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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RESGATE NO MAR - p.2 / Diana Gabaldon
O RESGATE NO MAR - p.2 / Diana Gabaldon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

A mulher ao meu lado provavelmente pesava uns cento e trinta quilos. Ela assobiava durante o sono, os pulmões esforçando-se para erguer o fardo de seu peito maciço pela milionésima vez. Seu quadril, coxa e braço rechonchudos pressionavam-se contra mim, desagradavelmente quentes e úmidos.

Não havia escapatória; eu estava encurralada no outro lado pela curva de aço da fuselagem do avião. Liberei um braço e o ergui, para acender a luz acima de minha cabeça e poder ver a hora. Dez e trinta, hora de Londres; pelo menos mais seis horas até o pouso na paisagem prometida de Nova York.

O avião estava repleto dos suspiros e roncos de passageiros cochilando da melhor forma que podiam. Dormir para mim estava fora de questão. Com um suspiro de resignação, enfiei a mão no bolso da poltrona à minha frente e peguei o romance que estava lendo e que guardara ali. O livro era de um dos meus autores favoritos, mas não conseguia concentrar a atenção na leitura — minha mente resvalava de volta a Roger e Brianna, que eu deixara em Edimburgo, para continuarem a busca, ou deslizava para frente, para o que me aguardava em Boston.

 

 

 

 

Eu não estava certa do que realmente me esperava, o que era parte do problema. Fora obrigada a voltar, ainda que temporariamente; já esgotara minhas férias, além de várias prorrogações, há muito tempo. Havia problemas a resolver no hospital, contas a pagar em casa, a manutenção da casa e do jardim - estremeci ao pensar em que altura a grama do jardim deveria ter chegado —, amigos a serem contatados...

Havia um amigo em particular. Joseph Abernathy fora meu melhor amigo, desde a faculdade de medicina. Antes de tomar quaisquer decisões definitivas — e provavelmente irrevogáveis —, queria conversar com ele. Fechei o livro no colo e fiquei traçando os volteios extravagantes do título com um dedo, sorrindo levemente. Entre outras coisas, eu devia a Joe o gosto por romances.

Conhecia Joe desde o começo de minha formação médica. Exatamente como eu, ele se destacava entre os outros internos do hospital de Boston. Eu era a única mulher entre os promissores médicos; Joe era o único’ negro.

Nossa compartilhada singularidade dava a cada um de nós uma consciência especial do outro; nós dois a sentíamos claramente, embora não a mencionássemos. Trabalhávamos muito bem juntos, mas ambos tínhamos o cuidado - por boas razões - de não nos expormos, e o tênue vínculo entre nós, nebuloso demais para ser chamado de amizade, permaneceu ignorado até quase o final de nosso estágio.

Eu havia presidido minha primeira cirurgia naquele dia - uma apendicite sem maiores complicações, em um adolescente de boa saúde. Tudo correra bem e não havia razão para pensar que haveria complicações pósoperatórias. Ainda assim, experimentava um estranho sentimento de posse em relação ao garoto e não quis ir para casa enquanto ele não estivesse acordado e fora da sala de recuperação, apesar de meu turno já ter terminado. Troquei de roupa e fui para a sala dos médicos, no terceiro andar, a fim de esperar.

A sala não estava vazia. Joseph Abernathy estava sentado em um dos esburacados sofás de molas, aparentemente absorto em um exemplar do U.S. News & World Report. Ergueu os olhos quando entrei e cumprimentou-me com um rápido sinal da cabeça antes de retomar sua leitura.

A sala tinha pilhas de revistas — arrebanhadas das salas de espera — e inúmeros livros esfarrapados, abandonados pelos pacientes de partida. Buscando uma distração, descartei um exemplar de seis meses atrás de uma revista de gastroenterologia, um exemplar em frangalhos da revista Time e uma pilha bem arrumada de folhetos das testemunhas-de-jeová. Por fim escolhi um dos livros e sentei-me com ele.

Não tinha capa, mas na folha de rosto lia-se O pirata impetuoso. ”Uma história de amor sensual, comovente e sem limites como o Caribe!”, dizia a frase sob o título. Caribe, hein? Se o que eu queria era fugir, não podia encontrar nada melhor, pensei, e abri o livro aleatoriamente na página 42.

Empinando o nariz desdenhosamente, Tessa atirou suas exuberantes tranças loiras para trás, alheia ao fato de que isso fez seus seios voluptuosos se tornarem ainda mais proeminentes no vestido decotado. Os olhos de Valdez arregalaram-se diante da visão, mas ele não externou nenhum sinal do efeito que uma beleza tão libertina teve sobre ele.

— Achei que podíamos nos conhecer melhor, senhoríta — ele sugeriu, numa voz baixa, ardente, que fez pequenos tremores de expectativa subirem e descerem pelas costas de Tessa.

— Não tenho nenhum interesse em conhecer um... um... pirata imundo, desprezível e clandestino! - ela disse.

Os dentes de Valdez reluziram ao sorrir para ela, a mão acariciando o cabo da adaga em seu cinto. Estava impressionado com seu destemer; tão corajosa, tão impetuosa... e tão bela.

Ergui uma das sobrancelhas, mas continuei lendo, fascinada.

Com um imperioso ar de posse, Valdez envolveu Tessa pela cintura.

— Você se esquece, senhorita — murmurou, as palavras excitando o sensível lóbulo de sua orelha —, de que é prisioneira de guerra e o capitão de um navio-pirata tem primazia na escolha do butim!

Tessa debateu-se em seus braços poderosos quando ele a arrastou para a cama e atirou-a sobre a colcha bordada com pedras preciosas. Ela lutava para recuperar o fôlego, observando apavorada enquanto ele se despia, deixando de lado seu casaco de veludo azul-celeste e depois afina camisa branca de linho, enfeitada de babados. Seu torso era magnífico, uma extensão lisa de bronze reluzente. As pontas de seus dedos doíam de desejo de tocá-lo, embora seu coração latejasse de forma ensurdecedora em seus ouvidos quando ele levou as mãos ao cinto de suas calças.

— Mas, não — ele disse, interrompendo-se. — É injusto de minha parte negligenciá-la, senhorita. Permita-me. - Com um sorriso irresistível, inclinou-se e delicadamente envolveu os seios de Tessa nas palmas quentes de suas mãos calejadas, desfrutando seu peso voluptuoso através do fino tecido de seda. Com um pequeno grito, Tessa retraiu-se de seu toque exploratório, pressionando-se contra o travesseiro de penas bordado com rendas.

— Você resiste? Que pena desperdiçar uma roupa tão elegante, senhorita... — Segurou com firmeza seu corpete de seda cor de jade e deu um puxão, fazendo os seios brancos e belos de Tessa saltarem de seu esconderijo como um par de gordas perdizes levantando vôo.

Emiti um som, fazendo o dr. Abernathy lançar-me um olhar penetrante por cima de seu U.S. Neivs & World Report. Apressadamente assumindo uma expressão de digno interesse, virei a página.

Os cachos dos cabelos negros e abundantes de Valdez varreram seu peito enquanto ele fechava os lábios quentes nos mamilos rosados de Tessa, fazendo ondas de desejo percorrerem seu corpo. Debilitada pelas sensações novas e estranhas que o ardor de Valdez despertava nela, não conseguia se mover, enquanto a mão do pirata furtivamente buscava a bainha de sua camisola e seu toque ardente irradiava-se em sua coxa delgada.

- Ah, mi amor - ele gemeu. - Tão encantadora, tão pura. Você me deixa louco de desejo, mi amor. Eu a desejei desde o primeiro instante em que a vi, tão orgulhosa e fria no convés do navio de seu pai. Mas não tão fria agora, hei’n?, minha querida.

De fato, os beijos de Valdez provocavam um turbilhão nos sentimentos de Tessa. Como, como podia sentir o que estava sentindo por este homem, que friamente afundara o navio de seu pai e assassinara uma centena de homens com as próprias mãos? Devia estar se retraindo, horrorizada, mas, ao invés disso, via-se ofegante, abrindo a boca para receber seus beijos ardentes, arqueando o corpo num abandono involuntário sob a pressão exigente de sua masculinidade em expansão.

— Ah, mi amor — ele repetia, ofegante. — Não posso mais esperar. Mas... não quero machucá-la. Delicadamente, mi amor, delicadamente.

Tessa respirava com dificuldade ao sentir a pressão crescente de seu desejo fazendo-se presente entre suas pernas.

- Oh! — exclamou. — Oh, por favor! Não pode! Eu não quero! Boa hora para começar a protestar, eu pensei.

— Não se preocupe, mi amor. Confie em mim.

Gradualmente, pouco a pouco, ela relaxou sob o toque das carícias hipnotizadoras, sentindo o calor em seu ventre crescer e se espalhar. Os lábios de Valdez roçaram seus seios e o hálito quente dele, murmurando palavras de conforto, desfizeram toda a sua resistência. A medida que relaxava, suas coxas se abriram à sua revelia. Movendo-se infinitamente devagar, o membro intumescido rompeu a membrana de sua inocência...

Deixei escapar uma exclamação entusiástica e larguei o livro, que deslizou do meu colo e caiu no chão com um estalo, ao lado dos pés do dr. Abernathy.

- Desculpe-me - murmurei, abaixando-me para pegar o livro, o rosto queimando. Quando me reergui com O pirata impetuoso na mão suada, vi que o dr. Abernathy, longe de preservar sua expressão austera habitual, estava rindo de orelha a orelha.

- Deixe-me adivinhar - ele disse. - Valdez acaba de romper a membrana de sua inocência?

- Sim - respondi, sem conter uma risadinha incontrolável. - Como sabe?

- Bem, você não chegou a ler muito - ele disse, pegando o livro da minha mão. Seus dedos curtos e grossos folhearam o livro com rapidez e habilidade. — Tinha que ser essa passagem ou então aquela da página 73, onde ele banha os montes pequenos e róseos com a língua ávida.

- Ele o quê?

— Veja por si mesma. — Atirou o livro de volta em suas mãos, apontando um trecho quase no meio da página.

De fato, ”... afastando a coberta, abaixou a cabeça de cabelos negros como carvão e banhou os montes pequenos e róseos com a língua ávida. Tessa gemeu e...” Soltei um gritinho agudo, desengonçado.

- Você realmente leu isto? - perguntei, arrancando meus olhos de Tessa e Valdez.

- Ah, sim - ele disse, com o mesmo sorriso largo. Possuía um dente de ouro, bem atrás, do lado direito. - Duas ou três vezes. Não é o melhor, mas não é ruim.

- Melhor? Há outros como este?

- Claro. Vejamos... - Levantou-se e começou a remexer na pilha de livros ensebados. - Tem que procurar os que não têm mais capa - ele explicou. - São os melhores.

— E eu que pensava que você nunca lia nada além de revistas médicas - eu disse.

— O quê, eu passo trinta e seis horas até os cotovelos nas entranhas das pessoas e vou vir pra cá e ler ”Progressos na remoção da vesícula biliar”? Credo, de jeito nenhum. Prefiro velejar pelo Caribe com Valdez. - Examinou-me com certo interesse, o sorriso ainda no rosto. - Também achava que você só lia o New England Journal of Medicine, lady Jane - ele disse.

- As aparências enganam, hein?

- Acho que sim - eu disse secamente. - Por que ”lady Jane”?

— Ah, foi Hoechstein quem começou com isso — ele disse, inclinando-se para trás, com os dedos entrelaçados em volta de um joelho. - É por causa da voz, esse sotaque que parece que você acabou de tomar chá com a rainha. É isso que você tem e que impede que os rapazes sejam piores do que são. Você fala como Winston Churchill... se Winston Churchill fosse uma dama, é claro, e isso os assusta um pouco. Mas você tem mais alguma coisa - observou-me pensativamente, balançando-se para a frente e para trás em sua cadeira. - Você tem um jeito de falar como se esperasse conseguir o que quer e, se não conseguir, saberá exatamente o motivo pelo qual não conseguiu. Onde aprendeu isso?

— Na guerra — eu disse, sorrindo diante de sua descrição. Suas sobrancelhas ergueram-se.

— Coréia?

— Não, fui enfermeira de campanha durante a Segunda Guerra Mundial, na França. Conheci muitas enfermeiras-chefes que podiam transformar internos e serventes em gelatina com um simples olhar. Mais tarde, e tive muita prática, esse ar de autoridade inviolável, ainda que fictícia, me garantiu uma boa posição de defesa contra pessoas com muito mais poder do que as enfermeiras e internos do Boston General Hospital. Ele balançou a cabeça, absorto em minha explicação.

- Sim, faz sentido. Eu mesmo imitava o Walter Cronkite.

— Walter Cronkite? — exclamei, espantada. Ele riu de novo, exibindo seu dente de ouro.

— Pode pensar em alguém melhor? Eu costumava ouvi-lo no rádio ou na TV toda noite e passei a imitá-lo para divertir minha mãe. Ela queria que eu fosse um pregador evangélico. — Sorriu, com certa melancolia. — Se eu falasse como Walter Cronkite onde nós morávamos naquela época, não teria vivido para ir para a faculdade de medicina.

A cada minuto, eu gostava mais de Joe Abernathy.

- Espero que sua mãe não tenha ficado decepcionada por você se tornar um médico e não um pregador.

- Para dizer a verdade, eu não tenho certeza - ele disse, ainda rindo. Quando eu disse a ela, ficou me encarando por um instante, depois deu um profundo suspiro e disse: ”Bem, pelo menos você vai conseguir meu remédio de reumatismo mais barato.”

Ri amargamente.

— Não consegui o mesmo entusiasmo quando disse a meu marido que iria ser médica. Ele ficou me encarando também e finalmente disse que, se eu estava entediada, por que não me oferecia para escrever cartas para os velhos da casa de repouso?

Os olhos de Joe eram de um castanho-claro e dourado, como balas de caramelo. Havia um brilho de humor neles enquanto me fitavam.

- Sim, as pessoas ainda acham certo dizer na sua cara que você não pode fazer o que está fazendo. ”Por que está aqui, madame, e não em casa cuidando do marido e dos filhos?” - ele imitou.

Sorriu melancolicamente e bateu de leve em minha mão.

- Não se preocupe, elas vão desistir mais cedo ou mais tarde. A maioria já não me pergunta mais por que não estou limpando os banheiros, como Deus mandou.

Então a enfermeira veio me informar que meu paciente de apendicite estava acordado e eu saí, mas a amizade iniciada na página 42 floresceu e Joe Abernathy tornou-se um dos meus melhores amigos; provavelmente, a única pessoa próxima a mim que realmente compreendia o que eu fazia, e por quê.

Sorri levemente, sentindo a superfície lisa do alto-relevo na capa. Em seguida, inclinei-me para a frente e coloquei o livro de volta na bolsa da poltrona. Talvez eu não quisesse fugir exatamente agora.

Lá fora, um tapete de nuvens iluminadas pelo luar nos separa da terra embaixo. Aqui em cima, tudo era silêncio, belo e sereno, em contraste marcante com o turbilhão da vida lá embaixo.

Eu tinha a estranha sensação de estar suspensa no ar, imóvel, isolada em solidão, até mesmo a respiração pesada da mulher ao meu lado sendo apenas parte do ruído branco que forma o silêncio, um silêncio que inclui o zumbido morno do ar-condicionado e o arrastar dos sapatos da aeromoça ao longo do carpete. Ao mesmo tempo, eu sabia que estávamos avançando a toda a velocidade pelo ar, impulsionados a centenas de quilômetros por hora para algum destino — quanto a ser um destino seguro, podíamos apenas esperar que fosse.

Fechei os olhos, num estado de vigilância suspensa. De volta à Escócia, Roger e Bri procuravam Jamie. À frente, em Boston, meu emprego - e Joe - me aguardavam. E o próprio Jamie? Tentei afastar o pensamento, determinada a não pensar nele até a decisão estar tomada.

Senti uma brisa leve nos meus cabelos e uma mecha roçou em minha face, leve como o toque de um amante. Certamente, tratava-se apenas da corrente de vento da saída de ar acima da minha cabeça e de minha imaginação que, subjacente aos cheiros viciados de perfume e cigarro, de repente me fazia sentir os aromas de lã e urzes.

 

Finalmente estava em casa, na Furey Street, onde eu vivera com Frank e Brianna por quase vinte anos. As azaléias junto à porta não estavam completamente mortas, mas as folhas pendiam em pencas murchas, sem viço, uma espessa camada de folhas mortas enroscando-se no canteiro ressecado embaixo. Era um verão quente - não havia nenhum outro tipo em Boston -, e as chuvas de agosto não vieram, embora já estivéssemos em meados de setembro.

Deixei minhas malas na porta da frente e fui ligar a mangueira. Ficara largada ao sol; a borracha verde estava quente o suficiente para queimar minha mão e eu fiquei jogando-a entre as mãos até o ronco da água finalmente trazê-la de volta à vida e esfriá-la com uma explosão de borrifos.

Para começar, eu não gostava tanto assim de azaléias. Eu já as teria arrancado há muito tempo, mas relutei em alterar qualquer detalhe da casa após a morte de Frank, por causa de Brianna. Já era um grande choque, pensei, começar a universidade e ter seu pai morto em um único ano; ela não precisava de mais mudanças. Eu ignorei a casa por muito tempo; poderia continuar a agir do mesmo modo.

— Está bem! — disse, irritada, às azaléias, enquanto desligava a mangueira. - Espero que estejam felizes, porque isso é tudo que terão. Eu mesma quero ir tomar uma bebida. E um banho - acrescentei, vendo suas folhas salpicadas de lama.

Sentei-me na beirada da minha enorme banheira, de roupão, observando a água jorrar com força, agitando o banho de espuma em nuvens perfumadas. O vapor elevava-se da superfície espumosa e fumegante; a água devia estar um pouco quente demais.

Fechei a torneira - com um giro preciso e rápido - e fiquei sentada por um instante, a casa ao meu redor em silêncio, salvo pelos estalidos das bolhas da espuma, tênues como os ruídos de uma batalha distante. Eu percebia perfeitamente o que estava fazendo. Vinha fazendo isso desde que pisei a bordo do Escocês Voador em Inverness e senti o ronco dos trilhos ganharem vida sob meus pés. Eu estava me pondo à prova.

Eu vinha observando as máquinas cuidadosamente - todos os aparelhos e invenções da vida diária moderna — e, mais importante ainda, de minha própria reação a elas. O trem para Edimburgo, o avião para Boston, o táxi do aeroporto e todas as dezenas de minúsculos artefatos mecânicos da vida moderna - máquinas de venda automática, iluminação pública, o lavabo do avião, com seu redemoinho de desagradável desinfetante azulesverdeado, fazendo desaparecer dejetos e germes com o simples pressionar de um botão. Restaurantes, com seus certificados do Departamento de Saúde pendurados, garantindo ao menos uma boa chance de escapar a uma intoxicação alimentar ao comer ali. Em minha própria casa, os onipresentes botões que fornecem água e luz e calor e comida cozida.

A pergunta era - eu me importava? Enfiei a mão na fumegante água do banho e girei-a de um lado para o outro, observando as formas dançantes projetadas no fundo de mármore. Eu poderia viver sem todas as ”conveniências”, pequenas ou grandes, a que estava acostumada?

Eu vinha me fazendo essa pergunta a cada toque de botão, a cada ronco de motor e tinha certeza de que a resposta era ”sim”. O tempo não fazia tanta diferença, afinal de contas; eu podia atravessar a cidade e encontrar pessoas que viviam sem muitas dessas conveniências - no exterior, havia países inteiros onde as pessoas viviam razoavelmente felizes e completamente ignorantes da eletricidade.

Para mim mesma, nunca me preocupei muito. Vivera com meu tio Lamb, um eminente arqueólogo, desde a morte de meus pais quando eu tinha cinco anos. Em conseqüência, cresci em condições que, de forma conservadora, poderiam ser chamadas de ”primitivas”, acompanhando-o em todas as expedições de campo. Sim, banhos quentes e lâmpadas elétricas eram bons, mas vivera sem eles durante vários períodos de minha vida — durante a guerra, por exemplo - e nunca achara grave a falta desses confortos.

A água esfriara o bastante para ser tolerável. Deixei o roupão cair no chão e entrei na banheira, sentindo um estremecimento agradável quando o calor nos meus pés me fez sentir os ombros pinicarem com o frio contraste.

Deixei-me afundar na banheira e relaxei, esticando as pernas. As tinas de banho do século XVIII não passavam de barris grandes; a pessoa em geral tomava banho por partes, imergindo o centro do corpo primeiro, com as pernas penduradas para fora, depois se levantava e ensaboava-o peito enquanto deixava os pés de molho. Mas, em geral, as pessoas se banhavam com uma jarra, uma pequena bacia e a ajuda de uma toalha.

Não, conveniências e confortos não passavam disso. Nada essencial, nada sem o que eu não pudesse sobreviver.

Não que a falta de conveniências fosse o único problema, nem de longe. O passado era um terreno perigoso. Mas mesmo os progressos da chamada civilização não eram nenhuma garantia de segurança. Eu sobrevivera a duas grandes guerras ”modernas” - na verdade, servira no campo de batalha em uma delas — e podia ver uma outra se formando na telinha da televisão toda noite.

À guerra ”civilizada” era, no mínimo, mais aterrorizante do que suas versões mais antigas. A vida cotidiana podia ser mais segura, mas apenas se o indivíduo escolhesse muito bem por onde passar. Ruas de Roxbury agora eram tão perigosas quanto qualquer beco em que eu andara na Paris de duzentos anos atrás.

Suspirei e tirei a tampa do ralo com os pés. Não adiantava especular sobre coisas impessoais como banheiras, bombas e estupradores. Água encanada não passava de uma distração insignificante. A verdadeira questão eram as pessoas envolvidas, e sempre fora. Eu, Brianna e Jamie.

O resto da água escoou-se gorgolejando pelo ralo. Levantei-me, sentindo-me ligeiramente tonta, e enxuguei as últimas gotas. O grande espelho estava enevoado com o vapor, mas suficientemente claro para refletir minha imagem do joelho para cima, rósea como um camarão fervido.

Largando a toalha, examinei meu corpo. Flexionei os braços, ergui-os acima da cabeça, à procura de flacidez. Nenhuma; bíceps e tríceps todos muito bem definidos, deltóides perfeitamente arredondados e descendo num declive suave para a curva alta dos peitorais principais. Virei-me ligeiramente de lado, tensionando e relaxando os músculos abdominais - os oblíquos razoavelmente tonificados, o rectus abdominis achatado a ponto de ser quase côncavo.

— Ainda bem que a família não tem tendência à gordura — murmurei. Tio Lamb permanecera esbelto e rijo até o dia de sua morte aos setenta e cinco anos. Creio que meu pai, irmão de tio Lamb, era dono de uma constituição física semelhante e perguntei-me de repente como deveria ser o traseiro de minha mãe. As mulheres, afinal, tinham que lidar com uma certa quantidade extra de adiposidade.

Virei-me por completo e espreitei o espelho por cima do ombro. Os longos músculos dorsais reluziram, molhados, quando me contorci; eu ainda tinha cintura e, na verdade, bem fina.

Quanto ao meu próprio traseiro:

- Bem, nada de celulite, pelo menos - eu disse em voz alta. Virei-me e olhei minha imagem refletida. — Poderia ser muito pior — eu disse ao espelho.

Sentindo-me mais animada, vesti a camisola e comecei a preparar a casa para a noite. Nenhum gato para pôr para fora, nenhum cachorro para alimentar - Bozo, nosso último cachorro, morrera de velhice no ano passado e eu não quis arrumar outro com Brianna longe, na faculdade, e meus próprios horários no hospital longos e irregulares.

Ajustar o termostato, checar as trancas de janelas e portas, verificar se os bicos do gás estavam desligados. Era apenas isso. Durante dezoito anos, a rotina de toda noite incluíra uma parada no quarto de Brianna, mas isso terminara desde que ela partira para a universidade.

Movida por uma mistura de hábito e compulsão, abri a porta de seu quarto e acendi a luz. Algumas pessoas têm mania de acumular objetos, outras não. Bri tinha; mal se via um centímetro de parede entre pôsteres, fotografias, flores secas, pedaços de tecido tingido, diplomas emoldurados e outros entulhos.

Algumas pessoas têm uma habilidade para arrumar tudo ao seu redor de um jeito que os objetos revelem não só seu próprio significado, como uma relação com os outros objetos ao lado deles. Mas além disso, exibem também uma aura indefinível que pertence não só ao seu proprietário invisível como aos próprios objetos. Estou aqui porque Brianna me colocou aqui, aqueles objetos do quarto dela pareciam dizer. Estou aqui porque ela é quem ela é.

Na verdade, era estranho que ela tivesse esse jeito com objetos, pensei. Frank também era uma dessas pessoas; quando fui esvaziar sua sala na universidade depois de sua morte, pareceu-me o molde fossilizado de algum animal extinto; livros, papéis e uma infinidade de quinquilharias exatamente com a mesma forma, textura e leveza da mente que habitara aquele espaço.

Em alguns dos objetos de Brianna, a relação que guardavam com ela era óbvia - fotos minhas, de Frank, de Bozo, de amigos. Os pedaços de tecido eram os que ela havia tingido, escolhido o padrão, as cores de que gostava - turquesa brilhante, azul-escuro, magenta e amarelo-claro. Quanto a outros... por que o fato de espalhar conchas de caramujo de água doce sobre a escrivaninha me parecia tão próprio de Brianna? Por que aquela única pedra-pomes redonda, apanhada na praia de Truro, sem nada que a distinga de centenas de milhares de outras... exceto pelo fato de que ela a escolhera?

Eu não tinha habilidade com objetos. Não sentia nenhum impulso de adquirir ou decorar - Frank sempre se queixava da mobília quase espartana da casa, até Brianna crescer o suficiente para opinar. Não sei se por culpa da minha criação nômade ou simplesmente do meu jeito de ser, eu vivia de modo muito introspectivo, sem nenhuma vontade de alterar o ambiente à minha volta para fazê-lo refletir minha maneira de ser.

Jamie também era assim. Ele possuía apenas alguns objetos pequenos, sempre carregados na bolsa do kilt - por sua utilidade ou como talismãs e, fora isso, não possuía nem se importava com objetos. Mesmo durante o curto período em que vivemos luxuosamente em Paris, e o tempo mais longo de tranqüilidade em Lallybroch, nunca demonstrara qualquer vontade de adquirir objetos.

Também para ele, devem ter sido as circunstâncias do começo de sua vida adulta, quando viveu como um animal caçado, nunca possuindo nada além de armas das quais dependia sua sobrevivência. Mas talvez também fosse uma característica própria de sua personalidade, este distanciamento do mundo material de posse de bens, esta noção de auto-suficiência - um dos fatores que nos fizeram buscar a complementação um no outro.

Estranho, mesmo assim, que Brianna tenha herdado tantas semelhanças com ambos os pais, em suas maneiras muito distintas. Disse um silencioso boa-noite para o fantasma de minha filha ausente e apaguei a luz.

O pensamento de Frank acompanhou-me ao meu quarto. A visão da grande cama de casal, perfeitamente lisa e bem arrumada com sua colcha de cetim azul-marinho, trouxe-o repentina e vividamente à minha lembrança, de uma forma que há muitos meses não acontecia.

Creio que tenha sido a possibilidade de partida iminente que me fez pensar nele agora. Este quarto - na verdade, esta cama - foi onde eu me despedi dele pela última vez.

— Não vem para a cama, Claire? Já passa de meia-noite. — Frank ergueu os olhos para mim, por cima do livro. Ele próprio já estava instalado na cama, lendo com o livro apoiado nos joelhos. A suave poça de luz do abajur fazia com que parecesse estar flutuando numa bolha aquecida, serenamente isolado da escuridão fria do resto do quarto. Já era quase janeiro, e apesar dos melhores esforços da fornalha, o único lugar realmente quente à noite era a cama, sob pesados cobertores.

Sorri para ele e levantei-me da poltrona, deixando o grosso robe de lã deslizar dos meus ombros.

— Você não dormiu por minha causa? Desculpe-me. Só estava repassando a cirurgia de hoje de manhã.

- Sim, eu sei — ele disse secamente. — Eu sei só de olhar para você. Seus olhos ficam vitrificados e sua boca fica aberta.

- Desculpe-me — repeti, no mesmo tom seco. — Não posso me responsabilizar pelo que meu rosto faz quando estou pensando.

- Mas de que adianta pensar? - ele perguntou, colocando um marcador entre as páginas do livro. - Você fez tudo que podia... se preocupar com isso agora não vai mudar... ah, bem. — Deu de ombros com irritação e fechou o livro. —Já disse tudo isso antes.

-Já, sim - retruquei laconicamente.

Entrei na cama, tremendo levemente de frio, e enfiei minha camisola em volta de minhas pernas. Frank automaticamente moveu-se em minha direção e eu deslizei por baixo dos lençóis para o lado dele, aconchegando-nos para unir nosso calor contra afriagem.

- Ah, espere, tenho que mudar o telefone de lugar. — Atirei as cobertas para trás e arrastei-me para fora da cama outra vez, para mudar o telefone do lado de Frank para o meu lado da cama. Ele gostava de ficar sentado na cama no começo da noite, conversando com alunos e colegas de trabalho, enquanto eu lia ou fazia anotações cirúrgicas ao seu lado. Entretanto não gostava de ser acordado no meio da noite com telefonemas do hospital para mim. Ressentia-se tanto que eu arranjei para que o hospital só me ligasse em caso de absoluta emergência ou quando eu deixava instruções para me manterem informada do progresso de um determinado paciente. Esta noite, eu deixara instruções; era uma traiçoeira ressecção de intestinos. Se o quadro do paciente piorasse, eu provavelmente teria que voltar correndo para o hospital.

Frank resmungou quando desliguei a luz e me enfiei na cama outra vez, mas após um instante, ele rolou na cama para junto de mim, passando um braço por cima da minha cintura. Fiquei de lado e encolhi-me contra ele, relaxando gradualmente, conforme os dedos congelados dos meus pés degelavam.

Repassei mentalmente os detalhes da operação, sentindo outra vez afriagem nos meus pés da refrigeração da sala de cirurgia e a sensação inicial, perturbadora, do calor na barriga do paciente conforme meus dedos enluvados deslizavam para dentro. O intestino doente, enrolado como uma víbora, seguia o padrão de manchas arroxeadas de equimose e o lento escapamento de sangue vivo de minúsculas rupturas.

- Estive pensando. — A voz de Frank veio da escuridão às minhas costas, excessivamente descontraída.

- Hum? - Eu ainda estava absorvida na visão da cirurgia, mas esforcei-me para voltar ao presente. — Sobre o quê?

— Meu ano sabático. — Sua licença da universidade estava programada para começar dentro de um mês. Ele planejara fazer uma série de pequenas viagens pelo nordeste dos Estados Unidos, coletando material, depois iria para a Inglaterra por seis meses, retornando a Boston para passar os últimos três meses da licença escrevendo. — Eu havia pensado em ir direto para a Inglaterra — ele disse cautelosamente.

— Bem, por que não? O clima estará terrível, mas se vai passar a maior parte do tempo em bibliotecas...

- Quero levar Brianna comigo.

Fiquei paralisada, o frio no quarto repentinamente se aglutinando em um pequeno grumo de suspeita na boca do estômago.

— Ela não pode ir agora, falta apenas um semestre para se formar. Certamente você pode esperar até nós irmos ao seu encontro no verão, não é? Já entrei com o pedido de férias de verão e talvez...

— Eu vou agora. Definitivamente. Sem você.

Afastei-me abruptamente e sentei-me na cama, acendendo a luz. Frank estava deitado, piscando, os cabelos escuros desgrenhados. Tornaram-se grisalhos nas têmporas, conferindo-lhe um ar distinto que parecia ter efeitos alarmantes nas suas alunas mais suscetíveis. Eu me sentia surpreendentemente calma.

- Por que agora, de repente? Ela está pressionando-o, é isso?

O olhar de espanto que atravessou seus olhos foi tão evidente que chegou a ser cômico. Eu ri, com uma visível falta de humor.

— Você realmente pensava que eu não sabia? Meu Deus, Frank! Você é a pessoa mais... desligada que conheço!

Ele sentou-se ereto na cama, os maxilares contraídos.

— Achei que eu era discreto.

— Você pode até ter sido - eu disse ironicamente. — Contei seis nos últimos dez anos. Se houve cerca de uma dúzia, então você foi um modelo de discrição.

Seu rosto raramente demonstrava grande emoção, mas uma lividez em torno de sua boca disse-me que ele estava furioso de verdade.

— Esta deve ser muito especial — eu disse, cruzando os braços e recostando-me na cabeceira da cama com presumida descontração. — Mesmo assim, por que a pressa em ir para a Inglaterra agora, e por que levar Bri?

— Ela pode ir para um internato para terminar o último período — ele disse de maneira sucinta. — Será uma nova experiência para ela.

— Não uma experiência que eu ache que ela queira — eu disse. — Ela não vai querer deixar seus amigos, especialmente logo antes da formatura. E certamente não para ir para um internato inglês!— Estremeci diante da idéia. Eu mesma quase fora confinada numa instituição desse tipo quando criança; o cheiro da lanchonete do hospital às vezes evocava lembranças daquela escola, junto com as ondas de terror e desamparo que eu sentira quando tio Lamb me levou para conhecer o lugar.

— Um pouco de disciplina não faz mal a ninguém — Frank disse. Mostrava-se mais sereno, mas as linhas de seu rosto ainda estavam tensas. - Teria lhe feito bem. — Abanou a mão, descartando o assunto. — Deixe isso pra lá. De qualquer modo, resolvi voltar para a Inglaterra definitivamente. Ofereceram-me um bom cargo em Cambridge e pretendo aceitá-lo. Você não vai deixar o hospital, é claro. Mas não pretendo deixar minha filha para trás.

— Sua filha? — Senti-me de repente sem fala. Então ele tinha um novo emprego completamente arranjado e uma nova amante para acompanhá-lo. Portanto havia planejado tudo durante bastante tempo. Uma vida inteiramente nova, mas não com Brianna.

— Minha filha - ele disse calmamente. — Você pode vir nos visitar sempre que quiser, é claro...

- Você... maldito... canalha!- eu disse.

— Seja razoável, Claire — Olhou-me de cima, com aquele ar de longa paciência e tolerância, reservado para alunos de notas baixas. - Você quase nunca está em casa. Se eu não estiver aqui, não haverá ninguém para cuidar de Bri adequadamente.

— Você fala como se ela tivesse oito anos e não quase dezoito! Pelo amor de Deus, ela é quase uma adulta.

- Mais razão ainda para precisar de atenção e supervisão - retrucou. — Se você visse o que eu vejo na universidade... bebidas, drogas e...

— Eu sempre vejo — eu disse entre dentes. — Bem de perto, na sala de emergência. Bri não vai...

- Claro que vai! As jovens não têm nenhuma noção nesta idade, ela vai sair com o primeiro sujeito que...

- Não seja idiota! Bri é muito sensata. Além do mais, todos os jovens experimentam, é assim que aprendem. Não pode mantê-la enfaixada em cueiros a vida toda.

- Melhor de cueiros do que fazendo sexo com um negro! - ele disparou. Uma tênue mancha vermelha surgiu em suas maçãs do rosto. — Tal mãe, tal filha, hein? Mas não vai ser assim, droga, não se eu tiver alguma coisa a dizer!

Saí da cama e fiquei de pé, olhando-o com raiva.

— Você — eu disse — não tem nenhuma maldita palavra para dizer, nem sobre Bri, nem sobre qualquer outra coisa! — Eu tremia de raiva e tive que pressionar os punhos cerrados ao lado do corpo para não agredi-lo. — Você tem o desplante absoluto de me dizer que está indo embora, viver com a última de uma sucessão de amantes, e depois insinuar que tenho um caso comjoe Abernathy? É isso que você quer dizer, não é?

Ele teve a decência de abaixar um pouco os olhos.

- Todo mundo acha que você tem — murmurou. — Você passa todo o seu tempo com o sujeito. Dá na mesma, no que diz respeito a Bri. Arrastando-a para... situações onde ela é exposta a perigos e... e para aquele tipo de gente...

— Negros, é o que você quer dizer, não?

- É isso mesmo — ele disse, erguendo os olhos chispantes para mim. -Já não basta ter os Abernathy nas festas o tempo todo, embora ao menos ele seja educado. Mas aquele sujeito obeso em sua casa com tatuagens tribais e gosma nos cabelos? Aquele lagarto repulsivo de voz pastosa? E o filho de Abernathy rondando Bri dia e noite, levando-a a passeatas e protestos e orgias em inferninhos suspeitos...

— Não creio que existam inferninhos no céu — eu disse, reprimindo uma inconveniente vontade de rir com a indelicada, mas precisa descrição de Frank dos dois amigos mais excêntricos de Leonard Abernathy. — Sabia que Lenny trocou de nome? Agora chama-se Muhammad Ishmael Shabazz.

— Sim, você me disse — respondeu laconicamente —, e eu não vou correr nenhum risco de minha filha vir a se chamar sra. Shabazz.

- Não acho que Bri se sinta assim em relação a Lenny - assegurei-lhe, lutando para dominar minha irritação.

— E também não vai mesmo. Ela vai para a Inglaterra comigo.

— Não, se ela não quiser — eu disse, com decisão.

Sem dúvida percebendo que sua posição o colocava em desvantagem, Frank saiu da cama e começou a tatear em busca dos chinelos.

— Não preciso de sua permissão para levar minha filha para a Inglaterra — ele disse. - E Bri ainda é menor de idade, terá de ir para onde eu disser. Agradeço se puder me dar seu histórico médico, a nova escola vai pedir.

— Sua filha? — eu disse outra vez. Notei vagamente afriagem no quarto, mas estava com tanta raiva que sentia todo o corpo afogueado. — Bri é minha filha e você não vai levá-la a lugar algum!

- Não pode me impedir - ressaltou, com uma calma irritante, pegando o robe aos pés da cama.

— É o que você pensa - eu disse. — Quer se divorciar de mim? Muito bem. Use qualquer motivo que quiser, com exceção de adultério, que não pode provar, porque não existe. Mas se tentar levar Bri com você, terei uma ou duas coisas a dizer a respeito de adultério. Quer saber quantas amantes que você abandonou foram me procurar para me pedir que abrisse mão de você?

Ele ficou boquiaberto, em estado de choque.

— Eu disse a todas elas que abriria mão de você na mesma hora — continuei —, se você pedisse. - Cruzei os braços, enfiando as mãos sob as axilas. Estava começando a sentir afriagem outra vez. — Eu na verdade sempre me perguntei por que você nunca pediu, mas imagino que tenha sido por causa de Brianna.

Seu rosto ficara completamente exangue, assomando branco como um crânio na penumbra do outro lado da cama.

— Bem - ele disse, com uma fraca tentativa de recompor o seu autocontrole habitual —, eu não achei que se importasse. Você nunca fez nenhuma tentativa de me impedir.

Fitei-o, completamente surpresa.

— Impedi-lo? - eu disse. - O que eu deveria ter feito? Abrir sua correspondência com vapor e sacudir as cartas sob seu nariz? Fazer uma cena na faculdade na festa de Natal? Queixar-me com o reitor?

Apertou os lábios com força por um instante, depois relaxou.

- Poderia ter demonstrado que se importava — disse à meia-voz.

— E me importava. — Minha voz soou entrecortada.

Ele sacudiu a cabeça, ainda me fitando, os olhos escuros à luz do abajur.

- Não o suficiente. — Parou, o rosto flutuando, pálido, no ar acima de seu robe escuro, depois deu a volta na cama para colocar-se ao meu lado. — As vezes, eu me perguntava se teria o direito de censurá-la — ele disse, quase pensativamente. — Ele se parecia com Bri, não é? Ele era como ela?

- Sim.

Respirou ruidosamente, quase arfando.

— Eu podia ver em seu rosto... quando você olhava para ela, podia ver você pensando nele. Droga, Claire Beauchamp - ele disse, quase num sussurro. - Você e esse seu rosto que não consegue esconder nada do que pensa ou sente.

Houve um silêncio depois disso, do tipo que nos faz ouvir todos os minúsculos e quase inaudíveis ruídos, de madeira estalando e casas respirando quando tentamos fingir que não ouvimos o que acabou de ser dito.

— Eu realmente amei você — eu disse baixinho, finalmente. — Um dia.

— Um dia — ele repetiu. — Devo ficar agradecido por isso? A sensação começava a voltar aos meus lábios dormentes.

- Eu lhe contei - eu disse. — E depois, quando você não quis ir embora... Frank, eu realmente tentei.

O que quer que ele tenha ouvido em minha voz o fez parar por um instante.

- Mesmo — acrescentei, num sussurro.

Ele virou-se e dirigiu-se à penteadeira, onde ficou tocando nos objetos agitadamente, apanhando-os e colocando-os de novo sobre o móvel, aleatoriamente.

- No começo, eu não podia deixá-la... grávida, sozinha. Só um canalha o faria. E depois... Brí. — Olhou cegamente para o batom que segurava na mão, depois o colocou delicadamente de volta no tampo lustroso. — Não podia abrir mão dela - disse baixinho. Virou-se para olhar para mim, os olhos eram dois buracos escuros num rosto ensombreado. — Sabia que eu não podia gerar um filho? Eu... fiz um exame, há alguns anos. Sou estéril. Sabia?

Sacudi a cabeça, sem conseguir falar.

- Bri é minha, minha filha — ele disse, como se falasse consigo mesmo. - O único filho que terei. Não podia abrir mão dela. — Deu uma risada curta. — Eu não podia abrir mão dela, mas você não podia vê-la sem pensar nele, não é? Sem essa lembrança permanente, eu me pergunto... você o teria esquecido, com o tempo?

- Não. - A palavra, apenas um murmúrio, pareceu percorrê-lo como um choque elétrico. Ficou paralisado por um instante, depois girou nos calcanhares, dirigiu-se ao closeti e começou a vestir roupas por cima do pijama. Fiquei parada, os braços em volta do corpo, observando-o vestir o sobretudo e sair do quarto batendo os pés, sem olhar para mim. A gola de seu pijama de seda azul sobressaía-se por cima da borda de astracã do seu casaco.

Instantes depois, ouvi a porta da frente se fechar — ele teve suficiente presença de espírito para não batê-la - e, em seguida, o barulho de um motor frio hesitante em pegar. Os faróis varreram o teto do quarto quando o carro saiu de ré da garagem e depois foi embora, deixando-me trêmula junto à cama desfeita.

Frank não voltou. Tentei dormir, mas continuava deitada rigidamente na cama fria, mentalmente revivendo a discussão, ouvindo o ruído dos pneus no caminho da garagem. Por fim, levantei-me e me vesti, deixei um bilhete para Bri e também saí.

O hospital não me telefonou, mas eu fui para lá assim mesmo, dar uma olhada no meu paciente; era melhor do que ficar me revirando na cama a noite inteira. E, para ser honesta, eu não me importaria se Frank voltasse para casa e não me encontrasse.

As ruas estavam escorregadias como manteiga, uma fina camada de gelo brilhando à luz dos postes. A claridade do fósforo amarelo iluminava espirais de neve em queda; dentro de uma hora, afina camada de gelo que recobria as ruas ficaria escondida sobre a neve fofa e recente, tornando-as ainda mais perigosas para viajar. O único consolo era que não havia ninguém nas ruas às quatro horas da manhã para correr o perigo. Quer dizer, ninguém exceto eu.

Dentro do hospital, o cheiro institucional abafado e quente de costume envolveu-me como um manto de familiaridade, barrando a entrada da noite escura e coberta de neve.

— Ele está bem — o enfermeiro me disse em voz baixa, como se uma voz alta pudesse perturbar o sono do paciente. - Todos os sinais vitais estão estáveis e a contagem está certa. Nenhuma hemorragia.

Eu podia ver que era verdade; o rosto do paciente estava pálido, mas com um suave tom rosado, como as veias em uma pétala de rosa branca, e o pulso na concavidade de sua garganta era forte e regular.

Soltei o profundo suspiro que não percebera que estivera contendo.

- Isso é bom - eu disse. — Muito bom.

O enfermeiro sorriu calorosamente para mim e tive que resistir ao impulso de apoiar-me nele e desmoronar. O ambiente do hospital de repente parecia ser meu único refúgio.

Não adiantava voltar para casa. Verifiquei rapidamente como estavam meus outros pacientes e desci para a lanchonete. Ainda cheirava a colégio interno, mas senteime com uma xícara de café e tomei-o devagar, imaginando o que eu iria dizer a Bri.

Deve ter sido uma meia hora mais tarde quando uma enfermeira da emergência atravessou apressadamente a porta de vaivém e parou abruptamente ao me ver. Então, aproximou-se, muito devagar.

Eu soube imediatamente; eu já vira médicos e enfermeiros comunicar notícias de morte muitas vezes para me enganar com os sinais. Com muita calma, sem sentir absolutamente nada, coloquei a xícara quase cheia sobre a mesa, percebendo, enquanto afazia, que pelo resto da minha vida eu me lembraria que havia uma lasca na borda da xícara e que o B das letras douradas na lateral estava quase apagado.

- ...que você estaria aqui. A identidade em sua carteira... a polícia disse... neve sobre gelo, uma derrapagem... já chegou morto... — A enfermeira continuava a falar, balbuciando, enquanto eu atravessava a passos largos os corredores brilhantemente brancos, sem olhar para ela, vendo os rostos das enfermeiras do posto virarem-se para mim em câmara lenta, sem saber, mas vendo, com um relance de olhos para mim, que algo terrível acontecera.

Ele estava em uma maca, em um dos cubículos da sala de emergências; um lugar anônimo, espartano. Havia uma ambulância estacionada do lado de fora - talvez a que o trouxera. As portas no final do corredor estavam abertas para o amanhecer glacial. A luz vermelha da ambulância pulsava como uma artéria, banhando de sangue o corredor.

Toquei-o de leve. Seu corpo possuía aquela sensação plástica, inerte, dos que acabaram de morrer, tão em desacordo com a aparência de vida. Não havia nenhum ferimento visível; qualquer dano estava escondido sob o cobertor que o cobria. Sua garganta estava lisa e morena. Não havia nenhuma pulsação na base do seu pescoço.

Fiquei ali parada, a mão na curva imóvel de seu peito, olhando para ele, como não olhava há algum tempo. Um perfil forte e delicado, lábios sensíveis, nariz e maxilares perfeitamente cinzelados. Um homem bonito, apesar dos sulcos ao redor da boca, rugas de decepção e raiva contida, rugas que nem o relaxamento da morte conseguia apagar.

Permaneci completamente imóvel, ouvindo. Podia ouvir o lamento de outra ambulância se aproximando, vozes no corredor. O rangido de rodas de maca, a estática de um rádio de polícia e o zumbido suave de uma luz fluorescente em algum lugar. Compreendi com um susto que eu estava tentando ouvir Frank, esperando... o quê? Que seu espírito estivesse pairando ali por perto, ansioso para terminar nossa discussão inacabada?

Fechei os olhos, para fugir à perturbadora visão daquele perfil imóvel, ficando vermelho e branco e vermelho outra vez, alternadamente, conforme a luz da ambulância pulsava pelas portas abertas.

— Frank — eu disse num sussurro, para o ar gelado, agitado —, se ainda estiver perto o suficiente para me ouvir... eu realmente o amei. Um dia. Mesmo.

Então Joe surgiu, abrindo caminho pelo corredor apinhado de gente, o rosto ansioso acima da roupa verde do hospital. Viera diretamente da sala de cirurgia; havia respingos de sangue nas lentes de seus óculos, uma mancha de sangue no peito também.

- Claire - ele disse —, meu Deus, Claire!

E eu comecei a tremer. Em dez anos, ele nunca me chamara de outro modo senão de ”Jane” ou ”L. J.”. Se ele estava usando meu nome, aquilo devia ser real. Vi minha mão extraordinariamente branca na mão escura de Joe, depois vermelha à luz pulsante. Em seguida, virei-me para ele, sólido como um tronco de árvore, descansei a cabeça em seu ombro e - pela primeira vez - chorei por Frank.

Encostei o rosto contra a janela do quarto de dormir da casa em Furey Street. Estava quente e úmido naquela noite azul de setembro, repleta de sons de grilos e irrigadores de gramado. O que eu via, entretanto, era o preto e branco implacável daquela noite de inverno há dois anos - a camada de gelo na estrada refletindo a escuridão da noite e o branco dos lençóis do hospital; depois, no alvorecer cinzento, o raciocínio turvo, a incapacidade de pensar com clareza.

Meus olhos se turvaram agora, ao recordar a confusão anônima no corredor e a luz vermelha e pulsante da ambulância que banhava o silencioso cubículo num clarão sangrento, enquanto eu chorava por Frank.

Agora, eu chorava por ele pela última vez, sabendo, no momento mesmo em que as lágrimas escorriam pelo meu rosto, que havíamos nos separado, de uma vez por todas, há vinte e poucos anos antes, no alto de uma verde colina escocesa.

Secadas as lágrimas, levantei-me e pousei a mão na macia colcha azul, delicadamente arredondada sobre o travesseiro da esquerda - o lado de Frank.

— Adeus, querido — murmurei, saindo para dormir no andar de baixo, longe de todos os fantasmas.

Foi a campainha da porta que me despertou pela manhã da cama improvisada no sofá.

- Telegrama, senhora - disse o mensageiro, tentando não olhar direto para a minha camisola.

Aqueles pequenos envelopes amarelos haviam sido provavelmente responsáveis por mais ataques do coração do que qualquer coisa além de bacon gorduroso no café da manhã. Meu próprio coração apertou-se como um punho cerrado, depois continuou batendo de uma maneira pesada e incômoda.

Dei uma gorjeta ao mensageiro e levei o telegrama pelo corredor. Parecia importante não abri-lo até ter alcançado a relativa segurança do banheiro, como se fosse um dispositivo explosivo que pudesse ser neutralizado embaixo de água.

Meus dedos tremiam e atrapalhavam-se para abrir o envelope, sentada na borda da banheira, as costas pressionadas contra a parede de ladrilhos como reforço.

Era uma mensagem breve - claro, um escocês sempre seria econômico com as palavras, pensei de forma absurda.

ENCONTREI-O PONTO, eu li. PODERIA VOLTAR INTERROGAÇÃO ROGER.

Dobrei o telegrama cuidadosamente e recoloquei-o no envelope. Permaneci ali sentada, fitando-o por um longo tempo. Em seguida, levantei-me e fui me vestir.

 

Joe Abernathy estava sentado à sua mesa, franzindo a testa para um pequeno retângulo de papel-cartão de cor clara que segurava com ambas as mãos

- O que é isso? - perguntei, sentada na beira de sua escrivaninha sem nenhuma cerimônia

- Um cartão de visitas - Entregou-me o cartão, parecendo irritado e achando engraçado ao mesmo tempo.

Era um cartão cinza-claro em papel vergê; artigo caro, meticulosamente impresso numa elegante tipologia senfada Muhammad Ishmael Shabazz III, dizia a linha central, com endereço e telefone abaixo.

- Lenny? - perguntei, rindo - Muhammad Ishmael Shabazz terceiro?

- Hum-hum. - A inclinação para achar engraçado parecia estar prevalecendo. O dente de ouro faiscou rápido quando pegou o cartão de volta

- Disse que não vai aceitar nenhum nome de branco, nenhum nome de escravo. Vai resgatar sua herança africana - disse sarcasticamente - Tudo bem, eu disse a ele. Depois perguntei- e o próximo passo vai ser sair por aí com um osso atravessado no nariz? Como se já não bastasse ele estar com o cabelo deste tamanho - ilustrou com um gesto, balançando as mãos dos dois lados da própria cabeça quase raspada — e andar por aí numa túnica que vai até os joelhos, parecendo que foi feita por sua irmã na aula de economia doméstica. Não, Lenny... desculpe-me, Muhammad tem que ser africano até a medula

Joe abanou a mão para a janela, para a vista privilegiada do parque — Então eu disse a ele, olhe à sua volta, rapaz, está vendo algum leão? Isso aqui parece a África’ — Inclinou-se para trás em sua cadeira estofada, esticando as longas pernas. Sacudiu a cabeça, resignado - Não há diálogo com um garoto nesta idade.

- É verdade - eu disse. - Mas o que significa esse ”terceiro”? Um hesitante brilho de ouro respondeu-me

- Bem, ele veio com todo aquele papo de ”tradição perdida” e sua ”história desconhecida” e tudo o mais. Ele diz: ”Como vou manter a cabeça erguida, encarar todos aqueles caras de Yale chamados Cadwallader IV e Sewell Lodge Jr. se eu nem sei o nome de meu avô, nem sei de onde venho?”

Joe fez um muxoxo.

— Eu disse a ele, se quer saber de onde veio, garoto, olhe no espelho. Não foi do Mayflower, não é?

Pegou o cartão outra vez, um sorriso relutante no rosto

- Então ele diz que, se vai resgatar sua herança, por que não ir até o fim? Se seu avô não lhe deu um nome, ele dará um nome ao avô. E o único problema disso - ele disse, erguendo o olhar para mim, por baixo de uma sobrancelha erguida - é que me deixa como o homem do meio. Agora eu tenho que ser Muhammad Ishmael Shabazz Júnior, para que Lenny possa ser um orgulhoso afro-americano. - Afastou-se da mesa com um impulso, o queixo no peito, olhando ameaçadoramente para o cartão cinza-claro.

- Você tem sorte, L. J. - ele continuou. - Ao menos, Bri não está lhe dando desgosto sobre quem era seu avô. Tudo com que você tem que se preocupar é se ela está usando drogas ou engravidando de algum desertor do serviço militar que está fugindo para o Canadá.

Ri, com mais do que um pouco de ironia.

- Isso é o que você pensa - disse-lhe.

— É mesmo? — Ergueu uma das sobrancelhas com interesse para mim, depois tirou os óculos de aro dourado e limpou-os na ponta da gravata — E então, que tal a Escócia? — perguntou, observando-me. — Bri gostou de lá?

— Ela continua lá — eu disse. — Pesquisando sua própria história.

Joe estava abrindo a boca para dizer alguma coisa quando uma batida hesitante na porta o interrompeu.

- Dr. Abernathy? - Um jovem gordo, numa camisa pólo, espreitou, hesitante, para dentro do escritório, inclinando-se sobre a tampa de uma grande caixa de papelão que segurava contra o volumoso abdômen.

- Chame-me de Ishmael - Joe disse alegremente.

- O quê? - O rapaz ficou ligeiramente boquiaberto e olhou para mim com um misto de perplexidade e esperança. - Abernathy é a senhora’

— Não — eu disse —, é ele, quando está em seu juízo perfeito. Levantei-me da escrivaninha, alisando minha saia. — Vou deixá-lo com sua consulta, Joe, mas se tiver um tempo mais tarde...

— Não, fique mais um minuto, L. J. — ele me interrompeu, levantando-se. Pegou a caixa das mãos do rapaz, em seguida cumprimentou-o formalmente com um aperto de mão. — E você é o sr. Thompson? John Wicklow telefonou-me para dizer que você viria. Prazer em conhecê-lo.

- Horace Thompson, sim - disse o jovem, piscando ligeiramente - Eu trouxe, ha, um espécime... - Abanou a mão vagamente para a caixa de papelão.

- Sim, está bem. Terei prazer em dar uma olhada nele para você, mas acho que a dra. Randall aqui também poderia ajudar. - Olhou para mim, um brilho travesso nos olhos. — Só quero ver se você pode fazê-lo com uma pessoa morta, L. J.

- Fazer o quê com uma pessoa... - comecei, quando ele enfiou as mãos na caixa aberta e com todo o cuidado retirou dali um crânio.

— Ah, bonito — ele disse, encantado, virando o objeto delicadamente de um lado para o outro ”Bonito” não foi o primeiro adjetivo que me ocorreu; o crânio havia mudado muito de cor, o osso era de um marrom-escuro e manchado. Joe levou-o até a janela e segurou-o à luz, os polegares tocando com delicadeza as pequenas bordas ósseas das órbitas.

— Uma bela senhora — disse brandamente, falando tanto para o crânio quanto para mim ou para Horace Thompson. - Adulta, madura. Talvez com cinqüenta ou cinqüenta e poucos anos. Você tem as pernas? — ele perguntou, virando-se repentinamente para o rapaz gorducho.

- Sim, bem aqui - Horace Thompson assegurou-lhe, enfiando a mão na caixa. — Na verdade, temos o esqueleto completo.

Horace Thompson era provavelmente alguém do escritório do médico-legista encarregado de investigar mortes suspeitas, pensei. Às vezes, levavam corpos para Joe, encontrados na zona rural, em condições já muito deterioradas, para uma opinião especializada quanto à causa mortis. Este parecia consideravelmente deteriorado.

— Tome, dra. Randall. —Joe inclinou-se e com extrema cautela colocou o crânio em minhas mãos. — Diga-me se esta senhora gozava de boa saúde, enquanto eu verifico suas pernas.

- Eu? Não sou legista. - Mesmo assim, olhei automaticamente para baixo. Ou era um espécime antigo ou severamente castigado pelas condições do tempo; o osso estava liso, com um brilho que os espécimes recentes nunca possuíam, manchado e com a cor alterada pela ação dos pigmentos da terra.

- Ah, está bem. - Virei o crânio nas mãos com cuidado, observando os ossos, nomeando-os mentalmente conforme os via. O arco suave dos parietais, fundido ao declive do temporal, com a pequena saliência onde o músculo mandibular se originava, a protuberância que se unia com a projeção maxilar formando a curva graciosa do arco escamoso. Ela possuíra belas maçãs do rosto, altas e largas. O maxilar superior exibia a maioria dos dentes — alinhados e brancos.

Olhos fundos. O osso escavado da parte de trás das órbitas estava sombreado e escuro; mesmo inclinando o crânio de lado, não conseguia fazer a luz iluminar toda a cavidade. O crânio parecia leve em minhas mãos, o osso frágil. Toquei sua fronte e minha mão deslizou para cima, em seguida para baixo, atrás do occipício, meus dedos buscando o buraco escuro na base do crânio, o forame magno, onde todas as mensagens do sistema nervoso tinham que passar, para dentro e para fora do cérebro ativo.

Em seguida, segurei o crânio junto ao meu estômago, os olhos fechados, e senti a tristeza sutil, preenchendo a cavidade do crânio como água corrente. E uma leve e estranha sensação — de surpresa?

- Alguém a matou - eu disse. - Ela não queria morrer. - Abri os olhos e encontrei Horace Thompson fitando-me, os próprios olhos arregalados em seu rosto pálido e redondo. Entreguei-lhe o crânio, com muito cuidado. - Onde a encontrou? - perguntei.

O sr. Thompson e Joe entreolharam-se. O sr. Thompson voltou a olhar para mim. As sobrancelhas ainda erguidas.

— É de uma caverna no Caribe — ele disse. — Havia diversos artefatos com ela. Achamos que tenha entre cento e cinqüenta a duzentos anos.

— Ela o quê’?

Joe exibia um largo sorriso, divertindo-se com a situação.

- Nosso amigo, o sr. Thompson aqui, é do departamento de antropologia de Harvard - ele disse. - Seu amigo Wicklow me conhece; perguntou-me se eu daria uma olhada neste esqueleto, para dizer-lhes qualquer coisa que eu pudesse encontrar.

— Que audácia! — exclamei, indignada. — Pensei que ela fosse algum corpo não identificado que o escritório do legista tivesse arrastado para cá.

- Bem, ela não foi identificada -Joe ressaltou. - E provavelmente vai continuar assim. — Começou a fuçar a caixa de papelão como um terrier. Na aba da tampa, lia-se: MILHO PICT-SWEET.

— Bem, o que temos aqui? — ele disse, tirando da caixa, com muito cuidado, um saco plástico contendo uma mixórdia de vértebras.

- Estava toda desfeita quando a encontramos - Horace explicou.

— Oh, o crânio é ligado ao... osso do pescoço —Joe cantarolou, arrumando as vértebras ao longo da borda da mesa. Seus dedos grossos e curtos iam e vinham habilmente entre os ossos, empurrando-os e alinhando-os. — O osso do pescoço é ligado à... espinha dorsal...

- Não dê atenção a ele - eu disse a Horace. - Só vai encorajá-lo.

- Ah, ouça... a palavra... do Senhor! - ele terminou triunfalmente. Santo Deus, L. J., você é inacreditável! Olhe aqui. — Eu e Horace Thompson nos inclinamos obedientemente sobre a linha de pontiagudos ossos vertebrais. O eixo largo exibia um sulco profundo, as zigapófises posteriores haviam sido decepadas completamente e a fratura atravessava completamente o centro do osso.

- Pescoço quebrado? - Thompson perguntou, espreitando com interesse.

— Sim, porém mais do que isso, eu acho. — O dedo de Joe percorreu a linha da extensão da fratura. - Está vendo aqui? O osso não está apenas quebrado, simplesmente desapareceu naquele lugar Alguém tentou decapitar esta mulher. Com uma lâmina rombuda - concluiu com satisfação.

Horace Thompson olhava-me de forma estranha.

— Como soube que ela havia sido assassinada, dra. Randall? — ele perguntou.

Pude sentir o sangue subir ao meu rosto.

— Não sei — respondi. — Eu... ela... parecia que sim, só isso.

- É mesmo? - Piscou algumas vezes, mas não continuou a me pressionar — Que estranho.

— Ela faz isso o tempo todo —Joe informou-o, estreitando os olhos para o fêmur que estava medindo com um par de calibradores - Mas na maioria das vezes com pessoas vivas. A melhor especialista em diagnóstico que já vi. - Largou os calibradores e pegou uma pequena régua de plástico. Uma caverna, você disse?

- Achamos que se tratava de um... ha, de um local secreto de sepultamento de escravos - explicou o sr. Thompson, enrubescendo, e eu compreendi de repente por que ele parecera tão envergonhado quando percebeu qual de nós dois era o médico a quem ele fora enviado.

Joe lançou-lhe um olhar repentino e penetrante, mas em seguida inclinou-se novamente sobre seu trabalho. Continuava a cantarolar o espiritual ”Dem Dry Bonés” baixinho para si mesmo, enquanto media a bacia pélvica. Depois, voltou às pernas, desta vez concentrando-se na tíbia. Finalmente, endireitou-se, sacudindo a cabeça.

- Não era uma escrava - disse. Horace pestanejou.

- Mas deve ter sido - ele disse. - Tudo que encontramos com ela... uma clara influência africana...

— Não —Joe disse sem rodeios. Bateu de leve no fêmur longo, no lugar onde estava sobre sua mesa. Sua unha produziu um ruído seco sobre o osso. — Ela não era negra.

— Pode-se saber pelos ossos? — Horace Thompson ficou visivelmente agitado. - Mas eu pensei... aquele artigo de Jensen, quero dizer... teorias sobre diferenças físicas raciais... amplamente contestado... - Ficou vermelho, incapaz de terminar.

- Ah, elas existem - disse Joe, com grande indiferença. - Se quer pensar que negros e brancos são iguais sob a pele, por mim tudo bem, mas cientificamente não é assim - Virou-se e retirou um livro da estante as suas costas. Tabelas de variação de esqueleto, dizia o título.

— Dê uma olhada nisto — Joe disse — Pode-se ver as diferenças em diversos ossos, mas especialmente nos ossos das pernas. Os negros possuem uma proporção entre fêmur e tíbia completamente diferente dos brancos E esta senhora - apontou para o esqueleto sobre a sua mesa - era branca Caucasiana. Não há nenhuma dúvida a respeito

- Ah - murmurou Horace Thompson – Bem. Vou ter que pensar... quer dizer... foi muita gentileza sua dar uma olhada nela para mim. Ha, obrigado - acrescentou, com uma pequena e desajeitada mesura. Observamos silenciosamente enquanto ele juntava seus ossos de volta na caixa de papelão e partia, parando à porta para nos cumprimentar outra vez com um breve aceno da cabeça.

Joe deu uma pequena risada quando a porta se fechou atrás dele.

— Quer apostar como ele vai levá-la a Rutgeis para uma segunda opinião?

- Os acadêmicos não desistem de suas teorias facilmente - eu disse, dando de ombros - Vivi com um deles tempo suficiente para saber disso.

Joe riu de novo.

— É verdade. Bem, agora que já terminamos com o sr Thompson e a mulher branca morta, o que posso fazer por você, L J?

Respirei fundo e virei-me para olhá-lo de frente.

- Preciso de uma opinião honesta, de alguém que tenho certeza que será objetivo. Não — corrigi-me —, retiro o que disse. Preciso de uma opinião e depois, dependendo da opinião, talvez um favor.

— Sem problema — Joe assegurou-me — Especialmente quanto a opinião. Minha especialidade, opiniões - Reclinou-se em sua cadeira, abriu os óculos de aro dourado e colocou-os firmemente sobre o nariz largo. Em seguida, cruzou as mãos em cima do peito, os dedos formando uma espécie de torre, e balançou a cabeça para mim. – Diga.

