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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RESTAURANTE DO FIM DO UNIVERSO / Douglas Adams
O RESTAURANTE DO FIM DO UNIVERSO / Douglas Adams

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O RESTAURANTE DO FIM DO UNIVERSO

 

A estória até aqui:

No princípio o Universo foi criado.

Isso irritou muitas pessoas e foi amplamente encarado como um passo errado.

Muitas raças acreditam que ele tenha sido criado por alguma espécie de deus, embora os Jatravartids, habitantes de Viltvodle VI, acreditem que o Universo inteiro escorreu do nariz de um ser chamado Grande Resfriado Verde.

Os Jatravartids, que vivem sob o medo perpétuo do tempo que chamam de Vinda do Grande Lenço Branco, são pequenas criaturas azuis com mais de cinqüenta braços cada, o que os torna um povo singular, por ter sido o único na história a inventar o desodorante aerossol antes da roda.

A Teoria do Grande Resfriado Verde, no entanto, não é amplamente aceita fora de Viltvodle VI e assim, sendo o Universo o enigmático lugar que é, outras explicações vivem sendo procuradas.

Por exemplo, uma raça de seres pandimensionais hiperinteligentes construiu certa vez um supercomputador gigantesco chamado Pensador Profundo para calcular de uma vez por todas a Resposta à Questão Fundamental da Vida, do Universo e de Tudo.

Por sete milhões e meio de anos, Pensador Profundo computou e calculou, e por fim anunciou que a resposta de fato era Quarenta-e-dois — e assim outro computador ainda maior teve que ser construído para descobrir qual era a pergunta afinal.

E esse computador, que foi chamado de Terra, era tão grande que era frequentemente confundido com um planeta — especialmente pelos estranhos seres parecidos com macacos que perambulavam por sua superfície, totalmente ignorantes do fato de que eram simplesmente parte de um gigantesco programa de computador.

O que é muito estranho, pois sem o conhecimento desse fato básico e razoavelmente óbvio, nada do que acontecia na Terra poderia fazer o menor sentido.

Infelizmente, porém, pouco antes do momento crítico da conclusão do programa e leitura do resultado, a Terra foi inesperadamente demolida pelos vogons para dar lugar — era o que alegavam — a uma via expressa interestelar, e assim qualquer esperança de descoberta de um sentido para a vida se perdeu para sempre.

Ou era o que parecia.

Duas dessas estranhas criaturas parecidas com macacos sobreviveram.

Arthur Dent escapou no último minuto graças a um velho amigo seu, Ford Prefect, que de repente se revelou proveniente de um pequeno planeta em algum lugar nas redondezas de Betelgeuse, e não de Guildford, como vinha alegando até então; e o que vinha mais ao caso, sabia pegar carona em discos voadores.

Tricia McMillan — ou Trillian — tinha dado o fora do planeta seis meses antes com Zaphod Beeblebrox, o então Presidente da Galáxia.

Dois sobreviventes.

São tudo o que resta da maior experiência já conduzida — para descobrir a Questão Fundamental e a Resposta Fundamental da Vida, do Universo e de Tudo.

E a menos de meio milhão de quilômetros de onde sua nave espacial desliza suavemente através da escuridão do espaço, uma nave vogon move-se lentamente em direção a eles.

 

Como toda nave vogon, esta parecia mais uma matéria amorfa coagulada do que fruto de um projeto. Os desagradáveis caroços amarelos e as protuberâncias que se estendiam em ângulos repugnantes sobre ela teriam desfigurado a aparência da maioria das espaçonaves, mas neste caso isso era tristemente impossível. Coisas mais feias já foram vistas pelos céus, mas não por testemunhas confiáveis.

Na verdade, para ver algo bem mais feio que uma nave vogon, você teria que ir lá dentro e olhar para um vogon. Se você for esperto, porém, isso é precisamente o que você vai evitar, porque um vogon comum não vai pensar duas vezes antes de lhe fazer alto tão terrivelmente hediondo que você vai desejar nunca ter nascido — ou (se você for uma pessoa mais esclarecida) que o vogon nunca tivesse nascido.

Na verdade, um vogon comum provavelmente não ia pensar nem uma única vez. São criaturas burras, de pensamento curto, cérebros de lesma, e pensar não é exatamente algo para que tenham aptidão especial. Uma análise anatômica de um vogon revela que seu cérebro era originalmente um fígado dispéptico deformado, fora de lugar. A coisa mais simpática que se pode dizer a respeito deles, portanto, é que sabem do que gostam, o que geralmente envolve ferir pessoas e, sempre que possível, zangar-se muito.

Uma coisa de que não gostam é deixar um trabalho por terminar — este vogon, em particular, e — por diversas razões — este trabalho em particular.

Este vogon era o Capitão Prostetnic Vogon Jeltz, do Conselho de Planejamento do Hiperespaço Galáctico, e tinha sido ele o responsável pela demolição do assim chamado "planeta" Terra.

Suspendeu seu corpo monumentalmente vil de sua cadeirinha desajeitada e observou a tela do monitor em que a espaçonave Coração de Ouro estava constantemente focalizada.

Pouco lhe importava que a Coração de Ouro, que era movida a Improbabilidade Infinita, fosse a mais bela e revolucionária nave já construída. Estética e tecnologia eram livros fechados para ele e, se fosse o caso, livros queimados e enterrados também.

Importava-lhe ainda menos que Zaphod Beeblebrox estivesse a bordo. Zaphod Beeblebrox era agora o ex-Presidente da Galáxia, e embora todas as forças policiais da Galáxia estivessem nesse momento na perseguição tanto dele quanto da nave que ele tinha roubado, o vogon não estava interessado.

Seu problema era outro.

Diz-se que os vogons não estão acima de um pouco de suborno e corrupção da mesma forma que o mar não está acima das nuvens, o que era certamente verdadeiro no caso dele. Quando ouvia expressões como "integridade" ou "retidão moral", corria para o dicionário, e quando ouvia o tilintar de dinheiro fácil em grande quantidade corria para o livro de regras e o jogava no lixo.

Ao esforçar-se tão implacavelmente pela destruição da Terra e do que havia nela, estava agindo um pouco acima e além de seu dever profissional. Havia inclusive alguma dúvida sobre se a tal via expressa ia ser mesmo construída, mas fizeram vista grossa para esse assunto.

Grunhiu um grunhido repelente de satisfação.

— Computador — grasnou —, ponha-me em contato com meu terapeuta cerebral.

Dentro de poucos segundos o rosto de Gag Halfrunt apareceu na tela, com o sorriso de um homem que sabia estar a dez anos-luz de distância da cara do vogon que estava vendo. Misturando no sorriso havia também um toque de ironia. Embora o vogon persistisse em chamá-lo de "meu terapeuta cerebral" não havia cérebro bastante para ser tratado, e na verdade era Halfrunt que tinha contratado o vogon. Estava lhe pagando uma incrível soma de dinheiro para fazer um serviço bem sujo. Como um dos mais proeminentes e bem-sucedidos psiquiatras da Galáxia, ele e um grupo de colegas estavam totalmente preparados e dispostos a gastar uma incrível soma de dinheiro quando todo o futuro da psiquiatria parecia estar em jogo.

— Bem — disse ele —, olá, meu Prostetnic, Capitão dos Vogons, como estamos nos sentindo hoje?

O capitão vogon lhe contou que nas últimas poucas horas tinha exterminado quase metade de sua tripulação num exercício disciplinar.

O sorriso de Halfrunt permaneceu inalterado por um instante.

— Bem — disse ele —, creio que este é um comportamento perfeitamente normal para um vogon, sabe? O hábito natural e saudável de canalizar os instintos agressivos através de atos de violência sem sentido.

— Isso — resmungou o vogon — é o que você sempre diz.

— Outra vez bem — disse Halfrunt —, creio que este é um comportamento perfeitamente normal para um psiquiatra. Bom. Estamos ambos claramente muito bem ajustados em nossas atitudes mentais hoje. Agora conte-me, quais as notícias da missão?

— Localizamos a espaçonave.

— Maravilhoso — disse Halfrunt —, maravilhoso! E os ocupantes?

— O terráqueo está lá.

— Excelente! E...?

— Uma fêmea do mesmo planeta. São os últimos.

— Bom, muito bom — Halfrunt estava radiante. — Quem mais?

— OtalPrefect.

— Ê?

— E Zaphod Beeblebrox.

Por um instante o sorriso de Halfrunt se alterou.

— Ah, sim — disse ele —, eu esperava por isso. É realmente uma pena.

— Um amigo pessoal? — inquiriu o vogon, que tinha ouvido essa expressão em algum lugar e resolveu experimentá-la.

— Ah, não — disse Halfrunt —, em minha profissão, sabe, não fazemos amigos pessoais.

— Ah — grunhiu o vogon —, neutralidade profissional.

— Não — disse Halfrunt alegremente —, é só que a gente não tem jeito para essas coisas.

Fez uma pausa. Continuava sorrindo, mas franziu um pouco as sobrancelhas.

— Mas Beeblebrox, sabe, é um dos meus clientes mais lucrativos. Ele tem problemas de personalidade que ultrapassam os sonhos de qualquer analista.

Entreteve-se um pouco com essa ideia antes de abandoná-la relutantemente.

— De qualquer forma — disse —, você está preparado para sua tarefa?

— Estou.

— Muito bem. Destrua a nave imediatamente.

— E Beeblebrox?

— Bom — disse Halfrunt com vivacidade—, Zaphod é só um cara, sabe?

Ele sumiu da tela.

O capitão vogon apertou um botão de comunicação que o colocava em contato com o que restava de sua tripulação.

— Atacar — disse.

Nesse exato instante Zaphod Beeblebrox estava em sua cabine xingando muito alto. Duas horas antes ele tinha dito que iam dar uma passada para comer qualquer coisa no Restaurante do Fim do Universo, quando teve um desentendimento caloroso com o computador da nave e foi explodindo para sua cabine gritando que ia calcular os fatores de Improbabilidade na ponta do lápis.

O Motor a Improbabilidade da Coração de Ouro a tornava a nave mais poderosa e imprevisível que jamais existira. Não havia nada que ela não pudesse fazer, contanto que se soubesse o quanto exatamente era improvável acontecer a coisa que se queria que ela fizesse.

Ele a tinha roubado quando, como Presidente, estava incumbido de inaugurá-la. Não sabia exatamente por que a tinha roubado, exceto que gostava dela.

Não sabia por que se tornara Presidente da Galáxia, exceto que era uma coisa divertida de ser.

O que ele sabia era que havia motivos melhores do que esses, mas que estavam enterrados na obscura seção trancafiada de seus dois cérebros. Ele gostaria que a obscura seção trancafiada de seus dois cérebros desaparecesse porque ela vinha momentaneamente à tona e colocava pensamentos estranhos nas seções iluminadas e divertidas de sua mente e tentava desviá-lo daquilo que ele considerava como sendo a ocupação principal de sua vida, que era esbaldar-se magnificamente.

Nesse momento ele não estava se esbaldando magnificamente. Já não tinha mais paciência nem lápis e estava com muita fome.

— Porra estelar! — exclamou.

Nesse mesmo exato instante, Ford Prefect estava suspenso no ar. Não que algo estivesse errado com o campo gravitacional artificial da nave, mas porque ele estava saltando da escada que levava às cabines individuais da nave. Era um pulo considerável, e ele chegou ao chão de maneira desajeitada, tropeçou, recobrou o equilíbrio, correu pelo corredor chutando para o espaço alguns robôs miniatura, derrapou quando virou no canto, entrando de supetão na cabine de Zaphod, e explicou o que tinha em mente.

— Vogons — disse ele.

Pouco antes disso Arthur Dent tinha saído de sua cabine para pegar um chá. Não era uma busca que ele empreendesse com otimismo, porque ele sabia que a única fonte de bebidas quentes em toda a nave era uma máquina ignorante produzida pela Companhia Cibernética de Sírius. Chamava-se Sintetizadora Nutrimática de bebidas, e ele já tinha tido contato com ela antes.

Dizia-se capaz de produzir a mais ampla variedade de bebidas, adaptadas individualmente ao paladar e ao metabolismo de quem quer que se aventurasse a utilizar-se dela. Quando posta para funcionar, no entanto, invariavelmente produzia uma xícara de plástico cheia de um líquido quase, mas não totalmente, inteiramente diferente do chá.

Tentou entrar em acordo com a máquina.

— Chá — disse ele.

— Sirva-se e aproveite — retrucou a máquina, servindo-lhe uma xícara do líquido insípido.

Ele a lançou longe.

— Sirva-se e aproveite — repetiu a máquina, produzindo mais uma xícara.

"Sirva-se e aproveite" era o lema da imensamente bem-sucedida divisão de reclamações da Companhia Cibernética de Sírius, que cobre atualmente as massas continentais de três planetas de tamanho médio e é a única parte da companhia que tem mostrado lucros consistentes nos últimos anos.

Esse lema está escrito — ou melhor, estava — em letras luminosas de dois quilómetros de altura, perto do porto espacial do Departamento de Reclamações de Eadrax. Infelizmente o peso delas era tal que pouco depois de serem erigidas o chão abaixo delas cedeu, de forma que as letras afundaram na metade do seu comprimento, atravessando os escritórios de vários jovens executivos de reclamações — agora falecidos.

A metade saliente que ficou das letras agora parece dizer — na língua local — "Vá lamber sabão", e não está mais iluminada, a não ser em ocasiões especiais.

Arthur jogou fora a sexta xícara do líquido.

— Escuta, máquina — disse ele —, você diz que pode sintetizar qualquer bebida no universo, então por que fica me dando sempre essa coisa imbebível?

— Processamento de informação de paladar e nutrição — balbuciou a máquina. — Sirva-se e aproveite.

— O gosto é nojento.

— Se você gostou de experimentar essa bebida — prosseguiu a máquina — por que não compartilha esse prazer com os amigos?

— Porque — disse Arthur, mordaz — quero que continuem meus amigos. Tente entender o que eu estou tentando dizer. Essa bebida...

— Essa bebida — disse docemente a máquina — foi confeccionada individualmente para satisfazer suas necessidades pessoais de sabor e nutrição.

— Ah — disse Arthur — quer dizer que eu sou um masoquista de dieta?

— Sirva-se e aproveite.

— Ah, cala a boca.

— Está satisfeito? Arthur decidiu desistir.

— Estou — respondeu.

Aí ele resolveu que não ia desistir não, de jeito nenhum.

— Não — disse ele. — Olha, é muito simples, muito mesmo... tudo o que eu quero... é uma xícara de chá. Você vai fazer isso para mim. Fique quieta e escute.

Ele se sentou. Falou à Nutrimática sobre a índia, falou sobre a China, falou sobre o Ceilão. Falou de folhas estendidas secando ao sol. Falou de bules de prata. Falou dos gramados nas tardes de domingo. Falou de como se coloca o leite antes do chá para não talhar. Falou até (brevemente) sobre a história da Companhia das índias Orientais.

— Então é isso? — disse a Nutrimática quando ele terminou de falar.

— É — disse Arthur —, é isso que eu quero.

— Você quer o sabor de folhas secas fervidas em água?

— Bom, é. Com leite.

— Esguichado de uma vaca?

— De certo modo, é uma maneira de dizer, eu acho...

— Vou precisar de uma mãozinha para isso — disse a máquina sucintamente. Aquele balbucio animado tinha desaparecido de seu tom de voz, e ela falava de trabalho agora.

— No que eu puder ajudar... — disse Arthur.

— Você já fez o bastante — informou-lhe a Nutrimática.

Ela convocou o computador da espaçonave.

— Oi, gente! — disse o computador da espaçonave. A Nutrimática explicou ao computador da espaçonave a respeito do chá. O computador hesitou e então juntou seus circuitos lógicos aos da Nutrimática e juntos penetraram num silêncio severo.

Arthur ficou observando, à espera de alguma coisa por alguns instantes, mas nada mais aconteceu.

Deu uma pancada na máquina, e nada.

A uma certa altura desistiu e subiu à ponte de comando.

Nas imensidões vazias do espaço, a nave Coração de Ouro flutuava estacionária. A seu redor ardiam os bilhões de pontinhos luminosos da Galáxia. Em sua direção arrastava-se a horrenda massa amarela da nave vogon.

 

— Alguém tem uma chaleira? — perguntou Arthur entrando na ponte de comando, e instantaneamente começou a se perguntar por que Trillian estava gritando com o computador para falar com ela, Ford estava espancando-o e Zaphod dando chutes, e também por que havia uma protuberância amarela asquerosa no visor.

Largou a xícara vazia que estava carregando e foi falar com eles.

— Olá — disse.

Nesse momento Zaphod arremessou-se sobre a superfície de mármore que continha os instrumentos que controlavam o motor convencional a fótons. Eles materializaram-se em suas mãos e ele virou a alavanca para controle manual. Empurrou, puxou, apertou e gritou impropérios. O motor a fótons deu uma sacudida fraca e morreu de novo.

— Algum problema? — disse Arthur.

— Ei! Ouviram essa? — resmungou Zaphod ao mesmo tempo que corria para os controles manuais do motor a Improbabilidade Infinita. — O macaco falou!

O motor a Improbabilidade zuniu duas vezes e também morreu.

— Um acontecimento, cara — disse Zaphod, chutando o motor a Improbabilidade. — Um macaco que fala!

— Se você está chateado com alguma coisa... — disse Arthur.

— Vogons! — gritou Ford. — Estamos sendo atacados!

Arthur estremeceu.

— E o que a gente está esperando? Vamos dar o fora daqui!

— Não dá. O computador enguiçou.

— Enguiçou?

— Está dizendo que todos os circuitos estão ocupados. Não há energia em nenhum ponto da nave.

Ford afastou-se do terminal do computador, enxugou a testa com a manga da camisa e recostou-se contra a parede.

— Nada que a gente possa fazer — disse. Olhou para o nada e mordeu os lábios.

Quando Arthur era garoto, na escola, muito antes de a Terra ser destruída, ele costumava jogar futebol. Não era bom nisso de jeito nenhum, e sua especialidade era marcar gols contra em partidas importantes. Sempre que isso acontecia, experimentava a peculiar sensação de um formigamento ao redor da nuca, que subia lentamente pelas faces, até atingir-lhe o cenho. A imagem de terra e grama e um monte de garotinhos zombeteiros pulando para cima dele veio-lhe vívida à cabeça nesse momento.

Uma peculiar sensação de formigamento ao redor da nuca subiu lentamente pelas faces até atingir-lhe o cenho.

Começou a falar, e parou.

Começou a falar de novo, e parou de novo.

Por fim conseguiu falar.

— Ahn — disse ele. Limpou a garganta.

— Diga-me — prosseguiu, tão nervoso que todos os outros voltaram-se e se puseram a observá-lo. Ele deu uma olhada para a bolha amarela que se aproximava no visor.

— Diga-me — disse mais uma vez. — O computador chegou a dizer o que o estava mantendo ocupado? Estou perguntando só por perguntar...

Zaphod estendeu uma das mãos e segurou Arthur pela nuca.

— O que foi que você fez, homem-macaco? — perguntou, ofegante.

— Bom — disse Arthur —, nada, na verdade. É só que agora há pouco eu estava tentando dar um jeito de conseguir. ..

— O quê?

— Fazer um chá.

— É isso aí, pessoal — disse o computador de repente. — Estou lutando com esse problema agora mesmo, e, puxa vida, é dos grandes! Falo com vocês mais tarde, — Mergulhou novamente num silêncio que só era igualado em intensidade pelo silêncio das três pessoas que olhavam para Arthur Dent.

Como que para aliviar a tensão, os vogons escolheram esse momento para começar a atirar.

A nave sacolejava e retumbava. Do lado de fora, o campo de força de uma polegada de grossura que a envolvia encheu-se de bolhas, estalou e trincou sob o bombardeio de uma dúzia de Canhões Fotrazônicos Morte-Certa de 30 megalesões, e não parecia que ia agüentar por muito tempo. Quatro minutos foi quanto Ford Prefect avaliou.

— Três minutos e cinqüenta segundos — disse ele pouco depois.

— Quarenta-e-cinco segundos — acrescentou, na hora apropriada. Mexeu em vão em alguns botões inúteis, e dirigiu um olhar hostil a Arthur.

— Morrer por uma xícara de chá, ehn? — disse. — Três minutos e quarenta segundos.

— Você não vai parar de contar? — resmungou Zaphod.

— Vou — disse Ford Prefect. — Dentro de três minutos e trinta-e-cinco segundos.

A bordo da nave vogon, Prostetnic Vogon Jeltz estava confuso. Estava esperando uma caçada, um engalfinha-mento de raios de tração, estava esperando ter que usar o Assegurador Subcíclico de Normalidade especialmente instalado para combater o motor a Improbabilidade Infinita da nave Coração de Ouro; mas o Assegurador Subcíclico de Normalidade permanecia inativo enquanto a nave Coração de Ouro ficava ali parada, apanhando.

Uma dúzia de Canhões Fotrazônicos Morte-Certa de 30 megalesões mantinha fogo contra a Coração de Ouro, e mesmo assim ela ficava ali parada, apanhando.

Testou cada um dos sensores em seu painel para ver se não havia algum truque sutil na jogada, mas nenhum truque sutil era detectado.

Ele não sabia do chá, é claro.

Também não sabia como os ocupantes da nave Coração de Ouro estavam passando os três últimos minutos e trinta segundos de vida que tinham para passar.

Como exatamente Zaphod Beeblebrox chegou à idéia de fazer uma sessão espírita a essa altura é algo que ele nunca entendeu muito claramente.

Obviamente o assunto morte estava no ar, mas mais como algo que devia ser evitado do que comentado repetidamente.

Possivelmente o horror que Zaphod sentia diante da idéia de reunir-se a seus parentes falecidos levou-o à idéia de que eles talvez sentissem o mesmo a seu respeito, e mais que isso, fossem capazes de fazer algo que ajudasse a adiar a reunião.

Ou talvez fosse de novo uma das estranhas inspirações que ocasionalmente vinham à tona provenientes da área obscura de sua mente, que ele tinha trancafiado inexplicavelmente antes de tornar-se Presidente da Galáxia.

— Você quer falar com seu bisavô? — perguntou Ford, espantado.

— Quero.

— Tem que ser agora?

A nave continuava sacolejando e retumbando. A temperatura aumentava. As luzes diminuíam — toda a energia que o computador não utilizava para pensar no chá estava sendo bombeada para o campo de força que estava rapidamente desaparecendo.

— Tem! — insistiu Zaphod. — Escuta, Ford, estou pensando que ele talvez possa nos ajudar.

— Tem certeza que o termo é pensando? Escolha as palavras com cuidado.

— Sugira outra coisa que a gente possa fazer.

— Ahn, bom...

— OK, todo mundo em volta do painel central! Já!. Venham! Trillian, homem-macaco, mexam-se!

Agruparam-se em torno do painel de controle central, confusos, sentaram-se e, sentindo-se excepcionalmente babacas, deram-se as mãos. Com sua terceira mão, Zaphod apagou as luzes.

A escuridão tomou conta da nave.

Lá fora o rugido tonitroante dos canhões Morte-Certa continuava a ecoar no campo de força.

— Concentrem-se — sussurrou Zaphod — no nome dele.

— Qual é? — perguntou Arthur.

— Zaphod Beeblebrox Quarto.

— O que?

— Zaphod Beeblebrox Quarto. Concentrem-se!

— Quarto?

— É. Escuta, eu sou Zaphod Beeblebrox, meu pai era Zaphod Beeblebrox Segundo, meu avô, Zaphod Beeblebrox Terceiro...

— O quê?

— Houve um acidente envolvendo um anticoncepcional e uma máquina do tempo. Agora, concentrem-se!

— Três minutos — disse Ford Prefect.

— Por que — disse Arthur Dent — estamos fazendo isso?

— Cale a boca — sugeriu Zaphod.

Trillian não dizia nada. O que, pensou ela, havia para dizer?

A única luz na ponte de comando vinha de dois triângulos vermelhos num canto distante onde Marvin, o Andróide Paranóide, estava sentado, curvado, ignorando todos e ignorado por todos, num mundo particular privado e um tanto desagradável.

Em torno do painel de controle central quatro figuras estavam debruçadas em rígida concentração, tentando apagar de suas mentes o tremor apavorante da nave e o temível trovoar que ecoava por ela.

Concentraram- se.

Concentraram-se mais.

E concentraram-se mais.

Os segundos corriam.

Gotas de suor brotavam sobre as sobrancelhas de Zaphod, primeiro devido à concentração, depois à frustração, e por fim ao embaraço.

Finalmente, ele deixou escapar um grito furioso, largou as mãos de Trillian e de Ford e golpeou o interruptor de luz.

— Ah, estava começando a achar que vocês nunca iam acender a luz — disse uma voz. — Não, por favor, não muito claro, meus olhos não são mais os mesmos.

As quatro figuras sacudiram-se nas cadeiras. Viraram lentamente as cabeças para olhar, embora seus couros cabeludos mostrassem uma decidida propensão a ficar no lugar onde estavam.

— Agora, quem é que está me incomodando a essa hora? — disse a pequena figura esquálida e curvada que estava em pé junto aos vasos de samambaia na ponta da ponte de comando. Suas duas cabeças de cabelos ralos pareciam tão velhas como se pudessem guardar vagas lembranças do próprio nascimento das galáxias. Uma cochilava e a outra olhava-os de soslaio. Se seus olhos já não eram os mesmos, então deviam ter sido capazes de cortar diamantes.

Zaphod gaguejou de nervoso por um momento. Fez o complexo aceno duplo de cabeças que é o gesto betelgeusiano tradicional de respeito familiar.

— Ah... ahn... oi, Bisavô... — disse, ofegante.

O velhinho moveu-se em direção a eles. Despontou em meio à luz turva. Apontou um dedo ossudo para seu bisneto.

— Ah — disse ele bruscamente —, Zaphod Beeblebrox. O último de nossa estirpe. Zaphod Beeblebrox Nadésimo.

— Primeiro.

— Nadésimo — disse a figura com veemência. Zaphod odiava sua voz. Sempre lhe parecia uma unha arranhando um quadro-negro de algo que ele gostava de pensar como sendo sua alma.

Ajeitou-se incomodamente em sua cadeira.

— Ahn, tá — resmungou. — Ahn, olha, desculpa pelas flores, eu ia mandar, sabe, mas é que não tinha mesmo nenhuma coroa na floricultura e aí...

— Você esqueceu! — cortou Zaphod Beeblebrox Quarto.

— Bom...

— Ocupado demais. Nunca pensa nos outros. Os vivos são todos iguais.

— Dois minutos, Zaphod — sussurrou Ford em tom de respeito.

Zaphod estava nervoso e irrequieto.

— É, mas eu tinha intenção de mandá-las — disse. — E também vou escrever para minha bisavó, é só a gente sair dessa...

— Sua bisavó... — murmurou consigo mesmo a esquálida criatura.

— É — disse Zaphod. — Como ela está? Sabe de uma coisa, eu vou fazer uma visita para ela. Mas antes a gente tem que...

— Sua falecida bisavó e eu estamos muito bem, obrigado — ralhou Zaphod Beeblebrox Quarto.

— Ah. Oh.

— Mas muito desapontados com você, Zaphod, meu rapaz...

— Bom, né... — Zaphod sentia-se estranhamente sem poderes de tomar as rédeas da conversa, e a respiração ofegante de Ford a seu lado lhe dizia que o tempo estava correndo. O barulho e o sacolejo tinham assumido proporções assustadoras. Ele viu os rostos de Trillian e de Arthur, pálidos e sem piscar, desalentados.

— Ahn, bisavô...

— Temos acompanhado seu progresso com considerável desânimo...

— Certo, mas olha, é que no momento, entende...

— Para não dizer desprezo!

— Será que não dava para me ouvir um momento...

— Quero dizer, o que exatamente você está fazendo da sua vida?

— Estou sendo atacado por uma esquadra vogon! — gritou Zaphod. Era exagero, mas essa tinha sido sua primeira oportunidade até o momento de tocar na questão básica do encontro.

— Não me surpreende nem um pouco — disse o velho, sacudindo os ombros.

— Só que está acontecendo exatamente neste instante, entende? — insistiu Zaphod fervorosamente.

O ancestral espectral balançou a cabeça, apanhou a xícara que Arthur Dent tinha trazido e a observou com interesse.

— Ahn... bisavô...

— Sabia — interrompeu a figura fantasmagórica, fixando um olhar severo sobre Zaphod — que Betelgeuse V desenvolveu agora uma pequena excentricidade em sua órbita?

Zaphod não sabia e achou difícil concentrar-se na informação com todo aquele barulho, a iminência da morte e essas coisas.

— Bom, não... olha... — disse.

— E eu me virando no túmulo! — berrou o ancestral. Atirou a xícara no chão e apontou um dedo ameaçador para Zaphod.

— Culpa sua! — disse ele, num guincho.

— Um minuto e meio — murmurou Ford, com a cabeça entre as mãos.

— Tá, olha, bisavô, o senhor pode mesmo ajudar, porque...

— Ajudar? — exclamou o velho como se lhe tivessem pedido a coisa mais absurda do mundo.

— É, ajudar, e já, porque senão...

— Ajudar! — repetiu o velho como se lhe tivessem pedido a coisa mais absurda do mundo ao ponto acompanhada de uma porção de batatas fritas. — Você fica passeando pela Galáxia com seus... — o velho fez um sinal de desprezo — com seus amigos desclassificados, ocupado demais para colocar umas flores no meu túmulo, de plástico que fossem, seria apropriado vindo de você, mas não. Ocupado demais. Moderno demais. Cético demais — até que de repente se encontra numa enrascada e vem todo cheio de boas intenções!

Sacudiu a cabeça, com cuidado para não acordar a outra que estava cochilando.

— Pois bem, não sei, Zaphod, meu jovem — prosseguiu —, acho que vou ter que pensar no assunto.

— Um minuto e dez — disse Ford numa voz cavernosa.

Zaphod Beeblebrox Quarto olhou para ele, curioso.

— Por que esse moço fica falando em números? — perguntou.

— Esses números — disse Zaphod sucintamente — são o tempo que ainda nos resta de vida.

— Ah — disse o bisavô. Falava consigo próprio. — Não se aplica a mim, é claro — disse ele e foi até um canto menos iluminado da ponte de comando procurando um outro objeto para ficar brincando.

Zaphod sentia-se à beira da loucura, e pensava se não era melhor acabar tudo de uma vez.

— Bisavô — disse ele. — Aplica-se a nós! Nós ainda estamos vivos, e estamos prestes a perder nossas vidas!

— Um belo serviço, também.

— O quê?

— Para que serve a sua vida? Quando penso no que você fez dela a expressão "orelha de porco" me vem irresistivelmente à cabeça.

— Mas eu fui Presidente da Galáxia, cara!

— Oh — murmurou seu antepassado. — E que tipo de trabalho é esse para um Beeblebrox?

— O quê? Apenas o de Presidente, sabe? Da Galáxia inteira!

— Megacachorrinho convencido! Zaphod piscou atordoado.

— Eh, onde é que você está querendo chegar, cara? Diga, bisavô.

O velhinho curvado arrastou-se até seu neto e deu-lhe uns tapinhas no joelho. Isso teve o efeito de lembrar Zaphod de que ele estava falando com um fantasma, pois não sentiu nada.

— Você sabe e eu sei o que significa ser Presidente. Zaphod, meu jovem. Você, porque já foi, e eu, porque estou morto, o que me dá um ângulo de visão maravilhosamente desobstruído. Temos aqui em cima um ditado: "A vida é desperdiçada ao ser vivida".

— Tá bom — disse Zaphod amargamente. — Muito bom. Muito profundo. No momento estou precisando de máximas tanto quanto preciso de buracos nas cabeças.

— Cinqüenta segundos — disse Ford Prefect.

— Onde eu estava? — disse Zaphod Beeblebrox Quarto.

— Dando um sermão — disse Zaphod Beeblebrox.

— Ah, é mesmo.

— Esse cara pode mesmo — sussurrou Ford baixinho para Zaphod — ajudar a gente?

— Ninguém mais pode — respondeu Zaphod num cochicho.

Ford balançou a cabeça, sem esperanças.

— Zaphod! — era o fantasma falando. — Você se tornou Presidente da Galáxia por um motivo. Esqueceu?

— A gente não podia falar sobre isso mais tarde?

— Esqueceu? — insistiu o fantasma.

— É, esqueci! Tinha que esquecer. Eles vasculham seu cérebro quando você pega esse emprego, sabe. Se eles achassem minha cabeça cheia de idéias sacanas eu estaria na rua sem nada a não ser uma gorda pensão, um secretariado, uma frota de espaçonaves e duas gargantas cortadas.

— Ah — disse o fantasma, sacudindo as cabeças de satisfação. — Então você se lembra!

Fez uma pausa momentânea.

— Bom — disse ele, e o barulho parou.

— Quarenta-e-oito segundos — disse Ford. Olhou de novo para o relógio e deu umas pancadinhas. Ergueu então o olhar.

— Ei, parou o barulho — disse.

Um brilho malicioso reluziu nos olhinhos do fantasma.

— Eu diminuí a velocidade do tempo por uns instantes — disse —, só por uns instantes, vocês compreendem. Detestaria que vocês perdessem tudo o que eu tenho a dizer.

— Não, escuta aqui, morcego velho — disse Zaphod pulando da cadeira. — A: Obrigado por parar o tempo e essas coisas, jóia, maravilhoso, fantástico, mas B: dispenso o sermão, certo? Não sei que coisa grandiosa é essa a que eu estou destinado, e parece que não é para eu saber. E eu fico indignado com isso, certo? O eu antigo sabia. O eu antigo se preocupava com isso. Tudo bem, até aqui, tudo em cima. Mas acontece que o antigo eu se preocupava tanto que entrou dentro do seu próprio cérebro — meu próprio cérebro — e trancou as partes que sabiam e que se preocupavam, porque se eu soubesse e me preocupasse, não seria capaz de fazê-lo. Não seria capaz de ir ser Presidente, e não seria capaz de roubar esta nave, que deve ser a coisa mais importante. Mas esse meu antigo ego se matou, não, ao mudar meu cérebro? OK, essa era a minha escolha. Este novo eu tem suas próprias escolhas a fazer, e por uma estranha coincidência faz parte dessas escolhas não saber e não me preocupar com essa coisa grandiosa, seja ela qual for. É isso que ele queria, é isso que ele vai ter. A não ser pelo fato de que esse meu velho ego tentou manter-se no controle, deixando ordens na parte do meu cérebro que ele trancou. Pois bem, eu não quero saber, e não quero ouvi-las. Essa é a minha escolha. Não vou ser fantoche de ninguém, principalmente de mim mesmo.

Zaphod deu um soco furioso no painel, sem notar os olhares atônitos que estava atraindo.

— O velho eu está morto! — exclamou. — Ele se matou! Os mortos não deviam ficar tentando interferir nas questões dos vivos!

— E ainda assim você me evocou para tentar tirá-lo de uma enrascada — disse o fantasma.

— Ah — disse Zaphod, sentando-se novamente. — Aí é diferente, né?

Dirigiu um sorrisinho sem graça para Trillian.

— Zaphod — disse a aparição em voz áspera —, acho que a única razão de eu estar aqui gastando meu fôlego com você é que estando morto não tenho muito o que fazer com ele.

— OK — disse Zaphod. — Por que você não me conta qual é o grande segredo? Tente-me.

— Zaphod, você sabia quando era Presidente da Galáxia, assim como também sabia Yooden Vranx antes de você, que o Presidente não é nada. Um zero à esquerda. Em algum lugar nebuloso por trás de tudo há um outro homem, um ser, algo, com poder definitivo. Esse homem, ou ser, ou algo, você tem que descobrir — o homem que controla esta Galáxia, e — suspeitamos — outras. Talvez todo o Universo.

— Porquê?

— Por quê? — exclamou o fantasma pasmo. — Por quê? Olhe à sua volta, rapaz. Parece-lhe que está tudo em boas mãos?

— Está tudo bem.

O velho fantasma lançou-lhe um olhar ameaçador.

— Não vou discutir com você. Você vai pegar esta nave, a nave movida a Improbabilidade Infinita, e vai simplesmente levá-la até onde ela é necessária. Você vai fazer isso. Não pense que pode escapar de seu propósito. O Campo de Improbabilidade controla você, você está sob seu domínio. O que é isso?

Ele se referia a Eddie, o Computador da Espaçonave, dando tapinhas em um de seus terminais. Zaphod disse isso a ele.

— O que ele está fazendo?

— Está tentando — disse Zaphod, com um maravilhoso autocontrole — fazer chá.

— Ótimo — disse o bisavô —, eu aprovo. Agora, Zaphod — ele virou-se sacudindo um dedo para ele. — Não sei se você é realmente capaz de sair-se bem no seu trabalho. Acho que você não será capaz de evitá-lo. Porém, já estou morto há muito tempo e estou cansado demais para ficar me preocupando tanto como já me preocupei. O motivo principal de eu ter ajudado vocês é que eu não podia suportar a idéia de você e esses seus amigos moderninhos largados pelos cantos aqui em cima. Entendeu?

— Entendi. Valeu, obrigado.

— Ah, e, Zaphod...

— Que é?

— Se você alguma vez achar que precisa de ajuda novamente, se tiver algum problema, se precisar de uma mão salvadora num momento difícil...

— Sim?

— Por favor, não hesite em se danar.

Dentro do espaço de um segundo um raio de luz atravessou das mãos secas do velho fantasma até o computador, o fantasma desapareceu, a ponte de comando foi tomada por uma nuvem crepitante de fumaça, e a nave Coração de Ouro saltou através de dimensões desconhecidas do tempo e do espaço.

 

A dez anos-luz dali, o sorriso de Gag Halfrunt abriu-se mais e mais. Vendo a imagem no seu visor, transmitida pelo subéter da ponte de comando da nave vogon, viu os últimos frangalhos do campo de força da nave Coração de Ouro serem destroçados, e a própria nave desaparecer em fumaça.

— Ótimo — pensou.

O fim dos últimos sobreviventes da demolição do planeta Terra que tinha encomendado, pensou.

O fim definitivo dessa experiência perigosa (para a profissão psiquiátrica) e subversiva (também para a profissão psiquiátrica) para descobrir a Pergunta da Questão Fundamental da Vida, do Universo e de Tudo, pensou.

Ia festejar essa noite com os colegas, e amanhã de manhã eles encontrariam novamente seus pacientes desnorteados, infelizes e lucrativos, seguros de que o Sentido da Vida não seria revelado agora de uma vez por todas, pensou.

— Essas coisas de família são sempre embaraçosas,

— disse Ford a Zaphod quando a fumaça começou a desvanecer.

Ele parou e deu uma olhada à sua volta.

— Cadê o Zaphod? — disse.

Arthur e Trillian olharam à volta, confusos. Estavam pálidos e atrapalhados e não sabiam onde Zaphod estava.

— Marvin! — disse Ford. — Onde está Zaphod? Um momento mais tarde ele disse:

— Onde está Zaphod?

O canto do robô estava vazio.

A nave estava completamente silenciosa. Flutuava na escuridão do espaço. De vez em quando balançava e oscilava. Todos os instrumentos estavam sem funcionar e todos os visores estavam sem funcionar. Consultaram o computador. Ele disse:

— Lamento, mas estou temporariamente fechado para qualquer comunicação. Por enquanto, fiquem com um pouco de música suave.

Eles desligaram a música suave.

Procuraram em cada canto da nave, cada vez mais atônitos e alarmados. Todos os lugares estavam quietos e silenciosos. Não havia em parte alguma qualquer sinal de Zaphod ou de Marvin. Uma das áreas em que procuraram foi o corredorzinho onde ficava a máquina Nutrimática.

Na bandeja da Sintetizadora Nutrimática de Bebidas estavam três xícaras de porcelana, uma jarra de porcelana de leite, uma chaleira de prata contendo o melhor chá que Arthur já tinha experimentado, e um bilhetinho impresso onde estava escrito: "Sirvam-se".

 

Beta da Ursa Menor é, segundo alguns, um dos lugares mais estarrecedores do Universo conhecido.

Embora seja torturantemente rica, pavorosamente ensolarada e cheia de pessoas magnificamente interessantes, não deixa de ser significativo o fato de que quando uma edição recente da revista Playbeing publicou um artigo com uma manchete que dizia "Quando você está cansado de Beta da Ursa Menor está cansado da vida" a taxa de suicídios quadruplicou da noite para o dia.

Não que haja noites em Beta da Ursa Menor.

É um planeta da zona ocidental que por um capricho inexplicável e algo suspeito da topografia consiste quase inteiramente de litorais subtropicais. Por um capricho igualmente suspeito do tempo, quase sempre é sábado à tarde pouco antes de fecharem os bares da praia.

Nenhuma explicação adequada para. isso pode ser obtida com as formas de vida dominantes de Beta da Ursa Menor, que passam a maior parte do tempo procurando atingir a iluminação espiritual correndo ao redor das piscinas, ou convidando inspetores do Departamento Geo-Temporal da Galáxia a "compartilharem da agradável anomalia do dia".

Há apenas uma cidade em Beta da Ursa Menor, e só é chamada de cidade porque aí as piscinas ficam mais próximas uma das outras do que nos outros lugares.

