah...

Ela sentiu a tensão que pairava no ambiente e quis libertar-se daquela angústia.

—        Perdoa — disse penosamente. — Fred, por favor, não te zangues comigo.

Atirou-se contra o peito dele, enlaçou-o e encostou-lhe a cabeça ao ombro.

—        Não estou zangado contigo — disse Fred. — O que pretendo,

Porém, é que isto não se volte a repetir, Sarah. Nada tenho a esconder. Não existe mais nenhuma mulher senão tu. O que acontece é que às vezes ou não estou em casa ou se encontra aqui algum amigo, ou, como hoje sucedeu... ela.    

—        Não voltarei a proceder assim, Fred. Eu só queria ver-te.

—        É um desejo compreensivo — Fred afagava-lhe o cabelo levemente. — Aprecio muito os teus sentimentos. Também eu quero ver-te o maior número de vezes possível. Bem, conta lá então o que é que se passou esta manhã? Que tal era o jovem psiquiatra?

—        Psiquiatra? — de momento Sarah esquecia-se da história que arquitectara. Mas lembrou-se imediatamente. — Excelente... Muito útil. Eu... aprendi muitas coisas com ele.

—        Já tomaste o pequeno-almoço?  

—        Não é isso o que desejo.  

—        Então o que é?

Ele afastara-a a todo o cumprimento dos seus braços a fim de a olhar de frente.

—        Só quero ter a certeza que me amas.

Fred voltou a puxá-la para o peito e começou a falar docemente, explicitamente, como se se dirigisse a uma criança.

—        Evidentemente que te amo. Mas não estraguemos tudo com acções precipitadas. Pretendo que o nosso caso seja uma coisa para sempre. Mas é capital recordarmos que devemos... ser sensatos.

—        Porquê? — perguntou ela, levantando os olhos para lhe ver o rosto.

Aquela era uma pergunta que nunca antes lhe tinha feito nem a ele nem a si própria.  

Paul Radford, muito tempo depois, revivia ainda a entrevista que tivera lugar entre as quatro e as cinco horas e meia daquela quinta-feira tropical.

O que antes de tudo o mais o intrigara fora a voz dela, uma voz macia, bem modulada, profunda, a filtrar-se lentamente através do biombo de separação. Existia uma qualidade vocal naqueles sons que o obrigava a fazer uma associação de ideias, relacionando-a com palavras como: repousante... sofisticada... senhoril... divã... rendas... boudoir... ardor... infinito. Um dia, quando já estivesse na concessão da Fundação Zollman e no seu fabuloso centro de sexo, tinha que sugerir ao Dr. Chapman a preparação de um livro relacionando a atracção amorosa com o timbre vocal.

Pensou se a realidade daquela mulher corresponderia à promessa que havia na sua voz. Voltou a considerar que aquele biombo era afinal uma coisa artificiosa, mais inibitória do que encorajadora.

A história da entrevistada estava ali diante dele, durante o período adolescente e pré-conjugal. Com excepção de certos preconceitos puritanos e uma nítida tendência para se dominar, nada havia de notável na sua vida. Quase todo o comportamento dela, durante a adolescência, fora uma coisa comum e, por isso mesmo, eminentemente normal, segundo o padrão que ela invocava.

—        Antes de nos embrenharmos na série de perguntas sobre a actividade sexual conjugal, talvez deseje uma breve pausa—disse Paul. — E se fumássemos um cigarro?

—        Como quiser.

—        Na verdade eu fumo cachimbo. Não a incomodo?

—        De maneira nenhuma.

Paul ouviu o estalido do fecho da mala dela. Ele tirou o cachimbo do bolso, encheu o fornilho e acendeu-o. Depois, tal como já antes fizera, agarrou no questionário e voltou a considerar os primórdios da entrevista.

A mulher chamava-se Kathleen Ballard, de vinte e cinco anos, nascida em Richmond, Virgínia. Aos doze anos mudara-se para S. Francisco, coisa que se notava no seu ligeiro sotaque sulista, perceptível nalgumas palavras, e a sua educação tivera lugar no Colégio Roanoke e na Universidade de Richmond, tendo também frequentado a Sorbona por breve espaço de tempo — o que se devia ao facto de o pai, já falecido, ter sido um militar de alta patente que se deslocava de um para outro lado com frequência. Tal como Paul, ela, por educação, pertencia à igreja presbiteriana, mas era indiferente à religião por vontade própria. Recentemente filiara-se numa congregação em The Briars, mas somente para que a filha pudesse ter a vantagem da escola dominical. Era viúva. O marido, com quem tinha vivido durante três anos, fora um piloto de ensaios nos jactos e morrera num acidente de aviação ocorrido um ano antes.

Paul sentira dentro de si um curioso conflito emocional quando a ouvira contar a morte do marido. A sua primeira reacção, bárbara e espontânea, fora de alívio. Porquê alívio? Para si mesmo deu a explicação de que uma mulher como aquela não devia ser propriedade de nenhum homem, não devia estar reduzida ao lugar-comum de um bem móvel dado como garantido. Além disso, sendo ela livre, as suas fantasias tornavam-se menos imaturas. Logo foi assaltado por um velho sentimento de culpa, substituindo a sensação de alívio pela sensação, mais hipócrita, de pena.

Agora, a chupar o cachimbo, preparando-se para entrar nas perguntas mais graves a respeito do coito conjugal, relacionou subitamente o apelido dela com o do grande piloto de ensaios Ballard. Sim, aquela devia ser a viúva de Boy Ballard, figura legendária, que, durante muitos anos, enchera as primeiras páginas dos jornais. Imediatamente se sentiu embaraçado pelas fantasias com que se deixara arrastar. Sentiu-se como um limpa-chaminés na presença de uma rainha. Mas, novo relance ao questionário restituiu-lhe a confiança. Afinal ela era apenas uma mulher.

Poisou a folha de papel em cima da mesa, colocou o cachimbo no cinzeiro de loiça e pigarreou para aclarar a garganta.

—        Muito bem, já tivemos a pausa que refresca. Se está preparada, estou inteiramente ao seu dispor.

—        Sim, já estou preparada.

—        As perguntas que agora lhe vou fazer relacionam-se unicamente com o período em que viveu com seu marido. Para começar, qual era a frequência com que mantinham relações sexuais?

Do outro lado do biombo, Kathleen Ballard, envergando o seu vestido azul-claro, de linho, estava sentada na cadeira, numa posição rígida. Mal acabara de esmagar a ponta do cigarro no cinzeiro e já procurava outro cigarro na mala.

—        Ora, deixe-me pensar...

Eis finalmente chegado o momento que ela mais receara que chegasse durante todos aqueles dias. Mas estava preparada para ele. O encontro com Úrsula Palmer na terça-feira de manhã, perto

 

1 - Alusão ao célebre slogan do anúncio da Coca-cola (Nota do tradutor).

 

da estação dos Correios, fora oportuno. Tinham estado a tomar chá no Crystal Room, e Úrsula, com o seu privilegiado cérebro de jornalista, explicara-lhe totalmente a experiência. Já ao volante do seu carro, depois do chá, Kathleen agarrara num lápis do compartimento de luvas e desatara a rabiscar nas costas de um livro de contas da garagem tantas perguntas quantas se pôde lembrar das que faziam na entrevista Chapman, especialmente as relacionadas com a vida conjugal. Por causa disso chegara dez minutos mais tarde à escola de dança, onde fora buscar Deirdre. Tanto nessa mesma noite como na noite seguinte, quer na cozinha, na casa de banho ou na cama, mantivera sempre à sua frente as notas que tomara, pensando intensamente na sua vida com Boy e nas perguntas que lhe seriam feitas.

Agora, com um novo cigarro entre os dedos já manchados de nicotina, imaginava quem estaria dentro da razão. Seria ela ou um Scoville, o biógrafo oficial de Boynton, e J. Ronald Metzgar, o guarda do santuário? Estariam eles certos e ela errada? Mas era já demasiado tarde para os remorsos. Encontrava-se a enfrentar aquilo — submetida à análise daquele homem profundo e sabedor, que se encontrava por trás do judicioso biombo — e não podia fugir. Além do mais, estava preparada para o caso.

—        Desculpe, mas se não se importa pode voltar a fazer a pergunta?

—        A frequência da....

—        Ah, pois claro. Três vezes por semana — disse apressadamente.

—        Era a média?

—        Mais ou menos, quando meu marido se encontrava em casa. Ele passava muito tempo fora.

—        Antes do coito devotavam certo tempo às excitações amorosas?

—        Evidentemente... —também estava preparada para aquela Pergunta.

—        Pode fazer uma descrição?

Ela descreveu apressada e atabalhoadamente as carícias.

—        Em média, quanto tempo consagravam a essas carícias?

Kathleen, por instantes, sentiu-se invadida pelo pânico. Úrsula não lhe falara daquela pergunta. Ou ter-se-ia ela esquecido de a anotar? Não, Úrsula não se teria esquecido de nada. Estranho. Úrsula era uma criatura tão meticulosa... Talvez não lhe tivessem feito a pergunta. Mas porque não na sua entrevista e porquê agora? Em média, quanto tempo?... Como é que havia de responder? Qual seria o tempo habitual? Uma hora? Demasiado fantasioso. Pareciam--Lhe carícias a mais.

—        Cinquenta minutos — respondeu.

Friamente, como pensava que devia parecer, Kathleen, sem hesitação, continuou confiantemente a descrever proeza, magníficas, prazeres incríveis, sempre manifestando ser o protótipo da mulher esclarecida, sabedora.

Tinha respondido a uma pergunta crucial. Houve um momentâneo silêncio, e Kathleen fitou o biombo, imaginando a aprovação do homem que por detrás dele se encontrava.

—Tal como tenho aqui assinalado — disse Paul —, a senhora e seu marido tinham relações sexuais três vezes por semana, dedicando cinquenta minutos às carícias preparatórias, no conjunto uma hora dedicada a fazerem amor. Está certo?

O cigarro quase queimou os dedos de Kathleen. Ela apressou--se a esmagar a ponta no cinzeiro. Sob a sua pele havia filamentos nervosos que saltitavam e era-lhe quase impossível engolir a saliva.

—        Está certo — respondeu alteando a voz. Demasiado alta, pensou. Bem vê... é difícil lembrar-me com exactidão.

Mais perguntas feitas com exagerado cuidado, pensou ela espantada.

Mais respostas irreflectidas, pensou ele admirado.

—        Até que ponto sentia o prazer dessas relações íntimas com o seu companheiro? Com muita intensidade, alguma, assim-assim, ou nenhuma?

—        Senti sempre imenso prazer nelas. Não será uma sensação normal?

Às cinco e dez, Paul Radford afastou a cadeira com ruído para lhe indicar claramente que a entrevista terminara.

—        Excelente. Temos aqui tudo o que necessitamos. Os nossos agradecimentos.

— Foi uma entrevista fácil. Obrigada.

Paul apurou o ouvido. Sentiu-a tirar a mala de cima da mesa, o ruído dos saltos dela a taconearem no chão, a porta a abrir-se e fechar-se. Finalmente, ali estava sozinho em frente da história sexual codificada da viúva Kathleen Ballard.

Mal-humorado, agarrou na folha de papel e deu a volta ao biombo. Tinha vinte minutos de intervalo até a entrevista seguinte. Decidiu aproveitá-los para ir beber uma chávena de café à sala de conferências; bem precisado estava dela. Ao entrar no lado interdito onde se sentavam as mulheres durante as entrevistas, ficou um momento parado a contemplar a cadeira, agora vazia, e o cinzeiro onde se viam seis ou sete pontas de cigarros. Reparou então que, no chão, por baixo da mesa, se encontrava caída uma carteira.

Baixou-se e apanhou-a. Era uma carteira de um tom verde--escuro, com formato inteiramente feminino. Uma vez que ninguém se sentara naquela cadeira durante a manhã, adquiriu a certeza de quem era a proprietária. Pensou como diabo teria ela deixado cair aquele objecto, e a seguir imaginou o que devia ter acontecido. Nos primeiros momentos da entrevista, Kathleen deixara cair a mala de mão, pedira-lhe até para suspender a entrevista durante alguns segundos, enquanto apanhava os pertences que se tinham espalhado pelo chão. Fora nessa altura que se esquecera da carteira, provavelmente por lhe ter passado despercebida.

Observou o interior da carteira justificando o seu acto, agora que sabia quem era a proprietária, alegando que queria ter uma certeza. No compartimento reservado às notas havia uma de cinco dólares e duas de um dólar, no outro lado cartões e talões de crédito para restaurantes e compra de gasolina. Nas partes centrais de celulose viu, de um lado, a carta de condução e, do outro, a fotografia da viúva Ballard. Era uma fotografia em formato de postal que a mostrava juntamente com uma menina. Sabia muito bem que era aquilo que buscava com tanto afã desde o início.

Olhou atentamente a foto. Não ficou surpreendido. Correspondia quase ao que idealizara. Linda, com um encanto que o fez ficar de aspiração suspensa. Durante muito tempo estudou aquele maravilhoso rosto; o cabelo negro, curto, os olhos orientais, o petulante nariz e a boca sensual.

Por fim fechou a carteira. Tinha que a dar a Benita para que esta fizesse a entrega.

Meteu a carteira no bolso, em seguida olhou fixamente o questionário da entrevista, aquele questionário muito menos real, muito menos verdadeiro que o seu rosto onde avultavam os lábios escarlates.

Por instantes manteve a folha de papel suspensa, depois, com um movimento brusco, misto de desespero e desapontamento, ras-gou-a em duas partes.

Porque teria ela mentido?

No corredor, viu Benita sentada à secretária a escrever uma carta.

—        Há café?

—        Está em cima da chapa.

Paul acenou com a cabeça e encaminhou-se para a sala de conferências. Não lhe deu a carteira.

Kathleen Ballard estava em frente do painel de ferro forjado, estilo espanhol, do seu bar. Colocava dois cubos de gelo dentro dos copos, sentindo-se pouco à vontade por saber que os olhos de Dyson não se despregavam do seu corpo. Ao deitar o scotch sobre o gelo — em boa verdade não lhe apetecia outra bebida —, sentia--se desgostosa por ter posto aquele vestido preto que lhe descobria os ombros e lhe moldava perfeitamente as coxas, por ser curto e demasiado estreito. Se ele a fazia sentir-se como se estivesse despida, qual não seria a impressão causada em Dyson?

Devagarinho, começou a mexer as bebidas, esquecendo-se de que não fizera a mistura de água e, portanto, não precisavam de ser agitadas. O caso é que fora ela quem, entre o seu guarda-roupa, escolhera cuidadosamente aquele vestido. Fora de livre vontade que levara Deirdre para casa dos Keegans, a fim de lá passar a noite e, depois de o jantar estar preparado, mandara Albertine embora, duas horas mais cedo do que era habitual, dizendo-Lhe que queria ela mesma servir a refeição. O que é que a levara àquele procedimento?

Tornava-se evidente que a entrevista exercera uma influência decisiva. Enfrentara-a e levara engatilhada a mentira. A prova havia sido doentia, envolta em todas aquelas perguntas desagradáveis, indiscretas, quase inumanas, mas o pior de tudo era a sua consciência de ter enganado o pobre e zeloso entrevistador como se não passasse de uma mentirosa psicopática. No entanto tomara-se-lhe necessário arrostar com o exame de modo a manter a resolução que tornara a respeito da sua vida passada, tendo sido ao mesmo tempo preciso mentir, dado que esse mesmo passado fazia parte integrante do seu ser. O ponto-fulcro, porém, estava em que, poucos minutos após a entrevista, tivera a nítida consciência de que não queria continuar a viver agarrada a esse passado nem a deixar-se arrastar pelo curso de falsidade que ele representava. Queria iniciar vida nova, ser uma criatura normal. As perguntas que lhe tinham sido feitas eram uma vantagem de adaptação ao objectivo que traçam: passados um ou dois anos a partir desse momento, se tivesse outra vez que se prestar a uma tal entrevista, desejava estar liberta daquele peso, não sentir vergonha e poder responder honestamente a todas as perguntas.

Tinha sido essa a sua disposição de espírito ao regressar a casa, e daí a sua determinação em vestir-se daquele modo para aguardar a visita de Ted Dyson. Era possível que Ted não fosse o seu tipo de homem, mas não havia dúvida de que era um homem, e há mais de um ano, ia quase para dois, que ela não tinha nenhum; uma situação que parecia ir-se prolongar para toda a vida. Não, por Deus, afinal tinha vinte e oito anos e de modo algum se podia considerar uma mulher na verdadeira acepção da palavra.

Com um copo em cada mão, voltou as costas ao bar e viu que, na verdade, os olhos de Ted a espiavam atentamente. Ele estava meio deitado no sofá, numa posição indolente e sorna, e do seu todo desprendia-se uma sensação de confiança, de impudência. Kathleen não gostava da sua pose. De facto, assaltava-a certo receio de não gostar mesmo nada dele. Muito embora houvesse em Ted Dyson uma marcante virilidade, envolvia-o igualmente algo de irritante, de petulante, de corrupto, algo que fazia lembrar aqueles fachos fanfarrões, aqueles delinquentes juvenis que atiram graçolas as mocinhas, aqueles conquistadores de cordel que apareciam nos filmes e nas histórias que todos os dias vinham nos jornais. E contudo Ted era um velho amigo da família, sempre a respeitara, e o seu cartão de identidade lembrava que era um daqueles homens de elite com tanta frequência objectos de notícias de relevo.

Kathleen poisou o seu copo na mesinha de chá e entregou o outro a Dyson. Ao inclinar-se pôde sentir o bafo a álcool que se exalava dele. Presumia que tivesse estado a beber antes do encontro, e com aquela era já a quarta bebida que lhe servia.

Dyson aceitou o copo com a mão esquerda e, repentinamente, agarrou o pulso de Kathleen com a direita.

—        Olá, meu oásis. Vamos, Katie... Senta-te aqui ao meu lado.

—        Agora não, Ted. Tenho que ir pôr a mesa para o jantar...

—        O jantar que vá para o diabo. Temos que falar.

A pressão dos dedos dele no seu pulso era firme e quase dolorosa.

—        Está bem — respondeu. — Mas só por um instante.

Ted largou-lhe o pulso e, com o balanço, ela caiu positivamente contra as almofadas do sofá. Ao cair, as pernas levantaram-se-lhe, a procurar equilíbrio, e a estreita saia subiu acima dos joelhos. Procurou puxá-la para baixo com frenesim, e observou que Ted sorria, um sorriso, de orgulho, ridículo. Sentiu que o braço dele lhe envolvia o busto.

Ted Dyson atraiu-a ao peito com firmeza e foi com relutância que Kathleen lho permitiu.

—        Coisinha confortável. Ajustamo-nos lindamente—disse ele.

—        Creio que sim — anuiu Kathleen em voz fraca. — Mas a mão dele que lhe afagava o braço oprimia-lhe o coração num sentimento de angústia.

—        Afinal, disseste que tínhamos que conversar.

—        Bom, não é uma conversa muito longa.

Ted fitava-a intensamente. O rosto dele quase junto ao dela desagradava a Kathleen.

—        Queridinha, afinal o que é que se passa contigo?

—        Que pretendes dizer com isso?

—        É possível que queiras manter uma vida secreta, não sei... mas não é normal o modo como vives.

De novo aquela palavra que lhe trespassava o ser como uma lança afiada.

—Quem é que diz que não sou normal?—perguntou Kathleen, colericamente.

—        Vamos, não te zangues. Só me queria referir ao modo como vives e à maneira como te comportas. Em dado momento mostras--te afável, meiga, e logo a seguir mudas completamente de feição. Será que ainda continuas a queimar velas pelo Boy?

—        Tu sabes muito bem o que se passa.

—        Da última vez que estive aqui em casa, quis ficar contigo e parece-me que fiz grossa asneira. Correste positivamente comigo.

—        Estavas embriagado.

—        Queres dizer na tua que se não estivesse bêbedo poderias ter feito amor comigo?

—        Não deves falar dessa maneira.

Os olhos dele tinham um brilho estranho.

—        Talvez seja esse o mal. Na verdade, parece que falo de mais.

—        Não foi isso que quis dizer.

—        Ou talvez que a imagem do Boy ainda te persiga e seja preciso afastá-la de uma vez para sempre com uma noite bem assada...

Kathleen sentiu-lhe o ardente hálito.

—Vamos afastó-la imediatamente—murmurou ele, enlaçando-a com firmeza e premindo os lábios contra os dela.

Kathleen já sabia que aquela situação era inevitável. Tinha-a ntevisto, planeado e, ao mesmo tempo, havia-a receado com todo seu ser. Agora tinha acontecido. E era uma coisa normalíssima. álvez que se não pensasse, se se deixasse arrastar, como quem lutuasse nas nuvens, se deixasse que os lábios dele continuas-em a carícia e as suas mãos lhe afagassem o corpo, acabasse or se ver livre daquela opressão e passasse a sentir-se, na verda-e, uma pessoa normal. Os lábios dele eram secos e amargos, o eu hálito passava para a boca dela, e Kathleen, debilmente, ten-ou corresponder, esmagou a boca contra a dele, as trementes mãos entaram enlaçar-lhe o pescoço.

As suas bocas permaneceram assim por momentos e depois fastaram-se.

—        Boa mocinha... maravilhosa — murmurou Ted.

Voltou a beijá-la, e Kathleen fechou os olhos para receber o beijo. Sentiu-se apertada nos braços dele e sentiu a sua mão a percorrer-lhe as costas, procurando o fecho do vestido.

—        Minha querida... minha linda boneca...

Ted murmurava-lhe aquelas palavras com os lábios contra o seu ouvido. Kathleen queria lutar e ao mesmo tempo forçou-se a estar quieta. O fecho do vestido estava liberto, teve consciência de que o homem se estendia a seu lado.

Kathleen gemeu, detestando-se pelo ódio que aquilo lhe causava, mas Ted interpretou o som que lhe saíra dos lábios como um gemido de prazer; excitado, lançou-se ao trabalho de lhe puxar o vestido para baixo.

—        Ted... Ted... — gritou ela.

—        Calma, querida... é só um minuto Kathleen tentou afastá-lo.

—        Não, Ted... Não...

—        Desejo-te, minha querida... quero-te...

—        Ted, escuta...

Porém ele não queria ouvi-la. Kathleen procurou-lhe as mãos, agarrou-as com toda a sua força e afastou-as do seu corpo.

—        Querida, tu precisas de mim...

—        Não! Pára já com isso!

Espantado pela veemência dela, Ted afrouxou o amplexo e, sem se mover, olhou-a bem nos olhos.

—        Estiveste a pedir isto, a provocar-me durante toda a noite — disse ele raivosamente. — Que raio de bicho é que te mordeu agora?

—        Não te desejo a ti nem a ninguém! Ted fez uma careta.

—        Não é assim que falam as prostitutas.

Cheio de confiança em si, Ted procurou novamente despojá-la do vestido. Kathleen fugiu ao seu amplexo e aplicou-lhe uma violenta bofetada.

Ted foi projectado para trás e teve que se apoiar à mesa de chá para não cair. Finalmente, endireitou-se, e Kathleen aproveitou o ensejo para se sentar e apertar o vestido.

—        Afinal que espécie de víbora és tu?... — rugiu ele, descontroladamente. — Primeiro deixas um homem avançar e depois...

—        Não me importo que me beijes, mas quando tentas tratar--me como se eu fosse uma dessas raparigas fáceis que costumas ter...

—        Queres então dizer que só as prostitutas é que se entregam a um homem? Afinal, o que é que se passa contigo?

—        Não se passa nada de extraordinário comigo! — Sentiu a quase histeria que lhe vibrava na voz, queria poder gritar, chorar a sua raiva.

—        Sim, na verdade direi que contigo não se passa nada. Mesmo nada. És apenas frígida como um bloco de gelo.

—        Rua! — rugiu a voz dela.

—        Diabo, tens toda a razão. Vou-me embora.

Ted levantou-se e passou as mãos pelo cabelo.

—        Queridinha, para outra vez se te quiseres encontrar comigo, ou com quem quer que seja, primeiro tens que marcar entrevista pelo telefone, e aconselho-te a que o faças... se não, depois, será já muito tarde e não passarás de um saco vazio e sem préstimo.

—        Que Deus me livre de ti. Rua!

—        Está bem, está bem.

Ted abanou a cabeça em sinal de anuência e dirigiu-se para a porta.

Já tinha ouvido falar em mulheres frígidas, mas a verdade é que nunca tinha tido um encontro com um icebergue. Abriu a porta mas, antes de sair, voltou-se.

—        Pobre Boyton! Agora já o posso compreender; não o culpo por ter andado com todas aquelas raparigas!...

—        Meu filho da mãe...

Kathleen deitou a mão ao pesado cinzeiro de vidro, mas, antes que lho pudesse arremessar, já ele tinha saído.

Kathleen Ballard estava sentada no sofá com as pernas dobradas por baixo do corpo. Há longo tempo que permanecia assim, fumando incessantemente e com os olhos fitos no vazio. Acudiam-Lhe à ideia, em tropel, as imagens daquela noite e recordava-se de centenas de outras noites de solidão, uma vida inteira... Porém nunca se sentira assim tão abandonada.

Finalmente, quando se esbateu a recordação do fracasso e se esfumou a lembrança opressiva daqueles momentos, levantou-se e dirigiu-se à cozinha. Desligou o fogão. Não tinha vontade de comer. Decidiu que era melhor ir para a cama e ler até que chegasse o sono.

Começara mecanicamente a tirar do fogão a comida que ainda se podia salvar e a metê-la no frigorífico, quando soou a campainha da porta. Por momentos, sentiu receio de que fosse de novo Ted, vindo abjectamente desculpar-se. Hesitou. O relógio eléctrico por cima do fogão marcava oito e vinte. Algo lhe disse que não devia ser Ted, que ele nunca mais voltaria.

Dirigiu-se para o pequeno hallda entrada, acendeu as luzes do patamar exterior e abriu a porta.

A um passo do capacho da entrada estava postado um homem alto, desconhecido para ela, que tinha na mão uma carteira e lhe sorria acanhadamente.

—        Lamento imenso vir incomodá-la, Mrs. Ballard. Muito embora nunca nos tivéssemos visto, creio que já nos conhecemos.

—        Receio bem não saber quem o senhor é — disse Kathleen, com modos impacientes.

—        Chamo-me Paul Radford e sou um dos elementos da equipa do Dr. Chapman.

—        Dr. Chapman? Mas não compreendo...

—        Eu sei que isto é irregular, porém...

Repentinamente, Paul viu que no rosto dela transparecia espanto e indignação.

—        Já nos conhecemos? Quer dizer que... Foi o senhor que me entrevistou hoje?...

Paul acenou com a cabeça afirmativamente.

—        Fui. Evidentemente que isto não é um caso habitual, mas pensei que tivesse necessidade da sua carteira. Encontrei-a no chão, depois da sua partida.

Paul estendeu-lhe o objecto que tinha na mão. Corada, Kathleen hesitou um breve segundo, acabando por aceitar o que lhe era entregue. Evitando o olhar dele, abriu a carteira.

—        Sim, pertence-me — disse finalmente. — Suponho que lhe devia agradecer, mas a verdade é que não estou disposta a fazê-lo.

—        Ficou aborrecida? — o sorriso de justificação e desculpa desvaneceu-se do rosto de Paul.

—        E não pensa que tenho esse direito? — perguntou ela, com calor. — Só acedi a essa estúpida entrevista porque me foi asseverado que se tratava de uma coisa decente, discreta, e porque me garantiram que seria perfeitamente anónima. Ora, calcule como me devo sentir ao ver o entrevistado em minha casa.

—        Bem, não é precisamente aquilo que a senhora imagina.. Se me deixar explicar poderá continuar com a certeza de que a entrevista permanece na mesma completamente no anonimato. Não me resta a mais leve recordação de...

—        O que julgo é que tudo isto é totalmente errado. A sua conduta é repreensível, e sem possível desculpa a afronta que um tal caso representa. Nem sequer sou capaz de lhe reproduzir em palavras quanto o caso me afecta. Vendo-o aí especado a olhar para mim depois de tudo o que ouviu... bem, faz-me sentir como que obscena, imunda.

Paul, surpreendido pela fria cólera que se manifestava naquele lindo rosto, esteve por momentos quase tentado a dizer-lhe que, pela entrevista, nada ficara a saber dela a não ser que mentira. Todavia, em vez disso, compreendendo que a exaltação dela era igualmente uma resultante do que se passara na entrevista, proferiu:

—        Peço imensa desculpa por ter vindo perturbá-la tanto. Nem imagina quanto lamento o meu acto.

—        Então por que motivo veio a minha casa?

Paul hesitou, balançando entre aquilo que desejava dizer-lhe e aquilo que devia dizer-lhe. De súbito, esse problema deixou de ter importância para ele.

—        A verdade é que vi a sua fotografia dentro da carteira e quis saber se era uma criatura real, se de facto existia. Não lhe posso dizer mais que isto. Foi um erro da minha parte proceder assim, e espero que me possa perdoar. Boa noite.

Voltou-lhe as costas e, em largas passadas, dirigiu-se rapidamente para a curva da estrada.

Kathleen não se afastou do limiar da porta, ficando a observar o homem até que ele desapareceu tragado pela noite. Então, a sua ira transformou-se num sentimento de vergonha.

Antes, já tinha procurado a palavra frígida no dicionário: significava carecida de ardor, falta de calor. Tinha ainda mais significados e, para ela, era a palavra mais feia que existia.

Passados alguns segundos fechou a porta. Encaminhou-se para a casa de banho e tomou um comprimido para dormir. Pelo menos não seria perturbada por sonhos.

Diário de Benita Selby. Sexta-feira, 29 de Maio: «... à minha secretária da Associação Feminina de The Briars. São precisamente dez horas e dez minutos da manhã. Quase que nem posso acreditar que tudo isto em breve esteja terminado. Encaro o fim com uma mescla de emoções. Se por um lado acabará toda esta excitação, por outro será para mim um alívio, dado que têm sido catorze meses de trabalho intenso. É este o quarto dia de entrevistas em The Briars, e ainda temos que cá passar mais nove, sete dos quais inteiramente devotados ao trabalho. Recebi esta manhã uma longa carta da mamã. Diz que está pior da arterite. Toda a gente, com excepção do Dr. Chapman, parece andar nervosa. Ao passo que o doutor se mostra sempre agradável, Cass está cada vez mais quezilento. Poderia ser um homem bastante atraente se não fosse tão sarcástico. Hoje durante o pequeno-almoço mostrou-se verdadeiramente impertinente. Queixou-se de dores de cabeça e, quando eu lhe disse que devia ser do fumo, fez uma observação acintosa a respeito do meu diário. Frisei-lhe que não sabia o que seria de nós sem os diários e apontei-lhe os nomes de Philip Hone, Samuel Pepis, os irmãos Goncourt, Stendhal e André Gide. Isso fê-lo calar-se. O Dr. Chapman disse que esperava que eu fosse discreta, porque temos inimigos, e eu assegurei-lhe que podia ter toda a confiança em mim. Sinto cada vez mais que este diário será um maravilhoso registo de certo período histórico nas ciências rnodemas. Quero dizer na minha que servirá para humanizar a Personalidade do Dr. Chapman, se alguma vez for lido pelo público.

«Quando cheguei aqui já cá se encontravam Horace e Paul. Horace, como habitualmente, estava perdido a um milhão de quilómetros de distância, e Paul parecia apoquentado com alguma coisa. Paul costuma estar sempre de bom humor, mas claro que todas as pessoas têm direito ao seu dia mau. Às nove horas introduzi as primeiras três mulheres, que estão a ser ouvidas neste momento. Atendi duas chamadas telefónicas. Uma do director de publicidade de um estúdio cinematográfico a convidar o Dr. Chapman para um almoço de apresentação e consagração de uma película sobre as mães adolescentes e solteiras. O Dr. Chapman declinou o convite por achar que o facto nada tem de dignificante, mas disse que de boa vontade faria uma conferência sobre o sexo e conduta na Corporação dos Produtores, coisa com que eles concordaram atabalhoadamente. Será tudo preparado. O outro telefonema era de uma senhora que me pediu para transmitir um recado a Paul. Disse que, dentro das horas que fossem mais convenientes para Paul, gostaria de se encontrar com ele no Crystal Room para almoçarem. Frisou que lhe telefonasse para lá se ele não pudesse comparecer. Respondi-lhe que a hora mais conveniente para Paul era o meio-dia. A senhora tinha uma bonita voz, assim como a de Margaret Sullavan e outras estrelas. O seu apelido é Ballard, Mrs. Ballard. Que interesse terá Paul em encontrar-se com uma mulher casada?...»

Quando Paul chegou ao Crystal Room, viu Kathleen sentada num dos compartimentos privativos do grande salão. Estava pensativa, a fumar e a brincar com uma caixa de fósforos que rodava distraída. Por momentos Paul ficou à entrada, encoberto por um grupo de recém-chegados, a observá-la. Não fora errado o seu primeiro julgamento. Kathleen era uma mulher distinta, elegante, bela. A cólera da noite anterior cedeu à curiosidade e também a um certo sentimento da aventura.

Paul encaminhou-se ao encontro dela.

—        Boa tarde, Mrs. Ballard.

Kathleen levantou os olhos com rapidez.

—        Oh, viva! Como passa? — parecia ter ficado aliviada de qual

quer peso.—Quase me convenci de que não viesse; e não o culparia

por isso.        

—        Com certeza não acreditou que fizesse uma coisa dessas. Sentou-se no lugar fronteiro a ela.

—        Bom, seja como for, sinto-me contente por ter vindo. Paul sorriu.

—        E eu que pensava que não a tornaria a ver. Kathleen corou.

—        Quero que compreenda que não é meu hábito telefonar a desconhecidos para lhes marcar encontro.

Paul esteve prestes a dizer qualquer coisa que a iria arreliar; conteve-se porém a tempo, por vê-la tão ansiosa por se desculpar.

—        Esta manhã, porém, ao acordar, vi que o meu comportamento da noite passada tinha sido horrível. Senti-me preocupada... pensei: que irá o pobre homem julgar de mim?

—        O pobre homem pensou que a senhora era uma contumaz perdedora de carteiras, e que se aborrecia quando lhas iam entregar.

—        Talvez fosse isso o que mais me perturbou. Afinal, de contas, o senhor apenas me quis fazer um favor.

—O que não corresponde inteiramente à verdade, Mrs. Ballard.

Kathleen fitou-o surpreendida, e Paul pôde ver as longas e sedosas pestanas que punham uma sombra nos seus olhos orientais.

—        Não o compreendo.

—        A verdade é que estava unicamente a prestar um favor a mim próprio. Ontem à noite a senhora teve toda a razão para proceder como procedeu. Não quero que se atormente mais. Claro que foi pouco ético da minha parte, como investigador, dar-me a conhecer a uma entrevistada. Normalmente, teria agido de outra maneira. Faria a entrega da carteira a Miss Selby — a nossa secretária — e ela se encarregaria de lhe telefonar para que a senhora fosse buscar o objecto perdido à Associação. Tudo se teria passado de uma forma correcta e perfeitamente asséptica, sem o toque da marca de humanidade. Todavia, aconteceu que eu abri a sua carteira para saber quem era a proprietária. Descobri a sua fotografia e senti um irresistível impulso de a ver em carne e osso. São estes os factos nus e crus. Por isso sou eu que lhe devo todas as desculpas.

Kathleen baixou os olhos, fixando-os no serviço de prata que adornava a mesa. Ao seu pensamento acudiam muitas interrogações. Que quererá ele dizer com isto? E porque é que me revela o seu procedimento? Franziu as sobrancelhas, lembrando-se de que ele a tinha entrevistado e que durante essa entrevista escutara todos aqueles pormenores lascivos. Pensa talvez que eu sou uma tarada sexual, uma devoradora de homens?

Observando as minúcias do rosto dela, Paul ficou indignado. Aquela mulher parecia estar a tomar a franqueza de que usara como uma tentativa de sedução. O seu pensamento fervilhou. Que estará ela a magicar? Pensará que lhe estou a fazer um namoro descarado? Meu Deus, ainda aquela estúpida entrevista... deve estar a julgar que pretendo...

Um criado já entrado em anos, com um impecável uniforme vermelho e azul de botões dourados, estava junto da mesa.

—        Antes do almoço desejam que lhes sirva alguma bebida?

Paul levantou os olhos para o criado e depois fixou-os em Kathleen.

—Alinha comigo numa bebida?

—        Creio que sim. Um martini.

—        Traga dois, bastante secos — ordenou Paul ao criado.

Este, depois de anotar o pedido no seu livro de talões, desapareceu silenciosamente.

—        Mrs. Ballard — disse Paul, voltando a concentrar a sua atenção em Kathleen —, penso que a senhora deu às minhas palavras uma interpretação muito errada e que ficou ofendida.

—        Não.

—        Se imaginou, por um momento só que fosse, que qualquer coisa relacionada com a entrevista exerceu a sua influência no facto de a ter procurado... bem, posso assegurar-lhe que isso não corresponde a nenhuma verdade. Para ser totalmente honesto, devo dizer-lhe que são tantas as entrevistas que tenho feito que julgo completamente impossível relacioná-las com as pessoas como entidades particulares. De nada me lembraria, ainda que a senhora fosse uma ninfomaníaca, uma lésbica ou uma alcoólica.

Por fim ela sorria.

—        Uma alcoólica? — perguntou admirada.

—        Sim. Eu teria detectado esse facto pela incerteza da sua voz... e confirmá-lo-ia ontem se visse o seu rosto rubicundo e a tremura das suas mãos.

—        Ah! Quer dizer que o senhor também tem uma costela de Sherlock Holmes?

Durante alguns momentos o colóquio permaneceu naquele tom, cheio de formalidade e inofensivo, sendo finalmente interrompido pelo aparecimento dos martinis.

—        Bem — disse ele, dedicando-lhe uma saúde com o copo erguido—, à senhora... por ter tornado possível outro dia.

Kathleen imitou-o. Beberricaram.

—        Isto é forte — disse Kathleen.

—        Assusta-a uma azeitona decrépita?

Ela deu uma gargalhada.

De repente ambos tomaram consciência de que ou nada mais teriam a dizer um ao outro ou teriam que revelar tudo. Kathleen nada conhecia daquele homem e pensava se seria correcto fazer--Lhe tais perguntas. Por sua vez, Paul já conhecia alguma coisa da vida dela, mas talvez não se atrevesse a levantar a questão.

—        Trabalhou sempre nisto? — perguntou por fim Kathleen.

—        Nem sempre. Faço este trabalho de pesquisa há poucos anos. Antes disto era uma espécie de professor e de escritor de ocasião.

—        E o que é que o levou a abandonar essa carreira?

—        Quase que estou tentado a ser irreverente. Se na verdade o fosse, diria que todo o meu interesse se fixou no sexo e no dinheiro. Uma ruína. Mas, na realidade, não foi isso que me tentou. Julgo que me entusiasmei pela possibilidade de poder trabalhar com o Dr. Chapman e por estar dentro de uma pesquisa tão importante. Suponho, porém, que há dentro de mim um escaninho secreto que ainda me leva a pensar em mim como um escritor — não como um ex-escritor — e tento-me a crer que um dia tudo isto ainda me será muito útil. Quando for um velho caduco poderei ir escrever para Monte Cario, alojado numa pequena pensão...

Fez uma ligeira pausa, considerando o que poderia dizer a seguir.

—        Existe uma outra coisa que nunca disse a ninguém, uma coisa que tem feito parte do meu subconsciente, mas que está agora a vir à superfície. Acho que o que me levou a aceitar este trabalho foi o facto de poder encontrar algo a respeito de mim mesmo nas pesquisas a tantas vidas alheias.

—        O senhor também já foi examinado? Quero dizer, da forma como entrevista os outros.

—        Não. Quando me liguei ao Dr. Chapman, já tinham acabado todas as sondagens sobre os celibatários. Um dos meus colegas foi entrevistado pelo Dr. Chapman e, evidentemente, Chapman pesquisou-se a si próprio.

—        Então isso é uma coisa possível?

—        Eu diria que é impossível... a não ser no respeitante ao Dr. Chapman, que é uma pessoa notabilíssima a todos os títulos.

—        Achei impressionante a conferencia dele.

—        É sempre assim. É uma pessoa inteiramente adaptada aos seus termos. Como ser humano é uma criatura sólida, equilibrada, simples e dedicada. É bom sentirmo-nos a gravitar na esfera de um homem como ele quando tudo à nossa volta parece incerto, sem solução, caminhos vários que se distribuem em todas as direcções sem que saibamos qual seguir. O Dr. Chapman tem sido um excelente exemplo para mim.

—        Surpreende-me que necessite de alguém como exemplo — disse Kathleen. — O senhor parece-me tão seguro de si... isto é, dentro do bom caminho.

Paul sorriu.

—        Simples fachada. Sou como qualquer outra pessoa. Por dentro existem demasiados corredores e escaninhos secretos, e todos nós por vezes nos perdemos nesses caminhos ínvios.

—        Isso é uma verdade — confirmou ela solenemente.

—        Bem, afinal o que tenho tentado dizer é que... bem, eis-me aqui... um solteirão de trinta e cinco anos. O pensamento disto surpreende-me por não ser aquilo com que sempre tinha sonhado.

—        É possível que nunca se tenha enamorado.

—        Tenho a certeza de que já estive várias vezes enamorado, embora de maneiras diferentes. É como o jogo da roleta. Se a pessoa tiver sorte e a bola parar no número certo, não há mais complicações, ganha-se. Seja como for, pensava que estar sentado por detrás daquele biombo, ouvindo, aprendendo, seria uma coisa que me faria feliz. Agora já não tenho essa certeza. Na verdade, aquilo faz com que muitas coisas se libertem em nós, mas a confusão não desaparece completamente. Acabou a sua bebida.

—        É possível que tenha razão. Na verdade, talvez nunca me tenha enamorado. Talvez tenha medo de me enamorar.

Pensativamente, ficou a rodar o copo entre os dedos.

—        Desconhecia que esses estados pudessem acontecer aos homens.

—        Claro que sim. Até mesmo a homens casados.

—        Sabe uma coisa? Nunca tinha pensado nisso.

Paul continuava a rodar o copo vazio entre os dedos.

—Tenho estado para aqui a falar de mais.

—        Realmente. E tem a grande vantagem de saber tudo a meu respeito.

—        Isso foi um assunto de trabalho, agora é um prazer.

—        Significa que não sente prazer em conversar sobre sexo com mulheres tão diversas?

Paul notava uma censura na sua voz, mas não se perturbou.

—        Depois de terminadas, são coisas que deixam de ter significado. Sinto prazer com o meu papel de confessor... como investigador que sou. É muito grato ver a evolução das estatísticas. Mas, como pessoa            — abanou a cabeça. — Em cada caso existe sempre uma tristeza inevitável.

Ela fitou o copo.

—        Estou incluída?

—        Eu também estou.

Perscrutou-lhe o suave e melancólico rosto.

—        Seu marido... estou a magicar se teria sido o tão famoso Ballard?

—        Sim.

—        Por vezes detenho o pensamento sobre as viúvas dos homens famosos. Por exemplo, nas viúvas dos presidentes. A perda sentida deve ser muito diferente daquela que se pode sofrer por um homem comum. Deve ser como um planeta que se eclipsa, um Planeta densamente povoado, pleno de actividade, que desaparecesse repentinamente.

Aguardou. O rosto dela manifestava reserva.

Kathleen pensava: «Não é bem como um planeta desaparecido, mas sim como a sensação de um exército de ocupação que finalmente se retira do terreno conquistado».

—        Sim, algo parecido com o que disse — respondeu.

—        Conseguiu ajustar-se à solidão?

—        É possível que o seu interesse por si próprio lhe tenha dado um ajustamento à solidão. Eu, porém, não tenho essa certeza.

Paul detectava certa limitação nas suas palavras, uma hesitação que não compreendia, algo que não se atrevia a aprofundar.

—        Que faz agora? Em que é que ocupa o seu tempo?

—        Faço exactamente aquilo que faz a maioria das mulheres, não apenas as viúvas, mas aquelas que ainda possuem os maridos.

Fez uma ligeira pausa.

—        Estou à espera... rm — De alguém?

—        De alguma coisa... que consiga explicar-me a vida.

Ali estava de novo o criado aguardando ordens. Repentinamente ambos tiveram consciência de que não estavam sós, o restaurante fervilhava de gente. Kathleen percorreu a ementa cuidadosamente, escolhendo o que lhe pareceu que ele esperaria que fosse do seu gosto.

—        Bouillabaisse e pão torrado à francesa.

Paul encomendou a mesma coisa. Queria que ela soubesse que lhe apreciava o gosto. Enquanto o criado ficou a anotar os pedidos, Paul decidiu que mais tarde, quando estivessem para se ir embora, lhe pediria para se encontrarem de novo. Imaginou se a resposta dela seria afirmativa.

Diário de Benita Selby. Sábado, 30 de Maio: «...estamos a comer em conjunto num dos extremos da sala de conferências e a falar acerca de Cass. Cass não se apresentou a tomar o pequeno--almoço, e o Dr. Chapman foi dar com ele no quarto, com uma dor no estômago. Como pensou que se pode tratar de qualquer infecção relacionada com a gripe que grassa, o Dr. Chapman insistiu para que Cass ficasse no leito, em repouso, encarregando-se de fazer as suas entrevistas marcadas para hoje. Recebi uma carta breve da mamã, onde me diz que quer mudar de médico, porque acha que o Dr. Rubinfeer não lhe concede tempo suficiente, exorbita muito nas contas e não faz com que a sua arterite melhore nem um bocadinho. Escrevi-lhe logo de manhã a recomendar que não tomasse nenhuma decisão sobre o assunto até eu chegar a casa. Na verdade, uma pessoa começa por depender dos cuidados de uma mãe e acaba sempre por ter que tomar conta dela para o resto da vida. O certo é que a pobre mamã está totalmente incapacitada. Mr. Borden Bush acabou de telefonar a confirmar para segunda--feira o almoço com o Dr. Chapman. Mr. Bush disse para eu lembrar ao Dr. Chapman para levar a lista das perguntas que quer que lhe sejam feitas quando aparecer nos ecrãs da televisão para o programa The Hot Seat, que será transmitido deste domingo a oito dias, por todo o país. Foi um programa combinado em Nova Iorque há três meses, como ponto culminante do fim da sondagem feminina efectuada pelo Dr. Chapman. Eu sinto-me excitada com o acontecimento, muito embora o Dr. Chapman pareça considerar o caso como uma coisa normalíssima. Antes de nos lançarmos ao trabalho, temos ainda quinze minutos de intervalo. Dá-me tempo para poder ler a Housedaye saber como é possível nascer um bebé por meio de inseminação artificial e porque é que aquela estrela de cinema deixou a sua brilhante carreira e abandonou os estupefacientes para se consagrar a Deus».

No átrio de espera do hotel, Úrsula Palmer estava ajoelhada junto à prateleira das revistas, preocupada em retirar alguns exemplares da Houseday parcialmente escondidos atrás de outras revistas rivais, colocando-os em lugar saliente. Aquela tarefa de ajeitar a revista era um hábito de há muito tempo enraizado, uma coisa adquirida automaticamente desde o momento em que passara a ser empregada de Bertram Foster. Confortava-a proceder assim, porque sentia que cada exemplar vendido da sua revista era mais uma 9arantia para o futuro que a esperava.

Levantou-se e olhou em volta para ver se alguém notara os seus movimentos. No átrio não havia, porém, mais de que uns quantos grupinhos de homens, que usavam grandes distintivos nas lapelas, sinal de que a cidade estava ocupada por outra convenção. Fitou os elevadores com nervosismo, esperando o aparecimento de Foster.

Começou a vaguear pelo espaçoso salão de espera, pensando no que lhe diria. Por fim, deteve-se junto de um enorme vaso ornamental a pensar naquilo que acontecera. O encontro com Foster fora marcado para a noite anterior. Ele deslocar-se-ia de Palm Springs para se reunir com ela, sozinhos os dois, a fim de que lhe pudesse ler os apontamentos sobre a entrevista. Ao verificar que não podia ter os apontamentos devidamente dactilografados, fizera um telefonema para Palm Springs de modo a explicar o atraso e cancelar o encontro. Fora Alma Foster quem atendera o telefone. Úrsula perguntara-lhe se estava a passar umas boas férias e Alma respondera que não. A seguir às rotineiras banalidades, Úrsula pe-dira-lhe para chamar o marido. Foster estava a jogar uma partida de golfe e, logo que acabasse, devia seguir para Los Angeles, aonde ia para tratar de um negócio de carácter especial.

«É precisamente disso que se trata — interrompera Úrsula. — O Sr. Foster não deve vir a Los Angeles, ainda não tenho as coisas preparadas para ele. Espero que a senhora ainda o possa avisar para que não faça a viagem.»

Seguira-se um silêncio desagradável do outro lado do fio, e logo Úrsula viu o disparate que acabara de cometer.

«Não esteja preocupada com o caso — respondera Alma de uma maneira cortante. — Conseguirei avisá-los».

Úrsula, com desespero, tentara remediar o mal feito.

«Mrs. Foster, trata-se de uma série de artigos. Pode fazer o favor de lhe dizer que ainda não tenho os apontamentos preparados. Quando as coisas estiverem prontas voltarei a telefonar».

O erro táctico havia sido cometido na manhã do dia anterior. Na manhã daquele dia o telefone de Úrsula tocara para lhe trazer a voz áspera de Bertram Foster. O telefonema não era de longa distância.

«Alma e eu regressámos ao hotel — dissera a voz dele com formalidade. — Minha mulher transmitiu-me um recado sem nexo a dizer que você ainda não tem as notas preparadas. Julgo que é melhor vir ter comigo para se explicar com mais clareza. Por volta do meio-dia estarei no átrio do hotel».

Úrsula acabou por se sentar no maple, ao lado do grande vaso ornamental, a tomar o peso à verdade que queria esconder com uma mentira caridosa. Poderia por acaso contar a Foster que só tinha um terço dos apontamentos dactilografados? Poderia dizer-Lhe que todas as vezes que tentara completar o trabalho se sentira duramente atingida por todas aquelas perguntas e respostas da entrevista, e que as lera e relera pensando no seu passado e na ida com Harold? Como explicar-lhe que, pela primeira vez, sentia haver algo que se sobrepunha à sua carreira? Foster compreenderia? Não seria melhor lançar as culpas da demora para cima dos ombros de Harold — a gripe grassava por toda a parte —, continuando a exibir uma fachada eficiente e sem complexos?

—        Ora ainda bem que a vejo por aqui.

Era a voz de Bertram Foster que lhe dizia aquelas palavras, e Úrsula quase deu um pulo do maple.

—        Oh, Mr. Foster! Estou terrivelmente desolada por ter ocasionado um mal-entendido. Espero que o regresso à cidade não se deva ao meu telefonema.

Foster emitiu um profundo ruído nasal.

—        Deve-se mesmo a isso. E Alma também veio comigo.

—        Sinto muito.

—        Não se rale com isto. Afinal de contas, a vida comigo nunca foi o que se chama um piquenique. Quero apenas ter a certeza de uma coisa. O que é que disse pelo telefone?

—        Nada de especial. Apenas que precisava de falar consigo. A sua esposa respondeu que o senhor se encontrava a jogar golfe e que depois do jogo tinha que vir a Los Angeles. Frisei-lhe que telefonara justamente por causa dessa viagem, disse-lhe que o meu trabalho estava atrasado e que o senhor não devia vir a Los Angeles até eu telefonar de novo. Não vejo onde é que está o mal naquilo que disse.

—        Não vê o mal porque não é a Alma. Eu tinha-lhe dito a ela que ia tratar de um negócio especial, mas não lhe revelei com quem.

A partir do momento em que Alma soube que se tratava de um encontro com alguém que usa saias, o caso agiu nela como um verdadeiro veneno. Começou a atezanar-me como se fosse a minha consciência íntima de culpa e pecado. Mas afinal de que serviu isso? Ora aqui estamos juntos.

Perscrutava-a com os seus olhinhos, agora mais pequenos ainda devido à intensidade com que a fixava.

—        O que se passa com os tais apontamentos? Você entrou no joguinho e relatou-lhes toda a sua vida sexual, hem?

—        Sim, Mr. Foster.      

—        A entrevista demorou mais de uma hora, não é assim?   fe Úrsula fez um sinal afirmativo com a cabeça.          '%>

—        Então que é feito desses famosos apontamentos?    

—        Tenho-os em casa, mas... — deteve-se ao ver nas proximidades um grupo de homens que a miravam e que haviam sido alertados pela referência ao sexo, feita em voz alta por Foster.

Úrsula sentiu-se pouco à vontade.

—        Poderemos sentar-nos durante alguns momentos? Quero explicar-lhe.

—        Venha daí.

Foster agarrou-lhe o braço e arrastou-a pela espessa alcatifa do átrio até um sofá junto da grande vitrina que dava para a rua.

—        Ora cá estamos nós.

Sentaram-se.

—        Tomei apontamentos de toda a entrevista — disse Úrsula apressadamente. — Registei com exactidão cada uma das perguntas e todas as minhas respostas. Enfim, um trabalho minucioso.

—        Foi então assim, hem? Eh, está a corar?

—        Acredite que ainda me sinto em estado de grande tensão, e não pode haver dúvida de que lhes contei a verdade, toda a verdade...

—        Assim Deus a ajude?

—        Oh, sim. Tenho os apontamentos numa espécie de estenografia que é meu habito utilizar. Já comecei a passá-los à máquina para lhos mostrar, mas, na segunda-feira à noite, repentinamente, Harold adoeceu. A febre apresentou-se elevada e tive que me ocupar dele. Hoje já se sente um bocadinho melhor.

Espero em breve poder apresentar-lhe as folhas dactilografadas.

—        Não poderia contratar uma dactilógrafa para lhas passar com mais rapidez enquanto você ditava?

—        De modo nenhum, Mr. Foster. Não permitiria fosse a quem fosse tomar conhecimento daqueles apontamentos... exceptuan-do-o a si... Seria como despir-me diante de uma pessoa desconhecida.

—        Sim, suponho que sim — os olhinhos dele estavam agora mais brilhantes e tinha os lábios húmidos.

—        Bem, só tenho mais uma semana à minha frente antes de partir. Marque-me um encontro.

—        Que dia é hoje? Sábado, não é? Amanhã ainda tenho que tratar do Harold, mas na segunda-feira próxima começarei a trabalhar em força. Devo ter tudo pronto na quarta ou quinta-feira. Para ser mais certo, é melhor marcarmos o encontro para quinta-feira.

—        Não pode ser antes?

—        Tentarei, mas...

—        Está bem Marquemos definitivamente o encontro para quinta--feira... quinta-feira à noite, aqui mesmo, iremos para o meu quarto. Arranjarei forma de afastar a Alma. Venha às sete horas, preparada para jantar comigo e beber umas coisas, vai ser uma longa...

Fitou-a intensamente durante um segundo.

—        Espero que tudo esteja preparado.

—        Estará.

—        Já telefonei a Irving Pinkert e contei-lhe tudo sobre a nossa futura sociedade. Tal como prometi, ficou bastante impressionado. Por isso dê bastante sumo à coisa.

—        Espero que não lhe falte sumo, Mr. Foster. Mas a verdade é que eu não sou nenhuma Madame Du Barry.

Foster colocou-lhe a mão sobre o joelho e afagou-lho.

—        Todas as mulheres são Madame Du Barrys — disse ele sentenciosamente.

Úrsula anuiu com um movimento de cabeça, meio convencida da verdade daquela frase e pensando na ida para Nova Iorque.

Mas um pouco depois, já a conduzir o carro no sentido leste do Wilshire Boulevard, à medida que aumentava a distância que a separava de Foster, Úrsula sentiu que diminuía em si a preocupação por Nova Iorque. Tinha vencido todas as batalhas que a separavam do clamoroso triunfo final, mas a última batalha estava indecisa — a última batalha que era representada por Harold. O marido absorveu-lhe por inteiro todos os pensamentos e, ao chegar ao cruzamento de Roxbury Drive, em Beverly Hills, resolveu dirigir-se ao escritório dele, determinada a fazer-lhe uma surpresa e resolver de uma vez para sempre o problema da decoração.

O edifício, que se distinguia pelas suas colunatas brancas, era um dos poucos que não albergavam consultórios de psicanalistas ou de médicos de doenças nervosas. Ao lado do elevador, as tabuletas negras de grandes letras douradas indicavam que o prédio estava povoado por firmas de relações públicas, gerências comerciais e várias companhias de características enigmáticas. Como nunca mais visitara o local desde a primeira semana em que Harold para lá se mudara, Úrsula esquecera-se do andar em que o marido instalara o seu escritório. Encontrou-lhe o nome entalado entre uma firma de importações e uma agência artística, e meteu--se no elevador carregando no botão do segundo andar.

O escritório de Harold era o terceiro a contar do elevador. No

vidro martelado da porta — e teve que admitir que era impressionante

de ver — distinguiam-se as letras:         

HAROLD PALMER&C.A

Contabilistas diplomados.

O «C.a» — Úrsula sabia muito bem — servia como enfeite e chamariz de destaque da empresa. Harold teria preferido o «Ltda», se não o achasse demasiado pomposo e pouco comercial. Exceptuando um estudante de um instituto de comércio, entendido em contribuições e impostos, que lhe dava uma ajuda durante dois meses por ano, a firma de Harold só o tinha a ele como dirigente.

Sentindo-se plena de benevolência, como aquelas matronas dos clubes de caridade que durante o Natal se entretém a encher os cabazes de mantimentos destinados a bodo aos pobres, Úrsula empurrou a porta envidraçada e penetrou na sala de espera da firma «Harold e C.V Aquilo que a seus olhos se deparara encheu-a do mais profundo espanto. Da última vez que ali estivera, aliás última e primeira, vira naquela mesma sala um sofá ventrudo e com o estofo já ruço, uma cadeira meio cambada e de molas duvidosas no assento estofado e, na parede, pendurada, a reprodução de um quadro de Orozco, que se tornava um verdadeiro pesadelo. Todo o mobiliário pertencia ao senhorio e estava emprestado até que o novo inquilino se tivesse instalado definitivamente. Agora, porém, a sala de espera sofrera uma transformação completa, estava diferente como o dia da noite, a mobília do senhorio tinha desaparecido, e o que se via tinha o ar da montra expositora de uma loja de decorações do Robertson Boulevard. A sala brilhava com uma frescura inovadora, pintada num castanho-claro cor de madeira, e pairava ali um certo ar boémio de uma salinha pertencente a uma corista escandinava que se devotava a viver uma vida exterior. Os dois sofás baixos e com almofadinhas coloridas, as cadeiras estofadas a tons claros, a secretária da recepcionista e a mesinha central eram de nítido estilo dinamarquês moderno; em cima da mesinha central, rodeado de exemplares da Réalitéeóa Verve, estadeava--se um alto e esguio solitário, à maneira sueca, com uma rosa vermelha. Nas paredes estavam pendurados quadros litográficos com reproduções de desenhos a carvão de Dufy, Matisse e Degas. Úrsula verificava tudo aquilo de boca aberta. Fosse o que fosse que sucedera, aquilo não lhe fornecia mais de que a prova que ali, pelo menos, a sua opinião tinha sido dispensada.

Ainda perturbada pelo que observara, encaminhou-se para a porta do gabinete privativo de Harold e bateu.

—        Quem é?

—        Eu, Úrsula.

—        Ah, entra!

Úrsula empurrou a porta. A primeira coisa que feriu a sua visão foi a de um traseiro de mulher, amplo, túrgido, abundante, parecendo ainda mais volumoso porque a sua dona estava inclinada para a secretária de Harold, a depositar em cima do tampo um pequeno tabuleiro com um recipiente e copo de café e algumas sanduíches embrulhadas em papel celofane, que espalhavam pelo ambiente um cheiro a bife quente com molho de carne.

Harold parecia menos pálido e corcovado do que o costume. Acenou com a mão a Úrsula.

—        Viva! A tua visita é uma verdadeira surpresa.

Tinha um ar ao mesmo tempo contente e receoso, como um estudante do liceu apanhado a fumar pelo professor de Moral.

—        Calculo que sim — respondeu Úrsula com frieza.