— Eu sou sexualmente atraente? — perguntei. Seus olhos sempre me faziam lembrar balas de caramelo, com sua meiga cor castanho-dourada. Agora, tornaram-se completamente redondos, aumentando a semelhança.

Depois, estreitaram-se, mas ele não respondeu logo. Examinou-me com atenção da cabeça aos pés.

- É uma pergunta capciosa, certo’ - ele disse - Eu lhe dou uma resposta e uma dessas feministas salta sobre nim de trás da porta e grita ”Porco machista’”, e me golpeia na cabeça com um cartaz que diz ”Castrem os chauvinistas”, não é?

- Não - assegurei-lhe - Uma resposta masculina chauvinista e machista é basicamente o que eu quero.

- Ah, ok. Já que isso ficou esclarecido. - Retomou seu minucioso estudo, estreitando bem os olhos enquanto eu ficava parada, ereta.

- Mulher branca e magra com uma enorme cabeleira, mas com um belo traseiro - ele disse finalmente. - Seios bonitos, também - acrescentou, com um aceno cordial da cabeça. - Era isso que queria saber?

— Sim — respondi, relaxando a postura rígida. — Era exatamente isso que eu queria saber. Não é o tipo de pergunta que se pode fazer a qualquer um.

Franziu os lábios num assobio silencioso, depois atirou a cabeça para trás e deu uma sonora risada, encantado.

- Lady Jane! Você arranjou um homem!

Senti o sangue subir às minhas faces, mas tentei manter minha dignidade.

- Não sei. Talvez. Apenas talvez.

— Talvez, uma ova! Pelo amor de Deus, L. J., já estava na hora!

- Faça o favor de parar com a gozação - eu disse, sentando-me na cadeira em frente à sua mesa. - Não fica bem para um homem da sua idade e posição.

- Minha idade? Ha, ha - ele disse, espreitando-me astutamente por trás dos óculos. — Ele é mais novo do que você? É com isto que está preocupada?

- Não muito - eu disse, a vermelhidão do rosto começando a retroceder. — Mas eu não o vejo há vinte anos. Você é a única pessoa que me conhece há muito tempo; mudei muito desde que nos conhecemos? Olhei-o de frente, exigindo honestidade.

Ele olhou para mim, tirou os óculos e estreitou os olhos, depois os recolocou.

- Não - ele disse. - Mas você não mudaria, a menos que engordasse.

- Não mudaria?

— Não — ele disse. —Já foi a algum encontro de ex-colegas de colégio?

- Eu não freqüentei um colégio.

Suas sobrancelhas falhadas saltaram para cima.

- Não? Eu, sim. E vou lhe dizer uma coisa, L. J.: você encontra todas essas pessoas que não vê há vinte anos e então ocorre aquela fração de segundo em que você olha para alguém que conhecia e pensa: ”Meu Deus, como ele mudou!”, mas, logo em seguida, você vê que ele não mudou. É como se os vinte anos não tivessem passado. Quero dizer — esfregou a cabeça vigorosamente, buscando a melhor forma de se expressar -, você vê que ele adquiriu alguns cabelos grisalhos, algumas rugas e talvez já não seja exatamente como era, mas dois minutos após esse choque, não vê mais essas mudanças. São exatamente as mesmas pessoas que sempre foram e tem que se distanciar um pouco para ver que eles já não têm dezoito anos.

”Agora, se as pessoas engordam - disse pensativamente -, elas realmente mudam um pouco. Torna-se difícil ver quem elas eram, porque o rosto muda. Mas você - estreitou os olhos para mim outra vez -, você nunca vai ser gorda; não tem os genes para isso.”

- Acho que não - eu disse. Olhei para minhas mãos, entrelaçadas no meu colo. Pulsos finos; ao menos, eu ainda não engordara. Minhas alianças brilhavam ao sol do outono que penetrava pela janela.

- É o pai de Bri? - ele perguntou brandamente. Ergui a cabeça repentinamente e olhei-o perplexa.

- Como é que você sabe disso? - perguntei. Ele esboçou um sorriso.

- Há quanto tempo conheço Bri? Dez anos, pelo menos. - Sacudiu a cabeça. - Ela se parece muito com você, L. J., mas nunca vi nenhum traço de Frank. Papai tem cabelos ruivos, hein? — ele perguntou. — E é um filho-da-mãe muito grande, ou tudo que aprendi de genética básica foi uma grande mentira.

- Sim - eu disse, sentindo uma espécie de delirante empolgação à simples admissão do fato. Até eu contar à própria Bri e a Roger a respeito de Jamie, eu não dissera nada sobre ele em vinte anos. A alegria de de repente poder falar livremente sobre ele era inebriante. - Sim, ele é grande e ruivo, e é escocês - eu disse, fazendo os olhos de Joe arregalarem-se de novo.

— E Bri está na Escócia agora? Balancei a cabeça, confirmando.

- Bri é onde entra o favor.

Duas horas mais tarde, saí do hospital pela última vez, deixando para trás uma carta de demissão, endereçada ao Conselho, todos os documentos necessários para a administração de meus bens até Brianna completar a maioridade e, um outro, a ser executado nesta ocasião, passando tudo para ela. Ao sair do estacionamento, experimentei uma sensação mista de pânico, angústia e júbilo. Eu estava a caminho.

 

Achei o documento de transferência de propriedade. - O rosto de Roger estava afogueado de entusiasmo. Mal conseguira se conter, esperando com clara impaciência na estação de trem em Inverness, enquanto Brianna abraçava-me e minhas malas eram devolvidas. Mal nos enfiou no pequeno Morris e ligou a ignição do carro antes de começar a contar suas novidades.

— Qual, o de Lallybroch? — Inclinei-me sobre o encosto do assento da frente entre ele e Brianna, a fim de ouvi-lo acima do barulho do motor.

- Sim, Jamie, o seu Jamie, escreveu, transferindo a propriedade para seu sobrinho, o pequeno Jamie.

- Está na mansão - Brianna acrescentou, virando-se para me olhar. Ficamos com medo de trazê-lo conosco; Roger teve que assinar o nome com sangue para conseguir tirá-lo do acervo especial. — Sua pele clara estava rosada de empolgação e do dia frio, gotas de chuva em seus cabelos ruivos. Era sempre um choque para mim revê-la após um período de ausência, as mães sempre acham seus filhos bonitos, mas Bri realmente era.

Sorri para ela, resplandecente de afeto tingido de pânico. Eu poderia mesmo estar pensando em deixá-la? Atribuindo erroneamente meu sorriso à satisfação com as notícias, ela continuou, agarrando o encosto do banco com entusiasmo.

- E você não vai adivinhar o que mais encontramos!

- O que você encontrou - Roger corrigiu, apertando seu joelho com uma das mãos enquanto ultrapassava um pequeno carro cor de laranja num trevo da estrada. Ela lançou-lhe um rápido olhar e retribuiu o toque com uma expressão de intimidade que fez disparar meus sinais de alarme maternais instantaneamente. Já estavam neste ponto, hein?

Eu parecia sentir a sombra acusadora de Frank olhando por cima do meu ombro. Bem, pelo menos Roger não era negro. Tossi e disse:

— É mesmo? O que foi?

Trocaram um olhar e um largo sorriso.

- Espere e verá, mamãe - Bri disse, com irritante presunção.

— Viu? — ela disse, vinte minutos depois, quando me inclinei sobre a escrivaninha no gabinete da residência paroquial. Sobre a superfície surrada da escrivaninha do falecido reverendo Wakefield havia um maço de folhas amareladas, manchadas e escurecidas nas bordas. Estavam cuidadosamente protegidas em capas de plástico agora, mas obviamente haviam sido usadas sem maiores cuidados em alguma época; as bordas estavam corroídas, uma das folhas rudemente rasgada ao meio e todas as folhas apresentavam anotações rabiscadas nas margens e inseridas no texto. Era com toda a certeza o rascunho rudimentar de alguém - ou de alguma coisa.

— É o texto de um artigo — Roger disse-me, remexendo em um monte de grossos fólios empilhados no sofá. - Foi publicado numa espécie de periódico chamado Forrester’s, impresso por um tipógrafo chamado Alexander Malcolm, em Edimburgo, em 1765.

Engoli em seco, meu vestido parecendo de repente apertado demais sob os braços; 1765 era quase vinte anos após eu ter deixado Jamie.

Fitei as letras garatujadas, amarronzadas pelo tempo. Haviam sido escritas por alguém de caligrafia difícil, às vezes esparramada, às vezes apertada, com volteios exagerados no ”g” e no ”y”- Talvez a escrita de alguém canhoto, que escreveu penosamente com a mão direita.

— Veja, aqui está a versão publicada. — Roger trouxe o fólio aberto para a escrivaninha e colocou-o diante de mim, apontando. - Está vendo o ano? É 1765, e combina com este manuscrito quase exatamente; apenas algumas das anotações não foram incluídas.

— Sim — eu disse. — E o documento de transferência de propriedade...

- Está aqui. - Brianna tateou apressadamente na gaveta de cima e retirou uma folha muito amassada, também envolvida por um plástico protetor. A proteção aqui foi ainda mais a posteriori do que ocorrera com o manuscrito; o documento estava respingado de chuva, sujo e rasgado, muitas das palavras borradas a ponto de se tornarem ilegíveis. Mas as três assinaturas ao pé da página ainda podiam ser vistas com absoluta clareza. De próprio punho [By my hand], dizia a difícil caligrafia, aqui executada com tamanho cuidado que apenas a laçada exagerada do ”y” mostrava semelhança com o manuscrito negligentemente redigido, James Alexander Malcolm MacKenzie Fraser. E embaixo, as duas linhas onde as testemunhas assinaram. Com uma letra fina e elegante, Murtagh FitzGibbons Fraser, e abaixo, em minha própria caligrafia grande e arredondada, Claire Beauchamp Fraser.

Sentei-me bruscamente, colocando por instinto a mão sobre o documento, como se quisesse negar sua realidade.

- É ele, não é? - Roger disse serenamente. Sua tranqüilidade exterior era traída por suas mãos, ligeiramente trêmulas quando ele levantou a pilha de páginas manuscritas para colocá-las ao lado do documento. - Você o assinou. Prova indiscutível... se precisássemos de alguma - acrescentou, com um rápido olhar para Bri.

Ela sacudiu a cabeça, deixando os cabelos caírem para frente e esconderem seu rosto. Não precisavam de prova, nenhum dos dois. O desaparecimento de Geilie Duncan através das pedras há cinco meses era toda a prova que alguém poderia necessitar para a verdade de minha história.

Ainda assim, ver tudo comprovado no preto e no branco era um pouco perturbador. Retirei a mão e examinei outra vez o documento. Em seguida, comparei-o ao manuscrito.

- Não são do mesmo autor, mamãe? - Bri inclinava-se ansiosamente sobre as folhas, os cabelos roçando de leve minha mão. — O artigo não foi assinado... ou foi, com um pseudônimo. - Esboçou um sorriso. - O autor assinou ”C. Q. D.”. Pareceram iguais para nós, mas não somos especialistas em caligrafia e não queríamos entregar este material a um especialista antes de você os ver.

- Acho que são. - Sentia-me tensa, mas absolutamente certa ao mesmo tempo, com uma incrédula alegria avolumando-se dentro de mim.

- Sim, tenho quase certeza. Foi Jamie quem escreveu isto. - Como Queríamos Demonstrar, francamente! Senti uma vontade absurda de arrancar as páginas manuscritas de suas capas plásticas e segurá-las em minhas mãos, sentir a tinta e o papel que ele tocara; a prova definitiva de que ele sobrevivera.

- Tem mais. Prova intrínseca. - A voz de Roger denunciava seu orgulho. - Está vendo ali? É um artigo defendendo a revogação de um decreto de 1764, que estabelece impostos e restrições à exportação de bebidas das Highlands para a Inglaterra. Aqui está - seu dedo correu e parou repentinamente em uma frase —, ”pois como se sabe há muito tempo, “Liberdade e Uísque andam juntos””. Viu como ele colocou essa frase entre aspas? Ele a pegou de outro lugar.

— Ele a pegou de mim — eu disse em voz baixa. — Eu lhe disse isso... quando ele estava partindo para roubar o vinho do Porto do príncipe Carlos.

- Eu me lembrei. - Roger balançou a cabeça, os olhos brilhando de entusiasmo.

- Mas é uma citação de Burns - eu disse, franzindo a testa de repente.

- Talvez o autor tenha obtido a frase lá... Burns era vivo na época, não?

- Era - disse Bri cheia de orgulho, antecipando-se a Roger -, mas Robert Burns tinha seis anos de idade em 1765.

— E Jamie teria quarenta e quatro. — Inesperadamente, tudo pareceu real. Ele estava vivo... estivera vivo, eu me corrigi, tentando manter minhas emoções sob controle. Pousei os dedos sobre o manuscrito, tremendo.

- E se... - eu disse, e um nó na garganta me fez parar outra vez.

- E se o tempo corre em paralelo, como achamos que acontece... Roger parou, também, olhando para mim. Em seguida, seus olhos voltaram-se para Brianna.

Ela ficara terrivelmente pálida, mas tanto os lábios quanto os olhos permaneciam firmes, e seus dedos estavam quentes quando tocou minha mão.

- Então você pode voltar, mamãe - ela disse baixinho. - Você pode encontrá-lo.

Os cabides de plástico chocalhavam contra o tubo de metal da armação onde os vestidos estavam pendurados conforme eu examinava devagar a coleção à mostra.

- Posso ajudá-la, senhora? - A vendedora olhou-me como um prestativo cãozinho pequinês, os olhos delineados de azul mal visíveis através de franjas que quase chegavam à ponta do nariz.

— Você teria mais alguns desses vestidos em estilo antigo? — Gesticulei indicando a armação de vestidos diante de mim, apinhada de modelos seguindo a mania atual: corpetes rendados e amarrados com cadarços, vestidos de saia longa em algodão estampado e veludo de algodão.

A boca da vendedora estava untada com uma camada tão espessa de batom branco que eu esperava que fosse rachar quando ela sorrisse, mas não rachou.

— Ah, sim — ela disse. — Recebi uma nova remessa dos modelos de Jessica Gutenburg justamente hoje. Não são uma graça, esses vestidos à moda antiga? - Correu o dedo com admiração por uma manga de veludo marrom, depois girou em suas sapatilhas de balé e apontou para o centro da loja. - Estão bem ali. Onde está escrito, na placa.

A placa, presa em cima de uma armação circular, dizia TODO O ENCANTO DO SÉCULO XVIII, em grandes letras brancas. Logo abaixo, em letras floreadas, estava a assinatura, Jessica Gutenburg.

Refletindo sobre a improbabilidade de alguém realmente se chamar Jessica Gutenburg, avancei devagar pelo conteúdo da armação, parando em um grupo muito impressionante em veludo bege, com aplicações em cetim e uma profusão de rendas.

- Este fica lindo no corpo. - A pequenesa estava de volta, o nariz achatado farejando esperançosamente uma venda.

- Pode ser - eu disse -, mas não é muito prático. Ficaria imundo assim que eu saísse da loja. — Afastei o vestido branco com pesar, prossegumdo para os próximos no meu tamanho.

— Ah, eu adoro os vermelhos! — A jovem bateu palmas em êxtase diante do brilhante tecido vermelho-escuro.

— Eu também — murmurei —, mas não quero nada muito gritante. Não ficaria bem ser confundida com uma prostituta, não é? - A pequinesa lançou-me um olhar espantado através das franjas espessas, depois concluiu que eu estava brincando e deu uma risadinha de aprovação

— Agora, veja este — ela disse em tom decisivo, estendendo o braço além de mim e destacando outro vestido. - É perfeito E essa cor lhe cai muito bem.

De fato, era quase perfeito. Comprido até o chão, com mangas trêsquartos debruadas de renda. Um dourado escuro, marrom-amarelado, com reflexos âmbar e conhaque na seda pesada.

Tirei-o cuidadosamente da armação e segurei-o à minha frente, examinando-o. Um pouco enfeitado demais, mas deveria servir. O acabamento parecia bastante bom; nenhum fio solto ou costuras se abrindo. A renda do corpete, feita à máquina, era apenas aplicada, mas seria fácil reforçá-la.

— Quer experimentá-lo? As cabines ficam ali. — A pequinesa saltitava junto ao meu cotovelo, encorajada pelo meu interesse. Com uma rápida olhada na etiqueta do preço, compreendi por quê; ela devia ganhar por comissão. Respirei fundo diante do valor, que daria para pagar um mês de aluguel de um apartamento em Londres, mas depois dei de ombros. Afinal, para que eu precisava de dinheiro?

Ainda assim, eu hesitava.

— Não sei... — eu disse, em dúvida. — É lindo, mas...

- Ah, não se preocupe nem um pouco pensando que possa parecer muito jovial para você. — A pequinesa apressou-se a me tranqüilizar. — A senhora não parece ter nem mais um dia do que vinte e cinco! Bem... talvez trinta — concluiu sem muita convicção, após um rápido olhar ao meu rosto.

- Obrigada - eu disse secamente. - Mas eu não estava preocupada com isso. Imagino que não tenha nenhum sem zíper, não é?

- Zíper? - Seu rosto pequeno e redondo ficou apalermado sob a maquiagem. - Ha... não. Acho que não temos.

— Bem, nada com que se preocupar — eu disse, colocando o vestido sobre o braço e dirigindo-me à cabine de provas. - Se vou fazer a travessia com ele, zíperes serão o de menos.

 

Dois guinéus de ouro, seis soberanos, vinte e três xelins, dezoito florins, nove moedas de um penny, dez de meio penny e., doze de um quarto de penny. — Roger deixou cair a última moeda na pilha tilintante, depois enfiou a mão no bolso da camisa, o rosto delgado absorto enquanto procurava. — Ah, aqui está. — Retirou do bolso um pequeno saco de plástico e cuidadosamente despejou um punhado de pequenas moedas de cobre numa pilha ao lado das outras moedas.

- Alguns doits - ele explicou. - A moeda escocesa de menor valor da época. Consegui o máximo que pude, porque provavelmente é o que vai usar na maior parte do tempo. As moedas de valor alto não eram usadas no dia-a-dia, a menos que você fosse comprar um cavalo, por exemplo.

- Eu sei. - Peguei dois soberanos e revirei-os na mão, fazendo com que retinissem. Eram pesados, moedas de ouro, com aproximadamente dois centímetros e meio de diâmetro. Roger e Bri precisaram de quatro dias em Londres, indo a vários colecionadores de moedas raras, para reunir a pequena fortuna que brilhava à minha frente, à luz do abajur.

— Sabe, é engraçado; estas moedas valem muito mais agora do que seu valor nominal — eu disse, pegando um guinéu de ouro —, mas em termos do que podem comprar, valiam tanto na época quanto valem agora. Esta aqui é a renda de seis meses de trabalho de um pequeno fazendeiro.

— Eu estava me esquecendo — Roger disse —, que você já sabe tudo isso; quanto valiam as coisas e como eram vendidas.

- É fácil esquecer - eu disse, ainda fitando o dinheiro. Pelo canto dos olhos, vi Bri aproximar-se de repente de Roger e ele estender a mão automaticamente para ela.

Respirei fundo e ergui os olhos dos montículos de ouro e prata.

- Bem, tudo certo. Vamos sair para jantar?

O jantar - em um dos pubs da River Street - transcorria em silêncio a maior parte do tempo. Claire e Brianna sentavam-se lado a lado no banco, com Roger em frente a elas. Mal se olhavam enquanto comiam, mas Roger podia ver os pequenos toques a todo instante, o roçar freqüente do ombro e do quadril, o ligeiro contato dos dedos que ocorriam.

O que ele teria feito, perguntou-se E se a escolha fosse dele, ou de seu pai?

A separação ocorria a todas as famílias, mas em geral era a morte que intervinha, para cortar os laços entre pais e filhos. Aqui, era o elemento da escolha que tornava tudo tão difícil - embora nunca fosse fácil, pensou, erguendo uma garfada de torta quente

Quando se levantaram para ir embora após o jantar, ele colocou a mão no braço de Claire

- Não é por nada - ele disse -, mas poderia tentar uma coisa para mim?

— Espero que sim — ela disse, sorrindo — O que e? Ele fez um sinal com a cabeça, indicando a porta

— Feche os olhos e dê um passo para fora da porta. Quando estiver do lado de fora, abra-os. Depois, volte e me conte qual foi a primeira coisa que você viu.

Claire torceu a boca, com uma expressão divertida.

- Está bem. Espero que a primeira coisa que eu veja não seja um policial ou você vai ter que pagar fiança e me tirar da cadeia por estar bêbada e desmiolada.

- Desde que não seja um pato.

Claire lançou-lhe um olhar esquisito, mas obedientemente virou-se para a porta do pub e fechou os olhos. Brianna observou sua mãe desaparecer pela porta, a mão estendida para o painel de lambris da entrada a fim de se orientar. Virou-se para Roger, as sobrancelhas cor de cobre erguidas.

— O que está pretendendo, Roger? Pato?

- Nada - ele disse, os olhos ainda fixos na entrada vazia - É apenas um velho costume. O Samhain, ou Halloween, Dia das Bruxas, é um dos festivais em que era costume tentar adivinhar o futuro E uma das maneiras de prever o futuro era caminhar até os fundos da casa e, em seguida, sair com os olhos fechados. A primeira coisa que você vê ao abri-los é um presságio para o futuro próximo.

— Patos são mau agouro?

- Depende do que estejam fazendo - ele disse distraidamente, ainda observando a entrada — Se estiverem com a cabeça sob a asa, significa morte. Por que ela está demorando tanto?

— É melhor irmos ver — Brianna disse, já ficando nervosa — Não creio que haja muitos patos dormindo no centro de Inverness, mas com o rio tão perto.

Assim que alcançaram a porta, entretanto, os vitrais da parte central toldaram-se e a porta abriu-se, revelando Claire, ligeiramente afogueada.

— Vocês nunca vão acreditar em qual foi a primeira coisa que eu vi — ela disse, rindo ao vê-los.

- Não foi um pato com a cabeça embaixo da asa, foi? - Brianna perguntou ansiosamente.

- Não - sua mãe respondeu, lançando-lhe um olhar intrigado. - Um policial. Virei para a esquerda e bati de frente com ele.

- Ele estava vindo na sua direção, então? - Roger sentiu-se inexplicavelmente aliviado.

- Bem, estava, até eu dar um encontrão nele - ela disse. - Então ficamos dançando um pouco pelo calçamento, agarrados um ao outro. - Ela riu, corada e bonita, com seus olhos cor de conhaque cintilando nas luzes cor de âmbar do pub. - Por quê?

- É sinal de boa sorte - Roger disse, sorrindo. - Ver um homem vindo em sua direção no dia de Samhain significa que encontrará o que procura.

- É mesmo? - Seus olhos pousaram sobre ele, inquiridores, depois seu rosto se iluminou com um sorriso repentino. - Que maravilha! Vamos para casa comemorar, certo?

O tenso constrangimento que se abatera sobre eles durante o jantar pareceu ter desaparecido subitamente, substituído por uma espécie de louco entusiasmo. Riram e brincaram na viagem de volta à mansão paroquial, onde fizeram brindes ao passado e ao futuro - scotch Loch Minneaig para Roger e Claire, Coca-Cola para Brianna —, e conversaram animadamente sobre os planos para o dia seguinte. Brianna insistira em esculpir uma abóbora com um rosto humano e fazer uma lanterna de Halloween, que agora repousava sobre o aparador, rindo benevolentemente com os preparativos.

- Você já tem o dinheiro - Roger disse, pela décima vez.

— E seu manto — Brianna acrescentou.

- Sim, sim, sim - Claire disse com impaciência. - Tudo que eu preciso... ou tudo que posso levar, ao menos - corrigiu-se. Parou, depois impulsivamente estendeu os braços e segurou Bri e Roger pela mão. — Obrigada a vocês dois — ela disse, apertando suas mãos. Seus olhos estavam úmidos e sua voz repentinamente rouca. - Obrigada. Não sei dizer o que sinto. Não consigo. Mas... ah, meus queridos, vou sentir falta de vocês!

Logo ela e Bri estavam nos braços uma da outra, a cabeça de Claire enfiada no pescoço da filha, as duas fortemente abraçadas, como se a simples força pudesse de alguma forma expressar a profundidade do sentimento entre ambas.

Então separaram-se, os olhos molhados, e Claire colocou a mão na face de sua filha.

— É melhor eu subir agora — murmurou. — Ainda há muito que fazer. Vejo-a de manhã, querida. - Ergueu-se na ponta dos pés para plantar um beijo no nariz de sua filha, depois se virou e deixou o aposento apressadamente.

Após a saída de sua mãe, Brianna sentou-se outra vez com seu copo de refrigerante e deu um longo suspiro. Não falou, ficou apenas sentada, fitando o fogo, virando o copo lentamente entre as mãos.

Roger tratou de ocupar-se, preparando o aposento para a noite, fechando janelas, arrumando a escrivaninha, guardando os livros de referência que usara para ajudar Claire a se preparar para a travessia. Parou junto à lanterna de abóbora, mas ela parecia tão alegre, com a luz da vela filtrando-se pelos olhos puxados e pela boca recortada, que ele não conseguiu apagá-la.

— Não creio que ela possa incendiar alguma coisa — observou. — Devemos deixá-la acesa?

Não houve resposta. Quando olhou para Brianna, viu-a sentada imóvel como uma pedra, os olhos fixos na lareira. Ela não o ouvira. Aproximou-se e tomou sua mão.

- Talvez ela possa voltar - ele disse delicadamente. - Não sabemos. Brianna sacudiu a cabeça devagar, sem tirar os olhos das chamas.

— Não creio — disse brandamente. — Ela lhe contou como era. Ela pode até não conseguir atravessar. - Os dedos longos tamborilavam nervosamente na coxa vestida de jeans.

Roger olhou para a porta de relance, para se certificar de que Claire estava realmente lá em cima, em seguida sentou-se ao lado de Brianna no sofá.

- O lugar dela é junto a ele, Bri - ele disse. - Você não vê? Quando ela fala dele?

- Eu vejo. Eu sei que ela precisa dele. - O polpudo lábio inferior tremeu ligeiramente. - Mas... eu preciso dela. - As mãos de Brianna agarraram-se subitamente aos joelhos e ela inclinou-se para frente, como se tentasse conter uma dor repentina.

Roger acariciou seus cabelos, admirando-se com a maciez das mechas brilhantes que deslizavam pelos seus dedos. Queria tomá-la nos braços, tanto para senti-la como para oferecer-lhe consolo, mas ela permanecia rígida e distante.

- Você é adulta agora, Bri - ele disse suavemente. - Você vive por conta própria, sozinha, não é? Você pode amá-la, mas não precisa mais dela... não da maneira como precisava quando era pequena. Ela não tem direito à própria felicidade?

- Sim. Mas... Roger, você não compreende! - exclamou num repente. Apertou os lábios com força e engoliu em seco, depois se virou para ele, os olhos escuros de angústia.

- Ela é tudo que me resta, Roger! A única pessoa que realmente me conhece. Ela e papai... Frank - corrigiu-se - eram as únicas pessoas que me conheciam desde o começo, os que me viram aprender a andar e tiveram orgulho de mim sempre que me saía bem na escola e que... - Desatou a chorar, as lágrimas abundantes deixando rastos brilhantes à luz do fogo. Isto soa muito tolo - ela disse com repentina violência. - Realmente muito tolo! Mas é... - procurava as palavras, impotente, então levantou-se, incapaz de permanecer quieta.

— É que... há tanta coisa que não sei! — ela continuou, andando de um lado para outro com passos rápidos e nervosos. — Acha que me lembro de como eu era, aprendendo a andar ou qual foi a primeira palavra que eu disse? Não, mas mamãe lembra! E isso é tão idiota, porque que diferença isso faz, não faz absolutamente nenhuma diferença, mas é importante, é importante porque ela achava que era e... oh, Roger, se ela for embora, não restará ninguém no mundo que se importe com quem eu sou ou que me ache especial não por algum motivo específico, mas simplesmente porque eu sou eu! Ela é a única pessoa no mundo que realmente, realmente se importa por eu ter nascido, e se ela for embora... - Permaneceu imóvel no tapete da lareira, os punhos cerrados junto ao corpo e a boca contorcida num esforço para se controlar, o rosto banhado em lágrimas. Então seus ombros tombaram e a tensão deixou sua figura alta.

— E isso é de fato idiota e egoísta — ela disse, em um tom serenamente sensato. - E você não compreende e deve me achar uma pessoa horrível.

— Não — Roger disse a meia-voz. — Talvez não. — Levantou-se e aproximou-se por trás dela, envolveu-a pela cintura, fazendo com que ela se apoiasse contra ele. No começo, ela resistiu, rígida em seus braços, mas depois cedeu à necessidade de conforto físico e relaxou, o queixo dele apoiado em seu ombro, a cabeça inclinada para tocar a sua própria cabeça. — Eu nunca percebi — ele disse. — Não até agora. Lembra-se de todas aquelas caixas na garagem?

- Quais? - ela disse, fungando com uma tentativa de rir. - Há centenas.

- As que têm ”Roger” escrito. - Apertou-a de leve contra si e levantou os braços, cruzando-os sobre o peito da jovem, segurando-a contra seu corpo de forma aconchegante. - Estão cheias de objetos e roupas velhas dos meus pais - ele disse. - Fotos, cartas, roupas de bebê, livros e quinquilharias. O reverendo empacotou tudo quando me trouxe para viver com ele. Tratou-os da mesma forma que seus mais preciosos documentos, caixas duplas, proteção contra traças e tudo o mais.

Ele balançou-se devagar para trás e para a frente, oscilando de um lado para o outro, carregando-a com ele enquanto observava o fogo por cima de seu ombro.

— Uma vez eu perguntei a ele por que se dava ao trabalho de guardálos, eu não queria nada daquilo, não me importava. Mas ele disse que guardaríamos mesmo assim; era a minha história, ele disse, e todo mundo precisa de uma história

Brianna suspirou e seu corpo pareceu relaxar ainda mais, unindo-se a ele em seu balanço rítmico, quase inconsciente

- Alguma vez você viu o que havia nas caixas? Ele sacudiu a cabeça

- Não importa o que tem lá dentro - ele disse - Só o fato de que estejam lá.

Soltou-a então e deu um passo para trás de modo que ela pudesse virar-se para ele. Seu rosto estava manchado e seu nariz longo e elegante um pouco inchado

- Você está errada, sabe - ele disse ternamente, estendendo-lhe a mão.

- Não é só sua mãe que se importa com você.

Brianna já se retirara para a cama há muito tempo, mas Roger continuou sentado no gabinete, observando as chamas extinguirem-se na lareira. A noite de Halloween sempre lhe parecera nervosa, viva e repleta de espíritos despertos. Esta noite a sensação era ainda mais intensa, sabendo o que iria acontecer ao amanhecer. A lanterna de abóbora sobre a escrivaninha ria na expectativa, enchendo o aposento com o aroma caseiro de tortas assadas.

O ruído de passos na escada tirou-o de seus pensamentos. Achou que poderia ser Brianna, incapaz de dormir, mas a visitante era Claire.

— Pensei que você ainda devia estar acordado — ela disse. Vestia um robe, uma pálida claridade de cetim branco contra a escuridão do corredor.

Ele sorriu e estendeu a mão, convidando-a a entrar.

- Não. Nunca consegui dormir nas noites de Halloween. Não depois de todas as histórias que meu pai me contava. Eu sempre achava que podia ouvir fantasmas conversando do lado de fora da minha janela.

Ela sorriu, surgindo à luz da lareira.

- E o que eles diziam?

- ”Está vendo esta grande cabeça grisalha, com mandíbulas descarnadas?” - Roger citou - Conhece a história? O pequeno alfaiate que passou a noite na igreja mal-assombrada e deparou-se com o fantasma faminto?

— Conheço. Acho que se eu tivesse ouvido isso, teria passado o resto da noite escondida debaixo das cobertas.

— Ah, geralmente era o que eu fazia — Roger assegurou-lhe — Embora, certa vez, quando tinha uns sete anos, dominei o nervosismo, fiquei em pé na cama e fiz xixi no peitoril da janela. O reverendo me dissera que urinar nos batentes das portas impedia um fantasma de entrar na casa

Claire riu encantada, a luz do fogo dançando em seus olhos.

- E funcionou?

- Bem, teria funcionado melhor se a janela estivesse aberta - Roger disse —, mas os fantasmas não entraram, não.

Ambos riram e, então, um dos pequenos silêncios constrangedores que haviam pontuado a noite recaiu entre eles, a repentina percepção de algo imenso e assustador escancarando-se sob a corda bamba da conversa. Claire sentou-se ao lado de Roger, observando o fogo, as mãos remexendo-se nervosamente entre as dobras de seu robe. A luz fazia suas alianças cintilarem, prata e ouro, em centelhas de fogo.

— Eu tomarei conta dela, você sabe — Roger disse serenamente, por fim. — Você sabe disso, não sabe?

Claire assentiu, sem olhar para ele.

- Eu sei - disse baixinho. Ele podia ver as lágrimas, trêmulas nas pontas de suas pestanas, brilhando à luz do fogo. Ela remexeu no bolso do robe e retirou um longo envelope branco

- Vai achar que sou uma terrível covarde - ela disse. - E eu sou. Mas eu., eu honestamente não acho que consiga fazer isso... quero dizer, me despedir de Bri. - Parou para controlar a voz e em seguida entregou-lhe o envelope.

- Expliquei tudo aqui para ela... Tudo que eu pude. Você entregaria... Roger pegou o envelope que estava quente por ter ficado tão perto do corpo dela. Por algum sentimento indefinido de que o envelope não poderia esfriar antes de ser entregue à filha de Claire, ele o guardou no bolso do paletó, sentindo o papel estalar ao ser dobrado.

- Sim - ele disse, ouvindo sua própria voz se intensificar. - Então você irá..

— Cedo — ela disse, respirando fundo.

Antes do amanhecer. Já tratei um carro para me apanhar. — Contorceu as mãos no colo. — Se eu... — Mordeu o lábio, depois olhou para Roger com ar de súplica. — Eu não sei — ela disse. — Não sei se vou conseguir. Estou com muito medo. Com medo de ir Com medo de não ir. Apenas... com medo.

- Eu também estaria. - Ele estendeu a mão, e ela a apertou. Ele segurou-a por um longo tempo, sentindo as batidas de seu coração em seu pulso, leves e rápidas contra seus dedos

Após um longo tempo, ela apertou sua mão de leve e soltou-a.

- Obrigada, Roger - ela disse. - Por tudo. - Inclinou-se para a frente e beijou-o de leve nos lábios. Em seguida, levantou-se e saiu, um fantasma branco na escuridão do corredor, levada pelo vento do Dia das Bruxas.

Roger continuou sentado, sozinho, por mais algum tempo, sentindo o toque da mão de Claire ainda quente em sua pele. A lanterna estava quase se apagando. O cheiro de cera derretida erguia-se forte no ar agitado e os deuses pagãos olharam pela última vez através das janelas de vela gotejante.

 

O ar do amanhecer era frio e nebuloso e eu fiquei contente por estar usando meu manto. Já fazia vinte anos desde a última vez em que usara um manto, mas com o tipo de roupas que as pessoas vestiam atualmente, o alfaiate de Inverness que o fizera para mim não achara nem um pouco estranha a encomenda de um manto de lã com capuz.

Eu mantinha os olhos no caminho. O topo da colina estivera invisível, envolto em neblina, quando o carro deixou-me na estrada lá embaixo

- Aqui? - o motorista dissera, com ar de dúvida, espreitando pela janela para o campo deserto. - A senhora tem certeza?

— Tenho, sim — eu disse, meio engasgada de terror. — É este o lugar.

— É mesmo? — Parecia duvidar, apesar da nota de valor alto que coloquei em sua mão. - Quer que eu a espere, senhora? Ou que volte mais tarde para buscá-la?

Fiquei dolorosamente tentada a dizer que sim. Afinal, e se eu perdesse a coragem? No momento, esse esquivo sentimento parecia notavelmente frágil.

— Não — respondi, engolindo em seco. — Não, não será necessário. — Se não conseguisse levar a intenção até o fim, teria apenas que caminhar de volta a Inverness, só isso. Ou talvez Roger e Brianna viessem; achei que isso seria pior, ser desonrosamente resgatada. Ou seria um alívio?

Os cascalhos escorregavam sob meus pés e um torrão de terra precipitou-se num chuveiro, deslocado pela minha passagem. Eu não podia estar fazendo aquilo, pensei. O dinheiro no meu bolso reforçado balançava contra minha coxa, a pesada certeza do ouro e da prata um lembrete de realidade. Eu estava fazendo aquilo.

Eu não podia. Pensamentos de Bri, como eu a vira ontem tarde da noite, tranqüilamente dormindo em sua cama, assaltavam-me. As gavinhas das trepadeiras do horror relembrado alcançavam-me, vindas do alto da colina, quando comecei a sentir a proximidade das pedras. Gritaria, caos, a sensação de estar sendo dilacerada em mil pedaços. Eu não podia.

Eu não podia, mas continuava subindo, as palmas das mãos suando, meus pés movendo-se como se já não estivessem sob meu controle.

Já amanhecera completamente quando cheguei ao topo da colina. A neblina permanecia embaixo e as pedras destacavam-se nítidas e escuras contra um céu cristalino. A visão das pedras deixou-me com as mãos suadas de apreensão, mas segui em frente, e entrei no círculo.

Eles estavam parados no gramado, em frente à pedra fendida, de frente um para o outro. Brianna ouviu meus passos e virou-se para mim.

Fitei-a, muda de surpresa. Ela usava um vestido de Jessica Gutenburg, muito parecido com o que eu estava usando, exceto que o dela era de um verde-limão vivo, enfeitado com contas de plástico bordadas no peito.

- Esta é uma cor absolutamente horrível para você - eu disse.

- Era o único que tinham no meu tamanho - ela respondeu calmamente.

— O que, em nome de Deus, vocês estão fazendo aqui? — perguntei, recuperando algum resquício de coerência.

— Viemos dizer-lhe adeus — ela disse, e o esboço de um sorriso brincou em seus lábios. Olhei para Roger, que deu de ombros com um sorriso meio enviesado para mim.

- Ah, sim. Bem - eu disse. A pedra estava atrás de Brianna, o dobro do tamanho de um homem. Eu podia olhar através da fenda de cerca de trinta centímetros e ver o fraco sol da manhã brilhando na grama do lado de fora do círculo.

- Ou você vai, ou eu vou - ela disse.

- Você! Ficou maluca?

— Não. — Ela olhou para a pedra fendida e engoliu com dificuldade. Devia ser o vestido verde-limão que fazia seu rosto parecer branco como giz. — Eu posso fazer isso... atravessar, quero dizer. Eu sei que posso. Quando Geilie Duncan partiu através das pedras, eu as ouvi. Roger também as ouviu. — Ela olhou para ele como se buscasse apoio, depois fixou o olhar firmemente em mim. - Não sei se eu poderia achar Jamie Fraser ou não, talvez só você possa. Mas, se você não tentar, então eu tentarei.

Abri a boca, mas não consegui encontrar nada para dizer.

— Não vê, mamãe? Ele tem que saber... ele tem que saber que conseguiu, ele conseguiu o que queria para nós. - Seus lábios tremeram e ela apertou-os por um instante. — Nós devemos isso a ele, mamãe — ela disse meigamente. - Alguém tem que encontrá-lo e contar-lhe. - Sua mão tocou meu rosto, por um momento. - Conte-lhe que eu nasci.

- Ah, Bri - eu disse, a voz tão embargada que eu mal conseguia falar.

- Ah, Bri!

Ela segurava minhas mãos com força entre as suas, apertando-as.

- Ele deu você para mim - ela disse, tão baixo que eu mal conseguia ouvi-la. - Agora eu tenho que devolvê-la a ele, mamãe.

Os olhos tão iguais aos de Jamie fitaram-me, rasos de lágrimas.

- Se o encontrar - ela murmurou -, quando encontrar meu pai... dêlhe isto. - Ela inclinou-se e beijou-me, impetuosa e delicadamente, depois se empertigou e virou-me na direção da pedra.

- Vá, mamãe - ela disse, ofegante. - Eu a amo. Vá!

Pelo canto do olho, vi Roger aproximar-se de Bri. Dei um passo, depois outro. Ouvi um som, um ronco distante. Dei o último passo... e o mundo desapareceu.

 

Meu primeiro pensamento coerente foi: ”Está chovendo. Aqui deve ser a Escócia.” Meu segundo pensamento foi que essa observação não significava um grande avanço em relação às imagens caóticas que saltavam dentro da minha cabeça, chocando-se umas com as outras e detonando pequenas explosões sinápticas de irrelevância.

Abri um olho, com alguma dificuldade. A pálpebra estava pregada e meu rosto inteiro parecia inchado e frio, como a de um cadáver submerso. Estremeci ligeiramente diante da idéia, o leve movimento fazendo-me perceber todos os panos encharcados ao meu redor.

Sem dúvida, estava chovendo - um tamborilar suave, constante, que levantava uma névoa de gotículas acima da charneca verde. Sentei-me direito, sentindo-me como um hipopótamo emergindo de um pântano, e prontamente caí para trás.

Pestanejei e fechei os olhos contra o aguaceiro. Uma leve noção de quem eu era - e de onde estava - começava a voltar à minha mente. Bri. Seu rosto emergiu repentinamente em minha memória, com um abalo tão forte que me fez soltar uma arfada, como se tivesse recebido um soco no estômago. Imagens irregulares de perda e da viagem de separação me acossavam, um débil eco do caos na passagem de pedra.

Jamie. Era isso; a âncora à qual eu me agarrara, meu único elo com a sanidade. Respirei fundo e devagar, as mãos entrelaçadas sobre o coração que martelava contra o peito, tentando evocar o rosto de Jamie. Por um instante, achei que o perdera, depois ele surgiu, claro e destemido em minha visão mental.

Novamente, esforcei-me para sentar ereta, e desta vez consegui, apoiada nas mãos estendidas. Sim, sem dúvida era a Escócia. Não poderia ser nenhum outro lugar, é claro, mas era também a Escócia do passado. Ao menos, eu esperava que fosse o passado. Não era a Escócia que eu deixara, de qualquer modo. As árvores e arbustos cresciam em padrões diferentes; havia uma área repleta de bordos novos logo abaixo que não estava ali quando eu subi a colina - quando? Esta manhã? Há dois dias?

Eu não fazia a menor idéia de quanto tempo se passara desde que eu entrara na fenda do círculo de pedras, ou quanto tempo eu permanecera ali deitada, inconsciente, na encosta da colina, abaixo do círculo. Bastante tempo, a julgar pelas minhas roupas encharcadas; estava ensopada até os ossos e filetes de água, gelados, escorriam pelas laterais do meu corpo, sob a roupa de baixo.

Uma das faces entorpecidas começou a formigar; tocando-a com a mão, pude sentir um padrão de depressões e protuberâncias gravadas na carne. Olhei para baixo e vi uma camada de frutinhas de sorveira caídas, brilhando, vermelhas e pretas, na grama. Muito apropriado, pensei, achando vagamente engraçado. Eu caíra sob uma sorveira - a proteção das Highlands contra bruxaria e feitiço.

Agarrei o tronco liso da sorveira e custosamente consegui ficar de pé. Ainda me apoiando na árvore, olhei para nordeste. A chuva encobrira o horizonte numa invisibilidade cinza, mas eu sabia que Inverness ficava naquela direção. Não mais do que a uma hora de carro, por estradas modernas.

A estrada existia; eu podia ver o esboço de uma trilha rudimentar que corria ao longo do sopé da colina, uma linha escura, prateada, no brilhante alagado verde das plantas da charneca. Entretanto uns setenta quilômetros a pé era muito diferente da viagem de carro que me trouxera até ali.

Em pé, passei a me sentir um pouco melhor. A fraqueza nos braços e pernas começava a desaparecer, junto com a sensação de caos e dilaceramento em minha mente. Fora tão assustador quanto eu previra, essa viagem no tempo; talvez pior. Eu podia sentir a terrível presença das pedras acima de mim e estremeci, minha pele arrepiando-se de frio.

Entretanto eu estava viva. Viva e com uma leve sensação de certeza, como um minúsculo sol brilhando sob minhas costelas. Ele está aqui. Eu sabia disso agora, embora não o soubesse quando me atirei pela fenda entre as pedras; fora um salto no escuro. Mas eu lançara meu pensamento em Jamie como uma corda de salvamento arremessada numa torrente vertiginosa - e a corda se esticara e me puxara para terra firme.

Eu estava molhada, com frio, e sentindo-me surrada, como se tivesse sido jogada de um lado para outro, sobre ondas que se arrebentavam numa praia rochosa. Mas eu estava ali. E em algum lugar deste estranho território do passado estava o homem que eu viera encontrar. As lembranças de tristeza e terror se desvaneciam, conforme eu compreendia que minha sorte estava lançada. Eu não podia voltar; uma viagem de volta com toda a certeza seria fatal. Enquanto percebia que eu provavelmente estava ali para ficar, todas as hesitações e medos foram substituídos por uma estranha calma, quase exultante. Eu não podia voltar. Não havia nada a fazer senão seguir em frente - para encontrá-lo.

Amaldiçoando meu descuido em não ter pensado em pedir ao alfaiate para fazer meu manto com uma camada à prova d’água entre o tecido e o forro, puxei a vestimenta encharcada para junto do corpo. Mesmo molhada, a lã possuía algum calor. Se começasse a me movimentar, iria me aquecer. Uma rápida apalpadela assegurou-me que meu fardo de sanduíches fizera a viagem comigo. Isso era bom; a idéia de caminhar setenta quilômetros com o estômago vazio era assustadora.

Com sorte, não seria necessário. Eu poderia encontrar um vilarejo ou uma casa que tivesse um cavalo que eu pudesse comprar. Caso não encontrasse, eu estava preparada. Meu plano era ir para Inverness — por quaisquer meios que se apresentassem - e lá pegar uma carruagem para Edimburgo.

Não havia nenhuma pista de onde Jamie se encontrava no momento. Podia estar em Edimburgo, onde seu artigo fora publicado, mas podia facilmente estar em qualquer outro lugar. Se não o encontrasse lá, eu poderia ir a Lallybroch, sua casa. Certamente, sua família tinha conhecimento de seu paradeiro - se algum deles estivesse vivo. A repentina idéia me deu um calafrio e eu estremeci.

Pensei numa pequena livraria pela qual eu passava toda manhã no meu caminho do estacionamento ao hospital. Estavam com uma liquidação de pôsteres; eu vira a exposição de vários modelos psicodélicos quando deixei o consultório de Joe pela última vez.

”Hoje é o primeiro dia do resto de sua vida”, dizia um dos pôsteres, acima de uma ilustração de um pintinho com cara de bobo, enfiando a cabeça para fora de uma casca de ovo. Na outra vitrine, outro pôster exibia uma lagarta galgando o caule de uma flor. Acima da flor esvoaçava uma borboleta brilhantemente colorida e abaixo se via o lema ”Uma jornada de mil milhas começa com um único passo”.

O mais irritante dos clichês, concluí, é como eles são verdadeiros. Soltei a sorveira e comecei a descer a colina em direção ao meu futuro.

Foi uma viagem longa e acidentada de Inverness a Edimburgo, apertada numa diligência grande com duas outras senhoras, o filho pequeno e chorão de uma das mulheres, e quatro cavalheiros de diferentes tamanhos e índoles.

O sr. Graham, um cavalheiro pequeno e animado, já avançado em anos, que se sentava ao meu lado, usava uma bolsinha de cânfora e assafétida - uma goma-resina vegetal de cheiro desagradável - em volta do pescoço, para o desconforto lacrimejante do restante dos passageiros.

- Essencial para dispersar os humores malignos da gripe - explicoume, sacudindo a bolsinha delicadamente sob o meu nariz como um incensório.

- Eu uso isto todos os dias durante os meses de outono e inverno e não fiquei nem um dia doente em quase trinta anos!

— Surpreendente! — eu disse educadamente, tentando prender a respiração. Eu não duvidava; os vapores provavelmente mantinham todos a tal distância que os germes não o alcançavam.

Os efeitos sobre o menino não pareciam tão benéficos. Após algumas observações indiscretas, em voz alta, sobre o mau cheiro na carruagem, o pequeno Georgie fora abafado no colo de sua mãe, de onde agora espreitava, parecendo um pouco verde. Eu o vigiava atentamente, bem como ao urinol sob o banco em frente, caso uma ação rápida envolvendo a conjunção dos dois fosse necessária.

Eu imaginei que o urinol fosse para uso em condições inclementes do tempo ou outra emergência, já que normalmente o recato das senhoras exigia paradas a cada hora aproximadamente, quando então os passageiros espalhavam-se pela vegetação à beira da estrada como um bando de codornas. Até mesmo aqueles que não precisavam aliviar a bexiga ou os intestinos buscavam algum alívio do odor da sacolinha de assa-fétida do sr. Graham.

Após uma ou duas mudanças de lugar, o sr. Graham descobriu que o seu lugar ao meu lado fora tomado pelo sr. Wallace, um advogado jovem e gordo, que retornava a Edimburgo depois de ter cuidado da partilha dos bens de um parente idoso em Inverness, conforme me explicou.

Eu não achava os detalhes de seu exercício da advocacia tão fascinantes quanto ele achava, mas naquelas circunstâncias, a evidente atração que sentia por mim era ligeiramente reconfortante e passei várias horas jogando xadrez com ele sobre um pequeno tabuleiro que ele tirou de um bolso e colocou sobre o joelho.

Minha atenção era distraída tanto dos desconfortos da viagem quanto das complexidades do xadrez pela expectativa do que eu poderia encontrar em Edimburgo. A. Malcolm. O nome repetia-se em minha mente como um hino de esperança. A. Malcolm. Tinha que ser Jamie, simplesmente tinha que ser! James Alexander Malcolm MacKenzie Fraser.

- Considerando o modo como os rebeldes das Highlands eram tratados após Culloden, seria bastante razoável que ele usasse um nome falso num lugar como Edimburgo - Roger Wakenfield explicara-me. Particularmente ele, afinal era um traidor condenado. Também transformou isso numa espécie de hábito, ao que parece - acrescentou em tom de crítica, examinando os garranchos do manuscrito do artigo contra o novo imposto. — Para a época, isso é quase uma subversão da ordem.

- Sim, parece-se com Jamie - eu dissera secamente, mas meu coração dera um salto ao ver aquela caligrafia distintamente garatujada, com seus sentimentos destemidamente expressos em palavras. Meu Jamie. Toquei o pequeno retângulo rígido no bolso de minha saia, imaginando quanto tempo faltaria para chegarmos a Edimburgo.

O tempo mantinha-se estranhamente bom para a estação, com pouco mais de uma garoa para retardar nossa passagem e nós completamos a viagem em menos de dois dias, parando quatro vezes para trocar os cavalos e nos revigorarmos nas estalagens dos postos de parada.

A diligência desembocou num pátio nos fundos da taberna Boyds Whitehorse, perto do final da Royal Mile em Edimburgo. Os passageiros emergiram na úmida luz do sol como crisálidas recém-saídas do casulo, com as asas amarrotadas e movimentos desengonçados, desacostumadas à mobilidade. Depois da semi-escuridão da carruagem, até a luz cinza e nebulosa de Edimburgo parecia ofuscante.

Meus pés formigavam por estar sentada há tanto tempo, mas corri ainda assim, esperando fugir do pátio enquanto meus ex-companheiros de viagem estavam ocupados resgatando seus pertences. Não tive tanta sorte; o sr. Wallace alcançou-me perto da rua.

— Sra. Fraser! — ele disse. — Poderia me dar o prazer de acompanhá-la ao seu destino? Certamente vai precisar de ajuda para retirar sua bagagem.

- Olhou por cima do ombro em direção à diligência, onde os cavalariços arremessavam as malas e arcas aparentemente a esmo no meio da multidão, acompanhados por gritos e resmungos incoerentes.

- Ha... - eu disse. - Obrigada, mas eu... ha, vou deixar a bagagem a cargo do estalajadeiro. Meu... meu... — Eu buscava as palavras freneticamente. - O criado do meu marido virá buscá-la mais tarde.

O rosto rechonchudo abateu-se um pouco diante da palavra ”marido”, mas ele recobrou-se galantemente, tomando minha mão e inclinando-se sobre ela.

- Compreendo perfeitamente. Posso expressar meu profundo apreço pelo prazer de sua companhia em nossa viagem, então, sra. Fraser? E talvez possamos nos encontrar novamente. — Ele aprumou-se, inspecionando a multidão que passava por nós em redemoinho. - Seu marido vem buscála? Ficaria encantado em conhecê-lo.

Embora o interesse do sr. Wallace em mim tivesse sido lisonjeiro, estava rápido se transformando num aborrecimento.

- Não, irei ao encontro dele mais tarde - eu disse. - Foi um prazer conhecê-lo, sr. Wallace; espero revê-lo um dia. - Apertei a mão do sr. Wallace entusiasticamente, o que o desconcertou o suficiente para que eu escapulisse pelo amontoado de passageiros, cavalariços e vendedores de alimentos.

Não ousei parar perto do pátio de diligências com medo que ele fosse ao meu encalço. Virei-me e comecei a subir apressadamente a Royal Mile, o mais rápido que minhas volumosas saias me permitiam, abrindo caminho aos empurrões e cotoveladas pelo meio da multidão. Tive a sorte de chegar num dia de feira e logo fiquei longe da vista do pátio de diligências, perdendo-me entre barracas que vendiam os tradicionais broches da sorte, os luckenbooths tão populares na Escócia do século XVIII, e vendedores de ostras alinhados ao longo da rua.

Ofegante como um batedor de carteiras em fuga, parei para respirar no meio da ladeira. Havia uma fonte pública ali e sentei-me na borda para recuperar o fôlego.

Eu estava ali. Realmente ali. Edimburgo estendia-se pela encosta da colina atrás de mim, até as ameaçadoras alturas do Castelo de Edimburgo e, abaixo de mim, pelo declive, até a graciosa majestade do palácio Holyrood ao sopé da cidade. A última vez que parei junto a esta fonte, o príncipe Carlos discursava para os cidadãos de Edimburgo ali reunidos, inspirando-os com a visão de sua presença real. Ele saltara ostentosamente da borda para a coluna central, elaboradamente esculpida, do chafariz, um pé na pia, segurando-se em uma das cabeças de onde jorrava água, gritando: ”Avante, para a Inglaterra!” A multidão rugia, maravilhada com aquele espetáculo de otimismo juvenil e proeza atlética. Eu mesma teria ficado mais impressionada se não tivesse notado que a água da fonte fora desligada numa antecipação ao gesto.

Perguntava-me por onde Carlos andaria agora. Ele voltara para a Itália depois de Culloden, eu imaginava, para viver a vida que fosse possível para a realeza em exílio permanente. O que ele andava fazendo, eu não sabia nem me importava. Ele passara das páginas da história, e da minha vida também, deixando ruína e destruição em seu rastro. Resta ver o que pode ser salvo agora.

Eu estava com muita fome; não comera nada desde um apressado desjejum de mingau grosseiro e carneiro cozido, feito logo após o amanhecer em um posto de parada em Dundaff. Havia um último sanduíche em meu bolso, mas relutara em comê-lo na carruagem, sob o olhar curioso de meus companheiros de viagem.

Retirei-o do bolso e desembrulhei-o cuidadosamente. Pasta de amendoim e geléia em pão branco, em estado bastante precário, com manchas púrpuras da geléia infiltrando-se pelo pão murcho, e tudo amassado em um único bolo achatado. Estava delicioso.

Comi o sanduíche devagar, apreciando o sabor oleoso e intenso da pasta de amendoim. Em quantas manhãs eu havia passado generosas porções de pasta de amendoim no pão, fazendo sanduíches para a merenda escolar de Brianna? Suprimindo o pensamento com firmeza, examinei os transeuntes para me distrair. Eles realmente pareciam diferentes de seus equivalentes modernos; tanto homens quanto mulheres tendiam a ser mais baixos e os sinais de má nutrição eram evidentes. Mesmo assim, possuíam uma impressionante familiaridade - eram pessoas que eu conhecia, escoceses e ingleses em sua maior parte. Ouvindo o murmúrio das vozes nas ruas, com seus profundos sons guturais, após tantos anos com os tons nasais e monótonos de Boston, eu experimentava uma sensação extraordinária de estar de volta ao lar.

Engoli o último bocado doce e saboroso da minha vida antiga e amassei a embalagem na mão. Olhei ao redor, mas ninguém estava olhando em minha direção. Abri a mão e deixei a bolinha de plástico cair furtivamente no chão. Embolada, ela rolou alguns centímetros nas pedras do calçamento, estalando e se desenrolando como se estivesse viva. O vento leve pegou-a e a folha pequena e transparente levantou vôo repentinamente, deslizando pelas pedras cinzentas como uma folha seca.

A corrente de ar provocada pelo conjunto de rodas de uma charrete que passava sugou-a para baixo do veículo; cintilou uma vez com o reflexo da luz e desapareceu, sem ser percebida pelos transeuntes. Imaginei se a minha própria presença anacrônica causaria tão pouco dano.

- Você está perturbada, Beauchamp - disse a mim mesma. - Hora de seguir em frente. - Respirei fundo e levantei-me. — Com licença - eu disse, segurando pela manga um garoto entregador de pães que passava. Estou procurando um tipógrafo, um sr. Malcolm. Alexander Malcolm. — Uma sensação mista de pavor e empolgação gorgolejou na minha barriga. E se não houvesse nenhuma gráfica dirigida por Alexander Malcolm em Edimburgo?

No entanto havia; o rosto do menino crispou-se no esforço para lembrar e depois relaxou.

- Ah, sim, senhora. É só descer e virar à esquerda. Beco Carfax. - E levantando seus pães sob o braço com um aceno da cabeça, mergulhou de novo na rua apinhada.

Beco Carfax. Avancei devagar para o meio da multidão outra vez, pressionando-me contra os prédios para evitar os respingos do despejo ocasional de água-servida jogada das janelas acima. Havia alguns milhares de pessoas em Edimburgo e o esgoto de todas elas corria a céu aberto pelas sarjetas da rua calçada de pedras, na dependência da gravidade e da chuva freqüente para manter a cidade habitável.

A entrada baixa e escura do beco Carfax abria-se logo à frente, do outro lado da Royal Mile. Parei de repente, olhando-a, o coração batendo com força suficiente para ser ouvido a um metro de distância, se alguém parasse para ouvir.

Não estava chovendo, mas estava prestes a chover e a umidade no ar fazia meus cabelos cachearem-se. Afastei-os da minha testa, arrumando-os o melhor que pude sem um espelho. Em seguida, avistei uma grande vitrine de vidro laminado mais acima e segui apressadamente naquela direção.

O vidro estava nublado de vapor condensado, mas permitia um reflexo turvo, onde meu rosto parecia corado e com os olhos arregalados, mas, fora isso, apresentável. Meus cabelos, entretanto, haviam aproveitado a oportunidade para se encaracolarem loucamente em todas as direções, escapulindo de seus grampos numa excelente imitação dos cachos de Medusa. Arranquei os grampos com impaciência e comecei a prender os anéis rebeldes.

Havia uma mulher dentro da loja, debruçada sobre o balcão. Três crianças pequenas a acompanhavam e eu a observei com o rabo do olho. Ela se virou do seu trabalho e dirigiu-se a elas com impaciência, batendo com sua bolsinha na criança do meio, um garoto que brincava com vários talos de anis fresco enfiados num balde de água no chão.

Era a loja de um boticário; erguendo os olhos, vi o nome ”Haugh” acima da porta e senti um estremecimento de emoção ao reconhecê-lo. Eu comprara ervas ali, durante o breve período que vivi em Edimburgo. A decoração da vitrine havia sido ampliada desde então com o acréscimo de um enorme jarro de água colorida, no qual flutuava algo vagamente humanóide. O feto de um porco ou talvez um babuíno recém-nascido; possuía feições astutas, achatadas, pressionadas contra a lateral curva do jarro de uma forma desconcertante.

- Bem, pelo menos estou com um aspecto melhor do que o seu! murmurei, empurrando com força um grampo teimoso.

Eu também parecia melhor do que a mulher dentro da loja, pensei. Tendo terminado o que fazia, ela agora enfiava sua compra na sacola que carregava, o rosto fino contraindo-se ao fazê-lo. Possuía o ar um pouco pastoso de um morador de cidade e sua pele era profusamente enrugada, com sulcos profundos do nariz à boca e uma testa franzida.

- Que o diabo o carregue, seu moleque - ela dizia, irritada, ao garotinho quando todos saíam juntos da loja numa grande algazarra. - Eu já não lhe disse mil vezes para manter as patas nos bolsos?

— Com licença. — Dei um passo à frente, interrompendo-os, impelida por uma súbita e irresistível curiosidade.

- Sim? - Distraída de suas reclamações maternas, ela olhou-me espantada. De perto, parecia ainda mais acabada. Os cantos de sua boca eram caídos e os lábios virados para dentro, certamente por causa da falta de dentes.

- Não pude deixar de admirar seus filhos - eu disse, simulando tanta admiração quanto me foi possível assim de repente. Sorri amavelmente para eles. - Que belas crianças! Diga-me, qual a idade delas?

Ela ficou boquiaberta, confirmando a ausência de vários dentes. Pestanejou para mim e, em seguida, disse:

— Ah! Bem, é muita bondade sua, madame. Ah... Maisri aqui tem dez anos - ela disse, indicando com um gesto da cabeça a menina mais velha, que estava no ato de limpar o nariz na manga do vestido —, Joey oito... Tire o dedo do nariz, seu diabinho! - ela sibilou, virando-se em seguida e orgulhosamente dando uns tapinhas de leve na cabeça do mais novo. - E a pequena Polly acabou de fazer seis anos agora em maio.

- Verdade? - Fitei a mulher, fingindo surpresa. - Você não parece ter idade para ter filhos tão grandes. Deve ter se casado muito jovem.

Ela se envaideceu um pouco, sorrindo de modo afetado.

- Ah, não! Não assim tão nova; ora, eu já tinha dezenove anos quando Maisri nasceu.

— Incrível — eu disse, com sinceridade. Enfiei a mão no bolso e ofereci um penny a cada uma das crianças, que aceitaram com balanços encabulados da cabeça. — Bom dia para você... e parabéns pela linda família — eu disse para a mulher, e afastei-me com um aceno e um sorriso de despedida.

Dezenove anos quando a mais velha nasceu, e Maisri tinha dez anos agora. Portanto a mulher tinha vinte e nove anos. E eu, abençoada por uma boa nutrição, higiene e serviços odontológicos, não desgastada por múltiplas gestações e trabalho braçal árduo, parecia bem mais nova do que ela. Respirei fundo, afastei meus cabelos para trás e entrei nas sombras do beco Carfax.

Era um beco longo e sinuoso, e a oficina gráfica ficava na outra extremidade. Havia prósperos negócios e casas de cômodos nos dois lados do beco, mas eu não prestava atenção a nada além da placa branca e nítida pendurada junto à porta, anunciando:

  1. MALCOLM

MESTRE-IMPRESSOR E LIVREIRO

Abaixo, lia-se: Livros, cartões de visita, folhetos, cartazes, cartas etc.

Estendi a mão e toquei nas letras pretas do nome. A. Malcolm. Alexander Malcolm. James Alexander Malcolm MacKenzie Fraser. Talvez.

Mais um minuto e eu perderia o autocontrole. Abri a porta com decisão e entrei.

Havia um balcão largo de um lado ao outro da frente da sala, com uma aba para abrir e dar passagem, e uma estante em um dos lados contendo várias bandejas de tipos de letras. Cartazes e anúncios de todos os tipos estavam pregados na parede oposta; modelos, sem dúvida.

A porta para a sala dos fundos estava aberta, deixando ver a estrutura volumosa e angular da prensa tipográfica. Inclinado sobre ela, de costas para mim, estava Jamie.

— É você, Geordie? — ele perguntou, sem se virar. Estava de calças e camisa, com uma pequena ferramenta na mão, com a qual mexia nas entranhas da prensa. — Levou bastante tempo. Conseguiu o...

- Não é Geordie - eu disse. Minha voz soou mais alta do que o normal. — Sou eu. Claire.

Ele endireitou-se muito lentamente. Usava os cabelos longos; um rabo-de-cavalo grosso, de um ruivo escuro e forte, com emulações acobreadas. Tive tempo de ver que o laço perfeito que o prendia na nuca era de fita verde-escura. Então ele se virou.

Olhou-me fixamente, sem falar. Um tremor percorreu a garganta musculosa quando ele engoliu em seco, mas ainda assim não disse nada.