Se você chegar à Cidade Luz pelo ar — e não há outro meio de chegar, não há estradas nem instalações portuárias — se você não puder voar eles não querem que você veja a Cidade Luz — você vai entender por que ela tem esse nome. Lá o sol brilha mais, refletindo-se nas piscinas, reluzindo nas calçadas brancas com palmeiras, cintilando nos pontinhos bronzeados e saudáveis que passeiam por elas, fulgurando nas chácaras, nos bares da praia e tudo o mais.

Mais particularmente, ele reluz num prédio, um edifício bonito e alto que consiste de duas torres brancas de trinta andares ligadas por uma ponte na metade da altura.

O edifício é a sede de um livro, e foi construído ali com o dinheiro proveniente de um extraordinário processo judicial de copyright disputado entre os editores do livro e uma companhia de cereais para o café da manhã.

O livro é um guia, um livro de viagem.

É um dos mais notáveis, certamente dos mais bem-sucedidos livros já publicados pelas editoras da Ursa Menor

— mais popular do que A Vida Começa aos Quinhentos e Cinqüenta, mais vendido que A Teoria da Explosão Que Deu Origem ao Universo — Uma Visão Pessoal de T. Eccentrica Gallumbits (a prostituta de três seios de Eroticon Seis) e mais controvertido do que o último livro arrasador de Oolon Colluphid, Tudo o Que Você Nunca Quis Saber Sobre o Sexo Mas Foi Forçado a Descobrir.

E em muitas das civilizações mais descontraídas da Orla Oriental Exterior da Galáxia, superou há muito tempo a grandiosa Enciclopédia Galáctica como depositário clássico de todo o conhecimento e sabedoria, pois apesar de apresentar muitas omissões e de conter muita coisa apócrifa, ou pelo menos tremendamente inexata, ele supera a outra obra mais antiga e corriqueira em pelo menos dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, é ligeiramente mais barato; em segundo lugar, traz estampada na capa, em letras garrafais e amigáveis, a frase NÃO ENTRE EM PÂNICO.

Trata-se, é claro, do indispensável companheiro de todos que desejam conhecer as maravilhas do Universo conhecido por menos de trinta dólares altairianos por dia — O Mochileiro das Galáxias — Guia da Galáxia para Caronas.

Se você se colocasse de costas para o saguão da entrada principal dos escritórios do Guia (presumindo que você já tivesse aterrissado e relaxado com um mergulho rápido e uma ducha) e fosse andando para o leste, você passaria pela sombra das folhagens do Bulevar da Vida, ficaria encantado com o dourado das praias estendendo-se à sua esquerda, espantado com os surfistas mentais flutuando descuidadamente um metro acima das ondas como se isso não fosse nada de especial, surpreso e talvez ligeiramente irritado com as gigantescas palmeiras que assobiam uma falta de melodia durante as horas do dia, ou seja, o tempo todo.

Se você então andasse até o fim do Bulevar da Vida, chegaria ao bairro Lalamantine de lojas, castanheiras e cafés na calçada, onde os ursa-menorbetanos vão descansar após uma dura tarde de descanso na praia. O bairro Lalamantine é uma das poucas áreas que não contam com uma tarde de sábado perpétua — conta, em vez disso, com um perpétuo frescor de um cair da tarde de sábado. Depois desse bairro ficam os clubes noturnos.

Se, nesse dia em particular, ou nessa tarde, ou nesse anoitecer — chame como quiser — você chegasse ao segundo café na calçada da direita, você veria a aglomeração costumeira de ursamenorbetanos batendo papo, bebendo, parecendo muito descontraídos, e olhando como quem não quer nada os relógios uns dos outros para ver quanto teriam custado.

Você veria também uma dupla de mochileiros de aparência um tanto desgrenhada provenientes de Algol que tinham acabado de chegar num megacargueiro arcturano a bordo do qual tinham passado maus bocados por alguns dias. Estavam furiosos e indignados em descobrir que ali, às barbas do prédio do Guia da Galáxia para Caronas, um simples copo de suco de frutas custava o equivalente a mais de sessenta dólares altairianos.

— Traição — disse um deles, amargamente.

Se nesse momento você olhasse então para a outra mesa pulando uma, você veria Zaphod Beeblebrox sentado, parecendo bastante embaraçado e confuso.

O motivo de sua confusão era que cinco segundos antes ele estava sentado na ponte de comando da nave Coração de Ouro.

— Traição absoluta — disse a mesma voz novamente. Zaphod olhava nervosamente com o canto dos olhos para os dois mochileiros desgrenhados na mesa ao lado. Onde é que ele estava? Como tinha ido parar ali? Onde estava sua nave? Apalpou o braço da cadeira em que estava sentado e a mesa à sua frente. Pareciam bastante sólidos. Ele ficou sentado, muito quieto.

— Como eles podem sentar e escrever um guia para mochileiros num lugar como este? — prosseguiu a voz. — Olha só para isso. Olha só!

Zaphod estava olhando só. Lugar agradável, pensou. Mas onde? E por quê?

Procurou seus dois pares de óculos no bolso. Sentiu dentro do bolso um pedaço duro, liso e não-identificado de um metal muito pesado. Ele o pegou e deu uma olhada. Piscou, surpreso. Onde teria arranjado aquilo? Colocou de volta no bolso e pôs os óculos, aborrecido ao descobrir que o objeto metálico tinha riscado uma das lentes. De qualquer forma, sentia-se muito mais confortável de óculos. Eram dois pares de Óculos Escuros Supercromáticos Perigo-Sensitivos Joo Janta 200, que tinham sido especialmente desenvolvidos para ajudar as pessoas a assumirem uma atitude tranqüila diante do perigo. Ao primeiro sinal de distúrbio, as lentes ficam totalmente pretas evitando assim que a pessoa veja qualquer coisa que possa alarmá-la.

A não ser pelo arranhão, as lentes estavam claras. Ele relaxou, mas só um pouco.

O mochileiro furioso continuava a dardejar com os olhos seu suco de frutas monstruosamente caro.

— A pior coisa que aconteceu para o Guia foi mudar para Beta da Ursa Menor — resmungou. — Ficaram todos uns moles. Sabe, eu até ouvi dizer que eles criaram um Universo inteiro sintetizado eletronicamente num de seus escritórios para poderem fazer as pesquisas de dia e ainda freqüentarem festas à noite. Não que noite e dia queiram dizer alguma coisa neste lugar.

Beta da Ursa Menor, pensou Zaphod. Pelo menos agora ele sabia onde estava. Presumiu que isso era coisa de seu bisavô, mas por quê?

Muito contra a sua vontade uma idéia lhe veio à mente. Era muito clara e distinta, e ele já tinha aprendido a reconhecer essas idéias pelo que elas eram. Seu instinto era de resistir a elas. Eram os estímulos pré-ordenados provenientes das partes obscuras e trancafiadas de sua mente.

Ficou sentado e ignorou furiosamente a idéia. A idéia o provocou. Ele a ignorou. Ela o provocou. Ele a ignorou. Ela o provocou. Ele se entregou.

Ao inferno, pensou. Acompanhar a corrente. Estava cansado demais, confuso demais e com muita fome para resistir. Ele nem sequer sabia o que significava aquela idéia.

 

— Alo? Pois não? Editora Megadodo, sede do Mochileiro das Galáxias — o Guia da Galáxia para Caronas, o livro mais completamente notável de todo o Universo conhecido, em que posso servi-lo? — disse o grande inseto de asas cor-de-rosa num dos setenta fones alinhados na vastidão cromada do balcão de recepção no térreo do edifício dos escritórios do Guia da Galáxia para Caronas. Ele agitava as asas e girava os olhos. Lançava olhares ferozes para todas aquelas pessoas encardidas que se atropelavam pelo saguão, enlameando o carpete e deixando marcas de mãos sujas nos estofados. Ele adorava trabalhar no Guia da Galáxia para Caronas, e só gostaria de que houvesse um jeito de manter os caronistas longe dali. Eles não deveriam estar andando por portos espaciais sujos ou coisa assim? Ele tinha certeza de ter lido em algum lugar do livro a respeito da importância de andar por portos espaciais sujos. Infelizmente a maioria deles parecia vir ficar andando por aquele lindo, limpo e reluzente saguão logo em seguida a ter ficado andando por portos espaciais extremamente sujos. E tudo o que eles faziam era reclamar. Ele sacudiu as asas.

— O quê? — disse ele ao telefone. — Sim, eu passei seu recado para o Sr. Zarniwoop, mas creio que ele está desocupado demais para vê-lo no momento. Está num cruzeiro intergaláctico.

Acenou com um tentáculo petulante para uma das pessoas encardidas, que estava desesperadamente tentando chamar sua atenção. O tentáculo petulante era para mandar a pessoa desesperada olhar para um aviso na parede à sua esquerda e não interromper um telefonema importante.

— Sim — disse o inseto —, ele está em seu escritório, mas está num cruzeiro intergaláctico. Muito obrigado por ter telefonado. — Bateu o telefone.

— Leia o aviso — disse ele ao homem desesperado e furioso que estava tentando fazer uma reclamação a respeito de uma das mais absurdas e perigosas das informações incorretas contidas no livro.

O Guia da Galáxia para Caronas é um companheiro indispensável para todos aqueles que estão interessados em dar sentido à vida num Universo infinitamente complexo e confuso, pois apesar de não ter esperanças de ser útil e informativo em todas as questões, ele pelo menos traz a alegação tranqüilizadora de que onde ele está incorreto, está pelo menos definitivamente incorreto. Em casos de maior discrepância, é sempre a realidade que está errada.

Era esse o âmago do que dizia o aviso. Ele dizia: "O Guia é definitivo. A realidade é frequentemente incorreta".

Isso tem levado a conseqüências interessantes. Por exemplo, quando os editores do Guia foram processados pelas famílias daqueles que tinham morrido em resultado de terem tomado literalmente o verbete sobre o planeta Traal (dizia: "As Feras Vorazes Paponas frequentemente fazem uma boa refeição para os turistas visitantes" em vez de "As Feras Vorazes Paponas frequentemente fazem uma boa refeição dos turistas visitantes"), eles alegaram que a primeira versão da frase era esteticamente mais agradável, intimaram um poeta qualificado para declarar sob juramento que beleza é verdade e verdade é beleza e esperaram assim provar que a parte culpada no caso era a própria Vida por deixar de ser tanto bela quanto verdadeira. Os juizes concordaram, e num discurso comovente sustentaram que a própria Vida era um desacato àquele tribunal e confiscaram-na prontamente de todos os presentes antes de saírem para uma agradável partida de ultragolfe ao cair da noite.

Zaphod Beeblebrox entrou no saguão. Dirigiu-se a passos largos ao inseto recepcionista.

— OK — disse ele. — Onde está Zarniwoop? Leve-me até Zarniwoop.

— Perdão, cavalheiro? — disse o inseto friamente. Não gostava que se dirigissem a ele dessa maneira.

— Zarniwoop. Chame-o, entendeu? Chame-o já.

— Bem, cavalheiro — falou asperamente a frágil criatura —, se o senhor ficar frio...

— Olha aqui — disse Zaphod. — Eu estou por aqui de frio, entendeu? Estou tão fantasticamente frio que você poderia conservar um pedaço de carne dentro de mim durante um mês. Agora, quer se mexer antes que eu estoure?

— Bem, se o senhor me deixar explicar, cavalheiro — disse o inseto batendo na mesa com o mais petulante dos tentáculos à sua disposição —, lamento, mas não será possível no momento, pois o Sr. Zarniwoop está num cruzeiro intergaláctico.

Inferno, pensou Zaphod.

— Quando ele volta? — perguntou.

— Quando volta? Ele está em seu escritório. Zaphod parou para tentar arrumar essa idéia em sua mente. Não conseguiu.

— Esse cara está num cruzeiro intergaláctico... no escritório dele? — exclamou inclinando-se e agarrando o tentáculo que batia na mesa. — Escuta, três olhos — disse —, não tente me enrolar, eu tomo coisas mais estranhas do que você pode imaginar no meu café da manhã.

— Bem, quem você pensa que é, querido? — estrebuchou o inseto batendo as asas com furor. — Zaphod Beeblebrox ou algo assim?

— Conte as cabeças — disse Zaphod num tom áspero. O inseto piscou para ele. Piscou novamente.

— Você é Zaphod Beeblebrox? — guinchou.

— Sou — disse Zaphod —, mas fala baixo senão todo mundo vai querer.

— Aquele Zaphod Beeblebrox?!

— Não apenas um Zaphod Beeblebrox, você não sabia que eu venho em seis embalagens?

O inseto chacoalhava os tentáculos agitado.

— Mas, senhor — gritou —, eu acabo de ouvir uma notícia no rádio subéter. Dizia que você estava morto...

— É, é verdade — disse Zaphod —, só que eu ainda não parei de me mexer. Agora, onde é que eu encontro Zarniwoop?

— Bem, senhor, o escritório dele fica no décimo quinto andar, mas...

— Mas ele está num cruzeiro intergaláctico, tá bom, mas como eu faço para encontrá-lo?

— Os Transportadores Verticais de Pessoas da Companhia Cibernética de Sírius ficam naquele canto, senhor. Mas, senhor...

Zaphod já ia se virando para lá. Voltou-se para o inseto.

— O que é?

— Posso lhe perguntar por que o senhor deseja ver o Sr. Zarniwoop?

— Pode — respondeu Zaphod, que também não tinha clareza quanto a esse ponto. — É que eu disse para mim mesmo que eu tinha que fazer isso.

— Como, senhor?

Zaphod inclinou-se para ele, como quem conspira.

— Acabo de me materializar a partir de ar rarefeito em um de seus cafés — disse — como resultado de uma discussão com o fantasma do meu bisavô. Mal eu cheguei ali, o antigo eu, o que operou meu cérebro, apareceu na minha cabeça e disse: "Vai ver o Zarniwoop". Nunca tinha ouvido falar nesse cara. Isso é tudo o que eu sei. Isso e o fato de que eu tenho que encontrar o homem que rege o Universo.

Deu uma piscada.

— Senhor Beeblebrox — disse o inseto com reverência — o senhor é tão esquisito que devia estar no cinema.

— É — disse Zaphod dando um tapinha na reluzente asa cor-de-rosa da criatura —, e você, menino, devia estar na vida real.

O inseto fez uma pausa momentânea para recuperar-se da agitação e então estendeu um tentáculo para atender um telefone que estava tocando.

Uma mão metálica o conteve. — Perdão — disse o dono da mão metálica com uma voz que teria feito um inseto mais sentimental cair em lágrimas.

Este não era um inseto desse tipo, e ele não tolerava robôs.

— Pois não, senhor — disse, rispidamente —, posso ajudá-lo?

— Duvido — disse Marvin.

— Bem, nesse caso, se o senhor me der licença... — Seis telefones estavam tocando agora. Um milhão de coisas esperavam a atenção do inseto.

— Ninguém pode me ajudar — entoou Marvin.

— Sim, cavalheiro, bem...

— Não que alguém tenha tentado, é claro. — Marvin deixou cair lentamente a mão de metal. Inclinou a cabeça para a frente, ligeiramente.

— Ah, é? — disse acidamente o inseto.

— Não vale muito a pena ajudar um robô desprezível, né?

— Lamento, senhor, mas...

— Quero dizer, qual é a vantagem em ajudar um robô se ele não tem circuitos de gratidão?

— E o senhor não tem? — disse o inseto, que não parecia capaz de escapar da conversa.

— Nunca tive oportunidade de descobrir — informou Marvin.

— Escuta, seu monte de metal desajustado...

— Você não vai me perguntar o que eu quero?

O inseto fez uma pausa. Lambeu os olhos com sua língua longa e fina e a recolheu novamente.

— Vale a pena? — perguntou.

— Alguma coisa vale? — disse Marvin imediatamente.

— O que... o... senhor... quer?

— Estou procurando uma pessoa.

— Quem? — sibilou o inseto.

— Zaphod Beeblebrox — disse Marvin. — Ele está ali adiante.

O inseto se sacudia de raiva. Quase não conseguia falar.

— Então por que você perguntou para mim? — berrou.

— Só queria alguém com quem conversar — disse Marvin.

— O quê?!

— Patético, não?

Rangendo as engrenagens, Marvin virou-se e saiu sobre suas rodinhas. Alcançou Zaphod perto dos elevadores. Zaphod voltou-se surpreso.

— Hei... Marvin? — disse ele. — Marvin! Como você veio parar aqui?

Marvin foi forçado a dizer algo que era muito difícil para ele.

— Eu não sei — ele disse.

— Mas...

— Num momento eu estava sentado na sua nave sentindo-me deprimido, e no momento seguinte estava aqui sentindo-me totalmente miserável. Um Campo de Improbabilidade, espero.

— É — disse Zaphod. — Eu espero que meu bisavô o tenha mandado aqui para me fazer companhia.

— Valeu a intenção, vovô — acrescentou para si mesmo.

— E então, como vai? — disse em voz alta.

— Ah, bem — disse Marvin —, para quem por acaso gostar de ser eu, o que eu pessoalmente detesto.

— Tá, tá — disse Zaphod quando o elevador abriu as portas.

— Olá — disse o elevador docemente —, eu serei seu elevador durante esta viagem até o andar de sua preferência. Fui desenvolvido pela Companhia Cibernética de Sírius para levar você, visitante do Guia da Galáxia para Caronas, para seus escritórios. Se você apreciar o trajeto, que será rápido e agradável, talvez se interesse em experimentar alguns dos outros elevadores que foram instalados recentemente nos edifícios de escritórios do departamento de impostos da Galáxia, dos Alimentos Infantis Bubilu e do Hospital Psiquiátrico Estatal de Sírius, onde muitos dos antigos executivos da Companhia Cibernética de Sírius adorarão receber sua visita, solidariedade e estórias felizes do mundo lá fora.

— Tá bom — disse Zaphod. — Que mais você faz além de falar?

— Eu subo — disse o elevador — ou desço.

— Ótimo — disse Zaphod. — Nós vamos subir.

— Ou descer — lembrou o elevador.

— É, tá, mas vamos subir, por favor. Houve um momento de silêncio.

— Descer é muito bom — sugeriu o elevador esperançoso.

— Ah, é?

— Super.

— Que bom — disse Zaphod. — agora vamos subir.

— Posso perguntar — perguntou o elevador com sua voz mais doce e moderada — se você já considerou todas as possibilidades que a descida pode lhe oferecer?

Zaphod bateu uma das cabeças contra a parede interna. Ele não precisava disso, pensou, dentre todas as coisas de que ele não precisava. Ele não tinha pedido para estar ali. Se lhe perguntassem o que gostaria de estar fazendo naquele momento, provavelmente responderia que gostaria de estar deitado numa praia com pelo menos cinqüenta mulheres bonitas e uma equipe de especialistas desenvolvendo novos métodos de serem agradáveis para ele, o que era sua resposta costumeira. A isso ele provavelmente acrescentaria alguma coisa apaixonada a respeito de comida.

Uma coisa que ele não queria estar fazendo era sair à procura do homem que rege o Universo, que estava apenas fazendo um serviço que poderia perfeitamente continuar fazendo, porque se não fosse ele seria outra pessoa. Acima de tudo ele não queria estar num prédio de escritórios discutindo com um elevador.

— Que outras possibilidades, por exemplo? — perguntou, exausto.

— Bom — a voz parecia mel escorrendo sobre biscoitos —, tem o porão, os arquivos de microfilmes, o sistema de aquecimento central... ahn;..

Fez uma interrupção.

— Nada particularmente interessante — admitiu —, mas são alternativas.

— Santo Zarquon — resmungou Zaphod —, por acaso eu pedi um elevador existencial? — Bateu com os punhos contra a parede. — Qual é o problema com essa coisa?

— Não quer subir — disse Marvin simplesmente. — Acho que está com medo.

— Medo? — gritou Zaphod. — De quê? Altura? Um elevador que tem medo de altura?

— Não — disse o elevador miseravelmente —, medo do futuro...

— Do futuro? — exclamou Zaphod. — Mas o que essa coisa desgraçada está querendo? Um esquema de aposentadoria?

Nesse instante uma comoção irrompeu no saguão atrás deles. Das paredes à sua volta vinha o ruído de maquinaria repentinamente posta em atividade.

— Todos podemos ver o futuro — sussurrou o elevador em tom que parecia aterrorizado —, faz parte da nossa programação.

Zaphod olhou para fora do elevador. Uma multidão agitada se reunira em torno da área dos elevadores, apontando e gritando.

Todos os elevadores do prédio estavam descendo em alta velocidade. Ele voltou para dentro.

— Marvin — disse ele —, dá para você dar um jeito deste elevador subir? A gente tem que encontrar Zarniwoop.

— Por quê? — perguntou Marvin pesarosamente.

— Não sei — disse Zaphod —, mas quando eu o encontrar espero que ele tenha um motivo muito bom para eu querer vê-lo.

Os elevadores modernos são entidades estranhas e complexas. Os antigos aparelhos elétricos com polia e "capacidade-máxima-oito-pessoas" têm tanta semelhança com um Transportador Vertical Feliz de Pessoas da Companhia Cibernética de Sírius quanto um saquinho de castanhas sortidas tem com toda a ala ocidental do Hospital Psiquiátrico Estatal de Sírius.

Isso porque eles operam segundo o curioso princípio da "percepção temporal desfocalizada". Em outras palavras, são capazes de prever vagamente o futuro imediato, o que permite que o elevador esteja no andar correto para apanhar você antes mesmo de você saber que o desejava, eliminando assim toda essa estória entediante de bater papo, descontrair-se e fazer amigos a que as pessoas eram anteriormente forçadas enquanto esperavam o elevador.

Não é de surpreender que muitos elevadores, imbuídos de inteligência e premonição, acabaram frustrando-se terrivelmente com o serviço estúpido de subir e descer, subir e descer, experimentaram brevemente a noção de ir para os lados, como uma espécie de protesto existencial, reivindicaram participação no processo de tomada de decisão e finalmente deram para acocorar-se amuados nos porões.

Um mochileiro duro de visita a qualquer um dos planetas do sistema estelar de Sírius nos dias de hoje pode levantar um dinheiro fácil trabalhando como conselheiro de elevadores neuróticos.

No décimo quinto andar as portas do elevador abriram-se rapidamente.

— Décimo quinto — disse o elevador —, e lembre-se, só estou fazendo isso porque gosto do seu robô.

Zaphod e Marvin pularam para fora do elevador, que fechou instantaneamente as portas e desceu tão rápido quanto seu mecanismo permitiu.

Zaphod olhou ao redor cautelosamente. O corredor estava deserto e silencioso e não dava nenhuma pista de onde Zarniwoop poderia ser encontrado. Todas as portas que davam para o corredor estavam fechadas e não tinham nenhuma inscrição.

Estavam perto da ponte que levava de uma torre à outra. Através de uma grande janela o sol brilhante de Beta da Ursa Menor lançava blocos de luz onde dançavam pontinhos de poeira. Uma sombra passou por um momento.

— Abandonado por um elevador — murmurou Zaphod, que pelo menos estava se sentindo vivaz.

Os dois olharam em ambas as direções.

— Sabe de uma coisa? — disse Zaphod a Marvin.

— Mais do que você pode imaginar.

— Tenho certeza absoluta de que este prédio não devia estar balançando — disse Zaphod.

Foi apenas um leve tremor na sola do pé, e depois outro. Nos raios de sol as partículas de poeira dançavam mais vigorosamente. Passou uma outra sombra.

Zaphod olhou para o chão.

— Das duas uma — disse, não muito confiante —: ou eles têm algum sistema vibratório para exercitar os músculos enquanto trabalham, ou...

Foi andando em direção à janela e de repente tropeçou porque naquele momento seus Óculos Escuros Supercromáticos Perigo-Sensitivos Joo Janta 200 tinham ficado completamente pretos. Uma sombra imensa passou pela janela com um zumbido agudo.

Zaphod arrancou os óculos, e assim que o fez o edifício sacudiu com um ruído de trovão. Ele saltou para perto da janela.

— Ou então — disse — este prédio está sendo bombardeado!

Outro tremor ressoou pelo edifício.

— Quem na Galáxia ia querer bombardear uma -editora? — perguntou Zaphod, mas não ouviu a resposta de Marvin porque naquele momento o prédio sacudiu com outro bombardeio. Tentou ir cambaleando de volta ao elevador — uma manobra sem sentido, ele sabia, mas a única em que conseguiu pensar.

De repente, no final de um corredor em ângulo reto, avistou uma figura, um homem. O homem o viu.

— Beeblebrox, aqui! — gritou o homem.

Zaphod o encarou, desconfiado, enquanto uma nova bomba atingia o edifício.

— Não — gritou Zaphod. — Beeblebrox aqui! Quem é você?

— Um amigo! — respondeu o homem. Ele veio correndo em direção a Zaphod.

— Ah, é? — disse Zaphod. — Amigo de alguém em particular, ou simplesmente bem disposto para com todas as pessoas?

O homem corria pelo corredor, com o chão enrugando-se a seus pés como um cobertor. Era baixo, atarracado, maltratado pelo tempo e suas roupas pareciam ter dado duas voltas pela Galáxia com ele dentro.

— Você sabia — gritou Zaphod em seu ouvido quando ele chegou — que seu prédio está sendo bombardeado?

O homem atestou seu conhecimento do fato.

De repente não estava mais claro. Olhando pela janela para descobrir por que, Zaphod ficou boquiaberto ao ver uma imensa nave espacial cinza-chumbo com uma consistência de lesma arrastando-se pelo ar em torno do edifício. Outras duas a seguiam.

— O governo que você desertou está em seu encalço, Zaphod — sussurrou o homem —, mandaram um esquadrão de Lutadores Astrossapos.

— Lutadores Astrossapos! — murmurou Zaphod. — Zarquon!

— Sentiu o drama?

— O que são Lutadores Astrossapos? — Zaphod tinha certeza de ter ouvido alguém falar sobre eles quando era presidente, mas nunca prestava muita atenção a assuntos oficiais.

O homem o estava puxando para uma porta. Ele o acompanhou. Com um gemido, um objeto em forma de aranha cortou chamuscando o ar e desapareceu no fim do corredor.

— O que foi isso? — sussurrou Zaphod.

— Um robô classe A da Patrulha Astrossapa à sua procura — disse o homem.

— Ah, é?

— Abaixe-se!

Da direção oposta veio um objeto maior em forma de aranha. Passou por eles zunindo.

— E isso foi...?

— Um robô classe B da Patrulha Astrossapa à sua procura.

— E aquilo? — disse Zaphod quando um terceiro vinha chamuscando pelo ar.

— Um robô classe C da Patrulha Astrossapa à sua procura.

— Ei — disse Zaphod consigo mesmo com um risinho de escárnio —, uns robôs bem estúpidos, ehn?

Do outro lado da ponte veio um estrondo retumbante. Uma gigantesca forma negra movia-se sobre ela, vinda do outro prédio, do tamanho e da forma de um tanque.

— Fóton Sagrado, o que é aquilo? — disse Zaphod, resfolegante.

— Um tanque — disse o homem —, um robô classe D da Patrulha Astrossapa que veio te pegar.

— Não é melhor irmos embora?

— Acho que sim.

— Marvin! — gritou Zaphod.

— O que você quer?

Marvin ergueu-se de uma pilha de entulho de alvenaria mais adiante no corredor e olhou para eles.

— Você está vendo aquele robô vindo em nossa direção?

Marvin olhou para a gigantesca forma negra que se dirigia em sua direção atravessando a ponte. Olhou para seu franzino corpo metálico. Olhou de novo para o tanque.

— Imagino que você quer que eu o detenha — disse.

— Isso.

— Enquanto vocês salvam suas peles.

— Isso — disse Zaphod —, faça isso!

— Apenas pelo tempo em que eu souber onde estou — disse Marvin.

O homem deu um puxão no, braço de Zaphod, e Zaphod o seguiu pelo corredor.

Ocorreu-lhe uma questão a esse respeito.

— Onde estamos indo? — perguntou.

— Ao escritório de Zarniwoop.

— Isso é hora de manter um compromisso?

— Venha!

 

Marvin ficou de pé no fim do corredor da ponte. Na verdade ele não era exatamente um robô pequeno. Seu corpo de prata reluzia nos raios de sol empoeirados e agitava-se com o contínuo bombardeio que o prédio continuava sofrendo.

Ele parecia, no entanto, miseravelmente pequeno diante do gigantesco tanque negro que parou na sua frente. O tanque o examinou detalhadamente com uma sonda. Retraiu a sonda.

Marvin ficou ali parado.

— Fora do meu caminho, robozinho — rugiu o tanque.

— Lamento — disse Marvin —, mas fui deixado aqui para detê-lo.

A sonda estendeu-se de novo para uma rápida conferida. Retraiu-se outra vez.

— Você? Me deter? — urrou o tanque. — Qual é?

— Não, é verdade, realmente — disse Marvin simplesmente.

— Com o que você está armado? — urrou o tanque, incrédulo.

— Adivinha — disse Marvin.

Os motores do tanque retumbaram, as engrenagens rangeram. As peças eletrônicas do tamanho de moléculas no fundo de seu microcérebro vibravam para a frente e para trás de consternação.

— Adivinha? — disse o tanque.

Zaphod e o homem ainda sem nome viraram por um corredor, cambalearam por outro, correram por um terceiro. O prédio continuava a sacudir e balançar e isso Zaphod não entendia. Se eles queriam explodir o prédio por que estavam demorando tanto?

Com dificuldade chegaram a uma das várias portas anônimas e sem indicações e pararam arfando diante dela. Num solavanco repentino ela se abriu e eles caíram para dentro.

Toda essa estória, pensou Zaphod, toda essa encrenca, todo esse não-estar-deitado-numa-praia-divertindo-se-pra-caramba, tudo isso para quê? Uma única cadeira, uma única mesa e um único cinzeiro sujo num escritório sem decoração. A mesa, a não ser por um pouco de poeira tremulante e um único clipe de papel de uma nova forma revolucionária, estava vazia.

— Onde — disse Zaphod — está Zarniwoop? — sentindo que a compreensão já tênue que ele tinha de tudo aquilo começava a se desfazer.

— Está num cruzeiro intergaláctico — disse o homem. Zaphod procurou fazer uma avaliação do homem. Do

tipo austero, pensou, não um saco de risadas. Dedica provavelmente boa parte do seu tempo a correr para cima e para baixo por corredores sinuosos, arrombar portas e fazer comentários críticos em escritórios vazios.

— Permita-me que me apresente — disse o homem. — Meu nome é Roosta e esta é minha toalha.

— Olá, Roosta — disse Zaphod.

— Olá, toalha — acrescentou, quando Roosta estendeu-lhe uma toalha florida meio velha. Sem saber o que fazer com ela, cumprimentou-a sacudindo um dos cantos.

Do lado de fora da janela uma das imensas naves espaciais cinza-chumbo com consistência de lesma passou rugindo.

— É, vá em frente — disse Marvin à gigantesca máquina de guerra —, você nunca vai adivinhar.

— Ahhhhmmmm... —, disse a máquina, vibrando com o pensamento desacostumado — raios laser?

Marvin balançou a cabeça solenemente.

— Não — murmurou a máquina com seu ronco gutural —, óbvio demais. Raio antimatéria? — arriscou.

— Obvio demais — advertiu Marvin.

— É — rosnou a máquina, meio desconcertada. — Ahnn... que tal um aríete de elétrons?

Essa era nova para Marvin.

— O que é isso? — perguntou.

— Destes aqui — disse a máquina, entusiasmada.

De sua torre emergiu um tubo que lançou uma única labareda de luz. Atrás de Marvin uma parede desmoronou como um monte de poeira. A poeira flutuou um pouco antes de assentar.

— Não — disse Marvin —, não é desses.

— Mas é bom, não é?

— Muito bom — concordou Marvin.

— Já sei — disse a máquina de guerra Astrossapa, após mais um instante de consideração. — Você deve ter um daqueles novos Emissores Xanticos Reestrutrônicos de Zênon Desestabilizado!

— Esses são bons, ehn? — disse Marvin.

— É desses que você tem? — disse a máquina com considerável respeito.

— Não — disse Marvin.

— Ah — disse a máquina, desapontada —, então deve ser...

— Você está pensando pelo lado errado — disse Marvin. — Você está deixando de levar em consideração uma coisa bastante básica no relacionamento entre homens e robôs.

— Ahn, eu sei — disse a máquina de guerra —, deixa ver... — mergulhou novamente em pensamentos.

— Pense bem — instigou Marvin —, eles me deixaram aqui, eu, um robô comum e desprezível, para deter você, uma gigantesca máquina de guerra pesada, enquanto fugiam para salvar suas peles. O que você acha que iam deixar comigo?

— Aaah ahnn — murmurou a máquina, preocupada —, alguma coisa muito devastadora mesmo, imagino.

— Imagina! — disse Marvin. — Ah, tá, imagina mesmo. Vou te dizer o que eles me deram para me proteger, posso?

— Tá, tudo bem — disse a máquina de guerra, preparando-se.

— Nada — disse Marvin.

— Nada? — urrou a máquina de guerra.

— Nadinha, nadinha — entoou Marvin lugubremente —, nem uma salsicha eletrônica.

A máquina arfava, furiosa.

— Mas isso é demais, passa dos limites! — urrava. — Nada, ehn? O que que eles pensam?

— E eu — disse Marvin com uma voz macia — com essa dor terrível nos diodos esquerdos.

— Dá vontade cuspir, né?

— Pois é — concordou Marvin com sentimento.

— Puxa, essas coisas me deixam nervoso! — berrou a máquina. — Acho que vou arrebentar com aquela parede!

O aríete de elétrons lançou mais uma flamejante labareda de luz e destruiu a parede do lado do tanque.

— Como você acha que eu me sinto? — disse Marvin amargamente.

— Simplesmente fugiram e deixaram você aí? — trovejou a máquina.

— Pois é — disse Marvin.

— Acho que vou arrebentar com o maldito teto deles também! — gritou o tanque, com raiva.

Destruiu o teto da ponte.

— Isso é muito impressionante — murmurou Marvin.

— Você ainda não viu nada — prometeu a máquina. — Posso destruir este chão também, sem problema!

Destruiu o chão também.

— Droga! — urrou a máquina enquanto despencava de quinze andares e espatifava-se no chão lá embaixo.

— Que máquina deprimentemente estúpida — disse Marvin e saiu caminhando penosamente.

 

— E aí, a gente vai ficar aqui sentado? — disse Zaphod, irritado. — O que esses caras aí fora estão querendo?

— Você, Beeblebrox — disse Roosta —, eles estão tentando levar você para o Planeta Astrossapo, o mundo mais completamente maligno de toda a Galáxia.

— Ah, é? — disse Zaphod. — Primeiro eles vão ter que vir me pegar.

— Eles vieram te pegar — disse Roosta —, olhe pela janela.

Zaphod olhou, e ficou estupefato.

— O chão está indo embora! — disse, engolindo em seco. — Para onde eles estão levando o chão?

— Eles estão levando o edifício — disse Roosta —, estamos sendo transportados pelo ar.

Nuvens velozes passaram pela janela do escritório.

Zaphod pôde ver mais uma vez do lado de fora o anel de Lutadores Astrossapos ao redor do edifício arrancado do solo. Uma rede de raios de força irradiava deles e mantinha a torre firmemente segura.

Zaphod balançou as cabeças, perplexo.

— O que eu fiz para merecer isso? — disse. — Eu entro num prédio e eles vêm e o levam embora.

— Não é com o que você fez que eles estão preocupados — disse Roosta —, mas com o que você vai fazer.

— Bom, e eu não tenho direito de me manifestar nessa estória?

— Você já teve, anos atrás. É melhor você se segurar, estamos prestes a fazer uma viagem veloz e acidentada.

— Se algum dia eu me encontrar — disse Zaphod — vou me dar uma surra tão grande que eu vou aprender o que é apanhar.

Marvin entrou desconsolado pela porta, encarou Zaphod com olhos acusadores, agachou-se num canto e se desligou.

Na ponte de comando da nave Coração de Ouro, tudo estava em silêncio. Arthur olhava para o anteparo à sua frente e pensava. Percebeu o olhar de Trillian, que o observava inquisitivamente. Olhou de novo para o anteparo.

Finalmente ele viu.

Pegou quatro quadrados pequenos de plástico e os colocou sobre o painel que estava diante do anteparo.

Os quatro quadrados continham as quatro letras E, X, C e E. Ele os colocou junto às letras, L, E, N, T e E.

— Excelente — disse ele —, valendo três vezes o valor da palavra. Acho que isso vai dar muitos pontos!

A nave sacolejou e espalhou algumas das letras pela enésima vez.

Trillian suspirou e começou a arrumá-las de novo.

Pelos corredores ecoavam os passos de Ford Prefect que andava pela nave dando pancadas nos instrumentos parados.

Por que a nave continuava a sacolejar? — pensou.

Por que sacudia e balançava?

Por que ele não conseguia descobrir onde eles estavam? Onde, afinal, eles estavam?

A torre esquerda do edifício-sede do Guia da Galáxia para Caronas atravessou o espaço interestelar numa velocidade jamais igualada por qualquer outro edifício de escritórios no Universo.

Numa sala, na metade do edifício, Zaphod Beeblebrox andava nervosamente a passos largos.

Roosta estava sentado num canto da mesa fazendo a manutenção rotineira da toalha.

— Ei, para onde você falou que este prédio estava indo mesmo? — perguntou Zaphod.

— Para o Planeta Astrossapo — disse Roosta —, o lugar mais completamente maligno do Universo.

— Eles têm comida lá? — disse Zaphod.

— Comida? Você está indo para o Astrossapo e está preocupado se eles têm comida?

— Sem comida eu não vou para o Astrossapo.

Pela janela eles não viam nada além da luz tremulante dos raios de força, e vagas formas esverdeadas que deviam ser as imagens distorcidas dos Lutadores Astrossapos. A essa velocidade o espaço em si era invisível e de fato irreal.

— Tome, chupe — disse Roosta, oferecendo sua toalha a Zaphod.

Zaphod o encarou como se esperasse que um cuco saltasse de sua testa, preso a uma mola.

— Está encharcada de nutrientes — explicou Roosta.

— Que espécie de cara é você, um comedor de porcaria ou coisa assim? — disse Zaphod.

— As listas amarelas são ricas em proteínas, as verdes contêm vitaminas C e complexo B, as florezinhas cor-de-rosa contêm extrato de germe de trigo.

Zaphod pegou e observou, maravilhado.

— E essas manchas marrons? — perguntou.

— Molho de churrasco — disse Roosta —, para quando eu enjoar de germe de trigo.

Zaphod cheirou, desconfiado.

Mais desconfiado ainda, chupou um dos cantos. Cuspiu fora.

— Argh — declarou.

— Ê — disse Roosta —, quando eu chupo esse canto eu sempre tenho que chupar um pouquinho do outro canto também.

— Por que — perguntou Zaphod, cheio de suspeita —, o que tem?

— Antidepressivos — disse Roosta.

— Não quero saber dessa toalha — disse Zaphod, devolvendo-a.

Roosta a pegou de volta, pulou da mesa, deu a volta e sentou na cadeira, levantando os pés.

— Beeblebrox — disse, colocando os braços atrás da cabeça —, você tem alguma idéia do que vai te acontecer no Planeta Astrossapo?

— Eles vão me dar de comer — arriscou Zaphod, esperançoso.

— Eles vão te dar de comer — disse Roosta — ao Vórtice de Perspectiva Total!

Zaphod nunca tinha ouvido falar nisso. Ele acreditava já ter ouvido falar de todas as coisas divertidas da Galáxia, de forma que calculou que o Vórtice de Perspectiva Total não devia ser divertido. Perguntou a Roosta o que era.

— Apenas — disse Roosta — a mais selvagem das torturas psíquicas a que se pode submeter um ser consciente.

Zaphod balançou a cabeça resignado.

— Quer dizer então — disse ele — que não tem comida, né?

— Ouça! — disse Roosta insistentemente — Você pode matar um homem, destruir seu corpo, quebrar seu espírito, mas apenas o Vórtice de Perspectiva Total pode aniquilar a alma de um homem! O tratamento dura alguns segundos, mas os efeitos duram o resto da vida!

— Você já tomou uma Dinamite Pangaláctica? — perguntou Zaphod vivamente.

— É pior.

— Urras!"— admitiu Zaphod, muito impressionado.

— Tem alguma idéia de por que esses caras estão querendo fazer isso comigo? — acrescentou um momento mais tarde.

— Eles acreditam que essa é a melhor maneira de destruir você para sempre. Eles sabem do que você está atrás.

— Será que eles não podiam me dar um toque e me deixar saber também?

— Você sabe, Beeblebrox — disse Roosta —, você sabe. Você quer encontrar o homem que rege o Universo.

— Ele sabe cozinhar? — disse Zaphod. Refletindo um pouco, acrescentou:

— Duvido. Se ele soubesse preparar uma boa refeição por que iria importar-se com o resto do Universo? Eu quero encontrar um cozinheiro.

Roosta suspirou pesadamente.

— O que você está fazendo aqui, de qualquer forma? — perguntou Zaphod. — O que você tem a ver com tudo isso?

— Sou apenas um dos que planejaram a coisa, junto com Zarniwoop, junto com Yooden Vranx, junto com seu bisavô, junto com você, Beeblebrox.