A mulher endireitou-se por fim, e as suas nádegas deixaram de se apresentar com aquela exuberância transbordante, embora o seu volume continuasse respeitável. Era uma jovem de ar radiante, com o rosto tão brilhante e saudável como os tons da mobília que adornava o escritório. A sua frescura pouco habitual de ver foi um choque para Úrsula. O cabelo da jovem era de um loiro cor de palha, cortado muito curto, e os olhos de um azul-líquido pareciam dois discos buliçosos. Por baixo da sua camisola cor de limão, era quase escandaloso e obsceno o desenvolvimento mamário, e Úrsula sentiu-se contente ao verificar que as pernas dela não eram torneadas, pelo contrário caíam com a mesma grossura, como duas trancas. Tinha aquele ar de centenas de Gretchens, parecia uma daquelas vacas arianas de alto preço, uma daquelas raparigas da Hitler Jugendque costumavam exibir-se em exercícios ginásticos no grande Estádio de Nuremberga.

—        ...a minha secretária, Marelda Zigner—dizia a voz do sátiro detestável sentado à secretária. — Esta é a minha esposa, a senhora Palmer.

—        Muito prazer, Mrs. Palmer—cumprimentava Marelda Zigner, oferecendo-lhe um sorriso que lhe marcava duas covinhas no rosto.

Tinha um sotaque ligeiramente teutónico, e Úrsula bem sabia que não o perderia durante muitos anos da sua vida. Marelda voltava-se de novo para o sátiro.

—        Chega-lhe isto para o almoço, Mr. Palmer?

—        É mais que o suficiente, Marelda. Agora é melhor ir comer o seu almoço.

—        Muito obrigada, Mr. Palmer — sorriu para Úrsula. — Com sua licença...

Os olhos de Úrsula seguiram as saltitantes mamas e as maneantes ancas. Depois da porta fechada voltaram-se para fixar o sátiro.

—        Quem diabo é este objecto? — perguntou, fazendo um gesto na direcção da porta.

—A minha nova secretária.

Harold parecia admirado da pergunta.  

—        Falei-te dela a semana passada.

—        Não me digas que ela também sabe escrever à máquina.

—        Marelda vale bem as três secretárias que já tive.Estas alemãs são notáveis, meticulosas, limpas, eficientes...

—        E com quarenta e dois de peito.

—        Como?

—        Não importa.

Úrsula designou a mobília fazendo um gesto circular.

—        Como é que raio se operou esta transformação tão radical?

—        Ah, a mobília? Vieram ontem entregá-la. Estavas tão ocupada com os Fosters que acabei por ficar impaciente, em especial desde que consegui a contabilização da firma Berrey. Não queria que ele viesse aqui ao escritório e pensasse que eu era um falhado. Foi por isso que eu e Marelda...

—        Marelda?

—        Sim. Foi uma verdadeira sorte para mim ela ter tirado um curso de Decoração de Interiores numa escola de Estugarda.

—        Foi então ela que escolheu todo este mobiliário em estilo nórdico, hem? Ora, muito me contas...

—        Pensei que gostasses, Úrsula. Já recebi esta manhã cerca de uma dúzia de felicitações pelo bom gosto da decoração.

—        Isto é incongruente em absoluto. Não emparelha com a tua personalidade. Parece-se mais com o apartamento de uns noivos em lua-de-mel, não com o gabinete de um digno contabilista.

A vista esquerda de Harold começou a piscar nervosamente.

—        Durante muito tempo esperei por ti.

Indicou-lhe o conteúdo do tabuleiro que estava em cima da secretária.

—        Queres comer?

—        Não tenho vontade.

Voltou a olhar em volta, avaliando a mobília.

—        Isto deve ter custado uma fortuna.

—        Em boa verdade, não. Sabes como são os Alemães. Poupadíssimos. E... e agora que já posso contar com a contabilidade de Berrey... bem, quero dizer com isto que será escusado tocarmos nas tuas economias.

—        Muito bern. Já te começas a sentir independente.

—        E então não desejas que seja independente? — olhava-a calmamente.

—        Claro que quero. Quanto a questões monetárias. Só o que não quero é que procedas com leviandade. Bem, é melhor que vá andando para casa.

Úrsula sentia-se inquieta, nervosa.

—        O que é que te trouxe ao escritório? É a primeira vez que...

—        A segunda. Quis vir ver como o meu marido ocupava o seu tempo, aliás como qualquer esposa comum. Vês algum mal nisso?

—        Não. Pelo contrário, fiquei muito contente.

Úrsula já estava junto da porta, mas dentro dela voltou de repente à vida certo instinto que há muito parecia adormecido. Voltou-se para Harold e tentou sorrir.   |

—        Harold, quase que já me esquecia... Vou às compras. Queres alguma coisa de especial para o jantar?

A novidade da pergunta, a importância que isso assumia para uma resposta, desconcertavam Harold.

—        Eu... bem... não tinha pensado nisso...

—        Esquece o que disse, não te preocupes. Conseguirei arranjar alguma coisa a teu gosto.

Indicou-lhe o tabuleiro da comida.

—        Come antes que arrefeça, e mastiga bem a comida, bem sabes que o teu estômago é delicado. Até logo.

Abriu a porta e atravessou a sala de espera, muito empertigada, com os seios bem levantados e esticados, de maneira que Marelda, sentada à sua mesa, pudesse ver a formidável natureza da oposição democrática.

Diário de Benita Selby. Domingo, 31 de Maio: «...Estou sentada junto da piscina da Villa Neapolis. Acabei mesmo agora de escrever uma carta com cinco páginas à mamã. Sinto-me culpada pelas abruptas considerações que fiz ontem a respeito dela, e compreendo todo o significado que as minhas cartas têm para a pobre mamã. Sem contar com as suas irmãs, com as suas vidas ocupadas, toda a família da mamã se resume a mim e a meu irmão; Howie, longe de casa, não tem tempo para lhe enviar umas letras, e quem mais o poderá fazer se eu não proceder assim? Contei-lhe que esperamos poder gozar umas curtas férias quando regressarmos à base, e que nessa altura lhe arranjarei um especialista, levando--a a Chicago para exames clínicos e observação de raios X. Embora mesmo à beira da piscina o calor seja muito, pelo menos é um calor seco, não húmido como no Midwest. Em suma, é um calor que não faz transpirar muito. Há meia dúzia de pessoas na piscina. Tenho vestido o fato de banho que comprei em Milwaukee, e com o corpo untado com uma loção para protecção contra os raios solares. Do outro lado da piscina está sentado um homem ainda jovem, a ler. Descobri que já me lançou umas duas ou três olhadelas de relance. Devo fornecer um bom espectáculo toda untada com esta loção. O Dr. Chapman está sentado numa mesa que fica atrás de mim, junto dele estão Cass e Horace, bem protegidos do sol pelo grande toldo circular colorido. Cass sentiu-se hoje bastante melhor. O Dr. Chapman continua a falar acerca do Dr. Jonas. Durante o pequeno-almoço leu numa revista um artigo, acompanhado de um desenho esquemático, a relatar a construção de uma gigantesca clínica de conselhos e condução matrimonial. A clínica vai ser erguida junto ao mar e será dirigida pelo Dr. Jonas. O Dr. Chapman ficou furioso com o caso. Não o culpo pelos sentimentos que nutre a respeito do Dr. Jonas, uma pessoa que só se reveste para mim de características humanas por ter lido alguns dos seus artigos em revistas da especialidade. O Dr. Chapman perguntou-me se eu tinha visto Paul, e eu contei-lhe que observara a sua saída de manhãzinha, armado e equipado com uma raqueta de ténis e um saco. Julgo que não se pode jogar o ténis sozinho, daí surgir a interrogação: Com quem terá ido jogar? O jovem do outro lado da piscina está de novo a olhar para mim. Penso que é melhor tirar os óculos de sol e acabar isto mais tarde...».

Antes desse dia, sempre que Mary McManus havia jogado o ténis, aos domingos de manhã, com seu pai, ele parecera-lhe maravilhosamente jovem. Até mesmo após qualquer ser disputado com vi9or, exposto a um sol ardente, o cabelo do pai, já ralo, permanecia sempre penteado, o rosto sem vestígios de transpiração e a aspiração regular. Tanto os seus calções como a leve camisa do equipamento costumavam estar sempre em ordem e sem se ver a mais leve mancha de suor.

Mas naquela manhã de domingo, Mary, ao dirigir-se para junto da rede, para agarrar duas bolas—falhara por duas vezes o serviço —, observou o pai, que estava de pernas afastadas junto da linha final, dando-se conta do muito que ele mudara. Com incredulidade disse para si mesma que o pai estava velho. Tinha o cabelo desgrenhado, as finas madeixas corriam-lhe para a testa molhada de suor, o rosto afogueado e o peito a arfar violentamente sob a camisa amarrotada. A barriga formava uma bolsa proeminente e muito pouco atlética, coisa que ela não se lembrava nunca de ter visto. Está velho, voltou a dizer com os seus botões. Mas afinal por que diabo é que não há-de estar velho? É a lei da vida e ele é meu pai e não um rapazinho a fazer-me a corte.

Mary caminhou vagarosamente pelo cimento do campo, ouvindo os seus sapatos de lona a fazerem o chape-chape característico. Enquanto caminhava para a linha da base ia recapitulando o passado, tentando fixar o período da sua vida em que aqueles jogos com o pai tinham principiado. Provavelmente tudo acontecera no seu último ano do liceu, pouco depois de ter começado com as lições de ténis. Era hábito do pai levá-la com ele, aos domingos de manhã, para o The Briars' Country Club. Deixava-a sentada no terraço em frente duma Coca-cola e descia para os courts, a fim de jogar as suas duas ou três partidas habituais de pares. Em certo domingo o parceiro habitual de Harry Ewing falhara, telefonara a dizer ser-lhe impossível comparecer e, como recurso, o pai chamara Mary para alinhar com ele. Fora uma manhã bastante movimentada, Mary jogara excelentemente, fora muito louvada por todos e, pouco depois disso, o pai abandonara por completo o seu jogo semanal de pares, para se consagrar inteiramente aos singulares com a filha. Durante todos aqueles anos os jogos de ténis dominicais tinham-se realizado pendularmente, exceptuando a altura em que estavam doentes ou as saídas do pai para tratar de negócios urgentes fora de The Briars.

Mesmo depois de ter casado com Norman, na ansiedade de assegurar ao pai que não o pusera de parte, Mary continuara a manter o hábito daquelas partidas de domingo. Evidentemente que, princípio, Norman havia sido convidado a acompanhá-los e alternava como parceiro. Mas apesar de Norman ser dextro em quase todos os desportos, não possuía o estilo e leveza requeridos pelo ténis; na sua adolescência aprendera a jogar em campos públicos e continuava ainda a segurar a raqueta como se se tratasse de um taco de basebol. Não era jogador que se pudesse medir com Harry Ewing nem com Mary. Muito embora a mulher o encorajasse, Norman cada vez se retraía mais. Presentemente adquirira o hábito de ficar na cama a dormir nas manhãs de domingo. Levantava-se muito tarde e ela continuava a desempenhar aquele ritual quase litúrgico com o pai. Frequentemente, ao voltarem a casa, Norman estava ainda a tomar o pequeno-almoço e, pelas tardes, Mary, sentindo certo peso na consciência, tornava-se ainda mais atenciosa para ele do que o costume.

—        Estás a sentir-te bem, Mary? — ouviu o pai gritar do outro lado.

Mary tomou então consciência de ter permanecido por algum tempo a olhar abismada para as duas bolas que tinha na mão.

—        Sinto-me óptima.

—        Se estás cansada podemos terminar já com isto.

—        Bem, talvez depois deste ser. Como está o resultado, papá?

—        Cinco-seis. Zero-quinze.

Mary perdera o primeiro jogo por 3-6, e decidiu que, bem ou mal, perderia também aquele, a fim de acabarem mais depressa. Por vezes, durante aquele último meio ano, sentira que, se forçasse mais um bocado o andamento, era capaz de bater o pai com facilidade. O jogo dela era bastante vivo e acutilante e, recentemente, observara que os movimentos de cobertura do pai se tornavam muito mais morosos. Fosse como fosse, nunca seria capaz de o fazer andar ridiculamente de um lado para o outro nem de humilhá--lo, especialmente naquela manhã, em que a decadência do pai lhe saltava com mais nitidez aos olhos.

—        Bola — gritou.

Inclinou o busto para trás, nas pontas dos pés, e serviu. A bola bem batida passou um pouco acima da rede. Harry Ewing apanhou--a a meio caminho e devolveu-a cortada. Mary efectuou um movimento de rotação, vendo a bola passar longe do seu alcance e bater no terreno, à sua direita, um bom palmo para além da linha lateral.

—        Foi fora?        J; Mary puxou a bola para dentro com a ponta da raqueta.      

—        Não, acertou mesmo no alvo.

Falhou os dois serviços seguintes e, na segunda bola, o pai advertiu-a de que devia bolar mais alto. Então, com o jogo praticamente terminado, Mary enviou à rede a bola que ainda faltava servir.

Aliviada, apressou-se a ir cumprimentar o pai desportivamente e dirigiu-se depois ao vestiário subterrâneo das senhoras. Sentiu--se confortada pela frescura que se libertava daquele compartimento em cimento armado. Lavou o rosto e as mãos e passou, consoladamente, água pelos suados sovacos. Depois de penteada e com a pintura retocada, colocou a raqueta na sua prensa e subiu as escadas em direcção do terraço.

Harry Ewing, ainda afogueado e com arritmia na respiração, já estava sentado a uma das mesas metálicas à espera dela. Mary sentou-se ao lado do pai e lançou uma olhadela para o relógio de pulso. Eram quase onze horas. Pensou se Norman já se teria levantado.

—        Parece-me que foi dinheiro deitado à rua aquele que gastei em mandar-te aprender a jogar o ténis — disse Harry Ewing. — Em compensação o jogo abriu-me o apetite.

—        Com todo este calor não seria muito melhor um jogo de pares?

—        Patetice. Quando me tiver que aposentar é que voltarei outra vez para os jogos de pares.

Deu um estalido com o dedo polegar e o médio para chamar a atenção do criado preto, que limpava uma mesa próxima.

—        Franklin!

O negro levantou a cabeça.

—        Pronto, siô Ewing.

—        O jogo deu-me um apetite devorador—disse Ewing, voltando-se para a filha. Queres comer alguma coisa?

—        A mamã ficaria aborrecida se não almoçássemos. Tomo só uma limonada.

Harry Ewing encomendou ao criado negro uma limonada para Mary, e para si um chá gelado e um prato com biscoitos recheados, quentes.

Seguindo com os olhos o criado, Mary viu Kathleen Ballard que, vinda dos courts, subia a escada acompanhada por um homem alto e simpático. Ambos traziam as raquetas nas mãos, e Kathleen envergava uma saia de ténis, plissada, curta e graciosa. Mary calculou que tivessem estado a jogar num dos campos das traseiras, que ficavam encobertos à vista. O homem que acompanhava Kathleen disse qualquer coisa que obrigou esta a soltar uma gargalhada cristalina.

—        Kathleen! — gritou Mary.

Kathleen parou, olhando em volta para ver quem a chamava, acabando por localizar Mary McManus. Fez-lhe um aceno com a mão, disse qualquer coisa ao seu par e ambos se aproximaram.

—        Olá, Mary.

Harry Ewing, cavalheirescamente, afastou a cadeira e levantou-se.

—        Parece que já conhece o meu pai, Kathleen.

—        Sim, já somos velhos conhecidos. Como está, Mr. Ewing? Deu um pequeno passo lateral para dar lugar a Paul Radford.

—        Este é Mr. Radford, um visitante do Leste. E para Paul:

—        A senhora Ewing... Ah, perdão, a senhora McManus e Mr. Ewing, seu pai.

Os dois homens apertaram as mãos. Kathleen insistiu com Harry Ewing para que se sentasse, mas ele continuou de pé.

—        Onde está o Norman? — perguntou Kathleen.

—        Ultimamente tem trabalhado como uma besta de carga — disse Mary apressadamente —, e sente-se tão exausto que pensámos ser melhor que ficasse a repousar.

—        Eis o que se chama uma esposa perfeita — fez notar Paul a Kathleen, sorrindo.

—        Não discordo dessa opinião — replicou Kathleen, fitando Mary.

Depois de mais algumas frivolidades, Paul e Kathleen retira-ram-se, indo sentar-se a uma mesa um pouco distante, e Mary voltou a ficar a sós com seu pai.

—        Quem é ele? — perguntou Harry Ewing.

—        Não faço a mais pequena ideia — respondeu Mary. — Màè na verdade é um homem muito atraente.

—        Não concordo com isso.

—        Bem, não digo que seja um menino bonito à maneira de certos actores, mas tem a masculinidade de um desses batedores de fronteiras, aquele tipo de pioneiro habituado à sela... — relanceou para a mesa onde o par se sentara — ...ao mesmo tempo que também tem o ar de um pioneiro que gastasse os serões a ler à luz da fogueira.

Entretanto o criado trouxe o que fora encomendado por Harry Ewing. Enquanto o pai ia comendo os seus biscoitos e bebendo o chá, Mary bebericava a limonada, ao mesmo tempo que lançava olhares sub-reptícios a Kathleen e a Paul Radford. Eles estavam sentados muito juntos, Paul a encher o cachimbo e a dizer qualquer coisa, e Kathleen a escutá-lo atentamente. Havia no par uma suave e insinuante intimidade que fez com que Mary se sentisse solitária. Na verdade, desde a sua breve lua-de-mel, nunca mais voltara a estar assim com Norman, e nesse momento sentia enormes saudades dele, como se estivessem separados por milhões de quilómetros. Não se importava um pataco com os jogos de ténis dominicais, naquela altura invejava Kathleen e desejaria que fosse esta a poder vê-la daquela forma com Norman.

Harry Ewing acabara de comer os biscoitos quentes que lhe apeteceu e puxava agora para si o serviço de chá.

—        Suponho que Norman te tenha falado acerca do julgamento — disse ele para a filha.

—        Sim. Falou-me nisso na noite de sexta-feira.

—        O que é que te contou?

—        Que o caso de que o pai o tinha encarregado era um caso perdido. Disse-me que fez o melhor que lhe foi possível, mas que não havia a mínima possibilidade de salvação.

—        E tu acreditaste nele?

—        Sem dúvida. Porque é que não havia de acreditar?

Mary parecia surpreendida.

—        De forma nenhuma quero contradizer a sinceridade expres

sa pelo teu marido nem minimizá-lo. Norman é um jovem com possibilidades, um advogado prometedor. Ainda está um pouco cru, mas acabará por desenvolver as suas faculdades. Por agora o único problema que se põe é o da sua lealdade.

—        Que quer o pai dizer com isso?

—        Norman perdeu o nosso caso não porque ele estivesse arrumado de antemão ou não tivesse ponta por onde se lhe pegasse; qualquer dos nossos outros advogados agiria com a necessária objectividade. Perdeu-o porque não acreditava na vitória. O teu marido continua a ter uma mentalidade a preto e branco, sem cambiantes... uma coisa a que chamo imaturidade profissional. Além disso, foi para o julgamento convencido de que ia defender o danado capital contra o sacrossanto trabalho.

—        E não era assim? — perguntou Mary com agressividade.

—        Só podia ser visto por esse ângulo tratando-se de uma mentalidade banal. Não, não era de modo nenhum um caso de exploração do capital contra o trabalho. Lá porque um empregado tinha movido uma acção em tribunal, de nenhum modo isso significa automaticamente que a razão esteja do seu lado e todas as culpas sejam do patrão. Aliás, esses pobres empregados têm a apoiá-los uma associação sindical que representa uma força de biliões de dólares. E claro que os patrões também possuem os seus direitos legais. Porque é que a propriedade e a riqueza hão-de, implicitamente, sugerir pirataria?

—        Porque os livros da história estão recheados das aventuras de capitães como os Vanderbilts, os Goulds, os Fisks e de tipos como os Krupps e os Farbens... e estes são apenas uma pálida amostra.

—        Se bem me parece também deve haver uma palavrinha a dizer a respeito dos Bill Haywoods, dos McNamaras e de anarquistas como Sacco e Vanzetti1...

—        Oh, papá!

 

1 - Nicola Sacco e B. Vanzetti, anarquistas italianos emigrados para os Estados Unidos, acusados de assassínio político. Não obstante um outro condenado ter proclamado a inocência dos dois homens, eles foram executados em 1927. Na época foi um caso de grande projecção tanto na América como no resto do mundo, e Sacco e Vanzetti ficaram como símbolo do anarquismo sanguinolento. (N. do T.)

 

—        Não é isso porém o que agora está em causa. O que interessa salientar é que o meu genro julga o meu dinheiro suficientemente bom para aceitar o seu ordenado, portanto deve fazer alguma coisa por merecer esse dinheiro. É intolerável que tenha ido para o tribunal fingindo representar-me a mim, em nome da minha firma, para afinal agir de modo a favorecer esses fanfarrões trabalhistas.

—        Quem diz que ele os favorece?

—        Tenho meios de saber o que se passa e não sou cego.

—        Deve antes dizer que os seus espiões não são cegos.

—        Mary, o que é que se passa contigo? As actas do caso estão à disposição de quem as quiser consultar. Norman não utilizou todos os seus recursos nem as munições que estavam à sua disposição.

—        Diz que quase todo o caso não passava, quanto à defesa, de uma coisa sem carácter e sem fundamento.

—        Sou eu quem determina o que tem ou não tem fundamento. E não é tudo. Toda a sua defesa esteve recheada de concessões à parte contrária e foi mais que vacilante...

—        Tentou ser imparcial. Disse-me que não é nenhum oportunista nem agitador de massas.

Harry Ewing ficou silencioso por momentos. Pensava ser melhor deitar água na fervura. Mary tinha o mesmo feitio da mãe — quando se emocionava não era capaz de escutar a voz da razão.

—        Quando um advogado entra num tribunal para defender um caso, Mary — disse, adoçando a voz o melhor possível —, é como saltar para uma arena onde se deve combater sem dar quartel e sem o pedir, para vencer ou morrer. Num caso daqueles não se deve proceder como se se estivesse numa sociedade recreativa a debater um assunto filantrópico. Se Norman sente demasiados preconceitos esquerdistas para ser incapaz de tomar conta de processos como aquele, antes de começar devia ter sido franco para comigo. Confiar-lhe-ia qualquer trabalho de secretária, onde pode ser mais útil. Mas é inconcebível que tenha prosseguido como meu advogado mantendo as suas secretas simpatias pela parte contrária. Acho que foi demasiado longe — fez uma ligeira pausa. — Só o encarreguei do processo porque me disseste que ele andava desassossegado e queria experimentar as suas forças na teia. Pois muito bem, já teve a sua oportunidade. Devo dizer-te que fiz uma ;apelação e que o retirei como advogado da minha parte. Sem dúvida foi o melhor que havia a fazer em tais circunstâncias.

Mary sentiu uma espécie de náusea. Não se atrevia a olhar o pai de frente.

— Proceda como entender que é melhor — conseguiu finalmente articular. — Tente, porém, ser compreensivo e imparcial.

—        Mary, sempre procurei fazer aquilo, que me pedias, anulando muitas vezes decisões tomadas. Sempre foi assim, Mary, nunca te neguei nada. Bem, para sermos justos, fui eu o primeiro a anunciar-te que Norman era um homem competente. Não é verdade que te disse isso muitas vezes?

—        Sim, é verdade.

—        Sou sincero. Desejo fazer aquilo que for melhor para vocês os dois. Para bem de nós todos, pretendo fazer revelar as grandes potencialidades que existem nesse moço, quero que ele tenha orgulho do trabalho que executa. Sim, tenho pensado muito em Norman. Julgo que já consegui encontrar para ele uma coisa que é extremamente interessante.

Mary fixou o pai e viu que ele sorria, o sorriso dulcificava-lhe as feições. Sentiu uma vaga de alívio e a volta da velha afeição.

—        De que se trata, papá? Será uma coisa boa para Norman?

—        Uma coisa maravilhosa para um moço da sua idade. Asse-guro-te que ficarás satisfeita. Concede-me uns dias. Lá para o fim da semana devo já ter tudo preparado.

—        Oh, papá, espero que sim — procurou a mão do pai e aper-tou-a na sua, como sempre tinha feito desde menina. — Papá, tente ser um bocadinho tolerante com o Norman. Na verdade ele é uma pessoa tão boa!

Harry Ewing correspondeu à ternura da filha, apertando-lhe fortemente a delicada mão.

—        Eu sei que é, minha querida. Não te preocupes mais. Só quero a vossa felicidade.

Diário de Benita Selby. Segunda-feira, 1 de Junho: «...chama-se Gerold Triplet, e é um economista que trabalha para uma firma de S. Francisco ligada por vários contratos à Força Aérea. Ontem à noite, depois de ter jantado em companhia dos outros elementos da equipa, resolvi ir um bocado até à piscina, para apanhar fresco, e encontrei iá Gerold, o jovem que me espreitava do outro lado durante a manhã. Não lhe contei exactamente qual o meu tipo de trabalho, porque, quando os homens descobrem que uma mulher trabalha para o Dr. Chapman, começam a tratá-la como se ela fosse uma espécie de enfermeira ambulatória... Disse-lhe que tinha vindo de visita a pessoas de família de Pacific Palisades. Gerold ainda permanece aqui mais três dias em consultas com alguém em Anahein. Pediu-me para o acompanhar esta noite a um concerto no Phiilarmonic. Muito embora esteja desejosa de ir, não lhe disse que sim. Estivemos a conversar, sentados à beira da piscina, quase até à meia-noite. Gerold contou-me que em Agosto irá a Chicago, onde ficará por várias semanas, e disse que queria encon-trar-se comigo. Os caminhos do destino são bastante curiosos. Veremos. Esta manhã recebi duas cartas da mamã, e mal tive tempo de lhes passar a vista por cima, porque acordei tarde. Agora escorregou e sofreu uma entorse no pé, a senhora McKassen tem lá ido a casa ajudá-la. Que Deus não dê mais sofrimentos a Job. Hoje o Dr. Chapman encarregou-se das entrevistas com Horace e Paul, isso porque Cass se sentiu pior, parece ser a gripe. Ainda não há meia hora que lhe telefonei a saber se ainda estava vivo. O empregado da recepção atendeu-me e disse que Cass acabava de sair de automóvel para ir a uma farmácia comprar um medicamento...»

Cass Miller permanecia sentado ao volante do Dodge. O carro estava estacionado junto da curva da ruela lateral e Cass bocejava e esperava.

Na realidade, não se sentia doente, tirando aquela sensação de fraqueza ao tentar caminhar pelo seu pé. A enxaqueca era uma coisa habitual nele, e que, com frequência, ao longo do dia, aparecia e desaparecia a seu bel-prazer. Naquele momento, porém, não se sentia muito afectado. Talvez tivesse na verdade uma pontinha de gripe, como havia dito ao Dr. Chapman. No fundo devia tratar-se apenas de fadiga, para ser mais exacto no seu diagnóstico. Definitivamente, o rasto da doença podia ser seguido a partir daquela entrevista de quinta-feira de manhã. Quando terminara a entrevista com aquela mulher, iembrava-se muito bem, sentira-se transtornado, irritável, descontrolado, o mesmo que lhe acontecera daquela vez em Oaio, onde o exame clínico lhe revelara um colapso nervoso, e Cass fora forçado a pedir um mês de licença sob um pretexto mais aceitável.

Muito embora aquela rua ficasse a dois quarteirões de distância do Wilshire Boulevard e do centro comercial de Beverly Hills, era uma ruazinha tranquila e quase vazia de trânsito. Podia ver, ao longe, o movimento intenso dos automóveis — a distância fazia-os parecerem carrinhos de brinquedo —, mas os ruídos dos claxons e dos pneus a chiarem no asfalto não lhe chegava aos ouvidos. Pelo seu ângulo de visão passou repentinamente a imagem de um robusto carteiro que atravessava a rua assoberbado pela sua carga de cartas e encomendas. Seguindo o itinerário do carteiro, observou que, do edifício em frente, saía uma rapariga alta, desempenada, de cabelos ruivos. Voltou-se para a ver seguir pelo passeio a calçar as luvas brancas. A jovem lançou-lhe um breve olhar e dobrou a esquina para o Wilshire Boulevard.

Foi então que Cass deitou um balanço àqueles catorze últimos meses da sua vida.

O efeito acumulativo dos milhares de entrevistas realizadas — só à sua parte atendera perto de mil mulheres — dava a Cass Miller uma imagem mental pessoal da mulher americana casada: uma espécie de escaravelho fêmea caída de costas, de pernas para o ar, a torcer-se e agitar-se, mas sempre caída de costas — até ser empalada.

Nas ruas das várias cidades que percorrera, quando à noite as calcorreava sozinho—coisa que com frequência sucedera um pouco Por toda a parte —, Cass Miller entretivera-se a observar de perto as mulheres que seguiam à sua frente. Voltava agora a enquadrá-las de novo no âmbito da sua visão: os grandes traseiros em Movimentos coleantes, meneando-se provocadoramente, jogando as ancas de um para o outro lado por baixo das saias justinhas. As meias de nylon, bem esticadas nas pernas, eram fontes de excitação, lembravam aos machos que subiam até às coxas, até zonas misteriosas onde havia secretos prazeres, e elas faziam gala em que tudo aquilo avultasse; aquelas pernas em movimento que fomentavam o bambolear das ancas pareciam impeli-las sempre para um qualquer encontro de carne e luxúria. Às vezes a mulher que seguia à sua frente parava para ver uma montra, e então Cass só tinha olhos para a desavergonhada protuberância do seu busto. Se tal acontecia, Cass parava também a observá-la, quem quer que fosse, possuído de um ódio secreto, intenso e ardente.

Para ele todas essas mulheres eram como cortesãs, todas umas meretrizes cheias de subtileza e engano, todas umas porcas. Não havia uma só que fosse decente, honrada ou fiel. Todas cheiravam a pântano, a calor corporal, tinham incrustado o odor doentio do sexo, estavam possuídas de um cio animalesco, e bastava que se lhes tocasse para caírem de costas como os escaravelhos fêmeas, de patas para o ar à espera que o macho as empalasse. Ao mesmo tempo que odiava as mulheres, também sentia enormes desejos carnais delas — o ódio e o desejo eram uma só emoção.

Cass, absorvido por aqueles pensamentos, afagava o volante do Dodge e mantinha os olhos fitos no portal do prédio à espera que ela saísse. Reconhecia que aquele impulso não era coisa habitual mas numa penumbra de inconsciência tinha o vago raciocínio de ser uma coisa tácita, fatal. Ele estava ali à espera porque ela estava lá dentro. Estava ali, dizia como desculpa, porque ela trilhava um caminho errado e necessitava de alguém que cuidasse dela, que a aconselhasse. Estava ali para a conhecer, para lhe estender a mão, e prometia que não seria demasiado severo na punição a impor-lhe. Aquilo era o menos que devia a seu pai, o velho bastardo falhado, torturado pela vida e pela luxúria desenfreada de uma fêmea de escaravelho.

Esperava com uma paciência implacável.

Acabara de consultar o relógio de pulso, calculando que se escoara uma hora e dez minutos desde que a vira entrar. Apossou--se dele uma cólera irracional, cólera que abrandou quando, finalmente, observando a rua, a viu surgir.

Ela tinha saído do apartamento que ficava umas quatro portas adiante do local onde estacionara o Dodge e ainda vinha a arranjar o carrapito do seu cabelo de azeviche. Caminhou apressadamente até ao cruzamento e, depois de olhar nos dois sentidos da rua, atravessou em direcção à sua station parada do outro lado. Caminhava com firmeza, movimentando as pernas bem feitas que faziam adivinhar as volumosas coxas escondidas pelo vestido. Cass viu-a abrir a porta do carro e sentar-se ao volante. Agora estava curvada para a frente a fazer algo que ele não podia ver, mas que conjecturou ser o acender de um cigarro.

Ouviu o trabalhar do motor da station e, como numa nuvem de sonho, observou o arranque.

Cass aguardou até ver o carro dela à distância de um quarteirão, a encaminhar-se devagar para a bifurcação de ruas; então, sem precipitações, começou a persegui-lo.

Foi já perto do Westwood Boulevard que Sarah Goldsmith viu o Dodge a segui-la. Pelo espelho retrovisor observou a face morena e sombria que a encheu de uma sensação de medo e de uma vaga recordação de que já a vira em qualquer lado. Aquela cara não desapareceu do espelho no espaço dos vinte minutos que durou a viagem.

Só na altura em que chegou à rua onde residia, sentindo-se em segurança por ver as crianças que brincavam nos jardins da vizinhança e a figura de um jardineiro que aparava um canteiro de relva com uma ruidosa máquina, é que Sarah deu fé de que o rosto de MonsieurJavert (não lera o livro de Victor Hugo, mas vira o filme na televisão — um hábito enraizado de Sam) já não se reflectia no espelho; tudo quanto contemplava atrás de si era a paisagem calma e tranquila. O receio sentido aliviou-se um pouco e começou a Pensar se, na verdade, aquela perseguição fora real ou se não passara de uma alucinação. Talvez tivesse sido uma simples coincidência.

Arrumou o carro no caminho privativo, agarrou na sua mala de ^ão e saiu da station. Notou que se esquecera de levar consigo o Saco das compras e que o medo sentido, além disso, a levara a esquecer-se de parar no supermercado; porém, no frigorífico, havia comida suficiente. Mal começara a caminhar pelo pavimento da ruela que levava à sua porta quando avistou o Dodge que subia a rua devagarinho. Parou de chofre como que assombrada por um raio. Os seus olhos não se podiam afastar do carro perseguidor, e sentiu o corpo agitado por tremuras; af igurava-se-lhe que agulhas invisíveis a espicaçavam. O sedan deteve-se a três portas da sua residência, quase na curva do caminho. O rosto por trás do pára--brisas não se via muito bem, mas estava indubitavelmente a olhar na sua direcção, e Sarah sabia muito bem que era aquela cara morena e sombria.

Ofegou com falta de ar. As pernas pareciam dois cepos que recusavam a locomover-se. Fez um esforço tremendo e as forças voltaram-lhe. Cambaleando, quase a correr, cheia de pânico, arrancou em direcção da porta de sua casa, meteu a chave na fechadura, atabalhoadamente, como se estivesse a ser perseguida por uma legião de demónios, e assim que se encontrou no interior fechou a corrente de segurança em gestos frenéticos, quase à beira da histeria.

A sua primeira reacção, absolutamente ilógica, foi telefonar a Sam, como guardião do lar; pensou depois na Polícia, em comunicar com a Sr.a Pederson, a vizinha do lado, telefonar a Kathleen Ballard, que habitava a vivenda da esquina; finalmente teve consciência do absurdo que tais ideias representavam. Muito embora não tivesse ainda o perfeito domínio do seu corpo, a mente, sempre tão prática, elaborava numa explicação para a persistente perseguição de MonsieurJavert. Compreendeu que só havia uma pessoa a quem devia telefonar.

Correu para a cozinha e, depois de ter verificado se a porta das traseiras estava bem fechada, levantou o auscultador do telefone de parede e discou o número de Fred Tauber.

Às primeiras e insistentes campainhadas, que lhe diziam que o telefone estava desimpedido, pensou que Fred ainda estivesse deitado; depois, como demorassem, teve a certeza de que ele estava na casa de banho. Finalmente, sentindo o coração a querer saltar--Lhe do peito, ouviu a voz dele, cheia de uma calma que naquele momento lhe parecia incrível.

—        Estou...

—        Fred!

—        Quem fala?

—        Fred... é Sarah!

—        Está? Sarah? Que se passa?

—        Fui seguida... por uma pessoa que ainda está lá fora a espiar--me.

—        Que se passa, Sarah? De que é que estás a falar?

—        De um homem que me seguiu...

A voz dele soou firme ao seu ouvido, transmitindo-lhe uma certa calma.

—        Como? Que homem? Tem calma. Estás em perigo?

—        Não... Isto é... não sei bem... mas...

—        Vamos, acalma-te. Conta-me o que se passa com o menor número de palavras possível.

Sarah quase meteu a boca dentro do bocal.

—        Quando te deixei vi o carro estacionado um pouco atrás do

teu apartamento. Meti-me na minha station e ele começou a perseguir-me. A meio do caminho voltei a olhar pelo retrovisor e não tive

dúvidas que me seguia persistentemente. Agora está parado a duas portas da minha.

—        Viste bem a pessoa que ia ao volante?

—        Não te posso descrever a sua figura com exactidão. Só posso dizer que tem cabelo preto e uma cara morena e cruel.

—        Já o tinhas visto antes?

—        Não... isto é... sim, sim, já o tinha visto. Foi no sábado. Lembro-me agora. O seu carro também estava parado em frente do teu apartamento, e depois seguiu-me até aqui, mas nessa altura pensei que o caso era uma simples coincidência e não lhe prestei atenção. Fred, quem será esse homem?

—        Não faço a mínima ideia—foi a vagarosa resposta que lhe chegou pelo auscultador. — Ele ainda estará lá fora?

—        Creio que sim...

—        Vai ver. Eu fico à espera.

Sarah deixou o auscultador pendurado a todo o comprimento do fio de ligação e dirigiu-se para a sala da frente. Por um breve instante senti u-se alarmada, mas logo veio o conforto de saber que Fred estava à espera. Dirigiu-se para a ampla janela, com as persianas interiores parcialmente corridas por causa do sol, afastou-as um bocadinho e espreitou para a rua pela nesga aberta.

O Dodge desaparecera. Abriu mais as persianas para ter melhor ângulo de visão. Avistava agora toda a rua e não estava à vista nenhum carro.

Correu para a cozinha.

—        Fred?

—        Sim. Estou aqui.

—        Foi-se embora.

—        Tens a certeza?      

—        Olhei para todos os lados.

—        É curioso...

A latente ameaça era agora substituída por um senso de mistério, e a ansiedade na voz de Sarah tinha já uma diferença imperceptível.

Fred, que significará tudo isto? Será alguma coisa que nos diga respeito?

—        Pode muito bem ser.

Fred não dissimulava a preocupação. —Tens a certeza de que esse homem e o seu carro te perseguiram... no sábado e hoje?

—        Certíssima. Não estaria tão segura da verdade se ele estivesse parado em qualquer outro lugar, se tivesse fingido qualquer coisa. Mas a verdade é que estava perto do teu apartamento e que me seguiu até aqui direitinho e sem fingimentos. Hoje parou o carro aqui na rua a fitar-me sem quaisquer rodeios.

—        Tem cuidado, Sarah. E não pronuncies o meu nome, porque o telefone pode estar sob vigilância com um aparelho de escuta e um gravador.

Afinal pareceu a Sarah que Fred também tinha o vício secreto da televisão e dos seus filmes policiais entranhado no corpo. Começou a sentir-se impaciente.

—        Se o telefone estivesse em escuta já teriam ouvido o suficiente. Além disso temos que falar no assunto. Talvez seja a tua mulher...

—        A minha mulher?

—        Ela suspeita de nós. Viu-me muito bem outro dia. O homem pode ser um detective contratado por ela.

—        É verdade que pode muito bem ser. Mas existe outra possibilidade. Também pode ter sido contratado pelo teu marido.

Sam? Ridículo.

—        É absurdo — disse Sarah. Mas mal acabara de pronunciar a palavra e já a incerteza a assaltava.

Porque não Sam? Ele não era nenhum pateta alegre. Talvez ela se tivesse denunciado... uma ligeira escorregadela... Havia a possibilidade de ter sido vista. Podiam já ter sido postos a correr certos rumores. Bastava que alguém tivesse feito um telefonema anónimo para a loja. Lera algures que para se contratar um detective privado bastava telefonar e ter cinquenta dólares para despesas diárias. Os detectives privados existiam, até vinham os seus anúncios nas páginas amarelas da lista: «Investigações discretas. Atende--se o telefonema dia e noite.» Sam? Mas não, se Sam suspeitasse de alguma coisa, faria um pé-de-vento. Pelo menos haveria remoques indirectos ou acusações feitas sem a menor cerimónia... berros e tempestade... Não, aquilo não partia de Sam. Era uma coisa da mulher de Fred. Exactamente do modo como uma mulher procederia. No entanto, também podia ser de Sam. Mas se fosse coisa da senhora Tauber — como era o nome próprio dela? —, seria assim tão má? Partindo dela, era possível que quisesse conceder o divórcio a...

—... não é assim tão absurdo como pensas — dizia a voz de Fred. — Tenho a certeza de que o teu marido é tão capaz de uma acção dessas como a minha mulher. Para te falar francamente, Sarah, direi mesmo que, conhecendo tão bem a minha mulher... conhecendo-a tão bem como a conheci... a julgo menos capaz de proceder assim do que o teu marido ou qualquer outra pessoa.

—        Porquê?

Fred hesitava.

—        Bem... penso que não constitui qualquer surpresa para ela que eu esteja interessado numa mulher. Julgo que não se arriscaria a gastar um só chavo que fosse para obter uma confirmação. Não, inclino-me mais para o teu marido. É uma coisa aborrecida. Segundo me parece, ele é um bota-de-elástico. As provas a nosso respeito podem enfurecê-lo. Pode não proceder com correcção. Não há dúvida que fico enormemente preocupado.

—        E que havemos de fazer, Fred?

—        Primeiro, que tenhas todo o cuidado com esse homem e que vigies muito bem o seu carro, se ele voltar a perseguir-te. Se isso se verificar, telefona-me imediatamente. A outra sugestão que tenho a apresentar é que nos devemos manter afastados durante algum tempo.

—        Fred, não...

—        Queridinha, será apenas por uns dias, até vermos se na verdade há sarilho ou se não passou tudo de uma coincidência.

—        Por quanto tempo, Fred?

—        Uns dois dias. Deixemos que a coisa esfrie a ver o que acontece. Se não houver moiro na costa, telefona-me na quinta--feira de manhã.

—        Quinta-feira? Fred, até lá será como uma lenta agonia.

—        Querida, lembra-te que também eu fico a sofrer.

—        Fred, amas-me?

—        Sabes bem que sim. Agora desliga. Procede como se não tivesse acontecido nada, e observa tudo muito bem. Espero que me possas telefonar na quinta-feira. Adeus, Sarah.

—        Adeus, meu querido.

Diário de Benita Selby. Terça-feira, 2 de Junho: «... Foi adorável. Depois do concerto disse a Gerold que era já muito tarde e que tinha que ir direitinha para o motel. Mas mesmo assim estivemos sentados a conversar até à uma hora da manhã. Por fim Gerold acompanhou-me até à porta. É um autêntico cavalheiro. Pediu licença para me beijar, e eu não disse que não. Antes de ele se ir embora e de nós também partirmos daqui, julgo que ainda nos encontraremos mais uma vez. Estou ansiosa por Chicago e pela sua visita à cidade. Pode vir a ser uma coisa deveras interessante... Recebi esta manhã mais uma carta da mamã, que denota bem o sofrimento em que vive. Afinal não foi um pé. Deslocou a anca. Tem que estar presa na cama, uma coisa de que ela não gosta mesmo nada. Quando isto aqui acabar, julgo que todos nós ficaremos contentes. Mais quatro dias de entrevistas, depois a realização do programa The Hot Seat, e no domingo à noite bateremos asas. Observei que Paul, hoje de manhã, estava tão ensonado como eu. Vi-o entrar a horas tardias, na altura em que eu e Gerold ainda estávamos a conversar dentro do carro. Cass já voltou ao trabalho. Hoje de manhã, apanhando--me distraída, veio sorrateiramente por trás de mim e apalpou-me os seios daquela sua feição obscena que o caracteriza. Fiquei , furiosa. Quando o Dr. Chapman chegou, consegui fazê-lo rir. Estava eu a ler o jornal de The Briars, um semanário que tem o nome de O Alerta e é distribuído ao domicílio gratuitamente. Numa coluna encabeçada pelo título «Actividades Sociais», li que uma senhora da alta sociedade local, uma tal Teresa Harnish, oferece na sexta-feira à noite uma festa à elite de The Briars. É uma festa com serviço de bufete à americana, em que os convidados podem ir com 5 trajos de fantasia. As mulheres devem levar atavios que façam lembrar o que desejavam ser, ou são, relativamente às entrevistas

concedidas ao inquérito do Dr. Chapman. Uma coisa muito inteligente. Sublinhei a notícia e li-a ao Dr. Chapman, que se riu em sonoras gargalhadas. Que senso de humor tão magnífico! É diferente da maioria das pessoas famosas. Possui também uma memória prodigiosa, aliás como já frisei neste diário. Depois das risadas dadas com gosto, dísse-me que se lembrava de ter ele próprio entrevistado Mrs. Harnish, uma mulher simplesmente encantadora.

Afirmou esperar que a festa seja um grande êxito...»

Teresa Harnish estava sentada em cima do cobertor no perímetro demarcado da «Cova de Constable», tinha as longas e bonitas pernas projectadas para a frente e, pela centésima vez, ajustou as alças e o calção do seu novo fato de banho. Experimentara uma grande satisfação ao adquirir aquele objecto. A vendedora dissera--Lhe que era arrebatador (não que ela ligasse a semelhantes opiniões), mas a verdade é que se entusiasmara e vira que estava perfeitamente dentro daquilo que idealizara, isto é, se não se importasse de envergar uma coisa tão ousada (era um maiot muito curto que permitia mostrar as nádegas e as coxas quase até às Partes mais proibitivas do pudor feminino), Teresa Harnish não se ralava nada com as partes pudendas e sentia-se muito satisfeita de que, naquele peculiar momento, o fato de banho mostrasse o mais possível da sua beleza física. Era até uma maneira de diminuir dez bons anos aos seus puxados trinta e cinco.

A compra do fato de banho fora feita no dia anterior de manhã, logo depois de ter largado Geoff rey à porta da loja. Geoff rey andava muito ocupado com a exposição de Boris Introsky e por isso tivera que o conduzir à cidade muito cedo.

Ao sair da loja, com o fato de banho por baixo do leve vestido, dirigira-se directamente para a praia, mas esta mostrava-se desola-damente vazia e, após meia hora de desalentada espera, voltara para casa. O resto do dia fora de uma lamentável ansiedade.

Nessa manhã, decidida a continuar no seu posto até ver Ed Krasowski, voltara à praia o mais rapidamente possível. Mas de novo a praia tinha um aspecto desolador. Há dez minutos que ali se mantinha, sem o costumeiro livro e sem guarda-sol. Uma vez que conseguisse falar com Ed, não tencionava demorar-se. Desde o brevíssimo encontro que com ele tivera, fazia precisamente uma semana, o seu pensamento não fora povoado por outra ideia.

Fora de propósito que evitara aquele local até ao dia antecedente, preocupada em destacar e analisar separadamente cada um dos sentimentos que a perturbavam. Era uma pessoa sensata e meticulosa — desde menina e moça que a família sempre se orgulhara desse seu feitio —, e agora, muito embora obcecada, queria continuar a ser uma criatura razoável. Byron sempre se tinha referido desdenhosamente à sua desventurada esposa, Annabella Milbanke, como a Princesa dos Paralelogramos, querendo com isso significar, possivelmente, que ela era inflexivelmente matemática e exacta, e pretendendo implicar a sua falta de emoção fácil. Teresa sempre sentira aversão por Byron, e, como Harriet Beecher Stowe, colocara-se decididamente ao lado dessa admirável princesa Annabella.

Ao longo daquele fim-de-semana, Teresa fizera uma revisão fria à situação, tal como a judiciosa esposa de Byron teria feito, mas cedo percebeu que uma total frieza lhe seria impossível, tanto mais que de nenhuma maneira se podia comparar a uma remota lady inglesa, cheia de preconceitos, pergaminhos e rendinhas. Ela era um produto da sua época, superior apesar de tudo, produto de uma geração muito mais avançada em todas as matérias e com uma outra concepção de liberdade. Todavia, as palavras correctas para descreverem o seu estado de espírito eram constrangimento, sensibilidade e senso comum.

Após muitas horas de incessante procura espiritual, Teresa considerou que afinal se malograra a sua determinação de resolver o problema de maneira satisfatória dentro de certos cânones éticos, mas estava, no entanto, senhora da situação, tendo chegado a uma análise progressiva: (a) era casada há uma década com um gentleman, fora a melhor das esposas durante todo esse tempo e assim queria continuar a ser considerada; (b) era uma mulher possuidora de dotes peculiares, com inteligência, capacidade mental e certo atractivo físico. No entanto, as fronteiras limitadíssimas da monogamia não davam lugar suficiente a um futuro desenvolvimento dessas prendas; (c) tinha trinta e seis anos e havia nela ainda muito a dar e muito a receber, uma enorme capacidade para o prazer. Tudo isso estaria, no entanto, perdido e constituiria um insulto ao Divino Criador se os melhores anos da sua vida fossem utilizados naquela pobreza de sensações, coisa inteiramente devida às concepções de uma culpa burguesa que aprisiona tantas pessoas nas suas malhas; (d) não havia nela qualquer atracção espiritual ou sentimental em relação a Ed Krasowski, ele representava somente um símbolo do seu objectivo de libertação, algo que ela queria obter a todo o custo. Todavia, sentia no mais fundo da sua carne que ambos, tanto ele como ela, mereciam partilhar mais do milagre da vida; (e) podia conseguir a obtenção dessa força e desse milagre da vida entregando-se a um primitivo, dado que naquele conceito e aspiração residia também uma beleza bíblica inexprimível. Era a união de um dos melhores produtos da civilização, a patrícia da Hélada, com um bárbaro do Norte, que mal acabara de sair da sua caverna de troglodita e ainda trazia a grande massa brutal na mão; (f)    aliás o mesmo que sucedera a Isadora e Essenine; e, finalmente, (g)          com aquilo a sua vida ficaria inevitavelmente mais rica, haveria

nela mais significado, e ela e Geoffrey mereciam bem isso da vida.

Uma vez esquematizada a situação em termos racionais, posta de uma maneira ordenada, Teresa sentia a ânsia e a satisfação de poder iniciar o próximo passo na estrada que determinara. O processo de aproximação que imaginara absorvia-a e estimulava-a mais do que qualquer outra actividade desde aquela época, vários anos antes, em que se deixara absorver por inteiro com a transcrição do bonsaie estivera todo um Verão a estudar afincadamente a arte japonesa de conseguir a reprodução de árvores anãs desde a era Ashikaga até à actualidade.

Dado que a sua emancipação ultrapassava em muito o seu sexo — emancipação bastante, tinha a certeza, que a levara a ser integralmente verdadeira na entrevista Chapman, coisa que as outras de modo nenhum deviam ter conseguido —, sentia que não havia nenhuma necessidade de praticar o degradante cerimonial da coqueteria e sedução com Ed Krasowski. Era evidente que ele, como aborígene que era, desejaria sem dúvida possuí-la e seria rebaixar a própria natura se não se entregasse com o mesmo espírito básico.

O processo a seguir era tão simples como o objectivo visado: iria até à praia, esperaria por ele, dirigir-se-ia a ele sem rodeios, frontalmente e, por fim, combinaria o encontro que enriqueceria as suas vidas tanto em profundidade como em plenitude — a plenitude, apressou-se a lembrar, seria espiritual.

O seu olhar varria a praia em relances consecutivos e, de quando em vez, detinha-se a observar as pequenas vagas que vinham quebrar-se na areia e que deixavam uma franja de alva espuma. O oceano espraiava-se sem limites até aos confins da costa do Cataio e, mais uma vez, as ondas que bricavam lhe trouxeram à mente a majestade dos versos de Keats:

Senti-me então como se fora um vasculhador dos céus. Quando se lhe depara a visão de um novo planeta Ou, como o intrépido Cortez, quando, com os seus olhos de águia.

 

1 - Tradução libérrima do tradutor. Os versos de Keats reproduzidos no original são como se segue: Then felt I like some watcher of the skies/When a new planet swims into is ken;/ Or like stout Cortez when with eagle eyes/He star'd at the Pacific — and ali his men/Look'd at each other with a wild sur-mise — Silent, upon a peak in Darien. (N. do T.)

 

Fitou a vastidão do Pacífico em silêncio, alcandorado no cimo de um penhasco de Darien — enquanto os seus homens se entreolhavam em atónita e bravia desconfiança.

Foi da maneira mais casual que os viu surgir ao longe, à sua esquerda; eram três e traziam vestidos os exóticos fatos de treino. Desceram a encosta em louca correria, detendo-se mesmo à beira 'e água. Depois foram-se encaminhando para perto do sítio onde la se encontrava, o sítio habitual onde costumavam treinar-se, e o oração de Teresa quase ameaçou saltar-lhe do peito. Logo que les chegaram à sua área costumeira e se espalharam, formando m triângulo, atirando a bola oval de uns para os outros, as suas aras tornaram-se perfeitamente visíveis a Teresa e, então, verificou ompungida que nenhum deles era Ed Krasowski.

Estava feito em pedaços o esquema que laboriosamente tra-ara, mas Teresa recusou deixar-se possuir peio pânico. O seu lano tão simples estava de tal forma radicado que, apesar de tudo, go voltou à imperturbabilidade. Examinou e avaliou todos os pos-íveis movimentos a determinar. Ir-se embora e continuar a voltar à raia até encontrar Ed Krasowski; procurar na lista o número do elefone dele e ligar directamente para sua casa; rascunhar-lhe um ilhetinho e entregá-lo a um dos seus companheiros. Mas nenhu-a daquelas soluções fáceis lhe poderia revelar de imediato aquilo ue mais a preocupava: que teria acontecido a Ed Krasowski? Em revê espaço de tempo duas das soluções encontradas depressa oderiam responder à sua preocupação, mas nunca seria demasia-o depressa para acalmar a sua ansiedade. Teresa Harnish não ueria voltar a sonhar acordada, não desejava passar mais noites e incerteza. Tinha que saber de pronto.

Não conseguia definir que aguilhão a estava a espicaçar. Ergueu-se. Numa aproximação directa era necessário que se expusesse a eles, mas a sua ansiedade dominava toda a falsa modéstia e toda a humana fragilidade. Nenhum processo de raciocínio seria capaz de tornar mais fácil a tarefa. Sentiu que as pernas, num passo e noutro passo, a arrastavam pela areia. Deteve-se a alguns metros do mais próximo dos moços. O latagão estava a fazer exercícios respiratórios. Abria e fechava os musculosos braços, dilatando ou contraindo o peito. As suas largas costas estavam voltadas para Teresa.

Lembrou-se de que, quando era ainda solteira, logo que entrava num restaurante com as amigas, tinha dificuldade em encontrar a melhor maneira de chamar o criado. Chamá-lo dando estalidos com os dedos? Não era próprio de uma senhora. Bater com o garfo no copo? Era uma coisa muito autocrática e inteiramente europela. Gritar simplesmente «criado», como quem estivesse a chamar um cão? Chamar «mister»? Ou pigarrear de maneira audível e que chamasse a atenção? Todo esse problema acabara por se resolver com o casamento. Era Geoffrey quem dava os tais estalinhos com os dedos. Aquele atleta que ali estava de costas voltadas para ela e lhe era completamente desconhecido lançava-a na mesma indecisão. Por fim resolveu-se.

—        Eh, Mister!

O rapaz dava nesse instante um salto no ar para agarrar a bola que lhe fora atirada por um dos companheiros. Teresa esperou que a devolvesse e voltou a chamar em voz mais alta.

—        Eh, Mister!

O rapaz, surpreendido, olhou para trás. A sua cabeça estava afundada entre os ombros e, como tinha o cabelo quase rente, assemelhava-se a uma grande abóbora colocada sobre um volumoso toro sustentado por duas estacas.

—        Chamou-me, ma'am?

—        Sim, se quiser fazer o favor...

O rapaz, espantado, começou a andar ao encontro dela.

—        Esperava vir encontrar hoje aqui o vosso amigo, Mr. Krasowski — disse Teresa de um hausto.

—        O Ed? Ah! Está a trabalhar.

—        É um emprego fixo? Ou voltará a treinar-se aqui?

—        Foi anteontem que conseguiu arranjar trabalho. Julgo que vai ficar por lá todo o Verão antes de voltarmos aos jogos. Embora tenha algum tempo livre para dedicar aos treinos, não voltará aos exercícios na praia.

—        Sabe onde é que posso... encontrá-lo?

—        Em Paradise Park.

—        Paradise Park?

O rapaz mediu-a como se ela fosse uma marciana.

—        É o grande parque de diversões que fica entre Santa Mónica Venice. O Ed trabalha numa das barracas.

—        E estará lá amanhã?

—        Ora deixe-me ver... Amanhã que dia é? Quarta? Sim, está lá e certeza. Quinta, sexta e sábado está de folga, mas no domingo oltará ao serviço.

—        Agradecida pela informação. Está com ele muitas vezes?

—        Encontramo-nos praticamente todas as noites. Temos um parlamento alugado a meias perto daqui.

—        Estava a pensar se... quererá fazer o favor de lhe dar um cado da minha parte?

—        Da melhor vontade.

—        Então faça o favor de lhe dizer que gostava de me encontrar com ele, por causa de... de um assunto pessoal na... não, é melhor que seja na quinta-feira. Quinta-feira ao meio-dia, mesmo no parque de diversões. Haverá um lugar próprio para um encontro?

As últimas palavras de Teresa pareceram pôr à prova a capaci-ade de compreensão da massa cinzenta do moço. Parecia estar concentrar-se.

—        Bem, o parque é uma coisa bestialmente grande. Mas qua-e logo à entrada existe um grande tanque de focas amestradas, bda a gente se costuma juntar lá a dar peixes aos animais.

—        Muito bem, diga-lhe que na quinta-feira ao meio-dia estarei unto do tanque das focas.

Então, pela primeira vez, notou que o rapaz se mostrava im-ressionado com o seu fato de banho. Sentiu-se contente, de cer-eza que contaria a Ed a sua aparência.

—        Muito obrigado, sim?

—        Não tem de quê, ma'am. Precisa de mais alguma coisa?

—        Não, nada mais. Não se esquece de lhe dar o meu recado?

—        Oh, não.

Teresa mimoseou-o com o melhor dos seus sorrisos.

—        Fico-lhe muito grata.

—        Não tem de quê.

O mocetão voltou-lhe as costas disposto a voltar aos treinos, mas repentinamente rodou de novo sobre si para a encarar.

—        Eh! quase que me ia esquecendo do melhor. Qual é o seu nome?

Teresa hesitou.

—        Diga-lhe apenas que a pequena... — parou, lembrando-se que para Ed não podia ser uma pequena mas sim uma verdadeira dama, e decidiu manter a sua identificação bem definida. — Diga-Lhe que é a senhora que ele conheceu na praia, neste mesmo lugar, a semana passada, a senhora a quem ele quase atingiu com a bola. Ed saberá quem sou.

O rapaz olhou-a de um modo bizarro, e Teresa sentiu-se pouco à vontade.

—        Okay, ma'am — rematou finalmente o moço, indojuntar-se aos camaradas.

Satisfeita por ter sido capaz de levar a cabo o que tinha decidido fazer, Teresa reuniu apressadamente os poucos pertences e caminhou na direcção do seu automóvel, sem voltar a olhar para o local onde ficavam os três jogadores. Até The Briars não abrandou a velocidade.

Uma vez chegada a casa, preparou o seu almoço com toda a eficiência e comeu-o. Fez uma meia dúzia de telefonemas de carácter social, escreveu vários cartões de agradecimento e uma carta e entreteve-se a preencher cheques para pagar aos fornecedores.

Às três horas deitou-se, para fazer a habitual sesta — coisa a que costumava atribuir, em grande parte, o prolongamento da sua juventude —, mas em vez de pegar logo no sono, deu-se ao luxo de fantasiar a divina união com o seu aborígene (lamentava de certo modo que o seu encontro com Ed Krasowski não tivesse ocorrido antes do advento do Dr. Chapman. Tinha entrado, com carácter permanente, na sua história taxada simplesmente como uma mulher sexualmente saudável; tivesse Ed antecedido a entrevista e ela teria sido imortalizada como uma mulher sexualmente saudável e sensual). Às quatro ainda estava acordada. Tomou o partido de se levantar, fazer uma cuidada maquilhagem, vestir-se de ponto em branco para assistir ao inaugurar da exposição de quadros de Boris Introsky. Poucos minutos antes das cinco já Teresa guiava em direcção a Westwood, a caminho da galeria de arte.