Era o mesmo rosto largo e bem-humorado, os olhos azul-escuros puxados, acima das maçãs do rosto lisas de um viking, a boca larga curvada para cima nos cantos, como se estivesse sempre prestes a abrir um sorriso. As linhas ao redor dos olhos e da boca estavam mais pronunciadas, é claro. O nariz mudara ligeiramente. A ponte afilada estava um pouco mais grossa perto da base por causa da marca de uma fratura antiga. Dava-lhe um ar mais feroz, pensei, mas amenizava a expressão de reserva distante e emprestava um novo e vigoroso charme à sua aparência.

Atravessei pela passagem no balcão, sem ver nada além do olhar fixo em mim. Limpei a garganta.

— Quando foi que quebrou o nariz?

Os cantos da boca larga ergueram-se ligeiramente.

- Cerca de três minutos depois que a vi pela última vez... Sassenach. Houve uma hesitação, quase uma interrogação, no nome. Não estávamos a mais de trinta centímetros um do outro. Estendi o braço tentando tocar a minúscula linha da cicatriz, onde o osso pressionava, branco, contra o bronze da pele.

Ele contraiu-se, como se uma fagulha elétrica tivesse faiscado entre nós, e a expressão calma desfez-se.

— Você é real — ele murmurou. Eu já o achara pálido. Agora, todos os vestígios de cor desapareceram de seu rosto. Seus olhos reviraram-se para cima e ele desabou no chão numa chuva de papéis e outros objetos que haviam estado sobre a prensa. Caiu graciosamente, de certa forma, para um homem tão grande, pensei distraidamente.

Foi apenas um desmaio; suas pálpebras já começavam a adejar quando me ajoelhei a seu lado e afrouxei o lenço em seu pescoço. Não me restava absolutamente nenhuma dúvida, mas ainda assim olhei automaticamente, enquanto afastava o linho grosso. Estava lá, é claro, a pequena cicatriz triangular logo acima da clavícula, deixada pela adaga do capitão Jonathan Randall, cavaleiro da Oitava Companhia dos Dragões de Sua Majestade.

Sua coloração normal e saudável estava retornando. Sentei-me com as pernas cruzadas no chão e acomodei sua cabeça sobre minha coxa. Seus cabelos caíram sedosos e macios em minha mão. Seus olhos se abriram.

- Foi tão ruim assim? - eu disse, sorrindo para ele, com as mesmas palavras que ele usara para mim no dia do nosso casamento, segurando minha cabeça em seu colo, há mais de vinte anos.

- Pior ainda, Sassenach - ele respondeu, a boca torcendo-se no esboço de um sorriso. Sentou-se abruptamente, ereto, olhando para mim. - Santo Deus, você é real!

— E você também. — Levantei o queixo para fitá-lo. — A-achei que estava morto. - Eu planejara falar descontraidamente, mas minha voz me traiu. As lágrimas rolaram pelo meu rosto, para logo molhar o tecido rústico de sua camisa quando ele me puxou com força para ele.

Eu tremia tanto que algum tempo se passou até eu perceber que ele também tremia, e pela mesma razão. Não sei quanto tempo ficamos ali sentados no chão, chorando nos braços um do outro com a saudade de vinte anos derramando-se pelos nossos rostos.

Seus dedos embrenharam-se com força em meus cabelos, soltando-os e fazendo-os tombar pelo meu pescoço. Os grampos deslocados caíram em cascata pelos meus ombros e zuniram pelo chão como uma saraivada de granizo. Meus próprios dedos agarravam-se a seu braço, penetrando no linho como se eu tivesse medo que ele fosse desaparecer, a menos que fosse fisicamente impedido.

Como se tomado pelo mesmo temor, agarrou-me de repente pelos ombros e segurou-me distante dele, encarando-me com desespero. Colocou a mão em meu rosto e traçou a linha dos ossos repetidamente, alheio às minhas lágrimas e à fluida coriza do meu nariz.

Funguei ruidosamente, o que pareceu devolver-lhe os sentidos, porque me soltou e tateou apressadamente na manga, à cata de um lenço, que usou desajeitadamente para limpar primeiro meu rosto, depois o seu próprio.

- Me dê isso. - Agarrei o pedaço de pano que oscilava erraticamente e assoei o nariz com firmeza. - Agora você. - Entreguei-lhe o lenço e observei-o assoar o nariz com o barulho de um ganso estrangulado. Dei uma risadinha, embargada de emoção.

Ele sorriu também, limpando as lágrimas dos olhos com as costas da mão, incapaz de parar de me fitar.

De repente, não suportei mais não estar tocando-o. Atirei-me sobre ele e ele ergueu os braços bem a tempo de me segurar. Abracei-o com força, até ouvir suas costelas estalarem, e senti suas mãos acariciarem as minhas costas, repetindo meu nome sem parar.

Finalmente, consegui soltá-lo e endireitar-me um pouco. Ele olhou para o assoalho entre suas pernas, franzindo a testa.

- Perdeu alguma coisa? - perguntei, surpresa. Ele ergueu os olhos e sorriu, um pouco tímido.

— Tive medo de ter perdido totalmente o controle e ter mijado nas calças, mas está tudo bem. É que eu me sentei sobre o pote de cerveja.

De fato, uma poça de um aromático líquido marrom espalhava-se lentamente sob ele. Com um gritinho de susto, pus-me de pé atabalhoadamente e ajudei-o a se levantar. Após tentar inutilmente avaliar os danos às suas costas, deu de ombros e desamarrou as calças. Abaixou as calças até os quadris, depois parou e olhou para mim, corando ligeiramente.

- Tudo bem - eu disse, sentindo um forte rubor colorir meu próprio rosto. — Somos casados. — Mesmo assim, abaixei os olhos, sentindo-me um pouco ofegante. - Ao menos, acho que somos.

Fitou-me por um longo instante, depois um sorriso curvou sua boca larga e macia.

- Sim, somos - ele disse. Livrando-se das calças molhadas com um chute, deu um passo em minha direção.

Estendi a mão para ele, tanto para recebê-lo quanto para estancá-lo. Queria, acima de tudo, tocá-lo de novo, mas sentia-me inexplicavelmente acanhada. Após tanto tempo, como deveríamos recomeçar?

Ele também sentiu a restrição da mistura de timidez e intimidade. Parando a poucos centímetros de mim, tomou minha mão. Hesitou por um instante, depois inclinou a cabeça sobre ela, os lábios mal roçando os nós dos meus dedos. Seus dedos tocaram a aliança de prata e pararam, segurando o aro de metal delicadamente entre o polegar e o indicador.

— Eu nunca o tirei — eu disse, sem me conter. Pareceu-me importante que ele soubesse disso. Ele apertou levemente a minha mão, mas não a soltou.

- Eu quero... - Parou e engoliu em seco, ainda segurando minha mão. Seus dedos encontraram e tocaram a aliança de prata outra vez. - Quero muito beijá-la - disse num sussurro, o sotaque escocês ainda mais carregado. - Posso?

As lágrimas mal estavam contidas. Mais duas afloraram e transbordaram; eu as senti, grandes e redondas, rolar pelas minhas faces.

— Sim — murmurei.

Ele puxou-me devagar para junto de si, segurando nossas mãos unidas logo abaixo do peito.

- Não faço isso há muito tempo - ele disse. Vi a esperança e o medo no azul de seus olhos. Recebi a dádiva e a devolvi a ele.

- Eu também não - eu disse baixinho.

Segurou meu rosto entre as mãos com sublime delicadeza e pousou seus lábios nos meus.

Não sei bem o que eu estava esperando. Uma reprise da fúria galopante que acompanhara nossa derradeira despedida? Eu a relembrara tantas vezes, a revivera mentalmente, incapaz de mudar o desfecho. As horas infindáveis, quase selvagens, de posse mútua na escuridão de nossa cama de marido e mulher? Eu ansiara por isso, acordara inúmeras vezes suando e tremendo com a lembrança.

Mas éramos estranhos agora, mal nos tocando, cada qual buscando o caminho da união, lenta e experimentalmente, buscando e dando uma permissão velada com nossos lábios silenciosos. Meus olhos estavam fechados, e eu sabia, sem precisar olhar, que os de Jamie também estavam. Estávamos, pura e simplesmente, com medo de olhar um para o outro.

Sem erguer a cabeça, começou a me acariciar suavemente, sentindo meus ossos sob as roupas, familiarizando-se outra vez com o território do meu corpo. Finalmente, sua mão percorreu meu braço e segurou minha mão direita. Seus dedos deslizaram pela minha mão até encontrarem a aliança outra vez, e ele acariciou-a, sentindo o desenho entrelaçado no estilo das Highlands, polido pelo longo uso, mas ainda perfeitamente distinto.

— Eu a tenho visto tantas vezes — ele disse, a voz sussurrante e morna em meu ouvido. - Você veio a mim tantas vezes. Em sonhos, às vezes. Quando estava delirante de febre. Quando estava com tanto medo e tão sozinho que achava que ia morrer. Quando eu precisava de você, eu sempre a via, sorrindo, com seus cabelos cacheados em volta do rosto. Mas você nunca falou comigo. Nem nunca me tocou.

- Posso tocá-lo agora. - Deslizei a mão suavemente por sua têmpora, seu ouvido, sua face e maxilar que eu podia ver. Levei a mão à sua nuca, sob os cabelos cor de cobre, e ele finalmente ergueu a cabeça. Segurou meu rosto entre as mãos, o amor reluzindo com força nos olhos azul-escuros.

- Não tenha medo - ele disse suavemente. - Agora, somos nós dois.

Poderíamos ter ficado ali de pé, fitando um ao outro, indefinidamente, não fosse pelo som da campainha acima da porta da loja. Desprendi-me de Jamie e olhei vivamente ao redor, vendo um homem baixo e musculoso, de cabelos escuros e ásperos, de pé na soleira da porta, boquiaberto, segurando um pequeno pacote na mão.

- Ah, aí está você, Geordie! Por que demorou tanto? -Jamie disse. Geordie não disse nada, mas seus olhos viajaram, incertos, pelo corpo de seu patrão, ali parado só de camisa, as pernas nuas, no meio da tipografia, as calças, sapatos e meias jogados no chão, e ele em meus braços, meu vestido todo amarrotado e meus cabelos desfeitos. O rosto fino de Geordie crispou-se numa máscara de censura.

- Eu me demito - ele disse, no tom de voz exuberante do oeste das Highlands. - A gráfica é uma coisa, eu trabalho aqui e você não pensa em outra coisa, mas eu sou da Igreja Livre e meu pai está acima de mim e meu avô acima dele. Trabalhar para um papista é uma coisa... a moeda do papa é tão boa quanto qualquer outra, não é?... mas trabalhar para um papista imoral é outra. Faça o que quiser com sua própria alma, mas se chegou ao ponto de orgias no trabalho, já foi longe demais, é o que tenho a dizer. Eu me demito!

Ele colocou o pacote cuidadosamente no centro do balcão, girou nos calcanhares e caminhou arrogantemente em direção à porta. Lá fora, o relógio de Tolbooth começou a bater. Geordie virou-se na soleira da porta para olhar de modo acusador para nós.

- E ainda nem é meio-dia! - ele disse. A porta da loja bateu atrás dele. Jamie ficou olhando para a porta por um instante, depois se deixou cair lentamente no chão outra vez, rindo tanto que seus olhos lacrimejaram.

— ”E ainda nem é meio-dia!” — ele repetiu, limpando as lágrimas do rosto. - Ah, meu Deus, Geordie! - Ele balançava-se para a frente e para trás, agarrando os joelhos com as duas mãos.

Eu mesma não pude deixar de rir, embora estivesse um pouco preocupada.

- Não queria causar nenhum transtorno - eu disse. - Você acha que ele vai voltar?

Ele fungou e limpou o rosto descuidadamente na barra da camisa.

- Ah, sim. Ele mora do outro lado da rua, na travessa Wickham. Eu vou lá daqui a pouco e... e explicarei - ele disse. Olhou para mim, compreendendo a realidade, e acrescentou: - Só Deus sabe como! - Por um instante, pareceu que ele ia começar a rir outra vez, mas dominou o impulso e levantou-se.

- Tem outro par de calças? - perguntei, pegando as que ele tirara e estendendo-as sobre o balcão para secarem.

- Sim, tenho, lá em cima. Mas espere um minuto. - Enfiou o longo braço no armário sob o balcão e retirou um aviso perfeitamente impresso que dizia VOLTO JÁ. Pendurando-o do lado de fora da porta e trancando a porta por dentro, virou-se para mim.

- Quer subir comigo? - disse. Dobrou o braço num convite, os olhos brilhando. — Se não achar imoral.

- Por que não? - eu disse. O impulso de desatar a rir estava logo abaixo da superfície, borbulhando no meu sangue como champanhe. - Somos casados, não somos?

O andar superior era dividido em dois aposentos, um de cada lado do patamar da escada, havia um pequeno toalete logo em frente. O quarto dos fundos era obviamente destinado à armazenagem do material da gráfica; a porta estava escancarada e eu podia ver engradados de madeira cheios de livros, enormes maços de folhetos cuidadosamente presos com uma corda fina, barris de álcool e tinta em pó, e uma parafernália de ferramentas estranhas que presumi tratarem-se de peças sobressalentes para as máquinas de impressão.

O quarto da frente era espartano como a cela de um monge. Havia uma cômoda de gavetas com um castiçal de cerâmica sobre ela, uma mesinha com bacia e jarra de água, um banco e uma cama estreita, pouco mais do que um catre de acampamento. Soltei abruptamente a respiração ao vêla, somente então percebendo que eu estivera prendendo-a. Ele dormia sozinho.

Um olhar rápido ao redor confirmou que não havia nenhum sinal de uma presença feminina no quarto e meu coração começou a bater com um ritmo normal outra vez. Obviamente, ninguém mais vivia ali além de Jamie; ele havia afastado a cortina que bloqueava um dos cantos do quarto e a fileira de cabides que se via ali suportava apenas duas camisas, um casaco e um colete de um cinza sóbrio, um manto de lã cinza e o par de calças sobressalente que ele fora buscar.

Ele ficou de costas para mim enquanto enfiava a camisa para dentro e amarrava as calças, mas eu pude ver o acanhamento na linha tensa de seus ombros. Eu podia sentir uma tensão similar na minha própria nuca. Após um instante para nos recobrarmos do choque de nos vermos, estávamos ambos acometidos de timidez. Vi seus ombros empertigarem-se e então ele virou-se para mim. O riso histérico havia nos abandonado, assim como as lágrimas, embora seu rosto ainda mostrasse as marcas de tanta emoção repentina, e eu sabia que o meu também.

- É muito bom ver você de novo, Claire - ele disse a meia-voz. Pensei que nunca... bem. - Encolheu os ombros ligeiramente, como se a camisa de linho apertasse nos ombros e ele quisesse afrouxá-la. Engoliu em seco, depois me olhou direto nos olhos.

— A criança? — ele perguntou. Tudo que ele sentia estava estampado em seu rosto; esperança ansiosa, temor desesperado e a luta para conter ambos.

Sorri-lhe e estendi a mão.

- Venha cá.

Eu pensara muito sobre o que eu deveria trazer comigo, caso minha viagem através das pedras fosse bem-sucedida. Considerando minha experiência prévia com acusações de bruxaria, eu tomara muito cuidado. Mas havia algo que eu tinha que trazer, independentemente de quaisquer que fossem as circunstâncias, caso alguém as visse. Puxei-o para sentar-se a meu lado na cama e retirei do bolso o pequeno pacote retangular que eu embrulhara com tanto cuidado em Boston. Desfiz a embalagem à prova d’água e coloquei o conteúdo em suas mãos.

- Tome - eu disse.

Ele segurou-as, cautelosamente, como alguém manuseando alguma substância desconhecida e possivelmente perigosa. Suas mãos grandes emolduraram as fotografias por um instante, mantendo-as confinadas. O rosto redondo de Brianna recém-nascida estava alheio entre seus dedos, os punhos pequeninos cerrados sobre o cobertor, os olhos puxados fechados sob a nova exaustão de existir, a boca pequena entreaberta no sono.

Ergui os olhos para seu rosto; estava absolutamente perplexo de choque. Segurava as fotografias perto do peito, sem se mover, os olhos arregalados e fixos, como se uma flecha tivesse acabado de trespassar seu coração - como eu imaginava que tivesse.

- Sua filha lhe enviou isto - eu disse. Virei seu rosto lívido para mim e beijei-o suavemente nos lábios. Isso quebrou o transe; ele piscou e seu rosto reanimou-se.

- Minha... ela... - Sua voz estava rouca de emoção. - Filha. Minha filha. Ela... sabe?

- Sabe. Olhe as outras. - Retirei a primeira foto de sua mão, revelando o instantâneo de Brianna, hilariamente lambuzada com o glacê de seu primeiro bolo de aniversário, um travesso sorriso de triunfo no rosto, exibindo quatro dentes e sacudindo um novo coelhinho de pelúcia acima da cabeça.

Jamie deixou escapar um pequeno som inarticulado e seus dedos afrouxaram-se. Peguei a pequena pilha de fotos de sua mão e fui devolvendo-as, uma de cada vez.

Brianna aos dois anos, rechonchuda em sua roupa de neve, as bochechas redondas e vermelhas como maçãs, uns fiapos de cabelos leves como pluma saindo por baixo do capuz.

Bri aos quatro anos, os cabelos lisos e brilhantes em forma de sino, sentada, um dos tornozelos apoiado no joelho oposto, enquanto ela sorria para o fotógrafo, bem arrumada e tranqüila, de avental branco.

Aos cinco, orgulhosamente de posse de sua primeira lancheira, esperando para tomar o ônibus para o jardim-de-infância.

- Ela não me deixava acompanhá-la, queria ir sozinha. Ela é muito corajosa, não tem medo de nada... — Minha voz ficou embargada conforme eu explicava, mostrava, apontava para as imagens que caíram de suas mãos e deslizaram para o chão, quando ele começou a tentar pegar cada nova foto.

- Ah, meu Deus! - ele disse, diante da foto de Bri aos dez anos, sentada no chão da cozinha com os braços em volta de Smoky, o enorme cão terra-nova. Essa era em cores; seus cabelos brilhantes contra os pêlos negros e luzidios do cachorro.

Suas mãos tremiam tanto que ele já não conseguia segurar as fotos; tive que mostrar-lhe as últimas - Bri já crescida, rindo para uma fileira de peixes amarrados a uma linha e que ela havia pescado; debruçada em uma janela, contemplativa e misteriosa; com o rosto afogueado e descabelada, apoiada no cabo de um machado que usara para rachar lenha. As fotos mostravam seu rosto em todos os estados de espírito que eu pude captar, sempre aquele rosto, nariz reto e comprido, boca larga, com aquelas maçãs do rosto viking, altas, largas e lisas, e os olhos rasgados - uma versão mais delicada, de ossos mais delgados, de seu pai, do homem que se sentava na cama ao meu lado, a boca abrindo-se e fechando-se sem emitir nenhum som, e as lágrimas rolando silenciosamente pelas próprias faces.

Espalmou a mão sobre as fotografias, os dedos trêmulos apenas roçando as superfícies lustrosas, depois se virou e inclinou-se em minha direção, lentamente, com a graça improvável de uma árvore alta caindo. Enterrou o rosto em meu ombro e desmoronou completamente.

Segurei-o contra o peito, os braços apertados em volta dos ombros largos, sacudindo-se, minhas próprias lágrimas caindo sobre seus cabelos, criando pequenas manchas escuras nas ondas ruivas. Pressionei o rosto contra o topo de sua cabeça, murmurando-lhe pequenas palavras de conforto como se ele fosse Brianna. Pensei comigo mesma que talvez fosse como uma cirurgia - mesmo quando uma operação é feita para reparar danos existentes, a cura ainda assim é dolorosa.

- Qual o nome dela? - Ele ergueu o rosto finalmente, limpando o nariz nas costas da mão. Pegou as fotos outra vez, delicadamente, como se pudessem se desintegrar ao toque de seus dedos. - Que nome você lhe deu?

- Brianna - eu disse com orgulho.

- Brianna? - ele repetiu, franzindo o cenho para as fotografias. - Que nome horrível para uma menininha!

Dei um solavanco para trás, como se tivesse levado um soco.

- Não é horrível! - retorqui. - É um lindo nome e, além do mais, foi você que me pediu para chamá-la assim! O que quer dizer com ser um nome horrível?

- Eu lhe pedi para chamá-la assim? - Pestanejou.

— Com toda a certeza! Quando nós... quando nós... na última vez que o vi. - Pressionei os lábios com força para não chorar outra vez. Após alguns instantes, havia dominado meus sentimentos o suficiente para acrescentar: - Você disse para dar o nome de seu pai ao bebê. O nome dele era Brian, não era?

- Sim, era. - Um sorriso parecia lutar para sobrepujar as outras emoções em seu rosto. - Sim - ele disse. - Sim, tem razão, eu pedi. É que... bem, pensei que seria um menino, só isso.

- E ficou decepcionado por não ter sido um menino? - Olhei-o furiosamente e comecei a pegar as fotos espalhadas. Suas mãos em meus braços me impediram.

- Não - ele disse. - Não, não fiquei decepcionado. Claro que não! Sua boca contorceu-se ligeiramente. - Mas não vou negar que ela significa um grande choque, Sassenach. E você também.

Permaneci imóvel por um instante, fitando-o. Eu tive meses para me preparar para isso e ainda assim meus joelhos estavam frouxos e um aperto contraía meu estômago. Ele fora pego completamente de surpresa com o meu aparecimento; não era de admirar que estivesse abalado com o impacto.

— Imagino que eu seja. Lamenta que eu tenha vindo? — perguntei. Engoli em seco. - Quer... quer que eu vá embora?

Suas mãos agarraram meus braços com tanta força que deixei escapar um pequeno grito. Percebendo que estava me machucando, afrouxou os dedos, mas ainda assim continuou a me segurar firmemente. Seu rosto ficara lívido diante da minha sugestão. Respirou fundo e soltou o ar ruidosamente.

- Não - ele disse, com o máximo de calma que conseguiu reunir. Não quero. Eu... - interrompeu-se bruscamente, os maxilares cerrados. Não - disse outra vez, com determinação.

Sua mão deslizou até segurar a minha e, com a outra, abaixou-se para pegar as fotografias. Colocou-as sobre o joelho, olhando-as com o rosto abaixado, para que eu não pudesse vê-lo.

— Brianna — ele disse num sussurro. — Você o pronuncia errado, Sassenach. O nome dela é Brianna. - Pronunciou-o com uma estranha cadência das Highlands, de modo que a primeira sílaba era mais forte e a segunda quase não se ouvia Bnana.

- Bnana? - eu disse, achando graça Ele assentiu, os olhos ainda fixos nas fotografias

- Brianna - ele disse - É um belo nome.

- Fico contente que goste - eu disse.

Ergueu o rosto de repente e nossos olhos se encontraram. Um sorriso escondia-se no canto da boca larga.

— Fale-me dela. — Com o dedo indicador, traçou os contornos roliços do bebê em roupa de neve - Como ela era quando garotinha? O que ela disse primeiro, quando aprendeu a falar?

Sua mão puxou-me para mais perto e aconcheguei-me junto a seu corpo. Ele era grande, e sólido, e cheirava a roupa lavada e tinta de impressão, com um cálido cheiro masculino que era tão excitante para mim quanto era familiar.

- ”Au-au” - eu disse. - Essa foi sua primeira palavra A segunda foi ”Não!”

O sorriso ampliou-se.

- Sim, essa todas as crianças aprendem depressa. Então ela gosta de cachorros? — Abriu as fotos em leque, como cartas de baralho, procurando a foto com Smoky. - Este que está aqui com ela é um lindo cachorro. De que raça é?

- É um terra-nova - Inclinei-me para a frente para passar as fotos rapidamente. — Há uma outra aqui com um cachorrinho que um amigo meu lhe deu..

A fraca e cinza luz do dia começou a desaparecer e a chuva tamborilava no telhado há algum tempo, antes de nossa conversa ser interrompida por um rosnado feroz e profundo que emanou de baixo do corpete enfeitado de renda do meu vestido Jessica Gutenburg. Um longo tempo já se passara desde o sanduíche de pasta de amendoim.

- Com fome, Sassenach? - Jamie perguntou, um pouco desnecessariamente, pensei.

— Bem, sim, agora que você mencionou. Ainda guarda comida na gaveta de cima? - Assim que nos casamos, eu desenvolvera o hábito de guardar pequenas porções de alimento à mão, para suprir seu apetite constante e a gaveta de cima de qualquer cômoda onde morávamos em geral propiciava uma variedade de pãezinhos, bolinhos ou pedaços de queijo.

Ele riu e espreguiçou-se.

- Sim, guardo. Mas não há muita coisa lá no momento, além de dois bolinhos velhos. É melhor eu levá-la à taberna e.. - O ar de felicidade produzido pelo exame das fotografias de Brianna desapareceu, substituído por uma expressão alarmada. Olhou rapidamente para a janela, onde uma suave cor púrpura começava a substituir o cinza pálido. A expressão de alarme se intensificou.

- A taberna! Meu Deus! Esqueci-me do sr. Willoughby! -Já estava de pé e remexendo na cômoda em busca de meias limpas antes que eu pudesse dizer alguma coisa. Saiu dali com as meias em uma das mãos e dois bolinhos na outra. Atirou os últimos no meu colo e sentou-se no banco, apressadamente calçando as primeiras.

— Quem é o sr. Willoughby? - Dei uma mordida no bolinho, espalhando farelos.

- Droga - ele disse, mais para si mesmo do que para mim -, eu disse que iria encontrá-lo ao meio-dia, mas me esqueci completamente! Já devem ser quatro horas!

- Já, sim; ouvi o relógio bater pouco tempo atrás.

— Droga! - repetiu. Enfiando os pés num par de sapatos com fivelas de estanho, levantou-se, arrancou o casaco do cabide e depois parou à porta. — Vem comigo? — perguntou ansiosamente.

Lambi os dedos e me levantei, envolvendo-me no meu manto.

— Nada poderia me deter — assegurei-lhe.

 

- Quem é o sr. Willoughby? - perguntei, quando paramos sob o arco do beco Carfax para espreitar a rua de calçamento de pedras.

- Ha... ele é um sócio meu -Jamie respondeu, com um olhar cauteloso em minha direção. — É melhor colocar seu capuz, está caindo um aguaceiro.

Estava de fato chovendo muito; lençóis de água caíam do arco acima de nossas cabeças e desciam gorgolejando pelas sarjetas, limpando as ruas do esgoto e do lixo. Respirei fundo o ar limpo e úmido, sentindo-me exultante com a loucura da noite e a proximidade de Jamie, alto e forte a meu lado. Eu o encontrara. Eu o encontrara e o que quer que o desconhecido me reservasse agora na verdade não parecia importar. Sentia-me temerária e indestrutível.

Tomei sua mão e apertei-a; ele olhou para baixo e sorriu para mim, apertando a minha também.

- Aonde vamos?

— Até a World’s End. — O rugido das águas dificultava a conversa. Sem dizer mais nada, Jamie segurou-me pelo cotovelo para me ajudar a atravessar o calçamento de pedras e nos lançamos ladeira abaixo pela íngreme Royal Mile.

Felizmente, a taberna denominada The Worlds End não ficava a mais de cem metros de distância; apesar da intensidade da chuva, os ombros do meu manto estavam apenas úmidos quando nos agachamos para passar pela baixa verga da porta que dava acesso ao estreito saguão de entrada.

O salão principal estava apinhado, quente e enfumaçado, um refúgio confortável da tempestade lá fora. Havia algumas mulheres sentadas nos bancos que se estendiam ao longo das paredes, mas a maioria dos fregueses era masculina. Aqui e ali, via-se um homem num traje bem cuidado de comerciante, mas a maior parte dos homens com lares para onde retornar estava em suas casas a esta hora; a taberna abrigava uma mistura de soldados, ratos de cais, operários e aprendizes, com um ou outro bêbado para variar.

Várias cabeças ergueram-se quando entramos e ouviram-se gritos de saudação, além de um empurra-empurra e um arrastamento geral de pés, para abrir espaço em uma das longas mesas. Obviamente, Jamie era bem conhecido na World’s End. Alguns olhares curiosos voltaram-se para mim, mas ninguém disse nada. Mantive o manto bem enrolado no corpo e segui Jamie pelo meio do aperto na taberna.

- Não, nós não vamos ficar — ele disse à jovem garçonete que apressou-se em nossa direção com um sorriso ansioso. — Só vim para encontrá-lo.

A jovem revirou os olhos para cima.

— Ah, sim, e já não é sem tempo! Mamãe mandou-o lá pra baixo.

— Sim, estou atrasado —Jamie disse, desculpando-se. — Eu... tive que resolver uns negócios.

A jovem olhou-me com curiosidade, mas em seguida deu de ombros e riu para Jamie.

- Ah, não tem problema, senhor. Harry levou um copo de conhaque para ele e desde então quase não o ouvimos mais.

- Conhaque, hein? -Jamie pareceu resignado. - Ele ainda está acordado? — Enfiou a mão no bolso do casaco e retirou uma pequena bolsinha de couro, da qual extraiu várias moedas, que deixou cair na mão estendida da jovem.

— Acho que sim — ela disse alegremente, guardando o dinheiro no bolso. - Eu o ouvi cantando algum tempo atrás. Obrigada, senhor!

Com um aceno da cabeça, Jamie abaixou-se para passar por baixo da verga da porta nos fundos do salão, fazendo sinal para que eu o seguisse. Uma cozinha minúscula, com teto arredondado, ficava atrás do salão principal da taberna, tinha um enorme caldeirão do que parecia ser um cozido de ostra fervendo no fogão. O cheiro era delicioso e pude sentir minha boca começar a salivar com o aroma. Esperava que pudéssemos tratar de negócios com o sr. Willoughby enquanto jantávamos.

Uma mulher gorda vestindo saia e corpete sujos ajoelhava-se junto ao fogo, alimentando-o com pedaços de madeira. Ela ergueu os olhos para Jamie e cumprimentou-o com um sinal da cabeça, mas não fez nenhuma menção de levantar-se.

Ele acenou em resposta e dirigiu-se a uma pequena porta de madeira em um dos cantos. Levantou a trava e escancarou a porta, revelando uma escada escura que levava para baixo, aparentemente às entranhas da terra. Uma luz bruxuleava em algum lugar lá embaixo, como se gnomos estivessem extraindo diamantes de uma mina sob a caverna.

Os ombros de Jamie preenchiam o estreito vão da escada, obstruindo minha visão do que havia abaixo de nós. Quando ele saiu no espaço aberto ao fim das escadas, pude ver grossas vigas de carvalho e uma fileira de enormes barris, sobre uma longa plataforma apoiada em cavaletes e encostada contra a parede de pedra.

Uma única tocha queimava ao pé da escada. A adega estava escura e suas profundezas, como as de uma caverna, pareciam desertas. Prestei atenção, mas não ouvi nada além da algazarra abafada da taberna em cima. Certamente, ninguém cantando.

- Tem certeza de que ele está aqui embaixo? - inclinei-me para espreitar sob a fileira de barris, imaginando se o bêbado sr. Willoughby fora nocauteado por um excesso de conhaque e buscara algum lugar isolado para dormir e curar a bebedeira.

- Ah, sim. - A voz de Jamie soou severa, mas resignada. - Acho que o vagabundo está se escondendo. Ele sabe que eu não gosto quando ele bebe em bares públicos.

Ergui a sobrancelha diante da informação, mas ele apenas continuou andando nas sombras, resmungando baixinho. A adega estendia-se no comprimento e eu podia ouvi-lo, arrastando os pés cautelosamente no escuro, muito tempo depois de tê-lo perdido de vista. Parada no círculo de luz da tocha, olhei ao meu redor com interesse.

Além da fileira de barris, havia vários engradados de madeira empilhados quase no centro do aposento, contra o estranho pedaço de parede que erguia-se sozinho, a uma altura de mais ou menos um metro e meio acima do chão da adega, perdendo-se para trás na escuridão.

Eu ouvira falar dessa característica da taberna quando ficamos em Edimburgo há vinte anos, com Sua Alteza, o príncipe Carlos, mas nunca a havia realmente visto. Era o remanescente de um muro construído pelos fundadores de Edimburgo, logo após a desastrosa Batalha de Flodden Field, em 1513. Concluindo - com certa razão - que provavelmente não haveria nenhum proveito na associação com os ingleses ao sul, construíram aquela muralha definindo tanto os limites da cidade quanto o limite do mundo civilizado da Escócia. Daí o nome The Worlds End - o fim do mundo. O nome se mantivera através de várias versões da taberna que fora construída sobre as ruínas da utopia dos antigos escoceses.

- Vagabundo desgraçado. - Jamie emergiu das sombras, uma teia de aranha presa nos cabelos e uma carranca no rosto. - Deve estar atrás da muralha.

Virando-se, colocou a mão na boca e gritou alguma coisa. Soou como uma algaravia incompreensível — nem mesmo como gaélico. Desconfiada, enfiei o dedo no ouvido, imaginando se a viagem através das pedras havia danificado minha audição.

Um movimento repentino no canto do meu olho me fez erguer a cabeça, bem a tempo de ver uma bola azul brilhante voar de cima da ruína da antiga muralha e atingir Jamie diretamente entre as omoplatas. Ele bateu a cabeça no teto da adega com um baque surdo e eu me atirei sobre seu corpo lançado por terra.

- Jamie! Você está bem?

A figura caída de bruços emitiu uma série de palavrões em gaélico e sentou-se devagar, esfregando a testa, que batera na laje de pedra do chão com uma pancada assustadora. A bola azul, enquanto isso, transformara-se na figura de um chinês muito pequeno, que se sacudia, rindo com grande deleite, o rosto redondo e amarelado brilhando de alegria e conhaque.

— Sr. Willoughby, eu presumo - eu disse a essa aparição, mantendo um olho atento a novas brincadeiras.

Ele pareceu reconhecer seu nome, porque riu e balançou a cabeça freneticamente para mim, os olhos apenas duas fendas brilhantes. Apontou para si mesmo, disse alguma coisa em chinês e em seguida saltou no ar e executou várias cambalhotas para trás em rápida sucessão, pousando sobre os pés triunfalmente ao final.

— Pulga maldita. — Jamie levantou-se, limpando as palmas das mãos com cuidado no casaco. Com um movimento rápido, agarrou o chinês pelo colarinho e levantou-o do chão.

- Vamos - disse, pousando o homenzinho na escada e empurrando-o firmemente nas costas. — Temos que ir andando, e depressa. — Em resposta, a pequena figura vestida de azul prontamente sucumbiu, parecendo uma trouxa frouxa de roupa suja deixada sobre o degrau. — Ele é um bom sujeito quando está sóbrio - Jamie explicou-me em tom de desculpas, enquanto erguia o chinês e o colocava sobre o ombro. - Mas ele realmente não deveria beber conhaque. É um beberrão.

- É o que estou vendo. Onde você o encontrou? - Fascinada, segui Jamie escada acima, observando o rabeo-de-cavalo do sr. Willoughby oscilar para a frente e para trás como um metrônomo pelo feltro de lã cinza do manto de Jamie.

- Nas docas. - Mas antes que pudesse dar maiores explicações, a porta acima se abriu e estávamos de volta à cozinha da taberna. A robusta proprietária nos viu emergir e veio em nossa direção, as faces rechonchudas enfunadas de desaprovação.

— Ora, sr. Malcolm — ela começou, franzindo a testa. — O senhor sabe muito bem que é bem-vindo aqui e deve saber também que eu não sou de implicar com ninguém, não é uma atitude conveniente para quem mantém uma taberna. Mas eu já lhe disse, seu homenzinho amarelo não é...

- Sim, já disse isso, sra. Patterson -Jamie interrompeu-a. Enfiou a mão no bolso e retirou uma moeda, que entregou à corpulenta proprietária do pub com uma mesura. - E sua paciência é muito apreciada. Não acontecerá de novo. Espero - acrescentou baixinho. Colocou o chapéu na cabeça, inclinou-se novamente para a sra. Patterson e agachou-se sob a verga da porta que dava para o salão do bar.

Nossa reentrada causou outro alvoroço, mas desta vez uma reação negativa. As pessoas fizeram silêncio ou murmuraram imprecações em voz baixa. Deduzi que o sr. Willoughby provavelmente não era um dos clientes mais populares do local.

Jamie foi avançando devagar pelo meio da multidão, que abria caminho com relutância. Segui-o da melhor maneira possível, tentando não encarar ninguém e tentando não respirar. Desacostumada como estava com o miasma nada higiênico do século XVIII, o mau cheiro de tantos corpos desabituados ao banho num recinto pequeno e fechado era quase insuportável.

Perto da porta, entretanto, nos deparamos com um problema na pessoa de uma mulher jovem e peituda, cujo vestido estava um grau acima das roupas rústicas e sóbrias da proprietária e de sua filha. O decote era um grau mais baixo e não tive muita dificuldade em adivinhar qual era seu principal meio de vida. Absorta num flerte com dois garotos aprendizes quando saímos da cozinha, ergueu os olhos quando passamos e pôs-se de pé num salto com um grito estridente, derrubando um caneco de cerveja no processo.

— É ele! — berrou, apontando o dedo para Jamie. — O maldito canalha!

- Seus olhos pareciam ter dificuldade em focalizar; concluí que a cerveja derramada não era a sua primeira da noite, embora ainda fosse tão cedo.

Seus companheiros olharam para Jamie com interesse, mais ainda quando a jovem adiantou-se, brandindo o dedo no ar como se conduzisse um coro.

- É ele! O anãozinho de que falei... o que fez aquela coisa horrível comigo!

Reuni-me ao resto da multidão olhando para Jamie com interesse, mas logo percebi, como todos os presentes, que a jovem não estava falando dele, mas de seu fardo.

- Seu nojento! - ela gritou, dirigindo suas observações para os fundilhos das calças de seda azul do sr. Willoughby. — Verme! Lesma!

O espetáculo de aflição da jovem estava incitando seus companheiros; um deles, um rapaz alto e forte, levantou-se, os punhos cerrados, e inclinou-se sobre a mesa, os olhos brilhando de cerveja e agressividade.

- É ele, hein? Devo esfaqueá-lo para você, Maggie?

- Nem tente, garoto - Jamie avisou sem rodeios, mudando seu fardo de posição para melhor equilíbrio. - Tome sua bebida e nós já teremos ido embora.

- Ah, é? E você é o cafetão do anãozinho, é? - disse o inconveniente rapaz, com ar de desdém, o rosto vermelho virando-se em minha direção.

— Ao menos, sua outra vadia não é amarela... vamos dar uma olhada nela.

— Lançou a pata e agarrou a borda do meu manto, revelando o corpete decotado do Jessica Gutenburg.

— A mim, parece bastante rosada - disse seu amigo, com óbvia aprovação. - Ela é assim por inteiro? - Antes que eu pudesse me mover, ele tentou agarrar o corpete, segurando-o pela beira da renda. Não sendo projetado para os rigores da vida no século XVIII, o tecido fino rasgou-se na lateral, expondo um bom pedaço de pele rosada.

- Largue-a, seu filho-da-mãe! -Jamie girou nos calcanhares, os olhos flamejando, brandindo o punho livre ameaçadoramente.

- Quem você está xingando, seu desgraçado? - O primeiro rapaz, impossibilitado de sair de trás da mesa, subiu no tampo e lançou-se sobre Jamie, que agilmente desviou-se, fazendo com que ele batesse de cara na parede.

Jamie deu uma enorme passada em direção à mesa, desceu o punho com toda a força no topo da cabeça do outro aprendiz, fazendo o maxilar do rapaz ficar frouxo, depois me agarrou pela mão e arrastou-me porta afora.

— Vamos! — disse, resmungando enquanto mudava de posição o corpo escorregadio do chinês, a fim de segurá-lo melhor. - Virão atrás de nós a qualquer momento!

E vieram; pude ouvir a gritaria quando os mais exaltados jorraram da taberna para a rua em nosso encalço. Jamie enfiou-se pela primeira abertura que desembocava na Royal Mile, entrando num beco estreito e escuro, e fomos chapinhando pelas poças de lama e outras menos identificáveis, nos agachando por baixo de uma arcada e descendo outra viela sinuosa que parecia atravessar as entranhas de Edimburgo. Paredes escuras e portas de madeira lascadas passavam velozmente por nós, até virarmos uma esquina desembocando num pequeno pátio, onde paramos para tomar fôlego.

— O que... afinal... ele fez? — perguntei, arquejante. Eu não conseguia imaginar o que o pequeno chinês havia feito a uma jovem e robusta prostituta como aquela Maggie. Tudo indicava que -ela poderia tê-lo esmagado como uma mosca.

- Bem, são os pés, sabe? -Jamie explicou, com um olhar de relance, de conformada irritação, ao sr. Willoughby.

- Pés? - Relanceei os olhos involuntariamente para os minúsculos pés do chinês, perfeitas miniaturas calçadas em sapatilhas de cetim negro com sola de feltro.

- Não os dele -Jamie disse, notando meu olhar. - Os das mulheres.

- Que mulheres? - perguntei.

— Bem, até agora têm sido apenas prostitutas — ele disse, lançando um olhar pela arcada para ver se o bando continuava a nos perseguir -, mas não se sabe o que ele pode tentar. Nenhum discernimento - explicou sucintamente. - Ele é pagão.

— Compreendo — eu disse, embora até então não estivesse compreendendo nada. - O que...

- Lá estão eles! - Um grito no outro extremo da viela interrompeu minha pergunta.

- Droga, achei que tivessem desistido. Venha, por aqui! Desatamos a correr outra vez pela viela, de volta à Royal Mile, alguns passos ladeira abaixo e de novo para dentro de um beco. Eu podia ouvir gritos e clamores atrás de nós na rua principal, mas Jamie agarrou meu braço e arrastou-me atrás dele por uma porta aberta, entrando num pátio repleto de barris, fardos e caixotes. Olhou freneticamente ao redor, depois arremessou o corpo inerte do sr. Willoughby em um grande barril cheio de lixo. Parando apenas o suficiente para jogar um pedaço de lona sobre a cabeça do chinês para escondê-lo, arrastou-me para trás de uma carroça carregada de caixotes e puxou-me para baixo, a seu lado.

Eu arfava do esforço a que não estava acostumada e meu coração disparara com a adrenalina do medo. O rosto de Jamie estava vermelho do frio e do exercício, e seus cabelos eriçavam-se em todas as direções, mas ele mal respirava um pouco mais pesadamente.

- Você faz esse tipo de coisa o tempo todo? - perguntei, apertando a mão contra o peito num esforço vão de fazer meu coração diminuir a aceleração.

- Não exatamente - ele disse, espreitando cuidadosamente por cima da carroça à cata do bando.

O eco das batidas de pés chegou fracamente até nós, depois desapareceu e tudo ficou em silêncio, exceto pelo tamborilar da chuva nos caixotes acima de nós.

- Passaram direto. Mas é melhor ficarmos aqui um pouco, só para ter certeza. - Tirou um caixote da carroça para eu me sentar, pegou outro para si próprio e sentou-se com um suspiro, afastando os cabelos soltos do rosto com uma das mãos.

Lançou-me um sorriso enviesado.

— Desculpe-me, Sassenach. Não pensei que seria tão...

- Movimentado? - terminei por ele. Devolvi o sorriso e peguei um lenço para enxugar uma gota de suor da ponta do meu nariz. - Tudo bem.

- Olhei para o enorme barril, onde murmúrios e agitações indicavam que o sr. Willoughby estava retornando a um estado mais ou menos consciente. - Ha... como sabe a respeito dos pés?

- Ele me contou; ele tem uma queda por bebida, sabe - ele explicou, lançando um olhar para o barril onde seu colega estava escondido. — E quando ele exagera na dose, começa a falar sobre os pés das mulheres e todas as coisas terríveis que quer fazer com eles.

— Que coisas terríveis se pode fazer com um pé? — Eu estava fascinada. - Certamente as possibilidades são limitadas.

— Não, não são — Jamie disse soturnamente. — Mas não é algo que eu gostaria de estar discutindo num lugar público.

Uma cantiga monótona surgiu das profundezas do barril atrás de nós. Era difícil saber, entre as inflexões naturais da língua, mas achei que o sr. Willoughby estava fazendo algum tipo de pergunta.

- Cale a boca, seu verme - Jamie disse indelicadamente. - Mais uma palavra e eu mesmo vou pisotear a sua cara; vamos ver se vai gostar. Ouviu-se uma risadinha estridente e o barril silenciou.

- Ele quer que alguém ande sobre o rosto dele? - perguntei.

- Sim. Você - Jamie disse sucintamente. Encolheu os ombros num gesto de desculpas e suas faces ruborizaram-se. - Não tive tempo de explicar a ele quem você é.

- Ele fala inglês?

- Ah, sim, de certo modo, mas pouca gente compreende o que ele diz. A maior parte do tempo, eu falo com ele em chinês.

Olhei-o espantada.

— Você fala chinês?

Ele deu de ombros, inclinando a cabeça com um leve sorriso.

— Bem, eu falo chinês mais ou menos como o sr. Willoughby fala inglês, mas ele não tem muita escolha no que diz respeito a conversar em chinês, de modo que tem que se contentar comigo.

Meu coração dava sinais de estar voltando ao normal e eu me reclinei sobre o fundo da carroça, o capuz mais puxado para a frente para me proteger da garoa.

— Onde ele foi arranjar um nome como Willoughby? — perguntei. Ao mesmo tempo em que estava curiosa a respeito do chinês, estava ainda mais curiosa para saber o que um respeitável mestre-impressor de Edimburgo estava fazendo com um, mas senti uma certa relutância em ficar bisbilhotando a vida de Jamie. Tendo acabado de voltar do supostamente mundo dos mortos, ou seu equivalente, eu não poderia querer saber todos os detalhes de sua vida de imediato.

Jamie passou a mão pelo nariz.

- Sim, bem. É que o verdadeiro nome dele é Yi Tien Cho. Ele diz que significa ”aquele que se ampara no céu”.

- Difícil demais para os escoceses locais pronunciarem? - Conhecendo a natureza insular da maioria dos escoceses, não me surpreendia que não quisessem se aventurar por estranhas águas lingüísticas. Jamie, com seu dom para línguas, era uma anomalia genética.

Ele sorriu, os dentes brancos e brilhantes na penumbra crescente.

- Bem, não se trata exatamente disso. É que se você pronunciar o nome dele um pouquinho diferente, fica muito parecido com um palavrão em gaélico. Pensei que Willoughby talvez fosse melhor.

- Sei. - Achei que talvez, nas atuais circunstâncias, eu não devia perguntar qual era exatamente a palavra gaélica. Olhei por cima do ombro, mas a ladeira parecia desobstruída.

Jamie percebeu meu gesto e levantou-se, balançando a cabeça.

- Sim, já podemos ir. Os rapazes já devem ter voltado para a taberna.

— Nós não vamos ter que passar pela World’s End para voltar à gráfica? — perguntei, hesitante. — Ou existe um caminho por trás? —Já escurecera completamente e a idéia de ir tropeçando pelos montes de lixo e de lama das passagens de fundos não me atraía.

- Ah... não. Não vamos para a gráfica. - Eu não pude ver seu rosto, mas parecia haver uma certa reserva em seu jeito. Talvez ele tivesse uma residência em algum outro lugar da cidade. Senti um frio no estômago diante da perspectiva; o quarto em cima da gráfica era claramente uma cela de monge; mas talvez ele tivesse uma casa em algum outro lugar... com uma família dentro? Não houve tempo para nada além da troca das informações mais essenciais na gráfica. Eu não tinha como saber o que ele fizera nos últimos vinte anos ou o que andava fazendo agora.

Ainda assim, ele ficara obviamente feliz — para dizer o mínimo — de me ver e o ar pensativo que agora exibia podia perfeitamente ter a ver com seu sócio embriagado, e não comigo.

Inclinou-se sobre o barril, dizendo alguma coisa em chinês com forte sotaque escocês. Era um dos sons mais estranhos que eu já ouvi; mais ou menos como os guinchos de uma gaita de foles sendo afinada, pensei, achando graça na execução.

O que quer que ele tenha dito, o sr. Willoughby respondeu loquazmente, interrompendo-se com risadinhas e pigarros. Finalmente, o chinês surgiu na borda do barril, a silhueta de sua figura minúscula desenhada contra a luz de um distante lampião do beco. Ele saltou do barril com grande agilidade e prontamente prostrou-se no chão diante de mim..

Lembrando-me do que Jamie me dissera sobre pés, dei um rápido passo para trás, mas Jamie colocou a mão em meu braço para me tranqüilizar.

- Não, tudo bem, Sassenach - ele disse. - Ele só está se desculpando por seu desrespeito com você anteriormente.

- Ah, bem. - Olhei desconfiada para o sr. Willoughby, que tagarelava alguma coisa para o chão sob seu rosto. Desconhecendo a etiqueta adequada, abaixei-me e bati de leve em sua cabeça. Evidentemente, isso servia, porque ele logo se pôs de pé e fez várias mesuras para mim, até Jamie dizer-lhe com impaciência para parar. Voltamos, então, para a Royal Mile.

O prédio para o qual Jamie me conduziu ficava discretamente escondido em um pequeno beco logo acima da igreja de Canongate, talvez a uns quatrocentos metros acima do palácio Holyrood. Vi os lampiões montados junto aos portões do palácio lá embaixo e estremeci ligeiramente diante da visão. Havíamos morado com Carlos Stuart no palácio por aproximadamente cinco semanas, na fase inicial, vitoriosa, de sua curta carreira. O tio de Jamie, Colum MacKenzie, morrera ali.

A porta abriu-se com a batida de Jamie e todos os pensamentos do passado se desvaneceram. A mulher que nos espreitava, castiçal na mão, era miúda, elegante, de cabelos escuros. Ao ver Jamie, puxou-o para dentro com uma exclamação de alegria e beijou-o no rosto em saudação. Minhas entranhas crisparam-se como um punho cerrado, mas depois relaxaram de novo, quando eu o ouvi cumprimentá-la como ”madame Jeanne”. Não é o tratamento que se daria a uma esposa - nem mesmo, eu esperava, a uma amante.

Ainda assim, havia alguma coisa a respeito da mulher que me deixava apreensiva. Ela era obviamente francesa, embora falasse inglês muito bem - nada de estranhar; Edimburgo era um porto e uma cidade bastante cosmopolita. Estava vestida sobriamente, mas com suntuosidade, em seda pesada com um corte elegante, mas usava bem mais pó-de-arroz e ruge do que a escocesa comum. O que me perturbava era a maneira como me olhava — franzindo o cenho, com um perceptível ar de antipatia.

- Monsieur Fraser - ela disse, tocando o ombro de Jamie com um ar de posse que eu absolutamente não gostei. — Posso dar uma palavrinha em particular com você?

Jamie, entregando o manto para a criada que veio buscá-lo, lançou um rápido olhar para mim e percebeu a situação imediatamente.

— Claro, madame Jeanne — ele disse educadamente, estendendo a mão para que eu me aproximasse. - Mas primeiro... quero lhe apresentar minha mulher, a sra. Fraser.

Meu coração parou de bater por um instante, depois retomou o compasso, com uma força que eu tinha certeza poderia ser ouvido por qualquer pessoa no pequeno vestíbulo. Os olhos de Jamie encontraram-se com os meus e ele sorriu, seus dedos apertando meu braço com mais intensidade.

- Sua... mulher? - Eu não sabia dizer se era assombro ou horror o que dominou o semblante de madame Jeanne. — Mas monsieur Fraser... você a traz aqui”? Eu pensei... uma mulher... tudo bem, mas insultar nossas próprias jeunes filies não é bom... por outro lado... a esposa... - Ficou indecorosamente boquiaberta, exibindo vários molares cariados. Em seguida, retomou repentinamente sua atitude de desconcertada calma e inclinou a cabeça para mim tentando demonstrar uma atitude cortês. — Bonsoir... madame.

— Igualmente, tenho certeza — eu disse educadamente.

- Meu quarto está pronto, madame? - Jamie perguntou. Sem esperar uma resposta, virou-se em direção às escadas, levando-me com ele. Vamos passar a noite.

Olhou para trás, para o sr. Willoughby, que entrara conosco. Ele sentara-se imediatamente no chão, onde ficou escorrendo a água da chuva, uma expressão sonhadora no rosto pequeno e achatado.

— Ha...? —Jamie fez um pequeno gesto indicando o sr. Willoughby, as sobrancelhas erguidas para madame Jeanne num gesto interrogativo. Ela olhou fixamente para o pequeno chinês por um instante como se estivesse se perguntando de onde ele surgira e, em seguida, recobrou-se, bateu palmas vivamente chamando uma das criadas.

- Veja se a srta. Josie está liberada, por favor, Pauline - ela disse. - E depois leve água quente e toalhas limpas para monsieur Fraser e sua... mulher. - Pronunciou a palavra com uma espécie de surpresa estupidificada, como se ainda não acreditasse.

- Ah, outra coisa, por gentileza, madame? -Jamie inclinou-se sobre a balaustrada, sorrindo para ela. — Minha mulher precisa de um vestido novo; suas roupas sofreram um infeliz acidente. Poderia providenciar algo adequado pela manhã? Obrigado, madame Jeanne. Bonsoir!

Eu não falei, enquanto o seguia pelos quatro lances de escada sinuosa, até o ponto mais alto da casa. Eu estava ocupada demais, pensando, minha mente rodopiando. ”Cafetão”, dissera o rapaz no pub. Mas certamente isso fora apenas um xingamento — era absolutamente impossível. Para o Jamie Fraser que eu conhecera, isso era impossível, corrigi-me, fitando os ombros largos sob o casaco de sarja cinza-escuro. E para este homem?

Eu não sabia bem o que eu estava esperando, mas o quarto era bastante simples, pequeno e limpo - embora isso fosse extraordinário, pensando bem. A mobília consistia em um banquinho, uma cama comum e uma cômoda de gavetas, sobre a qual havia uma bacia e uma jarra de água e um castiçal de cerâmica com uma vela de cera de abelhas, que Jamie acendeu com a vela fina que trouxera de baixo.

Ele sacudiu o casaco molhado e atirou-o displicentemente sobre o banco, depois se sentou na beira da cama para retirar os sapatos molhados.

— Deus — disse —, estou morto de fome. Espero que a cozinheira não tenha ido dormir ainda.

— Jamie... — eu disse.

— Tire o manto, Sassenach — ele disse, notando que eu ainda estava parada junto à porta. - Você está encharcada.

- Sim. Bem... sim. - Engoli em seco, e continuei. - É que... ha... Jamie, por que você tem um quarto particular em um bordel? - extravasei.

Ele esfregou o queixo, ligeiramente embaraçado.

— Desculpe-me, Sassenach — ele disse. — Sei que não foi correto trazê-la para cá, mas era o único lugar onde poderíamos mandar consertar seu vestido rapidamente, além de encontrar uma comida quente. Além disso, eu precisava colocar o sr. Willoughby num lugar onde ele não arranjasse mais confusão e como tínhamos que vir aqui de qualquer maneira... bem — olhou para a cama -, é bem mais confortável do que meu catre na gráfica. Mas talvez não tenha sido uma boa idéia. Podemos ir embora, se achar que não...

- Não me importo com isso - interrompi. - A questão é... por que você tem um quarto em um bordel? É um freguês tão bom que...

— Um freguês? — Ergueu os olhos arregalados para mim, as sobrancelhas erguidas. - Aqui? Santo Deus, Sassenach, o que acha que eu sou?

— Gostaria de saber — eu disse. — É por isso que estou perguntando. Vai responder à minha pergunta?

Ele fitou os pés calçados de meias por um instante, contorcendo os dedos na tábua do assoalho. Finalmente, ergueu os olhos para mim e respondeu calmamente:

- Creio que sim. Não sou um freguês da Jeanne, mas ela é cliente minha... uma das melhores. Ela mantém um quarto para mim porque estou sempre fora, a negócios, até tarde da noite, e eu prefiro ter um lugar para onde possa voltar e encontrar comida e uma cama a qualquer hora, e privacidade. O quarto faz parte do meu acordo com ela.

Eu estivera prendendo a respiração. Soltei o ar parcialmente.

- Está bem - eu disse. - Então suponho que a próxima pergunta seja que negócios a dona de um bordel pode ter com um mestre-impressor? A idéia absurda de que talvez ele imprimisse folhetos de propaganda para madame Jeanne atravessou minha mente, sendo imediatamente descartada.

- Bem - ele disse devagar. - Não. Acho que a pergunta não é essa.

- Não é?

- Não. - Com um movimento fluido, ele saiu da cama e postou-se diante de mim, suficientemente perto para eu ter que levantar a cabeça para olhá-lo nos olhos. Senti um súbito impulso de recuar um passo, mas não o fiz, em grande parte porque não havia espaço suficiente. - A pergunta, Sassenach, é por que você voltou? — ele disse a meia-voz.

- Que diabo de pergunta é essa? - As palmas de minhas mãos pressionaram-se, abertas, contra a madeira áspera da porta. — Por que você acha que eu voltei?

- Não sei. - A voz escocesa era suave e fria, mas mesmo na penumbra, eu podia ver sua artéria pulsando pela gola aberta da camisa. - Você voltou para ser minha mulher outra vez? Ou apenas para me contar sobre a minha filha? — Como se pressentisse que sua proximidade me deixava nervosa, virou-se repentinamente, dirigindo-se à janela, onde as persianas rangiam com o vento. — Você é a mãe da minha filha. Só por isso, eu já lhe devo minha alma, por saber que minha vida não foi em vão, que minha filha está a salvo. — Virou-se novamente para me encarar, os olhos azuis resolutos.

- Mas já faz muito tempo, Sassenach, desde que eu e você éramos um só. Você teve a sua vida... no seu tempo... e eu tive a minha vida aqui. Você não sabe nada do que eu fiz, ou fui. Você veio agora porque quis... ou porque achou que era seu dever?

Senti um nó na garganta, mas enfrentei seus olhos.

— Eu vim agora porque antes... eu achava que você estava morto. Achei que tivesse morrido em Culloden.

Seus olhos abaixaram-se para o parapeito da janela, onde começou a levantar uma farpa da madeira.

- Sim, entendo - disse suavemente. - Bem... eu pretendia estar morto. — Sorriu, sem humor, os olhos fixos na farpa de madeira. — Tentei com todas as forças. - Ergueu os olhos para mim outra vez. - Como descobriu que eu não havia morrido? Ou, na verdade, onde eu estava?

— Tive ajuda. Um jovem historiador chamado Roger Wakefield encontrou os arquivos; ele seguiu seu rastro até Edimburgo. E quando eu vi ”A. Malcom”, eu soube... eu pensei... devia ser você - terminei canhestramente. Haveria muito tempo para os detalhes mais tarde.

- Sim, compreendo. E então você veio. Mas ainda assim... por quê?

Olhei-o espantada, muda, por um instante. Como se sentisse necessidade de ar, ou talvez somente para ter o que fazer, ele remexeu desajeitadamente no trinco das persianas e abriu-as parcialmente, inundando o aposento com o barulho de água escorrendo e o cheiro frio e fresco da chuva.

- Está tentando me dizer que não quer que eu fique? - perguntei, finalmente. — Porque se assim for... quero dizer, sei que deve ter uma vida agora... talvez tenha... outras ligações... - Com os sentidos estranhamente aguçados, eu podia ouvir os menores ruídos de atividade pela casa embaixo, até mesmo acima do barulho da tempestade e dos batimentos do meu próprio coração. As palmas das minhas mãos estavam úmidas e eu as limpei disfarçadamente na saia.

Ele virou-se da janela para me fitar, os olhos arregalados.

— Santo Deus! — exclamou. — Não querer você? — Seu rosto tornou-se pálido e os olhos extraordinariamente brilhantes. - Eu ansiei por você durante vinte anos, Sassenach — ele disse a meia-voz. - Não sabe disso? Santo Deus! - A brisa agitou as mechas soltas em torno de seu rosto e ele afastou-as para trás com impaciência. — Mas eu não sou o mesmo homem que você conheceu há vinte anos, não é? - Virou-se com um gesto de frustração. — Nós nos conhecemos menos agora do que nos conhecíamos quando nos casamos.

— Quer que eu vá embora? — O sangue latejava nos meus ouvidos.

- Não! - Virou-se rapidamente em minha direção e segurou meu ombro com firmeza, fazendo-me recuar involuntariamente. - Não - repetiu, com mais calma. - Não quero que vá embora. Eu lhe disse isso e estava falando a verdade. Mas... eu tenho que saber. - Inclinou a cabeça para mim, o rosto transtornado pela dúvida. - Você me quer? - ele sussurrou. - Sassenach, você vai me aceitar e se arriscar com o homem que eu sou agora, em nome do homem que você conheceu?

Senti uma grande onda de alívio, mesclado com temor. Ela correu de sua mão em meu ombro às pontas dos meus dedos dos pés, enfraquecendo minhas juntas.

- É tarde demais para fazer essa pergunta - eu disse, estendendo a mão para tocar seu rosto, onde a barba áspera começava a despontar. Era macia sob meus dedos, como veludo. - Porque eu já arrisquei tudo que eu possuía. Mas quem quer que você seja agora, Jamie Fraser... sim. Sim, eu o quero.

A luz da chama da vela fez o azul de seus olhos cintilar quando estendeu as mãos para mim e eu caminhei sem nenhuma palavra para dentro de seus braços. Pousei o rosto em seu peito, admirando-me com a sensação de têlo em meus braços; tão grande, tão sólido e quente. Real, após anos de saudades de um fantasma que eu não podia tocar.

Soltando-se após um instante, ele fitou-me e tocou meu rosto, muito delicadamente. Sorriu levemente.

— É corajosa como o diabo, sabia? Mas você sempre foi. Tentei sorrir para ele, mas meus lábios tremiam.

- E você? Como pode saber como eu sou agora? Também não sabe o que estive fazendo nos últimos vinte anos. Posso ser uma pessoa horrível agora!

O sorriso em seus lábios deslocou-se para seus olhos, iluminando-os de humor.

— Sim, é verdade, imagino que possa ser. Mas, sabe, Sassenach... acho que não me importo.

Continuei fitando-o por mais um instante, depois dei um profundo suspiro que arrebentou mais alguns pontos do meu vestido.

— Nem eu.

Parecia absurdo me sentir acanhada com ele, mas o fato é que era assim que me sentia. As aventuras da tarde e suas próprias palavras para mim haviam aberto o abismo da realidade - aqueles vinte anos não compartilhados que abriam um vazio entre nós e o futuro desconhecido que se estendia à frente. Havíamos chegado ao ponto em que começaríamos a nos conhecer outra vez e a descobrir se éramos de fato as mesmas pessoas que um dia existiram como um único ser - e se poderíamos ser um só outra vez.

Uma batida na porta quebrou a tensão. Era uma pequena criada, trazendo uma bandeja com o jantar. Balançou a cabeça timidamente para mim, sorriu para Jamie e arranjou tanto a refeição - carne fria, caldo quente e pão de aveia quente com manteiga - quanto o fogo na lareira com mãos práticas, deixando-nos em seguida com um murmurado ”Boa-noite”.

Comemos devagar, conversando cautelosamente sobre assuntos neutros; contei-lhe como eu conseguira ir de Craigh na Dun para Inverness e o fiz rir com histórias do sr. Graham e do pequeno Georgie. Ele por sua vez contou-me sobre o sr. Willoughby; como ele encontrara o chinesinho, faminto e completamente bêbado, caído atrás de uma fileira de barris nas docas em Burntisland, um dos portos da marinha mercante de Edimburgo.

Praticamente não falamos mais de nós mesmos. Entretanto, conforme comíamos, fui ficando cada vez mais consciente do seu corpo, observando suas mãos longas e elegantes quando ele servia vinho e cortava a carne, vendo os contornos de seu torso musculoso por baixo da camisa e a linha graciosa do pescoço e do ombro quando se abaixou para pegar um guardanapo que caíra. Uma ou duas vezes, pareceu-me ver seu olhar demorarse em mim do mesmo modo — uma espécie de avidez hesitante —, mas a cada vez ele logo desviava o olhar, encobrindo os olhos de forma que eu não pudesse perceber o que ele estava vendo ou sentindo.

Quando o jantar terminou, o mesmo pensamento dominava nossas mentes. E não poderia ser de outra forma, considerando o lugar em que nos encontrávamos. Um tremor de medo e expectativa percorreu-me.

Finalmente, ele esvaziou seu copo de vinho, depositou-o sobre a mesa e olhou-me direto nos olhos.

- Você... - Parou, o rubor aumentando em suas feições, mas não desviou os olhos dos meus. Engoliu em seco e continuou. - Você quer vir para a cama comigo, então? Quero dizer - apressou-se a esclarecer -, está frio, nós dois estamos molhados e...

- E não há nenhuma poltrona - terminei para ele. - Está bem. - Soltei minha mão da sua e virei-me em direção à cama, sentindo uma estranha mistura de excitação e hesitação, que me deixava sem ar.

Ele tirou as calças e as meias rápido, depois olhou para mim.

- Desculpe-me, Sassenach, eu devia ter imaginado que você iria precisar de ajuda com seus cadarços.