— Comigo?

— É, com você. Me disseram que você tinha mudado, eu não imaginava quanto.

— Mas...

— Estou aqui para fazer uma coisa. Vou fazer antes de deixar você.

— Que coisa, cara? Do que você está falando?

— Vou fazer antes de deixar você.

Roosta mergulhou num silêncio impenetrável. Zaphod ficou contentíssimo.

 

O ar em torno do segundo planeta do sistema Astros-sapo era viciado e insalubre.

Os ventos úmidos que varriam constantemente sua superfície sopravam sobre pântanos salgados, charcos ressequidos, um emaranhado de vegetação putrefata e ruínas de cidades desmoronadas. Nenhuma forma de vida movia-se sobre sua superfície. O solo, como o de muitos planetas dessa região da Galáxia, estava deserto há muito tempo.

O uivo do vento era bastante desolador quando cortava as velhas casas decadentes das cidades; era ainda mais desolador quando dava lufadas nas bases das altas torres negras que oscilavam aqui e ali pela superfície desse mundo. No topo dessas torres viviam colônias de grandes aves descarnadas que cheiravam mal, os únicos sobreviventes da civilização que outrora vivera ali.

O uivo do vento era mais desolador do que nunca porém, quando passava sobre um lugarzinho de nada no meio de uma ampla planície cinzenta nos arredores da maior das cidades abandonadas.

Esse lugarzinho de nada era o que tinha dado a esse planeta a reputação de ser o lugar mais totalmente maligno da Galáxia. De fora era apenas um domo de aço de cerca do quinze metros de diâmetro. Por dentro era algo mais monstruoso do que a mente possa compreender.

A uns cento e cinqüenta metros dali, separado por uma faixa crestada e bexiguenta da terra mais infecunda que se possa imaginar, ficava o que talvez pudesse ser descrito como um sofrível campo de pouso. Isso para dizer que espalhados por uma área ampla estavam as carcaças desajeitadas de duas ou três dúzias de edifícios que tinham sofrido uma aterrissagem forçada.

Uma mente esvoaçava em torno desses edifícios, uma mente que estava à espera de alguma coisa.

A mente dirigiu sua atenção para o espaço, e dentro de pouco tempo surgiu um pontinho na distância rodeado por um anel de pontinhos menores.

O pontinho maior era a torre esquerda do edifício de escritórios do Guia da Galáxia para Caronas penetrando na estratosfera do Planeta Astrossapo B.

Enquanto ele descia, Roosta subitamente quebrou o longo e desconfortável silêncio que tinha crescido entre os dois.

Levantou-se e enfiou sua toalha numa mala. Disse:

— Beeblebrox, agora eu vou fazer a coisa para a qual eu fui mandado.

Zaphod olhou para ele de onde estava, sentado num canto trocando idéias não enunciadas com Marvin.

— Ah, é? — disse ele.

— O edifício vai aterrissar em breve. Quando você for sair, não saia pela porta — disse Roosta —, saia pela janela.

— Boa-sorte — acrescentou, e saiu pela porta, desaparecendo da vida de Zaphod tão misteriosamente quanto tinha entrado.

Zaphod pulou e tentou abrir a porta, mas Roosta já a tinha trancado. Deu de ombros e voltou para o seu canto.

Dois minutos mais tarde o prédio espatifou-se no chão no meio dos outros destroços. A escolta de Lutadores Astrossapos desativou os raios de força e elevou-se no ar novamente, rumo ao Planeta Astrossapo A, um lugar completa-mente mais agradável. Eles nunca pousaram no Planeta Astrossapo B. Ninguém jamais pousava. Ninguém jamais andava por sua superfície a não ser as futuras vítimas do Vórtice de Perspectiva Total.

Zaphod ficou muito abalado com o choque da aterrissagem. Ficou deitado por um tempo no silencioso monturo de poeira a que se tinha reduzido a maior parte da sala. Sentiu que estava na fase mais decadente de sua vida. Sentia-se desnorteado, sentia-se só, sentia-se sem amor. Por fim sentia que devia passar por cima do que quer que fosse.

Olhou pela sala quebrada e destruída. A parede em torno da porta tinha partido e a porta estava aberta, dependurada. A janela, por algum milagre, estava inteira e fechada. Hesitou por um instante e então pensou que se aquele seu estranho companheiro recente tinha passado por tudo aquilo por que tinha passado apenas para lhe dizer aquilo que lhe tinha dito, devia ter uma boa razão. Abriu a janela com a ajuda de Marvin. Do lado de fora, a nuvem de poeira levantada pela aterrissagem e os destroços dos outros edifícios ao redor efetivamente impediam que Zaphod pudesse ver qualquer coisa do mundo lá fora.

Não que isso lhe importasse muito. Sua principal preocupação foi com o que viu ao olhar para baixo. O escritório de Zarniwoop ficava no décimo quinto andar. O edifício tinha pousado numa inclinação de uns quarenta e cinco graus, mas ainda assim a descida era de apertar o coração.

Finalmente, irritado com a série de olhares insolentes que Marvin lhe dirigia, respirou fundo e saiu para fora, para a parede íngreme do edifício. Marvin o seguiu e juntos começaram a arrastar-se devagar e penosamente para descer os quinze andares que os separavam do solo.

Enquanto descia, o ar putrefato sufocava os pulmões de Zaphod, seus olhos ardiam, e a terrível altura fazia suas cabeças girarem.

O comentário fortuito de Marvin do tipo "É esse o tipo de coisa que vocês, seres vivos, gostam de fazer? Estou perguntando apenas a título de informação" contribuiu muito pouco para melhorar seu estado de espírito.

Na metade da descida pelo edifício estraçalhado pararam para descansar. Sentado ali, ofegante de medo e de cansaço, Zaphod achou que Marvin parecia um pouquinho mais animado do que de costume. Por fim, ele se deu conta de que não era bem isso. O robô apenas parecia mais animado em comparação com o ânimo de Zaphod.

Um imenso pássaro preto asqueroso surgiu batendo as asas através da nuvem de poeira que assentava lentamente e, estirando as garras esqueléticas, pousou sobre uma janela inclinada a alguns metros de Zaphod. Dobrou suas asas desajeitadas e ficou balançando desagradavelmente em seu poleiro.

A envergadura das asas devia ser de cerca de três metros, e o pescoço e a cabeça pareciam curiosamente grandes para uma ave. A cara era achatada e o bico não muito desenvolvido, e na metade das asas vestígios de algo em forma de mãos podiam ser vistos claramente.

Para falar a verdade, tinha aparência quase humana.

Dirigiu os olhos pesados para Zaphod e bateu o bico de modo desconexo.

— Vá embora — disse Zaphod.

— OK — disse o pássaro morosamente e saiu voando em meio à nuvem de poeira.

Zaphod observou atordoado a sua partida.

— Aquele pássaro falou comigo? — perguntou a Marvin nervosamente. Estava preparado para crer na explicação alternativa, de que estava na verdade tendo alucinações.

— Falou — confirmou Marvin.

— Pobres almas — disse uma voz profunda e etérea no ouvido de Zaphod.

Virando-se violentamente para descobrir de onde vinha a voz, Zaphod quase caiu do prédio. Agarrou-se desesperado na saliência de uma janela e cortou a mão. Segurou-se, respirando com dificuldade.

A voz não vinha de nenhum lugar visível que fosse — não havia ninguém ali. Mesmo assim, falou de novo.

— Uma trágica história por trás deles, sabe? Uma praga terrível.

Zaphod olhou atordoado à sua volta. A voz era profunda e calma. Em outras circunstâncias poderia ser definida como reconfortante. Não há, no entanto, nada de reconfortante em ser chamado por uma voz sem corpo vinda do nada, principalmente quando se está, como Zaphod Beeblebrox, fora de sua melhor forma e pendurado num parapeito no oitavo andar de um edifício que se espatifou.

— Ei, ahn... — gaguejou.

— Quer que eu lhe conte a estória deles? — inquiriu calmamente a voz.

— Ei, quem é você — perguntou Zaphod, ofegante. — Onde você está?

— Talvez mais tarde, então — murmurou a voz. — Eu sou Gargravarr. Sou o Guardião do Vórtice de Perspectiva Total.

— Por que eu não o vejo?...

— Você terá sua descida enormemente facilitada — falou mais alto a voz — se se dirigir a uns seis metros a sua esquerda. Por que não tenta?

Zaphod olhou e viu uma série de pequenas ranhuras horizontais que chegavam até o solo. Agradecido, arrastou-se até elas.

— Por que não nos encontramos lá embaixo? — disse a voz em seu ouvido, diminuindo enquanto falava.

— Ei — gritou Zaphod. — Onde está você?

— Você só vai levar alguns minutos... — disse a voz, quase sumindo.

— Marvin — disse Zaphod gravemente ao robô que se encontrava acocorado e deprimido próximo a ele —, por acaso... por acaso uma voz acabou de...

— Sim — respondeu Marvin sucintamente. Zaphod balançou a cabeça. Pegou seus óculos escuros perigo-sensitivos outra vez. As lentes estavam completamente pretas, e desta vez muito riscadas por causa do inesperado objeto de metal em seu bolso. Ele os colocou. Encontraria o caminho.para descer do prédio com mais conforto se não precisasse ver efetivamente o que estava fazendo.

Minutos mais tarde estava andando sobre os destroços da base do edifício. Tirou os óculos e pulou para o chão.

Marvin o alcançou logo em seguida e estendeu-se de bruços sobre a poeira e os entulhos, posição da qual não parecia muito inclinado a mudar-se.

— Ah, aí está você — disse de repente a voz no ouvido de Zaphod. — Desculpe-me por tê-lo deixado sozinho daquele jeito, mas é que eu tenho um estômago péssimo para altura. Ou pelo menos — acrescentou melancolicamente — eu tinha um estômago péssimo para altura.

Zaphod olhou ao redor com cuidado, vagarosamente, apenas para ver se tinha deixado de notar alguma coisa que pudesse ser a fonte da voz. Tudo o que viu, no entanto, foi poeira, entulho e as formas gigantescas dos prédios à sua volta.

— Ei, ahn, por que eu não te vejo? — perguntou. — Por que você não está aqui?

— Eu estou aqui — disse a voz, devagar. — Meu corpo queria vir, mas estava meio ocupado no momento. Umas coisas para fazer, ver umas pessoas... — Após algo que pareceu um suspiro etéreo acrescentou: — Você sabe como são os corpos.

Zaphod não tinha muita certeza a esse respeito.

— Eu pensava que sabia — respondeu.

— Só espero que ele esteja repousando — continuou a voz. — Do jeito que ele vem vivendo ultimamente, não vai muito para lá dos cotovelos.

— Cotovelos? — disse Zaphod. — Você não quer dizer pernas?

A voz não disse nada por alguns instantes. Zaphod olhou à sua volta, pouco à vontade. Não sabia se ela tinha ido embora, se ainda estava ali ou o que estaria fazendo. A voz falou de novo.

— Então você está para ser colocado no Vórtice, é?

— Ahn, bom... — disse Zaphod, num esforço muito pobre de mostrar indiferença — não tem muita pressa, sabe? Acho que primeiro vou relaxar e dar uma olhada na paisagem do lugar, sabe?

— Você viu a paisagem do lugar? — perguntou a voz de Gargravarr.

— Ahn, não.

Zaphod trepou pelos entulhos, e deu a volta num dos prédios que lhe impediam a vista.

Olhou a paisagem do Planeta Astrossapo B.

— Ah, OK — disse —, só vou relaxar, então.

— Não — disse Gargravarr. — O Vórtice está pronto para você já. Você tem que vir. Siga-me.

— Ahn, é? — disse Zaphod. — E como espera que eu o faça?

— Vou zunir para você — disse Gargravarr. — Você segue o zunido.

Um suave ruído agudo cortou o ar. Um som pálido e triste que parecia não ter nenhuma espécie de foco. Só escutando com bastante cuidado Zaphod conseguiu detectar a direção de onde vinha. Devagar, aturdido, foi cambaleando em sua esteira. O que mais poderia fazer?

 

O Universo, como já foi observado anteriormente, é um lugar desconcertantemente grande, fato este que pelo bem de uma vida tranqüila a maioria das pessoas tende a ignorar.

Muitos se mudariam contentes para lugares consideravelmente menores em suas próprias redondezas, e é aliás o que de fato a maioria dos seres faz.

Por exemplo, num canto do Braço Oriental da Galáxia fica o planeta florestal Oglaroon, cuja totalidade da população "inteligente" vive permanentemente dentro de uma populosa e um tanto diminuta nogueira. Dentro de tal árvore nascem, vivem, apaixonam-se, entalham em sua casca minúsculos artigos especulando sobre o sentido da vida, a futilidade da morte e a importância do controle de natalidade, combatem em algumas guerras de pequena importância, e eventualmente morrem pendurados sob as ramagens de alguns dos galhos exteriores mais inacessíveis.

De fato, os únicos oglaroonienses que chegam a deixar sua árvore são aqueles que são atirados fora dela pelo abominável crime de imaginar se alguma das outras árvores poderia ser capaz de comportar vida, ou mesmo se as outras árvores são algo além de ilusões provocadas por comer ogla-nozes demais.

Por exótico que possa parecer este comportamento, não há uma única forma de vida na galáxia que não possa de algum modo ser acusada da mesma coisa, o que é a razão do Vórtice de Perspectiva Total ser tão horripilante.

Pois quando você é posto no Vórtice você tem um vislumbre momentâneo de toda a inimaginável infinidade da criação, e em algum lugar, um marcador minúsculo, um ponto microscópico sobre um ponto microscópico, dizendo "Você está aqui".

A planície cinzenta estendia-se diante de Zaphod, uma planície destroçada e em ruínas. O vento soprava ferozmente sobre ela.

Visível no meio dela estava a protuberância metálica do domo. Aquilo, percebeu Zaphod — era para onde estava indo. Aquilo era o Vórtice de Perspectiva Total.

Quando parou e contemplou friamente o domo, um súbito uivo desumano de terror emanou dele, como se um homem estivesse tendo sua alma arrancada a fogo de dentro de seu corpo. Gritou por sobre o vento e morreu no silêncio.

Zaphod começou a ter medo e seu sangue parecia transformar-se em hélio líquido.

— Ei, o que foi isso?— murmurou sem voz.

— Uma gravação — disse Gargravarr — do último homem que foi posto no Vórtice. Sempre é tocada para a próxima vítima. Uma espécie de prelúdio.

— Ei, soa realmente mal... — gaguejou Zaphod — será que não dava para a gente dar uma saidinha, ir a uma festa, coisa assim, e conversar mais a respeito?

— Pelo que eu saiba — disse a voz etérea de Gargravarr — eu já estou numa. Ou seja, o meu corpo está. Ele vai a muitas festas sem mim. Diz que eu só atrapalho. Pois é.

— Como é isso que você tem com o seu corpo? — disse Zaphod, ansioso por fazer demorar o quanto pudesse o que quer que fosse aquilo que ia acontecer com ele.

— Bom, é meio... é complicado, sabe? — disse Gargravarr hesitante.

— Ele tem uma mente própria, é isso?

Houve uma pausa longa e um tanto gelada antes que Gargravarr voltasse a falar.

— Devo dizer — retrucou — que considero esse comentário um tanto de mau-gosto.

Zaphod murmurou um pedido de desculpas confuso e embaraçado.

— Não tem importância — disse Gargravarr —, você não sabia.

A voz vibrava, infeliz.

— A verdade é que — prosseguiu, num tom que sugeria que ela estava tentando com muito esforço manter o controle —, a verdade é que estamos atravessando um período de separação judicial. Suspeito que acabará em divórcio.

A voz ficou quieta de novo, deixando Zaphod sem saber o que dizer. Resmungou qualquer coisa sem convicção.

— Acho que provavelmente nós não combinávamos bem um com o outro — disse Gargravarr finalmente — parece que nunca estávamos felizes fazendo as mesmas coisas. Sempre tínhamos as maiores discussões a respeito de sexo e pescarias. Eventualmente tentávamos combinar as duas coisas, mas isso só acabava em desastre, como você pode provavelmente imaginar. E agora meu corpo se recusa a me deixar entrar. Não quer nem me ver...

Fez outra pausa, tragicamente. O vento gemia na planície.

— Diz que eu só o restrinjo. Eu argumentei que lá era o meu lugar e ele disse que esse era exatamente o tipo de resposta espertinha que entrava por um ouvido e saía pelo outro. Provavelmente vai conseguir a custódia do meu primeiro nome.

— Oh...? — disse Zaphod, indistintamente. — E qual é?

— Pizpot — disse a voz. — Meu nome é Pizpot Gargravarr. Diz tudo não?

— Ahnnnn — disse Zaphod com compaixão.

— E é por isso que eu, uma mente sem corpo, tenho esse emprego, Guardião do Vórtice de Perspectiva Total. Ninguém jamais andará na superfície deste planeta. A não ser as vítimas do Vórtice — mas essas não contam.

— Ah...

— Vou contar a história. Gostaria de ouvi-la?

— Ahn...

— Há muitos anos este era um planeta próspero e feliz; pessoas, cidades, lojas, um mundo normal. Exceto pelo fato de que nas ruas altas dessas cidades havia mais sapatarias do que se creria necessário. E lentamente, insidiosamente, o número dessas sapatarias ia aumentando. É um fenômeno econômico bastante conhecido, mas trágico de se ver em operação, pois quanto mais sapatarias havia, mais sapatos tinham que ser feitos, e piores e mais imprestáveis iam ficando esses sapatos. E quanto piores ficavam, mais as pessoas tinham que comprar para se manterem calçadas, e mais as sapatarias proliferavam, até que toda a economia do lugar passou pelo que creio que foi chamado de Advento da Era do Sapato, e não foi mais possível economicamente construir qualquer outra coisa que não fosse sapataria. Resultado: colapso, ruína e fome. A maioria da população pereceu. Aqueles poucos que tinham o tipo certo de instabilidade genética transformaram-se por mutações em pássaros — você viu um deles — que amaldiçoaram seus pés, amaldiçoaram o chão e juraram que ninguém mais pisaria nele. Bando infeliz. Venha, preciso levá-lo ao Vórtice.

Zaphod balançou a cabeça estupefato e seguiu cambaleando pela planície.

— E você — perguntou —, você vem deste fundo do inferno?

— Não, não — disse Gargravarr recuando. — Eu sou do Planeta Astrossapo C. Um bonito lugar. Maravilhoso para pesca. Vôo de volta para lá à noitinha. Se bem que tudo que eu posso fazer agora é ficar olhando. O Vórtice de Perspectiva Total é a única coisa neste planeta que tem alguma função. Foi construído aqui porque ninguém mais o queria na porta de casa.

Nesse instante outro grito lúgubre cortou o ar e Zaphod estremeceu.

— O que que isso faz com o cara? — perguntou ofegante.

— O Universo — disse Gargravarr com simplicidade —, todo o Universo infinito. Os sóis infinitos, as infinitas distâncias entre eles, e você um pontinho invisível sobre um pontinho invisível, infinitamente pequeno.

— Ei, eu sou Zaphod Beeblebrox, cara, sabia? — sussurrou Zaphod, tentando agitar os últimos restos do seu ego.

Gargravarr não retrucou, mas apenas retomou seu zunido pesaroso até que chegaram ao deslustrado domo de aço no meio da planície.

Ao chegarem, a porta abriu de um lado, revelando uma pequena câmara escura no interior.

— Entre — disse Gargravarr. Zaphod sentiu medo.

— Ei, o quê, já? — disse.

— Já.

Zaphod observou o interior nervosamente. A câmara era muito pequena. Era de aço e quase não havia espaço para mais de um homem dentro dela.

— Ahn... não... não parece muito com um Vórtice para mim — disse Zaphod.

— E não é mesmo — disse Gargravarr. — É apenas o elevador. Entre.

Com uma trepidação infinita, Zaphod deu um passo para dentro. Sabia que Gargravarr estava no elevador com ele, embora o homem sem corpo não estivesse falando naquele momento.

O elevador iniciou a descida.

— Preciso achar o estado de espírito certo para isso — murmurou Zaphod.

— Não há estado de espírito certo — disse Gargravarr duramente.

— Você sabe mesmo como fazer um cara se sentir inadequado.

— Eu não. O Vórtice sabe.

No fundo do poço, o elevador se abriu e Zaphod foi cair numa câmara de aço pequena e funcional.

Do outro lado havia uma única cabine vertical de aço, do tamanho exato para caber um homem em pé.

Era simples assim.

Estava conectada a uma pequena pilha de componentes e instrumentos através de um único fio grosso.

— É isso aí? — disse Zaphod, surpreso.

— É isso.

Não parecia tão ruim, pensou Zaphod.

— E eu entro aí dentro, é isso? — disse Zaphod.

— Entra — disse Gargravarr —, e creio que deve fazê-lo já.

— OK,OK —disse Zaphod. Abriu a porta da cabine e entrou. Dentro da cabine, ficou esperando.

Passados cinco minutos ouviu um clique, e o Universo estava na cabine com ele.

 

O Vórtice de Perspectiva Total desenvolve sua imagem do Universo como um todo a partir do princípio da análise extrapolada da matéria.

Explicando — uma vez que cada pedaço de matéria no Universo está de alguma maneira afetado por todos os outros pedaços de matéria do Universo, é teoricamente possível extrapolar o todo da criação — cada sol, cada planeta, suas órbitas, sua composição e sua história econômica e social a partir de, digamos, um pedaço de pão-de-ló.

O homem que inventou o Vórtice de Perspectiva Total fez isso basicamente para irritar sua mulher.

Trin Tragula — esse era o nome dele — era um sonhador, um pensador, um filósofo especulativo ou, como sua mulher o definiria, um idiota.

E ela o apoquentava incessantemente por causa do tempo completamente fora de propósito que ele dedicava a observar o espaço, ou a meditar sobre o mecanismo dos alfinetes de segurança, ou a fazer análises espectrográficas de pedaços de pão-de-ló.

— Tenha um pouco de senso de proporção! — dizia ela, às vezes trinta e oito vezes em um só dia.

E então ele construiu o Vórtice de Perspectiva Total — só para mostrar para ela.

E numa ponta ele ligou a totalidade da realidade, extrapolada de um pedaço de pão-de-ló, e na outra ponta ligou sua esposa: de modo que quando pôs a máquina para funcionar ela viu num instante toda a infinidade da criação e viu-se a si mesma em relação a isso.

Para horror de Trin Tragula o choque aniquilou completamente seu cérebro; mas para sua satisfação ele se deu conta de que tinha provado conclusivamente que se a vida há de existir num Universo deste tamanho, uma coisa que ela não pode ter é senso de proporção.

A porta do Vórtice abriu-se.

Gargravarr observava de sua mente sem corpo. Tinha gostado de Zaphod Beeblebrox de um modo bastante estranho. Era claramente um homem de muitas qualidades, mesmo sendo más em sua maioria.

Esperava que ele tombasse para fora, como todos.

Em vez disso, ele saiu andando.

— Oi! — disse ele.

— Beeblebrox... — arfou a mente de Gargravarr, maravilhada.

— Será que eu posso beber alguma coisa, por favor?

— disse Zaphod.

— Você... você... esteve no Vórtice? — gaguejou Gargravarr.

— Você me viu, cara.

— E estava funcionando?

— Claro que estava.

— E você viu toda a infinidade da criação?

— Claro. Realmente, um lugar muito arrumado, sabe? A mente de Gargravarr girava atordoada. Se seu corpo estivesse com ela, teria caído sentado de boca aberta.

— E você se viu — disse Gargravarr — em relação a tudo?

— Ah, vi, vi.

— Mas... o que você sentiu?

— Zaphod deu de ombros, presunçosamente.

— Só vi o que sempre soube o tempo todo. Sou realmente um grande sujeito. Não disse, baby, eu sou Zaphod Beeblebrox!

Seu olhar passou pela maquinaria que fazia funcionar o Vórtice e parou subitamente, sobressaltado. Respirou pesadamente.

— Ei — disse —, aquilo é mesmo um pedaço de pão-de-ló?

Arrancou o pedaço de bolo dos sensores a que estava ligado.

— Se eu te dissesse o quanto eu estava precisando disso — falou vorazmente —, eu não teria tempo de comer.

Comeu.

 

Pouco depois ele estava correndo pela planície em direção à cidade em ruínas.

O ar úmido chiava em seus pulmões e ele frequentemente tropeçava de cansaço. A noite também estava começando a cair, e o chão áspero era traiçoeiro.

A exaltação de sua experiência recente ainda estava com ele, no entanto. Todo o Universo. Tinha visto todo o Universo estender-se ao infinito à sua volta — tudo. E com isso viera o conhecimento claro e extraordinário de que ele era a coisa mais importante de todas. Ter um ego convencido é uma coisa. Ser realmente informado por uma máquina é outra.

Não tinha tempo para refletir sobre o assunto.

Gargravarr lhe havia dito que teria que alertar seus superiores sobre o que acontecera, mas que estava disposto a deixar um intervalo decente antes de fazê-lo. Tempo bastante para que Zaphod pudesse encontrar um lugar para se esconder.

O que ia fazer ele não sabia, mas sentindo-se a pessoa mais importante do Universo, tinha confiança em crer que alguma coisa ia pintar.

Nada além disso naquele planeta empestado poderia lhe dar muita razão para otimismo.

Continuou correndo e logo atingiu a periferia da cidade abandonada.

Andou por ruas tortuosas e destruídas, cobertas de ervas daninhas e sapatos em estado de putrefação. Os prédios por que ele passou estavam tão esfacelados e decrépitos que achou que não seria seguro entrar. Onde iria se esconder? Apressou-se.

Depois de um tempo, os restos de uma ampla avenida surgiram, saindo da rua por onde ele vinha andando, e no fim dela havia um prédio baixo e vasto rodeado de vários outros menores, sendo o conjunto circundado por uma paliçada perimetral. O prédio principal parecia razoavelmente sólido, e Zaphod resolveu ir ver se ele poderia lhe servir... bem se poderia lhe servir de alguma coisa.

Aproximou-se do prédio. Ao longo de um dos lados — a frente, ao que tudo indicava, já que dava para um largo pátio de concreto — havia três portas gigantescas, com talvez trinta metros de altura. A mais distante estava aberta e Zaphod entrou por ela.

No interior tudo era escuridão, poeira e confusão. Gigantescas teias de aranha cobriam todas as coisas. Parte da infra-estrutura do prédio tinha desabado, parte da parede dos fundos tinha desmoronado e uma grossa camada de poeira de vários centímetros de espessura cobria o chão.

Por entre a escuridão formas enormes erguiam-se envoltas em brumas, cobertas de escombros.

Essas formas eram ora cilíndricas, ora bulbosas, às vezes ovais, ou melhor, em forma de ovos quebrados. A maioria delas estava partida ao meio ou caindo aos pedaços, algumas eram meros esqueletos.

Eram todas naves espaciais abandonadas.

Zaphod perambulou frustrado por entre os destroços. Não havia ali nada que se aproximasse ainda que remotamente do aproveitável. Até uma simples vibração de um passo seu fazia aqueles destroços precários desabarem mais ainda.

Na direção dos fundos do prédio havia uma velha nave, um pouco maior que as demais, e mergulhada sob uma camada ainda mais espessa de pó e teias de aranha. Seu exterior, no entanto, parecia intacto. Zaphod aproximou-se com interesse, e ao fazê-lo, tropeçou numa linha de alimentação.

Tentou afastar o fio e, para sua surpresa, descobriu que ainda estava conectado com a nave.

Para seu total assombro, percebeu que a linha de alimentação estava fazendo um leve ruído.

Olhou para a nave, incrédulo, e então para o fio em suas mãos.

Arrancou o paletó e jogou fora. Engatinhando, seguiu o fio até o ponto onde ele se conectava com a nave. A conexão estava em bom estado e o som da vibração do fio era mais perceptível.

Seu coração batia acelerado. Limpou um pouco do encardido e encostou o ouvido contra a parede da nave. Ouviu apenas um barulho apagado e indeterminado.

Vasculhou fervorosamente os escombros que estavam no chão à sua volta e encontrou um pequeno pedaço de cano e um copinho de plástico não-biodegradável. Com isso montou um estetoscópio que colocou contra a parede da nave.

O que ele ouviu fez seus cérebros darem saltos mortais.

A voz dizia:

"As Linhas de Cruzeiro Transestelar gostariam de pedir desculpas aos passageiros pela demora em levantar vôo. Estamos no momento à espera do embarque do nosso suprimento de lencinhos umedecidos de limão para seu conforto, frescor e higiene durante a viagem. Por enquanto agradecemos sua paciência. A tripulação estará brevemente servindo café e biscoitos outra vez".

Zaphod deu um passo para trás olhando embasbacado para a nave.

Andou ao redor por alguns instantes, perplexo. Nisso deparou subitamente com uma gigantesca plataforma de embarque ainda suspensa, mas só por um suporte, no teto acima dele. Estava encardida, mas algumas das cifras ainda podiam ser discernidas.

Os olhos de Zaphod investigaram as cifras e fizeram então uns breves cálculos. Arregalou os olhos.

— Novecentos anos... — murmurou para si mesmo. Isso era há quanto tempo a nave estava atrasada.

Dois minutos mais tarde ele estava a bordo.

Assim que passou pela cabine de descompressão o ar que o recebeu era fresco e agradável — o ar-condicionado ainda estava funcionando.

As luzes ainda estavam acesas.

Da pequena câmara de entrada saiu num corredor estreito e foi andando por ele nervosamente.

De repente uma porta se abriu e apareceu uma figura diante dele.

— Por favor, retorne ao seu lugar, senhor — disse uma aeromoça andróide, que deu as costas para ele e prosseguiu pelo corredor.

Quando seu coração voltou a bater ele a seguiu. Ela abriu a porta no final do corredor e entrou.

Ele a seguiu porta adentro.

Estavam agora no compartimento de passageiros e o coração de Zaphod parou outra vez por um momento.

Em cada poltrona estava sentado um passageiro, atado a ela.

Os cabelos dos passageiros eram longos e despenteados; suas unhas, compridas; os homens tinham barba.

Todos eles estavam claramente vivos — mas dormindo.

Zaphod sentiu calafrios de horror.

Caminhou pelo corredor entre as poltronas como num sonho. Quando ele estava no meio do caminho a aeromoça tinha chegado ao fim. Ela virou e disse:

— Boa-tarde, senhoras e senhores — falou suavemente —, agradecemos pela compreensão desta leve demora. Levantaremos vôo assim que pudermos. Se acordarem agora, servirei café e biscoitos. Houve um breve resmungar. Nesse momento todos os passageiros acordaram. Acordaram berrando e tentando arrancar os cintos e equipamentos de segurança que os mantinham presos às poltronas. Gritaram, berraram e se esganiçaram até Zaphod achar que seus ouvidos iam explodir.

Bufavam e se contorciam enquanto a aeromoça pacientemente vinha pelo corredor colocando uma bandeja de café e biscoitos em frente a cada um deles.

Então um deles ergueu-se de sua poltrona. Virou-se e olhou para Zaphod.

A pele de Zaphod parecia querer sair-lhe do corpo. Ele também se virou e saiu correndo da confusão.

Atravessou a porta e voltou ao outro corredor. O homem o perseguiu.

Correu num frenesi até o fim do corredor, atravessou a câmara de entrada e foi em frente. Chegou à cabine de comando, bateu e trancou a porta atrás de si. Apoiou-se na porta, ofegante.

Em questão de segundos, alguém começou a bater à porta.

De algum lugar na cabine de comando uma voz metálica o advertia.

— Os passageiros não têm permissão de permanecer na cabine de comando. Por favor, retorne ao seu assento e aguarde a decolagem. Café e biscoitos estão sendo servidos. Aqui quem fala é seu piloto automático. Por favor, retorne ao seu assento.

Zaphod não disse nada. Estava ofegante, atrás dele alguém continuava a bater à porta.

— Por favor, retorne ao seu assento — repetiu o piloto automático. — Os passageiros não têm permissão de permanecer na cabine de comando.

— Eu não sou passageiro — arquejou Zaphod.

— Por favor, retorne ao seu assento.

— Eu não sou passageiro! — gritou Zaphod mais uma vez.

— Por favor, retorne ao seu assento.

— Eu não sou... alô, está me ouvindo?

— Por favor, retorne ao seu assento.

— Você é o piloto automático? — perguntou Zaphod.

— Sou — disse a voz do painel de comando.

— É o encarregado desta nave?

— Sou — disse a voz novamente —, houve um atraso. Os passageiros devem ser mantidos entretidos para seu conforto e conveniência. Serve-se café e biscoitos a cada ano, após o quê os passageiros voltam ao entretenimento para seu conforto e conveniência. Decolaremos assim que os suprimentos de vôo estiverem completos. Pedimos desculpa pela demora.

Zaphod afastou-se da porta, a que tinham parado de bater. Aproximou-se do painel de comando.

— Demora? — gritou. — Você viu o mundo do lado de fora desta nave? É uma terra perdida, um deserto. A civilização apareceu e se foi, cara. Não há lencinhos umedecidos em limão para chegar de lugar nenhum!

— Ao que indicam as estatísticas — prosseguiu o piloto automático empertigadamente —, outras civilizações hão de se formar. Um dia haverá lencinhos de papel umedecidos em limão. Até lá teremos uma pequena demora. Por favor, retorne ao seu assento.

— Mas...

Mas nesse instante a porta se abriu. Zaphod voltou-se para ver o homem que o perseguira. Estava carregando uma grande mala. Estava vestido com elegância e tinha os cabelos curtos. Não tinha barba nem unhas compridas.

— Zaphod Beeblebrox — disse ele. — Meu nome é Zarniwoop. Creio que você estava querendo me ver.

Zaphod Beeblebrox estremeceu. Suas bocas diziam frases desconexas. Caiu sentado numa cadeira.

— Cara, cara, de onde você apareceu, cara? — disse ele.

— Eu estava aqui a sua espera — disse, num tom de homem de negócios.

Largou a mala e sentou-se em outra cadeira.

— Estou contente que tenha seguido as instruções — prosseguiu. — Estava um pouco preocupado que você tivesse saído de meu escritório pela porta e não pela janela. Nesse caso você teria entrado numa enrascada.

Zaphod sacudiu as cabeças e balbuciou.

— Quando você entrou pela porta de meu escritório você penetrou em meu Universo sintetizado eletronicamente — explicou. — Se tivesse saído pela porta teria voltado ao real. O artificial é controlado daqui.

Deu uns tapinhas na mala.

Zaphod o observou com ressentimento e aversão.

— Qual é a diferença? — murmurou.

— Nenhuma — disse Zarniwoop —, são idênticos. Oh, exceto que os Lutadores Astrossapos são cinza-claro no Universo real, se não me engano.

— O que está acontecendo? — bradou Zaphod.

— Simples — disse Zarniwoop. Sua autoconfiança e presunção faziam Zaphod ferver.

— Muito simples — repetiu Zarniwoop —, descobri as coordenadas onde esse homem pode ser encontrado — o homem que rege o Universo — e descobri que seu planeta está protegido por um Campo de Improbabilidade. Para proteger meu segredo — e a mim — retirei-me à segurança deste Universo totalmente artificial e me escondi numa linha esquecida de cruzeiro. Estava em segurança. Enquanto isso, você e eu...

— Você e eu? — disse Zaphod furioso. — Quer dizer que eu te conhecia?

— Conhecia — disse Zarniwoop. — Nós nos conhecíamos bem.

— Eu não tinha bom gosto — disse Zaphod, e assumiu um silêncio emburrado.

— Enquanto isso, eu e você combinamos que você roubaria a nave movida a Improbabilidade Infinita — a única que poderia alcançar o mundo do regente do Universo — e a traria a mim aqui. Isto você fez agora, acredito, e lhe dou meus parabéns. — Dirigiu-lhe um sorriso firme que Zaphod gostaria de ter acertado com um tijolo.

— Ah, e caso você esteja querendo saber — acrescentou Zarniwoop —, este Universo foi criado especificamente para que você viesse a ele. Você é portanto a pessoa mais importante deste Universo. Você jamais — prosseguiu com um sorriso ainda mais tijolável — teria sobrevivido ao Vórtice de Perspectiva Total no Universo real. Vamos?

— Aonde? — disse Zaphod, emburrado. Sentia-se demolido.

— Ã sua nave. Coração de Ouro. Acredito que você a trouxe, não?

— Não.

— Onde está o seu paletó? Zaphod o encarou, misticamente.

— Meu paletó? Eu o tirei, está lá fora.

Zarniwoop levantou-se e fez um gesto para que Zaphod o acompanhasse.

Na câmara de entrada, puderam ouvir os gritos dos passageiros sendo alimentados com café e biscoitos.

— Não vinha sendo uma experiência muito agradável esperar por você — disse Zarniwoop.

— Não muito agradável para você! — berrou Zaphod. — O que você acha...

Zarniwoop levantou um dedo pedindo silêncio enquanto abria a porta que dava para o exterior. A poucos metros dali acharam o paletó de Zaphod sobre os escombros.

— Uma nave muito notável e poderosa — disse Zarniwoop. — Observe.

Enquanto observavam, o bolso do paletó inchou subitamente. Rasgou-se e rompeu-se. O pequeno modelo de metal do Coração de Ouro que Zaphod intrigara-se de achar no seu bolso estava crescendo.

Crescia, continuava a crescer. Após alguns minutos atingiu seu tamanho natural.

— A um Nível de Improbabilidade de... — disse Zarniwoop — de... ah, sei lá, mas algo muito alto.

Zaphod balançava.

— Quer dizer que eu a tinha comigo o tempo todo? Zarniwoop sorriu. Pegou sua mala e abriu.

Girou um único botão dentro dela.

— Adeus, Universo artificial — disse. — Olá. Universo real.

O cenário diante deles desvaneceu vagamente c reapareceu exatamente como estava antes.

— Viu? — disse Zarniwoop. — Exatamente igual.

— Quer dizer — repetiu Zaphod por extenso — que eu a tinha comigo o tempo todo?

— Ah, sim — disse Zarniwoop —, claro. Essa era toda a questão.

— É o seguinte — disse Zaphod —, eu estou fora, daqui pra frente não conte comigo. Já tive o que queria com isso. Você brinque como quiser.

— Lamento, mas você não pode sair — disse Zarniwoop —, você está entrelaçado no Campo de Improbabilidade. Você não pode escapar.

Sorriu aquele sorriso que Zaphod desejara acertar e que desta vez acertou.

 

Ford Prefect saltou para a ponte de comando do Coração de Ouro.

— Trillian! Arthur! — gritou. — Está funcionando! A nave foi reativada!

Trillian e Arthur estavam dormindo no chão.

— Venham, vocês, estamos indo, estamos saindo — disse, chutando-os para acordá-los.

— Oi, gente — gorjeou o computador —, é muito legal estar mais uma vez com vocês, puxa vida, e eu só queria dizer que...

— Cala a boca — disse Ford —, diga-nos apenas em que inferno a gente está.

— Planeta Astrossapo B, e, cara, é um monturo! — disse Zaphod, correndo para a ponte. — Oi, turma, vocês devem estar tão maravilhosamente felizes de me ver que não conseguem encontrar palavras para exprimir o quanto eu sou supimpa.

— O quanto é o quê? — disse Arthur, de olhos turvos, erguendo-se do chão e sem entender nada.

— Sei como vocês se sentem — disse Zaphod. — Sou tão sensacional que às vezes até eu fico sem palavras quando falo comigo mesmo. Ei, prazer em vê-los, Trillian, Ford, Homem-macaco. Ei, ahn, computador...?

— Oi, gente, sr. Beeblebrox, é realmente uma grande honra...

— Cale a boca e tire-nos daqui, rapidinho.

— Pra já, amigão, pra onde você quer ir?

— Qualquer lugar, não importa — gritou Zaphod. — Quer dizer, importa sim! — disse de novo. — A gente quer ir para o lugar mais perto onde se possa comer!

— Pra já! — disse o computador feliz e uma massiva explosão chacoalhou a ponte.

Quando Zarniwoop entrou um minuto mais tarde, com um olho roxo, observou os quatro filetes de fumaça com interesse.

 

Quatro corpos inertes afundavam num redemoinho de escuridão. A consciência estava morta, o frio esquecimento arrastava os corpos para as profundezas do não ser. O troar do silêncio ecoava lugubremente a seu redor e eles afundaram por fim num mar escuro e amargo de um vermelho movediço que lentamente os engolfou, aparentemente para sempre.

Após o que pareceu uma eternidade o mar recuou e os deixou estendidos numa praia dura e fria, despojos da correnteza da Vida, do Universo e de Tudo.

Espasmos frios os sacudiam, luzes dançavam nauseantemente à sua frente. A praia dura e fria tombava e girava e então parava. Tinha um brilho escuro — era uma praia fria e dura muito reluzente.

Um borrão esverdeado os observava com ar de reprovação.

Tossiu.

— Boa-noite, madame, cavalheiros — disse —, têm reserva?

A consciência de Ford Prefect ricocheteou de volta, como elástico, animando seu cérebro. Olhou para o borrão, confuso.

— Reserva? — perguntou debilmente.

— Sim, senhor — disse o borrão verde.

— É preciso reserva para o além-da-vida?

Na medida em que é possível a um borrão esverdeado arcaras sobrancelhas desdenhosamente, foi isso que ele fez.