Ao chegar, viu que era difícil arranjar um espaço livre na placa de estacionamento. Presumia que a exposição arrastara muita gente, e sentiu satisfação com isso. Guiou até à placa de estacionamento do quarteirão seguinte e foi a pé até à loja. Ao aproximar-se viu vários grupos de pessoas que entravam para a galeria. Habitualmente, Geoffrey era bem sucedido com aquelas ante-estreias, acompanhadas por um beberete; os seus cartões de convite eram célebres pelos dizeres gravados em relevo, e costumavam ser enviados a uma selecta lista de fazedores da opinião pública (críticos de arte, damas profissionais do mundanismo, abastadas divorciadas que procuravam matar o tempo e estrelas de cinema). Em suma, tratava-se de uma forma impressionante de convites, e eram sempre bem recebidos pelas pessoas a quem se dirigiam pelo facto a pequena galeria estava a abarrotar de gente. Teresa deslizou por entre aquele mar, com o vestido de seda de cocktail em ruge-ruge, baixando a cabeça numa saudação a algumas pessoas que não conhecia e cumprimentando efusivamente as que conhecia. Geoffrey, com uma taça de champanhe na mão esquer-, da, estava no pequeno estrado ao centro do salão, como se fora um capitão na cabina do piloto — ou chamar-se-ia castelo da proa? — e Teresa abriu caminhou para junto do marido, estendendo-lhe o rosto friamente para o costumado e distraído beijo conjugal. Geoffrey mal lhe roçou a cara com o enorme bigode. Logo a seguir, o negociante de arte arrastou para perto de Teresa um homem ainda jovem, baixo, magrinho, com um nariz nitidamente rabínico. O homenzinho, que suava profusamente, não obstante a brilhante calva ; que ostentava e a barba que lhe carregava as feições, tinha um aspecto ridículo de imaturidade. Sempre que via um jovem de barba, Teresa Hamish pensava imediatamente que ou ele não tinha queixo ou então não tinha talento. Geoffrey apresentou-lho como sendo Boris Introsky, e Teresa mal pôde esconder a sua estupefacção. Quando pela primeira vez o ouvira pronunciar o nome, este fizera-lhe evocar a imagem de um ucraniano com o poderoso porte de um urso pardo, cheio de massas musculares, intratável, independente e hostilizante. Aquele Boris tinha, porém, todo o ar de ter nascido em Coney Island e chamar-se William. Com certeza que a sua estada em Paris se fizera à custa do Exército dos Estados Unidos. A voz do homenzinho carecia de timbre, tinha os olhos lacrimosos, e as suas opiniões eram fortemente convencionais. Pensou que não era de nenhuma forma uma venda que constituísse êxito.

Em ocasiões como esta, Teresa sempre se mostrara de uma ajuda valiosa para o marido. Sabia insinuar-se, misturava-se com os convidados e conhecia de sobra a gíria artística. Agora, porém, não se sentia com nenhuma disposição para desempenhar o papel habitual, manteve-se ao lado de Geoffrey e foi preciso que este lhe segredasse qualquer coisa ao ouvido para ela desempenhar a sua tarefa. Teresa começou a circular pela sala — tão apinhada que não caberia lá uma mosca. Os berrantes quadros abstractos que pendiam das paredes davam-lhe a impressão de se encontrar num jardim infantil e não numa galeria de arte onde se exibia uma pintura de avant-garde. Na verdade, aquele Boris de maneira nenhuma se assemelhava a um Duchamp ou a um Kandinsky. No meio daquela gente que se agitava, viu e cumprimentou Kathleen Ballard, que estava acompanhada por um homem alto chamado Radford, trocou efusivos apertos de mão com três críticos, com Grace Water-ton e com o casal Palmer e andou de Caifás para Pilatos e de Pilatos para Herodes, ouvindo vagamente as várias opiniões emitidas numa linguagem quase sacerdotal para um neófito, mas um chavão para os profissionais («...o seu sentido de harmonia das cores... e a tessitura, meu Deus... mete-nos dentro dos próprios quadros... aquelas opulentas zonas azuis... querida, é puro movimento através de imagens múltiplas... rasga novas fronteiras... senso de forma... uma visão interior... azul do ultramar... Montpamasse... vermelhão... revolta... Hiroshige...»), ao mesmo tempo que pensava por que diabo teria Geoffrey exilado as adoráveis telas de Pieter Brueghel, trocando-as por aquela coisa. Sabia porém que a mercadoria podia ser valiosa, era comprada a dez réis de mel coado e vendida por altos preços.

Escoaram-se duas horas, e Teresa, durante esse espaço de tempo, já bebera quatro taças de champanhe. Acabou por decidir que para se ver livre daquilo tinha que fabricar uma dor de cabeça-Aproximou-se de Geoffrey, rodeado por compradores potenciais, e contou-lhe que se sentia incomodada. O marido fez-lhe um sinal de assentimento distraído.

Lá fora a noite já tinha caído, e Teresa viu que na rua havia vida, uma vida que nada tinha de abstracta, uma vida sem linhas interrompidas e sem intersecções incompreensíveis, sem borrões dispostos a esmo. Pensou em Ed Krasowsky, o primitivo que estava tão perto da verdadeira arte, da arte pura e figurativa. Imaginou o que é que ele teria pensado daquilo tudo. Com certeza que veria as coisas pelos mesmos olhos, e Teresa sentiu-se bastante mais perto dele. Quantas daquelas exibições desagradáveis e falsas tinha ela ornamentado? Onde é que estavam agora esses dias, essas noites, esses anos?

Geoffrey chegou a casa uma hora antes do que ela esperava. Havia decidido que estaria a dormir quando ele entrasse, porque era a noite dedicada às relações conjugais e ela não estava disposta a suportá-lo. Mas eis que ainda se encontrava ali, sentada no divã junto à janela, bem acordada e sem o mínimo vestígio de qualquer indisposição.

—        Foi na verdade uma exposição maravilhosa — disse Teresa, assim que viu o marido. — Mas tens um ar tão fatigado! Então como é que correram as coisas?

Geoffrey abanou a cabeça.

—        Desoladoras. Só conseguimos livrar-nos de seis quadros.

Teresa, interiormente, sentiu-se satisfeita.

—        Lamento muito — disse à guisa de conforto. — Mas em boa verdade tinha receio que isso sucedesse. A obra dele exige muito, e estas criaturas aqui não possuem o élan necessário para o compreender. Em Paris...

—        Ah, claro, em Paris.

—        Ou mesmo em Roma.

—        Hummmmm... talvez.

—        Mas evidentemente que temos que fazer algumas

concessões à mediocridade, meu caro.

Baixou a cabeça, olhou fixamente a carpete, e voltou-se de súbito.

—        Como estás da dor de cabeça?

— Muito melhor, mas — acrescentou apressadamente — receio que tenha sido motivada pelo meu ciclo mensal...

Teresa, antes, nunca havia mentido a respeito daquilo.

Mas desta vez, a modo de desculpa, disse para consigo que aquele era um período extraordinário de transição no seu desenvolvimento físico e espiritual. Em breve ela estaria apta a poder duplicar aquele prazer, pagar-lhe-ia com juros a negativa e ambos ficariam plenamente satisfeitos.

—        Sinto muito — dizia Geoffrey. — Penso que será mais conveniente ires descansar.

Teresa levantou-se, quase jovial.

—        Tu és a única pessoa com quem nos devemos preocupar.

Vou tirar-te o casaco, calçar-te as pantufas e depois tomaremos um brande juntos.

Amava-o tanto! E na realidade Geoffrey acabaria por se sentir felicíssimo.

Diário de Benita Selby. Quarta-feira, 3 de Junho «... foi a coisa mais extraordinária que desde sempre me aconteceu, e eu nunca escreveria isto se não pensasse que ele é uma criatura boa e que poderá vir a ser meu marido. Depois de Gerold estar demasiado embriagado com todos aqueles bourbons, fui eu que tive de guiar o carro até à Villa Neapolis. Ficámos ali sentados durante um bocado e foi então que ele me começou a narrar toda a sua vida — comparada com a dele, a minha mamã é um verdadeiro anjo — e admitiu ter frequentado durante dois anos um psicanalista apurando ser um homossexual latente, aliás uma coisa que sucede com a maioria dos homens —, mas que jamais praticara qualquer acto menos próprio e estava em vias de se curar pela psicanálise. Deitou a cabeça no meu seio e, a chorar, disse que queria casar-se comigo. Senti tanta pena de Gerold que o meu desejo é tomar conta dele para sempre. Concordámos que a decisão será tomada quando nos encontrarmos em Chicago. Esta manhã, antes da partida dele, tomámos juntos o pequeno-almoço e Gerold portou-se maravilhosamente. Não há dúvida de que precisa de mim, e uma vez que pode ser uma criatura normal, como tem provado o Dr. Chapman, julgo que as coisas correrão pelo melhor. A ver vamos. Gerold ganha 13.000 dólares por ano. E uma e meia, e a minha disposição é boa. Dentro de quatro dias partiremos. Recebi uma carta da mamã e não sou eu quem a vá culpar por ter abandonado as consultas do Dr. Rubinfeer. Quem é que já ouviu dizer que uma anca deslocada fosse uma doença psicossomática? Esta noite vou escrever-lhe a prestar todo o meu apoio moral. Sinto-me na verdade tão bem que decidi ir almoçar ao Crystal Room. la a passar junto de uma mesa onde Paul e Horace estavam a comer juntamente com uma mulher atraente, quando Paul me deteve e me convidou a sentar junto deles. Apresentou-me a senhora como Mrs. Ballard. Sentei-me e não me arrependi, o ambiente era na verdade simpático. Quando ia a passar junto da mesa, ouvi Horace a discutir o caso de sua mulher. Foi isso que me levou a retardar o passo e deu aso a que eles me vissem. A minha curiosidade ficou a dever-se ao facto de, desde que trabalho com o Dr. Chapman, nunca ter ouvido Horace discutir assuntos sobre a sua vida de casado. Nunca o tinha ouvido pronunciar o nome da mulher. Claro que toda a gente em Reardon sabe o motivo por que nunca fala nela. Menciono este assunto porque me acorreu, não sei porquê, que aquela Mrs. Ballard podia será mulher de Horace que tivesse voltado a consorciar-se. Na verdade podia muito bem ser, mas é preciso ter em conta que tem um aspecto tão reservado, e a ideia que possuo da mulher de Horace...»

Naomi Shields estava indolentemente recostada na cadeira, sentada naquela mesa junto à pista de dança, naquela mesa onde Wash Dillon a tinha colocado após ter recebido o recado que lhe enviara. Não foi sem esforço que conseguiu levar o copo aos lábios e emborcar o resto do gim.

Virou-se para dizer ao criado que voltasse a encher o copo, e foi então que reparou que a sala estava desoladoramente vazia, não havia ninguém sentado às outras mesas do salão de baile do Jorrocks' Jollities. Um criado, a um canto, desabotoava o casaco branco do uniforme e viu um mexicano de fato-macaco que entrava com uma vassoura na mão. Fora o criado e o mexicano das limpezas não havia mais ninguém na sala... exceptuando, evidentemente, os homens da orquestra e ela própria.

Fixou os olhos no chão brilhante da pista de dança e seguiu-Lhe a trajectória até localizar o estrado da orquestra. As figuras eram demasiado esbatidas, como se fossem fotografias tremidas tiradas por um fotógrafo amador, mas mesmo assim conseguiu reconhecer Wash, de joelhos a arrumar o seu saxofone, e os quatro elementos da banda também a arrumarem os instrumentos e os papéis de música. Sentiu que eram aqueles os únicos amigos que tinha no mundo, especialmente Wash, Wash muito em especial.

Duas vezes naqueles últimos oito dias, três contando com aquela noite, se havia dirigido ao bar do Jorrocks' Jollities, que ficava do outro lado, para além do vestíbulo, e sentara-se a tomar algumas bebidas no desejo de procurar por Wash, mas no último instante acabara sempre por mudar de ideias, regressando de táxi, tal como viera, a The Briars. Em todas aquelas manhãs sentira orgulho na sua nova castidade, na emenda da sua vida, mas todas as manhãs e todas as tardes se sentira também dolorosamente só, compreendendo que não podia manter-se sem ser amada. Naquela noite, na sua cozinha, experimentara um súbito asco pela comida e começa a beber moderadamente (a fim de abrir o apetite), e depois cada vez mais (para afogar o desejo que a possuía), tendo acabado por telefonar para a praça de táxis e voltado ao bar pela terceira vez. Mas nessa altura tomara coragem para dizer ao barman, agora já um amigo de confiança, para avisar Wash da sua presença. Depois o atiradiço Wash surgira e levara-a para a mesa em que estava.

Naomi experimentava prazer em sentir-se como que uma componente daquela orquestra. Por duas vezes, durante os intervalos, os rapazes da banda se tinham ido sentar à sua mesa juntamente com Wash, não se cansando de a gabarem e lançando gracinhas a Wash (que piscava o olho divertido) e conversando de uma maneira completamente estranha, que ela não era capaz de compreender, de música e de músicos.

Como eram os nomes dos rapazes? Ora, Wash... Perowitz... Lavine... Bardelli... Nims... não, era Sims... ou seria Kims?...

Abanou a cabeça para aclarar as ideias e tentou emparceirar os nomes com as caras dos seus amigos, aquele macilento de cigarro sempre ao canto da boca... o de rosto romano e cabelo encaracolado, que marcava o compasso com batimento de pés... o negro com a barbicha de bode e todos aqueles anéis nos dedos de unhas compridíssimas... o de cara de bolacha com o nariz retorcido... e o de rosto comprido como o focinho de um cavalo, de olhos afundados nas órbitas, braços e pernas compridos, corpo desen-gonçado, que se chamava Wash Dillon. O homem que lhe colocara o braço em volta da cintura e lhe aflorara os lóbulos das orelhas com os lábios.

Nesse momento observou que Wash se dirigia para a mesa, caminhando a jingar pelo brilhante soalho da pista, com o seu smoking, feio mas desejável, e tentou manter-se bem erecta na cadeira.

—        Como te sentes, bebé?

Ali estava ele em pé, junto dela.

Naomi levantou os olhos. Viu a cara cavalar, marcada pelas bexigas, em imagem dupla.

—        Então sentes-te bem, amorzinho?

—        Sinto.

—        A noite ainda é uma criança. Gostavas de te divertir mais um bocadinho?

—        Gostava.

—        És uma pequena desejável e maravilhosa.

—        Gostas de mim?

—        Se gosto de ti? — Wash ria-se. — Meu anjo, o velho Wash não é nenhum dos vossos gabarolas que só têm conversa. Gosto de poder provar aquilo que digo. Talvez não acredites, meu torrãozinho de açúcar, mas desde aquele dia em tua casa tenho andado taradinho por ti, sempre à tua espera.

—        Sinto-me estafada — foi a única coisa que Naomi conseguiu dizer.

Tentou levantar-se mas não conseguiu sem ajuda de Wash, que a agarrou pelos sovacos e a pôs de pé com facilidade.

—        Prontinho, já está — sorria. — Estás em pé, mas espero que não seja por muito tempo.

Enfiou o braço no dela.

—        Vamos embora, queridinha, o berço está à nossa espera.

Era forte o braço que a segurava, e Naomi sentiu-se melhor.

Wash arrastava-a por entre as filas de mesas, agora vazias, mas ainda com as toalhas cheias de detritos e de nódoas de comida, de guardanapos sujos e cinzeiros a abarrotar de pontas, tal como sucedia todas as madrugadas.

—        Eh, Wash! — ouviu-se alguém gritar.

Wash parou e olhou para trás por cima do ombro.

—        Então, esta noite vamos a um joguinho?

—        Muito melhor que isso, meu velho. O joguinho será outro e também teremos uma pequena jam session — fitava Naomi. — Não é verdade, queridinha?

—        Wash, tudo quanto quero é deitar-me.

—        Claro que te vais deitar, amorzinho. O velho Wash tomará conta da sua bebézinha.

Na rua, o ar frio e cortante foi como que um açoite contra o seu rosto, mas muito embora a tivesse feito, parcialmente, regressar à consciência, o universo circundante continuava invisível para Naomi, com excepção do vulto que seguia a seu lado. Algures, vindo de longe, ouvia-se o anónimo barulho do trânsito.

Lá no alto, muito no alto, a abóbada celeste oscilava, e lá em baixo, muito longe, o asfalto do pavimento era como que uma íngreme encosta.

Sentada no carro de Wash, andava abandonada de um lado para o outro, sentindo o forte odor que se desprendia do corpo do homem, misturado com o vago cheiro da flor que ele exibia na lapela de cetim.

Teve consciência das mãos que lhe afagavam os seios, por cima da camisola, e ouviu a voz de Wash junto ao seu ouvido.

—        Desde o dia em que te levei o postal, fiquei a saber que gostavas disto.

Naomi recostou a cabeça no assento, conservando os olhos fechados.

—        Quanto tempo se passou, pequerrucha? —Como?

—        Desde que foste possuída pela última vez?

Se ela lhe dissesse que fora há uma eternidade, quase desde o berço, Wash pensaria que ela era doida, que brincava com ele. Além disso, estava extremamente cansada. Optou por não responder.

A nave espacial seguia aos sacões... seguia sempre, a seguir veio a calma, uma profunda calma. Naomi abriu os olhos.

—        Já chegámos — anunciou Wash.

Abriu a porta do carro e estendeu-lhe a mão para a ajudar a sair. Com o braço a rodear-lhe a cintura, ajudou-a a atravessar o passeio, a passar pela porta envidraçada do patamar e a entrar no edifício.

Naomi viu, por entre uma neblina, as tabuletas com o nome dos inquilinos, as placas das campainhas e as caixas de correio com portas de metal amarelo. Passou por um corredor sombrio que levava às escadas das traseiras e fixou o número da porta — o cinco.

As luzes mataram a reinante escuridão, e Naomi parou indecisa ao lado da mesa de poker, com o seu pano verde, colocada no centro da sala. Wash voltou de qualquer lado interior com dois copos e meteu-lhe um na mão.

—        Bebe, amorzinho, não haverá mais disto durante toda a noite.

—Tenho estado a beber gim.

—        Isto é gim — disse ele, emborcando o seu copo de um trago. — Acaba com isso, boneca. Prepara-te para a longa viagem que vamos fazer.

Naomi bebeu. O líquido não lhe soube a nada.

Wash tirou-lhe o copo da mão e colocou-o em cima da mesa de poker, depois agarrou-a pelo cotovelo e, com firmeza, guiou-a até uma porta que estava aberta. As luzes foram acesas e Naomi viu-se junto a um cadeirão e observou a larga cama de casal que havia no outro lado do aposento.

O leito tinha a cobri-lo uma colcha franjada cor de laranja. De resto todo o quarto estava arrumado.

—        És um homem arrumado — disse-lhe Naomi, em voz ainda entaramelada, ao mesmo tempo que ele fechava a porta.

—        O apartamento dá direito a que uma criada venha fazer limpeza.

Wash arrancou a colcha da cama e a seguir fez o mesmo aos cobertores, mandando tudo para o chão. Depois afastou o travesseiro.

—        Gosto de muito espaço para a função — disse, favorecendo Naomi com um sorriso em que os lábios não se moviam, e mais parecia uma careta de zombaria. — E tu, minha bonequinha?

—        Eu o quê?

Naomi viu-se enlaçada e quase levantada do chão, e sentiu que os lábios dele lhe sorviam esfomeadamente a boca. Através dos vapores da intoxicação alcoólica, a excitação veio lentamente, não pelo beijo, mas pela pressão do corpo dele contra os seus doloridos seios e pela mão que lhe afagava as ancas. Finalmente Wash deixou-a, e ambos abriram a boca para deixar o ar circular nos pulmões.

Naomi viu que Wash desabotoava a camisa. Ela encaminhou--se lentamente para a cama, fez um gesto para se despir mas depois baixou os braços, quedando-se sem energia. A momentânea urgência da cópula diminuíra, o que restava era apático, um vazio. Para além da vertigem que lhe fazia latejar a testa, havia agora uma certa sobriedade, e a cama já lhe parecia menos convidativa. Não sentia nenhum desejo... nenhum desejo de o ver, ali, nu e tenso, tinha visto tantos... também não sentia nenhum desejo de se unir àquele homem, justamente porque antes dele tinha havido tantos. Afinal, porque é que ela se encontrava naquele local? Se contasse tudo a Wash, se lhe explicasse bem as coisas, talvez ainda houvesse uma esperança de escapar à tortura...

—        Eh, amorzinho... — ouviu a voz dele.

Naomi voltou-se penosamente, resolvida a fazer-lhe ver a lógica e a razão, mas ao observar aquele tenso corpo nu que repousava numa estrutura óssea saliente, compreendeu que seria inútil. Fora ela quem pusera o maquinismo em movimento e tinha que aguentar até ao fim.

—... porque é que esperas? Vamos a isto.

Melancolicamente, Naomi levou as mãos à barra da camisola e, lentamente, começou a puxá-la para cima.

—        Com os demónios, despacha-te!

Wash já estava junto dela, agarrando-lhe a camisola, puxando--Iha com violência para a cabeça. Naomi sentiu as mãos dele nas costas, procurando os colchetes do soutien, e, finalmente, arran-cando-lho do corpo com um sacão. Quando viu o soutien atirado para o chão e reparou que os seus enormes seios, livres da prisão, se projectavam para a frente, Naomi tentou protestar, mas já as sôfregas mãos dele a agarravam sem mercê, projectando-a rudemente para cima daquela cama.

—        Wash, não...

—        Vamos, depressa.

As calcinhas de nylon foram-lhe arrancadas das pernas. Wash esmagava-a com o peso do seu corpo.

—        As minhas meias... — protestou ela, sufocada.

—        As meias que se marimbem.

—        Não, por favor...

Naomi lutou por se levantar. Conseguiu soerguer-se apoiada num cotovelo. Só pretendia explicar-lhe. Devia haver um certo código ético na prática do amor, e uma senhora nunca devia conservar as meias. As meias eram uma coisa indecente, uma coisa completamente indecente.

O braço de Wash caiu-lhe como uma barra de ferro contra o peito, e a cabeça de Naomi foi violentamente projectada contra o colchão. As mãos apalpavam-lhe os seios com frenesim.

Naomi voltou a protestar pela indignidade das meias, que a faziam assemelhar-se a uma prostituta, mas ao abrir os olhos e reparar na expressão selvagem da cara dele, sentiu verdadeiro pavor.

—        Não me magoes — implorou.

A voz dele era colérica, impaciente, titubeante, incoerente, cheia de paixão; era como que uma espécie de responso animalesco, um rugir de fera com cio, e Naomi de novo cerrou os olhos, afundou--se na escuridão, abandonando-lhe a sua carne para que a morte pudesse, assim, chegar mais depressa e terminar com aquela dor.

Finalmente a esperada sensação — como que o leve corte da epiderme antes de o bisturi mergulhar nas profundezas da carne... depois lacerante, mas logo calmante, cicatrizante como cautério vertido na ferida... Naomi quase se sentia agora satisfeita por a sensação ser localizada, estar limitada, isolada, ser-lhe tão familiar. O seu corpo recusou-se àquele andamento rítmico, mas o dele continuava a agir incessantemente, interminavelmente. E à cauterizante agonia juntou-se o prazer. Agonia e prazer eram uma e a mesma coisa.

Finalmente, as mãos de Naomi cerraram-se nas costas dele.

—        Amo-te, Horace — murmurou ela.

Mas mais tarde, uma vez aquilo acabado, sentiu-se esgotada e vitoriosa, mesmo dentro da derrota sofrida, porque ela, antes, se tinha dado, como contara ao homem escondido por trás daquele biombo idiota, mas desta vez o homem dera-se e ela não. O prazer sentido com isso dominava qualquer outro prazer de que se lembrava.

Por fim, Naomi atreveu-se a abrir os olhos. Wash lá estava a apertar o cinto.

Sorria com aquele sorriso sardónico.

—        Então que tal, pequerrucha? Queres beber alguma coisa? Naomi abanou a cabeça negativamente.

—        Quero ir para casa.

Tentou erguer-se, mas Wash aproximou-se dela e, espalmando--Lhe a mão contra o peito, empurrou-a para trás, com suavidade.

—        Eh, nada de pressas. Não é prova de boa educação comer e desandar, deixando os outros convidados a ver navios.

Naomi ficou deitada, de barriga para o ar, fraca, estonteada, na mesma posição em que ele a colocara. Observando-a, Wash diri-giu-se para a porta e escancarou-a. Naomi ouviu um ruído confuso de loiças que se entrechocavam e de vozes indistintas.

Então ouviu o berro de Wash:

—        Okay, Ace... já podes entrar!

Um estranho entrou de súbito no quarto... afinal não era um estranho, mas sim o homem de rosto romano com o cabelo encaracolado. Envergonhada, procurou com as mãos qualquer coisa para tapar a sua nudez, mas as mãos tactearam em vão.

—        Já pode ser?... — perguntou o rosto romano.

Wash produziu o seu habitual sorriso sardónico, que mais se assemelhava a uma careta.

—        Hem, Bardelli, esta noite vais portar-te como um verdadeiro homem.

O chamado Bardelli começou a tirar a camisa.

Naomi sentou-se muito tensa na cama.

—        Afinal quem pensas tu que eu sou?... — gritou para Wash.

Tentou sair da cama, mas Wash agarrou-a pelos ombros e deixou-a pregada no mesmo lugar.

Naomi procurou desenvencilhar-se e estendeu as mãos de unhas aguçadas para a cara dele.

Lutaram durante breves instantes. Por fim, Wash segurou-lhe bem os pulsos, manietando-a.

—        Parece que não a conseguiste fazer completamente feliz.

Ainda a deixaste com muitas forças — disse Bardelli, brincalhão.

Naomi tentou gritar, mas Wash evitou o berro, colocando-lhe a face posterior do antebraço em cima da carótida.

—        Vamos embora depressa, meu filho da mãe, não estás a ver que eia é um verdadeiro tigre?

Incapaz de poder mover os braços ou de gritar, Naomi começou a distribuir pontapés ao acaso. Depois sentiu que alguém lhe imobilizou as pernas e, por cima do braço de Wash, viu o rosto romano e os cabelos encaracolados que avançavam ao seu encontro. Em breve os caracóis pendiam para a sua cara, e sentiu na sua boca o fedor de uma outra boca a cheirar a alho.

Naomi conseguiu voltar a cabeça e ainda pôde ver Wash, que tinha parado, a rir à porta do quarto, a seguir não pôde ver mais que aquele rosto romano debruçado para ela. Desfechou um pontapé, mas o homem, grunhindo como um porco, espalmou-lhe violentamente a mão na cara. Soluçando, tentou mordê-lo para de novo experimentar o látego daquela mão que a açoitava. Pouco depois deixou de oferecer resistência e o homem deixou de bater. Naomi para ali ficou, deixando-se manobrar como se fora uma marioneta.

Mais uma vez aquilo se tornou infindável, acompanhado pela fremente dor que a trespassava, aquela dor localizada, aquela violência selvagem... aquela loucura sempre acompanhada por uma Porta, algures, que se abria e fechava e, mais longe ainda, um barulho de vozes indistinto, vozes que por fim compreendeu que pediam a Bardelli para acabar aquilo. E o rosto romano sempre na sua frente, contorcido, com os caracóis a baloiçarem, suados e oleosos.

Quando acabou, Naomi não pôde sequer erguer-se. Nenhuma vontade na terra seria capaz de fazer com que pudesse levantar aquela carne torturada. E a vitória de nada entregar não era afinal nenhuma vitória. Ali estava, arquejante, com os grandes seios a arfarem e os olhos fitos no vago, à espera. Sentia o baixo-ventre como se tivesse sido escavado, como se os seus órgãos genitais fossem um tronco de árvore apodrecido e oco. Ali estava derrotada, abandonada de todo o instinto de resistência, prostrada, de olhar fito no vago, à espera...

A porta abria e fechava, chegavam-lhe rajadas de gargalhadas. De repente viu que por cima de si já não estava o rosto romano, agora era a cara de bolacha, nariz retorcido e mandíbulas salientes do mascador de pastilha elástica. Sentiu a mão nos seios e coxas, as mãos que lhe abriam as pernas... Lavine, era Lavine... e logo a seguir o negro de barbicha de bode. Sims... não era Nims, era Sims, lembrava-se agora perfeitamente do nome. Fechando os olhos, Naomi recordou-se de já ter havido um negro como aquele, antes daquele. Quando? Era o empregado de um bar, o intelectual que lia livros e mais livros, o negro que lhe contara que o problema da raça no Sul não passava do medo psicopático que o homem branco tinha por o negro ser melhor dotado para aquela função...

—        Não, Sims... não... — conseguiu gritar roucamente.

Quando voltou a abrir os olhos já não era Sims, era um rosto macilento e sonambólico, um rosto com borbulhas, um rosto que se retorcia num esgar... foi com aquele que ela mergulhou na inconsciência total.

Quando Naomi voltou à vida, estava sentada, ensanduichada entre Wash e Sims. Era o negro que ia a guiar. As janelas dos dois lados estavam abertas, e a carícia do vento era fria e suave como o deslizar de um arroio num dia calmoso.

—        Sentes-te bem? — perguntava a voz de Wash. — Agora vamos levar-te a casa.

Mirou-se e viu que alguém a tinha vestido. Na verdade aqueles homens eram como cavalheiros medievais, cavalheiros ao serviço da sua dama.

—        Não te deves chatear. Qualquer cosedor de cadáveres te dirá que aguentar com cinco não é pior do que aguentar um sozinho. Claro que estás cansada. Bem, filhinha... acontece que tens que ter cuidado... um dos rapazes... bem, ele magoou-te um pouco... ficaste um bocadinho ferida... mas não é nada de grave, nada de importante... Eh, Sims, aguenta o barco. Podes parar aqui. Naomi sentiu o frear do carro e o súbito hiato da paragem do motor. Wash abriu a porta e saiu.

—        Vamos deixar-te aqui. Faltam só umas portas para a tua casa, filhinha. É melhor assim para ninguém te ver acompanhada.

Pode estar alguém à tua espera...

Oferecia-lhe a mão para a ajudar a sair, mas ela não se mexeu.

—        Sims, vem ajudar.

Os dois, arrastando e puxando, lá conseguiram fazê-la sair do carro. Depois Wash encostou-a a uma árvore e disse-lhe, apontando determinado sítio com o dedo espetado:

—        O teu caminho é para ali, boneca — oferecia-lhe o seu sorriso zombeteiro. — Obrigado pela bela noite.

Naomi continuou apoiada à árvore mesmo depois de o carro ter arrancado. Não pôde saber por quanto tempo permaneceu naquela posição. Finalmente estendeu uma perna para ver se a conseguia mexer, e viu a meia pendente, rota, manchada por um líquido qualquer.

Soluçando, cambaleante, desatou a correr como uma doida na direcção da sua casa.

Logo que chegou ao seu relvado, o corpo deixou de ter aquele precário equilíbrio que conseguira sustentá-la de pé, e Naomi estatelou-se em cima da erva húmida do rocio nocturno.

Foi nessa altura que ouviu um ruído de passos, passos que primeiro soaram no pavimento da estrada e depois foram abafados pela maciez da relva, passos que rapidamente se aproximaram do seu corpo caído. Naomi tentou parar com os soluços e ergueu a cabeça à espera de ver surgir o uniforme de um polícia... Porém, o que viu (e sem a surpresa que esperara) foi o rosto de Horace, Horace que estava debruçado para ela, que lhe dizia qualquer coisa que não conseguia compreender, palavras de carinho de que teve a percepção antes de fechar os olhos e perder por completo os sentidos.

Às oito e dez da manhã de terça-feira, Kathleen Ballard, em resposta ao apelo feito quase uma hora antes por Paul Radford, chegou à vivenda de Naomi Shields, onde Paul a esperava.

O telefonema manifestara-lhe urgência, uma urgência que não fora muito clara para Kathleen, excepto que Paul lhe contara que Naomi tivera um encontro com certo rufião, tinha sido maltratada e estava acamada a conselho do médico, precisando que alguém ficasse a acompanhá-la até que se contratasse uma enfermeira.

Muito embora Kathleen não fosse uma amiga íntima de Naomi e não a visse com muita frequência (a última vez que a encontrara fora por ocasião da conferência do Dr. Chapman na Associação), correspondera imediatamente ao apelo. Os seus sentimentos pessoais a respeito de Naomi tinham sido sempre ambivalentes em princípio, uma secreta inclinação para outra mulher que também fora casada e agora não tinha marido, e um secreto desconforto na presença de uma tal sexualidade sem restrições ou inibições (se é que eram verdadeiras todas aquelas histórias) que se tornara um assunto de conversinhas nas salas de estar de The Briars. Agora, para Kathleen, acrescentara-se um novo elemento. Naquele almoço do dia anterior conhecera Horace e soubera que era ele o ex--marido de Naomi Shields, e, dado que gostara de Horace (e, de facto, gostava de tudo e todos que estivessem associados a Paul), havia sido compelida a olhar para Naomi como um membro oficial do novo círculo para que se deixara arrastar.

— Como está ela? — perguntou Kathleen, ao entrar na atraente, mas banalmente decorada, sala de espera de Naomi, em estilo chinês moderno, vendo, ao mesmo tempo, com surpresa, que nada daquilo lhe era estranho.

—        Agora está a dormitar — respondeu Paul. — Ministraram-Lhe um forte sedativo. Ficará boa.

Ao mesmo tempo que falava, Paul desfrutava avidamente o rosto fresco de Kathleen.

Consciente daqueles olhos que a fixavam, Kathleen levou os dedos às faces.

—        Devo estar horrível. Mal tive tempo para me arranjar.—Olhou em volta preocupadamente. — Há alguma coisa em que possa ser prestável a Naomi?

—        De momento nada, com excepção de uns pequenos quartos de sentinela — respondeu Paul. Nem lhe posso exprimir a nossa gratidão, Kathleen. Tanto Horace como eu não conhecemos os amigos de Naomi. Não sabíamos para onde nos havíamos de voltar.

—        Fizeram bem em chamar-me.

—        Então, e quanto a Deirdre?

—        De caminho fui levá-la à escola e deixei um bilhete a Albertine para ficar em casa até ao meu regresso. Já tomou o pequeno--almoço?

—        Não.

—        Tem que comer alguma coisa. Vamos passar uma busca à cozinha.

Não havia ovos nem bacon no frigorífico, e o pão contido no recipiente metálico já tinha muitos dias. O lava-loiças estava cheio de pratos sujos. Kathleen colocou duas fatias de pão na torradeira, fez café e depois lavou e secou vários pratos. Enquanto ela trabalhava eficientemente, Paul sentou-se numa cadeira, com um suspiro de alívio, e começou a explicar o que havia acontecido.

Muitas vezes, desde que sabia que Naomi vivia em The Briars, Horace telefonara para a vivenda sem que nunca a encontrasse. Nessa noite tentara de novo estabelecer contacto com ela e, como o telefone não fora atendido, dirigira-se de automóvel para a residência e parara o carro em frente da porta, resolvido a esperá-la. Pela madrugada, Naomi tinha finalmente chegado aos terrenos da sua vivenda, alcoolizada e maltratada. Horace tinha-a transportado para dentro de casa, havia-a reanimado e, conhecido o nome do médico assistente dela, telefonara-lhe imediatamente. O clínico não perdera tempo, mas depois de a ter examinado concluíra que além de três pontos naturais, o seu mal era principalmente psíquico. Recomendara que Naomi devia ser internada numa casa de saúde para receber um tratamento psiquiátrico intensivo. Fornecera a Horace os nomes de vários psicanalistas, e, quase ao romper da aurora, Horace, exausto e confuso, acabara por telefonar a Paul pedindo-lhe conselho.

—        Que lhe poderia eu dizer? — disse Paul a Kathleen, enquanto ela lhe servia o café e as torradas. — Nós somos estranhos aqui. E, sabendo o que sei a respeito de Naomi, não é coisa que possa ser orientada de ânimo leve e apenas pelo que se ouve dizer.

Evidentemente que o Dr. Chapman tem os melhores conhecimentos médicos do país, mas tanto eu como Horace chegámos à conclusão e concordámos que seria melhor deixá-lo fora disto. Temos que tomar em linha de conta o que os jornais diriam. O caso é uma matéria estritamente pessoal de Horace, uma coisa para ser feita com a maior calma e sigilo possíveis. Então lembrei-me do Dr. Victor Jonas.

Kathleen sentara-se em frente de Paul, lembrando-se da maneira como este, num dos seus encontros, falara do Dr. Jonas com afeição.

—        Embora pensando que, tecnicamente, ele é adversário do Dr. Chapman, compreendi que o problema de Naomi pertence à sua esfera de acção e que se pode confiar nele. De modo que lhe telefonei e expliquei a situação. O Dr. Jonas não perdeu tempo em vir ter connosco. Foi só depois disso que me lembrei de lhe telefonar a si.

—        O Dr. Jonas encontra-se cá?

—        Sim. Está nas traseiras a falar com Horace. Eu disse a Horace que aceitasse tudo o que ele lhe sugerisse.

Pouco mais havia a acrescentar. Ficaram em silêncio a saborear o café, Kathleen recordando-se do tempo em que a sua irmã estivera no hospital para lhe extraírem as adenóides e as amígdalas. Depois da operação, enquanto a irmã fora levada para o quarto de repouso, Kathleen e os seus pais tinham-se dirigido para uma cafetaria, bebendo café pela manhãzinha, e o café então tomado tinha o mesmo cheiro característico daquele que estava agora a beber. Mas, situando-se melhor no tempo, pensou que era o café que os pais tinham tomado que deitava aquele cheiro, porque ela devia ter bebido leite.

Ouviram passos, e pouco depois entrava na cozinha o Dr. Victor Jonas. Paul fizera menção de se levantar, mas o Dr. Jonas impediu--o, fazendo-lhe pressão no ombro com a mão. Acolheu a apresentação de Kathleen com um sorriso caloroso, decidindo que ele próprio deitaria para si uma chávena de café quentinho. Kathleen ana-lisara-o num rápido olhar: o seu cabelo em desordem, o fato amarrotado e o nariz grosso conferiam-lhe um ar bizarro e pouco profissional.

—        Horace foi lá dentro ver como ela está — disse o Dr. Jonas, levando a sua xícara de café para a mesa e sentando-se. Julgo que ele compreendeu perfeitamente o que deve ser feito.

—        Existe alguma esperança para ela? — perguntou Paul.

—        Talvez — respondeu o Dr. Jonas.

Paul e Kathleen trocaram um olhar, ele perturbado, ela perplexa, porque ambos tinham esperado ouvir a habitual e confiante atitude social das frases feitas para casos semelhantes, tais como «evidentemente, enquanto há vida há esperança» e «não há mal que não tenha cura». Paul esquecera momentaneamente, e Kathleen ainda não conhecia a proverbial sinceridade do Dr. Jonas.

—        Exactamente, o que é que isso significa? — perguntou Paul.

—        Psiquiatricamente, existem todas as possibilidades de cura para um tal caso. É uma coisa, no entanto, que repousa inteiramente nas mãos de ambos, mas mais nas de Horace. Se ela tem que ser ajudada, tem que lhe ser feito compreender claramente que estão dispostos a auxiliá-la sem quaisquer restrições, fazer-lhe compreender que está doente, que tem todos os sintomas de uma profunda doença interior. Porém, desde que é ela a paciente, possuída de um desejo de autodestruição, precisa de uma mão forte e carinhosa que a guie. Ela tem que saber que não é uma criatura depravada mas sim uma doente. Não é uma tarefa fácil para Horace. Ele é um homem educado, esclarecido, mas existe um factor antagónico inimigo na sua velha formação religiosa. Se ele chegar à conclusão de que realmente a quer, que ela pode ser salva para ele, deve ajudar a salvá-la salvando-se a si próprio. Nesse caso tenho um lugar para eles em Michigão. Não seria demasiado longe para Horace.

—Tem observado curas para casos destes? — perguntou Paul, sem rodeios.

—        Evidentemente. Já lhe disse que a ninfomania é um sintoma de algo que pode ser curado. É preciso atingir as profundezas, achar o ponto fraco vital, tratar o caso adequadamente, e deixa de existir qualquer razão subsistente para a ninfomania.

Kathleen sentiu um choque interior e desejou fervorosamente que a sua perturbação não tivesse sido notada. Aquela palavra, sempre aquela palavra ouvida num gracejo ou numa novela barata, atingia naquele momento uma qualidade terrível, porque desta vez era real, tal como Naomi era uma criatura real. Subitamente, Kathleen lembrou-se das conversas maldosas escutadas e estremeceu. As conversas afinal eram verdadeiras. Mas como é que uma mulher se podia comportar daquela maneira? O Dr. Jonas tinha dito que não estava na mão dela proceder de outra forma, que não o podia evitar, Naomi estava doente.

—        Quais são as causas? — ouviu-se a si mesma a perguntar.

Pausadamente, o Dr. Jonas acabou de beber o seu café.

—        Variam. Neste caso particular, pelo pouco que ouvi, penso que ela não foi muito amada quando era criança e se ressentiu disso — procurou nas profundezas dos bolsos o cachimbo de carolo de milho e acabou por encontrá-lo. — Evidentemente que estou a simplificar. Mas esta hipersexualidade pode ser um meio de tentar agora obter esse amor que lhe faltou. Mas claro que não há substituto, não existe homem nenhum, quer ela possua ou se deixe possuir por centenas, que lhe possa dar aquilo que os pais não lhe deram há vinte anos — carregou o cachimbo e acendeu-o. — Tentei

explicar isto a Horace. Disse-lhe que ela cresceu sem ternura, sem segurança, sem autoridade, sem o sentimento de ter sido uma pessoa de valia, de modo que o problema se foi avolumando à medida que ela se fez mulher, e por isso tentou fugir ao problema por meio da infindável série de episódios insatisfatórios com outros homens.

Quando tomei conhecimento do caso, Horace perguntou-me esperançado: «Quer dizer que ela não procura o sexo pelo sexo, que não deseja todos esses homens?»; e eu expliquei-lhe que assim era, que Naomi não queria de facto aquilo. Na verdade, interiormente, nos recessos do seu ser, ela é profundamente hostil à masculinidade. Talvez isto tenha ajudado Horace a compreender o problema, e é verdade—voltou a fitar Kathleen e a dar-lhe a segurança do seu sorriso franco, se bem que um pouco tímido. — O tratamento analítico pode ajudar a preencher aquilo que até agora lhe faltou. Pode fazer com que ela aprenda a saber quem é, o porquê das coisas, e convencê-la de que é uma pessoa de valia. Isso pode restaurar a sua identidade humana. Cessarão esses episódios sexuais suicidas — encolheu os ombros. — A cura depende deles e a tarefa pode estar acima das suas forças.

Alguns minutos depois, Horace apareceu, coçando o nariz no sítio em que os seus óculos, que agora tinha na mão, mostravam o sulco do uso. Lançou um olhar para as três criaturas que estavam sentadas à mesa da cozinha com uma expressão vaga. Kathleen esboçou um sorriso, e, por fim, Horace reconheceu-a e cumprimentou-a efusivamente.

—        Naomi continua a dormir — disse Horace —, mas parece desassossegada.

—        Naturalmente. A noite passada não foi para ela exactamente um piquenique — frisou o Dr. Jonas.

Horace olhou para Kathleen.

—        Foi muita bondade da sua parte ter vindo, mas talvez seja melhor eu ficar aqui para o caso de Naomi acordar. Acho melhor telefonar ao Dr. Chapman para realizar o trabalho de sondagem por mim.

Horace tirou a agenda do bolso e procurou o número do telefone da Associação. Benita Selby atendeu, e ele explicou-lhe que era provável que se demorasse e que o Dr. Chapman podia fazer as entrevistas marcadas até ao meio-dia. Então, ficou com o auscultador no ouvido, a escutar atentamente o que lhe diziam do outro lado da linha, acenando com a cabeça de uma maneira intensamente contrariada. Finalmente, disse ao bocal que ele e Paul iriam a caminho para as primeiras entrevistas.

Depois de desligar o telefone, Horace fitou Kathleen.

—        Afinal não me podem dispensar — disse-lhe. E depois para paul: _ parece que Cass está outra vez com a gripe às voltas, de modo que o Dr. Chapman continua encarregado da lista dele.

—        Não se preocupe — assegurou Kathleen —, eu ficarei a tomar conta dela.

—        Se Naomi acordar, explique-lhe que virei logo que acabe o trabalho; se me for possível, por volta das seis e meia.

Kathleen fez um sinal de assentimento. Paul e o Dr. Jonas levantaram-se.

—        Penso que ela dormirá a maior parte do dia — disse o Dr.

Jonas, voltado para Kathleen. — A senhora pode deitar-lhe uma vista de olhos de vez em quando para ver se ela está confortável.

De um quarto das traseiras ouviu-se um ruído meio latido meio uivo.

—        Meu Deus, tinha-me esquecido do cão — Horace olhou em volta, desalentado. — Quem é que vai tomar conta do animal?

—        Tomarei eu — disse prontamente o Dr. Jonas. — Os meus rapazes podem cuidar do cão até Mrs. Shields estar levantada.

Desapareceu por breves segundos e voltou com o agradecido cocker spaniel nos braços.

Kathleen acompanhou os três até à porta da frente. Depois de Horace e o Dr. Jonas se terem despedido, Paul ficou parado durante um momento.

—        Agradecimentos especiais para si — disse ele a Kathleen. — Telefonar-lhe-ei ao meio-dia para ver se tudo está em ordem. Posso encontrar-me consigo esta noite?

—        Seria maravilhoso.

—        Jantamos os dois?

—        Não quero que saia da Califórnia sem dinheiro. Um hambúrguer em qualquer loja de estrada será suficiente para mim.

Paul sorriu.

—        Você não é do tipo de comer hambúrgueres pelas estradas, mas farei o que quiser.

—        Tem a certeza de saber de que tipo sou?

—        De faisão com trufas, caviar e raminhos de edelweiss.

—        Algumas vezes, sim. Mas outras também gosto de um hambúrguer e um raminho de flores mais simples — fez-lhe um gesto gracioso, torcendo o narizito.

— Desejo-lhe um excelente dia.

Depois de ter fechado a porta, Kathleen atravessou o halle, em bicos de pés, procurou o quarto de cama de Naomi. Tendo-o encontrado, entrou. As persianas estavam corridas e o quarto permanecia mergulhado numa semiescuridão. Naomi estava deitada, com a cabeça a repousar na curva do braço.

Ao retirar-se, Kathleen prefigurou a imagem dela: uma criatura quase mitológica, do pescoço para cima um anjo, do pescoço para baixo uma prostituta. Rapidamente se sentiu envergonhada da imagem que criara e baniu-a da ideia.

Na sala de estar, observando o mobiliário e a decoração, viu que aquilo que primeiramente lhe havia parecido ser um maneirismo estudado de tendência para o chie, afigurava-se-lhe agora uma coisa berrante. Os candeeiros de fina porcelana chinesa não passavam de peças baratas fabricadas em San Fernando Valley, e os vasos não eram de cristal mas de vidro facetado. Sentiu-se subitamente envergonhada por aquelas descobertas, como se houvesse mexido nas gavetas de uma casa estando o dono fora. Kathleen na verdade nunca se preocupara com o mobiliário das outras pessoas, não era snob em tais assuntos, tinha apenas o conhecimento do que era genuíno, do bom gosto e daquilo que não o era. Afastou-se daquelas peças e procurou um livro.

Em poucos minutos tinha encontrado uma verdadeira biblioteca de histórias de mistério alugada, e decidiu que aquilo a ajudaria a passar a manhã. Armada e equipada com cigarros, fósforos e cinzeiro, arranjou um lugar confortável no fofo sofá, colocou os pés em cima da mesinha do café, cruzou as pernas e tentou concentrar--se na leitura. Mas era difícil. O seu pensamento voltava-se todo para Paul Radford.

Durante a passada semana, com excepção de um dia, encon-trara-se sempre com ele. Nunca se sentira tão contente, tão à vontade com um homem. Todavia, a velha preocupação continuava suspensa sobre a sua cabeça como a espada de Dâmocles. Não ousara deixar-se absorver por aquela ideia, nem pensaria no que poderia acontecer entre eles, antes que, no domingo, Paul se fosse embora de The Briars. Agora que o convidara a preencher-lhe o pensamento, sentia-se repentinamente intrujona e desprezível.

Tentou pensar nas outras mulheres que conhecia em relação com Paul. Como é que elas o tratariam? Qual era o seu próprio significado como mulher? A que tipo pertencia? Ao de Naomi? Oh, bom Deus, não. Mas haveria alguém assim... fria e controlada, exteriormente, como ela mesma? E quem é que era como ela? Na verdade, ninguém. Todavia, pensou em Úrsula Palmer. Ela era escritora. Paul era escritor. Coisas em comum. Mais do que isso, Úrsula tinha tanto domínio de si e tanta desenvoltura! Eram aquelas as características necessárias a situações como as que tinha que enfrentar. Nada daquela negra incerteza. Invejava Úrsula.

—        Ora muito bem — disse finalmente Bertram Foster, depois de ter colocado a taça de champanhe na mesinha de chá em frente dela —, aposto que é a primeira vez que você sente bolinhas chegarem ao nariz durante o pequeno-almoço.

—        Pois é — respondeu Úrsula, servilmente.

No dia anterior, Foster tinha-lhe telefonado a modificar a hora do encontro. Queixara-se do que Alma não lhe concederia uma noite de liberdade, nem para trabalhar, de modo que tinha estabelecido um outro plano excelente. Combinara com um estúdio cinematográfico fazer à mulher um convite para um local de filmagens em Lake Arrowhead. Alma só estaria de volta para o jantar, o que significava que ele e Úrsula teriam toda a manhã e toda a tarde para estarem juntos. Havia sugerido a Úrsula que podiam tomar o pequeno-almoço no seu apartamento.

Úrsula sentira-se melhor com a nova combinação, o jantar era uma coisa que a perturbava. O pequeno-almoço era uma coisa impessoal, despida de romantismo emocional, com uma atmosfera anti-sexual. Afinal de contas, quem é que se sentiria inspirado para fornicar depois de comer os cereais matutinos? Porém, logo que chegara, vestida a preceito para a manhã, blusa de grande decote e saia ligeira de lã, plissada, ficara atónita por ver Foster de roupão às pintinhas, envergado por cima do pijama de seda cinzento. A sua cara redonda estava escanhoada de fresco e cheirava a talco e seiva de pinheiro, e sobre o aparador havia a garrafa de champanhe, envolvida num guardanapo imaculado e dentro do balde de gelo.

Foster erguia a sua taça.

—        É Piper Heidsick—disse —, o melhor que o dinheiro pode comprar. Vamos, não tenha medo, prove o champanhe.

Ele bebeu e observou-a por cima da taça, quando Úrsula levou o recipiente aos lábios.

—        Delicioso — disse ela, tentando esconder a careta.

Na verdade, o champanhe soube-lhe a qualquer coisa de indefinível e amargo, e, logo que o líquido lhe deslizou para o estômago, sentiu uma onda de calor que lhe fez latejar as têmporas.

—        Magnífico—disse Foster, acabando de beber.—O pequeno-almoço pode esperar.

Deu a volta à mesa, poisou a taça e sentou-se pesadamente no sofá, ao lado dela. Olhou insistentemente para o ponto crucial do vértice formado pelo decote da blusa.

—        Muito bem, senhora directora, afinal onde é que está essa coisa?

Para Úrsula, o temeroso momento há tanto receado tinha finalmente chegado.

—        Aqui — disse ela, apontando para o grande envelope comercial que estava por baixo da sua mala.

O completar das notas sobre a sua história sexual tinha sido um verdadeiro milagre de ambição. Durante o trabalho de dactilografia, tivera que parar constantemente, possuída involuntariamente pelo desejo forte da odisseia que fora a sua infância, os anos com Harold, as suas incompatibilidades como parceira sexual. Numa vida ocupada, cheia de acontecimentos onde a sublimação do amor ocuparia a menor parte, as suas insuficiências nunca tinham sido totalmente encaradas, nem sequer parcialmente. Mas uma vez concentrada num único local, como se fora uma biografia separada do seu comportamento, essa porção da sua vida agigantava-se de uma forma nunca antes divisada, e as suas deficiências tomavam--se evidentes e desesperantes. A desagradável tarefa de reviver esse segmento da sua biografia, o conhecimento de que em breve seria do conhecimento de outrem e ainda a compreensão de que o marido tinha ao serviço no escritório aquela intrometida alemã, tinha-lhe tornado os últimos dias intoleráveis. Várias vezes lhe tinha cruzado na mente o pensamento, semanas atrás absolutamente inconcebível, de que o artigo da primeira página e o emprego em Nova Iorque não valiam o preço que ia pagar; porém acabara por andar para a frente e conseguira finalizar a repugnante narrativa.

Agora, tendo aberto o grande envelope e no momento em que tirava de dentro as páginas dactilografadas, imaginava se não seria menos vexatório meter-se simplesmente na cama com Foster em vez de deixá-lo vasculhar a sua vida sexual íntima através de todos aqueles anos.

—        Tem vinte e sete páginas — disse ela entregando as folhas a Foster.

Bertram ficou com as folhas na mão, mantendo um rosto grave, de circunstância.

—        É uma grande contribuição — disse no seu tom de voz de falar de negócios.

—        Isso levará um bocado a ler, Mr. Foster. Talvez seja melhor eu ir dar um passeio e voltar mais tarde.

—        Não, quero tê-la aqui para discutir o assunto. Tome uma taça de champanhe.

Ele já estava a ler avidamente. Úrsula tentou evitar olhá-lo, mas, por várias vezes, lançou um relance para a sua face, e o que viu nela foi aquela concupiscência dos filmes proibidos, a luxúria de um homem que lesse o erotismo clássico de John Cleland. Úrsula bebeu o champanhe de um trago, sentindo-se doente até ao âmago, sentindo-se como uma espia que entregasse a um inimigo documentos secretos que pertenciam a Harold, sentindo que estava a trair a única escolha da sua vida privada feita perante Deus. (Se és capaz de vender isso, que mais te pode restar?)

Úrsula observou que Foster começava a desfolhar as páginas apressadamente.

—        Passa-se alguma coisa, Mr. Foster?

—        As coisas da infância... quem se importa com bagatelas dessas? Onde é que está a parte da idade adulta?

—        Quer dizer a parte pré-conjugal?

—        Sim, seja o que for que lhe queira chamar—respondeu ele, impacientemente.

—        Página oito.

Foster localizou a página e desatou a ler. Os seus olhos não desfitavam as letras, passava a húmida língua pelos secos lábios. Depois de ler durante um bocado, Foster fitou-a.

—        Com que então você caiu antes do casamento e teve um filho?

—        Era ainda muito nova, Mr. Foster— respondeu ela, apressadamente, pensando que estava a procurar defender-se mas que, ao mesmo tempo, não pretendia entregar-se com facilidade.

Foster voltou a mergulhar na leitura, e ela teve a estranha sensação de que os olhos dele não viam Úrsula Palmer mas sim um pedaço de carne onde podia cevar o apetite.

—        Viver para aprender—disse Foster.

—        Como?

—        A posição é tudo — acrescenta ele, mostrando os dentes num sorriso e piscando o olho.

Úrsula sentiu-se banhada em suores frios.

O editor continuava a ler avidamente, voltando as páginas num ritmo febril, e Úrsula avaliava que naquele momento devia estar na parte que descrevia a sua vida com Harold. Sentiu uma vaga de desprezo por si mesma e desejou ter forças para lhe arrancar aquelas folhas de papel das mãos gorduchas.

Foster levantou o dedo que seguia as linhas e apontou-o para ela.

—        Ele não é grande coisa, hem? — perguntou.

—        Quem?

—        O seu marido.

Úrsula foi tomada por uma onda de indignação.

—        É tão bom como qualquer outro... como o senhor ou como qualquer um...

—        Pelo meu padrão, não.

—        Porque é que vocês os homens são tão convencidos? Porque é que pensam que se podem comportar melhor com uma mulher do que o marido dela? — retorquiu Úrsula, perdendo o acanhamento.

—        É uma questão de lealdade, não pretendo minimizar... mas a verdade é que factos são factos. Desculpe. É porém possível que ele venha a melhorar com o correr dos anos.

Voltou a mergulhar na leitura. Úrsula tremia de raiva. Aquele velho e disforme libertino, com o seu cérebro perverso e devasso, estava a depreciar e a rir-se à custa de Harold, destroçando toda a sua vida de casada com a emporcalhada língua.

Foster tinha acabado de voltar uma página, mas logo a seguir tornou a pô-la em evidência e releu-a vagarosamente.

Os seus lábios soletravam as palavras silenciosamente. Manteve a página segura, e desatou a falar sem olhar para Úrsula:

—        Diz aqui, «Pergunta: A senhora já...» — agora a sua cara congestionada voltava-se para ela. Chegue-se para aqui—ordenou-Lhe, mantendo a página bem segura. Apontava determinada linha com o dedo.

—        Leia isto e diga-me se é o que estou a compreender.

Tensamente, Úrsula chegou-se para junto dele, inclinando a cabeça para seguir as letras que o homem apontava. Sentiu a asmática respiração de Foster a queimar-lhe o pescoço.

—        O que é que isto significa? — perguntou ele. Úrsula afastou-se, sentando-se muito direita contra o espaldar do sofá. Foster fitava-a implacavelmente. A sua expressão era esquisita, arfava, tinha os olhos brilhantes de cupidez.

Úrsula sentiu-se à beira das lágrimas e fez um esforço gigantesco para as evitar.

—        O que é que isto significa? — repetiu ele.

—        Precisamente o que aí está... — a voz de Úrsula mal se percebia.

—        Aquilo que eu penso?

—        Sim, mas... é diferente...

—        Ah... — fez ele em ar de troça.

A cara dele chegava-se para a dela, havia nos seus olhos um imperativo de comando.

As têmporas de Úrsula pareciam querer estoirar.

—        Mr. Foster...

—        Sim! — gritou ele, reiterando o seu imperativo de comando.

Agarrou-acom mãos impacientes, mas Úrsula libertou-se das garras que procuravam manietá-la e esbofeteou-o com toda a sua força.

—        Você, seu porco... seu porco sujo!

—        Você é que é a porca.

Úrsula ergueu-se, fugindo às mãos que ainda estavam estendidas, e agarrou na sua mala e nas páginas dactilografadas, abandonadas em cima do sofá.

Foster recompôs-se, mas a sua voz soou num tom implorativo, o tom de alguém a quem tiraram da frente o melhor prato do menu:

—        Úrsula... escute, queridinha... bem sabe que posso ajudá-la... tudo o que quiser.

Ela encaminhou-se para a porta.

—        Você já fez isso antes! — gritou Foster. — Você gosta disso!

A mão dela estava no puxador.

—        Se se for embora, vai-se embora o seu trabalho também...

Com a porta já aberta, Úrsula voltou-se para trás.

—        Sabe o que deve fazer com o trabalho? — gritou. E a seguir, corno um estivador (lembrou-se mais tarde), disse-lho numa linguagem nua e crua. Depois afastou-se como se fosse perseguida por uma legião de demónios, esquecendo-se do elevador e descendo a correr os três lanços de escadas.

Atravessou o vestíbulo sem olhar para nenhum lado, e não parou de correr até chegar ao carro. Então, e só então, o impacto absoluto do seu corte com o passado, não com o futuro mas sim com o passado, lhe veio forçosamente ao pensamento.

Curiosamente, agora já não sentia vontade de chorar. Através do pára-brisas, entre dois altos prédios acinzentados, podia ver a imensidão dominante do maciço montanhoso a norte da cidade, as grandes montanhas azuis, com a mancha verde da vegetação, recortadas contra o azul, mais azul, do céu. Podia ver as veredas que se perdiam nos cimos, divisava cada garganta entre os rochedos. Era um maravilhoso e claro dia para a Califórnia, e ela sentia-se satisfeita em notar aquela beleza pura e suave.