Então ele não despia mulheres com freqüência, pensei, antes que pudesse me conter, e meus lábios curvaram-se num sorriso diante da idéia.

— Bem, não são cadarços — murmurei —, mas se me desse uma ajuda aqui nas costas... - Tirei o manto e virei-me de costas para ele, levantando meus cabelos para expor a gola do vestido na nuca.

Houve um silêncio intrigado. Em seguida, senti um dedo deslizando pelo caminho central da minha espinha dorsal.

- O que é isso? - perguntou, parecendo espantado.

— Chama-se zíper — eu disse, embora ele não pudesse ver a expressão do meu rosto. - Vê a pequena lingüeta em cima? Basta segurá-la e puxá-la direto para baixo.

Os dentes do zíper abriram-se com um ruído rasgado e surdo e o que sobrara do Jessica Gutenburg soltou-se. Tirei os braços de dentro das mangas e deixei o vestido cair pesadamente ao redor dos meus pés, virando-me para encarar Jamie antes que eu perdesse a coragem.

Ele fez um movimento brusco para trás, surpreso com o repentino desnudamento da crisálida. Depois, pestanejou e fitou-me.

Fiquei parada diante dele apenas de sapatos e meias de seda cor-de-rosa presas com ligas. Senti uma necessidade premente de puxar o vestido de volta para cima, mas resisti. Retesei a espinha, empinei o queixo e esperei.

Ele não disse nada. Seus olhos brilhavam à luz da vela enquanto ele movia ligeiramente a cabeça, mas ele ainda possuía aquele jeito de esconder seus pensamentos por trás de uma máscara inescrutável.

- Podia dizer alguma coisa? - exigi finalmente, a voz apenas um pouco trêmula.

Sua boca abriu-se, mas nenhuma palavra foi emitida. Ele meneou a cabeça devagar, de um lado para o outro.

- Meu Deus - murmurou finalmente. - Claire... você é a mulher mais linda que eu já vi.

- Você - eu disse com convicção - está ficando com a vista fraca. Provavelmente é glaucoma, é novo demais para cataratas.

Ele riu, um pouco tremulamente, e então vi que ele, de fato, estava cego - seus olhos brilhavam porque estavam rasos de água, mesmo enquanto ele sorria. Ele piscou com força e estendeu a mão.

— Eu - ele disse, com igual convicção - tenho os olhos de um falcão, sempre tive. Venha cá.

Com certa relutância, segurei sua mão e saí do abrigo inadequado dos restos do meu vestido. Ele puxou-me delicadamente, colocando-me entre seus joelhos, enquanto se sentava na borda da cama. Em seguida, beijoume com ternura, uma vez em cada seio, e pousou a cabeça entre eles, seu hálito quente em minha pele nua.

- Seus seios parecem marfim - ele disse num sussurro, num sotaque das Highlands escocesas, que sempre se intensificava quando ele ficava realmente emocionado. Sua mão ergueu-se e envolveu um dos meus seios, os dedos bronzeados contra o brilho pálido de minha pele. - Só de vê-los, tão cheios e tão redondos... Santo Deus, eu poderia deitar minha cabeça aqui para sempre. Mas tocá-la, Sassenach... com sua pele de veludo branco e os contornos longos e suaves de seu corpo... — Parou e eu pude sentir os músculos de sua garganta enquanto ele engolia em seco, a mão movendo-se devagar pelas curvas suaves da cintura e do quadril, a subida e a descida da nádega para a coxa.

— Meu Deus — ele disse, ainda num sussurro. — Eu não poderia olhar para você, Sassenach, e manter as mãos longe de você, não a ter perto de mim e não desejá-la. - Ergueu a cabeça e plantou um beijo sobre meu coração, deixando, em seguida, sua mão flutuar pela curva suave do meu ventre, tocando de leve as pequenas marcas ali deixadas pelo nascimento de Brianna.

- Você... realmente não se importa? - eu disse hesitantemente, roçando meus próprios dedos pela barriga.

Ele ergueu o rosto e sorriu para mim com uma expressão um pouco desolada. Hesitou por um instante, em seguida ergueu a barra de sua camisa.

- E você? - ele perguntou.

A cicatriz estendia-se do meio da coxa até perto da virilha, vinte centímetros de tecido esbranquiçado e esgarçado. Não pude conter uma exclamação sufocada diante da aparência da cicatriz e caí de joelhos ao lado dele.

Encostei a face sobre sua coxa, agarrando sua perna com força, como se eu fosse cuidar dele agora - como eu não pudera cuidar na ocasião. Eu podia sentir a pulsação profunda e lenta do sangue através de sua artéria femoral sob meus dedos — a menos de dois centímetros do horrendo sulco daquela cicatriz contorcida.

— Não a assusta nem revolta seu estômago, Sassenach? — ele perguntou, colocando a mão em meus cabelos. Ergui a cabeça e fitei-o intensamente.

- Claro que não!

- Sim, bem. - Estendeu o braço e tocou minha barriga, os olhos presos aos meus. — E se você carrega as cicatrizes de suas próprias batalhas, Sassenach — disse ternamente -, elas também não me incomodam. -

Ergueu-me para sentar na cama a seu lado e inclinou-se para beijarme. Tirei os sapatos e dobrei as pernas para cima, sentindo o calor de seu corpo através da camisa. Minhas mãos encontraram o botão no colarinho, tateando para abri-lo.

— Quero vê-lo.

- Bem, não há muito para ver, Sassenach — ele disse, com uma risada incerta. - Mas o que quer que seja, é seu... se você quiser.

Ele despiu a camisa pela cabeça e atirou-a no chão, depois se reclinou para trás sobre as palmas das mãos, exibindo seu corpo.

Não sei bem o que eu esperava. Na verdade, a visão de seu corpo nu tirou meu fôlego. Ele ainda era alto, é claro, e magnificamente torneado, os ossos longos de seu corpo recobertos de músculos lisos e lustrosos, fortes, mas elegantes. Ele brilhava à luz da vela, como se a luz viesse de dentro de seu corpo.

Ele mudara, mas a mudança era sutil; como se ele tivesse sido colocado num forno e tivesse sido cozido até obter um acabamento mais duro. Parecia que tanto a pele quanto os músculos haviam se tensionado um pouco, se aproximado mais dos ossos, de modo que ele parecia mais rígido, ele nunca fora retesado, mas os últimos vestígios de relaxamento juvenil haviam desaparecido.

Sua pele escurecera um pouco, para um dourado-claro, adquirindo um tom mais bronzeado no rosto e na garganta, clareando pela extensão do corpo até um branco puro, tingido de veias azuis no interior das coxas. Os pêlos pubianos eriçavam-se furiosamente num tufo castanho-avermelhado, e era evidente que ele não estava mentindo; ele realmente me desejava, e muito.

Nossos olhos se encontraram e sua boca torceu-se de repente.

— Eu lhe disse uma vez que seria honesto com você, Sassenach.

Eu ri, sentindo as lágrimas brotarem ao mesmo tempo, uma onda de emoções confusas avolumando-se dentro de mim.

— Eu também.

Estendi minha mão para ele, hesitante, e ele tomou-a A força e o calor de sua mão eram surpreendentes e eu sobressaltei-me ligeiramente. A seguir, apertei sua mão com força e ele pôs-se de pé, de frente para mim

Permanecemos assim, imóveis, hesitantes. Tínhamos intensa consciência um do outro - como poderia ser de outro modo? Era um quarto pequeno e a atmosfera disponível estava repleta de uma carga semelhante à eletricidade estática, forte a ponto de ser quase visível. Eu sentia um frio no estômago de terror, a mesma sensação que se tem numa montanha-russa.

- Está tão apavorado quanto eu? - eu disse finalmente, a voz soando rouca a meus próprios ouvidos.

Ele analisou-me atentamente e ergueu uma das sobrancelhas.

- Acho que não posso estar - ele disse - Você está toda arrepiada. Está com medo, Sassenach, ou apenas com frio?

— Os dois — eu disse, e ele riu.

- Entre debaixo das cobertas, então - ele disse. Soltou minha mão e inclinou-se para puxar a colcha.

Não parei de tremer quando ele deslizou para baixo das cobertas a meu lado, embora o calor do seu corpo causasse um choque térmico.

- Nossa, você não está com frio! - exclamei. Virei-me para ele e o seu calor disseminou-se pela minha pele, da cabeça aos dedos dos pés. Instintivamente atraída para ele, aconcheguei-me contra seu corpo, tremendo. Podia sentir meus mamilos rígidos contra seu peito e o súbito choque de sua pele nua contra a minha.

Ele riu, um pouco incerto.

- Não, não estou! Então acho que estou com medo, não é? - Seus braços me envolveram, docemente, e toquei seu peito, sentindo centenas de poros arrepiarem-se sob meus dedos, entre os pêlos ruivos encaracolados.

— Quando tivemos receio um do outro antes — murmurei —, na nossa noite de núpcias, você segurou minhas mãos. Disse que seria mais fácil se nós nos tocássemos.

Ele emitiu um pequeno som quando a ponta de meu dedo encontrou seu mamilo.

- Sim, é verdade - ele disse, parecendo ofegante. - Santo Deus, toque-me assim de novo. — Suas mãos apertaram-me de repente, segurando-me com força contra ele. — Toque-me — ele disse outra vez, baixinho — e deixe-me tocá-la, minha Sassenach. — Sua mão envolveu-me, acariciando, tocando, meu seio pesado e tenso na sua palma. Continuei a tremer, mas agora ele também tremia.

— Quando nos casamos — ele sussurrou, o hálito quente contra minha face -, e eu a vi lá, tão linda em seu vestido branco... não conseguia pensar em nada além da hora em que ficássemos sozinhos, quando eu poderia desamarrar seus cadarços e tê-la nua para mim, a meu lado na cama.

- Você me deseja agora? - sussurrei, beijando a depressão bronzeada pelo sol acima da clavícula. Sua pele tinha um gosto ligeiramente salgado e seus pêlos um cheiro pungente e másculo de madeira queimada.

Ele não respondeu, apenas moveu-se abruptamente, para que eu o sentisse, rígido, contra minha barriga.

Era terror tanto quanto desejo que me pressionavam contra ele. Eu o queria muito, sem dúvida; meus seios doíam e minha barriga estava endurecida de desejo, sentia a umidade da excitação a que já não estava acostumada, molhada entre minhas pernas, abrindo-me para ele. No entanto, tão forte quanto o apetite sexual, havia a ânsia de simplesmente ser possuída, de ser dominada por ele, mitigar minhas dúvidas num momento de uso selvagem, subjugar-me com força e rapidez suficientes para me fazer esquecer de mim mesma.

Eu podia sentir sua urgência tremer nas mãos que seguravam minhas nádegas, no movimento abrupto e involuntário de seus quadris, interrompido subitamente quando ele se conteve.

Possua-me, pensei, numa agonia de ansiedade. Pelo amor de Deus, possua-me agora e não seja delicado!

Eu não conseguia colocar isso em palavras. Vi o desejo em seu rosto, mas ele, como eu, também não conseguia. Ou era cedo demais ou tarde demais para tais palavras entre nós.

Mas nós havíamos compartilhado outra língua e meu corpo não a esquecera. Pressionei meus quadris contra ele com toda a força, agarrando-o, as curvas de suas nádegas presas sob minhas mãos. Virei meu rosto para cima, ansiando para ser beijada, no mesmo instante em que ele se inclinava para beijar-me.

Meu nariz bateu em sua testa com um barulho de osso estilhaçado. Meus olhos encheram-se imediatamente de lágrimas, enquanto eu rolava para longe dele, segurando o rosto com as duas mãos.

-Ai!

- Santo Deus, eu a machuquei, Claire? - Pestanejando para afastar as lágrimas, pude ver seu rosto ansioso, pairando acima do meu.

- Não - eu disse tolamente. - Mas eu acho que meu nariz está quebrado.

— Não, não está — ele disse, apalpando delicadamente a ponte do meu nariz. - Quando você quebra o nariz, faz um barulho horrível e você sangra como um porco. Está tudo bem.

Coloquei a mão cuidadosamente sob minhas narinas, mas ele tinha razão; eu não estava sangrando. A dor também diminuíra rapidamente. Enquanto chegava a essa conclusão, também percebia que ele estava sobre mim, minhas pernas escancaradas sob ele, seu pênis apenas me tocando, a um triz do momento decisivo.

Vi em seus olhos que ele também percebera o ponto em que estávamos. Nenhum de nós dois se moveu, mal respirando. Em seguida, seu peito enfunou-se quando ele respirou fundo, estendeu o braço e segurou meus pulsos em uma única mão. Puxou-os acima da minha cabeça e prendeu-me ali, meu corpo arqueado e retesado, impotente sob ele.

— Me dê sua boca, Sassenach — ele disse baixinho, inclinando-se para mim. Sua cabeça bloqueou a luz da vela e eu não vi mais nada além de uma penumbra e a escuridão de seu corpo quando sua boca tocou a minha. Delicadamente, roçando, depois pressionando, quente, e eu abri-me para ele com um pequeno suspiro, sua língua buscando a minha.

Mordi seu lábio e ele recuou um pouco, surpreso.

- Jamie - eu disse contra seus lábios, minha própria respiração quente entre nós. - Jamie! - Foi tudo que consegui dizer, mas meus quadris moveram-se bruscamente contra ele, e novamente, clamando violência. Virei a cabeça e cerrei os dentes no músculo de seu ombro.

Ele emitiu um som gutural e penetrou-me com força. Eu estava apertada como qualquer virgem e gritei, arqueando-me sob ele.

- Não pare! - eu disse. - Pelo amor de Deus, não pare!

Seu corpo me ouviu e respondeu na mesma linguagem, apertando meus pulsos com mais força, enquanto mergulhava dentro de mim, a força do ato atingindo meu útero a cada estocada.

A seguir, ele soltou meus pulsos e praticamente caiu sobre mim, o peso de seu corpo prendendo-me à cama, enquanto ele levava a mão para baixo, segurando meus quadris com força, mantendo-me imóvel.

Gemi e contorci-me sob seu corpo e ele mordeu meu pescoço.

- Fique quieta - disse em meu ouvido. Fiquei quieta, apenas porque não conseguia me mover. Permanecemos pressionados um contra o outro, tremendo. Eu podia sentir as batidas de um coração contra minhas costelas, mas não sabia se era o meu ou o dele.

Então ele começou a mover-se dentro de mim, muito devagar, quase superficialmente. Foi o suficiente; meu corpo convulsionou-se em resposta, impotente sob ele, e senti os espasmos do meu orgasmo afagá-lo, afagálo, prendê-lo e soltá-lo, instando-o a unir-se a mim.

Ele ergueu o peito, as costas arqueadas e a cabeça atirada para trás, os olhos fechados, respirando pesadamente. Depois, muito lentamente, inclinou a cabeça para a frente e abriu os olhos. Olhou para mim com indescritível ternura e a luz da vela brilhou por um instante na umidade do seu rosto, talvez de suor ou talvez de lágrimas.

— Ah, Claire — ele sussurrou. — Ah, meu Deus, Claire.

E sua liberação começou, bem fundo dentro de mim, sem que ele se movesse, fazendo um tremor percorrer seu corpo, estremecendo seus braços, os pêlos ruivos fremindo na penumbra. Deixou a cabeça pender com o som de um soluço, os cabelos escondendo seu rosto enquanto ele se derramava, cada contração e cada pulsação de sua carne entre minhas pernas provocando um eco na minha própria carne.

Quando terminou, ele se manteve sobre mim, imóvel como uma pedra por um longo instante. Depois, muito delicadamente, abaixou-se, pressionou a cabeça contra a minha e ficou deitado como se estivesse morto.

Despertei, finalmente, de um estupor profundo e satisfeito, erguendo a mão e colocando-a sobre o ponto onde sua pulsação podia ser sentida, lenta, e forte, bem na base do esterno.

- Acho que é como andar de bicicleta - eu disse. Minha cabeça descansava pacificamente na curva de seu ombro, minha mão brincando preguiçosamente com os anéis vermelho-dourados que cresciam em tufos pelo seu peito. - Sabia que você tem muito mais pêlos no peito do que costumava ter?

- Não - ele disse sonolentamente -, não costumo contá-los. Então as bicicletas têm muitos pêlos?

Fui pega de surpresa e ri.

- Não - eu disse. - Só quis dizer que nós nos lembramos bem do que devíamos fazer.

Jamie abriu um olho e olhou para mim, especulativamente.

— Seria preciso um verdadeiro idiota para esquecer isso, Sassenach — ele disse. — Posso estar sem prática, mas ainda não perdi minhas faculdades mentais.

Ficamos quietos por um longo tempo, cônscios da respiração um do outro, sensíveis a cada pequeno movimento ou mudança de posição. Nós nos encaixávamos bem, minha cabeça aninhada na curva de seu ombro, seu corpo quente sob minha mão, ao mesmo tempo estranho e familiar, à espera da redescoberta.

O prédio era uma construção sólida e o barulho da tempestade lá fora abafava a maioria dos ruídos de dentro, mas de vez em quando sons de pés e vozes tornavam-se vagamente audíveis abaixo de nós; uma risada grave, masculina, ou a voz mais aguda de uma mulher, ampliada num flerte profissional.

Ouvindo-os, Jamie remexeu-se desconfortavelmente.

- Talvez eu devesse tê-la levado a uma taberna - ele disse. - É que...

— Está tudo bem — tranqüilizei-o. — Embora eu deva dizer que, de todos os lugares em que imaginei estar com você outra vez, nunca pensei que seria um bordel. - Hesitei, sem querer bisbilhotar, mas a curiosidade venceu-me. - Você... ha... não é o dono deste lugar, não é, Jamie?

Ele afastou-se um pouco, fitando-me.

— Eu? Meu Deus do céu, Sassenach, quem acha que eu sou?

- Bem, eu não sei, não é? - argumentei com certa aspereza. - A primeira coisa que você faz ao me ver é desmaiar e tão logo consigo colocálo de pé outra vez, me faz ser atacada em um pub e perseguida por toda Edimburgo na companhia de um chinês depravado para depois vir parar em um bordel, cuja madame parece ter grande intimidade com você, devo acrescentar. - As pontas de suas orelhas haviam ficado rosadas e ele parecia lutar entre o riso e a indignação. - Você, então, tira suas roupas, anuncia que é uma pessoa terrível com um passado de depravação, e me leva para a cama. O que esperava que eu pensasse? A risada venceu-o.

- Bem, não sou santo, Sassenach - ele disse. - Mas também não sou cafetão.

- Fico feliz em saber - eu disse. Fez-se uma pausa momentânea e, então, prossegui. - Pretende me dizer o que você realmente é ou devo ir desfiando as possibilidades mais torpes até chegar perto?

— Ah, é? — ele disse, divertindo-se com a sugestão. — Qual o seu melhor palpite?

Examinei-o cuidadosamente. Ele estava descontraído, deitado sobre os lençóis amarfanhados, um dos braços sob a cabeça, rindo para mim.

- Bem, eu apostaria minha roupa de baixo que você não é um tipógrafo - eu disse.

O sorriso alargou-se.

— Por que não?

Cutuquei-o bruscamente nas costelas.

— Você está em ótima forma física. A maioria dos homens de quarenta e poucos anos começam a ficar flácidos em volta da cintura e você não tem nem um grama sobrando.

- Isso se deve principalmente ao fato de eu não ter ninguém para cozinhar para mim — disse, num tom de lamento. — Se você comesse em tabernas o tempo todo, também não ficaria gorda. Felizmente, parece que você come regularmente. — Bateu de leve no meu traseiro com familiaridade e depois se desviou, rindo, quando dei um tapa em sua mão.

- Não tente me distrair - eu disse, recuperando minha dignidade. - De qualquer modo, você não conseguiu estes músculos debruçado numa prensa.

- Já tentou usar uma delas, Sassenach? — Ergueu uma sobrancelha com ar afetado.

- Não. - Franzi a testa, pensativamente. - Acho que você não se tornou um assaltante de estradas, não é?

— Não — ele disse, o sorriso ainda mais largo. — Tente outra vez.

- Estelionato?

- Não.

- Bem, provavelmente não é seqüestro em troca de resgate - eu disse, começando a rejeitar outras possibilidades que ia contando nos dedos. — Pequenos furtos? Não. Pirataria? Não, você não poderia, a menos que tenha se curado de enjôos no mar. Agiotagem? Dificilmente. — Deixei a mão cair e fitei-o. - Você era um traidor na última vez em que o vi, mas isso não parece uma boa maneira de ganhar a vida.

- Ah, eu ainda sou um traidor - assegurou-me. - Só não fui condenado ultimamente.

— Ultimamente?

- Passei vários anos na prisão por traição, Sassenach — ele disse, com ar grave. — Por causa da Revolução. Mas isso já faz muito tempo.

- Sim, eu soube disso. Seus olhos arregalaram-se.

- Você soube?

- Isso e um pouco mais - eu disse. - Eu lhe contarei mais tarde. Mas colocando tudo isso de lado por enquanto e voltando ao ponto em questão: o que você faz como meio de vida atualmente?

— Sou um impressor — ele disse, rindo de orelha a orelha.

- E um traidor?

- E um traidor - ele confirmou, balançando a cabeça. - Já fui preso por subversão seis vezes nos últimos dois anos e minha gráfica confiscada duas vezes, mas o tribunal não conseguiu provar nada.

- E o que acontece com você se eles conseguirem provar numa dessas ocasiões?

- Ah - ele exclamou de modo despreocupado, agitando a mão livre no ar -, o pelourinho. Pregos nas orelhas. Açoitamento. Prisão. Exílio. Esse tipo de coisa. Provavelmente, enforcamento não.

- Que alívio - eu disse ironicamente. Senti-me um pouco vazia. Eu não havia sequer tentado imaginar como seria a sua vida, se eu o encontrasse. Agora que o fizera, estava um pouco consternada.

- Eu a avisei - ele disse. O tom de brincadeira desaparecera e os olhos azul-escuros estavam sérios e vigilantes.

- É verdade - eu disse, respirando fundo.

- Quer ir embora agora? - Falou descontraidamente, mas eu vi seus dedos fecharem-se com força sobre uma dobra do acolchoado, de modo que os nós dos dedos tornaram-se brancos contra a pele bronzeada.

- Não - eu disse. Sorri-lhe, da melhor maneira que pude. - Não voltei só para fazer amor com você uma vez. Eu vim para ficar com você... se você me quiser - terminei, um pouco hesitante.

- Se eu a quiser! - Soltou a respiração que estivera prendendo e sentou-se na cama para me encarar, de pernas cruzadas sobre a cama. Estendeu os braços e tomou minhas mãos, engolfando-as entre as suas.

- Eu... nem sei explicar o que senti hoje quando a toquei, Sassenach, e vi que você era real - ele disse. Seus olhos viajaram pelo meu corpo e eu senti seu calor, seu desejo, e meu próprio calor fundindo-se ao dele. - Encontrá-la outra vez... e depois perdê-la... — Parou, a garganta movimentando-se ao engolir em seco.

Toquei seu rosto, traçando a linha elegante e bem delineada da maçã do rosto e do maxilar.

— Você não vai me perder — eu disse. — Nunca mais. — Sorri, alisando para trás da orelha a mecha espessa de cabelos ruivos. - Nem mesmo se eu descobrir que você andou cometendo bigamia e bebedeira em público.

Ele sobressaltou-se e eu deixei cair minha mão, espantada.

— O que foi?

- Bem - ele disse, e parou. Contraiu os lábios e lançou-me um rápido olhar de esguelha. — É que...

- O quê? Há mais alguma coisa que você não tenha me contado?

- Bem, a impressão de panfletos subversivos não é muito lucrativa - ele disse, justificando-se.

— Imagino que não — eu disse, meu coração começando a acelerar outra vez diante da perspectiva de novas revelações. — O que mais você andou fazendo?

— Bem, é que eu faço um pouco de contrabando — ele disse em tom de desculpas. - Nas horas vagas, mais ou menos.

- Um contrabandista? - Olhei-o, espantada. - Contrabandeando o quê?

- Bem, uísque, na maior parte, mas também rum de vez em quando e uma boa quantidade de vinho francês e de cambraia.

- Então é isso! - eu disse. As peças do quebra-cabeça se encaixavam. O sr. Willoughby, das docas de Edimburgo, e o enigma de nossas atuais instalações. - Então essa é a sua conexão com este lugar... o que quis dizer ao declarar que madame Jeanne era uma cliente?

- Isso mesmo. - Ele balançou a cabeça, confirmando. - Funciona muito bem; armazenamos a bebida em uma das adegas embaixo quando chega da França. Uma parte da carga é vendida direto para Jeanne; outra ela guarda para nós até podermos remeter para o destino.

- Hum. E como parte do arranjo... - eu disse delicadamente -, você... ha...

Os olhos azuis estreitaram-se em minha direção.

- A resposta para o que você está pensando, Sassenach, é não - ele disse com absoluta firmeza.

- Ah, é mesmo? - eu disse, sentindo-me extremamente satisfeita. Agora você é capaz de ler pensamentos, é? E o que eu estou pensando?

- Você estava imaginando se eu às vezes recebo meu pagamento em serviços, não é? - Ele ergueu uma das sobrancelhas para mim.

- Bem, estava - admiti. - Não que eu tenha nada a ver com isso.

- Ah, não tem não, é? - Ergueu ambas as sobrancelhas ruivas e segurou-me pelos ombros, inclinando-se para mim. - Não tem? - ele disse um instante depois. Ele soou um pouco ofegante.

— Não — eu disse, também um pouco ofegante. — E você não...

— Não. Venha cá.

Envolveu-me nos braços e puxou-me para junto dele. A memória do corpo é diferente da memória da mente. Quando eu pensava, imaginava e me preocupava, sentia-me acanhada e sem jeito, tateando no escuro. Sem a interferência do pensamento consciente, meu corpo o conhecia e respondia imediatamente ao dele, em perfeita sintonia, como se ele tivesse acabado de me tocar, e todos esses anos não houvessem transcorrido.

- Eu estava com mais medo agora do que na noite do nosso casamento - murmurei, os olhos fixos na pulsação lenta e forte na base de sua garganta.

- Estava? - Seu braço mudou de posição e apertou-se com mais força ao meu redor. - Eu a assusto, Sassenach?

— Não. — Coloquei meus dedos sobre a pequena pulsação, respirando o profundo almíscar do seu esforço. - É que... na primeira vez... eu não achava que seria para sempre. Na época, eu pretendia ir embora.

Ele soltou o ar com um débil ruído, o suor brilhando levemente no pequeno côncavo no meio de seu peito.

— E você realmente foi embora e voltou outra vez — ele disse. — Você está aqui, nada mais importa além disso.

Ergui-me um pouco para olhar para ele. Seus olhos estavam fechados, puxados como os de um gato, as pestanas daquela cor extraordinária que eu me lembrava tão bem porque a vira tantas vezes; um castanho-escuro nas pontas, esmaecendo para um vermelho-claro, chegando quase a louro na raiz.

- O que você pensou na primeira vez que dormimos juntos? - perguntei. Os olhos azul-escuros abriram-se devagar e pousaram em mim.

- Comigo, desde o começo foi para sempre, Sassenach — ele disse simplesmente.

Algum tempo depois, dormimos abraçados, com o som da chuva batendo de leve nas persianas e misturando-se aos sons abafados do comércio embaixo.

Foi uma noite agitada. Cansada demais para permanecer acordada por mais um instante, fiquei feliz em adormecer profundamente. Talvez eu tivesse medo que ele desaparecesse se eu dormisse. Talvez ele sentisse o mesmo. Ficamos entrelaçados, não acordados, mas conscientes demais um do outro para dormir profundamente. Eu sentia cada minúscula contração de seus músculos, cada movimento de sua respiração, e sabia que ele me percebia da mesma forma.

Cochilando, nós nos virávamos e mudávamos de posição, sempre nos tocando, num balé sonolento, em câmara lenta, aprendendo novamente, em silêncio, a linguagem de nossos corpos. Em algum momento da madrugada silenciosa, ele virou-se para mim sem dizer nem uma palavra, e eu para ele, e fizemos amor devagar, com uma ternura muda que nos deixou finalmente imóveis, em estado de completo abandono, na posse dos segredos um do outro.

Suave como uma mariposa voando no escuro, minha mão deslizou pela sua perna e encontrou o sulco fino e profundo da cicatriz. Meus dedos percorreram seu comprimento invisível e pararam com o mais leve dos toques no final, perguntando sem palavras:

- Como?

Sua respiração se alterou com um suspiro e sua mão pousou sobre a minha.

- Culloden - ele disse, a palavra sussurrada uma evocação de tragédia. Morte. Vazio. A terrível separação que me tirara dele.

- Eu nunca mais o deixarei - murmurei. - Nunca mais.

Ele virou a cabeça no travesseiro, as feições perdidas na escuridão, e seus lábios roçaram os meus, leves como o toque da asa de um inseto. Virou-se sobre as costas, puxando-me para perto dele, a mão descansando pesadamente na curva de minha coxa, mantendo-me junto a si.

Algum tempo depois, eu o senti mexer-se outra vez e afastar um pouco as cobertas. Uma corrente de ar frio brincou pelo meu braço; os minúsculos pêlos arrepiaram-se e em seguida alisaram-se sob o calor de sua mão. Abri os olhos e o encontrei virado de lado, absorto, examinando minha mão. Ela permanecia imóvel sobre a colcha, uma escultura branca, todos os ossos e tendões desenhados em cinza, conforme o quarto começava sua imperceptível mudança de noite para dia.

- Descreva-a para mim - ele sussurrou, a cabeça inclinada, enquanto traçava delicadamente as formas dos meus dedos, longos e espectrais sob a escuridão de sua própria mão. - O que ela tem de você, de mim? Sabe me dizer? As mãos dela são como as suas, Claire, ou como as minhas? Descreva-a para mim, deixe-me vê-la. - Ele colocou a própria mão ao lado da minha. Era sua mão perfeita, os dedos retos e as juntas lisas, as unhas cortadas bem curtas, quadradas e limpas.

— Como as minhas — respondi. Minha voz soou baixa e rouca, como a voz de quem acaba de acordar, quase baixa demais para ser ouvida acima do tamborilar da chuva lá fora. A casa embaixo estava silenciosa. Ergui uns dois centímetros os dedos de minha mão parada, para ilustrar.

- As mãos de Brianna são longas e delgadas como as minhas... porém maiores, largas nas costas, e com uma curva pronunciada na parte externa, perto do pulso... assim. Como a sua. Ela tem uma pulsação bem ali, no mesmo lugar que você. - Toquei o ponto onde uma veia cruzava a curva do seu rádio, bem onde o pulso se liga à mão. Ele estava tão imóvel que eu podia sentir o batimento de seu coração sob a ponta do meu dedo.

- As unhas são como as suas; quadradas, não ovais como as minhas. Mas ela tem o mesmo mindinho curvo na mão direita que eu tenho - eu disse, erguendo-o. - Minha mãe também o tinha; tio Lambert me contou. — Minha própria mãe morrera quando eu tinha cinco anos. Eu não guardava uma imagem clara de minha mãe, mas pensava nela sempre que via minha própria mão inesperadamente, surpreendida num momento de graça como agora. Coloquei a mão com o mindinho curvo sobre a dele, depois a levei a seu rosto.

- Ela possui esta linha - eu disse baixinho, percorrendo a curva arrojada da têmpora à face. — Seus olhos, exatamente iguais, as mesmas pestanas e sobrancelhas. Um nariz Fraser. O queixo pontudo, como o meu, porém mais forte. Ela é alta, um metro e oitenta. — Senti seu sobressalto de surpresa e cutuquei-o de leve, joelho contra joelho. - Ela também possui pernas compridas, como as suas, mas muito femininas.

— E tem essa pequena veia azul bem aí? — Ele tocou meu próprio rosto, o polegar carinhoso na depressão da minha têmpora. - E orelhas como asas minúsculas, Sassenach?

— Ela sempre se queixou das orelhas, dizia que eram de abano — eu disse, sentindo as lágrimas assomarem aos meus olhos conforme Brianna adquiria vida repentinamente entre nós. - São furadas. Você não se incomoda, não é? — eu disse, falando rápido para afastar as lágrimas. — Frank, sim; dizia que era vulgar e que ela não devia perfurá-las, mas ela queria e eu permiti, quando completou dezesseis anos. As minhas também são; não parecia certo dizer a ela que não poderia, quando as minhas eram furadas e as de todas as suas amigas também, e eu não... não queria...

- Você tinha razão - ele disse, interrompendo o fluxo de palavras quase histéricas. - Agiu certo - ele repetiu, em voz baixa, mas firme, abraçando-me junto a ele. — Você foi uma ótima mãe, tenho certeza.

Eu chorava outra vez, silenciosamente, o corpo sacudindo-se em seus braços. Apertou-me com ternura, acariciando minhas costas e murmurando.

- Você agiu certo - ele continuava a dizer. Depois de algum tempo, eu parei de chorar. — Você me deu um filho, mo nighean donn — ele disse suavemente, em meio aos meus cabelos. - Estamos unidos para sempre. Ela está a salvo, e nós dois vamos viver para sempre agora, você e eu. — Beijoume, bem de leve, e deitou a cabeça ao meu lado no travesseiro. – Brianna - murmurou, naquele estranho jeito das Highlands que tornava o nome dela apenas seu. Suspirou profundamente e, em poucos instantes, estava adormecido. Em seguida, eu mesma adormeci e minha última visão foi de sua boca larga e meiga, relaxada no sono, com um leve sorriso.

 

Após anos atendendo às exigências da maternidade e da medicina, eu desenvolvera a capacidade de acordar até mesmo do sono mais profundo imediata e completamente. Acordei assim agora, imediatamente cônscia dos lençóis de linho desgastados ao meu redor, das goteiras lá fora e do cálido aroma do corpo de Jamie misturado ao ar frio e perfumado que penetrava pela fresta das persianas acima de mim.

O próprio Jamie não estava na cama; sem estender a mão ou abrir os olhos, eu sabia que o espaço a meu lado estava vazio. Mas ele estava por perto. Havia um som muito leve de movimentos furtivos e um ruído arrastado e próximo, embora fraco. Virei a cabeça no travesseiro e abri os olhos.

O quarto estava banhado por uma luz cinzenta que amortecia todas as cores, mas deixava as linhas claras dos contornos de seu corpo destacadas na penumbra. Ele se sobressaía contra a escuridão do aposento, sólido como marfim, vivido como se estivesse esculpido no ar. Estava nu, as costas viradas para mim, de pé diante do urinol que acabara de puxar de baixo de seu lugar sob a mesinha do lavatório.

Admirei as formas quadradas, mas arredondadas, de suas nádegas, a pequena depressão muscular que marcava cada uma e sua pálida vulnerabilidade. O sulco de sua espinha dorsal, uma curva lisa e funda, dos quadris aos ombros. Quando se moveu ligeiramente, a luz refletiu o leve brilho prateado das cicatrizes em suas costas e minha respiração ficou presa na garganta.

Ele virou-se, o rosto calmo e meio distraído. Viu-me observando-o e pareceu um pouco surpreso.

Sorri, mas permaneci em silêncio, incapaz de pensar em algo para dizer. Mas continuei a fitá-lo, e ele a mim, o mesmo sorriso nos lábios. Sem falar, aproximou-se e sentou-se a meu lado na cama, abaixando o colchão sob seu peso. Colocou a mão aberta sobre a colcha e eu coloquei a minha dentro dela sem hesitação.

— Dormiu bem? — perguntei tolamente. Um sorriso atravessou seu rosto.

— Não — ele disse. — E você?

- Não. - Podia sentir seu calor, mesmo a distância, apesar do quarto frio. — Não está com frio?

- Não.

Ficamos em silêncio outra vez, mas sem tirar os olhos um do outro. Examinei-o cuidadosamente à luz cada vez mais forte, comparando a lembrança à realidade. Uma lâmina estreita do sol da manhã penetrou pela fenda das persianas, iluminando uma mecha de cabelos como bronze polido, recobrindo de ouro a curva de seu ombro, a extensão lisa e plana de seu abdômen. Ele parecia um pouco mais corpulento do que eu me lembrava e muito mais intuitivo.

- Você parece maior do que eu me lembrava - declarei. Ele inclinou a cabeça, olhando-me com ar divertido.

- Você está um pouco menor, eu acho.

Sua mão engolfava a minha, os dedos delicadamente envolvendo os ossos do meu pulso. Minha boca estava seca; engoli e umedeci os lábios.

— Há muito tempo, você me perguntou se eu sabia o que havia entre nós - eu disse.

Seus olhos pousaram nos meus, de um azul tão escuro a ponto de parecerem negros naquela penumbra.

- Eu me lembro — ele disse brandamente. Seus dedos apertaram-se ligeiramente sobre os meus. — O que é... quando toco em você; quando você se deita comigo.

— Eu disse que não sabia.

- Eu também não sabia. - O sorriso esmaecera um pouco, mas ainda estava lá, espreitando nos cantos de sua boca.

- Eu ainda não sei - eu disse. - Mas... - Parei para limpar a garganta.

— Mas ainda está lá — ele terminou por mim, e o sorriso deslocou-se de sua boca, iluminando seus olhos. - Não é?

Era. Eu ainda tinha consciência de sua presença como teria de uma banana de dinamite acesa na minha vizinhança, mas a sensação entre nós havia mudado. Havíamos adormecido como se fôssemos uma só carne, unidos pelo amor do filho que fizéramos, e havíamos acordado como duas pessoas - ligadas por algo diferente.

— Sim. Será... quero dizer, não é apenas por causa de Brianna, é? A pressão nos meus dedos aumentou.

— Eu a quero porque você é a mãe da minha filha? — Ele ergueu uma sobrancelha ruiva, incrédulo. - Bem, não. Não que eu não seja agradecido — acrescentou apressadamente. — Mas... não. — Inclinou-se para olharme atentamente e o sol iluminou a ponte estreita de seu nariz e lançou faíscas de suas pestanas.

— Não — ele disse. — Acho que poderia ficar observando-a durante horas, Sassenach, para ver de que maneira você havia mudado ou como ainda é a mesma. Ver apenas um detalhe, como a curva de seu queixo — tocou meu maxilar delicadamente, deixando a mão deslizar até meu pescoço, o polegar acariciando o lóbulo de minha orelha - ou suas orelhas e os minúsculos furos para seus brincos. Tudo isso é igual, exatamente como eram. Seus cabelos... eu a chamava de mo nighean donn, lembra-se? Minha castanha. — Sua voz era pouco mais do que um sussurro, os dedos enroscando-se em meus cachos.

- Acho que isso mudou um pouco - eu disse. Eu não ficara grisalha, mas havia fios mais claros onde minha cor normal marrom-clara desbotara para um ouro mais branco e, aqui e ali, o brilho de um solitário fio prateado.

- Como madeira de faia na chuva - ele disse, sorrindo e alisando um cacho com o indicador — e as gotas d’água caindo das folhas pela casca.

Estendi a mão e acariciei sua coxa, tocando a longa cicatriz que a percorria.

- Quisera ter estado lá para cuidar de você - eu disse baixinho. - Foi a coisa mais terrível que eu já fiz... deixá-lo, sabendo... que você pretendia ser morto. - Eu mal conseguia pronunciar a palavra.

- Bem, eu tentei com todas as forças - ele disse, com um riso enviesado que me fez rir, apesar da emoção. - Não foi culpa minha não ter conseguido. - Olhou desapaixonadamente para a cicatriz espessa e longa que percorria sua coxa. - Nem tampouco do sassenach com a baioneta.

Ergui-me sobre o cotovelo, estreitando os olhos para olhar mais atentamente a cicatriz.

- Uma baioneta fez isso?

- Sim, bem. Mas inflamou, sabe — ele explicou.

- Sei; encontramos o diário do lorde Melton que o mandou para casa do campo de batalha. Ele achava que você não conseguiria sobreviver. — Minha mão apertou seu joelho, como se eu quisesse me certificar que ele estava de fato ali diante de mim, vivo.

Ele deu uma risadinha.

- Bem, quase não consegui mesmo. Eu estava praticamente morto quando me tiraram da carroça em Lallybroch. - Seu rosto anuviou-se com a lembrança. — Meu Deus, às vezes acordo à noite, sonhando com aquela carroça. Foi uma viagem de dois dias e eu ardia em febre ou sentia calafrios, ou os dois ao mesmo tempo. Estava coberto de feno e as pontas espetavam meus olhos, meus ouvidos, atravessavam minha camisa, as moscas pululando pelo feno, me comendo vivo, e minha perna me matando de dor a cada solavanco na estrada. E era uma estrada muito cheia de buracos - acrescentou, ruminando suas lembranças.

— Deve ter sido horrível — eu disse, considerando a palavra totalmente inadequada. Ele soltou o ar com uma arfada.

- Sim. Só suportei tudo imaginando o que eu faria com Melton se algum dia o encontrasse outra vez, me vingar dele por não ter me fuzilado.

Ri outra vez e ele olhou para mim, um sorriso amargo nos lábios.

- Não estou rindo porque seja engraçado - eu disse, engasgando um pouco. - Estou rindo porque de outro modo eu choraria, e eu não quero... não agora, depois que tudo já terminou.

- Sim, eu sei. - Apertou minha mão. Respirei fundo.

- Eu... eu não olhei para trás. Achei que não agüentaria descobrir... o que acontecera. - Mordi o lábio; a admissão parecia uma traição. - Não que eu tenha tentado... que eu quisesse... esquecer - eu disse, buscando desajeitadamente as palavras certas. - Eu não poderia esquecê-lo. Não deve imaginar isso. Jamais. Mas eu...

- Não se perturbe, Sassenach - ele interrompeu. Bateu de leve na minha mão. - Sei o que quer dizer. Eu mesmo tento não olhar para trás, pensando bem.

- Mas se eu o tivesse feito - eu disse, fitando a trama lisa do linho -, se eu o tivesse feito... talvez o tivesse encontrado há mais tempo.

As palavras pairaram no ar entre nós como uma acusação, um lembrete dos anos difíceis de perda e separação. Por fim, ele suspirou, profundamente, e colocou o dedo sob meu queixo, levantando meu rosto para ele.

— E se você o tivesse feito? — ele disse. — Teria deixado a menina lá sem a mãe? Ou vindo para mim logo após Culloden, quando eu não podia cuidar de você, mas apenas vê-la sofrer com o resto e sentir a culpa de trazela para tal destino? Talvez vê-la morrer de fome e doença e saber que eu a havia matado? - Ergueu uma das sobrancelhas com ar interrogativo, depois sacudiu a cabeça. - Não. Eu lhe pedi para ir e lhe disse para esquecer. Devo condená-la por ter feito o que eu pedi, Sassenach? Não.

- Mas poderíamos ter tido mais tempo! - eu disse. - Poderíamos... Ele me calou pelo expediente simples de se inclinar e colocar sua boca sobre a minha. Era quente e muito macia e os pêlos curtos de sua barba ligeiramente ásperos em minha pele.

Após um instante, ele soltou-me. A luz estava se intensificando, conferindo cor a seu rosto. Sua pele reluzia como bronze, salpicada de faíscas cor de cobre de sua barba. Ele respirou fundo.

- Sim, poderíamos. Mas pensar nisso... não podemos. - Seus olhos fitaram os meus sem pestanejar, buscando. - Não posso olhar para trás, Sassenach, e viver — ele disse simplesmente. — Se não tivermos mais do que a noite passada e este momento, é suficiente.

- Não para mim, não é! - eu disse, e ele riu.

— Gananciosa, hein?

- Sim - eu disse. Com a tensão rompida, voltei minha atenção para a cicatriz em sua perna, para me afastar por enquanto da dolorosa contemplação do tempo e da oportunidade perdidos.

— Você estava me contando como arrumou isto.

- Sim, estava. - Inclinou-se um pouco para trás, estreitando os olhos para examinar a estreita linha branca que descia desde cima de sua coxa.

- Bem, foi Jenny, minha irmã, sabe? - Eu lembrava-me perfeitamente de Jenny; quase metade do tamanho de seu irmão, morena tanto quanto ele era deslumbrantemente claro, mas igualmente ou mais teimosa do que ele. — Ela disse que não iria me deixar morrer - ele disse, com um sorriso melancólico. - E não deixou. Minha opinião não parecia ter nada a ver com o caso, de modo que ela não se deu ao trabalho de me perguntar.

— Bem próprio de Jenny. — Senti uma pequena chama de consolo ao pensar em minha cunhada. Então Jamie não ficara sozinho como eu temera; Jenny Murray teria enfrentado o próprio diabo para salvar seu irmão, e evidentemente conseguira.

- Ela me medicou para a febre e colocou emplastros na minha perna para tirar o veneno, mas nada funcionava e o ferimento só piorava. Inchou e tinha mau cheiro, depois começou a escurecer e gangrenar, daí acharam que deveriam amputar a perna se quisessem que eu vivesse.

Ele recontava tudo isso com muita descontração, mas senti uma ligeira tontura diante da idéia.

- Obviamente não o fizeram - eu disse. - Por quê?

Jamie coçou o nariz e passou a mão pelos cabelos, afastando as mechas rebeldes dos olhos.

— Bem, foi por causa de Ian — ele disse. — Não permitiu que ela o fizesse. Disse que sabia muito bem o que era viver só com uma perna e, embora ele próprio não se incomodasse muito com isso, achava que eu não iria querer... considerando tudo - acrescentou, com um aceno da mão e um olhar para mim que incluía tudo: a perda da batalha, da guerra, de mim, da casa e do seu meio de vida, de tudo que fazia parte de sua vida normal. Achei que Ian tinha razão. - Assim, em vez disso, Jenny fez três dos colonos sentarem-se sobre mim e me imobilizarem. Em seguida, ela cortou minha perna até o osso com uma faca da cozinha e lavou o ferimento com água fervente - ele disse sem afetação.

- Santo Deus! - exclamei, chocada de horror.

Ele sorriu debilmente diante da expressão do meu rosto.

- Sim, bem, funcionou.

Engoli em seco, sentindo gosto de bílis.

— Meu Deus. Não sei como não ficou aleijado para sempre!

- Bem, ela limpou o ferimento da melhor maneira que pôde e costurou-o. Dizia que não ia me deixar morrer e não ia permitir que eu ficasse aleijado, que não queria me ver deitado o dia todo me lamentando, com pena de mim mesmo, e - encolheu os ombros, resignado - quando terminou de dizer tudo que não iria me deixar fazer, achei que só me restava ficar curado.

Fiz eco à sua risada e seu sorriso alargou-se diante da lembrança.

— Quando consegui ficar em pé, ela fez Ian levar-me para fora depois que escureceu e me fez caminhar. Meu Deus, nós devíamos formar uma terrível visão, Ian com sua perna de pau e eu com minha bengala, mancando pela estrada como um par de garças mancas!

Ri novamente, mas tive que me esforçar para conter as lágrimas; eu podia visualizar muito bem as duas figuras altas, aleijadas, lutando teimosamente contra a escuridão e a dor, apoiando-se um no outro.

- Você viveu numa caverna durante algum tempo, não foi? Nós descobrimos a história dessa época.

Suas sobrancelhas ergueram-se de surpresa.

- Uma história sobre isso? Quer dizer, sobre mim?

- Você é uma grande lenda das Highlands - eu lhe disse, ironicamente -, ou será, pelo menos.

- Por viver numa caverna? - Ele parecia em parte lisonjeado, em parte embaraçado. — Bem, é algo tolo para virar uma história, não?

- Arranjar para ser denunciado aos ingleses pelo preço da recompensa talvez tenha sido um pouco mais dramático - eu disse, ainda mais ironicamente. - Correu um grande risco ali, não foi?

A ponta de seu nariz ficou vermelha e ele pareceu meio envergonhado.

- Bem - disse, um pouco embaraçado -, eu não achava que a prisão seria absolutamente terrível e considerando tudo...

Falei com toda a calma que pude reunir, mas eu tinha vontade de sacudi-lo, repentina e ridiculamente furiosa com ele em retrospecto.

- Prisão, uma ova! Você sabia muito bem que poderia ser enforcado, não é? E se fez prender mesmo assim!

- Eu tinha que fazer alguma coisa - ele disse, encolhendo os ombros.

- E se os ingleses eram bastante tolos para pagar uma boa quantia pela minha desprezível carcaça... bem, não há nenhuma lei contra se aproveitar de tolos, não é? - Um dos cantos de sua boca contorceu-se para cima e eu fiquei dividida entre a vontade de beijá-lo e a vontade de esbofeteá-lo.

Não fiz nem uma coisa nem outra, mas sentei-me direito na cama e comecei a desembaraçar meus cachos com os dedos.

— Eu diria que é uma questão a ser discutida sobre quem era o tolo — eu disse, sem olhar para ele -, mas mesmo assim, deve saber que sua filha tem muito orgulho de você.

- Ela tem? - Ele pareceu estupefato e eu ergui os olhos para ele, rindo apesar de minha irritação.

- Bem, é claro que tem. Você é um grande herói, não é?

Ele ficou vermelho diante disso e levantou-se, parecendo totalmente desconcertado.

— Eu? Não! — Passou a mão pelos cabelos, um hábito quando estava pensando ou com a mente perturbada. — Não. Quer dizer — começou, devagar—, isso não teve nada de heróico. Apenas... eu não agüentava mais. Ver todos eles passando fome, quer dizer, sem que eu pudesse fazer nada por eles, Jenny, Ian, as crianças, todos os arrendatários e suas famílias. Olhou-me com ar desamparado. - Eu realmente não me importava se os ingleses iriam me enforcar ou não. Não achava que iriam, por causa do que você havia me dito, mas ainda que eu tivesse certeza... eu teria feito o que fiz, Sassenach, e não teria me importado. Mas não foi bravura, absolutamente. — Lançou as mãos para o ar num sinal de frustração, virando-se de costas. — Não havia mais nada que eu pudesse fazer!

— Entendo — eu disse baixinho, após alguns instantes. — Eu compreendo. — Ele estava parado junto à cômoda alta, ainda nu, e diante do que eu disse, virou-se parcialmente para me fitar.

- Você compreende, então? — Seu rosto estava sério.

- Eu o conheço, Jamie Fraser. - Falei com mais certeza do que já sentira em qualquer momento desde que atravessara as pedras.

- Você compreende, então? - ele perguntou outra vez, mas um leve sorriso esboçou-se em sua boca.

- Acho que sim.

O sorriso em seus lábios ampliou-se e ele abriu a boca para responder. Mas antes que pudesse falar ouviu-se uma batida na porta do quarto.

Sobressaltei-me como se tivesse encostado em um fogão quente. Jamie riu e inclinou-se para dar um tapinha no meu quadril enquanto se dirigia à porta.

- Acho que é a camareira com nosso desjejum, Sassenach, não a polícia. E nós somos casados, não somos? - Uma das sobrancelhas ergueu-se inquisitivamente.

- Ainda assim, você não devia vestir alguma coisa? - perguntei, quando ele já estendia a mão para a maçaneta.

Ele abaixou os olhos para olhar para si mesmo.

— Não acho provável que seja um choque para ninguém nesta casa, Sassenach. Mas em consideração à sua sensibilidade. - Riu para mim e, pegando uma toalha de linho de cima do lavatório, enrolou-a displicentemente ao redor dos quadris antes de abrir a porta.

Avistei um homem alto no corredor e prontamente puxei as cobertas por cima da minha cabeça. Foi uma reação de puro pânico, porque se fosse a polícia de Edimburgo eu não poderia esperar muita proteção de algumas colchas. Mas em seguida o visitante falou e eu fiquei satisfeita por estar a salvo das vistas de qualquer pessoa no momento.

- Jamie? - A voz soou um pouco espantada. Apesar do fato de não ouvi-la há vinte anos, eu a reconheci imediatamente. Rolando na cama, furtivamente ergui uma ponta da colcha e espreitei por baixo.

- Bem, claro que sou eu -Jamie dizia, um tanto irritado. - Está cego, por acaso? - Puxou seu cunhado Ian para dentro do quarto e fechou a porta.

- Estou vendo muito bem que é você - Ian disse, num tom incisivo. Eu só não sabia se devia acreditar no que meus olhos viam! - Seus cabelos lisos e castanhos exibiam fios brancos e seu rosto carregava as rugas de muitos anos de trabalho árduo. Mas Joe Abernathy tinha razão; com suas primeiras palavras, a nova visão mesclou-se à antiga e este era o Ian Murray que eu conhecera.

- Vim aqui porque o rapaz da gráfica disse que você não dormiu lá esta noite e este é o endereço para onde Jenny envia suas cartas — ele dizia. Olhou ao redor do quarto com olhos arregalados e desconfiados, como se esperasse que alguma coisa fosse saltar de trás do armário. Depois, seu olhar retornou ao cunhado, que fazia um esforço atrapalhado para manter sua tanga improvisada no lugar. — Nunca pensei encontrá-lo num prostíbulo, Jamie - disse. - Eu não tinha certeza, quando a... a senhora atendeu a porta lá embaixo, mas depois...

— Não é o que está pensando, Ian — Jamie disse sucintamente.

- Ah, não é, hein? E Jenny preocupada que você ficasse doente vivendo sem uma mulher há tanto tempo! - Ian disse com desdém. - Direi a ela que não precisa se preocupar com seu bem-estar. E onde está meu filho, então, no saguão lá embaixo com outra das meretrizes?

- Seu filho? - A surpresa de Jamie era evidente. - Qual deles?

Ian olhou fixamente para Jamie, a raiva em seu rosto comprido, meio tosco, transformando-se em preocupação.

- Você não está com ele? O pequeno Ian não está aqui?

- O pequeno Ian? Santo Deus, homem, acha que eu traria um garoto de catorze anos para um bordel?

Ian abriu a boca, em seguida fechou-a, e sentou-se no banco.

— Para lhe dizer a verdade, Jamie, já não sei o que você seria capaz de fazer - disse sem se alterar. Ergueu os olhos para seu cunhado, o maxilar tenso. - Houve uma época em que eu sabia. Mas agora não sei mais.

- E o que você quer dizer com isso?

Eu podia ver a onda de raiva subir ao rosto de Jamie.

Ian relanceou os olhos para a cama e desviou-os outra vez. O rubor não desapareceu do rosto de Jamie, mas eu vi um ligeiro tremor no canto de sua boca. Fez uma mesura elaborada para seu cunhado.

— Queira me desculpar, Ian, eu estava esquecendo meus bons modos. Permita-me apresentar-lhe minha companheira. - Deu um passo em direção à cama e puxou as cobertas para trás.

- Não! - Ian gritou, ficando de pé num salto e olhando freneticamente para a porta, o armário, qualquer lugar exceto a cama.

- O que, não vai cumprimentar minha esposa, Ian? - Jamie disse.

- Esposa? - Esquecendo-se de desviar o olhar, Ian fitou Jamie com os olhos arregalados de horror. - Você se casou com uma prostituta? – Falou com voz rouca.

- Eu não diria exatamente isso - eu disse. Ao ouvir minha voz, Ian girou a cabeça em minha direção. — Olá — eu disse, acenando alegremente para ele do meu ninho de cobertas. - Faz muito tempo, não é?

Sempre achei um pouco exageradas as descrições do que as pessoas faziam ao ver fantasmas, mas fui obrigada a rever minhas opiniões à luz das reações que eu vinha recebendo desde que voltara para o passado. Jamie simplesmente desmaiara e ainda que os cabelos de Ian não estivessem literalmente em pé, ele com certeza parecia estar apavorado.

Com os olhos esbugalhados, ele abriu e fechou a boca, emitindo um pequeno som gorgolejante que parecia divertir Jamie intensamente.

- Isso vai ensiná-lo a não sair por aí pensando o pior do meu caráter - ele disse, com evidente satisfação. Com pena do seu trêmulo cunhado, Jamie serviu uma pequena dose de conhaque e entregou o copo a ele. Não julgues e não serás julgado, certo?

Achei que Ian iria derramar a bebida nas calças, mas ele conseguiu levar o copo à boca e engolir.

- O que... - disse num fio de voz, os olhos lacrimejando enquanto olhava fixamente para mim. — Como...?

- É uma longa história - eu disse, com um rápido olhar para Jamie. Ele fez um breve sinal com a cabeça. Tivéramos outras coisas em que pensar nas últimas vinte e quatro horas, além de como me explicar às pessoas e, nas circunstâncias atuais, achei que as explicações poderiam esperar.

— Acho que não conheço o Jovem Ian. Ele desapareceu? - perguntei educadamente.

Ian balançou a cabeça mecanicamente, sem tirar os olhos de mim.

- Ele fugiu de casa na última sexta-feira - ele disse, parecendo um pouco aturdido. — Deixou um bilhete explicando que fora ao encontro do tio. - Tomou mais um longo gole do conhaque, tossiu e pestanejou várias vezes, depois limpou os olhos e sentou-se direito, olhando para mim. Não é a primeira vez, sabe — ele me disse. Parecia estar recuperando a autoconfiança, vendo que eu parecia ser de carne e osso, e que não dava sinais nem de saltar da cama, nem de colocar minha cabeça sob o braço e sair passeando sem ela, à maneira dos fantasmas das Highlands.

Jamie sentou-se na cama a meu lado, tomando minha mão nas suas.

- Não vejo o Jovem Ian desde que o mandei de volta para casa com Fergus uns seis meses atrás — ele disse. Ele começava a parecer tão preocupado quanto Ian. - Tem certeza de que ele disse que estava vindo ao meu encontro?

— Bem, ele não tem nenhum outro tio, que eu saiba — Ian disse, um pouco exacerbado. Tomou de um só gole o resto do conhaque e colocou o copo sobre a mesa.

- Fergus? - interrompi. - Então Fergus está bem? - Senti uma onda de alegria à menção do órfão francês que Jamie um dia empregara em Paris como batedor de carteiras e trouxera com ele para a Escócia como criado.

Distraído de seus pensamentos, Jamie olhou para mim.

- Ah, sim, Fergus é um belo homem agora. Um pouco mudado, é claro. — Uma sombra pareceu atravessar seu rosto, mas desapareceu quando ele sorriu, apertando minha mão. - Ele vai ficar completamente apalermado ao vê-la outra vez, Sassenach.

Desinteressado em Fergus, Ian levantara-se e andava de um lado para outro no lustroso chão de tábua corrida.

— Ele não levou um cavalo — murmurou. — Para não ter nada que alguém quisesse roubar dele. - Girou nos calcanhares para encarar Jamie. Como você veio, da última vez que trouxe o garoto aqui? Dando a volta por Firth ou atravessando de barco?

Jamie esfregou o queixo, franzindo a testa em concentração.

- Eu não fui a Lallybroch pegá-lo. Ele e Fergus atravessaram o desfiladeiro Carryarrick e encontraram-me logo acima do lago Laggan. Então descemos pelo Struan e Weem e... sim, agora me lembro. Não queríamos atravessar as terras dos Campbell, então desviamos para leste e atravessamos o Forth em Donibristle.

- Acha que ele faria o mesmo trajeto? - Ian perguntou. - Já que é o único caminho que ele conhece?

Jamie meneou a cabeça, em dúvida.

- Talvez. Mas ele sabe que a costa é perigosa.

Ian retomou sua marcha de um lado para outro, as mãos unidas às costas... - Dei uma surra nele que ele mal conseguia ficar de pé, quanto mais sentar-se, da última vez que fugiu - Ian disse, sacudindo a cabeça. Seus lábios estavam cerrados, e eu compreendi que o Jovem Ian era provavelmente uma provação para seu pai. - Era de imaginar que o palerma iria pensar duas vezes antes de fazer bobagens como essa, não? Jamie fez um muxoxo, mas não sem simpatia.

— Alguma vez uma surra o impediu de fazer alguma coisa que você estivesse determinado a fazer?

Ian interrompeu suas passadas e sentou-se no banco outra vez, suspirando.

- Não - disse com franqueza -, mas acho que era um alívio para o meu pai. - Seu rosto abriu-se num sorriso relutante, enquanto Jamie ria.

- Ele deve estar bem - Jamie declarou, confiante. Levantou-se e deixou a toalha cair no chão, enquanto pegava suas calças. — Vou sair e mandar que fiquem de olho para encontrá-lo. Se estiver em Edimburgo, teremos notícias dele até o anoitecer.

Ian lançou um olhar para mim na cama e levantou-se apressadamente.

- Vou com você.

Achei ter visto uma sombra de dúvida atravessar o rosto de Jamie, mas em seguida ele assentiu e enfiou a camisa pela cabeça.

— Está bem — ele disse, quando sua cabeça surgiu pela abertura. Franziu o cenho para mim. — Receio que você tenha que permanecer aqui, Sassenach — ele disse.

- Acho que sim - eu disse. -Já que não tenho roupas. - A criada que trouxera nossa ceia levara meu vestido e nenhum substituto havia chegado ainda.

As sobrancelhas peludas de Ian ergueram-se até a linha dos cabelos, mas Jamie simplesmente balançou a cabeça.

- Falarei com Jeanne ao sair - ele disse. Franziu ligeiramente a testa, pensando. - Talvez demore um pouco, Sassenach. Há algumas coisas... bem, tenho negócios a resolver. - Apertou minha mão, a expressão do rosto suavizando-se ao olhar para mim. - Não queria deixá-la - disse brandamente. - Mas preciso. Ficará aqui até eu voltar?

— Não se preocupe — assegurei-lhe, com um gesto em direção à toalha de linho que ele acabara de descartar. - Não vou a lugar nenhum com isto.

O barulho de seus passos ressoou pelo corredor e foram desaparecendo em meio aos sons da movimentação na casa. O prostíbulo acordava, tarde e lânguido pelos austeros padrões escoceses de Edimburgo. Abaixo de mim, eu podia ouvir uma ou outra passada lenta e abafada, o barulho de persianas sendo abertas ali perto, um grito de ”Sai de baixo!”, e, um segundo depois, o barulho de águas-servidas e dejetos sendo atirados pelas janelas e esparramando-se na rua lá embaixo.

Vozes ao fundo do corredor, uma breve troca de palavras quase inaudíveis e o som de uma porta sendo fechada. A própria casa parecia se espreguiçar e suspirar, com estalos de vigas e rangidos de escadas. Uma repentina aragem de ar quente e cheirando a carvão veio da lareira fria, a exalação de um fogo aceso em um andar inferior e que compartilhava a minha chaminé.

Relaxei no meio dos travesseiros, sentindo-me sonolenta e satisfeita. Eu estava ligeira e agradavelmente dolorida em vários lugares a que não estava acostumada e, embora eu tivesse relutado em ver Jamie sair, era inegável que era bom ficar sozinha por algum tempo para meditar sobre tudo que acontecera.

Eu sentia-me como alguém a quem tivessem entregado uma caixa fechada contendo um tesouro há muito tempo perdido. Eu podia sentir o gratificante peso e formato do tesouro e conhecer a grande alegria de possuí-lo, mas ainda não sabia exatamente o que a caixa continha.

Eu estava ansiosa para saber tudo que ele fizera e dissera e pensara e fora, durante todo o tempo que havia entre nós. Naturalmente, eu sabia que, se ele sobrevivera a Culloden, ele tivera uma vida - e conhecendo Jamie Fraser como eu conhecia, era improvável que fosse uma vida simples. Mas saber disso e ser confrontada com essa realidade eram duas coisas distintas.

Ele estivera fixo em minha lembrança durante tanto tempo, resplandecente, mas estático, como um inseto congelado em âmbar. Depois, vieram as breves visões históricas de Roger, como cenas vistas através de um buraco de fechadura; imagens separadas como pontuações, alterações; ajustes de memória, cada qual mostrando as asas da libélula levantadas ou abaixadas em um ângulo diferente, como as imagens estáticas de um filme. Agora, o tempo começara a contar outra vez para nós e a libélula voava diante de mim, adejando de um lado para outro, de modo que eu via pouco mais do que o brilho de suas asas.

Havia tantas perguntas que nenhum de nós dois ainda tivera a chance de fazer - sobre sua família em Lallybroch, sua irmã Jenny e as crianças.

Obviamente, Ian estava vivo, e bem, independentemente da perna artificial -, mas o resto da família e os colonos da propriedade haviam sobrevivido à destruição das Highlands? Se houvessem, por que Jamie estava aqui em Edimburgo?

- E se estavam vivos - o que diríamos a eles sobre minha súbita reaparição? Mordi o lábio, imaginando se haveria alguma explicação possível que não a verdade — que pudesse fazer sentido. Iria depender do que Jamie lhes dissera quando eu desapareci depois de Culloden; na época, não pareceu haver necessidade de inventar uma razão para o meu desaparecimento; simplesmente, presumiriam que eu havia morrido no rastro da revolução, mais um dos cadáveres anônimos mortos de inanição, abandonados sobre as rochas ou assassinados em um barranco árido.