— Além-da-vida, senhor? — disse.

Arthur Dent engalfinhava-se com sua consciência como alguém que se engalfinha com uma barra de sabão na banheira.

— Aqui é o além? — gaguejou.

— Bom, eu presumo que seja — disse Ford Prefect, tentando descobrir qual era o lado de cima. Testou a teoria de que deveria ficar na direção oposta ao chão frio e duro da praia em que estava deitado e cambaleou para ficar sobre o que esperava serem seus pés.

— Quero dizer — disse, balançando brandamente —, não tem jeito da gente ter sobrevivido àquela explosão, tem?

— Não — murmurou Arthur. Ele estava se apoiando sobre os cotovelos, mas isso não parecia melhorar as coisas. Deixou-se cair de novo.

— Não — disse Trillian, levantando-se —, não tem nenhum jeito.

Um som surdo, rouco e gorgolejante emergiu do solo. Era Zaphod Beeblebrox tentando falar.

— Eu certamente não sobrevivi — gorgolejou ele. — Eu era um cara totalmente à beira da morte. Pá pum, e é isso aí.

— É, graças a você — disse Ford —, não tivemos a menor chance. Devemos ter sido transformados em pedacinhos. Braços, pernas por toda parte.

— É — disse Zaphod levantando-se barulhentamente.

— Se a senhorita e os cavalheiros desejarem algo para beber... — disse o borrão esverdeado, que permanecia impaciente ao lado deles.

— Caplan pá tabum — prosseguiu Zaphod —, e lá estão nossas moléculas instantaneamente desintegradas. Ei, Ford — disse, ao identificar um dos borrões que se solidificavam lentamente à sua volta —, bateu para você essa coisa de ver sua vida inteira desfilando à sua frente?

— Bateu assim para você? — disse Ford. — Sua vida inteira?

— É, ou pelo menos eu presumo que era minha. Eu passei muito tempo fora de mim, sabe.

Olhou à sua volta para as várias formas que estavam finalmente tomando forma propriamente em vez de vagas e vacilantes formas disformes.

— Então... — disse.

— Então o quê? — disse Ford.

— Então aqui estamos nós — disse Zaphod, hesitante —, deitados, mortos aqui...

— Estamos em pé — corrigiu Trillian.

— Ahn, em pé, mortos — continuou Zaphod — neste desolado...

— Restaurante — disse Arthur Dent, que tinha levantado e conseguia, para sua surpresa, ver claramente. Aliás, o que o surpreendia não era que ele pudesse ver, mas o que ele estava vendo.

— Aqui estamos nós — continuou Zaphod, obstinado —, em pé, mortos, neste desolado...

— Cinco estrelas — disse Trillian.

— Restaurante — concluiu Zaphod.

— Estranho, não? — disse Ford.

— Ahn, é.

— Belos candelabros, no entanto — disse Trillian. Olharam uns para os outros, estupidificados.

— Não é bem um além-da-vida —disse Arthur. — Está mais para um après vie.

Os candelabros eram de fato um tanto espalhafatosos e o teto baixo abobadado não teria, num Universo ideal, sido pintado naquele tom particular de turquesa, e mesmo se fosse, não teria sido iluminado por aquele tipo de luz indireta. Este não é, porém, um Universo ideal, como ficou posteriormente evidenciado pelos desenhos no parquete de mármore, e pelo modo como tinha sido feita a fachada do bar de cento e vinte metros cobertos de mármore. A fachada do bar de cento e vinte metros cobertos de mármore tinha sido feita juntando-se cerca de duas mil peles de Lagartos Mosaicos Antarenses, sem se ligar para o fato de que os dois mil lagartos envolvidos precisavam delas para manterem seus interiores do lado de dentro.

Algumas criaturas elegantemente vestidas passeavam ociosamente pelo bar ou descansavam nos confortáveis assentos ricamente coloridos dispostos aqui e ali por todo o recinto do bar. Um jovem oficial Vl'Hurg e sua vaporosa dama verde atravessaram a porta de vidro fume no fundo do bar e penetraram na luz ofuscante do salão principal do Restaurante.

Atrás de Arthur havia uma grande janela de sacada com cortinas. Ele afastou um canto da cortina e olhou para fora, para uma paisagem árida e desolada, cinza, lúgubre, cheia de crateras, uma paisagem que em condições normais teria dado calafrios de terror em Arthur. Estas não eram, porém, condições normais, pois a coisa que gelava seu sangue e fazia sua pele tentar arrastar-se por suas costas e lhe sair pela nuca era o céu. O céu era...

Um criado de libré puxou educadamente a cortina de volta ao seu lugar.

— Tudo a seu tempo, cavalheiro — disse. Os olhos de Zaphod flamejaram.

— Ei, prestem atenção, defuntos — disse. — Acho que estamos perdendo alguma coisa ultra-importante aqui, sabe. Alguma coisa que alguém aqui disse e a gente perdeu.

Arthur estava profundamente aliviado em desviar sua atenção daquilo que acabara de ver.

— Eu disse que era uma espécie de après...

— É, e não preferia não ter dito? — disse Zaphod. — E você, Ford?

— Eu disse que era estranho.

— É, sagaz, mas sem graça, talvez tenha sido...

—Talvez — interrompeu o borrão esverdeado, que a essa altura tinha tomado a forma de um mirrado garçonzinho vestido de verde-escuro —, talvez os senhores queiram discutir a questão de algo para beber...

— Beber! — exclamou Zaphod, apaixonado. — Escute, pessoinha verde, meu estômago poderia levá-lo para casa e afagá-lo durante toda a noite simplesmente pela idéia.

— ... e o Universo — prosseguiu o garçom, determinado a não se desviar do seu curso — explodirá mais tarde, para seu prazer.

A cabeça de Ford inclinou-se lentamente em sua direção. Ele falou com sentimento.

— Urras — disse —, que espécie de bebida vocês servem neste lugar?

O garçom riu; um pequeno riso educado de garçom.

— Ah — disse ele —, creio que o cavalheiro talvez me tenha compreendido mal.

— Oh, espero que não — suspirou Ford.

O garçom tossiu; uma pequena tosse educada de garçom.

— Não é raro que nossos fregueses sintam-se um pouco desorientados com a viagem no tempo — disse. — De forma que eu sugeriria...

— Viagem no tempo? — disse Zaphod.

— Viagem no tempo? — disse Ford.

— Viagem no tempo? — disse Trillian.

— Quer dizer que isto não é o além? — disse Arthur.

O garçom sorriu; um pequeno sorriso educado de garçom. Tinha quase exaurido seu pequeno repertório educado de garçom e logo cairia em seu papel de garçom de lábios apertados e pequeno sorriso sarcástico.

— Além, cavalheiro? — disse. — Não, senhor.

— E não estamos mortos? — disse Arthur. O garçom apertou os lábios.

— Aha, ha — disse. — O cavalheiro está evidentissimamente vivo, caso contrário eu não tentaria atendê-lo, senhor.

Num gesto extraordinário que não faz sentido tentar descrever, Zaphod Beeblebrox bateu em suas duas cabeças com dois de seus braços e em uma de suas coxas com o outro.

— Ei, caras — disse. — Que louco! Conseguimos! Finalmente chegamos aonde estávamos indo! Aqui é o Milliways!

— Milliways! — disse Ford.

— Sim, senhor — disse o garçom, garimpando paciência —, aqui é o Milliways, o Restaurante do Fim do Universo.

— Fim do quê? — perguntou Arthur.

— Do Universo — repetiu o garçom, com muita clareza e desnecessária distinção.

— Quando ele acabou? — perguntou Arthur.

— Dentro de poucos minutos, senhor. — Respirou fundo. Não precisava fazê-lo, uma vez que seu corpo era suprido com a variedade peculiar de gases de que necessitava através de um pequeno dispositivo intravenoso atado a sua perna.

Há momentos, porém, em que não importa que metabolismo se tenha, é preciso respirar fundo.

— Agora, se os senhores quiserem pedir finalmente seus drinques — disse —, eu lhes mostrarei sua mesa.

Zaphod arreganhou dois sorrisos maníacos, passeou pelo bar pedindo quase todas as coisas.

 

O Restaurante do Fim do Universo é um dos acontecimentos mais extraordinários em toda a história do abastecimento. Foi construído a partir dos restos fragmentários do... será construído a partir dos restos... ou seja, terá sido construído a essa altura, e de fato foi...

Um dos maiores problemas encontrados em viajar no tempo não é vir a se tornar acidentalmente seu pai ou sua mãe. Não há nenhum problema em tornar-se seu próprio pai ou mãe com que uma família de mente aberta e bem ajustada não possa lidar. Não há tampouco problema em mudar o curso da história — o curso da história não muda porque todas as peças se juntam como num quebra-cabeça. Todas as mudanças importantes ocorreram antes das coisas que deveriam mudar e tudo dá na mesma no final.

O problema maior é simplesmente gramatical, e a principal obra a ser consultada sobre esta questão é o tratado do Dr. Dan Streetmentioner, Manual dos 1001 Tempos Gramaticais para o Viajante no Tempo. Ensina, por exemplo, a descrever algo que estava prestes a acontecer com você no passado antes de você evitá-lo pulando no tempo para dois dias depois com a intenção de evitá-lo. O evento é descrito distintamente conforme você esteja referindo-se a ele do seu ponto natural no tempo, de uma época no futuro posterior ou numa época no passado posterior ao evento e posteriormente vai ficando mais e mais complicado caso você esteja viajando de cá para lá no tempo na tentativa de tornar-se seu próprio pai ou sua própria mãe.

A maioria dos leitores chega até o Futuro Semicondicional Subinvertido Plagal do Pretérito Subjuntivo Intencional antes de desistir; e de fato, em edição mais recente desse livro as páginas subseqüentes têm sido deixadas em branco para economizar custos de impressão.

O Guia da Galáxia para Caronas passa por cima desta abstração acadêmica, parando apenas numa nota lembrando que o termo "Futuro Perfeito" foi abandonado assim que se descobriu que não é.

Resumindo:

O Restaurante do Fim do Universo é um dos acontecimentos mais extraordinários em toda a história do abastecimento.

É construído a partir dos restos fragmentários de um planeta ocasionalmente destruído que é (seraria tendo a ser) fechado numa vasta bolha de tempo e projetado adiante no tempo até o momento preciso do Fim do Universo.

Isto é, diriam muitos, impossível.

Nele, os fregueses tomam (irão ter tomando) seus lugares nas mesas e comem (irão ter comendo) suntuosas refeições contemplando (a estarão tendo contemplarem) toda a criação explodir à sua volta.

Isto é, muitos diriam, igualmente impossível.

Pode-se chegar (irá poder-se ter-se então estado estando-se a chegar) a qualquer mesa que se deseje sem reserva prévia (pós-pré-quanda) porque se pode fazer a reserva retrospectivamente, ao se voltar para sua própria era (poder-se-á ter tido a reserva sendo a ser feita pospectivamente antes de se tivera havido de retorno ao retrolar).

Isto é, muitos agora insistiriam, absolutamente impossível.

No Restaurante, pode-se encontrar e acompanhar numa refeição (vir a por ter encontrar-se e jantivera juntos) um fascinante corte transversal de toda a população do espaço e do tempo.

Isto, pode-se explicar pacientemente, também é impossível.

Pode-se ir lá quantas vezes se desejar (ir reter ido desejar-se... e por aí afora — para mais informações de correção gramatical, consulte o livro do Dr. Streetmentioner) e se ter a certeza de que não se encontrará consigo próprio, por causa do embaraço que isso costuma ocasionar.

Isto, mesmo se o resto fosse verdadeiro, o que não acontece, é patentemente impossível, dizem os céticos.

Tudo o que você precisa fazer é depositar um centavo numa conta de poupança em sua própria era, e quando chegar ao Fim dos Tempos, o cômputo dos juros significará que o preço fabuloso de sua refeição já estará pago.

Isto, alegam muitos, não só é meramente impossível como também claramente insano, e é por isso que os executivos de publicidade do sistema estelar de Bastablon vieram com o slogan: "Se você fez seis coisas impossíveis esta manhã, por que não arredondar com uma refeição no Milliways, o Restaurante do Fim do Universo?".

 

No bar, Zaphod já estava ficando acabado como uma salamandra aquática. Já estava batendo com uma cabeça na outra e seus sorrisos estavam fora de sincronismo. Estava miseravelmente feliz.

— Zaphod — disse Ford —, enquanto você ainda é capaz de falar, poderia me contar que fóton foi que aconteceu com você? Por onde você andou? Por onde você andou? É um assunto de menor importância, mas eu gostaria de vê-lo esclarecido.

A cabeça esquerda de Zaphod ficou sóbria, deixando a direita afundar na obscuridade da bebida.

— Pois é — disse —, eu estive por aí. Querem que eu encontre o homem que rege o Universo, mas eu não estou nem aí em encontrá-lo. Acho que esse homem não deve saber cozinhar.

Sua cabeça esquerda ficou olhando a direita dizer isso e concordou:

— Ê verdade, está certo, agora bebe mais um pouco. Ford tomou outra Dinamite Pangaláctica, o drinque descrito como o equivalente alcoólico do assalto — caro e faz mal à cabeça. O que quer que tivesse acontecido, Ford decidiu, não interessava tanto assim.

— Escuta, Ford — disse Zaphod —, está tudo em paz, tudo em cima.

— Quer dizer que está tudo sob controle.

— Não — disse Zaphod —, eu não quero dizer que está tudo sob controle. Senão não estaria tudo em cima e em paz. Se você quer saber o que ocorreu, digamos apenas que eu tinha toda a situação em meu bolso, OK?

Ford sacudiu os ombros.

Zaphod riu em cima de sua bebida. Ela despejou, desceu pelo copo e começou a escorrer pelo balcão de mármore.

Um cigano celestial de pele escura aproximou-se tocando violino elétrico para eles até que Zaphod lhe deu bastante dinheiro e ele concordou em h embora.

O cigano aproximou-se de Trillian e Arthur, que estavam sentados num outro ponto do bar.

— Não sei que lugar é este — disse Arthur —, mas me dá arrepios.

— Tome outro drinque — disse Trillian —, divirta-se.

— Qual dos dois? — disse Arthur. — São mutuamente excludentes.

— Pobre Arthur, você realmente não foi feito para esta vida, não?

— Você chama isto de vida?

— Você está começando a se parecer com Marvin.

— Marvin tem o pensamento mais claro que conheço. Como você acha que a gente se livra deste violinista?

O garçom aproximou-se.

— Sua mesa está pronta.

 

Visto de fora, de onde nunca é visto, o Restaurante se assemelha a uma reluzente estrela do mar sobre uma rocha esquecida. Os braços abrigam os bares, as cozinhas, os geradores de campo de força, que protegem toda a estrutura e o pedaço de planeta onde ela está instalada, e as Turbinas de Tempo, que movimentam lentamente todo o aparato de um lado para outro do momento crucial.

No centro fica o gigantesco domo de ouro, quase um globo completo, e foi para esta área que Zaphod, Ford, Arthur e Trillian se dirigiram agora.

Pelo menos cinco toneladas de brilho puro haviam entrado ali antes deles e coberto toda superfície disponível. As outras superfícies não estavam disponíveis porque já estavam incrustadas de jóias, conchas marinhas preciosas de Santraginus, folhas de ouro, mosaicos de azulejos, peles de lagarto e um milhão de adornos e decorações inidentificáveis. O vidro brilhava, a prata reluzia, o ouro cintilava, Arthur Dent revirava os olhos.

— Uau — disse Zaphod —, urras.

— Incrível — suspirou Arthur —, as pessoas...! As coisas...!

— As coisas — disse Ford Prefect, com calma — também são pessoas.

— As pessoas... — corrigiu Arthur — as... outras pessoas...

— As luzes...! — disse Trillian.

— As mesas...! — disse Arthur.

— As roupas...! — disse Trillian.

O garçom achou que eles pareciam uma dupla de almoxarifes.

— O Fim do Universo é muito apreciado — disse Zaphod cambaleando por entre as mesas, algumas feitas de mármore, outras de rico ultramórgano, algumas até de platina, e em cada uma um grupo de exóticas criaturas conversando entre si e estudando o cardápio.

— As pessoas gostam de se arrumar para vir aqui — continuou Zaphod. — Dá uma sensação de uma ocasião especial.

As mesas eram dispostas num grande círculo em torno de um palco central onde uma pequena orquestra tocava música suave. O palpite de Arthur era de pelo menos umas mil mesas, e intercaladas entre elas, palmeiras balouçantes, fontes murmurantes, estatuária bizarra, enfim, todo tipo de parafernália comum a todos os restaurantes em que se poupou alguma despesa para dar a impressão de que nenhuma despesa foi poupada. Arthur olhou ao redor, meio esperando avistar alguém fazendo um comercial do American Express.

Zaphod tropeçou em Ford, que tropeçou de volta em Zaphod.

— Uauí — disse Zaphod.

— Urras — disse Ford.

— Meu bisavô deve ter realmente sacaneado com o trabalho do computador, sabe — disse Zaphod. — Eu disse para ele nos levar para o lugar mais perto para comer e ele nos manda para o Fim do Universo. Me lembre de ser legal com ele.

Fez uma pausa.

— Ei, está todo mundo aqui, sabia? Todo mundo que foi alguém.

— Foi? — disse Arthur.

— No Fim do Universo você tem que usar bastante o pretérito — disse Zaphod — porque tudo já foi feito, sabe. Oi, rapazes! — acenou para um grupo de iguanas gigantes. — Como foram?

— Esse é Zaphod Beeblebrox? — perguntou um iguana ao outro.

— Acho que sim — respondeu o outro iguana.

— Cada uma que aparece — disse o primeiro iguana.

— Assim é a vida — disse o segundo iguana.

— Assim vai indo — disse o primeiro e eles mergulharam de volta ao silêncio. Estavam esperando o maior show do Universo.

— Ei, Zaphod — disse Ford, tentando agarrar seu braço, e, devido à terceira Dinamite Pangaláctica, não conseguindo. Apontou algo com um dedo oscilante.

— Ali está um velho colega meu — disse. — Hotblack Desiato! Está vendo aquele cara na mesa de platina, com um terno de platina?

Zaphod tentou acompanhar o dedo de Ford com os olhos, mas ficou tonto. Por fim ele viu.

— Ah, só! — disse, e o reconhecimento veio um momento depois. — Ei, esse cara realmente foi o megamáximo! Uau! Maior do que o mais máximo dos máximos. Além de mim.

— Quem é? — perguntou Trillian.

— Hotblack Desiato? — disse Zaphod, assombrado.

— Você não conhece? Você nunca ouviu falar do Disaster Area?

— Não — disse Trillian, que nunca tinha ouvido.

— A maior — disse Ford —, a mais barulhenta...

— A mais rica... — sugeriu Zaphod.

— ... banda de rock da história do... — procurou a palavra.

— ... da história em si — disse Zaphod.

— Não — disse Trillian.

— Uauí — disse Zaphod —, aqui estamos nós no Fim do Universo e você ainda nem viveu. Você está marcando.

Ele a acompanhou até a mesa onde o garçom estava esperando todo esse tempo. Arthur os seguiu, sentindo-se muito perdido e solitário.

Ford enfrentou o mar de mesas para ir cumprimentar um velho conhecido.

— Ei, ahn, Hotblack — gritou —, como vai? Nem acredito que estou te vendo! E essa barriga? Fantástico!

— Deu uma palmada nas costas do homem e ficou um tanto surpreso ao não receber resposta. A Dinamite Pangaláctica correndo no seu sangue lhe disse para ir frente mesmo assim.

— Lembra dos velhos tempos? — disse. — A gente costumava pendurar, não é? O Bistrô Ilegal, lembra? O Empório da Garganta Exígua? O Calamitódromo da Bebedeira? Grandes dias, ehn?

Hotblack Desiato não ofereceu nenhuma opinião quanto a se os dias tinham sido grandes ou não. Ford não se perturbou.

— E quando a gente tinha fome, a gente se fazia de fiscais da saúde pública, lembra disso? E saía por aí confiscando comidas e bebidas, ehn? Até que a gente teve uma intoxicação alimentar. Ah, e então teve aquelas noites longas conversando e bebendo naqueles quartos malcheirosos em cima do Café Lou em Vila Gretchen, Nova Betei, e você ficava sempre no quarto ao lado tentando compor umas músicas na sua guitarra e a gente achava péssimas. E você dizia que não ligava, e a gente dizia que ligava porque eram muito péssimas. — O olhar de Ford começava a ficar embaçado.

— E você dizia que não queria ser uma estrela — continuou, viajando na nostalgia — porque despreza o sistema de estrelas. E a gente dizia, naquele tempo era eu, o Hadra, o Sulijoo, a gente dizia que não acreditava que você tivesse mesmo essa opinião. E agora, o que você faz? Você compra sistemas de estrelas!

Virou-se e solicitou a atenção das mesas próximas.

— Eis aqui — disse — um homem que compra sistemas de estrelas!

Hotblack não fez qualquer tentativa de confirmar ou negar esse fato, e a atenção da audiência temporária desviou-se rapidamente.

— Acho que alguém está bêbado — murmurou um ser lilás em forma de arbusto para seu copo de vinho.

Ford cambaleou e sentou-se pesadamente na cadeira em frente a Hotblack Desiato.

— Como é aquele seu número? — disse, agarrando-se desajeitadamente a uma garrafa e a derrubando, por coincidência dentro de um copo que estava ali ao lado. Para não desperdiçar um acidente feliz, secou o copo.

— Aquele número quente — continuou —, como é mesmo? "Bwarrm! Bwarrm! Baderr!" coisa assim, e no palco termina com a nave indo de encontro ao sol, e você faz isso de verdade!

Ford bateu um punho contra a palma da outra mão para ilustrar graficamente o feito. Derrubou a garrafa outra vez.

— Nave! Sol! Pápum! — gritou. — Quero dizer, pode esquecer essas coisas de laser, vocês estão nas labaredas solares e botando fogo! Ah, e músicas horríveis.

Seus olhos seguiram a trilha líquida escorrendo para fora da garrafa em cima da mesa. Algo precisava ser feito a esse respeito, pensou.

— Ei, você quer beber? — perguntou. Começou a penetrar em sua mente encharcada a impressão de que estava faltando algo naquela reunião e de que essa coisa que estava faltando tinha a ver com o fato de aquele gordo sentado à sua frente de terno de platina ainda não ter dito "Oi, Ford" ou "Que bom te ver depois de todo esse tempo", ou, na verdade, pelo menos alguma coisa. Para ser mais exato, ele não tinha nem se mexido.

— Hotblack? — disse Ford.

Uma imensa mão carnuda pousou sobre seu ombro pelas costas e o arrancou para o lado. Ele se ergueu sem graça de sua cadeira e olhou para cima para ver se podia localizar o dono daquela mão descortês. O dono não era difícil de se localizar, devido ao fato dele medir cerca de dois metros e meio de altura e não ter sido feito com outras medidas que não fossem proporcionais a essa. Na verdade ele fora feito como se faz um sofá de couro, lustroso, pesado e solidamente recheado. O terno em que o corpo do homem tinha sido enfiado parecia ter como único propósito na vida demonstrar como é difícil colocar um corpo desse tipo em um terno. O rosto tinha a textura de uma laranja e a cor de uma maçã, mas aí acabava qualquer semelhança com qual quer coisa doce.

— Ô, garoto... — disse uma voz que emergia da boca do homem como se tivesse passado por maus bocados em seu peito.

— Ahn, o quê? — disse Ford informalmente. Estava novamente sobre seus pés e ficou desapontado que sua cabeça não chegasse um pouco mais para cima com relação ao corpo do homem.

— Bate — disse o homem.

— Ah, é? — disse Ford, pensando se estaria sendo prudente. — E quem é você?

O homem considerou a pergunta por um instante. Não estava acostumado a que lhe fizessem esse tipo de pergunta. Mesmo assim, depois de alguns momentos, veio com uma resposta.

— Eu sou o cara que está te dizendo para bater — disse — antes que batam para você.

— Agora, escute — disse Ford, nervoso; esperava que sua cabeça parasse de girar, ficasse quieta e tomasse o controle da situação —, agora, escute — prosseguiu —, eu sou um dos amigos mais antigos de Hotblack e...

Olhou de soslaio para Hotblack Desiato que ainda não tinha mexido nem uma pestana.

— ... e... — disse Ford outra vez, pensando no que seria uma boa palavra a dizer depois de "e".

O homem enorme tinha uma frase inteira para dizer depois de "e".

— E eu sou o guarda-costas do senhor Desiato — dizia a frase —, e sou responsável pelas costas dele, e não sou responsável pelas suas, então leve-as embora antes que se danifiquem.

— Agora, espere um minuto — disse Ford.

— Nenhum minuto! — rugiu o guarda-costas. — Nenhuma espera! O senhor Desiato não fala com ninguém!

— Bom, talvez você possa deixar ele mesmo dizer o que acha do assunto — disse Ford.

— Ele não fala com ninguém! — bramiu o guarda-costas.

Ford olhou ansiosamente para Hotblack outra vez e foi forçado a admitir para si mesmo que o guarda-costas estava com os fatos do lado dele. Continuava não havendo o menor movimento, o menor sinal de interesse quanto ao bem-estar de Ford.

— Por quê? — disse Ford. — Qual é o problema dele? O guarda-costas lhe disse.

 

O Guia da Galáxia para Caronas diz que o Disaster Área, uma banda de rock plutoniano das Zonas Mentais de Gagrakacka, é geralmente tido não apenas como a mais barulhenta banda de rock da Galáxia, mas de fato a coisa mais barulhenta de todas. Os freqüentadores habituais de seus shows julgam que o lugar onde se ouve o som com o melhor equilíbrio é dentro de bunkers de concreto a uns sessenta quilômetros do palco, enquanto os próprios músicos tocam os instrumentos por controle remoto de uma espaçonave altamente isolada que fica em órbita em torno do planeta — ou, mais frequentemente, em torno de um planeta completamente diferente.

Suas músicas são no geral bastante simples e a maioria seguindo o velho tema familiar do rapaz que encontra a moça sob uma lua prateada que então explode por nenhuma razão adequadamente explorada.

Muitos mundos já baniram suas apresentações, algumas vezes por razões artísticas, mas mais comumente pelo fato da aparelhagem de som da banda infringir os tratados locais de limitação de armas estratégicas.

Isso não os impediu, no entanto, de prosseguir com seus rendimentos por dilatar os limites da hipermatemática pura, e seu pesquisador-chefe de contabilidade foi recentemente nomeado Professor Catedrático de Neomatemática da Universidade de Maximegalon, em reconhecimento a suas Teorias Geral e Especial das Devoluções dos Impostos do Disaster Área, em que prova que toda a estrutura do contínuo espaço-tempo não está meramente curva, mas completamente torta.

Ford foi cambaleando de volta à mesa, onde Zaphod, Arthur e Trillian esperavam começar a diversão.

— Preciso comer alguma coisa — disse Ford.

— E aí, Ford — disse Zaphod —, falou com o carinha barulhento?

Ford meneou a cabeça, evasivamente.

— Hotblack? É, eu falei mais ou menos com ele, sim.

— O que ele disse?

— Bom, não muita coisa. Ele... ahn...

— Ahn?

— Está passando um ano parado por questões de imposto. Preciso sentar.

Sentou-se. Veio o garçom.

— Gostariam de olhar o cardápio? — disse ele. — Ou gostariam de conhecer o Prato do Dia?

— Uhm? — disse Ford.

— Uhm? — disse Arthur.

— Uhm? — disse Trillian.

— É isso aí — disse Zaphod. — Vamos ser apresentados a esse prato.

Numa salinha num dos braços do complexo do Restaurante, uma figura alta, magra e desengonçada afastou uma cortina e o esquecimento o olhou no rosto.

Não era um rosto bonito. Talvez porque o esquecimento o tivesse encarado tantas vezes. Era comprido demais, para começar; os olhos, fundos demais; as faces, cavernosas; os lábios, finos demais e compridos demais, e quando se abriam, seus dentes se pareciam demais com uma janela de sacada recentemente polida. As mãos que seguravam a cortina também eram longas e magras demais: eram frias, além disso. Pousavam levemente nas dobras da cortina e davam a impressão de que se ele não as vigiasse como um falcão, elas se arrastariam segundo sua própria vontade e fariam algo de indizível em um canto.

Deixou cair a cortina e a luz terrível que pousara sobre seu rosto foi pousar em algum lugar mais saudável. Rondou furtivamente por sua pequena sala como um louva-a-deus à espreita de uma presa noturna, instalando-se por fim num banquinho diante de um cavalete, onde folheou algumas páginas de piadas.

Uma campainha tocou.

Empurrou o montinho de papéis para o canto e levantou-se. Passou as mãos nos milhões de lantejoulas com que seu paletó estava enfeitado e saiu pela porta.

As luzes do Restaurante diminuíram, a orquestra acelerou o ritmo, um único canhão de luz iluminou a escuridão da escadaria que levava ao centro do palco.

No alto da escada surgiu uma figura alta, cintilante-mente colorida. Precipitou-se em direção ao palco, foi até o microfone, arrebatou-o do pedestal com seu longo braço, e ficou por uns instantes curvando-se à direita e à esquerda, agradecendo os aplausos da platéia e exibindo-lhe sua janela de sacada. Acenou para seus amigos particulares na platéia, embora não houvesse nenhum, e esperou acabarem os aplausos.

Levantou uma das mãos e abriu um sorriso que ia não apenas de uma orelha a outra, mas que parecia ultrapassar os confins de seu rosto.

— Obrigado, senhoras e senhores! — exclamou. — Muito obrigado! Muito, muito obrigado!

Olhava para eles com olhos lampejantes.

— Senhoras e senhores — disse —, o Universo, como todos sabemos, existe há mais de setenta mil milhões de bilhões de anos e acabará dentro de meia hora. Portanto, bem-vindos ao Milliways, o Restaurante do Fim do Universo!

Com um gesto, arrancou habilmente mais uma rodada de aplausos espontâneos. Com outro gesto, cortou os aplausos.

— Serei seu anfitrião esta noite — disse. — Meu nome é Max Quordlepleen... — (Todo mundo sabia disso, era famoso em toda a Galáxia conhecida, mas ele dizia pelo frescor do aplauso que desencadeava e que ele agradecia com um aceno e um sorriso de quem recusa tanto.) — ... e acabo de chegar diretamente do outro lado do tempo, onde estava comandando um espetáculo no Big Bang Burger Bar, onde, acreditem, senhoras e senhores, tivemos uma noite realmente empolgante, e estarei com vocês agora nesta ocasião histórica: o Fim do Universo!

Mais uma salva de palmas, que se interromperam assim que as luzes diminuíram ainda mais. Em cada mesa as velas foram se acendendo sozinhas, assombrando os comensais e envolvendo-os em milhares de luzinhas cintilantes e milhões de sombras íntimas. Um frenesi de expectativa percorreu o Restaurante escurecido quando o enorme domo dourado acima deles começou lentamente a se apagar, a desaparecer.

Max prosseguiu, impondo sua voz.

— Então, senhoras e senhores, as velas estão acesas, a orquestra toca suavemente, e enquanto o domo protegido por um campo de força vai tornando-se transparente, revelando um céu escuro e soturno com a luz ancestral de lívidas estrelas engolidas, vejo que estamos prestes a ter uma fabulosa noite apocalíptica!

Até a suave melodia da orquestra desapareceu quando um choque atordoante tomou conta de todos aqueles que ainda não tinham contemplado essa visão.

Uma luz medonha e monstruosa derramou-se sobre eles.

— uma luz abominável,

— uma luz fervente, pestilenta,

— uma luz que teria desfigurado o inferno. O Universo estava chegando ao fim.

Por alguns segundos intermináveis o Restaurante girou silenciosamente pelo vazio que se alastrava. Então Max tomou a palavra mais uma vez.

— Para todos vocês que alguma vez quiseram ver a luz no fim do túnel, aí está.

A orquestra recomeçou.

— Obrigado, senhoras e senhores — gritou Max —, estarei de volta com vocês dentro de instantes, e por enquanto eu os deixarei com as talentosas mãos de Reg Nullify e seu Combo Cataclismático! Vamos aplaudir, senhoras e senhores, Reg e os rapazes!

O funesto turbilhão dos céus continuava.

Hesitante, a platéia começou a bater palmas e pouco depois a conversa normal foi retomada. Max iniciou sua volta pelas mesas, soltando piadas, dando gargalhadas, ganhando a vida.

Um imenso animal leiteiro aproximou-se da mesa de Zaphod Beeblebrox, um quadrúpede gordo e enorme, do tipo bovino, com grandes olhos d'água, chifres pequenos e um sorriso nos lábios que quase poderia ser insinuante.

— Boa-noite — abaixou-se e sentou-se pesadamente sobre suas ancas —, sou o principal Prato do Dia. Posso sugerir-lhes algumas partes do meu corpo? — Rosnou e grunhiu um pouco, remexeu seus quartos traseiros buscando uma posição mais confortável e olhou pacificamente para eles.

Seu olhar encontrou olhares de sobressaltada perplexidade da parte de Arthur e Trillian, um dar de ombros resignado de Ford Prefect e a fome descarada de Zaphod Beeblebrox.

— Alguma parte do ombro, talvez? — sugeriu o animal. — Assada com molho de vinho branco?

— Ahn, do seu ombro? — disse Arthur, num sussurro de horror.

— Mas naturalmente que do meu ombro, senhor — mugiu o animal, satisfeito —, só tenho o meu para oferecer.

Zaphod levantou-se de um salto e pôs-se a apalpar e sentir os ombros do animal, apreciando.

— Ou a alcatra, que também é muito boa — murmurou o animal. — Tenho feito exercícios e comido cereais, de forma que há bastante carne boa ali. — Deu um grunhido brando, rosnou mais uma vez e começou a ruminar. Engoliu mais uma vez o bolo alimentar.

— Ou um ensopado de mim, quem sabe? — acrescentou.

— Você quer dizer que este animal realmente quer que a gente o coma? — cochichou Trillian para Ford.

— Eu? — disse Ford com um olhar vidrado. — Eu não quero dizer nada.

— É absolutamente horrível — exclamou Arthur —, a coisa mais revoltante que já ouvi.

— Qual é o problema, terráqueo? — disse Zaphod, que agora transferia a atenção para o enorme traseiro do animal.

— Eu simplesmente não quero comer um animal que está aí me convidando para isso — disse Arthur. — É impiedoso!

— Melhor do que comer um animal que não quer ser comido — disse Zaphod.

— Não é essa a questão — protestou Arthur. Pensou então um pouco a respeito. — Está bem — disse —, talvez seja essa a questão. Não quero saber, não vou pensar sobre isso agora. Eu só... ahn...

O Universo à volta dele enfurecia-se em espasmos mortais.

— Acho que só vou querer uma salada — murmurou.

— Uma salada? — disse o animal virando os olhos em sua direção, em tom de reprovação.

— Você vai me dizer — disse Arthur — que eu não deveria comer salada?

— Bem — disse o animal —, conheço muitos legumes que têm essa questão muito clara. E é por isso, aliás, que foi decidido cortar esse problema complicado pela raiz e criar um animal que realmente quisesse ser comido e que fosse capaz de dizê-lo com tanta clareza e distinção. E eis-me aqui.

Conseguiu uma leve mudança.

— Um copo d'água, por favor — disse Arthur.

— Olha — disse Zaphod —, nós queremos comer, não queremos uma discussão. Quatro bifes mal passados, e depressa. Faz quinhentos e setenta e seis bilhões de anos que não comemos.

O animal levantou-se. Deu um grunhido brando.

— Uma escolha muito acertada, senhor, se me permite. Muito bem — disse —, agora é só eu sair e me matar.

Voltou-se para Arthur e deu uma piscadela amigável.

— Não se preocupe, senhor", não serei cruel. Encaminhou-se gingando para a cozinha.

Em questão de minutos, o garçom apareceu com quatro filés fumegantes. Zaphod e Ford avançaram, sem vacilar duas vezes. Trillian parou, sacudiu os ombros, e se serviu.

Arthur olhou para o seu, sentindo-se levemente enjoado.

— Ei, terráqueo — disse Zaphod, com um sorriso malicioso no rosto que não estava se empanturrando —, que bicho te mordeu?

E a orquestra continuava.

Por todo o restaurante as pessoas e coisas relaxavam e batiam papo. O ar estava repleto de conversas sobre isso e sobre aquilo e as essências mescladas de plantas exóticas, comidas extravagantes e vinhos insidiosos. Por um número infinito de quilômetros em todas as direções o cataclisma universal aproximava-se de um clímax estupefaciente. Dando uma olhada no relógio, Max voltou ao palco num floreio.

— E agora, senhoras e senhores — exclamou, radiante —, estão todos passando últimos momentos maravilhosos?

— Estamos — gritou o tipo de gente que grita "estamos" quando o comediante pergunta se estão passando momentos maravilhosos.

— Isso é maravilhoso — disse Max, entusiasmado —, absolutamente maravilhoso! E enquanto as tempestades de fótons se juntam em turbilhões, preparando-se para romper em pedaços o último dos sóis vermelhos, sei que todos nos acomodaremos e apreciaremos aquilo que sei que cada um de nós achará uma experiência imensamente empolgante e terminal.

Fez uma pausa. Olhou para a platéia vividamente.

— Acreditem, senhoras e senhores, não há nada agora que seja apenas penúltimo.

Fez outra pausa. Esta noite seu senso de oportunidade estava irretocável. Diversas vezes tinha conduzido esse espetáculo, noite após noite. Não que a palavra noite tivesse qualquer significado ali, na extremidade do tempo. Tudo o que havia era a incessante repetição do momento final, enquanto o Restaurante seguia lentamente além da margem do tempo, e mais uma vez voltava. Esta "noite" estava boa, a platéia se contorcia na palma da sua mão, sua voz sumia e eles tinham que esforçar-se para ouvi-lo.

— Isto, senhoras e senhores, é realmente o fim absoluto, a gélida desolação final, extingue-se o sopro majestático da criação.

Baixou ainda mais a voz. Na quietude, nem uma mosca ousaria tossir.

— Após isto — continuou — não há nada. Vazio. Olvido. Esquecimento. Absolutamente nada.

Seus olhos brilharam mais uma vez — ou teriam piscado?

— Nada... a não ser, é claro, a música para dançar e uma fina seleção de licores de Alderbar!

A orquestra lhe deu um acorde de estímulo. Ele preferia que não dessem, não precisava disso, não um artista de seu calibre. Podia tocar a platéia como seu próprio instrumento. Eles riam, aliviados. Ele seguiu em frente.

— E pelo menos — gritou animadamente — vocês não têm que se preocupar com uma ressaca de manhã. Não haverá mais manhãs!

Sorriu, radiante, para sua platéia feliz e risonha. Deu uma olhada para o céu, que seguia toda noite a mesma rotina de morte, mas a olhada não durou mais que uma fração de segundo. Ele confiava que o céu faria sua parte como um profissional confia no outro.

— E agora — disse ele, pavoneando pelo palco —, arriscando colocar um abafador sobre o maravilhoso clima de frivolidade e apocalipse desta noite, gostaria de saudar algumas caravanas.

Tirou um cartão do bolso.

— Temos... — ergueu uma mão para acalmar os ânimos. — Temos uma caravana do Clube de Bridge Zansellquasure Flamarion, de Vortvoid de Qvarne? Estão aqui?

Um pessoal animado se manifestou lá no fundo, mas ele fingiu que não tinha ouvido. Olhou pelo salão tentando encontrá-los.

— Estão aqui? — perguntou de novo, para conseguir uma animação mais alta.

Conseguiu, como sempre conseguia.

— Ah, lá estão eles. Bem, o último lance, rapazes; e sem trapaças, lembrem-se que este é um momento muito solene.

Sorveu as gargalhadas com prazer.

— E temos também, temos... uma caravana das divindades menores de Asgard?

à sua direita ecoou um trovão. Um relâmpago cortou o palco. Um pequeno grupo de homens cabeludos de capacetes estavam sentados felizes da vida e levantaram seus copos para ele.

Decadentes, pensou com seus botões.

— Cuidado com esse martelo, cavalheiro — disse. Fizeram sua brincadeirinha do raio de novo. Max sorriu para eles com os lábios.

— E em terceiro — disse —, em terceiro, uma caravana dos Jovens Conservadores de Sírius B. Estão aqui?

Um grupo de cães jovens elegantemente vestidos parou de jogar papéis amassados uns nos outros e começou a jogar papéis amassados no palco. Latiam e ganiam ininteligivelmente.

— Sim — disse Max —, é tudo culpa sua. Vocês se dão conta?

— E finalmente — disse Max, aquietando a platéia e assumindo uma expressão solene —, finalmente creio que temos aqui conosco uma caravana de crentes, crentes muito devotos, da Igreja da Segunda Vinda do Grande Profeta Zarquon.

Havia cerca de vinte deles, sentados na última fileira, vestidos asceticamente, bebendo água mineral nervosamente e permanecendo alheios às festividades. Piscaram, ressentidos, quando o holofote foi apontado para eles.

— Lá estão eles — disse Max —, sentados ali, pacientemente. Ele disse que voltaria, e deixou vocês esperando por muito tempo, então vamos esperar que ele se apresse, pessoal, porque ele só tem mais oito minutos!