Sentindo-se confortável no sofá de Naomi, Kathleen Ballard, no tecer de uns quantos romances, quase não fora capaz de se fixar num único parágrafo do livro policial que tinha em repouso no re9aço. Em todos os romances tecidos, o herói era sempre Paul ^adford, mas a heroína, embora pretendendo ser ela própria, variava em conteúdo dispersa pelas imagens de umas quantas mulheres em que se procurava integrar, como motivo de agrado e por se sentir frustrada. Úrsula Palmer viera e partira, tal como Ruth Joyce e Felícia Scoville, e agora tinha introduzido Sarah Goldsmith no seu ser corpóreo, na sua vida privada, e apresentara-a a Paul.

Considerando Sarah, Kathleen podia ver como o seu calor natural, o seu aspecto de dona de casa terra-a-terra, o seu ar de fecundidade, podiam ser um apelo forte para um homem como Paul Radford. Evidentemente que, na situação de Kathleen, ela reagiria afectuosa e generosamente. Afinal era simplesmente uma questão de quarenta e oito cromossomas. Como é que o Criador os distribuíra? De que maneira os utilizava Sarah? E de que forma usava ela própria os seus secos e gelatinosos genes para um encontro com o homem? Sem dúvida que Sarah possuía o segredo do apelo sexual por uma decisão unânime de todo o seu corpo.

Nunca Sarah Goldsmith — nem desde aquela noite da véspera do dia de finados (dia das partidas) quando aquele esqueleto sem cabeça aparecera subitamente por detrás da cerca, tinha ela dezasseis anos, obrigando-a, juntamente com as outras raparigas da sua criação, a fugir desabaladamente, caindo aqui, levantando acolá, com o coração a querer saltar-lhe do peito — sentira um terror de pânico.

Dissimulada junto à parede da sala de estar, com uma nesga da cortina levantada para poder olhar para o exterior através da larga janela, Sarah observava com abissal atracção o Dodge que continuava parado junto à valeta. Não se movia o carro como não se movia o negro espírito de vingança que estava no seu interior e que a assombrava pela sua culpa como um inexorável fantasma. Deixando cair a cortina com um soluço de angústia, Sarah afastou-se como uma sonâmbula, aos encontrões no mobiliário que a cercava, procurando equilibrar-se naquelas pernas que sentia como pesadas colunas de mármore prestes a desmoronarem-se, abrindo um caminho cego para chegar à cozinha.

Pela terceira vez nessa manhã, desde que, pela primeira, avistara o carro e o seu condutor depois de Sam ter partido para o trabalho, discou o número de Fred. A partir daquela vaga de terror de segunda-feira, ela permanecera na expectativa de ver aparecer o anjo negro vingador, o seu grito de consciência acusador, o olho poderoso que tudo via. Mas no dia seguinte, terça-feira, e igualmente na quarta, a rua tinha estado vazia de qualquer traço que lhe lembrasse o horror e a tragédia do seu perseguidor. Seguindo o conselho de Fred, ficara em casa afastada da cama do amante.

Naquela manhã, misticamente, neuroticamente, compulsivamente, fixava o seu espírito no misterioso número três do destino. Se decorressem três dias com a rua vazia de observação, então ela e Fred estariam a salvo e o caso não passaria de uma estranha coincidência. Porém, à terceira vez que se aproximara da janela para observar a rua, vira o Dodge inexoravelmente parado, e o seu encantamento mágico da boa esperança do número três tinha-se desvanecido na horrenda realidade das coisas, desmoralízando-a por completo. Mesmo quando tentara telefonar a Fred para lhe relatar o caso, a contingência do número três parecia mantê-la numa dependência insólita. Nas duas vezes anteriores ninguém atendera, toda a sua esperança se depositava na terceira chamada, mas a campainha do telefone soava insistentemente no outro lado do fio sem uma mão providencial a levantar o auscultador. Esperou durante muito tempo, e por fim desligou, convencida de que Fred tinha saído e que estava sozinha com o seu diabo atormentador.

As paredes da casa pareciam-lhe agora um cárcere prestes a engolfá-la na loucura, e sentiu que o seu único refúgio, a sua tábua de salvação, residia no sol, no ar livre libertador, onde, contudo, também o perigo estava à sua espera. Mas lá fora estava a sanidade da rua onde havia gente, onde estavam as suas amigas, onde havia o caminho que levava ao apartamento de Fred, à segurança do amor.

Quem seria afinal aquela figura, dentro do seu veículo de quatro rodas, que tão insistentemente a perseguia? Um homem. Um carro. Um detective particular. Nada mais que uma sombra acusadora movida por motivos puramente comerciais, paga a cinquenta dólares diários, alugada e despedida a bel-prazer do cliente. Mas urna sombra alugada por quem? Pela Sr.a Tauber? Por Sam?

Sarah considerou com os seus botões, tentando convencer-se de que era uma criatura invencível, que era livre, adulta, de raça caucásica, mãe de dois filhos, uma cidadã do mundo que podia caminhar à vontade pelas ruas, ir fazer as suas compras, tendo a luz do dia como escudo.

Como é que aquela sombra dentro do veículo de quatro rodas a podia afligir mais? Seguindo-a novamente? Redigindo um relatório? Para Sam? Para a Sr.s Tauber? Com certeza que já tinha havido boa matéria para muitos relatórios. Mais um era coisa que não importava. O que importava era ver Fred, medir, avaliar, decidir sobre o caso, tendo alguém que amava junto dela, a pegar-lhe na mão, a acarinhá-la... assim podia desafiar o mundo inteiro, pouco se importando com o estigma que sobre ela caísse.

Tirou o casaco de cabedal do cabide, dirigiu-se para a porta da frente e abriu-a. Hesitou por momentos, vendo o jardineiro que trabalhava do outro lado da rua e mirando de soslaio o Dodge parado mais abaixo; depois, com passo firme, deixou-se envolver pela luz do sol, avançou na luminosa claridade do dia. Uma vez dentro da canadiana, ligou a ignição, fez marcha atrás até chegar à estrada e arrancou, procurando alhear-se daquela consciência de culpa que estava parada ao fundo da rua. Quando entrou no intenso trânsito do Wilshire Boulevard, sentiu-se aliviada de não enxergar sinais do Dodge pelo espelho retrovisor.

Ao atravessar Santa Mónica, passado o edifício do enorme hotel, pensou ter visto o bojo familiar do carro do seu perseguidor. Voltou então para sul, descreveu uma curva apertada, meteu por uma rua lateral, para finalmente desembocar na recta residencial de Fred. Parou o carro, como era hábito, do outro lado da rua e, rodando o corpo, olhou pelo amplo vidro da retaguarda. Foi intraduzível o prazer sentido por ver o caminho livre não só de trânsito como sem o mais leve vislumbre do carro inimigo.

Apressou-se a alcançar a porta da residência, subindo a quatro e quatro os degraus da escada que lhe eram agora muito mais familiares do que nunca tinha sido a vivenda de Sam; e foi só quando já ia a tocar no botão da campainha que reparou no pequeno rectângulo de papel, seguro com fita adesiva, logo por cima do puxador.

Era uma mensagem, sem dúvida traçada pelo punho de Fred, na sua clássica letra toda inclinada para a direita. O conteúdo da mensagem rezava assim:

«Reggie (era um nome desconhecido de Sarah, mas não havia perigo, porque, incontestavelmente, se tratava de um nome masculino), tive que levantar o rabo da cama cedo para ir ter um bate-papo com o meu advogado (era um tom brincalhão que não indicava tra-tar-se de nada que envolvesse uma crise) e devo estar ocupado com ele até à hora do almoço. Depois de ter resolvido o assunto, telefono-te. Desculpa. Senta-te ao lado do telefone e espera a minha chamada. Fred».

O desapontamento de Sarah por não encontrar Fred em casa estava agora temperado por um novo sentimento de esperança. Não era preciso nenhum Champollion para decifrar aquela pedra de Roseta. Fred havia dito muitas vezes ter de ir falar com um advogado para se ver livre da pouco sumarenta Sr.ã Tauber. Todas as vezes que Sarah lhe tentara falar a sério no assunto do divórcio, a resposta acabava por se perder devido à fome imediata que a proximidade dos seus corpos desencadeava, e, depois de saciados, o fio à meada já se tinha perdido, a urgência das coisas dissipava-se como o fumo se dissipa no ar. Ela deixava de se importar com o caso porque sentia que a melhor resposta sobre o problema já lhe fora transmitida através de todo o seu corpo. Sarah tinha tirado os óculos antes de subir as escadas, mas agora voltava a pô-los. Estudou em pormenor a mensagem, procurando descobrir uma palavra que tivesse lido mal, uma frase que tivesse qualquer outro sentido. A nota, porém, era toda clareza. Fred tinha que se demorar a falar com o advogado e isso significava finalmente, depois de tanta espera, que ele estava a tratar do divórcio. O corpo de Sarah foi possuído pelo prazer maravilhoso daquela palavra, sentiu as entranhas agitarem-se-lhe pela palpitante utopia que aquilo representava. O divórcio... Mas quem seria o tal Reggie? Para uma explicação cabal do facto já era necessária a decifração de um Champollion ou, melhor, de um Fred.

Abriu a mala de mão, procurou qualquer coisa no interior e acabou por tirar um lápis de retocar os olhos. Reflectiu durante um momento e depois escreveu na margem de papel livre da mensa-9©m colada à porta:

«Fred. Procurei-te para discutir o nosso negócio. Telefonarei mais tarde.

Considerou aquilo que escrevera. Riscou a palavra negócio e substituiu-a por Dodge. Assim era uma coisa inequívoca.

Logo que chegou à rua, olhou atentamente em ambas as direcções, receosa, mas não havia outro carro parado na artéria a não ser o seu.

À medida que atravessava a rua, Sarah deduziu todo o problema, ligando bem os pedaços dispersos como o poderia fazer um detective. Aliás parecia-lhe uma coisa transparente como a clara água de um arroio. Porque é que Fred só naquele dia se resolveria ir falar com o advogado e não tomara semelhante deliberação há muito mais tempo? O raciocínio era agora imperativo. A sua súbita resolução devia-se, sem dúvida, à chamada urgente que ela lhe fizera na segunda-feira. Devia-se à figura do agente Javert. Fred antecipava-se à Sr.ã Tauber. Ou a Sam Goldsmith. O inevitável detective tinha motivado a inevitável decisão. Porquê esperar uma confrontação com o inimigo? Porquê aguardar de braços cruzados o escândalo? A melhor arma era a antecipação. Pobre Sr.s Tauber, ou pobre Sam.

Sentou-se ao volante. Sentia-se orgulhosa de Fred, do seu Fred. Agora o Dodge já não interessava nada. Pobre Dodge. Estúpido Dodge. Considerou os tais relatórios que tinham sido feitos em pura perda («A pessoa em causa saiu de casa às 10,32. Entrou no apartamento de Tauber às 10,57. Saiu às 12,01. Parou para arranjar o despenteado cabelo e retocar a maquilhagem...»), relatórios tão prometedoramente eróticos e ao mesmo tempo tão recatados e envoltos num ar de respeitabilidade. Pensou se, no caso de um escândalo, os jornais publicariam aquelas notas como motivo de sensacionalismo. Pensou nos filhos. Fosse como fosse, o caso é que naquele momento se sentia quase alegre.

Kathleen Ballard tinha finalmente conseguido ultrapassar o primeiro capítulo do romance policial, consciente de ser um original inglês, porque a palavra honor estava escrita honour, consciente também de quão detestavelmente era tratado o carácter do sobrinho Peter, obrigando-o a cometer uma coisa tão repugnante (muito embora o autor tivesse explicado previamente que ele não tinha outra alternativa senão cometer o crime). Voltou a página, e acabava precisamente de travai' conhecimento com Lady Cynthia, re-cém-regressada do Nepar quando a campainha do telefone quebrou o absoluto silêncio que reinava na casa.

Kathleen levantou-se, movimentou uma das pernas quase dormente devido à posição prolongada e, ao terceiro toque insistente, já estava na cozinha a levantar o auscultador. A voz remota de uma telefonista, anunciando-se como empregada do centro de enfermagem, disse-lhe que Miss Wheatley, que ficara de comparecer ao meio-dia, não podia estar em casa da doente senão por volta das seis horas, mas que a essa hora não faltaria. Kathleen protestou. Tratava-se de uma doente que necessitava dos cuidados de uma pessoa abalizada. Não haveria qualquer outra enfermeira livre? A voz remota e impessoal evitou entrar em pormenores. Não, não havia mais ninguém livre antes da noite. Mas às seis horas Miss Wheatley estaria no seu posto. Kathleen tentou combater o sistema. E se fosse um caso de absoluta urgência? Poderia haver então uma enfermeira para assistir à doente? A voz distante não pareceu comovida, continuou no mesmo tom como se fosse um disco. Não estava em posição de discutir tais assuntos, unicamente transmitia e aceitava os recados que lhe davam. Bom dia.

Kathleen estava habituada àqueles pequenos desapontamentos, e, uma vez ajustada à ideia daquelas seis horas que a esperavam, começou a inventariar a cozinha à procura de mantimentos de boca. Era mais que evidente que Naomi comia fora de casa. Se assim não fosse, a julgar pelas provisões existentes, tinha então que su-por-se que não comia, vivia do ar. Não comia, mas, sem dúvida, substituía os sólidos pelos líquidos, e com que abundância!

Finalmente, uma busca mais cuidadosa fê-la descobrir uma lata de sopa de ervilhas e uma lata enorme de carne de vaca estufada. Achou também uma caixa de triângulos de queijo, por abrir e coberta de pó, e várias garrafas de refrigerantes (tristes sobreviventes de uma velha batalha travada contra o gim). Kathleen decidiu que a carne estufada era o suficiente para comer e que era um belo dia para iniciar uma dieta.

Acabara de ter êxito em abrir a enorme lata de carne estufada, quando o telefone tocou pela segunda vez. Era Paul e, por ouvir-lhe a voz, Kathleen sentiu-se confortada, e veio-lhe a certeza de que ele não seria, de nenhuma forma, feliz com Sarah Goldsmith.

Falou a Paul a respeito do caso da enfermeira, desejando apenas escutar a preocupação dele sobre o assunto, assegurando-lhe depois que não se importava nada de ficar até às seis.

—        De verdade? — perguntara Paul.

—        Absolutamente — respondera ela.

Paul lamentou tê-la metido num sarilho daqueles, e Kathleen afirmou-lhe que não era sarilho nenhum e que era o menos que podia fazer por Naomi. E com respeito a Naomi? Estava a dormir. Belo, belo. Horace ficaria aliviado. Paul perguntou-lhe se não se esquecia de comer e ela tranquilizou-o. Ao desligar, Radford disse-ra--lhe um "até logo" muito familiar. Sim, até logo.

A carne estufada estava a aquecer em banho-maria dentro de um tacho, quando ouviu o grito de Naomi:

—        Horace!

Kathleen baixou o lume e apressou-se a entrar no quarto de dormir. Naomi estava deitada de costas, conservando o cobertor puxado até ao pescoço, e fixava o tecto atentamente.

—        Sente-se bem? — perguntou Kathleen, aproximando-se da cama.

Os olhos de Naomi voltaram-se para ela.

—        O que é que está a fazer aqui?

—        Horace teve que ir trabalhar. A enfermeira ainda não pode vir, de modo que estou eu aqui.

—        Porquê você?

—        Bem... conheço um amigo de Horace... e eles chamaram -me.

—        Não preciso de ninguém. Não quero uma enfermeira.

—        Mas o médico...

—        Para o diabo que carregue o médico, é uma besta.

Naomi não se mexeu. Fechou os olhos, depois voltou a abri-los. Preocupada, Kathleen aproximou-se mais da cama.

—        Naomi, posso fazer alguma coisa por si?

—        Não. Em breve estarei boa, logo que esta chatice me passe.

—        Como é que se sente?

—        Como se alguém me estivesse a dar beliscões na vagina.

—        São os pontos naturais que levou. Naomi levantou a cabeça.

—        Filhos da mãe! — disse ela sem cólera, voltando depois a

ficar silenciosa, com os olhos de novo fitos no tecto.

Kathleen sentiu-se pouco à-vontade.

—        Você sabe o que aconteceu a noite passada?

—        Não — respondeu Kathleen, abanando a cabeça negativamente.

—        Fui obrigada a dar uma geral.

—        Oh, Naomi...

—        O caso poderia ter sido muito instrutivo se eu estivesse sóbria. Tenho que enviar um relatório suplementar ao doutor Chapman.

—        Quer dizer que esses homens a forçaram a...

Os olhos de Naomi procuraram os de Kathleen.

—        Não tenho bem a certeza se fui forçada... — os seus lábios esboçaram o que pretendia parecer o fac-símile de um sorriso. — Vá-se embora. Eu contamino. Sou uma porca.

—        Não fale dessa maneira.

—        É a linguagem dos homens. Gosto dela. É a única linguagem verdadeira, sem rodeios. Os homens não têm grande conhecimento das mulheres, mas não há dúvida que conhecem à distância uma porca.

—        Naomi, tente repousar.

—        Quem é que esteve cá esta manhã?

—        O seu médico assistente. Depois Horace trouxe um psicólogo.

—        Um abelhudo?

—        Não. Tentou realmente ajudar, aconselhou...

—        Que conselho deu ele?

—        Julgo que é melhor esperar até que Horace...

—        Não, quero que seja você a contar-me.

—        Não tenho a certeza.

—        Vamos, descosa-se, Katie. Já fui assediada por um batalhão. Agora quero saber o que disse o alto comando.

—        Falaram de tratamento, de análise.

—        A Katie pensa que estar deitada num divã a contar histórias sujas poderá ajudar?

—        Não me posso pronunciar. Suponho que eles sabem muito bem o que é melhor.

—        Não me conseguem convencer — voltou-se. — Deixe-me dormir—a voz sumia-se.

Kathleen sentiu-se desorientada durante uns momentos, compungida pela doença de Naomi, pela doença e pela enfermiça vulgaridade que ela demonstrava. Voltou-se para sair do quarto. Ao chegar à porta, ouviu a voz de Naomi.

—        O que é que Horace faz em The Briars? Kathleen ficou surpreendida.

—        Pensei que... Ora, está a trabalhar com o Dr. Chapman.

—        Não sabia — a voz tornou a baixar de tom. — Não está a mangar comigo?

Logo a seguir a respiração nasal, em breves instantes, mostrou a Kathleen que ela tinha adormecido.

Em bicos de pés, Kathleen saiu do quarto, fechou a porta de mansinho e voltou para a cozinha.

Mais tarde, depois de ter acabado de comer uma leve porção de carne estufada e de ter bebido o refrigerante, voltou para o seu sofá e para o romance policial.

Durante todo o tempo que demorara a refeição, Kathleen pensou em Naomi, tentando conciliar a beleza dela com a grosseria que demonstrava e tentando também separar a sensualidade da doença. Imaginou se os homens, ao tomarem aquele corpo voluptuoso, tinham qualquer consciência da destruição que existia por baixo da superfície. Se a oportunidade se deparasse, Paul tomaria o corpo de Naomi? Gozaria com ela? Ou sentir-se-ia acabrunhado por tanta desfaçatez? Evidentemente que o sexo era em Naomi uma aptidão. A sedução do seu corpo e a destreza podiam fazer esquecer tudo o mais. Impulsionado pela luxúria, o homem deixava de ser um animal sensitivo, perceptivo, racional. Quando seguia naquela senda, Boynton era capaz de violentar um corpo. Havia um termo médico para tal doença. Podia associar-se-lhe um nome: Boynton, sim, mas não Paul. Não, Paul nunca gozaria com Naomi - Ele preferiria uma mulher que fosse sexualmente limpa, ordeira, uma mulher comedida. Como ela, Kathleen, claro. Não, não como ela, porque era o pólo oposto a Naomi, uma frieza física que também era uma espécie de doença, muito embora menos evidenciada e vergonhosa. Quem então que fosse limpa, ordeira, comedida? Quem, que a essas qualidades juntasse a normalidade sexual? Teresa?

Sentada no sofá, com o cigarro por acender entre os dedos, Kathleen considerou a união de Teresa Hamish com Paul. A pretensa intelectualidade de Teresa podia constituir um aborrecimento, mas sem dúvida que ela era atraente, era uma senhora.

Teresa Harnish tinha chegado cinco minutos antes da hora marcada, e nesse momento já passavam dez minutos. A preocupação começou a invadi-la, e logo pensou que talvez o jovem não tivesse recebido o seu recado. Mas mesmo no caso de o ter recebido, tomá-lo-ia seriamente, estaria livre, lembrar-se-ia dela?

Impaciente, começou a andar às voltas em redor do tanque das focas, situado junto à entrada do Paradise Park e, sem interesse de maior, pôs-se a observar os circunstantes. Havia uma senhora gorda, disforme, com um pequeno de calções pela mão, várias adolescentes de cabelos compridos e mais ou menos despidas, a menearem-se como mulheres da vida, um cavalheiro já idoso que atirava peixes, tirados de um saco de papel, às focas que nadavam no tanque. Escutou os latidos das focas, aborrecendo-se com aqueles grunhidos roucos e guturais.

Pensou se a leve e fresca brisa que vinha do oceano a teria despenteado. Mergulhou a mão na malinha e contemplou-se no espelhinho colocado na tampa da caixa de maquilhagem. Tudo estava no seu lugar. Tornou a colocar a caixa dentro da mala e olhou para os seus atavios, parecendo satisfeita com a inspecção. Vestira-se cuidadosamente para aquele encontro. Tinha uma saia de pique pregueada e uma blusa de seda branca, transparente, muito justa ao corpo, que quase deixava ver o belo soutien bordado. Não calçara meias, e nos pés tinha enfiados uma espécie de mocassins, quase umas sapatilhas de ballet, e tudo aquilo lhe dava o aspecto juvenil que ela desejava.

A escolha daquele vestuário obedecera também a uma deliberada provocação. Depois de ter levado Geoffrey à galeria, voltara a casa e procurara afanosamente o primeiro livro do Dr. Chapman, e lera que o homem está na posse da .sua maior potência sexual entre os dezoito e os vinte e oito anos (no fundo da página havia uma nota em rodapé que citava alguns testes feitos a demonstrarem que os atletas tinham comprovado possuir a maior dose de masculinidade e os artistas a menor). Teresa considerou que Krasowski não devia ter mais de vinte e cinco anos.

Voltando à realidade, olhou para o seu relógio de pulso de platina e viu que Ed já estava dezasseis minutos atrasado. Apesar disso, quase com infantil coqueteria, olhou atentamente a montanha--russa, a gente que saía da sala dos espelhos que disformavam o corpo (ouvia as gargalhadas lá dentro), o poço da morte, a visita à Lua e, então, vindo de algures, ele apareceu no foco da sua visão.

Vestia calções de caqui, uma camiseta às listas coloridas, que tinha impressas no peito as letras «Paradise Park», calçava umas sandálias e na cabeça usava um boné branco de marinheiro. O seu rosto era o de Apolo, e a vigorosa compleição atlética, com o largo e saliente peito e os poderosos bicípites, emprestavam-lhe o ar de Milo de Cróton.

Observou-o a parar junto do tanque e a olhar em redor à sua procura. Os olhos dele passearam duas vezes sobre Teresa, sem a reconhecer, e só quando ela avançou pareceu iluminado.

—        Olá! Não a reconheci logo.

—Talvez porque agora estou vestida, era costume ver-me sempre de fato de banho. Além disso, estando-se habituado a ver uma criatura em determinado lugar, quando se observa pela primeira vez essa pessoa num ambiente diferente, custa a reconhecer.

—        Pois é — disse ele. Estabeleceu-se um breve silêncio.

—        Estou contente por ter podido vir.

—        Claro. Jackie deu-me o recado.

As adolescentes de cabelos compridos e saias curtas continuavam a menear-se, dando agora estalinhos com os dedos a acompanharem a música que vinha dos altifalantes, e Ed olhou para elas.

—        Há algum lugar menos ruidoso onde possamos conversar? — perguntou ela, apressadamente.

—        Onde estejamos sentados?

—        Sim, seja onde for.

Ed olhou para o seu enorme relógio de pulso de aço.

—        A verdade, minha senhora, é que eu só tenho meia hora para almoçar, o velho Simon Legree não gosta que eu entre tarde ao serviço, de modo que talvez seja melhor que vá comendo enquanto a senhora fala.

—        Também não me importava de comer qualquer coisa. Há aqui um restaurante?

—        Um par deles muito luxuosos. Mas a verdade é que não estou disposto a «entesar» em qualquer deles.

—Adorava poder convidá-lo.

—        Eh, por quem me toma? Não gosto que sejam as mulheres a pagar.

Teresa sentiu uma onda de prazer pela masculinidade demonstrada por Krasowski.

—        Então vamos a qualquer lugar que você queira. Posso tratá-lo por Ed?

—Toda a gente me trata assim—fez um gesto com a cabeça em direcção ao passeio principal.—Tuffy faz os melhores cachorros do Park. Vamos.

Apressou-se a acompanhar as grandes passadas do gigante, tendo por vezes que dar algumas corridinhas para se manter a seu lado. Sentia-se orgulhosa e quase possessiva daquele musculoso bárbaro.

Durante o caminho não foi pronunciada uma palavra, só quando chegaram em frente do enorme balcão de madeira, muito asseado, com os seus quatro bancos altos, é que Ed disse, apontando para o ambiente:

—        É aqui mesmo.

Teresa trepou para um dos bancos, enquanto Ed, sem esforço, se escarranchava noutro, ao lado dela, ao mesmo tempo que assentava uma palmada no balcão.

—        Eh, Tuffy!

Por detrás do tabique de separação apareceu um velhote desdentado que usava um ridÍGulo barrete de cozinheiro, um avental branco e exibia uma âncora tatuada num dos braços.

—        Olá, Rams!

—        O que é que estavas a fazer lá dentro, Tuffy, a enterrar dinheiro?

—        Tenho mais que fazer à massa.

—        O que é que a senhora quer? — perguntou Ed Krasowski, voltando-se repentinamente para Teresa.

—        O mesmo que você.

—        As especialidades da casa — disse Ed, piscando o olho. — Tuffy, dois cachorros, sopa, tudo o que houver de melhor no prato do dia.

Teresa observou o jogo de músculos dos braços de Ed, as saliências que eles iam marcando por baixo da pele queimada pelo sol, à medida que dispunha palitos em cima do balcão num jogo curioso.

—        Você vai permanecer a trabalhar aqui durante muito tempo?

—        Talvez durante dois meses. Até que recomecem os jogos.

—        Gosta disto?

—        É-me indiferente — disse ele, encolhendo os ombros.

—        O seu amigo contou-me que você trabalha numa das barracas. Qual é?

—        No bowling.

—        Qual é o seu serviço?

—        Nada de importante. Levanto os paulitos, apanho as bolas. Jogo com as damas e com as crianças. É uma maneira de ganhar algum dinheiro recebendo boas gorjetas.

—        Penso que deve conhecer pessoas interessantes.

—        Nem por isso.

Ouvindo as suas monossilábicas respostas, Teresa apreciava aquela quase afasia do homem de acção. A mudança era estimulante, divertida. Quantos anos tinha ela perdido a ouvir palavras re-buscadamente cultas? Escutando durante todos esses estúpidos anos as intrigazinhas de tantos homens efeminados? Deitou um intenso olhar a Ed. O que é que Napoleão tinha dito? Voilà un homme!

Os cachorros foríiam dos dois lados das extremidades dos pãezinhos redondos, e eram acompanhadas por cebolinhas de conserva e muita mostarda. Teresa agarrou na sua parte da refeição, atónita, e teve que olhar para Ed.

Ela petiscava, enquanto ele mastigava furiosamente como se fosse perseguido pela maior fome do mundo.

Mesmo com a boca cheia, e passadas as primeiras mastigadelas em silêncio, Ed voltou-se para ela.

—        Jackie disse-me que a senhora tinha um assunto pessoal a discutir comigo.

Teresa teve um gesto de assentimento com a cabeça, espantada pelo sulco que os dentes dele continuavam a abrir no cachorro. Até há pouco parecera-lhe possível fazer uma proposta romântica dentro daquilo que tinha planeado, uma proposta que tecesse o alto ideal de um acasalamento entre os dois, fundamentado nas evidentes razões que havia criado elaborada-mente. Porém, os cachorros tinham tornado absolutamente impossível uma confissão realista e ao mesmo tempo cheia de romance. Como é que os amores de Isadora e Essinine podiam ter florescido no meio daquela monstruosa parada de salsichas e daquela cerveja barata?

Todavia a proximidade dele era uma coisa que a enlouquecia. A magnífica coisa tinha que ser mantida viva. Havia que arranjar outra maneira.

—        Observei-o... enquanto andava pela praia...

—        Pensei que estivesse sempre atenta à leitura.

—        Claro que também lia. Você não costuma ler?

—        De vez em quando. Mas não livros. Demoram muito tempo a consumir. O meu treinador anda sempre atrás de mim e não me consente que perca tempo; além disso, fartei-me de livros na escola. Tudo o que agora consigo ler são algumas revistas. Mas voltando à praia...

—        Observei-o a treinar-se. Você é uma pessoa extremamente ágil. Tem um corpo excelente para os exercícios físicos.

—        Mantenho-me em forma — admitiu ele, com indisfarçável orgulho.

—        Pois bem, foi isso que me levou a desejar tornar a encontrá-lo — Teresa pôs de parte o ridículo cachorro e olhou-o abertamente.

Sou uma artista, uma excelente artista — disse ela, quase acredh tando naquela patranha — e, desde o momento em que o vi, disse para com os meus botões que gostaria de o pintar. A testa dele enrugou-se com o esforço de pensar.

—        Pintar-me? Quer dizer que me faria o retrato?

—        Dúzias de retratos — respondeu ela, entusiasticamente. — Como estava a dizer, observei-o na praia e vi que você era um ser humano possuidor de muitas facetas admiráveis. Gostava de as conhecer a todas. Desejava que o mundo o conhecesse como um deus grego, como um atleta da velha Olímpia, como um imperador romano, como um gladiador. — Teresa tinha ouvido várias vezes Geoffrey falar naqueles termos, não precisamente assim, mas com ligeiras variantes, e estava certa de que as suas expressões eram absolutamente correctas.

—        Espero que consinta em posar para mim.

—        Nunca tinha pensado nisso. Para quem são as pinturas?

—        Para mim própria. Para exposições. Talvez algumas venham a ser reproduzidas em certas revistas ou livros.

—        Isso leva muito tempo?

—        Não, apenas uma ou duas horas por dia de pose.

Ed acabou com o cachorro e limpou a boca a um guardanapo de papel.

—        Não sei bem... Penso que não tenho muito tempo para isso. Tenho que me ocupar com este trabalho na feira, com os treinos e, claro, um homem também precisa de descansar um bocado.

—        A pintura será para si um motivo de prazer e repouso.

—        Não era isso que eu queria dizer.

—        Mas afinal a que é que você chama repousar?

—        Tomar algumas cervejas com os compinchas, ir a um cinema e... bem, divertir-me um bocado.

—        Esse divertir significa raparigas?

—        Exactamente.

Os lábios dela comprimiram-se fortemente um contra o outro. Naquele momento desejava abaná-lo, gritar-lhe aos ouvidos: eu sou as raparigas, olhe para mim; todas as raparigas, todas as mulheres, a melhor de todas, a melhor que você poderia encontrar, sou atraente, visto bem, tenho espírito, sou culta, tenho uma enorme vivenda em The Briars, sou desejável, sou todo o divertimento e prazerque se pode encontrar. Mas contemporizou:

—        Bem, compreendo tudo isso, mas estou convencida de que você nem sabe o bom desporto que o facto representará.

—        Não tenho a certeza — disse ele, indeciso.

Estavam indicadas as medidas desesperadas. Era preciso premer o botão das emergências.

—        Evidentemente que não espero que você me sirva de modelo à borla.

Os olhos dele levantaram-se agressivamente, e Teresa apres-sou-se a acrescentar.

—        Disse ao seu amigo que desejava vê-lo por causa de um negócio. Pois bem, quanto é que você ganha na feira?

—        Oito dólares por semana.

—        Pagar-lhe-ei vinte dólares por cada... cada sessão em que posar para mim.

—        Por um par de horas?

—        Exactamente. Os lábios dele rasgaram-se num sorriso de orelha a orelha:

—        Minha senhora, o negócio está fechado. Houve dentro dela alguma coisa que ficou paralisada. Teresa não tinha desejado que as coisas seguissem aquele rumo, mas agora a sorte estava lançada, ele tinha respondido à primeira oferta. Afinal, haveria o encontro privado, e isso era tudo quanto desejava. De repente viu que não poderia esperar mais, tinha que resolver o caso de uma vez para sempre.

—        Belíssimo. Quando é que poderemos ter o nosso primeiro... encontro?

—        A senhora é que escolhe.

—        Amanhã, às onze horas?

—        Amanhã não estou livre até às cinco.

Era ainda uma longa espera. Mas não havia outro remédio.

—        Posso encontrar-me consigo no seu quarto às cinco e meia — abriu a mala de mão e tirou um lápis e uma agenda, onde costumava apontar os seus aforismos. — Escreva aqui a sua morada.

Krasowski escreveu o seu endereço, devolveu-lhe o lápis e a agenda e deitou uma olhadela ao relógio de pulso.

—        Tenho que voltar para os trabalhos forçados.

Teresa saltou do banco. O atleta ficou hesitante, olhando-a de forma especial.

—        É engraçado — disse ele.

—        O quê?...

—        A senhora não parece uma pintora.

—        Não? Então o que é que pareço?

—        Bem, na verdade não sei dizer.

—        Ora... quer então significar na sua que eu pareço apenas; uma mulher, será?

—        Sim, pouco mais ou menos isso.

—        Você é muito gentil. Fico ansiosa pelo dia de amanhã — disse ela, sentindo o coração a palpitar de alegria.

—        Okay. Lá estaremos.

Teresa ficou a vê-lo afastar-se, bamboleante, magnífico nas suas massas musculares. Imaginou o que iria acontecer, o prazer antecipado da coisa e estremeceu. Observou depois a montanha-russa, os carros que passavam vertiginosamente nos revolventes carris, e o ruído que faziam parecia-lhe uma música divina. Algures escuta-va-se um som, como que um canto de sereia no mar Jónio. Claro que não se sentia como a Pompadour ou Diana de Poitiers, mas sentia-se mais mulher, muito mais mulher do que em qualquer outra altura da sua vida, e era bom sentir-se assim, bastava aquela sensação.

Pelas cinco e um quarto, embora a claridade ainda fosse muito intensa, o sol já não batia de chapa nas janelas da cozinha; Kathleen abandonou o romance policial e resolveu preparar um bocado de chá.

Estava naqueles preliminares quando o telefone tocou. Apres-sou-se a levantar o auscultador com medo de que a campainha fosse perturbar o sono de Naomi.

—        Estou...

—        Naomi? — a voz era fresca e juvenil.    

—        Sou uma amiga de Naomi. A Sr.a Ballard.

—        Kathleen?

—        Sim.

—        É Mary McManus. O que é que está a fazer aí?

—        Olá Mary. Estou... bem... Naomi está... está de cama com gripe. Estou a tomar conta dela até chegar a enfermeira.

—        Espero que não seja nada de grave.

—        Não, não é nada de grave.

—        As melhoras de Naomi. Tinha prometido encontrar-me, com ela, mas esta noite o papá oferece um churrasco a umas pessoas conhecidas. Norman não percebe nada de carnes grelhadas, e, como temos comida de sobra, pensei que talvez Naomi não se importasse de fazer companhia. Mas agora fico aborrecida por ela estar doente.

—        Não é nada de cuidado. Dar-lhe-ei o seu recado e estou certa de que ficará contente por se ter lembrado dela.

—        Amanhã passo por aí. E você como tem passado?

—        Bastante doméstica.

—Como?

—        É um sinónimo de vegetar. Não, estou excelente, Mary. Telefone-me uma destas tardes para tomarmos chá juntas.

—Será um prazer. Telefonarei. Diga a Naomi que lamento muito. Ela vai perder um bom bife grelhado. Bem, tive muito prazer em ouvi-la, Kathleen. 'Bye.

—        Goodbye, Mary.

Depois de ter deitado água quente no bule e retirado o saquinho da aromática bebida, Kathleen pensou em Mary McManus. Decidiu que Mary era um argumento saboroso para pensar na beleza. O extraordinário vigor e o maravilhoso entusiasmo juvenil de McManus faziam-na sentir-se velha. Supunha ser mais velha do que Mary apenas uns seis ou sete anos e, contudo, sentia-se, no íntimo, muito mais velha e cansada. Pensou que só tecnicamente podia oferecer a Paul uma estrutura física com menos de trinta anos. Por outro lado, Mary podia ofertar a um celibatário o milagre da ressurreição. Era bastante curioso que no domingo anterior a jovem tivesse estado no clube de ténis com o pai e não com o marido. Bem, que se havia de fazer, as rapariguinhas são por via de regra muito ligadas aos pais...

Mary McManus deu alguns passos no acimentado pátio onde o pai estava atarefado a voltear a manivela do grelhador de carvão. Ao lado estava a mesa portátil, onde se estadeavam os majestosos bocados de carne em sangue, separados por secções de papel encerado, formando um alto monte. Mary contemplou todo aquele aparato e depois sentou-se na beirinha da cadeira de baloiço.

—        Pode meter um dos bifes no frigorífico. Naomi não pode vir.

—        Tens a certeza de que Norman não descerá? — perguntou Harry, sem se voltar.

Mary sentiu-se irritada com a maneira como a pergunta era feita, sentia-se à beira de uma crise de nervos.

—        Não se trata de descer ou não descer; Norman não se sente

bem-disposto. O pai nunca se sentiu assim?

Harry voltou-se bruscamente e fitou-a com severidade.

—        Não te parece que estamos esta noite um bocadinho arredios da semântica?

—        Estava precisamente a pensar que o papá ia dizer isso mesmo — hesitou. — Desculpe a minha atitude. Norman não pode vir porque chegou a casa com uma enorme dor de cabeça. O pai trouxe-o no seu automóvel e sabe muito bem que ele não estava nos seus dias felizes. Tinha muito gosto em estar presente à churrascada, mas a verdade é que não se sente melhor e não quer ser a ovelha ranhosa da festa.

—        Afigura-se-me que ultimamente são dores de cabeça demasiado frequentes para um jovem saudável e forte como ele. Porque é que não o levas a um médico?

—        Norman insiste em dizer que não é nada. As dores de cabeça passam.

Harry Ewing ficou por momentos absorto em pensamentos íntimos e, distraído, beliscou o lábio inferior. Depois limpou as mãos ao cómico avental de cozinheiro que usava e encaminhou-se para a cadeira de baloiço.         

—        Ele contou-te que tivemos hoje uma conversa?          

—        Não... — respondeu Mary, erguendo as sobrancelhas.

—Tivemos. Foi acerca do seu novo lugar.

—        Novo lugar?

—        Não te lembras? No domingo disse-te que estava a elaborar algo de interessante para ele.

Mary fez um sinal de assentimento.

—        Pois bem, decidimos espevitar essa gente de Essen sobre o caso das patentes. Vamos apelar para os tribunais alemães. No próximo mês vou enviar para a Alemanha o teu marido e Hawkins.

—        Para a Alemanha? — Mary bateu as palmas de contente. É um dos países que eu sempre desejei conhecer.

—        Não, Mary — disse apressadamente Harry Ewings —, tu não vais. Norman estará afogado em trabalho até ao pescoço, não há lugar para esposas. Disse a Hawkins que não podia levar a sua patroa, e agora não posso demonstrar parcialidade no respeitante a Norman por ele ser meu genro. Seria desmoralizante, um mau precedente.

O contentamento de Mary tinha dado lugar a uma sombria preocupação.

—        Quanto tempo é que vai demorar essa viagem?

—        Quem sabe? Os assuntos dos tribunais são coisas arrastantes, e haverá um mundo de preparativos a fazer com os nossos representantes alemães...

—        Quanto tempo? — insistiu Mary.

—        Oh... Quatro meses. Seis, quanto muito.

—        Sem mim? — o tom de voz dela era amargo. —Toma atenção, Mary.

—        O que é que Norman disse?

—        Bem, tenho que admitir que ele não considerou a viagem com nenhum prazer. Desejava ocultar-te este caso, mas o facto é que Norman me desapontou. Tive que lembrar-lhe que, família ou não família, ainda é meu empregado. Não deve haver tratamentos de excepção. Fiz-lhe ver que se trata de um negócio importante e que aguardava a sua colaboração total.

—        Mas ele disse que ia?

—        Julgo melhor que vá. Norman disse-me que tinha que falar contigo. Sejamos sensatos, Mary. Espero que lhe faças ver as coisas como elas são.

Mary começou a balançar o sofá, olhando para o pai de uma forma inédita.

Harry Ewing viu-lhe o olhar e desviou o seu, dizendo:

—        Eh, tenho que voltar para os bifes — e começou a afastar--se.

—        O pai pretende afastar-nos, não é verdade?—a voz de Mary não se mostrava amarga, era justamente uma constatação.

—        Estarás doida?

—        Penso que o pai sempre desejou que ele falhasse...

—        Mary! 

—        Sim, é verdade.

Mary levantou-se e dirigiu-se para a porta de casa.    

—        Onde é que vais?   

—        Vou dar a minha resposta a Norman.    

Foi subindo as escadas vagarosamente, dando tempo a poder ajustar-se à nova decisão. Era como voltar de um mergulho ao fundo do mar, libertando-se pouco a pouco da pressão submarina.

Chegada ao cimo das escadas, abriu a porta do quarto e, depois de entrar, fechou-a cuidadosamente à chave.

Norman estava estendido em cima da cama, de costas, com as mãos cruzadas atrás da cabeça, fixando um ponto determinado do tecto. Ao ver entrar Mary, que se postou aos pés da cama, olhou-a com ar interrogativo.

—        Como é que vai a tua dor de cabeça?   

—        Nunca tive qualquer dor de cabeça.       

—        Pensava isso mesmo, Norman. O pai contou-me tudo.

—        Deutshland úber alies?''

—        Úber úlles, não — respondi-lhe.

—        Não úber de nós.

Mary tirou os sapatos, atirou-se para cima da cama e ajeitou--se até ficar ao lado do marido.

—        Amo-te, Norman.

—        Idem, aspas.

 

1 - Em alemão no original significa A Alemanha acima de tudo (N. do T.)

 

—        Amo-te com todo o meu ser.

Norman McManus perscrutou atentamente o rosto da mulher.

—        Norman...

—        Que é?

—        Quero que tenhamos um bebé.

—        Quando é que isso sucedeu? — perguntou ele, levantando--se sobre um cotovelo para a contemplar melhor.

—        Não me perguntes — ela tentou sorrir —, sei apenas que aconteceu. Quando o bebé estiver crescidinho, poderemos viajar.

—        Com toda a minha alma.

Os braços de Norman abriram-se e Mary aninhou-se neles, poisando a cabeça no peito do marido.

—        Quando? — perguntou ele, suavemente.

—        Agora mesmo, Norman, agora mesmo.

Miss Wheathley, a ampla mulher com gestos masculinos metida num impecável uniforme de enfermeira, aparecera às seis e vinte, e Kathleen apressara-se a ir para sua casa a fim de ajudar Ibertine, dar de comer a Deirdre e vestir-se para jantar.

Paul fora-a buscar às oito horas e, em vez de irem comer hambúrgueres, tinham-se dirigido para leste, para um restaurante italiano que ficava nas imediações de Los Angeles. Kathleen tinha--se lembrado do pequeno e encantador restaurante por lá ter ido uma vez com Ted Dyson.

Àquela hora o local, acabado o período de trabalho intenso na grande metróple, era sossegado. O restaurante tinha as clássicas mesinhas iluminadas por candeeirinhos parecidos com velas, e a decoração, com as garrafas de chianti nos seus cestinhos de palha, conferia um arde intimidade ao ambiente.

Tinham comido minestrone e outras especialidades italianas, tudo acompanhado dos deliciosos pãezinhos, fabrico da casa, e regado com abundante quantidade de vinho tinto. Haviam falado durante muito tempo de Paris (que Kathleen tinha visitado com a família no período entre a formatura no liceu e o ingresso na universidade, e Paul durante os fins-de-semana, enquanto realizava o seu trabalho em Berna), ela recordara os cais do Sena e os maravilhosos fins de tarde no Verão, ele as cançonetistas do Lapin Agite, e ambos a imponência castiça da Basílica do Sacré-Coeur.

Depois haviam regressado a The Briars, guiando vagarosamente, quase relutantes, pela calma noite embalsamada pelo perfume intenso das árvores e flores, quase silenciosos, conscientes de estarem tão perto um do outro e, não obstante tão afastados.

Nesse momento estavam parados na escuridão do caminho privativo que levava à vivenda de Kathleen.

Paul contemplava-lhe o delicado perfil, os lábios carnudos e apetitosos, os seios altos e firmes, que pareciam querer saltar da blusa, as coxas substanciais e delicadas, moldadas pela saia de seda.   

Kathleen voltou o rosto, fitando-o intensamente.

—        Kathleen — murmurou ele.

—        Sim — respondeu ela, quase inaudivelmente.

O momento foi compreendido por ambos. Sem se deter a pensar nas consequências, Paul puxou-a para si e, quando ela fechou os olhos e abriu os lábios, premiu a sua boca contra a dela. O beijo foi longo e emotivo. Por momentos Paul libertou-a, ambos conscientes da necessidade de respirarem, e quando ele voltou outra vez a atraí-la a si, uma das mãos deslizou-lhe para um seio, afagando-o. Antes que ele pudesse retirar a mão, porque o movimento fora acidental, Kathleen empertigou-se e libertou-se do amplexo. A intimidade terminara.

—        Kathleen, eu não fiz isso propositadamente.

—        Está bem.

—        Não sei como foi... queria tê-la o mais perto possível de mim.

Que vergonha tê-lo forçado a apresentar tais desculpas! A súbita cólera sentida voltou-se contra si própria. Ali estava uma mulher adulta, de vinte e oito anos, viúva, convidando à ternura, ao amor, desejando aquilo de um homem com quem sempre sonhara em todos os seus sonhos de adolescente, mas ao mesmo tempo reagindo ao facto, comportando-se de uma maneira que nunca teria sido adoptada mesmo por uma virginal adolescente. Não havia dúvidas possíveis, como mulher adulta era uma fraude, um malogro, e Paul ficara a conhecê-la nesse aspecto. Não havia recuperação de qualquer ordem. Era ela, e não Naomi, quem precisava de um psicanalista. O que é que Ted Dyson lhe havia chamado?

Olhou para o rosto perturbado de Paul Radford, sentindo-se cada vez mais envergonhada.

—        Paul — murmurou ela, com dificuldade —, não me importei...

As luzes do vestíbulo da residência acenderam-se e os olhos de ambos reagiram àquela repentina e inesperada claridade. Kathleen debruçou-se à janela. A porta estava entreaberta e divisava--se a cabeça de Albertine a espreitar.

—        Mrs. Ballard?

—        Há alguma novidade? — perguntou Kathleen?

—        Fizeram duas chamadas urgentes para o senhor Paul Radford. Uma delas ainda não há cinco minutos.

Paul inclinou-se para a janela, quase encostando o rosto ao de Kathleen.

—        Quem é que me telefonou?

Albertine consultou o livrinho de apontamentos que tinha na mão.

—        O senhor Van Dooten.

—        Horace! — exclamou Paul.

—        Ele disse para estar com atenção à sua chegada e para lhe dizer que telefone para o motel.

Paul franziu a testa.

—        Deve haver qualquer novidade.

Saíram apressadamente do carro, precipitando-se para a porta da vivenda.

Na sala de visitas, Paul marcou o número do motel e perguntou por Van Duesen. Esperou uns segundos e, logo a seguir, ouviu a voz de Horace.

—        Está lá?

—        Fala Paul.

—        Graças a Deus! Naomi desapareceu; não sabemos o que lhe aconteceu.

—        Não estou a compreender.

—        Trata-se de Naomi... fugiu, desapareceu. Por volta das nove horas a enfermeira foi à casa de banho, diz ela que, quando voltou para o quarto, Naomi tinha desaparecido. O automóvel dela também não está na garagem.

—        Então você não estava lá em casa?

—        Não. Aí é que reside o problema. Chapman ocupou-me até às nove e meia. Quando me consegui libertar, telefonei para casa de Naomi para lhe perguntar se precisava de alguma coisa que eu lhe pudesse levar. Foi nessa altura que me deram a novidade. Parece que posso compreender que Naomi não ficou nada satisfeita por eu não estar ao pé dela quando acordou. Se calhar foi capaz de julgar que eu a tinha abandonado.

—        Não se ponha com suposições, bem sabe que ela agora não está na posse do seu raciocínio, sente-se perturbada.

—        É isso justamente o que me preocupa. Nem sequer sei por onde hei-de começar a procurá-la. Talvez ela tenha ido a casa de algumas amigas. Pelo menos tenho esperanças nisso. Pergunte a Kathleen quais são as pessoas com quem ela mais se dá.

—        Muito bem.

De repente algo mais ocorreu a Paul.

—        Existe outra possibilidade.

—        Qual?

—        Não tenho a certeza. Falaremos logo que nos encontrarmos. Preste atenção, Horace, sente-se e acalme-se. Em breve estarei ao pé de si e depois procurá-la-emos juntos.

Após ter desligado, Paul explicou a Kathleen tudo o que tinha acontecido. Kathleen não conhecia os amigos mais íntimos de Naomi, a não ser Mary McManus, se é que Mary era sua amiga íntima. Imediatamente foi feito um telefonema para a residência dos Ewing. Foi Harry Ewing quem atendeu. Muito circuns-pectamente, disse que Mary não podia atender por estar a dormir, e que ele não sabia nada sobre Naomi Shields. Kathleen não se deixou desencorajar, lembrou-se que Naomi, em certa ocasião, mencionara que o pai morava em Burbank. Ligou para as informações e soube que havia vários Shields na lista de Burbank. Tomou nota de todos os números e, à segunda chamada que fez, acertou com o progenitor de Naomi. O homem não se mostrou nada compreensivo nem agradável, disse entre resmungos que há meses que não avistava a filha.

Depois daquele revés, Kathleen teve uma nova ideia. Telefonou para a agitada e defensiva Miss Wheatley e pediu-lhe que procurasse na cozinha ou no quarto de cama de Naomi uma agenda de apontamentos com os números de telefones mais imediatos. Cinco minutos depois, a perturbada enfermeira voltou a estabelecer ligação, respondendo que não conseguira encontrar nenhuma agenda ou livro de endereços telefónicos. Com firmeza, Kathleen orde-nou-lhe que se mantivesse no seu posto para o caso de Naomi regressar e recomendou-lhe que, se tal acontecesse, se pusesse imediatamente em contacto com Horace Van Duesen na Villa Neapolis.

Durante todas estas demarches, Paul manteve-se inquieto a passear de um para outro lado do aposento.

Por fim, Kathleen poisou definitivamente o auscultador e vol-tou-se para ele.

—        Bem, penso que se fez tudo o que havia a fazer.

—        Não, ainda existe mais uma possibilidade—respondeu Paul, de modo sombrio.

—        Qual?

—        O clube nocturno onde ela esteve a noite passada. Está situado no Sunset Boulevard. Horace sabe onde é, ou, pelo menos, sabe o nome.

—        Mas por que diabo é que ela havia de voltar a tal lugar?

—        Parece lógico o seu desejo se ela alimenta quaisquer ideias de matar esses homens que a possuíram. Ou, quem sabe, talvez pretenda voltar à experiência anterior para ver se morre de uma vez. Claro que se afigura uma coisa anormal, mas, no estado em que ela está, a coisa tem a sua lógica. Não compreende? É a lógica da perversidade. O desejo de autodestruição.

—        Não posso acreditar nisso.

—        Ela despreza-se, Kathleen — insistiu Paul. — Seria essa a última flagelação. Seja como for, em breve saberemos a verdade.

Kathleen seguiu-o até à porta da sala.

—        Paul...

Com a mão no puxador, ele ficou à espera. Kathleen quereria explicar-lhe aquele instante no automóvel, dizer-lhe que não se tinha importado, que se preocupava com ele, mas, nesse momento, todas as coisas pareciam desfocadas e triviais ao lado do desaparecimento de Naomi.

—        Paul, espero que a encontrem. E tenha cuidado consigo.

Paul acenou gravemente.

De súbito, cegamente, Kathleen correu para ele, tomou-lhe o rosto entre as mãos e ergueu-se em bicos de pés para o beijar. Mas também aquilo devia ser um movimento errado, reter um homem preparado para uma acção de emergência... o facto é que ela não tinha a menor ideia do que havia de fazer, estava tão perdida como Naomi. Por um instante, quando os lábios de Paul encontraram os seus, Kathleen pensou em agarrar-lhe nas mãos e colocá--las sobre os seios. Desejava proceder assim para lhe demonstrar que já tinha esquecido o anterior orgulho, a manifestação insólita, para lhe provar que era tão emotiva e tão quente como qualquer outra mulher. Mas o que mais a surpreendeu no caso foi o domínio da sua emoção: ela desejava aquilo porque a carne dos seus seios estava ansiosa pelo toque dele. Sentia o montar do desejo, um desejo violento, como nunca antes experimentara mas havia uma espécie de paralisia que a não deixava mover-se como a carne lhe pedia. Nesse momento, já o leve beijo terminara e era demasiado tarde.

Sentiu-se triste por ter demorado Paul.

—        É melhor apressar-se. Não se esqueça de me informar dos acontecimentos.

—        Telefono-lhe de manhã. Sabe que mais? Você é a rapariga mais maravilhosamente linda que encontrei em toda a vida.

E foi-se embora.

Kathleen permaneceu encostada à ombreira da porta, pensando: «A minha beleza só prevalece à superfície, nas profundidades do meu ser sou uma criatura monstruosa. É impossível que me possas contemplar bem cá no âmago. No íntimo sou um icebergue, um macilento fantasma encerrado numa urna de gelo».

Sentada à mesa do barulhento e enfumarado clube nocturno, apenas meio consciente das sombras dos dançarinos que pejavam a pista, Naomi Shields admirava-se de não estar bêbeda.

Havia consumido seis, sete, oito copos de gim, e o seu cérebro estava desanuviado, claro; tinha a certeza da sua sobriedade. Verdade que lhe passara aquela dor pungente dos pontos, e o pesar pela ausência de Horace também tinha emudecido. Porém o seu desejo não mudara de opinião: queria serempalada, pregada numa cruz, sacrificada numa cama, sangrar até morrer, até, finalmente, encontrar a paz.

A música cessara, e nesse momento erguia-se acima de tudo a irritante cacofonia das vozes humanas. Uma sombra alta projec-tou-se entre ela e a luz, uma sombra que por fim deslizou para a cadeira vaga que havia ao seu lado. Ali estava a bem-amada cara picada das bexigas. O sorriso em que os lábios não participavam. Ali estava o violador, o bem-amado Violador, para a envolver nos seus fumos de esquecimento.

—        Como é que está a minha queridinha? — perguntava a voz melífluadeWash.

—        Estou cansada de estar à espera — respondeu Naomi.

—        Não queres esperar?

—        Não. Tem de ser já.

Wash abanou a cabeça admirativamente. —Tens qualquer coisa de especial, gatinha.

—        Já — repetiu ela.

—        Sabes, começas a incitar-me. Talvez a coisa se possa arranjar. Queres na verdade o velho Wash, não é?

Naomi queria percorrer todos os passos do calvário, a purificação pela dor e o nada final da paz. Fez um sinal afirmativo com a cabeça.

—        Okay, pequena, apanhaste-me—Wash levantou-se. — Mas não te quero só a ti — disse Naomi. — Quero todos.

—        Cristo! — proferiu Wash, assobiando entre dentes.

—        Todos... — insistiu ela.

—        Está bem, queridinha, está bem. Vamos embora daqui. O espectáculo vai desenrolar-se lá fora.

Ajudou-a a levantar-se e guiou-a pela escorregadia pista de dança. Quando passaram perto do estrado da orquestra, onde vários rapazes descansavam, fumando o seu cigarrinho dos intervalos, Wash levantou a mão e, formando um círculo com o polegar e o indicador, fez sinal de que tudo corria bem, que a presa estava segura.

Saíram por uma porta lateral e ele conduziu-a para o parque de estacionamento que ficava junto da cozinha.

—        O meu carro está ali nas traseiras — disse Wash.

—        Onde é que me vai levar?

—A lado nenhum, pequerrucha. Tenho um magnífico estofo na retaguarda que pode servir perfeitamente de cama.

Naomi ouviu o ruído de um motor atrás e parou a olhar a área iluminada ao lado da ruela. O carro era um MG. O porteiro mantinha a porta aberta enquanto uma rapariga saía. O rosto dela, mesmo àquela distância, era claramente visível. Era uma jovem, uma jovem envolta na frescura do tafetá do vestido de noite, com flores no pequeno bolero de abafo, provavelmente uma camélia, e o homem que a acompanhava também era jovem e esbelto. Tinham todo o aspecto de pessoas decentes e limpas que procuravam divertir-se. Mais tarde, à porta dela, beijar-se-iam e, no dia seguinte, a pequena edificaria uma casinha de sonhos, uma vida de sonho, um universo de sonho e felicidade.

—        Vamos embora, gatinha. Estou cheio de pressa.

Naomi fixou a hedionda cabeça de morto e subitamente sentiu um espasmo de nojo subir-lhe à garganta. Ela estava viva, era uma entidade que vivia, e tudo, tudo à sua volta lhe falava de vida, uma vida fresca, limpa, vida que valesse a pena ser vivida, uma vida a que ela realmente pertencia, não ao reino de sombras e porcaria daquele esqueleto que marchava a seu lado.

—        Não vou — disse ela.

—        Vamos embora.

—        Não. No carro, não. Quem é que você pensa que eu sou? Naomi girou sobre si mesma e tentou afastar-se, mas a mão de Wash agarrou-lhe o braço e ela cambaleou. O sorriso sem lábios tinha desaparecido da face dele.

—        És a minha rapariga e vais comigo para onde eu quiser. Por isso não comeces a arranjar fitas.

Dignidade. Dignidade.

—        Afaste-se de mim — disse ela, com veemência.

—        Escuta, queridinha, nunca deixarei que nenhuma prostitutazinha faça pouco de mim e se fique a rir. Acabaram-se as brincadeiras. Quiseste festa e vais tê-la, da melhor. Primeiro apanharás o velho Wash e depois os rapazes, todos os rapazes, como pediste. Não os avisei para nada, percebes?

—        Estou doente — disse Naomi. — Você não vai fazer mal a uma pessoa doente.

—        Ficarás doente de verdade, se continuares a fazer fitas.

Wash puxou-a violentamente contra si e arrastou-a, bem segura, para a esquina da cozinha, onde se via a massa sombria do automóvel. Em desequilíbrio, Naomi tentou resistir, tentou encontrar a voz que se lhe afogara na garganta contraída pelo medo. Acabou por cair de joelhos no chão. Wash obrigou-a a levantar-se, e a sua mão espalmou-se contra o rosto de Naomi.

—        Não, não, Wash... — soluçou ela.

A mão dele arrastava-a inexoravelmente para a escuridão, muito embora Naomi resistisse.

Repentinamente, vinda não sabia de onde, apareceu uma luz, bateu uma porta.

Wash deixou-a cair no chão e tentou levantar as mãos para se proteger, mas era demasiado tarde, o punho de Horace esmagou--se na sua cara. O soco enviou o músico para trás, batendo com as costas no guarda-lamas do automóvel, antes de escorregar para o chão. De novo Horace estava em cima dele. Atordoado, Wash tentou defender-se, ergueu as pernas grotescamente, mas, inexorável, a biqueira do sapato de Horace atingiu-o em cheio no queixo.

Na altura em que Wash conseguiu, com tremendo esforço, sentar-se no chão, já não havia ninguém junto de si. Apalpou a boca que sentia como uma massa sangrenta e depois olhou para a mão, que retirou cheia de sangue, e, num acesso de tosse, cuspiu o espesso líquido que o afogava juntamente com os bocados de um dente partido. Piscou os olhos, incrédulo. Tudo aquilo desabara sobre ele sem que ao menos pudesse ter gozado um bocadinho.