Bem, lidaríamos com isso quando chegasse a ocasião, eu imaginava. No momento, eu estava mais curiosa a respeito da extensão e do perigo das atividades ilegais de Jamie. Contrabando e subversão, hein? Eu sabia que contrabandear era uma profissão quase tão honrada nas Highlands escocesas quanto roubar gado havia sido há vinte anos, devendo ser conduzida com relativamente pouco risco. Subversão era outra história e parecia uma ocupação de duvidosa segurança para um ex-jacobita condenado.

Essa, eu acreditava, era a razão para o nome que adotara — ou uma das razões, de qualquer modo. Apesar de perturbada e agitada como eu estava quando chegamos ao bordel na noite passada, eu notara que madame Jeanne chamara-o por seu próprio nome. Portanto, provavelmente, ele contrabandeava sob sua própria identidade, mas realizava suas atividades de impressor - legais e ilegais - como Alex Malcolm.

Eu vira, ouvira e sentira o suficiente, durante as poucas horas da noite, para ter absoluta certeza de que o Jamie Fraser que eu conhecera ainda existia. Restava saber quantos outros homens ele poderia ser agora.

Ouviu-se uma batida hesitante na porta, interrompendo meus pensamentos. Desjejum, pensei, e já não era sem tempo. Eu estava faminta.

- Entre - falei, sentando-me direito na cama e ajeitando os travesseiros para eu poder me recostar.

A porta abriu-se muito devagar e, após uma longa pausa, uma cabeça enfiou-se pela abertura, muito semelhante a um caracol emergindo de sua concha após uma tempestade de granizo.

Era encimada por um emaranhado de cabelos castanhos mal cortados, tão espessos que as pontas aparadas projetavam-se para fora como um ressalto acima de um par de grandes orelhas. O rosto abaixo era comprido, de ossos proeminentes; de certo modo, agradavelmente familiar, a não ser por um par de belos olhos castanhos, meigos e enormes como os de um cervo, que pousaram em mim com umma expressão mista de interesse e hesitação.

Eu e a cabeça nos entreolhamos por um instante.

— Você é a... mulher do sr. Malcolm? — a cabeça perguntou.

— Acho que pode-se dizer que sim — respondi cautelosamente. Obviamente, não era a camareira com meu desjejum. Também não era provável que fosse um dos outros empregados do estabelecimento, sendo evidentemente do sexo masculino, ainda que muito jovem. Ele parecia-me vagamente familiar, embora eu tivesse certeza de que nunca o vira antes. Puxei o lençol um pouco mais para cima sobre meus seios. - E quem é você? perguntei.

A cabeça pensou por algum tempo e finalmente respondeu, com igual cautela:

- Ian Murray.

- Ian Murray? - Sentei-me ereta num salto, resgatando o lençol no último instante. - Venha cá - eu disse, peremptoriamente. - Se você é quem eu acho que é, por que não está onde deveria estar e o que está fazendo aqui? — O rosto pareceu um tanto assustado e fez menção de se retirar.

- Pare! - gritei, colocando um pé fora da cama para persegui-lo. Os grandes olhos castanhos arregalaram-se à vista da minha perna nua e ele ficou paralisado. - Eu disse para entrar.

Devagar, eu recolhi a perna para baixo das cobertas outra vez e, igualmente devagar, ele entrou no quarto.

Ele era alto e magro como uma cegonha recém-emplumada, com talvez sessenta quilos distribuídos de forma esparsa por uma estrutura de um metro e oitenta. Agora que eu sabia quem ele era, a semelhança com seu pai era evidente. No entanto ele possuía a tez clara da mãe, que se ruborizou violentamente quando percebeu que estava parado ao lado de uma cama contendo uma mulher nua.

- Eu... ha... estava procurando meu... quer dizer, o sr. Malcolm - murmurou, olhando fixamente para as tábuas do assoalho junto a seus pés.

- Se está falando de seu tio Jamie, ele não está aqui - eu disse.

- Não. Não, acho que não. - Parecia incapaz de pensar em qualquer coisa para acrescentar a isso, mas continuou com os olhos fixos no assoalho, um dos pés estranhamente virado para o lado, como se ele estivesse prestes a puxá-lo para cima, como o pássaro com que ele tanto se assemelhava quando caminhava na água. - Você sabe onde ele... - começou, erguendo os olhos. Assim que percebeu um vislumbre de mim, abaixouos, ruborizando-se outra vez, e calou-se.

- Ele está à sua procura - eu disse. - Com seu pai - acrescentei. - Saíram daqui ainda não faz meia hora.

Sua cabeça levantou-se num sobressalto sobre seu pescoço fino, os olhos esbugalhados.

— Meu pai?! — exclamou, com uma arfada. — Meu pai estava aqui? Você o conhece?

- Ora, claro - eu disse, sem pensar. - Conheço Ian há muito tempo. Ele podia ser sobrinho de Jamie, mas não possuía a mesma manha do tio para esconder suas emoções. Tudo que ele pensava tornava-se evidente em seu rosto e eu podia facilmente seguir a progressão de suas expressões. Choque absoluto ao saber da presença do pai em Edimburgo, em seguida uma espécie de surpresa horrorizada à revelação do antigo relacionamento de seu pai com o que parecia uma mulher da vida e finalmente o início de uma raivosa apreensão, conforme o rapaz começou uma imediata revisão de suas opiniões a respeito do caráter de seu pai.

- Ha - eu disse, um pouco alarmada. - Não é o que está pensando. Quero dizer, seu pai e eu... na verdade, sou eu e seu tio, quero dizer... Eu tentava descobrir como explicar-lhe a situação sem entrar em águas ainda mais profundas, quando ele girou nos calcanhares e partiu em direção à porta. - Espere um minuto - eu disse. Ele parou, mas não se virou. Suas bem esfregadas orelhas destacavam-se como pequeninas asas, a luz da manhã iluminando seu delicado tom rosado. - Quantos anos você tem? perguntei.

Ele virou-se de frente para mim, com uma certa dignidade aflita.

- Vou fazer quinze daqui a três semanas — ele disse. O rubor tomava conta de seu rosto outra vez. - Não se preocupe, já tenho idade suficiente para saber... que tipo de lugar é este, quero dizer. - Sacudiu a cabeça em minha direção numa tentativa de um cumprimento educado. — Sem querer ofendê-la, dona. Se tio Jamie... quero dizer, eu... - Buscou as palavras adequadas e, não conseguindo encontrá-las, finalmente falou de um só fôlego. - Muito prazer em conhecê-la, senhora. - A seguir virou-se e saiu pela porta como uma flecha, batendo-a com tanta força que ela chocalhou nos batentes.

Deixei-me cair para trás sobre os travesseiros, ao mesmo tempo espantada e divertida. Imaginava o que o Ian mais velho diria para seu filho quando se encontrassem - e vice-versa. Enquanto meditava, perguntei-me o que teria trazido o jovem Ian até ali, em busca de Jamie. Evidentemente, ele sabia onde poderia encontrar seu tio, no entanto, a julgar por sua atitude difidente, ele nunca entrara no bordel antes.

Teria obtido a informação de Geordie na gráfica? Parecia improvável. Entretanto, se não o fizera... significava que soubera da ligação de seu tio com este lugar através de alguma outra fonte. E a fonte mais provável era o próprio Jamie.

Mas, nesse caso, raciocinei, Jamie provavelmente já sabia que seu sobrinho estava em Edimburgo, então por que fingir que não vira o garoto? Ian era o mais velho amigo de Jamie; haviam crescido juntos. Se o que Jamie estava tramando valia o custo de enganar seu cunhado, devia ser algo bastante sério.

Não avançara muito com minhas considerações, quando se ouviu nova batida na porta.

- Entre - eu disse, ajeitando as colchas na expectativa da bandeja do desjejum que seria colocada ali em cima.

Quando a porta se abriu, eu havia direcionado minha atenção para um ponto a cerca de um metro e meio acima do chão, onde esperava que a cabeça da camareira se materializasse. Da última vez que a porta se abrira, eu tive que adaptar minha visão cerca de trinta centímetros para cima, para acomodar a visão do Jovem Ian. Desta vez, fui obrigada a abaixá-la.

- Que diabos você está fazendo aqui? - perguntei, quando a diminuta figura do sr. Willoughby entrou de gatinhas, apoiado no chão com as mãos e os joelhos. Sentei-me direito na cama e apressadamente enfiei meus pés embaixo do corpo, puxando não só o lençol como também as colchas, bem apertados ao redor dos meus ombros.

Em resposta, o chinês avançou até cerca de trinta centímetros da cama, depois deixou a cabeça cair no chão com um sonoro baque. Ergueu-a e repetiu o processo com grande deliberação, fazendo o barulho horrível de um melão que é rachado ao meio com um machado.

- Pare com isso! - exclamei, quando ele se preparava para repetir o gesto pela terceira vez.

— Mil desculpas — ele explicou, sentando-se sobre os calcanhares e pestanejando para mim. Ele estava com uma péssima aparência e a marca vermelho-escura onde sua testa batera no chão não melhorava sua aparência. Acreditei que ele não pretendia continuar a bater com a cabeça no chão mil vezes, mas não tinha certeza. Ele obviamente estava com uma terrível ressaca; o fato de ter realizado aquela performance uma única vez já era impressionante.

— Tudo bem — eu disse, recuando cautelosamente contra a parede. — Não precisa se desculpar.

— Sim, desculpar — insistiu. — Tsei-mi dizendo esposa. Senhora ser honrada Primeira Esposa, não prostituta vil.

- Muito obrigada — eu disse. — Tsei-mi? Quer dizer Jamie? Jamie Fraser?

O homenzinho assentiu, para o óbvio detrimento de sua cabeça. Agarrou-a com as duas mãos e fechou os olhos, que prontamente desapareceram nas rugas de suas faces.

- Tsei-mi - afirmou, os olhos ainda fechados. - Tsei-mi dizendo desculpar para muito honrada Primeira Esposa. Yi Tien Cho muito humilde criado. - Fez uma profunda reverência, ainda segurando a cabeça. - Yi Tien Cho — acrescentou, abrindo os olhos e dando uns tapinhas no peito para indicar que esse era seu nome, para o caso de eu estar confundindo-o com quaisquer outros humildes criados na vizinhança.

- Tudo bem, tudo bem - eu disse. - Ha, prazer em conhecê-lo. Evidentemente reanimado, deslizou frouxamente sobre o rosto, prostrando-se diante de mim.

— Yi Tien Cho criado de senhora — ele disse. — Primeira Esposa, por favor, caminhar sobre humilde criado, se quiser.

— Ah! — exclamei friamente. — Já ouvi falar de você. Caminhar sobre você, hein? Sem a menor chance!

Uma fenda de brilhante olho preto surgiu e ele soltou uma risadinha, tão incontrolável que eu mesma não pude deixar de rir. Ele sentou-se direito outra vez, alisando as pontas espetadas de cabelo preto e duro de sujeira que se projetavam, como um porco-espinho, de seu crânio.

— Eu lavar pés de Primeira Esposa? — ofereceu, com um largo sorriso.

- Lógico que não - eu disse. - Se realmente deseja fazer algo de útil, peça a alguém para me trazer o desjejum. Não, espere um minuto — eu disse, mudando de idéia. - Primeiro, conte-me onde você conheceu Jamie. Se não se importar — acrescentei, para ser educada.

Ele sentou-se sobre os calcanhares, a cabeça balançando ligeiramente para a frente e para trás.

- Docas - ele disse. - Há dois anos. Eu vir da China, muito longe, sem comida. Escondido em barril - explicou, formando um círculo com os braços para demonstrar o meio de transporte.

- Um passageiro clandestino?

— Navio mercante — ele confirmou, balançando a cabeça. — Nas docas aqui, roubar comida. Roubar conhaque uma noite, ficar completamente bêbado. Muito frio para dormir; morrer logo, mas Tsei-mi encontrar. Enfiou o polegar no peito outra vez. - Humilde criado Tsei-mi. Humilde criado Primeira Esposa. - Fez uma reverência para mim, oscilando de forma alarmante, mas conseguiu aprumar-se outra vez sem incidentes.

- O conhaque parece ser sua perdição - observei. - Sinto muito não ter nada para lhe dar para a sua cabeça; não tenho nenhum remédio comigo no momento.

- Ah, não se preocupe - assegurou-me. - Eu ter bolas saudáveis.

- Sorte sua - eu disse, tentando decidir se ele estava engrenando uma nova tentativa sobre meus pés ou meramente ainda bêbado demais para distinguir a anatomia básica. Ou talvez houvesse alguma associação na filosofia chinesa entre o bem-estar da cabeça e os testículos. Por via das dúvidas, olhei ao meu redor em busca de algum objeto que pudesse servir de arma, para o caso de ele demonstrar uma disposição para começar a fuçar sob as cobertas.

Em vez disso, ele enfiou a mão nas profundezas da manga larga de seda azul e, com um ar de ilusionista, retirou uma sacolinha de seda branca. Virou-a de cabeça para baixo e duas bolas caíram na palma de sua mão. Eram maiores do que bolas de gude e menores do que bolas de beisebol; na verdade, mais ou menos do tamanho de um testículo médio. No entanto bem mais duras, sendo aparentemente feitas de algum tipo de pedra polida, de cor esverdeada.

- Bolas saudáveis - o sr. Willoughby explicou, rolando-as na palma da mão. Produziam um agradável som seco. — Jade rajada, do Cantão — ele disse. - As melhores bolas saudáveis.

— É mesmo? — eu disse, fascinada. — E elas são medicinais... boas para a saúde, é isso que está dizendo?

Ele balançou a cabeça vigorosamente, confirmando, depois parou bruscamente com um leve gemido. Após uma pausa, espalmou a mão e rolou as bolas de um lado para o outro, girando-as com um ágil movimento circular dos dedos.

- Corpo todo uma parte; mão todas as partes - ele disse. Apontou um dedo para a palma aberta, tocando delicadamente aqui e ali entre as esferas verdes e polidas. - Cabeça aqui, estômago ali, fígado ali - ele disse. - As bolas fazer bem para tudo.

- Bem, imagino que sejam tão práticas quanto Alka-Seltzer - eu disse. Provavelmente foi a referência a estômago que fez o meu emitir um sonoro ronco neste momento.

- Primeira Esposa querer comida - o sr. Willoughby observou astuciosamente.

- Muito perspicaz de sua parte - eu disse. - Sim, estou mesmo com fome. Você poderia ir falar com alguém?

Ele imediatamente jogou as bolas dentro de sua sacolinha e, pondo-se de pé, fez uma profunda reverência.

- Humilde criado vai agora - ele disse, e partiu, dando um encontrão no batente da porta ao sair.

Isso estava ficando ridículo, pensei. Eu tinha minhas dúvidas se a visita do sr. Willoughby resultaria em comida; ele teria sorte se conseguisse chegar ao pé da escada sem cair de cabeça, se minha avaliação do seu estado de saúde estivesse correta.

Ao invés de continuar ali sentada nua, recebendo representantes aleatórios do mundo exterior, achei que já era hora de tomar algumas medidas. Levantando-me e cuidadosamente enrolando uma colcha em volta do corpo, dei alguns passos no corredor.

O andar superior parecia deserto. Exceto pelo quarto de onde eu saíra, havia apenas duas outras portas ali em cima. Erguendo os olhos, pude ver vigas simples, sem adornos, no alto. Portanto estávamos no sótão. Provavelmente, os outros quartos ali em cima eram ocupados por criados, que sem dúvida estariam trabalhando no andar térreo agora.

Eu podia ouvir leves ruídos que subiam pelo vão da escada. Algo mais era trazido também - o aroma de salsichas fritas. Um novo rugido gustativo informou-me que o cheiro não passara despercebido ao meu estômago e, mais ainda, que minhas entranhas consideravam o consumo de um sanduíche de pasta de amendoim e uma tigela de sopa num período de vinte e quatro horas um nível de nutrição completamente inadequado.

Enfiei as pontas da colcha para dentro, como um sarongue, logo acima dos meus seios, e levantando as pontas da barra que se arrastavam pelo chão, segui o aroma da comida pelas escadas.

O cheiro — bem como os ruídos tilintantes de um bando de gente comendo — vinha de uma porta fechada no primeiro andar acima do térreo. Abri a porta e me vi no final de um longo salão que parecia um refeitório.

A mesa estava cercada por umas vinte e poucas mulheres, algumas vestidas para o dia, mas a maioria apenas de roupas íntimas, fazendo minha colcha parecer recatada em comparação. Uma mulher perto da extremidade da mesa me avistou pairando na entrada e fez sinal para eu entrar, amistosamente deslizando para abrir espaço para mim na ponta do banco comprido.

- Você vai ser a nova garota, não? - ela disse, olhando-me de cima a baixo com interesse. - Você é um pouquinho mais velha do que a madame geralmente aceita. Ela prefere as que tenham menos de vinte e cinco anos. Mas você não é nada má - assegurou-lhe apressadamente. - Tenho certeza de que vai se sair bem.

— Pele boa e um rosto bonito — observou a mulher de cabelos escuros em frente a nós, analisando-me com o ar distanciado de alguém que esteja avaliando um cavalo. - E belos peitos, pelo que posso ver. - Ergueu o queixo ligeiramente, espreitando do outro lado da mesa o que podia ser visto pelo meu decote.

— Madame não gosta que tiremos as colchas das camas — disse a que primeiro falara comigo, com ar de reprovação. — Devia usar sua combinação, se ainda não tiver algo bonito para se exibir.

— Sim, tenha cuidado com a colcha — avisou a jovem de cabelos escuros, ainda me examinando atentamente. - Madame descontará de seu salário se manchar as cobertas.

— Qual o seu nome, querida? — Uma jovem baixa, um pouco gorda, com um rosto redondo e amável, inclinou-se por cima do cotovelo da jovem morena para sorrir para mim. - Aqui estamos nós só falando com você sem lhe dar as boas-vindas. Sou Dorcas, esta é Peggy. - Sacudiu o polegar para a jovem de cabelos escuros, em seguida apontou para o outro lado da mesa, para a mulher de cabelos louros ao meu lado. — E essa é a Mollie.

- Meu nome é Claire - eu disse, sorrindo e puxando a colcha um pouco mais para cima timidamente. Eu não sabia como corrigir a impressão que tinham de que eu era a mais nova recruta de madame Jeanne; por enquanto isso parecia menos importante do que conseguir comer alguma coisa.

Aparentemente adivinhando minhas necessidades, a simpática Dorcas esticou o braço para o bufê atrás de si, me passou um prato de madeira e empurrou uma grande travessa de salsichas em minha direção.

A comida estava bem preparada, mas eu a teria considerado boa de qualquer maneira; faminta como eu estava, parecia um manjar dos deuses. Muito melhor do que o café da manhã na lanchonete do hospital, observei para mim mesma, servindo-me de outra porção de batatas fritas.

— O seu primeiro foi bem rude, hein? — Mollie, a meu lado, indicou meu peito com um gesto da cabeça. Olhando para baixo, fiquei mortificada ao ver uma grande mancha vermelha acima da borda da colcha. Eu não podia ver meu pescoço, mas a direção do olhar interessado de Mollie deixou claro que a leve sensação de formigamento ali era prova de outras marcas de mordida.

- Seu nariz também está um pouco inchado - Peggy disse, franzindo a testa para mim com ar crítico. Estendeu a mão por cima da mesa para tocá-lo, desconsiderando o fato de que o gesto fazia seu fino penhoar abrir-se até a cintura. — Ele bateu em você, não foi? Se eles ficarem violentos, você deve gritar, você sabe. Madame não permite que os fregueses nos maltratem. Dê um bom grito e Bruno estará lá em um segundo.

— Bruno? — perguntei, um pouco frouxamente.

- O porteiro - Dorcas explicou, levando uma colherada de ovos mexidos à boca. — Grande como um urso, é por isso que o chamamos de Bruno. Qual é o verdadeiro nome dele? — ela perguntou para a mesa como um todo. — Horácio?

- Teobaldo - corrigiu Mollie. Virou-se para chamar uma das criadas que serviam a mesa do outro lado da sala: - Janie, poderia trazer mais cerveja? A nova garota ainda não tomou nada.

- Sim, Peggy tem razão - ela disse, virando-se de novo para mim. Não era nem um pouco bonita, mas possuía uma boca bem torneada e uma expressão agradável. - Pegar um homem que goste de brincadeiras um pouco brutas é uma coisa... e não chame Bruno para um bom cliente ou vai haver o diabo e você é quem vai pagar. Mas, se realmente achar que pode ficar machucada, então dê um bom berro. Bruno nunca se afasta à noite. Ah, aqui está a cerveja - ela acrescentou, pegando um enorme caneco das mãos da criada e colocando-o à minha frente com um baque na mesa.

— Ela não está machucada — Dorcas disse, tendo terminado sua inspeção dos aspectos visíveis de minha pessoa. - Um pouco dolorida entre as pernas, hein? - disse judiciosamente, rindo para mim.

— Ooh, olhe só, ela está ficando vermelha — disse Mollie, dando uma risada, encantada. - Ooh, você é mesmo nova no ramo, hein?

Tomei um grande gole da cerveja. Era escura, encorpada e extremamente bem-vinda, tanto pela largura da borda do caneco que escondia meu rosto quanto pelo sabor.

- Não tem importância. - Mollie bateu de leve em meu braço. Depois de comer, eu lhe mostrarei onde ficam as banheiras. Pode mergulhar suas partes em água morna e estarão novinhas em folha até a noite.

- Não se esqueça de lhe mostrar também onde ficam os potes - observou Dorcas. — Ervas de cheiro — explicou-me. — Coloque-as na água antes de sentar-se na banheira. Madame gosta que a gente cheire bem.

- Se os homens quisessem se deitarr com alguém cheirrando a peixe, irriam parra as docas, é mais barrato — Peggy entoou, com um modo de falar que evidentemente pretendia imitar madame Jeanne. A mesa irrompeu em risadinhas, rapidamente sufocadas pelo repentino aparecimento da própria madame, que entrou por uma porta no outro extremo da sala.

Madame Jeanne tinha a testa franzida numa expressão preocupada e parecia apreensiva demais para notar a hilaridade reprimida.

— Shhh — murmurou Mollie, ao ver a proprietária. — Um cliente madrugador. Detesto quando aparecem no meio do café da manhã - resmungou. - Não se pode nem fazer a digestão direito.

- Não precisa se preocupar, Mollie; é Claire quem tem que atendê-lo — Peggy disse, jogando para trás a trança escura. — As raparigas mais novas ficam com aqueles que ninguém quer - informou-me.

- Enfie o dedo no cu dele - Dorcas aconselhou-me. - Isso os faz gozar mais rápido do que qualquer outra coisa. Guardarei um pão para você comer depois, se quiser.

- Ha... obrigada - eu disse. Nesse mesmo instante, os olhos de madame Jeanne recaíram sobre mim e sua boca abriu-se num horrorizado ”Oh”.

- O que você está fazendo aqui? - sibilou, apressando-se para me agarrar pelo braço.

— Comendo — eu disse, sem disposição para ser puxada. Livrei meu braço de sua mão e peguei meu caneco de cerveja.

- Merde! - ela disse. - Ninguém levou comida para você hoje de manhã?

- Não - respondi. - Nem roupas. - Indiquei a colcha, em perigo iminente de cair.

— Nez de Cleopatre! — exclamou violentamente. Empertigou-se e olhou ao redor, os olhos falseando. - Mandarei açoitar a inútil criada por causa disso! Mil desculpas, madame!

— Tudo bem — eu disse educadamente, consciente dos olhares de espanto nos rostos das minhas companheiras de desjejum. - Tive uma refeição deliciosa. Prazer em conhecê-las, senhoritas — eu disse, levantando-me e fazendo o melhor possível para cumprimentá-las com uma inclinação e segurar a colcha ao mesmo tempo. — Bem, madame... e o meu vestido?

Entre os protestos de desculpas da agitada madame Jeanne e as reiteradas esperanças de que eu não acharia necessário contar a monsieur Fraser que eu fora exposta a uma indesejável intimidade com as funcionárias do estabelecimento, percorri o caminho, desajeitadamente em função do meu traje, por mais dois lances de escada e entrei numa saleta forrada de vestidos pendurados em vários estágios de finalização, com peças de tecidos empilhadas aqui e ali nos cantos do aposento.

- Um momento, por favor - madame Jeanne disse e, com uma profunda reverência, deixou-me na companhia de um manequim de costureira, com um grande número de alfinetes espetados em seu peito acolchoado.

Aparentemente, era ali que os trajes das internas eram feitos. Andei pelo aposento, a colcha arrastando-se no chão, e notei vários penhoares de seda fina em produção, junto com dois vestidos elaborados, de profundos decotes, e diversas variações bastante criativas de combinações e camisolas básicas. Retirei uma combinação do cabide e a vesti.

Era feita de algodão fino, franzida no decote profundo e bordada na forma de várias mãos que se enroscavam sedutoramente sobre os seios e pelos lados da cintura, espalhando-se numa carícia devassa pelos quadris. A bainha ainda não fora feita, mas fora isso estava terminada e me deu muito mais liberdade de movimentos do que a colcha.

Eu podia ouvir vozes no aposento ao lado, onde madame aparentemente passava uma descompostura em Bruno - ou assim deduzi a identidade dos resmungos masculinos.

— Não me interessa o que a irmã da desgraçada fez — ela dizia —, não percebe que a mulher de monsieur Jamie foi deixada faminta e sem roupas?

— Tem certeza de que ela é a mulher dele? — A grave voz masculina perguntou. - Ouvi dizer...

— Eu também. Mas se ele diz que essa mulher é a esposa dele, não vou argumentar, n’est-cepás? - madame disse com impaciência. - Agora, quanto a essa maldita Madeleine...

— Não foi culpa dela, madame — Bruno interrompeu. — Não ouviu as notícias hoje de manhã sobre o Demônio?

Madame soltou o ar, incrédula.

- Não! Mais um?

- Sim, madame. - A voz de Bruno era soturna. — A não mais do que algumas casas daqui... acima da taberna Green Owl. A jovem era a irmã de Madeleine. O padre trouxe a notícia pouco antes do café da manhã. Assim, como pode ver...

- Sim, estou vendo. - Madame soava um pouco ofegante. - Sim, claro. Claro. Foi... do mesmo jeito? - Sua voz tremia de indignação.

- Sim, madame. Uma machadinha ou algum tipo de faca grande. Abaixou a voz, como as pessoas costumam fazer ao narrar horríveis acontecimentos. - O padre me contou que a cabeça dela foi completamente decepada. Seu corpo estava perto da porta do quarto e sua cabeça - abaixou a voz ainda mais, transformando-a quase num sussurro -, sua cabeça estava sobre o consolo da lareira, olhando para o quarto. O senhorio desmaiou quando a encontrou.

Um baque surdo vindo do aposento contíguo sugeria que madame Jeanne fizera o mesmo. Meus braços arrepiaram-se e meus próprios joelhos ficaram um pouco bambos. Eu estava começando a concordar com o temor de Jamie de que me instalar numa casa de prostituição não era uma boa idéia.

De qualquer modo, eu agora estava vestida, ainda que não completamente, e entrei no aposento adjacente, encontrando madame Jeanne parcialmente reclinada sobre o sofá de uma saleta, com um homem musculoso, de ar infeliz, sentado numa banqueta junto a seus pés.

Madame despertou ao me ver.

- Madame Fraser! Ah, desculpe-me! Não pretendia deixá-la esperando, mas tive... - hesitou, buscando uma expressão delicada - notícias inquietantes.

- Eu diria que sim. Que história é essa de um Demônio? - perguntei.

- Você ouviu? - Ela já estava pálida; agora sua pele ficou ainda mais branca e ela torceu as mãos. — O que ele vai dizer? Ficará furioso! — ela gemeu.

- Quem? - perguntei. -Jamie ou o Demônio?

— Seu marido — ela disse. Olhou ao redor da saleta, distraída. — Quando ele souber que sua mulher foi tão vergonhosamente negligenciada, confundida com uma. filie dejoie e exposta a...

- Acho que ele não vai se importar - eu disse. - Mas eu gostaria de saber a respeito do Demônio.

- Gostaria? - As grossas sobrancelhas de Bruno arquearam-se. Era um homem corpulento, tinha ombros curvos e longos braços que o faziam parecer uma gorda, uma semelhança reforçada por uma testa estreita e um queixo recuado. Ele parecia perfeitamente adequado para o papel de leãode-chácara num bordel. — Bem — ele hesitou, olhando de relance para madame Jeanne em busca de orientação, mas a proprietária viu o pequeno relógio laqueado no consolo da lareira e pôs-se de pé num salto com uma exclamação de choque.

— Crotttn1 — exclamou. — Tenho que ir! — E sem mais do que um ligeiro aceno em minha direção, saiu do aposento às pressas, deixando a mim e Bruno olhando para a porta, surpresos.

— Ah — ele disse, recompondo-se. — Tem razão, viria às dez horas. — Eram dez e quinze, pelo relógio laqueado. O que quer que viesse às dez, eu queria que esperasse.

- O Demônio - eu ajudei-o.

Como a maioria das pessoas, Bruno estava mais do que disposto a revelar os detalhes sangrentos, após uma hesitação pró forma em nome da suscetibilidade social.

O demônio de Edimburgo era - como eu deduzira da conversa até agora - um assassino. Como um precursor de Jack, o Estripador, especializava-se em mulheres de ”vida fácil”, que matava com golpes de um instrumento de lâmina pesada. Em alguns casos, os corpos haviam sido esquartejados ou ”revirados”, como Bruno disse, em voz baixa.

Os assassinatos - oito ao todo - ocorreram de tempos em tempos, nos últimos dois anos. Com uma exceção, as mulheres haviam sido mortas em seus próprios quartos; a maioria vivia sozinha - duas foram mortas em bordéis Isso explicava a agitação de madame, pensei.

- Qual foi a exceção? - perguntei. Bruno fez o sinal-da-cruz.

- Uma freira - murmurou, as palavras evidentemente ainda um choque para ele. - Uma freira francesa.

A religiosa, tendo aportado em Edimburgo com um grupo de freiras com destino a Londres, fora seqüestrada nas docas, sem que nenhuma de suas companheiras notasse sua ausência na confusão. Quando foi descoberta em um dos becos de Edimburgo, já à noite, era tarde demais.

- Violentada? - perguntei, com interesse clínico Bruno olhou-me com grande desconfiança.

— Não sei — respondeu formalmente. Levantou-se pesadamente, os ombros simiescos arriados de fadiga. Imaginei que tivesse ficado de serviço a noite toda; devia ser hora de dormir agora. — Com sua licença, senhora - ele disse, com distante formalidade, e saiu.

Recostei-me no pequeno sofá de veludo, sentindo-me ligeiramente tonta. De certo modo, eu não imaginara que houvesse tal agitação em bordéis durante o dia.

De repente, ouvi golpes altos e bruscos na porta. Não pareciam batidas, mas era como se alguém estivesse realmente usando um martelo de cabeça de metal, exigindo ser admitido ao aposento. Levantei-me para atender ao chamado, mas sem outro aviso a porta foi escancarada e uma figura esbelta e altiva irrompeu no aposento, falando francês com um sotaque tão pronunciado e uma atitude tão furiosa que não pude entender quase nada do que dizia.

- Está procurando madame Jeanne? - consegui dizer, aproveitando uma pequena pausa quando ele parou para tomar fôlego antes de nova invectiva. O visitante era um homem jovem, de cerca de trinta anos, de compleição esbelta, extremamente bonito, com sobrancelhas e cabelos abundantes e negros. Fitou-me intensamente e, depois de olhar bem para mim, uma mudança extraordinária ocorreu em seu rosto. As sobrancelhas ergueram-se, os olhos negros esbugalharam-se e seu rosto ficou branco.

- Milady! - ele exclamou, atirando-se de joelhos, abraçando-me pelas pernas enquanto pressionava o rosto contra o algodão da combinação ao nível da minha virilha.

— Solte-me! — exclamei, empurrando seus ombros para que me soltasse. - Eu não trabalho aqui. Solte-me, já disse!

- Milady! - ele repetia, extasiado. - Milady! Você voltou. Um milagre! Deus a mandou de volta!

Ergueu os olhos para mim, sorrindo, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto. Possuía dentes perfeitos, largos e brancos. De repente, algo remexeu-se em minha lembrança, mostrando-me os contornos de um rosto de um garoto sob o semblante audacioso do homem.

- Fergus! - eu disse. - Fergus, é você mesmo? Levante-se, pelo amor de Deus, deixe-me olhar para você!

Ele levantou-se, mas não parou para que eu pudesse examiná-lo. Envolveu-me num abraço de quebrar as costelas e eu correspondi ao seu abraço, batendo em suas costas na empolgação de revê-lo. Ele era um menino de dez anos aproximadamente quando o vi pela última vez, pouco ntes de Culloden. Agora, era um homem e a barba por fazer arranhava meu rosto.

— Pensei que estivesse vendo um fantasma! — exclamou. — É você realmente, então?

- Sim, sou eu - assegurei-lhe.

-Já viu milorde? - perguntou entusiasmado. - Ele sabe que está aqui?

- Sim.

- Ah! - Ele piscou e recuou meio passo, quando algo lhe ocorreu. — Mas... mas, e quanto... - Parou, obviamente confuso.

— Quanto a quê?

- Aí está você! O que em nome de Deus você está fazendo aqui em cima, Fergus? - A figura alta de Jamie assomou repentinamente no vão da porta. Seus olhos arregalaram-se ao me ver em minha combinação bordada. — Onde estão suas roupas? — ele perguntou. — Não importa — disse, abanando a mão com impaciência quando abri a boca para responder. - Não tenho tempo para isso agora. Venha, Fergus, há mais de cento e cinqüenta galões de conhaque na viela e os guardas alfandegários estão nos meus calcanhares!

E com um retumbar de botas na escada de madeira, eles desapareceram, deixando-me sozinha outra vez.

Eu não sabia ao certo se devia me unir ao grupo no andar térreo ou não, mas a curiosidade venceu a discrição. Após uma rápida visita ao quarto de costura em busca de algo mais apropriado para vestir, desci as escadas, usava um grande xale parcialmente bordado com flores de malva envolvendo meus ombros.

Eu tivera apenas uma vaga noção do interior da casa na noite anterior, mas os barulhos da rua que se infiltravam pelas janelas deixavam claro qual era o lado que dava para a High Street. Presumi que a viela a que Jamie se referira devia ficar do lado oposto, mas não tinha certeza. As casas de Edimburgo eram em geral construídas com estranhas e pequenas alas e paredes sinuosas, para aproveitar qualquer centímetro de espaço livre.

Parei no largo patamar ao pé das escadas, procurando ouvir o barulho de barris sendo rolados para me guiar. Enquanto permanecia ali parada, senti uma repentina corrente de ar nos meus pés descalços e virei-me, deparando-me com um homem de pé no vão da porta que dava para a cozinha.

Pareceu tão surpreso quanto eu, mas depois de pestanejar em minha direção, sorriu e adiantou-se para me segurar pelo cotovelo.

- É um bom dia para você, minha cara. Eu não esperava encontrar nenhuma de vocês acordada por aí tão cedo pela manhã.

- Bem, sabe o que dizem sobre dormir cedo e acordar cedo - eu disse, tentando liberar meu cotovelo.

Ele riu, exibindo dentes ruins em um maxilar estreito.

— Não, o que dizem?

- Bem, é algo que dizem na América, pensando melhor - respondi, percebendo de repente que Benjamin Franklin, ainda que publicado atualmente, provavelmente não tinha muitos leitores em Edimburgo.

— Você é inteligente, doçura — ele disse, com um leve sorriso. — Ela a mandou aqui pra baixo como chamariz, pra desviar minha atenção, não foi?

- Não. Quem? - eu disse.

- Madame - ele disse, olhando à volta. - Onde está ela?

— Não faço a menor idéia - eu disse. - Solte-me!

Ao invés de me soltar, ele apertou meu braço com mais força, enfiando os dedos desconfortavelmente nos músculos do meu antebraço. Inclinou-se para mais perto, sussurrando em meu ouvido com uma baforada de vapores malcheirosos de tabaco.

- Há uma recompensa, você sabe - ele murmurou confidencialmente. — Uma porcentagem do valor do contrabando apreendido. Ninguém precisaria ficar sabendo além de mim e você. — Deu uma pancadinha de leve embaixo do meu seio, fazendo o mamilo eriçar-se sob o algodão fino. - O que me diz, doçura?

Encarei-o fixamente. ”Os guardas alfandegários estão nos meus calcanhares”, Jamie dissera. Portanto este devia ser um deles; um funcionário da Coroa, encarregado da prevenção de contrabando e prisão de contrabandistas. O que Jamie dissera? ”O pelourinho. Pregos nas orelhas. Açoitamento. Prisão. Exílio”, ele dissera, abanando a mão despreocupadamente, como se tais penalidades fossem equivalentes a uma multa de trânsito.

- De que você está falando? - eu disse, tentando parecer intrigada. - E pela última vez, solte-me! — Ele não devia estar sozinho, pensei. Quantos outros haveria pela casa?

- Sim, por favor soltar - disse uma voz atrás de mim. Vi os olhos do guarda alfandegário arregalarem-se quando olhou por cima do meu ombro.

O sr. Willoughby estava no segundo degrau da escada numa amarfanhada roupa azul de seda, uma grande pistola segura com as duas mãos. Balançou a cabeça educadamente para o funcionário da alfândega.

— Não prostituta vil. Honrada esposa.

O funcionário da Coroa, visivelmente espantado com a repentina aparição de um chinês, olhava com cara de idiota de mim para o sr. Willoughby e de novo para mim.

— Esposa? — disse, incrédulo. — Está dizendo que ela é sua esposa?

O sr. Willoughby, obviamente entendendo apenas a palavra enfatizada, balançou a cabeça amavelmente.

- Esposa - repetiu. - Por favor, soltar. - Seus olhos eram apenas duas fendas injetadas de sangue e era evidente para mim, ainda que não para o guarda alfandegário, que seu sangue ainda continha uma grande dosagem de álcool.

O funcionário puxou-me para ele e olhou de cara feia para o sr. Willoughby.

- Agora, escute aqui - começou. Não pôde prosseguir, porque o sr. Willoughby, evidentemente presumindo que já dera um bom aviso, ergueu a pistola e puxou o gatilho.

Ouviu-se um grande estalo e um grito agudo ainda mais alto, que deve ter sido meu, e o patamar encheu-se com uma nuvem de fumaça cinza de pólvora. O funcionário recuou cambaleando, batendo contra os lambris da parede, um olhar de imenso espanto no rosto e uma crescente roseta de sangue no peito do casaco.

Num ato reflexo, dei um salto para a frente e agarrei o homem por baixo dos braços, amparando-o e deitando-o sobre as tábuas do assoalho do patamar das escadas. Ouviu-se um alvoroço de comoção acima, conforme as moradoras da casa aglomeravam-se, todas falando e exclamando ao mesmo tempo, no patamar superior, atraídas pelo tiro.

Passadas apressadas subiam pelas escadas inferiores, dois degraus de cada vez.

Fergus irrompeu pelo que deveria ser a porta da adega, uma pistola na mão.

- Milady - disse ofegante, vendo-me sentada no canto com o corpo do funcionário espalhado em meu colo. - O que fez?

- Eu? - perguntei, indignada. - Eu não fiz nada, foi o mascote chinês do Jamie. - Fiz um breve sinal com a cabeça na direção das escadas, onde o sr. Willoughby, a pistola largada a seus pés, sentara-se no degrau e agora observava a cena abaixo com um olhar benevolente e injetado.

Fergus disse algo em francês que era coloquial demais para ser traduzido, mas que soou altamente desabonador para o sr. Willoughby. Atravessou o patamar com duas largas passadas e estendeu a mão para segurar o ombro do pequeno chinês - ou assim eu imaginei, até ver que o braço que ele estendia não terminava em uma mão, mas em um gancho de reluzente metal escuro.

- Fergus! - Fiquei tão chocada diante daquela visão que interrompi minhas tentativas de estancar o sangue do ferimento do guarda alfandegário com meu xale. - O que... o que... - eu dizia incoerentemente.

- O quê? - ele disse, olhando para mim. Então, seguindo a direção do meu olhar, disse: — Ah, isso — e deu de ombros. — O inglês. Não se preocupe com isso, milady, não temos tempo. Você, canaille, desça daí! – Com um safanão, puxou o sr. Willoughby das escadas, arrastou-o para a porta da adega e enfiou-o por ela, sem nenhuma preocupação com segurança. Pude ouvir uma série de baques surdos, sugerindo que o chinês estava rolando escada abaixo, suas habilidades acrobáticas o tendo desertado temporariamente, mas não tive tempo de me preocupar com isso.

Fergus agachou-se a meu lado e ergueu a cabeça do funcionário da Coroa pelos cabelos.

- Quantos homens estão com você? - perguntou. - Diga-me depressa, cochon, ou eu corto sua garganta!

Pelos sinais evidentes, essa era uma ameaça supérflua. Os olhos do homem já estavam ficando vidrados. Com esforço considerável, os cantos de sua boca abriram-se num sorriso.

- Vejo... você... no... inferno - murmurou, e com uma última convulsão que fixou o sorriso num hediondo ricto em seu rosto, ele cuspiu uma surpreendente quantidade de sangue vermelho vivo e espumante, e morreu no meu colo.

Mais pés subiam as escadas a toda a velocidade. Jamie irrompeu pela porta da adega e mal conseguiu parar antes de pisar nas pernas abandonadas do funcionário morto. Seus olhos viajaram por toda a extensão do corpo e pousaram em meu rosto com horrorizada surpresa.

- O que você fez, Sassenach? — perguntou.

— Não ela, o verme amarelo — Fergus explicou, poupando-me o trabalho. Enfiou a pistola no cinto e ofereceu-me sua mão verdadeira. — Venha, milady, tem que ir para baixo!

Jamie impediu-o, inclinando-se sobre mim, enquanto sacudia a cabeça fazendo um sinal em direção ao saguão de entrada.

- Eu dou um jeito aqui - ele disse. - Guarde a entrada, Fergus. O sinal de sempre e mantenha a pistola escondida, a menos que seja necessário.

Fergus assentiu e desapareceu imediatamente pela porta que dava para o corredor.

Jamie conseguiu enrolar o corpo desajeitadamente no xale; tirou-o de cima de mim e eu me levantei cambaleando, muito aliviada por estar livre do morto, apesar do sangue e de outras substâncias desagradáveis que empapavam a frente da minha combinação.

— Ooh! Acho que ele está morto — Uma voz apavorada flutuou do andar superior e eu ergui os olhos, deparando-me com uma dúzia de prostitutas espreitando como anjinhos lá de cima.

- Voltem já para seus quartos! -Jamie ordenou. Ouviu-se um coro de gritinhos assustados e elas se espalharam como pombos.

Jamie olhou ao redor do patamar em busca de vestígios do incidente, mas felizmente não havia nenhum — o xale e eu havíamos segurado tudo.

- Venha - ele disse.

As escadas estavam na penumbra e a adega embaixo escura como breu. Parei ao pé da escada, à espera de Jamie. O funcionário não era um homem de compleição delgada e Jamie ofegava quando me alcançou.

- Para o outro lado - ele disse, arquejante. - Uma parede falsa. Segure meu braço.

Com a porta acima fechada, eu não conseguia ver absolutamente nada; felizmente, Jamie parecia se orientar por radar. Conduziu-me sem maiores dificuldades em meio a grandes objetos nos quais eu tropeçava ao passar, e finalmente parou. Eu podia sentir o cheiro de pedras úmidas e, estendendo a mão, senti uma parede áspera diante de mim.

Jamie disse algo em gaélico, em voz alta. Aparentemente, era o equivalente céltico a ”Abre-te, Sésamo”. Porque houve um breve silêncio, depois um rangido, e uma fraca linha de luz surgiu na escuridão à minha frente. A linha alargou-se em uma fresta e uma parte da parede girou para fora, revelando uma pequena entrada, com caixilhos de madeira, sobre a qual pedras cortadas estavam montadas para fazê-la parecer parte da parede.

A adega oculta era um grande salão, tinha pelo menos vinte e cinco metros de comprimento. Várias figuras circulavam em seu interior e o ar estava impregnado de cheiro de conhaque. Jamie largou o corpo sem nenhuma cerimônia em um canto, depois se virou para mim.

- Santo Deus, Sassenach, você está bem? - A adega parecia iluminada a vela, salpicadas aqui e ali na penumbra. Eu mal podia ver seu rosto, a pele distendida pelos ossos da face.

— Estou com um pouco de frio — eu disse, tentando não deixar meus dentes baterem. — Minha combinação está encharcada de sangue. Fora isso, estou bem. Eu acho.

—Jeanne! — Ele virou-se e gritou para o outro extremo da adega e uma das figuras veio em nossa direção, revelando-se uma senhora extremamente preocupada. Ele explicou a situação em poucas palavras, fazendo a expressão preocupada tornar-se consideravelmente mais alarmada.

- Horreur! - ela disse. - Assassinado? No meu estabelecimento? Com testemunhas?

— Sim, receio que sim. - A voz de Jamie soou calma. - Darei um jeito. Mas, enquanto isso, você deve subir. Talvez ele não estivesse sozinho. Você saberá o que fazer.

Sua voz revelava um tom de calma segurança e ele apertou seu braço. O toque de sua mão pareceu acalmá-la - eu esperava que essa era a razão do seu gesto -, e ela virou-se para ir embora.

- Ah, e Jeanne -Jamie disse às suas costas. - Quando voltar, pode trazer algumas roupas para a minha mulher? Se o vestido dela não estiver pronto, acho que o tamanho de Daphne serve.

— Roupas? — Madame Jeanne estreitou os olhos para as sombras onde eu me encontrava. Para ajudá-la, dei um passo em direção à luz, exibindo o resultado do meu encontro com o coletor de impostos.

Madame Jeanne piscou uma ou duas vezes, benzeu-se e virou-se sem dizer nenhuma palavra, desaparecendo através da porta oculta, que girou e fechou-se atrás dela com uma pancada surda.

Eu começava a tremer, tanto em reação aos acontecimentos quanto de frio. Embora acostumada a emergências, sangue e até mesmo morte repentina, os eventos da manhã haviam sido mais do que um pouco perturbadores. Era como uma noite de sábado ruim na sala de emergência do hospital.

- Venha comigo, Sassenach — Jamie disse, colocando a mão delicadamente nas minhas costas. - Vou arranjar-lhe um banho. - O toque de sua mão funcionou em mim do mesmo modo que funcionou em madame Jeanne; senti-me instantaneamente melhor, embora ainda apreensiva.

- Banho? De quê? Conhaque? Ele deu uma breve risada.

- Não, água. Posso lhe oferecer um banho, mas receio que esteja frio. Estava extremamente frio.

- De on-onde v-vem esta água? - perguntei, tremendo. - De uma geleira? — A água jorrava de um cano embutido na parede, normalmente vedado com tiras de pano de aspecto sujo, enroladas em volta de um pedaço de madeira que servia de rolha.

Retirei a mão do jato de água gelada e limpei-a na minha combinação, que já estava num estado deplorável demais para fazer alguma diferença. Jamie sacudiu a cabeça enquanto manobrava a grande tina de madeira para mais perto do esguicho.

- Do telhado - ele respondeu. - Há uma cisterna de águas da chuva lá em cima. A calha corre pela lateral do prédio e o cano da cisterna está escondido dentro dela. - Ele parecia absurdamente orgulhoso de si mesmo e eu ri.

— Muito engenhoso — eu disse. — Para que você usa a água?

- Para cortar a bebida - ele explicou. Indicou o outro extremo do porão, onde as figuras turvas trabalhavam com notável afinco entre uma enorme quantidade de barris e tinas. - Ela chega com um teor alcoólico muito alto. Aqui, misturamos com água pura e envasamos em barris outra vez para vender para as tabernas.

Ele enfiou o rústico tampão de volta no cano e inclinou-se para puxar a enorme tina pelo assoalho de pedra.

- Bem, vamos tirar isso do caminho; eles vão precisar da água.

Um dos homens estava de fato aguardando com um pequeno barril nos braços; com apenas um rápido olhar curioso em minha direção, ele cumprimentou Jamie com um breve sinal da cabeça e enfiou o barril sob o jorro de água.

Atrás de uma cortina improvisada às pressas de barris vazios, espreitei as profundezas da banheira provisória com desconfiança. Uma única vela queimava numa poça de cera ali perto, refletindo-se na superfície da água e fazendo-a parecer negra e abismal. Despi-me, tremendo violentamente, pensando em que renunciar aos confortos de água quente e encanamentos modernos me pareceu muito mais fácil quando estavam à mão.

Jamie remexeu em sua manga e retirou um grande lenço, que examinou com ar de dúvida.

- Sim, bem, acho que está mais limpo do que sua combinação - ele disse, encolhendo os ombros. Entregou-me o lenço, depois se desculpou porque precisava supervisionar as operações no outro lado do porão.

A água estava gelada, assim como a adega, e enquanto eu cuidadosamente me lavava com a esponja improvisada, os gélidos fios de água que escorriam pelo meu estômago e minhas coxas provocavam pequenos acessos de tremores.

Pensamentos sobre o que poderia estar acontecendo em cima não ajudavam a acalmar meus sentimentos de enregelada aflição. Aparentemente, estávamos a salvo por enquanto, desde que a falsa adega enganasse qualquer busca dos guardas alfandegários. Entretanto, se a parede não conseguisse nos esconder, nossa posição era insustentável. Não parecia haver nenhuma saída daquele porão, além da porta na parede falsa — e se essa parede fosse violada, nós não só seríamos pegos em flagrante na posse de uma grande quantidade de conhaque contrabandeado, como em poder do corpo de um funcionário do rei, assassinado.

Certamente, o desaparecimento desse funcionário iria provocar uma intensa busca. Eu tinha visões de homens vasculhando o bordel, interrogando e ameaçando as mulheres, fornecendo descrições completas de mim, de Jamie e do sr. Willoughby, bem como de vários relatos de testemunhas do crime. Involuntariamente, olhei para a outra extremidade do salão, onde o morto jazia sob sua mortalha manchada de sangue, coberta de flores de malva cor-de-rosa e amarelas. O chinês não era visto em lugar algum, tendo, ao que tudo indicava, desmaiado atrás de galões de conhaque.

- Tome, Sassenach. Beba isto; seus dentes estão batendo tanto que é capaz de morder a língua. - Jamie reapareceu no meu esconderijo como um cão são-bernardo, trazendo um pequeno barril de conhaque.

- O-obrigada. - Tive que largar o lenço com que estava me lavando e usar as duas mãos para firmar o copo de madeira para que não batesse contra meus dentes, mas o conhaque ajudou; caiu como um carvão em brasa no fundo do meu estômago e enviou pequenas espirais de rebentos de calor pelas minhas extremidades congeladas enquanto eu bebia em pequenos goles.

- Ah, meu Deus, assim é bem melhor - eu disse, parando o suficiente para recobrar o fôlego. - Esta é a versão sem mistura?

- Não, ela provavelmente a mataria. Mas é talvez um pouco mais forte do que a que vendemos. Termine e vista alguma coisa; depois pode tomar mais um pouco. - Jamie pegou o copo de minha mão e me devolveu o lenço que servia de pano de lavar. Enquanto eu terminava apressadamente minhas geladas abluções, observei-o pelo canto do olho. Ele franzia a testa enquanto me olhava, obviamente absorto em pensamentos. Eu imaginara que sua vida era complicada; não me passara despercebido que a minha presença indubitavelmente a complicava ainda mais. Daria tudo para saber o que ele estava pensando.

- Em que está pensando, Jamie? - perguntei, observando-o de soslaio enquanto limpava as últimas manchas de minhas coxas. A água girava em torno das minhas pernas, agitada pelos meus movimentos, e a luz da vela iluminava as ondas com cintilações, como se o sangue escuro que eu lavara do meu corpo agora brilhasse novamente, vivo e vermelho na água.

O ar de preocupação desapareceu momentaneamente quando seus olhos se desanuviaram e se focalizaram em meu rosto.

- Estou pensando que você é muito bonita, Sassenach - ele disse de forma carinhosa.

- Talvez para quem goste de pele arrepiada - eu disse sarcasticamente, saindo da tina e estendendo a mão para o copo.

Ele riu subitamente para mim, os dentes brancos cintilando na semiescuridão da adega.

- Ah, sim - ele disse. - Bem, você está falando com o único homem na Escócia que tem um terrível tesão à vista de uma galinha depenada.

Eu tossi e quase engasguei com o conhaque, meio histérica de tensão e terror.

Jamie rapidamente tirou o casaco e envolveu-me com ele, abraçando-me bem junto ao corpo, enquanto eu tremia, tossia e arfava.

- Fica difícil passar por um vendedor de aves e continuar decente - ele murmurou no meu ouvido, esfregando minhas costas energicamente através do tecido. - Fique tranqüila, Sassenach, fique tranqüila. Tudo vai dar certo.

Agarrei-me a ele, tremendo.

- Desculpe-me - eu disse. - Estou bem. Mas foi culpa minha. O sr. Willoughby atirou no guarda alfandegário porque achou que ele estava me fazendo propostas indecentes.

Jamie deu um muxoxo.

— Isso não faz com que você seja culpada, Sassenach — ele disse secamente. - E se quer saber, também não é a primeira vez que o chinês comete alguma tolice. Quando está bêbado, faz qualquer coisa, por mais louca que seja.

De repente, a expressão de Jamie mudou, quando ele percebeu o que eu havia dito. Olhou-me fixamente, os olhos arregalados.

- Você disse ”guarda alfandegário”, Sassenach?

— Sim, por quê?

Ele não respondeu, mas soltou meus ombros e girou nos calcanhares, apoderando-se da vela que estava sobre um tonel ao passar. Em vez de ficar sozinha no escuro, eu o segui até o canto onde o cadáver jazia sob o xale.

— Segure isto. -Jamie enfiou a vela sem nenhuma cerimônia em minha mão e ajoelhou-se ao lado da figura envolta na mortalha, afastando o tecido manchado que cobria seu rosto.

Eu já vira muitos corpos sem vida; a visão não era nenhum choque, mas ainda assim não era agradável. Os olhos haviam se revirado para cima sob as pálpebras semicerradas, o que só piorava o aspecto fantasmagórico. Jamie franziu o cenho diante do rosto do morto, o maxilar frouxo e cor de cera à luz da vela, e murmurou algo baixinho.

— O que foi? — perguntei. Pensei que jamais me sentiria aquecida outra vez, mas o casaco de Jamie não só era grosso e bem-feito, como guardava os resquícios de seu próprio e considerável calor corporal. Eu ainda sentia frio, mas parara de tremer.

- Ele não é um guarda alfandegário -Jamie disse, ainda de cenho franzido. - Conheço todos da guarda montada do distrito, bem como todos os superintendentes. Mas nunca vi este sujeito. — Com certa repugnância, ele virou a aba do casaco encharcado de sangue e tateou em seu interior.

Vasculhou com cuidado, porém minuciosamente, a parte interna da roupa do sujeito, finalmente retirando de lá um pequeno canivete e um livrinho encadernado em papel vermelho. ”Novo Testamento”, eu li, com espanto.

Jamie balançou a cabeça, erguendo os olhos para mim com uma das sobrancelhas arqueadas.

- Guarda alfandegário ou não, parece algo estranho de se trazer para uma casa de prostituição. - Limpou o livrinho no xale, depois colocou as dobras do tecido delicadamente de volta sobre o rosto do defunto e levantou-se, sacudindo a cabeça. - Só havia isso em seus bolsos. Qualquer inspetor da alfândega ou guarda alfandegário tem que carregar sua licença o tempo todo, caso contrário ele não tem nenhuma autoridade para realizar uma busca nas dependências ou confiscar mercadorias. - Olhou para cima, as sobrancelhas erguidas. - Por que você achou que ele era um guarda alfandegário?

Abracei as dobras do casaco de Jamie ao redor do meu corpo, tentando me lembrar do que o homem me dissera no patamar.

- Ele me perguntou se eu era um chamariz e onde estava a madame. Depois, disse que havia uma recompensa, uma porcentagem do contrabando confiscado, e que ninguém ficaria sabendo, a não ser ele e eu. E você disse que havia guardas alfandegários em seu encalço - acrescentei. Assim, naturalmente, eu pensei que ele fosse um deles. Então, o sr. Willoughby apareceu e as coisas degringolaram.

Jamie balançou a cabeça, ainda parecendo intrigado.

- Sim, bem. Não faço a menor idéia de quem ele seja, mas é uma boa coisa que ele não seja um guarda alfandegário. No começo, achei que alguma coisa dera errado, mas acho que está tudo bem.

- Errado?

Ele esboçou um sorriso.

- Tenho um acordo com o superintendente da alfândega do distrito, Sassenach.

Fiquei boquiaberta.

— Um acordo?

Ele encolheu os ombros.

- Bem, suborno, então, se quiser falar claro. - Pareceu ligeiramente irritado.

— Com certeza esse é o procedimento padrão nos negócios, não? — eu disse, tentando agir com tato. Um dos cantos de sua boca contorceu-se ligeiramente.

— Sim, é. Bem, de qualquer modo há um acordo entre sir Percival Turner e mim, e descobrir que ele está enviando guardas alfandegários a este lugar me preocuparia consideravelmente.

- Muito bem - eu disse devagar, analisando mentalmente todos os acontecimentos inexplicáveis da manhã e tentando estabelecer um padrão.

- Mas, nesse caso, o que pretendia ao dizer a Fergus que os guardas estavam em seus calcanhares? E por que todo mundo está correndo de um lado para o outro, como galinhas sem cabeça?

- Ah, isso. - Sorriu ligeiramente e segurou meu braço, afastando-me do cadáver aos nossos pés. — Bem, é um acordo, como eu disse. E parte dele é que sir Percival tem que satisfazer seus próprios chefes em Londres, confiscando quantidades suficientes de contrabando de vez em quando. Então providenciamos para que ele tenha a oportunidade. Wally e os rapazes trouxeram duas cargas de carroça do litoral; uma do melhor conhaque e a outra cheia de barris imprestáveis e de vinho estragado, rematado com alguns galões de aguardente de má qualidade, só para dar um sabor.

”Eu os encontrei na entrada da cidade hoje de manhã, como planejado, e então trouxemos as carroças, tomando cuidado para chamar a atenção da polícia montada, que por acaso estava passando com um pequeno número de dragões. Eles nos acompanharam e nós os conduzimos por uma alegre caçada pelas vielas, até o momento em que eu e os barris bons nos separássemos de Wally e sua carga de bebida de má qualidade. Nesse momento, Wally pulou de sua carroça e fugiu, e eu dirigi como um louco até aqui, com dois ou três dragões me seguindo, só para constar. Fica bem num relatório, sabe.” Riu para mim, citando o relatório: ”Os contrabandistas escaparam, apesar da perseguição implacável, mas os valorosos soldados de Sua Majestade conseguiram capturar uma carroça inteira com sua carga de bebidas, no valor de sessenta libras e dez xelins. Esse tipo de coisa.”

- Acho que sim - eu disse. - Então era você, com a bebida boa, que estava chegando às dez horas? Madame Jeanne disse...

— Sim - ele disse, franzindo o cenho. - Ela devia estar com a porta da adega aberta e a rampa no lugar às dez em ponto. Não temos muito tempo para descarregar tudo. Ela se atrasou muito nesta manhã; tive que dar duas voltas para não trazer os soldados direto à porta.

- Ela estava um pouco perturbada - eu disse, lembrando-me de repente do Demônio. Contei a Jamie sobre o assassinato na Green Owl e ele fez uma careta, persignando-se.

- Pobre garota - ele disse.

Estremeci à lembrança da descrição de Bruno e aproximei-me mais de Jamie, que passou o braço pelos meus ombros. Beijou-me distraidamente na testa, olhando de novo para a figura coberta com o xale no chão.

- Bem, quem quer que seja, se não era um guarda alfandegário, provavelmente não há outros como ele no andar de cima. Logo sairemos daqui.

- Ótimo. - O casaco de Jamie me cobria até os joelhos, mas eu sentia os olhares dissimulados, lançados da outra extremidade da adega às minhas pernas expostas, e estava desconfortavelmente consciente de que estava nua por baixo do casaco. - Nós vamos voltar à gráfica? - Afinal, eu não queria me aproveitar da hospitalidade de madame Jeanne mais do que o necessário.

- Talvez por enquanto. Vou ter que pensar. - O tom de voz de Jamie era distraído e pude ver que sua testa estava franzida em concentração. Com um rápido abraço, soltou-me e começou a andar pela adega, fitando pensativamente as pedras sob seus pés.

- Ha... o que você fez com Ian?

Ele ergueu os olhos, parecendo não compreender; depois, seu rosto desanuviou-se.

— Ah, Ian. Eu o deixei fazendo perguntas nas tabernas de Market Cross. Não posso me esquecer de encontrá-lo mais tarde - ele murmurou, como se fizesse uma anotação para si mesmo.

— Por falar nisso, encontrei o Jovem Ian — eu disse, em tom de conversa. Jamie pareceu surpreso.

— Ele veio aqui?

- Veio. À sua procura. Na verdade, cerca de quinze minutos depois que você saiu.

- Graças a Deus pelas pequenas dádivas! - Passou a mão pelos cabelos, parecendo simultaneamente achar graça e ficar preocupado. - Ia ser o diabo explicar para Ian o que seu filho estava fazendo aqui.

- Você sabe o que ele estava fazendo aqui? - perguntei, curiosa.

- Não, não sei! Ele deveria estar... ah, bem, deixe pra lá. Não posso me preocupar com isso no momento. - Mergulhou outra vez em seus pensamentos, emergindo por um momento para perguntar: — O Jovem Ian disse para onde ia quando saiu daqui?

Sacudi a cabeça, apertando mais o casaco junto ao corpo, e ele balançou a cabeça, suspirou e retomou seus passos lentos de um lado para outro.

Sentei-me num barril emborcado e fiquei observando-o. Apesar do ambiente geral de desconforto e perigo, eu me sentia absurdamente feliz só por estar perto dele. Percebendo que eu pouco poderia fazer para melhorar a situação no momento, acomodei-me com o casaco enrolado ao meu redor e abandonei-me ao prazer momentâneo de observá-lo - algo que eu não tivera chance de fazer no tumulto dos acontecimentos.

Apesar de sua preocupação, ele se movia com a graciosidade segura de um espadachim, um homem tão consciente de seu corpo a ponto de ser capaz de esquecê-lo por completo. Os homens que estavam junto aos toneis trabalhavam à luz de tochas; ela cintilou em seus cabelos quando ele se virou, iluminando-o como o pêlo de um tigre, com listas douradas e escuras.

Percebi a ligeira contração de dois dedos de sua mão direita contra o tecido de suas calças e senti uma estranha sensação de reconhecimento no gesto. Eu o vira fazer isso milhares de vezes quando estava pensando e ver aquele trejeito novamente me fez sentir como se todo o tempo que passamos separados não tivesse sido mais do que o espaço de tempo entre o nascer e o pôr-do-sol de um único dia.

Como se percebesse meu pensamento, ele parou seu passeio de um lado para o outro e sorriu para mim.

- Está bem aquecida, Sassenach? - perguntou.

— Não, mas não tem importância. — Saí do meu barril e fui juntar-me a ele em suas peregrinações, enfiando a mão pelo seu braço. - Está fazendo progressos no que está pensando?

Ele riu melancolicamente.

- Não. Estou pensando em meia dúzia de coisas ao mesmo tempo e, em relação à metade delas, não há nada que eu possa fazer. Como, por exemplo, se o Jovem Ian está onde deve estar.

Olhei para ele, surpresa.

— Onde deveria estar? Onde você acha que ele deveria estar?

- Ele deve estar na gráfica - Jamie disse com alguma ênfase. — Mas ele deveria estar com Wally hoje de manhã, e não estava

- Com Wally? Quer dizer, você sabia que ele não estava em casa, quando o pai dele veio procurá-lo hoje de manhã?

Ele esfregou o nariz com um dedo, ao mesmo tempo irritado e achando engraçado.

- Ah, sabia. Mas eu prometera ao Jovem Ian que não diria nada a seu pai, enquanto ele mesmo não tivesse a chance de se explicar. Não que uma explicação deva salvar seu traseiro - ele acrescentou

O Jovem Ian, havia, como seu pai dissera, vindo ao encontro de seu tio em Edimburgo sem se dar ao trabalho preliminar de pedir licença a seus pais. Jamie logo descobrira sua fuga, mas não quis mandar seu sobrinho de volta sozinho para Lallybroch e ainda não tivera tempo de escoltá-lo pessoalmente.

- Não que ele não possa tomar conta de si mesmo -Jamie explicou, o humor vencendo a luta de expressões em seu rosto. - É um garoto muito capaz. É que... bem, você sabe como algumas coisas simplesmente acontecem à volta de certas pessoas, sem que elas pareçam ter nada a ver com isso?

- Agora que você mencionou, sim - eu disse, ironicamente - Eu sou uma delas

Ele deu uma sonora risada.

- Meu Deus, tem razão, Sassenach. Talvez seja por isso que eu goste tanto do Jovem Ian. Ele me lembra você.