 

O grupo de seguidores de Zarquon permaneceu rígido, recusando-se a ser esbofeteado pelas gargalhadas impiedosas que se derramavam sobre eles.

Max conteve sua platéia.

— Não, mas falando sério agora, pessoal, sem intenção de ofender. Não, sei que não deveríamos brincar com crenças profundamente arraigadas. Uma salva de palmas para o Grande Profeta Zarquon...

A platéia aplaudiu respeitosamente.

— ... onde quer que esteja!

Mandou um beijo para o grupo de rostos empedernidos e retornou ao centro do palco. Pegou um banco alto e se sentou.

— É maravilhoso — continuou — ver todos vocês aqui esta noite, não é mesmo? Sim, absolutamente maravilhoso. Porque sei que tantos de vocês vêm aqui várias e várias vezes, o que eu acho realmente maravilhoso, vir aqui e assistir à finalização de tudo, e então retornar para casa, para suas próprias eras... e construir famílias, lutar por sociedades novas e melhores, combater em guerras terríveis por aquilo que sabem que é o certo... isso realmente dá esperança no futuro de toda espécie viva. A não ser, é claro — apontou para o redemoinho relampejante acima e ao redor deles — pelo fato de sabermos que isso não existe...

Arthur voltou-se para Ford. Ainda não tinha conseguido fazer esse lugar entrar direito na sua cabeça.

— Olha — disse—, se o Universo está para acabar... a gente não vai junto?

Ford dirigiu-lhe um olhar de três Dinamites Pangalácticas, ou, em outras palavras, um olhar bastante incerto.

— Não — respondeu. — Olha — disse —, assim que você cai neste mergulho você fica preso nessa coisa fantástica de campo de força temporal. Eu acho.

— Ah — disse Arthur. Voltou sua atenção para o prato de sopa que tinha conseguido pedir ao garçom em troca do bife.

— Olha — disse Ford. — Vou te mostrar.

Pegou um guardanapo da mesa e começou a tentar fazer algo com ele, sem esperanças.

— Olha — disse outra vez. — Imagine este guardanapo, certo, como sendo o Universo temporal, certo? E esta colher como o módulo transduccional na curvatura da matéria...

Levou um tempo para ele dizer esta última parte, e Arthur detestou ter que interrompê-lo.

— Essa é a colher com que eu estava comendo — disse.

— Tá bom — disse Ford. — Imagine então esta colher... — encontrou uma colher de madeira num pote de picles — esta colher... — mas achou que era bagunça demais pegar aquela colher — não, melhor ainda, este garfo...

— Ei, quer largar meu garfo — disse Zaphod, asperamente.

— Tá bom — disse Ford —, tá bom, tá bom. Então vamos supor que este copo de vinho é o Universo temporal...

— Qual? Esse que você acabou de derrubar no chão? ç, — Eu derrubei?

— Derrubou.

— Tá bom — disse Ford —, esquece. Quer dizer... quer dizer, olha, você sabe realmente como o Universo começou?

— Provavelmente não — disse Arthur, que preferia nunca ter começado com isso.

— Tá bom — disse Ford —, imagine isso. Certo. Você tem uma banheira. Uma banheira rosada bem grande. Feita de ébano.

— Feita onde? — disse Arthur. — A Casa Harrods foi destruída pelos vogons.

— Não importa.

— Então continua

— Escuta.

— Tudo bem.

— Você tem essa banheira, certo? Imagine que você tem essa banheira. E é de ébano. E é cônica.

— Cônica? — disse Arthur. — Que tipo de...

— Psiu — disse Ford. — É cônica. Então o que você faz, entende, você enche a banheira de areia branca e fina, certo? Ou açúcar. Areia branca e fina e/ou açúcar. Tanto faz. Não importa. Pode ser açúcar. E quando estiver cheia, você destampa o ralo... tá ouvindo?

— Estou ouvindo.

— Você destampa o ralo, e tudo vai escorrendo num redemoinho, vai escorrendo, entende, pelo ralo.

— Entendi.

— Você não entendeu. Você não entendeu nada. Eu ainda não cheguei na parte importante. Quer ouvir a parte importante?

— Me conta a parte importante.

— Vou te contar a parte importante.

Ford pensou por um momento, tentando lembrar qual era a parte importante.

— A parte importante — disse — é essa. Você filma o que está acontecendo.

— Importante — concordou Arthur.

— Você pega uma câmera de filmar e filma o que está acontecendo.

— Importante.

— Essa não é a parte importante. A parte importante é essa, agora eu lembrei qual é a parte importante. A parte importante é que depois você liga o projetor... de trás para frente!

— De trás para frente?

— É. Ligar o projetor de trás para frente é definitivamente a parte importante. E aí, você senta e fica assistindo, e parece que está tudo subindo em espiral pelo ralo e enchendo a banheira. Entendeu?

— E foi assim que o Universo começou? — disse Arthur.

— Não — disse Ford —, mas é um jeito maravilhoso de espairecer.

Procurou seu copo de vinho.

— Cadê meu copo de vinho? — perguntou.

— No chão.

— Ah.

Ao afastar a cadeira para trás para procurar o copo, Ford colidiu com o garçonzinho verde que vinha chegando à mesa carregando um telefone portátil.

Ford pediu desculpas ao garçom explicando que era porque ele estava extremamente bêbado.

O garçom disse que tudo estava bem e que entendia perfeitamente.

Ford agradeceu ao garçom por sua simpática indulgência, tentou puxá-lo pelo topete, mas errou por vinte centímetros, e deslizou para debaixo da mesa.

— Sr. Zaphod Beeblebrox? — perguntou o garçom.

— Ahn, o quê? — disse Zaphod, levantando-se de seu terceiro bife.

— Telefone para o senhor.

— Ei, o quê?

— Um telefonema, senhor.

— Para mim? Aqui? Ei, mas quem é que sabe que eu estou aqui?

Uma de suas mentes acorreu. A outra ainda se refestelava com a comida.

— Você não liga se eu continuar, não é? — disse sua cabeça que comia, e continuou.

Havia agora tantas pessoas atrás dele que já tinha perdido a conta. Não devia ter feito uma entrada tão chamativa. Droga, e por que não, pensou. Como você vai saber se está se divertindo se não tem ninguém olhando você se divertir?

— Talvez alguém aqui tenha dado o toque para a Polícia Galáctica — disse Trillian. — Todo mundo te viu entrando.

— Quer dizer que eles querem me prendei pelo telefone? — disse Zaphod. — Pode ser. Sou muito perigoso quando encurralado.

— É — disse uma voz debaixo da mesa. — Você se despedaça tão rápido que todo mundo tem medo de ser atingido pelos estilhaços.

— Ei, o que é isso? O dia do Juízo Final? — disse Zaphod.

— Nós não vamos vê-lo, de qualquer forma? — disse Arthur, nervoso.

— Não tenho pressa — murmurou Zaphod. — OK, então quem é esse cara no telefone? — Deu um chute em Ford. — Ei, levanta aí, meu, pode ser que eu precise de você.

— Não conheço — disse o garçom — pessoalmente, o cavalheiro metálico em questão, senhor...

— Metálico?

— Sim, senhor.

— Você disse metálico?

— Sim, senhor. Disse que não conheço pessoalmente o cavalheiro metálico em questão...

— OK, vá em frente.

— Mas tenho a informação de que ele está aguardando sua volta há um número considerável de milênios. Parece que o senhor saiu daqui um tanto precipitadamente.

— Saí daqui? — disse Zaphod. — Você está louco? Acabamos de chegar.

— Certamente, senhor — persistiu obstinadamente o garçom —, mas, antes de chegar, senhor, creio que o senhor havia saído.

Zaphod tentou entender com um cérebro e depois com o outro.

— Você está dizendo que antes de chegarmos aqui, tínhamos saído daqui?

Vai ser uma longa noite, pensou o garçom.

— Precisamente, senhor — disse ele.

— Arranje um analista com o dinheiro para emergências — aconselhou Zaphod.

— Não, espere um minuto — disse Ford, emergindo para cima do nível da mesa mais uma vez. — Onde estamos, exatamente?

— Para ser absolutamente exato, senhor, este é o Planeta Astrossapo B.

— Mas nós saímos de lá — protestou Zaphod. — Saímos de lá e viemos ao Restaurante do Fim do Universo.

— Sim, senhor — disse o garçom, sentindo que agora estava no curso normal e indo bem —, um foi construído sobre as ruínas do outro.

— Oh — disse Arthur, brilhantemente —, quer dizer que viajamos no tempo, mas não no espaço.

— Escute, símio semi-evoluído — cortou Zaphod —, por que você não vai trepar numa árvore?

Arthur encolerizou-se.

— Vá arrebentar suas duas cabeças, quatro-olhos — recomendou a Zaphod.

— Não, não — disse o garçom a Zaphod —, o macaco está certo, senhor.

Arthur gaguejou e não disse nada adequado ou mesmo coerente.

— Vocês saltaram... creio que quinhentos e setenta e seis bilhões de anos permanecendo no mesmo lugar — explicou o garçom. Ele sorria. Tinha a maravilhosa sensação de que vencera finalmente contra todas as evidências, que pareciam insuperáveis.

— É isso! — exclamou Zaphod. — Entendi. Mandei o computador nos mandar para o lugar mais próximo onde se pudesse comer e foi exatamente o que ele fez. Quinhentos e setenta e seis bilhões de anos a mais ou a menos, não saímos do lugar. Simples.

Todos concordaram que era muito simples.

— Mas quem — disse Zaphod — é esse cara no telefone?

— O que será que aconteceu com Marvin? — disse Trillian.

Zaphod bateu com as mãos nas cabeças.

— O Andróide Paranóide! Eu o deixei caído de desânimo em Astrossapo B.

— Quando foi isso?

— Bom, ahn, quinhentos e setenta e seis bilhões de anos atrás, eu acho — disse Zaphod. — Ei, passe o aparelho, capitão.

O garçonzinho girou suas sobrancelhas pela testa, confuso.

— Perdão, senhor?

— O telefone, garçom — disse Zaphod, arrancando-o de sua mão. — Xi, vocês são tão bunda-mole, que não sei como não escorregam das cadeiras.

— Certamente, senhor.

— Ei, Marvin, é você? — disse Zaphod no telefone. — Como você está, cara.

Houve uma longa pausa até que uma voz baixa começasse a falar.

— Acho que você deveria saber que estou me sentindo muito deprimido.

Zaphod tampou o fone com a mão.

— É o Marvin.

— Ei, Marvin — disse ao telefone de novo —, estamos nos divertindo muito. Comida, vinho, um pouco de abuso pessoal e o Universo indo às picas. Onde podemos te encontrar?

Outra pausa.

— Você não precisa fingir que está interessado em mini, sabe — disse Marvin, por fim. — Sei perfeitamente bem que não passo de um robô desprezível.

— OK, OK, mas onde você está?

— "Reverta o empuxo, Marvin", é o que me dizem, "abra a câmara de compressão número três, Marvin", "Marvin, pode pegar aquele papel?". Se posso pegar aquele papel! Aqui estou eu, um cérebro do tamanho de um planeta e me pedem para...

— Certo, certo — solidarizou-se Zaphod, com alguma dificuldade.

— Mas estou bastante acostumado a ser humilhado — disse Marvin, monótono. — Posso até enfiar a cabeça num balde d'água, se você quiser. Quer que eu enfie a cabeça num balde d'água? Já tenho um prontinho. Espere um minuto.

— Ahn, ei, Marvin... — interrompeu Zaphod, mas já era tarde. Tristes ruídos de lata encharcada vieram do outro lado da linha.

— O que ele está dizendo? — perguntou Trillian.

— Nada — disse Zaphod —, só ligou para lavar a cabeça diante da gente.

— Pronto — disse Marvin ao voltar ao aparelho, borbulhando um pouco. — Espero que esteja satisfeito...

— Tá bom, tá bom — disse Zaphod —, agora quer fazer o favor de dizer onde você está?

— Estou no estacionamento — disse Marvin.

— No estacionamento? — disse Zaphod. — Fazendo o quê?

— Estacionando os carros, o que mais se pode fazer num estacionamento?

— OK, agüenta aí que a gente está indo.

Num único movimento, Zaphod levantou-se, desligou o telefone e escreveu "Hotblack Desiato" na conta.

— Vamos, pessoal — disse. — Marvin está no estacionamento. Vamos descer lá.

— O que ele está fazendo no estacionamento? — perguntou Arthur.

— Estacionando os carros, o que mais? Pergunta idiota.

— Mas e o Fim do Universo? Vamos perder o grande momento.

— Eu já vi. È palha — disse Zaphod. — Nada além de um gnab gib.

— Um quê?

— O contrário de um big bang. Vamos, depressa. Poucos dos outros fregueses prestaram atenção neles enquanto atravessavam a aglomeração de mesas do Restaurante em direção à saída. Seus olhos estavam fixos nos horrores do céu.

— Um efeito interessante de se notar — dizia-lhes Max — é no quadrante superior esquerdo do céu, onde se vocês olhares com atenção podem ver o sistema estelar de Hastromil derretendo-se em ultravioleta. Tem alguém aqui de Hastromil?

Houve uma ou duas manifestações hesitantes vindas de algum lugar, lá do fundo.

— Bem — disse Max, sorrindo animadamente para eles —, tarde demais para se preocupar se deixaram o gás aberto.

O saguão de recepção estava praticamente vazio, mas mesmo assim Ford teve dificuldades em atravessá-lo.

Zaphod puxou-o pelo braço e o enfiou num cubículo que ficava ao lado do hall de entrada.

— O que você está fazendo com ele? — perguntou Arthur.

— Pondo-o sóbrio — disse Zaphod, introduzindo uma moeda. Piscaram umas luzes e uns gases rodopiaram.

— Oi — disse Ford, saindo logo em seguida —, aonde vamos?

— Para o estacionamento, venha.

— Por que não tomamos os tempoteleportadores pessoais? — disse Ford. — Levam a gente direto para a Coração de Ouro.

É, mas eu já desencanei daquela nave. Zarniwoop pode ficar com ela. Não quero entrar no jogo dele. Vamos ver o que a gente pode arranjar.

Um Transportador Vertical Feliz de Pessoas da Companhia Cibernética de Sírius levou-os até o substrato debaixo do Restaurante. Ficaram contentes ao ver que ele tinha sido depredado e não quis, assim, fazê-los felizes além de levá-los para baixo.

No fundo do poço abriram-se as portas e um bafo de ar viciado atingiu-os.

A primeira coisa que viram ao sair do elevador foi uma longa parede de concreto com mais de cinqüenta portas oferecendo instalações sanitárias para as cinqüenta formas de vida principais. Mesmo assim, como em todo estacionamento da Galáxia, em toda a história dos estacionamentos, este cheirava a impaciência.

Viraram uma esquina e encontraram-se de repente sobre uma esteira rolante que atravessava um vasto espaço cavernoso que se estendia numa distância que parecia infinita.

Era dividida em compartimentos, cada qual abrigando uma nave que pertencia a um freguês lá em cima, algumas eram modelos pequenos e utilitários, produzidos em massa; outras, enormes espaçosines, os brinquedos dos muitos ricos.

Os olhos de Zaphod faiscavam de algo que podia ser ou não ser cobiça conforme iam passando por eles. Na verdade, é melhor deixar clara esta questão — cobiça é exata-mente do que se tratava.

— Lá está ele — disse Trillian. — O Marvin, ali embaixo.

Olharam para onde ela estava apontando. Puderam ver, indistintamente, uma pequena figura metálica esfregando apaticamente um pedaço de pano num canto remoto de uma nave prateada.

A curtos intervalos no percurso da esteira rolante, largos tubos transparentes levavam ao nível do chão. Zaphod entrou num deles e deslizou suavemente até lá embaixo. Os outros o seguiram. Pensando nisso mais tarde, Arthur Dent achou que essa tinha sido a única experiência realmente agradável em suas viagens pela Galáxia.

— Ei, Marvin — disse Zaphod, andando a passos largos em sua direção. — Ei, cara, fico feliz em vê-lo.

Marvin virou, e na medida em que é possível a um rosto metálico totalmente inerte parecer reprovador, foi o que fez.

— Não, não fica — respondeu. — Ninguém nunca fica.

— Faça o que bem entender — disse Zaphod, virando-se para ir cobiçar as naves. Ford foi com ele.

Apenas Arthur e Trillian realmente foram até Marvin.

— Não, nós ficamos, de verdade — disse Trillian, dando-lhe tapinhas de um modo que ele detestava intensamente. — Ficar aqui, assim, esperando a gente todo esse tempo.

— Quinhentos e setenta e seis bilhões, três mil quinhentos e setenta e nove anos — disse Marvin. — Eu contei.

— Bom, estamos aqui agora — disse Trillian, sentindo (com razão, segundo Marvin) que essa era uma coisa meio boa de se dizer.

— Os primeiros dez milhões de anos foram os piores — disse Marvin —, os segundos dez milhões de anos, esses também foram os piores. Os terceiros dez milhões de anos não foram nada agradáveis. Depois disso eu entrei numa fase de decadência.

Fez uma pausa longa o bastante para que eles sentissem que deviam dizer alguma coisa, e então interrompeu.

— São as pessoas que a gente encontra neste serviço que realmente deixam a gente mal — disse, e fez outra pausa.

Trillian pigarreou.

— E esse...

— A melhor conversa que eu tive foi há mais de quarenta milhões de anos — continuou Marvin.

Outra vez a pausa.

— Ah, v...

— E foi com uma máquina de fazer café. Esperou.

— Isso é...

— Vocês não gostam de conversar comigo, não é? disse Marvin num tom desolado.

Trillian começou a conversar com Arthur.

Um pouco além dali, Ford Prefect encontrara uma coisa de cuja aparência ele gostou muito, muitas coisas assim, aliás.

— Zaphod — disse em voz baixa —, dá só uma olhada nestas máquinas das estrelas...

Zaphod olhou e gostou.

O aparelho que estavam olhando era na verdade bem pequeno, mas extraordinário, um verdadeiro brinquedo de criança rica. Não era grande coisa na aparência. Não parecia nada além de um dardo de papel de dez metros de comprimento feito de lâminas metálicas finas, mas resistentes. Na ponta de trás havia uma cabine para duas pessoas. Tinha um pequeno motor charmoso, mas que não podia movê-lo a grande velocidade. Uma coisa que ele tinha, porém, era um tanque de calor.

O tanque de calor tinha uma massa de uns dois mil bilhões de toneladas e ficava acondicionado num buraco negro instalado num campo eletromagnético situado na metade do comprimento da nave, e esse tanque de calor permitia que a nave fosse manobrada a até alguns quilómetros de um sol amarelo, e ali agarrar e montar as labaredas solares que emanavam de sua superfície.

Montar labaredas é um dos esportes mais exóticos e estimulantes da existência, e aqueles que têm o dinheiro e a ousadia para praticá-lo situam-se entre os homens mais admirados da Galáxia. É também, claro, estupendamente perigoso — aqueles que não morrem montando, morrem invariavelmente de exaustão sexual em uma das festas Après -Labaredas do Clube Dédalo.

Ford e Zaphod olharam e seguiram em frente.

— E esta gracinha — disse Ford —, este buggy estelar cor-de-tangerina?

Mais uma vez, o buggy estelar era uma nave pequena — um nome completamente impróprio, a propósito, porque uma coisa que ele não era capaz de fazer era cobrir distâncias interestelares. Era basicamente um jipe planetário enfeitado para parecer o que não era. Seguiram em frente.

A nave seguinte era das grandes, quarenta e cinco metros de comprimento — uma nave-limusine estilo carruagem planejada obviamente com um único objetivo em mente, que era deixar o observador doente de inveja. A pintura e os acessórios diziam claramente: "Não apenas sou rico o bastante para ter esta nave, como também sou bastante rico para não levá-la a sério". Era maravilhosamente abominável.

— Olhe só para isto — disse Zaphod. — Câmbio multi-ramalhetado, mostradores perispulécticos. Deve ser uma das jóias de Lazlar Lyricon.

Examinou cada centímetro.

— Só! — exclamou. — Olhe, o emblema do lagarto infracor-de-rosa na capota de neutrino. A marca registrada de Lazlar. O cara não tem vergonha.

— Já fui ultrapassado por uma dessas uma vez, na Nebulosa de Axel — disse Ford. — Eu estava no maior pau, e essa coisa me passou como se estivesse passeando. Inacreditável.

Zaphod assobiou, apreciando.

— Dez segundos depois — disse Ford — espatifou-se contra a terceira lua de Jaglan Beta.

— Ah, verdade?

— Uma nave linda, de qualquer forma. Parece um peixe, move-se como um peixe, dirige-se como uma vaca.

Ford olhou o outro lado.

— Ei, venha ver — chamou —, tem uma pintura deste lado. Um sol explodindo — a marca registrada do Disaster Área. Esta deve ser a nave de Hotblack. Cara de sorte. Eles têm essa música terrível, sabe, que termina com uma nave duble arrebentando-se contra o sol. É para ser um espetáculo espantoso. As naves dubles saem caras, no entanto. A atenção de Zaphod estava, porém, em outro lugar. Sua atenção estava fixa na nave estacionada ao lado da limusine de Hotblack Desiato. Estava de queixos caídos.

— Isso... — disse — isso... realmente impressiona a vista...

Ford olhou. Ele também ficou maravilhado.

Era uma nave de linhas simples, clássicas, como um salmão, trinta e cinco metros de comprimento, muito harmoniosa, muito lisa. Tinha apenas uma coisa de notável.

— Ê tão... negra! — disse Ford Prefect. — Quase não dá para distinguir suas linhas... parece que a luz cai para dentro dela!

Zaphod não disse nada. Estava simplesmente apaixonado.

Sua negrura era tão extrema que era quase impossível dizer a que distância se estava dela.

— O olhar simplesmente desliza sobre ela... — dizia Ford, em êxtase. Era um momento de emoção. Ele mordia os lábios.

Zaphod caminhou na direção dela, lentamente, como um homem possuído —, ou, mais exatamente, como um homem que quer possuir. Estendeu a mão para tocá-la. Sua mão parou. Estendeu a mão para tocá-la. Sua mão parou outra vez.

— Venha sentir esta superfície — disse, num sussurro. Ford estendeu a mão para tocá-la. Sua mão parou.

— Não... não dá — disse.

— Viu? — disse Zaphod. — É totalmente desprovida de atrito. Deve ser uma máquina e tanto...

Voltou-se para Ford para olhá-lo seriamente. Pelo menos foi o que fez uma de suas cabeças — a outra continuou contemplando a nave, deslumbrada.

— O que você acha, Ford?

— Você diz... ahn... — Ford olhou por sobre os ombros. — Você diz sair daqui com ela? Você acha que a gente deve?

— Não.

— Eu também não.

— Mas nós vamos, não vamos?

— Como não?

Admiraram um pouco mais, até que Zaphod se recompôs.

— É melhor sair fora rapidinho — disse. — Daqui a pouco o Universo já vai ter acabado e o pessoal vai jorrar aqui embaixo para pegar suas banheiras.

— Zaphod — disse Ford.

— Que?

— Como a gente vai fazer?

— Simples — disse Zaphod. Virou-se. — Marvin! — gritou.

Vagarosamente, laboriosamente, e com um milhão de rangidos e estalos que ele tinha aprendido a simular, Marvin voltou-se para responder ao chamado.

— Venha cá — disse Zaphod —, temos um trabalho para você.

Marvin arrastou-se em direção a eles.

— Eu não vou gostar — disse ele.

— Vai sim — disse Zaphod, entusiástico —, toda uma nova vida estende-se à sua frente.

— Ah, não. Mais uma — resmungou Marvin.

— Cale a boca e escute! — disse Zaphod. — Desta vez vai haver emoção e aventura e coisas realmente bárbaras.

— Parece horrível.

— Marvin! Estou tentando pedir para você...

— Suponho que você queira que eu abra esta espaço-nave para você.

— O quê? Bom... é. Ê, é isso — disse Zaphod, apreensivo. Mantinha pelo menos três olhos nas portas de entrada. O tempo era curto.

— Bom, preferia que você tivesse me dito simplesmente, em vez de tentar conseguir meu entusiasmo — disse Marvin —, porque isso eu não tenho.

Caminhou até a nave, tocou-a, e uma escotilha se abriu.

Ford e Zaphod olharam assombrados.

— Não há de quê — disse Marvin. — Ah, vocês não disseram que houvesse. — Foi embora, arrastando-se.

Arthur e Trillian juntaram-se a eles.

— O que está havendo? — perguntou Arthur.

— Olhe para isso — disse Ford —, olhe para o interior desta nave.

— Fabuloso, fabuloso — murmurava Zaphod.

— É preto — disse Ford. — Tudo nela é totalmente preto.

No Restaurante, as coisas se aproximavam cada vez mais do momento após o qual não haveria mais momentos.

Os olhos de todos estavam fixos no domo, com exceção dos do guarda-costas de Hotblack Desiato, que estavam fixos em Hotblack Desiato, e os do próprio Hotblack Desiato, que o guarda-costas tinha fechado respeitosamente.

O guarda-costas estava inclinado sobre a mesa. Se Hotblack Desiato estivesse vivo, provavelmente teria considerado esse um bom momento para inclinar-se para trás, ou mesmo sair para dar uma volta. Seu guarda-costas não era exatamente o tipo de homem que inspirasse proximidade. Devido a sua desafortunada condição, porém, Hotblack Desiato permanecia totalmente inerte.

— Senhor Desiato? — sussurrou o guarda-costas. Sempre que ele falava parecia que os músculos dos dois lados de sua boca ficavam se acotovelando, para que um ou outro saísse da frente.

— Senhor Desiato? O senhor está me ouvindo? Hotblack Desiato naturalmente não disse nada.

— Hotblack? — sussurrou o guarda-costas.

Mais uma vez, naturalmente, Hotblack Desiato não respondeu. Sobrenaturalmente, no entanto, ele respondeu.

Na mesa à sua frente, um copo de vinho tremeu, e um garfo ergueu-se uns dois centímetros e bateu no copo.

O guarda-costas rosnou satisfeito.

— É hora de ir, senhor Desiato — murmurou o guarda-costas. — Não queremos pegar o rush, não com o senhor na sua condição. O senhor deve estar bem e descansado para a próxima apresentação. Havia uma platéia realmente grande. Uma das melhores. Kakrafoon. Quinhentos e setenta e seis bilhões de anos atrás. O senhor não terá estado estando pós-ansioso por isso?

O garfo ergueu-se mais uma vez, parou, balançou evasivamente e caiu de novo.

— Ah, que é isso — disse o guarda-costas. — Vai ser ótimo. Você arrasou com eles. — O guarda-costas teria causado um ataque apoplético no Dr. Dan Streetmentioner.

— A nave negra indo de encontro ao sol sempre os empolga, e a nova está uma beleza. Vai ser uma pena vê-la ir embora. Vamos descer, aí eu ligo o piloto automático da nave negra e a gente vai com a limusine, OK?

O garfo bateu uma vez, concordando, e o copo de vinho esvaziou-se misteriosamente.

O guarda-costas empurrou a cadeira de rodas de Hotblack Desiato para fora do Restaurante.

— E agora — gritou Max do centro do palco —, o momento por que todos estávamos esperando! — Ergueu os braços para o ar. Atrás dele a orquestra veio com um frenesi de percussão e cordas. Max tinha discutido com eles quanto a isso, mas eles alegavam que estava no contrato que era isso o que iam fazer. O agente dele teria que ver isso.

— Os céus começam a ferver! — gritou. — A natureza entra em colapso em meio ao vazio vociferante! Dentro de vinte segundos o próprio Universo terá seu fim! Vejam onde explode a luz do infinito!

A horrenda fúria da destruição resplandecia acima deles — e nesse momento uma pequena trombeta soou como que de uma distância infinita. Max lançou olhares dardejantes sobre a orquestra. Nenhum deles parecia estar tocando trombeta. Subitamente uma nuvem de fumaça surgiu em redemoinhos no palco ao lado dele. Outras trombetas juntaram-se à primeira. Por mais de quinhentas vezes Max tinha conduzido esse espetáculo e nunca nada semelhante acontecera. Afastou-se, assustado, da fumaça rodo-piante, e, quando o fez, uma figura materializou-se lentamente dentro dela, a figura de um velho barbudo, vestindo um manto e rodeado de luz. Tinha estrelas nos olhos e uma coroa de ouro na testa.

— O que é isso? — murmurou Max, de olhos arregalados. — O que está acontecendo?

No fundo do Restaurante, o grupo empedernido da Igreja da Segunda Vinda do Grande Profeta Zarquon ajoelhou-se em êxtase entoando cânticos e chorando.

Max piscou, maravilhado. Levantou os braços para a plateia.

— Uma salva de palmas, senhoras e senhores — conclamou — para o Grande Profeta Zarquon! Ele veio! Zarquon voltou!

Um aplauso tonitroante explodiu enquanto Max atravessou o palco e entregou o microfone nas mãos do Profeta.

Zarquon tossiu. Espiou a audiência reunida. As estrelas em seus olhos piscavam, pouco à vontade. Segurava o microfone, confuso.

— Ahn — disse ele — ... olá. Ahn... olha, desculpem por eu ter vindo um pouco atrasado. Eu andei com uns

problemas bem desagradáveis, todo tipo de coisa aparecendo de última hora.

Parecia nervoso com o silêncio reverente dos espectadores. Pigarreou.

— Ahn, como nós estamos com o tempo? — disse.— Ele disse que só tínhamos um min...

E assim acabou o Universo.

 

Um dos principais fatores de vendagem do livro de viagens inteiramente notável Guia da Galáxia para Caronas, além do fato de ser relativamente barato e de trazer as palavras NÃO ENTRE EM PÂNICO em amigáveis letras garrafais na capa, é seu glossário conciso e eventualmente preciso. As estatísticas relativas à natureza geosocial do Universo, por exemplo, encontram-se habilmente colocadas entre as páginas novecentos e trinta e oito mil, trezentos e vinte e quatro e novecentos e trinta e oito mil, trezentos e vinte e seis; e o estilo simples em que estão escritas deve-se em parte ao fato de os editores, tendo que cumprir um determinado prazo de entrega, copiaram as informações do verso de uma caixa de cereais para a refeição matinal, acrescentando algumas notas de rodapé para evitar um processo baseado nas incompreensivelmente tortuosas leis de copyright da Galáxia.

É interessante lembrar que mais tarde um editor mais astuto enviou o livro de volta no tempo, e acionou com sucesso a companhia de cereais por infringir as referidas leis.

Eis um exemplo:

 

O Universo — algumas informações para ajudá-lo a viver nele.

 

1 — Area: Infinita

O Guia da Galáxia para Caronas oferece a seguinte definição para a palavra "Infinito":

Infinito: Maior que a maior de todas as coisas e mais um pouco. Muito maior que isso, aliás, fantasticamente imenso, de um tamanho totalmente estonteante, um verdadeiro tamanho tipo "puxa, como é grande!". O infinito é tão grande que em comparação a ele a própria grandeza parece uma titica. Gigantesco multiplicado por colossal multiplicado por exorbitantemente enorme é o tipo de conceito a que estamos tentando chegar.

2 — Importações: Nenhuma.

Ê impossível importar coisas para uma área infinita, pois não há exterior de onde importá-las.

3 — Exportações: Nenhuma.

Vide Importações.

4 — População: Nenhuma.

Sabe-se que há um número infinito de mundos, simplesmente porque há um espaço infinito para que os haja. Todavia, nem todos são habitados. Assim, deve haver um número finito de mundos habitados. Qualquer número finito dividido pelo infinito é tão perto de zero que não faz diferença, de forma que a população de todos os planetas do Universo pode ser considerada igual a zero. Daí segue que a população de todo o Universo também é zero, e que quaisquer pessoas que você possa encontrar de vez em quando são meramente produtos de uma imaginação perturbada.

5 — Unidades Monetárias: Nenhuma.

Na realidade há três moedas livremente correntes na Galáxia, mas nenhuma delas conta. O Dólar Altairiense entrou em colapso recentemente, a Baga Flainiana só é intercambiável por outras Bagas Flainianas, e o Pu Trigânico tem seus próprios problemas muito específicos. Sua taxa de câmbio de oito Ningis por cada Pu é bastante simples, mas como cada Ningi é uma moeda triangular de borracha de seis mil e oitocentos quilômetros de lado, ninguém jamais as juntou em número suficiente para possuir um Pu. Ningis não são moedas negociáveis, porque os Bancos Galácticos recusam-se a lidar com trocados. Partindo-se dessa premissa básica, é muito simples provar que os Bancos Galácticos também são produto de uma imaginação perturbada.

6 — Arte: Nenhuma.

A função da arte é portar o espelho da natureza, e simplesmente não existe um espelho que seja grande o bastante — vide ponto um.

7 — Sexo: Nenhum.

Bem, para dizer a verdade tem uma porção, amplamente devido à total falta de dinheiro, comércio, bancos, arte ou qualquer outra coisa que pudesse manter ocupadas todas as pessoas não-existentes do Universo.

Todavia, não vale a pena embarcar numa discussão sobre isso porque seria terrivelmente complicada. Para maiores informações veja os capítulos do Guia de números sete, nove, dez, onze, catorze, dezesseis, de-zessete, dezenove, vinte e um e oitenta e quatro inclusive, e a bem da verdade quase todo o resto do Guia.

 

O Restaurante continuou a existir, mas todo o resto parou. A relaestática temporal o mantinha e o protegia dentro de um nada que não era meramente um vácuo, era simplesmente nada — nada havia em que se pudesse dizer que havia um vácuo.

O domo, protegido pelo campo de força, tornara-se novamente opaco, a festa terminara, os comensais se retiravam, Zarquon desaparecera junto com o resto do Universo, as Turbinas do Tempo se preparavam para puxar o Restaurante de volta por sobre a margem do tempo para a hora de servir o almoço, e Max Quordlepleen estava de volta a seu camarim acortinado tentando falar com seu agente ao tempofone.

No estacionamento estava a nave negra, fechada e silenciosa.

Entrou no estacionamento o falecido Sr. Hotblack Desiato, empurrado pela esteira rolante por seu guarda-costas.

Desceram por um dos tubos. Ao se aproximarem da nave-limusine uma escotilha se abriu, acoplou-se às rodas da cadeira de rodas e a puxou para dentro. O guarda-costas acompanhou, e depois de ver seu patrão seguramente instalado em seu sistema de manutenção de morte, dirigiu-se à cabine. Dali operou o sistema de controle remoto que ativava o piloto automático da nave negra, estacionada ao lado da limusine, propiciando assim um grande alívio a Zaphod Beeblebrox, que vinha tentando dar a partida há mais de dez minutos.

A nave negra deslizou suavemente para fora de sua vaga. Virou, e moveu-se pelo corredor central do estacionamento silenciosamente. No final dele, acelerou rapidamente, mergulhou na câmara de lançamento temporal e iniciou a longa viagem de volta ao passado distante.

O Cardápio do Milliways cita, com a autorização devida, um trecho do Guia da Galáxia para Caronas. O trecho é o seguinte:

A história de toda civilização galáctica tende a atravessar três fases distintas e identificáveis, as da Sobrevivência, Interrogação e Sofisticação, também conhecidas como as fases do Como, a do Porquê e a do Onde.

Por exemplo, a primeira fase é caracterizada pela pergunta: "Como vamos poder comer?". A segunda pela pergunta: "Por que comemos?". E a terceira, pela pergunta: "Onde vamos almoçar? ".

O cardápio segue em frente sugerindo que o Milliways, o Restaurante do Fim do Universo, seria uma resposta agradável e sofisticada para a terceira pergunta.

O que ele não diz é que embora uma grande civilização leve milênios para passar pelas fases do Como, do Porquê e do Onde, pequenos agrupamentos sociais podem passar por elas com extrema rapidez.

— Como estamos? — perguntou Arthur.

— Mal — disse Ford Prefect.

— Para onde estamos indo? — perguntou Trillian.

— Não sei — disse Zaphod Beeblebrox.

— Por que não? — inquiriu Arthur Dent.

— Cale a boca — sugeriram Zaphod Beeblebrox e Ford Prefect.

— Basicamente, o que vocês estão tentando dizer — disse Arthur Dent, ignorando a sugestão — é que estamos fora de controle.

A nave sacudia e balançava nauseantemente enquanto Ford e Zaphod tentavam tomar o controle do piloto automático. Os motores gemiam e choramingavam como crianças cansadas num supermercado.

— Ê esse sistema absurdo de cores que me incomoda

— disse Zaphod, cujo caso de amor com a nave não tinha durado mais do que três minutos depois de começar o vôo.

— Toda vez que você tenta operar um desses misteriosos controles pretos, rotulados em preto contra um fundo preto, acende uma luzinha preta para dizer o que você fez. O que que é isso? Alguma espécie de hipernave funerária galáctica?

As paredes da cabine sacolejante também eram pretas, os assentos — que eram rudimentares, uma vez que a única viagem importante para que essa nave fora projetada não seria tripulada — eram pretos, o painel de controle era preto, os instrumentos eram pretos, os parafusos que os prendiam eram pretos, o fino carpete de náilon que cobria o chão era preto, e quando eles levantaram uma ponta dele, descobriram que o forro por baixo também era preto.

— Talvez a pessoa que a desenhou tivesse olhos que respondessem a outros comprimentos de onda — propôs Trillian.

— Ou não tinha muita imaginação — murmurou Arthur.

— Talvez — disse Marvin — estivesse muito desanimada.

A verdade, embora eles não pudessem saber, era que a decoração tinha sido escolhida em homenagem à condição triste, lamentável e dedutível de imposto de seu proprietário.

A nave deu uma guinada particularmente nauseante.

— Vão com calma — implorou Arthur —, estou ficando enjoado com as ondas do espaço.

— Com as ondas do tempo — corrigiu Ford. — Estamos mergulhando'no tempo.

— Obrigado — disse Arthur. — Agora eu acho que eu realmente vou passar mal.

— Vá em frente — disse Zaphod. — Seria bom um pouco de cor neste lugar.

— Isto é uma conversa educada para depois do jantar? — cortou Arthur.

Zaphod deixou os controles para Ford tentar adivinhar, e foi para cima de Arthur.

— Olha, terráqueo — disse, furioso —, você tem um serviço a prestar, certo? A Pergunta referente à Resposta Fundamental, certo?

— O quê, essa estória? — disse Arthur. — Pensei que a gente já tinha esquecido.

— Eu, não, cara. Como disseram os ratos, vale uma fortuna nos canais certos. E está tudo trancado nessa cabeça sua.

— É, mas...

— Mas nada! Pense nisso. O Sentido da Vida! Se a gente puser as mãos nisso, a gente vai ter cada centímetro do Universo sob nosso resgate, e isso vale uma nota. Um manancial de riqueza!

Arthur deu um longo suspiro, sem muito entusiasmo.

— Certo — disse —, mas por onde a gente começa? Como eu posso saber? Eles dizem que a Resposta Fundamental é Quarenta e dois, como é que eu vou saber qual é a pergunta? Pode ser qualquer coisa. Quero dizer, quanto são seis vezes sete?

Zaphod o encarou seriamente por um instante. Então seus olhos brilharam, empolgados.

— Quarenta e dois! — exclamou. Arthur passou a mão na testa.

— É — disse pacientemente —, eu sei disso. Zaphod baixou os rostos.

— Só estou dizendo que a pergunta podia ser qualquer coisa — disse Arthur. — Não vejo como se espera que eu saiba.

— Porque — disse Zaphod — você estava lá quando seu planeta virou fogos de artifício.

— Temos uma coisa na Terra... — começou Arthur.

— Tínhamos — corrigiu Zaphod.

— ... chamada tato. Ah, não importa. Olhe, eu simplesmente não sei.

Uma voz baixa ecoou sombriamente pela cabine.

— Eu sei — disse Marvin.

Ford gritou dos controles, com os quais continuava empreendendo uma guerra derrotada.

— Fique fora disso, Marvin — disse ele. — Isso é conversa orgânica..

— Está impresso nos padrões de ondas cerebrais do terráqueo — prosseguiu Marvin —, mas não creio que vocês estejam muito interessados em saber.

— Quer dizer — disse Arthur —, quer dizer que você pode ver dentro de minha mente?

— Posso — disse Marvin. Arthur olhou para ele, assombrado.

— E...?

— Me espanta que você consiga viver num lugar tão pequeno.

— Ah — disse Arthur. — Ultraje.

— Sim — confirmou Marvin.

— Ah, ignore-o — aconselhou Zaphod —, ele só está fazendo estória.

— Fazendo estória? — disse Marvin, girando a cabeça num simulacro de espanto. — Por que eu haveria de querer fazer estória? A vida já é bastante ruim sem que eu queira ainda inventar mais.

— Marvin — disse Trillian, com a voz gentil e doce que só ela ainda era capaz de assumir para falar com a bastarda criatura —, se você sabia o tempo todo, por que não nos contou?

Marvin girou a cabeça para ela.

— Vocês não perguntaram — disse, simplesmente.

— Bom, estamos perguntando agora, homem metálico — disse Ford, virando-se para olhar para ele.

Nesse momento a nave parou de sacolejar e o ruído dos motores passou para um suave zunido.