Quando Horace chegou junto do seu automóvel, o ataque de histeria de Naomi já tinha enfraquecido. Até então, tinha estado a abaná-lo desesperadamente, a chorar como uma perdida, com espanto do guarda do parque de estacionamento e de um casal que passava. Não podia pronunciar uma só palavra coerente.

Paul estava à espera deles, com a porta do carro aberta.    

—        Naomi está bem, Horace?

—        Penso que sim. Descobri-os lá atrás. Creio que tratei muito mal o tipo.

Horace ajudou Naomi a acomodar-se no banco da frente e sen-tou-se depois ao lado dela, amparando-a com o braço.

—        É melhor pormo-nos a andar—disse Paul. — Daqui a pouco temos o bando todo a morder-nos às canelas.

—        Penso que não. Um dos homens da orquestra disse-me para onde Naomi tinha ido por vinte dólares.

Mais tarde, quando já iam a atravessar a ampla estrada de Beverly Hills, depois de Naomi ter enxugado os olhos ao lenço de Horace e de ter assoado o nariz, pôde enfim falar.

—        Olha para isto — disse ela, apontando para as meias em frangalhos junto dos joelhos, como se aquilo fosse a coisa mais importante do mundo.

—        O que interessa é que estejas bem — disse Horace, carinhosamente.

—        Nunca me deixes, Horace! Não me abandones nunca, nunca...

—        Sossega, prometo que nunca te abandonarei.

—        Farei tudo o que disseres, tudo o que quiseres, tudo o que mandares. Leva-me a um psicanalista, leva-me para um centro de recuperação, para qualquer lugar onde possa curar-me. Quero ser uma criatura sã de corpo e de espírito, Horace. Preciso que me ajudes.

Van Duesen apertou-a bem contra o peito.

—        Querida, a partir de agora tudo vai correr bem. Há-de entrar tudo nos eixos, deixa isso ao meu cuidado.

—        E nunca mais pensarás, nunca mais te lembrarás do outro? — a voz dela era trémula de ansiedade.

Horace esboçou um sorriso.

—        Qual outro? — perguntou com estoicismo.

Depois de ter deixado Horace e Naomi, Paul regressou à Villa Neapolis.

Nesse momento, caminhando pela avenida orlada de palmeiras que levava à porta principal, o pensamento de Paul estava absolutamente absorvido por Kathleen.

Fora curioso, bizarro, o pequeno incidente no automóvel. Tão peculiar quanto o comportamento dela na primeira noite em que se haviam conhecido. Na verdade, uma coisa tão estranha como o beijo espontâneo e caloroso que ela lhe dera no momento em que ia a sair para se encontrar com Horace Van Duesen. E como parecia desfocada em tempo e espaço a história contada por ela por detrás daquele estúpido biombo das entrevistas! Tinha a certeza de não poder haver no mundo uma mulher com uma história sexual tão alinhadinha. Tudo o que Kathleen dissera tinha um cunho de incrível falsidade. Ou seria de falsidade crível? Era uma coisa que dependia essencialmente do ângulo em que o facto se considerasse. Do que não podia duvidar era que Kathleen lhe prestava atenção e de que também ele, à mais simples invocação da sua imagem, se sentia profundamente perturbado e excitado. Contudo, entre eles, erguia-se uma barreira inidentificável, tão real como o biombo que os tinha separado naquele dia da entrevista. Talvez que entre todas as mulheres e todos os homens se erguesse sempre um biombo semelhante, impedindo a intimidade total. Talvez que entre todas as mulheres e o mundo existisse sempre um biombo, talvez...

Na recepção, o empregado da noite, que se parecia com um jóquei aposentado, deu-lhe a chave do quarto e entregou-lhe um sobrescrito fechado.

Intrigado, Paul abriu o sobrescrito e encontrou lá dentro uma nota escrita a lápis, que dizia:

«Ackerman acaba de telefonar e dirige-se para cá. Estou ansioso por que você possa assistir a este encontro. Logo que chegar venha ao meu quarto, é urgente — G. G. C».

O relógio de parede da recepção mostrava o ponteiro pequeno quase na uma hora e o grande nas dez. Exactamente meia-noite e cinquenta minutos. Quereria o Dr. Chapman vê-lo a semelhante hora? Paul saiu da recepção, contornou a plácida piscina e subiu a escada de madeira de um dos edifícios. Junto da porta do Dr. Chapman parou e pôs-se à escuta. Ouviu vozes lá dentro. Bateu. Foi o próprio Chapman quem abriu a porta. E o roupão azul que envergava não lhe roubava às feições o tom de preocupação e a tensão que sentia.

—        Ah, Paul! Até que enfim. Estou satisfeito que tenha vindo

antes de a reunião acabar. Já conhece Emil Ackerman, pelo menos de tradição... — indicava o corpulento e majestoso Ackerman, e

seguidamente fez um gesto em direcção de um jovem, com rosto de colegial, muito penteadinho e de grandes olhos protuberantes, que estava sentado numa cadeira —, e este é o sobrinho do Sr. Ackerman, Sidney...

Paul atravessou o aposento e apertou a mão genial de Ackerman, dirigindo-se depois para o sobrinho, que fez uma tentativa para se levantar, com evidente esforço. Paul não o deixou completar o gesto e apertou-lhe também a mão.

—        Sente-se, Paul — disse o Dr. Chapman. — Estamos quase no fim da nossa conversa.

Paul foi buscar uma cadeira ao outro extremo do quarto e sen-tou-se junto deles.

—        Gosto de ter Paul comigo em tudo o que faço — dizia Chapman para o manobrador político. — Paul é um colaborador de julgamento excelente.

—        Talvez seja melhor pô-lo a par do que se passa, George — disse Emil Ackerman.

Chapman fez um sinal de assentimento.

—        Claro que sim — voltou-se para Paul. — Claro que sabe muito bem o profundo interesse que Emil devota ao nosso trabalho.

—        Sei muito bem — disse Paul.

Ackerman inclinou a cabeça num mudo agradecimento, enquanto o sobrinho, Sidney, coçava o cocuruto da cabeça, ao mesmo tempo que arreganhava os lábios num esboço de sorriso, pondo a descoberto os dentes amarelados.

—        De certa maneira, penso mesmo que Emil se nomeou a si mesmo meu representante na costa ocidental — frisou Chapman. — Seja como for, Paul, para encurtar a história, Emil mantém estreita vigilância sobre os nossos interesses, ao mesmo tempo que vigia também as actividades do seu sobrinho Sidney.

—        Tenho-o guiado em todos os passos que dá, tornando-lhe o caminho mais fácil — disse Ackerman.

—        Claro que sim, isso é coisa de que ninguém pode duvidar—respondeu o Dr. Chapman, num tom de admiração e reverência, voltando-se depois novamente para Paul. — Sidney é finalista de Sociologia na Universidade da Califórnia. Dentro de duas semanas acabará o curso, e a sua ambição é poder juntar-se ao nosso projecto. Emil pensa que a colaboração do sobrinho nos pode ser bastante útil.

—        Tenho a certeza disso — disse a voz categórica de Ackerman.

—Tenho tentado explicar—continuou Chapman, voltando-se outra vez para Paul — que os nossos quadros de pessoal estão cheios, temporariamente, claro. Mas também é evidente que não demorará muito tempo que não estejamos em plena expansão. Emil sabe muito bem a lista de pessoas que estão à espera de uma colocação no nosso pessoal, muitas são pessoas eminentes, notáveis cientistas com cadastros mais que excelentes, mas, contudo, tal como Emil já salientou, não devemos fechar a nossa porta aos cérebros jovens.

—        É a força dos recrutas que ajuda os generais a vencerem as batalhas — disse Ackerman, sentenciosamente.

—        Sem dúvida—concordou o Dr. Chapman. Depois para Paul:

—        Estive a fazer a Sidney a resenha das nossas operações, e fazer-lhe perguntas sobre a estrutura da sua formação — olhou irectamente para Sidney.—Talvez queira fazer-nos algumas perguntas?

Sidney empertigou-se na sua cadeira, cruzou as pernas, para e novo as descruzar, e coçou a cabeça em sinal de embaraço vidente.

—        Li os seus livros — respondeu Sidney.

—        Excelente — aprovou Chapman, paternalmente.

—        Tenho estado a pensar qual será o vosso projecto seguinte.

—        Ainda não o determinámos, Sidney. Temos vários planos em consideração. É possível que empreendamos a tarefa de um inquérito à maternidade... uma sondagem às mães.

—        O quê? Um inquérito a todas essas mulheres velhas?

—        Não é exactamente isso. Existem milhões de mães jovens. De facto, algumas mesmo muito jovens. Depois disso, também é possível que façamos uma sondagem aos homens casados.

—        Gostaria de estar ligado à sondagem sobre as mulheres — disse Sidney redondamente. Sorria, mostrando os protuberantes dentes amarelados.

—        É uma coisa normal, não é doutor?

A bonacheirona expressão social que brilhava no rosto do Dr. Chapman endureceu. O cientista mexeu-se, inquieto, na sua cadeira.

—        Claro que é normal... suponho que é normal.

Paul observou disfarçadamente o rosto de Sidney. Talvez estivesse a emitir um juízo errado, mas julgava ter detectado uma qualidade que brilhava naqueles grandes olhos à flor da pele. Tudo na sua figura, desde as maneiras equivocas à voz e ao ar sexual pouco saudável, principalmente na demonstração das suas perguntas, o apresentava como um voyeur, não como um cientista. Paul já tinha visto aquela figura antes em muitos outros locais: à porta de certos cafés a fazer comentários sobre os seios e as pernas das raparigas que iam passando, contando uma história suja, enquanto se debruçava para um bilhar, de taco na mão, em qualquer local sombrio nas traseiras de uma casa de jogo, parado junto da estante das revistas a devorar com os olhos os modelos seminus... «Ele pensa que o nosso projecto é como ir ver um desses filmes proibidos», pensou Paul, decididamente.

—        O tio Emil pode confirmar-lhe — estava Sidney a dizer — que eu sempre me interessei pelo estudo sobre a mulher. Li tudo o que existe sobre o assunto, história, biologia, sociologia...

—        É verdade, George — cooperou Ackerman.

—        Desejo fazer parte do vosso grande movimento — prosseguiu Sidney. — Penso que quando levam as mulheres a falar a respeito das suas relações sexuais, isso constitui um grande avanço para a ciência. Como sucede com a sondagem que estão quase a acabar... penso que é idêntica aos princípios que descreveu acerca dos celibatários?

—        Sim — respondeu o Dr. Chapman calmamente.

—        Penso na profundidade dessas sondagens — coçava o cocuruto da cabeça com a ponta das unhas. — Imaginem levar-se as mulheres a falarem a respeito de... a respeito daquilo que sentem.

Não é verdade que contam essas coisas?

—        Muitas delas — respondeu o Dr. Chapman, severamente.

Dez minutos depois a reunião acabou. O Dr. Chapman e Paul escoltaram Ackerman e Sidney até ao parque de estacionamento para visitantes, onde só se via o brilhante Cadillac do manobrador político.

Antes de entrar para o carro, Ackerman voltou-se para o Dr. Chapman.

—        Então, George, o que é que pensa sobre o assunto?

—        Tem a certeza de que o quer a trabalhar nesta coisa? — perguntou Chapman. — Bem sabe que é um trabalho exigente, uma escravidão contínua.

—        É o que ele pretende. O importante para a tarefa é que haja entusiasmo, penso eu, e entusiasmo é coisa que Sidney tem de sobra.

—        Humm... Muito bem, Emil. Veremos o que se pode fazer.

Farei o que estiver ao meu alcance.

Já o Cadillac tinha partido há muito tempo e Paul e o Dr. Chapman ainda estavam ali especados à beira da estrada.

Paul tinha receio de olhar de frente para o Dr. Chapman, mas foi obrigado a fazê-lo. Tinha a percepção do receio que sentia: a fenda na armadura. Ta! como julgara ir encontrar no Dr. Jonas, e não encontrara, esperava agora que essa fenda se revelasse naquela figura gigantesca que, até então, se tinha mostrado invencível. Aguardava, sentindo o coração constrangido num receio insólito.

— Imaginem o desplante — disse o Dr. Chapman com ar zangado —, tentar encaixar na nossa organização aquele mocinho pervertido. Ouviu o delinquentezinho? Pensa que vai trabalhar num circo sexual, estagiar num estúdio onde se revelam as coisas mais sujas e excitantes da pornografia—agarrou no braço de Paul, con-duzindo-o para as instalações do motel. — Lembra-se de lhe ter contado uma vez que Ackerman vive dos favores que presta? Pois bem, desta vez posso assegurar-lhe que não obterá a sua paga. Mais depressa destruiria todo o projecto do que permitiria que aquele brutozinho se insinuasse nele. Aplacarei o tio Emil com uma carta que será uma obra-prima de generalidades inconsequentes. Dir--Lhe-ei que Sidney está na calha. Mas as possibilidades de ingressar na nossa equipa só se devem concretizar na semana dos nove dias. Está certo, Paul?

— Certíssimo — respondeu Paul.

E, mesmo naquela noite sem luar, podia observar que a armadura do Dr. Chapman brilhava mais que nunca.           

Teresa Harnish acabava de fazer a curva preparatória para deixar o marido à porta da loja, quando o locutor, no rádio do carro, começou a recitar as previsões meteorológicas para o dia.

Geoffrey já tinha aberto a porta, preparado para sair, quando ouviu o noticiário. Voltou a instalar-se para ouvir o boletim.

«... muito embora hoje, sexta-feira, 5 de Junho, prometa ser um dos dias mais quentes em vinte anos, com temperaturas da ordem dos 35 a 40 graus, há todas as probabilidades de que, pela noite, a temperatura desça para os 30 graus».

Teresa desligou o rádio, impaciente por que Geoffrey partisse, previsão meteorológica tinha-a tornado consciente do desconfor-o que experimentava. A baforada de ar quente que já se fazia sentir inha todo o aspecto do metal em fusão a sair de uma forja.

Geoffrey saiu do carro e observou o céu.

—        Uma verdadeira fornalha — disse apontando o Sol. — Graças a Deus que a noite promete ser mais fresquinha. Talvez fosse melhor mandar-mos servir as bebidas no pátio.

Teresa olhou para ele com um olhar surpreendido em que se manifestava a mais genuína surpresa.

A expressão do rosto da mulher intrigou Geoffrey.

—        Há alguma novidade, Teresa?

O que havia surpreendido Teresa fora a súbita lembrança, evocada Por Geoffrey a respeito do tempo, de que nessa noite dariam uma festa, iam receber alguns convidados. Desde há dois dias que o acontecimento se lhe varrera por completo da ideia. Até mesmo durante o pequeno-almoço, uma hora antes, estivera apenas preocupada com as oito horas de inteira liberdade que poderia gozar nesse dia. Todavia, naquele momento, recordou-se de que devia comportar-se como uma esposa e uma dona de casa perfeita, que sabe receber os seus convidados da maneira mais encantadora.

Geoffrey ainda a estava a fixar curiosamente. Rapidamente sentiu que no cérebro se lhe acendiam luzes avisadoras de um grande perigo. No passado recente, a sua Idade Média, as festas e jantares haviam sido o prazer social favorito a que consagrava a mais devotada actividade. Ter esquecido isso convidaria a graves suspeitas.

«Não fiques aí embasbacada, diz qualquer coisa, faz qualquer coisa», disse Teresa para consigo própria.

—        Não há novidade nenhuma, excepto estar ocupada nos arranjos para o jantar. Esqueci-me por completo de alugar um trajo de fantasia.

—        Não tinhas decidido, por esta vez, banir os trajos de fantasia?

Teresa lembrou-se de que realmente falara nisso, mas que ainda não tinha informado os convidados da resolução tomada.

—        Não. Mudei outra vez de ideias. Decidi ser mais engraçada, continuar a manter o statu quo, mulheres em fantasias e opção para os homens.

—        Excelente. Tens todo o dia para conseguires encontrar alguma coisa que te agrade. O que é que pensas usar?

—        Até agora ainda não tive um momento de meu para pensar nisso.

—        Que tal, se vestisses a mesma fantasia que usaste naquele jantar surpresa de Grace Waterton? Lembras-te? Foi há três anos, na passagem do Ano Novo.

—        George Sand?

—        Exactamente. Parece adequado. Não era a pessoa que desejavas ser quando foste entrevistada pelo Dr. Chapman?

—        Claro que não. Sand era demasiado masculina. No entanto é uma ideia. A única coisa que me aborrece é repetir-me; não me parece uma coisa que revele muita imaginação.

—        Por outro lado metade das pessoas que vão estar presentes ainda não te viram com semelhante trajo — Geoffrey tirou as chaves da loja do bolso do seu casaco de linho. — Faz o que quiseres. Suponho que queres que esteja cedo em casa.

—        Não — respondeu Teresa, apressadamente. — Não será necessário.

—        Bem, de qualquer maneira não irei mais tarde do que as seis horas. Quero ter tempo para tomar banho e vestir-me repousadamente.

Quando ele começou a encaminhar-se para a porta da loja, Teresa chamou-o:

—        Ouve, querido, será egoísmo da minha parte pedir-te que vás para casa de táxi? Bem vês que tenho que vigiar o trabalho da senhora Symonds e de Jefferson.

A senhora Symonds era a cozinheira alemã que se encarregara de preparar o jantar ao preço de vinte e cinco dólares, e Jefferson era o solene criado dos vinhos — o copeiro-mor das pessoas abastadas.

—        Está bem. Olha, não te esqueças do charuto.

—        Charuto?

—        Sim. A condizer com a personalidade de George Sand.

—        Ah, claro que não me esquecerei.

Após Geoffrey ter aberto a porta da galeria e desaparecido no seu interior, Teresa ficou por momentos parada a pensar nos acontecimentos. Tinha prometido encontrar-se com Ed Krasowski, em casa dele, às cinco e meia. Por outro lado, convidara vinte pessoas para jantarem em sua casa às sete horas, o que significava que as primeiras pessoas a aparecerem o deviam fazer por volta das seis e cinquenta. Tendo que contar que os Goldsmith costumavam sempre aparecer primeiro que todos.

Teresa calculou o tempo. Entre a hora do encontro e o previsto para a chegada dos convidados, havia um espaço de uma hora e quarenta e cinco minutos. Tirando a meia hora que lhe levaria desde casa de Ed à sua vivenda, ficava ainda uma hora e quinze minutos. Era um espaço insuficiente para tudo o que ela tinha para oferecer e para tudo o que Ed lhe podia dar. Um grande romance de amor e paixão não podia estar condicionado pelos ponteiros de um relógio. Que fazer? O senso comum ditava-lhe que devia telefonar a Krasowski e adiar o encontro para outro dia. Para o dia seguinte?

Não podia ser, era domingo, e Geoffrey estaria em casa. Tinha que ser para o princípio da semana seguinte. Mas o ardor febril que lhe queimava o peito e as entranhas não podia esperar. Era demasiado exigente, demasiado insistente, demasiado imediato. O senso comum foi derrubado e espezinhado, e Teresa sentiu-se de novo feliz.

Tinha que ser naquele dia, nessa tarde, exactamente como planeara, como decidira. Aconteceria simplesmente que teria que chegar atrasada à sua própria festa. Seria até divertido. Não seria mesmo uma coisa perfeitamente adequada à conduta de George Sand? Mas claro que havia de inventar uma mentira à prova de contestação. Mas o quê? Lembrou-se de que na altura em que concebera a festa havia considerado como pièce de résistance do jantar uma bola à maneira dinamarquesa — um pão especial recheado de presunto, tostadinho no forno. Imaginara a sensação gastronómica que isso causaria entre os seus convidados e os elogios que lhe teceriam. Acabara, porém, por afastar o projecto, porque a padaria dinamarquesa ficava em Ventura Boulevard, teria que gastar pelo menos quarenta e cinco minutos de automóvel da sua casa lá. Mas agora o manjar tornava possível o seu encontro com Ed.

Havia pois que pensar no modus operandi. Telefonaria para a casa dinamarquesa, faria um pedido de urgência e iria buscar a bola antes do meio-dia. Meteria o pitéu no frigorífico, para o preservar do calor, e depois, antes de se dirigir ao apartamento de Ed, colocá-lo-ia no porta-bagagens. Às cinco horas, quando saísse de casa, deixaria uma nota a Geoffrey, assim concebida: «Decidi ir a Ventura Boulevard comprar uma bola de presunto dinamarquesa para servir aos convidados. Não me demoro. Está tudo preparado. Não te preocupes — tua Teresa».

Às sete e meia já ela e Ed teriam consumado o seu amor. Reconhecia que nessa altura seria uma coisa terrível deixar Ed, e muito pior para o atlético moço; com certeza que ele desejaria que Teresa ficasse o resto da noite em sua casa... quereria tudo. Absorvê--la num hausto, nunca mais a deixar partir. Claro que também seria esse o desejo dela, mas um desejo proibido, um desejo sem possibilidade de ser satisfeito, tinha que utilizar a sua firmeza para lhe negar o pedido. Pobre e querido rapaz! Enfim, à frente deles haveria uma imensidão de noites. Dir-lhe-ia isso mesmo. Fosse como fosse, às sete e meia estaria junto da primeira cabina pública que houvesse no caminho, a telefonar a Geoffrey (nessa altura já deviam ter chegado os primeiros convidados, e o marido estaria preocupadíssimo com a sua ausência), dizendo-lhe que o automóvel enguiçara, algures, quando se dirigia para casa, e que, nesse momento, estava a ser reparado numa garagem. Uma falha no carburador parecia ser a coisa que soava melhor. Teresa percebia muito pouco de mecânica, mas o marido ainda percebia menos. Asseguraria a Geoffrey que estaria em casa dentro de um quarto de hora e prome-ter-lhe-ia estar preparada para receber os convidados (vestida a preceito, com charuto e tudo) dez minutos após a sua chegada. E pronto. Não era uma coisa fácil?

Teresa ligou o motor, e o descapotável foi projectado para a frente, no tempo e no espaço, tal como ela própria se projectara pelo pensamento.

À medida que o dia se desenvolvera, o calor fora apertando. Teresa detestava o calor, porque ele obrigava as pessoas a suarem, mas nessa altura até o calor a afectava menos. Parecia-lhe até que o calor tropical se coadunava com a sua paixão, muito embora pensasse que o apartamento de Ed, junto à praia, devesse ser refrescado pela brisa marítima e embalado pelo canto de sereia das vagas que se iam quebrar contra a orla da areia loira e fina — era um pensamento deveras romântico.

Teresa começou a movimentar-se rápida e eficientemente ao encontro das cinco horas. De uma cabina nas traseiras da estação de gasolina telefonou para a padaria dinamarquesa e pediu para terem a encomenda pronta à uma hora. Depois ligou para a senhora Symonds recomendando-lhe que incluísse na ementa a bola, retirando da lista as carnes frias. Ao poisar o telefone, lembrou-se do fito original para o seu encontro com Ed Krasowski. Procurou localizar uma loja de artigos de pintura, para comprar um cavalete, telas e tintas. Deteve-se raciocinando que semelhante camuflagem seria demasiado elaborada e estúpida. Optou por comprar lápis de carvão e papel de desenho.

Voltando para a vivenda de The Briars, tentou recordar-se onde raio é que teria encafuado a fantasia de George Sand. Encontrou o vestuário no grande gavetão do roupeiro existente no quarto de dormir. O fato, inspirado num retrato da escritora francesa pintado por Delacroix em 1830, consistia num chapéu de copa alta, agora um pouco amachucado, gravata preta à lavallière, casaca e calças estreitinhas. Telefonou a Jefferson, recomendando-lhe que comprasse um charuto, para completar a fantasia.

Arrostou com a vaga de calor que se fazia sentir, guiando até uma tinturaria de Village Green, onde entregou o fato à George Sand para que fosse limpo e passado a ferro. Depois voltou o carro para leste, ultrapassou Villa Neapolis, a Universidade, atravessou Beverly Hills, Hollywood, onde guinou para norte, paraCahuenga.

Lutou com a estrada livre de trânsito, sentindo o volante apertado firmemente entre as mãos nervosas mas determinadas, até chegar a Studio City, onde deu a volta a caminho da padaria dinamarquesa. A gigantesca bola de presunto estava pronta, acabara de sair do forno. Preencheu um cheque de vinte dólares, colocou, cuidadosamente, a caixa no fundo do compartimento de bagagens, voltou a refazer o ciclo infernal da viagem, regressando com a mesma velocidade a The Briars. Parou à porta da tinturaria, onde o fato à George Sand já a esperava limpo e passado a ferro, e, finalmente, pôde arrumar o carro na sua garagem.

A Sr.a Symonds já se encontrava na cozinha. Fizeram uma revisão geral do serviço previsto para o jantar e distribuíram a baixela de prata. Teresa deu uma última vista de olhos à decoração dispendiosa, com flores exóticas à mistura e, após verificar que tudo estava em ordem, dirigiu-se para o seu quarto.

Tirou do armário cinco dos seus vestidos e pendurou-os todos em fila, para fazer uma escolha, acabando por seleccionar o vestido de seda azul-parma, porque lhe modelava melhor os seios e as ancas e porque o comprido fecho de correr tornava fácil poder pô-lo e tirá-lo com a máxima rapidez. Examinou com cuidado a roupa interior, acabando por escolher um soutien de corpete de seda preta e umas calcinhas de nylon violetas. Finalmente voltou a atirar tudo de novo para dentro do gavetão, acabando por se fixar num soutien mais ligeiro, que apenas lhe aparava os seios até metade e umas calcinhas de seda preta. Considerou enfiar umas meias, mas isso implicaria ter de usar suporte de ligas, o que era um aborrecimento, e porque pensou que seria mais provocante apresentar-se de pernas avela.

Abriu o cofre das jóias, tirou a aliança de casamento do dedo e meteu-a na caixa, deixando apenas ficar o anel de noivado com um discreto diamante engastado numa coroa, e escolheu para pôr ao pescoço o delgado fio de oiro com pequena cruz. Era um adereço simples e gostava dele.

Encheu a banheira de água tépida e deitou lá para dentro uma dose abundante de sais de banho franceses, após o que mergulhou naquele líquido fragrante. Enquanto se lavava, pensava naquele último ano passado na Universidade Feminina de Vassar, e no período de Greenwich Village com o poeta que nunca se lavava (que teria sido feito dele?), e tentou prefigurar o apartamento de Ed Krasowski sobranceiro ao oceano. Pensou na entrevista com o Dr. Chapman, e tudo o que pôde recordar dela foram aquelas perguntas a respeito e objectos que lhe apresentaram. Lembrava-se de terem compu-ado as suas reacções por intermédio de meia dúzia de fotografias por uma passagem das memórias de Casanova, dando-lhe também orno opção ler ou recusar ler um trecho de Fanny Hill. Claro que lera o trecho «O meu seio estava agora nu, e entesava-se com os mais quentes impulsos, desvendando-lhe e oferecendo-lhe à vista e aos sentidos o magnífico espectáculo de um par de duros e jovens mamilos...» Qual fora a sua resposta? Sim, um pouco excitada. Talvez devesse ter respondido sentir-se fortemente excitada. Não, um pouco excitada era definição mais exacta. De novo tentou prefigurar o apartamento de Ed. Finalmente, deitando uma olhadela ao relógio, saiu da banheira, secou-se, friccionou-se com água-de-colónia e depois, vagarosamente, vestiu-se a preceito com as roupas que tinha seleccionado previamente.

Aos dez minutos para as cinco, escreveu a nota para Geoffrey a respeito de ir buscar a bola, e recomendou à Sr.ã Symonds que não se esquecesse de assegurar que o marido lesse a nota, a fim de não ficar preocupado com a sua ausência. Às cinco horas em ponto estava sentada atrás do volante do descapotável, preparada Para fazer o caminho para a praia.

Ficou surpreendida por acabar de reconhecer que a morada que Ed lhe dera não ficava em Malibu como esperara, mas muito antes de Malibu e muito perto do molhe de Santa Mónica. Havia ali uma ampla e suja área de estacionamento, e sobre a falésia estavam construídas umas quantas casas de madeira, dispostas de maneira negligente e sem obediência a qualquer plano de urbanização. Mais longe havia um hotel de fachada suja e uma lojeca de onde saía um cheiro nauseabundo a fritos. Teresa disse para com os seus botões que havia naquilo um ar da Boémia como se observava em Greenwich Village, mas aquele centro parecia melhor e era agradável estar de regresso a uma vida intensa e agitada, cheia de vitalidade.

O apartamento de Ed ficava no segundo andar de uma das construções. Transportando o papel de desenho num rolo, Teresa trepou os degraus de uma escada exterior que levava ao patamar, protuberante, e em forma de varandim. Os degraus estalavam por todas as juntas à medida que os pisava. Antes de chegar ao cimo, duas crianças, queimadas pelo sol, possivelmente duas rapariguinhas, o que era impossível determinar, porque vestiam calças, roçaram por ela. Teresa continuou o seu caminho pelo corredor, não sem que quase tivesse enfiado o pé por um buraco entre as juntas de duas tábuas. Por fim, conseguiu chegar sem novidade ao santuário de Ed Krasowski.

Bateu à porta.

—        Entre!

Empurrou a porta e entrou. Por momentos ficou especada no limiar, tentando acostumar os olhos à sombra que reinava no interior.

Ed estava sentado numa cadeira alta de braços, com uma das pernas ligeiramente cambada, e bebia cerveja directamente de uma lata enquanto escutava uma ruidosa emissão radiofónica de basebol num aparelho portátil. Vestia a mesma camisa com as palavras Paradis csalientes sobre o largo peito e uns calções brancos. Muito embora a cara dele parecesse a Teresa ainda mais voltuosa doque se lembrava, a camisa de manga curta e os calções brancos acentuavam-lhe maravilhosamente a latente força e a masculinidade. Os seus bíceps eram incríveis de pujança e volume, e as coxas ressaltavam dos calções como duas colunas.

—        Olá! — disse ele, acenando com a mão. Indicou-lhe o rádio com um gesto de cabeça. — Estão a jogar em Philly e verifica-se um empate.

Teresa teve um gesto de cumplicidade, como se tivesse percebido inteiramente o desenrolar daquele jogo que a ele parecia tão importante.

Ed acabou de beber a sua cerveja de lata e depois, lembrando--se de que tinha que se comportar com maneiras apropriadas diante de uma senhora, levantou a enorme massa do seu corpo.

—        Bem, esteja à vontade como se a casa fosse sua — disse, com um gesto circundante.

—        Muito obrigada, Ed.

Teresa colocou os apetrechos de desenho em cima de uma mesa.

—        Estou a ver que vem armada e equipada.

—        É verdade.

—        Quer beber uma cerveja?

—        Sim, se você beber comigo.

Teresa nunca na sua vida bebera cerveja nacional. Era um dia de grandes aventuras, um dia de excepção.

—        Já bebi três cervejas, mas não sou do género de dizer não quando insistem comigo. Um momento.

Ed dirigiu-se àquilo que devia ser uma cozinha interior, e Teresa, pela primeira vez, observou com atenção o ambiente que a rodeava — a sua casa alugada de Valdemosa, a sua cartuxa, o seu exílio de Palma de Maiorca. Uma passadeira oval, de franjas, cuja ancestralidade devia ser contemporânea dos primeiros pioneiros do Oeste americano, cobria o soalho, um soalho sujo, salpicado de areia. Ao lado do cadeirão de braços e do roufenho aparelho de rádio, o único mobiliário que se vislumbrava era um divã com uma cobertura verde e algumas cadeiras dispersas pela sala. Das paredes pendia uma reprodução do Angelus de Nillet (provavelmente pertença do senhorio ou senhoria), uma reprodução de um quadro de Bellow, A night at Sharkey's (com todos os indícios de ter sido herdado de um anterior inquilino com tendências para o pugilismo). Também havia coladas às paredes páginas arrancadas a uma revista desconhecida dela, a Playboy, com mulheres nuas, de seios e nádegas anormais. Junto à janela havia três fotografias emolduradas, uma que representava um tipo qualquer que autografava com o nome de Harold «Red» Grange; uma outra que mostrava Ed com o seu equipamento de futebolista, aparentando um ar feroz e selvagem; e a terceira de uma pessoa que lhe pareceu ser o companheiro de Krasowski, com quem falara — Jackie.

Teresa dirigiu-se a uma das janelas — as sujas e enrodilhadas cortinas estavam abertas — e olhou para a rochosa praia que ficava lá em baixo. Havia uma mulher gorda, sentada em cima de um cobertor, a partir um salpicão às rodelas, um mergulhador que vestia o seu fato e procurava ajustar a máscara de marciano assistido por uma loira oxigenada e multidões de crianças que faziam uma algazarra ensurdecedora ao chapinharem na água.

Teresa fechou discretamente a janela, mas, ainda assim, o barulho persistia através dos vidros e dos delgados tabiques. Encaminhou-se então para uma divisória, paredes-meias com a sala, uma espécie de negro buraco hiante, onde se viam duas camas, feitas às três pancadas, e mais duas cadeiras com aparência de que se desconjuntariam mal uma pessoa se sentasse nelas.

—        Nada mau, hem? — ouviu a voz de Ed atrás de si.

Teresa voltou-se numa pirueta e aceitou a cerveja que lhe era

oferecida, apresentada num copo. Observou que Ed preferia beber a sua directamente da lata. Ao que parecia, Ed era um devoto da cerveja, e Teresa decidiu presenteá-lo com uma caixa de latas alemãs, cerveja de importação.

—        Uma saúde a montes de quadros famosos — disse ele, erguendo a sua lata no arremedo de um brinde.

—        Espero que sim — respondeu Teresa, secundando-o e tragando uma golada daquela mistela. Se bem que embora a cerveja tivesse um travo azedo, desconhecido para ela, voltou a levar o copo aos lábios e sorriu para o mocetão que estava na sua frente.

—        Porque é que não se senta? — perguntou Ed.

Teresa teve um gesto de anuência, mas apontou para o rádio, de rosto um pouco contraído.

—        O barulho está a chateá-la? Vou pôr a caranguejola mais baixa.

O volume do rádio baixou, mas recrudesceram os gritos das crianças.

Ed sentou-se pesadamente no sofá e indicou-lhe que se podia sentar no cadeirão favorito. Mas, impetuosamente, Teresa sentou--se no sofá, um pouco afastada dele. O que restava das molas rangeu como se fora o gemido de alguém ferido de morte. — Isto não é lá muito confortável. As molas estão um bocado {raças — desculpou-se Ed. — Não tem importância. Sinto-me muito bem. W   — Está tudo tal qual desde a altura em que eu e Jackie nos mudámos para aqui. O senhorio não voltou a mexer uma palha. — Onde é que está o seu companheiro de quarto? — Mandei-o tomar ar durante um bocado. O coração de Teresa deu um salto no peito. Iria haver uma grande manifestação de amor? Parecia-lhe que ele lhe quisera demonstrar, assim, a necessidade de ficar a sós com ela. — Não permitiria que aquele palhaço me estivesse a observar enquanto estou a ser pintado. O entusiasmo de Teresa arrefeceu. Acabou de tragar a horrível cerveja. — Você gosta muito de praia, não é verdade, Ed? — Claro que sim. Não há nada que chegue a um bom treino matinal na areia da praia para desenvolver os músculos das pernas. Gosto do mar. Além disso, este é o único lugar onde uma pessoa pode fazer uma vida de milionário em férias a preços reduzidos.

—        Compreendo perfeitamente. Suponho que na sua profissão é necessário que cuide com atenção do seu corpo.

—        Como um bebé — respondeu Ed, com solenidade. Depois agitou a lata de cerveja, e a sua larga cara eslávica abriu-se num sorriso. — Claro que um homem não pode fugir a ter um vício — levou a lata à boca e bebeu avidamente.

—        Está a querer dizer-me que a cerveja é o seu único vício?

—        Depende daquilo a que queira chamar vício.

—        Bem... a companhia de mulheres...

—        Isso é mais uma necessidade. Com as minhas desculpas Pela frase, um homem tem que ter uma válvula de escape.

—        Concordo consigo — disse Teresa rapidamente. — É uma coisa que faz parte de uma saúde normal.

Ed fez uma careta a qualquer recordação que o assaltou.

—        Claro. Com certeza não queria que um homem fosse dar atenção a todas as garças que andam por aí.

—        Mulheres?

—        Há toda a espécie de lambisgóias pelo mundo fora. A água do mar aceita todos os corpos que se queiram lavar nela.

O pensamento fustigou-a como um chicote. Como é que o Essinine de Isadora podia ter um espírito puritano? Afastou-o. Afinal, não são assim todos os homens? Puritanos ou não, o amor acaba por ser predominante.

—        Suponho que você deve ser muito popular entre as mulheres.

—        Bem, não estou muito certo disso — disse Ed, com modéstia.

—        Não me importo de confessar que foi o facto de o ter visto na praia, o seu elemento natural, observando a linha graciosa do seu corpo, á harmonia dos seus membros, que primeiro me atraiu para si — Teresa observou-lhe cuidadosamente a reacção. — Você possui um corpo de perfeita simetria — acrescentou.

Ed não discordou.

—        Sim, suponho que tenho um corpo desenvolvido. Como já disse antes, tenho que cuidar dele como se fora o de um bebé.

Faço todos os exercícios de desenvolvimento, mantenho vigilância sobre o equilíbrio do meu peso, não cometo excessos. Enfim, tenho que me manter em perfeita forma — falava do seu físico como se fosse uma entidade diferente dele próprio.

Teresa estava intrigada. No entanto, sabia ter descoberto um assunto de conversa que lhes interessava a ambos.

—        Penso que você é muito melhor constituído do que a maior parte dos astros de cinema. Tem um ar muito mais viril.

—        Ora, sobre isso não há muito a dizer ou a comparar. Com sua licença, desconfio muito desses tipos dos filmes, quase todos têm um ar equívoco.

—        Julgo que é justamente por isso que desejo retratá-lo primeiramente como um herói grego, como um semideus do Olimpo, fazendo contrastar a sua virilidade básica com os homens que actualmente nos cercam. (As suas coxas, as suas entranhas, a ponta dos seus seios doíam-lhe de desejo contido). Já viu a clássica estátua do Discóbolo?

—        Não.

—        Podia ter sido inspirada no seu corpo. Creio que conseguirei ultrapassar Míron, o escultor grego. Foi ele que esculpiu o Discóbolo e também esculpiu Lais, a cortesã. Gostaria de o pintar exactamente na mesma pose. De facto, sinto-me cheia de vontade de começar a trabalhar imediatamente.

—        De acordo. O que é que eu devo fazer?

—        Bem, o Discóbolo é apresentado inteiramente nu, evidentemente. De resto, como todos os deuses do Olimpo. Desejo que pose para mim da mesma maneira.

O corpo de Ed tomou uma posição rígida no sofá.

—        Sem nada em cima do pêlo?

Teresa tentou dar à sua voz uma inflexão neutra, sem emoções, em tom de negócio.

—        Sim, segundo a tradição clássica. Julgo que seja melhor ir--se despindo, enquanto eu arranjo as coisas...

—        Eh, espere um minutinho. Com certeza que não espera que me ponha em pelote na frente de uma senhora?

—        Por que não? Tem complexos de falsa modéstia? Estou certa de que antes já se pôs assim mais de uma centena de vezes em frente de outras mulheres.

—        Mas não desta maneira, não a ser observado. Quando me despia era por razões muito diferentes. E, nessas ocasiões, a dama estava também nua.

—        Ora, Ed, é apenas isso que o preocupa? É o facto de você estar nu e eu não? Muito bem, nesse caso estou pronta a tirar de boa vontade a minha roupa.

Ed pareceu não compreender.

—        Como? O que é que disse?

—        Ouviu perfeitamente as minhas palavras, Ed. Se isso o torna mais acessível e mais feliz, tirarei imediatamente o vestido.

—        Só para me pintar? — a cara dele mostrava toda a confusão que lhe ia no espírito.

Teresa podia ouvir o bater do coração dele, e desejou com todo o seu ser estar envolvida, para sempre, por aqueles braços musculosos. Quando conseguiu falar, a voz soou-lhe aos próprios ouvidos como uma voz estranha.

—        Evidentemente que não, meu rapazinho estúpido. Posso muito bem pintar numa próxima vez. Quero que faça comigo aquilo que faz com as outras raparigas.

Ed deixou-se cair no sofá com todo o peso, fazendo ranger as estafadas molas como se fosse um terramoto, e ficou a contemplá--la de boca aberta. Teresa ergueu-se num pulo ágil e plantou-se, soberba, mesmo diante dele. Pernas afastadas, os joelhos tocando os dele, com as mãos tensas, apertadas atrás das costas, de modo que os seios se tornavam mais pontudos e pareciam ter duplicado de volume.

—        Ed, você nem sequer me deseja tocar?

A reviravolta dos acontecimentos fazia com que Ed estivesse num verdadeiro estupor.

—        Claro que sim, mas...

—        Mas o quê, Ed? Pensa que sou demasiado senhora para me comportar desta maneira? Muito bem, sem dúvida que sou uma verdadeira senhora, mas sou também uma mulher. Desde o momento em que o vi na praia pela primeira vez, tenho estado a conter o desejo que me queima. Sabia muito bem que me estava a enamorar de si... bem sei que é uma coisa um pouco idiota, mas a verdade é que as mulheres enamoradas também são um pouco idiotas, amar é loucura. Tudo o que eu quero, e não luto mais contra esse desejo, é que me dê todo o seu amor — olhava para ele, demasiado excitada para esboçar sequer um sorriso. — Ed, abrace--me. Gozará esse abraço...

Ed estendeu os braços e puxou-a para si avidamente, sentan-do-a nos seus joelhos. As mãos dela afagaram-lhe o cabelo, e a boca dela foi ao encontro da boca dele, com uma tal pressão que até os dentes lhe doeram.

Afastaram-se para fazer o ar circular nos pulmões.

—        Bom Jesus! — exclamou Ed, apatetado.

—        Essas outras mulheres... O que é que você fazia com elas?

—        É muito diferente com essas porcas. As coisas seguem um ritmo natural, é deixar correr... mas consigo...

—        O que é que há comigo?

—        Eu devia saber. Acontece que não a julguei como... Jackie, na altura em que me entregou o seu recado, o velho Jackie disse--me: «Ed, devias tê-la visto com aquele fato de banho, tem um corpo de... Tenho a certeza que vais saber que dentro daquele corpo há pólvora latente». Mas eu respondi-lhe que não fosse palerma.

—        Está a ver, Ed? Até ele adivinhou a maneira como eu sinto este desejo por si — encostou o rosto ao dele. — Não sente vontade de me despir?

—        Vai ter o que deseja! Cegamente, Ed atirou-se ao vestido dela.

—        O fecho está nas costas — murmurou Teresa.

Ed encontrou o fecho, mas de repente lembrou-se de qualquer coisa.

—        É melhor no quarto. Vamos para lá.

Levantou-se, fazendo-a cambalear. Teresa começou a encami-nhar-se para o quarto, observando-o a ir até à porta e a fechá-la no trinco, depois chegando-se para as janelas e correndo as cortinas.

Já no obscurecido quarto de cama, Teresa tirou os ligeiros sapatos e sentiu o frio do soalho, sem tapeçaria, nas solas dos pés. Quando Ed regressou, tinha ela baixado o corpo do vestido até à cintura. Teresa fez um ligeiro movimento coleante e deixou que a seda escorregasse pelo resto do caminho, e ali ficou com a reduzida roupa interior, as calcinhas bikini, que pouco tapavam, e o meio soutien que lhe descobria os seios túrgidos, lançando os ombros para trás, para que os mamilos se projectassem agressivamente.

—        Bom Jesus! — disse Ed, admirativamente.

—        Sou eu que tenho que o despir? — perguntou ela, imperativa.

—        Não, eu dispo-me. Pode deitar-se e esperar. Estarei pronto enquanto o diabo esfrega um olho — disse ele, apressadamente, dirigindo-se para a casa de banho.

Teresa tirou as calcinhas e o soutien, abriu a cama e estirou--se em cima dela. Olhou para a sala de estar, ouvindo os gritos das crianças na praia, a sussurrante voz que vinha do rádio. O quarto tinha uma temperatura tépida. Nesse momento sentiu qualquer coisa de desconfortável debaixo do corpo. Correu os dedos pelo lençol: areia.

—        Está pronta? — perguntou ele da casa de banho.

—        Estou sim, querido.

Ed apareceu à porta usando apenas em cima da pele uma ligeira trousseàe protecção, que lhe acentuava ainda mais as massas musculares do estômago e do torso. Libertou-se da trousse e atirou-a, com o pé, para um canto, contemplando-a firmemente de frente. O discutido Discóbolo, pensou Teresa. E, de repente, pela primeira vez, observou a nudez total de Ed, sentindo-se um pouco chocada, uma sensação que não durou mais do que um momento. A surpresa residia em que o atleta, de certa maneira, não era muito diferente de Geoffrey — de facto, se havia diferença naquilo para que olhava era para menos ainda. Ed avançou para ela, e a surpresa desvaneceu-se. O apelo que a escaldava era um apelo divino, uma chamada dos deuses. Finalmente o seu herói tinha descido do Olimpo para a tomar nos braços viris.

Teresa estendeu os braços.

—        Vem para mim...

Tremia de excitação, antecipando o longo e excruciante festim de amor que ia começar nessa precisa altura. Cada milímetro do seu corpo ardia no desejo de ser levado aos píncaros da paixão, realizando esse desejo, gozando finalmente uma união física divina. A cama estremeceu e rangeu quando ele ajoelhou sobre o lençol, e Teresa, que esperava os seus beijos e carícias, ficou subitamente perturbada por senti-lo imediatamente em cima de si, pregando-lhe os ombros contra a almofada, esmagando-a sobre o seu terrível peso. E então, emitiu um grito, um grito que não era de dor, mas sim de ultraje, quando viu que Ed, sem preâmbulos, começava na sua obra de cópula.

Torceu a cabeça para o lado, protestando:

—        Ed, ainda não, ainda não... não deves fazer assim. Eu não...

Ignorando tudo o mais a não ser o corpo dela, o atleta prosseguiu no seu trabalho demolidor. Teresa Harnish procurou afastá-lo, mas sentiu que era como tentar afastar o edifício do State Empire. Fechou os olhos e tentou compreender: «Está a tratar-me como uma dessas bonecas de borracha, com um buraco, que os marinheiros costumam comprar em Kobe... só me beijou uma vez, nem sequer me tocou nos seios, não correu as mãos pelo meu corpo, não me murmurou uma simples frase de prazer...»

Abriu os olhos. Ed desempenhava o seu papel completamente alheado dela, como um perfeito animal irracional. Teresa não sentia nada, nenhuma ligação com aquele homem, para além da ridícula pressão sobre a parte fronteira do corpo e a irritação que a areia lhe produzia a roçar pelo traseiro. Isso e o acre cheiro a cerveja barata que lhe vinha ao olfacto, o ronquido dele ritmado pelo ranger da cama e harmonizado com os gritos das crianças que se ouviam lá fora. As narinas abriam-se-lhe ao cheiro do suor daquele desconhecido, suor misturado com o odor à vaza da praia. E odiou aquele colchão duro, as molas que rangiam e o monstruoso peso que a dominava.

—        Ed, escute... escute...

Tentou libertar-se do opressivo fardo, mas, na altura em que procurava a ansiada liberdade, sentiu-o inteiriçar-se, regougarcomo um porco e exalar uma explosão de ar dos pulmões. Um momento depois, Ed deixou de lhe fazer pressão sobre o corpo e descaiu para o lado, ofegante.

Teresa sentou-se no mesmo momento em que se sentiu livre e lhou com incredulidade aquela montanha de carne que estava ali a eu lado. O atleta estava agora deitado de costas, abrindo a boca ara encher os pulmões de revigorante oxigénio. Finalmente, Ed abriu os olhos e encontrou o olhar dela. Sorriu num esgar de cumplicidade.

—        Santo Deus, queridinha, foi monumental. Podes ter os teus sapatos debaixo da minha cama noite e dia.

Teresa continuava a fixá-lo, demasiado espantada para poder proferir uma palavra. Aquele... aquele orangotango, tinha-a tratado como se não fosse mais que um treino de futebol. Várias flexões, entumescimento dos músculos e o dia estava completado. Era então aquele o homem primitivo? Meu Deus — pensou num movimento de revolta contra o destino —, talvez que tivesse sido exactamente assim, quando o macho primitivo perseguia uma mulher às cacetadas e a arrastava para a sua caverna, pelos cabelos, de rastos, utilizando-a depois como um simples receptáculo, sempre à mão. Oh, Deus, Deus do Céu, Isidora, Isidora, que coisa tão ridícula...

Permaneceu sentada naquela cama, imobilizada pelo pensamento que a assaltara. Grandes esperanças. Quem tinha dito aquilo? Ah, sim, Dickens. Sentiu-se vazia de emoção, como se não tivesse sido penetrada, como se não tivesse sido tocada, como se tivesse de facto acabado de entrar pela primeira vez naquela palhota. Todavia, tinha havido ali um acto de amor, mais propriamente de cópula desempenhada por um só dos parceiros da realização sexual. Quem diabo poderia, no mundo, saber aquilo além dela própria?

O Dr. Chapman, evidentemente. Não, o Dr. Chapman não. Ele não tinha um mapa estatístico para poder medir as grandes esperanças. Quem, pois, poderia compreender o caso? Stendhal, sim, apenas esse. Inevitavelmente acudiu-lhe ao espírito a frase por ele pronunciada aquando da realização do seu primeiro acto de amor: Quoi, n'est-ce que la? Fitou a suja e desmazelada cela em que estava encerrada, aquele simulacro de alcova, viu os pregos espetados na parede onde não havia a suspensão de um toque de arte, olhou o tecto, onde, em certas partes, se viam as fasquias através dos remendos no estuque e fixou uma bola oval que se via a um canto.

Deslizou para a beira da cama.

—        Que tal, queridinha? — perguntava Ed.

Meu Deus, pensou, ele deseja a minha gratidão.

—        Excelente, magnífico — pronunciou.

—        Bem, sempre que queiras...

Teresa vestiu-se rapidamente sem olhar para ele.

—        Eh, está a preparar-se para se ir embora?

—        Tenho que ir.

—        E quanto ao nosso próximo encontro? Lembre-se de que tem de me pintar — ria deliciado pela sua própria gracinha.

—        Depois lhe comunicarei.

Teresa puxou o fecho do vestido e enfiou os sapatos. Agarrou na mala de mão e começou a encaminhar-se para a sala.

—        Espere um momento — veio a voz de Ed. — Nem sequer sei o seu nome...

Teresa continuou a andar, atravessou a sala, abandonando o material de desenho em cima da mesa, até atingir a porta da rua. Só respirou quando começou a descer os degraus exteriores de madeira. Foi então que deitou uma olhadela ao mostrador do relógio. Tinha chegado àquele lugar às cinco e trinta e cinco; nesse momento, os ponteiros indicavam as cinco e cinquenta e dois.

Estaria em casa muito a tempo de receber os seus primeiros convidados.

Muito embora ainda faltasse meia hora para o jantar ser servido, Jefferson ia na sua terceira ronda pela sala de estar e pelo pátio, oferecendo bebidas da bandeja que transportava e atendendo novos pedidos. A bola dinamarquesa, exposta no bufete, cortada ao meio, entre um arranjo de jarras de flores, parecia ser o sucesso da reunião.

Teresa, que passeava apoiada ao braço do marido, já tinha recebido cumprimentos de quatro convidados.

—        Foi muito inteligente da tua parte — sussurrou-lhe Geoffrey, orgulhoso.

Teresa encostou-se mais a ele.

—        Adoro-te — disse-lhe.

O chapéu de copa alta inclinou-se. Teresa corrigiu-lhe a posição e acenou com o charuto para os grupos de amigos.

—        Não é engraçado?

Há muitos meses que ela não saboreava os prazeres do seu abastado lar, os montes de adoráveis quadros pendurados pelas paredes, o seu distinto marido, os seus inteligentes amigos. Era uma verdadeira noite de glória.

—        Olha! — exclamou ela, apontando para a porta que Jefferson acabava de abrir. — Eis Kathleen. Não está admirável?

Kathleen Ballard deixara escorregar a sua estola de arminho pelos ombros, e Paul tirou-lha e estendeu-a a Jefferson. Kathleen vestia nuvens de finas ondas de gaze, à maneira de um vestido grego, com uma ousada décolletage. Depois de ter mandado arranjar o vestido, sentira-se um bocado embaraçada por ter de usá-lo, mas finalmente envergara-o sem falsos pudores. Sem dúvida que era ousado, despido, mas, afinal de contas, condizia com a mulher que desejara ter sido no dia em que Paul a entrevistara, e talvez que aquilo o ajudasse a compreender o seu ser subconsciente.

Já Teresa Harnish, seguida do marido, estava junto dela:

—        Kathleen, está divina! O que é que isso significa? Uma vestal?

—        Lady Emma Hamilton, segundo espero — respondeu Kathleen. — Era esta a maneira como ela se vestia.

—        Claro que sim! — disse Teresa, afastando-se e enquadrando:. Kathleen no seu escrutinar. Depois, voltou-se para Geoffrey. — A Lady Hamilton do quadro de Romney.         

Geoffrey anuiu sabiamente:

—        Galeria Nacional. Londres.

—        Suponho que foi essa a pintura que eu vi reproduzida naquele livro — disse Kathleen.

—        O mais inocente, adulado e belo retrato de uma mulher que foi transportado para uma tela — proferiu Geoffrey.

—        Romney ultrapassou-se a si próprio nessa obra.

—        Foi Deus que guiou a mão do artista — acentuou Teresa.

—        Olé! — exclamou Geoffrey, entusiasmado.

Kathleen agarrou na mão de Paul.

—        Apresento-lhes Paul Radford. — Depois para Paul: — Os nossos anfitriões, Teresa e Geoffrey Harnish.

Já no meio das apresentações, Teresa lembrou-se de que havia concordado com Paul em não mencionarem a ligação que ele tinha com o Dr. Chapman.

—        Paul é escritor — acrescentou Kathleen de um modo um tanto vago.

Kathleen e Paul, fortificados com um segundo copo de scotch e soda, estavam a conversar com Mary e Norman McManus. Originalmente, Mary havia pretendido aparecer fantasiada de Florence Nightingale, a prestimosa enfermeira, segundo sugestão dada pelo pai. Mas, naquela mesma manhã, depois do pequeno-almoço, decidira considerar o trajo de enfermeira como uma coisa demasiado piegas. Sentia-se tão temerária e independente como qualquer daque-las mulheres pioneiras que tinham partido para o Oeste em busca do desconhecido. Após cuidadosa consideração, havia rejeitado Jessie Fremont por Belle Starr, e agora envergava uma camisa preta, uma saia de coiro, um chapéu de vaqueiro e um coldre com um revólver respeitável, fantasia alugada num guarda--roupadeMeldrose.

—Tenho verdadeira pena que Naomi não possa estar presente. E ela está melhor? — perguntava Mary a Kathleen nesse momento.

—        Muito melhor — respondeu Kathleen. — Sabe bem como as constipações são difíceis. Creio que está a projectar fazer uma viagem para o Leste desde que se sinta mais forte.

—        Maravilhoso. Ela já se levanta?

—        Sim, parece-me que sim.

—        Bem — disse Mary, segurando na mão de Norman e encos-tando-se meigamente a ele —, nós, de certa maneira, também nos preparamos para fazer uma viagem.

—        De verdade? — perguntou Kathleen.

—        Não, não é uma verdadeira viagem — respondeu Norman. — O que acontece é andarmos à procura de casa só para nós.

—        É a coisa mais inteligente que podem fazer. Se encontrarem dificuldades, dirijam-se a Grace Waterton; ela conhece todos os agentes de vendas de The Briars.

—        Muito obrigado, mas não devemos ficar em The Briars. Compreende, vou trabalhar por conta própria, tenho uma sociedade com um amigo de escola, e os nossos escritórios são no centro de Los Angeles.

—        Qual é a sua profissão? — perguntou Paul.

—        Leis. Sou advogado. Vai-me levar tempo a assentar os pés no chão — voltou-se para Kathleen. — Seja como for, se ouvir falar de uma casa de preço razoável no vale, não se esqueça de nos avisar.

Examinou o seu copo.

—        Desculpem-me, quero tomar mais outro.

Norman dirigiu-se ao bar. Mary atrasou-se um momento, encostou a boca ao ouvido de Kathleen e murmurou-lhe:

—        Vamos ter um filho.

—        Oh, Mary!... Para quando?

—        Em breve, estamos a trabalhar para isso — piscou o olho e apressou-se a ir atrás do marido.

Mary e Norman McManus tinham aceitado novas bebidas preparadas por Jefferson e estavam nesse momento a conversar com Úrsula e Harold Palmer. Úrsula, após aturada pesquisa nos recessos da sua imaginação, acabara por preparar uma versão modernizada de Lucrécia Bórgia. Usava uma rede recamada de jóias nos cabelos, com um véu finíssimo que lhe envolvia o rosto até à garganta, um comprido vestido até aos pés, de cetim verde-esmeral-da, um cinto de prata e calçava sandálias, onde brilhavam fieiras de pérolas.

—        Não podia mais com aquela danada revista — dizia Úrsula a Mary e Norman.—Aquele nauseante mote: «A revista, que é uma companhia, que está ao serviço do espírito e da terra», era suficiente para fazer uma pessoa vomitar as tripas.

Mary não sabia que resposta dar. Assinava a Houseday desde que se casara e colocara-a num lugar de evidência e autoridade ao lado de Harry Ewing, Hannah e Abraham Stone, do Novo Testamento e do Dr. Norman Vincent Peale, mas agora não iria admitir ter sido uma leitora constante e, secretamente, decidiu relegar a publicação para um canto da sua vida, para uma posição de menos relevo, tal como a despromoção sofrida recentemente por Harry Ewing.

—        Não a censuro, Úrsula — disse canhestramente. Mas acrescentou a seguir com mais segurança: — a verdade é que as pessoas crescem.

—        É isso exactamente — corroborou Úrsula, que acabava de provar o licor. — O editor tinha grandes planos a meu respeito, uma posição executiva na sede de Nova Iorque, a redacção, mas eu não podia figurar-me, juntamente com Harold, confinada à vida medonha da Madison Avenue, vivendo de lugares-comuns (fora aquela a versão oficial do caso que havia sido apresentado a Harold após a vergonhosa cena com Foster), especialmente desde que Harold está a singrar tão maravilhosamente no seu negócio.

—        Consegui a contabilidade Berrey — explicou Harold a Norman. — É uma grande cadeia de drugstores.

—        Bem sei — assentiu Norman. — Estou interessadíssimo em saber que tal é a sensação de uma pessoa ser independente. Um amigo meu, Chris Shearer, que foi meu companheiro de escola, vai ser meu sócio. Vamos trabalhar em conjunto com um escritório de advocacia.

—        Claro que nem tudo são rosas — perorou Harold, sentencio-samente. — Há que esperar um bocado de luta.

—        Já espero isso mesmo — respondeu Norman.

—        Mas não tardará muito tempo que você progrida — continuou Harold. — Especialmente se tiver uma mulherzinha a apoiá-lo.

Úrsula banhou o marido num sorriso já perturbado pelos fumos do álcool.

—        Sim, o facto é que Úrsula tem sido uma auxiliar precio-sa no escritório. Eu tinha lá uma rapariga, mas Úrsula vale por dez empregadas, e isso é tudo o que um homem precisa para progredir e agitou um dedo na direcção de Mary. — Tem que apoiá-lo com todas as suas forças, Mary. Procurem o que há por detrás de todos os grandes homens e encontrarão uma grande mulher. Por exemplo, Richelieu... — a frase foi deixada em suspenso, porque com apreendeu que não fazia sentido, e distraiu as atenções, permitindo , que o barman deitasse mais martinino seu copo, emendando depois:

—        Vejam, por exemplo, o caso da Sr.B Roosevelt: sem ela o marido não chegaria ao que chegou.

A mão de Mary procurou a mão do marido. Apertou-lha com ternura, e os seus dedos ágeis fizeram-lhe uma carícia significativa na palma que se lhe abria. Harold continuava a perorar:

—        Um pouco de determinação é tudo quanto você necessita.

Levei tempo a caçar o Berrey, mas...