- Ele me lembrou um pouco você - eu disse Jamie fez um pequeno muxoxo.

- Santo Deus, Jenny vai me estropiar se ouvir dizer que seu filho caçula andou flanando por uma casa de má fama. Espero que o danadinho tenha o bom senso de manter a boca fechada quando chegar em casa.

- Espero que ele chegue em casa - eu disse, pensando no desajeitado garoto de quase quinze anos que eu vira naquela manhã, perdido numa Edimburgo cheia de prostitutas, guardas alfandegários, contrabandistas e demônios brandindo machadinhas. — Ao menos, ele não é uma garota — acrescentei, pensando neste último item. - O Demônio não parece ter uma queda por garotos.

— Sim, bem, há muitos outros que têm — Jamie disse amargamente. — Com o Jovem Ian e você, Sassenach, terei sorte se meus cabelos não ficarem brancos até nós sairmos desta maldita adega.

— Eu? — exclamei, surpresa. — Não precisa se preocupar comigo.

- Ah, não? - Largou meu braço e começou a circular à minha volta, olhando-me fixamente. - Não preciso me preocupar com você? Foi isso que disse? Santo Deus! Eu a deixo com toda a segurança na cama à espera do desjejum e, uma hora depois, eu a encontro embaixo, de combinação, segurando um morto no colo! E agora está diante de mim pelada como um ovo, com quinze homens do outro lado imaginando quem é você... e como acha que vou explicá-la pra eles, Sassenach? Diga-me, sim? — Passou a mão bruscamente pelos cabelos, exasperado. - Santa Mãe de Deus! E eu tenho que subir a costa dentro de dois dias sem falta, mas não posso deixá-la em Edimburgo, não com demônios se esgueirando por aí com machadinhas e metade das pessoas que a viram achando que você é uma prostituta, e... e... — O laço que prendia seu rabo-de-cavalo soltou-se sob a pressão e seus cabelos espalharam-se em torno da cabeça como uma juba de leão. Desatei a rir. Fitou-me por mais um instante, mas depois um riso relutante lentamente tomou o lugar da carranca de preocupação. - Sim, bem - ele disse, resignado. - Acho que darei um jeito.

- Acho que sim - eu disse, ficando na ponta dos pés para ajeitar seus cabelos para trás das orelhas. Segundo o mesmo princípio que faz com que ímãs de polaridades opostas se unam instantaneamente quando colocados em grande proximidade, ele inclinou a cabeça e beijou-me.

- Eu havia me esquecido - ele disse pouco depois.

- Esquecido o quê? - Suas costas estavam quentes através da camisa fina.

- Tudo. - Falou brandamente, a boca nos meus cabelos. - Alegria. Medo. Principalmente, medo. - Ergueu a mão e afastou meus cachos do seu nariz. — Não sinto medo há muito tempo, Sassenach — ele sussurrou. — Mas agora acho que estou sentindo. Porque agora eu tenho algo a perder.

Afastei-me um pouco para fitá-lo. Seus braços estavam presos em torno da minha cintura, os olhos escuros como águas profundas na penumbra. Então a expressão de seu rosto mudou e ele beijou-me rápido na testa.

- Venha comigo, Sassenach — disse, segurando-me pelo braço. - Direi aos homens que você é minha mulher. O resto vai ter que esperar.

 

O vestido era um pouco mais decotado do que o necessário e um pouco justo no peito, mas no conjunto não caía mal.

— E como você sabia que o tamanho de Daphne serviria para mim? perguntei, mexendo a minha sopa.

- Eu disse que não durmo com as garotas - Jamie respondeu de maneira circunspecta. — Nunca disse que não olho para elas. — Ele pestanejou para mim como uma grande coruja vermelha, algum tique congênito tornava-o incapaz de fechar um único olho numa piscadela, e eu ri.

- Mas este vestido cai muito melhor em você do que na Daphne. - Ele lançou um olhar de aprovação geral ao meu peito e acenou para uma das criadas que passava com uma travessa de pãezinhos quentes.

A taberna Moubray’s oferecia um farto serviço de jantar. Diferente do ambiente enfumaçado encontrado na Worlds End e outros estabelecimentos semelhantes, onde as pessoas iam principalmente para beber, Moubrays era um lugar amplo e elegante, com uma escada externa que levava ao segundo andar, onde um confortável salão de jantar saciava o apetite dos prósperos comerciantes e altos funcionários públicos de Edimburgo.

— Quem você é no momento? — perguntei. — Eu ouvi madame Jeanne chamá-lo de ”monsieur Fraser”, mas você é Fraser em público?

Ele meneou a cabeça e partiu um pãozinho dentro de sua tigela de sopa.

— Não, no momento sou Sawney Malcolm, impressor e editor.

- Sawney? É o apelido de Alexander, não é? Eu imaginaria que ”Sandy” seria mais adequado, especialmente se considerarmos sua cor. Não que os cabelos dele fossem cor de areia, absolutamente, refleti, olhando para eles. Eram como os cabelos de Bri... muito cheios, levemente ondulados e em todos os tons de vermelho e dourado; cobre e canela, castanho e âmbar; vermelho, ruão e ruivo, tudo misturado.

Senti uma onda de saudades de Bri; ao mesmo tempo, ansiava para desfazer a trança formal dos cabelos de Jamie e correr as mãos por dentro deles, sentir a curva sólida de seu crânio e os fios macios emaranhados em meus dedos. Ainda podia senti-los pinicando meu peito, soltos e espalhados pelos meus seios à luz da manhã.

Um pouco sem ar, abaixei a cabeça para meu ensopado de ostras. Jamie não parecia ter notado; acrescentou uma boa porção de manteiga à sua tigela, sacudindo a cabeça.

- Sawney é como dizem nas Highlands - informou-me. - E nas Ilhas, também. Sandy é mais provável de ser ouvido nas Lowlands... ou de uma Sassenach ignorante. - Ergueu uma das sobrancelhas para mim, sorrindo, e levou uma colher cheia do ensopado aromático e saboroso à boca.

— Tudo bem — eu disse. — Mas sendo mais direta... quem sou eu?

Ele notara, afinal. Senti um pé pesado afagar o meu e ele sorriu para mim por cima da borda de seu copo.

- Você é minha mulher, Sassenach. - ele disse com a voz rouca. Sempre. Não importa quem eu seja, você é minha mulher.

Pude sentir a onda de prazer subir às minhas faces e ver as lembranças da noite anterior refletirem-se em seu rosto. As pontas de suas orelhas ficaram levemente rosadas.

- Não acha que este ensopado está apimentado demais? - perguntei, engolindo outra colherada. — Tem certeza, Jamie?

- Sim - ele disse. - Sim, tenho certeza - consertou. - E não, a pimenta está no ponto. Gosto de um pouco de pimenta. - O pé moveu-se ligeiramente contra o meu, a ponta de seu sapato tocando de leve meu tornozelo.

— Então, sou a sra. Malcolm — eu disse, experimentando a pronúncia do nome. O simples fato de dizer ”senhora” causou-me um absurdo frisson, como uma recém-casada. Involuntariamente, abaixei o olhar para a aliança de prata em minha mão direita.

Jamie percebeu o olhar e ergueu seu copo para mim.

- À sra. Malcolm - disse ternamente, e a sensação de falta de ar retornou.

Ele pousou o copo na mesa e segurou minha mão; a sua era tão grande e tão quente que uma sensação geral de calor irradiante espalhou-se rápido pelos meus dedos. Eu podia sentir a aliança de prata, separada de minha pele, o metal aquecido pelo toque de sua mão.

— Para amar e proteger — ele disse, sorrindo.

- De hoje em diante - eu disse, sem me importar nem um pouco por estarmos atraindo olhares curiosos dos outros comensais.

Jamie inclinou a cabeça e pressionou os lábios em minha mão, um gesto que transformou os olhares furtivos em francamente ostensivos. Um sacerdote estava sentado do outro lado do salão; ele fitou-nos e disse alguma coisa a seus companheiros, que se viraram para nos olhar. Um era um homenzinho idoso; o outro, constatei com surpresa, era o sr. Wallace, meu companheiro de viagem no coche de Inverness.

— Há salas reservadas em cima —Jamie murmurou, os olhos azuis dançando nos nós dos meus dedos, e eu perdi o interesse no sr. Wallace.

— Que interessante - eu disse. — Você não terminou seu ensopado.

— Dane-se o ensopado.

— Ali vem a garçonete com a cerveja.

— Que o diabo a carregue. — Dentes brancos e afiados fecharam-se delicadamente sobre o nó do meu dedo, fazendo-me dar um pequeno salto em meu banco.

- As pessoas estão olhando.

- Deixe que olhem, vão ganhar o dia.

Passou a língua delicadamente entre meus dedos.

- Um homem de casaco verde está vindo em nossa direção.

— Para o inferno — Jamie começou, quando a sombra do visitante recaiu sobre a mesa.

- Bom-dia, sr. Malcolm - disse o visitante, inclinando-se educadamente numa reverência. - Espero não estar interrompendo.

— Está, sim — Jamie disse, endireitando-se, mas continuando a segurar minha mão. Dirigiu um olhar frio ao visitante. - Acho que não o conheço.

O cavalheiro, um inglês de uns trinta e cinco anos, discretamente vestido, fez uma nova saudação, sem se deixar intimidar por aquela declarada falta de hospitalidade.

- Ainda não tive o prazer de conhecê-lo, senhor - ele disse respeitosamente. — Meu chefe, entretanto, pediu-me que o cumprimentasse e averiguasse se o senhor... e sua companheira... lhe dariam o prazer de tomar um vinho em sua companhia.

A pequena pausa antes da palavra ”companheira” fora quase imperceptível, mas Jamie registrou-a. Seus olhos estreitaram-se.

- Minha esposa e eu - ele disse, com exatamente a mesma pausa antes da palavra ”esposa” — estamos ocupados no momento. Se seu chefe quiser falar comigo...

— Foi sir Percival Turner quem me mandou aqui, senhor — o secretário, pois esse devia ser seu cargo, informou rapidamente. Apesar de bem-educado, não pôde resistir a um ínfimo movimento de uma das sobrancelhas, como alguém que usa um nome para impressionar.

- De fato - disse Jamie secamente. - Bem, com todo o respeito a sir Percival, estou ocupado no momento. Poderia lhe transmitir minhas desculpas? — Ele inclinou a cabeça, com uma cortesia tão enfática que beirava a indelicadeza, e deu as costas ao secretário. O cavalheiro ficou parado por um instante, a boca meio aberta, em seguida girou agilmente nos calcanhares e abriu caminho em meio à confusão de mesas, até uma porta no extremo oposto do salão de jantar.

— Onde é que eu estava? —Jamie perguntou. — Ah, sim. Para o inferno com cavalheiros de casaco verde. Agora, sobre essas salas privadas...

- Como você vai me explicar para as pessoas? - perguntei. Ele ergueu uma das sobrancelhas.

- Explicar o quê? - Olhou-me de cima a baixo. - Por que eu teria que me justificar por você? Não lhe falta nenhum braço ou perna; não está empolada, não é corcunda, desdentada ou aleijada...

- Sabe o que quero dizer - interrompi, chutando-o de leve sob a mesa. Uma mulher sentada junto à parede cutucou seu companheiro e arregalou os olhos com desaprovação para nós. Sorri-lhes calmamente.

- Sim, sei - ele disse, rindo. - No entanto, com todas as peripécias do sr. Willoughby hoje de manhã e uma coisa e outra, não tive muita chance de pensar no assunto. Talvez eu simplesmente...

- Meu caro amigo, então você é casado! Grande notícia! Simplesmente fenomenal! Minhas mais sinceras congratulações! E talvez eu seja, quem sabe, o primeiro a estender minhas felicitações e votos de felicidade a sua senhora.

Um cavalheiro baixinho, idoso, com uma peruca bem penteada, inclinou-se com dificuldade, apoiando-se numa bengala de castão de ouro, sorrindo cordialmente para nós. Era o homenzinho que vi sentado com o sr. Wallace e o padre.

— Tenho certeza de que perdoarão a minha pequena descortesia de enviar Johnson aqui para convidá-los, não? - ele disse, desculpando-se. - É que esta maldita enfermidade impede movimentos rápidos, como podem ver.

Jamie levantou-se à aproximação do visitante e, com um gesto de cortesia, puxou uma cadeira.

- Senta-se conosco, sir Percival? - ele disse.

- Ah, não, realmente não! Não me atreveria a interromper sua nova felicidade, meu caro. Na realidade, eu não fazia a menor idéia. - Ainda protestando cordialmente, deixou-se afumdar na cadeira oferecida, contraindo-se ao esticar o pé sob a mesa. - Sou um mártir da gota, minha cara - confidenciou, inclinando-se tão perto de mim que pude sentir seu bafo de velho sob o cheiro de gualtéria que perfumava suas roupas.

Ele não parecia corrupto, pensei - a despeito do mau hálito -, mas as aparências podiam enganar; fazia apenas quatro horas que eu fora confundida com uma prostituta.

Fazendo o melhor que podia, Jamie pediu vinho e aceitou as continuadas e efusivas saudações de sir Percival com certa boa vontade.

- Foi uma sorte encontrá-lo aqui, meu caro - disse o idoso cavalheiro, finalmente encerrando seus floreados cumprimentos. Colocou a mão pequena e bem tratada na manga de Jamie. — Eu tinha algo particular a lhe dizer. Na realidade, enviei um bilhete à gráfica, mas meu mensageiro não o encontrou lá.

- É? - Jamie arqueou uma das sobrancelhas com um ar de interrogação.

- Sim - continuou sir Percival. - Creio que você havia me falado há algumas semanas, não me lembro bem da ocasião, de sua intenção de viajar para o norte a negócios. Alguma coisa a ver com uma nova máquina impressora ou algo assim, não? - A expressão do rosto de sir Percival era muito amável, pensei, bonita e aristocrática apesar dos anos, com olhos azuis grandes e sinceros.

— Sim, é verdade — Jamie concordou educadamente. — Fui convidado pelo sr. McLeod de Perth para ver um novo modelo de impressora que ele colocou em uso recentemente.

- Isso mesmo. - Sir Percival parou para retirar uma caixa de rapé do bolso, um lindo objeto esmaltado em verde e ouro, com querubins na tampa.

- Eu realmente não recomendo uma viagem ao norte no momento - ele disse, abrindo a caixa e concentrando-se em seu conteúdo. - Realmente, não recomendo. O clima será inclemente nesta estação, tenho certeza de que não agradaria à sra. Malcolm. — Sorrindo para mim como um anjo idoso, inalou uma grande pitada de rapé e fez uma pausa, o lenço de linho à mão.

Jamie bebeu um pequeno gole de seu vinho, o rosto agradavelmente sereno.

- Agradeço-lhe o aviso, sir Percival - ele disse. - Recebeu informações de seus agentes sobre tempestades recentes ao norte?

Sir Percival espirrou, um som curto, preciso, como o de um rato resfriado. Ele se parecia mesmo com um rato branco, pensei vendo-o tocar delicadamente o lenço no nariz rosado e pontiagudo.

— Isso mesmo — ele tornou a dizer, guardando o lenço e piscando para Jamie com benevolência. - Não, eu recomendo enfaticamente, como um amigo especial que só pensa em seu bem-estar, que você permaneça em Edimburgo. Afinal - acrescentou, direcionando o facho de sua benevolência sobre mim -, certamente você tem um motivo muito persuasivo para ficar em casa agora, não é? E agora, meus caros jovens, receio ter que me despedir. Não devo atrapalhar por mais tempo o que deve ser seu desjejum de núpcias.

Com uma pequena ajuda do solícito Johnson, sir Percival levantou-se e afastou-se gingando, a bengala de castão de ouro batendo ritmadamente no assoalho.

- Parece um simpático e educado velhinho - observei, quando tive certeza de que ele já estava longe demais para me ouvir.

Jamie riu ironicamente.

— Mais podre do que uma tábua cheia de cupins — ele disse. Pegou seu copo e esvaziou-o - É de se imaginar o contrário - disse pensativamente, colocando o copo de volta sobre a mesa e fitando a figura decrépita, agora cautelosamente às voltas com o topo das escadas. — Quero dizer, um homem tão perto do Juízo Final quanto sir Percival. É de se imaginar que o medo do diabo o reprimisse, mas nem um pouco.

— Imagino que ele seja como todo mundo — eu disse sarcasticamente.

- A maioria das pessoas pensa que vai viver para sempre.

Jamie riu, seu exuberante bom humor retornando rapidamente.

- Sim, é verdade - ele disse. Empurrou meu copo de vinho em minha direção. - E agora que você está aqui, Sassenach, estou convencido disso. Beba, mo nighean donn, e subiremos.

- Post coitum omne ammalmm triste est — observei, com os olhos cerrados. Não houve nenhuma reação do corpo pesado e quente sobre meu peito, a não ser pelo sopro suave de sua respiração. Após um instante, entretanto, senti uma espécie de vibração subterrânea, que interpretei como um riso reprimido.

— Essa é uma sensação muito particular, Sassenach — Jamie disse, a voz velada de sonolência. - Mas não é o que sente, espero.

— Não. — Acariciei os cabelos úmidos e brilhantes para trás, afastando-os de sua testa, e ele afundou o rosto na curva do meu ombro, com um som fanhoso de contentamento.

Os aposentos particulares da Moubrays deixavam um pouco a desejar no quesito acomodações amorosas. Ainda assim, o divã ao menos oferecia uma superfície horizontal almofadada, que, se os amantes fossem direto ao assunto, era suficiente. Apesar de ter concluído que eu, afinal de contas, não passara da idade de querer corroer atos apaixonados, ainda assim sentia-me velha demais para realizá-los sobre o assoalho de tábuas nuas.

- Não sei quem disse isso, algum filósofo da antigüidade. Estava citado em um dos meus livros de medicina; no capítulo do sistema reprodutivo humano

A vibração se tornou audível na forma de uma risadinha.

- Parece que você fez bom proveito de suas lições, Sassenach — ele disse. Sua mão deslizou pelo lado do meu corpo e insinuou-se por baixo, até segurar minha nádega. Suspirou de prazer, apertando-a ligeiramente. — Não me lembro de quando me senti menos triste - ele disse

- Nem eu - concordei, seguindo a espiral do pequeno tufo de cabelos que se erguia do centro de sua fronte. — Foi o que me fez pensar nisso. Fiquei imaginando o que levou o antigo filósofo a essa conclusão

— Imagino que dependa do tipo de animaliae com quem ele andava fornicando — Jamie observou. — Talvez seja apenas porque ele não se afeiçoou realmente a nenhuma delas, mas ele deve ter tentado muitas vezes, para fazer uma afirmação tão generalizada.

Ele segurou-se mais à sua âncora, conforme a maré da minha risada balançava-o suavemente para cima e para baixo.

- Veja bem, os cachorros às vezes parecem mesmo um pouco acabrunhados depois de acasalar — ele disse.

- Humm. E, então, como ficam os carneiros?

- Sim, bem, as ovelhas continuam com ar de ovelhas, não tendo muita escolha na questão, sabe.

- Ah, é? E como ficam os machos?

- Ah, eles parecem bem depravados. Ficam com a língua para fora, babando, e os olhos reviram-se para trás, enquanto fazem barulhos nojentos. Como a maioria dos machos, hein? — Pude sentir a curva de seu sorriso contra meu ombro. Ele apertou-me outra vez e eu puxei delicadamente a orelha mais próxima à minha mão. - Não vi sua língua para fora.

- Você não estava prestando atenção, seus olhos estavam fechados.

- Também não ouvi nenhum som nojento.

— Bem, não consegui pensar em nenhum no impulso do momento - admitiu. - Vou me sair melhor da próxima vez.

Rimos baixinho e depois ficamos em silêncio, ouvindo a respiração um do outro.

— Jamie — eu disse finalmente num sussurro, acariciando sua nuca —, acho que nunca me senti tão feliz.

Ele rolou para o lado, com cuidado para não me esmagar, e ergueu-se sobre o cotovelo para me olhar de frente.

- Nem eu, minha Sassenach — ele disse, beijando-me, muito de leve, mas longamente, de modo que eu tive tempo de cerrar meus lábios numa pequena mordida na parte cheia de seu lábio inferior. — Não se trata só de sexo - ele disse, afastando-se um pouco finalmente. Seus olhos fitavam-me, com o azul suave e profundo de um quente mar tropical.

- Não - eu disse, tocando sua face. — Não é só isso.

- Ter você comigo outra vez, falar com você, saber que posso dizer qualquer coisa, sem ter que vigiar minhas palavras ou esconder meus pensamentos... meu Deus, Sassenach — ele disse —, Deus sabe que como homem sou louco por sexo e não consigo tirar as mãos de você, de nenhuma parte - acrescentou ironicamente -, mas eu não me importaria de perder tudo isso pelo único prazer de ter você a meu lado e poder conversar com você de coração aberto.

— Foi muito solitário viver sem você — sussurrei. — Muito solitário.

— Para mim também — ele disse. Abaixou os olhos, as longas pestanas ocultando seus olhos, e hesitou por um instante. — Não vou dizer que vivi como um monge — ele disse a meia-voz — Quando eu precisava, quando sentia que iria enlouquecer...

Coloquei os dedos sobre seus lábios, para fazê-lo calar-se

- Eu também não - eu disse. - Frank...

Sua própria mão pressionou delicadamente minha boca Ambos calados, olhamos um para o outro e pude sentir o sorriso crescendo sob minha mão e o meu próprio sob a mão dele. Retirei minha mão.

- Não significa nada - ele disse. Retirou a mão de minha boca.

— Não — eu disse. — Não tem importância. — Tracei o contorno de seus lábios com meu dedo. — Então me fale de coração aberto — eu pedi. — Se houver tempo.

Olhou para a janela para avaliar a luz - ficamos de encontrar Ian na gráfica às cinco horas, para verificar o progresso das buscas pelo Jovem Ian.

- e em seguida rolou cuidadosamente de cima de mim.

- Temos duas horas, pelo menos, antes de ir. Sente-se e vista-se, então pedirei que tragam biscoitos e vinho.

A idéia pareceu-me maravilhosa. Eu parecia estar sempre faminta desde que o encontrara. Sentei-me e comecei a remexer a pilha de roupas atiradas no chão, à procura da armação que o vestido de decote fundo exigia.

- Não estou triste de modo algum, mas talvez um pouco envergonhado - Jamie observou, contorcendo os dedos longos e delgados do pé na meia de seda — Ou deveria, pelo menos.

- Por quê?

- Bem, aqui estou eu, no paraíso, por assim dizer, com você, vinho e biscoitos, enquanto Ian está lá fora percorrendo as ruas, preocupado com seu filho.

— Você está preocupado com o Jovem Ian? — perguntei, concentrando-me em meus cadarços.

Ele franziu ligeiramente a testa, enfiando a outra meia

— Não tanto preocupado com ele, mas com receio de que ele só reapareça amanhã.

- O que tem amanhã? - perguntei, e então lembrei-me do encontro com sir Percival Turner. - Ah, sua viagem para o norte... que deveria acontecer amanhã?

Ele balançou a cabeça afirmativamente.

— Sim, há um encontro marcado em Mullm’s Cove, já que amanhã é lua nova. Um veleiro vindo da França, com uma carga de vinho e cambraia.

- E sir Percival aconselhou-o a não ir a esse encontro?

- Assim parece. Não sei o que aconteceu, mas espero descobrir. Pode ser que haja um alto oficial da alfândega em visita ao distrito ou talvez ele tenha ouvido rumores de alguma atividade lá na costa que não tenha nada a ver conosco, mas que poderia atrapalhar. — Encolheu os ombros e terminou de ajeitar a última liga.

Em seguida, espalmou as mãos abertas sobre os joelhos, palmas para cima, e lentamente curvou os dedos para dentro. A esquerda fechou-se imediatamente num punho cerrado, compacto e rijo, um instrumento duro, pronto para a luta. Os dedos da mão direita curvaram-se mais devagar; o dedo médio estava curvo, sem conseguir alinhar-se com o indicador. O dedo anelar simplesmente não se curvava, continuando a apontar rigidamente para frente e mantendo o dedo mínimo num ângulo estranho a seu lado.

Ele olhou das mãos para mim, sorrindo.

- Lembra-se da noite em que você consertou minha mão?

- Às vezes, nos meus momentos mais terríveis. - Aquela noite era memorável, simplesmente porque era inesquecível. Contra todas as expectativas, eu o resgatara da prisão de Wentworth e de uma sentença de morte, mas não a tempo de impedir que fosse cruelmente torturado e seviciado por Black Jack Randall.

Peguei sua mão direita e a transferi para meu próprio joelho. Ele deixou-a ali, quente, pesada e inerte, sem se opor a que eu examinasse cada dedo, puxando delicadamente para estender os tendões e torcendo para ver a capacidade de movimento das juntas.

- Foi a minha primeira cirurgia ortopédica - eu disse ironicamente.

— Fez muitas desde então? — ele perguntou com curiosidade, fitando-me.

- Sim, algumas. Sou cirurgiã... mas não significa no meu tempo o que significa agora - apressei-me a acrescentar. - Os cirurgiões de minha época não arrancam dentes nem fazem sangrias. São médicos com conhecimento de todos os campos da medicina, mas com uma especialidade.

- Então, você é especial, hein? Bem, você sempre foi — ele disse, rindo. Os dedos aleijados deslizaram pela minha mão e seu polegar acariciou as juntas dos meus dedos. — O que um cirurgião faz que é especial, então?

Franzi o cenho, tentando encontrar as palavras certas.

- Bem, a melhor maneira de explicar... um cirurgião tenta obter a cura... por meio de uma faca.

A boca larga curvou-se para cima diante da explicação.

— Uma bela contradição; mas combina com você, Sassenach.

— É mesmo? — eu disse, surpresa.

Ele balançou a cabeça, sem tirar os olhos do meu rosto. Podia ver que ele me examinava atentamente e me perguntei, encabulada, qual deveria ser a minha aparência, afogueada pelo ato de fazer amor e com os cabelos furiosamente desgrenhados.

— Você nunca esteve tão bonita, Sassenach — ele disse, o sorriso ampliando-se quando estendi a mão para ajeitar os cabelos. Ele pegou minha mão e beijou-a ternamente. - Deixe seus cachos em paz.

”Não - ele disse, prendendo minhas mãos enquanto me analisava. Uma faca é exatamente o que você é, agora que penso nisso. Uma bainha feita com maestria e magnífica de se ver, Sassenach. - Traçou o contorno dos meus lábios com o dedo, provocando um sorriso. - Mas uma lâmina de aço temperado... e um corte perigosamente afiado, na minha opinião.”

— Perigoso? — perguntei, surpresa.

— Não quero dizer cruel, sem coração — assegurou-me. Seu olhar pousou em meu rosto, atento e curioso. Um leve sorriso assomou a seus lábios.

- Não, isso nunca. Mas você pode ser brutalmente forte, Sassenach, se necessário.

Sorri com certa ironia.

- É verdade - eu disse.

-Já vi isso em você antes, não foi? - Sua voz tornou-se mais branda e ele apertou minha mão com força. - Mas agora acho que está ainda mais presente em você do que quando era mais jovem. Precisou muito dessa força desde então, não foi?

Percebi repentinamente por que ele via com tanta clareza o que Frank nunca conseguira perceber.

- Você também possui esta força - eu disse. - E tem precisado dela. Bastante. - Inconscientemente, meus dedos tocaram a cicatriz irregular que atravessava seu dedo médio, torcendo as juntas distais.

Ele concordou balançando a cabeça.

- Eu me pergunto... - ele disse, a voz tão baixa que eu mal conseguia ouvi-lo - me pergunto freqüentemente, se eu poderia colocar essa lâmina afiada a meu serviço e embainhá-la outra vez, com segurança. Pois tenho visto muitos homens tornarem-se implacáveis no uso dessa força e o aço de sua lâmina deteriorar-se em ferro sem valor. E tenho me perguntado muitas vezes se fui o senhor da minha alma ou se me tornei um escravo de minha própria faca. Pensei inúmeras vezes... — ele continuou, abaixando os olhos para nossas mãos entrelaçadas - que eu tenho usado minha arma com freqüência demais e que passei tanto tempo a serviço da guerra que já não sou mais adequado ao relacionamento humano.

Meus lábios contorceram-se com a necessidade de fazer um comentário, mas me contive. Ele viu e sorriu, com certa ironia.

— Eu pensei que jamais voltaria a rir na cama com uma mulher, Sassenach - ele disse. - Ou mesmo procurar uma mulher, a não ser como um bruto, cego de necessidade. - Um tom amargo infiltrou-se em sua voz.

Ergui sua mão e beijei a pequena cicatriz nas costas.

- Não consigo vê-lo como um bruto - eu disse. Falei alegremente, mas seu rosto enterneceu-se ao me olhar e ele respondeu com seriedade.

- Sei disso, Sassenach. E é o fato de você não poder me ver assim que me dá esperança. Porque eu sou um bruto e sei disso, e ainda assim, talvez... - Deixou a voz definhar, observando-me atentamente. - Você tem isso... essa força. Você a possui, bem como sua alma. Assim, talvez a minha própria alma possa ser salva.

Eu não sabia como argumentar e fiquei calada por algum tempo, apenas segurando sua mão, acariciando os dedos tortos e as juntas rijas e grandes. Era a mão de um guerreiro — mas ele não era um guerreiro agora.

Virei sua mão e alisei-a em meu joelho, a palma para cima. Devagar, tracei as linhas fundas e as pequenas elevações, e a minúscula letra ”C” na base do polegar; a marca de que ele me pertencia.

— Conheci uma senhora nas Highlands um dia que disse que as linhas da mão não predizem nossa vida, elas a refletem.

— É assim, então? — Seus dedos torceram-se levemente, mas a palma permaneceu aberta e imóvel.

- Não sei. Ela disse que nascemos com as linhas na mão, com uma vida, mas depois as linhas mudam, de acordo com o que fazemos e quem somos. - Eu nada entendia de quiromancia, mas podia ver uma linha profunda que corria do pulso ao centro da palma, bifurcando-se várias vezes.

- Acho que esta é a que chamam de linha da vida - eu disse. - Vê todas as bifurcações? Suponho que isso signifique que você mudou sua vida várias vezes, fez muitas escolhas.

Ele deu um muxoxo, mas com bom humor, em vez de escárnio.

- Ah, é mesmo? Bem, isso podemos constatar. - Examinou a palma de sua mão, inclinando-se sobre meu joelho. — Imagino que a primeira bifurcação seria quando encontrei Jack Randall e a segunda quando me casei com você. Veja, estão bem próximas, ali.

- É verdade. - Passei o dedo lentamente ao longo da linha, fazendo seus dedos contorcerem-se ligeiramente de cócegas - E Culloden, então, seria a seguinte?

- Talvez. - Mas ele não queria falar de Culloden. Seu próprio dedo continuou o percurso. — E quando fui para a prisão, e retornei, e vim para Edimburgo.

— E se tornou um mestre-impressor. — Parei e olhei para ele, as sobrancelhas erguidas. - Como é que você se tornou um impressor? É a última coisa que eu teria imaginado.

- Ah, isso. - Seus lábios abriram-se num sorriso. - Bem, foi por acaso, sabe?

Para começar, ele só estava procurando uma atividade que ajudasse a esconder e facilitar o contrabando. De posse de uma vultosa quantia de um recente empreendimento lucrativo, resolveu adquirir um negócio cujas operações normais envolvessem uma grande carroça e boas parelhas de cavalos. Precisava também de instalações discretas, que poderiam ser usadas como depósito temporário de mercadorias em trânsito.

Pensou numa empresa de transporte por carroças, mas rejeitou a idéia porque as operações desse ramo de negócios tornavam seus proprietários sujeitos a uma vigilância mais ou menos constante da alfândega. Da mesma forma, uma taberna ou estalagem, embora superficialmente um ramo atraente por causa das grandes quantidades de suprimentos adquiridos, são vulneráveis demais em suas operações legais para esconder uma ilegal; fiscais de impostos e agentes alfandegários infestavam as tabernas como pulgas em cachorro gordo.

- Pensei numa gráfica quando procurei um lugar para mandar imprimir alguns cartazes - ele explicou. - Enquanto esperava para fazer meu pedido, vi a carroça aproximar-se, carregada de caixas de papel e barris de álcool para a tinta em pó. Então pensei, Santo Deus, é isso! Os coletores de impostos jamais se preocupariam com um lugar desses.

Somente após comprar a loja no beco Carfax, contratar Geordie para operar a impressora e realmente começar a aceitar encomendas de cartazes, panfletos, folhetos e livros é que as outraspossibilidades desse novo negócio me ocorreram.

- Foi um homem chamado Tom Gage - ele explicou. Soltou sua mão das minhas, tornando-se ansioso com a narração da história, gesticulando e passando as mãos pelos cabelos enquanto falava, descabelando-se de entusiasmo. - Ele fazia pequenas encomendas de uma coisa e outra, tudo material inocente, mas fazia com freqüência, e ficava para falar do material, fazendo questão de conversar não só com Geordie, mas comigo também, embora deva ter visto que eu sabia menos a respeito do trabalho do que ele próprio.

Sorriu ironicamente.

- Não entendo muito de tipografia, Sassenach, mas conheço os homens.

Ficou evidente que Gage estava querendo saber as inclinações políticas de Alexander Malcolm; ouvindo o leve sotaque das Highlands de Jamie, ele começou a investigar discretamente, mencionando este ou aquele conhecido, cujas inclinações jacobitas os colocara em situação difícil depois da Revolução, desencavando conhecidos mútuos, habilmente direcionando a conversa, aproximando-se de modo furtivo de sua presa. Até que por fim a presa, que se divertia com a situação, disse-lhe sem rodeios para trazer o que ele queria imprimir; nenhum homem do rei ficaria sabendo.

- E ele confiou em você. - Não era uma pergunta; o único homem que erroneamente em Jamie Fraser confiara fora Carlos Stuart, e nesse caso, o erro foi de Jamie.

— Confiou, sim. — Assim, uma parceria foi iniciada, estritamente comercial no início, mas aprofundando-se em amizade com o passar do tempo. Jamie imprimira todos os materiais gerados pelo pequeno grupo de Gage de políticos radicais... de artigos assinados, publicamente admitidos, a cartazes e panfletos anônimos, com matérias suficientemente incriminadoras para levar os autores sumariamente à prisão ou à forca.

- Costumávamos ir à taberna no fim da rua para conversar depois do material impresso. Conheci alguns dos amigos de Tom e finalmente Tom disse que eu mesmo deveria escrever um artigo. Eu ri e lhe disse que, com a minha mão, quando eu acabasse de escrever qualquer coisa, nós todos estaríamos mortos, de velhice, não na forca.

”Eu estava parado junto à impressora enquanto conversávamos, arrumando os tipos com a mão esquerda, automaticamente. Ele simplesmente ficou observando e depois começou a rir. Apontou para a bandeja, em seguida para a minha mão, e continuou a rir, até ter que se sentar no chão para parar.”

Esticou os braços à sua frente, flexionando as mãos e estudando-as calmamente. Cerrou um punho e lentamente trouxe-o em direção ao rosto, fazendo os músculos do braço saltarem e enrijecerem sob o linho da camisa.

- Sou bastante robusto - ele disse. - E com sorte, ainda por uns bons anos, mas não para sempre, Sassenach. Tenho lutado com espada e adaga muitas vezes, mas para todo guerreiro chega o dia em que sua força o desaponta. - Sacudiu a cabeça e estendeu uma das mãos na direção do casaco, que estava caído no chão. - Eu peguei isso aqui, naquele dia com Tom Gage, para me lembrar disso - ele disse.

Pegou minha mão e colocou-a nos objetos que retirara do bolso. Eram frios, duros ao toque - peças de chumbo, pequenas e pesadas. Eu não precisava passar os dedos nas superfícies lavradas para saber quais eram as letras gravadas nos lingotes tipográficos.

- C. Q. D. - eu disse.

— Os ingleses tiraram minha espada e minha adaga — ele disse a meiavoz. O dedo tocou os espaçadores na palma de minha mão. - Mas Tom Gage colocou uma arma em minhas mãos outra vez e acho que não vou abandoná-la.

Descemos de braços dados pela ladeira pavimentada com pedras da Royal Mile quando faltavam quinze minutos para as cinco da tarde, irradiando uma incandescência engendrada por várias tigelas de ensopado de ostras apimentada e uma garrafa de vinho, compartilhada aos poucos, durante nossa ”conversa particular”.

A cidade resplandecia à nossa volta, como se compartilhasse da nossa felicidade. Edimburgo estendia-se sob uma névoa que logo se tornaria mais densa, transformando-se em chuva. Por enquanto, porém, a luz do pôr-do-sol pairava — dourada, rósea e vermelha — nas nuvens, brilhando na patina molhada da rua pavimentada, de modo que as pedras cinza dos prédios suavizavam-se e refletiam a luz, fazendo eco ao fulgor que aquecia meu rosto e brilhava nos olhos de Jamie quando olhava para mim.

Flutuando pela rua abaixo nesse estado de êxtase, alheios ao que se passava ao redor, vários minutos transcorreram até eu notar algo estranho. Um homem, impaciente com nosso passo lento e despreocupado, ultrapassou-nos energicamente, depois parou de repente à minha frente, fazendo-me tropeçar nas pedras molhadas e soltar um sapato.

Ele lançou a cabeça para trás e espreitou o céu por um instante, depois saiu apressado pela rua abaixo, não correndo, mas andando o mais rápido possível.

— O que há com ele? — eu disse, parando para recuperar meu sapato. De repente, notei que a toda a volta, as pessoas estavam parando, olhando para cima e depois começando a descer a ladeira apressadamente. - O que você acha...? - comecei a perguntar, mas quando me voltei para Jamie, ele também olhava atentamente para cima. Ergui os olhos por minha vez e logo percebi que a claridade vermelha nas nuvens acima era bem mais forte do que a coloração geral do crepúsculo e parecia tremular de uma forma desconcertante, absolutamente estranha a um pôr-do-sol.

— Fogo — ele disse. — Meu Deus, acho que é na travessa Leith!

No mesmo instante, alguém mais abaixo na rua começou a gritar: ”Fogo! Fogo!” Como se esse diagnóstico oficial tivesse finalmente lhes dado licença para debandar, as figuras apressadas desataram a correr e despencaram-se pela rua como um bando de lemingos, ansiosos para se atirar na fogueira.

Algumas almas mais sensatas correram ladeira acima, passando por nós e também gritando: ”Fogo!”, mas presumivelmente com a intenção de alertar o que quer que tivesse as funções de corpo de bombeiros.

Jamie também se pusera em movimento, rebocando-me enquanto eu pulava desajeitadamente em um pé só. Em vez de parar, livrei-me do outro sapato e o segui, escorregando e batendo os dedos nas pedras frias e molhadas enquanto corria.

O incêndio não era na travessa Leith, mas, ao lado, no beco Carfax. A entrada do beco estava obstruída por espectadores agitados, empurrando e esticando o pescoço no esforço para ver, gritando perguntas incoerentes uns para os outros. O cheiro de fumaça, quente e penetrante, atravessava o úmido ar da tarde, e ondas de calor escaldante açoitavam meu rosto quando abaixei a cabeça e entrei no beco.

Jamie não hesitou, mas mergulhou na multidão, abrindo caminho à força. Grudei-me à sua retaguarda antes que ondas humanas pudessem se fechar outra vez e avancei às cotoveladas, sem poder ver nada além das costas largas de Jamie à minha frente.

Então emergimos na frente da multidão e eu pude ver perfeitamente a cena. Nuvens densas de fumaça escura saíam em rolos das duas janelas do andar de baixo da gráfica e pude ouvir ruídos crepitantes e murmurantes que se elevavam acima do barulho dos espectadores como se as chamas conversassem entre si.

- Minha gráfica! - Com um grito de angústia, Jamie correu para os degraus da entrada e abriu a porta com um chute. Uma nuvem de fumaça saiu em rolos pelo vão da porta aberta e engoliu-o como uma fera faminta. Vislumbrei sua figura, cambaleando com o impacto da fumaça; em seguida, lançou-se de joelhos e arrastou-se para dentro do prédio.

Inspirados em seu exemplo, vários homens da multidão subiram os degraus da gráfica e, como ele, desapareceram no interior tomado pela fumaça. O calor era tão intenso que senti minhas saias voarem contra minhas pernas com o deslocamento de ar provocado e perguntei-me como os homens podiam suportar o calor lá dentro.

Uma nova explosão de gritos na multidão atrás de mim anunciou a chegada da guarda municipal, armada com baldes. Obviamente acostumados à tarefa, os homens arrancaram seus casacos cor de vinho do uniforme e começaram imediatamente a combater o fogo, quebrando as janelas e atirando baldes de água por elas com desapaixonada energia. Enquanto isso a multidão crescia, o barulho que fazia aumentado por uma constante cascata de batidas de pés descendo as múltiplas escadas do beco — as famílias dos andares de cima dos prédios vizinhos apressadamente empurravam hordas de crianças em polvorosa pelas escadas abaixo, em direção à segurança.

Eu não acreditava que os esforços da brigada do balde, embora valiosos, fariam muito efeito no que obviamente era um manancial de produtos inflamáveis. Eu ia de um lado para o outro da calçada, tentando inutilmente ver algum movimento no interior, quando o primeiro homem na fileira do balde deu um grito de pavor e saltou para trás, bem a tempo de evitar ser coroado com uma bandeja de tipos de chumbo que zuniu pelo vão da janela quebrada e aterrissou nas pedras do calçamento com um estrondo, espalhando lingotes em todas as direções.

Dois ou três moleques contorceram-se pela multidão e procuraram agarrar os lingotes, mas vizinhos indignados aplicaram-lhes uns tapas e os puseram para correr. Uma mulher gorda de touca e avental avançou como uma flecha, sem medo de correr o risco, e assumiu a custódia da bandeja de tipos, arrastando-a para o meio-fio, onde se agachou protetoramente sobre ela, como uma galinha chocando os ovos.

Entretanto, antes que seus companheiros pudessem resgatar os tipos caídos, foram rechaçados por uma chuva de objetos lançados das duas janelas. Mais bandejas de tipos, almofadas de tinta, cilindros e frascos de tinta, que se quebraram no calçamento, deixando grandes manchas em forma de teias de aranha, que escorriam para as poças derramadas pelos bombeiros.

Encorajada pela corrente de ar expelida pelas janelas e porta abertas, a voz do fogo cresceu de um murmúrio a um rugido exultante e estrondeante. Impedidos de lançar água pelas janelas por causa da chuva de objetos lançados por elas, o chefe da guarda municipal gritou para seus homens e, segurando um lenço molhado sobre o nariz, agachou-se e entrou correndo no prédio, seguido por meia dúzia xde seus companheiros.

A fila se realinhou rapidamente, baldes cheios passando de mão em mão desde a bomba mais próxima, situada além da esquina, até o alto do pórtico. Rapazes agitados pegavam os baldes vazios que saltavam pelos degraus da entrada e corriam de volta com eles para a bomba, para serem enchidos novamente. Edimburgo é uma cidade de pedra, mas com tantos prédios imprensados uns contra os outros, todos equipados com várias lareiras e chaminés, os incêndios deviam ser freqüentes.

Deviam ser mesmo, já que uma nova comoção atrás de mim anunciou a chegada atrasada do carro do corpo de bombeiros. As levas de espectadores apartaram-se como as ondas do mar Vermelho, para dar passagem ao carro. Este era puxado por um grupo de homens, em vez de cavalos, que não conseguiriam se esgueirar pelos bairros de vielas estreitas.

O carro era uma maravilha de latão, ele próprio brilhando como um carvão em brasa com o reflexo das chamas. O calor tornava-se cada vez mais intenso; eu podia sentir meus pulmões ressecarem e trabalhar com esforço a cada tragada de ar quente, e fiquei aterrorizada por Jamie. Por quanto tempo ele conseguiria respirar, naquele nevoeiro infernal de fumaça e calor, sem falar no perigo das próprias chamas?

- Jesus, Maria Santíssima! - Ian, abrindo caminho à força pela multidão apesar de sua perna artificial, surgiu repentinamente ao meu lado. Ele agarrou meu braço para manter o equilíbrio quando uma nova chuva de objetos forçou as pessoas à nossa volta a recuar outra vez.

— Onde está Jamie? — ele gritou no meu ouvido.

- Lá dentro! - berrei em resposta, apontando.

Viu-se um súbito alvoroço e comoção na entrada da gráfica, com uma gritaria confusa que se elevou acima do barulho do incêndio. Surgiram vários pares de pernas, embaralhando e arrastando os pés de um lado para outro sob a nuvem emergente de fumaça que saía em vagalhões pela porta. Seis homens emergiram, Jamie entre eles, cambaleando sob o peso de uma enorme peça de maquinaria - a preciosa impressora de Jamie Desceram com cuidado os degraus e a empurraram para o meio da multidão Em seguida, voltaram para a gráfica.

Tarde demais para qualquer outra manobra de resgate; ouviu-se um estrondo lá dentro, uma nova explosão de calor que fez a multidão recuar aos tropeções, e subitamente as janelas do andar superior iluminaram-se com chamas saltitantes no interior. Um pequeno fluxo de homens jorrou do prédio, tossindo e asfixiados, alguns deles rastejando, enegrecidos de fuligem e molhados do suor de seus esforços. A equipe do carro de bombeiros bombeava água furiosamente, mas o pesado jato de água de sua mangueira não causava o menor impacto nas labaredas.

A mão de Ian fechou-se no meu braço como as garras de uma armadilha.

- Ian! - ele gritou, suficientemente alto para ser ouvido acima do barulho da multidão e do incêndio.

Ergui os olhos na direção do seu olhar e vi um vulto espectral na janela do segundo andar. Pareceu lutar rapidamente com a vidraça e depois cair para trás ou ser envolvido pela fumaça.

Meu coração deu um salto e veio parar na boca. Não havia como dizer se a figura era realmente o Jovem Ian, mas sem dúvida era uma forma humana. Ian não perdeu tempo pasmado, mas avançava em direção aos degraus de entrada da loja com toda a velocidade que sua perna permitia.

- Espere! - gritei, seguindo-o.

Jamie estava inclinado sobre a prensa, o peito arfando enquanto tentava recuperar o fôlego e agradecer a seus ajudantes ao mesmo tempo.

-Jamie! - Agarrei-o pela manga, arrancando-o bruscamente de perto de um barbeiro de rosto vermelho, que nervoso limpava as mãos negras de fuligem no avental, deixando manchas longas e escuras entre as outras, de espuma de sabão seca e nòdoas de sangue. — Lá em cima! — gritei, apontando. - O Jovem Ian está lá em cima!

Jamie recuou um passo, passando a manga pelo rosto enegrecido e olhou horrorizado para as janelas do andar superior. Não se podia ver nada além do clarão trepidante do fogo contra as vidraças.

Ian se debatia nas mãos de vários vizinhos que procuravam impedi-lo de entrar na loja.

- Não, você não pode entrar! - gritava o capitão da guarda, tentando agarrar as mãos agitadas de Ian. - A escada desabou e o teto está prestes a desmoronar!

Apesar da constituição esbelta e das restrições de sua perna, Ian era alto e vigoroso. As fracas tentativas de segurá-lo dos seus bem-intencionados captores da guarda municipal — a maioria aposentados dos regimentos das Highlands - não eram páreo para a força de um homem do campo, reforçada como estava pelo desespero paterno. Devagar, mas inexoravelmente, toda a massa confusa avançou centímetro a centímetro pelas escadas da entrada da gráfica, conforme Ian arrastava seus pretensos salva-vidas com ele em direção às chamas.

Senti Jamie inspirar fundo, tragando o máximo de ar possível com seus pulmões chamuscados e logo ele também estava nas escadas, agarrando Ian pela cintura e arrastando-o para baixo.

- Desça, companheiro! - gritou com voz rouca. - Você não vai conseguir, a escada desabou! - Olhou ao redor, me viu e atirou Ian para trás, desequilibrado e atordoado, direto em meus braços. — Segure-o — gritou, acima do rugido das chamas. - Vou buscar o garoto!

Com isso, virou-se e arremeteu-se pela escada acima do prédio contíguo, abrindo caminho entre os fregueses da loja de chocolate do térreo, que haviam saído para a calçada, a fim de observar a agitação, admirados e com ar idiota, os canecos de estanho ainda nas mãos.

Seguindo o exemplo de Jamie, agarrei Ian pela cintura com todas as minhas forças e não deixei que se soltasse. Ele fez uma tentativa malsucedida de seguir Jamie, mas parou e permaneceu em meus braços, o corpo retesado, o coração disparado bem embaixo do meu rosto.

— Não se preocupe — eu disse, inutilmente. — Ele vai conseguir, vai tirálo de lá. Sei que vai. Tenho certeza.

Ian não respondeu - talvez não tenha nem ouvido -, permaneceu imóvel e rígido, como uma estátua, em meus braços, a respiração alterada, parecendo um soluço. Quando afrouxei os braços em torno de sua cintura, ele não se mexeu nem se virou, mas quando fiquei ao seu lado, segurou abruptamente minha mão e apertou-a com força. Meus ossos teriam se esfarelado se eu também não estivesse apertando a dele com a mesma intensidade.

Não se passou mais de um minuto até a janela acima da loja de chocolate abrir-se e a cabeça e os ombros de Jamie surgirem, os cabelos ruivos brilhando como uma errante língua de fogo desgarrada do fogo principal. Ele subiu no parapeito da janela e cautelosamente virou-se, agachando-se, até ficar de frente para o prédio.

Erguendo-se em seus pés calçados apenas de meias, agarrou a calha do telhado acima de sua cabeça e puxou, erguendo-se lentamente pela força de seus braços, os dedos longos lutando para encontrar um apoio nas fendas entre as pedras da fachada. Com um grunhido audível até mesmo acima do barulho da multidão e do incêndio, ele contorceu-se pela borda do telhado e desapareceu por trás do frontão da fachada.

Um homem mais baixo não teria conseguido. Nem Ian, com sua perna de pau. Ouvi Ian murmurar alguma coisa, uma prece, pensei, mas quando olhei para ele, seus dentes estavam trincados, o rosto crispado de medo.

- O que ele vai fazer lá em cima? - pensei, sem perceber que estava pensando em voz alta até o barbeiro, a meu lado, protegendo os olhos, responder.

- Há um alçapão no telhado da gráfica, madame. Sem dúvida, o sr. Malcolm pretende obter acesso ao andar superior por ali. É o aprendiz dele que está lá em cima?

— Não! — Ian retorquiu, ao ouvir o barbeiro. — É meu filho!

O barbeiro encolheu-se diante do olhar desesperado de Ian, murmurando e benzendo-se:

— Ah, sim, senhor, sim!

Um grito da multidão transformou-se num rugido quando duas figuras apareceram no telhado da casa de chocolate. Ian largou minha mão, lançando-se para a frente.

Jamie tinha o braço em volta de Ian, que estava caído e cambaleante da fumaça que havia inspirado. Pelas condições do Jovem Ian, era bastante óbvio que nenhum dos dois iria conseguir retornar pelo mesmo caminho que Jamie fizera.

Foi nesse momento que Jamie avistou Ian embaixo Protegendo a boca com a mão, ele gritou - Corda!

Corda havia; a guarda municipal viera equipada. Ian agarrou o rolo de corda de um guarda que se aproximava, deixando-o pestanejando de indignação, e virou-se de frente para o prédio.

Avistei o brilho dos dentes de Jamie quando ele riu para seu cunhado e a expressão irônica de resposta no rosto de Ian. Quantas vezes haviam atirado uma corda um para o outro, para erguer fardos de feno para o palheiro do celeiro ou para amarrar uma carga à carroça de transporte?

A multidão recuou, abrindo espaço para o giro do braço de Ian e o pesado rolo de corda voou numa parábola perfeita, desenrolando-se no trajeto, até aterrissar no braço estendido de Jamie com a precisão de um abelhão pousando em uma flor. Jamie puxou a ponta solta e desapareceu momentaneamente, para fixar a corda em volta da base da chaminé do prédio.

Após alguns momentos de trabalho precário, as duas figuras enegrecidas pela fumaça aterrissaram em segurança na calçada embaixo. O Jovem Ian, a corda amarrada sob os braços e em volta do peito, ficou em pé por um instante, depois, quando a tensão da corda afrouxou, seus joelhos dobraram e ele deslizou numa pilha frouxa sobre as pedras do pavimento.

- Você está bem? A bhalaich, fale comigo! - Ian caiu de joelhos ao lado do filho, tentando ansiosamente desatar a corda amarrada em volta do peito do Jovem Ian, enquanto simultaneamente tentava levantar a cabeça inerte do rapaz.

Jamie apoiava-se no corrimão da loja de chocolate, o rosto preto e estourando os pulmões de tanto tossir, mas fora isso aparentemente intacto. Sentei-me do outro lado do menino e coloquei sua cabeça no colo. Eu não sabia se ria ou chorava ao vê-lo. Quando o vi de manhã, era um rapaz extremamente atraente, ainda que não fosse belo, com algo da aparência simples e amistosa de seu pai. Agora, nofim da tarde, os cabelos espessos de um dos lados de sua testa estavam chamuscados, formando uma moita de pêlos eriçados e avermelhados; as sobrancelhas e pestanas haviam desaparecido, inteiramente queimadas. A pele embaixo era do mesmo rosa brilhante e sujo de fuligem de um leitãozinho que acabara de ser tirado do espeto.

Procurei sentir seu pulso no pescoço fino e comprido e encontrei-o, forte o suficiente para me tranqüilizar. Sua respiração era ruidosa e irregular, e não era para menos; eu esperava que a membrana de seus pulmões não tivesse se queimado. Ele tossiu, longa e penosamente, e o corpo magro debateu-se em meu colo.

- Ele está bem? - As mãos de Ian instintivamente agarraram o filho por baixo dos braços e o colocaram sentado. A cabeça oscilou para a frente e para trás, e ele lançou-se para a frente, direto em meus braços.

- Creio que sim, não sei ao certo. - O rapaz ainda tossia, mas não recobrara a consciência plenamente; amparei-o contra o meu ombro como um enorme bebê, batendo de leve em suas costas enquanto ele sacudia-se com ânsias de vômito.

- Ele está bem? - Desta vez era Jamie, agachando-se, arquejante, a meu lado. Sua voz estava tão rouca que eu não a teria reconhecido, prejudicada que fora pela fumaça

- Creio que sim. E você? Está parecendo Malcolm X - eu disse, espreitando-o por cima do ombro trêmulo do Jovem Ian.

- Eu? - Colocou a mão no rosto, espantado, depois riu tranqüilamente. — Não, não sei como está minha aparência, mas não sou nenhum Malcolm X. Só estou um pouco chamuscado nas beiradas.

- Pra trás! Pra trás! - O capitão da guarda estava ao meu lado, a barba grisalha ouriçada de ansiedade, puxando-me pela manga. - Saia daí, madame, o telhado vai desabar!

De fato, conforme nos movíamos atabalhoadamente para um local seguro, o teto da gráfica desmoronou e um som aterrorizado ergueu-se da multidão de curiosos quando um enorme jato de fagulhas girou em direção ao céu, brilhantes contra o firmamento já escuro.

Como se o céu se ressentisse desta intrusão, a coluna de cinzas fumegantes foi contestada com os primeiros pingos de chuva, tamborilando pesadamente nas pedras do calçamento à nossa volta Os moradores de Edimburgo, que a essa altura sem dúvida já deveriam estar acostumados à chuva, fizeram protestos consternados e começaram a escapar rapidamente de volta aos prédios vizinhos como um enxame de baratas, deixando que a natureza terminasse o trabalho do corpo de bombeiros.

Pouco depois, Ian e eu ficamos sozinhos com o Jovem Ian. Jamie, depois de recompensar a guarda e outros ajudantes, e tendo providenciado para que sua prensa e seus apetrechos fossem guardados no depósito do barbeiro, veio se arrastando, exausto, em nossa direção

- Como está o garoto? - perguntou, limpando o rosto com as costas da mão. A chuva começara a cair com mais intensidade e o efeito em seu rosto sujo de fuligem era extremamente pitoresco. Ian olhou para ele e, pela primeira vez, a raiva, a preocupação e o medo diminuíram um pouco de seu semblante. Dirigiu um sorriso enviesado a Jamie.

- Ele não parece muito melhor do que você, companheiro, mas acho que vai ficar bom. Dê uma ajuda aqui, sim?

Murmurando palavras afetuosas próprias para um bebê, em gaélico, Ian inclinou-se sobre seu filho, que neste momento sentava-se, atordoado, no meio-fio, oscilando de um lado para o outro como uma garça na ventania.

Quando finalmente chegamos ao estabelecimento de madame Jeanne, o Jovem Ian já podia andar, embora ainda sustentado de cada lado pelo pai e pelo tio. Bruno, que abriu a porta, pestanejou, incrédulo, diante da visão, depois abriu a porta de par em par, rindo tanto que mal conseguiu fechála às nossas costas.

Eu tinha que admitir que não éramos figuras bonitas de se ver, encharcados e escorrendo água da chuva. Jamie e eu estávamos descalços e as roupas de Jamie em farrapos, queimada, rasgada e toda manchada de fuligem. Os cabelos escuros de Ian caíam em seus olhos, fazendo-o parecer um rato afogado com uma perna de pau.

O Jovem Ian, no entanto, foi o foco das atenções, quando várias cabeças pipocaram da sala de jantar em reação ao barulho que Bruno fazia. Com seus cabelos chamuscados, rosto vermelho e inchado, nariz adunco e olhos sem pestanas, parecia-se muito a um filhote recém-emplumado de alguma espécie exótica de pássaro — um flamingo recém-saído do ovo, talvez. Seu rosto dificilmente poderia ficar ainda mais vermelho, mas sua nuca queimava de vermelhidão, conforme o som de risadinhas femininas nos seguia escada acima.

Finalmente em segurança na pequena sala de estar do andar superior, com a porta fechada, Ian voltou-se e encarou seu desafortunado rebento.

— Vai viver, não vai, seu patife? — ele perguntou.

- Sim, senhor - o Jovem Ian respondeu com um melancólico grasnido, parecendo desejar que a resposta fosse ”Não”.

- Ótimo - seu pai disse soturnamente. - Quer se explicar ou devo simplesmente lhe dar uma surra agora para nenhum de nós dois perder mais tempo?

— Você não pode bater em alguém que acaba de ter as sobrancelhas queimadas, Ian - Jamie protestou com voz rouca, servindo um copo de cerveja escura da jarra sobre a mesa. — Não seria humanitário. — Riu para seu sobrinho e estendeu-lhe o copo, que o rapaz agarrou ansiosamente.

— Sim, bem. Talvez não — Ian concordou, examinando o filho. Um dos cantos de sua boca contorceu-se. O Jovem Ian era uma visão patética; era também extremamente engraçada. — Isso não significa que não ficará com o traseiro empolado mais tarde, veja bem - advertiu o garoto -, e isso é independente do que sua mãe pretenda fazer com você quando vê-lo outra vez. Mas por enquanto, rapaz, pode descansar.

Sem parecer reconfortado pelo tom magnânimo dessa última declaração, o Jovem Ian não respondeu, mas buscou refúgio no fundo do seu copo de cerveja.

Peguei meu próprio copo com grande satisfação. Eu percebera com bastante atraso por que os cidadãos de Edimburgo reagiam à chuva com tanta repugnância; uma vez encharcado, era um inferno conseguir ficar seco outra vez entre as paredes úmidas de uma casa de pedras, sem uma muda de roupas e nenhuma calefação, a não ser uma pequena lareira.

Soltei o espartilho molhado dos meus seios, percebi o olhar rápido e interessado do Jovem Ian e decidi com pesar que na verdade eu não poderia tirá-lo com o garoto na sala. Jamie parecia já ter corrompido o garoto suficientemente. Em vez disso, então, engoli um grande gole de cerveja, sentindo a deliciosa bebida descer borbulhando e aquecendo minhas entranhas.

- Sente-se bastante bem para conversar um pouco, garoto? - Jamie sentou-se em frente ao sobrinho, ao lado de Ian na almofada de genuflexório.

— Sim... creio que sim — o Jovem Ian respondeu cautelosamente com voz rascante. Limpou a garganta como um sapo-boi e repetiu com mais firmeza: — Sim, estou bem.

- Ótimo. Muito bem, então. Primeiro, como você foi parar na gráfica e, depois, como ela pegou fogo?

O Jovem Ian meditou por um instante, em seguida tomou outro gole de sua cerveja para ganhar coragem, e disse:

- Fui eu que pus fogo na gráfica.

Diante dessa resposta, tanto Jamie quanto Ian empertigaram-se na almofada. Pude notar Jamie reconsiderando sua opinião quanto à conveniência de surrar pessoas sem sobrancelhas, mas dominou seu ímpeto com evidente esforço e apenas perguntou:

— Por quê?

O garoto tomou um novo gole de cerveja, tossiu e bebeu mais um, aparentemente tentando decidir o que dizer.

- Bem... — começou, hesitante. - Havia um homem - ele parou subitamente.

- Um homem - Jamie disse pacientemente, tentando estimular seu sobrinho, que parecia ter ficado surdo e mudo. - Que homem?

O Jovem Ian agarrou o copo com as duas mãos, com um ar profundamente infeliz.

— Responda logo a seu tio, palerma — Ian disse asperamente. — Ou vou colocá-lo nos joelhos e castigá-lo aqui mesmo.

Com uma mistura de ameaças e estímulos semelhantes, os dois homens conseguiram extrair uma história mais ou menos coerente do garoto.

O Jovem Ian fora à taberna em Kerse de manhã, onde deveria encontrar-se com Wally, que viria do encontro com as carroças de conhaque, a fim de carregar os barris imprestáveis e o vinho estragado a serem usados como subterfúgio.

— Quem o mandou lá? — Ian perguntou incisivamente.

— Eu — Jamie disse, antes que o Jovem Ian pudesse falar. Abanou a mão para seu cunhado, instando-o a calar-se. — Sim, eu sabia que ele estava aqui. Falaremos sobre isso mais tarde, Ian, por favor. É importante sabermos o que aconteceu hoje.

Ian olhou furiosamente para Jamie e abriu a boca para protestar, em seguida fechou-a abruptamente. Fez um sinal para que seu filho continuasse.

- Eu estava com fome - o Jovem Ian disse.

— E quando é que não está? — seu pai e seu tio disseram em uníssono. Entreolharam-se, reprimiram uma risada e a atmosfera tensa da sala relaxou um pouco.

— Então você entrou na taberna para comer alguma coisa —Jamie disse.

- Tudo bem, garoto, não tem nada de mais. E o que aconteceu enquanto você estava lá?

Fora lá, como ficamos sabendo, que ele encontrara o homem. Um sujeito pequeno, parecendo um rato, usando um rabo-de-cavalo de marinheiro, cego de um olho, conversando com o proprietário da taberna.

- Ele estava perguntando por você, tio Jamie - disse o Jovem Ian, soltando a língua mais facilmente com a ajuda da cerveja. — Pelo seu próprio nome.

Jamie sobressaltou-se, parecendo surpreso.

— Quer dizer, Jamie Fraser?

O Jovem Ian confirmou balançando a cabeça, enquanto tomava mais um gole de cerveja.

— Sim. Mas ele também sabia seu outro nome... quero dizer, Jamie Roy. -Jamie Roy? - Ian dirigiu um olhar intrigado a seu cunhado, que deu de ombros com impaciência.

— É como sou conhecido nas docas. Santo Deus, Ian, você sabe o que eu faço!

— Sim, eu sei, só não sabia que o garoto ajudava você. - Os lábios finos de Ian comprimiram-se e ele voltou sua atenção ao filho outra vez. Continue, rapaz. Não vou interrompê-lo outra vez.

O marinheiro perguntara ao dono da taberna como um velho lobo do mar, em maré de pouca sorte e desempregado, poderia encontrar um sujeito chamado Jamie Fraser, que era conhecido por sempre arranjar um trabalho para um homem capaz. O proprietário alegou ignorar o nome, o marinheiro inclinou-se para mais perto e empurrou uma moeda sobre a mesa. Em voz baixa perguntou se o nome ”Jamie Roy” lhe era mais familiar.

Como o taberneiro permanecesse surdo como uma cobra, o marinheiro logo deixou o lugar, com o Jovem Ian nos seus calcanhares.

- Achei que seria bom descobrir quem era ele e o que pretendia - o rapaz explicou, piscando repetidamente

- Você devia ter deixado um recado para Wally com o taberneiro - Jamie disse - Bem, isso não vem ao caso agora. - Para onde ele foi?

Desceu a rua a passos rápidos, mas não tão rápidos que um rapaz saudável não pudesse seguir a uma distância cautelosa. Um bom andarilho, o marujo chegou a Edimburgo, a uma distância de aproximadamente oito quilômetros, em menos de uma hora. Finalmente, entrou na taberna Green Owold, seguido pelo Jovem Ian, quase desfalecendo de sede com a caminhada.