— Ei, Ford — disse Zaphod —, pelo barulho parece que está bem. Você conseguiu mexer nos controles desta barca?

— Não — disse Ford —, eu só parei de mexer com eles. Acho que a gente vai ter que ir para onde quer que essa nave esteja indo e cair fora rapidinho.

— É, tá certo — disse Zaphod.

— Eu sabia que vocês não estavam realmente interessados — murmurou Marvin para si mesmo, e sentou num canto e se desligou.

— O problema — disse Ford — é que o instrumento desta nave que está fornecendo alguma informação está me deixando preocupado. Se for o que eu estou achando que é, e se estiver dizendo o que eu acho que está, então a gente já voltou demais no tempo. Talvez uns dois milhões de anos antes da nossa era.

Zaphod sacudiu os ombros.

— Tempo é bobagem — disse.

— Queria saber de quem é essa nave, de qualquer modo — disse Arthur.

— Minha — disse Zaphod.

— !Não. De quem ela é de verdade.

— Minha, de verdade — insistiu Zaphod. — Olhe, propriedade é roubo, certo? Logo, roubo é propriedade. Logo, esta nave é minha, OK?

— Diga isso à nave.

Zaphod inclinou-se sobre o painel.

— Nave — disse, batendo nos controles —, este é o seu novo dono falando...

Não foi adiante. Muitas coisas aconteceram de repente.

Todos os controles do painel, que tinham sido desligados para a viagem no tempo, acenderam-se agora.

Uma imensa tela abriu-se sobre o painel revelando uma ampla paisagem cósmica e um imenso sol solitário bem na frente deles.

Nenhuma dessas coisas, porém, foi responsável pelo fato de Zaphod ter sido arremessado violentamente para o fundo da cabine, assim como os demais.

Foram arremessados por um estrondo emitido subitamente pelos monitores de som em volta da tela.

 

No planeta vermelho e seco de Kakrafoon, no meio do Deserto Escarlate, os técnicos de palco estavam testando o sistema de som.

Ou melhor, o sistema de som estava no deserto, não os técnicos. Eles estavam recolhidos na segurança da nave de controle gigante do Disaster Área, em órbita a uns quatrocentos quilômetros acima da superfície do planeta, e de lá estavam testando o som. Qualquer pessoa situada a menos de dez quilômetros dos silos de som não teria sobrevivido à afinação.

Se Arthur Dent tivesse estado a menos de dez quilômetros dos silos de som, seu derradeiro pensamento teria sido de que tanto na forma quanto no tamanho, a aparelhagem de som se parecia muito com Manhattan. Erguidas sobre os silos, os postes das caixas de som neutronfásicas levantavam-se monstruosamente em direção ao céu, ocultando os reatores de plutônio e os amplificadores sísmicos atrás deles.

Enterrados em profundos bunkers de concreto sob a selva de caixas de som estavam os instrumentos que os músicos controlariam de sua nave, a poderosa guitarra de fótons, o baixo detonador e o complexo Megabang de percussão.

Ia ser um show barulhento.

A bordo da gigantesca nave de controle, tudo era atividade e correria. A limusine de Hotblack Desiato, um girino comparado com ela, já tinha chegado e atracado, e o finado cavalheiro estava sendo transportado pelos altos corredores abobadados para ir encontrar-se com o médium que interpretaria os impulsos psíquicos no transmissor da guitarra.

Um médico, um filósofo e um oceanógrafo tinham também acabado de chegar. Tinham vindo, com uma despesa fenomenal, de Maximegalon, para tentar argumentar com o vocalista que se trancara no banheiro com um frasco de comprimidos e se recusava a sair até que alguém pudesse provar conclusivamente que ele não era um peixe. O baixista estava ocupado metralhando seu quarto de dormir e o baterista não se encontrava a bordo.

Frenéticos inquéritos levaram a descobrir que ele estava numa praia em Santraginus V a mais de cem anos-luz dali. Alegava que já fazia meia hora que estava feliz e que tinha descoberto uma pequena pedra que seria sua amiga.

O empresário da banda ficou profundamente aliviado. Significava que pela décima sétima vez nessa turnê a bateria seria tocada por um robô e que portanto o tempo dos pratos estaria correto.

O rádio subéter zunia com as comunicações dos técnicos de palco testando os canais de som, e era isso que estava sendo transmitido para o interior da nave negra.

Seus ocupantes, aturdidos, espremiam-se na parede de trás da cabine e ouviam as vozes nos monitores.

— OK, canal nove funcionando — disse uma voz —, testando canal quinze...

Outro estrondo ecoou dentro da nave.

— Canal quinze OK — disse uma outra voz. Uma terceira voz interrompeu.

— A nave duble negra está em posição — disse. — Parece que está bem. Vai ser um grande mergulho solar. Computador de palco, mantendo contato?

Uma voz de computador respondeu.

— Mantendo contato — disse.

— Assuma o controle da nave negra.

— Nave negra fixa na trajetória programada, preparada.

— Testando canal vinte.

Zaphod saltou através da cabine para mexer nos botões de freqüência do subéter antes que outro ruído pulverizador de mentes os atingisse. Ficou ali, tremendo.

— O que — perguntou Trillian com uma vozinha calma — quer dizer mergulho solar?

— Quer dizer — disse Marvin — que a nave vai mergulhar no sol. Mergulho... Solar. É muito fácil de entender. O que você espera, roubando a nave duble de Hotblack Desiato?

— Como você sabe... — disse Zaphod, com uma voz que gelaria um lagarto polar de Vega — que esta é a nave duble de Hotblack Desiato?

— Simples — disse Marvin —, eu a estacionei para ele.

— Então... por que... você... não... nos disse?

— Você disse que queria emoção, aventura e coisas realmente bárbaras.

— É horrível — disse Arthur desnecessariamente na pausa que se seguiu.

— Foi o que eu disse — confirmou Marvin.

Numa freqüência diferente, o receptor subéter captara uma transmissão pública, que agora ecoava por toda a cabine.

— ... Tempo bom para o concerto esta tarde. Estou aqui, em frente ao palco — mentia o repórter —, no meio do Deserto Escarlate, e com a ajuda de hiperbinóculos posso vislumbrar a imensa audiência agrupando-se no horizonte à minha volta. Atrás de mim os postes de som erguem-se como penhascos escarpados, e acima de mim o sol brilha sem saber o que vai atingi-lo. Os grupos ecologistas de pressão sabem o que vai atingi-lo, e alegam que o show causará terremotos, maremotos, furacões, danos irreparáveis na atmosfera e todas essas coisas de ecologista. Mas acabo de ler um informe de que um representante do Disaster Area encontrou-se com os ecologistas para um almoço e atirou em todos eles, de forma que não restam empecilhos para...

Zaphod desligou. Voltou-se para Ford.

— Sabe o que estou achando? — disse.

— Acho que sim — disse Ford.

— Me diz o que você acha que eu estou achando.

— Acho que você está achando que está na hora da gente sair desta nave.

— Acho que você está certo — disse Zaphod.

— Acho que você está certo — disse Ford.

— De que jeito? — disse Arthur.

— Quieto — disseram Ford e Zaphod. — A gente acha.

— Então é isso — disse Arthur —, nós vamos morrer.

— Gostaria que você parasse de ficar dizendo isso — disse Ford.

Vale repetir a esta altura as teorias que Ford arrumou, em seu primeiro contato com os humanos, para explicar seu peculiar hábito de ficar continuamente afirmando e reafirmando o óbvio, como em "Lindo dia", ou "Você é alto" ou "Então é isso, nós vamos morrer".

Sua primeira teoria era que se os seres humanos deixassem de exercitar seus lábios, suas bocas provavelmente selariam.

Após alguns meses de observação, arrumou uma outra teoria, que era a seguinte — "Se os seres humanos deixarem de exercitar seus lábios, seus cérebros começarão a funcionar".

Em verdade, esta segunda adapta-se mais literalmente ao povo Belcerebon de Kakrafoon.

O povo Belcerebon causava um grande ressentimento e insegurança entre as raças vizinhas por ser uma das civilizações mais desenvolvidas, iluminadas, e acima de tudo uma das mais quietas da Galáxia.

Como punição para tal comportamento, que foi considerado arrogante e provocativo, um Tribunal Galáctico impôs a eles o mais cruel dentre os males sociais, a telepatia. Conseqüentemente, para se prevenirem de transmitir cada leve pensamento que atravesse suas mentes a qualquer um num raio de dez quilômetros, têm agora que conversar muito alto e continuamente sobre o tempo, sobre suas pequenas dores, o jogo daquela tarde e sobre como Kakrafoon ficou barulhento de repente.

Outro método de*bloquearem suas mentes momentaneamente é acolher um show do Disaster Área. A cronometragem do concerto era crítica. A nave tinha que iniciar seu mergulho antes de começar o show de forma a atingir o sol seis minutos e trinta e sete segundos antes do clímax da música a que se relacionava, para que a luz das labaredas solares tivesse tempo de viajar até Kakrafoon.

A nave já estava mergulhando a vários minutos no momento em que Ford Prefect terminou sua busca pelos outros compartimentos. Voltou à cabine.

O sol de Kakrafoon avultava assustadoramente grande na tela, seu ardejante inferno branco de fusão de núcleos de hidrogênio crescendo a cada momento enquanto a nave se precipitava em sua direção, sem ligar para os socos de Zaphod sobre o painel. Arthur e Trillian tinham a expressão fixa dos coelhos numa estrada à noite que acham que a melhor forma de lidar com faróis que se aproximam é ficar olhando para eles.

Zaphod deu uma volta, com os olhos arregalados.

— Ford — disse —, quantas cápsulas de salvamento temos?

— Nenhuma — disse Ford.

— Você contou direito? — gritou Zaphod.

— Duas vezes — disse Ford. — Você conseguiu falar com a equipe do palco pelo rádio?

— Consegui — disse Zaphod, amargo. — Disse que tinha todo um grupo de pessoas a bordo e eles mandaram um "oi" para todo mundo.

Ford revirou os olhos.

— Você não disse quem você era?

— Ah, eu disse. Disseram que era uma grande honra. Isso e também sobre uma conta de restaurante.

Ford empurrou Arthur para o lado grosseiramente e debruçou sobre o painel de controle.

— Nenhum funciona? — disse, selvagem.

— Todos anulados.

— Destrua o piloto automático.

— Encontre-o antes. Nada conecta. Houve um momento frio de silêncio.

Arthur estava passeando pelo fundo da cabine. Parou de repente.

— Não é por nada — disse —, mas o que significa teleporte?

Passou um outro momento.

Lentamente os demais foram virando-se para ele.

— Provavelmente este é o momento errado de perguntar — disse Arthur. — É que eu lembro de ter ouvido vocês usarem essa palavra faz pouco tempo e só estou falando nisso porque...

— Onde — disse Ford Prefect calmamente — está escrito teleporte?

— Bom, logo aqui, na verdade — disse Arthur, indicando uma caixa escura no fundo da cabine —, logo acima da expressão "de emergência" e abaixo da palavra "sistema", ao lado de um sinal que diz "não funciona".

No pandemônio que se seguiu instantaneamente, a única ação a se acompanhar foi a de Ford Prefect investindo contra a caixinha preta que Arthur indicara e apertando repetidamente o pequeno botão preto que havia sobre ela. Um painel quadrado de três metros por três abriu-se diante deles revelando um compartimento que parecia um compartimento múltiplo de chuveiros que tinha arrumado uma nova função na vida como depósito de eletricista. Fios desencapados parcialmente caíam do teto, uma porção de componentes estavam espalhados numa bagunça pelo chão, e o painel de programação caía pendurado na cavidade da parede onde deveria ter sido instalado.

Um jovem contador do Disaster Area, visitando o estaleiro onde estava sendo construída a nave, perguntara ao mestre de obras por que diabos estavam instalando um teleporte extremamente caro numa nave que só tinha uma viagem importante a fazer, e sem tripulação. O mestre de obras explicara que o teleporte tinha saído com dez por cento de desconto e o contador explicara que isso era imaterial; o mestre de obras explicara que aquele era o mais fino, o mais poderoso e o mais sofisticado teleporte que o dinheiro podia comprar e o contador explicara que o dinheiro não queria comprá-lo; o mestre de obras explicara que as pessoas ainda teriam que entrar e sair da nave e o contador explicara que a nave dispunha de uma porta perfeitamente utilizável; o mestre de obras explicara que o contador podia ir estourar os miolos e o contador explicara ao mestre de obras que aquela coisa que estava voando em sua direção era um sanduíche de dedos. Após as explicações terem sido concluídas, os trabalhos no teleporte foram interrompidos e este passou despercebido no item "desp. gerais" a cinco vezes o preço.

— Mulas do inferno — murmurou Zaphod, enquanto ele e Ford tentavam se virar com aqueles fios.

Após um momento, Ford lhe disse para se afastar. Enfiou uma moeda no teleporte e girou um botão no painel dependurado. Com um ruído e um raio de luz a moeda desapareceu.

— Essa parte funciona — disse Ford —, mas não tem sistema de direção. Um teleporte de transferência de matéria sem um sistema de direção poderia mandar você para... para qualquer lugar.

O sol de Kakrafoon assomava enorme na tela.

— Quem se importa — disse Zaphod. — A gente vai para onde for.

— E também — disse Ford — não tem funcionamento automático. Não poderíamos ir todos. Alguém teria que ficar para operar.

Um momento solene se passou. O sol ficava cada vez maior.

— Ei, Marvin, garoto — disse Zaphod, brilhantemente —, como vai?

- Muito mal, eu suspeito — murmurou Marvin.

Um pequeno instante depois, o concerto de Kakrafoon atingiu um clímax inesperado.

A nave negra com seu único moroso ocupante mergulhara pontualmente na fornalha nuclear do sol. Gigantescas labaredas se levantaram a milhões de quilômetros de sua superfície, empolgando e eventualmente derrubando a dúzia de Montadores de Labaredas que vinham cavalgando próximo à superfície à espera do grande momento.

Instantes antes da luz das labaredas atingir Kakrafoon, o triturante deserto abriu-se ao meio numa falha. Um imenso rio subterrâneo até então não detectado jorrou na superfície, sendo seguido segundos depois pela erupção de milhões de toneladas de lava fervente que subiram vários metros no ar, vaporizando instantaneamente o rio tanto acima quanto abaixo da superfície numa explosão que ecoou até o outro lado do planeta.

— Aqueles — muito poucos — que testemunharam o evento e sobreviveram juram que os cem mil quilômetros quadrados de deserto subiram de uma vez para o ar como uma panqueca de um quilômetro de espessura, virou-se e caiu com o outro lado para cima. Nesse momento preciso a radiação solar das labaredas filtradas pelas nuvens de vapor atingiu o solo.

Um ano depois, o deserto de cem mil quilômetros quadrados estava coberto de flores. A estrutura da atmosfera ao redor do planeta estava sutilmente alterada. O sol queimava menos no verão, o frio incomodava menos no inverno, chuvas agradáveis caíam com mais frequência, e lentamente o deserto de Kakrafoon foi-se tornando um paraíso. Até a telepatia com que o povo tinha sido amaldiçoado foi permanentemente dispersa pela explosão.

Um porta-voz do Disaster Área — o que tinha matado os ecologistas — foi citado mais tarde como tendo dito que aquilo tinha sido "um monstro bom".

Muitas pessoas falaram coisas comoventes sobre os poderes de cura da música. Alguns cientistas céticos examinaram os informes do evento com maior cuidado e alegaram ter descoberto tênues vestígios de um vasto Campo de Improbabilidade artificialmente induzido proveniente de uma região próxima no espaço.

 

Arthur acordou e arrependeu-se imediatamente. Já tinha tido ressacas, mas nunca nada nessa escala. Essa era demais, a maior de todas, o fundo do poço. Raios de transferência de matéria não eram, decidiu, tão agradáveis como um bom chute na cabeça.

Indisposto a levantar-se devido a um desagradável latejo que estava sentindo, ficou deitado, pensando. O problema com a maioria das formas de transporte, pensou, é que basicamente não valem a pena. Na Terra — quando havia a Terra, antes de ser demolida para dar lugar a uma via expressa hiperespacial — o problema tinha sido com os carros. As desvantagens envolvidas em arrancar montes de lodo preto viscoso do subsolo onde tinha estado escondido em segurança longe de todo mal, transformá-lo em piche para cobrir o chão, fumaça para infestar o ar e espalhar o resto pelo mar, tudo isso parecia descompensar as vantagens aparentes de se poder chegar mais rápido a um outro lugar — especialmente quando o lugar a que se chegava tinha ficado, como resultado, muito parecido com o lugar de que se tinha saído, ou seja, coberto de piche, cheio de fumaça e sem peixe.

E os raios de transferência de matéria então! Qualquer meio de transporte que envolva dividir a pessoa em pedaços, átomo por átomo, lançar esses átomos no subéter, e então montá-los de novo logo quando estavam sentindo seu primeiro sabor de liberdade em anos, certamente não podia ser coisa boa.

Muitas pessoas tinham pensado exatamente a mesma coisa antes de Arthur Dent e tinham chegado até ao cúmulo de compor canções a respeito. Eis aqui uma que era entoada regularmente por grandes concentrações em frente à fábrica de Sistemas de Teleporte da Companhia Cibernética de Sírius, no Mundo-Alegre III:

 

Aldebaran é demais

Algol é o máximo,

OK As moças de Betelgeuse

São de enlouquecer, eu sei.

Me darão o que eu quiser

Me farão o que eu pedir

Mas se é preciso me desintegrar

Então prefiro não ir.

 

Todo mundo:

Desintegrar, desintegrar

Essa viagem me arrasa

E se é preciso me desintegrar

Prefiro ficar em casa.

 

Sírius tem ruas de ouro

Foi o que ouvi dizer

Dos que foram e voltaram:

"Ver Tau antes de morrer"

Irei feliz às estrelas,

Planetas, luas e sóis

Mas se é preciso me desintegrar

Eu fico nos meus lençóis.

 

Todo mundo:

Desintegrar, desintegrar

Acho que você pirou

E se é preciso me desintegrar

Então, meu caro, eu não vou.

 

... e por aí afora. Uma outra canção muito popular era bem mais curta:

 

Nos teleportamos juntos

Eu, Ronaldo, Laura e Zé

José roubou o coração de Laura

E o Ronei ficou com meu pé.

 

Arthur sentiu que as ondas de dor estavam recuando, embora o latejo desagradável continuasse. Devagar e com cuidado ele se levantou.

— Você está ouvindo um latejo desagradável? — disse Ford Prefect.

Arthur virou-se e cambaleou. Ford Prefect vinha vindo, de olhos vermelhos e abatido.

— Onde estamos? — perguntou Arthur, engolindo em seco.

Ford olhou ao redor. Estavam num longo corredor em curva que se estendia em ambas as direções até se perder de vista. A parede exterior de aço — pintada com aquele tom enjoativo de verde que usam nas escolas, nos hospitais e nos asilos psiquiátricos para manter os internos submissos — curvava-se sobre suas cabeças para ir de encontro à parede interior perpendicular que era esquisitamente coberta de lambris marrom-escuro.

Ford foi até um escuro painel transparente muito grosso instalado na parede externa. Tinha várias camadas, mas ainda assim era possível ver os pontinhos luminosos de estrelas distantes.

— Acho que estamos em algum tipo de nave espacial — disse.

Do corredor vinha o ruído de um latejo monótono e desagradável.

— Trillian? — chamou Arthur. — Zaphod? Ford sacudiu os ombros.

— Não estão por aqui — disse —, eu procurei. Podem estar em qualquer lugar. Um teleporte sem programação pode mandar você a anos-luz de distância em qualquer direção. A julgar por como me sinto devemos ter viajado um bocado.

— Como você se sente?

— Mal.

— Você acha que eles...

— Onde estão, como estão, não temos como saber e nao temos o que fazer a respeito. Faça como eu.

— Como?

— Não pense nisso.

Arthur trabalhou a idéia em sua cabeça, relutantemente viu a sabedoria que ela encerrava, e a assumiu. Respirou profundamente.

— Passos! — exclamou Ford de repente.

— Onde?

— Esse barulho. O latejo. Alguém andando pesadamente. Ouça!

Arthur ouviu. O ruído ecoava pelo corredor de uma distância indeterminada. Era o som abafado de passadas duras, e estava perceptivelmente ficando mais alto.

— Vamos sair daqui — disse Ford. Ambos saíram, cada um em uma direção.

— Por aí não — disse Ford —, é daqui que vêm vindo.

— Não é, não — disse Arthur. — Estão vindo daí.

— Não, estão...

Ambos pararam. Ambos se viraram. Ambos ouviram com atenção. Ambos concordaram um com o outro. Ambos saíram, cada um em uma direção novamente.

O medo os acometeu.

De ambas as direções o barulho ia ficando mais alto.

A poucos metros à sua esquerda um outro corredor entrava em ângulo reto pela parede interna. Correram para ele e seguiram correndo por ele. Era escuro, imensamente comprido, e, conforme iam passando, tinham a sensação de que ia ficando cada vez mais frio. Outros corredores desembocavam nele, à direita e à esquerda, todos muito escuros, e todos os sujeitando a baforadas de ar gelado quando passavam por eles.

Pararam um instante, alarmados. Quanto mais entravam corredor adentro, mais alto o som das passadas.

Apertaram-se contra a parede e tentaram desesperadamente ouvir. O frio, a escuridão e os passos de pés sem corpo lhes faziam mal. Ford tremia, em parte pelo frio, mas em parte pela lembrança das estórias que sua mãe predileta lhe contava quando ele não passava de um pingo de betelgeusiano: estórias de naves fantasmas, naves assombradas que percorriam sem descanso as mais obscuras regiões do espaço profundo infestadas de demônios ou de fantasmas de tripulações esquecidas; e também estórias de viajantes incautos que encontravam e entravam nessas naves; estórias de... — e aí Ford se lembrou dos lambris marrom-escuro no primeiro corredor e se recompôs. Mesmo que demônios e fantasmas resolvessem decorar suas naves assombradas, ele podia apostar o quanto fosse que não iriam escolher lambris marrons. Puxou Arthur pelo braço.

— Vamos voltar por onde viemos — disse com firmeza, e eles retomaram o caminho.

Pouco depois, pularam como lagartos assustados para o corredor mais próximo quando viram os donos dos pés surgirem à vista diretamente à frente deles.

Escondidos no canto assistiram, espantados, a cerca de duas dúzias de homens e mulheres passarem pisando duro, vestindo abrigos e ofegando de uma tal maneira que excitaria um cardiologista.

Ford Prefect ficou olhando para eles.

— São praticantes de jogging! — cochichou, enquanto o som de seus passos ecoava na distância.

— Praticantes de jogging? — sussurrou Arthur.

— Praticantes de jogging — disse Ford Prefect sacudindo os ombros.

O corredor em que estavam escondidos não era como os outros. Era bem curto e terminava numa grande porta de aço. Ford a examinou, descobriu o mecanismo de abrir e empurrou.

A primeira coisa que viram foi o que se revelou ser um caixão.

E as quatro mil novecentas e noventa e nove coisas seguintes que viram também eram caixões.

 

A câmara mortuária tinha o teto baixo, era mal iluminada e gigantesca. No fundo distante, a uns quinhentos metros, uma passagem em arco parecia levar a uma câmara similar, similarmente ocupada.

Ford Prefect deixou escapar um alto assobio quando pisou no chão da câmara.

— Bárbaro — disse.

— O que há de tão formidável em pessoas mortas? — perguntou Arthur Dent, que entrava nervoso atrás dele.

— Sei lá — disse Ford. — Vamos descobrir?

Numa inspeção mais detalhada, os caixões pareciam mais propriamente ser sarcófagos. Ficavam suspensos em lugares altos e eram construídos do que parecia ser mármore branco, e é quase certo que fosse exatamente isso — algo que apenas parecia ser mármore branco. Os tampos eram semitranslúcidos, e através deles podiam-se ver vagamente as feições de seus falecidos e presumivelmente lamentados ocupantes. Eram humanóides, e tinham claramente deixado os problemas de seja lá que mundo viessem muito para trás, mas além disso muito pouco podia ser discernido.

Rolava lentamente pelo chão entre os sarcófagos um gás pesado e viscoso que Arthur a princípio achou que estava lá para dar um pouco de atmosfera ao lugar até que descobriu que também gelava seus tornozelos. Os sarcófagos também eram intensamente frios ao tocar.

Ford agachou de repente ao lado de um deles. Puxou um canto de sua toalha para fora da mochila e começou a esfregar alguma coisa furiosamente.

— Olhe, tem uma placa neste aqui — explicou a Arthur. — Está coberta de gelo.

Esfregou até tirar todo o gelo e examinou os caracteres inscritos. Para Arthur pareciam pegadas de alguma aranha que tivesse tomado umas doses a mais de seja lá o que for que as aranhas tomam quando saem à noite, mas Ford instantaneamente reconheceu uma antiga forma de alfabeto galáctico.

— Diz "Frota de Arcas de Golgafrincham, Nave B, Compartimento Sete, limpador de telefones, Segunda Classe" e um número de série.

— Limpador de telefones? — disse Arthur. — Um limpador de telefones morto?

— Da melhor espécie.

— Mas o que ele está fazendo aqui?

Ford espiou pela tampa para ver a figura ali dentro.

— Não muita coisa — disse, arreganhando um daqueles seus sorrisos que faziam as pessoas acharem que ele andava muito ocupado ultimamente e devia procurar repousar.

Disparou para um outro sarcófago. Um momento esfregando a toalha e anunciou:

— Este é um cabeleireiro morto. Opa!

O sarcófago seguinte revelou-se como o último lugar de descanso de um executivo de publicidade; o outro continha um vendedor de carros de segunda mão, terceira classe.

Uma portinhola de inspeção no assoalho chamou subitamente a atenção de Ford, e ele abaixou-se para tentar abri-la, afastando as nuvens de gás gelado que ameaçavam envolvê-lo.

Uma idéia ocorreu a Arthur.

— Se são apenas caixões — disse — por que são guardados tão frios?

— Ou, de qualquer modo, por que são guardados? — disse Ford, que acabava de conseguir abrir a portinhola. O gás desceu por ela. — Por que alguém se daria todo esse trabalho e despesa para carregar cinco mil cadáveres pelo espaço afora?

— Dez mil — disse Arthur, apontando a passagem em arco, através da qual a outra câmara era obscuramente visível.

Ford enfiou a cabeça na portinhola do chão. Olhou para cima novamente.

— Quinze mil — disse —, tem outro lote ali embaixo.

— Quinze milhões — disse uma voz.

— Isso é muito — disse Ford —, muito muito.

— Virem-se devagar — disse a voz — e ponham as mãos para cima. Qualquer outro movimento e eu os estouro em pedacinhos.

— Alo? — disse Ford, virando-se lentamente, pondo as mãos para cima e não fazendo qualquer outro movimento.

— Por que — disse Arthur — ninguém nunca fica contente em nos ver?

De pé, com a silhueta recortada na porta por onde tinham entrado na câmara mortuária, estava o homem que não tinha ficado contente em vê-los. Seu desprazer era em parte comunicado pela qualidade de latidos valentões de sua voz e em parte pelo modo depravado com que apontava sua longa Matazap prateada para eles. A pessoa que projetara esta arma tinha claramente sido instruída para não usar de rodeios. — Faça-a cruel — lhe teriam dito. — Deixe totalmente claro que esta arma tem um lado certo e um lado errado. Deixe totalmente claro para qualquer um que esteja do lado errado que as coisas vão indo mal para ele. Se for preciso pregar todo tipo de ferrões e dentes à sua volta, que seja assim. Esta não é uma arma para ser pendurada em cima da lareira ou enfiar no balde de guarda-chuvas, é uma arma para sair e fazer as pessoas miseráveis.

Ford e Arthur olharam infelizes para a arma.

O homem armado saiu da porta e deu uma volta ao redor deles. Quando ele apareceu na luz, puderam ver seu uniforme preto e dourado cujos botões brilhavam com tal intensidade que teriam feito um motorista que se aproximasse piscar o farol alto, irritado.

Fez um gesto em direção à porta.

— Para fora — disse. Pessoas que dispõem daquele poder de fogo não precisam dispor de verbos. Ford e Arthur foram para fora, seguidos de perto pelo lado errado da Matazap e dos botões.

Ao virar o corredor esbarraram em vinte e quatro joggers que vinham vindo, agora de banho tomado e roupa trocada, e que passaram por eles e entraram na câmara. Arthur virou-se para olhar para eles, confuso.

— Andando — gritou seu capturador. Arthur andou.

Ford mexeu os ombros e andou.

Na câmara, os joggers foram a vinte e quatro sarcófagos vazios ao longo da parede lateral, abriram, subiram para dentro deles e mergulharam em vinte e quatro sonos sem sonhos.

 

— Ahn, Capitão...

— O que é, Número Um?

— Nada, é que eu tenho um informe do Número Dois.

— Ai, meu Deus.

Na ponte de comando da nave o Capitão observava o espaço infinito com certa irritação. Do lugar onde estava, sob um amplo domo, podia ver atrás de si e à sua frente o vasto panorama de estrelas que estavam atravessando — um panorama que ia ficando perceptivelmente mais rarefeito conforme seguia a viagem. Voltando-se e olhando para trás além do vasto corpo de três quilômetros de comprimento da nave, ele via a distante massa mais densa de estrelas que formavam quase um aglomerado sólido. Esta era a vista do centro da Galáxia, de onde vinham, e de onde estavam viajando há anos, a uma velocidade que ele não se lembrava exatamente no momento, mas sabia que era terrivelmente alta. Era qualquer coisa parecida com alguma coisa, ou três vezes a velocidade de uma outra coisa? Muito impressionante, de qualquer maneira. Espiou na distância brilhante atrás da nave, procurando algo. Fazia isso de poucos em poucos minutos mas nunca achava o que estava procurando. Não deixava que isso o preocupasse, no entanto. Os rapazes cientistas tinham insistido em que tudo correria perfeitamente bem contanto que ninguém entrasse em pânico e que todo mundo fizesse tudo de maneira ordeira.

Ele não estava em pânico. No que lhe dizia respeito tudo estava correndo esplendidamente. Esfregou os ombros com uma grande esponja espumante. Voltou à sua mente a lembrança de quê estava levemente irritado com alguma coisa. Mas o que era mesmo? Uma tossidela o alertou para o fato de que o primeiro oficial da nave ainda estava ali em pé.

Bom rapaz, o Número Um. Não era dos mais brilhantes, tinha uma estranha dificuldade em amarrar os cordões dos sapatos, mas um oficial muito bom e importante. O Capitão não era um homem que chutasse um rapaz agachado tentando amarrar os sapatos, por mais tempo que levasse. Não como aquele horrível Número Dois, andando empoado de um lado para o outro, lustrando seus botões, transmitindo informes a cada hora: "A nave continua em movimento, Capitão", "Prosseguimos em curso, Capitão", "Os níveis de oxigênio continuam sendo mantidos, Capitão". "Dá uma folga" era a sugestão do Capitão. Ah, sim, era isso que o vinha deixando irritado. Olhou para o Número Um.

— Sim, Capitão, ele estava gritando qualquer coisa a respeito de ter encontrado uns prisioneiros...

O Capitão pensou sobre o caso. Parecia-lhe um tanto improvável, mas ele não era homem de se intrometer nos assuntos de seus oficiais.

— Bem, isso talvez o deixe satisfeito por algum tempo, é o que ele sempre quis.

Ford Prefect e Arthur Dent foram levados pelos corredores aparentemente intermináveis da nave. Número Dois marchava atrás deles latindo ocasionalmente a ordem de não fazerem nenhum movimento em falso ou tentarem qualquer gracinha. Pareciam ter passado pelo menos um quilômetro de lambris marrons. Chegaram finalmente a uma grande porta de aço que se abriu com um grito de Número Dois.

Entraram.

Aos olhos de Ford Prefect e Arthur Dent, a coisa mais notável na ponte de comando da nave não era o domo hemisférico de cem metros de diâmetro que a cobria, e através do qual brilhava o deslumbrante conjunto de estrelas: para pessoas que comeram no Restaurante do Fim do Universo tais maravilhas são lugar-comum. Também não era o atordoante aparato de instrumentos que ocupavam toda a parede circular em torno deles. Para Arthur era exatamente assim que naves espaciais tradicionalmente deviam ser, e para Ford parecia totalmente antiquada: confirmava suas suspeitas de que a nave duble do Disaster Área os tinha levado para pelo menos um milhão de anos, se não dois, antes de sua época.

Não, a coisa que realmente os aturdiu foi a banheira.

A banheira ficava sobre um pedestal de cristal azul talhado e era de uma monstruosidade barroca raramente vista fora do Museu de Imaginação Doentia de Maximegalon. Uma miscelânea intestinal de encanamentos tinha sido folhada a ouro em vez de ser enterrada à meia-noite numa sepultura anônima; as torneiras e o chuveiro teriam feito um gárgula pular.

Como peça central dominante da ponte de comando de uma espaçonave era terrivelmente inadequada, e foi com o ar amargo de um homem que tem consciência disso que Número Dois se aproximou dela.

— Senhor Capitão! — gritou entre os dentes cerrados — um truque difícil, mas ele tinha tido anos para aperfeiçoar.

Uma face afável e um afável braço coberto de espuma apareceram acima da borda da monstruosa banheira.

— Ah, olá, Número Dois — disse o Capitão, acenando com uma simpática esponja —, está tendo um bom dia?

Número Dois empertigou-se ainda mais.

— Trouxe-lhe os prisioneiros que localizei na câmara de congelamento número sete, senhor — ganiu ele.

Ford e Arthur tossiram, confusos.

— Ahn... oi — disseram.

O Capitão sorriu para eles. Então o Número Dois tinha mesmo achado prisioneiros. Bom para ele, pensou o Capitão, é bom ver um rapaz fazendo aquilo em que se dá melhor.

— Oh, olá — disse a eles. — Desculpe por não me levantar, estou tomando um banho rápido. Bem, jimtonnik para eles. Veja na geladeira, Número Um.

— Certamente, senhor.

É um fato curioso, e ao qual é difícil saber quanta importância atribuir, que algo como 85% de todos os mundos conhecidos na Galáxia, sejam primitivos ou altamente avançados, tenham inventado uma bebida chamada jimtonnik, ou gind ônic ou j'nt'nik ou qualquer outra dos milhares de variações sobre o mesmo tema fonético. As bebidas em si não são as mesmas e variam entre o "chinto mnig" sivolviense, que é água comum servida a uma temperatura um pouco acima da temperatura ambiente e o "tzjin-antonio-cah" de Gagrakacka, que mata vacas a distância; e de fato, o que têm em comum entre si, além dos nomes terem sons semelhantes, é o fato de terem todas sido inventadas antes que os mundos em questão tivessem estabelecido contato com outros mundos.

O que se pode fazer com este fato? Encontra-se totalmente isolado. No que diz respeito a qualquer teoria de linguística estruturalista, é totalmente fora dos padrões, e no entanto persiste. Os velhos lingüistas estruturalistas ficam muito irritados quando os jovens lingüistas estruturalistas prosseguem com esta questão. Os jovens lingüistas estruturalistas ficam profundamente empolgados e vão até tarde da noite convencidos de que estão muito perto de algo de profunda importância, e acabam se tornando velhos lingüistas estruturalistas antes da hora, ficando muito irritados com os jovens. A linguística estruturalista é uma disciplina amargamente dividida e infeliz, e um grande número de seus adeptos passa noites demais afogando seus problemas em Uizghezodahs.

Número Dois postava-se diante da banheira do Capitão tremendo de frustração.

— O senhor não vai querer interrogar os prisioneiros, Capitão? — guinchou.

O Capitão olhou para ele, confuso.

— Por que, por Golgafrincham, deveria fazê-lo? — perguntou.

— Para obter informações, senhor! Para descobrir por que vieram para cá!

— Oh, não, não, não — disse o Capitão. — Suponho que eles apenas deram uma passada para tomar um jimtonnik, você não acha?

— Mas, senhor, são prisioneiros! Eu preciso interrogá-los!

O Capitão olhou para eles, em dúvida.

— Ah, está bem — disse —, se você precisa. Pergunte o que querem beber.

Um brilho agudo e frio veio aos olhos de Número Dois. Avançou vagarosamente sobre Ford Prefect e Arthur Dent.

— Muito bem, escória — grunhiu. — Seu verme... — cutucou Ford com a Matazap.

— Vá com calma — advertiu o Capitão delicadamente.

— O que vocês querem beber??? —: berrou Número Dois.

— Bom, acho que jimtonnik parece uma boa idéia para mim — disse Ford. — E você, Arthur?

Arthur piscou.

— O quê? Ah, ahn, certo — disse.

— Com ou sem gelo? — urrou Número Dois.

— Ah, com, por favor — disse Ford.

— Limão??!!

Sim, por favor — disse Ford. — E será que tem umas bolachinhas? Sabe, daquelas de queijo?

— Quem faz as perguntas aqui sou eu!!!! — uivou Número Dois, que tiritava com uma fúria apoplética.

— Ahn, Número Dois... — disse suavemente o Capitão.

— Sim, senhor?

— Caia fora, está bem, esse é um bom rapaz. Estou tentando tomar um banho relaxante.

Número Dois apertou os olhos e assumiu o que é chamado pelo Sindicato das Pessoas que Gritam e Matam de olhar gélido, cuja idéia, ao que se pode presumir, é dar ao oponente a idéia de que você perdeu os óculos ou está tendo dificuldade em manter-se acordado. Por que isso é assustador continua, por enquanto, um problema sem solução.

Avançou em direção ao Capitão, estreitando sua (de Número Dois) boca. Mais uma vez, difícil saber por que este é considerado um comportamento de combate. Se, ao vagar pelas florestas de Traal, você de repente deparasse com a fabulosa Fera Voraz Papona, teria razões para agradecer se ela estreitasse a boca em vez de, como faz normalmente, escancará-la num bocejo exibindo afiados dentes salivantes.

— Posso lembrá-lo, senhor — sibilou Número Dois ao Capitão —, que o senhor está no banho há mais de três anos?! — Dado este último golpe, Número Dois girou sobre os calcanhares e encaminhou-se a um canto para praticar olhares dardejantes diante do espelho.

O Capitão contorceu-se em sua banheira. Dirigiu um sorriso sem graça.

— Bom, a gente precisa de muito relaxamento num serviço como o meu — disse ele.

Ford foi baixando as mãos devagar. Não provocou nenhuma reação. Arthur baixou as suas.

Movendo-se lentamente e com cuidado, Ford foi até o pedestal da banheira. Deu uns tapinhas nela.

— Bacana — mentiu.

Pensou se seria seguro abrir um sorriso. Foi abrindo devagar e com cuidado. Era seguro.

— Ahn... — disse ao Capitão.

— O quê? — disse o Capitão.

— Eu queria saber — disse Ford —, eu poderia perguntar qual é exatamente seu serviço?

Uma mão lhe tocou no ombro, por trás. Ele virou. Era o primeiro oficial.

— Sua bebida — ele disse.

— Ah, obrigado — disse Ford. Ele e Ford pegaram seus jimtonniks. Arthur deu um gole e ficou surpreso ao descobrir que o sabor era muito parecido com o de uísque com soda.

— Quero dizer, não pude deixar de notar — disse Ford, também dando um gole — os corpos. No compartimento de carga.

— Corpos? — disse o Capitão, surpreso.

Ford parou e pensou consigo próprio. Nunca tomar algo por certo, pensou. Seria possível que o Capitão não soubesse que tinha quinze milhões de cadáveres a bordo de sua nave?

O Capitão balançava a cabeça simpaticamente para ele. Parecia também que estava brincando com um pato de borracha.

Ford olhou ao redor. Número Dois o estava encarando pelo espelho, mas só por um instante: seus olhos estavam em constante movimento. O primeiro oficial só estava ali segurando a bandeja e sorrindo bondosamente.

— Corpos? — disse o Capitão de novo. Ford lambeu os lábios.

— Sim — disse. — Todos aqueles limpadores de telefone e executivos de contabilidade, sabe, lá no compartimento de carga.

O Capitão olhou para ele. De repente deitou a cabeça para trás e começou a rir.

— Ah, não estão mortos — disse. — Santo Deus, não, estão congelados. Serão reanimados.

Ford fez algo que muito raramente fazia. Pestanejou. Arthur parecia estar saindo de um transe.

— Quer dizer que você tem um porão cheio de cabeleireiros congelados? — disse.

— Oh, sim — disse o Capitão. — Milhões deles. Cabeleireiros, produtores de TV fatigados, vendedores de apólices de seguro, funcionários graduados, guardas de segurança, executivos de relações públicas, assessores de gerência, é só dizer. Vamos colonizar um outro planeta.

Ford cambaleou de leve.

— Emocionante, não? — disse o Capitão.

— O quê? Com essa turma? — disse Arthur.

— Ah, não me entenda mal — disse o Capitão —, somos apenas uma das naves da Frota. Somos a Arca "B", entende? Desculpe, será que posso lhe pedir para ligar um pouco a água quente?

Arthur atendeu, e urna cascata de água cor-de-rosa espumante rodopiou pela banheira. O Capitão emitiu um suspiro de prazer.

— Muito obrigado, meu caro. Sirvam-se à vontade de mais bebidas, claro.