A Sr.â Symonds, no seu vestido branco de cozinheira, oferecia a bandeja recheada de canapés de lagosta e de bolinhas de carne com caril a Úrsula e Harold Palmer, que estavam no pátio entabulando uma conversa com Sarah e Sam Goldsmith.

Harold, aceitou distraído o canapé que a mulher lhe passara e continuou a fixar espantado a grande porção de barriga que Sarah tinha a descoberto. Sarah havia desafiado o sentido de convenção social de Sam, convertendo o vestuário outrora utilizado numa sala de danças modernas numa fantasia de Mata-Hari. Com uns panos vaporosos construíra uma pequena obra de arte, mas, respeitando a tradição da bela espia, deixara a barriga completamente à mostra, tal como Mata-Hari aparecia em certas fotografias. Sam sentia-se pouco à vontade com a ousadia da mulher.

A fim de ganhar a simpatia de Sam e talvez para conseguir apanhar-lhe a contabilidade da sua loja de vestuário, Harold começara a perguntar-lhe coisas a respeito do negócio que geria. Sam, a voltar constantemente os olhos preocupados para a fantasia indecente da mulher (que irá esta gente pensar de uma mulher assim vestida, que é mãe de dois filhos?), queixava-se em tom lamentoso do aumento sofrido pelas mercadorias, da perfídia dos empregados, dos impostos sobre as vendas, dos impostos sobre o rendimento, dos impostos de propriedade e da obra nefanda estabelecida pelas cadeias de monopólios.

Úrsula, tranquilizada pelo álcool, meio atenta à conversa, murmurava, de tempos a tempos, palavras de assentimento e concordância, com a compreensão instintiva de que aquela história dos negócios podia vir a enriquecer o seu próprio negócio.

Sarah, que não prestava atenção nenhuma, dava um toque na massa do cabelo. Não achava muita piada ao vestuário que escolhera, mas não poupava nenhum gesto que pudesse compungir Sam. Observando o perfil do marido enquanto ele falava, o nariz um bocado pontudo e o longo maxilar, como a mandíbula de um mastim, Sarah pensou naquelas caricaturas semíticas outrora apresentadas por Streicher no DerStúrmer, mas compreendeu que a comparação não era nada elegante, e que não era o seu tipo semita que mais lhe bulia com os nervos. O que a irritava era a opressão da banalidade representada pelo marido, tanto no lar como num meio social. A frustração de estar entre aquelas pessoas interessantes, com um companheiro que era um falhanço, um homem que de nenhuma maneira representava a sua maturidade de escolha, em vez de estar com o companheiro que realmente amava, que teria reflectido o seu fino julgamento de perfeita harmonia sexual no brilho da sociedade circundante, era uma coisa que a minava interiormente e lhe azedava o humor.

Ao ver Grace Waterton entrar no pátio, Sarah acenou com a mão para lhe chamar a atenção. Preferia tudo, fosse o que fosse, a ter que estar a aturar o aborrecido monólogo de Sam sobre o seu negociozinho. Grace respondeu-lhe agitando a sua écharpee abriu caminho por entre os convidados. O seu vestido de veludo da era Tudor, farfalhava por entre a massa de gente. Grace pretendera que aquilo fosse o seu modo de expressar Ana Bolena, a inditosa mulher de Henrique VIII.

—        Sarah, tenho andado à sua procura por toda a parte — disse Grace rapidamente. — Neste momento estava à procura do Sr. Waterton (era sempre assim que ela se referia ao marido), mas a verdade é que precisava imenso de falar consigo.

Sarah considerou que nada, fosse o que fosse, desde uma saraivada a trovoadas e coriscos, seria capaz de travar a loquacidade de negociante de Sam, e que ele muito menos seria detido pela apresentação de Grace Waterton. Por isso voltou as costas ao marido e ao casal Palmer e isolou-se com Grace.

—        Está divina, minha querida — dizia Grace, nesse momento.

— Como é que se arranja para ter essa figurinha esbelta de colegial?

Sarah ficou encantada.

—        É fácil, nada de comidas indigestas e gordas nem de sobremesas, além da fruta.

—        Sarah, temos estado a pensar seriamente em voltar, este Verão, a pôr em cena outra peça. A do ano passado constituiu um enorme êxito, e sem dúvida que você foi uma autêntica revelação. Vamos tentar reunir o mesmo elenco. Talvez se represente O Leque de Lady Windermere. Você faria uma magnífica protagonista, o seu tipo é ideal. Claro que, se preferir, pode desempenhar a parte de Mrs. Erlyne.

—        Tenho receio de não poder ajudá-las, Grace. Tenho andado tão ocupada... Depois há as crianças...

—        A peça não irá à cena antes de Agosto. Nessa altura já você tem as crianças no acampamento de férias.

—        Penso que não pode ser, Grace. Sam e eu devemos ir para fora.

Grace suspirou.

—        Meu Deus, parece que toda a gente se combinou para viajar. É a segunda pessoa que tenho que riscar da lista, e pela mesma razão.

Uma certa intuição restringiu a pergunta que estava na ponta da língua de Sarah, mas ela forçou-a a libertar-se.

—        Qual é a outra pessoa que foi riscada da lista?

O olhar de Grace errava pela sala à procura do marido, mas acabou por se voltar para Sarah, ao ouvir a pergunta.

—        Fred Tauber — respondeu. — Lembra-se dele?         

—        Perfeitamente.        

—        Pensei que era melhor começar pelo encenador. Afinal, é dele o maior trabalho na montagem de uma peça. Telefonei-lhe esta manhã... 

As faces de Sarah ardiam. Era estranho ouvir alguém como Grace pronunciar o nome de Fred; af igurava-se-lhe que estavam a invadir o santuário da sua vida, o eremitério onde ela se escondia com o amante. Sarah havia telefonado a Fred na tarde anterior, quando fora fazer compras a Village Green. Ele atendera o telefone, mas falara-lhe de modo distante, perturbado. Antes disso, tentara ligar para ele inúmeras vezes sem conseguir encontrá-lo, e dissera-Lhe isso mesmo com certa mágoa; afirmara-lhe ter ido a casa dele desesperada por causa do homem do Dodge. Fred contara-lhe que tivera que se deslocar ao advogado. Sarah aproveitara o ensejo para lhe perguntar se havia qualquer novidade, mas Fred replicara com impaciência que estava tudo bem, tinha ido ao causídico por causa de um contrato — de facto, nesse mesmo momento estava a meio de uma conferência sobre o assunto. Sarah ficara mais aliviada, porque o facto explicava o tom distante da voz dele e a impaciência demonstrada. Sarah perguntara-lhe quando é que se poderiam encontrar, lembrando-lhe que havia quatro dias que não se viam, e Fred explicara-lhe que no dia seguinte pela manhã tinha que sair, mas que devia estar em casa no sábado de manhã, aconselhando--a a contactar com ele nesse dia.

—... e tivemos uma breve conversa — estava Grace a dizer.

—A senhora telefonou-lhe esta manhã?— Claro que sim. Por que não?

—        É que... julguei... pensei que ele estivesse a trabalhar.

—Vou contar-lhe tudo o que aconteceu, minha querida. Disse-lhe como toda a gente adorara o seu trabalho na última peça, como ha sido maravilhoso da sua parte ter colaborado e como necessitavamos de novo da sua preciosa colaboração. Na verdade julgava e o tinha seguro devido àquilo que ouvira dizer...

—        E o que foi que ouviu dizer, Grace?

—        Fred Tauber é um indivíduo marcado, uma espécie de pestícero para a gente do cinema e do teatro, no espaço de dois anos ninguém se atreveu sequer a oferecer-lhe a direcção de um espetaculo de marionetas.

Sarah, insensivelmente, viu que as unhas se lhe cravavam nas almas das mãos. Teve ganas de arrancar os olhos a Grace. Com if iculdade conseguiu refrear a cólera que sentia tremer na voz.

—        Não posso acreditar nesses boatos falhos de senso. Fred Cuber é um génio. Toda a gente que trabalhou com ele o sabe.

—        Ora, não tome o assunto tão a peito. O que é que pretende Lom essa atitude, fazer uma transferência de personalidade para o eu ensaiador? Pronto, ele é um génio, simplesmente é um génio a uem ninguém dá trabalho. Só estou a repetir o que toda a gente abe que é verdade. Por causa da sua ociosidade, pensei que o oderia ter bem seguro, mas por infelicidade nossa Fred Tauber onseguiu arranjar um contrato há dois dias.

—        Sim? Onde?

—        A direcção de uma série para a televisão que vai ser filmada o México e na América Central. Creio que ele me disse que a produção se chamaria Os Fiisbusteiros; um filme de aventuras nos mares das Caraíbas, todas aquelas histórias de saques e pilhagens, duelos, etc, bem sabe como essas coisas são. Não é má ideia. Talvez o filme seja apadrinhado por qualquer companhia bananeira. Seja como for, o que interessa é que Fred Tauber parte amanhã para a Cidade do México para filmagens de exteriores.

Não é mesmo má sorte da nossa parte?

—        Parte amanhã? — a voz de Sarah tremia, sentia-se como se fosse desmaiar.

Grace pareceu não ouvir as palavras dela, o tom em que eram pronunciadas.

—        Mas o melhor está por vir. Até mesmo esse trabalho que ele arranjou não passa de uma coisa postiça. Esta manhã tive que telefonar a Helen Fleming a dar-lhe a má notícia de não termos encenador. Como sabe a Helen faz parte da comissão para a peça.

Pois bem, o marido dela trabalha nos estúdios, e foi um amigo dele, um tipo chamado Reggie Hooper, quem criou a série que vai ser rodada. Parece que a mulher de Tauber... — fez uma pausa. — Você sabia que Fred Tauber tem uma mulher?

Sarah abanou a cabeça, estava pálida como uma morta.

—        Pois a mulher de Fred Tauber ó filha de um desses grandes senhores do cinema. É uma mulher da grande sociedade e foi criada num berço dourado. Acontece que já é um pouco entradota em anos. Suponho que Fred Tauber se casou com ela por esperar a ajuda que lhe poderia prestar na sua carreira de realizador. Bem, parece que de facto ela o ajudou um bocadinho, mas não o bastante, e Fred desatou a ter relações com figurantes e a mulher acabou por descobrir. Houve uma forte discussão mesmo no Romanoff, e Fred acabou por deixá-la. Despeitada, a mulher fez queixinhas ao importante papá, e este colocou Fred na lista negra até ir comer milho à mãozinha da mulher. Fred manteve uma persistente negativa em ceder e, por isso, foi esquecido pelos estúdios e pela televisão. Não era considerado como tendo talento bastante para que alguém do mundo da sétima arte se atrevesse a desafiar o poderoso sogro, daí que Fred Tauber não teve mais remédio senão andar aos biscatos e continuar a ter relações escusas com umas tantas figurantes. Mas o melhor do caso é que, ao que parece, a mulher ama-o realmente, ou, pelos vistos, não está disposta a ver o seu nome arrastado na lama e a sua vida íntima discutida na sala de um tribunal. Parece que há um filho que está não sei onde; e foi ela que resolveu procurar Tauber. Julgo que foi ela que lhe forneceu dinheiro para uns quantos trabalhos independentes que nunca se concretizaram ou se malograram. Seja como for, há pouco tempo parece que ela descobriu que ele andava caidinho com uma actriz ou coisa que o valha. Segundo ouvi, a ligação estava a tomar um carácter sério, e a mulher resolveu acabar com o romance.

Assim, comprou o programa de televisão e ofereceu a Tauber sociedade nas filmagens de séries, se ele se deslocasse ao México e fosse o realizador do programa. Não estarei muito longe da verdade se pensar que ela não tem nenhum interesse na televisão e só quer pô-lo a mexer daqui para fora. E, afinal, quem é que sofre com tudo isso? Somos nós, por nos vermos privados de um bom encenador. Se as pessoas soubessem os trabalhos por que passa a Associação...

Foi uma voz estranha, de homem, que atendeu o telefone, e Sarah pediu para chamarem Fred Tauber.

— Um momento, por favor — disse-lhe a voz.

Sarah estava sentada à beirinha do grande almofadão, no escritório, com o telefone sobre os joelhos, sentindo as têmporas a latejarem e tendo também uma sensação de agonia.

Minutos antes, para se ver livre de Grace, precipitara-se para o quarto de banho, fingindo que ia retocar a maquilhagem. Depois enfiara pela grande sala de jantar, onde fora encontrar Geoffrey Harnish a conversar, em tom pomposo, com um convidado. Murmurara a Geoffrey que precisava de fazer uma chamada urgente e em privado, e o dono da galeria de arte e anfitrião, de maneira graciosa, conduzira-a para o escritório. Depois de lhe ter afagado o pescoço com o seu bigode de hussardo, o dono da casa dissera-lhe que poderia estar perfeitamente à vontade se fechasse a porta por dentro. Relutantemente, Geoffrey decidira-se por fim a abandonar o local, e Sarah fechara a porta com o trinco.

—        Está?— era a voz de Fred, num tom apressado.

—        É Sarah que fala.

—        Querida, agora estou muito ocupado...

—        Seja o que for, pode esperar. Tens que me ouvir. O tom da voz pareceu acalmá-lo.

—        Muito bem. De que é que se trata?

—        Sei tudo acerca das tuas danadas séries de televisão, e que partes amanhã para o México. Estou numa festa onde me falaram do caso. Só quero que me digas o que há de verdade. Quero ouvir a verdade da tua boca.

—        Bem, deixa-me que explique... só um segundo...

Aparentemente, Fred devia ter tapado o bocal com a mão. Sarah tentou imaginar o que ele estaria a fazer. Imaginava-o a dizer aos outros que se tratava de um assunto privado. Eles poderiam ficar na sala enquanto Fred ligaria o telefone para a extensão existente na casa de banho. Ei-lo que falava:

—        Bom, agora já podemos falar, Sarah, não tive coragem de te dizer o que se passava... Depois desta reunião pensava escrever-te um bilhetinho...

—        Um bilhetinho?— Sarah teve consciência de que a sua voz reflectia ira, mas não se importava um pepino com isso.

—        Uma carta. A explicar-te tudo.

—        Sabias muito bem do caso, quando ontem te telefonei. Porque é que não me disseste nessa altura?

—        Havia gente ao pé de mim...

—        Queres dizer que estava aí a tua mulher, não é verdade?

—        Pois bem, era de facto a minha mulher, e depois?

—        Se tivesses ouvido o que eu ouvi... Não é necessário procurarmos mais. Ela sabe tudo a nosso respeito. Atirou-te com o osso dessa série de televisão para te obrigar a sair da cidade.

—        Quem é que te contou essa aldrabice? — era furiosa a voz dele. — Ninguém iria gastar cinquenta mil dólares só para me pôr fora da cidade, nem mesmo a minha mulher.

—        Penso que não me vais dizer que ela não tem nem um cêntimo empregado, pois não?

—        Não estou a dizer nada disso. Claro que ela é um dos accionistas. É uma mulher de negócios e sabe muito bem aquilo que posso fazer. Mas a verdade é que há mais pessoas interessadas no caso.

—        Tudo o que ela quer é separar-nos. E tu, por um miserável trabalho, estás a consentir nisso.

—        Isto não tem nada a ver com ela, Sarah, procura ser sensata. Sou um homem. Um realizador. Tenho que trabalhar. Esta série é uma coisa que se coaduna comigo, e quero realizá-la. É tudo.

Sarah sentiu-se como que ferida de morte, cega pela dor. Naquele momento não desejava mais nada que magoar Fred, feri-lo também.

—        Todo o tempo em que estivemos juntos, todas essas palavrinhas meigas não passaram de uma mentira descarada. Acontece que, mesmo quando tínhamos relações, estavas a pensar na televisão e em todo esse dinheirinho dela que podia escorrer.

—        Sarah! Que diabo se passa contigo? Nem posso acreditar que sejas tu a falar assim. Conhecendo-me como conheces, julgas que aquilo que fiz contigo foi forçado, que te disse coisas em que não acreditava? Sentes-te enervada porque ouviste faiar do caso de maneira errada.

—        Sim, estou enervada, sinto-me abandonada, todo o meu desejo é chorar, gritar...

—        Já te disse que tencionava dar-te uma explicação. Projectava arranjar tempo para te escrever esta noite. Bem sabes que significas muito para mim. És a coisa mais importante que existe na minha vida, com excepção do meu trabalho. Sou um homem. Tenho que trabalhar... Mas todo o resto da minha vida te pertence...

Sarah amava-o tanto! Adorava tanto aquela voz tema, o suave toque dos seus dedos! Fred era a sua vida, toda a sua existência.

—... de resto estarei de volta dentro de seis semanas — continuava Fred. — Então, de novo estaremos unidos como antes.

—        Não posso estar seis semanas sem te ter. Morrerei.

—        Eu voltarei, Sarah.

—        E depois disso? Mais viagens? Não... não, Fred, escuta-me, não podemos continuar assim. Não me importo com mais nada senão contigo, e nada pode fazer mudar o meu sentimento.

A lembrança sobrepôs-se-lhe às palavras: durante a entrevista tomara uma resolução inabalável, discutir o caso com Sam, esclarecendo as coisas de uma vez para sempre. O que a levara a postergar essa resolução haviam sido os filhos. Os filhos e a torrente do escândalo, que a afastaria dos seus familiares e amigos. Mas agora estava convencida a viver a sua vida como devia ser vivida. Tudo passava, tudo menos o verdadeiro amor. Poderia voltar a ter, a ver os filhos, e de novo conquistar os seus familiares e amigos. Todos os dias havia pessoas que se divorciavam e tornavam a casar-se. É uma coisa perfeitamente aceitável. Sam tinha a lojeca e as peças de pano para medir, tinha a televisão e a sua cadeira favorita. Para o diabo com Sam. Lá porque ele estava morto devia ela também deixar-se fechar no mesmo túmulo? Todos estes pensamentos lhe passaram com fabulosa rapidez pelo ecrã da memória. Apressou-se a continuar:

—        Vou partir contigo. Encontro-me contigo pela manhã no aeroporto.

—        Sarah, tu não podes fazer isso! É preciso que sejas um bocadinho sensata...

—        Pela primeira vez na minha vida estou a actuar com a maior sensatez possível. Sim, encontro-me contigo no aeroporto.

—        A tua família...

—        Não me importo. Tu és a minha família.

—        Sarah, lembra-te de que eu parto com uma equipa. Entre nós não há lugar para mulheres. Não posso...

—        Então tomarei o avião seguinte. Para onde é que vais?

—        Estarei ocupado todos os minutos. Tenho que andar por toda a parte...

—        Para onde é que vais? Deve haver um lugar qualquer onde te alojes.

—        No Hotel Reforma — acabou ele por dizer, com voz tristonha. —Julgo que não deves dar esse passo, Sarah. Penso que é melhor reflectires maduramente sobre o caso. A noite é boa conselheira.

—        Não.

—        Não te posso impedir de ires para o México, evidentemente que não...

—        Sim, podes impedir-me de partir. Diz que não me amas. Diz-me que não me queres ver mais. Pronuncia essas palavras.

Houve um momentâneo silêncio do outro lado do fio.

—        Não te posso dizer isso, mas...

Alguém batia à porta do gabinete.

—        Agora tenho que desligar — disse Sarah, num sussurro. — Ver-nos-emos no aeroporto.

Colocou o auscultador no descanso, alisou as pregas do vestido e abriu a porta.

Era Geoffrey, com dois copos na mão.

—        Scotch ou bourbon? Pode escolher a sua arma.

—        Bourbon.

Geoffrey estendeu-lhe o copo que tinha na mão esquerda.

—        Pensei que necessitasse disto — disse Geoffrey.

Sarah sorriu com ar triste.

—        Mata-Hari não precisaria. Mas não há dúvida de que para mim é ouro sobre azul.

Os primeiros convidados começaram a sair à meia-noite e meia hora. Quinze minutos depois, Kathleen e Paul despediram-se dos Harnish e, metendo-se no carro que Paul tinha levado, dirigiram-se para a vivenda de Kathleen, situada a cerca de dez quarteirões de distância.

Kathleen tinha gostado do jantar, e Paul também, ambos ple- namente conscientes de que havia sido a sua formal apresentação social como companheiros. Agora, recordando-se dos incidentes que tinham esmaltado a festa, riam-se, e Paul relembrou o facto da grande bebedeira dos Palmer a fazerem uma paródia que representava o Dr. Chapman a entrevistar Lucrécia Bórgia sobre o seu comportamento sexual.

—        Imagine-se se eles tivessem sabido que você era um dos membros da equipa de sondagem! — e Kathleen abanava a cabeça.

—        Úrsula prosseguiria fosse como fosse. Estava completamente embriagada.

Kathleen olhou para ele pelo canto do olho.

—        Não ficou ofendido?

—        Não. Desejava ter sido eu a assinar aquela paródia... Que diabo, não. Temos que fazer jogo limpo.

Ao voltar na rua onde ficava a vivenda de Kathleen, ambos se calaram como que por um tácito acordo. A lua em quarto minguante erguia-se lá muito em cima no negro escrínio da noite, circundada por pequenos pontos brilhantes, as estrelas, que lucilavam a intervalos regulares. Em ambos os lados da estrada, misteriosas silhuetas, os renques de eucaliptos curvavam-se respeitosamente, batidos por uma ligeira brisa, como se fossem velhos mordomos. O ar estava embalsamado por um forte odor a gardénias.

Paul guiou o carro para o caminho privado da vivenda de Kathleen, e em breve estavam em frente do pórtico. Deu a volta à chave de ignição, e o motor deixou de fazer o seu característico ruído para dar lugar à cadência dos grilos escondidos na relva.

Kathleen colocou em volta dos ombros a sua estola de arminho e a seguir cruzou as mãos no regaço, voltando-se para encarar Paul.

—        Convidava-o para vir até lá dentro, mas a verdade é que já é muito tarde.

Os olhos de Paul escrutinaram-lhe o rosto.

—        Que foi que disseram os nossos anfitriões? Um quadro de Romney — o mais lindo rosto desde sempre transmitido para uma tela, não foi? Qualquer dia temos que ir ver esse quadro ao vivo, e depois hei-de mostrar-lhe que a pintura não tem metade da sua beleza, Kathleen.

—        Não diga essas coisas, Paul, a menos que as sinta.

—        Amo-a, Kathleen.

—        Paul... Eu...

Ela fechou os olhos, com os vermelhos lábios trementes, e Paul abraçou-a e beijou-a. Pouco depois, quando Paul lhe percorria o rosto, os olhos, a fronte e o cabelo com os seus ardentes beijos, até de novo lhe encontrar a boca carnuda e entreaberta, Kathleen agarrou-lhe na mão, levou-a ao peito e comprimiu-a por baixo do corpo do vestido, insinuando-a dentro do soutien. Gentilmente, Paul acariciou-lhe o seio macio, depois retirou a mão e acariciou-lhe o rosto com as pontas dos dedos.

—        Kathleen, amo-a. Quero casar-me consigo.

Os olhos dela abriram-se, e, subitamente, empertigou-se, olhando para ele, estática. No seu olhar havia agora um brilho receoso.

—        Devo partir no domingo, mas o Dr. Chapman deve-nos umas férias. Posso pedir para ficar aqui. Podemos dar uma saltada de avião a Las Vegas, ou casar pela Igreja, se a Kathleen quiser assim.

—        Não.

Paul não pôde esconder o seu espanto:

—        Pensei que... tenho estado a dizer-lhe que a amo; desde o primeiro momento que lho tenho tentado dizer... e pensei que..-pareceu-me que a Kathleen sentia...

—        Sim, sinto o mesmo que você, Paul, mas não quero agora voltar a falar no caso.

—        Não a compreendo, Kathleen.

Ela tinha a cabeça curvada. Não deu resposta.

—        Kathleen, há muito tempo que sou um solteirão. Sabia muito bem que, quando amasse alguém, seria para sempre, seria a mulher ideal para mim. Sabia-o desde sempre, e é justamente o que agora sinto. Fomos feitos um para o outro, somos duas pessoas conscientes que se amam, e podemos unir os nossos destinos para toda a vida.

Kathleen ergueu os olhos para ele. Na sua fixidez havia uma mágoa secreta que Paul nunca antes vira.

—        Por agora não posso dizer mais nada. Quero-o com todo o meu coração. Mas agora é melhor que não digamos mais nada... e não me peça para lhe explicar.

—        Mas isso não faz sentido nenhum. É por causa do seu marido?

—        Não.

—        Então porque é, Kathleen? Este é o momento mais importante das nossas vidas. Não pode haver segredos entre nós. Diga--me o que é que a magoa, desabafe comigo. Explique-se, e depois poderemos ter-nos um ao outro sem mais receios.

—        Paul, estou demasiado fatigada—Kathleen abriu a porta do carro e, antes que ele pudesse dizer mais qualquer palavra, saiu. — Não lhe posso responder... porque não posso. Não me peça lógica. Neste momento estou demasiado fatigada para poder falar... imensamente cansada...

Kathleen voltou-se e dirigiu-se rapidamente para a porta. Meteu a chave na fechadura e entrou sem lançar um olhar para trás de si.

Paul ficou sentado ao volante sem fazer um movimento. Decorreram vários minutos. Tentava compreender os porquês, mas sem um ponto de referência, sem lógica, sem informação e sem diálogo não podia haver qualquer compreensão. O incrível da situação aca-brunhava-o. Há mais de trinta e cinco anos que ele buscava aquela mulher, aquele delicado e etéreo quadro de Romney, e, após a infinita odisseia através da solidão, havia-a encontrado. Todavia, o que encontrara não fora uma mulher, mas sim uma imagem que não tinha substância nem realidade. Pensou que não havia maneira de uma pessoa possuir algo que não existe. O peso do desapontamento esmagava-o.

Ligou o motor. Doente até ao âmago da alma, Paul conduziu o carro através dos arruamentos de The Briars, a caminho do refúgio que possuía a rara qualidade de não ter segredos para ele, que não o desapontava—o refúgio dos números, frios e explícitos, até mesmo calorosos na sua calma disposição e ordem, cuja alteração obedecia a regras inflexíveis e condizentes com a razão pura.

Tendo completado uma carta para Gerald Triplett, dirigida para S. Francisco, e uma longa carta para sua mãe, em Beloit, Wisconsin, Benita Selby, sentada à sua secretária, colocada no corredor do segundo piso da Associação Feminina de The Briars, pensava agora o que iria fazer a seguir. Uma vez que ainda era muito cedo para tirar todas as coisas de trabalho da secretária, decidiu assinalar no seu diário o último dia de permanência na Califórnia.

Foi com alguma dificuldade que Benita conseguiu extrair o diário do seu saco de mão; colocou o livro aberto em cima da secretária, folheando algumas páginas com lentidão a admirar algumas das observações que lhe pareciam ser pequenas obras-primas de espírito e síntese literária, até chegar à primeira folha em branco.

De caneta em riste, começou a escrever apondo a data de domingo, 6 de Junho: «Muito bem, estão a soar as trombetas para o Dia do Juízo Final. Devido a vários cancelamentos durante a semana, aliás como se previa, hoje será um dia dedicado a entrevistas. O Dr. Chapman, Horace e Paul têm programadas quatro entrevistas cada um, desde as dez e meia da manhã às cinco e meia da tarde. Com isto concluir-se-ão 187 sondagens em The Briars e as 3 294 ao nível nacional, conseguidas em catorze meses de trabalho intenso. Com isto, no que diz respeito ao exterior, completam-se as sondagens sobre a mulher casada americana. Cass ainda continua doente. Esteve bastante mal durante o dia de ontem. Esta manhã, muito cedo, pegou no carro e foi de novo procurar o médico. O Dr. Chapman está a trabalhar na sala de conferências, preparando as notas para o programa de televisão de amanhã de manhã. O programa de Borden Bush, Um Lugar em Foco, tem o Dr. Chapman como convidado de honra para discutir o seu trabalho com três peritos. Espera-se que a emissão venha a ser uma das mais espectaculares e com mais espectadores do ano. O Dr. Chapman disse-nos: "Benita, o programa é muito importante para mim." Por isso se está a entregar com toda a alma às notas de orientação. O resto da equipa, isto é, nós, estaremos livres para fazermos o que desejarmos, até que o comboio parta de Union Station às sete e um quarto da tarde. Aproveitarei para comprar alguns presentes para a mamã, para a Sr.â McKassen, que tem sido tão prestimosa, e para as pequenas da escola»...

O som de passos no corredor fez com que Benita ficasse com a caneta suspensa no ar, olhando para Paul Radford, que se aproximava. Parecia que o assistente do Dr. Chapman estava cheio de calor, pois trazia o casaco no braço. Paul também parecia demasiado ensimesmado, e de maneira absolutamente fora do seu habitual. Benita Selby fechou apressadamente o diário e colocou-o dentro do saco de mão

—        Bom dia, Paul. Está muito calor, não é verdade?

—        Um autêntico forno.

—        Mas pelo menos não é um calor húmido como no Leste. Adorava viver aqui, ou talvez mais ao norte, em S. Francisco. O Paul não gostava?

—        Nunca pensei nisso. Fui eu o primeiro a chegar?

—        O Dr. Chapman está na sala de conferências. Cass foi ao médico, e... oh, Paul, ia-me esquecendo, tem uma pessoa à sua espera.

Paul já começara a encaminhar-se para a sala de conferências, mas voltou para trás, surpreendido.

—        À minha espera? Quem é?

—        A Sr.B Ballard.

—        Onde é que ela está?

—        Pedi-lhe para esperar no seu gabinete. Você não o vai utilizar durante a meia hora mais próxima.

—        Há muito tempo que ela está à espera? — perguntou Paul, à medida que se encaminhava para o seu gabinete.

—        Há dez minutos ou um quarto de hora.

—        Tome providências para que ninguém nos incomode.

Paul esperava encontrar Kathleen sentada na cadeira, mas ela estava encostada à parede, de pernas e braços cruzados. Do cigarro que tinia entre os dedos escapava-se uma coluna de fumo azul. Quando Paul entrou no aposento, ela estava a olhar para o biombo, e acolheu a sua chegada sem esboçar sequer um sorriso.

—        Kathleen...

—        Bom dia, Paul.

Kathleen envergava um vestido de seda sem mangas, cor de magenta, e, por aquele momento de elegante graciosidade, Paul perdoou-a por desprezar uma vida cheia de amor e transformar aquela paixão em caos e tumulto. Contudo, muito embora ela estivesse junto dele por sua iniciativa própria, não podia esquecer a evasiva enigmática que utilizara na noite anterior. Tentou afastar o raiozinho de esperança que parecia querer brilhar na sua alma. Durante toda aquela noite, em que o sono quase estivera por completo ausente, Paul voltara a ajustar-se a um futuro que o condenava à solidão. Não se permitiria outro ciclo de optimismo, porque não queria voltar a cair bruscamente no pessimismo da solidão.

—        Se eu soubesse que você vinha cá...

—        Telefonei para o motel, mas o Paul já tinha saído.

—        Resolvi dar um passeio.

—        Então decidi telefonar a Miss Selby, e eis-me aqui.

Paul fez-lhe sinal para se sentar, observando ao mesmo tempo que já havia duas pontas de cigarro no cinzeiro de cerâmica.

—        Porque é que não se senta, Kathleen?

Kathleen passou pela frente dele, com os olhos postos no biombo castanho, acabando por se sentar.

—        Porque é que vocês utilizam um biombo?

—        No princípio da sua carreira de sondagem, o Dr. Chapman não usava biombo, mas depois veio a considerar que as entrevistas frente a frente eram inibitórias para os entrevistados. Pensa que com este aparato a coisa corre melhor.

—        Talvez não. Creio que se não tivesse havido um biombo entre nós... — hesitou —, seria possível que tudo se tivesse tornado

mais fácil...

—        Não se sentiria embaraçada?

—        A princípio, talvez sim. Porém quando uma pessoa pode olhar de frente para si, é... — parou e puxou duas nervosas fumaças.

—        É o quê, Kathleen?

Ela levantou a cabeça e contemplou-o com firmeza.

—        Estou a tentar explicar-lhe algo, Paul. Algo terrivelmente importante... e tento que aquilo que pretendo explicar não seja despido de beleza — encolheu os ombros. — Julgo, porém, que é impossível.

—        Isso tem alguma coisa a ver com a forma como reagiu ontem à noite?

—        Sim, por completo.

—        Quando esta manhã o sol se ergueu, depois de ter pensado maduramente no assunto, acreditei que você me queria um pouquinho, mas não o suficiente, não o bastante para ser para sempre. Sou extremamente possessivo, Kathleen. Julgo que compreendeu isso mesmo. Comigo teria que ser para sempre.

—        Como é que uma pessoa pode saber que é para sempre antes de prévio conhecimento? Como pode uma pessoa ter a certeza?

—        Quando a Kathleen tiver esperado tanto tempo como eu, conseguirá ter essa certeza.

—        Paul, está a ser pouco realista. Eu fui casada. Existe uma diferença tremenda. Momentaneamente, você pensa que a pessoa escolhida é a mais justa e a melhor, e surge essa utopia do sempre. Não custa nada a dizer. Todavia, depois, o sempre transforma-se em... em quê?, no ressonar e no mau hálito pelas manhãs, na diarreia e nos pensos menstruais, nas lutas por causa do dinheiro, nas discussões porque um faz barulho a sugar os dentes, para tirar restos de comida, e o outro usa papelotes na cama para encaracolar os cabelos. Depois vem o cansaço das pessoas que dormem juntas, vêm as imperfeições que se vão descobrindo lentamente, repetem-se as mesmas palavras, reage-se da mesma maneira...

para sempre. Também isso é para sempre.

—        Kathleen, não sou nenhuma criança. Já conheci muitas mulheres.

—        Não desta maneira... não para sempre.

—        A verdade é que acabo de escutar uma boa percentagem das três mil mulheres que foram entrevistadas.

—        As perguntas que você faz nem sempre provocam respostas completas.

—        Talvez não saiba, Kathleen, mas a verdade é que sou surpreendentemente inteligente. Posso projectar uma resposta para o facto básico.

—        Para a básica desilusão?

—        Isso nunca nos aconteceria. Mesmo que a paixão se tornasse um hábito, fosse substituída pela afeição, digamos que é essa a evolução com o correr dos anos. Não será uma longa intimidade, uma intimidade total, fundamento suficiente?

—        Será? Não sei.

—        Porque é que veio aqui, Kathleen?

—        Você, ontem à noite, declarou-se. Não lhe disse que não. Se tivesse respondido negativamente não estaria agora aqui.

—        Mas também não disse que sim. O casamento é uma coisa que carece de total afirmação das duas partes interessadas.

—        Não sei se essa afirmação será possível da minha parte. Suspeito que careço dessa total afirmação. Julgo que isto é um desses... desses encontros onde se conhece uma pessoa, se sonha um bocadinho, e cada um segue o seu caminho, separadamente. Talvez porque não se sabe quem se vai encontrar e, além disso, a natureza não equipa as pessoas, não as prepara para o encontro determinado. É uma questão de probabilidades, como a dos espermatozóides que falham em conseguir chegar até ao óvulo.

—        É dessa maneira que sente?

—        Sim, a meu respeito. Não por si. Sinto que você estava preparado. O defeito está em mim.

Paul ficou silencioso.

De modo irado, Kathleen esmagou a ponta do cigarro no fundo do cinzeiro.

—        Inferno... círculos... ando em volta do próprio rabo como um gatinho brincalhão. Estou aqui porque... Diabos me levem, você devia saber a razão.

Ouviu-se bater à porta. Paul murmurou uma praga por entre dentes, mas precipitou-se para a porta e escancarou-a. Benita Selby, ao ver o rosto de Paul, recuou um passo.

—        Paul... tenho muita pena, mas o Dr. Chapman quer vê-lo imediatamente. Disse-lhe que você não queria ser perturbado, mas ele insistiu que o viesse chamar. Parece que ele está preocupado com alguma coisa que sucedeu.

—        Não lhe pode ir dizer que espere um minuto? 

—        Eu não. Se quiser vá você dizer-lhe.

—        Está bem, diga-lhe que irei já — disse Paul, exasperado. Voltou-se para o interior do gabinete. — Kathleen...

—        Ouvi tudo. Por favor, vá atender o Dr. Chapman.        

—        Quero saber se esperará por mim.         

—        Sim, esperarei. Continuarei aqui.           

Paul sorriu-lhe com gratidão e lançou-se para o corredor.

O Dr. Chapman percorria o estrado da sala de conferências, de um para outro lado, num estado de agitação incontrolável. Paul fechou a porta e encaminhou-se para junto dele.

—        Onde é que está o Cass? Você viu-o? — perguntou apressadamente o cientista.

—        Foi ao médico.

—        Isso é o que ele diz. Há três dias enviei-o a um médico meu amigo de Wilshire, o Dr. Perowitz. Cass disse que foi consultá-lo, e esta manhã saiu afirmando que ia outra vez ao consultório.

Paul ficou à espera. O Dr. Chapman prosseguiu colericamente.

—        Estive preocupado por causa dele toda a manhã... temos que partir amanhã... de modo que telefonei para o motel. Responderam-me que Cass ainda não tinha regressado. Então, telefonei para o consultório do Dr. Perowitz para saber se era uma doença grave. Sabe o que é que o médico me disse?

Paul não fazia a menor ideia.

—        Disse-me que nunca atendera nenhum Cass Miller. Está a compreender, Paul? Cass tem andado a deitar-nos poeira para os olhos. Nunca foi a um médico. Começo até a suspeitar que nunca esteve doente.

—        Deve haver qualquer explicação lógica para a sua atitude.

—        Tem toda a razão. É melhor que haja de facto uma explicação lógica para o caso, e é isso o que vamos imediatamente saber. Você e eu, vamos os dois à caça de Cass Miller, e quando o encontrarmos é bem melhor que haja uma explicação e que ela faça sentido, ou então juro-lhe que o despedirei hoje mesmo. Paul lançou um olhar para o relógio que havia na parede.

—        Dentro de dezoito minutos começam as entrevistas marcadas.

—        Benita arranjará maneira de as fazer esperar. Quero resolver imediatamente o caso de Miller.

—        Por onde começaremos a caça?

—        Sei lá! Primeiro vamos interrogar o empregado da recepção do motel e o homem da garagem onde ele foi buscar o Dodge.

Chapman encaminhou-se para o corredor com Paul a seguir-Lhe os passos.

—Tem a certeza de que precisa da minha ajuda, Dr. Chapman? O Dr. Chapman não escondeu o seu vexame.

—        Escute, Paul, penso que isto é bastante importante para ser eu a investigar pessoalmente. Com certeza, não é o que se aguarda que um chefe faça, mas dentro desta matéria nunca o considerei a si, a Cass e a Horace como subordinados, como meros empregados. Somos sócios, e, quando um de nós falta aos seus deveres, julgo que o caso nos afecta a todos — parou para respirar. — Sem dúvida que necessito de si. Como posso eu saber o que lhe aconteceu? Talvez ele esteja bêbedo. Talvez sejamos precisos os dois para lhe darmos assistência.

—        Muito bem — respondeu Paul, um pouco aborrecido.—Vou lá dentro buscar o meu casaco.

Paul entrou no seu gabinete. Kathleen não se tinha mexido da cadeira onde ficara sentada. Continuava a olhar para o biombo, a fumar. Fitou Paul ao vê-lo agarrar no casaco.

—        Kathleen, não calcula quanto me custa não poder continuar a nossa conversa. Houve um acontecimento imprevisto e o Dr. Chapman precisa da minha ajuda. Depois tenho as entrevistas...

—        Não há novidade. Mas quero falar-lhe ainda hoje — hesitou, e subitamente pareceu fatigada e pouco segura. — Isto é, se o Paul quiser falar comigo.

—        Bem sabe que quero. Acabo as entrevistas por volta das cinco e meia, talvez à roda das seis. Posso ir a sua casa a essa hora?

— Sim — mostrou-lhe o cigarro que tinha entre os dedos. — Posso acabar isto antes de sair?

—Acabe à vontade. O gabinete estará desocupado pelo espaço de meia hora ou mais.

Paul curvou-se e aflorou a fronte de Kathleen com os lábios, depois apressou-se a ir ao encontro do Dr. Chapman.

Já passava das dez horas, e Sarah Goldsmith continuava sentada à escrivaninha a traçar as linhas finais da carta para Sam.

O seu saco de viagem cinzento, onde acondicionara à pressa os poucos pertences que tencionava levar após a partida das crianças para a escola e a ida de Sam para um encontro comercial em Pomona, estava atrás da porta principal. Fizera já a chamada telefónica para um centro de tratamento de crianças ao domicílio, e haveria uma pessoa que encontraria a chave da casa debaixo do tapete da entrada e estaria pronta a acolher os filhos quando chegassem das aulas. Tudo o que faltava era a carta de despedida. Sarah escrevera três versões e rasgara-as, era aquela a última que podia traçar uma vez que o avião para a Cidade do México levantaria voo dentro de duas horas. Acabou a carta e leu-a:

«Sam,

«Depois de doze anos de vida em comum, é-me difícil escrever uma carta como esta. Mas tu bem sabes que nestes últimos anos não temos sido felizes e, portanto, não vale a pena estarmos a mentir a nós mesmos. Tenho-me sentido extremamente desgraçada. É uma coisa que tem pouco a ver contigo e muito em relação a mim própria. Se tenho permanecido junto de ti até agora, tentando manter o lar e a vida de família, o facto ficou a dever-se unicamente às crianças. Mas presentemente o caso já não faz sentido. Estou cansada e, por outro lado, penso que duas pessoas não devem viver juntas somente sob a falsa aparência social de se terem consorciado. Visto isso, decidi acabar com tudo enquanto somos novos e podemos refazer as nossas vidas longe um do outro. Acredita-me que não procedo assim de ânimo leve, que me sinto penalizada, mas as circunstâncias forçam-me a dar este passo, a procurar uma mudança na minha existência; de resto, parece-me lícito pensar em mim um bocadinho. Logo, resolvi ser melhor terminar com tudo de uma vez por todas.

«Por muito que não queira magoar-te, para que compreendas, tenho que te explicar que há já algum tempo me apaixonei por outro homem, um homem decente, um autêntico cavalheiro, e que parto esta manhã para um país estrangeiro, a fim de me juntar a ele. Temos esperanças de nos podermos casar. Bem sei que isto te vai chocar, bem como ao resto da família, mas não há remédio, a vida é assim. Podes dizer à família e aos conhecidos e amigos de The Briars aquilo que quiseres, que foste tu que me puseste fora de casa, que eu não vinha a sentir-me bem e que pensámos que era melhor uma separação, ou qualquer coisa dentro desse teor. Não te portes cruelmente a meu respeito perante Jerry e Debbie, porque continuo a ser mãe deles e foi o meu corpo que os deu à luz. Olha por eles, dedica-lhes mais tempo e diz-lhes que muito em breve os voltarei a ver. Quando chegar ao meu destino, escrever-te-ei para te dizer para onde podes comunicar comigo, e nomearei um advogado para tratar de tudo. Retirei do banco o meu dinheiro das economias caseiras e fechei a minha conta.

«Por favor, encara as coisas como um homem, Sam, e não fiques a odiar-me muito. Não posso impedir-me de proceder assim, e daí talvez seja melhor veres-te livre de mim.

«Sarah

«P. S.: Arranja uma criada para as crianças, ou talvez seja melhor pedires o auxílio da tua prima Berta, que é solteira e poderá tratar de ti e de Jerry e Debbie. Adeus».

Satisfeita pelo que escrevera, parecia-lhe tudo suficientemente esclarecedor. Sarah tirou da gaveta um sobrescrito e escreveu nele «Para Sam. Confidencial. Importante. Da Sarah». Meteu lá dentro a folha de papel de carta, fechou o sobrescrito e começou a procurar o lugar mais conveniente para Sam poder encontrar imediatamente o envelope, sem que Jerry lhe pudesse chegar. Finalmente, entrou na cozinha, cortou um pedaço de fita gomada, levou o sobrescrito para o quarto de banho e prendeu-o no espelho do armário dos medicamentos.

Ficou por momentos diante do espelho a observar a sua imagem, parcialmente obscurecida por causa do envelope, pensando como Fred a consideraria quando chegasse à Cidade do México. Olhou para o relógio de pulso. Já não lhe restava muito tempo, mas a vestir-se levaria apenas alguns minutos. O penteado estava feito e, por baixo do seu roupão caseiro, já tinha calçado as meias. Desapertando o roupão, encaminhou-se para o quarto de cama, a fim de vestir o soutien, a combinação e o vestido saia-casaco.

No caminho ouviu tocar a campainha da porta; devia ser o carteiro. Voltou a apertar o roupão e dirigiu-se para a porta, abrindo-a.

Ficou um pouco admirada por não ver o uniforme do carteiro, nem descortinar a grande mala da correspondência, e não reconheceu o homem moreno e de olhar coruscante que estava diante dela. — Preciso de falar consigo, Sr.9 Goldsmith — a voz do homem era imperativa, como se se tratasse de um caso arrumado por essência.

E foi então, com um estremecimento de terror, que Sarah descortinou o Dodge perseguidor estacionado em frente da casa, associando finalmente aquele rosto com a onda de terror que a invadira durante toda a semana. Devia ter fechado a porta, mas tardara a reconhecê-lo, a audácia do homem tinha-a petrificado, e nessa altura já ele estava dentro de casa.

—        Que é que o senhor deseja? — perguntou ela, com o rosto pálido de medo.

—        Chamo-me Cass Miller. Faço parte da equipa do Dr. Chapman.

Por momentos, Sarah não se lembrou quem era o Dr. Chapman, mas de repente veio-lhe à ideia a entrevista, e o terror deu lugar ao alívio. Tinha moldado aquele homem de tal maneira, no pensamento, como um detective, um inimigo seu e de Fred, que a revelação da sua verdadeira identidade era uma coisa quase divertida.

—        Bem, em que posso ser-lhe útil? Devo dizer-lhe que estou com muita pressa...

—        O que lhe quero dizer não levará muito tempo.

Sarah mal percebeu aquela voz rouca e estrangulada, e sentiu--se pouco à vontade por aqueles olhos que se recusavam a encontrar os seus. Entretanto, o homem prosseguiu:

—Tenho andado a observá-la...

—        Sei isso muito bem — quase gritou Sarah, sentindo voltar--Lhe a coragem. — O senhor tem andado a assustar-me. Será isso uma coisa que faça parte da sondagem?

—        Sei tudo a seu respeito e a respeito de Fred Tauber. Porque é que a senhora anda a enganar o seu marido?

—Ora, é preciso coragem para ter o descaramento de vir fazer--me essa pergunta.

—        Não vale a pena mentir-me. Sei de tudo — e Cass entoou a litania —, três meses, em média quatro vezes por semana, de coito extramatrimonial, sem suspeita do marido. Orgasmo violento, quarenta a cinquenta minutos de fornicação, deitada de costas na cama, mesmo sendo casada e tendo dois filhos.

De repente os olhos dele fitaram-na, com as pupilas dilatadas e o rosto contorcido por um ricto de maldade, pronunciando em tom sibilino: Prostituta!

Sarah recuou, levando as mãos à boca e sentindo um medo gélido percorrê-la.

Cass fechou a porta com o pé e avançou para ela.

—        Prostituta! — repetiu. — Prostituta! Li o seu questionário. Vi-a ir ter com o seu amante. Vigarista! Todos os dias a enredar o marido nos seus enganos.

—        Vá-se embora! — gritou Sarah, histericamente.

—        Se grita, matá-la-ei.

Sarah respirou convulsivamente ao ver tão perto de si aquele rosto e aqueles olhos de maníaco homicida. Baixou a voz quase até ao murmúrio:

—        Mas porque é que você... você veio aqui?

—        Gosto de prostitutas. Na verdade, gosto muito delas. Quero que me proporcione algum prazer.

—        Você está fora do seu juízo.

—        Proporcione-me o mesmo prazer que proporciona ao seu amante... quarenta minutos de fornicação... o orgasmo e tudo o mais, e depois juro que me vou embora. Se não quiser, contarei tudo ao seu marido.

—        Já contei a meu marido. Sam já sabe o que se passou.

Deixou de ser um segredo. Já não há nada de errado na minha entrega.

Cass não a ouvia. Os seus ouvidos estavam surdos à voz de Sarah.

—        Desmanche o seu cabelo. Deixe que o cabelo lhe caia pelas costas abaixo... — deitou-lhe as mãos ao carrapito.

Sarah levantou os braços para se proteger e recuou. Foi contra uma cadeira, desequilibrou-se e foi projectada contra a parede, para a seguir correr com desespero para a cozinha, esperançada em alcançar a porta das traseiras.

Foi com verdadeiro terror que se precipitou para a porta, tentando abri-la. O fecho não cedeu ao impulso da sua mão, e Sarah lembrou-se então que a tinha trancado. Estendia a mão para o fecho de segurança que ficava mais acima, quando ouviu a respiração ofegante do homem.

Cass agarrou-a pelos ombros, mas Sarah fez um súbito movimento e escapou-se àqueles dedos enclavinhados que lhe rasgaram o roupão. Com o balanço, foi contra o lava-loiça e ficou ali encostada a encará-lo, com os olhos esgazeados pelo medo.

Por um instante, Cass hesitou, olhando aquele roupão aberto que lhe mostrava aqueles seios maternais a arfarem, olhando aquela carne maternal que se via nua por cima e por baixo das calcinhas de nylon. Depois a respiração dele tornou-se estertorosa como uma besta ferida de morte na solidão de uma floresta, e a sua sombra agigantou-se para a encobrir.

Sarah olhava como que hipnotizada, abandonada, perplexa, perante aquele quadro que lhe parecia incrível: ali estava o monstro violador, o louco violador de rosto contorcido, doente e febril até às entranhas, e a dona de casa sozinha. Ela havia lido coisas daquelas nos jornais matutinos, eram coisas que aconteciam quase todos os dias em qualquer rua obscura, em qualquer rua cujo nome era impronunciável, uma rua em qualquer bairro miserável, entre pobres, entre destroços humanos, entre mulheres imundas, mulheres que não possuíam vivendas caras em The Briars, que não tinham ricas fechaduras nas suas portas, que não tinham cozinhas de aspecto quase clínico, mulheres que não tinham vestidos caros, nem amigos de nível social, que não tinham a protecção da Polícia, que não possuíam qualquer importância. Tais violações eram coisas que aconteciam sempre entre a escória da sociedade, mas ela chamava-se Sarah Goldsmith, de Nova Iorque, uma mulher que usava óculos de aros de tartaruga, óculos caros (a propósito, onde é que estavam os seus óculos? Mas se não se podia ferir uma pessoa que usasse óculos!), dona de uma loja de vestuário, com cadeira privativa na sinagoga, membro da Associação Feminina, partilhando de uma vida americana de eleição.

Não! Era impossível que aquilo lhe pudesse suceder...

Com toda a força de que podia dispor, tentou empurrar o homem que estava diante de si. Fez pressão naquele peito, sentindo--Lhe os ossos do esterno contra as mãos convulsivas e depois o pequeno espaço que conduzia à liberdade, à fuga ao pesadelo... Mas foi sol de pouca dura, o homem voltou à carga, o impulso foi violento, Sarah sentiu-se projectada para trás, e os seus olhos só conseguiram ver o fogão que se avolumava ao encontro da sua cabeça.

Uma das suas têmporas bateu violentamente contra um canto do fogão, e o corpo escorregou para o chão, primeiro dobrado, numa posição grotesca, para depois, com um estremecimento, ficar hirto, imóvel, caído de costas, abandonado.

Cass Miller precipitou-se para o corpo de Sarah Goldsmith, caiu de joelhos ao lado dela, começando a murmurar:

— Não vale a pena fugires. Nunca mais me fujas, nunca mais...

As suas mãos, ávidas, afastaram as pernas, cavaram uma abertura entre aquelas coxas desnudadas; frementemente, num ímpeto, despedaçaram o ligeiro tecido das calcinhas... Então, como quem ministra uma punição, Cass violou Sarah Goldsmith.

Transtornado pela febre daquele cio, dementado por aquele ódio sexual, não notou que era ele o único que se movimentava, que só o seu corpo marcava aquele ritmo infernal da cópula. Só depois, observando a inércia dela e após ter-lhe auscultado o peito, viu que não havia possuído mais do que um cadáver. Sarah morrera ao embater contra o fogão, aquela carne já se começara a decompor enquanto ele estivera a cevar a sua colérica luxúria.

— Oh, mãe, minha mãe... — soluçou Cass, a desejar nesse momento ter o conforto do seio materno para repousar a fronte, ao mesmo tempo que tomava consciência de que o seio materno já não podia existir para ele, que o perdera para toda a eternidade.

Depois de Cass Millerter regressado à Villa Neapolis, deixando o Dodgeno parque de estacionamento para os convidados, agarrou numa folha de papel de carta com o timbre do motel, que apresentava uma fotografia aérea tirada ao complexo («O seu luxuoso lar enquanto estiver afastado de casa») e, curvado no extremo da mesa de recepção, escreveu com mão firme o seu memorando para a história.

Mais tarde, dentro do automóvel, voltando para oeste a partir do motel, parou em frente da primeira bomba de gasolina e, mantendo o motor a trabalhar, chamou o empregado e pediu-lhe esclarecimentos sobre o melhor passeio às montanhas circunvizinhas. Gravou na memória as várias direcções que lhe foram indicadas, a última das quais para Topanga Canyon.

Pouco depois encontrava-se às voltas por um caminho sinuoso de montanha, olhando a paisagem que se descortinava: em cima e em frente, as altas montanhas azuis recortadas contra um céu de berilo, lá em baixo o vale verdejante com casinhas que pareciam de brinquedo, e ao longe um comboio miniatural que se perdia na distância. Vistos dali, os pinheiros que esmaltavam certas encostas pareciam-se com aqueles ramos que outrora, quando era criança, tivera nos seus natais familiares. A certa altura, sem saber bem porquê, pensou em Benita Selby metida no seu fato de banho e no seu traseiro deselegante e sem curvas, e logo a seguir pensou naquela moça loira, que afinal não era loira, e que encontrara no comboio de East St. Louis, e na rapariguinha polaca, tão macia e doce, com quem tivera relações sexuais nos seus anos universitários. Então o pensamento desviou-se-lhe para a morte dos homens famosos da história, todos eles muito senhores de si, após tanta complexidade de vida, e nas ressoantes palavras que todos pronunciavam antes de partirem para o outro mundo. Nero a dizer:

«Que grande artista está o mundo prestes a perder»; O. Henry: «Levantem as persianas, não quero regressar ao lar na escuridão»; Henry Ward Beecher: «Aí vem o grande mistério»; e alguém que dissera: «Deus perdoar-me-á, afinal é essa a Sua missão». Toda aquela bravura da última hora, toda aquela montanha de mentiras.

Reparou que a estrada se tinha estreitado e que apenas uma ligeira sebe metálica protegia a berma que separava o caminho dos abismos que ficavam lá em baixo.

Pensou que desejaria ter acrescentado à nota deixada algo que tivesse um estilo altissonante, algo como aqueles versos de Edgar Allan Poe:

A febre chamada «vida» está finalmente conquistada.

Observou que ao longo da estrada de montanha, lá mais ao fundo, vinham dois veículos, um sedan e um camião. Teria, testemunhas oculares. Lá estava a ligeira guarda que vedava os precipícios; premiu o pé contra o acelerador. A estrutura das guardas do caminho veio ao seu encontro com mais velocidade do que imaginara, e o radiador esmagou aquele obstáculo, galopando como um cavalo doido em pleno ar. Numa fracção mínima de tempo, Cass Miller ainda teve a lúcida consciência de pairar entre o azul do céu e o verdejante do vale, como se estivesse totalmente libertado no espaço infinito entre os clamorosos ventos. Seria a oportunidade para uma última frase, sim, uma frase que reflectisse a sua bravura em enfrentar o desconhecido, uma frase que o imortalizasse, uma última frase como epitáfio que Benita Selby pudesse escrever no seu diário: «Que todas as mulheres se marimbem de uma vez para sempre».

O resto foi confusão, chamas e um decompor de átomos.

Às cinco para as seis, com o dia ainda em plena claridade, Paul chegou de táxi à vivenda de Kathleen.

A busca matinal a Cass Miller havia sido completamente infrutífera, tudo o que ele e o Dr. Chapman conseguiram apurar fora que Cass se tinha metido no Dodge logo de manhã e guiado para algures. O Dr. Chapman, ao volante do Ford, voltara para a Associação Feminina, furioso.

As entrevistas programadas tinham sido feitas aproveitando mesmo a hora do almoço, altura em que resolveram apenas tomar duas chávenas de café como estimulante. Quando Paul, às cinco e meia, concluiu o último inquérito, e encontrou Horace no corredor, ambos ficaram surpreendidos por verem que Benita abandonara o seu posto. Pelo aspecto desarrumado da sua secretária, podia ti-rar-se a conclusão de que saíra do edifício com bastante pressa; também não havia rastos do Dr. Chapman. Para adensar o mistério, o Ford de serviço não estava no parque de estacionamento habitual. Paul e Horace ainda pensaram em telefonar para a Villa Neapolis a fim de saberem dos outros elementos da equipa de pesquisas, mas acabaram por pôr de parte tal ideia, uma vez que ambos tinham encontros marcados e estavam desejosos de chegar aos seus destinos. Saíram juntos de Village Green, chamaram dois táxis, e Horace partiu para substituir a enfermeira que tratava de Naomi, enquanto Paul dava ao motorista o endereço de Kathleen Ballard.

Nesse momento, percorrendo a pé os poucos metros que o separavam da porta de entrada, Paul pôde ver o Mercedes de Kathleen parado a seguir à curva do caminho privativo. Paul tocou a campainha. Imediatamente a porta lhe foi aberta por Albertine, que trazia Deirdre ao colo.

—        Boa tarde, Albertine — estendeu os braços para Deirdre que não hesitou em passar para o seu colo. — Como está o meu polvo favorito? — da última vez que tratara a pequenita pelo seu nome, Deirdre tinha-o corrigido, informando-o de que era «um polvinho».

Agora, já ao seu colo, Deirdre voltou-se para ele e disse com a gravidade de uma pessoa adulta:

—        Não sou um polvo. Eu sou eu mesma. Vem para jantar connosco?

—        Bem, gostaria muito, mas...

—        Ele pode jantar, Bertine? — perguntou Deirdre, voltando-se para a criada.

—        Só temos que abrir outra lata de comida — respondeu Albertine, encolhendo os ombros.

Mas já Deirdre se voltava para outros assuntos mais momentosos.

—        Deixa-me dar um passeio às suas cavalitas como no outro dia?

Paul ergueu-a acima da cabeça e sentou-a sobre os ombros, iniciando um pequeno galope.

—        Eis-nos a cavalgar para a Lua. — Depois voltando-se para a criada: — A senhora está?

—        Não, partiu a toda a pressa para casa da senhora Goldsmith há um par de horas e disse que, quando o senhor chegasse, fosse lá ter com ela. Parecia assustada quando se foi embora.

—        Onde é que fica a vivenda?

—        Dos Goldsmith? Vire dois blocos à esquerda, depois torne a voltar à esquerda, para Hayes Drive, é a terceira casa antes de dobrar a esquina, no lado esquerdo do caminho. Tem o nome gravado numa placa à entrada.

—        Obrigado, Albertine... E tu, pequerrucha, daqui a bocadinho voltaremos a brincar os dois.

No seu caminho para casa dos Goldsmith, Paul pensou porque é que Kathleen pareceria assustada, como Albertine havia dito, e naquilo que ela lhe quereria dizer quando nessa manhã o fora procurar.

A mesclada fragrância de milhares de flores absorveu-o à medida que ia passando pelos renques de eucaliptos, pelas balsas e fenos, pelas trepadeiras de cheiro que quase todos os portões ostentavam. A certa altura do trajecto, pelas grades da vedação, avistou um magnífico canteiro de gerânios, depois hibiscos amarelos e cor-de-rosa, e, ao lado de uma bananeira, uma profusão de ásteres purpurinos ladeados por petúnias brancas.