Sobressaltei-me ao ouvir o nome da taberna, mas não disse nada, para não interromper a história.

- Estava terrivelmente cheia - o garoto relatou - Algo havia acontecido de manhã e só se falava nisso, mas calavam-se quando me viam. Bem, foi a mesma coisa lá - Parou para tossir e limpar a garganta - O marinheiro pediu um conhaque, depois perguntou ao taberneiro se ele conhecia um fornecedor de conhaque chamado Jamie Roy ou Jamie Fraser.

- E ele? -Jamie murmurou. Olhava atentamente para o sobrinho, mas eu podia ver os pensamentos em movimentação atrás de sua testa alta, formando uma pequena ruga entre as espessas sobrancelhas.

O sujeito foi metodicamente de taberna em taberna, seguido de sua inseparável sombra, e em cada estabelecimento pediu conhaque e repetiu a pergunta.

- Ele deve ter uma cabeça e tanto para tomar tanto conhaque - Ian observou.

O Jovem Ian meneou a cabeça.

- Ele não bebia. Só cheirava.

Seu pai estalou a língua diante de tão escandaloso desperdício de uma boa bebida, mas as sobrancelhas ruivas de Jamie ergueram-se ainda mais alto.

- E alguma vez ele provou a bebida? - ele perguntou incisivamente.

- Sim. Na Dog and Gun e novamente na Blue Boar. Mas nada além de uma provadinha e, depois, deixava o copo intocado. Não bebeu nada nos outros lugares e fomos a cinco deles antes de... - sua voz definhou e ele tomou outro gole de cerveja.

O rosto de Jamie sofreu uma surpreendente transformação. De uma expressão de perplexidade preocupada, seu rosto tornou-se absolutamente inexpressivo e, em seguida, transformou-se numa expressão de revelação.

- Então é isso - ele falou baixinho consigo mesmo - De fato - Sua atenção retornou ao sobrinho. — E o que aconteceu depois, garoto?

O Jovem Ian começava a parecer infeliz outra vez. Engoliu com força, o tremor visível ao longo de seu pescoço magricelo.

- Bem, foi um caminho terrivelmente longo de Kerse a Edimburgo ele começou —, e muito seco também...

Seu pai e seu tio trocaram olhares desconfiados.

- Você bebeu demais - Jamie disse, resignado.

- Bem, eu não sabia que ele iria a tantas tabernas, não é? - exclamou o Jovem Ian em sua defesa, ficando vermelho nas orelhas.

- Não, claro que não, garoto - Jamie disse compreensivamente, abafando o começo das observações mais severas de Ian. - Até onde você agüentou?

Até a metade da ladeira da Royal Mile, como se verificou, quando o Jovem Ian, sobrepujado pelo acúmulo de ter acordado cedo, caminhado oito quilômetros e bebido algo em torno de dois litros de cerveja, cochilou numa esquina, acordando uma hora depois e descobrindo que sua presa já desaparecera há muito tempo.

— Então eu vim pra cá — ele explicou. — Achei que tio Jamie devia ficar sabendo disso. Mas ele não estava aqui. — O garoto olhou de relance para mim e suas orelhas ficaram ainda mais vermelhas.

— E por que você achou que ele deveria estar aqui? — Ian dirigiu um olhar penetrante a seu rebento e em seguida girou-o para seu cunhado. A raiva fervente que Ian vinha reprimindo desde a manhã eclodiu repentinamente. — Jamie Fraser, seu desgraçado, trazendo meu filho para uma casa de prostituição!

- E grande coisa você é para falar, pai! - O Jovem Ian estava de pé, cambaleando um pouco, mas com os punhos grandes e ossudos cerrados ao lado do corpo. -

— Eu? E o que você quer dizer com isso, seu paspalhão? — Ian gritou, os olhos arregalando-se de indignação.

- Quero dizer que você é um hipócrita! - seu filho gritou com a voz rouca. — Fazendo sermão para mim e Michael sobre pureza e ter uma única mulher, enquanto o tempo todo você se esgueira pela cidade, atrás de prostitutas!

- O quê? - O rosto de Ian ficou inteiramente roxo. Olhei assustada para Jamie, que parecia estar achando graça na situação.

- Você é um... um... maldito túmulo caiado! - O Jovem Ian lançou triunfalmente essa disparatada comparação, depois parou como se tentasse pensar em outra do mesmo nível. Abriu a boca, mas nada emergiu além de um leve arroto.

— O garoto está meio bêbado — eu disse a Jamie.

Ele levantou a jarra de cerveja, examinou o conteúdo no interior e devolveu-a à mesa.

— Tem razão — ele disse — Eu devia ter notado há mais tempo, mas não dá para saber, chamuscado como está.

O Ian mais velho não estava bêbado, mas a expressão de seu rosto parecia-se muito à de seu filho, o semblante afogueado, os olhos saltados e os tendões do pescoço tensionados.

— O que está querendo dizer com isso, pirralho? — ele gritou. Avançou ameaçadoramente em direção ao Jovem Ian, que sem pensar recuou um passo e sentou-se abruptamente, quando suas panturrilhas bateram na beira do sofá.

— Ela — ele disse, reduzido a monossílabos. Apontou para mim, para deixar bem claro a quem se referia – Ela! Você enganando minha mãe com essa prostituta imunda, é isso que eu quero dizer!

Ian desferiu um tapa no ouvido do filho que o derrubou, esparramado no sofá.

- Seu grande idiota! - ele disse, escandalizado - Bela maneira de falar de sua tia Claire, e também de mim e de sua mãe!

- Tia? - O Jovem Ian fitou-me boquiaberto do meio das almofadas, parecendo-se tanto a um filhote de ave implorando comida que eu desatei a rir a despeito de mim mesma.

— Você saiu antes que eu pudesse me apresentar hoje de manhã — eu disse.

— Mas você está morta — ele disse, estupidamente.

- Ainda não - assegurei-lhe - A menos que tenha pegado pneumonia de ficar sentada aqui com roupas molhadas.

Seus olhos arregalados haviam se transformado em dois círculos perfeitos enquanto me olhava fixamente. Um brilho fugidio de empolgação iluminou-os.

- Algumas das mulheres mais velhas de Lallybroch dizem que você era uma mulher sábia, uma dama branca, ou talvez até mesmo uma fada. Quando tio Jamie voltou de Culloden sem você, disseram que talvez você tivesse voltado para as fadas, de onde provavelmente viera. É verdade? Você mora na colina das fadas?

Troquei um olhar com Jamie, que revirou os olhos para cima.

— Não — eu disse — Eu há... eu...

— Ela fugiu para a França depois de Culloden - Ian interrompeu repentinamente, com grande firmeza — Pensou que seu tio Jamie tivesse morrido na batalha, então foi para a casa de seus parentes na França. Ela fora uma amiga particular do príncipe Tearlach, não podia voltar para a Escócia sem se colocar em grande perigo. Mas depois ela ouviu falar de seu tio e assim que soube que seu marido não estava morto afinal de contas, pegou um navio na mesma hora e veio ao encontro dele. O Jovem Ian ficou boquiaberto. Eu também.

— Ha, sim — eu disse, fechando a boca. — Foi isso que aconteceu.

O garoto moveu os olhos arregalados e brilhantes de mim para o tio.

— Então você voltou para ele — ele disse, com ar de felicidadde. — Nossa, isso é muito romântico!

A tensão do momento rompeu-se. Ian hesitou, mas seus olhos enterneceram-se ao olhar de Jaime para mim.

- Sim - ele disse, sorrindo com certa relutância. - Sim, acho que sim.

— Eu não esperava estar fazendo isso por ele ainda por uns bons dois ou três anos - Jaime observou, segurando a cabeça de seu sobrinho com mão hábil enquanto o Jovem Ian vomitava penosamente na escarradeira que eu segurava.

— Sim, bem, ele sempre foi precoce — Ian retrucou resignadamente — Aprendeu a andar antes de conseguir ficar de pé e estava sempre caindo na fogueira, na tina de lavar roupas, no chiqueiro ou no estábulo. — Bateu de leve nas costas magras, que subiam e desciam com as ânsias de vômito. Vamos lá, rapaz, deixe sair.

Mais um pouco e o rapaz foi depositado como um montículo murcho em cima do sofá, para se recuperar dos efeitos da fumaça, da emoção e do excesso de cerveja preta, sob os olhares severos do tio e do pai

- Onde está o diabo do chá que eu pedi? - Jamie estendeu a mão impacientemente para a sineta, mas eu o detive. A rotina doméstica do bordel obviamente ainda estava desorganizada depois dos acontecimentos da manhã.

- Não se preocupe - eu disse. - Vou lá embaixo buscar - Peguei a escarradeira e levei-a comigo com o braço estendido, ouvindo Ian dizendo atrás de mim, num tom de voz racional: ”Olhe, seu tolo...”

Encontrei o caminho da cozinha sem nenhuma dificuldade e obtive os suprimentos necessários. Esperava que Jamie e Ian dessem alguns minutos de trégua ao rapaz; não só para seu próprio bem, mas para que eu não perdesse nada de sua história.

Evidentemente, eu havia perdido alguma coisa, quando retornei à pequena sala de estar, um ar de constrangimento pairava no aposento como uma nuvem, e o Jovem Ian olhou para cima e depois rapidamente para o lado oposto a mim, a fim de evitar meu olhar. Jamie continuava com sua habitual expressão imperturbável, mas o Ian pai parecia quase tão ruborizado e constrangido quanto seu filho.

Apressou-se a vir ao meu encontro para pegar a bandeja de minhas mãos, murmurando agradecimentos, mas evitando me olhar nos olhos.

Ergui uma das sobrancelhas para Jamie, que esboçou um leve sorriso e encolheu os ombros. Dei de ombros também e peguei uma das tigelas da bandeja.

— Pão e leite — eu disse, entregando-os ao Jovem Ian, que imediatamente pareceu mais contente.

- Chá quente - eu disse, entregando o bule a seu pai.

- Uísque - eu disse, entregando a garrafa a Jamie - e chá frio para as queimaduras. - Retirei a tampa da última vasilha, onde vários guardanapos estavam embebidos em chá frio.

- Chá frio? - As sobrancelhas ruivas de Jamie arquearam-se. - A cozinheira não tinha manteiga?

- Não se coloca manteiga em queimaduras - eu lhe disse. — Sumo de babosa ou sumo de tanchagem ou plantago, mas a cozinheira não tinha nada disso. Chá frio foi o melhor que pude conseguir.

Coloquei compressas nas mãos e braços empolados do Jovem Ian e delicadamente limpei seu rosto vermelho com os guardanapos embebidos em chá, enquanto Jamie e Ian serviam chá e uísque. Depois, nos sentamos, um pouco reanimados, para ouvir o resto da história de Ian.

- Bem - ele começou -, andei pela cidade por algum tempo, tentando pensar o que era melhor fazer. Finalmente, minha cabeça clareou um pouco e imaginei que o homem que eu segui de taberna em taberna estava descendo a High Street, se eu fosse pelo outro lado e começasse a subir a rua, talvez o encontrasse.

- Foi uma idéia inteligente -Jamie disse e Ian balançou a cabeça com aprovação, a carranca desanuviando um pouco. - Encontrou-o?

O Jovem Ian balançou a cabeça, fazendo barulho ao beber seu leite.

- Encontrei, sim.

Ele desceu a Royal Mile correndo até quase o palácio de Holyrood na base da subida e laboriosamente começou a subir a rua, parando em cada taberna para perguntar pelo homem zarolho, de rabo-de-cavalo. Ninguém vira sua presa em nenhum lugar abaixo do Canongate e ele já começava a se desesperar quando, de repente, ele mesmo viu o sujeito, sentado no bar da cervejaria Holyrood.

Presumivelmente, essa parada fora para descanso, ao invés de investigação, porque o marujo estava confortavelmente sentado, bebendo cerveja. O Jovem Ian depressa se escondeu atrás de um grande barril no pátio e permaneceu ali, observando, até que por fim o sujeito levantou-se, pagou a conta e saiu devagar do estabelecimento.

- Ele não foi a mais nenhuma taberna - o rapaz relatou, limpando um pingo de leite do queixo. - Foi direto para o beco Carfax, para a gráfica.

Jamie murmurou uma imprecação em gaélico.

— E o que aconteceu então?

— Bem, ele encontrou a loja fechada, é claro. Quando viu que a porta estava trancada, olhou cuidadosamente para as janelas, como se estivesse talvez pensando em arrombar. Então eu o vi olhar ao redor, a todas as pessoas que iam e vinham... era uma hora movimentada do dia, com muita gente indo à loja de chocolate. Assim, ele ficou parado por um instante no pórtico da entrada, pensando, e começou a voltar pelo beco. Eu tive que entrar depressa na alfaiataria da esquina para não ser visto.

O sujeito parou na entrada do beco, tomando uma decisão, depois virou para a direita, desceu alguns passos e desapareceu numa viela.

- Eu sabia que a viela levava ao pátio nos fundos do beco - o Jovem Ian explicou. - Assim, vi imediatamente o que ele pretendia fazer.

— Há um pequeno pátio nos fundos do beco —Jamie explicou, vendo meu olhar estarrecido. - É para o lixo, entregas e coisas do gênero. Há uma porta dos fundos da gráfica que dá para esse pátio.

O Jovem Ian balançou a cabeça e colocou sua tigela vazia sobre a mesa.

- Sim. Achei que ele pretendia entrar na gráfica. E pensei nos novos panfletos.

— Santo Deus! —Jamie exclamou, empalidecendo um pouco.

- Panfletos? - Ian ergueu as sobrancelhas para Jamie. - Que tipo de panfletos?

— A última encomenda do sr. Gage — o Jovem Ian explicou, Ian ainda parecia tão perplexo quanto eu.

- Política -Jamie disse sem rodeios. - Uma contestação da recente Lei do Selo, exortando a revolta civil, pela violência, se necessário. Cinco mil exemplares, recém-impressos, estocados no quarto dos fundos. Gage viria amanhã de manhã para pegá-los.

— Meu Deus! — Ian exclamou. Ele ficou ainda mais pálido do que Jamie, para quem olhava com uma espécie de horror e espanto misturados.

- Você enlouqueceu completamente? - perguntou. - Você, que não tem nem um centímetro das costas que não esteja coberto de cicatrizes? Cuja tinta do indulto por traição ainda nem secou? Você está metido com esse Tom Gage e seu grupo subversivo, e ainda por cima envolveu meu filho?

Sua voz fora se elevando à medida que falava e, por fim, levantou-se num salto, os punhos cerrados.

- Como pôde fazer uma coisa dessas, Jamie, como? Já não sofremos o suficiente com seus atos, Jenny e eu? Durante toda a guerra e depois...

Santo Deus, eu imaginava que você já tivesse esgotado sua cota de prisões, sangue e violência!

- Sim, já esgotei - Jamie retrucou laconicamente. - Não faço parte do grupo de Gage. Mas trabalho com impressão, não? Ele pagou pelos panfletos.

Ian atirou as mãos para o alto num gesto de grande irritação.

- Ah, claro! E isso vai significar muito quando os soldados da Coroa o prenderem e o levarem para Londres para ser enforcado! Se esse material fosse encontrado em seu estabelecimento... - Atingido por um pensamento repentino, ele parou e voltou-se para seu filho. - Oh, então foi isso? perguntou. - Você sabia o que eram esses panfletos e foi por isso que os incendiou?

O Jovem Ian balançou a cabeça, solene como uma jovem coruja.

- Eu não poderia retirá-los a tempo - ele disse. - Não cinco mil. O sujeito, o marinheiro, havia quebrado a janela dos fundos e estava tentando alcançar o trinco da porta.

Ian girou nos calcanhares para encarar Jamie.

- Desgraçado! - disse violentamente. - Você é um idiota irresponsável e inconseqüente, Jamie Fraser! Primeiro osjacobitas e agora isso!

- Sou culpado por Carlos Stuart? — ele disse. Seus olhos faiscavam com raiva e ele depositou sua xícara sobre a mesa com um baque que derramou chá e uísque sobre o tampo lustroso. - Não fiz tudo que pude para impedir o idiota? Não abri mão de tudo nessa luta, de tudo, Ian, minhas terras, minha liberdade, minha mulher, para tentar salvar todos nós? - Lançou-me um rápido olhar enquanto falava e eu pude vislumbrar uma fração infinitesimal do quanto os últimos vinte anos haviam lhe custado.

Virou-se novamente de frente para Ian, as sobrancelhas abaixando-se enquanto continuava, a voz cada vez mais áspera.

- E quanto ao que eu custei à sua família, o que você lucrou, Ian? Lallybroch pertence ao pequeno James agora, não é? A seu filho, não a mim!

Ian contraiu-se diante dessa explosão.

- Eu nunca pedi - começou a falar.

- Não, não pediu. Não o estou acusando, pelo amor de Deus! Mas o fato permanece. Lallybroch não me pertence mais, não é? Meu pai a deixou para mim e cuidei dela o melhor que pude, tomei conta das terras e dos colonos. E você me ajudou, Ian. - Sua voz abrandou-se um pouco. Eu não teria conseguido sem você e Jenny. Não lamento ter passado a propriedade para o Jovem Jamie, tinha que ser feito. Mas ainda assim... Virou-se de costas por um instante, a cabeça baixa, os ombros largos contraídos sob o linho da camisa.

Tive medo de me mexer ou de falar, mas meus olhos encontraram os do Jovem Ian, cheios de infinita angústia. Coloquei a mão em seu ombro magro para consolo mútuo e senti sua forte pulsação na carne macia acima da clavícula. Ele colocou a mão ossuda e grande sobre a minha e apertoua com força.

Jamie virou de novo para seu cunhado, esforçando-se para manter a voz e a raiva sob controle.

— Eu juro a você, Ian, não deixei o garoto ser colocado em perigo. Fiz o máximo que pude para mantê-lo sempre a distância, não deixava que os carregadores do cais o vissem, nem deixava que saísse nos barcos com Fergus, por mais que ele me implorasse. — Olhou para o Jovem Ian e sua expressão mudou, para uma estranha mistura de afeto e irritação. - Eu não pedi a ele para vir me procurar, Ian, e disse a ele que devia voltar para casa.

— Mas não o obrigou a voltar, não é? — A vermelhidão da raiva esvaía-se do rosto de Ian, mas seus meigos olhos castanhos ainda estavam estreitados e brilhantes. - E também não nos avisou. Pelo amor de Deus, Jamie, Jenny não dormiu uma noite sequer este mês!

Os lábios de Jamie pressionaram-se com força.

- Não - ele disse, soltando as palavras uma de cada vez. — Não. Não avisei. Eu... - Olhou para o garoto outra vez e encolheu os ombros desconfortavelmente, como se sua camisa tivesse ficado repentinamente apertada demais. — Não — repetiu. — Eu mesmo pretendia levá-lo para casa.

— Ele tem idade suficiente para viajar sozinho — Ian disse laconicamente. — Ele chegou aqui sozinho, não foi?

- Sim. Não foi por isso. - Jamie virou-se, pegou uma xícara e ficou revirando-a de um lado a outro nas mãos. - Não, eu pretendia levá-lo, para poder lhes pedir permissão, a sua e a de Jenny, para o garoto vir morar comigo por algum tempo.

lan soltou uma risada curta e sarcástica.

- Ah, é mesmo? Dar nossa permissão para ele ser enforcado ou levado com você, é?

A raiva atravessou as feições de Jamie outra vez quando ergueu os olhos da xícara que girava nas mãos.

- Você sabe que eu não deixaria que nada de mau acontecesse a ele. Pelo amor de Deus, Ian, me importo com ele como se fosse meu próprio filho e você sabe muito bem disso!

A respiração de Ian exaltava-se; podia ouvi-la de onde estava atrás do sofá.

— Ah, eu sei muito bem disso — ele disse, encarando Jamie com raiva. — Mas ele não é seu filho, hein? É meu filho.

Jamie devolveu seu olhar por um longo instante, depois estendeu o braço e recolocou a xícara na mesa com todo o cuidado.

— Sim — disse baixinho. — É.

Ian ficou parado por um momento, respirando pesadamente, depois passou a mão pela testa, alisando os fartos cabelos escuros para trás.

- Bem, então - ele disse. Respirou fundo uma ou duas vezes e virou-se para seu filho. - Vamos, então - disse. - Tenho um quarto no Hallidays.

Os dedos esqueléticos do Jovem Ian apertaram os meus com força. Os músculos de sua garganta moveram-se, mas ele não fez menção de levantar-se.

- Não, papai - ele disse. Sua voz tremia e ele piscava incessantemente, para não chorar. — Eu não vou com você.

O rosto de Ian ficou terrivelmente pálido, com uma mancha vermelha nas maçãs do rosto angulosas, como se alguém tivesse lhe dado uma forte bofetada em cada face.

- Então, é assim? - ele disse.

O Jovem Ian balançou a cabeça, engolindo em seco.

— Eu... irei com você de manhã, papai. Irei para casa com você. Mas não agora.

Ian fitou seu filho por um longo tempo sem fazer nenhum comentário. Em seguida, seus ombros arriaram e toda a tensão se esvaiu de seu corpo.

- Compreendo - disse calmamente. - Muito bem, então. Muito bem.

Sem dizer mais nada, virou-se e saiu, fechando a porta com muito cuidado atrás de si. Pude ouvir as batidas desajeitadas de sua perna artificial em cada degrau, conforme ele descia as escadas. Ouviu-se um leve som arrastado quando ele chegou ao pé da escada, depois a voz de Bruno em despedida e o baque surdo da porta principal fechando-se. Então não restou nenhum som na sala, exceto o assobio do fogo da lareira atrás de mim.

O ombro do rapaz tremia sob a minha mão e ele agarrava meus dedos com mais força ainda, chorando sem emitir um único som.

Jamie aproximou-se e sentou-se a seu lado, o rosto ansioso e transtornado.

- Ian, ah, pequeno Ian - ele disse. - Por Deus, garoto, você não deveria ter feito isso.

- Eu tinha que fazer isso - Ian arquejou e inspirou ruidosamente e só então eu vi que ele estivera prendendo a respiração. Virou o rosto chamuscado para o tio, as feições esfoladas contorcidas de angústia. - Eu não quis magoar papai - ele disse. - Não quis!

Jamie deu umas pancadinhas de leve em seu joelho, distraidamente

— Eu sei, garoto, mas dizer tal coisa a ele...

- Mas eu não podia contar a ele, e precisava contar a você, tio Jamie! Jamie ergueu os olhos, repentinamente alarmado pelo tom de voz do sobrinho.

- Contar-me? Contar-me o quê?

- O homem. O homem de rabo-de-cavalo.

- O que tem ele?

O Jovem Ian umedeceu os lábios, revestindo-se de coragem.

— Acho que eu o matei — sussurrou.

Assustado, Jamie olhou para mim, depois de novo para o Jovem Ian.

- Como? - ele perguntou.

- Bem... eu menti um pouco - Ian começou, a voz trêmula. As lágrimas ainda assomavam a seus olhos, mas ele afastou-as com a mão — Quando eu entrei na gráfica, com a chave que você me deu, o homem já estava lá dentro

O marujo estava no quarto dos fundos do estabelecimento, onde as pilhas das encomendas recém-impressas eram guardadas, juntamente com estoques de tinta de impressão, os mata-borrões usados para limpar a prensa e a pequena forja onde lingotes usados eram derretidos e remodelados em novos tipos

- Ele estava pegando alguns dos panfletos da pilha e colocando-os dentro do casaco - Ian disse, engolindo em seco. - Quando eu o vi, gritei com ele para que os devolvesse e ele girou nos calcanhares, apontando uma pistola para mim.

A pistola disparara, deixando o Jovem Ian apavorado, mas o projétil errou o alvo. Sem se deixar intimidar, o marinheiro avançou para cima do garoto, erguendo a pistola para golpeá-lo.

- Não houve tempo para fugir nem para pensar - ele disse. Ele soltara minha mão e seus dedos contorciam-se sobre o joelho. — Peguei o primeiro objeto que estava à mão e atirei em cima dele

O objeto mais à mão fora a concha de cobre de cabo comprido usada para tirar chumbo liquefeito do caldeirão onde era derretido e entorná-lo nos moldes de fundição. A forja ainda estava acesa, embora bem protegida, e, apesar de o caldeirão não conter mais do que uma pequena poça no fundo, as gotas de chumbo escaldante voaram da concha no rosto do marinheiro.

- Meu Deus, como ele berrou! - Um forte tremor percorreu o corpo magro do Jovem Ian e eu dei a volta no sofá para sentar-me ao lado dele e segurar suas mãos.

O marinheiro saiu cambaleando para trás, agarrando o rosto com as duas mãos, e virou a pequena fornalha, espalhando carvão em brasa por toda parte.

— Foi isso que provocou o incêndio - disse o garoto. - Tentei apagá-lo, mas o fogo atingiu os papéis e de repente algo veio zunindo direto no meu rosto e foi como se o quarto inteiro estivesse em chamas.

— Os tambores de tinta, imagino — Jamie disse, como se falasse consigo mesmo. - O pó é dissolvido em álcool.

As pilhas de papel em chamas começaram a cair entre o Jovem Ian e a porta dos fundos, uma parede de labaredas que soltava rolos de fumaça preta ameaçava desmoronar-se sobre ele. O marinheiro, cego e gritando como uma banshee, estava de quatro entre o garoto e a porta que dava para a sala da gráfica, por onde ele poderia sair em segurança.

- Eu... eu não podia tocar nele, arrancá-lo do caminho - ele disse, estremecendo novamente.

Perdendo a cabeça completamente, ele subiu as escadas, mas se viu preso numa armadilha quando as chamas, espalhando-se avassaladoramente pelo quarto dos fundos e entrando pela escada como em uma chaminé, encheram logo o quarto de cima com uma fumaça cegante.

- Não pensou em sair pelo alçapão que dá no telhado? - Jamie perguntou.

O Jovem Ian sacudiu a cabeça melancolicamente.

- Eu não sabia que havia um alçapão lá.

- Por que havia esse alçapão? - perguntei, curiosa.

A sombra de um sorriso torceu rapidamente a boca de Jamie.

- Para uma necessidade. Só uma raposa ingênua tem uma única saída de sua toca. Embora, devo confessar, não era em incêndio que eu estava pensando quando mandei fazê-lo. - Sacudiu a cabeça para livrar-se da divagação.

- Mas você acha que o sujeito não conseguiu escapar do incêndio? ele perguntou.

- Não vejo como poderia - o Jovem Ian respondeu, começando a fungar outra vez. - E se ele está morto, então eu o matei. Eu não podia contar a papai que eu era um a-ssa-ssa... — Começou a chorar outra vez, sacudindo-se, sem conseguir falar.

- Você não é nenhum assassino, Ian - Jamie disse com firmeza. Bateu de leve no ombro trêmulo do sobrinho. - Agora, pare, está tudo bem. Você não agiu errado, rapaz. Não agiu errado, está me ouvindo?

O garoto engoliu em seco e balançou a cabeça, mas não conseguia parar de chorar ou tremer. Finalmente, envolvi-o nos braços, virei-o e puxei sua cabeça para o meu ombro, dando umas pancadinhas em suas costas e murmurando pequenas palavras de conforto, como se faz com criancinhas

Era uma sensação estranha tê-lo nos braços; quase tão grande quanto um homem adulto, mas com ossos leves, delgados, e tão pouca carne sobre eles que parecia que eu abraçava um esqueleto. Ele murmurava nas profundezas do meu peito, a voz tão alterada pela emoção e abafada pelo tecido que era difícil compreender o que dizia.

- ...pecado mortal... - ele parecia dizer - ...condenado ao inferno... não podia contar ao papai... medo... nunca mais posso voltar para casa...

Jamie ergueu as sobrancelhas para mim, mas eu apenas dei de ombros, sentindo-me impotente, alisando os cabelos espessos e emaranhados na parte de trás da cabeça do rapaz. Finalmente, Jamie inclinou-se para a frente, segurou-o com firmeza pelos ombros e sentou-o direito.

- Olhe pra mim, Ian - ele disse. - Vamos, olhe pra mim!

À força de supremo esforço, o rapaz endireitou o pescoço caído e fixou os olhos vermelhos e rasos d’água no rosto do tio.

— Muito bem. — Jamie tomou as mãos do sobrinho e apertou-as ligeiramente. - Primeiro, não é pecado algum matar um homem que está tentando matá-lo. A Igreja permite que você mate se necessário, em sua própria defesa, de sua família ou de seu país. Portanto você não cometeu pecado mortal e não está excomungado.

- Não? - O Jovem Ian fungou ruidosamente e enxugou o rosto na manga da camisa.

— Não, não está. —Jamie deixou que seus olhos revelassem o esboço de um sorriso. — Nós vamos juntos visitar o padre Hayes pela manhã, você fará sua confissão e será absolvido, mas ele lhe dirá o mesmo que estou lhe dizendo.

- Oh. - A sílaba continha um profundo alívio e os ombros mirrados do Jovem Ian aprumaram-se perceptivelmente, como se tivessem se livrado de um fardo.

Jamie deu umas pancadinhas no joelho do sobrinho outra vez.

- Segundo, não precisa ter medo de dizer a seu pai.

— Não? — O Jovem Ian aceitara a palavra de Jamie sobre o estado de sua alma sem hesitação, mas soou profundamente cético sobre sua opinião secular.

- Bem, não digo que ele não vá ficar zangado - Jamie acrescentou honestamente. - Na verdade, acho que isso vai deixar o resto de seus cabelos completamente brancos na hora. Mas ele vai compreender. Ele não vai expulsá-lo de casa ou deserdá-lo, se é isso o que você teme.

- Acha que ele vai compreender? - Nos olhos do Jovem Ian, a dúvida e a esperança travavam um combate. - Eu... eu achava que... meu pai já matou algum homem? - ele perguntou de repente.

Jamie pestanejou, desconcertado com a pergunta.

- Bem - disse devagar -, eu acho... quero dizer, ele já lutou como soldado, mas eu... para lhe dizer a verdade, Ian, eu não sei. - Olhou para o sobrinho com ar de desamparo.

— Não é o tipo de coisa sobre a qual os homens falem muito, sabe? Exceto às vezes os soldados, depois de beber muito.

O Jovem Ian balançou a cabeça, absorvendo o que ouvira, e fungou outra vez, com um horrível barulho gorgolejante. Jamie, tateando às pressas em sua manga em busca de um lenço, ergueu os olhos subitamente, com um pensamento repentino.

— Foi por isso que você disse que deveria me contar, mas não a seu pai? Porque sabia que eu já havia matado outros homens antes?

Seu sobrinho balançou a cabeça, examinando o rosto de Jamie com olhos transtornados e confiantes.

- Sim. Eu pensei... eu achei que você saberia o que fazer.

- Ah. -Jamie respirou fundo e trocou um olhar comigo. - Bem... Seus ombros empertigaram-se e avolumaram-se, e eu pude ver que ele aceitava o fardo de que o Jovem Ian se livrara. Ele suspirou.

— O que você faz — ele disse — é primeiro perguntar a si mesmo se você teve escolha. Não teve, portanto fique tranqüilo. Depois, vai se confessar, se puder; se não, faça um bom ato de contrição, é o suficiente, quando não é um pecado mortal. Você não tem nenhuma culpa, veja bem, mas a contrição é porque você lamenta muito a necessidade que se abateu sobre você. Às vezes, isso acontece e não há como evitar.

”E depois reze uma prece pela alma daquele que você matou, para que ela descanse em paz e não o assombre. Conhece a oração pela paz da alma? Use-a, se tiver tempo de folga para se lembrar dela. Numa batalha, quando não há tempo, use esta outra: “Que esta alma descanse em Vossos braços, ó Senhor Jesus Cristo, no Reino dos Céus, Amém.”

- Que esta alma descanse em Vossos braços, ó Senhor Jesus Cristo, no Reino dos Céus, Amém - o Jovem Ian repetiu baixinho. - Sim, tudo bem. E depois?

Jamie estendeu a mão e tocou o rosto do sobrinho com grande ternura.

- Depois, você vai ter de aprender a conviver com isso, rapaz - ele disse brandamente. - Só isso.

 

Você acha que o homem que o Jovem Ian perseguiu tem alguma coisa a ver com o aviso de sir Percival? - Levantei uma tampa na bandeja do jantar que acabara de ser entregue e aspirei o aroma com satisfação; muito tempo parecia ter se passado desde o ensopado na Moubray s. Jamie balançou a cabeça, pegando uma espécie de pãozinho quente e recheado.

- Ficaria surpreso se não tivesse - ele disse secamente. - Embora haja mais de um homem querendo me matar, não acho provável que haja gangues deles perambulando por Edimburgo. — Deu uma mordida no pãozinho e mastigou devagar, sacudindo a cabeça. - Não, está bastante claro, e não há muito com que se preocupar.

- Não? - Dei uma pequena mordida em meu próprio pãozinho, depois outra maior. - Isto é uma delícia. O que é?

Jamie abaixou o pão que estivera prestes a morder e estreitou os olhos, examinando-o.

- Pombo com trufas - ele disse, enfiando-o inteiro na boca. — Não ele disse, fazendo uma pausa para engolir. - Não - disse outra vez, com mais clareza. - É apenas uma disputa por território de um contrabandista concorrente. Há duas quadrilhas que me dão trabalho de vez em quando.

- Abanou a mão, espalhando farelos, e pegou outro pãozinho.

- O modo como o sujeito se comportou, cheirando o conhaque mas raramente provando, ele pode ser um dégustateur de vinho, alguém que pode dizer apenas pelo cheiro onde o vinho foi produzido e, por uma prova, o ano em que foi engarrafado. Um sujeito muito valioso - acrescentou pensativamente - e um excelente cão de caça para colocar no meu rastro.

A ceia viera acompanhada de vinho. Servi um copo e passei-o sob meu próprio nariz.

- Ele podia seguir a sua pista só pelo conhaque? - perguntei, curiosa.

- Mais ou menos. Lembra-se do meu primo Jared?

- Claro que me lembro. Quer dizer que ele ainda está vivo? - Após o massacre de Culloden e os acontecimentos subseqüentes, era encorajador saber que Jared, um rico imigrante escocês com um próspero negócio de vinhos em Paris, ainda pertencia ao mundo dos vivos.

- Acho que vão ter que enfiá-lo num barril e atirá-lo no Sena para se livrarem dele - Jamie disse, os dentes brancos e brilhantes no rosto sujo de fuligem. - Sim, e ele não só está vivo, mas divertindo-se. Onde você acha que eu consigo o conhaque francês que trago para a Escócia?

A resposta óbvia era ”França”, mas em vez disso eu respondi:

— Jared, não é?

Jamie balançou a cabeça, a boca cheia com outro pãozinho.

- Ei! - Inclinou-se para a frente e arrancou a travessa do alcance dos dedos esqueléticos do Jovem Ian. - Você não deve comer coisas pesadas como esta quando seu estômago está estragado — ele disse, franzindo a testa e mastigando. Engoliu e lambeu os lábios. - Vou pedir mais pão e leite para você.

— Mas, tio — disse o Jovem Ian, olhando avidamente para os saborosos pãezinhos -, estou com uma fome terrível. - Purgado pela confissão, o garoto recobrara consideravelmente seu estado de espírito e o apetite também.

Jamie olhou para o sobrinho e suspirou.

- Sim, está bem. Mas jura que não vai vomitar em cima de mim?

- Não, tio - o Jovem Ian disse docemente.

— Então, está bem. —Jamie empurrou a travessa na direção do garoto e retornou à sua explicação. - Jared envia para mim principalmente o vinho de segunda de seus próprios vinhedos em Moselle, guardando os de primeira para vender na França, onde sabem diferenciar a qualidade.

- Então a bebida que você traz para a Escócia é identificável? Ele deu de ombros, estendendo a mão para o vinho.

— Somente para um nez, um dégustateur, quero dizer. Mas o fato é que o pequeno Ian aqui viu o sujeito provar o vinho na Dog and Gun e na Blue Boar, e essas são duas tabernas na High Street que compram conhaque exclusivamente de mim. Várias outras compram de mim, mas de outros também. De qualquer modo, não fico tão preocupado quando alguém procura por Jamie Roy em uma taberna. - Ele ergueu seu copo de vinho e passou-o sob o próprio nariz por reflexo, fez uma leve careta e bebeu. - Não - ele disse, abaixando o copo —, o que me preocupa é que o sujeito tenha chegado à gráfica. Porque eu tomo muito cuidado para me certificar de que as pessoas que vêem Jamie Roy nas docas em Burntisland não sejam as mesmas pessoas que passam o dia na High Street com o sr. Alex Malcolm, o mestre-impressor.

Franzi as sobrancelhas, tentando compreender.

- Mas sir Percival chamou-o de Malcolm e ele sabe que você é um contrabandista - protestei.

Jamie balançou a cabeça pacientemente.

- Metade dos homens nos portos próximos a Edimburgo são contrabandistas, Sassenach - ele disse. - Sim, sir Percival sabe muito bem que sou contrabandista, mas não sabe que eu sou Jamie Roy, muito menos James Fraser. Ele acha que eu trago peças não declaradas de seda e veludo da Holanda, porque é por esse tipo de mercadoria que eu lhe pago. - Sorriu ironicamente. - Eu troco conhaque por seda e veludo, com o alfaiate da esquina. Sir Percival gosta de tecidos finos e sua mulher mais ainda. Mas ele não sabe que estou envolvido com bebida, muito menos em quantidade, ou ele iria querer muito mais do que alguns metros de renda e tecido, pode ter certeza.

- É possível que um dos taberneiros o tenha delatado ao marinheiro? Certamente, eles já o viram.

Ele despenteou os cabelos com a mão, como costumava fazer quando pensava, fazendo alguns tufos de cabelo mais curto no topo da cabeça levantarem-se numa espiral de cabelos espetados.

— Sim, já me viram, mas apenas como freguês. É Fergus quem faz as transações com as tabernas, e Fergus sempre toma cuidado de nunca se aproximar da gráfica. Ele sempre se encontra comigo aqui, em particular.

- Dirigiu-me um sorriso enviesado. — Ninguém desconfia dos motivos de um homem visitar um bordel, não é?

Um pensamento ocorreu-me subitamente.

- Poderia ser isso? - perguntei. - Qualquer um pode entrar aqui sem ser indagado.

”Seria possível que o marinheiro que o Jovem Ian seguiu os tenha visto aqui, você e Fergus? Ou ouvido sua descrição de uma das garotas? Afinal, você não é um homem que possa passar despercebido.” - De fato, não era. Ainda que houvesse muitos homens ruivos em Edimburgo, poucos igualariam a altura de Jamie e menos ainda percorreriam as ruas com a arrogância inconsciente de um guerreiro deformado.

— É uma idéia bem plausível, Sassenach — ele disse, fazendo um sinal com a cabeça para mim. - Será bem fácil descobrir se um marinheiro de rabo-de-cavalo, zarolho, esteve aqui recentemente. Vou pedir a Jeanne que pergunte às garotas.

Levantou-se e espreguiçou-se estirando todos os membros, as mãos quase tocando as vigas do teto.

- E, então, Sassenach, talvez a gente possa ir pra cama, hein? - Abaixou os braços e piscou para mim com um sorriso. — Com uma coisa e outra, foi um dia infernal, não é?

— Sim, é verdade - eu disse, devolvendo o sorriso.

Jeanne, chamada para receber instruções, chegou juntamente com Fergus, que abriu a porta para a madame com a familiaridade de um irmão ou um primo. Não era de admirar que ele se sentisse em casa, imaginei; ele nascera em um bordel de Paris e passara os primeiros dez anos de sua vida lá, dormindo num armário embaixo das escadas, quando não estava ganhando a vida como batedor de carteiras nas ruas

- O conhaque já foi despachado - ele informou a Jamie. - Eu o vendi a MacAlpme, com um certo sacrifício no preço, lamento dizer, milorde. Achei que uma venda rápida era o melhor.

— Foi melhor tirá-lo logo daqui — Jamie disse, balançando a cabeça — O que fez com o corpo?

Fergus sorriu ligeiramente, o rosto magro e o topete escuro emprestando-lhe claramente um ar de pirata.

- Nosso intruso também foi à taberna MacAlpme’s, milorde... devidamente disfarçado.

— Disfarçado como? — perguntei.

O riso do pirata voltou-se para mim; Fergus se transformara num homem muito atraente, apesar da desfiguração de seu gancho.

— Como um barril de creme de menta, milady — ele disse

- Acho que ninguém bebeu creme de menta em Edmiburgo nem uma vez nos últimos cem anos - observou madame Jeanne. - Os bárbaros escoceses não estão acostumados ao consumo de licores civilizados; nunca vi um cliente aqui tomar qualquer outra coisa que não uísque, cerveja ou conhaque.

- Exatamente, madame - Fergus disse, balançando a cabeça. - Não queremos ver os fregueses do sr. MacAlpme abrindo o barril, não é?

— Certamente alguém vai olhar o que há dentro desse barril mais cedo ou mais tarde - eu disse. - Não quero ser indelicada, mas...

— Exatamente, milady - Fergus disse, com uma respeitosa mesura para mim. — Embora creme de menta possua um teor de álcool bastante alto, a adega da taberna é apenas um lugar de descanso temporário de nosso desconhecido amigo na jornada para seu repouso eterno. Ele vai para as docas amanhã e dali para algum destino bem distante. É que eu não queria que ele ficasse atravancando as dependências de madame Jeanne nesse meio tempo.

Jeanne dirigiu uma observação em francês a santa Inês que eu não consegui captar, mas em seguida deu de ombros e virou-se para ir embora.

- Vou perguntar a lês filies a respeito desse marujo amanhã, monsieur, quando estiverem de folga. Por enquanto...

- Por enquanto, por falar em folga - Fergus interrompeu -, mademoiselle Sophie estaria desocupada esta noite?

A madame dirigiu-lhe um olhar irônico e divertido.

- Desde que ela o viu entrar, mon petit sanasse, tenho certeza que se manteve disponível. — Ela lançou um olhar ao Jovem Ian, desengonçado entre as almofadas, como um espantalho do qual todo o enchimento de palha tivesse sido removido. - E devo encontrar um lugar para o jovem dormir?

- Ah, sim. - Jamie olhou pensativamente para o sobrinho. - Acho que pode mandar colocar um colchão no meu quarto.

- Ah, não! - protestou o Jovem Ian. - Você vai querer ficar a sós com sua mulher, não é, tio?

- O quê? - Jamie fitou-o sem compreender.

- Bem, quero dizer... - o Jovem Ian hesitou, olhando de soslaio para mim e repentinamente desviando o olhar. — Quero dizer, certamente vai querer... ha... mmphm? - Sendo natural das Highlands, ele conseguiu produzir aquele último som com uma surpreendente riqueza de indelicadeza implícita.

Jamie esfregou os nós dos dedos da mão com força contra o lábio superior.

- Bem, é muito atencioso de sua parte, Ian - ele disse. Sua voz tremeu um pouco com o esforço para não desatar a rir. - E fico lisonjeado que você tenha em tão alta conta a minha virilidade a ponto de achar que sou capaz de qualquer outra coisa na cama que não dormir profundamente depois de um dia como o de hoje. Mas acho que talvez eu possa abdicar de meus desejos carnais por uma noite, por mais que eu goste de sua tia — ele acrescentou, lançando-me um sorriso.

— Mas Bruno disse que a casa não está cheia esta noite — Fergus interpôs, olhando ao redor com certa perplexidade. - Por que o garoto não...

— Porque ele só tem catorze anos, pelo amor de Deus! — Jamie disse, escandalizado.

— Quase quinze! — o Jovem Ian corrigiu, sentando-se ereto e parecendo interessado. «.

- Bem, isso sem dúvida é suficiente - Fergus disse, com ligeira impaciência. - Normalmente, o pai de um rapaz... mas, é claro, o monsieur não está... sem querer desrespeitar seu prezado pai, é claro - acrescentou, com um sinal da cabeça para o Jovem Ian, que respondeu com o mesmo gesto como um brinquedo mecânico -, mas é uma questão de decisão experiente, compreende?

”Bem”, virou-se para madame Jeanne, com ar de umgourmand consultando o sommelier. ”Dorcas, o que acha? Ou Penélope?”

— Não, não — ela disse, sacudindo a cabeça com firmeza. — Deve ser a segunda Mary, sem dúvida. A pequenina.

- Ah, a de cabelos louros? Sim, acho que tem razão - Fergus disse, com aprovação. - Vá buscá-la, então.

Jeanne saiu antes que Jamie conseguisse emitir não mais do que um grasnado fraco em protesto.

— Mas... mas o garoto não pode — ele começou.

- Posso, sim - o Jovem Ian disse. - Ao menos, acho que posso. — Seu rosto não poderia ficar mais vermelho do que já estava, mas suas orelhas estavam escarlate de empolgação, os eventos traumáticos do dia foram completamente esquecidos.

- Mas é que... não posso deixá-lo -Jamie interrompeu-se e fitou seu sobrinho por um longo instante. Finalmente, lançou as mãos para o alto, num exasperado sinal de derrota. - E o que eu vou dizer a sua mãe? - ele perguntou, quando a porta abriu-se atrás dele.

Emoldurada no vão da porta estava uma jovem bem baixa, rechonchuda e lisa como uma perdiz em sua camisola de seda azul, seu rosto meigo e redondo iluminado por um amplo sorriso sob uma nuvem solta de cabelos louros. Ao vê-la, o Jovem Ian ficou paralisado, mal conseguindo respirar.

Quando finalmente ou ele respirava ou morria, ele respirou e voltou-se para Jamie. Com um sorriso de inigualável doçura, ele disse:

- Bem, tio Jamie, se eu fosse você - sua voz ergueu-se repentinamente num preocupante soprano e ele parou, limpando a garganta antes de retomar um barítono respeitável -, não contaria a ela. Boa-noite, tia - ele disse, saindo com passos resolutos.

— Não sei se devo matar Fergus ou agradecer a ele. -Jamie estava sentado na cama de nosso quarto no sótão, desabotoando a camisa lentamente.

Estendi o vestido úmido sobre o banco e ajoelhei-me diante dele para abrir as fivelas que atavam suas calças na altura dos joelhos.

- Acho que ele estava tentando fazer o melhor pelo Jovem Ian.

- Sim... à sua maldita maneira imoral francesa. -Jamie levou as mãos à nuca para desatar o laço que prendia seus cabelos. Ele não os trançara outra vez depois que deixamos a Moubray’s e eles derramaram-se, macios e soltos, sobre seus ombros, emoldurando as proeminentes maçãs do rosto e o nariz longo e reto, de modo que ele ficou parecendo um dos mais ferozes anjos italianos da Renascença.

- Foi o arcanjo Miguel que conduziu Adão e Eva para fora do Jardim do Éden? - perguntei, retirando suas meias.

Ele deu uma risadinha.

— É o que pareço a você? O guardião da virtude? E Fergus seria a mal-intencionada serpente? - Ele colocou as mãos sob meus cotovelos quando se inclinou para erguer-me. — Levante-se, Sassenach; não devia estar de joelhos, me servindo.

— Você teve um dia infernal hoje — respondi, fazendo com que se levantasse comigo. - Mesmo que não tenha matado ninguém. - Havia grandes bolhas em suas mãos e embora ele tivesse retirado a maior parte da fuligem, ainda havia uma listra preta ao longo do seu maxilar.

- Mm.

Minhas mãos rodearam sua cintura para ajudá-lo a tirar a cinta de suas calças, mas ele prendeu-as ali, descansando o rosto por um breve instante no topo de minha cabeça.

- Não fui completamente honesto com o garoto, sabe? - ele disse.

— Não? Achei que você lidou maravilhosamente com ele. Pelo menos, ele se sentiu melhor depois de conversar com você.

— Sim, espero que sim. E talvez as preces ajudem. Pelo menos, mal não podem fazer. Mas eu não lhe contei tudo.

— O que mais há para ser contado? — Ergui o rosto, tocando seus lábios de leve com os meus. Ele cheirava a fumaça e suor.

— O que um homem geralmente faz quando está angustiado por ter matado alguém é procurar uma mulher, Sassenach - ele disse brandamente. - A dele, se puder; outra, se necessário. Porque ela pode fazer o que ele não pode... e curá-lo.

Meus dedos encontraram os cadarços de sua braguilha; soltaram-se com um simples puxão.

— Foi por isso que o deixou ir com a segunda Mary?

Ele encolheu os ombros e, recuando um passo, tirou as calças.

- Não podia impedi-lo. E acho que talvez eu estivesse certo em permitir, embora seja tão jovem. - Sorriu obliquamente. - Ao menos, ele não vai passar a noite remoendo a morte do marinheiro.

- Imagino que não. E quanto a você? - Tirei minha combinação por cima da cabeça.

- Eu? - Fitou-me, com as sobrancelhas erguidas, a imunda camisa de linho solta sobre os ombros.

Olhei para a cama atrás dele.

- Sim. Você não matou ninguém, mas quer... mmphm? - Fitei-o nos olhos, erguendo as sobrancelhas interrogativamente.

O sorriso ampliou-se em seu rosto e qualquer semelhança com Miguel Arcanjo, o severo guardião da virtude, desapareceu. Ele ergueu um dos ombros, depois o outro, e deixou-os cair - a camisa deslizou de seus braços para o chão.

— Acho que sim — ele disse. — Mas seja delicada comigo, sim?

 

Pela manhã, vi Jamie e Ian saírem para cuidar de seus deveres religiosos e, em seguida, eu mesma saí, parei para comprar um grande cesto de vime de uma vendedora de rua. Já era hora de começar a me equipar outra vez, com o que quer que eu conseguisse encontrar de produtos medicinais. Após os eventos do dia anterior, eu começava a temer que logo teria necessidade deles.

A botica de Haugh não mudara em nada, resistiu à ocupação inglesa, à Revolução escocesa e à queda dos Stuart. Meu coração alegrou-se quando atravessei a porta e mergulhei naqueles aromas intensos e familiares de amorna, menta, óleo de amêndoas e anis.

O homem atrás do balcão era Haugh, mas um Haugh muito mais novo do que o homem de meia-idade com quem eu lidara há vinte anos, quando eu ia à loja para tomar conhecimento de notícias e boatos de inteligência militar, assim como obter ervas e remédios.

O jovem Haugh não me conhecia, é claro, mas atenciosamente começou a reunir as ervas que eu queria, buscando-as nas jarras perfeitamente arrumadas em suas prateleiras. Muitas eram bastante comuns - alecrim, tanaceto, cravo-de-defunto - mas algumas em minha lista fizeram as sobrancelhas avermelhadas do jovem Haugh erguerem-se e ele franzir os lábios pensativamente, enquanto procurava entre as jarras.

Havia outro freguês na loja, pairando junto ao balcão, onde tônicos eram fornecidos e fórmulas eram aviadas. Andava de um lado para outro com passadas largas, as mãos apertadas às costas, obviamente impaciente. Após um instante, aproximou-se do balcão.

— Quanto tempo? — perguntou rispidamente para as costas do sr Haugh.

- Não sei dizer, reverendo - a voz do boticário soou com um tom de desculpas — Louisa disse que teria que ser fervido.

A única resposta a isso foi um muxoxo, e o homem, alto e de ombros estreitos, de preto, retomou seus passos, olhando de vez em quando para a porta que dava para a sala dos fundos, onde a invisível Louisa provavelmente trabalhava. O reverendo me parecia vagamente familiar, mas eu não tinha tempo para pensar onde o vira antes.

O sr. Haugh examinava a lista que eu lhe dera com os olhos estreitados e ar de dúvida.

— Bem, acônito — murmurou. — Acônito. O que pode ser isso?

- Bem, é um veneno, para começar - eu disse. O sr. Haugh olhou-me boquiaberto por um instante. - É um remédio, também - assegurei-lhe. Mas é preciso ter cuidado em sua utilização. Externamente, é bom para reumatismo, mas uma quantidade mínima, ingerida pela boca, reduzirá os batimentos cardíacos. Bom para alguns tipos de problemas do coração.

- Compreendo - disse o sr. Haugh, pestanejando. Voltou-se para suas prateleiras, parecendo um pouco desnorteado. - Ha, saberia que cheiro tem, talvez?

Tomando isso como um convite, dei a volta para trás do balcão e comecei a procurar entre as jarras. Estavam cuidadosamente rotuladas, mas os rótulos de algumas eram obviamente muito velhos, a tinta desbotada e o papel soltando-se nas pontas.

— Receio que eu ainda não seja tão entendido em remédios quanto meu pai - o jovem Haugh dizia junto ao meu cotovelo. - Ele me ensinou muita coisa, mas morreu há um ano e há substâncias aqui que eu não sei para que servem.

- Bem, esta aqui é boa para tosse - eu disse, retirando da prateleira uma jarra de elecampana com um rápido olhar para o impaciente reverendo, que tirara um lenço e assoava o nariz asmaticamente dentro dele. Particularmente, quando a tosse tem um som cavernoso.

Franzi o cenho diante das prateleiras abarrotadas. Tudo estava perfeitamente limpo e imaculado, mas evidentemente as substâncias não estavam nem em ordem alfabética, nem botânica. Teria o sr. Haugh um sistema próprio, ou ele simplesmente se lembrava do lugar de cada uma? Fechei os olhos e tentei me lembrar da última vez em que eu estivera na loja.

Para minha surpresa, a imagem retornou facilmente. Na ocasião, eu fora comprar dedaleira, para fazer as infusões para Alex Randall, o irmão mais novo de Black Jack Randall — e seis vezes bisavô de Frank. Pobre rapaz, já estava morto há vinte anos agora, embora tivesse vivido o suficiente para gerar um filho. Senti uma ponta de curiosidade à idéia de seu filho, e de sua mãe, que fora minha amiga, mas forcei a mente a se afastar deles, a voltar à imagem do sr. Haugh, na ponta dos pés para alcançar sua prateleira, lá para o lado direito...

- Lá. - De fato, minha mão pousou perto de uma jarra rotulada DEDALEIRA. De um lado havia uma jarra etiquetada CAVALINHA e do outro RAIZ DE LÍRIO-DO-VALE. Hesitei, olhando para elas, pesquisando mentalmente os possíveis usos daquelas ervas. Cardíacas, todas elas. Portanto, se eu quisesse achar acônito, seria ali por perto.

Era. Achei-a facilmente, numa jarra rotulada com seu nome popular CAPUZ-DE-FRADE.

- Cuidado com isso. - Entreguei a jarra cuidadosamente ao sr. Haugh. — Mesmo uma pequena quantidade deixará sua pele dormente. Talvez seja melhor usar um frasco de vidro para ela. - A maior parte das ervas que eu comprara vinha embrulhada em quadrados de gaze ou enrolada em papéis torcidos, mas o jovem sr. Haugh assentiu. e levou a jarra de acônito para a sala dos fundos, com os braços estendidos, como se esperasse que fosse explodir em seu rosto.

— Parece saber bem mais de remédios do que o rapaz — disse uma voz grave e rouca atrás de mim.

— Bem, provavelmente tenho mais experiência do que ele. — Virei-me e vi o pastor apoiado no balcão, observando-me por baixo de sobrancelhas grossas com olhos azul-claros. Lembrei-me repentinamente de onde o vira antes; na Moubray’s no dia anterior. Não deu nenhum sinal de me reconhecer; talvez porque meu manto cobrisse o vestido de Daphne. Eu notara que muitos homens praticamente nem reparavam no rosto de uma mulher em décolletage, embora parecesse um hábito lastimável em um sacerdote. Ele clareou a garganta.

- Mmphm. E sabe o que fazer para uma doença nervosa?

- Que tipo de doença nervosa?

Ele franziu os lábios e a testa, como se estivesse em dúvida se deveria confiar em mim. O lábio superior era ligeiramente pontudo, como o bico de uma coruja, mas o inferior era grosso e pendente.

- Bem... é um caso complicado. Mas falando de um modo geral... analisou-me atentamente -, o que indicaria para uma espécie de... acesso?

- Ataque epiléptico? Quando a pessoa cai no chão e fica se debatendo? Ele meneou a cabeça, exibindo uma faixa avermelhada no pescoço, onde o alto lenço branco, usado como uma espécie de gravata, irritara a pele.

— Não, um tipo diferente de acesso. Berrando e olhando fixamente.

- Berrando e olhando fixamente?

- Não ao mesmo tempo - acrescentou apressadamente. - Primeiro um e depois o outro, ou melhor, em seqüência. Primeiro, ela passa dias sem fazer mais nada senão olhar fixamente, sem falar, e depois, de repente, tem um acesso de gritos capaz de acordar os mortos.

— Parece muito penoso. — E era; se sua mulher fosse atormentada por tal distúrbio, as olheiras arroxeadas e as profundas rugas de tensão que contornavam sua boca e seus olhos podiam ser facilmente explicadas.

Tamborilei o dedo sobre o balcão, considerando a questão.

- Não sei. Eu teria que ver a paciente.

O ministro tocou o lábio inferior com a língua.

— Talvez... estaria disposta a ir vê-la? Não é longe daqui — acrescentou, com certo formalismo. Não estava acostumado a pedir favores, mas a urgência de seu pedido ficou evidente, apesar da arrogância de sua figura.

- Não posso no momento. Tenho que ir ao encontro do meu marido. Mas talvez hoje à tarde...

— Duas horas — ele disse prontamente. — Henderson’s, no beco Carrubber’s. Meu nome é Campbell, reverendo Archibald Campbell.

Antes que eu pudesse dizer sim ou não, a cortina que separava a frente da loja da sala dos fundos abriu-se e o sr. Haugh surgiu com dois frascos, entregando-os a cada um de nós.

O reverendo examinou o dele com desconfiança, enquanto tateava no bolso à cata de uma moeda.

- Bem, tome seu dinheiro - disse grosseiramente, batendo a moeda em cima do balcão. - E espero que tenha me dado o remédio certo e não o veneno desta senhora.

A cortina farfalhou outra vez e uma mulher espreitou pelas costas a figura do ministro que saía.

— Já vai tarde! — ela observou. — Meio penny por uma hora de trabalho e, ainda por cima, insultos! Deus devia escolher melhor, é só o que posso dizer!

— Você o conhece? — perguntei, curiosa em saber se Louisa teria alguma informação útil sobre a mulher doente.

- Não posso dizer que o conheça bem, não - Louisa disse, fitando-me com franca curiosidade. — É um dos ministros da Igreja Livre, aquela que está sempre arengando em altos brados na esjjuina de Market Cross, dizendo às pessoas que o comportamento delas é inconseqüente e que tudo de que precisam para a salvação é ”se agarrar com Jesus”, como se Nosso Senhor fizesse luta livre em dia de feira! - Ela torceu o nariz desdenhosamente para essa opinião herege, persignando-se contra contaminação. — Surpreende-me que pessoas como o reverendo Campbell venham a nossa loja, ouvindo o que ele pensa de papistas em geral. — Seus olhos aguçaram-se em minha direção. — Mas talvez a senhora pertença à Igreja Livre, madame, sem querer ofendê-la, se for o caso.

— Não, eu sou católica... Ha, e papista também — assegurei-lhe. — Só estava imaginando se saberia alguma coisa sobre a mulher do reverendo e sobre sua saúde.

Louisa sacudiu a cabeça, virando-se para atender outro freguês.

- Não, nunca vi a mulher do reverendo. Mas seja qual for o problema dela - acrescentou, franzindo a testa na direção em que o reverendo desaparecera —, tenho certeza de que viver com ele não a ajuda em nada.

O tempo estava frio, mas claro, e apenas uma ligeira insinuação de fumaça demorava-se no jardim da paróquia como lembrete do fogo. Jamie e eu nos sentamos em um banco junto ao muro, absorvendo o pálido sol de inverno enquanto esperávamos o Jovem Ian terminar sua confissão.

- Foi você quem contou a Ian aquele monte de bobagem que ele disse para o Jovem Ian ontem? Sobre onde eu estive todo esse tempo?

- Ah, sim - ele disse. - Ian é muito esperto para acreditar nisso, mas é uma história bem plausível e ele é um amigo bom demais para insistir em saber a verdade.

- Creio que vai servir, para consumo geral - concordei. - Mas não deveria ter contado a mesma história para sir Percival, em vez de deixá-lo pensar que éramos recém-casados?

Ele sacudiu a cabeça com determinação.

- Ah, não. Para começar, sir Percival não faz a menor idéia do meu verdadeiro nome, embora eu possa apostar a minha renda de um ano que ele sabe que não é Malcolm. Eu não queria que ele me ligasse a Culloden, de maneira nenhuma. Depois, uma história como essa que eu contei a Ian iria causar muito mais comentários do que a notícia de que o dono da tipografia se casou.

- ”Oh, que teia complicada tecemos” - entoei - ”quando começamos a mentir.”

Ele dirigiu um rápido olhar azul para mim e o canto de sua boca ergueu-se ligeiramente.

— Vai ficando mais fácil com o tempo, Sassenach — ele disse. — Tente viver comigo por uns tempos e logo estará fiando seda pelo traseiro com a mesma facilidade que me... ha, com muita facilidade.

Soltei uma sonora risada.

— Quero ver você fazer isso — eu disse.

-Já viu. - Levantou-se e esticou o pescoço, tentando ver por cima do muro para o jardim da paróquia. - O Jovem Ian está levando um tempo enorme - observou, sentando-se outra vez. - Como um garoto que ainda não tem quinze anos pode ter tanto pecado para confessar?

- Depois do dia e da noite que ele teve ontem? Imagino que dependa do grau de detalhes que o padre Hayes queira ouvir — eu disse, com uma recordação vívida do meu café da manhã com as prostitutas. — Ele está lá dentro este tempo todo?

- Ha, não. - As pontas das orelhas de Jamie tornaram-se ligeiramente rosadas à luz da manhã. - Eu, ha, tive que ir primeiro. Para dar o exemplo, sabe.

- Não é de admirar que tenha levado muito tempo - eu disse, provocando-o. - Fazia quanto tempo que você não se confessava?

- Eu disse ao padre Hayes que foram seis meses.

— E é verdade?

- Não, mas acho que se ele ia me absolver de roubo, assalto e linguagem profana, podia muito bem me absolver de uma pequena mentira também.

- O que, nada de fornicação ou pensamentos impuros?

- Claro que não - ele disse, com ar sério. - Você pode pensar em muitas coisas horríveis sem pecado, se for com sua mulher. Se você pensar em outras mulheres, então é impuro.

- Não fazia a menor idéia de que eu estava voltando para salvar sua alma — eu disse, também com ar sério —, mas é bom ser útil.

Ele riu, inclinou-se e beijou-me longamente.

- Será que isso conta como indulgência? - ele perguntou, parando para respirar. - Deveria, não? É muito mais eficaz em manter um homem longe do fogo do inferno do que rezar um rosário inteiro. Por falar nisso — ele acrescentou, enfiando a mão no bolso e retirando um rosário de madeira que parecia ter sido mastigado —, lembre-me que tenho que rezar minha penitência em algum momento hoje. Eu já ia começar, quando você chegou.

- Quantas ave-marias vai ter que rezar? - perguntei, manuseando as contas do rosário. A aparência de mastigado não era uma ilusão; havia marcas precisas de dentes na maioria das contas.

- Conheci um judeu no ano passado - ele disse, ignorando a pergunta. - Um naturalista, que deu a volta ao mundo seis vezes. Ele disse que tanto na fé muçulmana quanto nos ensinamentos judaicos, é considerado um ato de virtude um homem e sua mulher se deitarem. Será que isso tem alguma coisa a ver com o fato de tanto os muçulmanos quanto os judeus serem circuncidados? - ele acrescentou pensativamente. - Nunca pensei em lhe perguntar isso... embora talvez ele achasse indelicado dizer.

- Não creio que um prepúcio fosse prejudicar uma virtude - assegurei-lhe.

— Ah, ótimo — ele disse, beijando-me outra vez.

- O que aconteceu com seu rosário? - perguntei, pegando-o do chão onde havia caído. - Parece que os ratos andaram mastigando-o.

- Ratos, não - ele disse. - Crianças.

— Que crianças?

- Ah, qualquer uma que esteja por perto. - Deu de ombros, enfiando as contas de volta no bolso. - O Jovem Jamie já tem três, Maggie e Kitty dois cada uma. O pequeno Michael acabou de se casar, mas sua mulher está grávida. — O sol estava por trás dele, sombreando seu rosto, de modo que seus dentes cintilaram de repente, um brilho branco, quando ele sorriu. — Você não sabia que era sete vezes tia-avó, hein?

- Tia-avó? - eu disse, chocada

- Bem, eu sou tio-avô - ele disse alegremente - e não acho isso uma grande provação, exceto pelo fato de minhas contas serem mastigadas quando os dentes dos pimpolhos estão despontando. Isso e ter que responder um bocado a ”Nunkie”.

Às vezes vinte anos pareciam apenas um minuto, outras vezes pareciam um tempo realmente muito longo.

- Ha... espero que não haja um equivalente feminino de ”Nunkie”, hein?