Ford bebeu seu drinque de um gole, pegou a garrafa da bandeja do primeiro oficial e encheu seu copo até a boca.

— O que — disse — é uma Arca "B"?

— É esta — disse o Capitão, sacudindo alegremente a água com o pato de borracha.

— Certo — disse Ford —, mas...

— Bem, o que ocorreu, sabe — disse o Capitão — foi que o nosso planeta, o mundo de onde estamos vindo, estava, por assim dizer, condenado.

— Condenado?

— Oh, sim. De forma que o que todos pensaram foi, vamos colocar toda a população em algumas espaçonaves gigantes e vamos nos instalar em outro planeta.

Tendo contado esta parte da estória, recostou-se com um gemido de satisfação.

— Você diz um planeta menos condenado?

— O que você disse, meu caro?

— Um planeta menos condenado. Onde vocês iam se instalar.

— Onde vamos nos instalar, sim. Então decidiu-se que seriam construídas três naves, entenderam, três Arcas do Espaço, e... espero não os estar aborrecendo? -

— Não, não — disse Ford com firmeza. — É fascinante.

— Sabem, é delicioso — refletiu o Capitão — ter mais alguém com quem conversar para variar.

Os olhos de Número Dois dardejaram fervorosamente pela sala mais uma vez e então voltaram ao espelho, como um par de moscas brevemente distraídas de seu pedaço favorito de carne de um mês atrás.

— O problema com uma viagem assim longa — prosseguiu o Capitão — é que você acaba conversando muito consigo próprio, o que se torna terrivelmente aborrecido; na metade das vezes você sabe o que vai dizer em seguida.

— Só metade das vezes? — perguntou Arthur, surpreso.

O Capitão pensou por um momento.

— É, mais ou menos metade, eu diria. De qualquer modo... onde está o sabão? — Procurou pela banheira e acabou achando.

— Então — retomou —, a idéia foi de que na primeira nave, a nave "A", iriam todos os líderes brilhantes, os cientistas, os grandes artistas, sabe, todos os realizadores; e então na terceira nave, ou nave "C", iriam todas as pessoas que fazem o trabalho real, que fazem e constroem coisas; e na nave "B" — que somos nós — iriam todos os outros, os homens médios, entende? Sorriu feliz para eles.

— E fomos mandados em primeiro lugar — concluiu, e começou a cantarolar uma cançãozinha de banheira.

A cançãozinha de banheira, que tinha sido feita para ele por um dos compositores de jingles mais interessantes e prolíficos de seu planeta (que no momento se encontrava adormecido no compartimento trinta e seis a uns seiscentos metros atrás deles), cobriu o que de outra forma teria sido um desconfortável momento de silêncio. Ford e Arthur trocavam os pés de lugar e evitavam furiosamente os olhares um do outro.

— Ahn... — disse Arthur depois de um tempo — o que exatamente havia de errado com seu planeta?

— Ah, estava condenado, como disse — disse o Capitão. — Aparentemente ia de encontro ao sol ou coisa assim. Ou era a lua que vinha de encontro a nós. Alguma coisa assim. Prospectos absolutamente tenebrosos de qualquer modo.

— Ah — disse o primeiro oficial de repente —, eu pensei que era porque o planeta ia ser invadido por um enxame gigantesco de abelhas-piranhas de seis metros. Não era isso?

Número Dois virou-se, com um olhar flamejante de uma aguda luminosidade fria que só vem com a porção de prática que ele estava preparado para pôr em ação.

— Não foi o que me disseram — disse sibilante. — Meu oficial comandante disse que o planeta inteiro estava sob o perigo iminente de ser comido por um enorme bode mutante das estrelas!

— Ah, verdade?... — disse Ford Prefect.

— Verdade! Uma criatura monstruosa do poço do inferno de dentes cortantes de dez mil quilômetros de comprimento, um hálito que ferveria os oceanos, patas que arrancariam os continentes de suas raízes, mil olhos que queimariam como o sol, mandíbulas de um milhão de quilômetros, um monstro que você, nunca, jamais, em tempo algum...

— E eles tomaram o cuidado de mandarem vocês na frente, certo? — indagou Arthur.

— Ah, sim — disse o Capitão. — Todos disseram, muito gentilmente, achei, que era muito importante para o moral sentir que iam chegar a um planeta onde teriam certeza de que poderiam ter um bom corte de cabelo e onde os telefones estariam limpos.

— Ah, é mesmo — concordou Ford. — Vejo que seria muito importante. E as outras naves... ahn... partiram em seguida?

Por um momento o Capitão não respondeu. Virou-se em sua banheira e fitou além do imenso corpo da nave na direção do brilhante centro da Galáxia. Apertou os olhos para olhar na distância inconcebível.

— Ah. É engraçado que você mencione isso — disse, permitindo-se um franzir de sobrancelhas a Ford Prefect — porque curiosamente não ouvimos o menor sinal deles desde que deixamos o planeta há cinco anos... Mas devem estar atrás da gente, em algum lugar.

Espiou através da distância mais uma vez. Ford espiou com ele e franziu as sobrancelhas, pensativo.

— A não ser, é claro — disse suavemente —, que tenham sido comidos pelo bode...

— Ah, sim... — disse o Capitão com um leve tom de hesitação na voz — o bode... — Seu olhar passou pelas formas sólidas dos instrumentos e computadores que se alinhavam na ponte. Piscavam inocentemente para ele. Olhou para as estrelas, mas nenhuma lhes dizia nada. Deu uma olhada em seus oficiais primeiro e segundo, mas eles pareciam perdidos em seus próprios pensamentos. Olhou para Ford Prefect que ergueu as sobrancelhas para ele.

— É uma coisa engraçada, sabe — disse por fim o Capitão —, mas agora que estou contando a estória para uma outra pessoa... Quero dizer, não lhe parece esquisita, Número Um?

— Ahnnnrinnnnnnnn... — disse Número Um.

— Bom — disse Ford —, vejo que vocês têm uma porção de coisas para conversar, então, obrigado pelos drinques, e agora se vocês puderem nos deixar no próximo planeta que convier...

— Ah, isso vai ser um pouco difícil, sabe — disse o Capitão —, porque nossa trajetória foi preestabelecida quando deixamos Golgafrincham, acho que em parte porque eu não sou muito bom em cifras...

— Quer dizer que estamos presos aqui nesta nave? — exclamou Ford, perdendo de súbito a paciência com toda a charada. — Quando vocês devem chegar ao planeta que vão colonizar?

— Ah, estamos perto, eu acho — disse o Capitão. — A qualquer segundo, agora. Na verdade já é hora de eu sair desta banheira, provavelmente. Oh, se bem que não sei, por que sair agora que está tão bom?

— Então nós vamos mesmo aterrissar num minuto?— — disse Arthur.

— Bem, não aterrissar exatamente, não tanto aterrissar, mas... ahn...

— Do que você está falando? — perguntou Ford asperamente.

— Bem — disse o Capitão, escolhendo as palavras com cuidado —, acho que se bem me lembro, fomos programados para trombarmos com o planeta.

— Trombar? — gritaram Ford e Arthur.

— Ahn, é — disse o Capitão —, é, faz tudo parte do plano, eu acho. Havia um motivo terrivelmente bom para isso, mas não consigo me lembrar no momento. Era qualquer coisa com... ahn... Ford explodiu:

— Vocês são um bando de malditos malucos inúteis!

— gritou.

— Ah, é, era isso — disse o Capitão com um sorriso radiante —, era esse o motivo.

 

O Guia da Galáxia para Caronas diz isso a respeito do planeta de Golgafrincham: é um planeta com uma história antiga e misteriosa. Rico em lendas, vermelho, e às vezes verde, com o sangue daqueles que lutaram em tempos idos para conquistá-lo; terra de paisagens áridas e ressequidas, de ar doce e estonteante com o aroma das fontes perfumadas que brincam entre suas pedras quentes e poeirentas e nutrem os liquens escuros abaixo delas; terra de mentes febris e imaginações intoxicadas, particularmente entre os que experimentam esses liquens; terra também de idéias frescas, à sombra, entre os que aprenderam a amaldiçoar os liquens e achar uma árvore para sentar embaixo; terra também de sangue, aço e heroísmo; terra do corpo e do espírito. Esta era sua história.

Em toda esta história antiga e misteriosa, as figuras mais misteriosas eram sem dúvida as dos Grandes Poetas do Círculo de Arium. Estes Poetas do Círculo viviam nos caminhos de montanhas remotas, onde ficavam à espera de pequenos grupos de viajantes incautos para fazer um círculo em torno deles e apedrejá-los.

E quando os viajantes gritavam, perguntando por que eles não iam embora escrever poemas em vez de ficar importunando as pessoas com essa estaria de jogar pedras, eles paravam subitamente e entravam com uma das setecentas e noventa e quatro grandes Canções dos Ciclos de Vassilian. Tais canções eram de extraordinária beleza, e de comprimento ainda mais extraordinário, e todas se encaixavam exatamente no mesmo padrão.

A primeira parte de cada canção narrava como havia deixado a Cidade de Vassilian um grupo de cinco príncipes sábios com quatro cavalos. Os príncipes, que são naturalmente bravos, nobres e judiciosos, viajam a terras distantes, combatem ogres gigantes, seguem filosofias exóticas, tomam chá com deuses sobrenaturais e salvam lindos monstros de princesas vorazes antes de anunciarem que atingiram a luz e que suas andanças portanto estão concluídas.

A segunda parte, muito mais comprida, de cada canção falava sobre todas as brigas para quem ia voltar a pé.

Tudo isso repousava no passado remoto do planeta. Foi, no entanto, um desses excêntricos poetas quem inventou as estarias espúrias sobre uma catástrofe iminente, que permitiram ao povo de Golgafrincham livrar-se de todo um terço inútil de sua população. Os outros dois terços permaneceram firmemente em casa e levaram vidas cheias, ricas e felizes até que foram todos subitamente exterminados por uma doença virulenta contraída de um telefone sujo.

 

Aquela noite a nave colidiu com um planetinha azul-esverdeado completamente insignificante que dava voltas em torno de um pequeno sol amarelo nos confins inexplorados da extremidade do braço espiral ocidental da Galáxia.

Nas horas que antecederam a colisão Ford Prefect tinha lutado furiosamente, mas em vão, para destravar os controles da nave e tirá-la de sua rota preestabelecida. Tornara-se rapidamente aparente para ele que a nave tinha sido programada para entregar a carga em segurança, ainda que sem muito conforto, ao seu novo lar, mas estraçalhar-se irreparavelmente no processo.

Sua descida em chamas através da atmosfera destruíra a maior parte da superestrutura e da blindagem exterior, e o inglório mergulho de barriga num pântano lodacento deixou à população apenas algumas horas de escuridão para reviver e desembarcar a carga congelada e indesejada, pois a nave começava a afundar, enrijecendo seu corpo vagarosamente na lama estagnada. De vez em quando, durante a noite, sua silhueta aparecia recortada quando meteoros flamejantes — detritos de sua queda — riscavam o céu.

Na luz cinzenta antes do alvorecer, com um ruído obsceno, a nave afundou para sempre nas malcheirosas profundezas.

Quando o sol se levantou aquela manhã, lançou sua luz aguada e rarefeita sobre uma vasta área tomada por cabeleireiros, executivos de relações públicas, pesquisadores de opinião e os demais, todos gemendo e arrastando-se desesperadamente para a terra seca.

Um sol menos decidido teria provavelmente voltado di-reto para trás, mas este continuou seu caminho céu acima e após um tempo a influência de seus raios quentes começou a ter um efeito restaurador naquelas criaturas rastejantes.

Como não é de surpreender, um número incontável deles perdera-se no pântano durante a noite, e milhões de outros foram engolidos juntos com a nave, mas os que sobreviveram ainda se contavam às centenas de milhares e conforme o dia avançava, arrastavam-se para as terras dos arredores à procura de alguns metros quadrados de chão firme onde cair e se recuperar do pesadelo.

Duas figuras moveram-se mais para diante. De uma colina próxima Ford Prefect e Arthur Dent assistiram ao horror do qual não se sentiam parte.

— Que golpe imundo de se aplicar — murmurou Arthur.

Ford riscava o chão com uma vareta e sacudiu os ombros.

— Uma solução criativa para um problema, eu diria.

— Por que as pessoas não podem simplesmente aprender a viver juntas em paz e harmonia? — disse Arthur.

Ford deu uma gargalhada muito alta.

— Quarenta e dois! — disse, com um sorriso malicioso. — Não, não serve. Deixa pra lá.

Arthur olhou para ele como se ele tivesse enlouquecido e, não vendo nada que indicasse o contrário, concluiu que seria perfeitamente razoável assumir que isto tinha de fato ocorrido.

— O que você acha que vai acontecer com eles? — disse, depois de um instante.

— Num Universo infinito tudo pode acontecer — disse Ford. — Até a sobrevivência. Estranho, mas verdadeiro.

Um olhar curioso apareceu em seus olhos ao passarem pela paisagem e retornarem à cena de miséria abaixo deles.

— Acho que eles vão se dar bem por um tempo — disse. Arthur dirigiu-lhe um olhar aguçado.

— Por que você diz isso? — perguntou. Ford sacudiu os ombros.

— Só um palpite — disse, recusando-se a ser levado por outras perguntas.

— Olhe — disse ele de repente.

Arthur seguiu seu dedo indicador. Lá embaixo, entre as massas escarrapachadas, uma figura se movimentava — ou cambaleava talvez fosse uma expressão mais exata. Parecia estar carregando algo sobre os ombros. Conforme cambaleava de uma forma prostrada para outra, parecia acenar com o que quer que estivesse carregando, como um bêbado. Após um tempo, desistiu do esforço e desmaiou num tombo.

Arthur não tinha idéia do que isso queria dizer.

— Câmera de filmar — disse Ford. — Registrando o momento histórico.

— Bom, não sei quanto a você — disse Ford mais uma vez, após um instante — mas eu estou perdido.

Ficou em silêncio por um tempo. Depois de um tempo, isso parecia requerer um comentário.

— Ahn, quando você diz que está perdido, o que quer dizer exatamente? — disse Arthur.

— Boa pergunta — disse Ford. — Estou captando silêncio total.

Olhando por cima dos ombros Arthur viu que ele estava mexendo nos botões de uma caixa preta. Ford já tinha apresentado a caixa para Arthur como um Receptor Sensomático de Subéter, mas Arthur tinha meramente balançado a cabeça, absorto, e não tinha ligado para o assunto. Na sua mente o Universo ainda se dividia em duas partes — a Terra, e todo o resto. Como a Terra tinha sido demolida para dar lugar a uma via expressa hiperespacial, sua visão das coisas estava um pouco desequilibrada, mas Arthur tendia a agarrar-se a esse desequilíbrio como o último contato restante com o lar. O Receptor Sensomático de Subéter pertencia firmemente à categoria de "todo o resto".

— Nada, nem uma salsicha — disse Arthur, sacudindo o aparelho.

Salsicha, pensou Arthur enquanto contemplava indiferentemente o mundo primitivo à sua volta, o que não daria por uma boa salsicha da Terra.

— Você acredita — disse Ford, exasperado — que não há nenhuma transmissão de nenhum tipo a anos-luz deste lugar obscuro? Você está me ouvindo?

— O quê? — disse Arthur.

— Estamos com problemas — disse Ford.

— Ah — disse Arthur. Isso parecia notícia velha de um mês para ele.

— Até a gente captar alguma coisa neste aparelho — disse Ford — nossas chances de sairmos deste planeta são nulas. Pode ser algum efeito de interferência no campo magnético do planeta e, nesse caso, é só a gente viajar e viajar até encontrar uma área de boa recepção. Vamos?

Apanhou o aparelho e se levantou.

Arthur olhou colina abaixo. O homem com a filmadora tinha acabado de erguer-se num esforço a tempo de filmar um de seus colegas desmaiando.

Arthur arrancou uma folha de capim e levantou-se atrás de Ford.

 

— Creio que tiveram uma refeição agradável — disse Zarniwoop a Zaphod e Trillian quando se rematerializaram na ponte de comando da nave Coração de Ouro e ficaram estirados no chão.

Zaphod abriu alguns olhos e olhou-o ameaçadora-mente.

— Você — disse, asperamente. Levantou-se com dificuldade e cambaleou à busca de uma cadeira em que mergulhar. Achou uma e mergulhou.

— Programei o computador com as Coordenadas de Improbabilidade pertinentes a nossa viagem — disse Zarniwoop. — Chegaremos lá muito em breve. Por enquanto, por que vocês não descansam e se preparam para o encontro?

Zaphod não disse nada. Levantou-se de novo e caminhou até um pequeno armário de onde tirou uma garrafa da velha aguardente Janx. Tomou um demorado gole.

— E quando tudo isso terminar — disse Zaphod como um selvagem — estará terminado, certo? Estarei livre para ir fazer o que eu quiser e ficar deitado nas praias e tudo o mais?

— Depende do que decorrer do encontro — disse Zarniwoop.

— Zaphod, quem é esse homem? — perguntou Trillian, levantando-se, tremula. — O que ele está fazendo aqui? O que está fazendo na nossa nave?

— É um homem muito estúpido — esclareceu Zaphod — que quer conhecer o homem que rege o Universo.

— Ah — disse Trillian, pegando a garrafa de Zaphod e servindo-se —, um cara atrás de ascensão social.

 

O principal problema — um dos principais problemas, pois há vários —, um dos principais problemas em governar pessoas está em quem você arruma para fazê-lo; ou melhor, em quem consegue arrumar pessoas que lhe permitam fazer isso com elas.

Resumindo: é um fato bem conhecido que as pessoas que mais querem governar as pessoas são, por isso mesmo, as menos convenientes para isso. Resumindo o resumo: qualquer pessoa capaz de se fazer presidente não deveria, em nenhuma hipótese, ter permissão de receber esse emprego. Resumindo o resumo do resumo: as pessoas são um problema.

E então esta é a situação que encontramos: uma sucessão de Presidentes Galácticos que curtem tanto as diversões e adulações que têm por estarem no poder que muito raramente percebem que não estão.

E alguém nas sombras atrás deles... quem?

Quem pode governar se ninguém que queira fazê-lo pode ter permissão para isso?

 

Num pequeno mundo obscuro em algum lugar no meio de nenhum lugar em particular — ou seja, nenhum lugar que pudesse ser encontrado, já que estava protegido por um vasto campo de improbabilidade para o qual apenas seis homens na Galáxia tinham a chave — estava chovendo.

Chovia aos baldes, e já fazia horas. A chuva formava uma névoa sobre a superfície do mar, castigava as árvores, revolvia e chafurdava a faixa de terra junto ao mar transformando-a num lodaçal.

A chuva dançava e crivava o teto de zinco de uma pequena choupana que ficava no meio dessa faixa de terra. Destruiu o caminho rústico que levava da cabana à beira do mar, levando as caprichadas pilhas de conchas interessantes que tinham sido postas ali.

O barulho da chuva no telhado da choupana era ensurdecedor do lado de dentro, mas passava despercebido por seu ocupante, cuja atenção estava ocupada com outra coisa.

Era um homem alto e desajeitado de cabelos cor de palha, úmidos por causa das goteiras. Tinha roupas surradas, as costas arqueadas, e seus olhos, embora abertos, pareciam estar fechados.

Em sua choupana havia uma velha poltrona gasta, uma velha mesa riscada, um colchão velho, algumas almofadas e um aquecedor pequeno, mas quente.

Havia também um gato velho e mais ou menos surrado, e era ele no momento o foco de atenção do homem. Inclinou seu corpo desajeitado sobre ele.

— Bichano, bichano, bichano — disse —, cutchicut-chicutchicutchicu... o bichano quer peixe? Um pedacinho gostoso de peixe... o bichano quer?

O gato parecia indeciso sobre o assunto. Estendeu a pata com certa condescendência para o pedaço de peixe que o homem estava segurando, e então distraiu-se com um chumaço de poeira no chão.

— Se o bichano não come peixe, o bichano fica magrinho e desaparece, eu acho — disse o homem. Transparecia dúvida em sua voz.

— Imagino que seja isso o que acontece — disse —, mas como posso saber?

Ofereceu o peixe outra vez.

— O bichano pensa — disse — se come o peixe ou se não come o peixe. Acho que é melhor se eu não me envolver

— suspirou.

— Eu acho que peixe é bom, mas acho também que a chuva é molhada, então quem sou eu para julgar?

Deixou o peixe no chão para o gato, e voltou para seu assento.

— Ah, parece que estou vendo você comer — disse, por fim, quando o gato exauriu as possibilidades de entretenimento do chumaço de poeira e lançou-se sobre o peixe.

— Gosto de ver você comendo peixe — disse o homem

— porque na minha mente você vai desaparecer se não comer.

Apanhou na mesa um pedaço de papel e um toco de lápis. Segurou um numa mão e o outro na outra e experimentou os diferentes modos de colocá-los juntos. Tentou segurar o lápis embaixo do papel, e depois em cima, e então do lado. Experimentou embrulhar o lápis com o papel, experimentou esfregar o lado rombudo do lápis contra o papel e então experimentou esfregar o lado pontudo do lápis contra o papel. Fez uma marca, e ele ficou maravilhado com a descoberta, como ficava todo dia. Apanhou outro pedaço de papel na mesa. Este tinha um jogo de palavras-cruzadas. Estudou-o brevemente, preencheu alguns quadrinhos até perder o interesse.

Experimentou sentar sobre uma de suas mãos e ficou intrigado ao sentir os ossos do quadril.

— O peixe vem de longe — disse — ou é o que me dizem. Ou é o que imagino que me dizem. Quando os homens vêm, ou quando em minha mente os homens vêm em suas seis naves negras reluzentes, eles vêm em sua mente também? O que você vê, bichano?

Olhou para o gato, que estava mais preocupado em engolir o peixe o mais rápido que pudesse do que com estas especulações.

— È quando ouço as perguntas, você ouve as perguntas? O que significam as vozes deles para você? Talvez você só pense que estão cantando cantigas para você. — Refletiu sobre isso e viu a falha da suposição.

— Talvez eles estejam cantando cantigas para você — disse — e eu só penso que eles estão me fazendo perguntas.

Fez uma outra pausa. Às vezes fazia uma pausa que durava dias, só para ver como seria.

— Você acha que eles vieram hoje? — disse. — Eu acho. Tem barro no chão, cigarros e uísque em cima da mesa, peixe num prato para você e uma lembrança deles na minha mente. Evidências não muito conclusivas, eu sei, mas toda evidência é circunstancial. E olhe o que mais eles me deixaram.

Alcançou algumas coisas sobre a mesa.

— Palavras-cruzadas, dicionários e uma calculadora.

Brincou com a calculadora durante uma hora, enquanto o gato foi dormir e a chuva lá fora continuava a cair. A uma certa altura pôs a calculadora de lado.

— Acho que devo estar certo em achar que eles me fazem perguntas — disse. — Vir até aqui e trazer todas estas coisas só pelo privilégio de cantar cantigas para você seria um comportamento muito estranho. Ou assim me parece. Quem pode saber, quem pode saber?

Pegou um cigarro de cima da mesa e acendeu com uma brasa do aquecedor. Deu uma tragada profunda e recostou-se na poltrona.

— Acho que vi outra nave no céu hoje — disse por fim. — Uma nave grande. Eu nunca vi uma nave grande branca, só as seis pretas. E as seis verdes. E as outras que dizem que vêm de muito longe. Nunca uma grande e branca. Talvez seis pretas pequenas possam parecer uma grande branca em certas ocasiões. Talvez eu queira um copo de uísque. É, parece mais provável.

Levantou-se e achou um copo que estava no chão ao lado de seu colchão. Serviu uma dose da garrafa. Sentou-se de novo.

Talvez outras pessoas estejam vindo me ver — disse.

A cento e cinqüenta metros dali, golpeada pela chuva torrencial, encontrava-se a nave Coração de Ouro.

Ao abrir-se a escotilha emergiram três figuras, agarrados um ao outro para protegerem seus rostos da chuva.

— Ali? — gritou Trillian por sobre o barulho da chuva.

— É — disse Zarniwoop.

— Naquela choupana?

— É.

— Que esquisito — disse Zaphod.

— Mas fica no meio do nada — disse Trillian. — A gente deve ter vindo ao lugar errado. Não dá para reger o Universo de uma choupana.

Correram pela chuva que caía e chegaram, completa-mente ensopados, à porta. Bateram. Estavam tremendo. A porta se abriu.

— Olá? — disse o homem.

— Ah, desculpe — disse Zarniwoop —, tenho motivos para acreditar...

— Você rege o Universo? — disse Zaphod. O homem sorriu para ele.

— Tento não reger — disse. — Vocês estão molhados? Zaphod olhou para ele assombrado.

— Molhados? — gritou. — Não parece que estamos molhados?

— É o que me parece — disse o homem —, mas como vocês se sentem a esse respeito poderia ser uma questão completamente diferente. Se acharem que o calor os secará, é melhor entrarem.

Entraram.

Espiaram a cabana por dentro, Zarniwoop com aversão, Trillian com interesse, Zaphod deliciado.

— Ei, ahn... — disse Zaphod — qual é seu nome? O homem olhou para eles em dúvida.

— Não sei. Por que vocês acham que eu haveria de ter um? Parece-me muito estranho dar um nome a um amontoado de vagas percepções sensoriais.

Convidou Trillian a sentar-se na poltrona. Ele se sentou na beirada, Zarniwoop recostou-se rigidamente contra a mesa e Zaphod estendeu-se no colchão.

— Uauí! — disse Zaphod. — O assento do poder! — Fez cócegas no gato.

— Ouça — disse Zarniwoop —, tenho que lhe fazer algumas perguntas.

— Está bem — disse gentilmente o homem. — Pode cantar para meu gato se quiser.

— Ele gostaria? — perguntou Zaphod.

— É melhor perguntar para ele — disse o homem.

— Ele fala? — perguntou Zaphod.

— Não tenho lembrança dele falando — disse o homem —, mas sou bastante falível.

Zarniwoop tirou algumas anotações do bolso.

— Agora — disse ele —, o senhor rege o Universo, não rege?

— Como posso saber? — disse o homem. Zarniwoop fez um sinal diante de uma anotação no papel.

— Há quanto tempo o senhor faz isso?

— Ah — disse o homem —, essa é uma pergunta sobre o passado, não?

Zarniwoop olhou para ele, confuso. Não era isso exata-mente o que esperava.

— Ê — disse.

— Como posso saber — disse o homem —, se o passado não é uma ficção projetada para explicar a discrepância entre minhas sensações físicas imediatas e meu estado de espírito?

Zarniwoop cravou os olhos nele. O vapor começava a subir de suas roupas encharcadas.

— Então você responde todas as perguntas desse jeito? — perguntou.

O homem respondeu rápido.

— Digo o que me ocorre dizer quando acho que ouço as pessoas dizerem coisas. Mas eu não posso dizer.

Zaphod riu alegremente.

— Vou beber isso — disse, e pegou a garrafa de aguardente Janx. Levantou-se de um salto e ofereceu a garrafa ao homem que rege o Universo, que a pegou com prazer.

— Muito bem, grande regente — disse. — Conte as coisas como as coisas são!

— Não, escute-me — disse Zarniwoop —, vêm pessoas ver você, não? Em naves...

— Acho que sim — disse o homem. Entregou a garrafa a Trillian.

— E eles lhe pedem — disse Zarniwoop — para tomar decisões para eles? Sobre as vidas das pessoas, sobre os mundos, sobre economia, sobre guerras, sobre tudo o que se passa no Universo lá fora?

— Lá fora? — disse o homem. — Onde?

— Lá fora! — disse Zarniwoop apontando para a porta.

— Como você sabe que tem alguma coisa lá fora? — disse o homem educadamente. — A porta está fechada.

A chuva continuava a golpear o teto. Dentro da choupana estava quente.

— Mas você sabe que existe um Universo inteiro lá fora! — gritou Zarniwoop. — Você não pode esquivar-se de suas responsabilidades dizendo que elas não existem!

O homem que rege o Universo pensou por um longo tempo enquanto Zarniwoop trepidava de raiva.

— Você tem muita certeza de seus fatos — disse por fim. — Eu não confiaria num homem que conta com o Universo, se é que existe um, como algo certo.

Zarniwoop ainda trepidava, mas estava em silêncio.

— Eu apenas decido sobre o meu Universo — prosseguiu o homem calmamente. — Meu Universo são meus olhos e meus ouvidos. Qualquer coisa fora disso é boato.

— Mas você não crê em nada?

O homem sacudiu os ombros e apanhou seu gato.

— Não entendo o que você quer dizer — disse.

— Você não entende que o que decide nesta choupana afeta as vidas e os destinos de milhões de pessoas? Isto tudo está monstruosamente errado!

— Não sei. Nunca vi essas pessoas todas de que você fala. E nem você, suspeito. Elas existem apenas nas palavras que ouvimos. É loucura você dizer que sabe o que está acontecendo com as outras pessoas. Só elas sabem, se existirem. Elas têm seus próprios Universos de seus olhos e seus ouvidos.

Trillian disse:

— Acho que vou dar uma saída lá fora por um momento.

Saiu e foi andar na chuva.

— Você acredita que existem outras pessoas? — insistiu Zarniwoop.

— Não tenho opinião. Como posso saber?

— É melhor eu ir ver o que há com Trillian — disse Zaphod, e saiu.

Lá fora ele disse para ela:

— Acho que o Universo está em boas mãos, ehn?

— Muito boas — disse Trillian. Foram andando pela chuva.

Lá dentro, Zarniwoop continuava.

— Mas você não entende que as pessoas vivem ou morrem pela sua palavra?

O homem que rege o Universo esperou o quanto pôde. Quando ouviu o som débil dos motores da nave sendo ligados, falou para encobri-lo.

— Não tem nada a ver comigo — disse —, não estou envolvido com as pessoas. Deus sabe que não sou um homem cruel.

— Ah — vociferou Zarniwoop —, você diz "Deus". Você acredita em alguma coisa!

— Meu gato — disse o homem benignamente, pegando-o e acariciando-o. — Eu o chamo de Deus. Sou bom pira ele.

— Muito bem — disse Zarniwoop, pressionando. — Como você sabe que ele existe? Como você sabe que ele sabe que você é bom, ou que ele gosta daquilo que ele acha que é sua bondade?

— Eu não sei — disse o homem com um sorriso —, não tenho idéia. Simplesmente me agrada agir de uma certa maneira com o que me parece ser um gato. Você se comporta de outro jeito? Por favor, acho que estou cansado. Zarniwoop suspirou completamente insatisfeito e olhou à sua volta.

— Onde estão os outros dois? — disse de repente.

— Que outros dois? — disse o homem que rege o Universo, recostando-se na poltrona e enchendo o copo de uísque.

— Beeblebrox e a garota! Os dois estavam aqui!

— Não me lembro de ninguém. O passado é uma ficção para explicar...

— Esqueça — rosnou Zarniwoop e saiu correndo na chuva. Não havia nave. A chuva continuava a revolver a lama. Não havia sinal que mostrasse onde tinha estado a nave. Ele gritou na chuva. Virou-se e correu de volta para a choupana e a encontrou trancada.

O homem que rege o Universo cochilava em sua poltrona. Depois de um tempo brincou com o lápis e o papel outra vez e ficou encantado ao descobrir como fazer uma marca com um no outro. Havia vários barulhos vindos do lado de fora mas ele não sabia se eram reais ou não. Ficou então falando com a mesa durante uma semana para ver como ela reagiria.

 

As estrelas surgiram deslumbrantes aquela noite, em seu brilho e claridade. Ford e Arthur tinham percorrido mais quilômetros do que poderiam avaliar de algum modo e finalmente pararam para descansar. A noite estava fresca e balsâmica, o ar puro, o Receptor Sensomático de Subéter totalmente silencioso.

Uma quietude maravilhosa estendia-se sobre o mundo, e uma calma mágica combinava-se com as doces fragrâncias dos bosques, o barulho sossegado dos insetos e a luz brilhante das estrelas para aliviar seus espíritos agitados. Até Ford Prefect, que já tinha visto mais mundos do que poderia enumerar numa longa tarde, estava tentado a pensar se aquele não era o mais bonito em que já tinha estado. Durante todo aquele dia tinham passado por vales e montanhas verdes, ricamente cobertos de gramados, flores de essências exóticas e árvores altas repletas de folhas, o sol os tinha aquecido e brisas suaves os mantinham frescos, e Ford Prefect vinha observando seu Receptor Sensomático de Subéter a intervalos cada vez menos frequentes, e mostrava-se cada vez menos aborrecido com seu silêncio contínuo. Começava a achar que gostava dali.

Ainda que o ar da noite estivesse fresco eles dormiram profunda e confortavelmente a céu aberto e acordaram algumas horas depois com o orvalho sentindo-se repousados mas com fome. Ford tinha enfiado alguns pãezinhos em sua mochila, no Milliways, e eles os comeram no café da manhã, antes de continuarem a marcha.

Até agora vinham andando a esmo, mas então resolveram pôr-se firmes em direção ao leste, achando que se iam explorar aquele mundo, deviam ter uma idéia clara de onde tinham vindo e para onde estavam indo.

Pouco antes do meio-dia, tiveram a primeira indicação de que o mundo em que o tinham pousado não era desabitado: o relance de um rosto observando-os por entre as folhas. Desapareceu no instante em que os dois o viram, mas a imagem que ambos tiveram era a de uma criatura humanóide, curiosa de vê-los mas não assustada. Meia hora depois tiveram o relance de outro rosto, e dez minutos mais tarde, mais um.

Um minuto depois encontraram uma grande clareira e pararam.

A frente deles, no meio da clareira, estava um grupo de cerca de duas dúzias de homens e mulheres. Ficaram parados e quietos encarando Ford e Arthur. Em volta de algumas das mulheres amontoavam-se crianças pequenas e atrás do grupo, um decrépito aglomerado de habitações feitas de barro e galhos.

Ford e Arthur seguraram a respiração.

O mais alto dos homens tinha pouco mais de um metro e meio, todos andavam um pouco curvados para frente, tinham braços alongados e testas curtas, e claros olhos brilhantes com os quais olhavam fixamente para os estranhos.

Ao ver que não carregavam armas nem faziam qualquer movimento em sua direção, Ford e Arthur ficaram um pouco mais tranquilos. Por um tempo os dois grupos ficaram se entreolhando, sem que ninguém se movesse. Os nativos pareciam confusos com os intrusos, e ao mesmo tempo que não mostravam nenhum sinal de agressividade, definitivamente não estavam emitindo nenhum convite.

Nada acontecia.

Por dois minutos completos nada aconteceu. Após dois minutos, Ford achou que era hora de algo acontecer.

— Olá — disse.

As mulheres puxaram as crianças para mais perto delas.

Os homens não fizeram qualquer movimento compreensível, mas sua disposição no todo tornava claro que a saudação não era bem-vinda — não era hostilizada de maneira alguma, apenas não era bem-vinda.

Um dos homens, que estava pouco à frente do restante do grupo e que portanto devia ser seu líder, deu um passo à frente. Seu rosto era calmo e tranqüilo, quase sereno.

— Ugghhhuuggghhhrrrr uh uh ruh uurgh — disse calmamente.

Isso tomou Arthur de surpresa. Tinha se acostumado tanto a receber uma tradução instantânea e inconsciente de tudo que ouvia, através do peixe-babel instalado em seu ouvido, que até já tinha esquecido disso, e só se lembrou agora pelo fato de parecer que não estava funcionando. Vagos significados nebulosos surgiram no fundo de sua mente, mas nada que ele pudesse agarrar com firmeza. Imaginou, corretamente a propósito, que aquele povo não tinha desenvolvido ainda mais do que os rudimentos da linguagem, e que o peixe-babel era portanto incapaz de ajudar. Deu uma olhada para Ford, que era infinitamente mais experiente nesses assuntos.

— Acho — disse Ford com um canto da boca — que ele está perguntando se não nos importaríamos em dar a volta ao redor da aldeia.

Pouco depois, um gesto do homem-criatura pareceu confirmar isso.

— Ruurgggghhhh urrrgggh; urgh urgh (uh ruh) rruur-ruuh ug — prosseguiu o homem-criatura.

— O sentido geral — disse Ford —, pelo que posso entender, é que temos toda a liberdade de seguir viagem por onde quisermos, mas se déssemos a volta ao redor da aldeia em vez de atravessá-la, nós os deixaríamos muito felizes.

— Então, o que vamos fazer?

— Acho que vamos deixá-los felizes — disse Ford.

Devagar e atentos deram a volta no perímetro da clareira. Isso pareceu ir muito bem para os nativos que acenaram muito de leve para eles e voltaram para suas atividades.

Ford e Arthur continuaram sua viagem através da floresta. A umas centenas de metros da clareira depararam subitamente com uma pequena pilha de frutas colocada em seu caminho — frutinhas que se pareciam notavelmente com amoras e framboesas e umas frutas polpudas de casca verde que se pareciam impressionantemente com pêras.

Até o momento, tinham evitado todas as frutas que tinham visto, apesar das árvores estarem carregadas delas.

— Encare desta maneira — dissera Ford Prefect —, frutas em planetas estranhos podem fazer você viver ou fazer você morrer. Portanto, a questão, quando você se mete com elas, é saber quando você vai morrer enquanto não morre. Pensando assim você não cai na tentação de comê-las. O segredo da viagem de carona saudável é comer porcaria.

Olharam com suspeita para a pilha que estava posta em seu caminho. Parecia tão boa que quase lhes dava vertigem de fome.

— Encare desta maneira — disse Ford. —, ahn...

— Como? — disse Arthur.

— Estou tentando pensar numa maneira de encarar que queira dizer que no fim a gente acaba comendo.

A luz do sol atravessava as folhas e lançava um brilho sarapintado sobre as coisas que pareciam pêras. As coisas que pareciam framboesas e morangos eram mais rechonchudas e carnudas que quaisquer outros que Arthur já vira, mesmo em comerciais de sorvete.

— Por que a gente não come e deixa para pensar depois? — disse.

— Talvez seja isso que eles querem que a gente faça.

— Está bem, encare desta maneira...

— Começou bem — disse Ford.

— Estão aí para a gente comer. Não importa se são boas ou ruins, se eles estão querendo nos dar comida ou nos envenenar. Se forem venenosas e a gente não comer, eles simplesmente vão nos atacar de algum outro jeito. Se a gente não comer, a gente sai perdendo de qualquer forma.

— Gostei do seu jeito de pensar — disse Ford —, agora coma uma.

Hesitante, Arthur apanhou uma das coisas que pareciam pêras.

— Foi o que eu sempre achei sobre o Jardim do Éden — disse Ford.

— O quê?

— O Jardim do Éden. A árvore. A maçã. Essa parte, lembra?

— Lembro, claro que eu lembro.

— Esse Deus põe uma macieira no meio de um jardim e diz "vocês façam o que vocês quiserem, ah, mas não comam a maçã". Surpresa surpresa, eles comem e ele pula de trás de uma moita gritando "Peguei vocês!". Não teria feito muita diferença se eles não tivessem comido.

— Por que não?

— Porque se você está lidando com alguém que tem o tipo da mentalidade de quem deixa um chapéu na calçada com um tijolo embaixo para os outros chutarem pode ter certeza que ele não vai desistir. No fim ele te pega.

— Do que você está falando?

— Esqueça, coma a fruta.

— Sabe, este lugar até que parece o Jardim do Éden.

— Coma a fruta.

— O que se ouve também é parecido.

Arthur deu uma mordida na coisa que parecia uma pêra.

— É uma pêra — ele disse.

Momentos depois, quando tinham comido tudo, Ford Prefect virou-se e gritou.

— Obrigado. Muito obrigado. Vocês são muito gentis.

Pelos oitenta quilômetros seguintes em sua marcha rumo ao leste eles continuaram encontrando os presentes de frutas estendidos em seu caminho, e uma vez ou outra perceberam um nativo os observando entre as árvores; não tornaram a fazer contato direto. Resolveram que gostavam de uma raça de pessoas que deixava bem clara sua gratidão por ser deixada em paz.

As frutas acabaram após oitenta quilômetros porque era onde começava o mar.

Sem pressa, construíram uma jangada e atravessaram o mar. Era relativamente calmo, uns cem quilômetros de largura, e eles tiveram uma travessia razoavelmente agradável, aportando numa terra que era pelo menos tão bonita quanto a de onde tinham saído.

A vida era, resumindo, ridiculamente cômoda e eles puderam, pelo menos por um tempo, enfrentar os problemas da falta de objetivos e do isolamento simplesmente decidindo ignorá-los. Quando a ânsia por companhia fosse forte demais, sabia onde achá-la, mas no momento estavam felizes de saber que os Golgafrinchanos estavam a centenas de quilômetros atrás deles.

Ford Prefect, todavia, começou a usar seu Receptor Sensomático de Subéter com mais freqüência de novo. Só uma vez captou um sinal, mas era tão tênue e vinha de uma distância tão enorme que o deprimiu mais do que o silêncio, que, fora isso, continuava inabalável.

Por um capricho, voltaram-se para o norte. Após semanas de viagem chegaram a um outro mar, construíram outra jangada e atravessaram. Desta vez a travessia foi mais difícil, o clima estava esfriando. Arthur suspeitou de uma crise de masoquismo de Ford Prefect — aumentar as dificuldades da viagem parecia lhe dar um senso de finalidade que de outra forma faltava. Galgava adiante implacavelmente.