Pensou em como era difícil conciliar aquela paisagem de utopia com as pessoas que habitavam aquelas casas, especialmente com as mulheres que entrevistara naquelas duas passadas semanas: as específicas senhoras daquelas específicas mansões. Olhando para aquelas vivendas de sonho, para os relvados e para os bonitos e aromáticos jardins, pensou que tudo parecia esteticamente regulado, um céu aberto, plácido, coisa resolvida, ambiente feliz por natureza. Dir-se-ia que, por força, os mamíferos que viviam por detrás daquela beleza, eram pessoas harmónicas, felizes, perfeitamente assentes. Mas depois de se pesquisar o âmago das criaturas a quem tudo aquilo pertencia, chegava-se à conclusão de que semelhante harmonia não era mais do que uma fachada. Paul sabia muito bem, porque as sondara, quem eram as criaturas que viviam por detrás daquelas sebes de verdura, daqueles canteiros de flores, daquelas graciosas casas: não passavam de seres a lutarem contra as diferentes pragas que os afligiam, não só ali como em toda a parte, estagnação e podridão mental, fome de alma, espírito que morria aos poucos abafado pelo vício e pela devassidão. Mas então não haveria verdadeira felicidade e equilíbrio? Tentou lembrar-se de fragmentos das entrevistas, aquelas que se tinham mostrado cercadas de verdadeiro e forte amor, real intimidade, completa integração de um casal. Na verdade verificara algumas pessoas com esse equilíbrio, poucas. Muito poucas. Quanto ao resto... A que padrão pertenceria Kathleen?

Estava a aproximar-se de Hayes Drive, quando a viu voltar a esquina, caminhar em sua direcção, casaquinho cor de ferrugem atirado para os ombros, com uma blusa e uma saia de feitios simples e sapatos de salto baixo. Paul acenou-lhe com a mão e ficou à espera que ela se aproximasse. Kathleen não correspondeu.

Quando ela já se encontrava a seu lado, Paul pôde observar a nuvem que lhe ensombrecia as feições.

—        la precisamente ao seu encontro, Kathleen.

—        Tem um cigarro que me dê? Estou fora de mim.

—        Lamento muito, mas não tenho cigarros — disse Paul, mos-trando-lhe o cachimbo que saía do bolso superior do casaco.

—        Pronto, não interessa — as mãos dela tremiam nervosamente. — Foi uma coisa verdadeiramente horrível. Soube o que aconteceu?

—        Não.

Kathleen começou a caminhar, e Paul acertou o passo pelo dela. 

—        Sarah Goldsmith morreu. 

—        Sarah Goldsmith?  

—        Sim, Sarah. Você foi-lhe apresentado ontem à noite. Aquela que usava o cabelo negro apanhado atrás num carrapito, como uma dançarina espanhola. A que ia disfarçada de Mata-Hari.

Paul começou a lembrar-se. Recordou-se de um rosto latino a quem o nome semita não parecia pertencer. Recordou-se do vaporoso vestido que lhe desenhava as curvas, que delineava todas as redundâncias do corpo apetitoso.

—        Ah, já me lembro. Afinal o que é que lhe aconteceu?

—        Ninguém sabe. A Polícia diz que foi o marido que a assassinou.

Foi-lhe mais fácil lembrar-se do marido da Mata-Hari, um homem com um aspecto amarfanhado, com uma expressão de quem pede desculpa e uma mão que parecia geleia. Como é que ele se chamava? Aaron? Abe? Sam? Sim, era Sam.

—        Sam Goldsmith, não é verdade? Mas porque é que ele matou a mulher?

—        Deve ter sido má interpretação, erro, seja o que for, estou certo disso. Obtive as informações em segunda mão. A vizinha do lado, a senhora Pedersen, telefonou-me depois de a ambulância e de a Polícia terem partido. Encontrou o meu número de telefone na agenda de Sarah Goldsmith. Sou eu a amiga mais próxima de Sarah. A senhora Pedersen tem os seus próprios filhos para tratar e pediu--me para lá ir tomar conta das crianças do casal até se arranjar uma pessoa que as possa vigiar.

—        A Polícia prendeu Sam?

—        Sim, penso que sim. Não, levaram-no para ser interrogado. Encontraram uma carta na casa de banho e a mala de Sarah feita. Ao que parece, ela preparava-se, esta manhã, para abandonar Sam... ia reunir-se a outro homem... parece que tinha um caso amoroso... Não, de todas as pessoas que conheço, Sarah era a menos indicada para um romance desses, não posso acreditar.

—        Tais coisas podem acontecer a toda a gente — disse Paul, suavemente e em tom carinhoso.

Kathleen olhou para ele com um brilho de angústia.

—        Sim. Estou certa de que você já soube de muitos casos desses. Mas de Sarah, ia jurar...

—        A Polícia supõe então que Sam ouviu falar no caso e que tentou impedi-la de se juntar ao amante?

—        Isso mesmo. As autoridades afirmam que Sam voltou a casa depois de ter passado a manhã fora da loja e a encontrou disposta a partir, ou que conseguiu ler a carta, tentando impedi-la. Lutaram e ele matou-a. Não posso acreditar em tal coisa, nem mesmo sobre tais circunstâncias determinantes. Sam é o mais doce e pacífico dos homens...

—        Alguém a matou, Kathleen.

—        Talvez fosse um acidente.

—        Como é que se passaram as coisas?

—        A assistente de crianças recebeu um recado para estar na vivenda ao meio-dia. A mensagem dizia-lhe para esperar que Jerry e Debbie voltassem da escola e que a chave estava debaixo do tapete da entrada. A assistente só chegou um pouco mais tarde e, como parecia não estar ninguém em casa, dirigiu-se para a cozinha... foi lá que encontrou Sarah caída no chão. A Polícia disse que ficou com o pescoço partido.

Tinham chegado à porta de Kathleen.

—        Suponho que não se sente com ânimo para estar comigo — disse Paul.

—        Não se trata disso. Prometi voltar. Como a assistente infantil ficou demasiado perturbada pelo seu macabro achado, para ficar com as crianças, eu e a Sr.a Pedersen vamos repartir a tarefa até chegar alguém da família de Sam. O advogado dele telefonou para um familiar de Chicago, que já vem a caminho por avião. Penso que à uma da manhã já estarei livre — Kathleen abriu a porta de casa. Vim durante alguns minutos para ver se Deirdre come alguma coisa e para buscar o meu casaco comprido. Seria capaz de comer uma sanduíche, Paul?

—        Não, obrigado. Vou chamar um táxi.

—        Leve o meu carro. Não precisarei dele esta noite nem amanhã — estendia-lhe as chaves. — Aceite, por favor.

—        Muito bem. No motel há um restaurante onde poderei comer, e depois tenho que começar a arrumar a minha bagagem — fez tilintar as chaves. — Isto significa que me poderei encontrar consigo amanhã?

Ela fitou-o intensamente.  

—        Tenho todo o desejo de o ver, se você também estiver disposto.

—        Parto amanhã à noite com a equipa. Só uma coisa me faria ficar. Não é boa ocasião para discutir tal assunto, mas...

—        Paul, agora nada lhe posso dizer, acredite que não posso. Não fique zangado.

—        Ama-se ou não se ama uma pessoa. Que mais coisas há a resolver?

—        Paul, por favor, tente compreender...

—        Está bem. Amanhã. A que horas?

—        Se a prima de Sarah... isto é, se a prima de Sam vier, tenho o dia todo livre. Venha quando quiser.

—        De manhã estou ocupado. O Dr. Chapman vai para uma entrevista da televisão. Eu, Horace e Cass recebemos ordens para estar atentos ao programa. Mas depois de almoço... Está bem depois de almoço?

—        Ficarei à sua espera. Paul tentou sorrir.

—        Não esperará mais do que eu.

Quando Paul entrou no pequeno, mas bem montado, aposento, que servia de átrio ao motel de Villa Neapolis, não havia ninguém na recepção. Paul contornou o balcão e dirigiu-se para o cacifo da correspondência e chaveiro. Agarrou na chave do seu quarto, e ia já a retirar-se quando reparou numa mancha branca que brilhava no interior do cacifo. Meteu a mão lá dentro e retirou um sobrescrito, onde o seu nome estava traçado numa letra que lhe pareceu vagamente familiar.

Intrigado, Paul voltou para o hallàe entrada e abriu o sobrescrito. Ao desdobrar a folha de papel que havia no interior, reparou que o timbre do cabeçalho era o do motel, e logo os seus olhos desceram até à assinatura. Começou a ler lentamente, mas, pouco depois, a rapidez, mesmo avidez, foi a nota dominante da leitura.

Ao acabar deu fé que a mão que mantinha a carta estava a tremer violentamente. O estranho frio que lhe fizera paralisar os intestinos espalhara-se-lhe agora a todo o corpo, agitando-o em tremuras incontroláveis.

—        Boa noite, senhor Radford...

Paul olhou para trás e avistou o recepcionista da noite, aquele cujas características faciais o faziam assemelhar-se a uma das mirradas cabeças tratadas pelos índios Jivaros e que se parecia com um jóquei retirado.

Sem esperar pela sua resposta, o homem continuou:

—        Acabo de dizer aos jornalistas, sentados no bar à espera, que o Dr. Chapman ainda não regressou. Ainda anda por fora a acompanhar a Polícia. Lamento que tudo isto tivesse acontecido, Sr. Radford. Foi uma coisa tão inesperada! O Sr. Miller era uma excelente pessoa. Mas as pessoas que não conhecem bem estas estradas de montanha não deviam conduzir por elas. Ocorrem por lá cerca de três acidentes por mês. As autoridades deviam fazer alguma coisa a respeito do caso. Julgo que foi um grande choque para si.

—        É verdade — pronunciou Paul.

—        Como já disse, lamento imenso.

—        Obrigado.

O recepcionista apagou as luzes do pátio e voltou a sua atenção para o livro de registos. Paul parou no limiar da porta e, à luz forte da grande lâmpada da entrada, voltou a ler a carta.

«Caro Paul,

«Acabo de fazer uma coisa completamente insensata, e devo pagar por aquilo que fiz. Apaixonei-me violentamente por uma das mulheres que entrevistei na passada semana devido a ela ser uma pecadora, não obstante ter marido e dois filhos. Tenho andado a vigiá-la todo este tempo. Hoje de manhã fui procurá-la a casa dela. Quis fazer amor com ela, mas a mulher recusou-se terminantemente. Ela tem andado a frequentar diariamente o leito de outro homem que não o marido, e a minha perseguição tem sido implacável. Neste momento não me ocorrem os pormenores. Atirei-me a ela para a forçar a fazer amor comigo e, no impulso, ela acabou por cair desamparada e morreu. Foi um acidente, mas seriam poucas as minhas possibilidades de poder provar isso à polícia. A mulher chamava-se Sarah Goldsmith. Vou agora guiar o Dodge para um sítio qualquer e atirar-me com ele por uma ponte ou por uma ribanceira, aquilo que for mais fácil e simples. É o melhor que tenho a fazer, e fico satisfeito por tudo acabar. O "Grande Patrão" pode pagar o carro com o dinheiro do meu seguro social. Nunca gostei dele, e não me importo que este caso mande para as profundas dos infernos o projecto do inquérito. Sinto que toda esta exaltação do sexo não pode trazer nada de bom. Faça com que eu seja cremado. Talvez nos encontremos na eternidade. «7 de Junho

«Cass Miller.»

Paul dobrou cuidadosamente a folha de papel e, com ela na mão, permaneceu no limiar da porta com os olhos fitos na piscina. De início, não compreendeu todo o significado da carta testamentária de Cass. A sua preocupação estava no facto de Cass se ter suicidado. A rapidez dos acontecimentos quase tornavam o caso inaceitável. Algures na cidade, o Dr. Chapman já tinha identificado um feixe de ossos e carnes laceradas.

Em vida, não se importara muito com Cass Miller, mas, agora, como parte de um jogo convencional da civilização, devia julgá-lo com benevolência, pensar bem dele. Gosta-se das pessoas depois que morrem, porque uma pessoa está viva e, por isso mesmo, gozando um instinto de superioridade imediata. Gosta-se e diz-se bem dos mortos como se gosta e se lamentam os pobres, os aleijados, as minorias, os velhos. Só porque uma pessoa se sente numa posição superior aos desgraçados. Pobre Cass! Mas repentinamente foi invadido pelo verdadeiro choque daquele significado de morte: pobre Sarah! Coitado do Sam!

Por momentos viu que era ele o Omnipotente, o deus exmachina daquele caso. Numa casa mortuária jazia o corpo de Cass Miller. Noutra morgue, ou na mesma, jazia o corpo de Sarah Goldsmith. Em breve estaria por detrás das grades de uma cela, tão morto como Cass e como Sarah, um corpulento negociante chamado Sam Goldsmith. E, bem alcandorado no topo de um monte dominante, encontrava-se ele, Paul Radford, escritor, cientista, com o papel revelador na mão que poderia restituir ao mundo dos vivos um homem alquebrado e destinado a morrer sob o peso de um crime que não cometera.

À primeira vista não prestou atenção ao grande automóvel preto que contornava o caminho privativo do motel, mas, quando o carro se aproximou, reparou que se tratava de um patrulhador da Polícia de Los Angeles. Viu o Dr. Chapman a sair do carro, gesticulando e falando animadamente para um homem que o acompanhou para o empedrado do pátio.

Quando já estavam perto do local onde se encontrava, os dedos de Paul enclavinharam-se na folha de papel. Emitiu então o seu último decreto como czar omnipotente daquelas Rússias da morte: Sim, eu, Paul Radford, possuidor da carta sagrada, posso decretar que tu, Sam Goldsmith, possas merecer a graça da vida, e que, por causa disso, tu, George G. Chapman, devas velar a tua face com o negro véu da morte. Olho por olho, dente por dente, a inexorável máxima hebraica. A vida de Sam pela morte do relatório Chapman.

Entretanto os dois homens já haviam passado por Paul sem o verem. Nesse momento ouvia-se a voz do detective a falar, e Paul apanhou algumas palavras.

—... apesar de o relatório sobre a mecânica do carro não ter demonstrado qualquer avaria, as testemunhas oculares são unânimes em insistir que viram o automóvel guinar subitamente. Pode garantir positivamente que Cass Miller não bebia?

—        Só bebia socialmente. Era uma pessoa sóbria em extremo. Façam testes sobre o índice alcoólico. Os senhores podem...

—        Fazer testes acerca do que ficou do corpo?

Agora, os dois homens saíram do raio da visão de Paul, mas deviam ter parado no princípio dos degraus que levavam à varanda corrida do andar superior.

—        Muito bem, então posso dar-lhe a minha palavra de que Cass Miller não bebia.

—        O senhor tem alguma razão para julgar que ele se sentisse abatido, desanimado?

—        Pelo contrário, quando ontem à noite o vi vivo pela última vez, Cass Miller estava radiante. Sentia-se contente por ir regressar a casa, à universidade...

—        Okay. Tenho que ficar convencido. Não havia marcas de derrapagem, de maneira que não posso dizer se ele perdeu o controlo do carro ou se viajava a uma velocidade excessiva. Julgo que se trata de um acidente.

—        Tenho a certeza disso.

—        Aquelas estradas são perigosas. As guardas metálicas são frágeis e não podem obstar a que, com uma manobra errada, um tipo vá parar com o carro ao fundo de um abismo. Pode ter-se tratado de um caso de desatenção, de velocidade contra-indicada naqueles sítios, enfim, uma provocação ao destino. Dr. Chapman, muito obrigado pela ajuda que nos prestou. Lamento tê-lo forçado a todos estes pormenores, mas deve compreender que faz parte da minha profissão. Foi um mero aspecto rotineiro. De qualquer maneira, o senhor portou-se como uma pessoa bastante cooperadora.

—        Era um dever que tinha para com Cass Miller.

—        Sim, é verdade. Mas foi uma coisa dos diabos. Esta noite vou mandar dactilografar o relatório sobre o acidente e amanhã de manhã envio-lhe os exemplares para assinar.

—        Os meus agradecimentos, inspector.

Paul permaneceu imóvel, observando o detective a regressar ao carro-patrulha, ainda a consultar um livro de notas que tinha na mão.

Paul abanou a cabeça, como para se libertar de um pesadelo, e caminhou decididamente pelo pátio. O Dr. Chapman estava a meio caminho das escadas. Paul chamou-o:

—        Dr. Chapman!

—        Ainda bem que o vejo, Paul — disse o cientista, descendo

rapidamente os degraus. — Andei à sua procura por toda a parte.

Sabe o que aconteceu, não é verdade?

—        Sim, sei. Foi o próprio Cass que me contou. —Como?

—        Não foi um acidente.

Paul estendeu a carta ao Dr. Chapman, que a aceitou instintivamente, sem olhar para ela, tentando descortinar a expressão do rosto de Paul. Depois, apressadamente, desdobrou a folha de papel e leu. Quando voltou a olhar para Paul, estava pálido como um defunto.

—        Não posso acreditar nisto...

—        Mas é verdade. Existia uma mulher chamada Sarah Goldsmith que foi morta esta manhã. Pode informar-se para a Polícia.

—        Isso não significa que fosse Cass o assassino. Cass era um verdadeiro problema mental. Todos nós poderemos testemunhar isso. É possível que ele tivesse sabido do assassínio da mulher e quisesse adquirir notoriedade... tal como sucede nas impulsivas confissões de muitos crimes... aparecem sempre uns malucos a proclamar-se culpados para gozarem uma espécie de triunfo que, de outra maneira, não poderiam obter...

—        E gozá-lo depois de se ter suicidado?

—Cass não se suicidou. Cass era um dos nossos assistentes...

—        Doutor, lembre-se de que Cass trabalhou todos estes meses connosco sem nenhuma manifestação peculiar de marcante desequilíbrio mental. Julgo que a Polícia aceitará a confissão dele como verdadeira.

O Dr. Chapman olhava fixamente para Paul, num crescente grau de terror.

—        A Polícia...

—        Sim, a Polícia tem que ser informada. Há a vida de um outro homem envolvida no caso. As autoridades detiveram o marido de Sarah Goldsmith, acusando-o do crime cometido por Cass.

O Dr. Chapman fez um gesto de compreensão sem pronunciar palavra.

—        Esta carta ilibará o homem — disse Paul. O Dr. Chapman voltou a acenar com a cabeça.

—        Ficarei com a carta para...

Paul deu um passo em frente e arrancou-lhe a folha de papel das mãos.

—        A carta foi-me dirigida. Penso que é melhor ser eu a tomar conta dela.

—        E o que é que vai fazer, Paul?

Paul olhou na direcção do parque de estacionamento e o Dr. Chapman seguiu-lhe a direcção do olhar. O detective tinha chegado junto do carro-patrulha e estava agora a abrir a porta.

—        Vou entregar-lhe isto — disse Paul.

—        Paul, espere... não sejamos... vamos primeiro considerar o caso e...

Mas Paul já se tinha afastado, apressando-se para conseguir chegar ao carro da polícia antes de este arrancar. Nem uma so vez olhou para trás. Tinha visto, finalmente, um ponto fraco na armadura e não desejava nunca mais contemplar aquela vergonha.

A campainha do despertador retiniu insistentemente, num alarme metálico. De olhos fechados, Paul retirou a mão de entre os lençóis, tacteou à procura do relógio e premiu o botão de travagem.

Só depois abriu os olhos, vagarosamente, verificando que eram nove e meia daquela manhã de domingo.

Por momentos, a fim de permitir que a consciência lhe voltasse plenamente, deixou-se estar deitado de costas sem fazer qualquer movimento. As únicas provas da ressaca consistiam numa pressão de ferro sentida na cabeça e a boca a saber-lhe a papéis de música. Pouco depois levantou-se, começou a desabotoar o pijama e lembrou-se do dia que era.

Dirigiu-se então para a mesinha do telefone e segurou o auscultador com uma mão, enquanto com a outra discava o número da recepção.

Do outro lado do fio ouviu uma voz feminina dizer:

—        Bom dia.

—        Daqui é Paul Radford. Quarto vinte e sete. Por acaso ainda aí têm os jornais da manhã?

—        Só um, sir. Os outros já foram vendidos.

—        Pode mandar-me esse?

—        Claro que sim, sir.

—        Faça o favor de dizer para me mandarem também sumo de tomate, dois ovos escalfados e café.

—        É tudo, sir?

—        Sim. Não se esqueça do jornal.

—        Muito bem.

Depois de ter pousado o auscultador no descanso, Paul desapertou o cordão das calças do pijama e despiu-as. Passou então em revista o vestuário que tinha deixado fora da bagagem, já fechada, para o seu último dia de permanência em The Briars. Fato cin-zento-claro, camisa azul, gravata de malha, cuecas, meias e sapatos. Finda a inspecção, dirigiu-se para a casa de banho, a fim de lavar os dentes, barbear-se e tomar um banho de chuveiro.

Enquanto se secava, esfregando o corpo vigorosamente com a felpuda toalha turca, começou a pensar nos acontecimentos da noite anterior.

Conseguira apanhar a tempo o detective, apresentara-se, mos-trara-lhe a carta de Cass Miller e respondera a uma dezena de perguntas. Os polícias tinham-lhe agradecido toda a maçada que tivera e haviam partido para irem, segundo Paul pensava, apresentar a carta ao procurador distrital. Voltando para junto da piscina, imediatamente notara que o Dr. Chapman não se encontrava à vista. Procurara-o, sem melhor resultado, na sua suite. Por fim, o empregado da recepção informara-o de que o Dr. Chapman se metera no Ford, deixando recado aos homens da imprensa de que só faria a sua declaração no dia seguinte.

A série de acontecimentos violentos que o tinham agitado durante todo aquele dia começaram a produzir os seus efeitos no ânimo de Paul, de modo que resolveu ir até ao bar de Beverly Wilshire no carro de Kathleen. Durante muito tempo estivera de conversa pegada com um inglês que encontrara sentado no banco pegado ao seu. Absorvera cinco uísques. O inglês falara-lhe longamente da história da ascensão ao monte Evereste, de todas as tentativas falhadas por grandes alpinistas. À meia-noite, já um pouco etilizado, Paul voltara para o motel, adormecendo logo a seguir.

Agora, já lavado e vestido, Paul pensava se aquele último dia em The Briars não seria o último dia do grande projecto do Dr. Chapman. Tentou imaginar as consequências produzidas pela carta de Cass Miller. Sem dúvida que a essa hora Sam Goldsmith já teria sido posto em liberdade e a imprensa notificada do caso.

Os jornais, nessa manhã de domingo, dia do Senhor, deviam ser sensacionalistas. Imaginou os títulos em grandes parangonas: Assistente do Dr. Chapman que se transforma em assassino sexual, Dona de casa assassinada por um cientista louco; Uma mãe de dois filhos imolada ao sexualismo de um assistente do Dr. Chapman; Um assistente do Dr. Chapman suicida-se depois de ter assassinado uma mulher que havia entrevistado; Um dos peritos sexuais do Dr. Chapman estrangula uma senhora da melhor sociedade, suicidando-se a seguir; «Ela era uma pecadora!», clamou o assistente do Dr. Chapman depois do assassínio...

Paul não tinha quaisquer dúvidas deque a essa hora já os sabujos da virtude tinham abocanhado a reputação do Dr. Chapman. Haveria um telegrama do Instituto Zollman retirando a proposta. Um telefonema do reitor de Reardon suspendendo as actividades do professor. Uma carta do editor a cancelar o livro. Os questionários codificados, mais de três mil entrevistas de mulheres casadas, permaneceriam intocáveis nos cofres do banco até que a curiosidade de homens de outra época os desenterrassem do olvido dos tempos. A História Sexual da Mulher Casada Americana juntar-se-ia às grandes obras criadoras só publicadas muito depois da morte dos seus autores, tais como as Memoirs de Lord Byron e The Scented Gardende Sir Richard Burton, obras quase proibidas e pouco acessíveis ao leitor comum. E milhões de mulheres, jovens e idosas, casadas e solteiras, continuariam à espera de serem libertadas do medo e da ignorância, continuariam na estagnação da parte do seu espírito ainda mergulhado em negra escuridão. Todavia, Paul pensou que outros homens eminentes tinham sobrevivido a escândalos ainda mais tétricos. Tentou !embrar-se de nomes: Henry Ward Beecherfora um desses homens... mas outros tinham-se afundado, como Shoeless Joe Jackson...

Paul sentiu pena do Dr. Chapman, e pena de si próprio por ter sido o agente da destruição. Judas tinha traído por dinheiro, o que era imperdoável, mas ele, pelo menos, fizera aquilo para salvar um inocente. Bem-vindo sejas ao seio dos vivos, Sam Goldsmith.

Já estava vestido, só lhe faltava calçar os sapatos, quando ouviu bater à porta. Foi abrir e deu passagem ao criado de quarto, calvo, que transportava a bandeja com o pequeno-almoço e trazia o volumoso jornal dominical. Paul assinou a conta, deu meio dólar ao criado, e voltou a fechar a porta, depois de o homem ter saído. De novo sozinho, embrenhou-se pelas páginas inumeráveis, afastando a secção das histórias aos quadradinhos, que formavam o noticiário matutino. Ao mesmo tempo que tomava o seu sumo de tomate, ia pesquisando o jornal.

Na primeira página vinha a notícia do dia em título destacado: «O Presidente fala sobre Berlim».

Outro título de interesse dizia ter havido um terramoto algures no México.

Numa coluna da esquerda viu finalmente uma pequena fotografia de um automóvel reduzido a pasta e o título: «Morte de um assistente do Dr. Chapman». O subtítulo dizia: «O sexólogo Cass Miller morto num acidente de viação».

Paul começou a devorar a história, contida em meia coluna.

Durante um passeio por uma estrada de montanha em Topanga Canyon, Cass Miller, de 32 anos, autoridade em comportamento sexual humano e assistente do Dr. George Chapman na actual sondagem da Universidade de Reardon sobre mulheres casadas americanas, perdeu o controlo do carro alugado que conduzia e mergulhou num abismo, tendo morrido entre os destroços do automóvel. Segundo informação da polícia, o acidente, o sexto desde que...

Paul não quis acreditar naquilo que tinha lido. A morte de Cass era o único facto verdadeiro da notícia, tudo o resto era um amontoado de mentiras ou de verdade escamoteada, o que ainda era pior. Não havia uma só palavra a respeito do assassínio de Sarah Goldsmith, nem uma palavra sequer sobre o confessado suicídio, nem uma palavra que se referisse à carta que entregara à Polícia.

Paul percorreu o resto da primeira página, depois passou à seguinte e andou assim febril até à página sete, onde, finalmente, encontrou uma pequena notícia.

O título em caixa diminuta dizia:

«Senhora de The Briars encontrada morta.»

A notícia era resumida e contava que Sarah Goldsmith, de 35 anos, tinha sido encontrada morta, na sua cozinha, com a coluna cervical fracturada, e o marido havia sido detido para interrogatório. O resto era uma descrição do ano de nascimento da assassinada e os principais factos ocorridos durante a sua vida.

De novo, não havia qualquer referência à confissão de Cass sobre a violação e assassínio, e de novo a notícia insinuava uma morte violenta.

Naquele domingo, o teatro estava ocupado. A única diferença que se notava era o haver também espectadores em pé ao longo das paredes laterais e nos fundos da grande sala. O poder arrastante do convidado de honra, o Dr. Chapman, estava a estabelecer um novo recorde. Também, como já vinha sendo hábito, nesse domingo Borden Bush teve necessidade de recorrer ao seu tubo de «donnatal» e tomar outro comprimido, o segundo no espaço de uma hora, para acalmar o seu estômago, cuja úlcera se manifestava acerbamente.

Aos trinta e quatro anos, Borden Bush era um homem que, embora frenético e dinâmico, estava prematuramente envelhecido. Além da úlcera, sofria de brotoeja, ostentando porém as duas doenças como um general as medalhas ganhas em campanha. O seu lugar de relevo na televisão devia-se não só a ser primo afastado de um dos vice-presidentes da companhia como também a ter apresentado umà tese sobre comunicações, ter dirigido um espectáculo de crítica literária, como ainda ninguém vira até então, e ter dito a um repórter da Variety que, na sua busca de novas histórias que lhe servissem de trampolim, costumava ler Suetónio. Por tudo isso, tinham-lhe dado, dois anos antes, a direcção e realização do programa The Hot Seat, tornando-o num requisito vital entre os snobs da televisão e os estudantes universitários ou professores aposentados.

Após ter engolido o amargo comprimido, Borden Bush ficou à espera do desconfortante momento que o aguardava.

Como produtor e realizador de cento e sete programas daquele tipo, Bush já estava acostumado às pessoas temperamentais. Cedo havia aprendido, e depois sempre afirmara, que o seu programa tivera pelo menos a virtude de lhe ensinar uma coisa — que os grandes nomes do mundo académico eram duas vezes mais temperamentais do que uma cantora de ópera ou uma bailarina. Ora, ali tinha em foco o caso do Dr. Chapman. De início Bush considerara Chapman como uma caixa de arquivos de valor, mas uma personalidade apagada. Parecera um daqueles homens cordatos, prontos a tudo para lhes ser dada projecção, e até havia concordado em que a censura da televisão proibisse que a palavra coito fosse proferida durante o programa. Logo, aquela súbita tempestade temperamental, desencadeada uma hora antes, fora duplamente inesperada e colocara todo o estado-maior do programa em xeque, obrigando os funcionários a fazerem inumeráveis e frenéticas chamadas telefónicas. Agora, porém, a dificuldade já fora resolvida, embora houvesse ainda à sua frente uma desagradável tarefa a cumprir.

Ouviu-se uma pancada na porta do gabinete, e Borden Bush deu-se conta de que tinha estado perdido em pensamentos.

—        Entre! — gritou.

Sheila, a sua secretária, mantinha a porta aberta.

—        Está aqui o Dr. Victor Jonas.

—        Pode mandar entrar.

Borden levantou-se rapidamente e deu a volta à secretária na precisa altura em que o Dr. Jonas, transportando a sua espessa pasta de coiro onde tinha as notas e estatísticas, atravessava o limiar da porta.

—        Prazer em vê-lo, Dr. Jonas — disse Borden Bush, sacudindo a mão do visitante.

O Dr. Jonas sorriu indeciso.

—        Como está? Desculpe, se mal posso falar. Aquelas escadas...

—        Há dois anos que luto por colocarem um elevador... Por agora é tudo, Sheila — disse, voltando-se para a secretária, que continuava à porta. — Como ia a dizer, há dois anos que peço que montem um elevador. Mas não, nada ainda foi determinado pelos burocratas. Consideram o caso uma perda de dinheiro. Bem, sente--se aqui. Neste lugar fica confortável — instalou o Dr. Jonas na cadeira em frente da sua secretária. — Um charuto?

—        Não, muito obrigado.

Borden Bush voltou para a sua posição defensiva atrás da larga secretária, que constituía o seu bastidão.

—        Este andar fazia parte do guarda-roupa dos artistas. Lá em baixo não havia instalações suficientes. Daí a justificação das escadas tão íngremes.

Designou o gabinete com um gesto:

—        Não acha que fizemos aqui um excelente trabalho de transformações?

O Dr. Jonas observou o escritório. A pintura era de um verde repousante, com luzes indirectas, e o mobiliário era todo em castanho polido e coiro de um amarelo discreto. Das paredes, em estreitos caixilhos negros, pendiam cartazes de antigos programas. Numa estante de portas de vidro, parcialmente guarnecida, havia livros sobre televisão e outros, como The Prophet, de Kahlil Gibran, Forever, de Mildred Cram, This Is MyBeloved, de Walter Benton, e o indispensável Who's Who in America.

—        Muito atraente — concordou o Dr. Jonas.

—        Doutor, estamos quase a ir para o ar, de modo que não vou perder o meu tempo nem lhe quero fazer perder o seu — disse Borden, com uma brusquidão que lhe assanhou a úlcera. — Não tenho nenhum prazer em dizer-lhe o que se vai seguir. Isto nunca aconteceu antes. Mas, aqui vai: receio que não o possamos utilizar no espectáculo de hoje.

Por momentos o Dr. Jonas manteve-se silencioso... Tivera um pressentimento do caso, que parecia estar confirmado.

—        Lamento ouvir isso — disse Victor Jonas, calmamente, tirando o cachimbo do bolso e começando a enchê-lo.

—        Sucedeu um imprevisto.

—        Quer dizer, um imprevisto chamado Dr. Chapman?

O vento era agora favorável às velas de Borden Bush, e o seu barquinho podia continuar a singrar naquele espelho de água.

—        Tenho que confessar que sim. Como é que adivinhou?

—        O Dr. Chapman teme-me. Desde o princípio que me intrigava que ele permitisse a minha inclusão como um dos componentes da mesa-redonda.

—        Precisamente esse obstáculo — afirmou Borden, des-contraindo-se ainda mais. — O Dr. Chapman não sabia da sua presença. Nunca informamos os nossos convidados de honra sobre quem serão os componentes da mesa-redonda até à altura de eles chegarem ao estúdio. Pretendemos assim evitar que possam antecipar o género de perguntas que lhes serão feitas. O programa deverá ser espontâneo.

—        O que é que aconteceu quando o senhor lhe revelou o meu nome como componente da mesa-redonda?

—        Pum! Explodiu como o Krakatoa. Disse que não apareceria em nenhum programa a seu lado, que o senhor só tem pretendido desacreditá-lo, etc. Apresentou o problema de forma radical, ou o senhor ou ele, os dois juntos nunca. Fiquei completamente desorientado. Bem, estou certo de que encarará o caso do ponto de visto do programa. Isto é precisamente como nos filmes. A estrela do espectáculo é o Dr. Chapman, o resto não passa de figurantes. Telefonei para sua casa, mas...

—        Contou o caso a minha mulher?

—        Não.

—        Devia tê-lo feito. Ela tem uns amigos lá em casa dispostos a ver a minha actuação pela televisão. Já fez alguma coisa para me substituir?

—        Sim, telefonei para um par de velhos burros de aluguer, professores da escola local. Consegui estabelecer contacto com um dos patetas alegres, um assistente de Antropologia muito interessado em conseguir o autógrafo de uma celebridade como o Dr. Chapman. Enfim, creia que lamento que isto tivesse acontecido.

Claro que receberá na mesma o seu dinheiro. Talvez noutra qualquer ocasião o possamos utilizar. Haverá mais programas.

—        Vou ter uma vida ocupadíssima. Vamos abrir uma clínica.

—        Então talvez possamos vir a fazer propaganda disso—apres-sou-se a dizer Borden Bush, à guisa de compensação.

—        Deixo isso ao seu critério — replicou Victor Jonas, levantando-se e estendendo a mão.

Borden Bush tomou a mão de Victor Jonas entre as suas num gesto caloroso. Nos seus olhos apareceu uma ténue expressão de mágoa — um talento fisiológico que lhe granjeara enorme reputação de sinceridade.

—        O senhor é uma verdadeira jóia, doutor.

Depois de ter fechado a porta atrás de si, o Dr. Victor Jonas desceu as íngremes escadas que levavam directamente aos bastidores. Uma vez chegado lá abaixo, deteve-se a observar os caóticos preparativos. Estudou a massa de cabos, enrolados como serpentes adormecidas, as pesadonas câmaras montadas sobre as suas plataformas rolantes e os aparelhos monitores. Havia grande quantidade de pessoas em mangas de camisa, agitando-se freneticamente, que se lhe afigurava não estarem a fazer nada de útil. Pensando naquilo que em outras ocasiões já observara em palcos semelhantes, pensou por que é que aquele espectáculo para as multidões se processava de maneira tão agitada para realizar muito menos do que aquilo que se cumpria no Pentágono ou nas Nações Unidas, locais onde a actividade era mais calma e menos apressada. Mas a resposta parecia óbvia—a maioria das pessoas que se dedicavam à televisão não o fazia pelo motivo fundamental de uma carreira posta ao serviço do público, era um autêntico negócio, uma profissão com ampla publicidade e salários mais que generosos; daí aquele aspecto de azáfama que tinha que se manter e aquele ar de extrema importância que todos tinham. Andavam naquele frenesim porque acreditavam no mito criado pelas suas mãos e que se propagava a um pequeno ecrã situado em milhões de lares. Chegavam a pensar que sem a sua arte circense o mundo resvalaria de novo na escuridão da idade anterior às luzes. Mas, para o observador atento de fora, tudo aquilo não era mais do que um circo, uma demonstração patética de habilidade do homem na arte de escravizar o seu semelhante com efeitos pré-fabricados. Agora, o Dr. Chapman tinha-se aliado àquele espectáculo de propaganda para arrastar as massas, e isso era o pior de tudo.

Por uma aberta, o Dr. Jonas pôde observar o verdadeiro mar de cabeças para além da ribalta. Duas câmaras estavam a deslizar para posições convenientes, alguns empregados limpavam com vigor a mesa que serviria para a assembleia. Victor Jonas voltou-se para se ir embora, mas, nessa altura, e não obstante a verdadeira floresta de pessoas que os separavam, divisou a corpulenta figura tornada tão popular por centenas de fotografias públicas em revistas, jornais, documentários e programas de televisão—o Dr. George G. Chapman, nesse momento a falar com uma senhora já entrada em anos.

O Dr. Jonas observou afigura do seu inimigo, o largo e enigmático sorriso de chefe índio, agora acentuado pelo vermelhão da maquilhagem.

O Dr. Jonas abriu caminho.

—        George Chapman?

O cientista era todo amabilidade.           

—        Exactamente.          

—        Sou Victor Jonas.

O largo rosto ensombreceu, não escondendo nada da agitação interior.

—        Muito bem, e então?

O tom indicava claramente o estado de espírito do caçador preparado para abater a peça de caça que lhe passava ao alcance da carabina.

O Dr. Jonas agitou a pasta.

—        Estava preparado para lhe fazer algumas perguntas...

—        Perguntas? Diga antes que tentava exautorar-me publicamente.

—        Está redondamente enganado a respeito disso—disse brandamente o Dr. Jonas. — Não seria tão cruel que... digamos, que utilizasse a televisão como uma arena para o confronto das nossas filosofias discordantes. Nunca me passou sequer pela cabeça que fosse este o local adequado para expor as falências do seu sistema. O meio próprio para isso será o meu relatório para a Fundação Zollman. Não, o que tinha era esperança de que de um cientista para outro...

O Dr. Chapman interrompeu-o com um grunhido.

— Cientista? Ainda tem o desplante de se apodar a si próprio de cientista? Estou satisfeito por tê-lo encontrado aqui. Estou satisfeito por lhe poder dizer cara a cara o que penso de si. Jonas, o senhor é um académico de meia-tigela que não oferece nada de novo a ninguém, limita-se a fazer críticas sobre as realizações alheias, aproveitando-se ao mesmo tempo dos empreendimentos dos verdadeiros cientistas, o senhor não passa de um daqueles peixes-pilotos que se alimentam dos restos abandonados pelos tubarões, é como aqueles crustáceos que se agarram aos cascos dos navios para nunca mais os largarem.

Muito embora o Dr. Jonas estivesse determinado a manter a calma e a não reagir ainda que a isso fosse incitado, sentiu a mostarda a chegar-lhe ao nariz:

—        O senhor está habituado a ter dessas birras infantis, Dr. Chapman?

—O seu único propósito, a sua verdadeira carreira tem por fim a minha destruição — continuou o Dr. Chapman.

—        Mas por que diabo iria eu agir com o único fim de o destruir?

Nunca o tinha encontrado antes deste momento, e, além disso...

—        Porque o senhor é mal-intencionado e ambicioso, eis a razão para os seus actos contra mim. O caso é que, uma vez prova das e aceites as minhas teorias, deixa de haver lugar para si. O senhor é como... como um desses fabricantes de lampiões na altura em que apareceu Edison...

Afinal, o bom humor voltava ao Dr. Jonas perante aquelas comparações.

—        Quer o senhor dizer que eu... Mas o Dr. Chapman não o deixou concluir o que ia a dizer.

—        ...o senhor luta para manter os velhos e errados meios de iluminara humanidade. Luta pela sua sobrevivência. Se me puder desacreditar seja por que meios for, tal como através deste programa de televisão ou fazendo o seu joguinho, nas minhas costas, para a Fundação Zollman, não hesitará um só momento. Para que sobreviva, eu devo morrer. Mas será preciso passar sobre o meu cadáver para obter essa concessão da Zollman — o oxigénio necessário para manter a sua clínica de quacres...

O Dr. Chapman perdeu o fôlego, e isso foi aproveitado pelo Dr. Jonas rapidamente:

—Tem razão—disse gravemente —, na verdade quero destruí--lo.

—        Finalmente confessa!

—        ...quero destruí-lo mas não como o senhor imagina. Com certeza que os seus espiões já lhe disseram que possuo enorme apoio para a minha clínica e para as minhas ideias. Não preciso de mais. Quero que compreenda bem que a fome voraz pelo êxito que tem perturbado as suas faculdades ainda não me corrompeu. Mesmo com risco de parecer pomposo, digo-lhe que a única coisa que me preocupa, a única coisa que procuro é a verdade, nem mais nem menos, a verdade. Para mim, as suas ideias não representam verdades, são mentiras... bem, mentiras não, não é bem isso, mas meias verdades. O senhor persiste em manter a verdade integral oculta, trocando-a pelas coisas falazes que oferece ao público a troco deste êxito espectacular que o acompanha. A minha luta contra si deve-se ao senhor ter abandonado todos os esforços de um inquérito paciente, de uma investigação discreta, de um método de tentativas, de ensaio e erro. O senhor não admite a margem de erro, perdeu toda a humildade e objectividade para se confessar errado, para tentar encontrar outro caminho, para rever ou melhorar os seus métodos. O senhor apareceu em público demasiado cedo, e a publicidade ofuscou-o, subverteu-o. Devia ter investigado mais profundamente e no silêncio dos verdadeiros cientistas. É por isso que estou disposto a combatê-lo, tanto a si como a qualquer pretendente que se disfarce de cientista puro em vez de esperar que essa ciência seja demonstrada pela verdade pura. O senhor usa a máscara de um Einstein, mas o que existe por trás dessa máscara é a personalidade de um Barnum, um palhaço a fazer cabriolas na corda bamba da ciência.

As mãos do Dr. Chapman enclavinharam-se, o corpo foi agitado por uma espécie de dança de S. Vito.

—        Se não soubesse que a sua intenção é provocar-me, esperando que eu o agrida para que assim o seu nome figure finalmente nos jornais e eu seja arrastado à sua miserável condição de rufia, dava-lhe um bom murro. Mas ainda não está livre que eu o faça.

—        Estou a ver. É mais uma prova da sua ciência pura. Não me surpreende saber que é a murro que o senhor pretende fazer impor a sua ciência. É à pancada que estabelece os seus confrontos com a crítica. Na verdade um método excelente de não ter quem o rebata.

Entretanto o Dr. Chapman caíra em si:

—        O que me apraz repetir-lhe, Jonas, é que o senhor não se deve considerar nem um cientista nem um crítico, não passa de um rufião e de um louco. Nem sequer o suponho capaz de dirigir o seu pequeno negócio de estabelecimento sem importância. Afinal o que é que o senhor tem feito na Califórnia? Falar aos pobres e ignorantes mexicanos e às desmazeladas mulheres dos motoristas de camiões de carga, blasonando depois que os seus conselhos sobre o matrimónio são a resposta suprema? É essa a sua ideia de cultura sexual que possa melhorar a espécie humana? Há uma possibilidade num milhão de conseguir convencer qualquer pessoa. Percorri cerca de dois mil e quinhentos quilómetros até aqui para realizar em duas semanas o trabalho que o senhor não conseguiu em dois anos... em dez anos.

—        Dr. Chapman, convença-se de que não realizou nada. Tudo o que fez foi ocasionar infinitos prejuízos morais.

—        Tem a certeza? Que petulância!

—        Sim, tenho a certeza de que o senhor só espalhou erro e confusão. Tive oportunidade de contactar com várias das mulheres casadas que o senhor e os seus assistentes entrevistaram. Em certo caso, uma dessas mulheres, uma das voluntárias que foi entrevistada, sentiu-se perigosamente estimulada, e acabou por se envolver numa aventura amorosa com um grupo de homens. Pode imaginar os resultados que daí advieram. Não o acuso totalmente pelo facto, mas penso, todavia, com fundamentadas razões, que a excitação engendrada pelas suas perguntas, sem o necessário calor humano de conselhos...

—        Não pretenda pregar-me sermões! É esse género de historieta moral barata que o senhor vai apresentar à Zollman?

—        O meu relatório não conterá nada que não possa ser provado por uma contra-experiência aos seus métodos. Na verdade, não tenho provas reais de que a sua técnica de entrevistas seja prejudicial em si mesma. Somente suspeito disso, baseado em casos isolados, poucos casos. Mas o senhor, Chapman, deu-me uma ideia. Confesso-lhe francamente que vou organizar um exame mais cuidadoso dos danos produzidos pela sua sondagem. Será um trabalho para o futuro, mas por agora já estou suficientemente satisfeito em saber que o resultado do seu trabalho...

O Dr. Victor Jonas teve a súbita consciência de que havia outra pessoa junto deles. O terceiro componente do grupo era Borden Bush que, ao descer a íngreme escada em espiral, vira os dois homens quase a chegar a vias de facto e se preparava para intervir.

— Ora vivam, meus senhores — interrompeu ele em voz alta, esfregando as mãos nervosamente —, pelo que vejo encontraram--se extraprograma para uma sessão de perguntas e respostas — segurou com firmeza o braço do Dr. Chapman. — Parece-me melhor tomar o seu lugar, Dr. Chapman. Faltam apenas cinco minutos para o programa ir para o ar. Pretendo fornecer uma explicação aos caros espectadores da súbita mudança de um dos componentes da mesa-redonda, visto que havíamos anunciado previamente o Dr. Victor Jonas. Penso também que será melhor darmos, perante as câmaras, uma explicação a respeito de Cass Miller. É de toda a vantagem manifestar o nosso profundo sentimento acerca do caso. Borden Bush conseguira finalmente distrair a atenção do Dr. Chapman, começando a guiar o cientista para o seu lugar no palco.

—        Boa sorte — gritou-lhes o Dr. Jonas, não sem ironia.

« O Dr. Chapman olhou para trás e replicou:

—Vá para o inferno!

Pouco passava das três horas quando Paul Radford chegou à Associação Feminina de The Briars, começando a subir os degraus dois a dois.

Na sua pressa manifestava-se a cólera que lhe fervia na alma. Estava determinado a não dar tréguas a quem, sem razão para isso, usava uma brilhante armadura de campeão, armadura que, finalmente, mostrara as suas fendas de maneira tão abrupta.

Desde essa manhã, desde que lera aquelas páginas do jornal, as demarcantes páginas um e sete, sentira a necessidade de uma explicação que contivesse toda a verdade.

A sua ira agravara-se quando, na abertura do espectáculo televisivo, sentado ao lado de Horace e Naomi, ouvira anunciar que o Dr. Victor Jonas, convidado para componente da mesa-redonda, fora substituído à última hora.

Depois de acabado o programa, que não fora mais do que um longo monólogo do Dr. Chapman, sem qualquer oposição directa ou esclarecida dos moderadores, coniventes numa espécie de conclave suavíssimo cozinhado para realçar a figura e obra do grande sexólogo, Paul levantara-se apressadamente, entrara na cozinha de Naomi e fizera um telefonema para o Dr. Jonas, ainda perseguido pela enorme salva de palmas que a assistência tributara ao Dr. Chapman.

Victor Jonas não estava ainda em casa, mas Peggy Jonas manifestara-se também mistificada pela retirada do nome do seu marido como um dos interrogadores.

—        Não posso compreender o que sucedeu — respondera a mulher do psicólogo. — Jonas levou quase toda a noite a preparar as perguntas afazer ao Dr. Chapman.

Paul deu-lhe o número do telefone de Naomi e, revolvendo dentro de si os mais sombrios pensamentos sobre o caso, esperara longo tempo até Victor Jonas ligar para a vivenda.

Paul escutou então as razões para o cancelamento do nome do psicólogo, e a sua ira subiu de tom.

Demasiado agitado e impaciente para conseguir almoçar, Paul tentara localizar o Dr. Chapman, telefonando vezes sem conta para o motel e para a Associação. Finalmente, às duas e meia, tinha sido atendido por Benita Selby. A secretária informara-o de que o Dr. Chapman acabara de chegar, após o almoço que lhe fora oferecido pelos produtores do programa.

Nesse momento, em frente da porta da sala de conferências, com centenas de pensamentos a cruzarem-se no seu cérebro, Paul parou um instante, inalou profundamente e levantou a mão para bater no painel. De repente modificou a sua resolução e lançou mão ao fecho, abrindo a porta de repelão.

O Dr. Chapman não estava só. Ditava um documento a Benita Selby. A secretária estava sentada diante do grande homem, com o livro de notas assente no joelho e o lápis no ar, à espera das palavras que se seguiriam:

—        ...foi verdadeiramente um mártir da ciência e do desenvolvimento científico — recomeçou a ditar o Dr. Chapman, sem dar pela entrada de Paul. — Durante catorze meses devotou-se com todo o seu será...

Foi então que viu Paul Radford.

—        Estou a acabar uma nota para a imprensa. Não demora nada, Paul.

De rosto fechado, Paul puxou uma cadeira metálica e sentou--se.

O Dr. Chapman apontou para o bloco de notas de Benita Selby.

—        Leia-me o que está escrito.

Benita levantou o bloco e leu:

—        Magoado pela morte inesperada do seu devotado assistente, o Dr. Chapman publica hoje a seguinte declaração para conhecimento do país: Cass Miller foi verdadeiramente um mártir da ciência e do desenvolvimento científico...

—        Benita — interrompeu o Dr. Chapman —, emende esse período para «mártir da ciência e das pressões do desenvolvimento científico». Continue.

Benita escreveu qualquer coisa e depois reatou a leitura.

«Durante catorze meses devotou-se com todo o seu ser a...»

O Dr. Chapman humedeceu os lábios com a ponta da língua, fixou o tecto e prosseguiu:

«...trabalhar pela causa da ciência, esforçando-se para além das horas normais, chegando a trabalhar dez e doze horas, quer de dia quer de noite, consciente de que o meu trabalho de pioneirismo no comportamento sexual humano chegasse a uma conclusão cheia de êxito. Mas o martirológio de Cass Miller não terá sido em vão. O próximo livro, que em grande parte teve a sua valiosa colaboração, Uma História Sexual da Mulher Casada Americana, cuja publicação está programada para a Primavera, será dedicado à memória de Cass Miller. E, devido à parte que ele teve na obra, estou certo de que toda a espécie humana ficará mais saudável e se sentirá mais feliz. Na capela da Universidade de Reardon, Wisconsin, serão hoje realizados serviços fúnebres em memória de Cass Miller, sendo-lhe prestadas as derradeiras honras por colegas e amigos. Os restos mortais de Cass Miller seguiram esta manhã de Los Angeles para Rosewell, no Novo México, onde reside a sua bem--amada progenitora, Sr.ã R. M. Jonhson».

O Dr. Chapman olhou para Paul como que a pedir-lhe aprovação, mas Paul desviou a vista. Nesse momento, pela mente de Paul perpassou a lembrança de quanto Cass admirava Rainer Maria Rilke e como falara várias vezes da solidão de espírito do poeta. Indiferente ao mudo apelo do Dr. Chapman, conseguiu lembrar-se do pequeno período de uma das cartas de Rilke: «Todos os grandes homens deixam que as suas vidas se desenvolvam, como um velho caminho... A sua vida, porém, paralisou como um órgão que mais ninguém pode tocar».

—        Está tudo pronto, Benita — dizia o Dr. Chapman. — Tire seis exemplares da declaração e mande-os como telegramas urgentes para os jornais que estão na lista.

Benita, com o bloco-notas e o lápis apertados ao peito como uma penitente que quisesse preservar santas relíquias, apressou-se a sair da gruta sagrada para ir espalhar pelo mundo a Boa Nova do Profeta.

O Dr. Chapman chegou a sua cadeira para junto da de Paul.

—        Um assunto de lamentar. Estou satisfeito por tudo estar terminado — abanou a cabeça compungidamente. — Pobre diabo!

Guardou um pequeno momento de silêncio, como uma transição de passagem do mundo dos mortos para o mundo dos vivos.

—        Paul, julgo que viu o programa, hem?

—        Sim,vi-o.

—        O que pensa a respeito dele?      

—        O habitual.

—        Ora, vamos lá saber o que quer isso dizer?

—        Exactamente o que disse. O senhor forneceu ao público uma série de lugares-comuns, excitando-o de vez em quando com umas quantas referências sexuais, sem dizer nada de particular nem de útil.

Os olhos do Dr. Chapman semicerraram-se, mas ele permaneceu calmo, porque já aguardava que Paul exigisse uma explicação a respeito da carta. Decidiu, pois, que não havia razão para se mostrar ofendido.

—        Era um programa familiar. Feito para todas as idades, que entra em todos os lares. O que é que esperava que eu fizesse?

—        É a mim que pergunta?

—        Sim.

—        Esperava pelo menos que um homem da sua estatura não condescendesse em participar num espectáculo com uma mesa-redonda de sicofantas a fazerem apenas ofício de corpo presente. Que três asnos chapados o senhor teve a seu lado! Penso que mesmo que os voltasse de pernas para o ar e os fustigasse com um chicote, eles acabariam por gritar «bravo, bravo», tal como aquelas bonecas com um mecanismo para dizer «mamã, papá». O senhor precisava de um inquiridor autorizado, não de fantoches com a lição decorada. Porque é que afastou o Dr. Jonas do programa?

O Dr. Chapman estremeceu. Era uma coisa inesperada.

—        Quem disse que eu o afastei?

—        O próprio Dr. Jonas contou-me tudo. E eu acredito nele.

—        Em Jonas? Esteve então a falar com esse charlatão?

—        Foi o senhor quem primeiro me pediu para falar com ele, a fim de tentar comprá-lo, lembra-se? Evidentemente que me pus em contacto com ele. Quando ouvi anunciar a retirada do nome do Dr. Jonas, nem quis acreditar no meu aparelho auditivo. A notícia foi dada de modo ambíguo, insinuando que fora ele a retirar-se. Tinha que ter a certeza do caso. Por isso telefonei.

—        Você sabe quais são os sentimentos dele a meu respeito...

—        Está enganado, Doutor.

—        Sabe muito bem o que nós pensamos dele.

—        Nós não, Doutor. Aquilo que o senhor pensa dele.

O Dr. Chapman voltou a semicerrar os olhos, a sua voz estridente baixou uma oitava:

—        Não tenho que defender as minhas acções perante você, Paul. Esse homem é um destruidor assalariado. Pior ainda, está ansioso por poderio. Jonas quer envergar o meu manto. Se fosse um cientista de boa-fé, interessado na verdade, seria muito diferente. Tê-lo-ia acolhido de braços abertos. Mas assim, julga que eu consentiria em ter o meu potencial assassino a destruir-me perante o público, sem meu conhecimento e no meu programa? Não sou doido a esse ponto.

—        Vejo agora que preza mais o êxito do que a ciência. Julgo que o senhor sentiu receio de que lhe fosse roubado o lugar de relevo na ribalta. E, tanto a propósito do Dr. Jonas como de qualquer outro que discorde das suas opiniões, creio que está a atingir as raias da paranóia.

—        Mas que vem a ser toda esta conversa sem tom nem som de uma pessoa que conhece a minha obra, de uma pessoa que escolhi como meu sucessor? Estará você embriagado? Se assim é, talvez me seja fácil perdoá-lo.

—        Nunca na minha vida estive mais sóbrio. O álcool nunca me levaria a falar assim... só o desencantamento.

—        Estamos todos extremamente fatigados, Paul.

—        Eu não estou. E o senhor também não parece fatigado. O senhor teve ainda energia suficiente para conseguir a retirada do Dr. Victor Jonas, energia para transformar Cass Miller, de violador e assassino, num mártir da ciência. Que alquimia tão impressionante! Afinal, como é que o senhor conseguiu isso?

O Dr. Chapman ficou por instantes silencioso, observando as suas mãos.

—        Sim, já esperava ouvir semelhante coisa de si, depois de você ter lido os matutinos — levantou os olhos, mas sem fixar Paul.

—        Se pensa que se pode comportar como uma pessoa razoável durante alguns minutos, esclarecerei o caso. Julgo que o assunto é afinal uma matéria de perspectiva. Você foca-o demasiado de perto e por isso não pode ver o vasto campo de fundo que existe para além. Se conseguir isentar-se de modo que fique fora do problema, verá a situação como ela merece ser julgada, isto é, terá uma vista de todo o conjunto. Tomemos o caso da carta de Cass. Você apenas sabia que alguém fora detido e que essa carta seria um veículo de salvação. Logo, emocionalmente, considerou a missiva como um meio de provar que um homem estava injustamente preso por uma coisa que não cometera, mandando para o diabo todas as outras consequências. Eu, por outro lado, mantive a cabeça bem no seu lugar, talvez porque fui treinado como um cientista. Você, infelizmente, não teve semelhante treino. Agiu como um escritor, como um leigo, como um romântico. Não o censuro por isso. Mas sem dúvida que foi vítima do seu ambiente, Paul. Acredito que na iminência de uma crise, o verdadeiro cientista tem muito de comum com o clérigo católico. Ambos sabemos que há muito tempo estamos a dirigir o negócio e queremos continuar a mantê-lo. Olhamos para as coisas terrestres através do telescópio da história e vemos que, ano após ano, em cada década, cada geração repete constantemente

os seus ciclos críticos. A roda não pára de girar. Se nos deixarmos envolver permanentemente numa batalha atiçada pelas pequenas coisas, perder-nos-emos em ínfimos pormenores esquecendo o principal objectivo a atingir.

—        O senhor está agora a falar de sobrevivência, não de justiça —       disse Paul, calmamente. — Não é assim, Doutor? Deixemos que um inocente seja enforcado, é um ser ínfimo nesse telescópio por onde o senhor espreita, um ponto minúsculo perdido no espaço, deixemos que ele morra para que o senhor e a sua grande sondagem consigam sobreviver, não é verdade?

—        Muito bem. Manterei o caso nessa plataforma onde você me quer envolver. Sim, concedo isso, a necessidade de transformar

Cass Miller de violador e assassino em mártir da ciência, e esse ponto de vista deve-se exclusivamente a saber que a massa anónima reagiria da mesma forma como você está a reagir. Depois de ler a confissão feita por um cérebro perturbado, a massa julgar-nos-ia emocionalmente, sem a necessária paciência para estudar os factos pertinentes. Mas quais são os factos? Tecnicamente, Cass não assassinou essa mulher. O médico legista diz que ela morreu devido à queda. Não há provas de que fosse espancada. Tecnicamente, essa mulher possuía um carácter duvidoso e implacável. Por sua própria confissão, era infiel ao marido e preparava-se para abandonar o lare os filhos...

—        E o senhor pensa que isso justifica a violação?

—        Nada disso. Apenas verifico os factos. No que toca à violação, suponha que a carta que você tão generosamente entregou à polícia tinha sido hoje publicada em grandes parangonas? Em que teria isso servido a desgraçada mulher, a memória dela em relação aos filhos e pessoas de família? Como é que poderiam saber com segurança se ela fora ou não violentada?

—        Que espécie de pérfida insinuação é essa? — perguntou Paul.

—        Observei pessoalmente o registo de infidelidade dela, Paul. Benita investigou os questionários, e viu-se que foi Cass quem a entrevistou. Talvez ela tivesse convidado Cass...

—        Cass teria posto isso na sua confissão. Mas o que na verdade sucedeu foi ele ter escrito debaixo de uma emoção de vergonha abjecta e de culpabilidade.

—        De certa maneira, nunca saberemos a verdade. Além disso, agora só o pobre marido e uma mão-cheia de outras pessoas estão no conhecimento de que a mulher estava metida num caso de infidelidade conjugal e que se preparava para abandonar a família. Se a carta tivesse sido publicada, o sórdido sensacionalismo teria perseguido os filhos durante toda a vida. Pensou nesse aspecto do problema?

—        O meu pensamento é um só, Doutor. E os seus sofismas não me conseguem fazer pensar de outra maneira. Pensei em Sam Goldsmith na câmara de gás e nos pequenos como órfãos de pai e mãe, a não ser que alguém agisse com honestidade a favor deles.

O Dr. Chapman ignorou as palavras de Paul.