- Ah, não - garantiu-me. - Todos a chamam de tia-avó Claire e a tratam com o máximo de respeito.

- Muito obrigada - murmurei, com visões da ala geriátrica do hospital ainda frescas em minha mente.

Jamie riu e com a leveza de espírito sem dúvida engendrada pelo fato de ter acabado de se livrar de seus pecados, agarrou-me pela cintura e sentou-me em seu colo

— Eu nunca vi uma tia-avó com um traseiro tão bonito e carnudo — ele disse com aprovação, balançando-me ligeiramente nos joelhos. Seu hálito fez cócegas na minha nuca quando ele se inclinou para a frente. Soltei um gritinho quando seus dentes fecharam-se de leve em minha orelha.

- Você está bem, tia? - soou a voz do Jovem Ian atrás de nós, repleta de preocupação.

Jamie começou a rir convulsivamente, quase me derrubando de seu colo, depois me segurou com mais força pela cintura.

- Ah, está, sim - ele disse. - É que sua tia viu uma aranha.

- Onde? - perguntou o Jovem Ian, espreitando com interesse por cima do banco.

- Lá em cima - Jamie levantou-se, colocando-me de pé, e apontou para a tília, onde de fato a teia de uma aranha estendia-se entre a forquilha de dois galhos, cintilando com gotículas de sereno. A responsável pela tecedura estava plantada bem no meio da teia, gorda como uma cereja, ostentando um padrão berrante de verde e amarelo no dorso.

— Eu contava à sua tia — Jamie disse, enquanto o Jovem Ian examinava a teia com olhos fascinados e sem pestanas — sobre um judeu que eu conheci, um naturalista. Parece que ele estudava as aranhas, na realidade, ele estava em Edimburgo para entregar um artigo científico à Royal Society, apesar de ser judeu.

- É mesmo? Ele lhe falou muito de aranhas? - o Jovem Ian perguntou ansiosamente.

- Muito mais do que eu estava interessado - Jamie informou a seu sobrinho. - Aranhas que colocam ovos em lagartas, para que os filhotes ao saírem do ovo devorem a pobre lagarta ainda viva. Mas ele disse uma coisa que achei realmente interessante - acrescentou, estreitando os olhos para observar a teia. Soprou-a de leve e a aranha escondeu-se rapidamente.

- Ele disse que as aranhas fiam dois tipos de seda e se você tiver uma lente de aumento... e puder manter a aranha quieta, imagino... pode ver os dois pontos de onde a seda é segregada; fiandeiras, ele as chamava. De qualquer modo, um tipo de seda é pegajoso e se um pequeno inseto a tocar, está perdido. Mas o outro tipo é de seda seca, do tipo que se usa para bordar, porém mais fina.

A aranha avançava cautelosamente em direção ao centro de sua teia outra vez.

— Está vendo onde ela anda? — Jamie apontou para a teia, ancorada numa série de raios, sustentando a intricada rede em espiral. - Aqueles raios são de seda seca, para que a aranha possa andar sobre eles sem problemas. Mas o resto da teia é do tipo de seda pegajosa... ou a maior parte, pelo menos... e se você observar uma aranha por bastante tempo, verá que ela só anda nos fios secos, senão ela mesma ficará presa em sua própria teia.

— É mesmo? — Ian respirava reverentemente sobre a teia, observando intensamente enquanto a aranha se afastava pela estrada seca em direção à segurança.

- Acho que há uma moral por trás disso, para as tecedoras de teia - Jamie observou para mim. - Fique atenta aos seus fios pegajosos.

- Creio que seja melhor ainda se tivéssemos sorte o bastante para que uma aranha providencial cruze o nosso caminho quando necessário - eu disse secamente.

Ele riu e tomou meu braço.

- Isso não é sorte, Sassenach — disse-me. - É cautela. Ian, você vem?

— Ah, sim. - O Jovem Ian abandonou a teia com óbvia relutância e seguiu-nos em direção ao portão do pátio da igreja.

- Ah, tio Jamie, eu queria lhe perguntar, pode me emprestar seu rosário? - ele disse, quando emergimos nas pedras do calçamento de Royal Mile. — O padre me disse para rezar cinco dezenas em penitência e isso é muito para manter a conta com os dedos.

- Claro. - Jamie parou e enfiou a mão no bolso para pegar o rosário. — Mas não se esqueça de devolver.

O Jovem Ian riu.

- Sim, acho que vai precisar dele, tio Jamie. O padre me disse que ele é muito mau — o Jovem Ian confidenciou-me, com uma piscadela sem cílios - e me disse para não ser igual a ele.

— Mmphm. —Jamie olhou para cima e para baixo da rua, avaliando a velocidade de um carrinho de mão que se aproximava, equilibrando-se pela íngreme ladeira abaixo. Tendo se barbeado naquela manhã, suas faces exibiam uma luminosidade rosada.

- Quantas dezenas do rosário você tem que rezar em penitência? perguntei, curiosa.

— Oitenta e cinco — ele murmurou. O tom rosado de suas faces recém-barbeadas intensificou-se.

O Jovem Ian ficou boquiaberto.

— Há quanto tempo você não se confessava, tio? - ele perguntou.

- Há muito tempo -Jamie disse laconicamente. - Vamos!

Jamie marcara de se encontrar após o jantar com o sr. Harding, representante da Hand in Hand, a firma de seguros responsável pelas instalações da gráfica, que iria inspecionar os escombros com ele e verificar o prejuízo.

- Não vou precisar de você, rapaz - ele disse ao Jovem Ian, que não parecia nem um pouco entusiasmado com a idéia de revisitar a cena de suas aventuras. - Vá com sua tia visitar essa louca.

”Não sei como você faz isso”, acrescentou para mim, erguendo uma das sobrancelhas. ”Está na cidade há menos de dois dias e todos os aflitos num raio de quilômetros já estão na barra de sua saia.”

— Não são todos - eu disse secamente. - É apenas uma única mulher, afinal, e eu nem a vi ainda.

- Sim, bem. Ao menos, loucura não é contagiosa, espero. - Beijou-me rapidamente, depois se virou para ir embora, batendo amigavelmente no ombro do Jovem Ian. - Cuide de sua tia, Ian.

O Jovem Ian parou por um instante, olhando a figura alta de seu tio afastar-se.

- Você quer ir com ele, Ian? - perguntei. - Posso me virar sozinha, se você...

- Ah, não, tia! - Voltou-se de novo para mim, parecendo um tanto confuso. - Eu não queria ir mesmo. É que... eu estava pensando... bem, e se eles... encontram alguma coisa? Nas cinzas?

- Um corpo, você quer dizer - falei sem rodeios. Eu percebera, é claro, que a evidente possibilidade de Jamie e do sr. Harding encontrarem o corpo do marinheiro zarolho era a razão pela qual Jamie dissera a Ian que me acompanhasse.

O rapaz balançou a cabeça, parecendo pouco à vontade. O tom de sua pele desbotara para uma espécie de bronzeado rosado, mas ainda estava escuro demais para mostrar qualquer palidez devido à emoção.

— Não sei — eu disse. - Se o incêndio tiver sido muito forte, pode não ter restado muita coisa para ser encontrada. Mas não se preocupe com isso. - Toquei em seu braço para tranqüilizá-lo. - Seu tio saberá o que fazer.

- Sim, é verdade. - Seu rosto iluminou-se, pleno de fé na capacidade de seu tio de lidar com qualquer tipo de situação. Sorri ao ver sua expressão, depois percebi com um pequeno sobressalto de surpresa, que eu também possuía a mesma fé. Fosse um chinês bêbado, agentes alfandegários corruptos ou o sr. Harding da companhia de seguros Hand in Hand, eu não tinha a menor dúvida de que Jamie conseguiria lidar satisfatoriamente com a situação.

- Então vamos - eu disse, quando o sino da igreja de Canongate começou a soar. - São exatamente duas horas agora.

Apesar de sua visita ao padre Hayes, Ian mantivera um certo ar de sonhadora bem-aventurança, que retornava ao seu semblante agora. Conversamos pouco conforme subíamos a ladeira da Royal Mile até a hospedaria Henderson’s, no beco Carrubbers.

Era um hotel tranqüilo, mas luxuoso para os padrões de Edimburgo, com um carpete ornamentado nas escadas e vitral colorido na janela que dava para a rua. Parecia um ambiente até sofisticado demais para um ministro da Igreja Livre, mas na verdade eu pouco sabia sobre membros da Igreja Livre; talvez não fizessem nenhum voto de pobreza, como os sacerdotes católicos.

Conduzidos ao terceiro andar por um garoto, a porta foi imediatamente aberta por uma mulher corpulenta, usando um avental e com a expressão preocupada. Imaginei que ela deveria ter vinte e poucos anos, embora já tivesse perdido vários dentes da frente.

— É a senhora que o reverendo espera? — ela perguntou. Sua expressão iluminou-se um pouco quando balancei a cabeça e ela abriu a porta ainda mais. - O sr. Campbell teve que sair novamente - ela disse num carregado sotaque das Lowlands —, mas ele disse que ficaria muito agradecido de ter sua opinião com relação à sua irmã, madame.

Irmã, não esposa.

- Bem, farei o melhor possível — eu disse. - Posso ver a srta. Campbell?

Deixando Ian entregue às suas recordações na sala de estar, acompanhei a mulher, que se apresentara como Nellie Cowden, até o quarto dos fundos.

A srta. Campbell estava, como anunciado, olhando fixamente para a frente. Seus pálidos olhos azuis estavam arregalados, mas não pareciam focalizados em nada - certamente não em mim.

Ela estava sentada numa espécie de poltrona larga e baixa, própria para enfermos, de costas para a lareira. O aposento estava na penumbra e a luz vinda de trás tornava suas feições indistintas, exceto pelos olhos fixos, que não piscavam. Mesmo vendo-a mais de perto, suas feições continuavam indistintas; ela possuía um rosto liso e arredondado, sem uma estrutura óssea que se sobressaísse, cabelos castanhos, finos como os de um bebê, perfeitamente escovados. Seu nariz era pequeno e arrebitado, o queixo era duplo e a boca rosada permanecia pendente, tão flácida a ponto de obscurecer seus contornos naturais

- Srta. Campbell? - eu disse, cautelosamente. Não houve resposta da figura rechonchuda na poltrona. Seus olhos, na verdade, piscavam, eu notei, mas com bem menos freqüência do que o normal.

— Ela não lhe responderá, enquanto estiver neste estado — Nellie Cowden disse atrás de mim. Ela sacudiu a cabeça, limpando as mãos no avental - Não, nem uma palavra

- Há quanto tempo ela está assim? - Peguei uma de suas mãos, flácida e gorducha, e verifiquei o pulso. Estava lá, lento e bastante forte.

- Ah, até agora dois dias, desta vez. - Ficando interessada, a srta Cowden inclinou-se para a frente, espreitando o rosto da mulher de quem cuidava. - Em geral, ela permanece assim por uma semana ou mais. Treze dias foi o máximo que ela já ficou.

Movendo-me devagar — embora parecesse improvável que a srta. Campbell fosse se assustar —, comecei a examinar a figura inerte, enquanto fazia perguntas à sua acompanhante. A srta. Margaret Campbell tinha trinta e sete anos, informou-me a srta. Cowden, a única parenta do reverendo Archibald Campbell, com quem vivia nos últimos vinte anos, desde a morte de seus pais.

- O que a faz ficar assim? Você sabe? A srta. Cowden meneou a cabeça.

- Não sei, não senhora. Nada parece provocar isso. Em um instante ela está olhando ao redor, conversando e rindo, comendo seu jantar como a meiga pessoa que é, e no instante seguinte, pronto! — Ela estalou os dedos, para maior efeito. A seguir, inclinou-se para a frente e estalou os dedos de novo, deliberadamente, bem embaixo do nariz da srta. Campbell. - Viu só? - ela disse - Seis homens tocando trombeta poderiam passar aqui pelo quarto e ela não daria a mínima atenção.

Eu estava quase certa que o problema da srta. Campbell era mental, não físico, mas fiz um exame completo, de qualquer modo — ou tão completo quanto foi possível sem despir aquela figura inerte e volumosa

— O pior, entretanto, é quando ela sai deste estado — assegurou-me a srta. Cowden, agachando-se ao meu lado, enquanto eu estava ajoelhada no chão, analisando os reflexos plantares da srta. Campbell. Seus pés, livres dos sapatos e das meias, estavam úmidos e com cheiro de mofo.

Passei uma unha com firmeza ao longo da sola de cada pé, um de cada vez, em busca de um reflexo Babinski que indicasse a presença de lesão cerebral. Mas nada aconteceu; seus dedos curvaram-se para dentro, numa reação normal.

- O que acontece depois? A gritaria que o reverendo mencionou? Levantei-me. - Poderia me trazer uma vela acesa, por favor?

— Ah, sim, os gritos. — A srta. Cowden apressou-se a atender meu pedido, acendendo uma vela fina de cera na lareira. - Ela berra alguma coisa terrível, sem parar, até ficar exaurida. Depois adormece, dorme um dia inteiro, e acorda como se nada tivesse acontecido.

- E ela está perfeitamente bem quando acorda? - perguntei. Movi a chama da vela de um lado para outro, bem diante dos olhos da paciente. As pupilas contraíram-se numa reação automática à luz, mas as íris mantiveram-se fixas, sem seguir a chama. Minha mão ansiava pelo cabo sólido de um oftalmoscópio, para examinar as retinas, mas infelizmente não era possível.

- Bem, não completamente bem - a srta. Cowden disse devagar. Virei-me para olhá-la e ela encolheu os ombros volumosos, poderosos sob a blusa de linho. — Ela tem o miolo mole, pobre coitada — ela disse, de forma pragmática. - Está assim há quase vinte anos.

- Certamente, você não toma conta dela desde o início, não é?

— Ah, não! O sr. Campbell tinha uma mulher que cuidava dela onde eles moravam, em Burntisland, mas a mulher já não era nova e não quis deixar sua casa. Então, quando o reverentdo decidiu aceitar a proposta da Associação de Missionários, e levar sua irmã com ele para as índias Ocidentais... bem, ele colocou anúncio para uma mulher forte de bom caráter que pudesse viajar como uma criada para ela... e aqui estou eu. - A srta. Cowden dirigiu-me um sorriso desdentado em testemunho de suas próprias qualidades.

- índias Ocidentais? Ele planeja levar a srta. Campbell de navio para as índias Ocidentais? - Eu estava perplexa; eu sabia o suficiente sobre condições de navegação para achar que uma viagem como essa seria uma grande provação até para uma mulher em perfeita saúde. Esta mulher, mas então reconsiderei. Considerando toda a situação, Margaret Campbell deveria agüentar uma viagem como essa melhor do que uma mulher normal, ao menos, se ela permanecesse em seu transe.

- Ele achou que a mudança de ares poderia lhe fazer bem - explicava a srta Cowden. - Afastá-la da Escócia e de todas as suas terríveis lembranças. Já devia ter feito isso há muito tempo, é o que eu digo.

- Que tipo de lembranças terríveis? - perguntei. Pude ver pelo brilho nos olhos da srta. Cowden que ela estava ansiosa para me contar. A essa altura, eu já terminara o exame e concluí que havia pouca coisa fisicamente errada com a srta. Campbell, exceto o sedentarismo e uma alimentação deficiente, mas havia a possibilidade de que alguma coisa em seu histórico sugerisse um tratamento.

- Bem - ela começou, aproximando-se hesitantemente da mesa onde se viam uma jarra e vários copos sobre uma bandeja —, é apenas o que Tilly Lawson me contou, tendo cuidado da srta Campbell por tanto tempo, mas ela jurou que era verdade e. ela é uma mulher devota. Aceitaria um cálice de cordial, senhora, em nome da hospitalidade do reverendo?

A poltrona em que a srta. Campbell estava sentada era a única no aposento, de modo que a srta. Cowden e eu nos posicionamos deselegantemente na beirada da cama, lado a lado, e observamos a figura silenciosa diante de nós, enquanto apreciávamos nosso cordial de amoras, e ela me contou a história de Margaret Campbell

Margaret Campbell nasceu em Burntisland, há menos de oito quilômetros de Edimburgo, do outro lado do estuário do Forth. Na época da Revolução de 1745, quando Carlos Stuart entrou em Edimburgo para reclamar o trono do pai, ela era uma jovem de dezessete anos.

— O pai dela era partidário do rei, é claro, e seu irmão estava em um regimento do governo, marchando para o norte para debelar os rebeldes - disse a srta. Cowden, tomando um gole ínfimo do seu cordial para fazê-lo durar. — Mas não a srta Margaret. Não, ela era simpatizante do príncipe Carlos e dos homens das Highlands que o seguiam.

Em particular, de um deles, embora a srta. Cowden não soubesse seu nome. Mas devia ter sido um belo homem, pois a srta. Margaret saiu furtivamente de casa para se encontrar com ele e passou-lhe todas as informações que ela colheu das conversas de seu pai e dos amigos dele, bem como das cartas de seu irmão para a família.

Então, veio Falkirk; uma vitória, mas obtida a um preço muito alto, seguida de retirada. Rumores davam conta da fuga do exército do príncipe para o norte e ninguém duvidava que sua fuga levaria à destruição. A srta. Margaret, desesperada com os boatos, deixou sua casa na calada da noite na fria primavera de março e foi ao encontro do homem que amava

Agora, nesse ponto, o relato era duvidoso - se ela encontrara o sujeito e ele a rejeitara ou se ela não o encontrara a tempo e fora forçada a voltar da charneca de Culloden. De qualquer forma, ela voltou, e no dia seguinte à batalha ela havia caído nas mãos de um bando de soldados ingleses.

— Terrível, o que fizeram com ela — disse a srta. Cowden, abaixando a voz, como se a figura na poltrona pudesse ouvir. - Terrível! - Os soldados ingleses, cegos com a luxúria da caçada e da matança, perseguindo os fugitivos de Culloden, não pararam para perguntar seu nome ou as preferências de sua família. Souberam, pelo seu sotaque, que ela era escocesa e isso foi o suficiente.

Deixaram-na como morta numa vala rasa de água congelada e somente a presença casual de uma família de ciganos, escondida nos arbustos próximos por medo dos soldados, a salvou.

- Não posso deixar de pensar que foi uma lástima eles a terem salvo, embora seja um pensamento pouco cristão - murmurou a srta. Cowden.

- Caso contrário, a pobre menina poderia se desligar de suas amarras terrenas e partir feliz ao encontro de Deus. Mas do jeito que foi... - Fez um gesto desajeitado na direção da figura silenciosa e sorveu as últimas gotas do seu cordial.

Margaret sobrevivera, mas nunca mais falou. Um pouco recuperada, mas silenciosa, ela viajou com os ciganos, indo para o sul com eles, para evitarem o saque das Highlands que se seguiu a Culloden. Então, certo dia, sentada no pátio de uma espelunca, segurando a lata para recolher as moedas, enquanto os ciganos cantavam e dançavam, ela foi encontrada por seu irmão, que parara com seu regimento Campbell para descansar, no caminho de volta a seu quartel em Edimburgo.

— Ela o reconheceu e ele também a reconheceu, e o choque do reencontro lhe devolveu a voz, mas não a mente, pobre coitada. Ele a levou para casa, é claro, mas ela parecia estar sempre no passado, algum tempo antes de conhecer o escocês das Highlands. Seu pai já estava morto, da epidemia de gripe, e Tilly Lawson disse que o choque de vê-la matou sua mãe também, mas pode ter sido a gripe também, que matou muita gente naquele ano.

O caso deixara Archibald Campbell profundamente amargurado tanto com os escoceses das Highlands quanto com o exército inglês, e ele pediu demissão de seu posto. Com os pais mortos, ele viu-se razoavelmente rico, mas era o único sustento para sua irmã doente.

- Ele não pôde casar - a srta. Cowden explicou -, por que uma mulher iria querer se casar com ele, levando uma irmã doente de quebra?

- Fez um sinal com a cabeça em direção à lareira.

Em seu infortúnio, ele voltou-se para Deus e tornou-se ministro. Incapaz de deixar sua irmã ou de suportar o confinamento da casa da família em Burntisland com ela, ele comprou uma carruagem, contratou uma mulher para tomar conta de Margaret e começou a fazer viagens curtas pelos arredores para pregar, muitas vezes levando-a com ele.

Ele foi muito bem-sucedido em seus sermões e este ano fora convidado pela Associação dos Missionários Presbiterianos a fazer sua mais longa viagem até então, para as índias Ocidentais, para organizar igrejas e nomear presbíteros nas colônias de Barbados e Jamaica. Orações lhe deram sua resposta. Ele vendeu a propriedade da família em Burntisland e mudou-se com sua irmã para Edimburgo, enquanto faz os preparativos para a viagem.

Olhei novamente para a figura junto à lareira. O ar quente que vinha do fogo agitava a barra de suas saias, mas à exceção desse pequeno movimento, ela poderia ser uma estátua.

- Bem - eu disse com um suspiro -, receio que não haja muito que eu possa fazer por ela. Mas lhe darei algumas prescrições de medicamentos, receitas, quero dizer, para serem aviadas na botica antes de partirem.

Se não ajudassem, não fariam mal, refleti, enquanto anotava as curtas listas de ingredientes. Camomila, lúpulo, arruda, tanaceto e verbena, com uma boa pitada de menta, para um tônico calmante. Chá de frutos da roseira, para ajudar a corrigir a leve deficiência nutricional que eu observara - gengivas esponjosas e sangrando, e feições pálidas e inchadas.

— Quando chegarem às índias — eu disse, entregando o papel à srta. Cowden -, cuide para que ela coma muitas frutas: laranjas e limões, principalmente. Você devia fazer o mesmo - acrescentei, provocando um olhar de profunda desconfiança no rosto largo da criada. Eu duvidava que ela comesse qualquer alimento vegetal além de cebola ou batata ocasionalmente, fora o seu mingau de aveia diário.

O reverendo Campbell não retornara e não vi nenhuma razão para esperar por ele. Despedindo-me da srta. Campbell, abri a porta do quarto e deparei-me com o Jovem Ian do outro lado.

- Ah! - ele exclamou, com um sobressalto. - Eu vim procurá-la, tia. São quase três e meia e tio Jamie disse...

- Jamei? - A voz veio de trás de mim, da poltrona junto à lareira.

A srta. Cowden e eu giramos nos calcanhares e vimos a srta. Campbell sentada ereta na poltrona, os olhos ainda arregalados, mas agora focados. Estavam focalizados na porta e, quando o Jovem Ian deu um passo para dentro do aposento, a srta. Campbell começou a gritar.

Um pouco transtornados pelo encontro com a srta. Campbell, o Jovem Ian e eu voltamos aliviados para nosso refúgio no bordel, onde fomos recebidos sem entusiasmo por Bruno e levados à sala de visitas. Lá, encontramos Jamie e Fergus profundamente absortos numa conversa

- Na verdade, não confiamos em sir Percival - Fergus dizia -, mas nesse caso qual o objetivo dele de avisá-lo sobre uma emboscada, a não ser que tal emboscada de fato vá ocorrer?

- Não faço a menor idéia - Jamie disse com franqueza, recostando e espreguiçando-se em sua cadeira. - Assim sendo, nós concluímos, como você diz, que há uma emboscada planejada pelos coletores de impostos. Dois dias, ele disse. Seria na enseada Mullen s. - Em seguida, ao nos ver, ele levantou-se parcialmente, fazendo sinal para que nos sentássemos.

- Será nas rochas abaixo de Balcarres, então? - Fergus perguntou. Jamie franziu a testa, pensativo, os dois dedos rígidos de sua mão direita tamborilando de leve no tampo da mesa.

— Não — respondeu finalmente. — Deve ser em Arbroath, a pequena angra sob a abadia de lá. Só para ter certeza, hein?

- Está bem. - Fergus empurrou a travessa de bolinhos de aveia quase vazia que estivera comendo e levantou-se. - Vou espalhar a notícia, milorde. Arbroath, dentro de quatro dias. — Com um aceno da cabeça para mim, jogou o manto por cima dos ombros e saiu.

- É a respeito do contrabando, tio? - o Jovem Ian perguntou ansiosamente. - Está para chegar um barco francês? - Pegou um bolinho de aveia e mordeu-o, espalhando farelos em cima da mesa.

Os olhos de Jamie ainda estavam distraídos, pensativos, mas desanuviaram-se quando olhou incisivamente para o sobrinho.

- Sim, é. E você, Jovem Ian, não vai ter nada a ver com isso.

— Mas eu poderia ajudar! - o garoto protestou. - Vai precisar de alguém para segurar as mulas, pelo menos!

- Depois de tudo que seu pai disse a mim e a você ontem, Ian? -Jamie arqueou as sobrancelhas. - Santo Deus, você tem memória curta, rapaz!

Ian pareceu levemente envergonhado e pegou outro bolinho de aveia para disfarçar seu embaraço. Vendo-o momentaneamente em silêncio, aproveitei a oportunidade para fazer minhas próprias perguntas.

— Você vai a Arbroath ao encontro de um barco francês que está trazendo bebida contrabandeada? - perguntei. - Não acha perigoso, depois do aviso de sir Percival?

Jamie olhou-me com uma das sobrancelhas erguidas, mas respondeu pacientemente.

- Não; sir Percival estava me avisando que o local de encontro daqui a dois dias é conhecido. Seria na enseada Mullens. Mas eu tenho um acordo com Jared e seus capitães. Se, por algum motivo, um encontro não puder ser realizado, o barco permanecerá em mar aberto e entrará de novo na noite seguinte, mas em um lugar diferente. E há ainda uma terceira alternativa, para o caso de o segundo encontro não se realizar.

- Mas, se sir Percival sabe do primeiro local de encontro, não saberá dos outros também? - insisti.

Jamie meneou a cabeça e serviu um copo de vinho. Levantou uma sobrancelha para mim perguntando se eu queria um pouco e, como eu sacudi a cabeça, ele mesmo tomou um pequeno gole.

- Não - respondeu. - Os locais de encontro são sempre combinados em conjuntos de três, entre mim e Jared, enviados por carta lacrada dentro de um pacote endereçado a Jeanne, aqui. Depois de ler a carta, eu a queimo. Todos os homens que ajudarão no encontro com o barco sabem o primeiro local, é claro, imagino que algum deles tenha deixado alguma coisa vazar — acrescentou, franzindo a testa para seu copo. — Mas ninguém, nem mesmo Fergus, conhece as outras duas localizações, a menos que tenhamos que usar uma delas E quando a usamos, todos os homens sabem muito bem manter a boca fechada.

- Mas então tem que ser seguro, tio! - o Jovem Ian disse inopinadamente. — Por favor, deixe-me ir! Ficarei bem longe do caminho — prometeu.

Jamie dirigiu um olhar ligeiramente mal-humorado a seu sobrinho

- Sim, você irá - ele disse. - Virá comigo até Arbroath, mas você e sua tia ficarão na estalagem na estrada acima da abadia até terminarmos. Tenho que levar o garoto de volta para casa em Lallybroch, Claire - explicou, virando-se para mim. - E consertar a situação da melhor maneira que puder com os pais dele.

Ian pai deixara o Halliday’s naquela manhã, antes de Jamie e o Jovem Ian chegarem, sem deixar recado, mas presumivelmente de volta para casa.

- Não vai se importar com a viagem? Eu não pediria, você tendo acabado de chegar da viagem de Inverness - seus olhos encontraram os meus com um ligeiro sorriso conspirador —, mas tenho que levá-lo de volta o mais rápido possível.

- Não me importo absolutamente - assegurei-lhe. - Vai ser bom ver Jenny e o resto da família outra vez.

- Mas tio - começou o Jovem Ian intempestivamente. - E se eu...

- Cale-se! - Jamie interrompeu-o rispidamente. - Não quero ouvir nem mais uma palavra sua, rapaz. Nem uma palavra, ouviu?

O Jovem Ian pareceu magoado, mas pegou outro bolinho e enfiou-o na boca ostensivamente, mostrando sua intenção de permanecer em completo silêncio.

Jamie relaxou e sorriu para mim.

- Bem, e como foi sua visita à louca?

- Muito interessante - eu disse. - Jamie, conhece alguém da família Campbel?

— Não mais do que trezentas ou quatrocentas pessoas — ele disse, um sorriso torcendo a boca larga. — Tem em mente algum Campbell em particular?

- Uns dois - Contei-lhe a história de Archibald Campbell e sua irmã, Margaret, como me foi relatada por Nellie Cowden.

Ele sacudiu a cabeça diante da história e suspirou. Pela primeira vez, ele pareceu realmente mais velho, o rosto crispado e sulcado pelas lembranças

— Não é a pior história que eu já ouvi, de tudo que aconteceu em Culloden — ele disse. — Mas não acho... espere. — Parou, olhou para mim, os olhos apertados enquanto refletia. - Margaret Campbell. Margaret Seria uma garota magrinha, talvez a metade do tamanho da segunda Mary? Com cabelos castanhos macios como as penas de uma cambaxirra e um rosto muito meigo?

- Provavelmente era, há vinte anos - eu disse, pensando naquela figura gorda, imóvel, sentada junto à lareira. - Por quê? Você a conhece, afina?

- Sim, acho que sim. - Franziu a testa, pensativamente, olhando para a mesa, desenhando uma linha aleatória pelos farelos esparramados - Sim, se estou certo, ela era a namorada de Ewan Cameron. Lembra-se de Ewan?

- Claro. - Ewan era um homem bonito, alto e brincalhão, que trabalhara com Jamie em Holyrood, reunindo informações de inteligência que se filtravam dos ingleses. - O que aconteceu com Ewan? Ou não devo perguntar? - eu disse, vendo o rosto de Jaime anuviar-se.

- Os ingleses o fuzilaram - ele disse a meia-voz. - Dois dias depois de Culloden. — Fechou os olhos por um instante, em seguida abriu-os outra vez e sorriu para mim com um ar cansado - Bem, então, que Deus abençoe o reverendo Archie Campbell. Ouvi falar dele, uma ou duas vezes, durante a revolução. Era um soldado arrojado, dizem, e corajoso. Imagino que precise continuar sendo agora, coitado. — Permaneceu sentado por mais algum tempo, depois se levantou decididamente

— Sim, bem, há muita coisa a fazer antes de deixarmos Edimburgo. Ian, você encontrará a lista de fregueses da gráfica lá no quarto, em cima da mesa. Vá buscá-la para mim e eu marcarei para você os que tinham trabalhos em andamento. Você tem que ir procurá-los, um por um, e oferecer-lhes a devolução do dinheiro. A menos que prefiram esperar até eu me instalar outra vez em outro local Mas isso pode levar até dois meses, diga a eles

Deu uns tapas no casaco e ouviu-se um barulhinho tilintante.

- Felizmente, o dinheiro do seguro dará para devolver o que os fregueses pagaram e ainda sobrará um pouco. Por falar nisso — virou-se e sorriu para mim -, sua função, Sassenach, é encontrar uma costureira que faça um vestido decente para você em dois dias Porque eu acho que Daphne vai querer que você devolva o vestido dela e eu não posso levá-la de volta para Lallybroch nua.

 

A principal distração da viagem para o norte, em direção a Arbroath, era observar o conflito de vontades entre Jamie e o Jovem Ian. Eu sabia de longa experiência que a teimosia era um dos principais componentes do caráter dos Fraser. Ian parecia igualmente afetado nesse aspecto, embora fosse apenas em parte um Fraser, ou os Murray não eram nada diferentes em relação à teimosia ou os genes dos Fraser eram muito fortes.

Tendo tido a oportunidade de observar Brianna de perto durante muitos anos, eu tinha a minha própria opinião sobre isso, mas me mantive calada, apenas me divertindo com o espetáculo de Jamie ter, ao menos uma vez, encontrado alguém à sua altura. Quando ultrapassamos Balfour, ele já exibia uma expressão atormentada.

Esse empate entre objeto irremovível e força irresistível continuou até o começo da noite do quarto dia, quando chegamos a Arbroath e descobrimos que a estalagem onde Jamie pretendia que eu e Ian ficássemos já não existia. Restava apenas uma parede desmoronada e uma ou duas vigas do teto carbonizadas, assinalando o local, fora isso, a estrada continuava deserta por quilômetros em qualquer direção.

Jamie olhou para o monte de pedras em silêncio por algum tempo. Era evidente que ele não poderia simplesmente nos deixar no meio de uma estrada desolada e enlameada. Ian, bastante esperto para não abusar da sorte, permaneceu em silêncio, embora sua compleição magricela vibrasse perceptivelmente de ansiedade.

— Está bem, então — Jamie disse finalmente, resignado — Vocês vêm comigo. Mas apenas até a beira do penhasco, Ian, você me ouviu? Você tomará conta de sua tia.

- Ouvi, tio Jamie - o Jovem Ian respondeu, com enganadora docilidade. Mas eu percebi o olhar de soslaio de Jamie e compreendi que se Ian devia tomar conta da tia, a tia também deveria tomar conta de Ian. Reprimi um sorriso, assentindo obedientemente.

O resto dos homens chegou pontualmente ao local de encontro no penhasco, logo após escurecer. Dois homens pareceram-me vagamente familiares, mas a maioria eram vultos obscuros, já haviam se passado dois dias da lua nova, mas a finíssima lasca que se erguia no horizonte tornava as condições no local pouco mais iluminadas do que as obtidas nas adegas do bordel. Nenhuma apresentação foi feita, os homens cumprimentando Jamie com resmungos e grunhidos ininteligíveis.

No entanto havia uma figura inconfundível. Uma enorme carroça puxada por mulas surgiu, chocalhando ao longo da estrada, guiada por Fergus e uma minúscula sombra que só poderia ser o sr. Willoughby, a quem eu não via desde que ele atirara no homem misterioso nas escadas do bordel.

- Espero que ele não esteja carregando uma pistola com ele esta noite - murmurei para Jamie.

- Quem? - ele disse, estreitando os olhos na escuridão. - Ah, o chinês? Não, nenhum deles. — Antes que eu pudesse perguntar por que não, ele se adiantara, para ajudar a carroça a fazer meia-volta, pronta para partir em disparada na direção de Edimburgo, assim que o contrabando fosse carregado. O Jovem Ian abriu caminho para a frente e eu, ciente da minha função de guardiã, o segui.

O sr. Willoughby ficou na ponta dos pés para alcançar a parte de trás da carroça, emergindo com uma lanterna estranha, dotada de uma tampa de metal perfurada e laterais deslizantes de metal.

- É uma lanterna furta-fogo? - perguntei, fascinada.

- É, sim - disse o Jovem Ian, sentindo-se importante. - Mantemos as laterais fechadas até vermos o sinal no mar. - Ele pegou a lanterna. - Me dê a lanterna; eu fico com ela, eu sei o sinal.

O sr. Willoughby simplesmente meneou a cabeça, tirando a lanterna da mão do Jovem Ian.

— Alto demais, jovem demais — ele disse. — Tsei-mi disse que não — acrescentou, como se isso encerrasse definitivamente o assunto.

- O quê? - O Jovem Ian estava indignado. - O que quer dizer com alto demais e jovem demais, seu...

- Ele quer dizer - disse uma voz perfeitamente controlada atrás de nós - que quem segura a lanterna é um ótimo alvo, caso tenhamos visitas. O sr. Willoughby gentilmente corre o risco, porque ele é o menor de todos nós. Você é suficientemente alto para ser visto de longe, pequeno Ian, e jovem demais para ter bom senso. Fique fora do caminho, ouviu?

Jamie deu um leve tapa no ouvido do sobrinho e seguiu em frente, para ajoelhar-se ao lado do sr. Willoughby nas rochas. Disse algo em voz baixa em chinês e viu-se a sombra de uma risada no rosto do homenzinho. O sr. Willoughby abriu a lateral da lanterna, segurando-a adequadamente para as mãos em concha de Jamie. Um rápido estalido, repetido duas vezes, e eu vi o brilho das faíscas arrancadas da pederneira.

Era uma parte erma da costa - não era de surpreender, a maior parte do litoral da Escócia era rochoso e deserto -, e eu me perguntei onde e quando o barco francês ancoraria. Não havia enseada, apenas uma curva na linha costeira, atrás de um penhasco proeminente que protegia aquele ponto da visão da estrada.

Apesar da escuridão, eu podia ver as linhas brancas da arrebentação movimentando-se ritmadamente na pequena meia-lua da praia. Não era uma plácida praia de turistas — pequenos bolsões de areia espalhavam-se desordenadamente, enchendo-se e esvaziando-se com a espuma agitada, entre montículos de algas, cascalhos e ressaltos de pedras salientes e cortantes. Um lugar difícil de ser percorrido por homens carregando barris, mas conveniente pelas fissuras no rochedo à volta, onde a mercadoria podia ser escondida.

Outro vulto negro assomou de repente a meu lado.

— Todos estão em seus postos, senhor — o vulto disse em voz baixa. — Nas rochas.

- Ótimo, Joey. - Um clarão repentino iluminou o perfil de Jamie, atento ao pavio que acabara de acender. Ele prendeu a respiração conforme a chama crescia e se firmava, absorvendo o óleo do reservatório da lanterna, em seguida soltou-a com um suspiro, enquanto fechava cuidadosamente o dispositivo lateral. - Ótimo - repetiu, levantando-se. Ergueu os olhos para o penhasco ao sul, observando as estrelas acima, e disse: — Quase nove horas. Logo entrarão na enseada. Veja bem, Joey, ninguém deve se mexer até eu chamar, entendeu?

— Sim, senhor. — O tom descontraído da resposta deixou claro que esta era uma troca de palavras costumeira e Joey ficou bastante surpreso quando Jamie agarrou seu braço.

— Certifique-se disso —Jamie disse. — Diga a todos eles outra vez: ninguém se mexe até eu dar a ordem.

- Sim, senhor -Joey disse novamente, mas desta vez com mais respeito. Ele desapareceu na noite, sem fazer nenhum ruído nas rochas.

- Alguma coisa errada? - perguntei, erguendo a voz apenas o suficiente para ser ouvida acima das ondas. Embora a praia e os rochedos estivessem evidentemente desertos, o cenário escuro e a conduta furtiva de meus companheiros suscitavam cautela.

Jamie sacudiu ligeiramente a cabeça; ele estava certo em relação ao Jovem Ian, pensei - sua própria silhueta escura estava nítida contra o céu ligeiramente mais claro atrás dele.

- Não sei. - Hesitou por um instante, depois disse: - Diga-me, Sassenach, sente algum cheiro?

Surpresa, inspirei fundo, prendi o ar por um instante e soltei-o. Senti vários odores, inclusive de algas apodrecidas, o cheiro denso de óleo queimado da lanterna e o penetrante odor corporal do Jovem Ian, de pé ao meu lado, suando com um misto de empolgação e medo.

- Nada estranho, acho que não - eu disse. - E você?

Os ombros em silhueta ergueram-se e baixaram-se num gesto de incerteza.

- Agora não. Mas um instante atrás, eu poderia jurar que senti cheiro de pólvora.

- Não senti cheiro de nada - o Jovem Ian disse. Sua voz falhou com a ansiedade e ele apressadamente limpou a garganta, constrangido. — Willie MacLeod e Alecayes deram uma busca nas rochas. Não viram nenhum sinal de guardas da alfândega.

- Sim, bem. - A voz de Jamie soou inquieta. Virou-se para o Jovem Ian, segurando-o pelo ombro. — Ian, agora você tem que tomar conta de sua tia. Vocês dois escondam-se naquelas moitas lá. Fiquem bem longe da carroça. Se alguma coisa acontecer...

O começo de um protesto de Ian foi interrompido, aparentemente por um aperto mais forte da mão de Jamie em seu ombro, pois o rapaz deu um salto para trás com um pequeno grunhido, esfregando o ombro.

— Se alguma coisa acontecer —Jamie continuou, enfaticamente —, você deve levar sua tia direto para Lallybroch. O mais rápido possível.

- Mas... - comecei a dizer.

— Tio! — disse o Jovem Ian.

- Faça isso -Jamie disse, a voz cortante como aço, e virou-se, encerrando a discussão.

O Jovem Ian exibia um ar raivoso e sombrio na subida pela trilha do penhasco, mas cumpriu suas ordens, obedientemente escoltando-me até uma certa distância depois das moitas e encontrando um pequeno promontório de onde tínhamos alguma visão da água.

- Podemos ver daqui - ele sussurrou desnecessariamente.

De fato, podíamos. As pedras derramavam-se pela encosta até uma tigela rasa embaixo de nós, uma xícara despedaçada cheia de escuridão, a luz da água derramando-se da borda quebrada onde o mar entrava com um assobio. Uma única vez percebi um minúsculo movimento, como se uma fivela de metal tivesse refletido a luz fraca, mas de um modo geral os dez homens lá embaixo estavam completamente invisíveis.

Estreitei os olhos, tentando descobrir o lugar onde o sr. Willoughby estava com sua lanterna, mas não vi nenhum sinal de luz e concluí que ele devia estar de pé atrás da lanterna, protegendo-a da visão do penhasco.

O Jovem Ian enrijeceu-se repentinamente ao meu lado.

- Vem vindo alguém! - sussurrou. - Depressa, atrás de mim! — Posicionando-se corajosamente à minha frente, enfiou a mão dentro da camisa, na faixa do cós de suas calças, e retirou uma pistola; apesar de escuro, pude ver a leve claridade das estrelas ao longo do cano da arma.

Ele preparou-se, espreitando a escuridão, ligeiramente arqueado sobre a arma, que segurava firmemente com as duas mãos.

- Não atire, pelo amor de Deus! - sussurrei em seu ouvido. Não ousei agarrar seu braço por medo de fazer a arma disparar, mas estava apavorada com a possibilidade de ele fazer qualquer barulho que pudesse atrair atenção para os homens lá embaixo.

— Eu agradeceria se você obedecesse a sua tia, Ian — ouviu-se o tom suave e irônico de Jamie da escuridão abaixo da beira do penhasco. Também gostaria que não explodisse o topo de minha cabeça, sim?

Ian abaixou a pistola, os ombros desmoronando com o que poderia ser tanto um suspiro de alívio quanto de decepção. As moitas sacudiram-se e em seguida Jamie estava diante de nós, tirando os carapichos da manga de seu casaco.

- Ninguém lhe disse para não vir armado? - A voz de Jamie era branda, apenas com um leve tom de interesse acadêmico. - É um crime que pode levar à forca apontar uma arma para um guarda da alfândega do rei explicou, virando-se para mim. - Nenhum dos homens está armado, nem mesmo com uma faca de pescador, no caso de serem presos.

- Bem, sim, Fergus disse que não me enforcariam porque ainda nem tenho barba - Ian disse, envergonhado. - Eu seria apenas extraditado, ele disse.

Ouviu-se um som sibilante quando Jamie inspirou com força pelo meio dos dentes, em sinal de exasperação.

— Ah, sim, e tenho certeza de que sua mãe ficará muito satisfeita em saber que você foi despachado para as colônias, mesmo que Fergus tenha razão! - Estendeu a mão. - Me dê isso, idiota.

”E onde foi que você conseguiu uma pistola?”, ele perguntou, revirando a arma na mão. ”Já preparada, também. Eu sabia que havia sentido cheiro de pólvora. Teve sorte de não arrancar seu pau, carregando-a dentro das calças.”

Antes que Ian pudesse responder, eu interrompi, apontando para o mar.

- Olhe!

O barco francês era pouco mais do que uma mancha na superfície da água, mas suas velas resplandeciam palidamente sob a claridade das estrelas. O brigue de duas velas deslizou lentamente pela frente do penhasco e parou ao largo, silencioso como uma das nuvens espalhadas no horizonte.

Jamie não estava observando o barco, mas olhando para baixo, para um ponto onde a face da rocha despedaçava-se em um desmoronamento de grandes pedras arredondadas, logo acima da areia. Olhando na mesma direção, pude distinguir apenas uma minúscula emulação de luz. O sr. Willoughby com a lanterna.

Viu-se um rápido clarão de luz que reluziu pelas rochas molhadas e desapareceu. A mão do Jovem Ian segurava meu braço, tensa. Aguardamos, a respiração suspensa, a contagem até trinta. A mão de Ian apertou meu braço, quando outro clarão iluminou a espuma na areia.

— O que era aquilo? — perguntei

- O quê? - Jamie não estava olhando para mim, mas para o barco a distância

— Na praia. Quando a luz piscou, acho que vi alguma coisa meio enterrada na areia. Parecia...

Veio o terceiro clarão e, um instante depois, uma luz de resposta brilhou do navio - uma lanterna azul, um ponto fantasmagórico pendurado no mastro, duplicando-se no reflexo nas águas escuras abaixo.

Esqueci a rápida visão do que parecera ser uma trouxa de roupas, descuidadamente enterrada na areia, no entusiasmo de observar o barco. Algum movimento era evidente agora e um leve som de objeto jogado na água chegou aos nossos ouvidos quando alguma coisa foi atirada pela borda da embarcação

— A maré está entrando —Jamie murmurou no meu ouvido. — Os barris flutuam, a corrente os trará à praia em alguns minutos

Isso resolvia o problema da ancoragem do barco - não era necessária. Mas, então, como era feito o pagamento? Eu estava prestes a perguntar quando se ouviu um grito repentino e tudo virou um pandemônio lá embaixo.

Jamie lançou-se imediatamente pelo meio das moitas, seguido de perto por mim e o Jovem Ian. Pouco podia ser visto com distinção, mas um tumulto considerável ocorria na praia arenosa. Vultos escuros tropeçavam e rolavam na areia, acompanhados por uma grande gritaria. Captei as palavras: ”Pare, em nome do rei!”, e meu sangue gelou.

— Guardas alfandegários! — O Jovem Ian também ouvira.

Jamie disse algo grosseiro em gaélico, depois lançou a cabeça para trás e ele mesmo gritou, a voz facilmente levada pela praia abaixo.

- Émch ’dlean! - berrou a plenos pulmões. - Suas am bearrach is teich! A seguir, voltou-se para mim e Ian.

— Vão! — disse.

O alvoroço aumentou subitamente quando o barulho de pedras caindo uniu-se à gritaria. De repente, uma figura escura saltou do meio das moitas junto a meus pés e partiu pela escuridão a toda a velocidade Outra seguiu-se, a alguns passos de distância.

Um grito estridente veio da escuridão embaixo, suficientemente alto para ser ouvido acima dos outros barulhos

- Foi Willoughby! - exclamou o Jovem Ian - Eles o pegaram! Ignorando a ordem de Jamie para que fugíssemos, nos agarramos um ao outro e avançamos, para espreitar pela cortina da vegetação. A lanterna furta-fogo caíra, inclinada, e a proteção lateral abriu-se, enviando um raio de luz como um projetor sobre a praia, onde as sepulturas rasas em que os homens da alfândega haviam se escondido escancaravam-se na areia. Vultos escuros oscilavam e lutavam e gritavam em meio aos montículos de algas encharcadas. Um clarão turvo em volta da lanterna era suficiente para mostrar duas figuras engalfinhadas, a menor esperneando freneticamente enquanto era levantado do chão.

— Vou pegá-lo! — O Jovem Ian deu um salto para a frente, apenas para ser puxado para cima com um safanão quando Jamie pegou-o pela gola.

- Faça o que mandei e leve minha mulher daqui em segurança! Tentando recuperar o fôlego, o Jovem Ian virou-se para mim, mas eu não pretendia ir a lugar algum e finquei os pés no chão, resistindo à força com que puxava meu braço.

Ignorando ambos, Jamie virou-se e saiu correndo pelo alto do penhasco, parando a alguns metros de distância. Pude ver claramente sua silhueta contra o céu, quando se agachou sobre um dos joelhos e preparou a pistola, apoiando-a no antebraço para mirar para baixo.

O barulho do tiro não passou de um pequeno estalido, perdido no meio do tumulto. O resultado, entretanto, foi espetacular. A lanterna explodiu numa chuva de óleo fervente, repentinamente escurecendo a praia e silenciando a gritaria

O silêncio foi quebrado em poucos segundos por um uivo, misto de dor e indignação. Meus olhos, momentaneamente cegos pelo clarão da lanterna, adaptaram-se rapidamente e eu vi outra claridade - a luz de várias chamas pequenas, que pareciam mover-se erraticamente para cima e para baixo. Quando minha visão noturna clareou-se, vi que as chamas erguiam-se da manga do casaco de um homem, que sapateava para cima e para baixo enquanto uivava, batendo inutilmente no fogo iniciado pelo óleo fervente que respingara nele.

A vegetação em volta estremeceu violentamente quando Jamie lançou-se pela beira do penhasco e perdeu-se de vista no paredão do rochedo abaixo.

— Jamie!

Despertado pelo meu grito, o Jovem Ian puxou-me com mais força, quase me derrubando e arrastando-me violentamente para fora do penhasco.

— Vamos, tia! Eles vão chegar aqui em cima agora mesmo!

Isso era verdade; eu podia ouvir os gritos na praia aproximando-se, à medida que os homens subiam em bando pelas pedras. Juntei minhas saias e corri, seguindo o garoto o mais rápido que podia através do mato áspero do topo do penhasco.

Eu não sabia para onde estávamos indo, mas o Jovem Ian parecia saber. Ele tirara o casaco e sua camisa branca era facilmente visível à minha frente, flutuando como um fantasma através dos bosquetes cerrados de amieiros e vidoeiros que cresciam mais para dentro da região.

- Onde estamos? - perguntei, ofegante, alcançando-o quando ele diminuiu a carreira à margem de um minúsculo córrego

— A estrada para Arbroath fica logo adiante — ele disse. Respirava com dificuldade e via-se uma mancha escura de lama ao longo da lateral de sua camisa - Ficará mais fácil daqui a pouco. Você está bem, tia? Quer que eu a carregue para a outra margem?

Educadamente recusei a galante oferta, observando comigo mesma que ele certamente pesava tanto quanto eu. Tirei meus sapatos e meias e fui vadeando o riacho até o outro lado, com água na altura dos joelhos, sentindo a lama gelada do leito em meus dedos.

Eu tremia violentamente quando emergi na outra margem e aceitei a oferta que Ian fez de seu casaco — agitado como estava, e aquecido pelo exercício, ele obviamente não precisava de agasalho. Eu estava enregelada não só por causa da água e do frio do vento de novembro, mas de medo do que poderia estar acontecendo às nossas costas.

Alcançamos a estrada ofegantes, o vento soprando frio em nossos rostos. Meu nariz e lábios logo ficaram dormentes e meus cabelos esvoaçavam soltos atrás de mim, pesados em meu pescoço. Mas era um vento maligno que não soprava nada de bom; ele trouxe o som de vozes até nós, momentos antes de nos depararmos com dois homens.

- Algum sinal do penhasco? - uma voz masculina grave perguntou, Ian parou tão bruscamente que eu choquei-me contra ele.

- Ainda não - veio a resposta. - Achei ter ouvido gritos daquele lado, mas depois o vento mudou de direção.

— Bem, suba nessa árvore outra vez, molenga — a primeira voz disse impacientemente. - Se algum dos filhos-da-mãe passar pela praia, nós o pegaremos aqui. Seria melhor que nós ficássemos com o dinheiro da recompensa do que aqueles sujeitos na praia.

— Está frio — resmungou a segunda voz — Aqui ao relento onde o vento penetra nos ossos. Quisera ter ficado de guarda na abadia, ao menos lá estaria quente

A mão do Jovem Ian agarrava a parte de cima do meu braço com força suficiente para deixar marcas. Puxei o braço, tentando afrouxar o aperto de sua mão, mas ele não prestou nenhuma atenção

- Sim, porém menos provável de pegar o peixe grande - a primeira voz disse. — Ah, o que eu poderia fazer com cinqüenta libras!

— Está bem — disse a segunda voz, resignada. — Embora como vamos poder ver cabelos vermelhos no escuro, não faço a menor idéia.

— Apenas pegue-os pelos calcanhares, Oakie. Olharemos para as cabeças depois.

O Jovem Ian finalmente despertou de seu transe com meus puxões na manga de sua camisa e veio tropeçando atrás de mim para fora da estrada e para o meio da vegetação.

- O que queria dizer com a guarda da abadia? - perguntei, assim que achei que já não podíamos ser ouvidos pelas sentinelas na estrada - Você sabe?

A cabeleira escura do Jovem Ian balançou para cima e para baixo

- Acho que sim, tia. Deve ser a abadia de Arbroath. É o ponto de encontro

- Ponto de encontro?

- Se algo der errado - ele explicou. - Então é cada um por si, devendo todos se reencontrar na abadia assim que puderem.

- Bem, não poderia dar mais errado - observei. — O que foi que seu tio gritou quando os guardas da alfândega surgiram?

O Jovem Ian virara-se parcialmente para ouvir se vinha alguém da estrada, perseguindo-os; em seguida, o oval pálido de seu rosto voltou-se novamente para mim.

- Ah, ele disse- ”Subam, rapazes! Para cima do penhasco e corram!”

- Bom conselho — eu disse secamente. - Portanto, se o seguiram, a maioria dos homens pode ter escapado.

- Exceto tio Jamie e o sr. Willoughby. - O Jovem Ian passava a mão nervosamente pelos cabelos; lembrava-me de Jamie e eu gostaria que ele parasse.

- Sim. - Respirei fundo. - Bem, não há nada que você e eu possamos fazer por eles no momento Mas quanto aos outros homens... se estão indo para a abadia...

- Sim - ele interrompeu -, isso é o que eu estava tentando decidir; se devo fazer o que tio Jamie disse e levá-la a Lallybroch ou se deveria tentar chegar à abadia depressa e avisar os outros conforme chegassem?

— Vá à abadia o mais rápido que puder

- Sim, mas eu não gostaria de deixá-la aqui sozinha, tia, e o tio Jamie disse...

— Há o momento de seguir ordens, Jovem Ian, e o momento de pensar por si mesmo - eu disse com firmeza, diplomaticamente ignorando o fato de que eu na verdade estava pensando por ele. - Esta estrada leva à abadia?

— Sim. Não mais do que dois quilômetros. — Ele já arrastava os pés, inquieto, ansioso para partir.

- Ótimo. Você pegue um desvio da estrada e dirija-se à abadia. Eu seguirei diretamente pela estrada e verei se posso distrair os guardas até você passar. Eu o encontrarei na abadia. Ah, espere, é melhor levar o seu casaco.

Entreguei o casaco com relutância: além de detestar me separar de seu calor, parecia que eu estava abrindo mão do meu último vínculo com a presença de um ser humano amigável. Depois que o Jovem Ian partisse, eu estaria completamente sozinha na escuridão fria da noite escocesa.

- Ian? - Eu segurava seu braço, para mantê-lo ali por mais um instante.

- Sim?

- Tenha cuidado, sim? — Movida por um impulso, fiquei na ponta dos pés e beijei seu rosto frio. Eu estava suficientemente perto para ver suas sobrancelhas arquearem-se de surpresa. Ele sorriu e, em seguida, desapareceu, um galho de amieiro voltando ao seu lugar depois que ele passou.

Fazia muito frio. Os únicos sons eram o zumbido do vento através dos arbustos e o murmúrio distante das ondas quebrando-se na praia. Enrolei o xale de lã com mais força em volta dos ombros, tremendo, e voltei na direção da estrada.

Deveria fazer algum barulho?, perguntei-me. Caso contrário, eu poderia ser atacada de surpresa, já que os homens de tocaia poderiam ouvir meus passos, mas não poderiam ver que eu não era um contrabandista em fuga. Por outro lado, se eu passasse caminhando tranqüilamente, cantarolando uma canção alegre para indicar que era uma mulher inofensiva, eles poderiam simplesmente permanecer escondidos em silêncio, sem querer revelar sua presença — e revelar sua presença era exatamente o que eu tinha em mente. Agachei-me e peguei uma pedra na margem da estrada. Em seguida, sentindo ainda mais frio do que antes, saí na estrada e caminhei direto em frente, em completo silêncio.

 

O vento soprava com força suficiente para manter as árvores e arbustos em constante movimento, encobrindo o som dos meus passos na estrada e o de qualquer outra pessoa que pudesse estar me seguindo. Passados menos de quinze dias do Haloween, esta era o tipo de noite escabrosa, que fazia uma pessoa acreditar facilmente que os espíritos e o mal pudessem estar à solta.

Não foi um espírito que me agarrou repentinamente por trás, a mão cobrindo minha boca com força. Se eu não estivesse preparada para tal eventualidade, teria ficado paralisada de espanto. No entanto meu coração deu um salto e eu debati-me convulsivamente nas garras do meu captor.

Ele me agarrara pela esquerda, prendendo meu braço esquerdo com força contra o lado do meu corpo, sua mão direita sobre minha boca. Entretanto o meu braço direito estava livre Lancei o salto do meu sapato contra seu joelho, entortando sua perna, e em seguida, aproveitando seu desequilíbrio momentâneo, inclinei-me para a frente e lancei o braço para trás, batendo em sua cabeça com a pedra que eu segurava na mão.

Por força das circunstâncias, foi um golpe de raspão, mas forte o suficiente para fazer meu agressor grunhir de espanto e soltar-me. Chutei e me contorci, e quando sua mão deslizou sobre minha boca, enfiei os dentes em um dedo e mordi com todas as forças.

”Os músculos do maxilar vão da crista sagital no alto do crânio até uma inserção na mandíbula”, pensei, lembrando-me vagamente da descrição de um manual de anatomia. ”Isso confere ao maxilar e aos dentes uma considerável mordedeira, de fato, o maxilar humano é capaz de exercer em média uma pressão de 150 quilos”

Não sei se eu estava superestimando a média, mas inegavelmente estava obtendo um efeito. Meu atacante atirava-se freneticamente de um lado para outro na tentativa inútil de soltar o dedo da minha mordida mortal.

Na luta, ele soltara meu braço e foi forçado a me colocar no chão. Assim que meus pés tocaram o solo outra vez, soltei sua mão, girei nos calcanhares e dei um golpe em seus testículos com meu joelho, o mais forte que pude, considerando as minhas saias

Chutar os homens nos testículos é uma forma de defesa superestimada. Quer dizer, realmente funciona — e espetacularmente bem —, mas é uma manobra mais difícil de executar do que se imagina, especialmente quando o atacante está usando saias pesadas e volumosas. Os homens são extremamente cuidadosos com essa parte de sua anatomia e estão sempre atentos a qualquer tentativa de ataque a seus apêndices.

Neste caso, entretanto, meu adversário estava desprevenido, as pernas bem abertas para manter o equilíbrio, e eu o atingi em cheio. Ele emitiu um terrível gemido, como o de um coelho estrangulado e caiu no meio da estrada, dobrado ao meio.

- É você, Sassenach? — As palavras foram sibiladas do meio da escuridão à minha esquerda. Dei um salto como uma gazela assustada e soltei um grito involuntário.

Pela segunda vez em apenas dois minutos, a mão de alguém espalmou-se sobre minha boca.

- Pelo amor de Deus, Sassenach! - Jamie murmurou no meu ouvido. Sou eu.

Não o mordi, embora me sentisse bastante tentada.

- Eu sei - eu disse, entre dentes, quando ele me soltou. - Mas quem é o outro sujeito que me agarrou?

- Fergus, eu creio. - A figura escura e amorfa afastou-se alguns passos e pareceu cutucar outra forma deitada na estrada, gemendo debilmente. É você, Fergus? — ele sussurrou. Recebendo uma espécie de ruído estrangulado em resposta, ele inclinou-se e ajudou o segundo vulto a ficar de pé.

- Não falem! - avisei-os, num sussurro. - Há guardas ali em frente!

- É mesmo? - Jamie disse, em voz normal. - Não parecem muito curiosos com o barulho que estamos fazendo, não é?

Parou, como se esperasse por uma resposta, mas não se ouviu nenhum som, além do lamento baixo do vento nos arbustos. Colocou a mão no meu braço e gritou na noite.

- MacLeod! Raeburn!

- Sim, Roy - disse uma voz levemente irritada nos arbustos. - Estamos aqui. Innes, também, e Meldrum, não é?

- Sim, sou eu.

Pisando com cautela e falando baixo, outras figuras emergiram do meio dos arbustos e árvores.

— ...quatro, cinco, seis —Jamie contou. — Onde estão Hays e os Gordon?

- Vi Hayes entrar na água - uma das figuras respondeu. - Deve ter dado a volta na ponta. É provável que os Gordon e Kennedy também tenham feito isso. Não ouvi nada que indicasse que foram presos.

- Muito bem -Jamie disse. - Agora, Sassenach, que história é essa de guardas?

Considerando o não-aparecimento de Oakie e seu companheiro, eu comecei a me sentir meio idiota, mas relatei o que Ian e eu ouvíramos.

— E? — Jamie pareceu interessado. - Pode ficar de pé, Fergus? Pode? Ótimo, rapaz. Bem, talvez seja melhor dar uma olhada. Meldrum, tem uma pederneira aí com você?

Alguns instantes depois, com uma pequena tocha que lutava para permanecer acesa na mão, ele avançou a passos largos pela estrada e dobrou a curva. Os contrabandistas e eu esperamos em silêncio, prontos para correr ou para ir em seu auxílio, mas não se ouviu nenhum barulho de emboscada. Depois do que pareceu uma eternidade, a voz de Jamie flutuou de volta ao longo da estrada.

- Podem vir - ele disse, parecendo calmo e controlado.

Ele estava parado no meio da estrada, perto de um grande amieiro. A luz da tocha caía à sua volta num círculo bruxuleante e, no começo, não vi nada além de Jamie. Então ouvi uma respiração pesada do homem a meu lado e um som estrangulado de horror de outro.

Outro rosto surgiu, fracamente iluminado, suspenso no ar logo atrás do ombro esquerdo de Jamie. Um rosto horrível, congestionado, escuro à luz da tocha que roubava todo vestígio de cor, os olhos esbugalhados e a língua para fora. Os cabelos, louros como palha seca, erguiam-se e agitavam-se ao vento. Senti um novo grito formar-se em minha garganta e o sufoquei.

- Você tinha razão, Sassenach — Jamie disse. - Havia realmente um guarda. - Ele atirou algo no chão, onde aterrissou com um barulho seco.

- Uma ordem de prisão - ele disse, indicando o objeto com um sinal da cabeça. - Seu nome era Thomas Oakie. Algum de vocês o conhecia?

- Não como está agora - uma voz murmurou atrás de mim. - Santo Deus, nem sua mãe o reconheceria! - Ouviu-se um murmúrio geral de negativas, com uma movimentação nervosa de pés. Obviamente, todos estavam tão ansiosos para sair do local quanto eu.

- Muito bem, então. -Jamie parou a retirada com um brusco movimento da cabeça. — A carga está perdida, portanto não haverá divisão, certo? Alguém precisa de dinheiro agora? - Enfiou a mão no bolso. Posso oferecer um pouco para se agüentarem por enquanto, porque duvido que estaremos trabalhando na costa por um bom tempo.

Um ou dois dos homens relutantemente adiantaram-se no campo de visão da forma escura pendurada na árvore para receber seu dinheiro, mas o resto dos contrabandistas dissolveu-se rapidamente na noite. Em poucos minutos, restavam apenas Fergus — ainda lívido, mas de pé sem ajuda —, eu e Jamie.

-Jesu! — Fergus murmurou, erguendo os olhos para o homem enforcado. — Quem teria feito isso?

- Eu fiz... ou assim espero que a história seja contada, certo? - Jamie olhou para cima, o rosto severo à luz bruxuleante da tocha. — Não vamos nos demorar por aqui, está bem?

— E Ian? - perguntei, lembrando-me repentinamente do garoto. — Ele foi para a abadia, para avisá-lo!

- Ele foi? - A voz de Jamie endureceu-se. - Eu vim daquela direção e não o encontrei. Para que lado ele foi, Sassenach?

- Para lá - eu disse, apontando.

Fergus emitiu um som que poderia ser uma risada.

- A abadia fica para o outro lado - Jamie disse, achando graça. Vamos, então. Nós o alcançaremos quando ele perceber seu erro e voltar.

- Esperem - Fergus disse, erguendo a mão. Ouviu-se um farfalhar cauteloso nos arbustos, seguido da voz do Jovem Ian.

- Tio Jamie?

- Sim, Ian — seu tio respondeu sarcasticamente. - Sou eu.

O garoto emergiu dos arbustos, folhas presas na cabeleira emaranhada, os olhos arregalados de agitação.

- Eu vi a luz e achei que devia voltar para ver se tia Claire estava bem — ele explicou. — Tio Jamie, não deve ficar por aí com uma tocha, há guardas por perto!

Jamie passou o braço pelos ombros do sobrinho e virou-o, antes que ele visse a figura pendurada na árvore.

— Não se preocupe, Ian — ele disse serenamente. — Já foram embora. Agitando a tocha pelo mato molhado, ele extinguiu-a com um chiado.

— Vamos — ele disse, a voz calma na escuridão. — O sr. Willoughby está lá embaixo da estrada com os cavalos, estaremos nas Highlands ao romper do dia.

 

 

                                                                                                    Diana Gabaldon

 

 

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