A viagem para o norte os levou a um território de montanhas escarpadas de perfil e beleza de tirarem o fôlego. Os gigantescos picos recortados, cobertos de neve arrebatavam seus ouvidos. O frio começava a lhes morder os ossos.

Enrolaram-se em peles de animais que Ford Prefect conseguiu através de uma técnica que tinha aprendido certa vez com ex-monges pralitas que administravam uma estância de surf-mental nas Colinas de Hunian.

A Galáxia está cheia de ex-monges pralitas, todos arrivistas, porque as técnicas de controle mental que a Ordem desenvolveu como forma de disciplina devocional são, francamente, sensacionais — e um número extraordinário de monges abandona a Ordem logo depois de terem terminado o treinamento devocional e logo antes de prestarem os votos finais de ficarem trancados em pequenas caixas metálicas para o resto de suas vidas.

A técnica de Ford parecia consistir sobretudo em ficar parado por um tempo, sorrindo.

Após uns instantes, um animal — um alce talvez — aparecia de trás das árvores e o observava com curiosidade. Ford continuava a sorrir, seus olhos tornavam-se mais dóceis e brilhantes, e ele parecia irradiar um amor profundo e universal, um amor que se expandia para abraçar toda a criação. Uma quietude maravilhosa tomava conta da região ao redor, uma quietude pacífica e serena, emanada do homem transfigurado. Lentamente o alce se aproximava, passo a passo, até tocá-lo com o focinho, momento em que Ford pulava e lhe quebrava o pescoço.

— Controle de feroma — disse que era —, você só precisa saber como gerar o cheiro certo.

 

Alguns dias após terem aportado nessa terra montanhosa, atingiram um litoral que se atravessava diagonalmente diante deles do sudoeste para o nordeste, um litoral de grandiosidade monumental: majestosas ravinas profundas, píncaros de gelo que se elevavam — fiordes.

Durante os dois dias que se seguiram, eles escalaram e subiram pelas pedras e glaciares, assombrados com a beleza.

— Arthur! — gritou Ford de repente.

Arthur olhou para o lugar de onde vinha a voz de Ford, carregada pelo vento.

Ford tinha ido examinar um glaciar, e Arthur o encontrou agachado diante da sólida parede de gelo azul. Estava tenso de excitação — seus olhos dardejavam à procura dos olhos de Arthur.

— Olhe! — disse. — Olhe!

Arthur olhou. Viu a parede sólida de gelo azul.

— É — disse —, é um glaciar. Eu já tinha visto.

— Não — disse Ford —, você olhou, não viu. Olhe. Ford apontava para o fundo, para o coração do gelo. Arthur deu uma espiada — não viu nada além de sombras nebulosas.

— Afaste-se um pouco — insistiu Ford —, olhe de novo.

Arthur afastou-se e olhou de novo.

— Não — disse, balançando os ombros. — O que eu tenho que procurar?

E de repente ele viu.

— Você está vendo? Ele estava.

Sua boca começou a falar, mas seu cérebro decidiu que ela não tinha nada a dizer e a fechou novamente. Seu cérebro começou então a enfrentar o problema do que seus olhos diziam que estavam olhando, mas ao fazê-lo relaxou o controle sobre a boca que prontamente caiu aberta. Levantando mais uma vez o maxilar, o cérebro perdeu o controle da mão esquerda que se agitava sem sentido. Por um ou dois segundos seu cérebro tentou segurar a mão esquerda sem soltar a boca, tentando simultaneamente pensar sobre aquilo que estava enterrado no gelo, e foi provavelmente por isso que as pernas se foram e Arthur caiu serenamente no chão.

O que estava causando todo esse transtorno neural era uma rede de sombras no gelo, cerca de quarenta e cinco centímetros abaixo da superfície. Olhadas do ângulo correto, elas formavam as formas sólidas das letras de um alfabeto alienígena, cada uma com um metro de altura; para aqueles que, como Arthur, não soubesse ler magratheano havia por sobre as letras o desenho do rosto de um homem suspenso no gelo.

Era um rosto velho, magro e distinto, sério mas não carrancudo.

Era o rosto do homem que ganhara um prêmio pelo projeto do litoral em que agora eles sabiam estar pisando.

 

Um silvo agudo encheu o ar. Rodopiou e penetrou nas árvores incomodando os esquilos. Alguns pássaros voaram para longe, enojados. O ruído dançava e deslizava pela clareira. Ululava num som áspero e agredia generalizadamente.

O Capitão, no entanto, observava o solitário tocador de gaita de foles com um olhar indulgente. Quase nada era capaz de abalar sua serenidade; de fato, uma vez refeito da perda de sua esplêndida banheira naquela situação desagradável no pântano tantos meses atrás, começava a achar sua nova vida extraordinariamente agradável. Tinham escavado uma cavidade numa grande pedra que ficava no meio da clareira, e aí ele ficava lagarteando todos os dias enquanto assistentes derramavam água sobre ele. Não exatamente água quente, é preciso que se diga, pois ainda não tinham arrumado um meio de esquentá-la. Não importa, isso viria; por enquanto, equipes de busca exploravam a região atrás de uma fonte de água quente, de preferência numa clareira agradável e frondosa, e se fosse perto de uma mina de sabão — perfeito. Àqueles que diziam que tinham a impressão de que sabão não se encontra em minas, o Capitão ousara sugerir que isso talvez se devesse a eles não terem procurado com o esforço necessário, e esta possibilidade fora relutantemente admitida.

Não, a vida era muito agradável, e o que tinha de melhor era que quando a fonte de água quente fosse descoberta, completa, com clareira frondosa en suite, e quando viesse o grito ecoando de trás das colinas de que a mina de sabão fora localizada e que estava produzindo quinhentas barras por dia, seria mais agradável ainda. Era muito importante ter coisas para esperar ansiosamente.

Lamentando, lamentando, esganiçando, gemendo, grasnando, guinchando, chiando, rangendo, lá ia o gaiteiro, aumentando ainda mais o já considerável prazer do Capitão só de pensar que ele poderia parar a qualquer momento. Esta era mais uma coisa que ele esperava ansiosamente.

O que mais era agradável, perguntava-se a si mesmo. Bem, tantas coisas: o vermelho e dourado das árvores, agora que se aproximava o outono; o barulho pacífico das tesouras a alguns metros de sua banheira onde dois cabeleireiros praticavam suas habilidades num diretor de artes que cochilava e em seu assistente; a luz do sol refletida nos seis telefones reluzentes alinhados aos pés de sua banheira escavada na pedra. A única coisa melhor que um telefone que não tocava o tempo todo (ou melhor, nunca) eram seis telefones que não tocavam o tempo todo (ou melhor, nunca).

Melhor do que tudo era o alegre murmurar das centenas de pessoas que lentamente se reuniam na clareira à sua volta para assistir à reunião vespertina do comitê.

O Capitão apertou marotamente o bico de seu pato de borracha. As reuniões vespertinas do comitê eram suas favoritas.

Outros olhos espreitavam a massa que se reunia. No alto de uma árvore, na beira da clareira, estava Ford Prefect, recém-chegado de climas estrangeiros. Após sua viagem de seis meses, estava magro e saudável, seus olhos brilhavam, vestia um casaco de pele de rena; sua barba estava tão dura e seu rosto tão bronzeado como de um cantor de country-rock.

Ele e Arthur Dent vinham observando os golgafrichaneses há quase uma semana, e Ford decidira que era hora de agitar um pouco as coisas.

A clareira estava cheia agora. Centenas de homens e mulheres andavam por ali, conversando, comendo frutas, jogando cartas, em geral relaxando. Seus macacões de viagem estavam a essa altura imundos e até rasgados, mas todos tinham cabelos impecavelmente penteados. Ford ficou curioso ao notar que alguns deles tinham recheado o macacão com folhas e ficou pensando se seria alguma forma de proteção contra o inverno que se aproximava. Ford apertou os olhos. Não poderiam ter de repente se interessado por botânica.

No meio destas especulações a voz do Capitão elevou-se sobre o burburinho.

— Muito bem — disse ele —, gostaria de pedir alguma ordem para esta reunião, se for possível. Todo mundo de acordo? — sorriu cordialmente. — Num minuto. Quando todos estiverem prontos.

A conversa foi diminuindo gradativamente até a clareira ficar em silêncio, exceto pelo gaiteiro que parecia estar num mundo particular selvagem e desabitado. Alguns dos que estavam próximos a ele lhe atiraram algumas folhas. Se havia algum motivo para isso, escapou à compreensão de Ford Prefect.

Um pequeno grupo de pessoas tinha se reunido em torno do Capitão e um deles estava claramente se preparando para falar. Fez isso ficando em pé, limpando a garganta e então deitando o olhar na distância, como querendo dizer à multidão que estaria com ela num minuto.

A multidão naturalmente estava atenta e voltou os olhos para ele.

Seguiu-se um momento de silêncio, que Ford julgou ser o exato momento dramático para fazer sua entrada. O homem virou-se para falar.

Ford pulou da árvore.

— Oi, pessoal — disse.

A multidão girou para o seu lado.

— Ah, meu caro rapaz — disse o Capitão. — Tem fósforos com você? Ou isqueiro? Algo assim?

— Não — disse Ford, soando como se tivesse sido um pouco esvaziado. Não era o que tinha preparado. Decidiu que seria melhor ser mais efusivo no assunto.

— Não, não tenho — prosseguiu —, não tenho fósforos. Em vez disso trago notícias...

— Que pena — disse o Capitão. — Estamos todos sem, sabe. Há semanas que não tomo um banho quente.

Ford recusou-se a ser dirigido.

— Trago notícias — disse — de uma descoberta que poderia interessá-los.

— Está na pauta? — perguntou asperamente o homem que Ford tinha interrompido.

Ford abriu um largo sorriso de cantor de country-rock.

— Não, pêra aí — disse.

— Muito bem, lamento — disse o homem com arrogância —, mas enquanto consultor de gerência de muitos anos de experiência, devo insistir na importância de se observar a estrutura do comitê.

Ford olhou para a multidão.

— Ele está louco, sabem — disse. — Este é um planeta pré-histórico.

— Dirija-se à mesa — ralhou o consultor de gerência.

— Não tem mesa nenhuma — explicou Ford —, só uma pedra.

O consultor de gerência decidiu que o que a situação agora requeria era impaciência.

— Ora, chame de mesa — disse impacientemente.

— Por que não chamar de pedra? — perguntou Ford.

— Você obviamente não tem concepção — disse o consultor de gerência, sem abandonar a impaciência em favor da velha e boa soberba — dos modernos métodos de negócios.

— E você não tem concepção do lugar em que está — disse Ford.

Uma garota de voz estridente levantou-se de um salto e usou-a.

— Calem-se, vocês dois — disse ela —, quero enviar uma moção ao plenário.

— Você quer enviar uma moção à clareira — disse um cabeleireiro, dando uma risadinha.

— Ordem, ordem! — gritou o consultor de gerência.

— Muito bem — disse Ford —, vamos ver como estão se saindo. — Agachou-se no chão para ver quanto tempo agüentava manter a calma.

O Capitão fez uma espécie de ruído conciliatório.

— Gostaria de pedir ordem — disse amavelmente. — A cinco centésima septuagésima terceira reunião do comitê de colonização de Flintevudlevix...

Dez segundos, pensou Ford, e ergueu-se de um pulo.

— Isso é frívolo — exclamou. — Quinhentas e setenta e três reuniões de comitê e vocês ainda não descobriram o fogo!

— Se você se desse o trabalho — disse a garota da voz estridente — de consultar a folha de pauta da reunião...

— A pedra de pauta — gorjeou o cabeleireiro alegremente.

— Obrigado, eu coloquei essa questão — murmurou Ford.

— ... você... vai... ver... — continuou a garota com firmeza — que teremos um relatório do Subcomitê de Desenvolvimento do Fogo dos cabeleireiros esta tarde.

— Oh... ah — disse o cabeleireiros com um olhar encabulado, que é reconhecido em toda a Galáxia como significando: "Ahn, será que dava pra ser pra terça-feira?".

— Muito bem — disse Ford, cercando-o. — O que você fez? O que você vai fazer? Quais são suas idéias a respeito do desenvolvimento do fogo?

Bom, não sei — disse o cabeleireiro —, só me deram uns pauzinhos...

— E então? O que você fez com eles?

Nervoso, o cabeleireiro procurou nos bolsos do seu macacão e entregou a Ford o fruto de seu trabalho. Ford os levantou para que todos vissem.

— Pinças para cachear cabelos — disse. A multidão aplaudiu.

— Não importa — disse Ford. — Roma não se fez num dia.

A multidão não tinha a mais remota idéia do que ele estava dizendo, mas mesmo assim adoraram. E aplaudiram.

— Bem, você está sendo totalmente ingênuo, obviamente — disse a garota. — Quando você tiver trabalhado com marketing tanto quanto eu vai saber que antes que um novo produto possa ser desenvolvido ele tem que ser devidamente pesquisado. Precisamos descobrir o que as pessoas esperam do fogo, como se relacionam com ele, que tipo de imagem ele tem para elas.

A multidão estava tensa. Esperavam algo de sensacional de Ford.

— Enfia no nariz — disse ele.

— O que é precisamente o tipo de coisa que precisamos saber — insistiu a garota. — As pessoas querem fogo que possa ser introduzido nasalmente?

— Vocês querem? — perguntou Ford à massa.

— Queremos! — gritaram alguns.

— Não! — gritaram outros alegremente. Não sabiam, só achavam ótimo.

— E a roda? — disse o Capitão. — Como vai essa roda? Parece um projeto terrivelmente interessante.

— Ah — disse a garota de marketing —, estamos encontrando alguma dificuldade aí.

— Dificuldade? — exclamou Ford. — Dificuldade? Como assim, dificuldade? É a máquina mais simples de todo o Universo!

A garota de marketing olhou para ele com mau humor.

— Muito bem, Sabe-Tudo — disse. — Já que você é tão esperto, então diga de que cor ela deve ser.

A massa delirou. Um ponto para o time da casa, pensaram. Ford sacudiu os ombros e sentou-se de novo,

— Zarquon Todo-Poderoso — disse —, nenhum de vocês fez nada?

Como que em resposta a sua pergunta houve um repentino clamor na entrada da clareira. A multidão não acreditava na quantidade de diversão que estava tendo aquela tarde: uma tropa de cerca de uma dúzia de homens vestindo os restos de seus uniformes do terceiro regimento de Golgafrincham entrou marchando. Estavam bronzeados, saudáveis e totalmente exaustos e enlameados. Pararam a um "alto" e perfilaram-se atentos. Um deles desfaleceu e não se moveu mais.

— Capitão! — gritou Número Dois, que era o líder. — Permissão para informe, senhor!

— Tá, tudo bem, Número Dois, sejam bem-vindos e tudo o mais. Acharam alguma fonte de água quente? — disse o Capitão, desesperançado.

— Não, senhor!

— Foi o que pensei.

Número Dois atravessou a multidão é apresentou armas diante da banheira.

— Descobrimos um outro continente!

— Quando foi isso?

— Fica além do mar... — disse Número Dois, estreitando os olhos expressivamente — a leste!

— Ah.

Número Dois voltou o rosto para a multidão. Ergueu sua arma acima da cabeça. Essa vai ser ótima, pensou a massa.

— Declaramos guerra!

Aplausos desenfreados explodiram em todos os cantos da clareira. Isto superava todas as expectativas.

— Espere um minuto — disse Ford Prefect —, espere um minuto!

Levantou-se e pediu silêncio. Após um instante, conseguiu, ou pelo menos conseguiu o melhor silêncio que podia sob as circunstâncias: as circunstâncias eram que o tocador de gaita de foles estava espontaneamente compondo um hino nacional.

— Tem que ter esse gaiteiro? — indagou Ford.

— Ah, sim — disse o Capitão —, nós lhe demos uma subvenção.

Ford considerou a idéia de colocar isso em debate mas rapidamente decidiu que a loucura prevaleceria. Em vez disso, atirou uma pedra no gaiteiro e virou-se para Número Dois.

— Guerra? — disse.

— É! — Número Dois olhava desdenhosamente para Ford.

— Contra o continente vizinho?

— É! Guerra total! A guerra que vai acabar com todas as guerras!

— Mas ainda nem tem ninguém morando lá!

Ah, interessante, pensou a multidão, um ponto importante.

O olhar de Número Dois pairava sem se perturbar. A este respeito seus olhos eram como um par de pernilongos que pairam propositalmente cinco centímetros diante do seu nariz e se recusam a se desviar por golpes com as mãos, tapas de mata-moscas ou jornais enrolados.

— Eu sei disso — disse —, mas um dia vai ter! Por isso deixamos um ultimato com um espaço em branco para eles preencherem.

— O quê?

— E explodimos algumas instalações militares. O capitão debruçou em sua banheira.

— Instalações" militares, Número Dois? — disse. Os olhos tremularam por um momento.

— Sim, senhor, instalações militares em potencial. Tudo bem... árvores.

Passou o momento de incerteza, seus olhos adejavam para a audiência.

— E também — vociferou — interrogamos uma gazela!

Posicionou elegantemente sua Matazap debaixo do braço e marchou através do pandemônio que irrompera pela multidão em êxtase. O máximo que conseguiu caminhar foram alguns passos antes de ser levantado e carregado para uma volta de honra ao redor da clareira.

Ford sentou-se e começou a bater negligentemente duas pedrinhas, uma contra a outra.

— Então, o que mais que vocês fizeram? — indagou, quando as celebrações tinham acabado.

— Começamos uma cultura — disse a moça de marketing.

— Ah, é? — disse Ford.

— É. Um dos nossos produtores de cinema já está fazendo um fascinante documentário sobre os homens das cavernas nativos da área.

— Não são homens das cavernas.

— Parecem homens das cavernas.

— Eles vivem em cavernas?

— Bom...

— Vivem em cabanas.

— Talvez estejam redecorando suas cavernas — gritou um gaiato na multidão.

Ford virou-se para ele, irritado.

— Muito engraçado — disse —, mas vocês notaram que eles estão morrendo?

Em sua viagem de volta, Ford e Arthur tinham deparado com duas aldeias abandonadas e pelos corpos de vários nativos na floresta, para onde tinham se arrastado para morrer. Os que ainda viviam pareciam doentes e apáticos, como se sofressem de uma doença do espírito e não do corpo. Andavam indolentemente e com uma tristeza infinita. Seu futuro lhes tinha sido tirado.

— Morrendo! — repetiu Ford. — Sabe o que isso significa?

— Ahn... que não devemos vender apólices de seguro para eles? — gritou o gaiato outra vez.

Ford ignorou-o e apelou para toda a multidão.

— Será que dá para vocês tentarem entender — disse

— que foi só depois da gente chegar aqui que eles começaram a morrer?

— Na verdade isso calha magnificamente no filme — disse a garota de marketing —, dá aquele toque pungente que é a marca característica de todo documentário realmente bom. O produtor é muito empenhado.

— Tem que ser — murmurou Ford.

— Eu soube — disse a garota voltando-se para o Capitão que começava a discordar com a cabeça — que ele quer fazer um sobre o senhor em seguida, Capitão.

— Ah, verdade? — disse ele animado. — Isso é maravilhoso.

— Ele tem um ângulo muito interessante sobre esse assunto, sabe, o fardo da responsabilidade, a solidão do comando...

O Capitão festejou por uns instantes.

— Bom, eu não acentuaria demais esse ângulo, sabe — disse finalmente. — A gente nunca está sozinho com um pato de borracha.

Ergueu o pato para o alto para a multidão apreciá-lo.

Por todo esse tempo o consultor de gerência tinha ficado sentado num silêncio de pedra, com as pontas dos dedos apertadas contra as têmporas para indicar que estava esperando e que esperaria o dia todo se fosse necessário.

A esse ponto ele resolveu que não ia esperar o dia todo nada, ia só fingir que a última meia hora não tinha acontecido.

Levantou-se.

— Se — disse sucintamente — pudéssemos por um momento passar para a questão da política fiscal...

— Política fiscal! — gritou Ford Prefect. — Política fiscal!

O consultor de gerência dirigiu-lhe um olhar que apenas uma pirambóia poderia imitar.

— Política fiscal... — repetiu — foi o que eu disse.

— Como vocês podem ter dinheiro — perguntou Ford — se nenhum de vocês produz efetivamente alguma coisa? Não nasce em árvores, sabia?

— Se você me permitisse continuar...

Ford consentiu com um sinal de cabeça, desanimado.

— Obrigado. Desde que decidimos há algumas semanas adotar a folha como moeda legal, todos nos tornamos, naturalmente, imensamente ricos.

Ford assistia incrédulo à multidão, que murmurava apreciativamente e passava os dedos pelos montes de folhas que tinham entuchado em seus macacões.

— Mas também — prosseguiu o consultor de gerência — deparamos com um pequeno problema de inflação decorrente do alto nível de disponibilidade de folhas, o que significa, eu acho, que o valor atual de câmbio corresponderia a algo como três florestas caducas para a compra de um amendoim da nave.

Murmúrios alarmados vieram da multidão. O consultor de gerência os aplacou.

— Então, com o objetivo de prevenir este problema — continuou -- e efetivamente revalorizar a folha, estamos prontos a lançar uma campanha massiva de desfolhação e... ahn, queima de toda a floresta. Acredito que todos concordarão que é um passo sensato diante das circunstâncias. A massa parecia um pouco insegura quanto a isso por alguns segundos até que alguém lembrou o quanto isso elevaria o valor das folhas em seus bolsos, o que os fez dar pulos de alegria e ovacionar de pé o consultor de gerência. Os contadores entre eles previam um outono muito lucrativo.

— Vocês estão todos loucos — explicou Ford.

— Estão absolutamente apalermados — sugeriu.

— Vocês são um bando de otários delirantes — opinou.

O grosso das opiniões começou a voltar-se contra ele. O que tinha começado como excelente diversão tinha agora, na visão da massa, deteriorado em mero abuso, e já que este abuso era principalmente dirigido contra eles, eles ficaram fartos.

Sentindo essa mudança no ar, a garota de marketing voltou-se para ele.

— Talvez venha ao caso — disse ela — perguntar o que você andou fazendo todos estes meses então. Você e aquele outro intruso estão desaparecidos desde o dia em que chegamos.

— Estávamos viajando — disse Ford. — Fomos tentar descobrir alguma coisa sobre este planeta.

— Oh — disse a garota maliciosamente —, não me parece muito produtivo.

— Não? Pois bem, eu tenho notícias para você, meu amor. Nós descobrimos o futuro deste planeta.

Ford esperou que esta afirmação produzisse seu efeito. Não produziu nenhum. Não sabiam do que ele estava falando.

Continuou.

— Não importa um par de fígados fétidos de cães o que vocês resolverem fazer de agora em diante. Queimar as florestas ou o que for, não vai fazer nem um arranhão de diferença. Sua história futura já aconteceu. Vocês têm dois milhões de anos e pronto. Ao final desse tempo sua raça vai estar morta, passada e já vai tarde. Lembrem-se disso, dois milhões de anos!

A multidão murmurava entre si, incomodada. Pessoas ricas como eles tinham acabado de se tornar não deveriam ser obrigadas a ficar escutando tipo de pagação. Talvez se eles dessem uma ou duas folhas para o sujeito ele fosse embora.

Não precisaram se incomodar. Ford já estava caminhando para fora da clareira, parando apenas para sacudir a cabeça para Número Dois, que já estava descarregando sua Matazap em algumas árvores das proximidades.

Voltou-se uma vez.

— Dois milhões de anos! — disse, e deu uma risada.

— Bom — disse o Capitão com um sorriso reconfortante —, ainda há tempo para mais alguns banhos. Alguém podia me passar a esponja? Acabei de derrubar aqui do lado.

 

Um quilômetro mais ou menos floresta adentro, Arthur Dent estava entretido demais no que estava fazendo para ouvir Ford Prefect aproximar-se.

O que estava fazendo era um tanto curioso, e era o seguinte: sobre um pedaço largo de pedra chata ele tinha riscado um grande quadrado, subdividido em cento e sessenta e nove quadrados menores, treze por lado.

Em seguida tinha juntado um monte de pedrinhas achatadas e riscado uma letra em cada uma. Sentados morosamente em torno da pedra estavam alguns homens nativos sobreviventes a quem Arthur estava tentando apresentar o curioso conceito encarnado nessas pedras.

Até agora não iam muito bem. Tinham tentando comer algumas, enterrar outras e jogar o resto fora. Arthur conseguira finalmente convencer um deles a colocar algumas sobre o quadro riscado na pedra, o que já era bem mais do que tinha atingido na véspera. Juntamente com a deterioração moral dessas criaturas, parecia haver uma deterioração correspondente em sua inteligência efetiva.

Com o intuito de instigá-los, Arthur colocou ele mesmo algumas pedras no quadro, e tentou encorajar os nativos a acrescentarem outras.

Não estava dando certo.

Ford assistia, quieto, ao pé de uma árvore próxima.

— Não — disse Arthur a um dos nativos que acabava de espalhar algumas das pedras num acesso de abissal depressão —, o Q vale dez, está vendo, e está num quadrinho de três vezes o valor da palavra, então... olha, eu expliquei as regras para você... não, não, olha, por favor, larga esse osso de maxilar... tudo bem, vamos recomeçar outra vez. E veja se se concentra desta vez.

Ford apoiou o cotovelo na árvore e a cabeça na mão.

— O que você está fazendo, Arthur? — perguntou calmamente.

Arthur levantou o olhar, tomado de surpresa. Teve de repente a sensação de que aquilo tudo poderia parecer um pouco estúpido. Tudo o que sabia era que tinha funcionado como um sonho quando ele era criança. Mas as coisas eram diferentes naquela época, ou melhor, iam ser.

— Estou tentando ensinar os homens das cavernas a jogar palavras-cruzadas — respondeu.

— Não são homens das cavernas — disse Ford.

— Parecem homens das cavernas. Ford deixou passar.

— Tá bom — disse.

— É um trabalho duro — disse Arthur, exausto. — A única palavra que eles sabem é grunhido e não sabem como escreve.

Suspirou e recostou-se.

— Aonde você quer chegar com isso? — perguntou Ford.

— Temos que encorajá-los a evoluírem! A se desenvolverem! — disse Arthur furiosamente. Esperava que o suspiro exausto e agora esta manifestação de fúria pudessem disfarçar a sensação de estupidez que estava sentindo no momento. Não disfarçou. Ele se levantou.

— Você pode imaginar como seria um mundo descendente daqueles... cretinos com que a gente chegou? — disse.

— Imaginar? — disse Ford erguendo as sobrancelhas. — A gente não precisa imaginar. A gente viu.

— Mas... — Arthur agitava os braços em vão.

— A gente viu — disse Ford —, não tem saída. Arthur chutou uma pedra.

— Você contou para eles o que a gente descobriu? — perguntou.

— Hmmmmmm? — disse Ford, sem estar realmente concentrado.

— A Noruega — disse Arthur —, a assinatura de Slartibartfast no glaciar. Você contou para eles?

— Qual é a questão? O que significaria para eles?

— O que significaria? — disse Arthur. — O que significaria? Você sabe perfeitamente bem o que significa. Significa que este é o planeta Terra! É a minha casa! Foi aqui que eu nasci?

— Foi? — disse Ford.

— Tudo bem, vai ser.

— Sim, dentro de dois milhões de anos. Por que você não diz isso para eles? Vai lá e diz pra eles: "Dá licença, eu só queria colocar que dentro de dois milhões de anos eu vou nascer a alguns quilômetros daqui". Vamos ver o que vão dizer. Vão te encurralar no alto de uma árvore e colocar fogo.

Arthur absorveu essa com tristeza.

— Encare os fatos — disse Ford. —Aqueles boçais são seus antepassados, e não estas pobres criaturas aqui.

Foi até onde os homens-macaco remexiam apaticamente nas pedrinhas. Balançou a cabeça.

— Deixa pra lá estas palavras-cruzadas, Arthur. Isto não vai salvar a raça humana, porque esta turma não vai ser a raça humana. A raça humana está no momento sentada em torno de uma pedra do outro lado deste morro fazendo documentários sobre si mesma.

Arthur estremeceu.

— Deve haver alguma coisa que a gente possa fazer — disse ele. Uma sensação terrível de desolação arrepiou seu corpo por ele estar ali, na Terra, na Terra que tinha perdido seu futuro numa horrenda catástrofe arbitrária e que agora parecia perder seu passado da mesma maneira.

— Não — disse Ford —, não há nada que a gente possa fazer. Isso não muda a história da Terra, percebe, isto é a história da Terra. Ame-os ou deixe-os, os golgafrichaneses são o povo de que você descende. Dentro de dois milhões de anos serão destruídos pelos vogons. A História nunca é alterada, está vendo, encaixa-se como num quebra-cabeça. A vida é uma coisa velha e engraçada, não?

Apanhou a letra Q e a atirou numa moita, onde ela atingiu um coelho jovem. O coelho começou a correr aterrorizado e não parou até ser capturado e comido por uma raposa que engasgou-se com um osso seu e morreu à margem de um riacho que em seguida a levou.

Durante as semanas que se sucederam Ford Prefect engoliu seu orgulho e engatou um relacionamento com uma garota que tinha sido funcionária graduada em Golgafrincham, e ficou tremendamente chateado quando ela veio a falecer subitamente por beber água de um tanque que tinha sido contaminado pelo cadáver de uma raposa. A única moral possível a se tirar desta estória é que nunca se deve atirar a letra Q numa moita, mas infelizmente há momentos em que é inevitável.

Como a maioria das coisas cruciais da vida, esta corrente de eventos foi completamente invisível a Ford Prefect e Arthur Dent. Estavam observando com tristeza um dos nativos que mexia morosamente com as letras.

— Pobres homens das cavernas — disse Arthur.

— Não são...

— O quê?

— Ah, esquece — disse Ford.

A desgraçada criatura emitiu um patético ruído de lamúria e deu uma pancada numa pedra.

— Tudo está sendo uma perda de tempo para eles, não? — disse Arthur.

— Uh uh urghhhhh — murmurou o nativo e deu outra pancada na pedra.

— Foram ultrapassados por limpadores de telefones.

— Urgh, grr grr, gruh! — insistiu o nativo, continuando a bater na pedra.

— Por que ele fica batendo na pedra? — disse Arthur.

— Acho que ele provavelmente quer jogar palavras-cruzadas com você outra vez — disse Ford. — Está apontando para as letras.

— Ele provavelmente escreveu crzjgrdwldiwdc outra vez, coitado. Eu vivo dizendo para ele que só tem um G em crzj gr dwldiwdc.

O nativo deu outra pancada na pedra. Olharam por sobre os ombros dele. Seus olhos saltaram.

Ali, no meio das letras embaralhadas havia treze dispostas numa clara linha reta. Eram três palavras escritas. As palavras eram estas: "QUARENTA E DOIS".

— Grrrurgh guh guh — explicou o nativo. Espalhou as letras, furioso, e foi ficar sem fazer nada debaixo de uma árvore próxima com um colega seu.

Ford e Arthur ficaram olhando para ele. E então ficaram olhando um para o outro.

— Estava escrito o que eu achei que estava escrito? — perguntaram um ao outro.

— Estava — responderam ambos.

— Quarenta e dois — disse Arthur.

— Quarenta e dois — disse Ford. Arthur correu para os dois nativos.

— O que vocês estão tentando nos dizer? — gritou. — O que isso quer dizer?

Um deles rolou no chão, levantou as pernas para o ar, rolou de novo e foi dormir.

O outro trepou na árvore e atirou castanhas-da-índia em Ford Prefect. O que quer que tivessem a dizer, já tinham dito.

— Você sabe o que isso significa — disse Ford.

— Não complètamente.

— Quarenta e dois é o número que Pensador Profundo deu como sendo a Resposta Fundamental.

— Certo.

— E a Terra é o computador que Pensador Profundo projetou e construiu para calcular a Pergunta da Resposta Fundamental.

— É o que somos levados a crer.

— E a vida orgânica era parte da programação do computador.

— Se você está dizendo.

— Eu estou dizendo. Isto significa que estes nativos, estes homens-macaco, são parte integrante do programa do computador, e que nós e os golgafrichaneses não somos.

— Mas os homens das cavernas estão morrendo e os golgafrichaneses vão obviamente tomar seu lugar.

— Exatamente. Então você sabe o que isto significa.

— O quê?

— Adivinha — disse Ford Prefect. Arthur olhou para ele.

— Que este planeta está dançando nessa — disse. Ford raciocinou por uns momentos.

— Ainda assim, alguma coisa deve ter saído — disse por fim —, porque Marvin disse que podia ver a Pergunta impressa em suas ondas cerebrais.

— Mas...

— Provavelmente a pergunta errada, ou uma distorção dela. Poderia nos dar uma pista, de qualquer forma, se a gente tivesse como descobri-la. Não vejo como, porém.

Ficaram deprimidos por um tempo. Arthur sentou-se no chão e começou a arrancar montinhos de capim, mas achou que essa era uma atividade em que ele não poderia ficar profundamente entretido. Não era capim em que ele pudesse acreditar, as árvores lhe pareciam sem sentido, as colinas onduladas pareciam ondular para lugar nenhum de o futuro parecia um túnel através do qual era preciso passar arrastando-se.

Ford mexeu no seu Receptor Sensomático de Subéter. Estava em silêncio. Suspirou e deixou-o de lado.

Arthur apanhou uma das letras de seu jogo rústico de palavras-cruzadas. Era um A. Suspirou e a recolocou no tabuleiro. A letra ao lado da qual ele a colocou era um D. Estava escrito DA. Pegou outras três letras e juntou a estas. Eram, por acaso, um M, um E e um R. Por uma curiosa coincidência, a palavra resultante expressava perfeitamente o que Arthur sentia a respeito das coisas naquela hora. Olhou a palavra por uns instante. Não a tinha escrito deliberadamente, era apenas um acaso. Seu cérebro lentamente engatou a primeira.

— Ford — disse ele subitamente —, olhe, se essa Pergunta está impressa nas minhas ondas cerebrais e eu não tenho consciência dela, ela deve estar em algum lugar do meu inconsciente.

— É, acho que sim.

— Deve haver um jeito de trazer para fora esta anotação inconsciente.

— Ah, é?

— É, introduzindo algum elemento de acaso que possa ser moldado por minhas ondas cerebrais.

— Como o quê?

— Como por exemplo tirar letras de palavras-cruzadas de um saco fechado.

Ford levantou-se.

— Brilhante! — disse. Tirou a toalha de sua mochila e com alguns nós cegos transformou-a num saco.

— Totalmente absurdo — disse —, completo delírio. Mas vamos fazer porque é um delírio brilhante. Vamos aí.

O sol passou respeitosamente por trás de uma nuvem. Umas poucas gotinhas de chuva caíram.

Juntaram todas as letras restantes e as jogaram no saco. Chacoalharam.

— Certo — disse Ford. — Feche os olhos. Vai tirando. Vai, vai, vai.

Arthur fechou os olhos e mergulhou a mão na toalha de pedras. Mexeu, remexeu e tirou quatro, entregando-as a Ford. Ford as foi estendendo no chão na ordem que ia recebendo.

— Q— disse Ford—, U, A, L... Qual! Piscou os olhos.

— Acho que está funcionando! — disse. Arthur lhe entregou mais três,

— E, O, R... Eor. Bom, talvez não esteja funcionando — disse Ford.

— Toma mais estas três.

— E, S, U... Eoresu... acho que não está fazendo sentido.

Arthur tirou mais três e depois mais duas. Ford as colocou em seus lugares.

— L, T, A... D, O... Eoresultado... É o resultado! — gritou Ford. — Está funcionando! É fantástico, está funcionando mesmo!

— Tem mais aqui — disse Ford, arrancando-as febrilmente o mais rápido que podia.

— D, E — disse Ford —, S, E, I, S... Qual é o resultado de seis... V, E, Z, E, S... Qual é o resultado de seis vezes... N, O, V, E... seis vezes nove... — fez uma pausa. —Vamos, cadê a próxima?

— Ahn, isso é tudo — disse Arthur —, eram todas que tinha.

Recostou-se, perplexo.

Vasculhou com as pontas dos dedos mais uma vez dentro da toalha mas não havia mais letras.

— Quer dizer que é isso? — disse Ford.

— É isso.

— Seis vezes nove. Quarenta e dois.

— É isso. Está tudo aí.

 

O sol surgiu brilhando radiante sobre eles. Um passarinho cantou. Uma brisa morna soprava por entre as árvores e as flores levando seu aroma para todo o bosque. Um inseto passou zumbindo e foi fazer seja lá que for que fazem os insetos no final da tarde. Um som de vozes veio da floresta seguido um momento depois por duas garotas que pararam surpresas à vista de Ford Prefect e Arthur Dent aparentemente agonizantes no chão, mas na verdade levados por uma silenciosa gargalhada.

— Não, não vão embora — gritou Ford Prefect engasgando-se —, vamos estar com vocês num minuto.

— Qual é o problema? — perguntou uma das garotas. Era a mais alta e esbelta das duas. Tinha sido funcionária pública em Golgafrincham, mas não gostava muito.

Ford se recompôs.

— Desculpe — disse. — Olá. Eu e o meu amigo só estávamos contemplando o sentido da vida. Um exercício frívolo.

— Ah, é você — disse a garota. — Você fez um belo espetáculo de si mesmo hoje à tarde. Você foi engraçado no começo, mas depois começou a exagerar.

— Exagerei? Ah, é?

— 6 sim. Para que tudo aquilo? — perguntou a outra garota, uma menina mais baixa, de rosto redondo, que tinha sido diretora de arte numa pequena companhia de publicidade em Golgafrincham. Por maiores que fossem as privações daquele novo mundo, ela ia dormir toda noite profundamente agradecida pelo fato de que fosse o que fosse que ela teria que ver de manhã, não seria uma centena de fotografias mal tiradas de tubos de pasta de dentes quase idênticos.

— Para quê? Para nada. Nada é para alguma coisa — disse Ford Prefect alegremente. — Venham, fiquem com a gente, eu sou Ford, este é Arthur. A gente estava ocupado em não fazer nada, mas dá para deixar isso para depois.

As garotas olharam para eles em dúvida.

— Eu sou Agda — disse a mais velha. — Esta é Mella.

— Olá, Agda, olá, Mella — disse Ford.

— Você fala? — perguntou Mella a Arthur.

— Ah, às vezes — disse Arthur sorrindo —, mas não tanto quanto Ford.

— Ótimo.

Houve uma pequena pausa.

— O que você quis dizer — perguntou Agda — com essa estória de que só temos dois milhões de anos? Eu não consegui ver sentido no que você estava falando.

— Ah, aquilo — disse Ford — não tem importância.

— É só que o mundo vai ser demolido para dar lugar a uma via expressa hiperespacial — disse Arthur sacudindo os ombros —, mas isso é daqui a dois milhões de anos, e de qualquer modo são apenas vogons fazendo o que os vogons fazem.

— Vogons? — disse Mella.

— É. Você não deve conhecê-los.

— De onde vocês tiraram essa idéia?

— Realmente não importa. É como um sonho do passado, ou do futuro — Arthur sorriu e olhou na distância.

— Você não se incomoda por não falar nada que faça sentido? — perguntou Agda.

— Escute, esqueça — disse Ford —, esqueçam tudo. Nada importa. Olhem que dia bonito, vamos aproveitar. O sol, o verde dos montes, o rio no vale, as árvores em chamas.

— Mesmo sendo só um sonho é uma idéia bem horrível — disse Mella. — Destruir um mundo só para fazer uma via expressa.

— Ah, eu já ouvi coisa pior — disse Ford. — Eu li sobre um planeta da sétima dimensão que foi usado como bola num jogo de bilhar intergaláctico. Foi encaçapado direto num buraco negro. Morreram dez bilhões de pessoas.

— Isso é absurdo — disse Mella.

— Pois é, e só marcou trinta pontos.

Agda e Mella trocaram olhares.

— Olha — disse Agda —, vai ter uma festa hoje à noite depois da reunião do comitê. Vocês podem aparecer se quiserem.

— Tá, OK — disse Ford.

— Eu gostaria — disse Arthur.

Horas depois, Arthur e Mella estavam sentados assistindo à lua nascendo por trás do brilho vermelho das árvores.

— Essa estória do mundo ser destruído... — começou Mella.

— Dentro de dois milhões de anos, ahn.

— Você diz como quem realmente acha que é verdade.

— E, eu acho que é. E acho que eu estava lá. Ela sacudiu a cabeça, confusa.

— Você é muito estranho — disse.

— Não, eu sou muito comum — disse Arthur —, mas algumas coisas muito estranhas aconteceram comigo. Pode-se dizer que eu sou mais diferenciado do que diferente.

— E aquele outro mundo de que falou o seu amigo, aquele que foi atirado num buraco negro?

— Ah, esse eu não sei. Parece coisa do livro.

— De que livro? Arthur fez uma pausa.

— O Mochileiro das Galáxias, Guia da Galáxia para Caronas — disse por fim.

— O que é isso?

— Ah, é só uma coisa que eu joguei no rio esta noite. Acho que eu não vou querer mais — disse Arthur Dent.

 

                                                                                Douglas Adams  

 

                      

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