—        Mas as piores consequências da carta eram mostrar ao público que um componente da nossa equipa não passava de um maníaco sexual que acabara por se suicidar. De que maneira a imprensa e os leitores se atirariam à notícia! Ter-nos-iam crucificado. Devido a uma ovelha negra, seríamos rejeitados para sempre. Imagina o que teria acontecido se os nossos inimigos soubessem disso? Por exemplo, se o Dr. Jonas...

—        O Dr. Jonas sabe tudo.

—        Sabe tudo? — perguntou, incrédulo, o Dr. Chapman, levan-tando-se. — O que é que você está para aí a dizer?

—        Antes de vir para aqui, contei-lhe tudo.

—        Seu estúpido desmiolado!

—        Penso que o senhor é a única pessoa que se está a comportar com pouco juízo. Eu conheço o Dr. Jonas. O senhor ignora tudo sobre ele. Victor Jonas reagiu de um modo objectivo. Disse até que podia haver certa justificação para suprimir a carta de Cass Miller, devido ao mal que poderia vir a fazer à família e ao seu projecto. Se Sam Goldsmith pudesse ser salvo de outra maneira, nada se arriscaria em suprimir a carta. Ele pensa que, se o seu projecto deve ser destruído, tem de sê-lo por meio de refutação científica e intelectual, nunca por meio de um escândalo.

O Dr. Chapman permaneceu de pé, muito corado.

—        De modo que agora estamos a tratar directamente com Jesus Cristo.

—        Eu não concordei com Victor Jonas como não concordei consigo. Continuo a pensar não se dever arriscar a segurança de um inocente sacrif icando-o ao seu ego.

—        De modo nenhum permitiria que o homem fosse sacrificado — disse colericamente o Dr. Chapman. — O procurador público não queimou a carta até conseguir, hoje ao meio-dia, a prova de que na verdade Sam Goldsmith estava inocente.

Paul sentiu uma enorme onda de alívio.

—        Quer dizer que ele foi libertado?

—        Evidentemente. No momento da morte da mulher, Sam en-contrava-se em Pomona a tratar de negócios. As testemunhas foram localizadas e o álibi ficou plenamente estabelecido. Já tem, pois, livre o seu inocente bode expiatório. O cordeirinho não foi sacrificado, daí concluir-se que afinal não sou nenhum tirano. O que tem a dizer a isto?

O Dr. Chapman voltou a sentar-se, mais ou menos controlado, com os braços cruzados, numa posição de majestade.

—        Digo que nada se modificou — proferiu Paul, calmamente. — O homem está livre. Sinto-me contente. Mas em relação ao senhor, tal como o tenho visto nestas últimas horas, tudo permanece intacto. A meus olhos, o senhor não está ilibado. Estava preparado para preservar o seu trabalho e o seu futuro fosse à custa do que fosse.

—        Não é verdade. Não há provas disso.

—        Estou satisfeito com as provas que obtive. Seja como for, o senhor arranjou maneira de atabafar a verdade antes que ela fosse tornada pública. Praticou esse acto verdadeiramente indigno antes de saber que Sam Goldsmith tinha um álibi da sua inocência. Não sei o que sucederia se Sam não pudesse ter provado essa viagem a Pomona. Teria o senhor cedido e permitido que essa carta reveladora fosse publicada? Não sei. Já não pretendo sequer conhecer a resposta a essa pergunta, e julgo que o senhor também não está interessado em aprofundar-se sobre o caso. O que digo é que o homem que tanto admirei não se importa com as outras pessoas. Confesso agora a mim próprio a sensação de erro e a fraqueza do nosso trabalho. Na nossa maneira de contactar, não tratamos as pessoas como seres humanos, seres que pulsam de vida, consideramo-las apenas como números destinados a fazerem parte de uma tabela estatística. O nosso comportamento, produto da sua personalidade neurótica, não é a verdade total, e eu fui vítima desse desconcerto, tal como o senhor está a ser vítima dessa posição irredutível. Mas o pior é que as pessoas sondadas sofrem os erros concernentes a esses contactos desumanos.

Ouviu-se batera porta persistentemente. O Dr. Chapman, com as faces em fogo, olhou para a porta sem proferir palavra. Poucos momentos depois, o fecho girou e a porta abriu-se, mostrando a figura de BenitaSelby.

— Peço perdão por interromper—disse ela ao Dr. Chapman —, mas é Emil Ackerman quem está ao telefone...

—        Agora não o posso atender—disse o Dr. Chapman bruscamente. — Mais tarde, diga-lhe que lhe telefono depois.

—        O senhor Ackerman deseja apenas saber a que horas é que o sobrinho Sidney se deve encontrar consigo no comboio.

O Dr. Chapman evitou o glacial olhar de Paul.

—        Às seis e quarenta e cinco. Depois fornecerei os pormenores.

Após Benita Selby ter fechado a porta, os dois homens permaneceram em silêncio durante algum tempo. Chapman estudava as suas unhas cuidadosamente como se nunca as tivesse visto, e Paul entretinha-se a encher de tabaco o fornilho do seu cachimbo.

—        la precisamente informá-lo deste caso — disse o Dr. Chapman, sem levantar os olhos para Paul. A verdade é que temos que substituir Cass Miller com a máxima urgência.

Paul acendeu um fósforo, aproximou-o do fornilho e aspirou o fumo.

—        Muito bem, pelo menos isso vem responder à pergunta que não me atrevia a formular. Andava às voltas com o pensamento do modo como, numa democracia, se podia suprimir um documento depois de ele estar nas mãos da polícia. Agora já compreendo. O senhor encontrou um homem que tem na mão o procurador-geral ou o chefe da Polícia, e fez um negócio com esse homem. Tratou--se então de Emil Ackerman. Não me devia surpreender, o senhor disse-me numa ocasião que Emil vivia de fazer favores e exigir depois a retribuição deles. Vejo que o senhor já iniciou o pagamento do seu débito.

—        Tal prática não é fora do comum, Paul, até mesmo entre sábios da mais alta virtude.

—        Sim, o senhor tem razão nisso. Li umas coisinhas da história universal. Reis e presidentes entraram em negócios desse cariz, o mesmo acontecendo a filósofos e cientistas de nomeada. Mas o caso é que uma pessoa sempre alimenta a ilusão de que algures haja alguém que...

—        Paul, você está a comportar-se como uma criança intransigente em face de um pai que pecou. Essa inflexibilidade imatura não lhe fica bem. Somos pessoas adultas. Tentei salvar muitos anos de trabalho do passado, salvar o nosso presente, o nosso futuro, tudo, entrando numa combinação que não acarretaria o sacrifício de ninguém. Pela ajuda de Ackerman, concordei em ter comigo o seu sobrinho por um ano ou dois. Afinal o moço é um sociólogo graduado.

—        Sabe muito bem que não passa de um estúpido voyeur. Aliás, foi o senhor mesmo quem o designou assim. Chegou a dizer que antes terminaria com toda a sua obra do que empregaria nas sondagens um tarado sexual daqueles.

—        As coisas mudam. Você conhece-me muito bem. Nunca lhe entregarei um papel de relevo na organização.

—        O Diabo é que o senhor não lhe entregará! Se não o alimentar de mulheres, o menino irá queixar-se ao tiozinho.

—        Nunca. Confie em mim ao menos nisso, Paul. Nunca praticarei tal vilania — fez uma ligeira pausa. — O que aconteceu já não tem remédio. E depois de um período de reflexão, estou certo de que verá o caso por outro prisma. Penso que se deixou dominar pelas suas emoções. Amanhã, com certeza você... nós... encararemos o caso a uma luz diferente. Falámos demasiado, deixámos que um pequeno desacordo tomasse proporções de calamidade. Sugiro que vá ao motel fazer as malas e estou certo de que após um dia de comboio...

—        Não haverá para mim qualquer comboio.

—        Não posso acreditar que seja tão pouco razoável.

—        Não é um caso de ser ou não razoável. E um caso de perda de fé. Tinha uma fé cega no senhor e perdi-a. E não só a fé que depositava em si, mas também a fé nos seus processos. Entre nós existem agora muitas sombras: Sam Goldsmith, Victor Jonas, Sidney Ackerman. Mas essas sombras não chegariam para obscurecer toda a minha fé. O que acontece deve ser apenas um ínfimo pormenor, o grãozinho de areia que faz parar a engrenagem, isto é, penso que o abismo entre nós é motivado pela diferença de conceito de uma palavra que define a nossa, outrora, fé comum: o amor. O senhor fala do amor em termos de números, tal percentagem disto, tal percentagem daquilo... e a suspeita foi-me corroendo, crescendo cada vez mais forte no meu espírito — esses meros números não conseguem penetrar o biombo levantado entre nós e as nossas entrevistadas, fixam-se no cérebro mas não aquecem o coração. Comecei finalmente a compreender que os seres humanos não são batalhões de números, isso seria a falência de toda a humanidade. De modo nenhum as estatísticas mais acuradas podem fornecer às pessoas a devoção, a ternura, a confiança, a piedade, o sacrifício, a intimidade. Julgo que o amor necessita de ser explicado noutra linguagem. Que linguagem será essa, confesso que ainda não sei, mas estou pronto a procurá-la infatigavelmente.

—        Estou a olhar para si, Paul, mas a voz que estou a ouvir é a do Dr. Jonas.

—        Sim e não. Julgo que encontrei o caminho por mim mesmo. O Dr. Jonas deu uma ajuda, mas eu continuo a ser integralmente o mesmo homem. Veja bem que nem sei por que é que o Dr. Jonas combate. Sei aquilo a que ele é adverso, mas desconheço a verdade do que advoga. Mas tenho a certeza daquilo que advogo e daquilo em que acredito. Acredito que a dissecção de qualidade no amor me levará mais perto da verdade do que qualquer estudo sobre a quantidade no amor. Eis a essência do sentimento. Por causa disso, creio que cada romântico da história, ainda que desajeitado, ainda que louco, estará mais perto da verdade do que o senhor. Creio que cada trovador errante medieval, cada Abelardo fremente de paixão, cada infeliz Keats, cada Shakespeare com a sua Julieta e cada Tolstoi com a sua Ana Karenina, estão muito mais perto da verdadeira causa do amor, do seu verdadeiro significado do que o senhor com os seus diagramas sobre o orgasmo e a masturbação.

O Dr. Chapman abanou a cabeça.

—        Não. Absolutamente não. Se acredita nessa idiotia está a acumular ignorância sobre ignorância. Tenho tanta consciência como você da história. Na verdade, ela oferece-nos mais do que aquilo que sugeriu. Aprende-se muito mais pelo facto do comportamento sexual, ou do amor, se prefere a palavra, dos actos secundários de

Shakespeare; pelo facto de Byron se ter atirado a uma criada de quarto em Calais, sem mesmo ter tempo para arrumar a bagagem; pelo facto de as cartas de amor de Abelardo terem sido escritas depois de ele haver sido castrado; pelo facto de Madame Pompadour odiar o acto sexual e fazer dieta de trufas e aipo para lhe darem mais ardor; pelo facto de Boswell ter tido relações sexuais treze vezes entre Paris e Dover com a amante de Rousseau, Thérésa Le Vasseur. Há mais a aprender disto do que de todos os seus inexactos poemas e romances sem sentido, bem como das chamadas cartas amorosas.

—        Não vale a pena discutir consigo — replicou Paul.

—        A quantidade é sempre mais sensacional do que a qualidade. O senhor terá o seu público, mas não com a minha ajuda.

—        Vá-se então embora. Renuncie. Corra para Jonas e conte--Lhe todos os nossos segredos. Mas se o fizer, ouça bem, Paul, se o fizer, prometo-lhe que será tratado como um verdadeiro traidor e um veneno maligno. Nunca mais voltará a trabalhar em círculos académicos. Prometo que lhe arruinarei a carreira.

—        Sim, penso que o poderia fazer, que o faria — disse Paul, num gesto afirmativo com a cabeça. — Mas creio que primeiro assistirei eu à sua ruína. Não sei porquê, mas tenho a certeza de que lhe sobreviverei. Penso que o Dr. Jonas também lhe sobreviverá. E o nosso conceito de amor, como algo mais do que um insensível acto de animalismo, também sobreviverá a todo o seu trabalho estatístico.

Paul levantou-se.

—        Adeus, doutor.

O Dr. Chapman permaneceu sentado.

—        Paul, pense cuidadosamente, reconsidere... porque se abandonar isto assim, sem apresentar desculpas, sem motivos racionais, se sair por aquela porta sem mudar de decisão, garanto-lhe que nunca mais voltará a participar nos meus trabalhos.

—        Adeus, doutor.

Paul tinha atingido a porta. A parte mecânica da decisão era, afinal, a parte mais fácil. Abriu o batente e saiu. Apressou-se pelo corredor, desceu as escadas e encontrou-se na rua.

Ficou por momentos no passeio, observando o estabelecimento de novidades situado do outro lado da rua, ao lado da estação dos Correios. Na vitrina havia um letreiro, em que antes não tinha reparado, onde se lia: «Antes de agir, pense!»

Lembrou-se de algo semelhante que lera há muito tempo e não ficou surpreendido. Sigmund Freud tinha escrito, ou dito, que, no dia em que um filho perde seu pai, se torna na realidade um homem; precisamente nesse dia e nunca antes. Pena era — reflectiu Paul

—        que o grande achado só se pudesse realizar à custa de uma grande perda. Pois bem, nesse dia ele, Paul, tinha visto um pai morrer.

 

               Requíescat in pace.

               Ámen.

 

Quantos quilómetros teria caminhado, por quantas horas deambulara ao acaso, nunca o conseguiria saber. Parecera-lhe ver sempre o mesmo infindável panorama de palmeiras anãs, de frondosos eucaliptos e olmos chineses... e begónias... e rosas... e aves-do-paraíso. Parecera-lhe ver sempre os mesmos jardins bem tratados povoados por homens altos em calções de banho, mulheres de longas pernas em shorts e crianças nos trajes mais sumários.

Jamais, no seu perambular sem objectivo, voltara a dedicar o mais leve pensamento ao Dr. Chapman. Tudo o que havia de vital para ser dito, dissera-o, e agora os pequenos diabinhos tinham sido exorcismados, e o seu caminho já não era percorrido sob o peso de um fardo tão esmagador. Não procurara desvendar o futuro —   para quê? Fora o passado, o passado já distante que evocara constantemente. Mas em grande parte do tempo, o seu pensamento fora tão errabundo como as suas pernas, saltitando em memórias de acontecimentos felizes, infelizes, mas sem qualquer significado prático ou conclusivo.

Agora, pela primeira vez num largo período de tempo, um espaço de tempo que lhe parecia infinito, tomava consciência dos farrapos de algodão das nuvens que vogavam no azul cristalino do céu, sentia-se consciente dos raios dourados e quentes do astro--rei que se filtravam pelos ramos dos jacarandás.

Quando estava a chegar à rua em que morava Kathleen Ballard, as suas percepções sensoriais tornaram-se mais agudas. Sentiu debaixo dos pés o terreno sólido da grande artéria asfaltada que percorria. Atentou melhor nos verdes que o rodeavam e nas casas que havia em volta.

Pensou em The Briars como um local desconhecido até então, um local onde a sua vida fora abalada por acontecimentos tão dramáticos. Pensou nas vidas de Horace e Cass, sobretudo nos momentos de tragédia. Pensou nas mulheres de The Briars, perturbadas também por algo de novo que viera agitar os seus seres.

Pachorrentamente, tentou medir o significado daquela espécie de comunidade suburbana da América, do mundo, um subúrbio que era um pedaço da grande urbe, mas contudo distinto e diferente, tentou divisar o que poderia haver ali de representativo dos costumes sexuais da época. Evidentemente que para o futuro não poderia haver uma cápsula contendo a resposta, a não ser a resposta que fosse fornecida pelo Dr. Chapman. Afinal, voltava a pensar em The Briars como entidade comunitária e no Dr. Chapman como um poderoso feiticeiro capaz de modificar destinos humanos com a sua varinha mágica — mas para mal ou para bem?

O eventual relatório do Dr. Chapman sobre os costumes sexuais da comunidade, ou de um dos aspectos desses costumes, representaria apenas um segmento no tempo e no espaço. Muito embora a sua publicação pudesse ter largo âmbito, como se previa, só traçaria um quadro da área localizado no seu próprio tempo. Era possível que o relatório, no estudo comparativo da evolução da raça humana, fosse passado de geração em geração durante uma centena de anos ou mais, mas os seus efeitos de vivência diminuiriam de grau na constante revolução da humanidade. Sim, gradualmente, o relatório sobre a mulher americana em geral e sobre a mulher de The Briars em particular iria perdendo força atractiva; cada vez seria menos aplicável aos novos tempos, novas condições de vida e novos conceitos morais. Através das sucessivas décadas diminuiria o número de leitores da obra estatística até se tornar algo de indiscernível, até se tornar apenas um ponto de referência e estudo comparativo só acessível aos eruditos. Seria através desses homens, desses ratos de biblioteca, sempre prontos a desenterrar velharias, que permaneceria uma memória muito ténue do Dr. Chapman ou da comunidade chamada The Briars.

Quem, nesse distante futuro, poderia ver aquele subúrbio como ele era agora? Adivinhar sequer a vida que nele pulsava por aquele domingo ensolarado e tranquilo? Subitamente, sentiu o fino agui-Ihão de uma dor intelectual, dor sem remédio, de um sentimento de frustração, e pensou como toda a história e toda a sabedoria eram coisas fortuitas e deformantes, obras do acaso. Se ele, nesse momento, caminhando por uma rua que um dia viria a ser um campo de ruínas sepultado sobre o pó do tempo, não podia traçar um quadro exacto da vida de The Briars, como é que os eruditos do futuro poderiam explicar as coisas e acontecimentos com objectividade?

Tentou projectar no futuro aquela rua que percorria, situá-la cinco mil anos depois. The Briars, toda a zona de Los Angeles, sem qualquer sombra de dúvida, ficariam sepultadas sobre uma multidão esmagadora de cataclismos, uns naturais, outros provocados pelo próprio homem, como inundações, explosões, incêndios, terramotos, com novas cidades construídas sobre as cidades antigas, camadas sobre camadas, desintegrando-se continuamente até que aquele montículo de terra não fosse mais do que uma zona subvertida pela água ou uma área onde a erva crescesse livremente. E esse pensamento advinha-lhe das coisas do passado, de outras cidades, no seu tempo cheias de vidas e sol, que agora eram desconhecidas do homem.

Talvez que um dia, cinco mil anos depois, um arqueólogo — possivelmente um não conformista, criticado por colegas seus devido ao absurdo das suas conjecturas ao afirmar que houvera uma cidade naquele sítio, uma cidade do século XX —, filiado em fragmentos de antigas obras, com a sua crença no mito e na lenda, iniciasse escavações. Passar-se-iam meses, possivelmente anos, mas por fim, em camadas profundas, descobriria os remanescentes de uma antiga raça.

Que coisas conseguiriam sobreviver ao pó dos tempos? Que fragmentos fósseis sobreviriam ao Dr. Chapman, contando aos vindouros a história daquela rua de The Briars? Uma placa amolgada de esmalte coberta do lodo dos séculos? Poderia o arqueólogo do futuro saber que aquilo pertencera à porta de um frigorífico? Um fragmento de uma substância dura? Deduziria o arqueólogo que aquilo havia pertencido a um animal extinto ou, de qualquer forma, definiria o objecto como uma chapa daquilo que outrora fora um veículo de quatro rodas chamado Cadillac? O fundo de uma garrafa encrostado na terra, ainda com uma porção do rótulo legível? Poderiam os técnicos decifradores da época saber o significado da palavra bourbon? Um pequeno ídolo de ouro sem rosto? Diriam os eruditos de então que era um deus de uma das antigas religiões, há muito extintas, aparecidas entre o judaísmo e o mormonismo, ou relacionariam aquilo com os espectáculos dos antigos tempos, quando os homens recompensavam com ídolos, em número prolífico, os mímicos que permitiam que as suas imagens fossem projectadas numa tela de pano? O esqueleto de uma pessoa jovem, provavelmente uma mulher, na casa dos oitenta anos, enterrada numa época em que a vida era uma coisa tão breve? Saberiam os pesquisadores de então que aquela mulher fora outrora uma beleza, possuidora de uma alma sombria e enigmática, e que contara a sua história sexual a um investigador associado ao Dr. Chapman (referido nos Documentos do Lago Michigão), e que a sua história sexual fora um perfeito dolo?

Seria assim The Briars dentro de cinco mil anos? Uma chapa de frigorífico, a peça de um automóvel, um fundo de garrafa, uma estatueta, um esqueleto? Sim, Paul pensava que nessa distante era nada mais haveria de The Briars além de semelhantes fragmentos. As descobertas dos arqueólogos seriam amplamente difundidas, e a remota civilização e sítios descritos em inumeráveis jornais e livros como um lugar e um povo de mulheres frágeis, ídolos pagãos, línguas mortas e veículos monstruosos.

Paul perscrutou a rua num esforço para rejeitar o seu pensamento fantasista. Aquilo não poderia acontecer ali, naquele local tão cheio de vida. Aceitar uma extinção total tornava a vida árida e impossível. Contudo o seu informado espírito dizia-lhe que tal coisa já sucedera a outros locais e voltaria a acontecer de novo. Logo, o inexorável dos anos fazia com que toda a história parecesse uma mentira. Como acreditar que o Egipto, a Grécia, Tróia, Pompeios e outras cidades da Antiguidade, tinham sido o que os historiadores conjecturavam passados vinte séculos?

Mas afinal que significava tudo aquilo? Significava, determinantemente, que a realidade de The Briars só contava para aquele momento. The Briars só existia nesse dia específico, naquele local, naquele tempo em que eram vistos pelos seus olhos ávidos de luz e cor. A comunidade de The Briars que o Dr. Chapman registara, ou a The Briars que Paul observava (porque o Dr. Chapman e ele haviam deixado de ser uma só entidade de pesquisa), era toda a realidade que permanecia ou que interessava. Era essa a dádiva a aceitar e a apreciar, partículas vivas de tempo naquele lugar em que a vida proliferava, sítio para onde fora conduzido por qualquer fado, comunidade para ser gozada antes do inevitável esquecimento, antes da erosão das manhãs sempre em movimento, antes da formação de fósseis, antes da vinda de escavadores arqueológicos e do começo da cadeia de mentiras ou suposições.

Lá atrás, sepultara o passado. À frente, não podia prever o futuro. Momentaneamente, estava perdido, sem emprego, sem segurança. E, sem um porto de abrigo à sua espera, a jornada seria insuportável.

Resolutamente, Paul Radford entrou no caminho particular que conduzia a casa de Kathleen.

Kathleen, até esse momento, estava quase convencida de que Paul a pusera de parte, porque a tarde já estava no fim, o comboio devia partir às sete horas e Paul não lhe telefonara nem a procurara.

Enquanto Kathleen dava de comer a Deirdre na cozinha, ele reiatou-lhe os graves acontecimentos do dia. Sentindo a importância do caso e a segurança transmitida pela presença de Paul, Deirdre comia silenciosamente, escutando com atenção, conquanto não compreendesse a profundidade das palavras nem o seu real valor. Kathleen movimentava-se na cozinha, com uma tensão que ele ainda não lhe tinha visto, escutando o caso da carta escrita por Cass Miller, a decepção das notícias dos jornais, o programa de televisão; ouvindo falar do Dr. Victor Jonas, de Emil e Sidney Ackerman e do Dr. Chapman. Paul relatava as suas acções mas não as suas emoções. A essência do dia, por agora, já era suficiente. Ambos compreenderam o facto. Se pudessem ter outros dias, haveria então tempo para pormenores.

A certa altura, Kathleen perguntou:

—        O que é que vai fazer agora?

—        Não sei. Fala no meu trabalho, não é verdade?

—        Sim.

—        Ainda não tenho qualquer ideia.

—        Pode voltar aos seus livros.

—        Não quero continuar a correr.

—        Porque não procura o Dr. Jonas?

—        Talvez o faça. A minha resolução está, porém, dependente de...

—        De mim?

—        De si.

Kathleen, uma vez que não lhes apetecia comer, tinha-se apressado a lavar a pouca loiça suja. Ambos sentiam haver ainda muito por dizer e, enquanto ela transportava Deirdre para a cama, Paul dirigiu-se ao bar e preparou duas bebidas.

Agora ali estavam os dois, já noite fechada, Kathleen com o copo numa das mãos e um cigarro na outra, diante da rasgada janela que deitava para o pátio e para o jardim, sem dizer uma palavra. Paul permanecia sentado no sofá, paciente, respeitando o silêncio e isolamento dela, a observá-la ao mesmo tempo que ia bebendo o seu uísque em pequenos goles.

Lembrando-se da primeira vez em que vira aquele formoso rosto de criança, aquele brilhante cabelo negro e curto, aqueles olhos orientais, aquele narizinho petulante, aqueles lábios amorosos e cheios de seiva—fora na noite em que devolvera a carteira —, Paul sentiu a mesma onda de amor e desejo que então, no limiar da porta, o consumira. O vestido de seda que ela envergava fazia salientar a perfeição do seu corpo, modelava-lhe os seios pontiagudos e empinados, as deliciosas curvas das ancas e das coxas.

Paul levantou-se, caminhou ao encontro dela e, por trás, enla-; çou-a tomando-lhe os seios na concavidade das mãos como se os quisesse modelar. Beijou-lhe a nuca, os lóbulos das orelhas, as faces, murmurando:

—        Kathleen, casa-te comigo.

Ela voltou-se, girou nos seus braços, ficando frente a frente com Paul. Não havia sombra de sorriso nos seus lábios.

—        Paul, amo-te.

—        Então...

—        Mas não posso casar-me contigo porque tenho medo.

—        Mas tu amas-me...

—        É aí que reside o problema, querido. Sempre pensei em voltar a casar-me, principalmente por causa de Deirdre, mas também devido à solidão e às convenções sociais. O facto é que nunca encarei o caso de me apaixonar. Casar-me com um homem qualquer, com um amigo, era a única coisa que estava dentro dos meus projectos; seria apenas um negócio mútuo estabelecido de antemão. Comportar-me-ia como uma esposa, como uma dona de casa, até mesmo como uma companheira de cama, mas nada mais. Pedir--me amor era impossível, sabia bem que não poderia consorciar-me por amor, porque uma reciprocidade de sentimentos exigir-me-ia mais daquilo que posso oferecer. Paul, tenta compreender... Sou uma mulher inadequada, uma incapaz... Não posso oferecer amor verdadeiro em toda a sua magnífica expressão.

—        Como é que sabes isso?

—        Sei... porque sei — Kathleen fechou os olhos, comprimiu os lábios e abanou a cabeça. — E daí, talvez não saiba. Mas não posso correr o risco. Se voltasse a falhar, a minha vida seria um perfeito inferno. Não tenho a força necessária para poder enfrentar um malogro... Compreendes agora que é porque te amo tanto que...

—        Kathleen, o que é que estás a tentar explicar-me?

—        Precisamente aquilo que te queria dizer ontem de manhã, quando fui procurar-te à Associação.

—        Mas o quê, Kathleen?

—A verdade.

Libertou-se do amplexo de Paul, tomou-lhe a mão com carinho e, sem pronunciar palavra, levou-o para o sofá. Paul sentou-se, e ela instalou-se a seu lado.

—        Paul, lembras-te da entrevista a que me submeti naquela quinta-feiraà tarde?

—        Perfeitamente.

—        Pois bem. Tudo o que então disse foi um acervo de mentiras.

—        Bem sei.

Kathleen olhou-o espantada e incrédula.

—        Sabias que eu tinha mentido?

—        Sim. É uma coisa que faz parte do nosso treino.

—        E apesar disso... apesar disso, apaixonaste-te por mim? Queres ainda casar-te comigo?

—        Evidentemente. Uma coisa nada tem a ver com a outra.

—        Mas claro que tem, Paul... — hesitou. — Só menti quanto ao que se referia ao casamento.

—        Sei isso muito bem.            ,

—        E apesar disso...

—        Amo-te, Kathleen.

—        Mas não deves amar-me, Paul. A gravidade do caso reside nesse ponto. Era o que ontem de manhã pretendia dizer-te. Queria acabar de uma vez por todas com esta situação. Queria contar-te a verdade acerca do meu casamento. Fomos interrompidos. Mas chegou agora a altura de te confessar tudo.

—        Não me interessa saber essas coisas, Kathleen.

—        Tens que saber, Paul! Ontem fui ao teu encontro para te pedir um favor. É agora a ocasião de voltar a pedir-to. Quero que...

Apreensivamente, Paul aguardou o resto da frase. —... me entrevistes outra vez.

—        Como?

—        Sabes as perguntas a fazer de cor. Volta a fazer-mas. As perguntas a respeito do casamento, das relações sexuais, todas aquelas a que então menti. Deixa que desta vez te diga a verdade nua e crua.

—        Mas... Kathleen, escuta, julgo desnecessária essa prova.

—        Tens que me sujeitar a ela, querido. Nada mais poderemos dizer um ao outro até que me entrevistes.

Kathleen levantou-se e foi-se sentar no extremo oposto do comprido sofá, olhando insistentemente para Paul.

—        Vamos, começa!

—        Não consigo compreender que ilações podem tirar-se de...

—        Verás depois. Começa. Desta vez não há biombo: direi a verdade com os meus olhos postos nos teus, embora me sinta enormemente assustada.

—        Kathleen, não...

—        Por favor, Paul.

Radford tirou o cachimbo e encheu o fornilho de tabaco. Os olhos dela não o largavam. O cachimbo foi aceso, e nem um só instante ela deixou de o fixar cheia de ansiedade, como se se tratasse de um caso de vida ou de morte.

—        Muito bem — começou Paul. — Foste casada por espaço de três anos, não é verdade?

—        Exactamente.

—        Qual era a frequência do coito com o teu... com o teu marido.

—        Nos primeiros seis meses, duas vezes por semana. Depois, passou a ser uma vez por semana e, nos dois últimos anos da nossa união, só uma vez por mês.

—        Uma vez por mês?

—        Sim, Paul.

—        Carícias sexuais antes da cópula?

—        Quase nenhumas. Por vezes um simples minuto dedicado aos preparativos... mas muito raramente.

Era curioso, pensou Paul, como tão depressa se demonstrava a insuficiência do método Chapman. Eis ali uma estatística, um número. Ela havia dito um minuto, mas muito raramente. O facto, porém, carecia de vida e, por conseguinte, falhava-lhe a verdade essencial.

Diabos me levem, pensou afinal de contas, felizmente já não estou ligado ao Dr. Chapman. Agora não se trata daquilo que ele deve saber, mas sim daquilo que eu devo saber para a poder ajudar.

Reatou a entrevista, abandonando a fórmula de questionário preconcebido de forma a não obter números mas sim a procurar compreender a essência do problema. Inquiriu sobre as atitudes de Boynton a respeito das carícias antes da cópula, depois quis saber as atitudes dela perante o mesmo problema; e, embora bastante tensa, Kathleen foi respondendo a cada pergunta sem evasões.

—        Eras tu que tomavas a iniciativa?

—        Não.

—        Porquê?

—        Porque... Não sei porquê.

—        Continuemos.

Implacavelmente, mas com crescente aversão, Paul sondou a história relativa à libido da mulher que amava. Ela continuava a responder, com a dor a transparecer em cada palavra. No entanto, quando Paul tentava acabar com a tortura, Kathleen pedia-lhe para continuar.

—        Atingias a satisfação física sempre, quase sempre, às vezes, raramente ou nunca?

—        Nunca.

—        Costumavam praticar o acto sexual vestidos, com roupas sumárias ou nus?

—        Parcialmente vestidos.

—        Porquê?

—        Não gostava que ele me visse nua e também não gostava de vê-lo a ele nu.

—        Foi sempre assim?

—        Não sei. Não me lembro.

—        Em que altura do dia costumavam...

—        Depois da meia-noite, quando ele já estava suficientemente embriagado.

—        O acto era-te sempre doloroso? Isto é, fisicamente.

—        Às vezes. Boynton era por vezes rude.

—        Mas na generalidade não te magoava. Certo?

—        Certo. Geralmente não me magoava.

Paul observou-a atentamente por instantes.

—        Quais são as características sexuais mais repelentes que encontras nos homens?

—        Nos homens ou em Boynton?

—        Nos homens.

—        Queres dizer características físicas?

—        Seja o que for.

—        Não gosto de homens gordos nem de homens do tipo acentuadamente nórdico — franziu a testa como se considerasse maduramente a resposta. — Não, não é isso que está em causa, nem o que na verdade importa. Do que eu não gosto é de brutalidade, vulgaridade.

—        De que é que gostas então, Kathleen? O que é que achas de mais sexualmente atractivo num homem?

—        Inteligência, classe, uma espécie de brandura, gentileza, suavidade.

—        Um homem efeminado?

—        Bom Deus, de maneira nenhuma. Gosto de um homem com uma autoridade amadurecida, um homem de força, sólido, constante, enfim um homem realmente adulto, não um acrobata desmiolado. Desejo como virtudes num homem aquilo que meu marido nunca teve.

—        Ele alguma vez te fez despertar, Kathleen?

—        Que queres dizer com isso?

—        Ora, algumas vez ele... Bem, é melhor voltarmos às perguntas da sondagem Chapman. Nunca tiveste um orgasmo com ele. Mas...—fez uma pausa, como que a procuraras palavras adequadas, continuando depois: — até que ponto gozaste o acto sexual com o teu marido? Muitíssimo, alguma coisa, um bocadinho ou nada?

—        Odiava a prática. Odiava o nosso contacto desde o primeiro ao último momento, embora não demorasse muito.

A mão dela tremia ao esmagar o cigarro no cinzeiro e ao acender, logo a seguir, um outro cigarro.

—        Continua — disse ela, com a agonia na voz. — Vamos, podes continuar.

—        Não, Kathleen. Isto é uma loucura. Tu és a única que deves continuar. Eu não preciso de estatísticas. Conta-me simplesmente o que na verdade aconteceu, a maneira como sentias. Isso é realmente o que conta. A maneira como sentias.

Kathleen baixou os olhos para a mesinha e tirou uma alentada fumaça do cigarro.

—        Quando esse herói regressou da Coreia, o homem mais bonitinho que havia sobre a Terra, todas se atiravam a ele e ele só se importava comigo. Eu era uma rematada imbecil nessa altura — ficou um momento pensativa, para logo a seguir continuar. — O facto é que nos casámos. O nosso casamento foi relatado em todos os jornais. Antes dele nunca tinha estado com outro homem.

Boynton tinha tido uma centena de mulheres, mas estou certa de que nunca se apaixonou. Tinha tido prostitutas, raparigas semimundanas, companheiras de universidade desejosas de contacto sexual e simples raparigas que pretendiam publicidade por andarem com um herói nacional—voltou a parar. — Estou a tentar explicar Boynton, mas na realidade não sei se o consigo, nem tenho a pretensão de o conhecer inteiramente. Desde a primeira noite que ele teve que realizar todo o trabalho sozinho. Eu não sabia o que havia de fazer ou aquilo que ele esperava de mim, e também nunca tive oportunidade para poder reagir. Eu nunca reagia. Afinal, reagir a quê? Não havia amor, apenas relações sexuais. Não era que ele fosse um falhado nesse capítulo. O malogro era meu.

Comecei a odiar todos esses chamados momentos de intimidade e a evitá-los. Boynton chamava-me insossa, frígida — levantou os olhos para Paul. — Sabes francês?

—        Um bocadinho.

—        Boynton tinha um stock de expressões adequadas conseguidas nos prostíbulos. Uma vez chamou-me femme de glace — mulher de gelo — comprimiu os lábios. — A partir daí nunca mais parou de me chamar frígida.

—        Porque é que ele te chamava isso?

—        Porque, na verdade, segundo suponho, era realmente frígida. Sim, penso que era. Como podia eu saber? De princípio pensei que a falha era dele, mas não tinha a certeza. Boynton comportava-se sempre com inteira segurança, de modo que, finalmente, cheguei à conclusão de que o mal estava em mim. Paul, com Boynton e mesmo depois da sua morte, tentei, reduzidamente, provar a mim própria o que havia de errado. Sem dúvida que o mal está em mim. Paul, nunca senti nada, nunca pude oferecer nada. Não estou a falar no orgasmo. Esqueçamos o orgasmo. O que pretendo dizer refere-se a paixão, excitação, ternura, desejo... amor, simples afecto amoroso. Aconteceu que Boynton começou a passar muitas noites fora de casa, não só devido às suas viagens e ocupações como a outros motivos. Quando ele estava em casa eu evitava-o, estava sempre num estado de grande tensão, fingia sempre que me sentia fatigada ou doente. Talvez uma vez por mês ele tinha contacto comigo, ou eu permitia-lhe que o tivesse; mas, mesmo assim, quando ele já estava muito embriagado e eu suficientemente drogada com grandes doses de comprimidos para dormir.

—        Tentaste fazer alguma coisa a respeito disso?

—        Não compreendo.

—        Procuraste ajuda, conselho?

—        Sim. Em determinada ocasião fui a um psicanalista que ouvi outras mulheres nomearem. Fui a uma dúzia de sessões. Era uma conversa pegada. O homem estava constantemente a falar de mulheres formosas que tinham inibições devido ao narcisismo, mulheres que estão tão preocupadas e apaixonadas por si mesmas que não podem ter amor para dar a mais ninguém. Mas o narcisismo não me dizia respeito, na verdade eu nunca me preocupei com a minha formosura, nunca me vi como uma mulher bela, nem mesmo quando era jovem. O psicanalista também me citou Stekel — punição inconsciente a um homem que me teria desapontado... Mas não havia nenhum homem que me tivesse desapontado e, no princípio, tentei conscientemente dar qualquer coisa de mim a Boynton. Depois, o analista pensou que possivelmente o facto se podia reportar aos meus seis anos de idade. Uma menina da vizinhança e eu costumávamos brincar com as nossas bonecas, e certo dia a minha mãe foi-nos encontrar a fazermos carícias uma à outra em certa parte do corpo... Levei uma tareia. Julgo que depois disso manifestei sempre um grande nervosismo no que se refere ao comportamento sexual. Aos doze anos, lembro-me que sentia enorme vergonha de ter uns seios desenvolvidos que despertavam a atenção dos rapazes... Seja como for, o psicanalista não me conseguiu ajudar, era um homem demasiado formalista e sem simpatia ou compaixão, de certa maneira tão arrogante como Boynton, de modo que achei inútil voltarás consultas, limitei-me a ficar encerrada na minha alta torre de gelo.

—        E continuas ainda a pensar que és frígida?

—        Na noite em que te conheci, pouco antes de teres tocado à porta da vivenda para me entregares a carteira, tinha estado com um amigo de Boynton, que me andava a cortejar. Pensava constantemente na entrevista para o Dr. Chapman e nas mentiras que dissera, e tinha um enorme desejo de ser normal. Decidi pois dar a esse homem o que ele queria de mim, esperançada em que o acto fosse diferente. Deixei-o avançar, de certo modo provoquei-o, mas no último minuto arrefeci como um icebergue. Foi uma coisa involuntária. Não pude evitar o meu comportamento. Afastei o homem, e só queria que visses a fúria dele. E contigo... bem, embora de maneira diferente, quando me começas a acariciar, arrefeço. Não me posso controlar. Tenho medo. Continuo a ter um medo pavoroso. Falas-me de casamento e eu pergunto: como queres tu que eu me case nestas condições?

Paul passava a boquilha do cachimbo pelas costas da mão num gesto maquinal.

—        Kathleen, já tinhas tido relações sexuais com outro homem antes de te casares, ou tiveste-as depois de enviuvares?

—        Não. Nunca! — a expressão saiu-lhe com toda a veemência.

—        Como podes então saber qual o teu comportamento e como é que podes ter a certeza de que és aquilo a que tu chamas frígida?

—        Porque tenho receio do acto, não sinto prazer nisso, não me sinto estimulada. As relações sexuais deixam-me fria, indiferente.

—        Já sentiste vontade de dormir comigo? —Já — respondeu ela, imediatamente.

—        É uma emoção calorosa. Nada tem de frialdade.

—Sim, na verdade existe uma emoção quente quando estamos afastados. Mas quando penso no que pode suceder...

—        De modo nenhum podes ter a certeza antecipada daquilo que vais sentir. Actualmente, com excepção dos casos de desarranjo pélvico, não existe nada como a frigidez.

—        Por favor, Paul. Já li todos esses ridículos livros...

—        Seja como for, o que disse é uma verdade. Talvez trinta e cinco a quarenta por cento de todas as mulheres tirem pouco ou nenhum prazer das relações sexuais. Os entendidos chamam-lhe anestesia vaginal e não é uma coisa fora do comum. As razões para tal distúrbio variam desde um sentimento de culpa ao receio da gravidez e a qualquer traumatismo desfocado no tempo. Trauma psíquico, sobretudo. Porém, em cada exemplo, não é de uma frigidez inerente que a mulher sofre, não existe nada que não possa ser dominado. Na verdade, trata-se de uma obstrução emocional que pode desaparecer e acabar por libertar o calor natural que vive contido no interior de cada ser feminino.

—        Pensas na verdade que se trata de uma obstrução emocional?

—        No teu caso? Talvez sim e talvez não. Pode ser coisa que tenha muito menos a ver com as tuas reais emoções do que aquilo que pensas. Pode ser um objecto de transmissão provocado pelo teu marido. Com muita frequência o que torna as mulheres insensíveis é a falta de técnica do homem, o seu reduzido discernimento, as suas neuroses — Paul pousou o cachimbo na mesa e olhou para a expressão ansiosa do rosto dela. — Foste tu própria a dizer-me que desde o início te comportaste com timidez e vergonha. Se o teu marido tivesse compreendido isso, nessa altura ou mais tarde, e mudasse de táctica, poderias, gradualmente, ter começado a responder às solicitações dele. Mas Boynton não te pôde ajudar, porque também era ignorante na matéria. Ele tomava, erradamente, a experiência como sabedoria; mas a experiência, como o senso comum, pode não passar muitas vezes de uma caterva de erros e mal-entendidos. No que se refere propriamente ao comportamento na cama, imediatamente o achaste desagradável. Emocionalmente, fechaste o sacrário à chave e atiraste-a para muito longe, para o fundo de um abismo. Mas, acredita-me, lá porque a paixão e o desejo adormeceram dentro de ti, isso não significa que não existam. Permanecem na mesma lá muito no fundo, adormecidos mas vivos, à espera de serem acordados, de obterem a fulgurância de uma libertação. Mas nenhuma pessoa, por mais carinhosa que seja, pode ajudar-te sem que tu te ajudes. Tais prodígios não existem. A tua colaboração total é a essência da questão. A liberdade está em ti. Julgo que sabes quanto te amo, quanto te desejo e como preciso de ti... e não há nada que me prove que não tenhas capacidade suficiente para responderes plenamente ao meu amor.

—        E se eu não... puder?

—        Tenho a certeza de que podes, Kathleen — sorriu-lhe. — Agora, ponto final na entrevista.

Abriu-lhe os braços.

—        Vem cá.

Ela aninhou-se-lhe confortavelmente contra o peito.

—        Muito bem. Vamos agora começar pelo princípio: queres casar comigo?

Kathleen tinha a cabeça pousada de lado no ombro dele e ergueu-a um pouco para o fixar desassombradamente.

—        É uma pergunta que fica em suspenso até... dormirmos juntos.

—        Pretendes que, primeiramente, faça amor contigo?

—        Quero que façamos amor juntos. — Kathleen, querida, todo o meu ser espera esse feliz momento.

Kathleen fechou os olhos e Paul beijou-a quase com dureza, quase com cólera, mas logo a seguir o coração começou a pulsar--Lhe cheio de ternura e gentileza para a mulher que tinha nos braços. Os seios dela apertaram-se contra o peito dele, o corpo ar-queou-se nos braços que a seguravam e a mão livre dela, suavemente, começou a acariciar-lhe o rosto.

De repente, Paul afastou-a um pouco, olhando-a bem dentro dos olhos. As palavras tomavam-se difíceis. Porém, enquanto fosse senhor de todo o seu domínio consciente queria que ela o compreendesse bem.

—        Kathleen, amo-te mais que a vida. No entanto também há uma coisa que aprendi e que não quero deixar de te dizer... O sexo é somente uma parte do amor.

—        Agora é essa a parte que quero.

—        Porquê?

—        Porque te desejo agora. Quero o teu sexo... e o teu amor... e quero-te a ti todo.

—        Muito bem, amor — disse ele ternamente. — Vais ter-me imediatamente, querida. Agora. Já. Para sempre.

Encontravam-se ambos completamente nus em cima da cama de Kathleen. Ela decidira que aquilo ainda não era amor e que nunca poderia ser. Ainda não havia sentido um único momento de prazer e, por causa disso, sabia que os sentimentos de Paul se modificariam. Por momentos, pensara em fingir, mas aquele instante computava demasiada importância para poder caber nele uma mentira; agora, o seu coração parecia-lhe ainda mais pesado do que o próprio peso dele por cima do seu corpo.'

Kathleen advertira-o de que era uma femme de glace. Paul iria agora comprovar a verdade do facto à custa da dura experiência pessoal.

Alguns minutos antes — quantos? cinco? dez? — Paul coroara os inumeráveis beijos e carícias com a penetração. Kathleen acolhera-o com o seu espírito, mas as suas pernas abertas haviam ficado rígidas e sem vida, como dois troncos secos. Fosse como fosse, a desejada e receada penetração tinha-se efectuado, mecanicamente e sem dor, e, desde esse momento fulcro, ela tinha ficado tensa pelo medo, sabendo que cada movimento os iria gradualmente afastando um do outro.

A circunspecta consciência que mantinha dos acontecimentos, a inflexível insipidez do pensamento de que a sua nudez constituía uma vergonha tolhiam-lhe toda a reacção de resposta e repeliam nela toda a excitação do acto.

«Eu disse-te, eu disse-te», tinha o desejo de gritar a plenos pulmões na sua mortificação. «Para baixo do pescoço sou uma enferma, não presto, sou uma doente, um corpo petrificado. Porque é que não me acreditaste? Por que é que o nosso amor há-de terminar desta forma?»

Kathleen tinha os olhos fechados, para evitar todo o embaraço, mas, por detrás das pálpebras fechadas, imaginava o estranho que amava e que, todavia, não podia amar inteiramente por ele ser um homem. Estava consciente de cada movimento do bem musculado e desenvolvido corpo de Paul, dos seus ardentes lábios e da carne que vibrava dentro dela. Porquê? Sim, porque é que ela pertencia àquela espécie de coisas vivas que se acasalavam de tal forma? Como era a procriação na flora? Como se reproduziam os peixes e as aves? Não havia seres vivos que eram fertilizados por meio do pólen e outros que se reproduziam por meio de infinita divisão celular? Lera, ou ouvira contar, algures, haver meios mais sensíveis de copulação — certa espécie de vermes que possuíam órgãos masculinos e femininos e cuja cópula era uma coisa inteiramente privativa; e a ostra, sim, a absurda ostra, que permutava os sexos, de fêmea a macho e vice-versa. Porquê aquele condicionalismo humano, aquela complexidade de processos que forçavam o mais digno e evoluído dos seres, a fêmea do homem, a aceitar um corpo estranho dentro das suas entranhas? Que coisa tão imbecil!

Kathleen abriu os olhos e fixou aquele rosto amado. Viu o infinito amor que ele lhe devotava e sentiu a dor de ser quem era e a saudade daquilo que não podia ser.

— Perdoa-me, Paul — murmurou.

Quis dizer mais qualquer coisa, mas os lábios dele impediram--Lhe as palavras. Aquele beijo e o toque dos seus dedos mágicos na ponta dos mamilos fizeram com que uma onda de calor se lhe fosse espalhando lentamente pelo corpo. Numa transmutação de ínfimos segundos, Kathleen sentiu a carne vibrar, experimentou uma maleabilidade muscular e, quase sem dar por isso, considerou que aquela parte do corpo dele que lhe penetrava o baixo-ventre deixara de ser um apêndice intruso e detestável para passar a ser uma coisa extremamente agradável.

Unindo-se estreitamente a Paul, Kathleen voltou a fechar os olhos. Cessou a deliberação consciente e provocada de evitar que a sua carne participasse naquele contentamento que era inteiramente novo. Quase sem dar por isso, como um acto independente de toda a sua vontade, a tensão e rigidez das pernas desapareceu, todo o seu corpo se descontraiu como reacção a uma droga narcotizante de superior efeito. Possuiu-a uma transfiguração física, quase incontrolável — os seus mamilos agudizaram-se numa sensação desconhecida e os órgãos genitais principiaram a pulsar num desejo incontido. Havia dentro dela uma força desconhecida, uma força insuspeitada, um prazer sensual extraordinário. A falta de hábito, o desconhecimento de semelhantes reacções forçaram--na a uma rebeldia, quis considerar que tudo aquilo não passava de uma indecência, uma fraqueza indigna de si. Tentou figurar-se naquele insólito acto de copular. Antes daquele momento, sempre pensara que a entrega de Constance Chaterley ao ardor do bigodudo guarda de caça campestre era um absurdo criado pela imaginação impudicamente delirante de D. H. Lawrence. Como é que qualquer homem podia libertar uma mulher da escravidão de um passado de inibições? E então por um meio grosseiro como o da cópula...

Contudo, naquele momento, colada ao seu amante, parecia--Lhe menos segura a velha dúvida. A objectividade ia-se fundindo num mar de sensações novas. Tudo porque o seu amor a tinha penetrado tão fundo, fazendo-lhe acordar o corpo, afastando-lhe a carne da velha inércia, dando calor a uma pele até aí tão fria, trans-formando-lhe a passividade num turbilhão onde se misturavam a raiva, a libertação, o toque imperecível do sensualismo completamente despertado. A bela adormecida, fria como o gelo, fora finalmente acordada para a vida do amor glorioso pelo beijo de fogo do seu príncipe encantado.

Por instantes, tentou freneticamente, à sua velha maneira, manter uma personalidade própria e indivisível. Tentou impedir fun-dir-se noutra individualidade, impedir a sua absorção por outra carne. Tentou desesperadamente bloquear a crescente excitação que se apoderava dela, como se a participação naquele acto fosse uma vergonha que estivesse a fazer perigar uma pretensa auto-estima. Repetiu a si própria que aquilo era ridículo, ridícula a posição, ridículos os movimentos, inestética aquela luta muscular, aquele baloiço constante. Tentou pensar que o todo do seu bem-amado, naquele persistente esforço, perdia toda a nobreza e dignidade; que nunca poderia haver verdadeira amizade e compreensão entre dois seres que utilizavam aquela ginástica como veículo de união. Lutar, lutar contra tudo aquilo era a palavra de ordem ditada pela velha reminiscência da torre de marfim em que estivera confinada durante tantos anos... desde sempre...

Mas para aquela luta não havia armas possíveis. Estava abandonada e só e sentia-se fraca, muito fraca. Fraca de uma fraqueza que era afinal uma força nova e cheia de seiva, a força que fazia girar o mundo. Fora com as velhas concepções! Que importava agora todo o passado? E sentia-se quase feliz, feliz de ter sido vencida. Vencida? Mas afinal aquilo era a mais bela vitória da sua vida. O corpo que estava por cima dela não era o de um inimigo, era de um homem que a amava, de um aliado que a conduzia à vitória.

Finalmente, tornava-se mais fácil não pensar do que pensar. Era mais fácil sentir, sentir apenas, permitindo que o seu errante pensamento fosse subvertido e se unisse ao quente chamamento do seu corpo rendido àquele corpo que por completo a dominava. Ainda que fosse uma derrota — que não o era —, o conquistador, magnificentemente, oferecia-lhe muito mais do que ela imaginara alguma vez possuir. Não lhe oferecia somente uma ternura tímida, um mero sentimento de segurança, mas sim uma sensualidade plena de alegria e cheia de combatividade.

Então, então nesse preciso segundo que separava a morte da vida, a sua identidade fundiu-se completamente na identidade daquele homem. Seguia o caminho inverso da divisão celular — dois corpos tinham passado a ser um só corpo. Uniu-se a Paul sem reservas. Em gritos de alma, deu-se totalmente, ouviu-se a pronunciar palavras que nunca imaginara dizer, pedindo-lhe insistentemente para que ele a tomasse, para que lhe proporcionasse todo o prazer.

Saindo momentaneamente da agonia animal daquele esquecimento, um pensamento lhe atravessou o cérebro como uma estrela candente que brilha num momento para logo se perder e apagar nos confins do espaço. Que aconteceria se não voltasse a haver outro momento como aquele? Como poderia ela viver mais um dia da sua vida sem aquela sensação, sem o seu bem-amado dentro de si? E se ele a tivesse despertado só naquela noite para depois a deixar como um corpo abandonado por toda uma eternidade de tormento? Seria que ele não estava a ver? Ela voltara à vida. Tinha atravessado a barreira. Ela pertencia-lhe. Era completamente dele. Amara-o antes daquela noite, mas era um amor sem entrega incondicional. Agora sabia que nunca mais poderia viver sem ele.

Kathleen abriu os olhos e quis perguntar a Paul o que é que ele pensava, quis saber a resposta às suas ténues dúvidas, mas viu que não tinha voz, que não podia emitir uma só palavra—a voz que tinha era o pulsar das suas entranhas, o desejo incontido dos seus órgãos genitais, e foi com essa voz que lhe disse, despida de toda a falsa vergonha, cheia de orgulho, toda a necessidade que sentia dele. E Paul, como que compreendendo, respondeu dentro das suas entranhas, ao mesmo tempo que os seus lábios lhe diziam maravilhas nos beijos frementes e na língua ardente que tocava a sua língua.

O passado tinha-se dissolvido, havia apenas o presente em que podia confiar. Abandonou-se totalmente àquele amor carnal, que era ao mesmo tempo uma libertação espiritual.

Kathleen colou ainda mais o seu corpo ao corpo daquele amante magnífico, exigente, instigadora, absorvente, sem descanso, não se importando com mais nada a não ser atingir o cume daquele Evereste ao qual ia trepando cada vez mais depressa.

—        Não pares, não pares... não... não... não...

Aquela era a sua voz, a sua voz que implorava, que mandava. Ao longe, muito ao longe, ouviu-o murmurar:

—        Kathleen...

E de novo a voz dela:

—        Sim... oh, sim!

Um grito a cortar a noite. E depois:

—        Paul Paul! Paul

E ainda:

—        Oh, Paul!... Obrigada, meu Deus... Paul, para sempre, para sempre...

Quando Kathleen acordou a meio da noite, sentindo-se como um vaso prodigiosamente escoado, em paz consigo mesma e com o mundo, não ficou surpreendida de ver o seu companheiro a dormir ao lado dela. Acariciou-lhe com os olhos a nudez do corpo e abençoou a virilidade que lhe ofertara a prenda magnífica de uma imortalidade que a propagava no futuro.

O luar tinha invadido o quarto, e naquela luz difusa e misteriosa parecia flutuar o perfeito sentido de eternidade. Sem fazer barulho, Kathleen saiu do leito e, nua, atravessou a láctea réstia como uma deusa luxuriante.

Junto da janela, afastou um pouco as cortinas e deixou a vista errar pelo veludoso escrínio da noite. Por toda a parte havia serenidade e paz. Observou as miríades de estrelas a lucilarem, como se fossem outros olhos a piscarem a sua maliciosa aprovação daquela festa de amor. Silenciosamente, Kathleen, tal como costumava fazer em criança nas vésperas de Natal, agradeceu ao Céu a miraculosa oportunidade de uma nova vida. Dentro dela não havia mais do que amor, um amor que se tornara extensivo a todas as coisas e a todos os seres.

Quando regressou à cama, Paul tinha despertado e esperava--a com os braços abertos. Kathleen uniu-se bem a ele e, com a boca junto do seu peito, contou-lhe todas as suas sensações.

Paul beijou-a ternamente e relatou-lhe também tudo o que sentira, o que pensava... falaram durante algum tempo dos seus planos para o futuro, os mil e um pormenores de um amor cuja vivência era uma maravilha a saltar nas palavras que trocavam, como as bolhas gasosas do champanhe saltam alegremente numa taça... Depois, fatigados, adormeceram de novo nos braços um do outro...

Julho sucedeu a Junho, as folhas do calendário foram caindo, tal como as folhas das árvores, e ao Estio sucedeu-se o Outono. Com a aproximação do Natal, os dias em The Briars tomaram-se mais curtos e as noites longas e festivas. O Inverno veio com as suas chuvas e ventos e passou, para de novo dar lugar à Primavera. Com a chegada das primeiras andorinhas, com os magníficos pinheiros de novo reverdecidos e as flores a despontarem em cada jardim, começaram também a aparecer de novo os primeiros autocarros de turistas.

Teresa Harnish ia realizar uma viagem ao estrangeiro, e Kathleen Radford resolveu oferecer-lhe um almoço de despedida.

Pouco antes de Kathleen ter posto o seu melhor vestido de futura mamã, o Dr. Jonas tinha vindo buscar Paul no seu carro para o conduzir à clínica. Perto do meio-dia, Kathleen já se encontrava no vasto auditório da Associação Feminina para receber as quarenta convidadas.

Na reunião, Grace Waterton mostrou um postal escrito de Michigão por Naomi Van Duesen. Naomi estava prestes a deixar o sanatório de recuperação, indo residir para uma vivenda que Horace comprara em Reardon.

Úrsula Palmer, com excitação, anunciou a inauguração da terceira sucursal da firma do marido, e passou de mão em mão, orgulhosamente, uma brochura que ela própria havia escrito.

Mary McManus, com mais maturidade do que quando vivia em The Briars, compareceu à festa e mostrou a fotografia do filhinho, agradecendo a todas que não a tivessem esquecido uma vez que agora tinha casa no vale.

Bertha Kalish estava mais gorda, e falou dos filhos de Sam Goldsmith como se fossem seus filhos, e quando alguém lhe perguntou para quando era o casamento, corou como uma donzela.

Uma vez reunidas, as mulheres começaram a discutir acaloradamente o recém-publicado livro, Uma História Sexual da Mulher Casada Americana.

O relatório do Dr. Chapman, com umas profusas seiscentas páginas, fora posto à venda cinco semanas antes, e, no espaço de duas semanas, desbancara o livro de James Scoville, Um Homem Chamado Boy, do topo da lista das melhores obras de não ficção. De costa a costa dos Estados Unidos, nesse dia de Primavera, o volume elaborado pelo Dr. Chapman estava à frente na lista do New York Times, do Herald Tribune, da revista Time, da Publishers Weekly e do Retail Bookseller. Em cinco semanas haviam sido vendidos 170.000 exemplares, e a livraria de Village Green acabara de fazer a sua terceira encomenda aos editores. Via-se a fotografia do Dr. Chapman por toda a parte, e, nessa mesma manhã, um colunista da Broadway havia posto a correr o rumor de que o Dr. George G. Chapman ia renunciar ao cargo na Universidade de Reardon por uma academia sob a sua direcção e chefia a ser financiada pela Fundação Zollman. A junta administrativa da Zollman declinara fazer comentários, mas afirmara que em breve seria feita uma declaração relativa ao Dr. Chapman.

No pequeno grupo mais chegado a Teresa Hannish, todas ouviram com simpatia a queixa apresentada por Úrsula Palmer acerca do Dr. Chapman. Úrsula acabara precisamente de ler o livro do cientista e objectava contra o gráfico que registava especificamente vinte e sete comunidades suburbanas que acolhiam pessoas abastadas. Cada uma das comunidades era nomeada por ordem alfabética e, entre elas, como não podia deixar de ser, estava The Briars. — Encontrarão a menção no apêndice — dizia Úrsula. — O Dr. Chapman constata cruamente que em tais comunidades, evidentemente englobando a nossa, mais de vinte e nove porcento das mulheres casadas acima dos trinta e dois anos têm ou tiveram relações sexuais fora do casamento, e que trinta e oito por cento, ponham isto bem na ideia, foram infiéis a seus maridos por volta dos quarenta e cinco anos. Digam-me lá o que é que pensam disto?

Foi Teresa Harnish quem falou:

— Vou dizer-lhes o que penso. Esse horrível livro devia ser classificado como obra de ficção e não como uma obra científica de não ficção. Aqui está o que penso do caso.

E quase todas no grupo concordaram solenemente.

 

                                                                                Irving Wallace  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

           Voltar à Página do Autor